Date post: | 08-May-2023 |
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA
CAPA
ALESSANDRO FLAVIANO DE SOUZA
EDIÇÃO E [DES]ALINHAMENTO NA CIRCULARIDADE DO FENÔMENO CULTURAL
CUIABÁ-MT 2021
ALESSANDRO FLAVIANO DE SOUZA
lombada
EDIÇÃO E [DES]ALINHAMENTO NA CIRCULARIDADE DO FENÔMENO CULTURAL
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para a obtenção do título de Doutor em Estudos de Cultura Contemporânea, na Área de Concentração Estudos Interdisciplinares de Cultura, Linha de Pesquisa Poéticas Contemporâneas.
Orientadora: Prof.a. Dr.ª Andréa Ferraz Fernandez
Cuiabá-MT 2021
Dados Internacionais de Catalogação na Fonte.
D278e
de Souza, Alessandro Flaviano.
Edição e [des]alinhamento na circularidade do fenômeno cultural. Alessandro Flaviano de Souza. -- 2021
121 f.; 30 cm. Orientadora: Andréa Ferraz Fernandez. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Mato Grosso, Faculdade de
Comunicação e Artes, Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea, Cuiabá, 2021.
Inclui bibliografia. 1. Edição Audiovisual. 2. Circularidade. 3.Plasticidade Estrutural. 4. Decolonial. 5.
Séries Latinas. I. Título.
Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).
Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.
[AGRADECIMENTOS]
Agradeço a rede de professores do PPG ECCO, pela forma de acolher, orientar e estimular a produção científica. Nesse grupo, colo os doutores e doutoras, os amigos da secretaria do
Programa, colegas e amigos do mestrado e do doutorado.
Graças à confiança da orientação, pude exercitar a independência no processo científico. Sou grato pela orientação, dedicação e suporte da Dr.ª Andréa Ferraz Fernandez nesse percurso tão
especial que resulta na formação do primeiro Doutor na história de uma família.
À família que tem um local especial em minha vida.
Gratidão a minha mãe, Solange, por ser devota e amorosa.
In memorian, referencio com gratidão ao meu pai Beni, pelo exemplo, amor e incentivo.
Em especial, agradeço a minha esposa Idineia e minha filha Maria Helena que cuidaram do meu equilíbrio físico e emocional, mais que isso, deram-me amor, cumplicidade e inspiração
para concluir esta tese.
Gratidão.
[EPÍGRAFE]
Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje.1 (Ditado Africano Iorubá)
1 Agradecimento ao Emicida pela oportunidade de conhecer esse ditado.
[RESUMO]
Edição e [des]alinhamento na circularidade do fenômeno cultural é uma tese doutoral dentro do campo interdisciplinar dos estudos culturais contemporâneos, com ênfase no processo criativo. Discute-se a plasticidade estrutural da edição em narrativas seriadas nos serviços de vídeo sob demanda (SVOD) na internet. Como justificativa social, tem-se a importância da edição audiovisual enquanto resultado do desenvolvimento humano e a pertinência da edição enquanto processo de origem múltipla, quando o audiovisual é culturalmente tratado como principal meio de comunicação. Para tanto, a edição audiovisual é a organização e a estruturalidade mit-metodológica da abordagem qualitativa-explicativa. Os universos observados, dentro de Netflix, são formados pelas séries 3%, Edha e Sempre Bruxa, – uma produção brasileira, argentina e colombiana, respectivamente – uma vez que no período de 2016 a 2020 foram as primeiras séries originais patrocinadas pelo SVOD nos respectivos países. A edição das séries analisadas apresenta acoplamentos estruturais com a forma de vida da modernidade-mundo, movida por relações de trocas e modelos de produção capitalista, porém se abre espaço para iluminar uma outra percepção sobre a edição enquanto circularidade de um processo interdependente e originário no audiovisual, com base numa reflexão autoconsciente, autorreferenciada e autopoiética.
Palavras-chave: Edição Audiovisual. Circularidade. Plasticidade Estrutural. Decolonial. Séries Latinas.
[ABSTRACT]
Editing and [des]alignment in the circularity of the cultural phenomenon is a doctoral thesis within the interdisciplinary field of contemporary cultural studies, with emphasis on the creative process. It discusses the structural plasticity of editing in narratives serials at video-on-demand services (SVOD) on the Internet. As a social justification is the importance of audiovisual editing as a result of human development and the pertinence of editing as a process of multiple origin, when the audiovisual is culturally treated as the main means of communication. Therefore, the audiovisual editing is the organization and mit-methodological structurality of the qualitative-explanatory approach. The universe observed within Netflix is formed by the series 3%, Edha and Sempre Bruxa – a Brazilian production, an Argentine and a Colombia, respectively – because in the period from 2016 to 2020 were the first original series sponsored by SVOD in these respective countries. The edition in the analyzed series presents structural couplings with the life form of modernity-world driven by exchange relationships and capitalist production models, but opens space to illuminate another perception about the edition as circularity of an interdependent and originating process in the audiovisual, based on a self-conscious, self-referenced and self-poetic reflection.
Keywords: Audiovisual Editing. Circularity. Structural Plasticity. Decolonial. Latin Novels.
[Lista de Quadros]
Quadro 1 – Edição audiovisual como metodologia 28
Quadro 2 – Análise técnica de direção por cenas em 3% 30
Quadro 3 – Identificação da série 3% 31
Quadro 4 – Provedores de produto audiovisual sob demanda em Brasil 39
Quadro 5 – Provedores de produto audiovisual sob demanda em Argentina 40
Quadro 6 – Provedores de produto audiovisual sob demanda em Colômbia 41
Quadro 7 – Multiprotagonismo em 3% 44
Quadro 8 – Precariedade da facção em Edha 50
Quadro 9 – Temporalidades em Sempre Bruxa 52
Quadro 10 – O ser do ser humano / circularidade 60
Quadro 11 – Cortes em Come along, do!,de R. W. Paul (1898) 64
Quadro 12 – Do roteiro até a distribuição 74
Quadro 13 – Capa e Sinopse em Sempre Bruxa 77
Quadro 14 – O 1º minuto das séries 81
Quadro 15 – Relação usuários de internet, banda larga e assinantes da Netflix 86
Quadro 16 – Análise técnica de direção por cenas em 3% 88
Quadro 17 – Análise técnica de direção por cenas em Sempre Bruxa 96
Quadro 18 – Análise técnica de direção por cenas em Edha 102
Quadro 19 – Plasticidade estrutural da edição audiovisual como fenômeno cultural 108
[SUMÁRIO]
1. [INTRODUÇÃO] 13
1.1. [Uma questão] 16
1.2. [Objetivos] 16
1.3. [Observador & Justificativa] 17
2. [METODOLOGIA] 22
2.1. [Tipo] 22
2.2. [Observado] 24
2.3. [Estratégia] 26
2.3.1 [Ferramentas] 29
2.3.1.1 [Análise Técnica] 29
2.3.1.2 [Identificação da série] 31
2.4. [Limitações] 31
3. [ORIGINAIS] 33
3.1. [Veículo] 34
3.1.1. [Brasil] 38
3.1.2. [Argentina] 39
3.1.3. [Colômbia] 41
3.2. [3%] 42
3.3. [Edha] 48
3.4. [Sempre Bruxa] 50
4. [CIRCULARIDADE] 55
4.1. [Procedimental] 63
4.1.1. [Linha] 65
4.2. [Maquinária] 70
4.2.1 [Padrão] 76
4.3. [Faces] 79
5. [DIÁLOGO] 84
5.1. [Entrevista] 87
5.2. [Masmorra] 95
5.3. [Mãe] 100
5.4. [Proximidades] 105
6. [APONTAMENTOS FINAIS] 111
[REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS] 113
13
1. [INTRODUÇÃO]
Na epígrafe deste documento está um resumo do poder da comunicação para modificar
cenários. A pedra jogada hoje vai na direção do funcionalismo exclusivista dos meios de
industrialização dos serviços, da expressão artística e da produção cultural no audiovisual. No
contexto das poéticas contemporâneas, como linha de pesquisa do programa de pós-graduação
Stricto Sensu em Estudos de Cultura Contemporânea, coloca-se em pauta outro ponto de vista
sob as interferências do contemporâneo na edição audiovisual, na produção e consumo de
narrativas audiovisuais seriadas, distribuídas por serviços de vídeo sob demanda, originados na
internet. Um estudo relacionado com diversos fenômenos culturais, destacando-se:
- Fazer ver e ouvir o que se vê e ouve;
- Manter a conexão.
Na ementa da linha de pesquisa, e como espírito desta tese, está o abordar da “re-
configuração de práticas tradicionais mediante a incorporação de novos elementos (na cultura
e na arte) e, de outro, a produção (invenção) de novos modos de fazer que podem resultar na
introdução de novas práticas” (ECCO, 2017), assim, subversivamente, gerando uma discussão
com potência de autocriar.
As poéticas contemporâneas, ou o estudo e discussão científica sobre os processos
criativos, acontecem na interdisciplinaridade do conhecimento em que se encontram a
sociologia da comunicação, a economia da comunicação, a arte, a comunicação, a filosofia e os
estudos culturais. Sendo que o audiovisual, assim como o cinema, a configuração de inter, multi
e trans disciplinar, com a capacidade de acoplar-se, a fim de adaptar-se e sobreviver enquanto
um sistema autopoiético.
Caminhar na direção de explicações sobre a plasticidade estrutural da edição audiovisual
como fenômeno cultural implica na observação das relações internas e externas da escritura
audiovisual. Apresentar esta discussão doutoral, configurou-se em um processo de
questionamento desafiador diante do conhecimento tradicional sobre o cinema e o audiovisual,
a partir da análise da edição audiovisual como um processo autopoiético. Aborda-se a edição
audiovisual dada a sua importância nas formas de comunicação cotidianas alicerçadas no
audiovisual. Para tanto, considera-se o contexto e as relações culturais integradas ao
pertencimento do comportamento humano em uma forma majoritária de vida de uma
modernidade-mundo, obscurecida pelas labaredas do capital.
14
Imersos em uma estruturalidade de vida capitalista, em que se faz necessário retirar dos
olhos as travas dessa modernidade colonizadora, entre a polarização de centro e periferia, esta
pesquisa ocupa o meio entre esses conceitos. A partir disso, chama-se a atenção para uma outra
forma de perceber a edição, por meio de uma circularidade e interdependência com os fazeres
do audiovisual e o cultural, empreendendo nesse desafio pelo fato de, segundo Maturana e
Varela (1995), sermos criadores de nossa própria realidade, ou seja, somos seres autopoiéticos.
Para falar de um sistema produtivo hegemônico do audiovisual, significa oferecer uma
outra percepção para as relações de uma modernidade obscurecida pelo capital. Por isso, junta-
se às questões estéticas, técnicas, negociais e artísticas em um único discurso orientado por uma
autoconsciência, tendo o desejo de exercer crítica ao senso comum, pois não são poucas as
publicações que versam sobre o tema de forma a reforçar discursos hegemônicos ou
contraculturais.
Entre as diversas discussões sobre as características da televisão, acadêmicos investem
em análises nas quais uma janela de exibição pode ser maior que a outra. A exemplo desse
equívoco, está na comparação entre televisão e a internet, como se uma fosse maior ou mais
importante que a outra. O tamanho de uma janela não se afere apenas por sua capacidade de
cobertura ou tecnologia empregada, mas, principalmente, pela sua capacidade de respostas às
demandas sociais, formas de interferir e participar em processos das sociedades. Por exemplo,
em meio à pandemia do SARS-COV-2, as aulas das escolas públicas foram suspensas no Brasil,
dada a dificuldade da população em ter acesso à internet em casa para aulas assistidas por TICs,
tecnologias da informação e da comunicação. Essa dificuldade atingiu a maioria dos municípios
brasileiros. Contudo, no estado de Mato Grosso do Sul o governo providenciou a utilização da
televisão aberta para prover aulas à rede pública de ensino, fato ocorrido em maio de 2020. A
antiga televisão, em sua capacidade integradora comunitária, colocou-se à frente de tecnologias
transmissão do EAD (Ensino a Distância) por internet. Assim, o tamanho da janela de
distribuição do audiovisual é dado pela sua capacidade social e cultural, em contraponto ao
discurso pseudointegrador da globalização.
Atualmente, a edição, muitas vezes, também é tratada apenas como parte da pós-
produção, como esquema didático-acadêmico e da formação profissional. Nesses moldes, a
edição está na última fase da realização cinematográfica e audiovisual. Lembrando que,
segundo Rodrigues (2007), as etapas fabris da realização cinematográfica e audiovisual são:
levantamento de recursos, preparação, pré-produção, produção, “desprodução” e finalização.
Então, na finalização, a pós-produção ou a edição, para esta tese, todas as decisões são tomadas
15
sobre a escolha dos planos, dos cortes, dos sons, da música, dos efeitos, colorização,
distribuição de saída de áudio, nos interativos e no que mais for necessário para se finalizar a
narrativa.
Raymond Williams (2015), um dos precursores dos estudos culturais, visualizou a
cultura como comum à sociedade humana e cada uma com suas relações de significados. Ele
entendia que “o sistema de significados e valores que a sociedade capitalista gera tem de ser
derrotado no geral e no detalhe, por meio de um trabalho intelectual e educacional contínuo”
(p. 75). O trabalho intelectual e educacional é um posicionamento político. Significa olhar para
a sociedade como ela é e ser capaz de propor uma inteligência, uma construção, a qual esse par
se entrelace com a própria vida em sociedade, afinal, para Williams (2015), “a cultura é algo
comum a todos” ( p. 5), sendo essa a base da sociedade.
O [des]afio está em demonstrar outra visada sobre a edição num espectro macro, isto é,
o compartilhamento e compatibilização de códigos culturais, por isso, espera-se do leitor uma
potência analítica capaz de não restringir as possibilidades quanto ao tema e provocações
propostos nesta tese. Ademais, trata-se, justamente, de um convite para explorar conceitos a
partir de outra mirada (do espanhol), cujos sentidos pessoais são exigidos para experimentar os
exemplos audiovisuais citados. Experimentar! Esta é uma questão de ordem para que o
estranhamento produza o efeito de alcance da [des]obediência necessária a esta discussão. Sem
tratá-la apenas em suas partes, mas reconhecendo-as como dimensões relacionais, em
mutualidade de operação com o cultural na intenção de [des]colonizar o olhar. Deseja-se que o
desafio da desobediência seja descolonizar.
Na construção da tese, foram utilizados ícones para compor os títulos dos capítulos e
suas seções. Para expressar uma solução artística ao construir uma imagem tão profunda e
complexa quanto uma frase, a iconografia dos colchetes trouxe a tela junto com o texto, ao
mesmo tempo em que se entrelace o conceito de tela às marcações de corte inicial = [e de corte
final = ] da edição. Coloca-se uma forma de estar no mundo por meio de um processo artístico
integrado a um sistema unitário, com a finalidade de uma provocação estrutural sobre a edição
audiovisual. Assim, busca-se expressar o estado de presença, um modo de existir e um vínculo
singular com este estudo enquanto processo criativo autopoiético.
Esta tese transita dentro das novas teorias da comunicação, a somar com vários outros
estudiosos ao buscar formas de entender fenômenos da comunicação como fenômenos
culturais, em um processo de reinterpretar os autores canônicos e deles se aproximar no
contexto estudado, com as devidas considerações e necessárias atualizações.
16
1.1. [Uma questão]
Iniciando o percurso pelas inquietações e angústias enquanto editor, sabendo que elas
pertencem a uma complexa rede profissional e de outros editores, faz-se necessária a discussão
de um entre tantos assuntos carentes e ansiosos de debate sobre a edição. Na questão desta tese,
tem-se: como a plasticidade estrutural da edição se relaciona com narrativas seriadas
distribuídas por meio de serviços de vídeos sob demanda na internet?
1.2. [Objetivos]
Como objetivo deste estudo, buscou-se compreender a plasticidade estrutural da edição
como fenômeno cultural em narrativas audiovisuais seriadas distribuídas por serviços de vídeo
sob demanda na internet.
Em específico, entendendo todas as relações dentro de uma circularidade de eventos,
buscou-se descrever o universo da pesquisa sobre a edição audiovisual nas séries verificadas,
como se vê no terceiro capítulo, entre as páginas 33 e 54. Em tal universo encontram-se: a
relação do veículo de comunicação com os países produtores das séries, nas páginas 38 a 42; e
as séries observadas de forma crítica na relação com a edição, protagonismo e temporalidade,
entre as páginas 42 e 54.
Como também, como objetivo específico, procura-se distinguir como a edição se
configura enquanto estrutura e organização no produtivo audiovisual , apresentado no capítulo
3 e 4. No terceiro capítulo, fala-se dos conceitos de estrutura e organização a partir da corrente
teórica, visto das páginas 55 a 61. Já no quarto capítulo, das páginas 55 a 81, deu-se
continuidade pelo procedimental, maquinaria e imaginário da edição e o conceito de corte.
Identificar os acoplamentos estruturais que permeiam as correlações entre o cultural e o
processual da edição, foi outro assunto que ajudou a entender o fenômeno observado. Um
percurso de entendimento que compreende das páginas 33 a 97, ou seja, do terceiro ao quinto
capítulo.
Nesse esforço intelectual, analisou-se também o corte na criação, na organização e na
relação com o plano audiovisual. Abordou-se no Capítulo 5, um diálogo dos temas em cada
uma das séries, bem como exemplificou-se a utilização da ferramenta Análise Técnica de
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Direção por Cena e apresentou-se a visualização da plasticidade estrutural da edição. Esses
assuntos também foram retomados no último capítulo, entre as páginas 94 e 97.
1.3. [Observador & Justificativa]
Entre as diversas justificativas para a realização desta pesquisa doutoral, está no centro
de tudo a percepção de contar uma história a partir de quem a vive. Empreendo em uma
perspectiva na qual os fatos e as relações existentes falam a partir da expertise, dando sentido
ao ditado africano, apontado por Galeano (2008), em O Livro dos Abraços, que diz: “Até que
os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o
caçador” (p. 116).
Durante um pouco mais de duas décadas embrenhado nas matas da realização e da
academia do audiovisual, editando comerciais, documentários, ficção, programas de televisão,
programas de rádio, reportagens, videoclipe, videoaula e videoarte, as demandas foram sempre
além de editar na ilha de edição. Entre outros tantos anos de vivência ao redor do mundo,
participando de variados postos de trabalho do audiovisual em projetos de mercado, culturais e
independentes, apresentou-se uma entidade provocativa em um lugar que sempre trouxe prazer
apaziguador, isto é, a edição audiovisual. Este editor se tornou pesquisador.
A edição audiovisual pertence à indústria do entretenimento no cinema e no
audiovisual, nela é entendida como uma fase técnica no processo fabril orientada até o
resultado. O relatório da Firjan/Senai (2019) apontou para a criação de mais de 25 mil novos
empregos entre 2015 e 2017 no setor criativo no Brasil. Esses postos de trabalho estavam na
“transformação digital e valorização da experiência do consumidor” (2019, p. 4). O audiovisual
gerou 40.900 postos de trabalhos, com uma média de renda de R$ 3.240,00 no ano de 2017. No
Estado de Mato Grosso, foram registrados 1.656 empregos com a média salarial de R$ 2.561,00
no audiovisual. No setor nacional, as funções de Montador de filmes tiveram 6.200 postos,
enquanto a função de Edição de TV e vídeo empregou 3.400 trabalhadores. Os números do setor
para essas duas funções em Mato Grosso não estão disponíveis. Como justificativa social,
entendendo essas duas funções dentro do campo da Edição Audiovisual, é preciso assinalar o
impacto social de 9.600 empregos, um pouco mais de 23% dos postos de trabalho do
audiovisual nacional. A edição é um campo de trabalho com a demanda crescente para além
das janelas tradicionais, como o cinema e a televisão. O campo se ampliou para outras janelas
através da internet, utilizadas pelas empresas, produtores culturais, ativistas, comunidades,
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órgãos oficiais, sistemas educacionais e sociedade civil como redes sociais e canais de
streaming.
No desempenho da profissão de edição, foi necessário desenvolver capacidades,
habilidades e atitudes em uma lateralidade de conhecimento ostensiva sobre: ler e interpretar
roteiro, sem um diretor do lado na ilha de edição; criar animações em 2D e 3D; tratar as cores
de imagem de foto e em movimento; recortar, corrigir e criar imagens estáticas o para animação;
elaborar, desenhar, gravar, tratar e editar o som; samplear sons em músicas e vice-versa, para
compor material para editar; gerar créditos estáticos ou animados; gravar, limpar, tratar e editar
locuções; recortar e tratar ações em fundo verde, o chroma-key; gerar efeitos visuais e sonoros.
Então, quando se afasta o olhar dos lugares entendidos como o eixo de realização para a
indústria cinematográfica e audiovisual, onde os fazeres dos departamentos são bem definidos,
nota-se a necessidade do profissional ou da profissional da edição alcançar tal lateralidade de
conhecimento que fica regido por um relacionamento profissional extrativista fora do eixo.
Extrativista no sentido de tratar o trabalho da edição como comercialização de trabalho
especializado e multidimensionado para atender a tantas necessidades. No exercício da edição
audiovisual, em outras unidades da Federação brasileira, é exigido tais requisitos também.
Assim, tudo o que a indústria atribui à pós-produção, vira campo do editor nas realizações fora
do eixo das grandes produções da indústria do entretenimento.
No mestrado, fiz o estudo sobre o efeito especial digital no texto fílmico, ou seja, a
edição dentro da edição. Ao finalizar a dissertação, a discussão não ultrapassou o esperado de
um saber canonizado. A análise discursiva empreendida naquela altura me fez caminhar por
limitações metodológicas sem dar espaço para a percepção do contexto, quando concentrei
esforços na análise em relação ao texto fílmico. Os resultados mostram-se ainda muito
vinculados aos parâmetros hegemônicos dos modos de produção capitalista. Moldes sobre os
quais sobrepuseram-se os interesses do capital ao modo de fazer, linearizando os processos
como uma linha de montagem fabril, desde a inauguração da teoria da montagem até os dias de
hoje. Ao invés desses saberes ampliarem-se às discussões das metodologias de edição, como
organização da imagem e do som como discussão científica, continua-se a “beber na fonte” de
teorias exauridas e descontextualizadas.
Diversas inquietações apareceram no mestrado como: por que a academia discute tão
pouco a edição, sendo que esse fazer pode garantir a coesão da narrativa audiovisual ou derrubá-
la? Desde o vídeo feito por um estudante do ensino médio, até aos veículos de comunicação, é
a edição que promove o balanceamento para o entendimento dos textos fílmicos, televisivos e
19
audiovisuais? Ademais, deve ser considerando também a importância do audiovisual na relação
com os meios de comunicação, como o acesso aberto ou condicionado, com a manutenção dos
valores sociais e como aprendizado, uma vez que o aprendizado também acontece assistindo e
ouvindo as produções audiovisuais.
A primeira questão é muito ampla e provocativa, mas foi um alívio notar que diversos
editores, de formação acadêmica ou não, também compartilham da mesma percepção. A cada
novo livro sobre edição de filmes ou de televisão, como os de Ken Dancyger (2007), Walter
Murch (2004), entre outros, continuava seguindo a premissa a partir dos apontamentos dos
estudos russos da montagem. A persistência cultural da teoria da montagem apresentou-se como
um entrave para o entendimento sobre a edição ao se tomar o assunto levando-o a sério, na
urgência das necessidades atuais do pensar a edição. Ela, a teoria da montagem, tornou-se um
dogma. Como tal, discuti-la pode ser desconfortável, mas necessário.
A segunda questão coloca a perspectiva cultural da persistência da edição como modo
de narrar. Se para Certeau (1998) existem os modos de fazer e de usar como complementares
entre si, os modos de narrar criam uma outra via, aproximando e misturando o fazer e o usar
como ferramentas da contação de histórias, da construção do discurso, o que coloca a edição
como fenômeno cultural. Isso se dá, principalmente, quando há a possibilidade de o público
finalizar a edição no filme interativo ou editar sua própria sequência para os episódios de uma
série. Desse modo, comparando com a primeira questão, a edição está em uma outra faixa de
materialidade, mas elas são questões que se complementam.
Foi necessário quebrar os telhados da percepção enquanto editor, expondo-a às
instabilidades viscerais da edição e suas relações com as interferências internas e externas ao
audiovisual. Assim, convida-se a permitir, ser atravessado por tais instabilidades com as quais
sempre houve convivência; estranhamento! Compartilham-se as provocações dessa outra forma
de ver o quadro para além das bordas colocadas pela modernidade-mundo; observar para além
da continuidade fílmica, sobre os tipos de corte e entre outras questões técnicas; e ainda
questionar estas, tratadas como arte, estética, linguagem, montagem, entre outras roupagens
com falsa relação estabilizada. Como exemplo disso, está a utilização de binômios como cinema
e arte, linguagem audiovisual, estética audiovisual, mas que são construções culturais por
acoplamentos.
A perturbação original ainda persiste, mas estranhar a edição foi um rasgo no véu das
crenças teóricas, de relações de trabalho e modos de operar a práxis da edição para este
editor/pesquisador. De um estranhamento inicial, inspirado em Chklovski (1976), formalista
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russo, pensou-se neste estudo enquanto um obstáculo ao pensamento hegemônico e
organizativo sobre a realização audiovisual e cinematográfica. Contudo, não se oferecem
garantias de trilhar o caminho formalista que, por vezes, aproxima-se e vai ao longe deste
estudo. Esse posicionamento obrigou a um desapegar de convicções teóricas e de outras
conquistadas em campo com a edição em benefício da instabilidade. Trata-se de estranhar a
edição audiovisual por sua própria anatomia, como provocação para uma outra dimensão de
entendimento.
Reside um conflito entre as inquietações a respeito da relação do processo produtivo do
audiovisual ou cinematográfico e a edição na justaposição com o cultural. Eisenstein (2002-a),
que era erudito musical, disse que o cinema é conflito e que só acontece na dominante.
Dominante para esse cineasta russo não era a classe dominante, mas outra coisa. Um conceito
orquestralmente pensado, pois na música ocidental a quinta nota ou o quinto grau da escala
maior desempenha a função de nota dominante. Segundo Med (1996, p. 88) a dominante é a
nota mais importante da escala depois da tônica, pois é ela que “domina os outros graus, tanto
na melodia quanto na harmonia”. Ela causa tensão por oposição em relação à tônica que é a
primeira nota e o grau principal da escala. A tônica dá o tom de um arranjo do campo harmônico
tonal e a dominante exige uma resolução, uma finalização. Assim, o pensamento de Eisenstein,
sobre o cinema acontecer na dominante, tem a ver com: exigir uma resolução; estar em oposição
à tônica; resistir ao tom social dado pelo capital; conflitar entre as ideologias das classes
detentoras do capital e da proletária.
Esta tese foi também inspirada no conceito de dominante da harmonia funcional em
aproximação com na montagem de Eisenstein (2002-a). No entanto, auscultando previamente
o ente a ser observado, isto é, as relações da edição, foi percebida a necessidade de outras vias
para compreendê-lo, numa proposição de provocar o entendimento hegemônico, trilhando por
dentro do sistema produtivo e reprogramando a percepção geral no que diz respeito a edição.
Desobediência! O estranhamento está no despertar da desobediência, essa é uma forma
de estar no mundo movida por provocações sobre o positivismo do tecnicismo e as garras
obscuras da modernidade capitalista enquanto variáveis. Mas, principalmente, atenta-se para a
edição como fenômeno cultural entrelaçada a tais variáveis. Há de se fazer provocações para,
pelo menos, reconhecer os problemas estruturais associados à edição. Aquilo que Dussel (1980)
chama de epifania fulgura como o lugar de fala do pesquisador, como o alvorecer na floresta, o
retirar da catarata dos olhos. Estabelecendo-se uma analogia em relação à teoria da montagem
de Eisenstein (2002-a), a desobediência assemelha-se ao que ele categoriza como montagem
21
intelectual, ou seja, a desobediência opera a justaposição da tonalidade hegemônica do
entendimento sobre a edição e da atonalidade do estranhamento – o obstáculo – para, assim,
gerar outra ideia, outra inteligência.
Outrossim, a edição pode ser também o próprio resultado, como acontece em obras
audiovisuais interativas e jogos. Nessas obras, o público edita e ela é o respectivo efeito,
previsto, mas contemplado para além da realização audiovisual. A ruptura, como ontogenia
decolonial, vem de um processo que inicia com a percepção dos problemas estruturais, sendo
esse o local deste estudo. Assim sendo, trata-se de pegar o assunto por seu âmago, e é daqui a
partida na busca de um outro ânimo para discutir a edição e suas relações com o cultural
contemporâneo.
Merten (2003) fala do cinema entre a realidade e o artifício. Ao buscar uma definição
de cinema, declara seu otimismo quanto a globalização dizendo que “no novo mundo
globalizado, só a cultura regional e, dentro dela, o cinema, serão instrumentos de resistência
contra uma dominação que se afigura poderosa como um rolo compressor” (2003, p. 10).
Entretanto, notório é o rolo compressor ter se transformado em uma nave alienígena abdutora
de produções locais, na forma de provedores de streaming on demand, coletando espécimes do
mundo afora. Essas interferências na edição importam e necessitam discussão.
Nas audiovisualidades contemporâneas, o fator máximo é a multiplicidade, a qual os
atritos da adaptação entre o meio e o observado elevam a temperatura na direção do público e
do cultural. Machado (2008, p. 238) afirma que a multiplicidade é uma busca para “o projeto
estético e semiótico” do audiovisual atual, ou grande parte, justamente porque ela “exprime o
modo de conhecimento do homem contemporâneo”. De toda a parte provêm conhecimento e
aprendizado, não é diferente com o audiovisual. Estudar a edição vai de encontro a dores
profissionais e com a construção da comunicação mediada pelo audiovisual no contemporâneo.
Com estes argumentos, justifico os motivos e inquietações na busca de uma outra
compreensão sobre a edição como fenômeno cultural.
22
2. [METODOLOGIA]
Este estudo tem como natureza compreender e discutir a constituição de um fenômeno
cultural para ampliar e gerar conhecimento acerca da plasticidade estrutural da edição
audiovisual na relação com o cultural, em narrativas audiovisuais, distribuídas por meio de
serviço de vídeo sob demanda na Internet. Para isso, desenvolveu-se a metodologia a seguir.
2.1. [Tipo]
Considerando os objetivos supracitados, utilizou-se o paradigma de abordagem
qualitativa-explicativa. Além disso, constitui-se a edição audiovisual como estruturalidade
metodológica, para a qual o ambiente midiático é o campo do fenômeno, isto é, a localização
do observado. A abordagem foi realizada de forma individual, intencional, on-line e sistemática.
Como método, não é distanciado dos preceitos dos estudos em comunicação, ciências
sociais, artes. França (2016, p. 153) descreve a metodologia como “resultado de uma série de
definições: a inserção em uma área de conhecimento – no nosso caso, a Comunicação –, a
adoção de uma determinada compreensão de seu objeto de estudo – o processo comunicacional
– e a construção da questão-problema”. A autora defende o paradigma relacional da
comunicação que, ao se levar a cabo, os elementos fundantes da comunicação, o fenômeno da
comunicação é concreto e presente em nossa realidade, logo, entender a edição como fenômeno
da comunicação, significa reconhecer, a priori, sua presença e que, essa presença, só existe na
relação com o humano.
Duarte e Barros (2009, p. 28) explicam que “a comunicação corta transversalmente
várias disciplinas das ciências sociais. Em certas problemáticas, ela assume papel central”.
Nesse sentido, o audiovisual é uma forma multi-inter-trans-disciplinar ao abordar assuntos do
mundo enquanto fazer e modo de expressão, ou seja, mit-disciplinar. Para Farias (2020), ao
falar sobre as artes cênicas, afirma que o conceito mit-disciplinar exige um esforço do docente,
constituindo-se num desafio para a formação na aplicação dessas diversas abordagens, como
procedimento de viver e construção do conhecimento acadêmico.
Como reconheço a dificuldade em compreender esse conceito, e essa dificuldade pode ser, inclusive, uma resistência intuitiva a romper os muros que separam as disciplinas, gosto de partir da definição simplificada de: disciplina, multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e de transdisciplinaridade, para chegar finalmente à idéia de percurso mit-disciplinar. (FARIAS, 2020, on-line)
23
O audiovisual possui, assim como as artes cênicas, organização e estruturas próprias de
aproximação, desenvolvimento e escrita do assunto tratado, o que possibilita abordagens
qualitativas, quantitativas, mistas e multiprocedimentais. Neste estudo, a autorreferencialidade
metodológica abre caminhos para a organicidade e estruturação por meio da utilização da
edição como metodologia.
Diversas áreas do conhecimento utilizam o audiovisual como metodologia, por
exemplo, a etnografia. Garcez (2014, p. 261) utiliza como metodologia para geração,
segmentação e transcrição de dados audiovisuais como procedimentos analíticos plenos,
justificando que o trabalho investigativo é uma busca pela compreensão dos atores “o que
envolve trabalho de campo: observação, participação, registro, reflexão analítica com base nos
registros e relato descritivo, narrativo, persuasivo”.
Ao se apresentar o audiovisual como autorreferencialidade metodológica, sendo ele mit-
disciplinar, por exigir procedimentos e métodos distintos também para sua existência, descreve-
se a metodologia aplicada como uma investigação mit-metodológica quanto a forma de abordar
o problema na dinâmica entre o fenômeno cultural, o ambiente e o observador/pesquisador,
considerando a multidimensionalidade do observado e suas relações.
Entendendo a edição audiovisual como um fenômeno cultural, de acordo com
paradigma de Edmund Husserl (1859-1838), observa-se que as “pesquisas realizadas sob o
enfoque fenomenológico, o pesquisador preocupa-se em mostrar e esclarecer o que é dado”
(GIL, 2008, p. 14). Significa colocar o fenômeno em suspensão, entre parênteses, para ser
analisado. No entanto, neste estudo a fenomenologia aqui empregada seguirá outros
parâmetros, sendo estes em aproximação com a biologia do conhecer enquanto estudo
fenomenológico. Trata-se de construir o conhecimento sobre o fenômeno considerando-o
formado pelo observado, o observador e o contexto.
Maturana (2001), que inaugurou a biologia do conhecer, busca diferenciar sua
fenomenologia dos eixos tradicionais dos estudos dos fenômenos, os quais o estudado é isolado
do seu contexto. Como contraponto o autor não entende o fenômeno como uma forma
piramidal, como acontece na fenomenologia husserliana, cujo pesquisador está no topo e o
observado e o contexto, na base da pirâmide.
Entender a observação como uma espacialidade, obriga a reconhecer o fenômeno em
estudo na circularidade de fatores entrelaçados e criados pelo humano na sua forma de vida,
como aponta a perspectiva de Maturana e Varela (1995). Também, junto com a circularidade
24
do fluxo dos inúmeros fatores, estão as possibilidades de combinações, acoplamentos,
disjunções e distanciamentos ao colocar o fenômeno no arcabouço quântico da vida humana e
imerso aos meios capitalistas, ou seja, todos são entrelaçamentos de variáveis e atores que
fazem da vida o que ela é e do observado o que ele é. Assim, podendo colaborar também em
outras frentes de discussões sobre o audiovisual.
Uma pesquisa individual, por ser empreendida por um pesquisador/observador no
contato direto com o fenômeno, age-se no centro das relações entre o fenômeno e as variáveis
do ambiente. Para Maturana (2001), o contexto é tão importante quanto o observado e o
observador/pesquisador. Para ele essas três instâncias não formam uma tríade, mas um todo
cognitivo com a exposição e troca mútua de suas condições de forma circular.
Maturana (2001) aponta também que o entendimento circular coloca a todos os entes
envolvidos na pesquisa dentro do mesmo contexto. Espaço onde todos possuem a mesma
importância, pois cada instância opera em mutualidade de aprendizado e resposta com a outra.
Ele estabelece um processo cognoscitivo de relação com o ambiente e observado e, deles, para
com o observador/pesquisador. O observador/pesquisador é o centro do movimento circular de
observação do comportamento entre o observado e o ambiente.
Assim sendo, o termo on-line considera a relação de distribuição audiovisual por
internet, a forma de acesso ao universo do observado e a ele próprio. Isso porque, dessa relação
de distribuidor para usuário, estabelecem-se outras, como a comercial, da audiência, da
subjetividade, do comportamento, as quais todas acontecem durante a distribuição do
audiovisual e do consumo. A participação do observador/pesquisador é exigida pelo observado
por estar interno ao grupo de sujeitos em estudo. Participar significou compreender o
comportamento dos provedores, suas interfaces, as do público; motivações comerciais e
culturais; e os entrelaçamentos das variáveis para a constituição; e a localização da edição
enquanto circularidade no contexto. Como também, a participação é sistemática por necessitar
de parâmetros sistematizáveis para coleta dos dados e a análise deles. Para, assim, deixar uma
forma a investigação confiável e possivelmente replicável por outros.
2.2. [Observado]
O observador/pesquisador, o observado e o contexto são pertencentes a uma relação
circular e formando, juntos, um sistema de estudo de pertencimento ao ambiente. Nesse viés, o
observado desta pesquisa é a edição no entrelaçamento de relações com variáveis que atuam
25
sob ela na persecução da obra audiovisual, considerando também como ela interage com as
variáveis do ambiente cultural.
Uma parte do contexto está no grande grupo dos provedores de vídeo sob demanda
distribuídos pela internet. Esses provedores são os sites que oferecem serviços pagos para o
acesso a filmes, séries, documentários, animações e programas. Eles estão na profundidade de
cosmovisões, dentro do mundo dos comportamentos humanos personificados em dispositivos,
tecnologias e serviços vinculados ou não ao consumo.
A seleção das séries vem como resultado de um longo processo de discussão e de
orientação, no qual foram eleitos os interesses entre orientadora e orientando, com a finalidade
de colocar em pauta as realizações dos países da América do Sul. Em nove anos de atuação no
continente, os provedores de vídeo sob demanda fizeram muitos títulos transitarem nas
plataformas pela internet. Fato que dificultaria o recorte do estudo, pelo tamanho do universo
dos sujeitos. Algumas características foram deliberadas como necessárias para a escolha dos
sujeitos desta pesquisa:
- Deveriam ser provedores de vídeo sob demanda na internet com acesso restrito e
hospedar séries com produção própria de audiovisuais nacionais e da América do Sul;
- Ter produção própria do canal com obras nacionais e latino-americanas.
O acesso restrito marca um tipo de negócio audiovisual que a pouco tempo passou a ter
obrigações legais de distribuição de conteúdo em solo brasileiro, obtendo o mesmo tratamento
dado para as distribuidoras de canal por assinatura e, com pouco menos de dez anos no Brasil,
já compete com outros tipos de televisão por assinatura, por alcançar parâmetros de consumo e
por ser três vezes mais rápido que os modelos tradicionais por assinatura. O que coloca em
curso diversos entrelaçamentos com a forma de vida capitalista contemporânea.
A produção de obras nacionais e latino-americanas marca a existência de acoplamentos
legais instituídos pelo Estado, com os distribuidores de produtos audiovisuais. Esse é um fato
provocador de investimentos no país, com potencial de movimentação da economia na
contratação, bem como na própria execução de audiovisuais como propriedade do distribuidor.
Apresentou-se, assim, um complexo contexto no qual a determinação do veículo de
comunicação assumiu extrema importância. Como também, a edição foi observada nas séries
por meio das variáveis do ambiente, dadas pela forma de vida contemporânea, pelo
comportamento humano e cultural, as quais se identificou dois tipos de sujeitos: o tipo veículo
e o tipo obra audiovisual.
26
Os sujeitos do tipo veículo em operação no Brasil são os seguintes: Netflix, Amazon
Prime Video, Hulu (ABC), Google Play, iTunes Store, Uol Play e Net Movies. Dentre essas
variáveis, as que demonstraram ter as características necessárias foi Netflix. Esse distribuidor
criou selo distintivo para as obras próprias, como Original Netflix. Assim como tem contratado
obras prontas e patrocinado a realização de filmes e séries, sobretudo, porque faz parte do que
se convencionou chamar de “a nova televisão”, com alcance transnacional e de acesso restrito.
Na América do Sul, não são todos os países que fazem parte da distribuição industrial
dos provedores de audiovisual sob demanda na internet. Como enfrentamento decolonial pelo
reposicionamento geopolítico do conhecimento e estabelecendo aproximações igualitárias,
elencamos os seguintes critérios para a seleção dos indivíduos audiovisuais:
- Ter nacionalidade da América do Sul;
- Ter sido realizada entre jul./2016 e jun./2020;
- Ser a primeira série da nacionalidade produzida com o selo “Uma série Original
Netflix”.
Dentre todos do continente, apenas três países contemplam os requisitos de seleção,
dado por esse ambiente complexo, excludente e ao mesmo tempo inclusivo por captura
comercial. Nesse período foram encontradas produções no Brasil, Colômbia e Argentina como
séries Originais Netflix, respectivamente, sendo elas 3%, Edha e Sempre bruxa. Esse foi o
espaço midiático de verificação do observado, a edição audiovisual.
2.3. [Estratégia]
Para se tratar o audiovisual como um fenômeno cultural, resultante de um dos processos
de desenvolvimento do comportamento humano e pertencente a esse mesmo processo, buscou-
se modos de fazer para a existência de uma fenomenologia que não se prenda ao psicologismo
ou ao semioticismo e que, ainda, consiga unir o observado ao seu próprio contexto. Nesse
sentido, como ponto de partida, há uma relação interna para a compreensão do externo, de
acordo com Maturana e Varela (1995). Percebe-se que esse caminho se distingue do que propõe
Edmond Husserl em sua fenomenologia na qual, por exemplo, o objeto de estudo é colocado
entre parênteses em relação ao contexto, ou em suspensão, para ser estudado.
O observado demonstrou o caminho para ser observado, um ato que pressupõe a
existência de peculiaridades no modo de estar no contexto em estudo. A edição audiovisual,
como procedimento mit-metodológico, possibilita ter à mão variados procedimentos para a
27
coleta de dados, principalmente a existência de uma estruturalidade aberta para a coexistência
de procedimentos como, por exemplo, de análise do discurso, métrica audiovisual,
levantamento de fontes primárias e secundárias.
O fluxo dos procedimentos e arranjo das metodologias empregadas no Quadro 1,
doravante referenciadas, constituem a estruturalidade da edição como método. Desta maneira,
são divididos os procedimentos em etapas, batizadas com o nome dos procedimentos da edição,
são elas: pré-edição, preparação, 1º corte e finalização.
Na pré-edição, foram executados procedimentos exploratórios para levantamento de
matéria prima teórica, contexto, sobre os audiovisuais e exemplos de edição. Foi determinado
o que especificamente está em análise, isto é, a divisão dos planos constituídos da produção
intelectual sobre o observado e seu contexto.
Já a preparação, todos os planos dirigidos pelos objetivos são agrupados e descritos,
correlatos aos planos audiovisuais que passam por ajustes durante a edição. Isso produz
resultados analíticos sobre o observado na relação com a questão base.
No 1º corte, como na materialização de qualquer audiovisual, os planos são juntados
para responder à questão base e formar uma unidade de discussão.
Na finalização, a discussão gera uma ou várias sínteses sobre a compreensão gerada
pelo estudo, podendo ocorrer a proposição de diretrizes. Essas sínteses marcam o formato final
da pesquisa expresso em TCC, artigo, dissertação ou tese.
No Plano B, apresenta-se a leitura do ambiente e das variáveis independentes que atuam
sobre os sujeitos. A observação se deu seguindo os requisitos do macroambiente, com assuntos
de alcance geográfico, econômico, filosófico e comunicativo. Propriamente, foram tratados
assuntos como: globalização, globalizações, acoplamentos estruturais, comportamento
humano, tecnologias, cibercultura, veículo de comunicação, nova televisão, provedores de
vídeo sob demanda, bem cultural e interface digital de SVOD.
Os Planos C, D e E são os estudos da localidade em que se encontra o observado, a
edição audiovisual. A abordagem audiovisual foi elaborada em um relatório distinto, o que deu
a oportunidade de aprofundamento na narrativa, tomando o fenômeno como ele está, enquanto
é assistido pelo público.
A edição constitui-se de fazer unir o roteiro inicial e o resultado da produção junto a
organização dos elementos de imagem e som para a escrita do texto audiovisual. Significa
construir conhecimento a partir do objeto do estudo ao colocarmos uma outra espacialidade
metodológica como apresentado no Quadro 1:
28
Quadro 1 - Edição audiovisual como metodologia Etapa da metodologia Plano A Plano B Plano C Plano D Plano E PRÉ-EDIÇÃO Fase exploratória para levantamento de matéria prima teórica, contexto e sobre os audiovisuais em análise. É determinado o que especificamente está em análise.
Levantamento Teórico (1) Levantamento de corrente teórica; (2) Elaboração de quadros de referências/paradigmas; (3) Leitura e fichamento.
Leitura do Ambiente. (1) Método: Observação; métrica audiovisual; (2) Coleta de dados com anotações, levantamentos bibliográficos, dados econômicos e análise de situação; (3) Descrever ambiente do observado.
Série 3%. (1) Método: observação; métrica audiovisual; compreensão. (2) Descrever audiovisual; (3) Coleta de dados sobre a edição por ferramenta estruturada (4) Observar: 1º minuto, exemplos da construção da temporalidade em cada série.
Série Edha. (1) Método: observação; compreensão; métrica audiovisual (2) Descrever audiovisual; (3) Coleta de dados sobre a edição por ferramenta estruturada (4) Observar: 1º minuto e exemplos da construção da temporalidade em cada série.
Série Sempre Bruxa. (1) Método: observação; métrica audiovisual; compreensão. (2) Descrever audiovisual; (3) Coleta de dados sobre a edição por ferramenta estruturada; (4) Observar: 1º minuto e exemplos da construção da temporalidade em cada série.
PREPARAÇÃO Todos os planos dirigidos pelos objetivos são agrupados e descritos. Isso produz resultados analíticos sobre o audiovisual na relação com a questão base.
Resultados A. (4) Análise de dados em relatório.
Resultados B. (4) Análise de dados em relatório.
Resultados C. (4) Análise de dados em relatório.
Resultados D. (4) Análise de dados em relatório.
Resultados E. (4) Análise de dados em relatório.
1ª CORTE (CINEMA) Como na materialização de qualquer audiovisual, os planos são juntados para responder à questão base e formar uma unidade de discussão.
(5) Responder à questão de base: essa é a categoria de base teórica de discussão do assunto contida na questão geral da pesquisa. Neste ponto, ela dirige para a discussão entre os planos, somando-os aos seus resultados na relação com as questões específicas. (6) Discussão. Discute-se sobre a inter-relação dos planos e seus resultados.
FINALIZAÇÃO A discussão gera uma ou várias sínteses e não uma conclusão.
(7) Síntese ou sínteses. A partir da discussão da análise, elabora-se uma proposta, encaminhamento etc. Isso não é uma conclusão do trabalho. Trata-se do formato de apresentação das discussões como tese, dissertação, artigos etc.
Fonte: do autor.
28
29
Ao apresentar um quadro contendo o fluxo de procedimentos, fica a tentação de ver a
pesquisa como uma estrutura sólida, enrijecida, porém mantém-se a visão de circularidade e da
relação entrelaçada do observado com as variáveis do ambiente ao qual pertence. Nessa
estruturação, cada plano pode ser formado por procedimentos metodológicos diferentes,
configurando-se como uma mit-metodologia.
Após esse procedimento, buscou-se observar a edição na relação com o marco teórico,
o ambiente, a problemática, os objetivos e as questões específicas enquanto processo produtivo
e agente cultural. Nesse sentido, pode-se entender a edição enquanto procedimento audiovisual
dentro do processo de realização circular em sua organização e sua estrutura.
2.3.1 [Ferramentas]
Neste estudo foram utilizadas a análise técnica de cena e a identificação da série como
ferramentas de coleta de dados apresentadas no Quadro 2 e Quadro 3, respectivamente. Elas
têm a missão de possibilitar aprofundar no fenômeno para que esse demonstre suas relações em
uma compreensão da estruturalidade plástica da edição audiovisual.
Nesta investigação foram utilizados os materiais conexão de internet, uma smartTv, um
notebook, um smartphone, uma conta Netflix, conta Amazon Prime Video, conta Claro Vídeos
e conta Uol Play. Também, objetos de anotações, como canetas, bloco de notas e formulários
para coleta de dados qualitativos.
2.3.1.1 [Análise Técnica]
A Análise Técnica de cena é uma ferramenta da direção de um filme para interpretar o
roteiro e dividir os fazeres da equipe de realização, possibilitando a organização de pessoas,
materiais e lugares. Com atenção para o assunto da edição, item da ferramenta que viabilizou
correlacionar os dados com as variáveis do ambiente e da vida contemporânea.
Nas análises e discussões, utilizou-se a descrição de Temporada = T e de Episódio = E,
por exemplo, a descrição da série Sempre Bruxa, T1E4 dá a localização da temporada um e
episódio quatro. O Quadro 2 tira da generalidade de uma cena a especificidade do fenômeno
sem descontextualizá-lo, como pode ser verificado:
30
Quadro 2 - Análise técnica de direção por cenas Série: Nacionalidade: Temporada: Ano: SVOD:
Episódio Sequência Int/Ext Planos Minutagem Set Up Época Locação Ambientes
Duração Cena D / N
Elenco Figuração Outros Principal Apoio Peq. papeis 1° plano Fundo Massa Móveis
Cenografia Objetos de cena Figurinos Maquiagem
Movimento de Câmera Luz Efeitos visuais Efeitos sonoros
Resumo de Cena Nº Planos Minutagem Ação/Vídeo Áudio
Fonte: Adaptado de Rodrigues (2007, p.118).
30
31
2.3.1.2 [Identificação da série]
Outra ferramenta que auxiliou na compreensão do fenômeno em estudo foi a
identificação da série, das temporadas, dos episódios e dos responsáveis pela edição. A
ferramenta possibilitou sistematizar a observação e a compreensão do estado esperado da
edição, no cruzamento com a teoria de base e o contexto.
A razão de existir dessa ferramenta foi identificar como se dá a relação do SVOD com
a edição da série em termos estéticos, pois, se há a alteração de quem faz a edição, também
poderia ou não existir alteração estética do produto. Assim, o objetivo dessa ferramenta é
identificar se há alteração na equipe de edição e se essa alteração interfere na estética da série.
Cada série forneceu os dados para esta ferramenta de acordo como o disposto no Quadro
3:
Quadro 3 – Identificação da série 3%Série: 3% Nacionalidade: brasileira Início: ano de 2016 SVOD: Netflix
Temporada Episódio Direção Editor T1 E1 Cubos Fonte: do autor.
Por ser um estudo em que a análise levou a um nível de compreensão do fenômeno,
buscou-se na observação da ferramenta entender o observado com uma materialidade histórica.
2.4. [Limitações]
O estudo da edição audiovisual, neste caso, não pretende contemplar toda a extensão do
assunto. Justamente, por esse motivo, as relações processuais intrínsecas à ilha de edição não
serão debatidas. Embora seja utilizado ferramentas do arcabouço das técnicas do fazer do
audiovisual, a peregrinação deste estudo fenomenológico se dá no âmbito filosófico,
reconhecendo as nuances da técnica e das relações entre o técnico e profissionais, bem como
sua importância.
A exploração realizada para a coleta de dados do estudo teve como limitação:
- Não utilizar de questionários para os canais SVOD e realizadores das séries;
32
- Observar o material disponível para o assinante do serviço;
- Estabelecer relações entre observado, teoria e objetivos da pesquisa;
- Adaptar referências sobre metodologia da pesquisa ao método utilizado devido a não
existência de outros autores sobre o assunto;
- Atender aos objetivos, uma vez que eles determinam a operação da observação,
ficando fora do interesse desta pesquisa aqueles que escapavam.
33
3. [ORIGINAIS]
O audiovisual, como um bem cultural apropriado pela indústria do entretenimento, passa
por uma sequência de transformações colocadas por uma forma de vida essencialmente
competitiva, majoritariamente capitalista e entrelaçada com o avanço do digital. Como uma das
marcas dessas mudanças, a Netflix mostra outra forma de exploração comercial distinta das
salas de exibição, uma vez que, para o consumo dos produtos audiovisuais, a plataforma digital
promoveu a concorrência pela atenção do público, num âmbito que possui a serialidade
audiovisual como fruto da produção industrial. Machado (2000) define a serialidade na
televisão como “apresentação descontínua e fragmentada do sintagma televisual” ( 2000, p. 83),
sendo Netflix pertencente a tal sintagma também compartilha das características basilares do
meio.
Para Lipovetsky (2004), a modernidade não acabou nem foi rompida, ela se aprofundou
marcada pela expansão do sistema econômico e político, acontecendo uma radicalização no
conceito do capitalismo/modernidade. Meio a essa conjuntura, e como reflexo dela, estão a
oferta, opções de consumo elevados a potência do excesso e a farta variedade de acesso aos
meios de comunicação. Fato observado no contexto deste estudo pela forma de vida de
sobrevivência comercial, pelas inúmeras ofertas de comodidade e promessas de satisfação.
Esses elementos são entendidos neste estudo como sintomas da modernidade contemporânea e
o audiovisual possibilita atravessamentos múltiplos movidos por intencionalidades dos
partícipes nas modalidades de produção e de troca da comunicação no contemporâneo.
O universo de estudo da edição audiovisual nesta pesquisa inicia com a identificação
sobre o veículo de comunicação nos três países em que se encontram as séries verificadas:
Brasil, Argentina e Colômbia. Justificado pela pertinência cultural de cada país na relação com
o veículo de comunicação, também da relação desse veículo com a captura da produção
audiovisual local.
No quadro pintado por Castells (2002), ao descrever o contexto como um lugar em que
a mídia audiovisual representa o material básico dos processos de comunicação, ressalta-se que
os produtos audiovisuais são resultantes do comportamento humano e da forma como esse
humano elabora e expressa o cultural pela edição.
Sabendo que “no sistema não há nenhuma representação do ambiente (assim como ele
é)” (LUHMANN, 1997, p. 43), infere-se que não existe uma correspondência fiel do ambiente,
ou do contexto, no sistema social. Ele não existe porque o contexto não é plano ou estático. O
34
ambiente complexo, segundo Luhmann (1997), obriga o sistema a encontrar caminhos para
sobreviver, dadas as formas inesperadas e constantes que o próprio ambiente apresenta. O autor
diz que o sistema sempre evolui, mesmo que seja possível planejar matrizes escolares,
procedimentos hospitalares, leis etc., de onde se entende que a adequação ou a evolução do
sistema ao contexto marca a forma não acabada da vida, sendo um fenômeno que não se esgota.
Pensando a edição como pertencente ao cultural e, por isso, também ao processo da
realização audiovisual, sem negligenciar a ponte existente entre o ambiente e o indivíduo, o
público e o editor, é possível que uma série desenvolva outros processos de acoplamentos
estruturais enquanto unidade e imaginário. Ela pode ser percebida como a estética ou o
resultado estético do produto. Há nessa ponte, entre a edição e os componentes sociais,
processos criadores e mantenedores de mundos acoplados através da economia, da política e
das leis, organizando-a e estruturando-a, tanto em relação ao audiovisual quanto em relação às
pessoas. Justamente, porque todos são sistemas que interagem entre si, acoplando-se e, por
vezes, distanciando-se. Neste momento, coloca-se a necessidade de descrever o universo da
pesquisa sobre a edição audiovisual, as séries verificadas.
3.1. [Veículo]
Quando a Netflix puxou a fila desse tipo de distribuidores de audiovisuais sob demanda
pela internet no Brasil, passou a interferir nas relações de mercado em diversos setores do
audiovisual, da publicidade, dos negócios de valores, da moda, entre outros. Assim, compara-
se a um processo colonizador ordenado por modalidades de troca para a conquista da fidelidade
do público. Isso ocorre nas séries em estudo, bem como outras nos mesmos países desta
pesquisa, como Fronteira Verde (Colômbia), O Escolhido (Brasil) ou Manzón – Punhos
assassinos (Argentina).
Ainda sobre esse processo, delineia-se sobre a minissérie colombiana Frontera Verde
foi criada por Diego Ramírez Schrempp, Mauricio Leiva-Cock e Jenny Ceballos, que estreou
em Netflix em agosto de 2019. A diegese é sobre a passagem de uma investigadora enviada
pela polícia da capital, Bogotá, para fazer a investigação de quatro feminicídios na floresta
Amazônica, na região da fronteira ente a Colômbia e Brasil. Esse é um trabalho peculiar, se
comparado à maioria das séries disponíveis no canal. A peculiaridade está na utilização de
planos contemplativos, longos e da valorização da percepção e cosmologia de mundo dos povos
originários que participam do drama. Ocorre também a manutenção cultural de aspectos do
35
Cinema Novo Latino-americano, com a utilização da câmera na mão e do plano sequência. Não
se pode negar que todos ganham com a comercialização do audiovisual em rede mundial,
contudo, a relação estabelecida conduz a histórica à subalternização do hemisfério sul, ao
mesmo tempo em que se instaura uma redistribuição geopolítica da produção audiovisual.
Ao longo de mais de cem anos e adaptações diversas, foi possibilitado que cada cultura
apropriasse do fazer audiovisual a partir de seus códigos culturais. Esses códigos, que
determinam o ritmo de fala, formas de usar as mãos, tipos de olhares ou de sorrisos, estão
ligados à materialidade histórico-cultural dos povos. Para Lotman (2010, p.33), “cada tipo de
codificação da informação histórico-cultural está ligado às formas radicais da autoconsciência
social, da organização das coletividades e da auto-organização da personalidade”.
Assim, justifica-se a abordagem para a identificação de nuances da colonização
midiática com a qual se relaciona a edição audiovisual. No contexto da amostra de estudo, o
provedor de vídeos sob demanda Netflix, entre vários, mostra-se como agente incisivo da
economia global. No conceito de Santos (2001, p. 23), a globalização está como o clímax do
percurso de internacionalização das economias, a qual, segundo ele, acontece o globalitarismo
com a presença dos Estados, impositores e subalternos que, junto às empresas, configuram um
contexto técnico-científico-informacional, agindo de forma perversa pelo totalitarismo do
dinheiro, instigando a competitividade que funcionam como verdadeiras guerras. A
globalização é uma fabulação, uma ideologia de opressão.
Netflix Originals ou “Uma série Original Netflix” é a distinção mercadológica para as
obras realizadas com patrocínio do veículo ou contratados com exclusividade. Essa distinção
marca o movimento da generalidade das globalizações para o interior das nacionalidades. Isso
acontece no instante em que a Netflix faz o movimento de descer em profundidade de uma
nacionalidade para colher a especificidade da obra e, na sequência, puxá-la para a generalidade
novamente da distribuição mundializada. Assim, esse ponto de coleta de um espécime
audiovisual surge impregnada de intencionalidades dos modos de produção capitalista, de
manutenção de traços culturais e com certa resistência às tradições audiovisuais, como a
utilização da câmera-na-mão, as abordagens temáticas, a construção de diálogos ou o
imaginário popular de povos tradicionais ou urbanos.
O serviço de Streaming on demand ou Vídeo sob Demanda (SVOD) são empresas
provedores de produtos audiovisuais sob demanda, como é a Netflix. Segundo Castellano e
Meimaridis (2016), trata-se de uma forma de transmissão contínua em fluxo de dados, o qual
os dados mais recentes são mostrados à medida em que são usados, basicamente acontecendo
36
em uma rede de pacotes de dados como a internet. Por oposição ao descarregamento de dados
(o download), no streaming, há a entrega de um fluxo de dados online ao usuário sem a
necessidade de descarregar no dispositivo, como numa transmissão.
Os SVOD como veículos de comunicação, chamados de “a nova televisão”, incorporam
ao conceito de televisão. Pode-se entender a televisão de duas maneiras, “um meio técnico de
produção e transmissão de informação e uma instituição social produtora de significados,
definida historicamente como tal e condicionada política, econômica e culturalmente”
(GÓMEZ, 2005, p. 29).
O conceito de televisão diante do espectador, sugerida por Gómez (2005), facilita o
entendimento do meio de comunicação diante dos acoplamentos estruturais produzidos e
contraídos pela televisão. Sobre o que se fala de provedores de vídeo sob demanda na internet,
como “a nova televisão”, deve-se entender que esses provedores são inovadores na utilização
da plataforma digital e passaram a portar as características da televisão ao se projetarem com
produções próprias como um canal tradicional. Além disso, mesmo com as modificações
estruturais nas duas formas de televisão, cada uma guarda em organização e estrutura suas
peculiaridades e distinções.
No entanto, há que se respeitar as diferentes globalizações que possibilitam a
coexistência de diversos modos de televisão, sem mortes anunciadas como, por exemplo,
quando o rádio entrou em risco por causa da televisão. Além disso, as globalizações e as formas
de consumo possível possibilitam, por exemplo, existir uma locadora de DVDs na cidade de
Sorriso, interior do estado de Mato Grosso, Brasil, nesta altura da história e em pleno
funcionamento comercial.
Xue (2014 p. 12) coloca a Netflix como “dominante no negócio de streaming de TV”.
A autora conta sobre o início da empresa como um serviço de DVD por correio. Quando a
indústria abandonou o DVD, provocou o desaparecimento de diversas empresas do ramo. Nesse
sentido, Xue (2014) também descreve Netflix como uma revolução na locação, tipo de
negócios, distribuição de bens audiovisuais e acesso ao conteúdo. Da entrega física para a
entrega digital, mostra-se como outra força que marcou uma alteração decisiva para uma
reconfiguração dos negócios de acesso condicionado no mundo, assim, provocando a televisão
para uma transformação.
Como provedor de bens culturais, a Netflix presta um serviço pago ao qual usa o
agrupamento estratégico de filmes e séries organizados a partir daqueles que apresentam melhor
37
desempenho comercial, segundo Hiller (2016). Hoje, seguido por outros VOD, ela opera como
janela contratante de produções como faz a televisão, ampliando seu campo de ação.
Caminos (2020) afirma que “Netflix nasce de una impertinencia y una respuesta a una
situación, según las anécdotas por la imposibilidad de la devolución de una película física en
tiempo y forma.” (2020, p. 31).
Inicialmente, a Netflix apareceu como uma mídia alternativa para a distribuição de
filmes e novelas americanas que representaram, em algum tempo, um sucesso de audiência. As
pesquisadoras Passos e Fernandez (2018) definem a mídia alternativa como “a mídia que
desafia as formas capitalistas dominantes da mídia de produção, estruturas de mídia, conteúdo,
distribuição e recepção” (2018, p. 5). A partir desse conceito, ao observar a Netflix, identifica-
se que não foi e não é uma mídia alternativa, justamente por ter nascido da iniciativa neoliberal
e ajustada ao modo de produção capitalista com o objetivo centralizador de distribuição de
produtos da indústria cinematográfica.
Lobato (2019, p. 70) define a Netflix como uma empresa transnacional que atua
“simultaneamente nacional em seu modelo de negócios; cosmopolita no conteúdo agregado na
plataforma; e até mesmo ‘quase global’ quando atua como um serviço de mídia".
Na relação entre o indivíduo e os SVOD apresentam múltiplas pistas de acessos para a
consumação da comunicação. Nessa realidade, acontece a formação de rede de lugares e de
acesso e processos cognitivos mediados pela materialidade da comunicação que são as vias ou
pontes existentes entre os dispositivos de acesso ao conteúdo, isto é, o lugar físico onde
acontece a consumação da comunicação e quem realiza a ação. Hoje, o lugar físico da
consumação da comunicação talvez seja uma utopia, considerando o processo autopoiético da
consumação da comunicação na dimensão da metáfora ritualística da conexão digital no
contemporâneo.
Para Massarolo e Mesquita (2018, p. 43) a autoprogramação vem modificando as
relações das práticas dos modos de usar entre as mídias tradicionais e o SVOD, interferindo
“nas dimensões econômicas e produtivas, esse novo regime de espectatorialidade afeta a
experiência dos sujeitos diante das telas, que agora se multiplicaram”.
A Netflix é uma mantenedora da cultura dominante com diretrizes claras da forma de
vida e de acúmulo de capital da modernidade-mundo e produtora de bens culturais audiovisuais.
De acordo com Chauí (2008, p. 59) cultura dominante “é o lugar a partir do qual se legitima o
exercício da exploração econômica, da dominação política e da exclusão social”. Os
acoplamentos intrínsecos a essas características colocam a cultura dominante como ponto de
38
vista inicial, incluindo a forma de vida capitalista como meio de compartilhar, a produção de
bens de consumos audiovisuais como a reunião e a expressão de todos esses acoplamentos.
Lembrando que se utiliza do jargão “compartilhar”, ao criar uma percepção publicitária da
prestação de serviços de divulgação de obras nacionais no estilo de fazer. Contudo, nas séries
verificadas, há ainda alguma resistência.
Desse modo, as séries verificadas trazem como resistência as proximidades peculiares
na forma crítica de abordar os assuntos. Fato esse que resulta na utilização de técnicas e controle
dos códigos culturais de cada país, sendo determinantes em como a edição se relaciona com a
complexa rede de interesses e de resistência cultural enquanto acoplamento estrutural entre o
audiovisual, o cultural e o veículo de comunicação.
3.1.1. [Brasil]
A forte pressão dos grupos internacionais e maiores acionistas dos distribuidores de
televisão por assinatura no país exerceram forças suficientes para movimentarem o mercado e
a legislação. A regulação foi levada a um reposicionamento quanto à defasada Lei da Tv a Cabo.
Em setembro de 2011, o Poder Executivo do Brasil aprovou a Lei nº 12.485, dispondo sobre a
comunicação audiovisual de acesso condicionado (BRASIL, 2011), como diz a lei, para regular
não só a televisão por assinatura, mas também os espaços para a transmissão de produtos
audiovisuais nacionais em todas as modalidades de distribuição sob demanda. Nessa lei, foi
incluída na modalidade empacotadora todos os veículos que distribuem multicanais ou
audiovisuais via satélite, antena, cabo ou internet. Desta forma, foram incluídos no pacote, os
canais distribuídos pelas TVs por assinatura, bem como os provedores de streaming on demand.
O Estado brasileiro vem buscando se recuperar de atrasos para chegar ao presente. Isso
porque é instigado pelas mudanças que o digital estabelece, em específico, na alteração
estrutural do consumo de audiovisuais entre os formatos tradicionais e digitais. A exemplo
disso, de acordo com a PRUV (2010), setor da ANATEL, em julho de 2019, ocorreram
16.690.570 de acessos e em julho de 2020 foram 15.162.616 acessos na televisão por assinatura,
ou seja, 1.527.954 de acessos deixaram de acontecer com a diminuição gradativa durante doze
meses. Em período de pandemia COVID-19, deve-se considerar que o financeiro das famílias
também sofreu restrições, logo essa baixa de acesso não foi apenas referente à migração para o
SVOD.
39
Entre os provedores, encontra-se empresas nativas da internet, empacotadoras de
televisão por assinatura, canais de televisão por assinatura e canais de televisão aberta. Essa
distinção toma por base a procedência da distribuição. Em atuação no Brasil, têm-se:
Quadro 4 – Provedores de produto audiovisual sob demanda em Brasil Nativo da Internet Tv por Assinatura Canais/Tv por Assinatura Canais/Tv Aberta
Netflix Sky play HBO Go Globo Play (BR)
Amazon Prime Video Now (Claro+Net) Telecine Play R7 Play (BR)
Hulu (ABC) Vivo Play (BR) Sony Crackle* EBC Play - Tv Brasil (BR)
Google Play Oi Play (BR) Disney+
iTunes Store Claro Vídeo Fox Play
Net Movies (BR) AXN
Uol Play (BR) Canal Sony
Oldflix (BR) Watch ESPN
CN Go – Cartoon Network
History Play
Max Go
*A Sony Crackle encerrou suas operações na América Latina em abril de 2019.
Fonte: Elaborado pelo autor, 2020.
Hoje são mais de 80 títulos disponíveis de origem brasileira em Netflix entre séries,
filmes, programas, documentários, animações, shows musicais, reality shows, produções
infantis e produções religiosas. Para 2020, a Netflix anunciou o lançamento das séries Menino
Maluquinho, Reality Z, Onisciente, Boca a boca e Bom dia, Verônica. Nesse campo de fomento,
também há um investimento de R$ 350 milhões para 30 produções Originais até 2021,
realização feita antes da pandemia da COVID-19.
3.1.2. [Argentina]
Os acoplamentos na Argentina, entre os OTT e o Estado, seguem em uma relação de
debates, mesmo o Estado manifestando-se por meio do projeto de lei na tarifação do serviço.
Ainda assim, a Netflix continua a performance de resultados em números de assinantes e
produções originais no país.
Em 2009 foi promulgada a Lei nº 26.522, “que regula os serviços de comunicação
audiovisual no território da República Argentina” (LINS, 2009, p. 3). Conhecida por Ley de
Medios, ou Lei dos Meios de Comunicação, marcou no país a redemocratização dos meios de
comunicação com a proibição de monopólio midiático, obrigatoriedade do idioma espanhol,
40
privilégio para produções locais de 20% da programação, sendo essas em uma janela de no
mínimo 8 novos filmes ao ano nas TVs.
A produção independente passou a figurar no cenário das transmissões com a nova Lei.
Assim, colocou-se a obrigatoriedade para a televisão aberta de oito obras anuais de realização
independente, “devendo o direito de antena ser adquirido antes do início da filmagem” (LINS,
2009, p. 20).
Quanto a atuação dos provedores, tem-se:
Quadro 5 – Provedores de produto audiovisual sob demanda em Argentina
Nativo da Internet Tv por Assinatura Canais/Tv por Assinatura Canais/Tv Aberta
Netflix Sky play HBO Go
Amazon Prime Video Direct Tv Play Sony Crackle*
Hulu (ABC) Cablevisión FLOW (AR) Disney+**
Google Play Telecentro Play (AR) Fox Play
iTunes Store Claro Vídeo AXN
Rockstar.tv (AR) Movistar Play (AR) Canal Sony
Watch ESPN
CN Go – Cartoon Network
History Play
*A Sony Crackle encerrou suas operações na América Latina em abril de 2019. **Estará disponível em Colômbia e Argentina a partir de novembro de 2020.
Fonte: Elaborado pelo autor, 2020.
Mesmo com todas essas alterações estruturais no setor audiovisual argentino, a
regulação dos serviços de streaming continua em debate. No epicentro do debate está a
disparidade entre os instituídos “televisão paga”, “por assinatura”, salas de cinema e os
entrantes, os SVOD, tendo por base a constatação de que se os instituídos e os entrantes devem
atender à legislação e recolher impostos.
No projeto de lei de Rede de Internet Aberta, no que se refere aos serviços audiovisuais,
o Centro de Estudios em Libertad de Expresión y Acceso a la Información, o CELE, da
Universidade de Palermo, não dá preferência sobre qual dispositivo se dá o acesso ao produto
audiovisual em plataforma digital. Justamente, porque a forma de acesso é uma metáfora
ritualística, seja por televisão, PDA ou celular. Assim, importa a pertinência do consumo, a
relação de transmissão e recepção do conteúdo audiovisual pela internet.
O documento nº 5396-D-2019 é a localização na Câmara dos Deputados para o debatido
Projeto de Lei, onde avança para instituir-se a participação dos SVODs ao Imposto de Valor
41
Agregado, o IVA, ao qual será destinado diretamente ao Fundo de Fomento Cinematográfico.
Encerra-se o projeto com o melhor argumento para a alteração da Lei, “para defender los
recursos del Cine Nacional y subsanar esa injustificada discriminación presentamos este
proyecto” (DIPUTADOS ARGENTINA, 2019, site).
Durante a pandemia, segundo a Netflix Media Center (2020), o veículo e o Governo de
Argentina, por meio do INCAA o Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais, criaram
um fundo de US$ 100 milhões e ampliaram para US$ 150 milhões para apoio aos trabalhadores
do setor afetados pelo COVID-19.
3.1.3. [Colômbia]
O Estado de Colômbia, entre os três observados, demonstra maior respeito às tradições
dos povos originários. Pode-se aferir pelos projetos dedicados aos povos indígenas, Povo Rrom,
comunidades negras, afrocolombianas, Raizal e Palenquero, com a criação da Origen Channel
em 2019 no serviço público de televisão digital terrestre. De acordo com a Autoridad Nacional
de Televisión en Liquidación – ANTV (2020), a existência da televisão étnica está dentro de
um projeto estratégico que visa refletir e possibilitar expressão nos meios de comunicação para
essas comunidades, como forma de garantir a proteção da diversidade étnica e cultural do país.
Mesmo com ações voltadas para atender e cuidar de seu povo, o Estado ainda não se posicionou
quanto à regulamentação e impostos para os SVOD. Quanto aos provedores, observa-se:
Quadro 6 – Provedores de produto audiovisual sob demanda em Colômbia
Nativo da Internet Tv por Assinatura Canais/Tv por Assinatura Canais/Tv Aberta
Netflix Sky play HBO Go Nuestra Tele
Amazon Prime Video Direct Tv Play Sony Crackle* RTVC Play
Hulu (ABC) Cablemás Disney+**
Google Play TV Colômbia Digital Fox Play
iTunes Store Claro Vídeo AXN
Canal Sony
Watch ESPN
CN Go – Cartoon Network
History Play *A Sony Crackle encerrou suas operações na América Latina em abril de 2019. **Estará disponível em Colômbia e Argentina a partir de novembro de 2020.
Fonte: Elaborado pelo autor, 2020.
Na Colômbia também há legislação específica para os fazeres, exploração e utilização
de produtos e de realização cinematográficos. Essas formam um conjunto de leis chamadas na
42
legislação como Proimágenes Colombia. Contudo, como visto no Quadro 8, a presença das
estratégias dos modos de produção do capital impacta a quantidade globalizada de ofertas
audiovisuais versus a oferta local, utilizando o modelo de plataforma de distribuição.
3.2. [3%]
Em uma breve história no tempo, quatro jovens da Universidade de São Paulo criam
3%. São eles Jotagá Crema, Dani Libardi, Daina Giannecchini e Pedro Aguilera Fernandes,
estudantes de Audiovisual da ECA/USP. Eles se inspiraram na criação da série 3%, como uma
série brasileira distópica a partir da interpretação e discussão sobre a literatura de Admirável
Mundo Novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell. Cronologicamente, esses dois
livros foram publicados em 1931 e 1949, respectivamente.
Desde a criação da Lei nº 12.485/2011, os SVOD passaram a contratar séries, filmes,
programas, documentários e animações em um volume interessante para a produção brasileira.
Também possibilitou o surgimento de editais por meio do Ministério da Cultura, como o Edital
FICTV/Mais Cultura em dezembro de 2008. Vencedores da primeira etapa do Edital, o grupo
de alunos supracitado realizou o piloto da série. O caso brasileiro foi o único entre os três países
a ser contratado a partir de um piloto. O seriado 3% foi o primeiro contratado pela Netflix e a
receber o selo Netflix Originals. Lançada no ano de 2015 para distribuição mundial, conta com
quatro temporadas, sendo a última lançada no ano de 2020. Dispõe dos editores Cristian Chien,
Vinícius Prado Martins, Daniel Grinspum e Lia Kulakauskas. Importante registrar a presença
feminina na primeira série do canal na América do Sul. A direção também foi descentralizada
entre os jovens criadores.
Considerando a definição de diegese de Xavier (2014, p. 204), como sendo “a ação, o
desenrolar da história e representa o universo espaço-temporal no qual se desenrola a narrativa”,
a diegese do produto audiovisual 3% aborda um mundo apocalíptico marcado pela separação
entre os escolhidos e excluídos do acesso a uma vida com direitos e recursos diversos com base
em meritocracia radical, ou seja, “o lado de lá” e “o lado de cá” são os termos que marcam a
separação desses mundos. Uma ilha chamada de Maralto é o objetivo de morada para todos os
jovens do continente ao completar 20 anos de idade. Esse lugar foi criado pelo Casal Fundador,
como expressa a lenda, mas que na segunda temporada revelou-se um trio.
Apresentou uma narrativa tradicional com enredo não-linear em sua forma de expressão.
Ela é tradicional por linearizar a compreensão dos fatos de acordo com o paradigma aristotélico,
43
ou seja, o início, o meio e o final são reconhecíveis e estruturam cada episódio à medida que se
encaminha o percurso geral do início ao final da temporada. O início é marcado pelo começo
do Processo; o final pela esterilização dos vencedores e a viagem à Maralto.
A organização da construção de sentidos da série mostrou-se complexa, a partir da
análise da edição enquanto metodologia de corte e fluidez dos atravessamentos culturais.
Maralto é uma ideologia. Para Gramsci (1978, p. 69), ideologia “é uma concepção particular de
mundo”. A ilha, que se constitui pela analogia da ideologia, é controlada por alta tecnologia,
projetada como a esperança para a humanidade, longe dos interesses regidos pelo capital e
poder que governava o continente. Ela foi idealizada por um trio de cientistas anarquistas,
hackers e amantes entre si, que usaram o dinheiro do sistema em suas pesquisas para sabotar e
destruir o próprio sistema. Eles fizeram o continente entrar em colapso e somente na ilha haveria
prosperidade como uma forma de vida contra-hegemônica, contudo, a proposta materializou-
se em uma nova de forma hegemônica cultural de viver.
O conceito de hegemonia de Gramsci (1978), se é possível sintetizar, nasce com o
desenvolvimento do Estado, em que há o consentimento ativo para a visão de mundo posta. O
autor fala da realização de um aparato hegemônico em que caminha pela criação de um novo
terreno ideológico, “quando se consegue introduzir uma nova moral adequada a uma nova
concepção do mundo, termina-se por introduzir também esta concepção, isto é, determina-se
uma reforma filosófica total” (1978, p. 52).
3% tem em seu enredo a narração a partir da busca pela derrubada do sistema
hegemônico com subenredos motivados pelas personagens e suas missões individuais. No
entanto, o derrubar do atual implica também no surgimento de outro poder hegemônico e,
consequentemente, de outro contra-hegemônico. As duas temporadas seguintes dão conta de
demonstrar esse raciocínio.
Quando os hackers criadores do Maralto derrubam o poder do continente, eles se
instituem como hegemônicos, situação explicada na segunda temporada. Na terceira temporada,
a Concha passa a ser um novo Estado na organização do continente, porém, havia a idealização
de corrigir a segregação imposta pelo sistema-mundo da ilha.
As relações de poder são dadas como fio condutor entre o hegemônico e o contra-
hegemônico, personificando a busca, a captura e a destruição de um pelo outro. No entanto,
isso é um problema flutuante, aquele que esconde os problemas estruturantes da sociedade. Em
3%, a segregação tem a função narrativa de dividir o mundo em “o lado de lá” e “o lado de cá”,
circunscrevendo um sistema-mundo controlado pelo Maralto como ideologia, presença e força.
44
A Ilha desempenha uma alegoria do papel dos campos elísios, onde há fartura, recursos
e não existem doenças ou distorções sociais. Um lugar que guarda a vida cercada pela existência
da flora e fauna preservadas, com ar puro e mananciais de água doce e do mar não poluídos.
Uma sociedade justa e equânime, regulada por diretrizes meritórias e coordenada por um
conselho de anciães. Na base dessa sociedade, está a não geração de filhos, sendo, deste modo,
uma sociedade estéril por determinação dos fundadores. Daí a necessidade de um Processo de
seleção de 3% dos jovens com 20 anos de idade para a renovação da população da ilha. Esses
jovens são acolhidos em sua chegada por padrinhos como meio de inserção na sociedade
perfeita.
Quadro 7 – Multiprotagonismo em 3% Localização Minutagem Ação Temporalidade/Protagonismo T1E1 [ 0 min. 41 seg.
] 04 min. 49 seg.
Michele se apronta e segue para o Processo. Faz a assepsia e vai para o vestiário colocar o uniforme de candidata do processo.
Vida vivida. Foco o desempenho de Michele, porém com apresentação de todos.
T1E2 [ 0 min. 20 seg. ] 1 min. 29 seg.
Fenando criança brinca de participar da entrevista do Processo.
Lembrança. Foco o desempenho de Fernando.
T1E3 [ 1 min. 00 seg. ] 2 min. 58 seg.
Joana é atacada e humilhada por capangas do Gerson, líder da milícia.
Lembrança. Foco o desempenho de Joana.
T1E4 [ 0 min. 20 seg. ] 3 min. 27 seg.
Marco caminha pelo corredor até chegar no alojamento e conversa com o grupo. Na lembrança, conversa com a governanta da casa.
Vida vivida e lembrança. Foco o desempenho de Marco.
T1E5 [ 1 min. 27 seg. ] 4 min. 19 seg.
Ezequiel é abordado por Aline sobre um menino do Continente. Aline faz chantagem para ser indicada a chefe do Processo por Ezequiel.
Vida vivida. Foco em Ezequiel.
T1E6 [ 0 min. 07 seg. ] 1 min. 12 seg.
Michele criança brinca com o irmão. André no apartamento.
Lembrança. Foco o desempenho de Michele.
T1E7 [ 0 min. 02 seg. ] 1 min. 28 seg.
Michele retira do quadril uma capsula. O Velho entrega para Michele uma capsula com veneno.
Vida vivida e lembrança. Foco o desempenho de Michele.
T1E8 [ 22 min. 00 seg. ] 25 min. 49 seg.
Ritual da purificação, o qual Ezequiel fala para os 3% dos aprovados no Processo da esterilização como rito de passagem criado pelo Casal Fundador.
Vida vivida.
Fonte: Elaborado pelo autor.
A primeira temporada, objeto dessa análise, foi composta por oito episódios que narram
a epopeia de Michele na busca pelo seu irmão. Também é mostrado a cada capítulo o percurso
dos jovens Fernando, Marco, Rafael e Joana. Os responsáveis pelo Processo, Ezequiel, Aline,
Cássia, Nair e Matheus, participam ativamente na construção da trama. Os episódios flutuam
entre as vivências dessas personagens antes e durante o Processo.
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Na série, a cor é o ponto central pela formação étnica brasileira através do
multiprotagonismo, no qual a sorte multiétnica foi expressa a cada capítulo, contudo sem a
incidência de descendentes dos povos originários do Brasil. Também, percebe-se na narrativa
o modo de vida, produção e consumo dos valores como traços determinantes do sistema-mundo.
As distâncias entre o Maralto e o Continente foram plantadas pela ideologia libertária e pelos
acoplamentos estruturais daquela sociedade que culminaram em uma atitude de rompimento,
assim, produzindo novas relações de poder.
Desde o primeiro episódio, a série desenrola-se entre jogos de identidade e alteridade,
agregação e segregação, por exemplo: o individualismo versus conjunto, ou sistematizados
versus rebelados. Essas relações são estabelecidas como atravessamentos culturais do
contemporâneo da narrativa, no entanto transcorrem como crítica à atualidade social de um
sistema excludente, monitorada, com falsa inclusão e gerida por intencionalidades de diversas
ordens.
A série conta a epopeia. Em T1E1, ocorre um direcionamento para a personagem
Michele. No entanto, todos os protagonistas são apresentados. O público pode perceber o perfil
de cada um deles, inclusive, entender que existe uma resistência chamada A Causa.
O Processo é um ritual de aprovação e escolha daqueles 3% de jovens possuidores das
condições morais, intelectuais e emocionais para a sociedade de Maralto. Eles passam por
provas que desafiam o pensamento lógico, político, aptidão física, atitude em grupo, ou seja,
procedimentos de testes em dinâmicas psicológicas e sociais sob pressão. Quando aprovados,
os jovens podem deixar o continente e desfrutar das benesses da vida próspera na ilha ao aceitar
ser esterilizado.
Aos reprovados no Processo, resta continuar a vida de privações e miséria no continente.
Desses retornados, nasceu a oposição à vida em Maralto, em algum tempo, dos 104 anos de
existência do Processo, chamados de Causa. Esse grupo alicia e treina jovens para sabotar o
sistema crentes de que a vida prometida além-mar não é privilégio e, sim, direito também do
continente. Dessa oposição, nasce o conflito do drama da série, pois há mais de um rebelde
infiltrado com o objetivo de ser aprovado. Significa que, depois de inúmeras tentativas, A Causa
muda sua forma de agir, passando de sabotar o Processo para conseguir chegar ao Maralto e
implodir o sistema por dentro.
Michele desempenha o principal processo de conjunção da série. Seu percurso narrativo
inicia com a disjunção simbolizada pelo afastamento do seu irmão durante o Processo devido
sua morte. Ela é uma jovem de personalidade segura que passou pelo trauma de perder o único
46
irmão no Processo anterior. Essa perda foi a invenção da Causa para motivá-la a ser uma rebelde
e lutar contra o sistema. Ela inicia o percurso na série engajada à missão da Causa. No decorrer
do ritual, ela transita entre relacionamentos como casal e em conjunto: se envolve
amorosamente com Fernando; aprende que, para cruzar as portas da ilha, deveria saber trabalhar
em equipe e pelo bem comum. Em um dado momento, tem sua identidade em risco e resolve
envenenar Ezequiel por considerá-lo o culpado pela morte do seu irmão. Porém, ela atinge um
dos juízes em um jantar comemorativo. Descoberta, é retirada em segredo do Processo por
Ezequiel e torturada. Durante a tortura ela descobre ter sido enganada pela Causa e que seu
irmão está vivo e bem na ilha. Ezequiel consegue o que julgou ser a lealdade de Michele e a
leva para o Maralto clandestinamente.
Para os sistematizados do continente, o Casal Fundador é uma entidade, como tal, é
cultuada, tendo se tornado uma religião dada a fé neste casal como os criadores da possibilidade
de uma vida melhor. Fernando é o filho do Pastor dessa religião. Ele perdeu o movimento das
pernas ainda criança em uma brincadeira que simulava uma das provas do Processo. Cresceu
cadeirante e alinhado ao desejo de seu pai de passar para “o lado de lá”, para o Maralto.
Fernando tem inteligência e comprometimento, o que o torna uma peça-chave para os interesses
de Michele. Negro e cadeirante, tem a personalidade proativa e solidária. Ele cria a dinâmica
da última prova, na qual os participantes deveriam expor sua real motivação para aprovação.
Quando Ezequiel revela que Michele desistiu, Fernando enlouquece e sai em busca dela. Ele
resolve desistir e evade do prédio das provas.
Marco é o descendente daquilo que teria sido uma família importante na antiga vida no
continente, antes do apocalipse. Criado com regalias, desenvolveu uma personalidade superior,
baseada na história da família. Ele é alinhado ao projeto do sistema e tenta se colocar como
líder do grupo. Desempenha uma presença importante como oposição radical à Causa. Ele é
extremamente individualista e revela-se desequilibrado. Em uma das provas tem uma das
pernas esmagadas, sendo forçado a sair do Processo.
Rafael tem personalidade intempestiva e individualista. Ele também é um rebelde, assim
com a Michele, porém, como estratégia da Causa, eles não se conhecem. Ele leva ao extremo
seu individualismo com trapaças, mentiras e pressões em relação aos competidores. Ele tem a
identidade adulterada, pois já havia sido reprovado. Para uma segunda chance, roubou o
implante de identidade do irmão e é um dos conquistadores do lugar em Maralto, sendo
aprovado no certame.
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Joana é uma mulher negra abandonada ainda criança. Ela sobreviveu sozinha nas ruas e
cometeu um grande erro, invadiu a casa do chefe da milícia e, em um acidente, a arma dispara
e mata o filho dele. Ela foi acusada de ter matado o garoto. Procurada, passou a viver escondida
e conseguiu uma identificação falsa para participar do Processo. Ser selecionada era a sua
esperança de continuar viva e esquecer as dificuldades do continente. No Processo, ela
desempenha o comportamento de “fêmea alfa”, independente, inteligente e vigorosa. Consegue
chegar até a última fase do processo, porém sucumbe ao jogo mental de Ezequiel sobre a vacina
esterilizante, a um passo do Maralto. Ela desiste e sai do Processo junto com Fernando.
Maralto passa por uma crise, pois, após mais de cem anos, teria ocorrido um assassinato.
Ezequiel, líder do Processo, tem opositores no Conselho que o consideram responsável pela
escolha do jovem assassino e culpam-no pelos métodos de escolha no ritual. Meio a essa disputa
política pelo controle do Processo, Ezequiel tem uma personalidade autônoma e dirigida ao
resultado, motivado pela manutenção e proteção do sistema hegemônico. Sua falecida esposa
deixou um filho no continente. Assim, utiliza o período das provas para visitar o menino,
desobedecendo uma das leis do Maralto, a qual o passado fica para trás. Sempre atento à
competência dos competidores, procurando os infiltrados da Causa, também divide seu tempo
para se esquivar de Aline, auditora do Processo, enviada por um dos conselheiros. Ezequiel usa
o assassinato do jurado para incriminar Aline e mantê-la em cárcere até o final das provas, com
a conivência de Cássia, chefe da segurança. Ele descobre Michele e a convence de abandonar
a Causa, com o argumento de que ele também acreditou no Velho, um dos líderes da causa.
Aline, que é negra, atua como avaliadora do Processo. Indicada pelo conselheiro
Matheus, ela tenta encontrar provas para afastar Ezequiel do Processo. Ela descobre as fugas
de Ezequiel durante a quarta prova. A partir de então, empenha-se para desmascará-lo até ser
pega. Ela descobre o motivo das saídas e promete guardar segredo. Por essa razão, Ezequiel a
incrimina pela morte do jurado causada por Michele. Desmoralizada diante do Conselho, Aline
é detida até a volta para casa.
Com a possibilidade de ataque da Causa ao Processo, Ezequiel quis se cercar de pessoas
leais a si. Uma delas é a chefe da segurança Cássia. Persuasiva e truculenta, uma mulher
determinada a proteger o Processo e Ezequiel. Ela identifica a presença de um rebelde e
interroga Michele. O interrogatório termina com a morte da vizinha de Michele. Ela encontra
Aline revirando o quarto de Ezequiel e também ajuda a acobertar a permanência de Michele até
o Maralto.
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Nair e Matheus são dois anciões do Conselho do Maralto. Nair é a madrinha de Ezequiel
e tenta dissuadi-lo quanto ao método de escolha dos jovens, devido ao primeiro assassinato na
ilha causado por um jovem escolhido por Ezequiel no Processo. Matheus é o conselheiro que
colocou Aline no 104º Processo. Esse conselheiro mostra-se contra a metodologia de seleção e
exige da sua enviada as provas capazes de afastar o chefe do Processo.
O Velho, um homem de visual sinistro com o rosto deformado, foi o mentor no
treinamento de Michele e centenas de jovens, inclusive, de Ezequiel. Seu percurso na série é
narrado nas histórias pregressas das personagens para elucidar algum fato ou tomada de decisão
delas.
Tomando estes como os principais percursos narrativos da série, percebe-se um enredo
simples contado com criatividade. Principalmente porque, salta aos olhos a determinante ação
da edição para compor esse enrredo ao organizar esses percursos narrativos dentro de cada
episódio, aproximando temporalidades, espacialidades e agindo na construção de personagens
e da narrativa, pela duração e organização dos planos.
3.3. [Edha]
Kartaszewicz (2016), da Netflix Original Publicity, anunciou em 19 de maio de 2016,
pela Netflix Media Center, a série Edha como primeira produção argentina do canal. Criada e
dirigida pelo showrunner, ou encarregado da série, o realizador Daniel Burman. Edha
configurou-se na primeira série do selo Originais Netflix na Argentina. Em sua equipe de
edição, estiveram Alejandro Brodersohn e Alejandro Parysow.
Em entrevista, Burman explica o processo criativo da série:
Há algum tempo, me interessei pelo mundo da moda e pelas contradições que ele esconde: o universo visível, que tem a ver com glamour, passarelas, aspiração à beleza, e como isso se sustenta na vida das modelos, negócios, mecanismos de produção - muitas vezes ligados ao trabalho escravo - como isso se combina e como nós, como consumidores, não vemos ou não queremos ver. (CAROSSIA, 2018, site)
Edha trata do universo fashion em Buenos Aires, em uma narrativa temporal, contada
em dez episódios e correlata ao cotidiano e percalços atuais. Edha é a estilista por trás da marca
com seu nome. A empresa, que depende da exploração de mão de obra submetida a salários
ínfimos, tem entre seus parceiros internos alguns optantes pelo caminho fácil e negócios
suspeitos. A série mostra nesse cenário de exploração uma cruel realidade dos trabalhadores da
moda e favorecimentos de autoridades, onde surge o conflito mediado pela vingança. Como
49
expressão étnica, bem representa a construção do país, formado por baixíssimo índice de
miscigenação étnica.
O enredo da série transcorre na temporalidade da vida vivida, de forma tradicional, sem
mudanças temporais significativas, com algumas lembranças de Edha sobre o suicídio da mãe.
A personagem, apesar da obsessão pelo suicídio da mãe, tem uma vida dedicada a criação e
modelagem de alta costura. Mãe solteira, criou sua filha Elena Abadi, que também desfila para
ela. Estilista que tem como pai, Lorenzo Abadi, seu sócio e o homem de negócios, por trás da
marca. Conta também com Antônio, amigo e braço direito na vida e na empresa.
Elena é uma menina tão mimada e superficial quanto é a mãe. Em seus momentos de
briga com Edha, corre para os braços do pai, mas ela não suporta a esposa dele. Na expectativa
de romper com aquilo que os pais esperam dela, envolve-se com o pai de sua melhor amiga.
O cirurgião Julián já não vive bons momentos no casamento quando começa um caso
com Elena. A esposa desconfia da traição e o segue. Ela descobre que a traição é com a melhor
amiga da filha. Descobre no justo momento em que Elena resolve se afastar dele. Julián sai de
um casamento frustrado e também fica sem sua nova paixão, justamente porque Elena vive em
um mundo de relações fúteis e volúveis.
A empresa, como muitas no mundo, encontra subterfúgios entre o mercado e as leis.
Lorenzo controla a confecção com muitos empregados ilegais, em local precário, sob condições
desumanas. Tudo acontece com a conivência de autoridades, mostrando uma realidade de
imigrantes usados como mão de obra barata por trás da trama, envolvida na obscuridade dos
modos de produção através da exploração humana.
Grosfoguel (2008) explica as situações coloniais como sendo “a opressão/exploração
cultural, política, sexual e económica de grupos étnicos/racializados subordinados por parte de
grupos étnico-raciais dominantes, com ou sem a existência de administrações coloniais” (2008,
p. 126). Situação basilar da colonização das ações de poder como vistas na série desde o
primeiro capítulo, ao replicar comportamentos de exploração e opressão de um sistema-mundo,
erguido sobre esses dois pilares sustentado o poder.
O ponto da história que modifica as relações e desencadeia a aproximação entre Edha e
Teo foi o acidente na facção clandestina e causa a morte de Manito. A partir daí, Teo aproxima-
se de Edha. Ela fica encantada por ele e o coloca para ser seu modelo principal para o
lançamento de alta costura masculina da sua marca. Teo busca por vingança pela morte do
irmão e mergulha em uma relação com Edha. O objetivo dele é encontrar evidências que liguem
50
a marca à morte de Manito. Depois que ele descobre que Manito não morreu, mas sim
incriminado do incêndio, segue buscando evidências contra Lorenzo.
Diante da precariedade das facções clandestinas da marca, acontece um acidente de um
incêndio em uma delas. Nela, trabalhava Manito, irmão de Teo. As autoridades começaram a
investigar e Luciano consegue que tudo seja “varrido para de baixo do tapete” com subornos e
benefícios ilegais.
Andrés Pereyra Ramos é um fiscal de impostos que investiga a empresa em seus
caminhos obscuros. Sem chamar a atenção ele avança para conseguir testemunhas e elabora um
grampo para colher informações. Ele tem sede para pegar Luciano, pois acredita ser o culpado
pelo incêndio e pela morte das pessoas na facção clandestina.
3.4. [Sempre Bruxa]
A ideia de conquistadores e conquistados, ou de colonizadores e colonizados é o resumo
da própria história do poder. Essa ideia encontra-se no centro a sobreposição espacial e temporal
de uma hierarquia mental, por isso ideológica, a conduzir as relações de comando e
subalternidade em todos os planos da vida. No sentido de aproximação decolonial, considera-
se a seguinte discussão trazida por Quijano (2005) sobre a América Latina:
A América constitui-se como o primeiro espaço/tempo de um padrão de poder de vocação mundial e, desse modo e por isso, como a primeira identidade da modernidade. Dois processos históricos convergiram e se associaram na produção do referido espaço/tempo e estabeleceram-se como os dois eixos fundamentais do novo padrão de poder. Por um lado, a codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados na ideia de raça, ou seja, uma supostamente distinta estrutura biológica que situava a uns em situação natural de inferioridade em relação a outros. Essa ideia foi assumida pelos conquistadores como o principal elemento constitutivo, fundacional, das relações de dominação que a conquista exigia. Nessas bases, consequentemente, foi classificada a população da América, e mais tarde do mundo, nesse novo padrão de poder. Por outro lado, a articulação de todas as formas históricas
Quadro 8 – Precariedade da facção em Edha Localização Minutagem Ação Temporalidade T1E1 [ 22 min. 00 seg.
] 23 min. 29 seg.
Teo e Manito conversam sobre trabalho, enquanto transitam pela facção.
Vida vivida.
T1E1 [ 32 min. 12 seg. ] 32 min. 58 seg.
Antônio dá ordens para Manito aumentar a produção a qualquer custo.
Vida vivida.
T1E1 [ 34 min. 50 seg. ] 35 min. 09 seg.
Incêndio na facção mata a todos. Vida vivida.
Fonte: Elaborado pelo do autor.
51
de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos, em torno do capital e do mercado mundial. (QUIJANO, 2005, p. 117)
A ideia de raça é uma categoria mental da modernidade para Quijano (2005), na qual,
tal relação na América, redefiniu e criou identidades sociais como a dos indígenas, negros e
mestiços. Essas são categorias ideológicas. A estrutura de manutenção do poder hierarquiza as
relações para que o próprio poder possa ser reconhecido por todos, para que não se tenha
dúvidas sobre a força do poder. Essa hierarquização age com peso e determina outras relações
que se acoplam ao modo de vida, segundo Quijano (2005, p. 117), “os colonizadores
codificaram como cor os traços fenotípicos dos colonizados e a assumiram como a característica
emblemática da categoria racial”.
Sempre Bruxa foi criada por Ana Maria Parra, dirigida por Liliana Bocanegra e Mateo
Stivelberg, com a edição liderada por Sandra Matilde Rocío Rodríguez, entre outros. Apresenta
o respeito com as identidades étnicas colombianas ao colocar o protagonismo de uma mulher
negra, bem como relações de amizade, amor e dominação entre os formadores culturais do país.
Personificou a presença dos povos originários, afrocolombianos, negros e colonizadores. Uma
mistura movida não só pelo contraste e pela aceitação, mas também pela forma do negro ser
expresso com empoderamento e não apenas como subalterno ou, ainda, como um subalterno
herói. Situação próxima das séries Raio Negro (EUA) e Lupin (FRA), tendo a expressão de que
o negro tem a magia e a força da transformação dentro de si.
A narrativa conta sobre uma disputa entre os bruxos e inimigos, Aldemar, o pai, e
Esteban, o filho, também chamado de Lucien. Esteban baniu o pai para o passado para que
ficasse preso. Nas masmorras, Aldemar envolve Carmen Eguiluz para promover sua ida de
1646 para 2019, época em que ele tem seguidores de magia negra. Embora haja essa ambição,
Carmen quer apenas salvar a vida do seu amor e, ao aceitar a proposta de Aldemar, ela vai para
o futuro, passando por situações contemporâneas diversas e perigosas. Ela também chega a
estudar na universidade e, aos poucos, aprimora sua magia tornando-se uma bruxa muito
poderosa. Até que Aldemar é desmascarado e vai para 2019, quando a história vira uma luta
entre ele e Carmen. Ele é vencido e some na areia da praia.
A primeira temporada acontece em três temporalidades. A primeira, é na Cartagena das
Índias, no ano de 1646, durante o período da colonização europeia e da Igreja Católica como
gestora dos costumes. A segunda acontece na Cartagena de 2019, como presença do que se
tonou a cultura contemporânea. A terceira foi utilizada como um não-espaço e um não-tempo,
quando o jovem Johnny Ki se encontra com o bruxo Aldemar.
52
O enredo é cheio de idas e vindas entre as temporalidades. A vida vivida de Carmen
inicia em 1946 e continua em 2019, apresentando temporalidades paralelas com funções de:
contar a vida de Carmen no presente; contar sua história no passado; e mostrar o que acontece
no passado enquanto ela não está lá. Os cortes são os responsáveis por aproximar uma
temporalidade de outra dentro do programa da narrativa.
Existem três objetos poderosos na série: a pedra, o portal de viagem no tempo e o livro
das sombras. A pedra tem poder de transportar quem a usa para outro tempo, sendo que uma
bruxa poderosa não necessita do portal, como é o caso de Carmen. O portal de viagem no tempo
só funciona com a presença da pedra para os que não são bruxos de linhagem e pessoas normais.
O portal tem configurações inscritas nas pedras, através delas, regula-se a viagem para o
momento escolhido. Já o livro das sombras é um manual de bruxarias e feitiços com as páginas
em branco para os leigos e se revela apenas para quem tem o dom.
Carmen é a filha da escrava Paula Eguiluz de uma linhagem de bruxas. Seu percurso na
série transcorre entre a perda do amor e a vontade de tê-lo novamente. Ela foi comprada como
escrava pela família Aranoa. Ela apaixonou-se por Cristóbal, herdeiro dos Aranoa, um amor
clandestino e impossível pelas determinações da Igreja da época. No entanto, foram descobertos
pela mãe de Cristóbal que acusou Carmen de bruxaria. Carmen é presa com a certeza de que
seu amor fora morto durante o julgamento.
Entre as duas Cartagenas, há a viagem e a comunicação no tempo. A viagem começa no
início de T1E1, com a transição de Carmen Eguiluz da fogueira da inquisição para a praia em
2019. Resultado do feitiço ensinado por Aldemar, O Imortal, na masmorra antes de ser levada
para a fogueira. Ele a identifica como uma bruxa de sangue puro ao ensinar um feitiço que fez
Carmen flutuar até a abertura entre as celas. Na masmorra, Carmen fez um pacto com o bruxo:
ela deveria cumprir uma missão para ele, entregar uma pedra que possibilita a viagem no tempo
Quadro 9 – Temporalidades em Sempre Bruxa Localização Minutagem Ação Temporalidade T1E1 [ 16 min. 12 seg.
] 18 min. 49 seg. Carmen flutua dentro da masmorra com o feitiço de Altemar.
Vida vivida de Carmen em 1946.
T1E6 [ 15 min. 57 seg. ] 18 min. 40 seg.
Carmen começa a treinar para controlar seus poderes com o Livro das Sombras.
Vida vivida de Carmen em 2019.
T1E6 [ 32 min. 07 seg. ] 34 min. 28 seg.
Cristóbal visita Altemar na masmorra.
O passado contado sem a presença de Carmen.
T1E4 [ 28 min. 51 seg. ] 40 min. 00 seg.
Johnny Ki invoca Lucien, porém, encontra Aldemar no Jardim do Entretanto.
Não-tempo e não-lugar.
Fonte: Elaborado pelo autor.
53
para uma amiga dele do futuro, em troca, Aldemar lhe concederia o poder para voltar no tempo
para salvar Cristóbal. Assim, para salvar-se da morte na fogueira. aceita a ajuda dissimulada de
Aldemar, portador da pedra da viagem no tempo.
A comunicação no tempo se dá entre Carmen e Cristóbal por uma carta colocada no
local secreto, sobre o portal da janela da biblioteca da casa dos Aranoa, fatores que acontece
em: T1E1, minutagem de 00:25:26 a 00:26:36; T1E2 minutagem de 00:40: 04 a 00:40:37. A
comunicação fica recorrente durante toda T1, na localização em E2. Carmen e Cristóbal sentem
a energia um do outro e a situação é percebida porque os cortes aproximaram as temporalidades
pelo conteúdo de seus planos.
Essa casa foi transformada em uma pensão, a qual Carmen se refugiou em 2019, após
ser perseguida pela polícia por ser uma possível sobrevivente do Assassino do Fogo, que
supostamente é Lucién. Os amantes passam a trocar cartas pela janela que funcionam como um
portal. Ela fica feliz ao saber que Cristóbal não morreu, mas ela está presa ao futuro até
encontrar uma forma de voltar. Na pensão, ela tem o primeiro contato com Esteban.
Cristóbal é o filho único do casal Aranoa, senhores e proprietários das terras e escravos.
Ele viu Carmen pela primeira vez no comércio de escravos, quando fez seu pai comprá-la para
tirá-la da humilhação. Com o tempo, apaixonou-se Cristóbal por ela. Ele, além de amor,
ensinou-a a ler e a escrever. Quando Carmen foi julgada e condenada por bruxaria, o rapaz fez
de tudo para livrá-la, chegando a renunciar a religião que não permitia a união deles. Nesse
momento, o pai de Cristóbal atira no filho para salvá-lo do diabo. Com sorte, ele sobrevive.
Depois da descoberta que Carmen está viva e no futuro, ele consegue falar com Aldemar na
masmorra e esse o roga um feitiço.
Carmen procura no futuro por Ninibe, seguidora de Altemar, personagem que poderia
mandá-la de volta para o passado. Elas se encontram na universidade, onde Ninibe é professora
no curso de Biologia. Contudo, Lucién, o suposto malvado, captura Ninibe deixando Carmen
sem a sua recompensa. Carmen a encontra em seu cativeiro e Esteban é preso. Depois de livre
a aprendiz de Altemar consegue trazê-lo para o presente.
Na universidade, Carmen conhece Alícia, Mayte, León e Daniel, convivendo também
com Esteban/Lucién como seu professor, em substituição a Ninibe. Os quatro jovens formam
o núcleo dramático da bruxa no futuro. Como em outras séries, cada episódio coloca para co-
protagonizar um dos jovens para ajudar Carmen.
Outro parceiro e mais fiel de Carmen foi Johnny Ki. Ele é um cantor, um rapaz que
frequenta a escola e ajuda a avó nos fazeres da pensão. Perdeu os pais num acidente, depois que
54
filmou Carmen levitando enquanto dormia, decidiu usá-la para entrar em contato com eles. Na
primeira tentativa, atraem o espírito de um jovem que se revelou filho de uma iniciada de
Ninibe, uma nova esperança para Carmen que dura pouco, pois a aprendiz de Ninibe não sabe
como viajar no tempo. Contudo, esse encontro serviu para colocar a mãe junto com o
“fantasminha” do filho. Aliviando a culpa de ambos, libertando-o para o além.
Aldemar, O Imortal, recebeu essa distinção por não morrer na fogueira da inquisição.
Ele era colocado na fogueira todas às sextas-feiras e saía ileso de volta para as masmorras. Tem
como percurso dramático a disjunção de viajar no tempo para angariar Esteban, um grande e
poderoso bruxo, para o seu projeto de dominar o mundo. Ambicioso, ele quer controlar os três
objetos poderosos. Ele consegue chegar a 2019, todavia, é vencido na praia quando Johnny Ki
rouba sua sombra. Esteban se rebela contra ele. A polícia aparece e testemunha o sumiço de
Aldemar na areia.
55
4. [CIRCULARIDADE]
A autopoiese no audiovisual se apresenta em duas etapas: a primeira quando é gerada
pelo processo criativo resultante do comportamento humano e das diversas relações e
acoplamentos entre muitas áreas; a segunda está na capacidade conferida ao produto
audiovisual de representar a si mesmo, gerar entendimentos e outros acoplamentos pelas ideias
que portam, para identificar no processo produtivo do audiovisual, como a edição,
configurando-se enquanto estrutura e organização. Assim, criando seu próprio mundo ou
mundos.
Respeitando a multiplicidade de definições e conceitos sobre o assunto, este estudo
compreende o cultural constituído pelo que se faz. Desse modo, permite-se continuar em
circulação enquanto forma de agir, pensar e dos relacionamentos apoiados na comunicação,
nesse caso, na comunicação audiovisual, em prol de uma unicidade sistêmica entrelaçada com
a liberdade de escolha, imersa em modos de produção capitalista. Considera-se cada ser humano
com o potencial de manter ou modificar o processo cultural em termo político, epistemológico
e intersubjetivo. Sobretudo, sendo esse humano capaz de buscar a libertação geopolítica para
os diversos acoplamentos com os quais se relaciona na forma de vida do sistema-mundo
contemporâneo capitalista.
O cultural está no viver, no conhecer e no reconhecer. Para Maturana e Varela (1995),
o conhecer não é o conhecer objetivo, mas aquele conhecer da experiência de nossas próprias
percepções, daquilo que se compartilha e está aglutinado na essência humana, como criadores
dos mundos em que vivemos. Isso significa ser o humano na ligação entre as culturas, nas
disciplinas e nas ideologias. Por tais razões, os autores colocam a necessidade de ampliação dos
horizontes da ignorância humana para relações de transculturalidade, transdisciplinaridade e
transideologicidade aos mundos que criamos e vivemos enquanto construção cultural. Como
eles definem:
(...) o conhecimento, a percepção, a organização tanto do sistema nervoso como de todo ser vivo, a linguagem, a autoconsciência, a comunicação, a aprendizagem, e contém reflexões finais sobre o caminho que essa dimensão abre para a evolução cultural da humanidade como um sistema unitário. (MATURANA; VARELA, 1995, p. 40)
Considerando a edição audiovisual dentro de um sistema unitário chamado sistema-
mundo contemporâneo, observa-se a premissa a qual aparece como fruto do comportamento
humano e carrega o desenvolvimento social do contemporâneo através da persistência da
56
colonialidade do poder. Esse conceito representa uma série de contradições resultantes do
colonialismo histórico, por meio da exploração e da dominação dos povos das Américas.
Segundo Quijano (1998, p. 229-232), indo além dessas características, mesmo com os
processos de independência e descolonização, elas persistem. A colonialidade está na ação e
modo de pensar aprendidos decorrentes de uma formação eurocentrada e como base de um
sistema-mundo, ou de outra dada como hegemônica, a qual a essência dos povos colonizados é
oprimida e subalternizada. Nessa direção, a edição aparentemente cumpre o percurso narrativo
da cultura dominante.
No conceito de sistema-mundo, encontra-se uma “zona espaço-temporal que atravessa
múltiplas unidades políticas e culturais” e que “representa uma zona integrada de atividade e
instituições que obedecem a certas regras sistêmicas” (WALLERSTEIN, 2006, p. 20). Este é
um conceito importante para o campo de estudos da decolonialidade por reconhecer, no sentido
de conhecer e questionar, a formação das economias transnacionais e o contingente de empresas
com o mesmo propósito de acentuar a dependência entre as economias dos países, interferindo
na forma de viver.
Bernardino-Costa e Grosfoguel (2016) explicam que os estudos pós-coloniais, como
localização temporal, começaram após a Segunda Guerra Mundial com intelectuais do Terceiro
Mundo. Os autores comentam que a saída dos colonizadores do território das colônias não
marcou a suspensão das exclusões e explorações, mas que “os conflitos de poder e os regimes
de poder-saber continuaram e continuam nas chamadas nações pós-coloniais” (2016, p. 15). O
projeto decolonial, também entendido como moderno/colonial, firma um campo político-
acadêmico ao qual, para esses autores, entende-se a decolonialidade como de múltiplas e
heterogêneas diferenças coloniais e reações das populações e dos sujeitos subalternizados à
colonialidade do poder.
Mignolo (2008) coloca a colonialidade como resultado obscuro das dimensões do poder,
do saber e do ser, ou seja, as dimensões da política, da epistemologia e da intersubjetividade.
De acordo com esse autor, tais características operam em mutualidade entre si e o contexto,
juntas formando uma modernidade tomada pelos apelos e intenções capitalistas expressos nas
mais diversas formas de comunicação, inclusive, através do audiovisual.
Enfrentar o colonial é enfrentar o poder, no audiovisual não é uma tarefa fácil. Haja
visto que a imposição das formas audiovisuais aceitas pela cultura dominante apregoa-se
distantes do que se produz fora dos centros dessa indústria. Essa imposição é a personificação
do colonial, que para se pensar em decolonizar, como ato de construção originária, faz-se
57
necessário partir de conceitos elementares do audiovisual construídos e calcados no cultural
como procedimentos ajustados aos interesses de exploração e subalternização. Contudo, e por
isso mesmo, a resistência ao colonizador se faz hoje com os procedimentos e técnicas utilizados
para colonizar, ou seja, o audiovisual. Há nisso um processo circular da autonomia da criação
de si mesmo. Quando um grupo com códigos culturais próprios assume o controle da sua
narrativa de alguma forma, requerendo em suas mãos sua autocriação audiovisual, prestigiando
esses códigos culturais e, principalmente, sua forma de ver o mundo. Então, essa utilização do
audiovisual lança o grupo num processo autopoiético ao reposicionar quem fala, sobre o que
fala e porque falar no cenário contemporâneo. Assim, assa a ser um ato político, epistemológico
e intersubjetivo para comunicar-se por si mesmo.
Na fenomenologia da percepção inaugurada por Maturana e Varela (1995) a condição
de um sistema se manter por si mesmo é entendida como autopoiese. Os autores dizem que um
sistema autopoiético “se levanta por seus próprios cordões, e se constitui como distinto do meio
circundante mediante sua própria dinâmica, de modo que ambas as coisas são inseparáveis” (
1995, p. 87). Entender esse conceito determina o entrelaçamento entre o observado e o contexto,
tanto a respeito da individualidade quanto à cumplicidade entre ambos.
Trazendo o conceito para a edição, nota-se o sentido vinculador entre a edição e o
audiovisual a que pertence, sendo este o seu contexto. Da mesma forma que o cultural é o
contexto do audiovisual, por relação direta também é da edição. Esse vínculo acontece graças
às particularidades do sistema autopoiético, pois é o que faz distinguir-se e, por essa razão, pode
ser percebido.
A percepção sobre o observado, a edição, acontece através da sua organização e sua
estrutura como os condicionantes da sua capacidade de autodescrição, de acordo com Maturana
e Varela (1995), um sistema deve ser visto considerando essas duas características:
(...) para dizer como opera um sistema (social, neste caso) a partir dessa perspectiva, devemos conhecer tanto a sua organização como a sua estrutura. Ou seja, devemos mostrar tanto as relações entre componentes que o definem como tal (organização) como os componentes com suas propriedades mais as relações que o realizam como uma unidade particular (estrutura). (MATURANA; VARELA, 1995, p. 19)
Maturana e Varela (1995) abordam os componentes da organização e da estrutura como
requisitos para análise do social, em uma perspectiva de conhecer a estrutura para compreender
a organização ou no sentido inverso. Compreendendo isso como percurso da fenomenologia do
conhecer, possibilita-se observar a edição com a finalidade de identificar as interferências do
contexto e as interferências externas e internas em ação no fazer da edição audiovisual. Trata-
58
se de um percurso epistemológico de conhecer o observado através das relações que o
constituem e o particularizam. Assim, fazendo-se necessário conhecer o que é organização e
estrutura na edição.
Observando a edição a partir dessa diretriz, encontra-se na sua organização todos os
componentes técnicos que atravessam toda a realização audiovisual e, a partir disso, torna-se
dependente e determinante. Na estrutura, temos os componentes procedimentais entrelaçados
com o cultural, cujas intencionalidades estão inerentes aos modos de produção e de trocas do
contemporâneo moderno-colonial.
Nos estudos de cinema, há uma relação entre duas faces, a do aparato tecnológico e
econômico e a narrativa e o imaginário. Uma coloca o cinema por aquilo que o constitui como
fazer, profissionalizado ou não, que reúne o como se realiza um filme e o quanto se emprega
de capital no mesmo. A outra diz respeito à imersão, através da metáfora da janela, para se
conhecer o mundo do filme e da relação entre espectador e discurso em si. Xavier (2005) explica
essas faces como movimentos a partir do dispositivo, chamadas, respectivamente, de opacidade
e transparência. “Quando ao dispositivo é ocultado, em favor de um ganho maior de
ilusionismo, a operação se diz de transparência. Quando o dispositivo é revelado ao espectador,
possibilitando um ganho de distanciamento e crítica a operação se diz opacidade” (XAVIER,
2005-b, p. 6). Visto assim, não existe uma ação em detrimento da outra, elas coexistem porque
são as faces de um mesmo rosto.
Na relação com a estrutura e a organização, é possível realizar aproximações com os
dois conceitos discutidos por Xavier (2005). Uma delas é o conhecer da obra audiovisual pelo
público que se dá através da janela, seja retangular ou não, possibilitando conhecer o mundo
criado pela obra. A transparência acontece porque o produto audiovisual tem uma estrutura e
nela está a própria narrativa, entre outras coisas, como a construção de comunicação com o
título, capa, cartaz ou link. O público toma contato com a obra/produto pela estrutura e a
conhece pela transparência, como uma janela. Já na opacidade, a discussão é sobre como o
audiovisual organiza-se a partir da transparência. A partir disso, persistem em circularidade de
relacionamento interno e externo à janela e aos acoplamentos estruturais e culturais.
No audiovisual, a organização se dá pelos componentes humanos, procedimentais e
tecnológicos. Essa conformação fornece ao audiovisual as características essenciais para
distinguir-se de outras artes e fazeres como modo de operar. Comumente, aborda-se sua
organização pela opacidade, ou seja, o seu procedimental: como o roteiro organiza a narrativa,
como os departamentos decupam o roteiro em imagem e som; como a iluminação modifica a
59
fotografia; como os efeitos visuais constroem outros mundos; como o som aproxima do
significado. Nesta fenomenologia, as abordagens procedimentais consideram outros elementos
formativos entrelaçados pela cultura em um sistema unitário, para, assim, explicar a
organização do audiovisual.
A estrutura do audiovisual, continuando a interpretação e a aproximação por Maturana
e Varela (1995), encontra-se naquilo que faz uma série ou um filme serem diferentes entre si.
A organização do audiovisual entrelaça-se e opera-se com demandas da cultura, do social e das
intencionalidades dos realizadores, do contratante, do mercado, do Estado e do consumidor,
desse modo, formando a estrutura. Através disso, uma série audiovisual se conecta com o gosto,
com aquilo que o humano considera pertencente ao seu estilo de vida e às diferentes maneiras
de viver os rituais de cultura.
Nesse ponto, a estrutura da série é a sua superfície, permitindo ser identificada, sabendo-
se que a organização é a sua profundidade. Nessa lógica, a organização e a estrutura da série
guardam a coexistência da opacidade e da transparência, pois elas constituem o indivíduo série.
Porque olhar pela opacidade ou pela transparência personifica um ponto de vista de análise da
obra e, por isso, a abordagem do estudo vai pelo entendimento da organização e da estrutura da
edição audiovisual na série.
Maturana e Varela (1995) definem a circularidade como “encadeamento entre ação e
experiência, tal inseparabilidade entre ser de uma maneira particular e como o mundo nos
parece ser, indica que todo ato de conhecer produz um mundo” (1995, p. 68). Demonstrando-
se, assim, o ato de conhecer como circular.
No Quadro 10, pode-se ver o percurso do aprendizado para os autores Maturana e
Varela. Eles demonstram a circularidade para explicar que os diversos campos do conhecimento
fazem parte do humano e que este participa de um sistema unitário, o cultural. A partir da
linguagem, o conhecer como processo cognoscitivo trata-se de conhecer o humano em seu
contexto, ao qual a congruência e a diversidade experimental, das possibilidades de construção
de experiências, formam a base da linguagem e das interações humanas a delinear os diversos
mundos da vida.
60
Quadro 10 – O ser do ser humano / circularidade
Fonte: MATURANA; VARELA, 1995, p. 43.
Na representação gráfica dos autores Maturana e Varela (1995), sobre a natureza
cognitiva do ser humano, aponta-se para a circularidade como o veículo do humano para
conhecer o mundo. O observador ocupa o centro do sistema, produzindo e sendo sujeitado a
acoplamentos por estar vivo, criando e recriando seu mundo na relação com seu entorno, através
do aprendizado e do conhecer. Os autores explicam que:
Toda percepção que trazemos à consciência, fazemo-la surgir por meio da descrição reflexiva sobre tal fenômeno (em estudo). Percepção e pensamento são operacionalmente o mesmo no sistema nervoso; por isso não tem sentido falar de espírito versus matéria, ou de idéias versus corpo: todas essas dimensões experienciais são o mesmo no sistema nervoso; noutras palavras, são operacionalmente indiferenciáveis. (MATURANA; VARELA, 1995, p. 44)
Com centro ocupado pelo observador ou pelo fenômeno, potencializa ao haver a relação
de aprendizado e construção de conhecimento com seu entorno e com seus pares, sofrendo
interferência e interferindo no contexto. Discutindo-se a edição a partir desses parâmetros, só
61
há um caminho para compreender seu local, que é o da relação de circularidade e dos
acoplamentos estruturais com os fazeres do audiovisual e das intencionalidades múltiplas
regidos pelas relações internas e externas, pelo cultural.
Um dos acoplamentos estruturais estudados por Luhmann (1997) foi a formação do
social através da comunicação, a partir dos conceitos de Maturana e Varela (1995). Luhmann
(1997) explica o acoplamento estrutural com o exemplo entre a sociedade e as pessoas. Ele
descreve como o resultado entre o social e o psíquico, pois as pessoas estariam no entorno da
sociedade não sendo elas em si. Para tanto, fruto das relações sociais e do engajamento
individual, forma-se a sociedade. Ele retorna ao conceito de comunicação para falar da
irritabilidade, pois “a linguagem aumenta a irritabilidade da consciência através da
comunicação e a irritabilidade da sociedade através da consciência” (LUHMANN, 1997, p. 85).
A comunicação é para Luhmann (1997) a base da existência do sistema social, a base do
cultural.
Um conceito importante é o de acoplamento estrutural, o qual os autores Maturana e
Varela (1995) explicam da seguinte forma:
Isso significa que duas (ou mais) unidades autopoiéticas podem ter suas ontogenias acopladas quando suas interações adquirem um caráter recorrente ou muito estável. É preciso entender isso bem. Toda ontogenia ocorre dentro de um meio que nós, como observadores, podemos descrever como tendo uma estrutura particular, tal como radiação, velocidade, densidade etc. Como também descrevemos a unidade autopoiética como tendo uma estrutura particular, fica evidente que as interações (desde que sejam recorrentes) entre unidade e meio consistirão em perturbações recíprocas. Nessas interações, a estrutura do meio apenas desencadeia as mudanças estruturais das unidades autopoiéticas (não as determina nem informa), e vice-versa para o meio. O resultado será uma história de mudanças estruturais mútuas, desde que a unidade autopoiética e o meio não se desintegrem. Haverá um acoplamento estrutural. (MATURANA; VARELA; 1995, p.113)
Os acoplamentos estruturais acontecem como forma de sobrevivência do ente ao sistema
de forma recíproca, o mesmo acontece entre sistemas. Nessa relação de acoplamento as fricções
entre os envolvidos produzem resultados. Por exemplo, a Netflix ao entrar em um país passa a
se relacionar com as leis, códigos culturais, performances de consumo, entre outros. Todos são
acoplamentos que possibilitam que o SVOD e o sistema coexistam. No entanto, quando
algumas fricções geram perdas consideráveis para um dos participantes da relação, a tendência
é que o acoplamento se deteriore e acabe. Esse fenômeno é a desintegração do sistema. Seria
como se a Netflix não suportasse a carga tributária e resolver sair de um país. Com isso, a
plasticidade estrutural desse sistema muda para outras configurações.
62
Associando-se tais ponderações com a edição, aparecem várias características que
perpassam os procedimentos do audiovisual como uma expressão artística, de comunicação e
pertencente a uma indústria de bens culturais. Quando um sistema de códigos culturais não
encontra a manifestação adequada na edição, o audiovisual pode produzir a desintegração da
compreensão a que se destina à série, por exemplo. Assim, pensar a edição numa circularidade
de trocas entre o indivíduo, o contexto e o conhecimento, significa entendê-la no centro do
sistema multidirecional, multi-ideológico e multicultural. Isso, formando sua ontogenia como
organização dos códigos culturais com o propósito de comunicação. Por ontogenia, entende-se
o desenvolvimento da edição desde a sua idealização, até ser um produto audiovisual no
sistema-mundo, no cultural.
Os processos de acoplamentos estruturais entre a Netflix e as séries com o selo Originais
Netflix seguem o modelo de padronização e modo de funcionar da antiga televisão. O selo
indicativo de produção do canal não difere dos canais de televisão por assinatura ou dos canais
do serviço público de televisão. As Tvs produzem produtos próprios há décadas, com
características particulares como assinatura da estética do trabalho, logo, o que modifica são a
descentralização das produções dos outros formatos de televisão, a estilística técnico-científico-
informacional do modelo de negócio e como o audiovisual descentralizado de outros meios de
distribuição se subordinam ao SVOD. Essas características se acoplam ao modo de fazer o
audiovisual pelos fatores econômicos e criativos, mas a estilística das produções dos Originais
tem mais a ver com publicidade local e mundial do poder de produção do que apenas com um
discurso de distinção. Essa publicidade, opera como propaganda na guerra da competitividade
de mercado.
Com a existência do filme interativo como resultante da construção cultural da
gameficação, a edição audiovisual é atravessada pela presença do usuário para a finalização da
narrativa. Nesse modelo de audiovisual, o público participa da construção cultural da
organização de sequências de imagem e som, bem como participa da finalização do produto
enquanto o lê. A conclusão do processo de comunicação do audiovisual sai da tradição do
produto acabado para existir como um produto em processo de acabamento. O movimento
circular da edição na relação com a realização audiovisual deixa de estar apenas antes da tela,
na ilha de edição, colocando-se também depois dela e dependente do público. Este exemplo,
mostra a edição como um local revolto e subverso, mergulhado no mais tranquilo caos, um
portal no olho do furacão. Desse modo, marcando como este estudo a entende em circularidade.
A edição está em um processo inacabado, com desenvoltura interativa pelo entrelaçamento com
63
o público, transpassando da realização para audiência e vice-versa, sendo o audiovisual
interativo ou tradicional. Há uma coexistência de interdependência entre a edição, a série, o
público e os demais acoplamentos estruturais.
4.1. [Procedimental]
A forma de cortar a cena e organizar o conteúdo com pedaços de cenas remete ao final
do século XIX, cinematograficamente falando. Daquelas datas, encontra-se Robert W. Paul
(1869-1943) e George Méliès (1961-1938), um na Inglaterra e o outro na França, inaugurando
a intervenção com o corte da tira de filme e até mesmo a pintura à mão dos quadros, como no
caso Paul, segundo Burton e Chibnall (2013). Eles foram os primeiros a experimentar a edição
entre quadros e dentro do quadro. Lembrar dos feitos de Méliès, ainda no século XIX, nos dá
asas para pensar a intervenção no fotograma e não somente entre as cenas, mas também sobre
a edição que acontece dentro da cena com a subtração ou a adição de elementos dramáticos.
A edição também acontece dentro do quadro. O cineasta francês recortava os elementos
e os colava em cada fotograma para a ilusão do movimento, ou do sumiço, ou de pura magia.
Hoje, a tela verde faz o papel daquela tesoura e outros artifícios são responsáveis pelos efeitos
visuais.
Burton e Chibnall (2013) tratam da linha de ação de Paul e Méliès buscando localizar
na história os feitos pioneiros. O marco do primeiro corte entre planos foi atribuído a Robert
W. Paul, o que construiu o primeiro estúdio para realização de filmes em solo britânico, no
norte de Londres, no ano de 1898, quando realizou o filme curto Come Along, Do. Essa
referência traz para a discussão parâmetros de abordagem que atravessaram a virada de dois
séculos, considerando a materialidade do corte para construção fílmica. Não se pode deixar
Robert W. Paul fora dos precursores dos efeitos visuais junto com George Méliès. Paul exibiu,
em abril de 1896, um filme colorido à mão. Ficou conhecido pela sua técnica visual imaginativa
de narrar filmes e pela colaboração substancial no desenvolvimento do cinema.
Quando o realizador teve nas mãos a tecnologia para organizar as tiras de filmagem e
selecionar outra posição da câmera entre cenários, aconteceram as primeiras modificações da
narrativa fílmica. Era o conhecer da continuidade entre cenas e a existência do corte. Uma
descoberta que veio a impactar os modos de fazer e usar a tecnologia da imagem em movimento.
Essa visita histórica serve para o reconhecimento inicial de duas formas de editar na ilha de
edição: uma é a conformação de planos em sequência, a outra é a edição dentro do plano.
64
Dos pioneiros ao reconhecimento da edição fílmica como um dos determinantes para a
narrativa, passaram-se algumas décadas, já no século XX. Ainda assim, concorda-se com
Machado (1997, p. 13) ao debater, como ele diz, uma “história técnica do cinema, ou seja, a
história de sua produtividade industrial, pouco tem a oferecer a uma compreensão ampla do
nascimento e do desenvolvimento do cinema”.
Quadro 11 – Cortes em Come along, do!, de R. W. Paul (1898)
Fonte: fragmentos do filme Come along, do! (PAUL, 1898).
65
Colocando a história da edição em uma perspectiva semelhante ao pensamento de
Machado(1997), defendendo que uma história oficial da edição contribui pouco para o
delineamento deste estudo, o fenômeno edição pertence a mais aspectos da vida do que somente
à profissão do cinema ou do audiovisual enquanto interface de aprendizado e de comunicação.
O ato de interferir na duração do plano filmado deu o nome de “montagem na Rússia”,
com a persecução da aparição da теория монтажа в кино, pronuncia-se teoriya montazha v
kino, isto é, teoria da montagem no cinema. Na Inglaterra e Estados Unidos da América é
conhecido o film editing, edição de filmes, traduzindo. Por outro lado, na França identifica-se
como montage. Não se pretende contrapor às nomenclaturas, que, na verdade, tornaram-se
conceitos, mas marcá-las como precursoras daquilo que veio a se chamar de edição audiovisual.
4.1.1. [Linha]
Na indústria audiovisual, os processos produtivos são resultantes de alterações de
tecnologias, de práticas, de posicionamentos diversos e relações de consumo ao longo do tempo.
Como também, ela foi marcada pelas alterações ocorridas tanto em espaço quanto em
instrumentos no acesso ao audiovisual. Por causa de tantas alterações e adaptações aos modos
de produção, não se pode dizer que exista apenas uma forma de realizar um filme ou uma série.
Pelo contrário, enquanto arte, profissão e negócio, ela possui processos customizáveis e
dinâmicos, cuja grande facilidade vem de uma adaptação às demandas exigidas.
A narrativa da série depende de: como o plano audiovisual é organizado para vincular
os elementos da cena, do conteúdo fotografado e o áudio gravado, ao conceito geral do filme;
possuir em seu enredo e parâmetros culturais da vida contemporânea, cuja seletividade da
câmera encontra a duração do plano na edição.
Como conceito predominante na indústria cinematográfica e audiovisual, encontra-se
verbalizações semelhantes a de Bowen (2018):
Como um verbo transitivo, "editar" pode significar revisar, refinar, modificar, eliminar ou montar componentes em uma nova forma aceitável. Foi usado pela primeira vez amplamente com a palavra escrita e agora também é aplicado às criações de imagem e som em movimento. Para nossos propósitos, o termo "edição" (um substantivo) é o ato de montar clipes individuais de imagem e som em uma história coerente de algum tipo. Assim, um "editor" é uma pessoa que pega um monte de imagem e material sonoro, revisa, refina, modifica, elimina e monta esses componentes de imagem e som em uma nova forma ou história aceitável. (BOWEN, 2018, p. 20, tradução minha)
66
Para Bowen (2018), editar transforma algo em uma nova e aceitável forma, ou seja,
audiovisualmente falando, consiste em reunir pedaços de planos audiovisuais em uma coerente
história de algo, observando o conceito tecnicista industrial de Bowen (2018), não distante dos
demais conceitos expressos por outros autores até o momento. Assim, é sugerido entender a
edição de forma meramente tecnicista. A objetividade do negócio cinematográfico, ou qualquer
outro, desconsidera o afastamento do caminho seguro. Neste caso, o caminho será ver a edição
como técnica, que lida com pedaços de planos de imagens e sons no final do sistema produtivo.
Os pedaços de planos audiovisuais como portadores de conteúdos que, dependendo da
sequência em que são juntados, podem sugerir ideias distintas, como dito por Kuleshov (1974).
Dessa perspectiva, não se edita planos pura e simplesmente, edita-se as ideias postadas nesses
planos, o que vincula o audiovisual ao ato criativo e à finalidade das ideias num veículo de
comunicação. A transferência de ideias, como a transferência do próprio comportamento
humano, efetiva a transferência cultural. Editar é produzir transferência cultural.
Seguindo as definições tecnicistas, Murch (2004) elenca os elementos naturais do corte
em ordem decrescente:
1- Refletir a emoção do momento; 2 - Fazer o enredo avançar; acontece no momento “certo” e dá o ritmo; 3 - Respeitar o alvo de imagem, ou seja, a preocupação com o foco de interesse do espectador e sua movimentação dentro do quadro; 4 - Respeitar o plano bidimensional da tela; 5- Respeitar a continuidade tridimensional do espaço da ação. (MURCH, 2004, p. 29).
O fazer metodológico da edição não se resume ao corte, porém essa é a caneta com a
qual o editor estabelece a relação entre o processo produtivo do audiovisual e o processo de
comunicação. Para Murch (2004), com o corte é decidido o ponto que a ideia inicia ou termina,
ou seja, quando a caneta está ou não a escrever na folha audiovisual.
A indústria quer a estabilidade dos conceitos de cada fazer para evitar confusão entre as
funções, assim como uma não interferir na seara da outra, como uma fábula. Contudo, conceitos
como esses deixam de lado os diversos aspectos da vida e do comportamento humano que se
entrelaçam para gerar a formação de valores e a capacidade do próprio audiovisual ser
compreendido.
Identificar conceitos do movimento russo, da montagem, engendrados no discurso
alinhado à indústria, possibilita compreender a necessidade da manutenção de procedimentos
da construção audiovisual inaugurados há décadas. Por exemplo, na edição das séries em
verificação, foram utilizadas as cinco técnicas da montagem de Pudovkin (1990): o contraste,
67
o paralelismo, o simbolismo, a simultaneidade e o Leitmotiv. Para ele, o argumentador ou
roteirista e o montador deveriam ser peritos nesses procedimentos, pois tais conceitos têm o
poder de conduzir o envolvimento emocional do público, ou seja, “conduzir psicologicamente
o espectador” (1990, p. 125).
Considerando o que foi posto por Pudovkin (1990), há uma provocação para perceber
que a edição não está localizada somente na etapa de finalização. Na finalização, acontece a
tessitura com todos os fios, isto é, dos planos audiovisuais, para que possa compará-la a um
objeto têxtil. Mesmo assim, cada fio é distribuído calculadamente para se atender ao projeto
têxtil, logo, o produto finalizado teve uma intencionalidade projetada inicialmente.
Então, o corte aparece como elemento principal da construção do discurso audiovisual.
Dancyger (2007) também reconhece a importância do corte e sua fluência para que exista uma
continuidade lúcida. O autor explica que não existem formas rígidas para o corte e coloca o som
e a imagem com graus de importância diferenciados, parafraseando sua lógica, o som é
percebido primeiro que a imagem pelo público (destinatário), logo, requer maiores cuidados na
escritura do produto, bem como atribui a cada gênero seu modo particular de edição. A edição,
então, não está restrita à ilha de edição, pois no discurso inicia sua construção na idealização
do roteiro.
Na proposta conceitual de edição deste estudo, percorre-se um outro caminho ao da
indústria cinematográfica e audiovisual. No entanto, não se nega ou rejeita as formulações,
como apresenta Bowen (2018) e outros. Ter autoconsciência sobre a edição quer dizer
compreendê-la no contexto, no cultural, sabendo que não se trata apenas de um procedimento
técnico, a estrutura, mas artístico e cultural, também derivante do complexo contexto da vida
enquanto organização. Isso porque, as populações detêm os códigos culturais aos quais o
tecnicismo, desprovido de conhecimento local, pode agir como operador da colonialidade e
desestabilizar as ligações de comunicação pelo não respeito a esses códigos.
Nas séries observadas, há a manutenção dos conceitos de Pudovkin (1990) como
tradição audiovisual que, por exemplo, o roteiro resultará em um episódio como acontece pela
cultura organizacional da indústria cinematográfica na produção dos bens audiovisuais para o
mercado. Neste exemplo, o retorno sobre o investimento financeiro determina percursos da
realização cinematográfica e audiovisual.
Quando Dussel (1980) fala sobre conflito entre centro e periferia, obriga a um
reposicionamento da direção do olhar para os conceitos que diferenciam o centro da periferia.
Provoca ao perceber que a periferia, ou seja, o latino-americano, consegue pensar sobre os
68
problemas estruturantes da sua realidade em maior profundidade do que o centro do
conhecimento europeizado. Assim, quando é reconhecido a força da presença do outro, o
mercado externo se baseia na construção artística cinematográfica latino-americana, através de
vários agentes institucionalizados, com empresas parceiras e a educação audiovisual mantida
pelos modos de produção do capital.
Uma visão hegemônica de plano na indústria audiovisual mostra o plano como “uma
visão contínua filmada por uma câmera sem interrupção” (MASCELLI, 2010, p. 19), dispõem-
se assim para dar a explicação de que cada plano é uma tomada, ou seja, o registro audiovisual
compreendido entre o ligar e o desligar da câmera. O plano é um pouco mais que só isso.
O plano audiovisual como formador da narrativa apresenta-se banhado de concerne para
a contextualização do sistema-mundo moderno-colonial nas narrativas de cada série.
Aproximando-se do pensamento de Eisenstein (2002-a, p. 41-42), o plano é uma célula da
montagem e não um elemento dela, pois, “na transição dialética de um plano, há a montagem”
(EISENSTEIN, 2002-a, P. 42). Todos os aspectos culturais, de acordo com o autor, formam-se
para dar à montagem o sentido. Assim ele descreve:
O papel decisivo é desempenhado pela estrutura da imagem da obra, não tanto usando correlações geralmente aceitas, mas estabelecendo nas imagens de uma obra específica quaisquer correlações (de som e enquadramentos, som e cor etc.) que sejam ditadas pela ideia e tema da obra particular. (EISENSTEIN, 2002-b, P. 106).
Deve-se lembrar que a teoria da montagem está ligada a um momento único da Rússia
do início do século XX. As correlações trazidas por Eisenstein (2002-b) vincula a técnica da
montagem com tudo aquilo que é possível de aprendizado ao cognoscitivo humano através do
plano, tanto para as correlações diretas, quanto para as de figuras de linguagem, como as
metáforas, podendo ser todas libertárias e criativas. O conflito é o centro de suas discussões,
contudo, o autor passa pelo corte sem percebê-lo como gerador de sentido, elemento de
aproximação narrativa e de continuidade. Por essa razão, não percebeu a dimensão múltipla do
corte e nem como o corte controla o plano, ou seja, a capacidade da edição gerir o conteúdo do
plano através do corte. Sendo o corte a expressão das intencionalidades de quem edita, através
dele é atravessado o cultural.
Segundo Eisenstein (2002-a, p. 35) “a cinematografia é, em primeiro lugar e antes de
tudo, montagem”, sendo o ato de aproximar partes desconectadas em uma unidade
compreensível. Colocando esse conceito em ordem de prioridades neste estudo, a edição edita
a montagem porque a organiza em uma estrutura, o produto audiovisual. Sendo assim, a edição
69
não é a montagem, mas o percurso criativo da organização da montagem através dos cortes e
enquanto imaginário da produção em um processo de circularidade com os fazeres do
audiovisual, acoplamentos e entrelaçamentos com o social e o cultural.
Neste sentido, a ideia do plano ser uma célula da montagem, como proposto por
Eisenstein (2002-a), não configura o centro da discussão, pois os cortes lidam com os planos
como criações autopoiéticas com capacidade e potência dramáticas. Os planos são criações do
humano para atender a inúmeras intencionalidades, pois, deles, através da edição, pode-se
extrair partes ou novos planos. Não seria, então, o plano audiovisual uma célula, mas um
organismo, considerando que todos os aspectos culturais fluem através dele. Dito isso,
aproximando da analogia biológica usada pelo autor russo, os planos seriam organismos em
exercício de relação com outros organismos, pelo fato de possuírem organização e estrutura
próprias. Acima de tudo, podem chegar ao ponto de expressarem-se por si e até independentes
de cortes intermediários.
Ao se olhar para a edição, reconhece-se o pertencimento ao sistema unitário como um
fenômeno cultural formado pela multiplicidade dos aprendizados de ver o mundo pela imagem
em movimento e de ouvi-lo pela profundidade inventiva da mente através do som. Propicia
notar a dimensão de uma consciência observadora em que cada decisão tomada pelo editor, ou
em parceria com o diretor, demonstra o entrelaçamento do cultural e do artístico com o
procedimento técnico.
O plano audiovisual é único, ainda que gravado várias vezes, em sua gravação, já
constitui a edição por receber o corte inicial e final como os condicionantes de sua existência.
Essa unidade determina o grau de exatidão na ilha de edição, se o objetivo for a exatidão,
principalmente por existir dentro do plano o arcabouço cultural que viabiliza sua leitura e
compreensão. Contudo, o corte é o constituinte que coordena o ritmo e a fluência do plano.
O papel do editor começa com o início do projeto pautado pelo trabalho colaborativo
especializado, tecnológico e artístico. A exatidão é a chave para essa questão e, não somente a
edição técnica em si, mas o que se projeta para ela, executa-se e seleciona-se durante as fases
de criação e de gravação. Mesmo em um audiovisual artístico abstrato, a edição interfere desde
o primeiro motivo antes de se ligar a câmera, como processo autopoiético do audiovisual. A
imagem audiovisual é formada no cognoscitivo, sendo ela qual for. Os meios para se alcançar
essa imagem audiovisual entrelaçam-se à estrutura e a organização da edição, à técnica e o
cultural, para concepção do audiovisual enquanto objetivo, aquilo que vai ser alcançado.
70
Quando o audiovisual está pronto para ser assistido, torna-se o resultado desse percurso
audiovisual.
4.2. [Maquinária]
No entendimento de maquinária, está o entrelaçamento da máquina com o imaginário.
A máquina tem características que exigem o conhecimento do operador. No imaginário está a
cadeia de significados dessa máquina no cultural, como sua função e prestígio social. Uma
câmera, por exemplo, tem a função de registrar imagens e sons, contudo, a marca dessa câmera
demonstra o arrojo econômico da produção, isso como conceitos hegemônicos capitalistas.
Sabendo-se que a perícia dos operadores é determinante na competência do registro.
Quando Felinto (2019, p. 65) expressa que “toda a experiência cinematográfica está
inevitavelmente ancorada em transformações tecnológicas”, deve-se buscar entender o que isso
significa diante do atual processo desenvolvimento humano como princípios ideológicos e
culturais das constantes mudanças em curso. A experiência cinematográfica possibilita distintas
formas de aproximação epistêmica, seja ela multidisciplinar/interdisciplinar/transdisciplinar,
com a vocação de aglutinação das diversas expressões existentes. Com isso, explica-se que no
curso de sua existência, o cinema e o audiovisual sempre foram motivados a acompanhar o
processo de desenvolvimento em curso, os quais a tecnologia também é medida em decorrência
de um processo globalitarista, como sinônimo do globalitarismo definido por Santos (2001).
Entre várias discussões, Machado (2001) debate, em Máquina e Imaginário, a presença
da máquina nos processos criativos e de consumo de imagem e som ao interferir a respeito de
como o artista pensa e age por meio da tecnologia. Aproximando a edição dessa discussão,
nota-se a necessidade de reconhecimento de que, tanto as máquinas utilizadas para gerar e editar
a imagem e o som, quanto a capacidade criativa do ser humano, interagem em mutualidade na
direção da edição como um objetivo, até que ela se torne um resultado. O resultado é precedido
de uma rede de ações e rituais que o precede, no qual está entrelaçado depois de pronto.
De acordo com Turner (1974), o ritual é dependente de uma representação simbólica
capaz de promover um deslocamento no cotidiano das pessoas e relativiza a relação tempo e
espaço. Observando com calma esse conceito, a ritualização ao assistir a uma série online está
diretamente proporcional às múltiplas formas de acesso, aos deslocamentos no cotidiano e suas
representações simbólicas combinadas. Na medida em que acontecem tais combinações, é
provável que a experiência também seja diferida, tratando, assim, o meio e o comportamento
humano na superfície de suas materialidades. Sobretudo, esse relacionamento vai além da
71
materialidade e produz repercussões no estilo de vida. O ritual do acesso através do dispositivo
é metafórico, pois o ritual liga “o mundo conhecido dos fenómenos sensoriais perceptíveis com
o reino desconhecido e invisível das sombras” (TURNER,1974, p. 30). Na abordagem desta
tese, o ritual liga o conhecido ao mundo digital das ofertas hiperdisponíveis.
A organização das redes de lugares e não-lugares, como reflexão da relação tempo-
espaço no cotidiano, coloca-se a diferenciação da forma de estar presente no mundo entre a
estratégia e a tática. Segundo Certeau (1998), a estratégia está na relação de força a qual os
sujeitos encontram formas de adaptação. No outro extremo da mesma relação, o lugar do outro,
dependente do tempo, é vivido no cotidiano como táticas da vida, em que as possibilidades de
ganho podem acontecer. O sujeito é intuído de existir pela estrutura social sem ser notado, como
um sistema unitário visível, justamente, segundo o autor, porque a tática “se insinua,
fragmentariamente, sem apreendê-lo por inteiro, sem poder retê-lo à distância” (CERTEAU,
1998, p. 45). Então, na estratégia dominante, estão as intencionalidades dos agrupamentos
econômicos agindo para determinar políticas comerciais nos países tocados pela cultura das
redes telemáticas, produzindo acoplamentos estruturais com os diversos integrantes dos setores
produtivos na relação com a vida das pessoas e com o Estado. Nesse contexto, as aproximações
intrincadas das intencionalidades dominantes estabelecem uma estratégia. A exemplo desse
contexto, observa-se que para acessar séries online, o indivíduo deve cumprir o programa da
comercialização e filiar-se ao provedor de filmes e séries de distribuição por acesso restrito.
Essa ação possui um limite perceptível e rígido, na qual, fora dela, pratica-se contravenções
com punições previstas em leis, como são as cópias piratas desses materiais audiovisuais. Essa
é a estratégia que limita a ação no plano físico, moral e legal, associando à explicação com o
pensamento de Certeau (1998).
Ao longo do tempo, foram muitas e ininterruptas sequências de alterações tecnológicas,
de negócios e transmissão. As alterações ocorreram nos níveis estratégicos, táticos e
operacionais, ou seja, a forma de trabalho também sofreu e sofre profundas modificações
estruturais para continuar a produzir bens culturais audiovisuais. Certeau (1998) fala do
contrato entre os sujeitos numa rede de lugares e de relações. No cotidiano, realizam-se as
“maneiras do fazer” e os “modos de utilizar” como procedimentos complementares e
indissociáveis, pois fazem parte do contexto.
Constatando essas características e relacionando-as às produções audiovisuais na
Netflix, percebe-se que o veículo, ao galgar o protagonismo no setor, buscou no formato da
televisão a construção de um estilo de expressão em suas produções audiovisuais. Esse esforço
72
ambiciona pertencer a configuração de redes de lugares e de não-lugares permeados pelos ritos
de acesso no limiar entre as maneiras de fazer e os modos de usar. “Não-lugares” é um termo
defendido por Augè (1994), cujo próximo e o distante convergem para um locus antropológico.
Porém, o autor afirma que "o lugar e o não-lugar são polaridades fugidias" (1994, p. 74), pois
ambos coabitam transitoriamente uma espacialidade incompleta, mas não necessariamente um
espaço.
Geralmente, o roteiro é a base do raciocínio audiovisual. Para compreender o estado
previsto da edição, aquele no qual a edição ocupa o imaginário da realização audiovisual, faz-
se necessário identificar como se idealiza uma cena. Esse é o momento em que a equipe imagina
como o audiovisual vai aparecer, como a imagem audiovisual será criada e editada. Field (1995,
p. 112) afirma que “o propósito da cena é mover o filme adiante”, bem como ela pode ser tão
longa ou tão curta como diz a história.
Nesse sentido, na escrita da cena, o roteirista põe em frase a descrição do plano. A cada
pontuação há um corte na progressão das frases para estruturar a cena. O lugar e o tempo da
cena são construídos no roteiro, tanto quanto a ação e os objetos, como uma pré-visualização
daquilo que ela será depois de pronta, depois de produzida e editada. Antes da equipe de
realização existir, a edição começava a ser construída no roteiro, a cada frase.
Comparato (1995, p. 285) explica que “compete ao diretor e à sua equipe converter o
roteiro literário em roteiro técnico, que é aquele que contém todas as indicações técnicas
imprescindíveis para a transformação do texto em audiovisual”. As indicações técnicas
transformam cada frase da ação ou descrição da cena do roteiro literário em imagem e som.
Esse é o processo que o diretor e sua equipe desempenham no entendimento do texto literário
a ser transformado em detalhes físicos, de imagem e de som. Comparato (1995) também ressalta
em negrito a cena como a unidade dramática que move a história a diante.
Também é a partir do roteiro que a equipe determina ou recebe a determinação do
formato e veículo de comunicação de apresentação do filme ou série para o público. As
máquinas da edição entram na esfera estratégica do processo com o planejamento sobre como
as cenas serão gravadas e finalizadas, como também operam cobrando a expertise da equipe
durante a realização. Todos os dispositivos empregados na confecção do audiovisual são
dispositivos pró-edição, que produzem material para a ilha de edição.
Observando a edição como imaginário, tem-se, a partir do roteiro, a permanência dos
objetivos da produção audiovisual na direção a conquistar o material audiovisual necessário
para ser editado. Em cada departamento da produção, cada cena vive como um ideal a ser
73
alcançado. O estado previsto da edição é o resumo dessa situação, pois as ações passam a ser
executadas para providenciar um resultado que vai desembocar na ilha de edição.
Por exemplo, quando Carmem, em Sempre Bruxa, T1E1, começa a ser queimada na
fogueira, aparecem brilhos sobre ela enquanto o fogo se alastra. A continuidade da cena mostra
os mesmos brilhos aparecendo dentro d’água, que é quando Carmen aparece no mar. Será
detalhada essa cena em breve. Do roteiro para a ilha de edição, os efeitos visuais, sonoros e
cortes foram planejados na etapa inicial da realização. Naquela etapa, foram escolhidos os
procedimentos fotográficos e de áudio para que os planos audiovisuais atendam às exigências
necessárias para a edição e para a geração dos efeitos visuais.
Sobre o avanço tecnológico e as implicâncias para o desempenho dos artistas, Machado
(2001, p. 28) reflete que “trata-se de uma competição entre vários gigantes da economia
mundial para conquistar mercados cada vez maiores”, esse autor fala no sentido de uma
informatização integral da sociedade decorrente da busca comercial. Então, a máquina passa a
ser exigida em sua performance. Por outro lado, essa responsabilidade recai também sobre o
artista.
No cotidiano, as exigências são tantas para um profissional se dizer como editor
audiovisual, que a preocupação de Machado se personifica nas poéticas tecnológicas atuais. De
vez em quando, por exigência do diretor, a ilha de edição pode ir para o local da filmagem,
como ocorreu nos filmes Constantine, de 2005, ou em Chico Xavier, de 2010. Nesses filmes, a
edição participou presencialmente da criação dos planos audiovisuais. Significa que as
peculiaridades do fazer da edição na ilha de edição se estendem para outros lugares, como o
local da filmagem. Ainda, a ilha pode ocupar lugar de performance numa projeção mapeada em
uma festa, ou em eventos ao ar livre, sobre a arquitetura da cidade.
Procedimentalmente, de acordo com a visão hegemônica, a edição ocupa a terceira fase
do processo criativo, assim como o momento de escrutinar o arcabouço cultural trazido pelos
planos filmados para organizá-los e dar estrutura para a obra. No entanto, colocar o audiovisual
em circularidade e a edição da mesma forma dentro do audiovisual, passa por conhecer o
percurso de cada tipo de realização. A captação audiovisual é determinada na primeira fase, que
influencia os procedimentos na ilha de edição. O suporte final está no início da produção e
definição de todos os procedimentos de realização.
Observando com mais cuidado, a edição influencia o percurso criativo bem como é
influenciada por ele. O Quadro 12, é colocado em relação de circularidade toda a sequência de
decisões sobre as máquinas e o imaginário desde o roteiro. Como se vê:
74
Quadro 12 – Do roteiro até a distribuição
Produção executiva 1ª Etapa – Fase Inicial Roteiro, projeto, captação de recursos, pré-filmagens, administração
2ª Etapa – Fase de Filmagem
3ª Etapa - Finalização
4ª Etapa Comercialização, distribuição, exibição Roteiro
Direção
Análise técnica
Captação Edição Finalização Suporte final 1. Método clássico – Película 16mm, 35mm.
Copião; som magnético perfurado; edição em Moviola.
Som óticoMontagem de negativo.Marcação de luz.
Cópia final película. Projeção em película.
Imagem
2. Película 16mm, Super-16, 35mm, Super-35.
Telecinagem Normal (DV/Mini DV); Edição eletrônica; som digital;cut-list.
Som ótico; montagem de negativo/marcação; internegativo/Blow-up ótico(no caso de Super-16 ou Super-35).
Cópia final película. Projeção em película
Arte
3. Película 16mm, Super-16, 35mm, Super-35.
Telecinagem HD (2k / 4k); Edição eletrônica – Digital intermediate; blow-up digital; film Transfer.
Som ótico; montagem de negativo; Marcação de luz.
Cópia final película. Projeção em película
Som 4. Película 16mm, Super-16, 35mm, Super-35.
Telecinagem Intermediária (Beta / HDTV) Edição eletrônica.Som digital.
Som e imagem digitais em suporte vídeo. Marcação de luz eletrônica.
TV ou projeção digital.
Produção
5. Vídeo - DV, HDV, HDTV, 2k, 4k.
Edição eletrônica; som digital.
Compressão dependendo do formato final; correção tape to tape
TV ou projeção digital
Edição 6. Vídeo - DV, HDV, HDTV, 2k, 4k.
Edição eletrônica; som digital.
Film Transfer – Volta para película; som ótico; marcação de luz.
Cópia final película. projeção em Película
Outros 7. Vídeo – aparelho celular ou HDSLR, DV, HDV, HDTV, 2k, 4k.
Edição eletrônica; som digital.
Compressão. Internet.
Fonte: Souza, 2021.
74
75
Neste paradigma, além daqueles aparatos maquinários tradicionais, fazem parte da
edição, os profissionais, procedimentos e ferramentas necessárias para a existência dos planos
audiovisuais. A circularidade dos eventos da criação audiovisual promove a pertinência desses
agentes como parte da edição e como formantes dela, porque os saberes, as ações e decisões
pertencem ao sistema unitário do audiovisual e como continuidade.
Na fase inicial da criação audiovisual das séries são tomadas as decisões sobre a
maquinária e recursos necessários para gerar e editar o plano audiovisual. Deve-se notar que a
edição, a finalização e o suporte são planejados no início do projeto, em termos de custos e
procedimentos técnicos para a realização. Entre as várias opções apresentadas no quadro, há
uma alteração secular na finalização e, ao tornar-se o processo criativo do todo digital, as três
etapas da finalização juntam-se à edição, exigindo do editor a expertise adequada como
decorrência da modificação das máquinas e requisitos profissionais para a função de edição.
Por existir uma tradição pelos modos de usar a edição audiovisual, inferir que se trata
de um ato cultural é o mesmo que dizer que a edição é a receptora da interferência do cultural.
Os procedimentos do imaginário interferem nos atos criativos porque são frutos do sistema
unitário cultural. A edição exerce interferência na ontogenia do audiovisual ao conduzir pelo
costume. Tradicionalmente nas máquinas são colocados os aparatos da ilha de edição como
computadores, softwares, mesas de áudio, entre outros equipamentos, como as máquinas da
edição. Contudo, discorda-se do tecnicismo tradicional, pois entende-se sobre os procedimentos
de criação dos planos audiovisuais como pertencentes e formantes da edição enquanto máquina
e imaginário, ou seja, em sua matéria e materialidade. É entendido também que a edição
influencia na formação do plano audiovisual.
A edição figura o processo criativo enquanto fazer, máquina e imaginário. No Quadro
12, viu-se a edição entre os departamentos de tomada de decisão na fase inicial. Ela possibilita
a definição do caminho a ser trilhado pela equipe, do maquinário necessário, para a modalidade
produtiva; do conhecimento e talento necessários, para a equipe dar conta da realização dos
planos audiovisuais. Ainda, criar os cortes, elementos visuais e sonoros para os planos
audiovisuais que formam a obra audiovisual, tornando um resultado pragmático. A edição como
imaginário acompanha toda a equipe durante a realização do objetivo a ser alcançado, fato
traduzido em cada posicionamento de câmera, interpretação de atores, holofote ligado,
microfone testado, entre outros tantos esforços para que o material funcione na ilha de edição.
76
4.2.1 [Padrão]
Os produtos audiovisuais patrocinados pelos canais de vídeo sob demanda tendem a
seguir uma padronização determinada pelos modos de produção hegemônicos, ficando
submerso na colonialidade dos modos de expressão. Por exemplo, uma estética de
narratividade, aplicada ao modo de fazer seriados, constrói um estilo que passa a subalternizar
as narrativas, ainda que essas encontrem formas de resistência através de meios de expressão e
uso criativo da técnica. A padronização encontrada nas séries em análise utiliza como artifício
o deslocamento da temporalidade e da espacialidade. Ofertam nos Originais Netflix um estilo
de narrativa com o enredo aparentemente não-linear, cheio de idas e vindas, avanços e
retrocessos, fato percebido também em outras séries que não foram selecionadas neste estudo.
A estilística do veículo interfere de forma colonizadora para que, dentro do canal, opere como
modo de expressão hegemônica.
A verificação dos profissionais em cada série foi determinante para entender a existência
de um padrão hegemônico do canal para a edição. Existe um modelo que as produções locais
devem seguir, por essa razão, o estilo Netflix de narrativa e edição fica perceptível. Trata-se da
assinatura do canal de televisão em suas produções. A colonialidade na narrativa faz a
manutenção de um padrão industrializado do audiovisual, na qual o estilo contar não se altera
com a alteração da equipe. Assim, trazendo para o local uma forma para que o assunto caiba
em sua estética.
Mignolo (2010, p. 13) faz uma reconstituição do conceito de estética a partir da
etimologia de aestheis que, no grego antigo, tem vários significados, tais como: sensação,
processo de percepção, sensação visual, sensação gustativa ou sensação auditiva. Conta que foi
a partir do século XVII que o significado se restringiu a sensação do belo e que Immanuel Kant
(1724-1804) deu grande contribuição na alteração de aesthesis para o atual conceito de estética
e sua história. Marcou a subtração dos potenciais significativos da palavra enquanto um
conceito múltiplo “y para la devaluación de toda experiencia aesthésica que no hubiera sido
conceptualizada en los términos en los que Europa conceptualizó su propia y regional
experiência sensorial” (MIGNOLO, 2010, p. 14).
Na categoria do belo na Netflix, por exemplo, encontrou-se em Sempre Bruxa uma
diferenciação gritante. Considerando que a temporada 2 foi a última da série, nota-se que a
imagem final da capa e da sinopse não serão de Carmen. Em última instância como mostra o
Quadro 13:
77
Quadro 13 – Capa e Sinopse em Sempre Bruxa
Temporada 1 na plataforma
Netflix; Temporada 1 e 2
em sites e motores de busca
na Internet.
Temporada 2 dentro da
plataforma de Netflix.
Sinopse da 2ª Temporada.
Fonte: Elaborado pelo autor.
No Quadro 13, vê-se a manifestação do poder hegemônico e da classe dominante para
manter os aspectos de dominação utilizando-se dos arquétipos da diferenciação étnica e da
opressão cultural. Contudo, a resistência pode se dar na profundidade da edição através da
organização do arcabouço cultural na construção da narrativa e, para isso, existe o corte. Sendo
em relação a Colômbia, entre os três países verificados quanto ao respeito ao étnico, ocorreu a
mudança da imagem da capa da série e da imagem da sinopse. Esta observação é feita como
pesquisador e cidadão, pois as categorias trabalhadas como estrutura de comunicação da série
apresentam a supressão de Carmen como o motivo central da narrativa. Foi alterado de Carmen
78
para Alícia. Na última semana de janeiro de 2021 voltou a ser Carmen na capa da série no
mostruário dos mais vistos no SVOD.
Segundo Mignolo (2010), outra característica que recai sobre o conceito reducionista de
estética, é a ficção, pois a mimesis, no campo dos estudos gregos de Aristóteles sobre a poesia
e Platão sobre a denotação, como “representación significa tanto “estar en lugar de” (yo
represento a Pedro en esta reunión) como “fingir que soy” (en esta representación teatral yo
finjo que soy Pedro)” (MIGNOLO, 2010, p. 14). A representação fica no campo da ficção e do
fingimento, segundo o autor.
Impondo uma estética para a edição, a Netflix quer se apropriar dos códigos culturais
locais inseridos no produto audiovisual, subalternizando-os em sua estrutura e organização de
distribuição. O modelo de edição lhe representa como a personalização daquilo que se considera
belo, pela estética kantiana, no sentido de fingir que é do local ou de todos os lugares onde está.
Nesse ínterim, observa-se que a estética de Originais Netflix é uma ficção, uma estratégia de
comunicação de guerra de mercado no cenário globalitarista.
No mundo sob pandemia e muitos países adotando medidas restritivas sociais, houve,
segundo Demartini (2020), em abril de 2020, um aumento de assinantes na ordem de 22,8%,
com 15,7 milhões de novos assinantes a integrar “a base global da Netflix a 182,8 milhões de
pessoas”, presente em 190 países. Diante disso, percebe-se que a Netflix está sendo
impulsionada pelo comportamento humano e sua ação de consumo de audiovisual pela internet,
aprofundando a construção desse fenômeno cultural.
Este estudo entende como conceito de estética a multiplicidade de significados contidos
em aesthesis, lembrado por Mignolo (2010). Deste modo, tem-se a compreensão da
multiplicidade conceitual ou multi-ideológica de estética, diferenciada da proposta kantiana do
jogo de harmonia entre o conhecer e o apetecer. Significa ver a estética como o processo de
percepção audiovisual sendo tão múltiplo como o processo de conhecer, de reconhecer, de
sentir e de construir.
Com a utilização da ferramenta do Quadro 3 – identificação da série 3%, apresentada
na metodologia – identificou-se a alteração na equipe de edição e responsáveis por esse
departamento nas três séries. Em 3%, aconteceu a alteração de diretores e editores com a
presença de mulheres em ambas as funções. Edha apresentou a manutenção de toda a equipe,
assim não houve alteração na edição em toda a temporada. Na série Colombiana, a equipe de
edição também se manteve.
79
Observando-se a proposta de 3%, registra-se que não foi alterado o processo de
percepção audiovisual com a alteração na equipe de direção e edição. A alteração de editores e
a manutenção do estilo do produto materializam a existência de uma edição projetada, ou seja,
que a edição foi pensada e projetada antes da realização da série, o que direciona diversos
procedimentos na execução do projeto.
A modelização é tão severa que, logo nos primeiros minutos das três séries, e próximo
à vigésima cena, em T1E1, há a intervenção dentro do quadro com efeitos audiovisuais, por
exemplo. As três séries obedecem a esse molde e o tomam com acoplamento estrutural da
narrativa.
A edição audiovisual também vem a ser uma intencionalidade projetada, mesmo
ocorrendo modificações em relação ao roteiro sustentador de cada fio dessa tessitura.
Justamente, porque essa tessitura de fios exemplifica a união e direção necessária da equipe de
realização e atores, inclusive, todos de vital importância para o feito audiovisual, como arte
coletiva, na qual a edição é planejada e tomada como objetivo da realização audiovisual desde
o roteiro.
4.3. [Faces]
Ao abordar a edição para além dos procedimentos técnicos, coloca-se em discussão não
só o local da edição no processo criativo, mas também como possuidora de aspectos culturais
resultantes da inter-relação entre os códigos culturais existentes no sistema-mundo
moderno/colonial. O audiovisual produz imagens e sons ao mesmo tempo em que os capturam
da vida, colocando a edição no espectro cultural de geração de sentidos e significados em
diversas ordens a partir do corte.
Mourão (2006) buscou outro caminho para tratar a montagem para além do “corta e
cola” na combinação dos planos, “com o único objetivo de traduzir o que está previsto no roteiro
ou no pensamento do diretor” (2006, p. 231). O campo dos sentidos e significados explicam
mais do que somente a técnica pela técnica, pois, assim, possibilita a discussão e provocações
teóricas em terreno fértil. A autora segue pela teoria da montagem concomitante às ideias de
Eisenstein (2002-a), abordando duas vertentes do cinema: o artifício e a representação da
realidade. Essas duas formas de construir significados no audiovisual, para a autora, acontecem
na ilha de edição, sendo o artifício o aspecto mágico na construção do imaginário em
contraponto à representação da realidade.
80
Nas séries observadas temos o artifício como propulsora das significações em 3% e
Sempre Bruxa, mesmo reconhecendo que no discurso a representação da realidade é vivida
pelas personagens no processo enunciativo. O artifício vem entre zeros e somados à capacidade
humana de criar. A criação em imagem gerada por computador, ou do inglês CGI, provoca a
criatividade biológica humana para superar ao mesmo tempo em que possibilita a criação de
mundos impossíveis ou o cosmopolitismo da imagem e do som do real. Está presente também
na correção de cor, na edição do áudio e mixagem musical, pois a edição do áudio controla a
construção da emoção a partir do ouvir. O artifício audiovisual não é criado na ilha de edição,
ele é criado no processo de elaboração do audiovisual antes da produção e por interferência do
que culturalmente se deseja significar, por exemplo, um conto sobre uma bruxa viajante no
tempo.
O corte revela-se como portador dos mais diversos aspectos culturais, intencionalidades
diversas, significados e valores vida contemporânea, por ser um processo cognitivo e uma
resposta humana à construção da escritura audiovisual. Confluindo esses atributos em uma só
direção, é possível organizar outros planos enquanto unidades culturais para a escrita da
narrativa, com a finalidade de ser entendido num conjunto ou como unidade. A edição reduz o
espaço e o tempo entre os planos para criar a cena, a espacialidade e a temporalidade nos
mundos criados pelo audiovisual.
Os cortes têm significados não-fixos e não-determinados até que o próximo plano seja
aproximado. Quando o próximo plano chega, constata-se à pertinência do ponto de corte na
construção do significado da cena, pois, se o ponto não estiver de acordo com outro ponto, é
feito a escolha até que funcione. Esta concepção de corte serve como flexibilização do que se
entende por significado, como algo permanentemente ligado a um signo. O corte como signo
não tem um significado permanente. Porém, pode ter outra forma de leitura ou percepção
indicada pela forma como a organização da edição os vincula ao contexto, por isso, o corte
determina a duração cultural do plano.
Entenda-se o corte em um aspecto mais amplo do que apenas separar os trechos
audiovisuais. Sendo múltiplo, o corte pode gerar significado e interpretação sob diversas
perspectivas, mas, em todas elas, são dois movimentos existentes. No primeiro, há a
transformação de um plano maior em organismos menores, cuja extração do trecho audiovisual
acontece por haver uma relação de seleção prevista desde sua concepção. O segundo
movimento que se tem à mão, é a parte do plano selecionado, que passa a existir na aproximação
81
da construção do sentido proposto pelo roteiro, em que a sua missão é aproximar o conteúdo
cultural da ação ao ponto em que o conjunto de planos dê conta de estruturar a cena.
Este é um conceito multi-ideológico de corte, pois a existência do corte inicial e final
preconiza a construção da ideia de duração do plano como um fator da presença da
interdisciplinaridade contida no contexto em debate. Exibe-se uma relação de mutualidade e
correspondência entre os fazeres da realização audiovisual, a edição propriamente dita, o
público consumidor e os valores de trocas no contemporâneo. Essa relação ocorre no instante
em que o corte incorpora os aspectos da realidade e no como seus realizadores expressam sua
forma particular de ver o mundo, sendo ela proveniente de um pertencimento cultural. De forma
cabal, cada corte é carregado de intencionalidades frutos ideológicos de várias origens
agregados no momento da decisão de cortar o plano.
Observando o primeiro minuto de cada série em análise, encontra-se os seguintes dados:
Quadro 14 – O 1º minuto das séries Séries em análise 3% Edha Sempre Bruxa Localização Temporada 1; episódio 1. Temporada 1; Episódio 1. Temporada 1; Episódio 1. Descrição da ação
Texto contextualiza o Processo. Apresenta Michele arrumando-se para ir ao Processo.
Edha, com sua narração, contextualiza sua atividade na moda e apresenta sua filha.
Apresenta Cartagena 1646. Mostra mulher negra, amarrada e transportada numa carroça enquanto a voz de um homem fala do temor a mulher.
Minutagem 00m00s - 01m00s 00m00s - 01m00s 00m00s - 01m00s Nº de planos 9 34 4 Nº de cortes 24 68 12 Fonte: do autor.
As cenas iniciais das três séries apresentam o signo corte como união entre planos e
impõem significados distintos. Nas séries, o levantamento dos dados começa com a vinheta da
Netflix no audiovisual, assim, computam-se os cortes da vinheta. Em 3%, a contextualização
escrita e apresentada por fusões instaura a marca narrativa e o vínculo cultural do aprendizado
da palavra. Em seguida, uma menina é apresentada dentro do seu quarto, preparando-se para o
Processo, até ser chamada na janela e ser revelada como a personagem Michele. Os cortes
aproximaram em imagem e som à compreensão sobre tratar de uma pessoa aprontando-se para
sair.
Na série 3%, o primeiro minuto mostrou 9 planos que receberam 24 cortes, ou seja,
foram transformados em 12 planos recheados de significados. Em Edha, a relação entre planos
e cores foi igualitária, ou seja, 34 planos com um total de 64 cortes. Sempre Bruxa, mostrou na
tela 6 planos resultando em 12 cortes, criados a partir de 4 unidades culturais, 4 planos.
82
O corte é a menor unidade da edição audiovisual com o qual a narrativa é organizada,
que, em circularidade, está, desde o roteiro, até a interação com o público. Contudo, ele é
múltiplo, pois, para o plano a ser selecionado, precisa receber dois cortes, o inicial e o final. O
plano audiovisual fica condicionado em sua existência fílmica dos cortes. Assim, o corte inicial
coloca uma face de aproximação com o corte final do plano que o precedeu. Na outra ponta do
plano está a outra face do corte, que se aproximará do corte do próximo plano.
Edha apresenta-se e contextualiza seu fazer no mundo da moda. No final do primeiro
minuto apresenta sua filha, seu único amor. A apresentação com a narração de Edha tem nos
cortes um processo significativo distinto de 3%. Por meio deles, vê-se uma profusão de imagens
de modelos em desfile no ritmo da música de fundo. Os cortes usam os planos como alegorias
para descrever o que é dito por Edha.
Uma outra construção de significado está em Sempre Bruxa. O primeiro minuto trouxe
um número de planos reduzido, comparado às outras duas séries. Contudo, colocou uma
contextualização histórica, geográfica e da ação em breves quatro planos. O primeiro, e mais
longo plano, inicia com gaivotas voando em direção ao Sol, mostrando caravelas ancoradas
próximas ao forte guardado por soldados em ronda, até vermos soldados puxando uma carroça,
e sobre ela está uma mulher amarrada.
Essa forma de ver o mundo entrelaçada ao projeto de produto do veículo coloca em jogo
materialidades históricas da formação de ideias a partir do audiovisual e da vida. Essa relação
é cultural, ou seja, o audiovisual e a vida se auxiliam mutuamente para finalidades comuns.
Importante notar o quanto durou o plano em cada uma das séries em seu primeiro minuto. Essa
duração é determinada pela edição enquanto procedimento técnico e maquinária, imaginário
mais técnico. A duração do plano fala muito sobre os códigos culturais em uso, formando a
duração cultural do plano.
Para conceituar a duração cultural do plano é preciso compreender como ela se forma.
O corte como objetivo da realização audiovisual existe como resultado de uma série de
acoplamentos estruturais que impulsionam a tomada de decisão da criação dos planos e na ilha
de edição. Decisão sobre o momento exato para que o corte inicial e o corte final criem um
organismo capaz de expressar por si, o plano audiovisual. O código cultural de cada grupo,
sociedade ou país são a sua existência histórico-cultural. Logo, quando esses códigos se
apropriam do audiovisual enquanto procedimento de escritura, são produzidos diversos
acoplamentos estruturais até que esse código cultural se manifeste no momento do corte para
garantir que será compreendido. A duração do plano porta uma ideia e a transmite de acordo
83
com o que emana dos códigos culturais e tem-se em compatibilização com o público.
Considerando essas características, entende-se que a duração cultural do plano é a expressão do
código cultural de domínio do grupo que escreve o audiovisual, que edita a ideia e a transmite,
mas também esse conceito está em como cada cultura organiza, o que entende por tempo
necessário para compreender o que diz o plano e seu conjunto em uma cena. O que retorna ao
conceito de edição na circularidade do fenômeno.
Um audiovisual é o engendramento de diversos acoplamentos que formam códigos
culturais compartilhados por todos que escrevem com imagem e som. Contudo, aqueles códigos
próprios de uma cultura buscam no audiovisual sua própria forma de expressão. Não é difícil
ver a diferença entre filmes ou séries indianos, africanos, brasileiros ou britânicos, por exemplo.
Aquilo que há de particular em cada cultura encontra um caminho para aparecer. Editar é
produzir transferência cultural, ou seja, a diferença está no como se contam as histórias de cada
lugar para ser compatível com os seus códigos culturais e outros lugares como uma relação de
aprendizado.
O aprendizado da vida através do audiovisual, como em uma videoaula, por exemplo,
coloca uma sequência de cortes audiovisuais para formar a imagem e o áudio do que se vê e
ouve. Mesmo existindo uma narratividade estilística imposta pelo SVOD, percebe-se a
resistência à subalternização na construção de cada série pela quantidade de cortes no primeiro
minuto e como o assunto é abordado.
84
5. [DIÁLOGO]
A metáfora do diálogo abrange neste capítulo algumas interferências externas e internas
que também compõem a plasticidade estrutural da edição. O diálogo nas três séries é
apresentado como exemplo dos vários acoplamentos próprios de cada nacionalidade, como
exemplo de como a edição controla a duração cultural do plano, da cena. Esses ritmos são
resultantes de construções dramáticas entendidas como aceitas em cada país. Demonstram os
acoplamentos estruturais entre o cultural de cada país e a edição para a formação da expressão
da série audiovisual. Por exemplo, a duração do plano nos diálogos e a concepção deles são
capturados pelo SVOD como expressão de sua conquista de território, mostrando para o mundo
a bandeira daquele país como parte de seu reinado.
Fez-se necessário abordar a presença do SVOD nos países da América Latina como um
dos acoplamentos estruturais da edição. Deve-se considerar por primeiro, a capacidade de banda
larga e as realidades sociais. Como vimos, existem globalizações e, ao olharmos para o
continente sul-americano, torna-se mais fácil identificá-las através dos sensos, mesmo que esses
sejam superficiais situações. Em todos os países, os processos de coleta de dados têm
parâmetros semelhantes para se chegar ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Desta
forma, por exemplo, uma família que passou a ter uma geladeira, máquina de lavar roupas e
televisão no Brasil pode passar de uma classificação no IDH para outra superior, mesmo não
tendo energia elétrica em sua casa para sustentar os aparelhos e coabitando oito pessoas em
vinte metros quadrados.
No entanto, faz-se importante perceber o movimento das empresas de distribuição de
audiovisuais dos OTT, sigla em inglês de over-the-top, “quando se usa a internet como principal
canal de conteúdos” (MASSAROLO; MESQUITA, 2016, p. 4). Nessa classificação, estão os
SVOD na direção dos países com maior concentração populacional, renda per capita e a
qualidade da internet. Esses três condicionadores são elementares para evolução e aumento do
número de consumidores do serviço.
Se a estratégia é participar do consumo da parcela da sociedade economicamente capaz,
fica clara a intencionalidade dos SVOD. Explorando um pouco mais sobre isso, essas são
empresas que não detêm infraestrutura de distribuição e acoplam-se àquelas preexistentes nos
países que chegam. Elas dependem apenas da banda larga de internet e atendimento às
regulações locais dos países que os recebem. Comparando com todos os outros formatos de
televisão, são negócios incrivelmente de baixo custo, um dos motivos dos valores baixos de
85
assinatura, comparando com as televisões por assinatura. Em contrapartida, ainda arrecada
consumidores das televisões por assinatura baixando a audiência, consumo e, principalmente,
a receita dessas empresas, ou seja, pura concorrência de mercado. Os SVOD são serviços
gerados a partir das inovações do Vale do Silício, com pouca infraestrutura própria e
maximizada infraestrutura alheia.
Por outro lado, do investimento para realização de obras audiovisuais nos países em que
distribui os serviços, a Netflix tem colocado milhões de dólares para vencer a concorrência e
manter a atenção do público. Investir nos audiovisuais desses países coloca à disposição da
Netflix: a versatilidade cultural pertencente ao letramento audiovisual do país; narrativas dentro
do arcabouço imaginário do comportamento humano do país; valores civis e morais de
pertencimento, uma vez que a equipe geralmente é local; horizontalização de recursos
financeiros para as realizações audiovisuais, mesmo sendo uma obra contratada e com estética
definida. Contudo, há um respeito pela cultura regional com as realizações audiovisuais, pois
as equipes locais detêm o domínio dos códigos culturais do país. Assim, estabelece-se um
vínculo entre a Netflix e códigos culturais locais, dando o aspecto estético endógeno do Original
Netflix como valor de marca.
Boone e Kurtz (2009) definem que “o valor de marca se refere ao valor agregado que
certo nome de marca confere a um produto no mercado” (2009, p.416). Fato que ajuda a
entender como veio a solidificar as metodologias para o projeto das economias planetárias. O
preço passou a ser simbólico no sentido de que não se sabe exatamente pelo que se paga, já que
a escolha de um produto acontece entre tecnologias semelhantes, quando não iguais. Paga-se o
preço da coisa pelo seu valor afetivo e a sua promessa de satisfação, não mais pelo custo da
linha de produção na forma de vida pós terceira revolução industrial.
A geração de valor do mundo moderno implica na compreensão da globalização como
processo histórico, como também a valoração das marcas está relacionada com o processo de
digitalização da vida moderna e aponta o surgimento do digital na década de 1970 como o
preâmbulo do que seguiria como a terceira revolução industrial, como apontado por
Goldenstein (2019). Desse marco histórico em diante, o desenvolvimento das economias
possibilitou o surgimento de meios e formas de consumo a partir de valores simbólicos a somar
com o antigo projeto de internacionalização dos mercados. De acordo com a autora, o produto
ou serviço passou a carregar o valor agregado vindo de inúmeras fontes, em um mundo onde o
valor do produto não é mais formado apenas pelo custo da produção, mas o que ele representa
culturalmente. A autora destaca que:
86
A geração de valor no mundo moderno não é mais determinada pelos bens de investimento fixo, como era durante a primeira e segunda, e até o início da terceira revolução industrial. O que gera o valor hoje em dia não é a produção física desse computador é tudo que tem embutido aqui de tecnologia, de design, de logística, de software, de capital humano, de marca. (GOLDENSTEIN, 2019)
Esses valores dito agregados não são outros senão os reconhecidos pelas classes como
acreditáveis. Valores impostos por uma forma de vida em que produtos/serviços são trocados
na busca por satisfação e exercício de status. Ao tentar compreender os provedores de
audiovisual sob demanda em âmbito cultural, não se pode deixar de lado a identificação do
vinculado a um consumo de classes e da culturalização do distanciamento entre elas. O que
significa que o acesso ao material audiovisual, nesse caso, não depende apenas do quanto paga-
se pela assinatura do provedor. Há de ser considerado também o valor do acesso à própria
internet como procedimentos de classe. Vejamos a relação entre usuários de internet nos três
países em relação com a contratação da Netflix:
Quadro 15 – Relação usuários de internet, banda larga e assinantes Netflix População Usuários Internet Usuários Netflix PIB per capita/ano Pobreza
Brasil 209,5 milhões 135,9 milhões 15 milhões US$ 8.920 64 milhões
Argentina 44,49 milhões 35 milhões 4,5 milhões US$ 11.658 15,5 milhões
Colômbia 49,65 milhões 31 milhões 2 milhões US$ 33.604 16,9 milhões
Fonte: Brasil – IBGE (2018); Argentina - Banco Mundial/2018; Colômbia – DANE/2018; Netflix - 2020.
Nitidamente, a realidade entre os três países é próxima, pois a pobreza gira em torno de
1/3 da população, com exceção do Brasil que está um pouco abaixo da média dos outros dois.
Os números mostram a distância entre a quantidade de população economicamente incapaz e a
quantidade de pessoas com acesso à internet e à Netflix. Demonstra-se que na Argentina e
Colômbia existem proximidades entre o número da população e o número de acesso à internet,
no entanto, os usuários da Netflix estão próximos de 10% da população na Argentina e abaixo
de 5% na Colômbia, ainda que Colômbia tenha o maior PIB per capita ao ano dentre os três
países. Isso demonstra um aprofundamento das desigualdades sociais em cada país. A mesma
situação ocorre no Brasil com um agravante, mostra o menor PIB per capita ao ano, indicando
que o PIB, dividido pela população, sobra menos do que nos outros dois países, colocando a
desigualdade social ainda mais abissal.
Mignolo (2003) propõe um desvencilhar-se da obscuridade do sistema-mundo
moderno-colonial com base no conceito de fronteiriço de Aníbal Quijano (2005). Em sua
87
proposta, está a geração de um outro mapa impulsionado pelo reposicionamento político,
epistemológico e intersubjetivo para estar do lado externo das fronteiras entre o ocidente e o
oriente. Significa, para este estudo, a abertura de olhar para a observação desses dados como
eles são, sem romantizá-los ou politizá-los, mas com um olhar autorreferencial.
Na observação da edição das três séries foi identificado que todas fazem uso dos
recursos audiovisuais existentes para abordar a desigualdade. A série 3% mostrou a
desigualdade meritocática. Edha trabalhou a desigualdade de classes. A série Sempre Bruxa
partiu da desigualdade étnica. Berliner e Cohen (2011) definem essas três modalidades da
seguinte forma:
Edição de continuidade: um sistema de edição no qual os dispositivos estabelecem uma apresentação contínua de espaço e tempo. Edição de ponto de vista (POV): um sistema para comunicar informações da história, retratando o campo visual observado pelas personagens. Edição analítica: a prática de organizar tomadas de acordo com as informações da narrativa, de modo que os espectadores deduzam as relações lógicas entre os planos. (BERLINER; COHEN, 2011, p. 46, tradução nossa)
A série Original Netflix tem um projeto estético de edição orientado pelo gosto do
público. A organização dos tipos de edição é subordinada a esse projeto. Na temporada podem
ter vários editores ou editoras, todos seguirão as diretrizes estéticas de edição da patrocinadora.
Esses recursos da edição consistem na duração cultural do plano, no encadeamento das ideias
e na resistência do ponto de vista local
5.1. [Entrevista]
Buscando a relação entre a edição de planos e a edição dentro dos planos, analisou-se a
cena de entrevista para entrada no Processo em T1E1 na série 3%, como uma das formas de
ausculta do processo produtivo audiovisual a partir de um fenômeno transmitido. No caminho
inverso está o inventário da cena através da ferramenta Análise Técnica de Direção por Cena,
utilizada na produção do audiovisual, mas que agora opera como instrumento de coleta de
dados. Reconstruiu-se as relações entre o resultado e o objetivo.
Observe-se o Quadro 16:
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Quadro 16 - Análise técnica de direção por cenas em 3% Série: 3% Nacionalidade: Brasileira Temporada: 1ª; Ano: 2016; SVOD: Netflix.
Capítulo Sequência
Int./Ext. Planos analisados
Minutagem Set Up Época Locação Ambientes
1 - Cubos Entrevista no Processo
Interna 21 00:12:50 - 00:19:56
Entrevista/Flat
Utópica / Presente
Estúdio Sala de entrevista
Duração Cena D / N 49 min 49 seg. 20 Dia
Elenco Figuração Outros Principal Apoio Peq. Papéis 1° plano Fundo Massa Móveis 16 8 X X 4 X Bancada de entrevista com baias; divisória lateral em
madeira clara e de vidro entre as personagens; cadeiras. Cenografia Objetos de cena Figurinos Maquiagem Sala de cor escura; móveis escuros; sem objetos extras. Anéis fosforescentes; colar artesanal. Entrevista Maralto;
Uniforme partic. Processo Flat/natural
Movimento de Câmera Luz Efeitos visuais Efeitos sonoros Câmera na mão / Panorâmica Chicote.
Iluminação flat cruzada. Tratamento de cores / Animações sobre vidro. Diegético p/ animação do grafismo sobre vidro; vozes incompreensíveis; cadeiras arrastadas.
RESUMO DE CENA Os jovens participam da entrevista de seleção do Processo. Entrevistadores do Maralto traçam o perfil psicológico dos participantes e eliminam os considerados não aptos. Assistentes ajudam a retirar os eliminados da sala de entrevista e conduzem os aprovados para outra sala. Nº contes Planos Minutagem Ação/Vídeo Áudio
01 P. Geral 12:50 - 12:55 Candidatos se aproximam e sentam-se diante das baias de entrevista.
Música de piano e contrabaixo segue em toda a cena. Som ambiente: vozes; passos; cadeiras arrastadas.
02 Primeiro P. 12:55 - 12:57 Atrás do vidro Alex, rapaz branco, cumprimenta entrevistadora e senta-se. Vemos grafismo com foto de Alex sobre o vidro.
Alex: Olá. Tudo om? Meu nome é...
03 CP 1º P. 12:58 – 12:59 Entrevistadora 1, mulher branca, fala o nome Alex olhando para as informações no vidro
Entrevistadora 1: Alex.
04 CP 1º P. 12:59 – 13:00 Alex olha sorrindo para a Entrevistadora 1. Som da respiração de Alex. 05 1º P. 13:00 – 13:01 Entrevistadora 2, mulher branca, fala com rapaz negro sobre
políticas de inclusão. Entrevistadora 2: Antes de mais nada, você sabe que a gente....
06 CP 1º P. 13:01 - 13:02 Vemos o grafismo como foto do rapaz no vidro diante do seu rosto. Rapaz negro, Fernando Carvalho, ouve a Entrevistadora 2.
Entrevistadora 2: ... não tem nenhuma política especial de inclusão...
Legenda: P. = Plano; CP = contra plano; CM = Câmera na mão
Fonte: do autor.
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Quadro 16 - Análise técnica de direção por cenas em 3% (continuação) 07 CP 1º P. 13:02 - 13:03 Entrevistadora 2 fala com rapaz negro sobre políticas de inclusão. Entrevistadora 2: para... 08 CP 1º P. 13:03 – 13:04 Fernando interrompe Entrevistadora 2 e responde. Vemos o grafismo
como foto do rapaz no vidro diante do seu rosto. Fernando: Sei, sei.
09 Primeiro Plano 13:04 - 13:06 Entrevistadora 2 faz pergunta para Fernando. Vemos linhas verdes dividindo o vidro em quadrantes sobre o rosto dela.
Entrevistadora 2: Ainda assim, você acha que consegue passar por todo o Processo?
10 CP 1º P. 13:06 - 13:07 Fernando responde à pergunta. Vemos o grafismo como foto do rapaz no vidro diante do seu rosto.
Fernando: Com certeza.
11 Primeiro Plano 13:08 - 13:09 Entrevistador 3, negro, fala com uma mulher negra. Vemos linhas verdes dividindo o vidro em quadrantes sobre o rosto dele.
Entrevistador 3: Deixa eu fazer uma pergunta mais delicada. Som diegético do grafismo no vidro.
12 CP 1º P. 13:09 - 13:09 Menina negra olha atentamente para o Entrevistador 3. Vemos o grafismo como foto do rapaz no vidro diante do seu rosto, com o nome Joana Coelho.
Som ambiente e música.
13 CP 1º P. 13:10 - 13:12 Entrevistador 3 questiona uma mulher negra. Vemos linhas verdes dividindo o vidro em quadrantes sobre o rosto dele.
Entrevistador 3: Há quanto tempo você não lava o cabelo?
14 CP 1º P. 13:12 - 13:13 Joana olha atentamente para o Entrevistador 3, enquanto mexe no cabelo. Vemos o grafismo como foto do rapaz no vidro diante do seu rosto, com o nome Joana Coelho.
Som ambiente e música.
15 CP 1º P. 13:14 - 13:15 Entrevistador 3, impassível, observa Joana. Som ambiente e música. 16 CP 1º P. 13:15 - 13:16 Joana responde ao Entrevistador 3. Joana: Desde a última vez que tive água... 17 CP 1º P. 13:17 - 13:18 Sobre o ombro de Joana vemos o Entrevistador 3. Joana: ... para desperdiçar. 18 CP 1º P. 13:19 - 13:20 Sobre o ombro da entrevistada vemos o Entrevistador 4 fazendo uma
pergunta. Vemos linhas verdes dividindo o vidro em quadrantes sobre o rosto dele.
Entrevistador 4: Podemos sair algum dia?
19 CP 1º P. 13:21 - 13:22 Sobre o ombro do Entrevistador 4, vemos os grafismos em Michele. No grafismo vemos em vermelho a palavra “desestabilizar”.
Entrevistador 4: Eu gostaria de te conhecer... Som diegético do grafismo no vidro.
20 CP 1º P. 13:22 - 13:24 Vemos o Entrevistador 4 observando Michele. Entrevistador 4: ... melhor fora daqui sabe? 21 CP 1º P. 13:24 - 13:25 Sobre o ombro do Entrevistador 4 vemos os grafismos e a menina. No
grafismo, vemos em vermelho a palavra “desestabilizar”. Som ambiente e música.
Legenda: P. = Plano; CP = contra plano; CM = Câmera na mão Fonte: do autor.
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Abordar esses dados de forma decolonial, significa entender que as relações entre a
presença do Estado, dos modos de produção do capital, liderado pelas empresas do serviço de
vídeo sob demanda e dos acoplamentos que atuam sobre as formas de estar nesses países e
interferem na percepção da desigualdade social e dos acessos de todos os tipos para a população.
Na ferramenta identificou-se os assuntos em análise na cena sobre a edição e o como
foram empregados os procedimentos audiovisuais e códigos culturais, na perspectiva de
minimizar a chance de possível confusão na interpretação da cena.
Na edição como resultado, tem-se a série/produto e, por objetivo, entenda-se toda a
construção material e no imaginário da produção da série até chegar à ilha de edição. Estudar a
edição nesse sentido, como primeiro procedimento, inicia-se pela observação do set up da cena,
entendido como “conjunto de planos que não envolvem modificações na luz, maquiagem,
vestiário e cenário (na linguagem cinematográfica dos filmes americanos, refere-se à posição
da câmera)” (RODRIGUES, 2007, p. 118). Nesse sentido, toma-se a cena como fenômeno de
edição observada em sua circularidade pela superfície e profundidade, estrutura e organização.
Ao se inventariar a cena, pode-se localizar em qual momento a edição começou a ser criada
fora da ilha de edição. Assim, buscamos a espacialidade da edição no processo produtivo do
audiovisual em sua estrutura e organização ao compreendermos o sentido de a edição ter um
estado previsto.
Como mostra o Quadro 16, o setup da cena é simples. Tem iluminação distribuída por
igual em um cenário escuro, ao qual se encontra um balcão dividido em baias, cadeiras e
divisórias de madeira e vidro. Na cena, os avaliadores do Processo entrevistam os candidatos
no primeiro contato seletivo. A medida em que a entrevista percorre, os avaliadores analisam
os dados do entrevistado em uma tela sobre o vidro que aparece apenas para eles, mesmo
estando diante do candidato.
Trilhando o caminho inverso, parte-se do fenômeno para a sua constituição, ou da edição
pronta para a sua concepção, à peculiaridade da técnica da câmera na mão, aprendido pelo
Cinema Novo, ou Nuevo Cine, ou Terceiro Cinema, como ressonância técnica da Nouvelle
Vague, apropriada e adaptada pelo cinema latino ao seu estilo de abordagens e temas.
Respeitando-se que “é consenso que o cinema latino contemporâneo apresenta estilos, formas
e realidades diversas” (GONÇALVES, 2013, p. 27).
Observando o fragmento da cena descrita na ferramenta de coleta de dados na Análise
técnica de direção por cenas, foi utilizada uma ferramenta alinhada à decupagem clássica do
cinema, definida por Xavier (2005, p. 22) como os procedimentos para decompor o filme em
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planos, que, para o autor, correspondem às extensões contínuas de imagem entre dois cortes.
Acrescenta-se à definição de decupagem de Xavier (2005), o som, pois o áudio compõe o que
conhecemos por audiovisual. Por essa razão, quando se fala em plano, entende-se como plano
audiovisual, com imagem e som.
Na primeira parte da ferramenta estão as informações sobre os sujeitos da pesquisa,
detalhes da cena, características técnicas, estéticas e de procedimentos utilizados na produção.
Tem-se contato com informações derivadas da interpretação do roteiro, transformado em
procedimentos de vários departamentos da realização audiovisual. A montagem da cena
fragmentada em planos serve para demonstrar que a edição nasceu primeiro como objetivo no
corpo da equipe de realização, exigindo que cada detalhe fosse programado para ocupar um
lugar na cena e em cada plano gravado.
Na sequência da ferramenta, encontra-se uma descrição da ação proposta pelo roteiro e
a divisão dos planos em planos editados, esse procedimento é chamado de planificação. Os
planos editados receberam a intervenção processual da edição na ilha de edição. Assim, a cena
completa tem 7 minutos e 6 segundos de ação, com 163 planos editados por 326 cortes. Isso
porque cada plano editado tem dois cortes, o inicial e o final. A minutagem retém as
informações de cortes iniciais, finais e a duração do plano entre os cortes. O trecho apresentado
mostra 35 segundos e 21 planos, transladados do audiovisual para o papel e descritos com tipo
de plano, minutagem, ação em vídeo, som e outras informações necessárias que mostram a
gestão de 9 planos gravados e distribuídos em 42 cortes.
Os planos são o plano geral dos jovens chegando para a entrevista, da Entrevistadora 1,
do Alex, da Entrevistadora 2, do Fernando, do Entrevistador 3, da Joana, do Entrevistador 4 e
da Michele. No trecho, os 9 planos foram programados para conter as diferenças entre os do
lado de lá e os do lado de cá, respectivamente na distinção entre o Maralto e o Continente.
As categorias de humor são complexas e ocorrem entre os jogos de sentidos utilizados
guiados pelas reações no diálogo. As pessoas da ilha instauram uma relação de superioridade
através da roupa, da saúde da pele, dos cabelos, da higiene e atitude. Um conjunto de
características do comportamento humano, em que a autoridade manifesta, sendo investida pelo
poder hegemônico de Maralto. Do outro lado estão a subalternidade e busca dos jovens pela
aceitação desse poder hegemônico. Os jogos de sentidos no discurso audiovisual em análise
dependeram dos estágios anteriores de produção e ligam-se aos planos elaborados para
entrelaçar a imagem audiovisual criada e a lida pelo público. A cena coloca o processo de junção
entre os candidatos e o sonho de viver em Maralto. Discursivamente, o Processo na série é o
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obstáculo ao percurso narrativo para definir quem estará em conjunção com esse sonho ou ficará
em disjunção.
Nos jogos de sentidos, a edição coloca em campo o que o aprendizado humano consegue
ler como conteúdo da cena. Nesse caso, enquanto processo criativo organiza os aspectos
culturais de duração, áudio e conteúdo do plano para controlar o humor da cena. A técnica de
selecionar o ângulo mais alto da câmera para aquele que é superior e, ao contrário, para o
submisso, vem da cultura cinematográfica representativa, que, em sua ontogenia, está o
imperador falando do alto para os plebeus, por exemplo.
Os planos demonstraram a intenção de testemunhar a incerteza e fazer ver e ouvir o que
o público vê e ouve. A fotografia foi construída com a utilização de: linhas de composição;
sobreposição de reflexos; câmera sobre os ombros; profundidade de campo; direcionamento de
ângulo de luz incidente sobre personagem; relação de equilíbrio e unidade; molduras; regras de
enquadramento; movimento do olhar; câmera na mão. Nas regras da cinematografia, Mascelli
(2010, p. 227) descreve a boa composição como “a disposição de elementos visuais para formar
um todo unificado e harmonioso”. Neste caso, a unidade e a harmonia relacionaram-se para
formar o ambiente da incerteza sob o julgamento de avaliadores. O ambiente da cena foi
construído fotograficamente de acordo com o arquétipo do suspense.
Foi vital para a composição a presença da câmera na mão, fazendo organizar para si
tudo o que se passou diante das lentes. Em quase todos os planos, com exceção do que inaugura
a cena com uma câmera fixa, a câmera na mão deu à cena a oscilação do olhar do espectador
com o quadro balançando levemente. Deve-se pontuar a utilização dessa técnica fotográfica em
diversos momentos de toda a série. Ela compõe a própria forma de ver o mundo da série como
uma assinatura de um sentido de urgência. Essa técnica faz a câmera participar do plano com
seu movimento e instabilidade, distingue-se do cinema hollywoodiano, ou de outros lugares
que primam pela estabilidade da imagem e uma certa invisibilidade da câmera.
Observando a operação da câmera a partir da janela e suas cadeias de significação, tem-
se a opacidade como recurso para identificar o que foi empregado e como se distribuíram as
escolhas da criação do discurso. Quando se mergulha metodologicamente na cena para
encontrar como os recursos foram dispostos, passa-se a olhar a organização. A organização não
é apenas o modo mais profundo da opacidade, ela é também o modo para todos os elementos
procedimentais e códigos culturais empregados na cena, assim, através da tela, percebe-se a
opacidade.
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Ao conseguirmos reconhecer a técnica que cria o plano na série, assim como perceber
o entrelaçamento da série com a manutenção cultural, identifica-se como criado para ser
editado, por exigir uma continuidade em outro plano ou na sequência do mesmo plano, como
aconteceu na entrevista do Processo. O plano ou o conjunto deles só forma uma unidade
harmônica pela essência contida dentro do plano e pela instabilidade dele. A escrita audiovisual
não é o plano em si, ela é feita com a duração do plano a serviço da continuidade ou
descontinuidade da narrativa. Essa funciona porque o conteúdo do plano e a relação com a
duração dele conduzem os elementos dos jogos de sentidos como sons, cores, objetos, reflexos,
palavras, entre outros. Querer dizer, através do audiovisual, faz-se sentir o humor da cena pelo
conjunto de seus planos em cumplicidade mútua com o cultural.
A base dramática da ação da cena em discussão é o diálogo. Rabiger (2007), ao analisar
o trabalho do diretor em relação a edição, diz “que a forma e o porquê de fazermos cortes entre
os falantes em uma cena de diálogo se baseia no que chama a nossa atenção na vida real” (2007,
p. 331). O que nos chama a atenção, é o comportamento humano e a forma de sua expressão.
Até mesmo os efeitos visuais cumpre esse papel chamativo, por aquilo que é correlato ao
aprendizado que se constrói.
A duração dos planos de 18 a 21, no quadro, mostraram um recorte do humor, ou seja,
da provocação do Entrevistador 4 para Michele. A situação de assédio sexual foi usada na
tentativa de desestabilizar o emocional da personagem para a entrevista, colocando o assediador
no topo da relação, local já ocupado pela autoridade personificada em si. Os cortes rápidos,
resultando em planos curtos, com segundos entre eles, enfatiza a apreensão de Michele ao
mesmo tempo a onipresença do Entrevistador 4, pois só ele fala durante a troca desses planos.
Outras nuances de comportamento humano podem ser descritas como jogos de sentido.
Nos cortes de 02 a 04, viu-se a Entrevistadora 1 demonstrando desprezo pela presença do outro.
De 05 a 10, a Entrevistadora 2 positiva a postura de Maralto quanto às políticas de inclusão e
afirmou nas entrelinhas que a responsabilidade é apenas do candidato, mas também demonstra
compaixão na continuação da cena. Nos de 11 ao 17, o Entrevistador 4 esforça-se para
desestabilizar Joana com assédio moral e tentativa de humilhação.
No uso da computação gráfica, a edição dentro do quadro, aparece como outra
informação importante na análise técnica para a composição do plano. Na entrevista, os
grafismos com o perfil e o aferidor da reação emocional do candidato a 3% são criados em uma
etapa após a gravação do plano, assim também acontece com os reflexos no vidro. O roteiro
determinou a imagem audiovisual com os grafismos e seus efeitos sonoros para a visão do
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entrevistador e o vidro transparente na perspectiva do candidato ou candidata. O que vemos é
a materialidade do roteiro e da edição entrelaçados no resultado fílmico.
Eisenstein (2002-b, p. 57) relata a criação de uma outra estrutura da imagem com a
sobreposição de dois planos, o resultado da sobreposição por fusão é uma nova imagem que ele
chama de “superestrutura”. No trecho analisado em 3%, as computações gráficas e seus sons
seriam a “superestrutura”. Contudo, avança-se na interpretação desse conceito para entender
que a “superestrutura” não está somente na imagem, ela extrapola a geometria da imagem para
alcançar o público. Os procedimentos criativos do audiovisual, postos em circularidade,
formam um sistema unitário com o público. Isso, justamente, porque os arranjos feitos para o
plano existir foram previstos no roteiro, como a base da cena e os cortes conformaram um outro
elemento além da imagem e do som, possibilitando a compreensão pelo público. A partir disso,
tem-se a superestrutura como resultado da circularidade do audiovisual.
O ritmo da alteração dos planos nos diálogos, buscou comprimir o tempo para dar o
sentido da pressão psicológica da entrevista, com o objetivo de construir o humor da cena e de
ser entendida pelo público. Não somente isso, mas que o trabalho de direção de arte também
fizesse sentido, mostrando a oposição do vestuário, dos cuidados com a pele e cabelos.
Enquadramentos, luz, reflexos em computação gráfica, grafismos, animações, as vozes, os
efeitos sonoros e a música são sínteses dos esforços coletivos e colaborativos que, associados,
configuram na organização do material elementar da edição. Tudo isso entrelaçado pelos cortes
para aproximar a ideia de cada plano audiovisual dentro da organização narrativa.
No texto fílmico da cena estão presentes os planos audiovisuais, as intenções do diretor,
as intencionalidades da patrocinadora e os cortes, estabelecendo acoplamentos para a existência
da relação entre a série e o público. A coesão entre a organização e a estrutura da edição
acontece neste ponto, quando todos os criadores e formantes da edição unem-se com as
intencionalidades e criam a materialidade da edição.
A edição transformou os planos em diálogos dinâmicos através dos cortes, aproximando
as categorias de humor como conteúdo significativo. Cada plano da cena poderia expressar-se
por si mesmo os diálogos, porém, para se atingir a intensidade esperada pelo público, os cortes
determinaram o ritmo da formação do humor da cena, dos significados e dos entrelaçamentos
com o cultural. No tempo entre um corte e outro, as intencionalidades de produzir o humor,
como resultado previsto pelo processo produtivo, também gerou um estado esperado pelo
público para mantê-lo conectado. As intencionalidades foram traduzidas na edição utilizando-
se o corte como a caneta. Essa caneta demonstra ao escrever que a Netflix controla sua audiência
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pelo gosto do público. O estilo de edição foi projetado com base no gosto do público e esse é
um dos motivos para chegar à quarta temporada em 2020.
No processo criativo da cena foram envolvidos elementos tecnológicos, econômicos,
profissionais, artísticos e culturais como fonte da autopoiese da cena. A autopoiese é o resultado
e o processo de criar o mundo capaz de expressar-se por si.
5.2. [Masmorra]
Na cena analisada, existem aproximações procedimentais de organização relacionadas
com a cena da conversa ente Aldemar e Carmen Eguiluz nas masmorras, em T1E1, minutagem
00:16:09 a 00:18:43, de Sempre Bruxa. As narrativas são distintas, mas esses dois exemplos
possuem particularidades no planejamento das cenas para a criação dos efeitos visuais e sonoros
durante o diálogo. A edição dentro do quadro ajudou a construir a personagem. Não tão
diferente quanto ao que Méliès fazia, mas sim um exemplo de persistência cultural da edição
dentro do quadro.
Na ilusão como continuidade fílmica, opera o imaginário. De acordo com Berliner e
Cohen (2011, p. 56), há uma conectividade física com a coerência espacial que possibilitam a
compreensão do que se apresenta na tela. Logo, o que foge a essa conectividade pode ser
utilizada para gerar estranhamento ou construir ilusão. Os efeitos visuais e sonoros na sequência
da masmorra criam interferência material dentro do quadro. Essa interferência não depende da
modalidade de edição, mas da narrativa e da criação do mundo proposto. Sendo que aquilo que
irá compor o plano é pensado e definido antes da filmagem, por isso mesmo a fotografia, a arte
e o som podem ser planejados para que a edição dentro do quadro possa ter êxito.
Na masmorra, Carmen é elevada por um guindaste para que seus pés deixem o chão
suavemente. Desenhos de estrelas foram feitos no seu antebraço, os mesmos que receberam
marcas luminosas e sonoras na cena. Tais procedimentos formam a organização para que a
interferência dentro do quadro pudesse acontecer na edição. As imagens e sons produzidos
encontram-se com os efeitos visuais formando a estrutura da cena.
Através do Quadro 17, feito com informações da série, decupou-se um diálogo entre
Camen e Aldemar nas masmorras dos bruxos.
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Quadro 17 - Análise técnica de direção por cenas em Sempre Bruxa Série: Sempre Bruxa Nacionalidade: Colômbia Temporada: 1ª Ano: 2019 SVOD: Netflix
Capítulo Sequência Int/Ext Planos analisados
Minutagem Set Up Época Locação Ambientes
1 – Um salto no tempo
Masmora com Aldemar e Carmen
Interna 21 16 min 10 seg 17 min 58 seg
Iluminação com fonte de luz interna e extena
Cartegena das Índias de 1646
Masmora Masmora
Duração Cena D / N 49 min 49 seg 17 Dia
Elenco Figuração Outros Principal Apoio Peq. papéis 1° plano Fundo Massa Móveis 2 x X x 4 x Cenografia Objetos de cena Figurinos Maquiagem Celas nas masmorras com janela entre elas. Correntes com braceletes presos na parede;
Gargantilha; Crucifixo; Grades Vestido branco de algodão; camisa e calça de algodão tingidas de escuro
Natural
Movimento de Câmera Luz Efeitos visuais Efeitos sonoros Clara para personagem; âmbar
para o cenário como luz de preenchimento
Poeira levitando; brilhos abaixo dos pés de Carmem; desenhos de luz no antebraço de Carmen; colorização.
Sons para os brilhos e marcas no antebraço. Grilos. Correntes.
RESUMO DE CENA Carmen chora na cela da masmorra quando ouve uma voz. Essa voz a conforta enquanto bruxa e ensina um feitiço que a faz levitar. Então, ela conhece Aldemar um bruxo poderoso e seu vizinho de cela. Ela faz um trato com ele na esperança de salvar a vida de Cristalbal. Nº contes Planos Minutagem Ação/Vídeo Áudio
01
P.Próximo
16:09 - 16:33
(FADE IN) Carmen sentada no chão da cela, chora abraçada aos joelhos até começar a ouvir uma voz. Ela olha para os lados procurando de onde vem a voz, até olhar para o alto. (Fusão)
Música instrumental Sons de grilos. Carmen chorando Ademar: Dizem que as bruxas não choram. Mas nem todas as bruxas são iguais. Umas são mais especiais do que as outras.
02 Primeiro P. 16:33 – 16:36
Ela olha para o alto e se levanta (Fusão) Aldemar: Eu me pergunto de que tipo você deve ser.
P. Conjunto com ângulo alto
16:36 – 16:42
Carmen olha para a grade entre as celas e vê um pássaro. (Fusão) Aldemar: Não! Os pássaros não falam.
03 Primeiro P. outro ângulo
16:42 – 16:53
Carmen coloca as mãos na parede enquanto ele fala, depois dá um passo para trás. (Fusão)
Aldemar: Estou aqui, do outro lado da sua cela. Repita comigo estas palavras:
Legenda: P. = Plano; CP = contra plano; CM = Câmera na mão Fonte: do autor.
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Quadro 13 - Análise técnica de direção por cenas em Sempre Bruxa (continuação) 04 P. Conjunto com
ângulo alto 16:53– 16:57 Carmen olha para a janela entre celas e ouve atenta o que o homem fala.
(Fusão) Aldemar: Mituto ona tuto laroyê.
05 Contra plano Primeiro Plano
16:57- 17:18 Carmen repete as palavras e olha para o chão. (Fusão) Aldemar: Sem medo. Repita comigo. Mituto! Carmen: Mituto! Aldemar: Ona tuto! Carmen: Ona tuto! Aldemar: Laroyê! Carmen: Laroyê.
06 P. Próximo 17:18– 17:20 Os pés de Carmen começam a flutuar com brilhos sob eles. (Fusão) Carmen: Ah!
07 P. Geral 17:20– 17:27 Aldemar está sentado e acorrentado à parede com braceletes e gargantilha. Ele se levanta e com os braços abertos continua a recitar o encanto. Enquanto Carmen repete o encanto e flutua em sua cela até a altura da janela entre celas. (Fusão)
Aldemar:, , Eshu agogo! Carmen: Eshu agogô! Aldemar: Eshu Alagguana!
08 Primeiro P. para cima
17:27– 17:31 Carmen aparece no alto pela janela entre celas. (Fusão) Carmen: Eshu Alagguana! Aldemar: Eshu Agotipongo! Carmen: Eshu Agotipongo!
09 Primeiro P. 17:31– 17:33 Aldemar com os braços abertos e olhando para cima, recita o encanto. (Fusão)
Aldemar: Eshu Ayomamaqueño!
10 Primeiro P. para cima
17:33– 17:36 Carmen, assustada, lá do alto olha para Aldemar pronunciando o encanto. (Fusão)
Carmen: Eshu Ayomamaqueño!
11 P. Médio para baixo.
17:36– 17:39 Através da grade entre celas Aldemar está sorridente e de braços abertos. (Fusão)
Aldemar: Hahaha
14 P. Geral 17:39– 17:40 Aldemar encantado olha para a janela e Carmen assustada olha para ele. (Fusão)
Som ambiente e música.
15 Primeiríssimo P. 17:40– 17:45 Aparecem três estrelas de seis pontas iluminadas no antebraço de Carmen. (Fusão)
Som ambiente e música.
16 Primeiro P. 17:45– 17:48 Carmen olha para Aldemar e faz uma pergunta(Fusão) Carmen: O que é isso? Aldemar: O sinal...
Legenda: P. = Plano; CP = contra plano; CM = Câmera na mão Fonte: do autor.
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Quadro 13 - Análise técnica de direção por cenas em Sempre Bruxa (continuação) 17 P. Médio para
baixo. 17:48– 17:50 Aldemar responde a pergunta. (Fusão) Aldemar: ... de que você é uma bruxa de
verdade. 18 Primeiro P. para
cima 17:50– 17:51 Camen olha para o seu antebraço. (Fusão)
Aldemar: Uma bruxa puro sangue.
19 Primeiríssimo P. 17:51– 17:52 Carmen olha para as estrelas no seu antebraço. (Fusão) 20 Primeiro P. para
cima 17:52– 17:53 Camen volta a olhar para Altemar. (Fusão)
21 P. Médio para baixo.
17:53– 17:58 Carmen questiona sobre quem ele é. Olhando para cima, Aldemar responde. Carmen: E quem é você? Aldemar: Aldemar. O importal
Legenda: P. = Plano; CP = contra plano; CM = Câmera na mão Fonte: do autor.
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Nos 21 planos observados na cena percebeu-se uma ligação entre o imaginário e as
máquinas, como visto no capítulo anterior, formam um elo tão inseparável que sem isso a edição
dentro do quadro e entre os planos não aconteceriam. As pessoas fazem isso funcionar, pois são
elas as detentoras do código cultural em negociação e assumem a edição enquanto imaginário
e objetivo. Elas trazem para dentro da criação do plano sua experiência vivida a serviço da
completude do projeto, para que a edição consiga contar bem a história.
A cena mostra 42 cortes e 21 fusões entre a minutagem 16: 10 e 17: 58, ao qual o plano,
como recipiente da atuação das personagens, é editado com diferentes pontos de vista da mesma
ação e local. Editando-se planos um pouco mais longos, marca-se a diferença entre a duração
cultural do plano na comparação com as outras duas séries. A fusão, assim como em Edha, é
um componente narrativo da lembrança, na qual Carmen mostra ao público o que foi fazer no
futuro.
O setup da fotografia é dividido em enquadramentos diferentes e direção da luz, que
mantém a ligação estrutural da continuidade na cena. A luz clara que entra pela janela da cela
marca o fio de esperança da vida lá fora e marca também o campo de atuação das personagens
na cena. A luz âmbar foi usada como preenchimento do cenário e para intensificar a coloração
das paredes e das sombras. A alternação entre os enquadramentos daquilo que aparece na tela,
como proporção geográfica da cena, fez ligar sob o diálogo de Aldemar e Carmen a duração
cultural do plano. O tempo utilizado para os cortes em benefício da fala de cada personagem é
semelhante no decorrer de toda a série. Planos médios, primeiros planos e planos gerais são
recursivos e marcam como a construção cultural do plano na compatibilização com o código
cultural de domínio se expressa.
Na iluminação notou-se que a direção da luz natural acentual os traços do ambiente. A
direção da luz vindo de um lado, da janela da masmorra como fonte principal, é outro elemento
de continuidade. A cor levemente dourada da cena valoriza a cor da pele de Carmen e acentua
o contraste com a pele de Aldemar. Fato que simboliza o que está na construção do arquétipo
do bem e do mal, colocando, neste caso, Carmen vestida de branco e o bruxo, como o mal, com
roupas encardidas.
Os planos com ângulos para baixo e para cima mantiveram a direção do olhar entre as
personagens. Esses planos foram usados como procedimento da continuidade, procedimento de
edição para se produzir uma cobertura adequada da cena. Como lembra Mascelli (2010, p.169),
o esforço do editor está em selecionar, organizar e determinar a duração dos planos. Contudo,
o que diz Mascelli somente se cumpre quando a elaboração dos planos busca propiciar pontos
100
de vista em qualidade vinculada ao objetivo dramático da cena, sendo a finalidade dar opções
para a edição escolher.
No desenho sonoro, utilizou-se: o som da mágica enquanto ela levita; no sinal das
estrelas brilhando no antebraço de Carmen; o som do pássaro na janela entre selas; som
persistente como insetos da noite; música minimalista; som de tambores. O efeito visual
descreve o flutuar por magia e como inscrição no corpo de Carmen, neste caso pertencendo
como característica da personagem.
Na cena a utilização da edição dento do quadro com imagem gerada por computador
ocorre junto com a utilização de correção de cor e efeitos sonoros. O tom dourado da cena é um
resultado de tratamento de cor da cena, colorização por computador. Diferente do início do
século passado, a edição dentro do quadro não se limita a colocar ou retirar elementos físicos.
O que se vê e ouve é organizado para estar entrelaçado com a ideia que cada plano carrega ou
que o conjunto deles na cena carrega. O mesmo acontece com os brilhos quando Carmen levita,
indicando que a magia acontece. O artifício é o centro da construção da cena, pois neste estudo
compreendeu-se que o ato de escrever audiovisual se faz através de procedimentos, de artifícios.
Entre a minutagem 17:18 a 17:20, no plano 6 da cena, a edição dentro do quadro buscou
surpreender e maravilhar o público. Esse é o momento em que os pés de Carmen começam a
flutuar com poeira brilhante. Observa-se o movimento dos pés saindo do chão, seguidos pelos
brilhos enfatiza a voz do realismo mágico da série. Outra intervenção aconteceu no plano 15,
entre 17:40 e 17:45, quando três estrelas de seis pontas brilham no antebraço de Carmen.
A edição conectou o que há de mais importante para a escritura audiovisual as ideias e
as pessoas do público através da organização do código cultural em uma estrutura legível.
Estrutura que mostra através da transparência o que acontece na cena e o arcabouço de
significados de uma cultura compartilhados com outras culturas enquanto “superestrutura”.
5.3. [Mãe]
Em Edha, os diálogos, por exemplo, não utilizam efeitos visuais mágicos, mas a edição
dentro do quadro acontece na correção de cores e transições entre planos. Essas ações também
se aproximam do trecho analisado em sua organização e na utilização dos diversos
procedimentos da criação da imagem como fotografia, produção de arte, maquiagem, entre
outros, do som e a construção dos jogos de sentidos guiados por cortes secos.
101
Nas três cenas analisadas que se enquadram nesse exemplo há uma alteração nesse
paradigma, pois aparecem transições suaves com efeitos visuais entre os planos. A lembrança
demonstra o enlace afetivo da personagem com o passado, esse argumento foi utilizado para
suavizar a ligação entre os planos, ainda que esse procedimento faça parte do vocabulário
audiovisual geral. O tipo de fusão aditiva acontece quando junto com a transição de
dissolvência, em que a imagem anterior se funde à nova imagem, acontece um efeito junto com
a mistura entre as imagens. O flash da câmera fotográfica foi adicionado para que a fusão
produzisse destaque na apresentação da memória da menina.
A lembrança de Edha sobre um dos ensaios fotográficos de sua mãe é uma sequência
composta por três cenas. tendo no efeito visual construído com um tipo de fusão de imagens
com o flash, como fusão aditiva, como transição entre os quadros.
O setup da sequência trabalha baixo contrasta para justapor o sentido de lembrança e o
olhar infantil de Edha. Toma como fonte de luz principal as grandes janelas dos ambientes
atenuada pelas cortinas com voil. O flash é incidente para contrastar com a leveza da
iluminação, mesmo assim entra e sai em câmera lenta super-expondo o centro da tela. Ele é
usado com efeito visual e sonoro de edição dentro do quadro.
O diálogo inicia quando a menina assustada grita pela mãe ao vê-la com o plástico
cobrindo o rosto, parecia estar asfixiando-se. A construção audiovisual da edição compõe a
ligação entre o processual e o cultural, com o ângulo baixo da câmera para o plano, garantindo
o ponto de vista da criança.
O objetivo dramático da sequência foi dar profundidade para a personagem Edha. A
construção dos planos, os ângulos, a coloração, o flash, as fusões, a iluminação e cenários
mostraram uma memória infantil e esfumaçada. De ordem da temporalidade, essa viagem ao
íntimo da personagem tentou explicar parte do posicionamento dela perante a vida. Há um
deslocamento para um tempo em que a mãe impingia sua imagem na filha. Observando esse
deslocamento no tempo e comparando com o presente da narrativa, não há continuidade entre
os planos ou a cena. A continuidade está dentro da personagem.
Deve-se acentuar o reconhecimento para o uso do som na série através do desenho
sonoro. Um exemplo dessa proximidade, está em T1E1, minutagem 00:21:00 a 00:21:59, como
se vê no Quadro 18:
102
Quadro 18 - Análise técnica de direção por cenas em Edha Série: Edha Nacionalidade: Argentina Temporada: 1ª Ano: 2018 SVOD: Netflix
Capítulo Sequência Int/Ext Planos analisados
Minutagem Set Up Época Locação
Ambientes
1 – A marca da vingança
Ensáio fotográfico mãe de Edha criança
Interna 24 21 min a 21 min 50 seg
Flat Presente Estúdio Quarto; Sala da casa; ateliê mãe de Edha Duração Cena D / N
40 min 1,2,3 Dia Elenco Figuração Outros Principal Apoio Peq. papéis 1° plano Fundo Massa Móveis 2 1 X x x X Cama, guarda-roupas, cadeiras, espelho, mesa de
centro, sofás, cristaleira, banco alto. Cenografia Objetos de cena Figurinos Maquiagem Sala de cor clara; móveis escuros e claros; sofá e poltrona; mesa de centro. Montar o quarto, a sala e o ateliê usado para o ensaio fotográfico.
Mochila, livros, origami rosa de pássaro, obras de arte de metal com rostos (abstrato), pendentes de cristal, máquina fotográfica, rebatedores de luz, cortinas, anéis, brincos, refletor de luz.
Uniforme escolar com colete escuro, camisa branca e saia; prendedor de cabelo; Sobretudo caqui; renda branca; plástico filme, lenço colorido, blusa branca, vestido branco com rendas.
Flat/natural em Edha; Gótica em Inés.
Movimento de Câmera Luz Efeitos visuais Efeitos sonoros Cena 1: NÃO; Cena 2: NÃO; Cena 3: PAN; Câmera na mão.
Iluminação flat cruzada Tratamento de cores; Flash; Animações sobre vidro Diegético p/ passos, porta, roupa, livros sobre a mesa, plástico, flash;
RESUMO DE SEQUÊNCIA/CENA Edha se apronta para a escola no quarto. Quanto ela entra na sala da casa percebe o disparo do flash vindo do ateliê de sua mãe. Ela caminha para lá. Ao entrar vê sua mãe, Inés, numa performance posando para Odette. Inés puxa de um rolo o plástico filme sobre seu rosto. Edha se assusta, pois Inés parecia asfixiar-se. Edha grita pela mãe. Odette corre para rasgar o plástico. Inés conversa tranquilizando sua filha. Cena Nº contes Planos Minutagem Ação/Vídeo Áudio
01 01 Primeiro P. 21:00 - 21:04 Contra plano de Edha vestindo o sobretudo em frente ao espelho. [Fusão]
Música instrumental piano e strings em toda a cena. Som ambiente: vozes; passos; cadeiras arrastadas.
01 02 P. Médio 21:04 - 21:07 Edha se olha no espelho[Fusão] Musica. 02 01 P. Americano 21:07 - 21:11 Edha entra na sala e fecha a porta. Ela está com o
sobretudo, mochila e livros nas mãos. [Fusão] Som da porta, maçaneta e passos.
02 02 P. Americano 21:11 - 21:14 (outro ângulo) Edha caminha até o centro da sala quando vê um flash, para e olha na direção de onde veio o flash. [Fusão]
Som de passos, vozes e flash.
Legenda: P. = Plano; CP = contra plano; CM = Câmera na mão Fonte: do autor.
102
103
Quadro 18 - Análise técnica de direção por cenas em Edha (continuação) 02 03 P. Detalhe 21:14 - 21:18 Edha coloca os livros sobre uma mesa de centro e caminha.
Sobre os livros há um origami rosa de pássaro. [Fusão] Som de passos, vozes e flash.
03 01 1º P. 21:18 - 21:23 Ela entra em quadro entre nuances de claro do flash e escuro das sombras até a luz mostrar seu rosto. Perto da porta observa a sua mãe. [Fusão]
Música segue até o final da cena. Som da respiração de Inés e dos Flashes.
03 02 P. Próximo 21:23 - 21:26 Inés está posando vestida de noiva com rendas no rosto e maquiagem gótica com flashes sobre o rosto dela. [Fusão]
03 03 1º P. 21:26 - 21:28 Edha entra no ateliê com flashes sobre o rosto dela. [Fusão] 03 04 P. Próximo 21:28 - 21:29 (outro ângulo) Boca de Inés sob o véu. 03 05 P. Médio 21:29 - 21:30 (outro ângulo) Inés com flashes sobre o rosto dela faz
performance. [Fusão] 03 06 CP 1º P. 21:30 - 21:32 (outro ângulo) Inés de costas olha para a fotógrafa a sua
frente com Flash sobre o rosto dela faz performance. [Fusão]
07 CP P. Médio 21:32 - 21:33 Inés se movimenta para a fotografa [Fusão] 03 08 CP 1º P. 21:33 - 21:35 (outro ângulo) Edha observa a mãe com flashes sobre o
rosto. [Fusão] 03 09 P. Médio 21:35 - 21:36 Inés puxa o plástico filme do rolo ao seu lado. Som do plástico segue até o final da cena. 03 10 P. Médio 21:36 - 21:38 (outro ângulo) Inés estica o plástico até ultrapassar a altura
da sua cabeça. [Fusão] Som da respiração de Inés, dos Flashes e do plástico.
11 P. Próximo 21:38 - 21:40 (outro ângulo) Inés de perfil com o plástico acima da cabeça. [Fusão]
03 12 CP 1º P. 21:40 - 21:42 Edha observa através do plástico que Inés estica. [Fusão] 03 13 1º P. 21:42 - 21:44 Inés cobre a cabeça com o plástico [Fusão] 03 14 CP P. Médio 21:44 - 21:46 Odette levanto um plástico de costas para Inés que está ao
fundo, sob muita luz, com o plástico apertado no rosto. [Fusão]
03 19 P. Próximo 21:46 - 21:47 Edha se assusta e grita pela mãe. Edha: Mamá! 03 20 1º P. / PAN 21:47 - 21:48 Odette corre na direção de Inés. [Fusão] Som de passos.
Odette: Que haces? 03 21 P. Detalhe 21:48 - 21:50 Odette rasga o plástico sobre a boca de Inés. [Fusão] Som do plástico rasgando. 03 22 P. Médio / CM 21:50 - 21:55 Inés sentada tira o plástico da cabeça e fala para acalmar a
filha. [Fusão] Inés: No passa nada. No passa nada, mi hija.
03 23 1º P. / CM 21:55 - 21:59 Edha fica parada olhando para a mãe. [Fusão] Musica e sons diminuem/FADE. Legenda: P. = Plano; CP = contra plano; CM = Câmera na mão Fonte: do autor..
103
104
A primeira cena descrita na ferramenta apresenta dois planos e quatro cortes
contemplados em sete segundos na minutagem de 21:00 a 21:07. Na continuidade da segunda
cena, são três planos com seis cortes compreendidos em onze segundos, entre 21:07 e 21:18.
As transições entre os planos da série Edha estão os cortes secos, ou seja, um plano colado no
outro. Na terceira cena da sequência, ocorrem 23 planos, 46 cortes na composição de 41
segundos, entre a minutagem de 21:18 a 21:59. Assim, a sequência inteira tem 59 segundos.
Trabalhou-se a aparência de uma profusão de cortes e planos de forma semelhante ao abordado
na análise do 1º minuto da série.
Na cena do quarto Edha demonstra cuidado com todos os elementos de sua imagem,
como os cabelos, rosto e vestimenta. Apropriado para uma adolescente que se prepara para ir
encontrar os colegas na escola. Dados contidos nos cortes 01 e 02. A técnica de câmera sobre
os ombros, normalmente usada em diálogos, mostrou Edha dialogando visualmente consigo
pelo espelho. Basicamente, como diz Mascelli (2010, p.128), essa técnica associa os olhares
para a criação de uma unidade visual facilmente compreensível. Isso significa encaminhar para
a ilha de edição um material que contenha o essencial para ser entendido pelo público,
compartilhar códigos culturais.
A cena seguinte em que ela entra na sala, mostra uma casa com situação social
confortável pela presença de móveis bem finalizados, longas cortinas e obras de arte em metal
espalhados pelo local. Vincula o ambiente à personalidade excêntrica e artística de Inés, sua
mãe. O efeito visual do flash e o sonoro do clique chamam a atenção de Edha para que ela deixe
seu material sobre a mesa de centro e siga para o ateliê da mãe. Esses são efeitos audiovisuais
diegéticos, seguindo a descrição de Turner (1997). O plano de áudio e vídeo com edições
internas, porém imperceptíveis. Justamente, para não chamar a atenção para o dispositivo
audiovisual e sim para a cadeia de ideias transferidas na tela.
A parte final da sequência mostra na terceira cena Inés posando para sua sócia e parceira
artística Odette Amaral. Edha entra no ateliê com olhos encantados com a performance da mãe.
Contudo, com o desenrolar do ensaio, Inés puxa um plástico filme e cobre o rosto com ele,
quase se asfixiando. A menina se assusta e grita por sua mãe. Imediatamente, Odette rasga o
plástico sobre a boca da modelo. Inés tranquiliza a sua filha. Uma memória perturbadora.
O som marca a ação do brilho do flash, dos passos, do plástico no rosto de Inés, da mãe
de Edha. Percebe-se o som como componente do plano. O som diegético, ou seja, que reforça
a noção de veracidade da cena, foi utilizado par intensificar a ação através dos passos, do som
da porta, do som do flash. Estes pertencem à memória afetiva de Edha, de como ela conheceu
105
aquela cena. Segundo Turner (1997, p.63), “a ilusão de realismo depende do uso diegético do
som”. Os passos marcam o uso de sapatos com saltos de madeira e que o piso também era desse
material, ou seja, um momento social para que quem tem a mesma idade dela conecte-se com
suas próprias memórias, somatizada pelas casas com assoalho de taco entre as décadas de 1970
e 1980.
Nessa cena utilizou-se o estereótipo da performer na mão de Edha, que atua sem
dificuldades para exigir mais do próprio corpo. Esse exagero impressiona e causa uma mancha
sentimental em Edha explorada na série. Assim como usado para construir a profundidade do
sentimento em Ezequiel e em Carmen, a memória também aprofunda a percepção do público
sobre a personagem. A diegese, descrita por Rodrigues (2007, p.25), é como “ação temporal do
filme, ou seja, existe sempre que houver mudança de tempo, longa ou curta, na estrutura do
filme”, sendo utilizada para aproximar o público do universo emocional das personagens como
aspectos culturais compartilhados.
Ao observar as três cenas curtas é encontrado uma recorrência na série: a movimentação
do objetivo dramático, ou seja, a construção da ideia de que os atos são decorrentes das
vontades. Para tal, utilizou-se de planos curtos intercalados a ambientes diferentes na
construção estética dessa série argentina. A edição escreveu duração cultural do plano através
de uma movimentação entre cenários, diálogos e ações para discorrer entre atitudes e
consequências.
A unidade dessa sequência não está em si mesma, ela está entrelaçada com uma
lembrança desencadeada na cena anterior no ateliê de Odette. A sequência tenta explicar algo
sobre a heroína a partir do que ela viu dentro de uma das obras de sua falecida mãe. Contudo,
enquanto microcosmo narrativo consegue contar o que aconteceu com aquela adolescente.
Além do que Kuleshov (1974) discutiu, a análise das séries mostra que não se trata apenas da
sequência dos planos, trata-se, em primeira ordem, do que a transferência cultural de um plano
e a associação de planos são capazes de entregar ao público. Desta visada, trata-se também de
manter o público conectado para continuar a transferência.
5.4. [Proximidades]
As três séries aproximam-se pela resistência ao rolo compressor através da duração
cultural dos planos. Em 3%, a duração do plano no diálogo é mais curta em relação à Edha e
Sempre Bruxa. Entre as séries em espanhol esperar-se-ia uma proximidade na duração do plano,
106
porém não é o que acontece. Sempre Bruxa mostra um ritmo mais contemplativo que Edha,
fato que as diferenciam, tendo em Edha os cortes mais rápidos que a colombiana. No entanto,
distinguir o processo produtivo do audiovisual como a edição configurou-se enquanto estrutura
e organização, possibilitando ver, não qual é a mais rápida, mas a atenção que volta-se no
desarquivamento dos códigos culturais de cada nacionalidade e seu relacionamento com a
construção audiovisual. Cada cultura interfere na edição com suas próprias características e a
edição interfere no processo produtivo para que os pressupostos culturais se cumpram.
O mais importante na observação desses exemplos está na construção processual e do
imaginário impulsionados pelo roteiro a ser cumprido na edição. As proximidades estão na ação
circular entre os departamentos das produções para que, cada uma a seu modo, construísse um
mundo a partir da duração cultural do plano e da intervenção cultural dentro do plano,
canalizando em esforços o código cultural de domínio.
Descrever o universo da pesquisa, sobre a edição audiovisual das séries verificadas,
possibilitou encontrar, na forma de criticar, os temas abordados que utilizaram procedimentos
criativos peculiares. A crítica social e política da série 3% ultrapassou as questões de raça,
minimizando esse conflito motivada pela fenda abissal entre as duas formas de vida
apresentadas. Em Edha, a representação étnico-social foi fiel e sincrônica às situações do meio
da moda, relatando relacionamentos superficiais, o trabalho clandestino e a corrupção
empresarial. Na série Sempre Bruxa, o jogo entre conquistadores e conquistados é debatido sob
tom igualitário das etnias formadoras, assunto que marca uma conquista recente para o país.
Nesses três contextos, a edição dedicou-se a expressar o tempo cultural de cada país como fio
condutor da narrativa, mesmo sob a pressão da estética Netflix.
O modo de operar do SVOD, as regras do Estado, o imaginário, o maquinário, a estética,
o procedimental, o comportamento humano e o cultural formam os identificados como os
acoplamentos estruturais que permeiam as correlações entre o cultural e o processual da edição.
De outra forma, a edição não poderia atender às intencionalidades globalitaristas e ainda
produzir resistência ao organizar e estruturar o tempo cultural dos planos, sejam eles
audiovisuais ou ideológicos nas narrativas das séries.
Outra questão interessante sobre os episódios em 3%, está na discriminação dos
episódios como capítulos de uma obra literária. Em um dos capítulos, uma personagem recebeu
um tratamento diferente. Foi em T1E5, no qual foi criada uma profundidade para Ezequiel, com
o objetivo de explicar o porquê ele saía durante o Processo. Ele visitava um menino no
continente. A esposa de Ezequiel, Julia, deixou um filho quando passou no Processo. Ela não
107
conseguiu superar a nova vida sem o filho e foi às vias de fato afogando-se no mar. Então,
Ezequiel mantém proximidade com o menino após a morte da esposa como forma de
homenagear o amor por ela. Em T1E5, minutagem de 31 min. 32 seg. - 32 min. 29 seg., Ezequiel
corre para fora do prédio do Processo para recuperar Júlia que corria para fugir da vida perfeita.
A cena mostra o ponto alto da insatisfação de sua esposa com a vida em Maralto e que o esforço
não valia a pena pela ausência do filho.
Como feito com Ezequiel, aconteceu com Edha e Carmen na construção da
profundidade da personagem, como visto nos Quadros 17 e 18. As relações do cultural com
corte na criação, na organização e dentro do plano audiovisual são resultantes de múltiplas
presenças de intencionalidades com o objetivo de vincular a narrativa e o público enquanto um
sistema unitário. Esse vínculo acontece no local da comunicação ou da compatibilização entre
o cultural expresso na série, bem como no domínio dos códigos culturais de quem a assiste.
O observado, a edição, demonstrou-se instável como são as relações por uma interface,
quanto ao modo de operar, no sentido de obedecer e resistir. A subalternidade ao poder dos
conquistadores não impede a expressão cultural através do audiovisual. Deve-se reconhecer que
ela existe e como opera, pois, seu objetivo é o resultado financeiro através da permanência do
público. Uma série para de receber investimentos ao não conseguir manter a conexão com o
público ou interesses comerciais do SVOD, assim, deixando de existir. O enredo também é
determinante, ele é o contexto mais íntimo da edição, assim como a concepção de toda a
narrativa. O público desenvolve relações de afinidade com o que consome a partir daquilo que
ele vê e ouve, por essa razão, a edição é usada como condutora da atenção, fazendo ver e ouvir
o que se vê e ouve. Trata-se daquele aspecto psicológico apontado por Pudovkin (1990), ao se
observar o processo dos acoplamentos estruturais do próprio audiovisual com o contexto.
Assim, o profissional da edição precisa ser capaz de relacionar seu conhecimento técnico com
todos os acoplamentos existentes, isso é um dos motivos que faz o assunto tão especial.
Em um contexto marcado por todos esses acoplamentos estruturais, a edição audiovisual
foi identificada como estando alinhada aos modelos de produção e atua também como
resistência ao fazer o controle da duração cultural do plano nas narrativas das três séries. A
proximidade da diferença entre as expressões estéticas, voltando ao conceito de Mignolo para
reinterpretá-lo, neste caso, nas três séries não se tenta representar o cultural, mas que a edição
se constitui na apropriação dos códigos do audiovisual dirigida em como os códigos culturais
locais se personificam na duração cultural do plano.
108
Como decorrência dos diversos acoplamentos estruturais apresentados e discutidos, a
edição não lida apenas com plano ou a diegese da série. Ela lida com o plano como construção
cultural resultante de intencionalidades diversas, internas e externas ao audiovisual, a correr em
fluxos entrelaçados. O Quadro 17 mostra uma conexão perpétua entre todos os entes da
circularidade dos acoplamentos. Esses entes influenciam uns aos outros produzido as irritações
do sistema, ou seja, exigindo que os realizadores e editores do audiovisual deem respostas para
as intencionalidades desses entes como parte da organização dos acoplamentos formando a
estruturalidade da edição. Resposta que a edição propõe resistindo e construindo a narrativa
através da duração cultural do plano. Como percurso circular do início ao final do projeto de
realização audiovisual, a edição busca dar conta das compatibilizações comunicacionais e
culturais, mesmo atendendo àquelas intencionalidades.
A plasticidade estrutural da edição constitui-se de todas as características discutidas,
sendo um processo de colocar em circularidade os agentes externos e internos à edição. Como
vemos no Quadro 17:
Quadro 19 – Plasticidade estrutural da edição audiovisual como fenômeno cultural
Fonte: do autor.
109
Enquanto ato decolonial, exibem-se os problemas oriundos dos acoplamentos
estruturais, da estrutura e da organização da edição enquanto um fenômeno cultural. Neste
momento, não se trata de uma ruptura do fazer, mas da identificação da edição no centro do
contexto de sua existência enquanto fenômeno cultural, cuja subalternidade que o poder
moderno/colonial promove é um implicante visceral. Ela determina o modo de operação da
edição. Por outro lado, ela mesma possui as fissuras nas quais a resistência pode acontecer, uma
ruptura, quem sabe.
A edição nas três séries executou esses percursos de acoplamentos inúmeras vezes para
atender ao conceito de modelização estética da Netflix, ao mesmo tempo em que protegeu os
códigos culturais de suas respectivas culturas. A presença da mulher, tanto na direção, quanto
na edição, mostra o acoplamento com outras questões como a ocupação do espaço dos fazeres
no audiovisual.
A edição ocupa o centro de um percurso multidirecional, multi-ideológico e
multicultural, ao influenciar os entes do contexto com os quais produz acoplamentos e sendo
influenciada por eles. Pelo seu aspecto autopoiético, evolui na medida do desenvolvimento
humano e cultural, como organizadora do audiovisual, como também serve como modelo,
operando como objetivo no imaginário da realização audiovisual.
Isso posto, percebe-se o acontecimento de acoplamentos pelo uso e em uma relação de
mutualidade com o cultural. A edição constitui-se como fenômeno cultural por: apresentar-se
como um objetivo a ser alcançado pela realização audiovisual; apresentar como resultado do
percurso de elaboração do produto capaz de viabilizar os acoplamentos com as demandas;
pertencer a uma das formas de comportamento humano para a comunicação e consumo. A
edição se relaciona com o cultural a partir da sua plasticidade estrutural que compreende todos
os acoplamentos discutidos.
A estética da Netflix apareceu com firmeza enquanto estrutura nas modalidades de
edição das três séries desde os primeiros minutos, encadeando as proximidades entre as críticas
dentro do assunto audiovisual como o principal ponto de união entre 3%, Edha e Sempre Bruxa.
Aquilo que apareceu como diferença entre as três séries, relacionado a duração cultural dos
planos e da forma de narrar, foi reconhecido neste estudo como proximidades. A séries são
aproximadas na edição, quando se manteve o respeito ao arcabouço cultural da construção
narrativa audiovisual expresso na duração cultural dos planos em cada nacionalidade, como nos
exemplos dos diálogos. Junto com outros procedimentos técnicos e o domínio dos respectivos
110
códigos culturais, cada uma delas atuou como resistência à estandardização imposta pelo
SVOD.
Nessa sequência de exercício da tirania do capital, a edição aparece subalternizada ao
projeto estético do SVOD – não que outros tipos de televisão façam diferente – ao mesmo
tempo em que participa da criação do modo de resistência no trato dos códigos culturais. Como
organização, ela opera interferindo no imaginário da série como objetivo e resultado e de modo
materialmente colaborativo para a produção audiovisual. Assim como recebe as interferências
do contexto e dos fazeres próprios do audiovisual.
Ela, a edição, está vinculada a pelo menos dois fenômenos culturais, ao de como fazer,
ver e ouvir o que se vê e ouve; e ao de manter a conexão na generalização e particularização do
uso das redes telemáticas. Como procedimento tático, a edição está na base de como fazer ver
e ouvir o que se vê e ouve. E, com ela, criando-se a seleção audiovisual, os tratamentos técnicos,
a duração do plano, no tipo de edição e maquinário a serviço do objetivo de entregar o produto
ao público.
O corte, como a menor unidade da edição, configura-se na narrativa audiovisual como
um signo múltiplo e ideológico, criando a cada segundo o fazer crer enquanto a obra mantém a
conexão com o público. Fazer crer significa o ato de compartilhar e compatibilizar códigos
culturais, transportar quem assiste para o universo da narrativa e, lá dentro, gerir os aspectos
culturais para manutenção da conexão.
Sendo o corte gestor da duração cultural do plano e este a expressão do código cultural
de domínio do grupo que escreve o audiovisual, como fenômeno, a plasticidade estrutural da
edição audiovisual é uma interface cultural. Sua estruturação agrega, temporiza e especializa
procedimentos técnicos, ideologias, intencionalidades, gostos, direitos, deveres e resistência
cultural frente ao que a cultura dominante exige. Em seu cerne há ubiquidade como capacidade
de estar em e entre todas as partes do audiovisual, seja em imaginário, procedimento ou
máquina. Ela está também na relação entre suas características internas, externas e com os entes
formadores do contexto em sua plasticidade estrutural. A edição mantém em fluxo esses
contatos entre os entes e seus relacionamentos enquanto uma unicidade múltipla e entrelaçada
de resistência cultural e de competência comercial.
111
6. [APONTAMENTOS FINAIS]
Com esta pesquisa, identifica-se a complexidade da ontogenia na plasticidade estrutural
da edição por estar presente no imaginário como objetivo da realização audiovisual; também
como o resultado dos esforços de uma equipe. Significa estar em circularidade no fazer
audiovisual desde o início do projeto até ao processo de compatibilidade com o arcabouço
cultural do público. Sua plasticidade estrutural é composta pelo atravessamento e acoplamento
de diversas ordens, discutidos na tese como: cultural, profissional, modo de produção
capitalista, consumo, resistência cultural e presença do Estado. A edição edita a montagem
porque o processo de criação audiovisual tem a edição como objetivo e resultado, cujo ato
cultural na duração do plano toma conta do processo criativo da edição que inicia no roteiro e
atravessa da realização para o público. A edição é o meio do processo entre o audiovisual, os
acoplamentos estruturais e o público.
Ao alterarmos a perspectiva do olhar sobre a edição audiovisual, abrimos espaço na
cultura para uma discussão sobre o entendimento da presença cotidiana da edição que ainda é
vista apenas como uma técnica. Esse esforço acadêmico desafia, então, as concepções
estruturais da indústria audiovisual, lançando um olhar crítico e uma análise centrada sob as
dimensões da vida capitalista e como elas interagem para fazer da edição uma interface cultural.
As intencionalidades do capital defendidas pela Netflix atuam na transformação da
cultura de sociedades consumidoras através de enormes armazéns de obras multiculturais,
enquanto serviço de vídeo sob demanda. Um tipo de operar que tende a aprofundar relações de
subalternidade, pois o SVOD abre em países economicamente capazes de consumo dessas
obras. Nesses países, procede a contratação de obras audiovisuais nacionais. A promoção da
autorreferencialidade desses países joga com o fato de reconhecerem-se como acolhidos e vistos
em plataforma de distribuição mundial. Encena um jogo de aprofundamento dessas relações de
capital, enredando a produção audiovisual e consumidores em uma rede de interdependência
de consumo pela cultura dominante, ao mesmo tempo que se finca a bandeira Netflix no
território conquistado.
O profissional do campo da edição não é apenas mais um a cumprir sua missão e ser
pago por isso. O (ou a) profissional de edição é coautor e não percebe que renuncia aos royalties
sobre a obra pelo contrato da prestação do serviço, subjugado pela opressão dos modos de
produção capitalista. Contudo, manter a percepção e manter os modos de fazer e usar a edição,
112
alinhado aos processos hegemônicos, significa concordar com a manutenção do funcionalismo
dos fazeres audiovisuais dirigidos pela voracidade das intencionalidades do capital, sabendo-se
que a edição aceita a modelização do SVOD, ao mesmo tempo em que executa resistência dos
códigos culturais para completar a narrativa.
Na circularidade da realização audiovisual, a edição é potência criativa, artística,
processual e de gestão dos códigos culturais. Por todos os argumentos apresentados e
defendendo a edição como ato decolonial, firma-se uma postura de ruptura com os
procedimentos da modernidade/colonialidade ao compreender a existência da propriedade
intelectual, artística e de direitos autorais da obra audiovisual enquanto autoria também do
editor. Engendrado na perversidade do sistema-mundo, está essa forma brutal de exploração
pelo artifício da mão-de-obra qualificada, meio para esconder o editor e editora de sua coautoria
artístico-cultural-ideológico, detentores da propriedade de seus fazeres e competências.
A partir da educação eurocentrada, o pintor é quem assina a obra, portanto, ele é o
proprietário intelectual e artístico. No audiovisual e no cinema, o fazer é coletivo e leva
assinatura de todos os participantes. Uma situação óbvia é ser pago por um serviço, a outra é
ter consciência da propriedade intelectual e artística sobre o resultado do serviço e receber os
devidos royalties. Afinal, desenvolver e empreender competências, habilidades e atitudes para
gerir os códigos culturais, faz do audiovisual o que ele é e do editor coautor do produto
audiovisual.
Ao caminhar pela circularidade do fenômeno discutido, entendo tratar-se de uma forma
de distinção e de uma sugestão sobre o local da edição audiovisual no contemporâneo, não
como uma verdade absoluta. Considerar os movimentos circulares da vida, em seu aspecto geral
e comum aos seres e tudo o mais, possibilita-nos ter a coragem de entender que amanhã a
distinção apresentada sobre a edição audiovisual poderá não ser a mesma, fato que pode
acontecer já na próxima volta do círculo. As percepções poderão ser outras, porque a cultura é
viva e convive com as propostas de instabilidade de conceitos. Justamente, porque é assim o
círculo da vida, independe de quantas estruturas ou amarras tenta-se colocar para direcionar o
caminhar ou o olhar. Viver é muito mais que o caminho. Viver é o aprendizado no caminho em
uma relação autopoiética. Essa é uma noção que deve ficar para que eu possa voltar ao tema
em outro momento e descobrir suas variações. Quem sabe, para possibilitar que outros façam o
mesmo e produzam outras formas de estar no mundo.
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