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Um Homem Só. Histórias de Aventuras e estranhezas. Contos

Date post: 25-Feb-2023
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Transcript

COLEÇÃO

V I A G E N S N A F I C Ç Ã O

Chiado Editorawww.chiadoeditora.com

Um livro vai para além de um objeto. É um encontro entre duas pessoas

através da palavra escrita. É esse encontro entre autores e leitores que a

Chiado Editora procura todos os dias, trabalhando cada livro com a dedicação

de uma obra única e derradeira, seguindo a máxima pessoana “põe tudo

quanto és no mínimo que fazes”. Queremos que este livro seja um desafio para si. O nosso desafio é merecer que este livro faça parte da sua vida.

www.chiadoeditora.com

Brasil | Portugal | Angola | Cabo Verde

Avenida da Liberdade

N.º 166, 1.º Andar

1250-166 Lisboa

Portugal

© 2014, Marcus Mota e Chiado Editora

E-mail: [email protected]

Título: Um Homem Só

Editor: Susana Engel

Composição gráfica: Ricardo Heleno – Departamento GráficoCapa: Vasco Lopes

Revisão: Marcus MotaImpressão e acabamento: Chiado Print

1.ª edição: Novembro, 2014

ISBN: 978-989-51-2221-9

Depósito Legal n.º 380336/14

Chiado EditorialEspanha

Calle Serrano, 93, 3.ª planta

28006 Madrid

Passeig de Gràcia, 12, 1.ª planta08007 Barcelona

Chiado Publishing U.K | U.S.A | Irlanda

Kemp House 152 City Road

London EC1CV 2NX

Chiado ÉditeurFrança | Bélgica | Luxemburgo

Porte de Paris

50 Avenue du President Wilson

Bâtiment 112 La Plaine St Denis 93214 Paris

Chiado Verlag Alemanha

Kurfürstendamm 21

10719 Berlin

Marcus Mota

Chiado EditoraBrasil | Portugal | Angola | Cabo Verde

uM HoMeM só

Sumário

Almas...............................................................................7O menino natural............................................................21A preciosa herança.........................................................35Pedido de desculpas.......................................................67Em volta do grande macaco............................................87Mi amigo Maurício.......................................................107O sermão do sábado seguinte........................................127Virada de ano................................................................163Devaneios do homem pássaro.......................................191Drogaditos...................................................................209Serenata.......................................................................235Cadernetas azuis..........................................................241Um estranho em seu rosto.............................................295

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Almas

Desde pequeno era dado a questões sobrenaturais. Tudo naturalmente, sem mentor algum. Ninguém sus-peitava que o garoto cumpria diariamente uma rotina de revelar o mundo em sua volta, até que as incertezas e dú-vidas que o rodeavam fossem eliminadas. Mas nos últi-mos tempos esse vigor contra o mistério provocara uma resposta não esperada. Até quando o garoto iria resistir? Quem pode enfrentar o amanhã e prevalecer?

Ele sabia de tudo, tudo mesmo. Ao dormir, deixava uma faca debaixo da cama. Toda noite a possibilidade de surgirem da escuridão aqueles que não arredavam o pé do quarto. Os pais continuavam alheios à grande luta de seu filho. As noites se alongavam na batalha contra os ausentes.

Antes, o garoto apenas abria relógios. Queria ver o que havia dentro deles. Interrompendo o tique-taque, o garoto manifestava um silêncio outro, o intervalo rumo à mar-cação de um tempo nunca realizada. E assim ele ia supri-mindo as horas, os instantes com números, despejando-os todos no vazio de seu desuso. Abrindo relógios, desco-nectando suas peças, arruinando os mecanismos, o garoto fabricava um cotidiano desfeito, as coisas em novos luga-res, o espaço não preenchido, a ponte para algo mais.

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Enquanto paria molas e parafusos dos relógios, o ga-roto falava, narrando o que fazia, a ponto de contar uma história. Gostando disso, aos poucos ele foi largando o lixo do tempo e dos mecanismos em uma sacola e partiu para os relatos que acompanhavam novas investidas no mundo palpável diante dele. E começou a escavar o seu quintal, tirando insistentemente a terra do chão em sin-cronia com diálogos que os relatos exigiam. Era estranho de ver o garoto enchendo a terra de buracos e falando, falando sem parar, as muitas vozes em sua boca, as unhas cheias de terra escura.

Isso até o pôr-do-sol. Em resposta aos gritos dos pais, retornava para casa e, quieto, esperava que todos dormis-sem o sono sem ofício de cada noite. Então, de madruga-da, o garoto se levantava da cama e passeava pela casa. Tudo lhe pertencia agora. As pessoas e os bichos e as coi-sas foram entregues para ele. O menino entrava no quarto dos pais e assistia o sono deles, o ar indo e vindo, uma corda invisível puxando seus peitos, o frágil nó que os une ao escuro do quarto e os mantém vivos. O garoto se aproxima dos rostos e apalpa o ar quente que escapa das narinas mergulhadas na incógnita. Eles dormem, estan-cados na cama pelo fluxo e refluxo de um sopro que não se demora em seus corpos. Lutam para domar o ar fora de si, mas apenas habitam o desamparo sob os lençóis. O bafo quente que exalam cria bolhas de água nas mãos do menino. Ele contempla a ínfima realidade de seus pais e investe-se de libertador. Já que o fôlego não é suficiente, poderiam eles viver sem respirar? Antes que suas mãos se fechem sobre os rostos que dormem, uma tosse, um sus-piro maior, um movimento na cama faz cessar essa nova investida contra aquilo que diante dele agita-se além de suas mãos.

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O garoto sai do quarto e depara-se com o gato, estú-pido animal de olhos abertos na noite. Susto! Estúpido animal em seu caminho, uma máquina de comer e andar. O garoto olha para o bicho, confiante que seu olhar vai dizer tudo o que diz enquanto escavava o quintal. Ele e o gato, um em frente do outro. Os olhos do gato brilhando no escuro. O garoto ouvindo um coração batendo na noi-te, o ar tenso em seus pulmões. “Ele tem medo de mim. O gato tem medo. Eu sei que ele tem medo e vai disparar agora. Eu vou fazer o gato correr como nunca. É só eu forçar meu olhar contra o gato, é só o gato ver que meu olhar brilha mais que o dele.” Após alguns instantes, o gato cede. O garoto ri sozinho ao ver o pulo que o bicho dá prá cozinha, escapando da casa pela janela entreaberta. O garoto corre para a cozinha e pela janela acompanha ainda o gato pulando o muro para não mais voltar.

Em pé, diante da janela, o garoto ergue os olhos e vê o céu cheio de estrelas. Abre a porta e senta-se na janela. São três da manhã. Os pontos brilhantes da noite caem em seus olhos. É a coisa mais fantástica de se ver, mais que a respiração dos pais ou o interior dos relógios. O gato fugira, e de sua cauda caíram estrelas. O garoto olha fixamente para o céu como fizera com o gato. E começa a falar enquanto impõe sua rígida presença à enormidade que o cerca.

Dali em diante, todas as noites ele acorda para ver es-trelas. Traz um caderno no qual anota cada uma delas, um mapa-relato do que vê e ouve em sua vigília. O garoto deixa de cavar a terra para dormir as manhãs com as lem-branças de sua madrugada repleta de luzes.

Pois agora sabe para onde vai o fôlego dos pais e os buracos da terra. O gato medroso lhe confessara. O garoto começa a entender as coisas que se escondiam. Ele ali, diante de tudo, anotava o que descobria, um livro inteiro

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com muitos gráficos, traços, cálculos, nomes, desenhos, histórias que guardava debaixo da cama.

Todas as madrugadas o garoto abria as janelas de seu quarto, sentava-se com as pernas para fora do quarto, en-costava-se com seu livro e olhava para o céu. Logo per-cebe que não é a luz o principal das estrelas. Elas não são coisas paradas como os relógios que deixara mudos. As estrelas piscam uma respiração parecida com a de seus pais. Mas elas não dormem. Junto com seu fôlego, elas devolvem, ao garoto, o olhar. Não como o gato que tinha medo. As estrelas debruçavam seus olhos sobre o garoto como se fossem falar.

“Se eu pudesse ouvir o que elas falam, se eu pudesse saber o rosto de cada uma delas, se elas me contassem o que sabem então eu ia libertar todo mundo do sono, do bafo quente que nos prende à cama. Uma vez eu tentei, estrelas, eu tentei não respirar. Aos poucos fui treinando isso, segurando o fôlego até não mais agüentar. Eu que-ria tirar isso de mim, esse mecanismo que me colocaram. Todos que conheço têm parafusos e engrenagens chiando dentro do peito. Então eu cada dia fui me esforçando com um relógio na mão, contando o tempo, o tempo meu entre o ar que se foi e sua volta. Com muito esforço conseguia adiar o inevitável retorno. E o ar que expulsei de dentro de mim voltava forte, inteiro quase como um soco. E eu ficava cada vez mais tonto e fraco. Cada um de nós é um imã, atraindo esse sopro que venta dentro da gente. Todo mundo que eu conheço é uma caixa de guardar coisas que não lhe pertencem. E os ventos retornam com raiva, pron-tos prá revidar sua expulsão. Daí as chuvas no céu, os mares e as ventanias. Senhoras estrelas que pulsam longe de tudo isso, eu começo entender tudo enquanto os outros dormem!”

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Por aqueles dias seu pai fez um cercadinho com ma-deiras e arame e colocou dentro umas galinhas. Nas ma-drugadas, o som das estrelas começou a ser sufocado pelo ruído das bolas de penas e bico que iam despertando como o garoto. Eram suas estrelas mais próximas, mas de olhares assustados quando ele se aproximava do cercadi-nho e colocava suas mãos no arame. Assim, tão perto ele escutava o chiar que sai do peito estufado das galinhas e que se remexe entre os bicos abertos delas. Um bicho as-sim tão estúpido preso em uma caixa era sua companhia no frio da noite alta. O garoto passou a anotar os sons que faziam, pensando encontrar algum recado das estre-las. Não conseguindo distinguir nada entre tantos e iguais cacarejos, ele concluiu que aqueles bichos estúpidos e ig-norantes eram enigmas colocados ali diante dele para que desistisse de seu impulso de conhecer.

Então resolveu dissecar o mistério, tirar suas asas e pe-nugens. Abriu a porta do cercadinho e pegou a mais taga-rela das galinhas. Embaixo dela, viu dois ovos. O rosto do menino se iluminou ao perceber o que o animal escondia. De tão feliz que ficara, abraçou a galinha contra o seu peito, sentindo o chiado dela irradiando nas penas brancas iguais em tudo. O peito do garoto estava colado ao da ga-linha, coração a coração, fôlego a fôlego. Esquecendo os ovos, ele pegou o pescoço sinuoso do bicho e o sacudiu, rindo. A cabeça da galinha girava de um lado para outro. O enigma daquilo que move e comanda o sopro das coi-sas e das criaturas era engraçado. Engraçado e terrível. A galinha dançava com as mãos do garoto em seu pescoço. Cabia a ele acelerar o ritmo dessa dança até o fôlego se dissipar. E o garoto foi cada vez mais aumentando a pres-são sobre o pescoço da galinha e a galinha se agitava em suas penas e cacarejos tanto, tanto que as luzes do quarto

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dos pais se acenderam e ele teve que fugir, voltar para dentro de casa, como o ar que fugia do peito da galinha.

Tudo anotado em seu livro, um livro de experiências terríveis sobre o enigma dos mecanismos da vida. Dali em diante todas as noites de madrugada ele sai de casa para o cercadinho apertar pescoços de galinha com uma mão e com a outra registrar os efeitos visíveis dessa tortura. Era preciso fazer mal para produzir a verdade. Nas duas pri-meiras semanas dessas experiências o pai comentou com mãe, em um dos raros diálogos na hora do almoço, como as galinhas estavam botando mais ovos e cacarejando me-nos. Admirado com as informações que o pai lhe dera, deixou a comida no prato e saiu correndo para seu quarto a fim de anotar tudo e pensar nas conclusões. Nada ainda fazia sentido. O pouco que tinha, apesar de páginas e pá-ginas escritas e noites e noites mal dormidas, viera apenas pelo acaso. Assim como sua mão se molhara com o hálito quente vindo dos narizes de seus pais dormindo, ele mes-mo e as galinhas, em situações extremas, perdiam fôlego como que pedindo mais ar. Perto de um fim, perto de tudo se acabar, os bichos e as pessoas querem mais vida.

Mas o que viria depois? Será que precisariam desse ar prá sempre? O que realmente incomodava o garoto era ter embutido dentro dele uma coisa viva que não para-va de pulsar, como um bicho dentro de outro bicho, uma comida não ingerida, um jardim que ele não plantou, um buraco que cava a si mesmo sem parar. E o assombro e a raiva diante dessa outra coisa sem nome e sem rosto que se debatia em suas carnes o torturava como uma mão em seu pescoço. E o garoto foi ficando cada vez mais pálido, magro, desesperado e desanimado ao mesmo tempo por ser incapaz de fazer calar esse ruidoso movimento que tudo anima e que ele só podia bem ouvir.

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Tanto que quando estava brincando de cavar no quin-tal, virou-se para ver que o chamava, de quem era aquela voz aguda e persistente que explodia contra o seu peito e viu uma formiga, e depois mais outra e outra mais. Apro-ximou-se da terra e pode ouvir os passos delas, o ruído de suas antenas, o barulho que as garras de sua boca faziam ao erguer torrãozinhos de terra e a queda mesma desses torrãozinhos se desmanchado no chão irregular do terre-no do quintal. O mundo se detalhava em volume, altura e profundidade e adquiria contornos e nitidez variáveis e incessantes a cada movimento da cabeça do garoto para algum inseto ou folha que caía das árvores. Uma abelha passeava entre as flores e ele ouviu o viscoso contato dela com a doce e colorida umidade que sugava em um in-termitente sorvo. Gafanhotos marrons e verdes saltavam espalhando a terra em sua volta. Um deles caiu bem nas mãos do garoto. Ele segurou no cangote daquela mistura de palha e folha e trespassou o silêncio entre o bicho e seus olhos. E ouviu, ouviu algo enchendo e se esvaziando, estufando e se exaurindo bem em suas mãos. Até ali a má-quina motora, a bomba primal se encontrava! Distraído em sua indignação, ele apertou o inseto que, entre asas e pernas desmembrado, foi caindo ainda se mexendo, o relógio em pane, os ponteiros zumbindo em todos os lu-gares. O garoto olhou para a terra e viu as partes do bicho se repuxando, ligadas não se sabe pelo que e rumando para não se sabe onde. Deixando após si a farinha de ga-fanhoto para as formigas, ele viu um pé de Beijinhos que ao calor do sol sem mão alguma estourava seus casulos verdes, arremessando para os ares sementinhas brancas. As bochechas verdes comprimidas, seguras até não mais agüentar, como o garoto ao prender o ar, cuspiam uma no-vidade sem retorno, o sopro empedrado que as formigas também recolhiam.

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Vendo tudo se repetir em todo lugar onde ia, o garo-to, atônito, largou o quintal e se sentou no muro de sua casa. Lá fora um cachorro mordia o rabo, correndo atrás de si mesmo, sob o riso dos garotos malandros da rua que atiçavam o pobre bicho até ele não poder mais. Quando começa a se cansar, os malandros, com um pedaço de pau, triscavam as costas do cachorro vira-latas cheio de mos-cas, pulgas e sarna, e o estúpido emendava o cansaço na ciranda em volta de si.

A correria do pesteado sarnento mordendo o rabo e a opressão do grupo em volta dele não pareciam ter relação alguma com as coisas que ocorriam dentro de sua casa. Eram outras experiências. Todos no mundo estavam ex-perimentado, buscando alguma coisa. Mas buscavam o mesmo ele e os garotos da rua?

Até que o cachorro baixou seu traseiro nos paralelepí-pedos da rua e, arfando, a língua embranquecida de baba, parou de correr. O grupo em volta dele trocou os leves empurrões com os paus para uma surra tremenda no bicho que, mesmo quase sem fôlego, disparou como pode rua acima fugindo, até desaparecer em alguma esquina para nunca mais voltar. O cachorro fora expulso de sua própria brincadeira.

O garoto observara aquilo apavorado, sem vontade al-gum de anotar. Em seus olhos estavam as risadas de me-ninos como ele em volta do sôfrego animal, tirando dele até o último suspiro. E ele ali parado sentado no muro, os meninos agora olhando, os meninos andando em sua direção.

Mas ele era um cachorro? Por acaso ele não era mais que aquele monte de pulgas e baba branca? Perdido nes-ses questionamentos, mal pode ouvir o que os garotos perguntavam, os pedaços de paus em suas mãos. “O que tu tá olhando, heim, guri? Qual é teu time? Tu torce prá

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que time?” Quando ia responder levou um soco de um alemão alto, com camisa do Grêmio. “Diz agora – ‘Meu time é o Grêmio, eu torço é pro Grêmio’! “

O garoto caiu de costas no jardim de sua casa, sobre as formigas e os pés de Beijinhos. Um dente de leite seu caiu junto. Seu cotovelo foi raspando na terra e nos tijolos no círculo sem fim no qual se transformava a descida do muro.

Quando se levantou todo sujo e com sangue na cami-sa, estava surdo, tão surdo que nem ouvia suas palavras. Se falasse – e não conseguiria muito por causa da boca inchada – vinha apenas uma corrente de ar, solta, na qual nada gruda, um som contínuo e sem dobras ou prendedo-res de roupa. Essa corrente virou um zumbido que encheu sua cabeça de vento, expulsando todo e qualquer pensa-mento que gostaria de ter naquele momento. Erguendo-se com dificuldade, deixando o jardim para sempre em seu silêncio de criaturas e coisas, o garoto foi se arrastando para casa, tomou um banho e dormiu, dormiu tudo o que podia.

Até acordar de madrugada com um alvoroço no cer-cadinho das galinhas. Abriu a porta da cozinha e viu o gato, o chiado peludo parado diante do arame. O garoto não entendeu o retorno do bichano até que o animal pulou suavemente para dentro do cercadinho que estava com a porta meio aberta, pegou pelo pescoço uma galinha e a arrastou dali, deixando no caminho um risco de sangue.

Ainda entregue ao sono violentamente interrompido e à violência em sua boca, o garoto não reagiu. Acompa-nhou com metódica acuidade as ações do gato, focalizan-do mais detidamente as reações da galinha abocanhada. Ela debatia-se, eleita e vítima entre suas brancas compa-nheiras. Seu cacarejo não era menor que o delas. A futura galinha morta dissolvia-se entre os ruídos daquela caixa

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de penas - sua casa, sua armadilha. E mesmo na boca do gato não parou de cacarejar e espalhar penas até sumir da vista do garoto.

Confuso e debilitado, o garoto não sabia o que ano-tar nem o que fazer. Após alguns instantes, atravessou o pátio, fechou a porta do cercadinho e seguiu o rastro de sangue. A garganta e a voz da vítima do gato escorriam pelo chão.

E ele chegou no portão. Um medo atravessou o garoto, medo dos garotos da rua, medo do cão ficar dando voltas e espalhar sua sarna e baba ressequida. E no chão, perto dos sacos de lixo, encontrou a galinha, morta, as penas tingidas por seu sangue, a máquina parada, um troço de membros esticados no chão. Com um pedaço de pau, o garoto empurrou a galinha e a virou, para ver se ainda es-tava viva. Mesmo ela não se movendo, o garoto continuou a fuçar aquele pacote largado sem mecanismo. O único barulho que vinha da galinha era já o das pancadas que o garoto dava no frouxo e mole amontoado de penas que voavam. Ele queria por força abrir o bicho, saber o que matara a galinha. Queria saber se, no lugar do fôlego que tinha ido embora, ficara um outro que imobilizava a gali-nha. Todas as coisas mortas, que antes eram vivas, deviam possuir uma máquina que presa nelas bombeava esse falta de ar. Quando a bomba de ar parava, outra bomba era liga-da e sugava tudo até prender na terra o que restasse.

Era isso o que pensava o garoto, retomando seus ex-perimentos, enquanto, com as pancadas, espalhava e re-partia as sobras da boca do gato. Após, exausto e sem respostas, voltou para dentro de casa, para o caderno de notas debaixo de sua cama. O garoto unia o muro e o ex-tra-muros, vida e morte em suas mãos e os sons da força de suas mãos silenciaram a goela da galinha.

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De manhã cedo, foi puxado pelos pais e colocado den-tro do carro. Viajaram horas e horas para um outro Esta-do. Seu avô estava doente. Ligaram avisando que o velho estava para morrer. O garoto enrijecia-se no banco, odian-do sair de sua casa agora que estava tão perto daquilo que havia pensado descobrir.

Ao chegarem na casa dos avós, o avô falecera, estava morto na cama. Entre choros e lágrimas, os familiares se abraçavam. Alheio a isso tudo, o garoto pegou uma bici-cleta e saiu correndo contra o vento em seu rosto. Quanto mais corria, mais sentia o impacto do ar em sua cabeça. Pedalando, pedalando foi capturando uma vertigem se-melhante ao vôo, a uma libertação do chão de terra. Pare-cia ser mais leve, sua respiração confundida com o vento que se lançava contra o seu corpo. O garoto abriu a boca e engolia aos borbotões o peso sem cor e veloz do nada. Com o cansaço, aos poucos foi perdendo contato com o vento. Daí renovava suas forças, mas tudo era questão de tempo. Irado com a sensação de perda pedalava, pedalava e mordia o infinito invisível que se despedia dele. E, no fim da rua, parou esgotado, afogado pela falta de ar e pelo muito ar que quase rasgou sua garganta.

Estava longe, longe de sua casa e da casa dos avós. Um homem morto o trouxera até ali. Tudo por causa de um homem morto! Deixara em casa o caderno e as galinhas mortas. Entardeceu e fez-se noite. O garoto olhava para o céu de estrelas, mas tudo era diferente, desconhecido e distante. Era um céu pesado e inóspito, voz alguma em sua boca. De cara amarrada, contra sua vontade, foi peda-lando de volta sem pensar em nada.

Ao chegar, apanhou dos pais, de um e do outro, por ter se ausentado, tanto tempo fora do velório. Tomou um banho, vestiu-se e foi para a sala ver o avô defunto.

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Em meio aos docinhos, bebidas e falatório geral, o avô, que pouco visitara ou conhecera, repousava sem fôlego em uma caixa preta de babados. A pele cheia de rugas pendia entre o pó facial que se misturava aos rostos ma-quiados dos parentes. Velho novo cadáver enfeitado prá festa. O morto refletia os olhos que fugiam de o encarar. Ninguém ali, ninguém mesmo tinha coragem de ver de verdade o morto, de olhar para sua bomba de morte den-tro dele. Só o menino poderia ouvir o que os outros não ouvem, aquilo do qual todos fogem em meio às conversas sem nexo que fazem em volta da caixa preta, da gaiola com cadáver dentro.

O garoto começou a girar seus olhos nos parentes pre-sentes, como os meninos da rua em volta do cachorro e voltou a ouvir e ver como antes o bafo quente e úmido das coisas vivas bem na palma de sua mão. E conheceu o medo, o medo do ar não voltar, o coração chamando, os pulmões arranjando espaço na caixa, o mecanismo movi-mentando todos os membros. E ele pode perceber o vai- -e-vem do sopro dentro dos corpos, aquilo que sustenta a tagarelice e o pavor humano pelo que desconhecem. E o morto era a prova viva de tudo isso. Todos em volta do morto respirando. O enigma estava para ser revelado.

Então o garoto saiu da sala e arrancou umas folhas de um caderno jogado em cima da mesa e começou a escre-ver, começou a escrever um poema, o primeiro e único poema de sua vida.

Quando escreveu a primeira palavra, sons sem corpos visíveis, ruidosos estouravam no chão da velha casa de madeira de seus avós. O garoto pensou que era a barulhei-ra lá na sala. Mas, na medida em que escrevia, percebia que a casa estava vazia e calada, como se só restassem o defunto e ele. A escuridão da noite lá fora, vapor negro e

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ameaçador, entrava por debaixo da porta. Ele tinha que escrever rápido no poema tudo o que descobrira.

Na pressa de tudo oferecer, lá no início da terceira es-trofe seu coração disparou. Quanto mais se aproximava daquilo que ouvira e entendera e agora escrevia, mais e mais precisava de ar, e mais e mais o fôlego o abando-nava. Lutando com todas as suas forças contra o que de fora sugava seu hálito, o garoto em vão tentava manter firme a caneta no papel e o coração dentro do peito. A qualquer momento parecia que tudo ia se partir – o mundo em sua volta e a máquina, a bomba de ar em seu corpo. Então começou a tremer, parado, imóvel, sem escrever mais nada, o verso incompleto, o garoto estancado como um alvo, um alvo fácil para pancadas e golpes. Calafrios percorriam todas as partes dele, terríveis calafrios que se encontram com repentinos calorões. Ele piscava como uma estrela, no limite de deixar de ser uma coisa viva. O garoto era a pura pulsação que, antes escondida dentro do peito, agora derramava-se para fora dele.

E em seguida o garoto foi perdendo a visão de tudo que estava próximo dele – a caneta, o papel, a mesa, o portão dos fundos – até passar em sua frente e em suas mãos todas as pessoas e coisas que conhecia. Em meio a esse turbilhão de imagens que dele se despediam, o ga-roto tirou do fundo sem fundo de sua memória o esforço de prender o ar para controlar sua respiração. Como seu fôlego ia sumindo velozmente, o garoto também de modo veloz começou a soprar pelo nariz, invertendo seu jogo de antes. Assim, pedalando nesse esquisito modo de não res-pirar, ele foi recuperando o fôlego, expulsando de si o ar que roubava seu ar. Ele usou a máquina contra a máquina, a bomba do sopro contra a bomba da morte.

Nunca fora tão longe em sua vida como naquela noi-te. Apavorado, largou as folhas mal escritas em cima da

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mesa, a brincadeira sua com o desconhecido, e voltou para o velório.

Ao chegar da sala, o morto reluzia um olhar atrás de suas pálpebras fechadas que só o garoto reconheceu como um cerco sutil e perpétuo que o avô exalava. Apavora-do diante da possibilidade de nunca mais ser um meni-no, foi para o quarto de visitas trancou-se e começou a chorar, chorar muito, terrivelmente, uma dor que não era sua, como se alguém tivesse morrido. E na escuridão do quarto, sozinho, sem pensamento algum que o socorresse, o garoto, sabedor dos mecanismos dos relógios, dos mur-múrios do céus e do resplendor do cadáver, abandonou-se à possessão de uma tristeza sem voz que o encobria de um céu mais escuro dentro do quarto. E nessa escuridão, de já não ser mais nada nem suplicar coisa alguma, o garoto começou a se apalpar. Passa as mãos no rosto, nos braços, no peito, em cada lugar de sua pele, querendo saber o que é, do que é feito. E quanto mais assim se toca, mais inocu-la em si a negra noite que densa e completamente povoava o quarto. Repleto dessa escuridão, ao tentar segurar o seu corpo em fuga, sentiu que ele desfazia – uma brisa fria e suave reunindo-se ao total negror que respirava em tudo, que respirava no garoto. E ele, apavorado e perplexo, viu seu corpo esvanecer-se por inteiro, tragado pela escuri-dão do quarto. Ele era da mesma matéria que as sombras densas, flutuando por cima das cabeças de todo mundo. O fôlego do redor era o seu fôlego. O garoto deixara-se ser ele mesmo para se transformar na escuridão viva que avançava em todas as direções.

Depois do velório, todos voltaram para suas casas. No carro, o menino segurava as folhas de papel, os olhos sem vida, presos ao infinito. Guardou tudo em seu caderno e passou a dormir com uma faca debaixo da cama.

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O menino natural

A dor nas costas me enterrava na cama. E, quanto mais ficava deitado, mais a dor entrava em meu corpo. Era pre-ciso estar sempre em pé e não se movimentar de modo al-gum. Senão, uma queimação atravessava de ponta a ponta os ombros.

Desde as primeiras horas da manhã eu, já na janela, imóvel vendo o mundo surgir. Em minha frente, um par-quinho sem crianças ainda. Mais adiante, os carros pas-sam sem parar. O sol aos poucos vai tornando tudo claro: a noite foi expulsa daquela casa onde um homem esforça--se para continuar vivo.

A queimação se concentrava no arco entre os ombros e os braços. Não era uma coceira apenas. Eu sentia pica-das, golpes de agulha que estralavam a pele. As agulhadas repercutiam, andando, tomando conta das costas, ora se concentravam em um ponto, explodindo a carne, abrindo feridas invisíveis, jorrando sangue etéreo.

E nada se via, não havia nada: com muito trabalho, eu me mostrava todo no espelho e a dor era apenas um ver-melhidão. Nada de sangue, corte, manchas – era uma dor viva dentro de mim, escondendo-se e me atormentando. Eu convivia com a impossível sobrevivência.

Há dois meses em uma reunião, sem querer eu comecei a me coçar nos braços. Depois dava pequenos saltos na

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cadeira durante os picos de incômodo e girava a cabeça para afastar o caminho das agulhas em minha pele. A mão tateava o escuro das costas, eu sem prestar atenção nas risadas que se espalhavam pela sala. Corri para o banhei-ro, tirei a camisa e esfreguei-me na parede. Deitei com as costas no chão e passeava no piso feito uma enceradeira, os olhos fixos no teto. Enfim, joguei água da torneira so-bre as costas, lavando, lavando o que estava possuindo meu corpo.

Com a água fria da torneira foi que tudo piorou. Um grito mudo tomava conta de mim. Aquilo que antes era apenas uma coceira, agora tornou-se minha própria respi-ração. Um homem no chão do banheiro de seu trabalho, um desespero só e úmido me confinava a um cantinho onde, agachado, com as costas na parede, não tinha mais o que fazer senão esperar passar a ameaça sem rastro que devorava a minha pessoa.

Larguei a reunião e sai correndo na chuva que caía sobre a cidade. Passei por meu carro estacionado e fui adiante. Os pingos da chuva estouravam em minhas cos-tas com um peso que nunca sentira antes. Dava para ouvir o estrago que faziam ao se arrebentar contra aquele alvo móvel. A cada estouro eu era impulsionado a correr mais. Tudo exigia de mim o máximo, e a exaustão era expandi-da além de seus limites.

Arrastado pela dor, cheguei em casa e andava pelos quartos sem pensar em nada, sem poder iniciar ou con-cluir coisa alguma. Até que parei no banheiro e liguei o chuveiro. As agulhadas ecoavam dentro de mim cada vez mais. Enquanto lutava contra o que não entendia, devo-rado por mim mesmo, mergulhava na cor de uma caça acuada. Apoiei-me na torneira do chuveiro e foi fechando a intensidade do jorro. A temperatura da água foi aumen-tando sem que eu percebesse. Um pouco mais tarde ainda

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debaixo do chuveiro é que tomei consciência da ridícula situação de um homem fugindo de golpes invisíveis. O que vinha atrás de mim chegou até ali e parou através da fervura das águas. Somente debaixo do chuveiro quente é que pude me recuperar e saber quem eu era.

E agora? Seria sempre assim ? Eu tinha que sair dali alguma hora. A paz sobre as águas ferventes tinha seu tempo de acabar. Em toda a minha vida nunca havia sido arrebatado por algo tão intenso e desconhecido. Ninguém em minha volta na reunião dera sinais dessa doença. E foi tão repentino o que aconteceu que não tive tempo de ligar para amigos, passar em uma farmácia, pedir ajuda. Estava resumido a mim mesmo e à véspera do retorno das agulhadas.

E dali em diante? De repente no trabalho, em um res-taurante, no carro, em uma conversa, vendo um filme, seja qual for o lugar, e os golpes chegariam acabando com tudo, e eu deixaria de ser alguém para me tornar uma pele esticada contra a qual são lançadas coisas afiadas e pontudas.

Após um terrível estrondo da chuva, acabou-se a luz e o chuveiro ficou sem eletricidade, só a água caindo cada vez mais fria e fraca. Receoso, fui me secar com todo cui-dado. Tudo agora deveria ser assim, em detalhes pontu-ais e medidos. A toalha passava pela pele lisa e frágil de minhas costas bem devagar. Devagar andei até a cama e fui dormir, bem devagar. Um novo dia quem sabe seria o tempo suficiente para que o corpo retomasse seu domínio sobre o que me dilacerava. Uma boa noite de sono seria o suficiente para tudo voltar ao normal.

Dois meses depois eu compreendi bem que o normal era a doença e suas fases. Primeiro, as pontadas nos bra-ços, como uma leve coceira. Em seguida, o incessante ca-

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minho das agulhas pelas costas durante uma meia hora. E, enfim, uma pausa no sofrimento, deixando-me desolado e vazio. Naquela noite quando dormi, duas horas depois veio o furacão em meu corpo. E a cada duas horas a noite foi devastada para sempre, caindo dentro de um abismo maior que ela.

Agora, de pé em frente à janela, eu vejo o parquinho. As babás começam a chegar e largar os filhos dos outros. Libertos do apartamento, eles correm pela areia cotidiana das manhãs. Descem pelo escorregador, brincam de ba-lanço, escavam o chão para atingir a outra terra que ima-ginam haver. Cada uma das crianças expande na presença das outras o seu pequeno mundo. Tenho duas horas agora, duas horas com elas, todos os dias.

O que mais me chama atenção e o que me ajuda a su-portar a enfermidade é um menino que vi no terceiro dia de minha vigilância. Antes, eu não demorava muito ob-servando aquele bando que habitava minha janela toda manhã. Depois de alguns minutos, meus olhos pousavam mais além do parque, na pista de carros, e da pista de car-ros para as franjas do céu, até se perderem inertes em uma visão sem rumo e sem amanhã, tomados pela dissolução de tudo que existe em pontos multicores.

Mas o menino surgiu sem correria, arrastando os pés, vindo sozinho para o parquinho. Com seis ou sete anos, sem dizer uma palavra, o menino ficava onde nenhuma das outras crianças estava. Sem esforço para ficar só, ele impunha sua indiscutível realidade exclusiva. Era um dos primeiros a chegar e o último a sair do parquinho. Quan-do todos largavam o escorregador, ele ia lá, subia as es-cadas e ficava sentado no alto, imóvel, olhando não sei para onde, fazendo não sei o quê. Depois que as crianças se cansavam dos balanços, o menino ia para um deles e se sentava, parado. Nem balançava as pernas. Em segui-

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da, se dirigia para a terra e, com palitos de fósforos que recolhia da areia contava histórias intermináveis de luta entre dois exércitos inimigos. Essas extensas batalhas du-ravam a manhã inteira. Sozinho ele distribuía as frentes do conflito e encaminhava a guerra. A violência das cenas narradas não afligia seu rosto. Erguendo quem ia morrer ou viver na luta entre os soldados-pauzinhos, o menino testemunhava a mecânica dos resultados decididos já em sua mente.

Foi quando me detive com mais atenção no rosto des-se menino que minhas manhãs e meu dia começaram a recuperar algum sentido, além das duchas de água ferven-te. Em virtude de meus horários, eu podia acompanhar com maior atenção toda a primeira parte dessas batalhas e depois o seu final. Entre essas partes, havia a minha luta com as agulhadas nas costas e o banho fervente. Quase meio dia e ele voltava para casa. Eu ainda teria mais uma hora de observação, uma hora livre de minha tortura. Usa-va esse tempo para anotar o que via.

É: depois de me deslumbrar com o rosto do garoto, comecei a anotar seu dia. Como havia perdido o meu, nos momentos sem dor me propus a entender aquele meni-no. Em lados opostos da janela estávamos, e a brincadeira dele poderia ser a minha. Sem que percebesse, o menino era a minha possibilidade de fuga dessa prisão em que me confinava e da qual não sabia como escapar. Eu já me es-quecia do mundo lá fora, da vida outra fora do meu quarto quando o menino apareceu.

Depois desses dias todos observando, eu adquiri maior senso de detalhe e pude completar a mesma cena diária com as informações que pareciam ausentes e muito di-fíceis de serem captadas. Primeiro, eu roteirizei os mo-vimentos do menino e cronometrei o intervalo entre sua chegada e partida, anotando tudo o que ele fazia dentro

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desse arco de tempo. De posse disso, esbocei um mapa no qual figuravam os deslocamentos que ele realizava, juntando os registros de tempo com as marcas de espaço. Em seguida, a partir desse organograma espaço-temporal, passei a procurar ouvir o que ele dizia em cada posição, em cada situação registrada. Os primeiros pontos do or-ganograma eram mais fáceis porque ele não dizia nada. O menino só começava a falar depois que os acampamentos dos exércitos estavam sendo preparados. Nesse momento ele, em cada lado da guerra, distribuía os palitos de fósfo-ro, assinalando para cada um sua função dentro da bata-lha, sua hierarquia, nomes, expectativas e emoções entre cada um deles. Havia subgrupos de amigos e de rivais dentro de cada exército. A trama da guerra começava a ser desenvolvida com a distribuição dos palitos. Ao mesmo tempo que a voz do menino assinalava parte do destino dos soldados, a mesma voz ia fazendo o som dos próprios soldados e dos ruídos da preparação da guerra. Eu via sua voz modulando o foco de si para os bonecos e dos bo-necos para as coisas. Um mundo começava a eclodir na areia e dentro de meu quarto. E o rosto do menino não ce-dia ao calor dos eventos. Seu olhar e sua voz estavam em descompasso. O gesto abrupto não ocasionava um repuxe na face nem o alarido da batalha o fazia franzir a testa. A máquina de guerra avançava por cima das emoções. As outras crianças, alheias a este fantástico empreendimento, ocupavam com suas correrias incansáveis o resto do qua-drilátero do parquinho.

Após os preparativos, a guerra começava. Então o me-nino se sentava entre os dois acampamentos adversários e erguia em cada mão os palitos que lutavam. Sentado, ele puxava um com a mão esquerda e outro com a mão di-reita, tudo acompanhado com sons dos outros combaten-tes. Antes da luta, as provocações. Cada palito escolhido

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mostrava suas armas e zombava do adversário. Risadas altivas, antecipando uma conclusão favorável do embate, se fundiam e se seguiam a palavras-golpes. O som das palavras era calado pelo altissonante estrépito do entre-choque dos corpos ampliado pela bocarra do menino. Al-guém vai morrer sem retornar à pátria. As viúvas e órfãos se multiplicarão. As aves dos céus esperam sua vez nesse banquete de feras. A morte se espalha quando o menino ergue seus braços.

Acompanhando mais o dia a dia dessas manobras de guerra, vi que ele começou a dominar mais a interminável batalha. O menino trazia agora uma faquinha, e com ela tirava lascas de alguns palitos que se destacavam, fazendo marcas laterais ou furos em alguns desses soldados. Com essas marcas, ele distinguia mais um exército do outro: o adversário era composto apenas dos palitos queimados, simples. Entre os líderes, destacavam-se os que não ha-viam perdido a cabeça de fósforo queimado. No topo da hierarquia estavam os que possuíam os entalhes.

Com o tempo de uso, alguns dos palitos que mais par-ticipavam das lutas quebravam. Os entalhes, ao mesmo tempo em que gravavam no corpo a distinção guerreira, também facultavam o amolecimento da madeira, seu des-tino quebradiço, que a areia no chão esforçava-se por ra-tificar. O torpor dos combates era sucedido por momentos de luto.

O luto era tão impressionantemente organizado quanto a guerra. A luta entre os exércitos parava. Os palitos do lado do morto se reuniam e encaminhavam o corpo des-pedaçado para a terra, prometendo a continuidade da ba-talha. As juras recaíam sobre uma glória que viria a partir do sangue derramado. O sangue, somente o sangue era capaz de prover um distante amanhã final.

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A luta dos exércitos girava em torno das vaquinhas- -formigas que eram caçadas sem compaixão. Algumas delas eram esquartejadas e colocadas em um buraco cheio de areia e esqueletos de outras formigas lá no alto do es-corregador. O sol naquela fossa dissipava as oferendas. A luta era por esses entulhos de quitina oferecidos ao inomi-nável mundo sem ninguém, muito além do parquinho e da pista cheia de carros. Eu podia ouvir o ecoar das batalhas enquanto o menino erguia inflexível seus braços.

Após uma noite horrível, pior ainda que a dos primei-ros dias das agulhadas se espalhando em meu corpo, vol-tei à janela e lá estava, na mesma hora, o menino armando o acampamento, procurando os restos de ontem, reco-lhendo os pedaços dos mortos. Era uma loucura observar uma história que ainda continuava. Perdi o gosto em ver o menino e fechei as persianas.

Enquanto esperava a precisão matemática dos ataques daquilo que chamava ‘doença das agulhas’, ouvi gritos que vinham do parquinho, uma voz conhecida minha, me chamando para ver. Nenhuma novidade para as persianas. Eu já sabia todas as vidas e as mortes daquele lugar. A brincadeira era dele. Eu me distraí de mim e me cansei. Queria minha vida de volta. Contudo, a voz do menino agora trocava gritos por choro. Olhei por uma das frestas da persiana e não vi ninguém. O lugar estava vazio. Nem crianças nem babás. Somente eu vendo aquilo, eu e a voz do garoto. Voltei para dentro do quarto. Estava tanto tem-po isolado de tudo e todos que poderia estar enchendo meu mundo com o pouco que havia sobrado para mim. Eu poderia estar vendo e ouvindo coisas de tanto perder o que via e ouvia. O menino, mesmo brincando entre as outras crianças, ele poderia nem existir. Apalpei meus braços e eu estava ali, duvidando da existência de tudo aquilo.

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Foi então que o choro transformou-se em um clamor tão sofrido, tão desesperador que, sem pensar em mais nada, abri as persianas com toda a força e vi o menino sozinho correndo no parque com as mãos protegendo seu rosto. Mais atrás, voando em perseguição, vinha uma ou-tra mão, peluda e negra, um inseto enorme e ameaçador buscando o rosto do menino. Era uma Bruxa. Desde crian-ça, a gente falava que aquele bicho cegava. De suas asas, a Bruxa soltava um pó branco que, em contato com os olhos, fechava a visão para sempre. Eu conhecia o medo que se apoderava do menino correndo. A Bruxa girava em torno da cabeça dele, esperando para jogar o veneno quando o menino se cansasse. O menino transtornado, o mesmo menino impassível de antes, corria já sem fôlego por entre os brinquedos do parquinho. Eu abria a janela e gritava para ele ir embora, para sair do parque. Em meio a essa agitação sem testemunha, a dor nas costas começou a fazer seus estragos. Quanto mais eu coçava, mais as agu-lhadas se espalhavam e se fortaleciam. Para me manter ali presente orientando o menino, passei a me arranhar, a dar unhadas em minha pele, a morder meus braços, a rasgar minhas pernas com os dedos – tudo para fazer passar a dor, lutando contra mim mesmo, contra meu corpo, dor contra dor, ferida contra ferida, eu me sangrando para ex-pulsar esse sangue podre meu. E em meio a essa luta em torno de meu controle, o menino se refugiou em um cano enorme, colorido, onde as crianças entravam e brincavam de esconder. Gemendo de medo e gritando por socorro, o menino foi logo se ocultar sob as vistas abertas do cano e suas entradas todas devassáveis. A Bruxa voava e revoava em cima do lugar, preparando seu fácil e certeiro ataque. Eu via o rosto apavorado do menino e o bicho já tomando conta de tudo. A insuportável dor em mim me expulsou da visão final. Em meio aos gritos mais aflitivos que ouvi em

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minha vida, corri para o chuveiro e quase queimei a resis-tência em um fervente banho sem igual. Minha pele era brasa viva que entorpecia. Eu me entregava totalmente para aquele rio de lava na esperança de logo poder retor-nar para a janela. Enquanto era consumido nessas chamas úmidas, tudo se calava. Com os olhos na água que escor-ria no ralo, deixava-me ir apenas pelo retorno a antes de mim, a um corpo absoluto e sem ninguém, um parquinho inteiro e completo me esperando, a pele pronta para ata-petar essa nova e calma moradia.

Agachei-me, sentei sobre o ralo e abracei minhas per-nas. As águas explodiam contra minha cabeça. Seria im-possível sair dali na próxima hora. Um sorriso me lavava de ponta a ponta. Eu havia sido bebido por uma garganta boa, tragado para dentro de um ventre sem resposta, eco-ando eu mesmo um repouso sem nome e rosto, a paz além da pista, os carros passando, longe, o céu dessas águas sobre mim.

E o que era eu naquele momento, os olhos submersos na torrente que se abatia em meu corpo e me arrastava garganta abaixo prá longe dali? Eu, corpo roubado, des-membrando-me, desfazendo-se de mim, espalhado, dis-perso, dissipado. Pedaço de pedaços submersos – uma coisa viva? Alheio ao toque e à ferida, pele e carne e ór-gãos. Dejetos. Escombros. Matéria dessas águas. Pedras sem olhos. Balsa de insetos. Presença, obstáculo, para-deiro, colisão, tropeço. Coisa despegada, que se afasta e some: exalação.

O coração agitou-se dentro de mim, como se tivesse parado, e agora lutava por mais vida. No estanque desse sobressalto me ergui, abandonando sem pressa o banhei-ro. Com a tolha em volta de meu corpo ressurrecto, fui andando para a janela e nada: não havia ninguém lá fora. E nem nas manhãs seguintes. Com o passar dos dias, fui

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deixando de abrir as persianas. Os intervalos dos ataques em minhas costas diminuíram e logo eu poderia retornar ao trabalho. A conta de luz também diminuiu, e eu já an-dava fora de casa aos fins de tarde, entre tantos outros que saíam de suas casas em caminhadas e passeios.

De volta de uma desses saídas, sentei-me no sofá com um copo d’água. Bebia devagar, sentindo o líquido es-correr dentro de mim. Eu podia imaginar o caminho per-corrido da água, do copo até o estômago, e o caminho do rio até a torneira. Podia ver e ouvir e acompanhar o movimento das águas. E em meio a esse prazeroso sorvo ela apareceu, entrando pela janela, a Bruxa peluda, escu-ra, enorme e terrível! Fácil foi entrar pela janela aberta. A Bruxa se debatia pelas paredes, conhecendo sua nova casa. Arrebentando-se contra o sólido branco em volta dela, o perigoso inseto ia deixando pedaços dos pêlos de suas asas através do chão da sala. E eu, vendo a Bruxa debatendo-se para sair dali ou cegar quem quer que seja, não pude fazer outra coisa senão ver. Não me restava mais nada. A Bruxa estrondeava justamente na parede perto do corredor que dava para o resto do apartamento. Estava entre mim e um lugar mais protegido. E ela, cega em seu ataque cego contra a claridade infinita de nosso derredor, girava forte após cada arremetida. A casa inteira vibrava nos ruidosos golpes da Bruxa. O chão enchia-se de pêlo e ela se fortalecia nessa luta e espreita. Ao mesmo tempo que mapeava seu espaço de ataque, a Bruxa ia acomodan-do-se em minha frente, fatal guerreira inimiga. Foi quando vi que ela sabia que eu estava ali, que eu era o seu menino de agora, a vítima preferida. Cercando-me, oscilando em seu vôo em minha frente, a bruxa era todo um olho contra mim, o olho de um revoar que tragava tudo em seu redor e que se avolumava para me roubar a luz. Acuado, sem ter onde me esconder, fui me arrastando para trás, a parede

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outra em minhas costas. Quando encostei na parede ex-trema de onde a Bruxa estava, senti voltar as agulhas se espalhando entre meus ombros, os braços formigando, o corpo entregando-se ao domínio exclusivo da tortura in-visível. Sob o crescer do som da Bruxa eu me encolhia, perdendo tudo que era vivo em mim. Então, através da janela aberta, entraram mais e mais Bruxas, uma revoa-da delas que agora disputavam entre si a prerrogativa da caça. A sala escureceu e não havia mais lugar algum para se esconder. Sentado, eu abracei minhas pernas e coloquei a cabeça entre os joelhos. Daí a nuvem de Bruxas rodou em cima de mim. Pêlos caíam delas e me encobriam, e de cada pêlo parecia brotar outras criaturas mais. Minhas costas, somente minhas costas estavam desprotegidas. Nunca meus olhos, nunca! Surdo por causa do bater de asas e do entrechoque das bestas negras enfurecidas, eu podia sentir, enquanto picavam e agulhavam minhas cos-tas, a calda fria e viscosa que caía de suas bocas. Cada pi-cada se unia a outra, retalhando minha pele, formando um artesanato que entremeava terror e cálculo. Eu era vestido com baba, pêlos e chagas. Em meio à descarga de golpes contra minhas costas, que me estilhaçava e atordoava, fui ouvindo um som, um som fraco e suspirado, um gemido pequenino e intermitente que vinha bem do fundo daquele revoar das Bruxas. Era um choro sem igual, vindo de um quarto escuro e fechado, onde, trancada e abandonada, a voz se esforçava em manter-se viva. Não dizia palavras em seu choro. Era apenas uma dor tamanha, estendida en-tre seu fôlego atravessado e temeroso. Um menino, um menino, meu Deus, um menino apenas, no quarto escuro e sem ninguém! A voz, a única voz, o que lhe resta. Ele chora fino, agudo, zumbindo até desfazer-se todo nesse choro que sai do quarto para meus ouvidos. A insistência dessa dor dura para além do quarto sem luz, rasga paredes

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e projeta-se contra meu peito. O menino chora em mim, chora, e seu sofrimento sem porquê seca a baba viscosa da multidão de Bruxas. As agulhadas em minhas costas rea-gem com maior intensidade à invasão do menino. Entre o choro e o revoar dos bichos, eu luto até o dia raiar. Meus olhos nunca, nunca!!!

A reunião prolongava-se indefinidamente por toda a manhã. Todos na sala pareciam distantes, esperando que tudo se acabasse. A estridente voz de uma mulher gorda e repetitiva ecoava pelo vazio das mentes. Eu fui ao banhei-ro umas três vezes. Ninguém mais suportava os longos e indefinidos relatórios que a mulher enorme e sem limi-tes apresentava em meio às suas confissões de cansaço e desgaste. Ela estava na ponta da mesa perto da janela. Lá fora brilhava um sol avesso ao mundo aqui fechado. No curto intervalo do lanche das dez horas, andei em direção à janela. E lá embaixo do prédio, uma criança chuta bola para outra. Isolando-me de tudo, o rosto no vidro, fico ob-servando o jogo. Após alguns instantes, as crianças sabem que alguém acompanha os lances da partida. Meu olhar compõe as trajetórias e os resultados. E elas correm mais confiantes, exibindo-se, alongando os movimentos, cor-rigindo os passes, melhorando a pontaria. E comemoram seus lances perante uma multidão imensa e barulhenta que em volta delas permanece a cada jogada.

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A preciosa herança

Ainda com o telegrama no bolso desembarquei no ae-roporto da Capital. Era preciso agora pegar um táxi e che-gar logo na rodoviária. O ônibus para Porto Feliz sairia à meia noite. Antes de embarcar, me perguntava o porquê de todo esse trabalho inútil. Minha mulher respondera di-zendo que um dia eu seria pai e entenderia tudo. Mas por que esperar tanto para saber o que já sei?

O telegrama apenas informava que o velho estava mal. Se ele morresse, a viagem teria sido um desperdício. Se continuasse vivo, nada mudaria os últimos dez anos sem notícias, os dez melhores anos de minha vida. E por que logo eu? Eu havia deixado bem cedo aquilo que chama-vam lar. Tanto que a mínima menção de um retorno era a coisa mais pavorosa que poderia acontecer em minha vida. E esse pavor gerou o esforço necessário para fazer tudo o que fiz: estudar, arranjar um emprego e tudo o mais para garantir a maior distância quanto ao “lar”.

Agora um telegrama anônimo – nem o próprio pai ou alguém da família tivera a menor vontade de falar comigo – noticiava o estado do velho e pedia que eu voltasse.

Com essas coisas na bagagem, entrei o táxi rumo à ro-doviária. O motorista não trocou uma palavra comigo no trajeto. Correu feito um desesperado, exagerando meus comandos. Atravessou sinais, ultrapassou em situações

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não permitidas e impossíveis, chacoalhando tudo e todos dentro do táxi.

Dez minutos depois, enfim, a rodoviária. “Quarenta re-ais, chefia”, cuspiu, o taxista, pigarreando. Com os olhos fugindo do rosto e as pernas tremendo, eu sai procurando o guichê da única empresa com ônibus para esquecida e desconhecida Porto Feliz. Fiquei em pé por uns minutos em frente ao guichê vazio, fechado, contemplando a ro-doviária vazia, cercada pela vidraça que mostrava a longa noite lá fora. O frio dessa noite enevoava tudo, dissipando o contorno das coisas. Do fundo dos corredores vinham vozes, gritos e risadas que começavam a tomar conta do que havia diante de mim.

Então eu ouvi claramente a voz de meu pai gritando: “Garoto burro! Estrume! Não presta prá nada! Nunca vai ser nada na vida! Não faz nada que preste! Deixe de ficar resmungando pelos cantos da casa!” Atordoado, percebi que eu havia vindo de tão longe para nada! Era o que pai me cuspia dos corredores enfumaçados da rodoviária.

Mas ele estava errado, eu vim prá provar o contrário. Peguei a mala e fui para o boxe dos ônibus, repetindo bai-xinho antigas palavras: “O pai vai ver, eu vou mostrar prá ele!” O motorista conferia as últimas passagens. As malas eram despachadas pro bagageiro do ônibus. Entrei na fila de embarque e, quando fui falar com o motorista, o enorme braço do homem me afastou gritando “Passagem na mão! Passagem na mão!” A fila terminou, o motorista entrou no carro e partiu para Porto Feliz. Fiquei sentado no chão vendo tudo, resmungando: “O guichê, o guichê – não tinha ninguém no guichê, motorista!”

Não, eu não havia vindo de tão longe para me acabar no chão de uma rodoviária! Fiquei de pé e voltei para o guichê. Lá dentro o funcionário devorava um enorme san-duíche de queijo e mortadela, rindo do que passava em

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sua TV preto e branco portátil, completamente alheio às minhas batidas no vidro e chamados. Quando aumentei a força de minha presença naquele vidro, ele pegou sua TV, puxou o fio da tomada e saiu por uma porta, desaparecen-do dentro do escritório da empresa. Sem entender, fiquei acompanhando aquela fuga e desdém, na espera que ele voltasse.

O frio da noite me fez saber que ele não voltaria. Tre-mendo dentro das calças, tentava pensar no próximo pas-so. Então, do fundo dos corredores opostos da rodoviária, começaram a vir dois grupos de vagabundos, devagar se aproximando, furando a névoa com movimentos e rostos ameaçadores. Eu estava no meio de uma escolha. Olhei em frente e vi a fila dos táxis atrás da vidraça. Para es-querda ou para a direita teria de passar por um dos grupos. Fui para a esquerda. E quando um grupo já parecia me cercar, tropecei em um mendigo no chão e cai para fora, por entre uma das falhas da vidraça.

O último taxista dormia. Quando bati em seu vidro, ele acordou e ligou o carro, pronto prá partir e me deixar ali. Eu segurei a frestinha da janela do carro que trazia o único ar para ele e para mim. Disse que precisava de uma cor-rida. Ele me respondeu que já era tarde, que estava indo para casa e adeus. Deu a marcha e acelerou. E eu, que já havia perdido ônibus, guichê e a mala, desesperado gritei: “É caso de vida ou morte, seu motorista!”. O taxista me olhou e disse que a noite é um perigo só, que era preciso ser forte e não brincar com o acaso. “Você tá me entenden-do, rapaz, tá me entendendo?” Enquanto falava isso, fui entrando no carro e já estávamos na primeira curva sain-do da rodoviária. “Prá onde vamos, rapazinho. Você tem dinheiro, não é?” Disse para ele tocar para Porto Feliz. “Mas Porto Feliz fica fora da Capital. Eu não saio da Ca-pital. Nem que me paguem todo o dinheiro do mundo! Já

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é tarde. Eu volto prá rodoviária e você que espere o próxi-mo ônibus prá Porto Feliz!” Desesperado quase gritei que para a rodoviária não, que de jeito nenhum voltava prá lá! E perguntei por quanto ele poderia fazer essa viagem que eu pagava. Era caso de vida ou morte. O pai estava no hospital. “Seu pai, é? O que tem seu pai? Faz um tempo eu sinto uma dor nas costas aqui ó! Não tenho tempo de ir ao médico, sabe. Eu passo noite e dia dentro do táxi. Eu moro no carro. Olha aí atrás: tem até umas roupas. Lá no porta-malas guardo as cobertas e o travesseiro e umas bolachas. Quer bolachas? O Rapazinho quer bolachas?” Diante dessa estranha reação do taxista, foi emendando a oferta, dizendo que por 200, 200 a gente acertava a corri-da até Porto Feliz. “Essa minha dor nas costas tá acabando comigo. Desde o ano passado as coisas pioraram. Minha mulher me deixou, levou os filhos e tudo. Eu sabia que isso ia acontecer. O rapazinho não entende dessas coisas, não é? É casado? Tem filhos? Não, é muito novo, muito novo ainda.” Percebendo o jogo, aumentei com desgosto ainda mais minha oferta para 300, 300 e que não se falas-se mais nisso. Estava pagando por uma viagem de carro aquilo que fiz de avião. “Mulher é uma coisa na vida da gente. Eu precisava de uma mulher, de uma casa. A vida não é nada sem isso. Mas depois de um tempo eu só que-ria ficar na rua, no táxi. O rapazinho imagine isso: um homem com uma casa sobre rodas e outra estacionada no portão. Era isso que tinha. E eu só esperando a mulher de-sistir e ir embora. A casa com portão foi estragando, fican-do velha, as paredes rachando, a sujeira tomando conta de tudo. A mulher ficou porca, o serviço por fazer, as louças na pia, as janelas e portas abertas, as janelas sufocadas de gordura e dos dedinhos porcos dos meninos. Ela fazia isso prá me chamar de volta. E eu firme no volante rodando a cidade até quando ela não agüentou mais. Mas eu não

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saio mais desse carro. Por 400 eu te levo em Porto Feliz rapidinho, meu jovem.” 400 paus? Isso era um roubo! 320 e e pronto, foi minha última oferta. “Olha, meu jovem: é tarde, tarde da noite. Ninguém seria louco de te levar pro interior agora além de mim. Eu conheço bem o caminho. Eu te levo lá. Por 400. “

Ah não, barganhar não! Há quanto tempo eu não via isso: era o que sempre meu pai fazia, até em loja de ferra-gem discutir preço de 3 ou 4 parafusos. Isso não! Fiquei nos 350 e ponto final. “Prá dizer que eu não sei nego-ciar, ficamos em 380 tudo bem.” Sabendo que estava sen-do roubado, mas querendo chegar logo em Porto Feliz, concordei com o valor abusivo, insistindo para que ele pisasse fundo, direto pro destino. O taxista, sem pressa, recebeu e contou o dinheiro com uma felicidade malicio-sa que lembrava meu pai. A posse do dinheiro, o dinheiro nas mãos, a sucessão das notas e números, aquilo tudo era demais mais ele, algo tão importante e sério e todo seu. A diversão estava que ele possuía o dinheiro do outro, como se fosse mais esperto apenas por ter recebido seu pagamento. Dinheiro, dinheiro nas mãos. E que alegria!

O que eu não sabia é que aquilo era o começo de uma noite muito longa com um final pior que tudo que eu po-deria ter pensado prá mim. Primeiro, o taxista não passava dos oitenta. Como os bancos do fundo estavam cheios de roupas, caixas, sacolas, eu fiquei no banco da frente, ao do lado dele, na obrigação e no castigo de ver e ouvir tudo: o velocímetro, a escuridão que ia engolia a estrada, a noite sem estrelas, o céu mais distante a cada curva. “O rapazinho tá mal acomodado? Pois não pára quieto nesse banco.” E eu pedindo, quase suplicando para que ele fosse mais rápido, conforme o que ficou combinou pela fortuna que eu paguei antecipado para que ele fosse o mais rápi-do possível. “ O rapazinho é da cidade, é? É filho único?

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Pois não se impaciente. Vamos chegar lá no seu pai. O meu pai – que Deus o tenha – era um sujeito difícil de ter outro igual. Tinha costumes lá do tempo dos escravos. Uma vez buscaram prender ele. Meu pai estava numa fes-ta todo contente. Era coisa com mulher. Chegou o delega-do com os parentes da moça e o cercaram. Ele pulou uma janela enorme de alta e saiu correndo no meio do mato. Quando alguém fugia por essas bandas não se perguntava as razões. Fugitivo era bala mesmo. Os homens todos se reuniram e foram atrás de meu pai. E ninguém dava conta de pegar o malandro. O pai me dizia que se escondera entre as árvores, e a multidão passava por ele e via apenas árvore. Meu pai tinha essas magias. Ele virava nas coisas desse mundo. Até se conta que ele passava debaixo das portas ou entrava pelo teto. Não tinha casa com mulher que meu pai não tivesse passado uma vez na vida. Já ve-lho, ele mandava minha mãe fazer bolo e chamar as co-madres ela. Na porta meu pai ficava recebendo as visitas e apalpando os braços delas. O pai adorava um braço gordo, cheio de carne. Aquilo era um festa para ele. Ele levava as comadres para dentro da casa pelo braço, feliz da vida. Todas gostavam de ir comer bolo lá em casa. Então um dia ele mandou um sério aviso pros seus filhos. Eu tinha saído de casa há muitos anos. Mas todos os natais voltava. E aquele natal seria diferente. Ele mandou dizer que era o último natal. Ninguém poderia faltar. O rapazinho pode entender um negócio desses? O pai sabia o dia e a hora de sua morte. ‘Cheguem um pouco antes prá gente con-versar’ era o que estava na carta dele prá gente. O homem que virava árvore agora ia se esconder num caixão. ‘Dia 26 de dezembro, às 10 da manhã eu me acabo de vez.’ Foi o natal mais cheio de gente de minha vida. Os filhos vieram com seus filhos e mulheres. E os filhos dos filhos trouxeram suas mulheres também. Os vizinhos ficaram

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em volta prá testemunhar o cumprimento da morte anun-ciada. Comentavam ‘Além de mágico, é profeta é?’ ‘Mas santo não era...’ ‘Eu não vejo nada demais. Isso aí é coisa de gente besta. E mais besta são vocês, de virar platéia prá esse homem horrível...’ Depois das festas, uma multidão cercava a casa. Tinha até barraca de refrigerante e cachor-ro-quente. Então no dia primeiro após o natal, meu pai pediu licença prá todos os presentes e foi para o quarto, deitou-se e nunca mais se levantou. Eram exatamente 10 da manhã quando deixou de respirar. Olha, rapazinho, a morte de um pai é coisa que todos um dia vão passar. Mas uma morte dessas, heim, uma morte dessas... Quem pode dizer que é morte? Eu nunca me esqueci disso. Eu guardo a morte de meu pai como uma herança. “

E o velocímetro não havia saído dos 80 por hora duran-te todo esse falatório. Eu quase nem ouvi o que ele procu-rava com tanto zelo e deslumbramento me dizer. Não era prá eu ter vindo. Mas sempre sobra prá mim, justamente pro filho que menos quer o pai. Isso mesmo: eu, que me-nos suporto o mínimo relance da presença do velho, fui eu mesmo que tive que ir. Agora tenho que agüentar as histórias de um homem e seu pai. Nunca nem entrei em cemitério. Nunca, nem quando a mãe morreu. Nunca vi um morto. Não tenho medo ou asco. Simplesmente estou ocupado demais para algo tão inútil como ver uma caixa fechada com um bando de gente chorando em volta. Nem vivos, nem mortos. Uma caixa adornada com lágrimas. Se vendessem uma coisa dessas nas lojas, quem iria com-prar? Quem quer comprar uma caixa de choro e tristeza? Há anos não vejo meu pai, não vejo mortos há séculos e nunca me acabei em lágrimas por nada ou por ninguém. Aquela conversarada ia durar a noite inteira. A vida intei-ra, antes de sair de casa, tive de agüentar os outros falando em volta de mim. Foi prá isso que eu saí de casa, para não

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ouvir mais ninguém que eu não queria. E agora, no meio do nada, eu já de maior, empregado, bem sucedido, nes-sa noite escura demais, de modo algum iria permitir um taxista ficar quilômetros e quilômetros falando o que eu não queria ouvir, o que deixei de ouvir há muito tempo. Passei muito tempo da minha vida com a boca fechada, a boca seca, não podendo dizer o que eu devia dizer. Era um saco onde todo mundo jogava suas coisas dentro. E eu me enchia delas enquanto me esvaziava de mim. Agora tenho as palavras, as palavras certas para as pessoas, todas elas. Isso é que é crescer, virar homem. E ninguém mais vai me encher de suas coisas, de suas vidas horríveis. Eu não quero nada disso prá mim. Fiquem com elas, fiquem com tudo. Quem quer isso? Nem vocês, nem vocês ficam com elas! Por isso precisam de um saco, de um enorme de um saco prá vomitar toda essa porcaria acumulada até outro chegar desprevenido e virar um depósito de lixo. As coisas começaram a ficar mais claras prá mim nessa viagem. Eu começo a entender tudo agora. Se deixarem, as pessoas viram depósitos umas das outras. Ontem você recebia as coisas dos outros. Hoje é você quem passa as suas. Isso é ouvir: é retribuição essa mesma prisão porca que nos aflige. Pois nessa noite eu respondo, eu acabo com isso. Então olhei firme para o taxista e exige que ele se concentrasse na estrada e fosse mais rápido pois eu es-tava pagando caro para ele apenas dirigir e não para me contar histórias.

O taxista me olhou sério, acho que procurando enten-der o que eu falava. Afinal, estávamos juntos em seu car-ro, ele me levando para a solução de meus problemas. E eu já havia dado o dinheiro. E não era pouco. O que mais ele queria? Ele virou a cabeça para a estrada e não acele-rou. Continuou no seu ritmo. Mas havia uma diferença. Algo mudara. O resto da noite foi me mostrando isso. Ele

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passou a olhar somente a estrada e não falou mais comi-go. Pelo menos por um tempo. Em seu rosto e nas mãos no volante ou nos pés nas marchas eu procurava algum sinal que mostrasse o quanto as minhas palavras haviam entrado nele. Nada. Nada. Acreditem. O homem era ape-nas a máquina que me levava junto. Passei a me perder na estrada contando as listras brancas do chão, as placas marcando os quilômetros, a proximidade inevitável com meu pai, vivo ou morto.

E uma freada brusca me fez quase bater com a cabeça no vidro. O que seria dessa vez? Olhei para o taxista e ele agora rindo falou com um sorriso “Pedágio. Pague. Va-mos. Rápido!” Além de todo o dinheiro que eu havia lhe dado, ainda me restavam os pedágios! Um absurdo entre absurdos! Quando chegasse na hospital, eu iria jogar na cara de meu pai tudo o que eu passei. A vida inteira ele disse que eu não servia prá nada, nem prá serviço mili-tar. Que eu não me importava com nada, que fugia das coisas difíceis. Desde pequeno aquela voz em mim, me empurrando para um canto e me deixando lá, esquecido. Mas eu vim, vim prá mostrar que ele estava errado, com-pletamente errado. Eu saí de casa, peguei um avião, perdi o ônibus, paguei essa droga de táxi e vou chegar, com toda certeza, vou chegar em Porto Feliz alguma hora. Po-dem vir pedágios, chuva, um taxista demente – tudo. Eu agüento, eu agüento tudo pelo senhor, meu pai! Ninguém vai dizer que sou ‘fraco’, que desisti, que eu sou assim mesmo! “Estrume, garoto burro!” Eu vou pagar todos os pedágios necessários e guardar as notas, todas as notas. E eu vou mostrar tudo pro senhor quando chegar: “Tome, olha aqui – eu consegui, eu fui capaz, eu paguei tudo, eu consegui! Cadê o inútil, o estrume agora?”

Depois que paguei o pedágio, vi no rosto do taxista que o silêncio passado era perigoso. Essa mania de algumas

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pessoas que eu conheço de prepararem no imenso vazio de si mesmas as piores coisas com os outros, essa mania o taxista também possuía. O silêncio era uma meditação que me deixava perplexo. Não respondia a nenhuma per-gunta, não falava nada pois estava na véspera de me dar um mundo completamente diferente do meu. Por isso, eu sempre me fechava, esperando explodir o silêncio das pessoas caladas, como meu pai. Eu sabia que a explosão viria em minha direção. Era no que eu pensava calado durante noites inteiras. Uns pensavam que era preguiça, outros doença. Mas eu vivia em meu canto trocando o medo pela contemplação das coisas se desfazendo em mi-nha frente.

Umas duas horas depois e o taxista sorriu. O sorriso do taxista era minha certeza do fim do silêncio, um alívio! Logo ele começou a falar: “Você é um rapaz da cidade, não é? Mora em um apartamento, tem emprego fixo, vive com sua mulher. É uma boa vida, não é? Uma boa vida. Deve achar que os outros invejam o que você tem, o que você faz, onde você mora. Quando chega o elevador, se tiver alguém lá dentro, você nem entra. De manhã, você espera atrás da porta o vizinho sair primeiro, para depois ir ao trabalho. De noite, dormindo em sua cama limpinha, descansa feliz de um dia longe dos outros. Mas você está em meu carro agora. Você nem me conhece e as portas estão travadas. A gente junto aqui indo pro meio do nada. Onde está a sua casa? Cadê seu emprego? Longe de tudo, quem te protege agora? Pois eu vou te fazer um favor, eu vou te ajudar a ser homem, meu rapazinho, eu vou te ajudar como meu pai me ajudou. Eu sou o que sou graças a ele, que Deus o tenha. A melhor coisa em minha vida foi ter um pai para me mostrar como as coisas são. Você está perdendo o seu. Então eu vou te ajudar, eu vou ser uma

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coisa boa em sua vida. O rapaz da cidade vai conhecer a noite sem compaixão.”

E acelerou o táxi, saindo da pista principal de asfalto para uma estradinha lateral de terra. Porto Feliz demoraria para chegar. O carro sacudia pelos buracos da estradinha. Éramos a única luz entre a escuridão que se lançava contra nós. As árvores que pendiam sobre o caminho esburacado nos arranhavam até com os vidros do carro fechados. Eu batia com a cabeça no teto, preso a aquele louco que nos arrebentava contra a mata sem saída crescendo em nossa frente. Sem tempo para gritar ou abrir a porta, logo senti que a pista perigosa era uma descida e que a mata ia to-mando conta de tudo. Ao meu lado, o taxista com os olhos fervendo de prazer mantinha a direção em linha reta. E depois de uns vinte minutos eu pude ver para onde a mata nos levava.

“Aqui é a Vila Quinze. Tinha quinze casas da luz ver-melha, uma grudada na outra. Meu pai me trouxe aqui quando era eu pequeno. Disse que ia me ensinar a virar homem. Da primeira vez que vim aqui, uma multidão de homens passeava de um lado para o outro na frente das casas. As mulheres ficavam na porta ou na janela convi-dando para entrar. Cada casa tinha uma cor e uma música que tocava sem parar. Dentro de cada casa havia um bar, um banheiro e dois quartinhos. A gente devia andar pela rua, ver todas as mulheres, escolher uma casa, consumir no bar, conversar com a mulher, ir no banheiro e depois pro quartinho. Tudo muito higiênico e seguro. Após sair do quartinho, pagava e virava homem. E depois ainda de-via voltar todo mês, prá continuar a ser homem. Você en-tendeu, rapazinho?”

Eu olhei sério prá aquele sujeito, olhei com uma ira descontrolada, procurando as palavras para acabar com ele, para dizer em sua cara como ele era um estúpido, um

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mal-caráter, que com meu dinheiro me levava para uma farra de putas enquanto meu pai morria em um hospital. Eu ia dizer que a vida dele era uma merda, que seu pai era um louco de um velho de um bêbado horrível por ter feito isso a um menino. Que pai poderia ter feito pior coisa a um menino que condená-lo a repetir uma história inútil e sem sentido? Eu olhava o taxista e via sua roupa suja, seu sorriso mendigando uma resposta positiva minha, a sua necessidade de partilhar a porcaria de uma noite que já começou errado e vai terminar pior. Então, diante daquele cachorro motorizado, que zanzava o dia inteiro atrás de uns trocados, que fora criado como bicho e praga para os outros, eu hesitei, eu fiquei triste por ele. Quem sabe o taxista não quisesse aliviar minha suposta dor me trazen-do prá essa feira de pobres corpos usados e sem chama? Quem sabe ele estivesse precisando de minha ajuda? Pois eu tinha trabalho, casa e mulher. Ele nada além de mim e do táxi. Como é fácil perceber o sentido dessa loucura, uma viagem de dois desconhecidos decair na zona. Eu abri a porta do carro e deixei me guiar por ele, tentar en-tender o que ele queria me mostrar. Se seu pai fora um monstro, eu seria seu anjo. Já que não adianta de nada ajudar meu pai que morre no hospital, eu posso ser útil para esse aqui mais perto. Há muitas razões, todas, para estar aqui.

A glória de antes da Vila Quinze a chuva e o barro devem ter levado. As casas estavam quase todas fechadas e havia apenas duas com luzes para a rua. A rua mesma era um resto de calçamento. Nenhuma mulher nas janelas e nas portas. Somente os grilos eram a música do lugar. Enquanto percorria com os olhos as ruínas, uma das lâm-padas desligou. A Vila agonizava na sujeira descolorida e sem fumo de seu abandono.

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Quando eu me dirigia ao taxista para consolá-lo e pedir que voltássemos para o asfalto, a única casa com luz acesa abriu sua porta. De lá de dentro veio uma mulher gorda, velha, vestida com sua bata enorme. Parecia que estava grávida há séculos. Assim que nos viu, acendeu um cigar-ro e apoiou-se na porta, como talvez fizesse antigamente e disse:” Vem fazer um baby comigo, garoto burro!”

Fiquei apavorado. A coisa estava viva e falava!!! Aquele único e vasto ponto de gente no entulho de madei-ra e pregos falava! O taxista esbarrou em mim e eu caí no chão vendo o homem sair correndo em direção à gorda, abraçando a gorda e erguendo sem sacrifício a mulher do chão. A bata dela rodando, os braços dela no pescoço do homem. Quanta felicidade! Pobre bicho, diria meu pai! Pobre bicho!

Na mesma hora saíram não sei mais duas gordas enor-mes de trás da mulher de bata. Elas trouxeram uma mesa de bar e cadeiras para a entrada da casa. Ligaram um rádio e a Vila Quinze afugentou um pouco a sua miséria. Eu teria de me sentar com elas, com todas. Eu teria de supor-tar tudo isso. Por meu pai, pelo taxista, por mim! Eu iria mostrar que sou forte, que sou homem, mesmo que não quisesse.

“Essa é a Donanha. Quando vim aqui pela primeira vez com meu pai foi ela quem me recebeu. Dê 10 reais prá ela, rapazinho. Essas duas são suas filhas. Elas trabalham aqui desde que nasceram. Dê 10 reais prá cada uma delas também. Agora estamos todos juntos, somos quase uma família!!!.”

Eu ria, eu tentava rir de tudo aquilo. O taxista estava feliz, meu pai deveria estar morto a essa hora e eu longe de casa e de qualquer lugar possível de ser pensado. As filhas da gorda, tão gordas, velhas e feias quanto a mãe, trazem copos e uma garrafa de pinga sem invólucro. Ser-

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vem os copos e estendem a mão. Mais dinheiro. Como eu pago prá ser feliz!

“Bebe, rapaz, bebe. A noite vai ser longa. Eu quero ver com quem você vai ficar. Eu já escolhi a minha. Você vai sair daqui revigorado, um outro homem, um homem de verdade. Depois da cama, nasce o novo homem.”

As duas filha horríveis me olhavam sem ternura. Da pele delas, suja de terra, escorria um suor gasto enchar-cando a roupa mesma de ontem e reluzindo. Um cheiro pavoroso vinha delas quando abriam a boca ou piscavam. O sorriso de feras contra mim mostrava a baba que pulava de uma boca sem dentes. Elas queriam ser sensuais pas-sando a mão pelo ventre estufado e caído. Elas queriam ser mulheres esperando de mim alguma reação além do terror.

“Qual, rapazinho, qual delas você acha mais linda? Com qual delas você vai ficar? Você precisa escolher bem: a gente não tem a noite toda. A gente precisa continuar a viagem. Depois você volta e pega a outra.”

Frente à minha indecisão, elas começaram a dançar, mostrar porque deveriam ser escolhidas ou não. Atrás de um forró surrado, elas se soltaram no resto da calçada da Vila. Ora sozinhas, ora em par elas se revezavam em mi-nha frente, levantando o pó do chão que era uma agradá-vel ferida para meus olhos. Me puxaram para a roda e eu, entre elas, com elas, rodei todo, solto de mim, indefeso, largado, prostituído com tudo que eu desconhecia. E uma luz de dentro de minha cabeça prá fora de tudo que eu via foi surgindo e acabando com o que havia em volta. Fiquei suspenso entre o vazio da queda e a elipse de um tropeço.

Quando acordei, estava nu em um dos quartinhos. Meus braços estavam arranhados e minhas costas doíam marcadas por mordidas. Em frente de mim umas das filhas da velha, de costas, ia tirando sua bata, deixando entrever

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o enorme corpo cheio de manchas roxas que saltavam da pele cor de barro. Em tempo eu me cobri com o lençol rasgado e sujo e pedi prá ela parar de tirar a roupa. “Você não gosta de mulher? Você é boi-capão, é? Eu ajeito isso, meu garotinho, eu te arrumo de vez!”

Ela me jogou com toda a força de volta para a cama, começou a pular como uma doida em cima de mim. Eu me virava de um lado para outro querendo escapar, e ela pulando. Do outro quarto vinham os sons do taxista e da velha que me anestesiavam. A velha gemia de uma do-ença que não era amor. Em seu prazer ou alucinação, ela puxa o ar prá dentro de si. Esse anti-gemido repercutia contra a garganta, reverberando ossos se quebrando, uma agonia por carregar uma vida assim cansada dela. Não sei se morria ou gozava naquela hora. Mas, após um tempo, eu recobrei minha vida e arremessei prá longe de mim a filha da velha. A gêmea mais feia caiu sentada no chão e me olhou com todas as suas forças e ódio. Veio em minha direção e eu pensei que era meu fim. Ela grudou as mãos em meus cabelos e me puxou para seus seios. Fiquei cego. E enquanto eu era sufocado, ela foi se martirizando em prantos, volta e meia batendo minha cabeça contra suas volumosas carnes. “Me ame, garoto, me ame! Por favor! Um pouco só, eu te peço, um pouco só!” Quando cansou desse exercício, ela me jogou de volta contra a cabeceira da cama e, envergonhada de sua imensa nudez, começou a chorar. Chorava um choro fino, largo, triste, que demo-rava tanto para acabar cada frase, como um choro para os mortos. Eu ali sentado na cama, dentro daquele muquifo caindo aos pedaços, olhava a montanha desabar, ela ca-lando o prazer catarrento e sem fôlego do outro quarto. Só havia a gêmea feia diante de mim. O pai nunca fora capaz de ter pena, compaixão. Tinha o coração bem dentro do peito, escondido, entre músculos e ossos. Quando morria

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alguém, o pai dizia que já foi tarde. Viver era demais para ele. Mas por que então vivia tanto? Por que era uma coisa viva contra todos? De costas prá tudo isso, a rejeitada da noite, dessa e de todas as outras noites, era alguém comi-go, viva ainda, uma resposta para o pai. Peguei o lençol e cobri seu corpaço. Aproveitando o gesto, coloquei mi-nha mão em seu ombro assim quase como um abraço. Eu sabia que ela precisava disso. Desde pequeno um abraço era o que eu mais precisava. Quando alguém me tocava sem querer, eu sentia um alívio que procurava esconder no rosto fechado para o mundo. O pai dizia para fechar a cara como ele e não mostrar nada para ninguém. “ Garo-to burro! Estrume! Se abrindo todo igual pipa! Tira esse sorriso da cara!”

A mulher gorda percebeu que eu estava perto dela e me virou seu rosto redondo, acho que querendo um beijo. O hálito que saía de sua boca conseguiu me atordoar. Ta-teando no escuro, levantei e peguei minhas calças. E, ao me vestir, contava umas notas que dei para ela. A grande mulher parou de chorar e repassava minha conta. Disse que eu era um bom homem e pediu mais dinheiro. Olhei para ela estranhando, mas tirei a carteira do bolso e dei o que ela queria. A gorda ficou mais alegre e pediu ainda mais dinheiro, agora para sua mãe. E foi o que lhe dei sem pensar em outra coisa senão ir o mais longe possível daquela casa. E assim, de nota em nota, eu e ela fomos fi-cando cada vez mais felizes e distantes. Pavimentei, desse modo, com o dinheiro meu caminho de volta para o carro e do carro para o asfalto, tudo tão rápido e fácil que eu deveria ter feito isso logo que cheguei. Mas como a gente só pensa com atraso, acaba por pagar para recuperar o tempo perdido.

De volta ao asfalto, o taxista irradiava felicidade, ora olhando para além da estrada, ora rindo para mim. “E aí

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heim? Eu não te disse? Eu não te disse? Quer coisa me-lhor que isso? Não foi bom? Não foi a melhor coisa de tua vida, heim, rapazinho? Agora você é um homem, um homem de verdade! “

Essa viagem estava ficando muito cara. Eu já devia ter gasto quase dois mil reais. Era preciso refazer minhas con-tas e ver quanto dinheiro me restava. Quando chegasse no hospital, eu mostraria pro pai o quanto gastei. Ele sempre dizia que o dinheiro apresenta o seu esforço, sua aplica-ção. Então, como prova de minha boa vontade com ele, quanto mais eu gastasse, quanto mais gasto comprovado eu tivesse, mais a situação iria ser favorável prá mim. A vida inteira, quando comprava algo prá gente, o pai mos-trava o quanto custava, o quanto ele tinha que trabalhar para comprar aquilo. Se dava uma roupa, resmungava o custo, fazia a contabilidade em nossa cara. Na hora da janta, se ficava comida no prato, lá vinha descompostura sobre o quanto ele lutava pra comprar um saco de feijão. E agora eu aqui com dinheiro vou pagando, vou gastando um dinheirão prá dizer que posso, que sou quem está pa-gando as coisas agora.

Tinha um garoto na minha rua que não parava de me provocar. Aonde eu ia, ele vinha atrás, me cercando, cha-mando prá briga. Minha fama de frouxo se espalhou e eu já nem precisava andar com o garoto nas minhas costas que o pessoal da rua já ria de mim e me xingava. Chega-ram as festas juninas e a brincadeira era me prender. Todos pagavam para eu ficar nas grades ali sozinho. Ninguém na festa era preso, só eu. Quando acabava meu tempo e mal eu dava uns passeios pelas barracas, já vinham o xerife e seus ajudantes mostrando o papelzinho com meu nome, e eu de volta para a cadeia. Era uma brincadeira boa para os outros. Eles pagavam e eu ficava preso.

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Daí eu juntei a contabilidade de meu pai com as brin-cadeiras de meus bons amigos e inventei a minha: me ins-crevi para trabalhar na barraca de espetinhos de churras-co. Trabalhando, não podia ser preso. E, ao fim das festas juninas, com o dinheiro na mão, me aproximei do garoto que me provocava e perguntei quanto ele queria prá me esquecer, prá ficar longe de mim. O garoto me olhou meio desconfiado, riu, pensou e respondeu “Tu tem quanto aí?” Quase que meu plano virou cinza. Daí eu lembrei do pai e da prisão da festa e olhei firme de volta para o garoto e fui ameaçando, chamando o cara de estrume e pergun-tando se a gente ia fazer negócio ou não. Disse eu em voz mais alta que a dele que eu iria pagar para ele apanhar de mim, apanhar de mim na frente dos outros, uma vez só e pronto. Ele apenas devia fingir que apanha, e eu que bato. Depois da escola. E amanhã, amanhã. E depois eu dava o dinheiro, tudo o que eu tinha. Se ele quisesse amanhã, depois da escola, a gente resolvia tudo! Falei isso, dei as costas pro garoto e fui embora. Eu começava ali minha carreira de negociante, profissão que sustenta a mim e a minha família hoje. Descobri o valor do dinheiro e como é bom pagar e se ver livre das pessoas. Era o que meu pai me mostrava em cada jantar: um acerto de contas que não esconde nada.

“Pedágio, garoto, pedágio. Passa o dinheiro aí!” O ta-xista sorrindo me olhava estendendo a mão urgente. Eu passava o dinheiro com a mesma pressa, retornado ao va-zio da estrada para Porto Feliz. As mãozinhas dele dige-riam cada moeda e nota que passava para o funcionário em seu guichê. Nunca tinha visto alguém tão feliz com dinheiro a não ser meu pai. A alegria de tirar o dinheiro de mim aquecia aquelas mãozinhas. O taxista era mais amigo do funcionário do pedágio que de seu passageiro. Juntos, eles tinham feito algo engraçado contra mim.

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Eu podia até rir dessa felicidade, mas não parava de pensar. Essa viagem era feita de constantes: ele dirigindo na mesma velocidade e eu pagando pedágios. Em breve eu estaria no hospital e tudo chegaria ao fim. Morto ou vivo, o pai ia me dando um prejuízo em retribuição aos seus anos de contabilidade caseira. Agora era eu quem gastava e não ele. Agora era eu quem poderia reclamar e fazer contas e mostrar tudo isso na cara dele. Quem tem o dinheiro, quem gastou, esse pode falar, falar e falar. A voz do bolso, da carteira que se abre, é indiscutível: fecha qualquer boca, qualquer situação. Quem tem o dinhei-ro põe os outros em seu lugar: no canto escuro da sala. “Come, garoto, estrume: come toda essa comida! Eu tô pagando!”

Uma meia hora depois do pedágio, o taxista deu uma guinada para a direita. Paramos em um posto largado no meio da escuridão da noite. “Vamos abastecer e jantar, garoto. Saco vazio não pára em pé. Hoje a conta é tua. Eu pago na volta.” Volta? Quem disse que eu iria voltar com aquele louco!!? Por acaso eu estava preso a ele? Por acaso ele era meu pai prá ficar me levando de um lado para ou-tro, sem perguntar aonde eu queria ir? E agora mais esse jantar a essa hora da noite? De onde ele pensa que eu tiro dinheiro? As coisas não são assim. Durante o jantar me programei para mostrar minhas insatisfações. Só faltava eu pagar a gasolina! Vou ter que pagar o jantar e a gasoli-na? E jantar na mesma mesa com ele?!

Enquanto o carro era abastecido, entramos no que a placa afirmava ser um restaurante. Não havia ninguém além de nós. Doze mesinhas de madeira com toalhinhas cheias de seculares restos de comidas enfeitavam o salão-zinho mal iluminado. Você poderia comer qualquer coisa sem ver o que havia no prato. Era uma brincadeira muito estranha e perigosa fazer refeições ali. Sentei na cadeira

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e quase fui ao chão. Tive de trocar de cadeira umas três vezes. A mesa estava bêbada, cambaleando de tanta pinga e comida estragada que derramaram nela. O cardápio fora escrito em português arcaico. Tinha comida por quilo e a la carte. Se eu pedisse a la carte ia demorar. No quilo, bem... eu precisava ver...ou não ver...

Demorou prá alguém vir nos atender. Surgiu no escuro oposto onde estávamos um velho com roupas mais velhas ainda, vestido com os mesmos panos e cores das toalhi-nhas da mesa, sorrindo feliz por nossa coragem. “Valdo, grande Valdo: traz o de sempre!” foi o que o taxista disse saudando seu amigo. O garçom e dono e cozinheiro do restaurante ficou em pé esperando o meu pedido. Eu disse que depois ia me servir. O velho não se moveu. Em pé, diante de mim, segurava a caneta e o bloquinho de ano-tações. O taxista se levantou e foi se servir no quilo. Eu, me vendo só com aquele monumento ao fracasso, quis amenizar a surdez do ambiente, e soletrava a mesma fra-se já dita e ele nada. O taxista voltou contente com sua mistura de folhas, batatas, grãos, caldos e carnes. Havia tanta comida no prato dele que pensei não haver sobrado coisa alguma prá mim, o que não teria sido a pior coisa do mundo. O taxista começou a remexer com o garfo e a faca as formas sólidas e líquidas que estavam em seu prato, formando uma pasta marrom que contrariava leis físicas e sociais. O feijão requentado era fundido com a alface da semana passada, e o resto do peixe já comido com bolo-tas de carne estragadas, isso tudo amassado com batatas e caldos de várias cores. A mistura repugnante ia criando consistência e vida e, ao invés de se derramar pelos can-tos do prato, era adelgaçada para cima, erigida como uma montanha de porcarias. Ao fim dessa obra gastrodoentia, o taxista me olhou, e, percebendo meu interesse em acom-panhar, aterrorizado, essa escultura, perguntou: “Quer?”

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Antes que ele me perguntasse de novo, me levantei cor-rendo, esbarrando no garçom e fui para o banheiro.

O banheiro era mais sujo e fedorento que a casinha de luzes que ficou prá trás, mais sujo e fedorento que a boca das gêmeas juntas com a mãe delas. Montinhos de merda no chão rivalizam com o que havia no prato do taxista. E tinha merda nos espelhos quebrados, no teto ra-chado, nas paredes nas portas, nas maçanetas – em tudo eu via a mistura repugnante de carne e feridas rastejando e deixando sua auréola marrom. Sem pensar, entrei em um dos banheiros e tranquei a porta. Fechei os olhos e desejei estar o mais longe possível daquele lugar. Eu tinha casa, emprego, esposa. Eu não precisava provar mais nada para ninguém. Se eu contasse tudo o estava passando, iam achar que era invenção minha, desculpa para não fazer o que devia ser feito. A vida inteira eu ouvi: “Você tem que fazer isso. Você tem que fazer aquilo” e nunca segui. Até agora havia conseguido evitar tudo que me era ordenado, imposto. Se alguém quisesse algo de mim que não me mandasse, que falasse direito comigo. Tudo lembra o pai, com sua voz e única frase: “Faz isso, eu tô mandando! Não preciso repetir! Eu sou teu pai! Não discuta comigo! Garoto burro, estrume: tenho que repetir sempre!” Então eu me calava e discutia com ele dentro de minha cabeça. Eu podia falar com ele dentro de mim. Minha voz, eu ou-via minha voz. Ele falava as mesmas coisas e eu podia discutir com ele, mostrar um outro mundo além de suas ordens. Ele me chamava sempre aos gritos e dizia ‘faça isso’ ou ‘não faça aquilo’ ou ‘você está errado’. Nunca eu fazia nada, e quando fazia, ele me recriminava. Eu es-tava sempre fazendo coisas que não prestavam para ele. Mas na minha cabeça tudo era diferente. Havia uma outra casa, uma outra família, outras pessoas além do pai. E elas olhavam para mim, me tocavam, e eu nelas. Essas pessoas

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gostavam do que eu fazia, riam prá mim e me ouviam. Eu podia falar com elas e prestar atenção em suas novas palavras. Não eram só ordens e humilhantes reclamações. Afinal, eu tinha apenas 9, 10 anos. Eu precisava errar um pouco, eu precisava acertar mais por mim mesmo. Daí eu poderia estar em outro lugar, diferente dessa fossa, desse banheiro imundo de um restaurante de beira de estrada com dois loucos.

Era impossível parar de falar. Todas aquelas coisas eco-avam em minha cabeça. Há anos não me lembrava delas. Há anos não parava com minha vida para ficar discutindo com meu pai dentro de mim. Pensei que tudo isso tinha morrido, que havia ido embora prá sempre. O telegrama em meu bolso ligou minha mente ao mundo outro que se abria quando a voz do pai me ameaçava.

O taxista bateu na porta e me chamou. Eu ergui a ca-beça e olhei em minha frente. A porta estava cheia de di-zeres e mensagens. Me distraí procurando entender o que estava escrito. E, no meio de tanta bobagem e sexo, li com todas as letras o nome de meu pai em um recado típico dele: “Seja homem, seja forte! Ribeiro Severo, 1980.”

Meu pai esteve no mesmo lugar que eu há 20 e poucos anos! Vasculhei o resto da porta e fui encontrando mais registros da presença dele. O posto e o restaurante eram sua parada obrigatória. Contei na porta e nas paredes mais de 16 datas e mensagens assinadas por meu pai. De algum modo ou outro ele quis deixar muito claro que esteve ali.

Confuso, sai do banheiro e o garçom me esperava ain-da. Perguntei se conhecia um Ribeiro Severo. O taxista cuspiu a bebida que engolia rápido. Eles se entreolharam e começaram a se dirigir rispidamente para mim. “Por que? Você é parente dele?” “O que você quer, garoto da cidade, o que você quer?” “Alguém veio contigo? Tu tá sozinho? “ Eu, acuado, negava tudo. Podia negar até meu

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nome naquela situação. Quando viram minha aflição, co-meçaram a rir.

“Ribeiro Severo não é ninguém não, garoto. Todos por essas bandas usam esse nome para marcar sua força de homem antes de ir para a Vila Quinze.”, disse o taxista. “Mas teve um Ribeiro Severo sim, o que deu origem a tudo isso. Faz muito tempo, muito. E a história dele é o reverso dessa macheza toda. Quer pedir agora?”, insistiu o garçom.

Eu pedi um filé com fritas e o resto da história. O gar-çom foi na bancada da comida por quilo e pegou o filé e as batatas. A diferença entre o a la carte e por quilo é que o garçom pega a comida em vez de você e o preço é mais caro. Procurando não me fazer pensar nessa aviltante si-tuação, ele emendou o resto da história de Ribeiro Severo. “Não sei muito. Sei apenas que o Ribeiro Severo mora em Porto Feliz há muito anos. Aposentou-se como secretário de escola e a vida inteira não foi nada mais que um ho-mem sentado em uma mesa. Metia medo nos alunos e nos professores apenas prá não trabalhar. De tanto fazer essa cara de ameaça, enrugou cedo e perdeu os cabelos. Desde jovem era dado a assustar, enraivecer e fazer o mal. Dizia que era prá ser homem como o pai dele. Por isso tinha que ser desse jeito e não outro. Mas o que o deixou célebre foram suas peripécias sexuais. Não havia criatura viva no mundo que ele não bulisse e se satisfizesse. Não podia ver um toca que já se infiltrava e com pressa a trocava por outra. Era porca, porco, égua, galinha, macho e fêmea, homem e mulher. Não voltava prá casa sem se esvaziar. Era terrível e sem freios. Seu lugar preferido era a Vila Quinze. A velha Donanha que o diga. Quando Ribeiro Severo chegava, as moças se escondiam. Ninguém para-va em pé. E depois de uma bebidinha ninguém mesmo, nem os fregueses. A fúria do homem era tão grande que o

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negócio de Donanha começou a decair. Mas como todos temiam a devastação de cara enrugada, ninguém tomava partido. Donanha lutou anos contra a inevitável queda da Vila Quinze. Quando tudo estava quase a perder, ela teve um idéia: engravidar de Ribeiro Severo. Com as filhas gê-meas que vieram, ele poderia amansar o monstro. Foi o que Donanha fez, mas não foi o que aconteceu. Ribeiro Severo ficou mais irascível e excitado com as duas filhas. Tanto que se arremeteu contra os dois bebês. No meio de seu caminho, entrou o povo contra ele e finalmente expulsaram o monstro de lá. Mas o estrago estava feito. Ninguém mais queria saber daquele lugar. E Ribeiro Se-vero escapou nu pelo mato, engolido pela escuridão sem testemunha desses anos todos. Com a ausência do dono, o nome dele virou demonstração de brabeza e virilidade entre os caminhoneiros e viajantes sem destino. Uns até acham que ele nunca existiu. Mas ele sempre passava por aqui e comia dessa comida. “

Ao fim de tudo paguei as duas refeições e entrei no carro. O taxista sorria com a conta paga da refeição e da gasolina. Eu só queria chegar e acabar com tudo. O pai já morrera prá mim naquela mesa de restaurante. Haveria mais infelizes por aí como eu? O cara enfia tudo fundo, dentro, e goza e vai embora sem se limpar. Daí pega ou-tra e pronto: tudo de novo. E sempre com a mesma cara amarrada. Eu queria saber o que o racha por dentro, o que se esconde nessa farsa. Mentira, mentira, mentira! A minha vida toda fugindo de um bosta. E eu me escon-dendo nos cantos com medo de um de merda, e eu me desdobrando em fuga dentro mim, fuga de nada, de coisa de nenhuma. Só a cara amarrada dele e a voz e o medo em tudo. Em tudo que eu pegava, em tudo que eu deixa-va escapar vinha a voz enrugada e pigarrenta me dizendo ‘não’, ‘não’. Logo de um cara desse que nunca fez nada

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que prestasse, que tinha um emprego de merda e era a merda de um empregado, pai, amante, e que vivia por aí espalhando a bosta do estrume de sua vida em todos, em mim. Enfiava o membro em tudo que é lugar, espalhando sua doença triste de solitária tristeza que não cabe em si e ainda queria respeito, atenção. Por isso tem voz, rosto e membro. Mas o medo se acabou e eu virei um gigante. Eu vou dizer tudo. Não vou mais parar de falar até dizer tudo em sua cara. Ele na cama do hospital vai ter que me ouvir. Sempre tive medo de falar o que eu pensava. Achava que iria apanhar ou que ele me mandaria calar a boca. Mas agora que sei tudo, eu posso dizer tudo, pos-so quebrar seu coração, posso mexer com ele por intei-ro, posso matá-lo com uma só palavra: estrume, estrume, estrume!!! Acabou-se o canto escuro e imundo da casa! Acabou-se a gritaria dentro de mim! O meu mundo é este, o teu, aquele que foi afugentado por ti, pai de merda! E é esse novo mundo que eu vou jogar em tua cara como um travesseiro de mil quilos e fechar tua boca para sempre, velho maluco!!!

Em meio a esse furor mental, vi se aproximando mais um pedágio. Eu ia tirando o dinheiro do bolso quando o taxista falou que eu já pagara muito e que agora era a sua vez de pagar. “Deixa que eu pago, rapazinho!” Acho que ele ouviu o eu que dizia dentro de mim. Passamos pela barreira e ninguém nos parou. Depois ele falou rindo:” Esse tá fechado. Não precisava pagar!” E coçava as mão-zinhas loucas por dinheiro. Muito engraçado! Muito mes-mo! Vai rindo, miserável, vai se acabando nessa bosta de banco de táxi. A tua raça e a de meu pai vão se acabar no estrume da merda da vida de vocês! Eu não me importo, eu estou pronto prá tudo, ah eu estou! O meu futuro pulsa em minha mão!

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O fim da estrada foi se ligando a umas casinhas bran-cas enfileiradas. Já estávamos em Porto Feliz. No cla-ro-escuro de bem de manhãzinha, a noite desfazia-se na luta entre os sons dos cães e dos pássaros contra a es-curidão que deixava os paralelepípedos das ruas. E eu ia lembrando sem querer de tudo, de minhas andanças por essas ruas, da praça central, do clube da praça, do cine-ma, da lanchonete, de todos os lugares que eu passava e não podia entrar por falta de dinheiro. Agora estava eu ali dentro do táxi rodando sem saber onde era o hospital, revendo tudo. Como eu quis ir embora daquela cidade e consegui! Passamos pela rua onde morei. Desde pequeno aquilo era provisório. A gente vivia mudando de casa em Porto Feliz. Era um modo de refazer a vida, de nunca estar em parte alguma, ser estrangeiro onde se vive. Casa nova, novos amigos, novo começo, tudo de novo. O pai dizia que assim era bom, que a gente fica forte. Mas depois eu soube que era por economia e por desentendimento. Quando ia vencendo o contrato do aluguel, o pai nego-ciava outra casa. Ele gosta de pechinchar. A gente mesmo fazia a mudança. Quando ia vencendo o contrato do alu-guel, o pai brigava com a vizinhança. A gente se cansava de ficar envergonhado e fazia a mudança também.

O táxi em sua perdição ia reconstruindo a minha eterna viagem dentro de Porto Feliz. Eu, tomado pelo passado diante de meus olhos, deixei o taxista ir conduzindo com seu sono o caminho das pedras. “Siga as pedras!” – pa-rece que eu falei isso alguma hora. E quando as pedras acabaram é que eu estava longe daquela prisão em forma de cidade.

“O garoto não sabe prá onde vai? Eu já procurei em tudo quanto é lugar o hospital. Acho que ninguém fica doente aqui. Vamos embora.”

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Imediatamente eu falei o nome da rua e as referências. Chegamos no hospital e eu fui pagar a viagem. Essa noite não vai entrar em minha vida, em minha memória. Pagan-do, tudo acaba. Depois que eu contar o que houve, eu vou esquecer o que aconteceu. Eu quero esquecer, por isso eu conto, por isso eu pago, prá tirar isso de mim, prá que toda essa desgraça fique incomodando os outros, prá mostrar ao pai que, apesar de tudo, eu consegui. Depois de pagar o acertado, o taxista ainda queria mais, dizendo que uma viagem dessas não se faz sempre, que havia me ajudado e muito, que tinha a volta ainda. Dei mais 200 só para me livrar daquela figura que havia me atormentado uma noite inteira de minha vida. Como em cada ano tem 365 noites e são poucas ou raras delas que a gente perde atrás do pai que morre no hospital, achei que, quanto maior o gasto, mais distante ficaria de uma nova noite como essas.

“Olhe, garoto: Eu vou ficar por aí fazendo umas corri-das. Se der a gente se encontra, e daí eu dou um desconto na volta.” Depois de ter me enfernizado a vida, me explo-rado, ter feito de mim o que queria, agora ele acha que eu vou passar por isso tudo de novo? Por causa da necessi-dade, eu suportei tudo aquilo como também suportei meu pai. Mas eu sempre soube que isso era provisório, igual Porto Feliz. E subindo a escadaria do hospital, e procuran-do o leito em que meu pai estava, fui tendo a certeza que sempre fiz a coisa certa, que me rebaixei quando precisa-va e que faria isso de novo toda a vez que fosse necessário para me livrar do que havia me importunado. A vida toda sendo humilhado me fez forte, decidido e confiante: eu podia conviver com a adversidade, com essa carga sobre mim. Podem gritar, puxar meu braço, pegar minha car-teira, rir de mim, pois eu não sou ninguém, ninguém de vocês. Tudo isso é provisório e eu vou rir disso um dia. Pelos corredores cheios de quartos, em cada quarto gemia

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um homem pior, e eu avançando sobre todos, deixando apenas meu rastro sem adeus.

E, me fortalecendo a cada passo, fui sentindo algo den-tro de mim. O coração ia disparando frente ao reencontro com meu mal. Lá no fundo do corredor do terceiro andar pude perceber uma luz que se projetava forte na medida em que eu me aproximava do quarto no qual o pai estava. No meio dessa luz, a fumaça e o pigarro dele, a marca de sua presença horrível fumando. Eu carregava as notas de gastos da viagem, a passagem de avião, recibos do res-taurante, do posto de gasolina e do táxi. Esse era o meu presente ao enfermo que trazia comigo.

A porta entreaberta do quarto deixava ver a figura ma-gra e diminuta de meu pai. Parei. Ele cabia em meus bra-ços, em meu colo. Em meio à fumaça e à claridade que vinham da manhã raiando, ele era pequenino como um bebê. Trouxe meus braços contra meu corpo como se em-balasse uma criança. Olhei para meu peito e depois voltei os olhos para o pai. E tenho certeza de que ele me pergun-tava em forma de ameaça: “Por que você veio, heim ga-roto, garoto burro?!!! Estrume!!! Por que você veio?!!!”

Meus braços se soltaram, eu fiquei ali em pé na entrada do quarto parado, sem voz, sem saber o que fazer e para onde ir. Eu que viajei tanto, estava sem lugar algum para ficar. Uma enfermeira veio por trás e me tirou da porta. Outra e mais outra enfermeira foram entrando e um médi-co. Puxaram a maca em que meu pai estava para fora do quarto e a empurraram com certa pressa pelo canto oposto do corredor onde eu estatelado a tudo observava. Encos-tado no canto da parede, vi meu pai ser afastado de mim e toda a fumaça e luz se desmancharem.

A última palavra foi a dele? Ele mais uma vez me dei-xou remoendo em mim uma saída? Com meus bolsos cheios de notas e recibos fiquei ali falando comigo. Não,

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isso não iria ficar assim. Eu vim, pai, eu estou aqui! O cheiro ruim da carne velha se desfazendo não vai mais me impedir de fazer o que eu tenho de fazer. Olhem vocês todos: eu vim e trouxe as notas, tudo que gastei! Eu fui capaz de chegar aqui e ninguém, pai, ninguém pode dizer o contrário! Contra mim não há nada nem ninguém capaz de me censurar, de me enfiar em um canto contra minha vontade! Eu estou aqui, pai, como o senhor, como todos esses aqui nesse hospital! Isso o senhor não pode negar ou desprezar ! Eu saí de casa, saí da bosta de Porto Feliz, me formei, arranjei um trabalho decente, tenho uma família de verdade e não estou morrendo! O senhor, pai, é quem está morrendo de tudo que saiu de sua boca, de tudo que não quis ouvir, de tudo que não encontrou tempo para di-zer algo de agradável, puro e bom. O senhor ficou doente de mim, pai, e vai morrer disso agora! O senhor me ex-pulsou tanto de sua vida que agora nem mais vida tem! E a sua doença é a minha cura! Eu nunca vi um morto, eu nunca fui em cemitério. Eu não tenho nada para lembrar porque não deixei as pessoas largadas em cantos escuros chorando como as suas mulheres, como os seus homens.Com sua morte, pai, o mundo perde o medo!

Entregue a esses pensamentos, gemendo, fui andando por entre os andares do hospital. Aquela era minha última oportunidade acho de falar com meu pai. Mas estava tão preso a mim, tão próximo de mim para me libertar, que a doença de meu pai não era a coisa mais importante na-quele momento. Chegando ao andar térreo e saindo pela porta principal, o sol explodiu com toda a força em meu rosto que tive de me sentar na escadaria do hospital. Era uma surra de luz que irradiou por todo o meu corpo a dor nos olhos. A dor era enorme, constante, e eu não podia ver nem chorar. Aquilo me expulsava dali, me expulsava inteiro de dentro de mim. Eu faria tudo para acabar com

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a dor, para me ver livre de tudo. Pagaria o que fosse pos-sível. Imóvel e acuado pelo sol, eu abracei meu estômago e me tornei uma pedra sentada. Quem passasse por mim de modo algum pensaria que eu era uma pessoa. Morto como uma pedra, eu fui cozido devagarinho até o sol das duas da tarde.

La pelas duas ouvi uma voz familiar em minha fren-te, rindo e contando o dinheiro que jogaram em volta de mim. O taxista me pegou em seus braços, me colocou no carro e se dirigiu para um hotelzinho. Lá me deram banho e comida. Depois o taxista me carregou de novo para o carro e retornamos para a Capital e para o aeroporto. A viagem foi rápida e tranqüila. Passamos pelo restaurante da noite anterior e a velocidade do carro deixou tudo para trás. Tentei ver a Vila Quinze, mas a mata e o dia escon-deram todo e qualquer vestígio.

Chegamos no aeroporto, paguei o taxista que cordial se despediu sorrindo, desejando-me felicidades e feliz regresso. Na chegada, minha mulher me esperava impa-ciente. Foi perguntando sobre a viagem, sobre meu pai e eu descia a escada-rolante do aeroporto sem dizer uma só palavra. Eu achava que a vida voltava ao normal de cada dia.

Uma semana depois e fui chamado para reunião so-bre o testamento. O que vocês querem que eu faça, heim? Não vou aceitar herança alguma! De jeito nenhum! Vocês não entenderam o que eu disse? Você não ouviram nada do que eu falei? Depois de tudo, a vitória é dele? Um homem que ficou a vida inteira acabando comigo, me ti-rando tudo o que eu podia ter, desfazendo-se de mim e agora tudo fica bem com esses terrenos, bens e tudo mais? É o que ele me dá em troca como prêmio pela miséria que passei? Vocês acham que agora que ele morreu eu quero

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receber isso? Eu queria que ele em vida viesse aqui e fa-lasse comigo e dissesse algo diferente de “estrume, garoto de merda, nunca vai ser alguém na vida” e tudo o que vo-cês já conhecem. Eu me recuso, ouviram? Eu recuso tudo que meu pai deixou prá mim! Eu recuso ele mesmo, meu pai. Eu posso fazer isso, eu faço isso sem hesitação. Não me tragam nada dele, nada disso é meu! A vida inteira eu podia participar disso, não agora. Eu fiquei esperando por ele sempre, quando ele não voltava para casa e ia para a Vila Quinze. Eu fiquei esperando até que eu mesmo saí de casa. E agora ele vem atrás de mim, agora quando não preciso? Peguem esses papéis, esses recibos e levem pro cemitério! Eu tenho os bolsos cheios de contas prá pagar, me acreditem. Peguem todos esses papéis de merda e le-vem prá bosta do cemitério!

Tenho certeza que ele planejou tudo isso, que ficou juntando as coisas que nunca me deu para agora me mos-trar quem está no comando:” Olha, garoto, estrume, olha o que fiz prá você. Tá me entendendo, tá me entendendo? Eu juntei isso tudo por sua causa. Olha o que você me fez fazer! Não era isso o que você queria, heim, resmungan-do pelos cantos da casa? Não era isso que você me pedia com seu olhar contra mim? Olha aqui, garoto: toma tudo isso, tudo isso é teu, toma, eu tô mandando! Toma tudo o que você sempre quis! Agora pega tudo e me esquece, fica longe de mim! Pega essas coisas e vai embora, como sempre! Garoto mal agradecido, garoto ruim! Pega isso tudo e sai daqui! Não é o que você pensava me olhando desse jeito? Pronto, você conseguiu, conseguiu tudo mes-mo! Chega de ficar precisando de mim! Fique com tudo isso e me deixe em paz, viu, me deixe em paz, ouviu ?!!!”

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Pedido de desculpas

Foi ele mesmo quem me contou tudo. Seis meses, seis meses naquela mata! Todo esse tempo lá no acampamento sozinho com o maquinário. Quando cheguei, achei que ia encontrar tudo largado. Nenhum dos vigias de antes agüentou mais que uma ou duas semanas. Imagine ficar ali sentado no meio do nada, dia e noite, durante a estação das chuvas? E ainda ter muito o que dizer...

Era o que eu via em seu rosto. Ao se deparar comi-go, olhou com tanta tristeza em minha direção que tive pena do miserável. As roupas encharcadas, a barba es-pessa e imunda, a fraqueza espalhada em seu corpo. No chão, lona da barraca, panelas, tambores de água vazios, a grama alta tomando conta do lugar. A mata avançava por cima do esforço nulo do vigia. E ele se ergueu do chão onde estava e veio arrastando seu abandono até mim. A boca seca, o rosto podre, os dedos tremendo. Enquanto se arrastava, fui entendendo o que aquele homem passou neste fim de mundo. O que ele me contasse, eu já saberia.

Enquanto ele vinha em minha direção, vi tudo em seus olhos, vi tudo que os olhos dele viram – era impossível não ver. Cada homem deve dizer o que tem de dizer. Nada vai calar o que ele viveu.

Seis meses atrás e o acampamento era uma cidade em movimento. A construção de estradas na região atraía uma

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massa de trabalhadores anônimos de vários lugares. Sob a seca de agosto, o pó erguia-se do chão eliminando rostos e vozes. Os ruídos das escavadeiras, das caçambas com ter-ra, das furadeiras e dos tratores uniam-se às pás, enxadas e serras-elétricas dos homens. Era o último dia da emprei-tada. Todos iriam embora ao fim da tarde. Nos próximos meses de intensas chuvas, o trabalho seria apenas evitar que as máquinas fossem roubadas.

Ao fim da tarde, os homens entravam se amontoando nos caminhões. As máquinas eram estacionadas forman-do um círculo. O sol desfazia sua força, e o trabalho da-quele ano chegava ao fim.

Então, lá de longe, veio se aproximando a figura equi-vocada do vigia. Aos olhos de todos, surgia da mata um rapaz de jeans, camisa aberta prá fora da calça e sem ba-gagem. Não eram férias o que o aguardava. Os homens riam silenciosos. O vigia era fraco demais para a tarefa. Ele não iria suportar nem dois dias. Era o que todos pen-savam. Mas onde a essa hora encontrar um louco para a inútil função de cuidar daquelas monstruosas e estúpidas montanhas de ferro e engrenagem?

A necessidade do vigia era uma piada entre nós, uma vingança do trabalho terrível dos meses de seca, o ódio comum a tudo aquilo que nos oprime, às ferramentas, à empresa, à miséria do salário, ao trabalho que não é nos-so. Isso: contratar um homem para cuidar do maquinário sem diesel, largado no meio do nada.

Alheio às nossas motivações, ele vinha em seu pas-so confiante. Os caminhões passavam em frente dele, e os homens se despediam mostrando os poucos dentes da boca envoltos no corpo que o sol consumiu. Todos os olhos depositavam no vigia a alegria do último dia. Ele era a recompensa pela miserável vida de derrubar árvores, capinar, abrir caminhos na mata, ver as forças se acaba-

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rem sob o sol novo de cada manhã. Durante a viagem de volta para casa, eles vão comentar sobre o vigia, falar de sua primeira noite, do pavor que a mata traz em seu abra-ço, o choro contido, os sons terríveis vindo da escuridão, as visões do mundo em movimento, o coração disparando e o desespero sem fuga que vai tomar conta de tudo o que ele vê ou pensa enxergar.

Mas, quando os olhares dos homens e do vigia se cru-zaram, a dúvida partiu conosco. O vigia caminhava firme, pisando o chão sem a menor demonstração de medo ou fraqueza. Ele sabia o que estava fazendo. Viera para ficar. Nada iria mudar sua decisão. O homem era outra coisa que a gente esperava. O nosso riso ficou mudo, e a presen-ça dele começava a se espalhar pelo acampamento até que o último carregamento de homens deixou a mata.

O pôr-do-sol enterrou todos os caminhos. As inúmeras cores da vida desfaziam-se na unanimidade do azul-escu-ridão. O mundo se reduzia à luz da lamparina e o vigia, imóvel, sentou-se em seu banquinho, e olhava o começo de tudo, a mudança contínua dos céus e da terra bem em sua frente. Tudo era maior que ele. O acampamento se encolhia dentro da mata que redobrava, ao derredor do vigia, a expansão noturna do horizonte. Assim, em seu banquinho, ele digeria a indiferente posse das coisas que a noite cumpria sem pausa. Levasse o tempo que levasse, o domínio do que existia havia já passado de mãos.

Ele me disse que a pior noite foi a primeira. O que veio depois apenas tornou mais forte o que acontecera. Quan-do o vi em trapos, meses depois, então o vigia era apenas a lenta acumulação do que pouco a pouco se sucedeu. A luta com tudo aquilo não o destruíra. Os miseráveis trapos eram sua vitória.

O nome do vigia era Saturnino. Sem pai e mãe desde cedo, ele era dado a querer encontrar suas origens. Não se

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juntou a mulher alguma para não gerar filhos sem passa-do. Achava que tudo tinha uma causa e, como não possuía família, seu era o medo que alguma coisa desconhecida se revelasse em quem viesse dele. Em noites nos bares, contava histórias sobre si, sempre com variações de cri-mes cometidos por ele ou por algum dos seus. Sentia um sofrimento insuportável por ter acabado com a vida de alguém, mas não sabia o nome da vítima nem quando se deu o fato. Sofria muito por um filho que uma mulher sua levou para longe dele porque os pais dela assim determi-naram sem, contudo, saber dizer o nome ou endereço de nenhuma das figuras dessas tramas. Em seus sonhos que contava estava sempre fugindo de um grupo de soldados armados que o perseguiam sem cessar aonde quer que ele fosse. Todos da cidade já sabiam das histórias de Satur-nino. Eram as mesmas histórias que, com novos detalhes, iam cada vez mais se alongando e ficando precisas. Satur-nino contava a partida do filho, o olhar do morto suplican-do misericórdia, a passagem dos soldados enquanto ele se escondia atrás de uma pilastra.

Uma vez uns jovens que ouviam Saturnino resolve-ram acabar com a interminável falação. Saíram de car-ro com ele por todas as ruas da cidade até que Saturnino encontrasse a sua casa. Ele ia no banco de passageiro em meio às risadas de todos. Rodaram a noite inteira, passa-ram por todos as casas e nada. Repetiram isso durante um mês. Vasculharam do centro à periferia. Algumas vezes Saturnino parecia ter encontrado seu lar, seus pais, sua mulher, seu filho, o homem morto, os soldados. Então ele sorria dizendo ‘ É por aqui, é por aqui! Devagar, devagar! ‘ E a rua ia ficando para trás, e ele se entristecia, cercado pelo assombro dos entusiastas bêbados. Mas, logo à fren-te, uma nova rua tão igual à primeira, e ele renovava sua esperança: ‘ Agora é aqui! Devagar, devagar, por favor!’

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Ao fim do mês, a brincadeira perdeu a graça e os jovens espancaram Saturnino, deixando-o quase morto em um terreno baldio.

Saturnino sumiu. Só andava de noite, escondendo-se, entregue às suas visões, conversando com elas, lutando contra a vontade de matar um inocente, o desespero pelo filho que se foi, fugindo de homens armados que o procu-ram. A mulher, onde andará a mulher?

E em uma rua qualquer, de uma casa qualquer saiu Adeja. Saturnino viu a mulher pela primeira vez, mas sa-bia que ela já existia muito antes, dentro de si. O rosto, o mesmo que buscava. Ele falou tanto dela pelos bares, pelas ruas, e agora estava diante de seu amada. Saturnino ficou atrás de uma árvore pensando no que fazer, qual o próximo passo. A vida toda esperara Adeja, e ela bem ali, a mulher de seu filho, enfim a casa.

Saturnino começou a vigiar Adeja. De trás de uma ár-vore observava suas chegadas e partidas, a vida daquele lugar. Não bastavam os dias. As noites com Adeja eram melhores. Ele podia se aproximar da janela e ver mais, ver Adeja completa, a sua mulher, ela conversando ao telefo-ne, andando da sala para o quarto, sumindo e retornando entre as dependências da casa, Adeja indo dormir e Satur-nino na espera que ela lhe abrisse a porta.

Foi quando, após uns dias, chegaram carros da polícia procurando Saturnino. Ao ouvir as batidas de portas dos carros, ele virou-se e viu os homens de uniforme vindo em sua direção. Imediatamente, Saturnino correu e pulou cercas e muros sem parar até que , ao fim da tarde de al-gum dia depois, apareceu no acampamento. Quem pode-ria negar que ele era o homem certo para aquele trabalho?

“A primeira noite, olha, foi a pior de minha vida. Quem me visse ali sentado, os olhos na escuridão, as mãos des-cansando nas pernas, eu assim a noite inteira – ninguém

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iria dar nada por mim. Eu era todo ódio, uma raiva tre-menda me sacudindo tudo. Eu me esforçava para não de-sabar, para não virar pedaços. As minhas mãos, eu tinha que segurar minhas mãos. Eu queria acabar comigo, me bater, me repuxar, viu, tirar tudo de mim, me espancar até virar um monte de coisas no chão. Não agüentava mais aquilo. Fugir, fugir sempre. Adeja estava em todos os lugares. Onde quer que eu fosse, ela estava presente, seus olhos em volta. Tudo tinha seus olhos. Eu tomava banho de olhos fechados para não ver Adeja escorrendo em minha pele. Um dia, com os garotos, dentro do carro, eu vi Adeja no fim da rua, e pedi para que acelerassem e passassem o carro por cima dela. Eu mesmo pisei no ace-lerador deles e o carro não alcançava Adeja. Ela brilhava no céu, bem em nossa frente, seu rosto tomando conta de tudo, a chuva da noite fazendo crescer o vestido que ela usava, o olhar de Adeja contra o meu. Quase batemos e capotamos o carro, e eu apanhei tanto que desmaiei, o corpo cheio dos olhos de Adeja. Depois de uns dias eu me levantei do chão e resolvi terminar com essa vida. Foi quando novamente vi Adeja, a sua casa de muitas jane-las, o portão baixo, fácil de atravessar. Eu queria contar do meu sofrimento por ela, as noites que Adeja me fez esperar, a sua ausência completa em mim. Eu não con-seguia dormir nunca, esperando Adeja chegar e subir co-migo para a cama. Ela poderia chegar enquanto dormia e ir embora sem me encontrar. Longe, longe eu ouvia os galos berrando de madrugada, risos de casais chegando em casa, vozes de amigos andando pelas ruas, batidas de carro, o dia chegando com toda a sua força, e Adeja não voltava. Todos que me conheciam perguntavam por Adeja e o filho que ela levou. Tudo era culpa minha. Eu faria outras coisas, se eu tivesse novo começo, eu faria tudo

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diferente. Adeja precisava me ouvir, saber que eu mudei, que o homem pode, com a mulher ele pode.

Mas Adeja chamou a polícia e eu tive que fugir. Na primeira noite, cercado de máquinas e mata, sozinho co-migo, sem Adeja e sem ninguém, era somente dentro de um ódio total que eu poderia entender tudo o que tinha acontecido comigo. Imóvel, como as máquinas que esca-vavam a terra, eu, Saturnino, estava diante de uma escu-ridão pronta para me devorar. Olhe, me escute: eu fiquei tanto tempo sem falar com alguém que não tenho pressa, não tenho sentimento algum com o que houve. Eu vou contar tudo, tudo que um homem assim como eu teve que enfrentar para estar aqui diante do senhor: a luta maior, a única luta.”

Saturnino puxou uma cadeira, sentou-se, tomou água e sorriu. Era um outro homem. A ira que o imobilizara meses antes e o trouxera até ali desfez-se sem deixar mar-cas. Mesmo reduzido a trapos, Saturnino era completo em seus atos e sorvia cada gole de água e de minha atenção com um tempo brando e inteiro. Todas as suas ações se completavam, exibindo as partes todas de sua realização. Nada ficava sem acabamento. Ao se dirigir até mim, pe-gar um banco, sentar-se e beber água, eu tinha a sensação de ver em cada uma dessas ações momentos distintos que pareciam durar mais que a sua mera execução. Pois, em cada ação, um mundo inteiro movimentava-se junto com Saturnino. O que ele fazia modificava o que havia em vol-ta. Assim, frente e fundo se alinhavam juntos – Saturnino movia o céus e a terra ao mesmo tempo que andava ou bebia água. Tudo convergia para ele e dele tudo irradia-va. A figura de Saturnino foi se agigantando na medida em que contava sua história. Eu admirava tanto o relato quanto seu narrador. Ninguém dá nada por uma pessoa até que ela te surpreenda. E Saturnino deixara de ser o louco

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delirante para mostrar o que não se mostra, para fazer en-tender o que não quer ser entendido.

“A luta para o ódio não me destruir atravessou toda a noite. Eu só comigo desconhecia a noite, a mata e o acampamento. Viera fugido sem dó de mim e de ninguém. Fiquei três dias imóvel até perceber onde estava. A pri-meira noite adentrou em tudo a minha volta e ficou. Era completamente noite o que me encobria, reduzindo o meu entorno ao vazio absoluto de todas as coisas. A minha raiva expulsou qualquer possibilidade de contato. Nada havia nada em lugar algum. Os sons das criaturas notur-nas se extinguiram. O vento da madrugada não soprou. O céu ficou cimentado de um adeus sem luzes. Como eu me concentrava em meu ódio, tudo deixou de existir e me fazer companhia. Estava eu ali sentado, as imagens dispersas de minha fuga se avolumando umas sobre as outras, uma correria sem direção, para trás, um filme que escapou da bobina.

Três noites depois e o corpo fazia sentido. Mosquitos, uma nuvem de mosquitos mordia violentamente minhas pernas e braços. Os sons de suas arremetidas explodiam em meus ouvidos. Consegui abrir os olhos e vi a pele dos braços tomada por mosquitos e inchaços. Quanto mais coçava, mais se abriam feridas que me possuíam com di-versa dor e tortura. Sai correndo para armar uma barraca e a nuvem pestilenta foi atrás de mim, zumbindo forte e mordendo o fugitivo. Como não conseguia no meio da noite montar a barraca, sai correndo, dando voltas entre as máquinas. Junto com a dor das picadas, sobrevinha, du-rante a corrida, um nojo, um pavor completo por aqueles insetos. Uns bichos horríveis, sem função alguma nessa terra, a não ser o tormento. E a sensação de ter a pele invadida por aqueles bichos pequeninos, o medo deles entrarem dentro de mim, e eu me tornar pasto para asas

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que passeiam no lixo morto e esquecido, isso me impelia para fora do acampamento. Atravessei parte da mata, tro-peçando e caindo em galhos pelo chão até me jogar dentro de um riacho. Para o interior das águas fui deslizando, ao escorregar na lama da ribanceira, o caminho direto e sem volta. Nem pude pensar onde me enfiava: um riacho des-conhecido em plena noite sem lua ou estrelas.

Foi nesse momento, enquanto caía, que olhei para o céu pela primeira vez em muitos anos. Os dias imóveis da luta minha contra as imagens durante a fuga me trazendo para esse lugar de perdição, os dias esses todos não parei hora nada nenhuma e vi que as chuvas se formavam, que as nuvens umas nas outras iam se juntando, carregando-se de mais nuvens cada vez mais escuras que antes. Ali, no riacho, água embaixo, água em cima, era só o que eu via. Entre os céus e a terra estirou-se uma esponja grossa e roxa que apagou qualquer tentativa de horizonte. Tudo se fundia na completa e inteira presença de um céu escavado por dentro, arruinado, mordido, abocanhado e cuspido em forma de bolsões de baba negra, uma boca doente prestes a escarrar além do volume de seu ventre.

E eu agora fugindo de mosquitos. Baixei os olhos dian-te do caos sobre minha cabeça, e pouco a pouco a razão das coisas em volta de mim se fortalecia. Os trovões ine-xistentes durante minha ira começavam agora a estourar lentos, de modo progressivo, disputando o controle sono-ro daquele espaço. Os sons distantes dos trovões me cer-cavam uns após outros, explodindo toda rota de fuga. Eu, Saturnino, só e sem mais outro nome , viera para aquele lugar, e estava preso pelas margens audíveis que me iso-lavam do resto do mundo. O negror dos céus e o reboliço dos trovões lavavam as formas visíveis em volta de mim. Quando percebi as coisas, estava perdendo todas elas.

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E estava dentro de um riacho, minha chuva pequeni-na até o pescoço. A escuridão pegajosa dos céus subia por minhas pernas e me encharcava completamente. Era difícil até erguer os braços. Uma cola babenta, mistura de terra e água velha, fora deixada naquela ribanceira. O riacho mesmo era o acúmulo dessa lama fria, espessa e antiga, resto apodrecido das últimas cheias. E tudo iria se renovar, eu sei: as águas dos céus e as águas da terra iriam se encontrar.

O riacho era, pois, uma rede e eu seu único peixe, o idiota desavisado que caíra ali de uma só vez. Eu fora tão fácil presa, tão fácil a vida inteira que não podia ficar triste ou irado: costume esse meu de só compreender de-pois. Por isso era o solitário louco, é, o cavalo dos outros, a besta disponível. Ali no refluxo das águas de um riacho podre, nos redemoinhos formados pela ventania soprada pelos céus, eu via tudo mais claramente, tudo o que eu precisava ver.

E veio o estrondo no céu, seguido de chuva que ca-lou as palavras que eu dizia em minha mente. O estrondo calou tudo em mim. E tive um medo, medo maior que a morte solitária, um medo que anda pelos caminhos do corpo e fica desnorteado, e agita tudo o que não é saída, um medo vivo, de olhos que se arrebentam para ver e tris-tes, o medo meu, como um filho perdido e desesperado, uma criatura correndo sem poder sair do lugar. Tremendo foi o golpe no céu, tanto que, quando virei o rosto, ainda vi as cicatrizes perduradas bem em cima de minha cabe-ça. Imediatamente tentei sair do riacho para me proteger, mas a lama prendia meus pés. No esforço de correr dentro dessa gosma, cai e mergulhei a cabeça. Abri meus olhos e vi pedaços de paus e peixes mortos e os sedimentos de terra sendo levados pela corrente. Um rio morto com cor-renteza! Embaixo das águas, algo revolvia-se, trocando o

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fundo cego e desfeito do riacho pelas novas e desatentas oferendas recebidas. Mas o medo foi maior e me impul-sionou contra a ribanceira. Após muitas pernadas, voltei à terra firme e me larguei para o acampamento.

Então aconteceu a miserável de uma violência, um jogo estúpido e sem sentido e eu era a bola. Quando corria para a direita, vendo a luz do lampião adiante, veio o mal-dito raio que quase me rachou pelo meio. Eu vi, sabe, eu vi a fumaça se erguer do chão a uns sete passos de mim, eu vi a fumaça e um pouco de fogo na palha mesmo mo-lhada e o pó da terra se erguendo. Um raio, homem, como fugir do céu?!!? Tudo era demais mais prá mim, um raio cortando minha frente. Poderia ter atingido minha cabeça e explodido tudo. Mas não, não foi dessa vez. Mesmo na correria que eu vinha, consegui desviar, não sei porque, acho que fugindo do raio. E daí aconteceu, aconteceu de novo, de novo: outro raio, agora na minha esquerda. Dá prá imaginar isso? Ninguém iria me acreditar, mas eu des-viei de um raio e quase cai noutro. Aquele negócio de di-zer que um raio não cai no mesmo lugar... mas eram dois raios, dois raios atrás de mim, dois raios, viu! Eu estava cercado!!!

E eu desviei de novo nem sei como e corri pelo meio, entre os dois montinhos de terra fumegando. A chuva aca-bou com tudo. A tromba d’água que se seguiu, e durou os meses seguintes, eliminou as provas. Eu corria dos raios sem pensar em nada, sentindo cada gota em minhas costas, e no mesmo rosto, como um golpe dos céus, um raio em mim, uma multidão de raios desmembrando-me, dissecando-me, espalhando sangue e carnes por todos os lados- eu, a chuva viva arremessada contra a mata seca.

Subi em uma patrola, a maior, e me larguei em seu teto. A máquina de terraplanagem seria meu berço e túmulo. Sobrevivente de dois raios, entreguei-me inteiro às águas

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da chuva. Decidi acabar com tudo, comigo. E gritava con-tra os céus, sem lágrimas, o desespero grudado em minhas roupas. ‘ Vem, me mata, enfia minha cabeça na terra! ‘ E quanto mais gritava, o rumor das águas se espalhando en-tre tudo o que havia em minha frente tornava insuportável o som que produzia ao mover e roçar todas as coisas.

Afogado pela chuva, presas as minhas palavras na gar-ganta, comecei a ouvir o que vinha com o rumor da tem-pestade e se abatia no acampamento. A mata, a mata in-teira saracoteava, despertando sob o estrondo da lavagem das águas. Durante três dias meu ódio esvaziara o mundo e agora as coisas me devolviam pior resposta. Tudo come-çou a grunhir, uivar, sibilar, trepidar, desferir sons os mais diversos. As muitas águas em mim me afogavam com as vozes da mata. As nuvens do céu pariram a festa de bocas ruidosas da terra. E eu me exprimia no teto da patrola, indefeso ao próximo ataque da noite eterna.

Após algum tempo, senti fome, e mesmo com chuva e barulhada, eu precisava comer, eu precisava continuar vivo. Não havia tempo para desculpa ou choro. Eu era arrastado pela máquina de viver em que fui me transfor-mando. Humilhado pela mata e pelos céus, deveria per-manecer apenas como coisa que come e cuida em não ser comida. Se eu parasse, o bolor que muda a relva em mofo seria a minha pele. Eu, matéria orgânica, futuro dejeto.

A luta contra o fim, mesmo que eu desejasse o fim, me movia e me fazia acordar e dormir dentro da multidão de sons e escuridão das chuvas. Levantei-me e fui para a mata. Eu nunca comera nada do pé de árvore alguma. Eu nunca tomara tanta chuva na minha vida. Eu nunca saíra de uma cidade e ficara tão longe de uma casa. Pisoteando os galhos que ainda se partiam, eu era Saturnino, o úni-co homem do lugar. Não havia policiais, mulher, filho ou memória das coisas passadas. Na primeira noite, trouxe

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tudo comigo e engoli. Lutava dentro de mim para conti-nuar fiel ao que fugia. E de tanto fugir do passado, o pas-sado mesmo escorreu de minhas mãos com a chuva. Essas imagens eram algo tão fraco, sabe, tão fraco que bastava só estar em outro lugar, era só dar uma trovoada que tudo desaparecia. A primeira noite foi a mais terrível porque queria Adeja, ela aqui comigo. O ódio por não conseguir a mulher, o ódio por ter de fugir, o ódio por não ter podido cuidar de meu filho. Agora eu era incapaz de fazer algo por mim ou pelos outros. Agora eu estava enfiado nessa mata, meus pés procurando comida, a chuva inteira em todas as partes de meu corpo. Não havia mais lugar para o que se passou. Tudo estava em frente, depois. Tudo es-tava a mão e eu tinha que pegar, eu tinha que ir buscar. Eu precisava andar, sabe, sair de cima da patrola, da máquina atolada e sem préstimo algum.

E foi aí, andando na chuva que sentia às águas não mais explodindo em minha pele. Entrando na mata, as águas desciam em mim em seu toque, a minha pele não mais violentada. Tudo que vinha de fora, tudo que vinha em mim era fascinante e saboroso e eu queria mais. Não tive mais medo de querer me abrir por inteiro às águas, de deixar que elas mais e mais se esbaldassem em minhas carnes e cavassem cada vez mais fundo sua presença no meu corpo. E eu ria, afogando-me com gosto, um pra-zer enorme por estar ali, maior que eu mesmo, eu mesmo enorme por essas águas. Eu não era mais aquele que anda, mas sim um aroma em meio à chuva, o cheio da terra molhada e boa de se comer. Eu me abri, ofertei-me ao que vem sobre mim e me desperta o paladar em me entregar como refeição, eu já deitado na lama que passeava em todas as minhas partes. Sujo dessa terra de chuva, exalei o calor feliz, o cheiro e o torpor de um modo de ser ou estar entre as coisas vivas e sem rosto.

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Após encontrar e comer umas goiabas, voltei para o acampamento e decidi não mais ter medo ou lutar con-tra o lugar. Tudo estava ali: a mata, a chuva e eu. Decidi também não me limpar, ficar assim enlameado prá sem-pre. Roupas e barro confundidos, assim seria Saturnino, o novo homem, a nova criatura nascida em meio aos raios e às águas.

E quando a fome vinha, eu entrava na mata cantando, a voz cheia de chuva, a boca vazando uma alegria que deslizava pelos sons e águas reunidas. Eu cantava forte, alto, feliz o que meus olhos viam. As árvores de muitos tamanhos, a relva fria com as raízes reveladas, as cascas de goiaba engolidas pela lama sempre borbulhante. Era ver e cantar. Enquanto durasse a estação da águas, a voz em mim não cessaria. Eu parei de falar, viu, eu parei de falar. Nunca mais palavras, as palavras de antes, as pala-vras e as coisas de antes. Eu não tinha história: eu erguia minha voz como a chuva, o jorro da chuva levando tudo em seu caminho, sem volta. Eu parei de falar e pensar nas palavras e ser Saturnino quando deixei a chuva me levar com ela. Por isso, eu canto a chuva, eu ecôo as águas so-bre a terra, a força que tudo move, a certeza de tudo que ouço e vejo, o cheiro da terra molhada nos pêlos e poros de todas as coisas, eu lama e homem, inteiro na canção da chuva que se abate sobre nossas cabeças, e nos devol-ve para o horizonte maior, para o céu de nuvens, para o velho riacho. Eu sou a ribanceira desse céu tremendo em seu canto.

Enterrado dos pés à cabeça na lama e lama que se tor-nou meu corpo, eu sabia que a chuva não cabe dentro da mata e que a mata traz o que a chuva não abarca. Pois eu pensava assim como criatura de barro, como coisa dissol-vida pelas muitas águas, eu pensava que podia interrom-

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per o fluxo do mundo. Eu só conhecia a chuva. Eu amava as águas, mas o mundo era maior, viu, muito maior.”

Era o que ele me dizia com todas as suas palavras. A poesia de seu delírio cessou. E Saturnino se encolheu dentro de si. Trancado assim por longos minutos, horas, ele abraçava suas pernas e se fundia ao chão como uma pedra. Só de noite Saturnino voltou a falar. Eu, que já es-tava assombrado com a sobrevivência dele, agora mais e mais me admirei de sua mudança. Sem uma palavra, ele empedrou. Ofereci comida, e ele aos poucos tomou o que havia no prato. Eram frutas e Saturnino abria devagar as bananas e o mamão e a melancia. Com suas mãos sujas, ele partiu ao meio o mamão e saboreava, entre os dedos, a informe massa de fibras e sementes. Cada semente desli-zava entre seus dedos, e ele apalpava o contorno escorre-gadio e viscoso da massa da fruta. Da melancia Saturnino, com as mãos, esmagou nacos carnudos fazendo jorrar a vermelhidão do suco em sua boca. Depois, ao morder uma banana com casca e tudo, brincava com o resto da carne seca da melancia e a pasta viscosa do mamão. Fez um bolo esponjoso de tudo isso, passando entre seus dedos. Quando ficou saciado, começou a olhar a mata e xingar. Saturnino xingava muito, com todas suas forças, as pa-lavras horríveis em sua boca contra algo, contra alguém, os olhos quase expulsos da cara entregues a um misto de horror e ira. Quem visse aquilo poderia confirmar que o louco de antes se tornara pior durante os últimos meses. Mas aquilo não era loucura apenas. Por isso é que eu de-via ouvir tudo até o fim para entender o antes e o depois. Saturnino se esgoelava todo contra a terrível visão nova-mente próxima.

Então ele revelou que nunca estivera só. Saturnino sa-bia que não estava cercado de máquinas. Com o passar do tempo, a gestão do novo homem naquele fim de mundo

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deu origem também à outra criatura. Exilado de todas as coisas, agora ele partilhava a presença daquilo que ronda e não cessa de sondar. A chuva perene, as frutas abundan-tes, a terra sob os pés, as corridas entre as árvores – tudo era véspera de um encontro que já vinha acontecendo. As inúteis testemunhas de ferro aguardavam. E o êxtase de Saturnino adiava a inevitável perseguição. Um monstruo-so vigia, outro, carpia a relva ao redor.

Foi quando começaram a aparecer as marcas da cria-tura, da invisível fera do lugar. Galhos partidos estalavam em vários pontos em volta do acampamento. Sons gutu-rais de uma garganta feroz vagueavam entre as vozes da mata. Caminhos de terra erguidos por garras afiadas po-diam ser visto no chão.

Saturnino omitia a verossímil presença do rival pen-sando que essas marcas eram as suas próprias. Para eli-minar a fera, igualou-se a ela. Saturnino andava e seus passos ecoavam. Saturnino comia e a sujeira era maior. Saturnino berrava e sua voz era mais forte. Saturnino vi-giava a noite e a noite era densa demais para uma solitária e longa espera.

Mas fera e homem se descolaram no dia de uma grande tempestade. A chuva contínua de sempre deu lugar a uma festa de fogos cruzando o céu. Foi o dia mais claro daque-las noites. Saturnino estava no riacho atrás de peixes para o jantar. E quando um dos raios rasgou o negror pesado que as árvores estreitavam em perdurar no ar, o lampejo da luz ricocheteou em outros olhos que os de Saturnino. Preso às águas barrentas, Saturnino viu-se frente a frente com o dono das garras que atravessam o chão, viu os olhos que partiam galhos e giravam em volta do acampamento. E ficaram assim as duas criaturas mediando as distâncias, inquirindo sobre a rota de fuga e perseguição. O pior era estar diante da fera. Para Saturnino, um raio podia partir a

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sua cabeça, a chuva o afogar de uma vez, mas nunca ter as carnes devoradas em vida por aquele monstro, nunca, os pés no chão, o salto iminente, as garras pingando sangue. Não se pode fugir, não há outro lugar, nunca houve. Por mais que corresse até ali, correu para o abraço fulminante da fera. Que os jovens tivessem acabado com ele, que o carro da polícia tivesse passado em suas costas! Que a chuva continuasse sempre escorrendo pelos seus dedos! Mas nunca a fera, nunca ela bem diante de seus olhos à distância de um salto!

E tudo veio em sua cabeça, toda a cidade que deixara enquanto Saturnino se afastava do olhar da fera e ia dei-xando passo a passo o riacho, subindo a ribanceira de cos-tas, e correndo de volta para o acampamento. Nessa fuga sem luta horrível e covarde por sua vida, os olhos aber-tos para o futuro só mostravam Adeja, a mulher negando seus braços, as reais palavras da despedida perpétua, o fim de uma vida ali quase a ser atravessada por sua correria. Saturnino passou a vigiar Adeja para se desculpar, para pedir perdão. A vida rude, os gestos rudes, a boca somen-te capaz para o beijo na cama, as perguntas por homens passados, a doença de não perceber a mulher, ela apenas ali em sua frente, as noites se acabando em gozo e desen-lace, o fim de uma corda sempre se partindo. Adeja, que lhe deu tudo, lhe deu tanto, Adeja, que lhe recebeu como ele era, Adeja toda inteira em suas mãos, para ele largar todas as noites em um canto de choro contido que era o dela. Saturnino nunca conseguira calar o choro da mulher que o amava pois ele era a lágrima fácil de escorrer pelo rosto dela, lágrima após lágrima até que o rosto ficasse desfigurado e fosco, até que a boca dissesse não, um não definitivo e sem volta, só restando a Saturnino as conver-sas esbaforidas dos bares. A fera fugia em seu encalço e

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ele se perdia no que não se esquece, aquilo que mantém acordado até as pedras.

E em sua fuga, Saturnino foi parar no alto da patro-la, gemendo não com o frio da noite repleta de uivos e suspiros da mata, mas com o corpo da fera vestindo seu passado. E Saturnino chorou tudo o que devia para esse mundo, chorou aos gritos e berros, uma crueldade sem fim na longínqua e esquecida buraqueira daquele lugar, encruzilhada de estradas inacabadas, depósito de aban-donos e ferramentas sem uso. O barro em todo o lugar, a mata ardente em retomar sua terra. E a fera, faminta, vigiando cada passo do homem.

Sem poder sair da máquina, Saturnino passou dias e dias chorando e ouvindo e revendo as memórias em seu rosto. O homem entre os ferros reduzia-se às sobras de um banquete. A chuva não levava mais nada, nem suor nem lágrimas escorriam de Saturnino. Ele estava esgota-do. O longo tempo da fera esperando por suas carnes, a lembrança viva de uma vida inútil, a certeza de já não ser um homem – tudo aquilo o massacrou até que despencou do alto da patrola exausto, e enxuto restou ali sem interes-se, com o rosto colado na borracha das enormes rodas da máquina.

Após dias, o estômago apertou-o dentro do corpo, e o sacudia e o arremessava para fora dali. Saturnino ergueu--se fraco, nascendo, e viu que estava sozinho outra vez. A fera tinha ido embora. As chuvas caíam pesadas sobre ele, e Saturnino só tinha fome, muita fome. Enquanto ob-servava a desolação do acampamento, a chuva e a fome eram como golpes em seu corpo diminuto. E percebeu-se largado, desprezado, um menino de nada trancado pela mãe em um quarto escuro. De nada adiantaria gritar ou correr ou ter medo. Nem a fera quis devorar algo assim, um fruto descarnado, já podre e sem semente.

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Saturnino revoltou-se e domou sua fome ao ver que nem bichos ele saciava, que nem era pasto de besouros. Ele me falava isso em um ódio crescente, uma indigna-ção raivosa e arfante, a saliva borbulhando nos cantos da boca.

“Sabe quando você não tem ninguém, nem a sim mes-mo? Sabe quando você não importa mais, tanto que as coisas passam através de seu corpo? Nem a chuva, nem a fera, nem ninguém! Você chega a não ser nem insuportá-vel. Não morri com a chuva, não fiquei louco pelas lem-branças, as moscas se esqueceram de mim e os bichos não me comeram. Estou aqui na bosta dessa máquina estúpida no meio do nada que restou para mim. Eu me transformei nas coisas que fugia e não escapei delas até saturar essa terra com minha figura. Eu sou uma coisa da qual o mun-do se fartou e tudo o que eu fizer e disser não impregna nem mancha. Eu sombreio as margens todas de uma exata abstinência. O dilúvio dessas águas expulsou meu atrito. Nem obstáculo ou impulso sou. Mas já que prá nada sir-vo, nem para vigiar meu próprio e final estrago, eu vou mostrar para o que eu vim, quem eu sou, o que faço para ser essa ocasião a mim sonegada.

Então eu, Saturnino, liguei a bosta de merda da patrola e disparei contra a mata, atropelando tudo em meu cami-nho, convocando todas as coisas em volta de mim até me acabar no fundo do riacho de lama e lama. Dá prá ver até hoje o desastre. Não cresceu mais nada no trecho que eu arrebentei. As margens do riacho foram completamente destruídas. Agora tem só um buraco no chão da cor da ter-ra. Esse é meu jeito de pedir desculpas. Demorei uns dois meses para trazer a patrola de volta e desamassar umas partes dela. Mas olha em volta e vê que não roubaram nada. Tá tudo certinho. É só me pagarem e eu vou em-bora. Ano que vem eu volto, se me quiserem. É serviço

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bom, é serviço importante. Faz bem prô homem. Eu vou prá cidade agora mesmo de noite. Tenho umas coisas prá resolver...”

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Em volta do grande macaco

A lesma se arrastava pelo chão, deixando atrás de si sua viscosa, repulsiva e brilhante baba. Expulso pelos gri-tos, chega correndo e assustado o filho do dono do bar, quase caindo sobre o bicho repugnante. Ele vem dese-quilibrado, empurrando mesas, o medo em seu rosto, as mãos tateando a inevitável queda. Atrás dele, saindo do bar, avoluma-se a imensa figura de seu pai, os pés tortos, os braços grandes pendendo, a cabeça e a boca enorme, tudo em um avental curto demais para o corpo expandido. “Mata essa merda, garoto ou não me aparece mais aqui! Mata essa lesma de merda ou fica aí na rua com ela!”

Os comandos do pai chamaram a atenção dos outros empregados que estavam na cozinha preparando a comida do dia. Eles chegaram rindo e festejando a humilhação do rapaz. Em pé, entre todos, destacava-se aquele homem gordo e cheio de pêlos, esparramando ameaças, gesticu-lando, chutando seu filho. No andar de cima do bar, as as janelas das quitinetes aos poucos vão se enchendo de rostos. Após um tempo fora de si, o pai ergueu os olhos em fúria para cima e acabou por sorrir para uma moça co-nhecida não parava de olhar para ele. O pai deu o último chute no garoto e foi para a portaria do prédio em busca de seu ruidoso e ofegante café da manhã.

Lá do fim da rua, o Professor avistava a confusão, mas não apressou seus passos. Ele vinha entregue aos seus

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pensamentos, um experimento deixado no Laboratório, uns relatórios a terminar. Ainda hoje teria de voltar para o trabalho. Era Domingo e estava combinado ver uma par-tida do campeonato na tv, acompanhado de um churrasco no bar do Gordo. Antes aquilo não era um bar: no lugar havia um pequeno e charmoso restaurante muito bem ad-ministrado pela Lucy. O pessoal do Centro Superior de Pesquisas vinha comer ali. Você podia encontrar professo-res de todas as áreas em pé esperando sua vez para almo-çar. A Lucy oferecia cardápio e atendimento de alto nível. Enquanto isso, na esquina da frente, o concorrente fazia de tudo para conquistar esta tão prestigiosa clientela: ofe-recia descontos, sobremesa grátis e estacionamento. Mas o problema não era comida. Na hora de pagar, todos viam a diferença entre os dois estabelecimentos. Era melhor pa-gar onde Lucy estava, sempre era melhor não ter de enca-rar uma outra fome, o cerco dos olhos que contam dinhei-ro e querem mais. E o concorrente queria mais mesmo: sua cobiça levou os garçons e o cozinheiro de Lucy. Lá do outro lado tudo parecia com o restaurante de Lucy: a disposição das mesas, o cardápio, os funcionários. Porém, quando se comia, quando você enfiava o garfo na comida para levar à boca, tudo mudava. O gosto era outro. Dava prá sentir entre seus dentes o cheiro de algo ainda gritan-do, o sangue quente pulsando em sua boca, as mãos e o rosto do concorrente, suas narinas se abrindo a cada prato pesado na balança. Sem os empregados, Lucy trabalhava mais, desdobrando-se entre a cozinha e a caixa registra-dora. Foi, quem sabe, nessa época, o auge de Lucy, o que lhe trouxe fama e o fato de o Professor voltar ainda a co-mer ali no que antes fora o melhor restaurante da região. Foi também nessa mesma época que o marido de Lucy se separou dela e levou tudo que ela possuía, menos o res-taurante. Num esforço de se mostrar forte, Lucy começou

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a abrir de noite o lugar. O Professor passou a freqüentar a sopa noturna e conversar com ela. Aos poucos não eram apenas cliente e patroa, mas amigos. Conversavam todas as noites, os negócios ficando em segundo plano. Tanto que uns dois meses depois o restaurante de Lucy fechou suas portas. A fama do lugar perseverava, a bondade e a antiga beleza de Lucy também. Mas a qualidade dos no-vos proprietários a cada três meses foi desaparecendo até que todos começaram a comer no concorrente que agora é a única casa de refeições que presta na região. O clímax da decadência do ex-restaurante de Lucy sem dúvida tor-nou-se visível na administração atual, a do Gordo, que decidiu vender apenas pratos feitos com preços fixos e diferenciados para homens e mulheres e deixar tv ligada no noticiário esportivo durante o horário de almoço. De noite, funciona um boteco. A atual administração prefere não mais concorrer e sim oferecer ao povo que chega para comer aquilo o que o dono come. Mesmo que você não goste disso, não há mais nada o que fazer.

Quando o Professor se aproximou, o filho do Gordo estava atordoado no chão com um risco de baba de les-ma sobre seu estômago. Em volta, os dois funcionários apontavam em zombaria para o coitado. O Professor se dirigiu para a mesa, pegou o saleiro e derramou um pouco sobre a lesma que se debateu em seu desaparecimento. Os funcionários voltaram para o serviço. Um, mais efemi-nado, entrou para o bar e desceu as escadas em direção à cozinha. O outro arrumava as mesas que o filho do Gor-do esparramou. O Professor estendeu o braço para ajudar o rapaz no chão. Com a brutalidade de sempre, familiar, veio a recusa e os resmungos. Logo depois estava em pé o filho do Gordo preparando o bar para o churrasco de logo mais. A lesma liquefez-se enquanto o Professor entrava na portaria para o quarto do Sujeira.

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“ Tu viu, tu viu o que o animal fez? Batia no filho olhando prá vagabunda do 203. E ainda vive falando ‘Mi-nha senhora é isso! Minha senhora é aquilo!’ Um tremen-do de um sem-vergonha botando moral em nossa cara! E a gente nem aí, vindo comer e beber nessa merda toda vez que tem jogo. Eu já te disse que ele rouba na balança? O Gordo usa uns pratos mais pesados e digita na máquina um peso menor. Daí a gente come pouco e paga mais. Tu tá me ouvindo? Tu tá me ouvindo? A gente na mão dele e sabendo de tudo. Eu fui falar com o cara. Daí o Gordo mudou o sistema prá peso único. Só que ele traz a carne de frigorífico clandestino e compra só coisa de segunda. E a gente bate palma prá tudo isso todo fim de semana, só prá ver jogo no bar. Tudo tá me entendendo? Tu tá me entendendo ?” O Sujeira ia dizendo tudo aquilo enquanto acendia um baseado. “ Já viu uma dessa: pesquisador do Centro Superior, cheio de diplomas e coisa tal enganado pelo bosta do dono de um bar vagabundo ?!! Isso me re-volta, isso eu não consigo aceitar! Agora ele tá lá com a gostosa da Mariúza, aquela que trabalha no Armarinho. Eu pensava que ela queria ficar comigo. Cheguei até a comentar com o Gordo um dia de noite quando não veio ninguém aqui. Pois não é que ele foi atrás dela só prá me mostrar quem mandava, quem podia mais? Não, não é loucura não, cara, eu tô te dizendo! O Capitão sempre me avisou, me dizia o tempo inteiro que o Gordo é o maior safado, que se faz de gente boa, tudo prá conseguir o que quer. Eu não tenho mais conta no bar não. Toda vez na hora de pagar vinha coisa a mais, toda vez tinha que refazer a soma. Isso vai te enchendo um tanto que dá vontade de xingar e pisar em tudo na tua frente. Daí o Gordo chegava com aquela fala mansa, pagava uma cerveja e tudo ficava em paz. Quem vai se lembrar do que bebeu ou comeu de-pois de um porre? Demorei uns dois meses prá fechar essa

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droga de conta, ele no meu pé. Agora, esse de negócio da Marialva, da Mariúza, seja lá qual for o nome dela... Eu tava com ela aqui, ó, na palma da minha mão! A gente já tinha conversado e tudo mais. Até marcamos de dar umas voltas. Não é que um dia eu tava chegando em casa lá do Laboratório e vi o carro do Gordo, aquela merda de carro velho cantando pneu aí na rua em frente, com a Mariúza dentro? E eu tenho certeza, cara, não tô louco não, que o Gordo ainda me deu uma olhada na curva e saiu feliz da vida, rindo da minha cara. Então o desgraçado me rouba na comida, me rouba a mulher e ainda a gente vem comer aqui nessa bosta? Tu não acha que a gente é muito bur-ro, não? Tá rindo? Tá rindo de mim? Mas tu também tá nessa, seu merda, tu também tá nessa!” Entre um soco de brincadeira e outro, entrou o Capitão. O Capitão era mais velho que os dois pesquisadores. Morava sozinho em um quitinete da frente, e vivia falando mal do Governo. Be-bia pouco, falava mal do governo, e retornava logo para sua caverna. Como era o morador mais antigo do prédio, todos esperavam que durante uma de suas entradas ele dissesse algo de diferente, uma outra coisa, algo que nin-guém sabia ou viu. Mas ele sempre falava mal do governo e se retirava, rindo depois de ter irritado o Sujeira. “ Ô Su-jeira, deixa de apoiar esse governo! Tu tem alguma coisa com o homem? “ O Sujeira sempre respondia:”Quantas vezes eu preciso te dizer que sou concursado, de maior e não tenho que dar satisfação prá ninguém! É um absurdo! Toda vez que esse cara me vê, ele fica me cobrando po-sição política. Logo um bosta de um merda que não tem coerência ideológica nenhuma e votou todas as vezes no ...” Durante a discussão, o Professor foi para a janela. A churrasqueira já estava acesa. Dali a pouco iam colocar a carne. Tudo ficaria pronto lá pelas duas da tarde. Na hora

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do jogo, lá pelas quatro, todos torcendo e brigando. Mais um Domingo como todos os outros.

Durante a inútil troca de falas na quitinete, uma mulher, vindo no nada, sentou-se logo na mesa perto da tv. Trazia os cabelos desarrumados e os gestos inquietos. O Profes-sor chamou o Sujeira e o Capitão para a janela. Quando o Sujeira viu a moça, colocou as mãos no rosto e se jogou no chão: “ Tu tá maluco, é ? Esse fumo te endoideceu? Espia, espia com cuidado prá ver se ela está só! “ O Pro-fessor olhou de novo e o filho do Gordo varria o chão em volta da mesa dela. Mas lá no bloco da frente, encostado na pilastra, um homem andava de um lado para o outro, olhando em direção ao bar. Quando este homem ergueu os olhos, o Professor ficou paralisado de medo, voltou-se devagar para dentro, querendo saber o que o Sujeira ha-via feito. Nessa hora, o Capitão já tinha saído. O Sujeira, percebendo a situação, foi falando: “Saí ontem com essa aí e na hora do vamos ver ela disse que era prostituta e que precisava de dinheiro. Como eu tava a fim, disse que pagava depois. Ela não parecia mulher da rua. Todas lá na boate eram iguais, como qualquer outra mulher que a gen-te conhece. Se fosse assim, eu tinha que pagar prá todo mundo, sempre. E a gente tava numa boa, tipo namorado apaixonado. Tudo era diferente: olhares, conversa, comi-da, convite e cama! A gente dizia umas coisas e se dava muito bem. A onda da bebida e do fumo foi se acabando e de manhã ela dormia bem aí onde você está. A gente dormiu abraçadinho depois de fazer amor a noite intei-ra. A mulher acordou e me deu um beijo. Achei que não precisava pagar. Daí ela foi ficando brava e gritava como uma louca. Eu disse que ia arrumar o dinheiro. Rodei de carro pela cidade dizendo que ia atrás de um caixa eletrô-nico, tudo prá ela esquecer onde eu moro. Depois de uma hora e meia, parei o carro em frente de um banco e desci.

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Pedi prá ela vir comigo, a gente andando abraçado como um casal. Abri a porta do caixa eletrônico prá ela entrar. Quando entrou, fechei a porta do caixa e sai correndo de volta pro carro. Disparei pela rua vendo a mulher pelo re-trovisor com sua roupa de boate me jogando pedra. Agora ela taí embaixo. O pessoal do Laboratório vai chegar pro churrasco e futebol e eu vou ter que aparecer. E esse cara que você fala, esse cara deve ser o dono dela. Agora vou ter de descer e apanhar, apanhar de verdade, na frente de todo mundo, como o filho do Gordo. E o Gordo vai rir e cantar pneu de novo bem em frente de minha cara. A gente pesquisador estudado levando sempre a pior do Gordo... E agora? Que merda! Hoje é Domingo, cara!Domingo! Logo hoje essa merda me acontece!”

O Professor não se conteve e começou a rir até chorar. Hoje era dia de Grenal! Grenal !!! A bosta do Inter não ganha nada há séculos. Durante sua infância, o colorado chegou a tricampeão nacional. A melhor coisa na vida de um homem é estar vivo quando seu time é campeão. Isso fica prá sempre, uma alegria completa, esbravejada nas bocas e punhos abertos da grotesca massa de torcedores abraçados pulando e gritando juntos. Todas as alegrias que vierem depois não vão superar a da festa de suor e álcool que irrompe no estádio e nas casas e que depois deságua pelas ruas da cidade. Pois não se pode dizer que viveu nem que foi feliz um dia quem não deu ou levou um soco na cara, uma cusparada no rosto, um chute na boca do estômago - tudo por causa do seu time, dos seus homens fortes e habilidosos correndo e enganando os ho-mens do lado de lá, sob a aprovação e torcida de outros mais. Era em não perder isso, essa alegria, o churrasco e a transmissão do jogo, que o Professor pensava quando o Sujeira falou: “Vai lá, faz essa por mim! Fala com a mu-lher, fica com ela, mas me livra dessa, me livra, por favor!

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Tu não ficava conversando com a Lucy a noite inteira por nada? Pois então vai lá e enrola essa vagabunda! “

Ao descer as escadas, após ser expulso do apartamento do Sujeira, o Professor resmungava. Logo em dia de Gre-nal! O Sujeira só ligava quando tinha problema ou preci-sava de alguma coisa. No Laboratório, nada de ajuda. O cara vive reclamando da vida e agora quer que o Professor se arrisque lá fora em pleno Grenal!

Na escada, encontrou-se com o Gordo que vinha suado e sorridente do apartamento da Mariúza. O Gordo, sem dizer uma palavra, olhou para o professor e demonstrou como sua presença intimida, o inquestionável domínio sobre todas as coisas naquele bar. Não havia outra possi-bilidade: quem atravessasse seu caminho, homem ou mu-lher, em algum momento iria provar de algo que não se detém enquanto não consome e destrói tudo que está em sua frente. Cada lugar tem seu dono, e os que freqüentam o bar do Gordo sabem disso.

E desciam juntos os dois, como se fossem companhei-ros, o homem que se satisfez e o homem que vai abordar. O Professor se dirigia para a mesa onde estava a mulher enganada sob o olhar do Sujeira e dos outros homens do bar. O filho do Gordo percebeu que não tinha vez com ela ao ver o concorrente se aproximar. Então se afastou resmungando, deixando apenas uma cara feia e o resto de sujeira no chão que ele não acabou de limpar. “Foi ele quem te mandou, não foi? Agora tu faz o que ele manda? É a mulherzinha dele? Pois eu não! Eu voltei e quero meu dinheiro! Eu e o meu amigo ali, a gente não sai daqui sem a grana! Tu não é homem não? Nem tu, nem teu amigui-nho, prá estarem juntos nesse negócio contra uma mulher !! E vai me servindo cerveja enquanto eu espero! Agora tu é meu empregado também!”

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A cada palavra dela, o Professor perdia seu olhar con-fiante herdado no encontro com o Gordo e pela raiva do filho do Gordo contra ele. O Professor passou então a recompor aquela mulher de ontem, transformando o seu cabelo que perdeu escova, sua maquiagem borrada, a pele sem brilho, a postura cansada, a meia desfiada e a rou-pa amassada na beleza antiga de calça justa, sandália alta e blusinha decotada, dançando em sua frente. Agora as olheiras, o olhar caído e morto, a voz rouca calavam a re-conquista, e, sem dizer uma palavra, o Professor já pedia uma cerveja, dois copos e servia aquelas mãos de unhas compridas e esmalte cor ameixa. O Sujeira se divertia lá em cima.

Ao saber da novidade do lugar, o Gordo rondava a mesa dos dois cheio de sorrisos e gentilezas. O vapor da gordura da carne já envolvia a todos. Ao fundo, iam chegando mais três casais amigos de fim de semana que estagiavam lá no Laboratório. O Gordo espumava ao ver tanta mulher em seu pobre estabelecimento. No caminho de saudar os recém-chegados, esbarrou no filho, atrope-lando-o. Todos riram do garoto inútil que não sabia o que fazer, indeciso entre segurar os copos que caíam de sua mão ou se proteger do cacos do vidros que explodiam no chão contra o que havia em volta. O Gordo arrastou rapi-damente seu filho para dentro do bar e voltou com novos copos e cervejas. Uma grande mesa foi armada em frente à televisão. O cheiro da carne empurrava cerveja goela abaixo. As mulheres retocavam sua maquiagem. E os ho-mens que acabaram de chegar perguntavam com gestos e olhares para o Professor quem era a princesa que estava ao lado dele.

Após muitas rodadas de cerveja, as pessoas começa-ram o movimento de vai-e-vem para o banheiro que fi-cava no subsolo, perto da cozinha. Sempre ao descer as

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escadas é possível ver o cozinheiro picando alguma coisa ou mexendo nas panelas, com a mão na cintura. Ele foi o primeiro a largar a Lucy e ir para o concorrente. Tudo por causa do dinheiro. Por causa dele, os outros também foram. O cozinheiro agüentou o tratamento duro que o dono dali impunha. Só não agüentou duas coisas: quando viu o dono chamando às escondidas a saúde pública para dar uma revista no restaurante da Lucy e as investidas, as investidas de seu futuro ex-patrão. Com a fama de traidor e homossexual desavergonhado que o concorrente espa-lhou, o cozinheiro não conseguia emprego nenhum. Che-gou até a passar fome. No desespero, veio pedir uma vaga na espelunca na qual o Gordo semanalmente ia transfor-mando o restaurante da Lucy. O Gordo resistiu. “Quem vai comer uma comida feita por um...” O cozinheiro foi aceito enfim pelo baixo salário, com a imposição de ser discreto e invisível. Na escuridão do que antes fora um depósito, ele tinha um lugar para sobreviver.

“E aí, mermão: conta onde que arranjou a gata! Tu vai com ela no casamento do Farinha?” O Professor nem pode responder pois o Gordo, ouvindo a conversa, atirou--se sem pudor contra os que estavam ali:” Eu já falei que não quero mais que falem o nome desse rapazinho aqui no meu bar!!! Se continuar com isso, não faço mais chur-rasco! O que tão pensando, que estão na zona, na casa da mãe de vocês? É o que sempre digo: esse pessoal de curso superior não respeita ninguém! Vêm aqui, mostram o di-ploma, fazem o que quer e sempre estão com a razão. Mas aqui no meu bar é diferente. Vocês achavam que eu não ia dizer nada, que ia ficar calado ouvindo sobre um sujeito que não teve o menor respeito comigo ? Tu tá me entendo, Professor de merda – tu tá me entendendo ? “ O Professor tentou responder, mas a ferocidade do Gordo passou por cima de todos. “Viu, filho, é disso que eu falo! Viu como

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se irrita fácil e já quer impor, não me deixa dizer nada? Minha mulher, uma mulher boa, trabalhadora, ela diz que é bom ter esse pessoal aqui no bar. Diz que dá nível. Sei o nível... Vêm aqui com essa mulherada vagabunda, quase pelada e ficam falando do rapazinho, do preferido de vo-cês. Vocês são como ele: bebiam aqui, tinham conta co-migo. Conversavam e tudo mais. Daí um belo dia ‘adeus’ e foram se embora. ‘Vou casar’, ‘Vou largar essa vida’, como se aqui fosse o pior lugar do mundo. Pois eu não trato vocês de modo bom, honesto? Não tem churrasco, bebida gelada e tv de graça? E o que eu ganho com isso? Nada, absolutamente nada! Eu ganho mesmo o que o ra-pazinho amigo de vocês me deu: um pontapé, um enorme de um chute aqui embaixo. É o que ganho...Vocês vêm aqui, comem da minha comida, bebem e desaparecem fa-lando mal. Transformam esse lugar em um monte de lixo que eu tenho que limpar depois. Por acaso se acham me-lhores que eu? É isso que vocês pesquisam, estudam? É prá isso esse laboratório: descobrir um modo de transfor-mar as coisas em lixo?!!! Mas eu digo uma coisa prá vo-cês: podem bancar os bons, arranjar umas mulherzinhas, casar e tudo mais que não adianta. O lugar de vocês é aqui oh, comigo! É prá cá que vocês voltam quando tudo vai mal! O rapazinho pode ter ido embora se casar, mas aqui é o lugar dele! Ele vai voltar, tenho certeza disso! Um dia ele se vê em casa, as paredes enormes, o som da tv sempre ligado e sai correndo de casa, deixando sua mulherzinha sem entender nada, a porta aberta e vem parar aqui, pe-dindo desculpas e uma cerveja e uma picanha com batata frita. Bebam, seus merdas! Encham o rabo de carne! Mas não falem mais dele, ouviram, não falem mais dele! “

As mulheres chegaram do banheiro e começaram a rir do rosto dos que ficaram na mesa. Lá dentro do bar, o filho do Gordo varria o chão e provocava com gestos os ho-

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menzinhos perplexos. O Gordo cortava os primeiros pe-daços de carne e os levava para a grande mesa com mais e mais cervejas. O cozinheiro, ainda com uma das mãos na cintura, chegava trazendo arroz e mandioca. As bocas se ocupavam de beijos e mordidas e goles profundos.

Os três casais da mesa eram alunos que estagiavam no Laboratório, orientados pelo Professor, pelo Sujeira e pelo Farinha. Os três casais haviam desenvolvido durante os anos de convivência um sistema de vínculos entre si ape-sar das mudanças de parceiros. Era já uma questão quase matemática: eles terminavam seus casos e em seguida fa-ziam novos pares entre eles mesmos. Com poucas feridas afetivas e quase nenhum desperdício emocional, os três casais recombinavam seus membros periodicamente. No começo era difícil adaptar-se e até a direção do Laborató-rio foi chamada para prestar esclarecimentos. Mas, como se viu, nada era estimulado ou gratuito. A singularidade de tudo aqui estava no fato que nunca as pessoas haviam visto algo assim, o que depois logo foi sendo resolvido porque, a cada novo emparelhamento, a estranheza de an-tes era reduzida e todos tinham mais o que fazer que ficar perdendo o seu tempo com um grupo de homens e mulhe-res dormindo juntos em diferentes momentos. As tensões eram dissipadas pela regularidade da mudança e na ver-dade nada mudava: sempre alguém estava com alguém.

Pois o Sujeira se tornou Sujeira ao tentar se infiltrar nessa maquinaria. Existia algo nele lá em cima de seu qui-tinete olhando a todos que o tornava alguém em quem é melhor nunca confiar. Uma vez ele chegou a confessar para o Farinha que adorava mulher de amigo, que sempre era amigo das mulheres de seus amigos, que adorava que os amigos tivessem mulheres. Isso bem no meio da lou-cura, todo mundo doido, todo mundo discutindo sobre as mais altas questões do espírito humano. O Farinha ria de

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tudo. Não achava mais nada absurdo ou inesperado. Esta-va cansado de se indignar ou pensar em resolver as coisas. Não suportava mais o Gordo e a luta diária contra aquela gente em volta. O Farinha achava que qualquer coisa que ainda existia além dele o obrigava a tomar uma atitude frente a algo ou alguém, essa coisa havia desaparecido e ele nem se preocupava mais em despertar. Então o Sujeira foi falando que era mentira, que o Farinha mentia, que ninguém seria capaz de estar vivo sem ter essa disposi-ção a reagir, a querer algo com todas as forças, de fazer tudo para possuir o que desejasse, e de, por causa disso, não ver nada em sua frente. E até quando conseguisse o que desejou possuir, ficaria insatisfeito e querendo mais e muito mais sempre. Havia uma música nessas palavras do Sujeira, a mesma que ele dançou, a mesma que ele sussurrou no ouvido de uma das mulheres dos três casais de orientados do Laboratório. O ciclo foi rompido, a in-terferência tornou-se notória. E todos voltaram a perceber como era estranho aquele revezamento entre iguais, aque-la geringonça de rostos e mãos. E o pior, o muito do pior do Sujeira veio na noite, na última noite que o Farinha chegou com sua namorada no bar do Gordo. Após umas bebidas, o Sujeira não deixava a namorada do Farinha conversar com mais ninguém, só com ele, como se não houvesse mais ninguém ali além dos dois. Em um canto, o filho do Gordo torcia por uma briga que não aconteceu. Simplesmente o mesmo casal que entrou ali retirou-se e nunca mais voltou, deixando o Sujeira falando sozinho. Meses depois chegavam as notícias: o Farinha estava de casamento marcado e não convidou ninguém do bar nem do Laboratório.

“Aquele merda: a essa hora o que ele deve estar fa-zendo?” Era o que Sujeira se perguntava agora em seu quitinete, conversando com os homens que deixaram a

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mesa lá embaixo e vieram apertar um e fumar. O pessoal do laboratório chega rindo com toda essa preocupação e cuidado do Sujeira: “Você acha que o gordo não sabe que a gente fuma? Todo mundo sabe o que a gente faz. Ou tu acha que era só por causa do futebol e da carne que a gen-te vem pra essa merda de bar? Tu é muito burro mesmo... Olha lá o gordo conversando com elas! Não se pode con-fiar em ninguém mesmo! Gordo nojento, merda de cerve-ja quente! Eu não sei por que a gente vem aqui. A gente vem todo Domingo, e hoje é que tu reclama? E o filho do Gordo, heim? Moleque estranho! Tá olhando aí o quê? Vai, apresenta um prá ele, prá ver se ele não melhora! Tá maluco? O moleque já é doido. Já pensou de cabeça feita? E aquela ali, heim Sujeira, é tua prima? Depois rola ela na nossa. Ou tu tá pensando que a gente veio aqui só prá ver jogo?! E tu, vai, solta essa bola, seu merda, larga dela: tá pensado que é chiclete. Passa a merda do fumo! Ô Profes-sor, vai ficar nessa janela olhando o quê ? Tá de olho no cara lá debaixo do bloco ou no cozinheiro? Torcedor do Inter é tudo viado mesmo. Tu vai ver hoje como teu Inter vai levar uma surra! Deixa ele, já deve tá doido. Passa essa merda, seu bosta, passa essa merda logo!”

Lá embaixo, na mesa, o Gordo fazia a festa. As risadas das mulheres abafavam o som da tv. O filho do Gordo teve que aumentar o volume para que todos soubessem quando o jogo começava. Em um minuto seu de folga, o cozinheiro, da porta do bar, olhava para elas fixamen-te, medindo seus movimentos, cores de cabelo, texturas de pele. Era como se escolhesse o melhor de todas, uma parte de cada uma e montasse em sua cabeça compara-ções e esquemas até chegar perto da imagem da mulher mais linda que um dia ele viu ou quis ser. Podia usar todas em sua mistura, podia usar só uma. Mas precisava delas, mais que os homens do lugar. Preso em seu devaneio, o

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cozinheiro procurava ver sem ser visto, o rosto na porta e o resto do corpo dentro do bar, as mãos umas nas outras esfregando, moldando aquilo que via com seus olhos de paixão. “Dona Lucy era linda e velha, a mulher mais linda que já houve por aqui. Todos vinham atrás da comida e não viram a Dona Lucy indo embora. Como era bom lá da cozinha sentir os passos dela, seu andar! Parecia que andava em mim. Tão gostoso! Me perdoa, Dona Lucy, me perdoa!’

Descendo as escadas do prédio, irrompeu a Mariúza, raivosa. Trazia ainda os cabelos da manhã com o Gor-do e arranhões pelo pescoço e braços. Veio chegando e fazendo escândalo. O jogo começou e a o pessoal da fu-maça baixou correndo lá do quitinete do Sujeira ainda de pulmões cheios perguntando o que estava acontecendo. O filho do Gordo quis proteger o pai daquela mulher que insistia contar tudo o estava acontecendo e que todos sa-biam, menos o filho do Gordo, até que seu pai lhe es-bofeteou e o empurrou, entre ameaças e xingamentos. O Gordo saiu arrastando a mulher para o quitinete dela e tiveram que aumentar mais o som da tv. Então, em meio a toda essa confusão, a mulher de ontem viu-se frente a frente com o Sujeira. Beijaram-se e o segurança dela foi embora. Na tv, o Inter foi fazendo um gol atrás do outro e a bebida circulava com mais intensidade a cada comemo-ração e desforra do Professor com os outros homens da mesa. Ao fim do primeiro tempo estava 4 a 1 para o Inter e todos estavam completamente bêbados. O resto da carne queimava abandonada e esquecida no espeto, e o filho do Gordo soluçava escondido atrás do balcão. O cozinheiro ia e vinha trazendo cerveja, gostando de desfilar o aven-tal limpo e sua boca com brilho, como a das mulheres. E no meio das vozes embriagadas e dos sorrisos fáceis, um braço veio e esmurrou um rosto: um dos rapazes não

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suportou tamanha felicidade do Professor ou os olhares do cozinheiro ou as antigas relações de sua atual engre-nagem no revezamento com algum dos outros colegas ou tudo isso junto e, sem aviso ou consentimento, expulsava de si uma ira nunca antes vista contra o rosto familiar de um colega seu, um amigo de tanto tempo, que estava ao seu lado. Ninguém fez nada.O agressor agia livre. Sob o som e a imagem dos melhores momentos do Primeiro Tempo do jogo passando na tv, ele esmurrava, esmurrava e o outro não caía. Antes falava para que o amigo batesse com mais força, com toda força que pudesse. Uma baba grossa de saliva e sangue deslizava do rosto desfigurado da vítima. Agüentando-se em pé, provocava, sem alterar seus comandos: “Bate, bate mais, seu merda! Tu não é ho-mem não? Bate com toda força!” Ainda fechando as cal-ças desceram o Sujeira e o Gordo. O Capitão vinha atrás deles. O Segundo Tempo do jogo já começava e ninguém conseguia separar os dois amigos que agora se mordiam, puxavam cabelos e queriam desesperadamente furar um os olhos do outro. As mulheres estavam sentadas com as mãos no rosto, envergonhadas, não querendo participar daquilo. Logo depois todos se abraçavam e mais bebidas e gols do Inter vieram.

Diante de tantas coisas, o Professor sentiu uma incrível dor de estômago e fui para o banheiro. Descendo, viu o pai conversando entre berros com o filho, mas continuou seguindo seu caminho para baixo: “Tu não vai fazer nada, seu merda! Entendeu, nada! Quanto tu crescer, tu vai en-tender! Pára com esse choro, viu? Pára com esse choro! Tu não é homem, não? Eu gosto de tua mãe. Eu até me casei com ela. É uma mulher honesta, trabalhadora, me ajuda com as despesas e tudo mais. Agora deixa como está! Não aconteceu nada de mais! Cala essa boca e me escuta: o que tu viu morre aqui, entendeu, morre aqui! Tu

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acha que eu me mato trabalhando por quê? Eu faço isso tudo é por vocês, entendeu, por vocês! E eu mereço uma diversão de vez em quando. Olha, um homem pode, viu? Um homem pode mesmo. Tu, quando se casar, vai fazer a mesma coisa! Tu não é meu filho, não, seu merda? Tá no sangue, viu, tá no sangue!!!”

O professor chegou ao banheiro e livrou-se de sua dor. Bêbado e aliviado, sentiu-se tão bem que adormeceu sen-tado no vaso. Quando acordou, estava no chão, de calças arriadas, nu, com o rosto enfiado em uns sacos de batatas ali do depósito – seu travesseiro. Erguendo-se, virou-se e deu de frente com a figura do cozinheiro que o observava detidamente, cada detalhe exposto acrescido pela mente em completa fervura. A única coisa na qual o Professor pensou era por quanto tempo o cozinheiro estivera ali, se poderia ter feito alguma coisa e o que será que ele fez de verdade. Vestiu-se rapidamente e saiu com sua dúvida para fora do bar. O jogo estava perto do fim. Pegou mais bebida e o resto queimado e frio da carne. O filho do Gor-do limpava a mesa e o Capitão entregava-se a recontar a mesma história de todos os Domingos: “Eu morava numa cidadezinha do interior. Trabalhava numa loja de sapatos. A filho do dono da loja vinha todos os dias lá. Um dia tomei coragem e falei com ela. Nunca me esqueci dessa mulher, Professor, nunca. O primeiro e único amor da mi-nha vida. Toda vez que olho prá alguém me lembro dela. Me casei, minha esposa me deixou e há anos moro aqui nessa droga de quitinete. Mas nunca me esqueci da filha do dono da sapataria.”

Um tremendo estrondo de batida de carro repercutiu contra o peito de todos do que estavam no bar. Imedia-tamente eles correram para ver o que havia acontecido. A rua se encheu de curiosos. Na mesa vazia, o Profes-sor não conseguia pensar em nada. As imagens da vitória

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do Internacional espocavam da tv. Goleada. Domingão e churrasco. Começo de noite. O Gordo não acendeu as lu-zes do bar. Aos berros, chega correndo, meio assustado, meio sorrindo o filho do Gordo: “Atropelaram a velha do 101, atropelaram a velha! Corre, vem ver a velha debaixo das rodas! Foi o cara que brigou aqui, o do laboratório.” O Professor continuou bebendo a cerveja mais quente de sua vida, rasgando com os dentes os restos duros do churrasco, os dentes ficando negros com o carvão em sua boca, os dentes e os dedos muito sujos e negros. O garoto volta para a festa lá na rua. Os gritos de ‘Lincha!’, ‘Lin-cha!’ chegam até o bar. Em uma outra mesa, em frente da mesa do Professor, mais ao fim do comércio, um homem bebe sua sopa, o olhar enterrado no prato. O Professor pensa ´Será que é o Farinha? ’ Levanta-se, inicia um cha-mado, mas desiste. A noite impede o contato. Cansado e tomado pelo torpor do álcool, lembra-se que tinha de ter voltado para a droga do laboratório, completar a droga do experimento... Dois meses jogados fora! Senta-se. O outro funcionário do bar troca o canal da tv. Passa um documentário sobre animais em cativeiro. Bebendo sua cerveja, o Professor vê brilhando em seu rosto um oran-gotango enorme, preso há trinta e cinco anos, sentado em sua jaula. Os pêlos brancos na cara do bicho atrás das gra-des não escondem um olhar parado e distante, uma coisa dentro de outra, uma caixa guardando o vazio de sua obs-cura presença. O animal foi preso por que era feroz, por-que animais assim devem ficar presos para sempre, sem que se pergunte depois de tanto tempo a razão de ele ain-da continuar preso. Mas ali, naquela noite sem ninguém, frente a frente com o orangotango, por uns instantes as grades caíram, as tampas foram levantadas, e um senti-mento terrível de perda, uma dor, uma vontade de abraçar e chorar tomou conta do Professor. Olhando nos olhos do

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animal, o silêncio entre os pêlos da fera sepultando um coração que não se pode encontrar ou ver, o humano bê-bado homem sentiu seu corpo pisado, despedaçado por algo do qual não se pode fugir ou negar.

Desequilibrado, o Professor ergue-se novamente e des-ce cabisbaixo o caminho de volta para o Laboratório. A confusão da rua vai diminuindo. As coisas todas ficam para trás. Ele anda alheio até a si mesmo.

Quando vê, está diante de um menino. O Professor vai para um lado, o menino bloqueia; vai para outro, o me-nino novamente fica em sua frente. Depois de repetidas tentativas, o Professor, cansado do jogo, força a passagem com seu corpo e consegue ir adiante. Continua andando. Depois de uns passos, intrigado, o Professor volta-se para saber quem é aquele garoto, no momento então quando sente o impacto de uma pedra bem no meio de sua testa. É noite inteira para ele agora, ali no chão, o sangue inundan-do a calçada, o céu longe e perto se apagando até manhã nenhuma beijar seu rosto.

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Mi amigo Maurício

– Gracias, gracias. Já fueron atendidos? Sai daqui, a mesa é minha, cojudo, cabron hijo de... siempre si intro-metendo in tudo!!! E ustedes, son estranjeros? De Para-guai? Colômbia? Bolívia? Bolívia? No, ah non son. Bien vindos a nuestro “Café de las Américas”. Yo? Não, não: yo soy brasileño, como ustedes mismo. Les preguntei por causa de la dona del café, senhorita Sandra, mujer belíssi-ma e muy séria, ouviram?!!! Mas este lugar ahora tan cal-mo no era assi, no era mesmo. Ustedes puedem imaginar lo que aqui era lheno de personas, música, mucha música, conversas, encontros, tábuas de picanha rodando entre las mesas, tudo isso até las cinco, seis de mañana? Pois isso era o “Bar Pedágio”, lo mejor de la ciudad. E isso já hace diez años e no me esqueço de recordar. Neste mismo lugar discreto e tranquilo – como son las cosas!!! - hombres e mujeres circulavam ao som de canções e movimentos de faca e garfo. Todos veniam acá para ser felizes, todos veniam acá por uma noite com alguém. Esto era lo cierto: quien quere que fuesse, nunca sairia solo. Ustedes estan se reindo? Mas las cosas se passavam deste modo: en el Bar Pedagio teu cuerpo no dormiria sin calor.

Se não, el propio Juan te levaria para su quarto. Noso-tros nos sentávamos ali naquela mesa que ficava em frente ao espacio de los músicos. Después de umas partidas de México city e muitas cervejas, tudo brilhava em nossos

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ojos. E como é lindo ver os olhos de alguém brilhando, iluminando su dia! Entonces se levantava Juan, nuestro conquistador major e se acercava de alguma mujer, bela ou fea, nueva ou vieja, alta ou pequeña. Este era Juan. Tudo antes que sua novia llegasse. Y simpre, siempre el levava una delas para su quitinete en el andar acima del Bar Pedagio. O som do violão e dos cantores podria unir todos los ruídos das personas, mas nós sabíamos que Juan habria abierto la noche. Ah, Juan, qué difícil ofício! Quan-tas veniron atras desse hombre, Juan, braços abiertos!!

Entre los otros da mesa habia um tipo de orgulho, um excessivo impulso de comemoração a cada investida de Juan. El era nuestro centroavante, nuestro jugador mas adelantado. Tanto que no dia seguinte, no Sábado, siem-pre habia um jogo de fútebol a las tardes para expulsar la borrachera del dia anterior. E como Juan jugava mal!!! Tenia até la pose de jugador, camisa de jugador, tênis de jugador, pero quando tocava la pelota...

E assi éramos la turma mas animada do Pedágio. A las sextas feiras el bar, a los sábados el futebol. Y tudo com mucha cerveja. Durante três anos tudo fue assi até que Maurício.

No les fale ainda de Maurício? Llegou su comida. Aproveitem! Enquanto comem, les conto tudo. Mi ami-go Maurício! Quando le conosci ni el ni el Pedágio eran alguna cosa. Ustedes acreditan que el quando volvió para su pais, llamado por su padre, Maurício deu uma enor-me fiesta de despedida, llevando todo el bar e suas cria-turas para uma enorme casa? Y qui para esta fiesta lhamó todas as suas ex-mujeres, amantes, parejas, ellas todas? Imagine esso, imaginem ustedes andando em una fiesta cercados de todas suas ex-mujeres, todas las com quien se dormió. Pois a fiesta estava lotada, todos fueram a la fiesta de Maurício, inclusive jo. Llegué até a comprar um

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terno, uma ropa nueva para la ocasión. Tudo por causa de Maurício! Tudo por el!

Mas três anos antes tudo era diferente. Eu era aluno no Centro Superior de Pesquisas, morava em um republica de estudantes, vivia triste e sin dinero. Uma vez um colega me chamou para de noche irmos a um barzinho pequeño, barato. Respondi dizendo no tener como pagar nada. Ele, rindo, respondeu que lá habia um hombre qui toda vez que brigava com su mujer pagava la cuenta do bar. E que hoy seria una buena oportunidad para isto. Entonces pela primera vez cheguei aqui, neste lugar. Las mesas de ma-dera teniam apenas porta-palitos e saleiros. Um cantor com su guitarra ao fundo infernizava o diminuto auditó-rio. A direita um casal , um de frente para o outro, comia uma picanha sin conversar. No extremo oposto, Maurício discutia com uma belíssima mujer, linda. Eu já havia vis-to os dois juntos pelos corredores da Universidad. Era a mulher mais bela que vi em minha vida. Um sorriso e um corpo que tomavam cuenta de todo o derredor, andando do lado de un gordón, alto, taludo, este agora que estava em minha em frente. Eu e mi colega nos sentamos entre estos dos casais. La terrível musica invadia nosostros. O garçom se aproximou com uma propuesta: se todos pa-gassem el couvert artístico, cantor seria dispensado. Reí-mos e pagamos. Enquanto o garçom discutia com o mú-sico, discutiam Maurício e a bela Sandra e o otro casal. Em meio a essa confusión, Maurício ergueu-se e foi para o banco vazio do musico e tratou de cantar. Tinha uma voz fraca, aguda que contrastava com seu enorme corpo sempre elegantemente vestido. Ele, vendo Sandra saindo do bar, começou a cantar ‘La bamba’. A animada canção calou todas as vozes em disputa e os copos se enchiam de cerveja. Aos poucos alguns que passavam por perto foram se sentando e logo o bar estava tomado de gente. Naquela

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noite Maurício cantou ‘La bamba’ umas dezesseis vezes entre boleros e canções dos Beatles. Nos intervalos, Mau-rício se dirigia para algumas mesas e oferecia bebida. Ele estava pagando. Era a festa de sua desgraça. Comemorava mais uma vez o possível fim de seu namoro com Sandra. E em nossa mesa os copos nunca estavam vazios. Toda vez Maurício vinha e trazia mais cerveja e nos saudava. Eu tinha certeza que ele fazia isso para mostrar algo, para se impor. Naquele tempo com a crise econômica, os sul-americanos chegavam com seus dólares e se banquetea-vam com nuestro país falido. E muitos desses dólares vi-nham de bolsas pagas pelo próprio governo para estudan-tes estrangeiros – coisas de diplomacia – enquanto que eu e outros passavam humilhação nas mãos desses aí. Pois eu tinha isso comigo, desde aquela época, um sentimento contra todas essas coisas, contra eles todos. Desconfiava de tudo que não era daqui, desconfiava dessa alegria sem porquê, dessa festa que nunca acaba.

Então resolvi aceitar os presentes do boliviano e sua bebida, sua conversa. A noite foi passando e bêbados fica-mos todos até alta madrugada. Aos poucos o alegre cantor foi desmoronando, cedendo lugar ao sofredor latino, o ho-mem incompreendido pela mulher que ama, a tristeza em todos os poros de seu corpo, o choro de homem mais do-lorido que há, a raiva de alguém querendo atravessar uma parede de concreto, ferindo, sangrando, desmanchando-se no chão. E eu, vendo tamanho homem reduzido a um resto de pouco de nada, levado para longe de si por causa do amor, entregue a uma interesseira companhia gole a gole, eu não pude evitar de sentir compaixão, mínima que fosse. Estava impressionado com a total falta de controle e ciência. Ele ignorava completamente porque estávamos ali e quem éramos. Longe de seu país, de seus amigos, de sua gente e agora até mesmo sem a mulher, cercado de

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desconhecidos que apenas visavam bebida grátis, Maurí-cio corria todos os riscos, corria nenhum. Lembro de jun-to com o outro bêbado, carregar nas costas aquele gordo pesadíssimo chorando sem parar.

Dia seguinte, Sábado, fui acordando com uma dor de cabeça e um espanto. Em minha frente a tv ligada e ao meu lado Maurício. Ainda sem saber onde estava e como viera parar ali abri mais meus olhos e Maurício acorda-do também perguntava com raiva o que eu fazia na cama dele. Começamos a rir e eu peguei um violão. De acordes simples e ritmo pop fizemos uma bela canção. Éramos uma dupla, eu e meu amigo Maurício. Juntos compomos e cantamos uma música sobre solidão, alguém em um quar-to, sozinho, o quarto cheio de coisas jogadas pelo chão, como se todas as coisas estivessem esperando a chegada de mais alguém.

A campainha tocou e Maurício foi atender. Do quar-to fui ouvindo uma voz de mulher, a maravilhosa voz de Sandra discutindo com ele. Atravessei o corredor e ela me olhou com um ódio pavoroso, como se tivesse visto uma amante de Maurício. Depois ela foi perdendo a máscara de ódio e se entregou a uma gargalhada sem fim. Maurício se virou para mim, com sua cara enorme cheia de batom. Eu olhei para ele apontando a maquiagem, rindo. Ele tam-bém fez a mesma coisa. Do sofá da sala ergueu-se o outro bêbado, um colombiano, rindo mais ainda, segurando um batom na mão. Olhei no espelho e eu estava todo borrado de batom. Saímos para almoçar e dali em diante Maurício e eu começamos a sermos vistos sempre juntos. Enfim, eu tinha a ele, e ele a mim. Esquecemos a música do quarto e começamos a festejar.

Quando Mauricio me levou para o futebol todos estra-nharam. ‘Quien eres usted? De qui pais?’ Eu era o único brasileiro entre eles. E para carimbar logo meu passapor-

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te fiz uns 6 gols. Depois todos fomos para o bar. Aquela multidão falando castelhano e eu aí espremendo os olhos tentando entender. É como se eu estivesse em outro pla-neta. Mas eu sabia muito bem que estava só entre eles, mesmo com Maurício. Aos poucos pude entender as ten-tativas deles de sempre me esconder algo, de sempre se dirigirem a mim com uma ira que não se revela comple-tamente, o modo sujo e risonho de anular alguém. E eu estava ali entre eles sabendo de tudo, apreendendo a viver mesmo em meio a essa trama contra mim, a minha peri-gosa presença. Pois apontavam o dedo em minha direção, riam e zombavam, a busca de uma falha, de um caminho rápido e seguro para me derrubar e eu driblando tudo isso, escapando das manobras conjuntas e dos golpes inespera-dos, um esporte difícil esse o de conviver com gente que te odeia e não te quer.

Uns três domingos depois e o Bar Pedágio já se trans-formava no melhor lugar para se estar na cidade durante a noite. Havia mesas até na grama. O estacionamento lotava. Contrataram músicos melhores e na madrugada Maurício bêbado cantava ‘La bamba’. Em nossa mesa, a melhor situada, picanhas e muitas cervejas. Os latinos sorridentes comentavam sobre os lances da partida do dia e as mulhe-res que passavam em nossa frente. Todos tinham bebido muito. Culpa de um jogo estúpido e inescapável chamado México City, um pôquer de dados. Quem estivesse com a vez, sacudia um copo de couro com dois dados dentro e cantava um número que você devia aceitar ou não. Se você aceitasse o número cantado, você desafiava o outro, mas com novo número em crescente. Os números iam de 31 até o maior, 21, México City. Como a seqüência cres-cente para o revezamento dos desafiantes é quase sempre impossível, o modo do jogo fluir era via blefe, mentira. Quem perdesse bebia um copo cheio de cerveja. Até era

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bom perder no início, eu achava. Mas junto com a cerveja vinha a humilhação, a gritaria infernal em seus ouvidos. E durante três fins de semanas eu perdia insistentemente, coberto pela tempestade de assobios e tapas pelo minha cabeça e costas. Eu estava sendo tragado gole a gole por eles, deixando-me levar por uma brincadeira sem fim, caindo mais e mais dentro de um ralo obscuro, tonteando e rindo e vendo o mundo girar a cada novo e enorme copo engolido de uma vez só.

Em meio às ferozes vozes em torno de mim, voltei cambaleando do banheiro, os rostos misturados com lu-zes e cigarro, e ao me sentar olhei para todo aquele bando de estrangeiros aquartelados em minha frente, comemo-rando conquistas passadas e futuras, divertindo-se com o fracasso meu e de todos com quem tiveram contato, re-duzindo mulheres a gozo e adeus. Então fui me armando de uma coisa nunca vista em mim, algo difícil de conter ou explicar. E impulsionado por um sentido pleno do que fazia sem medo do depois nem do logo mais, fui falando: “primeiro vocês não estão do país de vocês. Então falem a minha língua, ouviram? A minha língua, enquanto eu estiver por perto. Segundo, as mulheres daqui elas ficam com quem elas querem, até com vocês que são uns bos-tas de merda, bem diferente daquelas de seu país que não tem opção e remendam sempre a mesma cueca suja de seus homens. Então cuidado ao falar de um mulher da-qui. Ouviram?” Falei rindo, bebendo o resto da cerveja ganha no jogo. Senti que em minha volta tudo estremeceu e um crime iria acontecer. Então começaram a xingar e gritar com toda força contra mim. Maurício chegou rin-do, deu-se conta da situação e me afastou dos revoltosos. Dali em diante tínhamos nossa mesa e os outros a deles. Em alguns momentos nos aproximávamos, noutros cada um para seu território. Nunca eu seria completamente o

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que eles eram. Nunca eu seria recebido por eles. Essa era minha nova vida, a que eu vivia muito satisfatoriamente porque escolhi e fiz de tudo para deixar as coisas assim. Era minha luta para continuar sendo quem sou em meio à atropelada correria daqueles tempos.

Com a noite sobre noite se passando, madrugada após madrugada, eu me via cada vez mais com Maurício que em meu alojamento. Às vezes até almoçávamos juntos. Fui conhecendo mais meu grande amigo, sabendo de seu imenso coração. na maioria de nossas saídas, eu não tinha dinheiro e ele dividia comigo sua solidão e se encarregava das contas. Com Maurício pude ir a lugares impossíveis para mim. Cada encontro era novo, um novo lugar, pes-soas que nunca conhecera, comidas que nunca provara, coisas belas e preciosas reservadas para quem pode entrar em regiões apenas abertas para quem nelas já nasceu den-tro delas.

Fruto dessa convivência abundante e dispendiosa foi meu aumento de peso. Estava submetido a um regime ininterrupto de engorda. Com o passar de poucos meses já ressaltava um ventre estufado. Sem notar, eu ia ficando gordo como Maurício, mesmo que sem a elegância e altu-ra dele. Eu era uma cópia em menor tamanho e qualidade de meu amigo. Juntos andávamos arrastando nosso peso e apetite pelas coisas boas da vida.

No futebol já nem me interessava mais: ficava ali atrás, na banheira, conversando com Maurício, enquanto o ata-que estava sempre do outro lado do campo. Quando não estava no Pedágio ou em alguma festa de Embaixada ou jantar da alta roda da cidade, estava dormindo, dormindo sem parar, sem sonhos ou devaneios, somente o cansaço dessa agenda me triturando a resistência na carne. E esta-va inteiramente disponível aos gritos de Maurício chegan-

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do em minha janela com seu Mercedes preto buzinando, ele vindo após alguma briga com Sandra.

Em meio a um sono desses, ele surgiu gritando como se algo estivesse acontecendo de terrível, me chamando sem parar. Perplexo, mal pude me vestir e na pressa bati com o joelho na quina da outra cama do quarto. A quina se fez cunha, e entrou fundo em minha perna, abrindo uma marca semelhante à primeira perna de uma letra, a letra M. Louco de dor rolei pelo chão espalhando o sangue que não cessava de sair da ferida. Mesmo assim me ergui e com papel higiênico na altura da batida desci. Quando cheguei, Maurício estava lá com seu rosto e corpo enor-mes rindo, rindo muito mais agora com meu acidente e atrapalho. Quanto mais eu perguntava porque ele estava rindo, mais ele se entregava ao seu próprio prazer, quase que se desmanchando entre as pilastras de tanto rir, uma garrafa de uísque pela metade segurando. Voltei derrota-do para meu quarto. Subi as escadas completamente ar-rasado. Ele viera para se divertir, ele precisava ter vindo aqui em um domingo de noite para se divertir. E não era um amigo. Os olhos de Maurício não viam um amigo em frente dele. Mais tarde, ele voltou buzinando e eu deixei tudo como estava, a noite entregue à sua escuridão. Ele era como os outros, rindo e zombando, uma praga que tudo devora e destrói até morrer de fome, o deserto em sua volta. E eu ali, os olhos brilhando no escuro do quar-to, fiquei alisando a ferida que não se fechava em minha perna.

No dia seguinte, recebi a resposta de um emprego. De dia continuaria as aulas no Centro Superior de Pesquisas e de noite seria professor em uma escola. Foi o que disse para o Maurício. Ele me respondeu dizendo que precisá-vamos comemorar. Ficamos comemorando uns bons me-ses. Agora eu tinha dinheiro. Agora as coisas poderiam ser

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diferentes entre nós. Lembro muito bem quando paguei até um almoço para ele e para Sandra. Eu tinha uma certa dificuldade de estar na presença dela. Eu sabia de coisas que não poderia dizer, mas com o tempo você fica amigo da namorada de seu melhor amigo e não consegue mais ocultar nada. Para mim, o jeito era ou mudar de assunto ou ficar ironizando com ele, juntando-me a ela, desdo-brando-me em amigo da mulher. Então eram sempre as-sim os nossos encontros a três, eram dois contra um, eu e Sandra brincando com Maurício, ele ali com suas pessoas mais próximas. Mas com o tempo essa proximidade com a mulher foi me deixando confuso. Eu gostava tanto dele, eu gostava tanto dela que tudo isso era muito para mim. Eles tinham tudo o que eu queria, tudo o que eu via em mim, tanto juntos quanto separados. O porte, a maneira agradável de falar, o belo sorriso e os dentes, meu Deus, os dentes. Como era bom ver e ouvir suas bocas. Tudo em volta perdia sentido. Por causa de um dente, um maldito dente do meu lado direito da boca eu tinha um sorriso feio, muito feio. Por causa de um dente encavalado, havia a fa-lha, um buraco, a imperfeição. Era vergonhoso, era preci-so esconder essa podridão. Não podia mostrar os dentes. Ou quase eu não ria, ou mordia os lábios ou baixava a cabeça. Um homem com o sorriso preso, o esforço em ocultar sua horrível situação, isso era o que era. Sempre ter de me esconder, a constante preocupação e cuidado em ver o que os olhos vêem, em não deixar que vissem minha falha, minha boca doente e feia, minha feiúra tão assim evidente e exposta, logo no primeiro contato, minha ter-rível condição que nenhum esforço do mundo consegue fazer desaparecer. E era Maurício e era Sandra e eram os dois e tudo muito além de minha vida, eles rindo belos, bem diante de mim, a boca linda, os dentes lindos, uma

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coisa assim de se querer de todo o coração só prá gente. E a mulher, mais que tudo, a mulher, meu Deus!

E ela sorrindo me perguntou: ‘ E você ? Nunca te vejo com mulher Por que você não tem ninguém?’ E para minha humilhação, Maurício, sem me deixar responder algo que iria ficar sem resposta, se pôs a narrar meus insucessos no Pedágio, toda a série de fracassos que me transformavam a cada noite no anti-Juan, no contra-espelho do conquis-tador. E em meio a essas imagens retorcidas, Maurício me atualizava na requentada diversão e piada. Ele teve a co-ragem de contar tudo contra meu calado desespero, minha boca se fechando contra a multidão, meu sorriso falho e feio perdendo-se em meio ao sorriso de Sandra e Maurí-cio. Uma vez eu estava tão bêbado e sem óculos e Sandra já havia indo embora. Sempre depois disso, Maurício dis-punha-se com mais atenção e discrição para as mulheres do Pedágio. Diferentemente dos ruidosos outros latinos, ele se destacava pela encantadora visagem e afetuosidade. Não conseguia de modo nenhum tantas mulheres quanto Juan ou os abutres da outra mesa. Mas sempre há uma mulher que sabe o que quer. E quando sabe, Maurício é a melhor e única opção. Aquela noite não seria mais uma para mim. Eu estava pronto para ser tanto abutre quan-to charmoso. Já havia acumulado muita experiência ob-servando os outros. Eu estava pronto. Poderia até rir, até mostrar os dentes sem medo. Tirei os óculos e o mundo era igual para mim, tudo estava ao meu dispor. Agora eu iria mostrar o que um homem pode. Nessa mesma noite, um dos latinos foi pego e expulso do bar quando expiava, por cima do banheiro dos homens, o banheiro das mu-lheres. A confusão deixou todos desconfiados e avessos à sedução. Mas mesmo com essa sabotagem, eu me pus a encarar uma jovem de lindos cabelos louros que em pé lá no fundo do bar conversava com uns amigos. Todo cuida-

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do é pouco e é preciso ter certeza do que fazer. Eu iria usar a força de meu olhar. Desde pequeno eu tinha esse poder que guardava para situações especiais. Eu costuma olhar fixamente para cães na rua, intimidando-os. Junto com o olhar, eu transferia meus pensamentos. Chegava até a suar. Eu olhava fixamente e gritava alto em minha cabeça ordens terríveis, palavras nunca ditas, desejos de morte e destruição, um caos devorador de gente que endurecia os músculos do animal. Em discotecas, eu escondendo meus dentes, olhava com toda a força para alguém e a desejava de todo meu coração, o meu querer impresso na rigidez de meu rosto diante dela, o rosto meu tremendo, barra de concreto pronto a explodir. E em minha frente a bela, o rosto enuviado por minha miopia, e eu um cão olhando fixa e poderosamente para ela. Perguntei para o Maurício se ela estava acompanhada. ‘Ela quem? ‘, ele me respon-deu. ‘Ela, aquela ali, a terceira entre os caras’ enfatizei. ‘ Mas não tem mulher ali não!’ ‘Claro que tem! Não tá vendo?’ ‘Você tá bêbado? Ali só têm homens, cinco deles. Você tá cantando aquele cara de cabelo grande e loiro? Escutem só essa: ele passou a noite toda pensando que....’

Sandra não parava de rir, seus belos dentes, a boca sem igual. Eles riam, riam, as mãos dadas, se beijando. Eu olhava para um copo de água, arruinado. A água era tão pura e cristalina que atravessava o vidro. Como será que conseguiram encontrar uma água assim? Como ela veio parar no meu copo? Não era água de se beber, não: era algo de outro mundo, longe dali, um caminho aberto entre tudo aquilo. O caminho das águas, águas muitas, águas em tudo que eu queria. Outras águas, diferentes dessa mes-ma noite relatada por Maurício agora na qual eu, bêbado, confundia tudo e, querendo remediar o acontecido, disse que não iria sair dali sem uma mulher, fosse quem fosse, pois até o fim daquela noite eu iria me deitar com alguém.

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E ninguém, ninguém mais chegou. E todos estavam com seus pares. Caiu uma chuva horrível, tremenda, que engo-liu todas as vozes e canções do lugar e minhas esperanças. E, depois, veio um frio imenso, que se cura só com muito álcool. E os sobreviventes bebiam tudo esperando o de-senlace de minha promessa. Até o grupo de cinco homens com o cabeludo ria de mim. E quando todos já pagavam a conta e me contavam entre os perdedores, apareceu lá no fundo da noite escura e chuvosa uma mulher com sua amiga para comprar cigarros. E a mais feia, a mulher mais feia que já vi nesse mundo, feia não só por que ela era a mulher mais gorda e mal vestida, não por causa de seu cheiro que de longe dispersava até a água da chuva, feia, terrivelmente feia não só em seu andar e postura, mas feia a porque, de tão feia que era, chegava a ter rosto: não ha-via nada em sua cara, nem dentes, nem olhos, nem boca, nem nariz – tudo se emendava na mesma massa informe e lisa, uma cera que arrastava o que dela se aproxima. E foi dentro dessa boca banguela, nesses braços enormes e cheios de cabelos e furúnculos, mulher imensa como o Maurício, que eu fui me acabar sob o delirante suspi-ro e algazarra das últimas testemunhas já curadas de seu porre diante de tamanha ousadia, coragem e burrice. Eles contemplavam meu desastre sem me impedir, ela quase me erguendo, puxando e exibindo sua presa, eles batendo palmas vendo o encontro do monstro com o tolo, casal nunca dantes pensado que partia de volta para a escuridão chuvosa na noite, entre raios e trovoadas até desaparecer na curva extrema do outro lado da rua. E foi assim que adquiri um notável respeito, de alguém capaz de audazes façanhas e impossíveis feitos, um herói sem limites para o pior, para o terrível e para o desnecessário.

E tudo aquilo agora repetido na frente de Sandra. Nada das aventuras de Maurício que eu contasse poderia des-

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truir minha nova imagem. Eu estava crescendo sob a vista de todos, adquirindo uma personalidade própria, minha auto-sabotagem. E a água do copo de água remoía-se em seu brilho ruidoso e ofegante, sussurrando com todas suas forças de um modo que só eu podia ouvir.

Vieram depois os meus casos da mulher cheia de pê-los, da sexagenária, da louca que gritava ao menor toque, da recitadora de salmos, da chorosa, da violenta, enfim, tantas outras que faziam a graça do Pedágio, seu charme especial e democrático em prover felicidade para quem quer que seja e minha autoridade como instrumento oca-sional para atos de exceção. Maurício adquiriu o hábito de anotar meus sucessos e divulgar entre os freqüentadores do bar. Havia um prazer em ter prazer com minhas histó-rias. De meu lado, eu me iniciava em um mundo bizarro e já era bem experiente.

Em reposta a essa nova atitude de Maurício, passei a observá-lo também. Foi nesse momento que as coisas co-meçaram a mudar. Eu e meu amigo Maurício, depois de tanto tempo juntos, dividindo mesas e refeições, olhares baixos e sorrisos mudos um com o outro, já éramos quase a mesma pessoa no momento mesmo em que se iniciou o começo do fim. Quem era Maurício? Quem era ele para me divertir com minha desgraça ? Notei que ele nunca me chamava para frente do palco, para seu número musical de fim de noite. Nunca fui com ele para o palco, tocar vio-lão com ele. Parecia que me poupava, que não queria me expor. Eu não insistia e ele também não me convidava. Eu podia tocar violão para ele, cantar em outros lugares, mas não ali. E como eu tinha vontade de estar lá na frente de todos com eles, juntos os dois gordos, o gordo baixo e branco, o gordo alto e moreno, os dois amigos enfim! Como eu queria ter feito mais músicas com ele! Mas meu lugar era a mesa, o acompanhante da mesa, a picanha e

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os copos em nossa mesa, o divertimento seguro, a risada sempre pronta, minhas histórias que não fazem ninguém dormir.

E as coisas começaram a se dirigir naturalmente para sua conclusão, uma conclusão lenta, intensa, que ultra-passou em muito os quase dois primeiros anos de nossa amizade. Com o aumento de minha carga horária na esco-la, tive de, pouco a pouco, me dedicar menos ao cotidiano de partilhar a solidão do Maurício. Ele podia acordar tar-de e faltar ao emprego. Tinha uma flexibilidade incrível, graças ao seu encanto e influência. Eu não: estava preso a pequenas coisas, à necessidade de minha presença onde quer que eu fosse. Não havia desculpa para mim. As mi-nhas idas ao Pedágio se restringiram de Quinta ou Sexta a Domingo.

Numa dessas sextas, eu cheguei e lá estava o Claudi-nho. Era um garoto mais novo que eu, rindo sem parar como Maurício e ao lado dele. Noutras vezes que fui ao Pedágio lá estava o Claudinho, sempre pronto para algu-ma aventura, o fôlego novo para inflamar o lugar. Já ha-viam me substituído. Compreendi que Maurício não pre-cisava de mim, mas de alguém. Eu estava amadurecendo e revendo tudo o que ficou para trás. Eu lutava para não ter ressentimento, mesmo sabendo que as coisas que pen-sava duradouras se desfaziam em minha frente. Era insu-portável saber disso, que um homem pode perder tudo, que eu podia saber que estava perdendo tudo e não reagir.

Enquanto eu pensava nessas coisas, andava a pé de volta para casa, os sons da música e das risadas do bar ficando atrás. Quanto mais me afastava maior a massa sonora eclodindo em minha cabeça. Coloquei as mãos nos ouvidos e corri, corri o máximo que conseguia correr, como se estivesse ferido, como se tivesse sido roubado, um homem correndo na madrugada com o rosto brilhan-

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do e refletindo um horror ao futuro. Após uns quarenta minutos, subi a escada do alojamento estudantil e quando ia abrir a porta ouvi a buzina do carro do Maurício. Logo os protestos dos moradores do alojamento estudantil fo-ram ouvidos, como em quase todas as noites quando des-filávamos buzinando e gritando contra os que dormiam. Hesitei entre entrar e descer as escadas. Acabei por correr para as escadas. Para meu azar escorreguei e cai, abrindo a cicatriz da ferida na minha perna. Entrei no carro me ar-rastando cheio de dor e sangrando. Maurício e Claudinho me saudaram rindo:” Vamos aprontar!!!!

A toda velocidade saímos dali aos gritos e fomos pa-rar em uma casa de encontros decadente - Mi amore. Lá encontramos os outros latinos, o grupo tido como desele-gante e de baixo nível. Agora estávamos todos juntos em meio à fumaça de cigarro e roupas apertadas e brilhantes que procuravam ocultar sem sucesso o mercado de sen-sações do lugar. Após algumas caríssimas bebidas, sob o som de uma banda horrorosa tocando as mesmas músicas do Pedágio antigo – acho até que o cantor era o mesmo – todos dançavam com as mulheres que não precisavam de conquista. E eu, sentado na mesa, imóvel e sem ritmo, me entregava a juntar em meu copo o resto da bebida dos outros, misturando a loucura que via rodar a cada nova canção. Maurício não era diferente daqueles que eu julga-va diferentes de nós. A discrição cedeu ao exagero, o bom gosto ao sabonete barato. Eu só pensava em Sandra, sua beleza sem igual trocada por lingerie de liquidação. Em meio a esses devaneios, me levantei para ir ao banheiro vomitar e me assustei com meu rosto virado para mim em todos os lados que eu olhava nos espelhos que circun-davam a boate Mi amore. Estranhando quem eu via, fui andando em minha direção, querendo apagar o registro do

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que me tornei naquela noite. Atravessei portas e me aca-bei no vaso sanitário. Agora eu poderia dormir tranqüilo.

A gritaria esmurrou a porta do banheiro e me arrastou pelos corredores da boate para a noite no estacionamento. Quando dei por mim, estava correndo em plena pista cen-tral da cidade, os carros chegando para trabalhar, para o dia novo que ia nascendo e atrás, correndo, cheias de ódio e sapatos nas mãos, vinham as mulheres da boate, recla-mando pagamento de mim e do Maurício e do Claudinho. Os carros desviavam de nós e pelo retrovisor acompanha-vam a perseguição. Cruzamos a rua sob buzinas e punhos fechados no ar e xingamentos. As mulheres enganadas foram ficando longe até que entramos em um boteco na rodoviária e quase mortos de sede pedimos uma cerveja. Claudinho escorregou pela pilastra onde estava encostado e dormiu. Maurício ria como nunca servindo meu copo. Nisso passou um esfarrapado louco que colocava seu dedo na boca simulando sexo oral e depois me apontava. Rimos ainda com pouco fôlego. O esfarrapado repetiu os gestos com maior seriedade, intimando-me a fazer o que pedia. Olhei para o Maurício e ri. Ele me mandou bater no homem mudo e louco que se agitava diante de nós. Eu pensei que era brincadeira. Com os olhos cheios de ódio, como os das mulheres enganadas, Maurício reforçou a ordem e me empurrou. Fiquem entre o homem cheio de gestos e Maurício. Claudinho acordou e ficou imitando o esfarrapado. Fui em direção do louco e o empurrei com pouca força. Antes de voltar para o balcão do boteco, Maurício, furioso, esbarrou em mim e empurrou escada rolante abaixo o esfarrapado que cambaleou sem parar. Assustados, corremos até a ponta da escada rolante que estava desligada. Quando o monte de sujeira chegou lá em baixo, foi de cara contra o chão, ergueu-se meio tonto, olhou para cima, me viu e começou a fazer os mesmos

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gestos e a me apontar. Daí fui eu quem ficou com ódio do louco. Maurício me puxou e fomos beber. As pessoas iam chegando para o trabalho e nós rindo da noite sem fundamento que tivemos. Quando Claudinho foi para o banheiro, Maurício sem preparação alguma me disse: “ Eu estou voltando prá Bolívia. Estou aqui há anos e já troquei de curso tanta vezes e não consigo acabar nada. Meu pai me chamou de volta. Não dá mais. Eu gosto de você, gosto da Sandra mas eu vou embora. E antes de ir eu precisava te dizer isso: a gente se diverte e tudo mas vê se dá um jeito em tua vida, se cuida. Você precisa prestar atenção mais nisso, precisa se encontrar. Vê se melhora, se pára de sentir assim feito uma criança e olha como as coisas são mesmo. Me ouve: eu tô indo embora, enten-deu? Cansei! Eu vou de vez prá não nunca mais voltar!” Claudinho retornou e eu fiquei com aquilo que o Maurício disse zumbindo em minha cabeça. Não acreditava no que ele achava de mim, após esse tempo todo de convivência. Eu estava ofendido, completamente ofendido.

Maurício resolveu gravar um disco, duas músicas para se despedir. Até o último minuto, até a noite de véspera de ir para o estúdio, a gente bebendo no Bar Pedágio com os músicos e nada dele me chamar. Daí o baixista não pode ir e reticentemente fui convidado. Peguei as duas músicas e estudei a noite inteira. Nenhuma era nossa. Eram canções de amor tipo que tocavam lá no Mi amore. Esse som ralo e imaturo tive de engolir até o dia seguinte. Sobre as bases de violão e bateria toquei o baixo e gravei de uma vez só as duas músicas. Tudo muito fácil e preciso. Soube depois as músicas ficaram em segundo lugar em uma rádio da Bolívia, de algum amigo do Maurício. Fiz minha parte com perfeição, cumpri minha tarefa.

Chegou a festa de despedida. Maurício não estava mais com Sandra. Todos ficaram sabendo de nossa fuga pelas

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ruas da cidade. Não havia mais explicações, nem necessi-dade de esclarecimentos. Comprei um terno, um belo ter-no, meu primeiro. Queria me despedir com classe, madu-ro. Há quase um mês não conversávamos. E veio a festa e ele estava tão alegre e tão ocupado com os outros, com os latinos, com as ex-amantes, com Claudinho que a noite foi passando e eu fui vendo e sentindo tudo se acabar, toda aquela alegria sem volta e destino, a grande festa, a celebração do homem que nos trouxe até ali. De madru-gada, ele cantou La bamba pela última vez. Consegui dar um abraço final nele, mas nem nos falamos direito. Dia seguinte partiu e nunca mais nos vimos.

E aconteceu algo em mim após esse dia que me trans-tornou. Com o passar do tempo fui sentindo uma tristeza, uma tristeza de morte, como se alguém tivesse morrido. E junto disso, vinha uma fraqueza, uma falta de vontade de sair e ver pessoas. Eu me trancava aos poucos só dentro de casa, como uma viúva sem ter casado, um amante sem corpo da amada. Eu suspirava pela presença de algo que perdi, mas a perda era tanta que o suspiro era pelo impos-sível, pela completa e total impossibilidade de reverter a perda. Nada era mais intenso ou feliz. Não havia nada em meu mundo que pudesse suprir o que eu desejava. Com a partida de Maurício, ficou exposta mais que uma ferida que sangra. A cicatriz apontava para a pele aberta, a pele sem pêlos e vazia, uma cor que não adere ao corpo, a porta do abismo, a boca beijando o ar, eu sozinho afogando-me com meus próprios pulmões sem poder andar por minhas próprias pernas, sem lágrimas e choro, a muda loucura me deixando em remendos e restos e restos.

Anos depois consegui o telefone dele e liguei. Tudo es-tava muito longe e distante, as vozes oscilando. Maurício estava casado, tinha já dois filhos. Ao fim da breve con-versa, ele me disse ‘’ Você iluminou meu dia.” Lá estava

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ele bebendo em outro bar, com outros amigos, tocando La bamba, correndo em fuga pelas ruas da cidade.

‘Você iluminou meu dia’ !, foi o que ele me disse. Dias depois, encontrei por acaso a Sandra em um Shoppping e ela me convidou para trabalhar nesse Café aqui. Descobri depois que o Café ficava no mesmo lugar do Bar Pedágio. A mim me gusta servir-lhes. Hay que mantener-se seguro. Estoy casi mi formando aun. Pero que lo mejor es estar cerca de Sandra, bela mujer. Entonces mas respecto! Res-pecto, ouviram! Esto es un lugar de respecto! Hay que guardar-se contra la mala voluntad! Usteded no son es-tranjeros? No, mas parecem, sempre parecem. Todos los que vejo parecem. E tu, o quieres de nuevo, hã? Passa, passa daqui! A mesa é minha! Vai-te cabrón, cojudo, hijo de p... Tragad-me la guitarra pues jo quiero entreter estas personas, tragad-me la guitarra pues hay qui cantar, cantar siempre, siempre: “Para bailar la bamba se necessita...”

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O sermão do sábado seguinte

Então a figura do pregador despontou lá do fim da rua, subindo em direção à casa dos Giovanni. Em frente da casa estavam conversando a mãe, as duas filhas e Giovan-ni filho. Eles acompanharam a vinda do pregador, seus passos afundando no chão, os suspiros e resmungos cada vez mais fortes. Giovanni filho se antecipou à chegada de seu amigo e o encontrou quase no meio do caminho. Foi a sorte do pregador. Giovanni filho trouxe aquele monte de trapos sem bagagem em seus ombros, quase arrastan-do a carga leve na qual seu amigo se tornara. O pó das andanças, o suor, a fome e o cansaço - tudo gritava por entre as roupas sujas e meio descosturadas. “Eu fracassei, Giovanni. Eu fracassei?” é o que ele trazia em sua boca sem dizer palavra alguma.

Já dentro de casa, no banheiro, o mesmo banheiro de outras vezes, o pregador passava os olhos nos azulejos que conhecia tão bem. Sempre tentara entender os dese-nhos ali impressos, os traços azuis perdidos no meio do fundo branco, a dispersão sem fim que hipnotiza. Após um longo e bom banho, começou a retornar a si, refa-zendo os mesmos atos de sempre, procurando ver melhor para poder julgar. Abandonando os azulejos, ele vestiu roupa nova emprestada de Giovanni e, fazendo a barba no espelho, começou a ser tomado de algo que o incomodava desde quando, ao virar a esquina, avistou a casa de seu

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amigo. Marta tinha crescido, estava gorda demais. Mar-ta, a mais amiga, assim tão gorda? E a mãe do Giovan-ni, como envelheceu! Como está triste! Em meio ao seu sorriso, ela sempre escondeu uma tristeza, uma enorme de uma tristeza. O pregador sabia distinguir essas coisas muito bem. Pouco a pouco tudo começava a fazer sentido.

Em seguida, amparado por Giovanni, o pregador viu Mariinha se aproximando, o olhar baixo, os passos leves, como que escondendo alguma algo. O ventre estufado, atrás das roupas largas, o rosto redondo, brilhando – Ma-riinha estava grávida, grávida!!! Três anos atrás e todos eram quase crianças. Há três anos ele e Giovanni entrando na faculdade, amigos, as conversas sobre a vida, as dúvi-das, planos, fins de semana com seu amigo, a família de Giovanni, o cuidado, o imenso cuidado. E agora tudo jo-gado fora. Uma desgraça, mais uma desgraça nessa sema-na de desgraças! Mais um fracasso do pregador. Enquanto estivera fora, a vida do lugar invadiu a casa e tudo se con-sumiu. Só Giovanni ainda amigo, mesmo em meio a essa lamentável realidade. Tudo piora, e é com seus próprios olhos que o pregador chega a essa conclusão.

Saindo do banheiro, o pregador é outro. Já recompos-to, ele pode realizar sua vigília pelas almas. Na sala, todos o aguardam, a mesa posta, os rostos a ânsia por novida-des. Mas o pregador entra e desvia o olhar. O desânimo que seu atraso impôs, a impossibilidade de reverter o que já foi cala os que esperam. Sem dizer uma palavra, ele constrange. Todos abaixam a cabeça para não ver a mi-séria do pregador. “Vamos ver o pai. Ele trabalha num açougue agora” foi o que Giovanni disse ao amigo para retirá-lo dali.

Tarde de sexta-feira e o fim de semana com os Gio-vanni está em seu início. No caminho para o açougue, o pregador foi relembrando as vezes que passou por essas

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ruas. Antes de ir fazer teologia, ele e Giovanni cursavam o Centro Superior de Pesquisas. Nos intervalos das aulas, nos longos dias que ficam pelos corredores da institui-ção, eles falavam sem parar, uma conversa entremeada de porquês e olhares tímidos para as mulheres. Sempre as inquietações acabavam nos detalhes de uma vida sexu-al nula. O que iriam fazer, o que iriam estudar, era logo seguido sobre os desejos de estar com uma mulher. Pois eles falavam e riam de coisas que nunca aconteciam. Pelo menos para o pregador.

Quando Giovanni o convidou para o primeiro fim de semana em sua casa, o pregador não quis aceitar. Giovan-ni tinha irmãs. Desde a morte de sua avó , o pregador nun-ca ficara tão perto por tanto tempo de alguma mulher. Não acreditou quando, em uma sexta-feira à tarde, Giovanni o arrastou para sua casa, uma viagem de ônibus para o subúrbio. Quando chegaram, o medo da proximidade com a família de Giovanni se duplicou no medo frente aque-le povo festeiro cruzando as ruas como agora. O pai de Giovanni os aguardava com um carinhoso abraço. “Então você é que é o pregador?” Eu olhei para o Giovanni e bri-guei com ele. Como ele podia ter feito isso, contar íntimos segredos? Só faltava ter dito sobre os devaneios com mu-lheres. “ Entre, nossa modesta casa é sua”, disse o pai de Giovanni, com sua voz grave e sotaque estrangeiro. Logo o pregador foi trocando a desconfiança pela maravilhosa acolhida. Só não podia olhar para as irmãs de Giovanni. Ele era uma visita, apesar de ter quase certeza que uma delas ou as duas mesmas estavam lhe dirigindo excessiva atenção.

Desde criança havia essa desconfiança. Era uma coisa que o perseguia. Quando sua avó lhe contava histórias, sempre achava que eram sobre ele, que a avó vivia fa-lando dele o tempo inteiro. Tudo se resumia à sua figura.

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Em qualquer lugar que a avó o levasse, o mundo parava e todos elogiavam o garoto da vovó – uma criança linda, diferente, separada, uma dádiva dos céus. Desde pequeno, sabia que tinha uma missão, que a vida não lhe pertencia. A avó, sem filhos e sem marido, cuidou e formou o prega-dor até morrer quando o rapaz se preparava para os exa-mes no Centro Superior. “Prometa uma coisa, meu filho: prometa que nunca vai esquecer o que te ensinei. Prometa que sua vida será um testemunho vivo disso. Quando se sentir fraco ou inseguro, ore aos céus, que os céus vão te ajudar.”

Com o abalo da perda de sua avó, em meio a dúvidas e angústias de sua idade, o pregador não optou por teologia. Sozinho no mundo, ele pensou em como sobreviver, em como ganhar seu sustento. Mais tarde, quem sabe, faria aquilo que tanto sonhou, o que sua avó queria. Era preciso intervir em seu destino pelo menos uma vez. E a chance era essa.

Mesmo assim, durante as conversas com Giovanni, o pregador, quanto mais prosseguia no curso e no difícil convívio com os outros alunos, mais e mais demonstrava sua tristeza, a enorme de uma tristeza por se afastar dos caminhos de sua avó. Tudo era como um adiamento. Tan-to que, ao fim do primeiro ano de curso, ele acabou por se transferir para um internato teológico e nunca mais viu Giovanni nem seu pai.

Enquanto caminhavam para o açougue, em meio ao tu-multo das pessoas que chegavam para o fim de semana já com garrafas de bebida na mão e cuspindo indecências, o pregador foi sentindo seu coração bater mais forte. O pai de Giovanni sempre fora um mistério. Desde a primeira visita, o pregador sentiu-se atraído pela figura dele. Não sabia por qual razão era tão bom estar ao seu lado. O Gio-vanni pai trazia muito da bondade de sua avó morta, mas

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de um modo outro. O pai do Giovanni tinha algo que não ficava com ele mesmo. Ele não trazia a atenção para si, mesmo se destacando por sua altura, voz e cabelos grisa-lhos. Sempre estava fazendo alguma coisa com as mãos e olhando a quem quer que estivesse em volta com um lar-go sorriso. Todos recebiam dele o seu melhor, e ele ouvia com cuidado o que lhe diziam. Descascando alguma fruta ou consertando algum aparelho, o pai do Giovanni não se desligava da presença de quem estava em sua frente. Ele via e ouvia a todos, mesmo que ninguém prestasse mesmo muita atenção nisso.

Uma vez o pregador, impressionado, falou com o Gio-vanni sobre seu pai. Giovanni passou logo desse assunto para outro, como se tudo não fosse muito extraordinário, apesar de ser incapaz de esconder o orgulho que sentia. O seu pai era desse mundo. Giovanni o tinha todos os dias. E tudo era ao mesmo tempo estranho e comum naquela casa.

Quando chegaram ao açougue, o pregador quase teve um ataque: o bondoso senhor de antes estava coberto por carnes dependuradas em seus ombros. Os dedos sujos de sangue exibiam cicatrizes da faca afiada para o corte rápi-do. Moscas sobrevoavam o lugar tomado pelo povo que comprava carne. Até nos cabelos brancos uma vermelhi-dão sinuosa e grossa escorria. O pai do Giovanni cortava as carnes dependuradas em seus ombros colocando, nos sacos que a multidão estúpida e faminta abria, os pedaços desejados pingando sangue. Os pés de todos socavam a terra com a baba de sangue e os restos de gordura do boi se desmanchando.

“Fracasso! Tudo meu fracasso!” era o que ressoava pelo corpo inteiro do pregador. A família dos Giovanni se consumia e o pregador estivera fora. Se ao menos tives-se aparecido um fim de semana desses, poderia ter feito

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alguma coisa. Mas o Diretor de instruções lá do interna-to era rígido: primeiro, o treinamento, depois, a colheita. “Não se pode ir atrás das almas de alma vazia” - é o ele repetia a todo instante. “Fracasso! Fracasso! Semana de fracassos!” resmungava o pregador.

Depois de dois anos de estudos e instruções, era neces-sário realizar seminários orientados. Então os teologandos eram enviados, durante a Semana Santa, a lugares distan-tes, esquecidos. Lá pregavam em uma programação bem organizada, com slides e músicas. De Sexta a Domingo o mistério da cruz era apresentado aos corações. Ao tér-mino, apelos eram feitos e as pessoas se convertiam. De-pois, a Organização enviava pastores. Estes, junto com os convertidos, construíam igrejas e prosperavam a semente lançada pelos teologandos. No último fim de semana fora a vez do pregador. Andando pelas ruas barulhentas e sujas de agora, revendo o colapso da família de Giovanni, tudo se fundia em sua derrota.

“ Então o pregador está de volta?” disse o pai de Gio-vanni, vindo com braços abertos, em meio a aquela gen-te e aquela carne podre. Não houve tempo de recuo. O pregador logo estava imerso naqueles enormes braços com uma maminha ou uma alcatra pulsando em seu nariz. “Esperem um pouco. O açougue tá fechando. Daí a gente volta prá casa. Que bom te ver, pregador, mesmo você estando tão acabado. “ Todos riram do pregador naquela bodega. O espaço apertado aumentou tanto os sons das bocas até virarem ruídos. Em busca de um pouco de ar, o pregador largou o abraço do pai, atravessou a multidão porca e foi se sentar na calçada. Giovanni veio atrás rin-do. O pregador olhou sério para seu amigo e pensou dizer “Como vocês deixaram isso acontecer?” Giovanni, pego de surpresa, tentou entender o que o pregador perguntava sem falar. Diante de Giovanni estava ali sentado e acu-

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ado um homem-saco-de- ossos, desesperado e oprimido por não se sabe o quê. Quando despontou na rua, Gio-vanni nem reconheceu o amigo. Mas depois, ao ver quem era, saiu correndo. Palavras sem sentido escorriam de sua boca, uma baba seca de dias plantada em seu rosto. Após levá-lo para o banheiro, Giovanni conversou com a mãe e as irmãs e ligou para o pai. Quem tinha voltado não era mais o pregador. Dois anos sem contato e agora assim desse jeito. Era preciso ter calma e paciência. Foi o que o pai de Giovanni aconselhou ao telefone. “Deixem ele se mostrar, deixem o tempo falar pela boca dele. “

E ali sentados no meio-fio, os dois amigos estranha-vam um ao outro. No passado, o pai de Giovanni era dono de uma loja de bicicletas no centro. Era uma felicidade ver aquele homenzarrão consertando correias e guidons e conversando com os garotos e com os pais dos garotos. Um cliente ficou pasmado com aquilo e lhe propôs so-ciedade. Enquanto o pai de Giovanni trabalhava, o sócio roubava tudo, até conseguir, para salvar as dívidas, trans-ferir para si a propriedade da loja. Vagando de trabalho em trabalho, de casa em casa, eles vieram parar longe. Agora o pai do Giovanni saía do açougue rumando na di-reção deles, secando suas mãos ainda vermelhas: “Vamos prá casa. Lá você me conta suas andanças, pregador. Eu senti sua falta.”

Durante o primeiro ano da faculdade, antes do Inter-nato, sempre o pregador vinha passar os fins de semana com os Giovanni. Com o tempo ele sentia menos receio das meninas e era tratado como um membro da família. Com essa proximidade, ajudava na limpeza, nas compras, acompanhava as moças nas festas, ouvia suas queixas, apartava as brigas, participava das discussões e dos pla-nejamentos. Protegia, aconselhava, como um anjo, aquela casa.

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Mas a maior parte do tempo era despendida com o pai do Giovanni. Ia com ele em seu trabalho de consertar bi-cicletas em uma oficina mecânica, passavam juntos pelo supermercado e faziam comentários engraçados sobre os vizinhos e as pessoas na rua. Giovanni, em um jantar, até comentou rindo que o pregador ia mais lá por causa do pai que pelo amigo, o que causou enorme desconforto e maior riso naquela mesa.

Nessa noite, na cama, dormindo, o pregador lembrou-se das palavras de sua avó, de sua dedicação a algo maior que ele mesmo e viu que aquele não era seu lugar, que nunca aquela seria sua família. Entregue a um cotidiano emprestado, o pregador apenas adiava o inevitável. Por ser assim só e sem ninguém, não pertencia a uma casa ou a uma gente. Era de todos, de todo o mundo. Pensando nessas coisas, sentiu-se tomado de uma emoção tão gran-de que em sua mente claras imagens de um querer agir e de um poder efetuar se fundiam e multiplicavam felizes situações de encontro e ajuda incessantes. Todo esse so-frimento e isolamento tinham uma finalidade. E, em meio a esse arrebatador sentimento que o levava para além de si, ouvia a voz de sua doce avó contando a história de Cristo, uma história que parecia ter esquecido durante o dia a dia preocupado com o que comer, o que vestir, onde morar. Era a história mais triste de todas, que ele havia escutado ainda quando criança, de um menino diferente que deixou sua casa para aliviar a miséria dos outros e que, depois, jovem e maduro, no auge de sua vida, foi assassinado de modo tão cruel e violento, que só de se ouvir o que aconteceu não resta nada mais o que fazer senão lamentar, lamentar com todas as forças até não ha-ver mais lágrima e corpo algum para lamentar, como em uma tarde fria, quando sua avó lhe contou pela primei-ra vez o que houve com o senhor Jesus, e ele, com seu

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coraçãozinho sem ninguém, encheu-se do sofrimento do morto, e trancou-se em um quarto e chorou, chorou horas e horas até tudo desaparecer de sua frente. E agora, não mais criança, ajoelhado, em frente da cama, ao lado de Giovanni dormindo, sabia que o lamento era sem fim, e que todos deviam entender isso, todos deviam chorar pelo Jesus morto, incompreendido, rejeitado, ridicularizado, sem lugar entre os seus, sem lugar nessa terra. Aquele que se esvaziou de tudo, que se humilhou, que não espera-va nada de ninguém, deve agora encher o coração de to-dos. O primeiro amor do pregador, a coisa mais forte que aconteceu em sua vida, retornava nesse instante com toda intensidade. Atrás desse amor, sem dormir, de madrugada mesmo, após deixar um bilhete para os Giovanni expli-cando tudo, o pregador foi para o Seminário Teológico. Era irresistível o chamado. Toda a sua vida estava nisso. E se quisesse mais vida, teria que se entregar com toda sua alma, com todo seu entendimento para esse antigo clamor que atravessou as tardes frias de sua existência.

“ Então você está de volta, pregador. Ficamos muito preocupados. Você nos abandonou. No bilhete apenas agradecia por tudo. Mas se foi para seu melhor, que as-sim seja. Não se pode obrigar ninguém a nada. As pessoas de qualquer jeito encontram o que querem, mesmo que não saibam. Mas da próxima vez que você sumir, não dei-xe bilhetes. Apenas desapareça. Eu gostaria apenas que você tivesse certeza do que fez.” Foi surpreendente o que o pai do Giovanni disse para o pregador durante a volta do açougue. Giovanni se divertia com tudo. Ele conhecia o pai. Não entendia porque ele se preocupava tanto com todo mundo, porque sempre uma palavra a mais. Era um quilo de carne moída e umas palavras. Tanto que o pai foi despedido várias vezes desde a oficina mecânica e quem sabe quanto tempo iria agüentar no açougue. “ Mas agora

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que você voltou eu quero que me diga o porquê. O que te trouxe de volta? Vai se preparando: nesse fim de semana, você vai ter muito que falar. E eu quero ouvir tudo, viu, tudo. O que você pensa? Que some e aparece assim do nada sem dizer coisa alguma ? Se você pensou que veio prá cá descansar e ir embora do mesmo jeito que chegou é melhor ir procurar outro lugar prá dormir. Eu sei que você não vai fazer isso. Eu sei que você não tem prá onde ir. Mas já que está aqui, vai ter de falar. Hoje, amanhã, depois de amanhã, em um momento nesse fim de semana você vai falar. E não há nada que impeça isso. Você voltou porque precisa falar.”

Estavam já em frente da casa. Mariinha, acariciando o tempo inteiro sua barriga, conversava com o namora-do e os amigos dele. Armavam uma festa. Marta e a mãe chegaram convidando para o jantar. Não havia lugar para todos e o pregador em pé, com o prato na mão, comia olhando para aquela família. “Mariinha grávida!!!” Não conseguia parar de pensar nisso e no que o pai lhe dissera. Eram muitas coisas em sua cabeça. Durante o jantar, ora e outra soltava longos suspiros como os de sua avó. Toda vez que algo difícil de dizer ou fazer a rondava, lá vinha aquele arremesso de ar para fora de seus pulmões, esva-ziando-a. A avó do pregador parecia morrer nesses mo-mentos, como se a vida pulasse para fora do corpo e fosse embora, liberta. Chegava até a estremecer a coitada, como uma pasta de dentes apertada até o fim, estremecendo e assobiando, e todos voltavam seus olhos para ela que, fa-ceira, retomava o cotidiano bondoso seu de sempre. Junto com os suspiros, vinha um agudo aiaiai, que logo emen-dava em uma risada para disfarçar. O pregador aprendeu a suspirar com sua avó, mas de um modo todo especial: ao invés dos gemidos, emendava, com a descarga da respira-ção, um fluxo sibilante como um de um ônibus soltando

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freio a ar – pssssssss. Sem esconder o suspiro, pois, o pre-gador, com essa versão, manifestava, no esforço da mano-bra, o reforço de tudo que fazia. De longe dava para sentir a presença do pregador e sua insistência em participar não participando do que em volta da mesa se dava.

“Vamos, meu rapaz, o tempo está passando, acabe logo com esse calvário: o que você fez prá ficar assim desse jeito? É o que todos querem saber. Você conseguiu encon-trar o que queria? Pelo que eu vejo, não: você não pára de resmungar e suspirar, olha esquisito prá todo mundo, não conversa. Não quer mais saber da gente? Hoje e amanhã e depois: não passa disso. Do que você está fugindo? Não se lembra mais de nós?” disse com toda a sua bondade e autoridade o pai. A dona Giovanni puxou o marido pelo braço e serviu seu prato entre sorrisos. Ele se virou para ela e disse que precisava ‘sacudir o garoto’ para que ele falasse. Mariinha conversava afetuosamente demais com seu namorado. No meio desse leve tumulto, ela se virou para o pregador e disse:” Vamos para uma festa? Vamos, como antes?” O pregador, morto para se livrar do assédio do pai, aceitou. O pai olhou para todos rindo e se retirou da mesa. Dona Giovanni recolhia os pratos. O pregador se prontificou a lavar a louça junto com o Giovanni. Marta continuava à mesa, comendo.

Na cozinha, Giovanni se aproximou do pregador: “En-tão você virou pregador mesmo? E as mulheres? Lembra de nossas tardes quentes no Centro Superior, vendo as mulheres passar, o sol pegando fogo e você triste, cada vez mais triste. Você dizia que quando via uma mulher com um homem isso te dava uma tristeza porque ela seria infeliz. Você carregava a dor das mulheres, de todas elas. Quando alguma delas te contava que estava namorando ou que havia dormido com alguém você quase chorava. Como é possível haver alguém assim? Você, pregador,

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você desde aquele tempo já era diferente, prá não dizer outra coisa... E ao mesmo tempo cheio de vontade, cheio de desejo, que chegava até assustar. Você conseguiu en-tender isso? Você conseguiu estar com uma mulher sem sofrer?” O pregador lavava as louças silenciosamente, es-tranhando tudo o que seu amigo dizia. Giovanni lhe trazia um passado desconhecido, distante, que não lhe pertencia. Com aquelas palavras em seu rosto, não restou mais nada ao pregador senão perguntar com os olhos: “Do que você está falando, Giovanni? Quem era esse? “ “Você pregador, você mesmo, alguém com um mundo inteiro dentro de si, perdido dentro desse mundo, chamando todos para mo-rar nesse mundo. Como você pode esquecer isso, heim? Você era sempre mais interessante que as aulas”, replica-va o amigo. “Um homem pode virar outro, Giovanni. Um homem pode, e foi isso que aprendi” era o que pregador pensava ao guardar os pratos. “Quem é você agora, meu amigo, quem é você?” Sem pena de si e com um tipo de amargura sem apelo, o pregador encerrou o curto diálogo saindo devagar da cozinha, repetindo baixinho entre seus dentes:” Um fracasso, um tremendo de um fracasso.”

Após o trabalho com a louça, o pregador e Giovanni foram com Marta para a festa na casa do futuro esposo de Mariinha, bem no fim da esquina. Era um barraco caindo aos pedaços, ponto de tráfico do bairro, cheio de varais de roupa. Na obrigatória escuridão do quintal e do bar-raco, casais entregavam-se à costumeira e desenfreada exasperação, acobertados pela mesmice de outros casais. Jovens em pé nos cantos mais escuros aguardavam sua vez metendo na boca tudo que vinha em suas mãos. Con-tra a única lâmpada do quintal, a fumaça dos cigarros e o zunir dos gestos sorridentes esvoaçavam feito fumo de um cano de revolver. A música alta e repetitiva assava os ouvidos junto com a carne do churrasco comprada no

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açougue do pai da Mariinha. Depois de umas duas horas ali, o pregador estava com sede, muita sede de água, sim-plesmente água. Nunca havia visto tanta gente fumando baseado e se enlameado de esperma. O chão estava toma-do de papéis higiênicos e latinhas de cerveja. Demoraria anos para aquilo ficar limpo. Por isso não limpavam. Ti-nha festa nova todo fim de semana. Entre a volta à casa e a permanência ali, o pregador resmungava de um lado para o outro, fazendo uma trilha em meio ao lixo anônimo do chão. Até que esbarrou em Mariinha. O namorado dela fora buscar mais cerveja e outras coisitas mais. Mariinha, com os olhos cheios de luz e um hálito vibrante, olhou bem para ele e disse: “E aí pregador, se divertindo? Já pensou: se você não tivesse ido embora, a gente podia até ter namorado. Mas um homem de Deus namoraria alguém como eu? Você conseguiria, pregador, você conseguiria me engravidar assim grávida e tudo mais? “ O pregador tentou mudar de assunto mas ela se impôs: puxou pelo casaco o pregador e o trouxe para junto dela e deu um beijo em sua boca. Depois disse “ E aí, pregador, gostou? Qual a diferença entre mim e as outras, entre uma mulher perdida e uma virgem?” Ele foi se afastando, passando a manga do casaco na boca e Mariinha começou a gritar, como se alguém pudesse ouvi-la no meio daquela festa, gritando com uma mulher violada:” Você me recusa ago-ra, mas sempre me quis. Mas eu é que não queria você. Eu queria um homem, um homem de verdade, não você, a sombra rosnando pelos quartos. Você me dá nojo, viu? Nojo! Pensa que não percebi você me olhando cheio de censura hoje no portão. Você acha que é fácil carregar uma barriga assim e ainda o olhar de reprovação dos ou-tros? E o que você queria que eu fizesse? Eu estou viva, ouviu? Viva! Eu abri minhas carnes pro mundo, pregador, e gostei. Agora você tem que abrir as suas. Você não é

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melhor que eu. Você tem nojo tem mim? Como uma coisa sem vida, sem serventia assim pode ter nojo, logo você que não tem ninguém, nem casa, nem família, nem roupa, nem comida. Nada do que é teu te pertence. Você vive uma vida de caridade, tomada a força por pena. Por que você voltou para nossa casa, pregador? Qual é o sermão que você veio me dar ? Eu não preciso mais de sermão, pregador, agora eu não preciso mais de nada !”

Como ela pode fazer aquilo, como? De uma hora para outra a música foi diminuindo e todos pararam de dançar. Uma mulher grávida chorando com os olhos para o prega-dor. Todos se viraram contra ele. Giovanni impediu uma desgraça maior arrastando o Pregador para fora. Mariinha foi levada prá dentro de sua nova casa. Aquela noite era a inauguração do novo lar dela. Nada poderia ter saído mais perfeito.

O namorado chegou logo depois e jurou de morte o pregador. Se alguma coisa acontecesse com Mariinha ou com o filho deles, o pregador nunca mais abriria sua boca. Escândalo até altas horas da manhã na frente da casa dos Giovanni.

No quarto, tremendo de frio e medo, o pregador sus-pirava e resmungava. Queria se ajoelhar e orar, mas não conseguia. Orar a quem? Pedir o que? Era o que vinha em sua mente. Giovanni tinha visto tudo e sabia que era maluquice da irmã. O pregador ficou dormindo sentado, ao lado do amigo, até que tudo virou sonho e silêncio. O dia raiava e mais uma vez o pregador estava entregue, só, à sua insone agonia.

No café da manhã de Sábado, as bocas engoliam o pão e o leite bem devagar. Ninguém falava com ninguém. Só o pai, avesso ao calar e ao resguardar-se, procurava in-serir um pouco de movimento em sua casa. E conseguia. Aos poucos as brincadeiras e as histórias do velho e bom

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homem foram libertando o lar dos Giovanni da cobiça sangüínea da vizinhança. Mariinha surgiu no meio da ma-nhã, quando o pregador e o Giovanni lavavam a louça e a mãe fazia o almoço. Ela veio com o namorado. Chegou, abraçou os pais, os irmãos e por último o pregador. O na-morado dela, um sujeito magro, com um bigodinho ralo e cabelo sujo e revirado, pediu desculpas por tudo, o boné de campanha política na mão. Depois arrastou Mariinha para o fim da rua. Ela morava lá agora. Giovanni e o pre-gador levaram o resto da mudança dela. Marta alegrou-se com algumas coisas que sua irmã deixou, além do quarto só para ela.

Quando fizeram a mudança, depois do almoço, os dois amigos não deixaram de perceber a novidade que o sujei-to magro trouxera para Mariinha: uma piscina de plástico colorida e bem vagabunda, que só cabia uma pessoa. Se-ria para o bebê. Mas quando eles Giovanni e o pregador chegaram lá com o resto da mudança, estavam os dois, homem e mulher, quase que atolados dentro das águas amarelas daquela mochila plástica. E o casal ria e se di-vertia como duas crianças ou dois amantes procurando uma posição mais confortável para o ato. O pregador ven-do aquilo suspirou e lembrou-se de seu batismo. Em pé, com as malas de Mariinha na mão, o pregador viu-se atra-palhado e feliz para aceitar sua nova vida, sepultando a antiga nas águas batismais. O pastor, alto e magro, diante da igreja, no tanque batismal, levantou sua mão esquerda e perguntou:” É de sua livre e espontânea vontade ser ba-tizado nas águas, deixando para trás a sua vida em prol de uma nova existência em Cristo Jesus? Você, em sua tenra idade, aceita Jesus como seu salvador pessoal? Você se compromete a levar essa mensagem de vida nova a ou-tras pessoas? “Então após uma série de perguntas e outra série de respostas afirmativas, “o pastor colocou sua mão

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esquerda em minhas costas, eu segurei sua mão direita contra meu nariz e boca e ele me fez imergir nas águas. Enlevado por aquele momento, desci docemente no tan-que até que abri os olhos e comecei a respirar, enchendo os pulmões d’água, me afogando. Quando ele trouxe de volta minha cabeça para fora d’água, eu tossia, tossia, os olhos vermelhos, a respiração confusa e desesperada, o choro preso na garganta. Abri melhor os meus olhos e vi a igreja inteira me olhando com viva curiosidade ou riso. Bem no banco da frente, minha avó sorria tranqüila, emo-cionada com minha nova vida. Ela me contara a história mais bonita do mundo, e por causa dela eu deixei para trás os primeiros nove anos de minha vida e me tornei um novo homem. Eu não entendia bem o que significava isso até encontrar os Giovanni. Agora vendo aquele casal na piscina eu tinha a certeza que continuava a não entender muito bem as coisas. O novo homem havia perturbado o menino e o menino chegara mesmo a ser um homem, um novo homem? “

Veio a noite e o cerco do pai de Giovanni se intensi-ficou até o ponto em que todos foram dormir e ele disse que iria ficar com o pregador, jogando dominó e conver-sando. “Vamos, meu rapaz, somos só eu e você. Jogue a pedra. Jogue rápido. A gente tem a noite inteira. “Então eu comecei a falar. Primeiro, quis perguntar como ele tinha deixado as coisas chegarem a esse ponto, a essa miséria. Ele era o pai, ele tinha de ter feito alguma coisa. Mariinha grávida, mulher de um traficante. Será que ele não via o choro preso da mulher, sempre se ocupando com tortas , bolos para não pensar em nada? Será que precisava vir alguém de fora para dizer as coisas? E acho que ele teria me respondido, perguntando: “E o que você fez, o que você fez enquanto eu destruía minha família? Onde você estava enquanto tudo aqui ia mal? Que coisa extraordiná-

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ria é essa que te levou prá longe e da qual você foge? O que você me traz no lugar daquilo que estou perdendo?” Mas sem uma palavra de minha parte, o pai só insistia amorosamente me olhando “Me conte, me conte alguma coisa, me conte a sua história. Você é o pregador, você precisa contar.”

Diante daquele pai que me conhecia tão bem, diante daquele pai que trazia a paz, o que eu poderia fazer? Mas eu não queria dizer nada, nada do que houve naquela via-gem.

Logo na hora da partida dava prá ver como as coisas seriam. Depois do embarque tumultuado na rodoviária, um engarrafamento gigantesco prendeu o ônibus por mais de cinco horas. Aquela viagem que já era longa – umas 36 horas - agora se estendia mais. Eu dormi de cansaço, can-sado de esperar, sonhando com o ônibus em movimento seguindo estrada, sonhando com a minha primeira viagem missionária. “‘Ide, ide a todo mundo’. Cristo não diz ‘Ide a uma pessoa’, ‘Ide a um conhecido’. Ele nos manda para além de nós mesmos, para longe de tudo, para onde não sabemos. Vocês, meus queridos, estão cumprindo a pala-vra. Tenham em mente isso: Cristo envia vocês como ele mesmo foi enviado para nós. Ele, que era puro e perfeito, andou neste mundo. É preciso que vocês andem também para encontrá-lo. O trabalho do missionário não é apenas pregar às almas: é pregar a si mesmo. É um batismo di-ário pela convivência com os outros, com o outro que é Cristo.”

Dormindo e sonhando, eu ansiava por logo chegar, as palavras do Diretor de Seminários me lançando quase lá, entre o povo, para converter os corações e deixar entrar a luz dos céus. Depois que me batizei, eu vi minha avó tão feliz, mais tão feliz que decidi batizar também, deci-

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di trazer outros para os pés da cruz, decidi deixar minha avó feliz para sempre. Ela me dizia que tinha cumprido sua missão comigo. E que sua velha vida enfim poderia acabar. Ela, que me amou como um filho, que me deu casa e cuidado, que me ouvia e me guardava, começou a suspirar mais e mais forte, os longos intervalos entre o ar que expirava e os pulmões vazios, enquanto eu sepultava minha vida nas águas. De noite eu vigiava o peito dela, dormindo encostado na cama, uma estranha canção em meus ouvidos. Até que um dia não houve mais esforço nem canção, e minha avó me deixou apenas com seu sor-riso no rosto imóvel e pálido.

O ônibus arrancou forte e eu acordei. Devia ter saído às quatro da tarde daquela terça feira. Em minha frente a enorme cabeça de um menino me vigiava rindo. Com o susto, bati a cabeça no vidro. Ele riu mais e não parava de rir. Eu estava no último banco, número 36. Ao lado ficava o banheiro e o cheiro ruim de todos que estavam viajando comigo. Sorri amavelmente para o garoto e ele franziu a testa e se sentou em seu banco. Sozinho afinal! Peguei minha pasta com os rascunhos dos sermões e a lista de coisas para fazer cada dia. Ao chegar lá na pequena vila tão distante, eu teria que avisar as autoridades religiosas e não religiosas dali, alugar um salão para a série de prega-ções, ir na rádio e fazer os anúncios e, enfim, sair às ruas distribuindo folhetos convidando as pessoas para a mara-vilhosa mensagem do Cristo. Então teria de ver ainda um lugar para me instalar. O dinheiro era curto. Seria preciso conseguir por meio de doações e ofertas o que faltasse. Eu partia para o fim do mundo com muito pouco.

O programa dos sermões já estava pronto desde que Cristo morreu. Afinal, na Sexta feira à noite, eu contaria a traição e os injustos sofrimentos e a morte que o Cristo re-cebeu logo daqueles que veio ajudar. Na noite de Sábado,

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com o Cristo na sepultura, a pregação iria se ocupar dos que ficaram, dos apóstolos, de sua convivência com Jesus, vendo milagres e, às vezes, pouco entendendo quem ele era e o que ele fazia, até o último dia da vida de seu mestre e as dúvidas e inquietações quanto ao futuro. E, ao fim, no domingo a noite, o clímax de tudo: a ressurreição e a esperança para todos, mesmo sendo quem somos, com-preendendo ou não, culminando em um chamado para conhecer melhor o Cristo e transformar sua vida. Tudo com slides e belas músicas. Seria impossível não se sentir tocado com essa história. Eu mesmo era prova disso, o pregador, uma nova criatura por Jesus.

Meu devaneio foi interrompido de novo pelo meni-no do banco da frente me olhando e pulando no banco. Decidi não rir, isolá-lo. Agora ele falava me chamando atenção para uma estrela no céu. O infeliz do menino não parava de gritar ‘estrela, estrela’, me obrigando a abrir a cortininha da janela e olhar para o céu. Mas eu não queria olhar para o céu. Ninguém ali iria me fazer olhar para o céu só porque um garoto queria que eu olhasse. Sem limites e educação, o garoto olhava para mim e para a estrela falando o tempo inteiro ‘ Ela tá lá, ela tá seguindo a gente’. O garoto insuportável não deixou em paz nem a mim nem a estrela até a primeira parada do ônibus para o jantar, isso já umas 11 da noite. Assim que o ônibus parou, me apressei em sair, mas o corredor se entupiu de uma gente lenta e difícil. Sob seus olhares ameaçadores e resmungos, tive de ir cedendo minha frente até que todos descessem. Ao fazer os pedidos na pequena lanchonete de beira de estrada, aquele povo gritava e xingava com uma força maior que a fome que pareciam ter. Eu sim estava morto de fome e sede, cheirando a urina, e babado pela criança mística da estrela.

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Assim que recebi meu misto quente e um copo de suco de laranja, ao meu lado estava justamente essa criança e uma mulher mais velha, acho que sua avó. A senhora es-tava indiferente a tudo, deixando que o garoto devorasse com o olhar minha comida, como se estivesse frente a frente com sua amada estrela. Ofereci um pedaço e ele pegou tudo, até parte de meu dedo indicador. Olhei para suas roupas e rosto sujos, iguais aos que o ônibus carre-gava, iguais a todos ali em minha volta. Agora, sob a luz fraca da lanchonete de beira de estrada, eu pude ver quem viajava comigo. E, como estavam indo para a mesma ci-dade que eu, dava prá antecipar grande parte do que eu enfrentaria quando lá chegasse. Era o feriado de Semana Santa. Deus morre e o povo faz feriado, comemora. E a cidade se preparava para uma festa daquelas com o retor-no de seus parentes e amigos.

O motorista buzinou. Era hora de voltar para o ônibus. Engoli a fome e os maus pressentimentos e fui para o meu banco. Atrás de mim, vinha o garoto místico e sua avó-tumba. Lá de meu banco em pé vi a procissão de figuras que entravam no ônibus. Um soldado de óculos escuros ouvindo um Mp3 Player vagabundo ligado a todo volu-me; uma mulher gorda e grávida com mais cinco crianças em único banco; um velho magro e de chapéu coco mas-cando a dentadura e rezando a todo instante; um casal de meia idade incrivelmente apaixonado, sempre se abraçan-do e beijando e rindo e rindo e rindo; um outro casal de cegos – ele, sarará e ela bem negra – ambos apalpando os bancos e discutindo sem parar; uma mocinha muito linda, linda de verdade, mesmo sem alguns dentes quando sorriu para mim; e muitas outras criaturas que não pude ver mais porque o motorista de uma ré tão brusca que me arremes-sou para o meio do ônibus, para os pés daquele povo, para

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os pés da moça banguelinha. É para esses que eu tinha de pregar. E já o fazia beijando seu chão.

De volta ao meu solitário banco, o único banco sem acompanhante do ônibus inteiro, o menino da estrela ago-ra estava debruçado na janela, o vento em seu rosto. Dei-xei de ser seu brinquedo. Eu poderia rever as anotações para os sermões. Mas, quando procurei minha pasta, não consegui encontrar em lugar nenhum. Nada. Lá na pasta estava também quase todo o dinheiro da viagem e tudo que eu iria falar. Desesperado, corri para o banheiro pen-sar no que fazer. Quando foi que isso aconteceu? Quem poderia ter feito isso? Dentro da pasta estavam ainda o terno, meu único terno, e algumas, as únicas e melhores três camisas que eu tinha. No porta-malas do ônibus eu deixei os equipamentos e o material para os sermões e uma malinha com folhetos. Tudo o que eu possuía não estava agora mais comigo. O que havia preparado antes durante meses no Internato se perdeu.

Em minha agonia e perplexidade naquele banheiro fe-dorento e sujo, sem ter lugar onde me apoiar, suspirei fun-do pensando ter encerrado sem começar o meu trabalho. O medo do fracasso incendiou meu rosto, e o sangue e o fôlego corriam pelo meu corpo me abandonando. Entre uma convulsão e um desmaio, caindo no chão cheio de papéis higiênicos pisados e úmidos, olhei para a janelinha do banheiro e via algo brilhando – a luz serena, imóvel e completa de uma estrela, a maldita estrela do garoto mís-tico, o único olho do céu, o faceiro luminar longe e perto, longe e perto...

Não sei quanto tempo depois acordei com as batidas na porta. Já era quase de manhã. Faltava mais 24 horas para chegar na cidade e eu sem pasta, sem dinheiro, com a única roupa minha enlameada de sujeira de gente e urina. A porta foi aberta não sei como e me largaram em meu

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banco. Eu estava tão fraco, confuso e impotente que não vi ninguém, não disse nada nem pude acusar e descobrir quem me roubou. Sem saber quem era o ladrão, descon-fiei de todos. Todos me roubaram, todos me prenderam naquele banheiro, todos estavam juntos contra mim, des-de o garoto e sua avó até o motorista. Me colocaram no primeiro banco do ônibus. A mulher cheia de filhos preci-sava de um banco mais perto do banheiro. Eu fiquei sozi-nho ali com todos atrás de mim. Não desci em nenhuma parada mais. Fiquei ali digerindo minha própria situação.

E lá pelas quatro horas da tarde, cansado de tudo isso, cheio de algo que precisava tirar de mim, me veio uma vontade enorme de vomitar. Olhei para o banheiro e a moça muito gorda acabara de entrar com dois de seus fi-lhos para trocar fraldas e se banhar com a água da tor-neira. Sem pensar em mais nada, abri a janela e expulsei tudo de podre de mim, tudo que dentro de mim havia, como uma comida velha esquecida em uma marmita. Eu chegava a tremer e ficar arrepiado com a potência daquele jorro grosso e amarelo que saía de minha boca. Mas o jor-ro não foi muito longe. Com a velocidade do ônibus e o vento em volta, minha descarga nojenta foi devolvida e se espatifou em todas as janelas do ônibus. Ainda pude ver o pavor das pessoas lá dos bancos finais fechando às pres-sas as janelas enquanto a onda de vômito vinha chegando na direção delas. Durante o resto da viagem as janelas e as cortinas ficaram fechadas. E eu virei uma indesejável unanimidade entre os homens, mulheres e crianças: uma inesquecível, repugnante e ridícula unanimidade.

Então após 40 horas, na manhã de quarta feira daque-la que seria a semana mais esperada de minha vida, sob os olhares, dedos e comentários de todos, multiplicados pelos familiares e amigos ali naquela rodoviária de uma cidade perdida no meio do nada, eu desembarquei trazen-

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do a história do Cristo para as multidões famintas de ver-dade.

Sujo e cansado, fui com o resto de minha bagagem procurar as autoridades. Um estrangeiro já notório como eu, ao invés de abrir as portas, escancarava os sorrisos. Quando cheguei ao padre local, um senhor muito velho e prático, o padre falou para mim que por ele não havia pro-blema algum, que eu poderia pregar o que quisesse. Não adiantava mesmo. O povo dali tinha o coração duro. Nem o Santo Padre podia fazer algo. Além disso era Semana Santa, feriado, e ia haver uma grande festa. Sem festa, já ninguém perderia seu tempo com um pregador desconhe-cido. Imagine agora. “Posso ser franco, meu jovem? Es-tou nessa vida há muito tempo. Não é por falta de sermão que existe pecador neste mundo. A igreja é um hospital. E é preciso ser duro com os doentes. Você é novo, você se acha capaz. Mas eu te pergunto: você ama, você consegue amar essa gente? Cristo veio para a Terra e foi rejeitado, morto. Você chega nessa semana para pregar. Você real-mente ama, ama esse povo para o qual você veio pregar ?”

Com o consentimento do padre, fui à prefeitura. Con-feriram meus documentos e me liberaram. A tarde inteira vaguei atrás de um espaço para realizar a programação religiosa. Ao fim do dia, o dono de um comércio me ofe-receu o salão de cima de sua loja. Disse que não queria confusão e que não era para eu dormir lá. Concordei com tudo. O preço era um absurdo, mas não havia mais lugar para ir. Eu só tinha Quinta feira para divulgar e realizar os últimos preparativos. Estava com a mesma roupa no cor-po há dois dias e não havia encontrado lugar para dormir. Entreguei o resto do dinheiro de minha carteira e fui vagar atrás de uma pousada.

Nada, tudo fechado. As casas trancadas por dentro, cheias de gente e música e comida. Eu andando sozinho

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pelas poucas ruas desertas da cidade. Voltei para o salão alugado e exausto dormi sobre a mala, a cabeça e os pés pendendo para o chão.

Quando acordei, espanei uma nuvem de pernilongos que me sugavam o sangue até morderem meus ossos. Todo dolorido, fui me levantando já com a porta sendo esmurrada. Era o comerciante. Viera pegar cedo umas mercadorias. Esbravejou comigo por ter dormido lá e exi-giu mais dinheiro. Eu disse que não tinha, que somente ao fim das pregações poderia dar para ele alguma coisa. Ime-diatamente o comerciante pegou como garantia o projetor de slides e saiu do salão dizendo que se eu dormisse mais uma vez lá iria tomar o resto do que eu trouxe.

Sem meus sermões e sem o projetor, me restavam os slides, o toca-fitas com as músicas de louvor e os folhetos que estavam na mala para distribuir. Chorando, fui arru-mar o salão para a Semana Santa. Não havia muitos ban-cos. Improvisei umas caixas como lugar para sentar e me sentei sozinho em uma delas olhando para frente sem ter algo para me fixar.

Sai depois para distribuir convites e chamar as pessoas. Colei cartazes e fui na rádio. Andei pelos caminhos de ter-ra batida repletos de casinhas com varais e muitas criança sujas e nuas correndo sem fim atrás de alguém ou alguma coisa. Ao me ver, as criaturazinhas gritavam, xingavam e, às vezes, jogavam pedras. As mães chamavam seus filhos de volta e também gritavam insultos contra mim. Velhos se amontoavam nas calçadas fumando, gemendo um ódio a tudo que anda e não se arrasta. Na porta das lojas e dos bares, homens desocupados acompanhavam cada pas-so que eu dava. Durante o resto do dia parecia que parte de minha missão havia sido cumprida. Mesmo diante de tantas dificuldades, tudo iria sair bem. De volta ao salão, repetia prá mim isso enquanto bebia água da torneira, mi-

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nha única e possível refeição neste e nos próximos três dias. Voltava com medo e com a maioria dos convites em minha mão.

Na manhã de Sexta feira, bem cedo, o comerciante veio com uns amigos e me agrediu. Chutou prá longe o que eu tinha arrumado, pegou novas mercadorias que esvaziaram mais ainda o salão e levou o toca-fitas e os slides: “Eu já avisei - não quero nenhum desconhecido porco e imundo em meu comércio. Faça suas rezas e dê o fora daqui. “

Voltei para as ruas com os folhetos nas mãos. A cidade tinha se transformado. Sobre os meus cartazes pregaram bandeiras coloridas e ornamentações. Vinha música de todos os lugares, de todas as casas, uma orquestração de sons que explodiam contra o corpo e não deixavam nin-guém parado. Era criança, velho, homem, mulher dançan-do em pleno dia sem pausa para almoço e lanche. Andei o dia inteiro tentando convidar algum deles para o sermão de logo mais sem conseguir. Era impossível me aproxi-mar deles, interromper suas danças e felicidade. As ruas estavam tomadas pelas vozes e movimentes de um povo entregue à sua festa e eu não era parte daquilo.

Veio a noite e às 8 horas abri as portas do salão. Pelas escadas chegava apenas a multidão dos sons da rua. Fui para o fundo extremo onde ficava o púlpito e, junto com os gritos, as músicas, as gargalhadas, o ruído da multidão, chegavam também, da pequena janela que ali havia, as luzes dos fogos de artifício e das brincadeiras de lanter-nas e das casas. Eles lá fora, e eu aqui sentado vendo e ouvindo tudo. O céu estava estrelado e a cidade cheia de vida. Dei as costas para a janela, vigiando a porta até se esgotar qualquer atraso. Ninguém passou pela porta. Nin-guém veio ouvir o pregador. Nas paredes resplandecia os contornos dos movimentos da rua, as silhuetas de todos em completa felicidade. Entre nós, mais que as paredes.

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Já dez da noite e eu, com uma ira imensa, saí do salão e fui para as ruas desfilar minha agonia. Com fome, humi-lhado e sem dinheiro vaguei, meus olhos em cada rosto, medindo a exuberância que não é minha. Passeava alheio a tudo, como o vento, e eles imunes a mim. Eu era menos que alguma coisa no meio daquela gente, nem uma figu-ra de escárnio e mal dizer, nem um obstáculo ou tropeço para se esbarrar. Estive entre eles até a festa se acabar e nada. Eu havia trazido com tanto esforço para todos algo maravilhoso, que algo que um dia mudou a minha vida, que me trouxe para aquele lugar longe de tudo. Eu deixara todas as coisas para vir trazer o melhor e eles festejando outra festa no dia da morte do Cristo.

Lá de madrugada voltei para o salão, para minha mala e não pude dormir. Da janela entrava a luz do céu e um frio medonho. Meu braço ardia com as renovadas picadas dos pernilongos e meus olhos e ouvidos estavam cheios da gente festiva. E eu fui começando a ter um ódio tão grande por estar ali, tão grande que meu desejo era gritar contra o céu e contra a terra, gritar alto e continuamente até me tornar o próprio grito ecoando sem parar além de mim até estrondear no rosto abalado de Deus e de cada pessoa. Em meu reduzidíssimo estado de míngua e pe-núria só me restava o ódio, o ódio sem objeto, total, ódio em tudo que vejo. Em breve o comerciante viria atrás de mais pagamento e eu não tinha nada. Logo mais eu sai-ria para distribuir folhetos que seriam recusados. De noite nenhuma alma entraria nesse salão. E a desgraçada de mi-nha viagem teria sido desde o começo inútil. Em busca do Cristo viajei, trazendo sua verdade para mim e para os ou-tros. E tenho as mãos vazias e o corpo repleto de feridas. O tempo para continuar se acabou. Apenas a recusa tenho. Há alguma coisa errada no mundo, as coisas estão fora do lugar e não há nada que dê jeito nisso. Eu me enganei pen-

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sando poder arrumar. Agora bem diante de mim tudo se torna claro e perfeito: confusão é minha, e minha é a tris-teza. Quantas vezes, desde pequeno, viajando de ônibus, os olhos lá fora, vendo as casinhas uma atrás da outra fi-cando para atrás, perdidas entre as montanhas, longe, indo embora e eu com uma tristeza enorme pelas pessoas, tris-teza enorme por suas almas, tristeza tremenda sem choro e lágrima, um vento seco me sacudindo inteiro. “Pobre dessas almas sem Cristo, tristeza dessa vida sem Jesus!” E jurei a mim mesmo que faria tudo de mim para levar onde quer que fosse a história de morte e ressurreição, a espe-rança para os que sofrem, o consolo para os que padecem, uma nova vida bem diante dos olhos. E agora tenho isso, tenho nada, nem projetor, nem toca-fitas nem comida nem ninguém. Tenho apenas fome, muita fome e um corpo ca-riado. Bebo água sem parar e não basta. A torneira já sua com minhas mãos. Espremo o mínimo e engulo gotas. Eu estou cansado, estou cansado de ser o pregador no deser-to, de receber de volta o eco vazio de minha própria voz vazia. Pois estou cheio de tudo isso, estou cheio dessa miséria, dessa vida de varais inutilmente estendidos para o céu. Tenho ódio, ódio dessa gente. Não há porque es-conder nada: não tenho lugar onde guardar. Fui roubado, insultado, enganado e ridicularizado de todas as formas. Por acaso sou eu o Cristo para sofrer tudo isso? Por acaso sou Deus para perdoar Deus? Não, de jeito nenhum. Não sou nem quero ser. Não vim por isso, não vim por mais. Eu não peço nada, não quero nada, ninguém. Eu vim por mim, vim por meus próprios pés para ver que não adianta, que não há como resolver as coisas. O mundo anda por suas próprias pernas e cai ribanceira abaixo. É o que devo fazer: seguir o mundo. O mundo não cabe na idéia que eu tenha dele. E meus ideais e minhas promessas e minha entrega agora eu vejo claramente como esse céu cheio de

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estrelas e distante, eterno, irresistível, mas mudo e sem paixão, agora eu vejo que nada disso vale toda essa can-seira e sofrimento!

A voz do pregador, seu mais legítimo sermão, ecoou no salão até o dia surgir, ressoando contra o som da multi-dão que há muito havia se retirado para suas casas. Lutan-do contra o invisível até a manhã, o pregador perseverou e pode enfim encontrar paz no cansaço. Quando acordou, já era bem de tarde. O comerciante não viera e as ruas estavam silenciosas. Ainda com a fúria da noite, ele foi chutando as caixas, hesitando entre preparar o salão para o sermão da noite ou deixar a cidade. Sem idéia do futuro próximo, ele andava de um lado para o outro não sabendo o que fazer, calculando cada passo seguinte em detalhes que não se completavam. Gastou o resto da tarde procu-rando uma direção, uma resposta em si mesmo.

Veio a noite e nada, apenas o silêncio exalando das pe-dras da rua uma fumaça fina e fria quando o pregador saiu do salão. Aos poucos começou a chover, chover, chover até desabar um temporal nunca visto. Então as luzes se apagaram e nem o ruído dos postes de luz poderia agora abafar os suspiros do pregador. Diante daquela paisagem encharcada e deserta, seu coração parou. O pregador era só uma máquina de ver. Sem medo da chuva ou dos raios que despencavam sobre as ruas, ele foi andando em busca de gente. A cidade fora engolida pela escuridão. A noi-te tinha forma de casas e cercas, e casas e cercas eram profunda amplidão sem luz que não continha nada nem ninguém, ventres dentro de ventres, o fundo sem fundo de um buraco sem bordas. As águas, somente as águas lavando as cabeças de tudo que ainda resistia em pé. E, dentro das águas e do absoluto negror que tudo envolve,

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ia o pregador, o andar regular, lento, o rosto não humano, as roupas de uma nova cor.

E algumas horas depois, na madrugada mais fria e úmida dos últimos anos, o pregador, tremendo de frio e fadiga, avistou lá no fim da cidade, perto de um precipí-cio, uma luz, uma frágil luz lutando para existir em meio à confusão noturna. Na medida em que se aproximava dela foi vendo uma enorme de uma casa brotando da ter-ra, uma casa que podia conter o mundo inteiro. Chegou ao portão, abriu a cancela e entrou. Toda a cidade estava lá, desde o padre até a mulher gorda cheia de filhos do ônibus. Ninguém notou a presença do pregador. No salão principal da casa pessoas caladas, em pé, maravilhadas, uma luz em seus rostos. Ao chão as crianças, muitas crian-ças concentradas no que viam. E soava uma bela música que o pregador conhecia unindo os corações às imagens da paixão de Cristo do projetor de slides. Olhou mais para frente ao lado e o comerciante feliz da vida trocava os slides em sincronia com a música. Nada de palavras, nada de pregador. Cada um podia por si mesmo ver e ouvir a história do salvador. Ele virou seus olhos em panorâmi-ca e viu as pessoas, as pessoas todas que deveriam estar em seu salão para os sermões bem mais preparados que essa improvisada reunião. Não era assim que as coisas deveriam ser. Estava tudo errado. Não era aquela música para esta imagem. Isso não é um filme, uma brincadeira! Não é prá rir agora, nem para calar depois. E as pessoas, alheias a todas essas regras, fazendo as coisas de seu jeito, contemplavam e aprendiam as cenas do último dia da vida de Jesus, respondendo com admiração e entusiasmo que não caberiam em um templo. Aquilo era demais para estar preso à voz de uma só pessoa, ao corpo inerte de gente sentada em fileiras regulares e bem distribuídas.

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O pregador decidiu acabar com a festa, interromper a projeção. Os equipamentos eram seus, tudo aquilo lhe pertencia. Foram roubados com violência, uma suposta dívida, uma injustiça. Quando se aproximou mais do pro-jetor, o comerciante tirou os olhos das imagens e fixou-se firme na figura do pregador. A projeção então parou mais tempo no slide da cruz, Cristo em meio aos dois ladrões. O comerciante encarou o ódio do pregador, a luz dos slides em seus rostos. Nesse intervalo, o povo absorto na cena da cruz entristecia-se, tomado de compaixão pelo sangue derramado do inocente. A imagem trazia o corpo semi-desnudo de Jesus mostrando seus ferimentos. Erguido na cruz, Jesus olhava com dor e sem ira para um ladrão e, em terra, soldados com lanças ora disputavam os despojos do Cristo, ora, em provocação, brandiam suas lanças contra os que iam morrer. Mais atrás, uma multidão observava tudo, uns lamentando, outros em zombaria. A divisão da cena em duas seções convergia para a figura mais ao alto de Jesus que irradiava uma misteriosa luz vinda do céu, um céu claro e limpo como uma palavra prestes a ser pro-nunciada. Entre o suspense do céu e o suspense da ter-ra, demorava-se o debate de olhares que o pregador e o comerciante trocavam, até que o pregador abandonou o lugar, resmungando e suspirando.

Saiu correndo dali, cambaleante e errático, como se quisesse se enforcar. Gemia de frio e desespero, com medo dos raios e das pedras da rua. Pensava que poderia trope-çar, cair e ficar por ali, preso naquela cidade, preso com aquela gente horrível. Perdeu-se. Não sabia como voltar para o salão. Vagou de porta em porta naquela cidade até o dia raiar e a chuva ir embora. Acordou sob o sol de meio dia, justamente ao pé da loja do comerciante, após um terrível pesadelo. Sonhara que a multidão o perseguia. Ele se escondia atrás de árvores ou em esquinas escuras.

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Sempre os perseguidores passavam bem perto dele, quase o descobrindo. Eles carregavam pedaços de paus e pedras para golpeá-lo e fazer uma cruz. O pregador, assustado, segurava seu suspiro e olhava para os céus, para os céus. No último lugar para se esconder, uma dispensa abando-nada em forma de caixão, o pregador se encolhia ouvindo os passos que se dirigiam para ele. A multidão sabia que ele estava ali, o pregador ouvia os gritos se aproximando: “Lá está ele, lá está ele. Vamos, vamos: crucifiquem, cru-cifiquem!” Então um formigamento passou pelo seu cor-po, como se um corpo se fundisse ao seu, um outro corpo indesejável e desconhecido e que aos poucos ia tomando a forma do Cristo do slide: os mesmo ferimentos, os mes-mos remendos, o mesmo sangue escorrendo. Enquanto, com o crescimento das vozes fora da dispensa, via seu corpo transformando-se dos pés à cabeça no crucificado, o pregador, em total e completo desespero, começou a gritar, gritar, negando, negando tudo, preso ao morto em que se transformava: ‘Não, eu não sou o Cristo, eu não sou o Cristo!!!’

Acordou sob o olhar de todos na rua em volta dele, cheios de compaixão. Com toda a dificuldade, o pregador entrou para a loja, subiu as escadas e foi se esconder com os olhos enormes de medo atrás de uma caixa cheia de latas de goiabada.

Enfim, chegou Domingo à noite, e o pregador, ainda encolhido, fora de si, preso à visão e ao delírio dos últi-mos dias. Nunca estivera tão próximo de Deus e isso não trouxera nada de bom. Abriu a caixa com latas de Goia-bada e foi comendo doce por doce até o dia raiar. Não abriu as portas para ninguém nem quis ouvir os chamados que poderiam ter acontecido. Fechou-se com as latas de goiabada, saciando uma fome de dias. Comia, comia sem parar como um bicho fuçando o lixo. E suspirava entre

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o suor do esforço em comer. Olhou para a mala e riu de tudo. Andou pelo salão comendo goiabada a noite inteira. Com o surgir da manhã, olhou para a janela e viu o belo dia de Segunda feira raiando. Tudo estava fora de lugar e ele encontrara o seu. Abriu a mala e foi jogando pela ja-nela com raiva os muitos folhetos ainda guardados, como se jogasse comida para porcos, livrando-se do peso des-sa encomenda que não era mais sua. As ruas se cobriram com aquela nuvem de papéis que tapava o céu do prega-dor, uma chuva grossa e leve sobre espantadas pessoas no comum de suas andanças.

À tarde embarcou, deixando a cidade para trás. No céu brilhava em torno do sol um arco bem distinguível, como um anel que acompanhou o ônibus durante todo aquele resto de tarde. O pregador, cheio de medo, com uma lata de goiabada já esvaziada, tapou seu rosto para não ver o brilhante arco que pendia sobre todas as cabeças.

Dessa vez não vinha só. Ao seu lado, um velho mui-to velho. Com o movimento do ônibus, o velho dormia, apoiando a cabeça no ombro do pregador. O pregador vá-rias vezes empurrava o velho, mas cansou-se e deixou seu ombro encharcar-se com a baba que escorria da boca sem dentes de seu companheiro de viagem. No banco detrás, um homem procurava convencer uma mulher a ceder in-timidade. Até que veio a noite e fizeram sexo forçado ali mesmo, ocultos pelo silêncio do pregador e a curiosidade do resto do ônibus. Ela dizia ‘não’ e ele insistia. Não se sabia se o acordo entre eles era amigável ou um estupro. O que o pregador tinha certeza era que nada disso mais lhe interessava. A noite mergulhou seu olhar na escuridão que passava em sua frente, sem que ele se detivesse nas luzes esparsas de casinhas perdidas na imensidão das re-giões de beira de estrada. Não desceu em nenhuma para-da, nem ele , nem o velho sem dentes. O dia passou com a

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mulher atrás oprimida por um choro discreto e contínuo e as renovadas investidas do violador. Na manhã de Quarta feira desembarcou mais leve do que partira, apenas a mala vazia e a roupa úmida de baba. A moça desceu do ônibus arrastada pelo seu novo amor, o rosto inchado de tanto chorar, as pernas cansadas, a roupa desarrumada, uma nova vida pela frente. Ao sair, o violador deu um dinheiro ao motorista, pagando a indicação de sua presa.

Depois o pregador foi para o seminário, relatou o que houve, foi afastado por indisciplina, e agora se encontra na casa dos Giovanni, em frente do pai, do bondoso pai que o ouve.

Dona Giovanni passou pela sala e perguntou ‘Ainda estão aí? Vocês viraram a noite? ‘ e foi fazer o café. O pai convidou o pregador para irem no comércio comprar pão. Andavam pelas prateleiras, nenhuma palavra diziam. Na volta, passaram em frente da casa de Mariinha. Ela tirava e colocava roupas do varal. Chegaram em casa, comeram e foram dormir. Depois do almoço, o pregador despediu-se de todos, desceu a rua e foi para a parada de ônibus. Os Giovanni observavam os passos do pregador. Ele estava de volta. Os fim de semana trazem de volta quem partiu. O pai de Giovanni ouviu tudo o que o pregador contara e ainda queria bem aquele jovem. Ele podia voltar sem se envergonhar toda sexta feira. Até Marta, o pregador acha-va que ela olhava para ele de um modo diferente, bem diferente após esses anos todos. A Marta tinha crescido, crescido muito mesmo! E em breve nasceria o filho de Mariinha, um filho dela com o marginal seu amante. Mas seria um menino, uma criança nova nesse mundo, alheia a tudo, uma alma. “Uma alma, meu Deus, uma coisa viva bem aqui em minhas mãos!” Foi no que pensou o prega-dor. “Uma vida começando e eu vendo essa vida crescer. Minha avó dizia que cada alma convertida é uma estrela

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na coroa, na coroa de glória em vez da coroa de espinhos que Cristo nos dará quando ele voltar. Uma vida come-çando, meu Deus, uma estrela nesse céu!”

Chegou na parada quase que suspenso no sublime des-sas memórias e sentimentos. Em pé, esperando o ônibus, em meio ao povo do lugar, não via nada, tão feliz e ra-diante que estava, uma imagem que atravessa tudo em volta dela e deixar de ser imagem. Mas o abrupto ruído do motor de um opala branco desgovernado vindo contra a parada o trouxe para o momento de agora. Todos grita-vam apavorados frente ao impacto assassino do carro que dançava na pista. Não havia tempo para fugir, nem freios que segurassem o desastre. O pregador ficou imóvel, pa-ralisado vendo toda sua vida e, principalmente, os últimos dias, passando em seu rosto. Então olho no olho viram-se o pregador e um jovem magro, cabelo sujo, revirado, pa-recido com o marido da Mariinha, o pára-brisa embaçado com o terror do desespero da morte. Frente a esta quase revelação, o pregador ergueu os braços prá se proteger do que via. No último instante, por uma manobra brusca, o carro derrapou e saiu da rota de fuga com a parada, indo capotar umas três vezes abaixo da rua. Todos correram para ver o carro pegando fogo e a fumaça confundia os curiosos e as ferragens. Chegou o ônibus e o motorista e o cobrador desceram para tirar o moço do carro. O pregador estava estático como alguém que não sabe ainda se perdeu a vida ou não. Após alguns instantes, ele subiu as escadas do ônibus e sentou-se. Uma explosão veio depois. Todos voltaram para o ônibus e o motorista seguiu devagar seu curso, os passageiros olhando para trás. Só o pregador continuava imóvel em seu banco, duro feito um cadáver, fitando o infinito, procurando ver além de tudo um lugar longe onde gostaria de estar. A vida debatia-se intensa em suas veias. E era essa vida que o impelia para além de si

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mesmo: o coração pulsando forte, as pernas e mãos tre-mendo, o ar indo e vindo dentro dele, um pedido, uma explicação, um clamor, quem sabe um agradecimento.

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Virada de ano

Não sei bem quando adquiri o costume de ir nessas excursões de feriado. Pior ainda: reveillon. E sozinho. Eu não via mal algum. Afinal, qual a diferença entre viajar acompanhado ou só? Se casais ou amigos precisavam dessas férias, se precisavam estar juntos ali para ficar de bem um com o outro, fazer planos e pedir desculpas, por que eu não poderia ir também? Se todos precisam disso, se todos vão, por que não um homem apenas como eu?

No ônibus fretado eu pensava nisso. Pensava assim sem necessidade de pensar, entre uma e outra distração do caminho, vendo pela janela as casinhas lá longe uma após a outra sendo devoradas pela velocidade da pista. Ao meu lado, o desconhecido companheiro de quarto. Era uma excursão bem organizada: os bancos distribuídos en-tre os quartos, cada pessoa com seu crachá e uma bolsinha branca de brinde. Um animador horroroso de microfone na mão e eterno sorriso na boca se esforçava em divertir os passageiros até o fim da viagem.

Por isso é que eu pensava tanto. Nunca precisei justi-ficar a razão dessas fugas. Por que ter medo de conhecer pessoas durante três dias, ter encontros intensos e depois voltar para casa como se nada tivesse acontecido? Agora, me obrigar a ser feliz, a me reunir com a felicidade co-mum administrada por um microfone risonho e desajeita-do – ah, isso era absurdo! Eu não precisava de incentivo.

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Por meus próprios pés vim até ali. Não estava obrigado a nada. Não era acompanhante de ninguém. Não precisava levar alguém junto pra disfarçar ou duplicar a nossa triste condição.

Foi nessa viagem que tudo começou a mudar. Me pe-guei ali procurando responder às dúvidas e acusações dos outros: “O que um homem sozinho faz aqui? Deve ser insuportável ou doente ou perigoso! Sorria, apenas sorria, meu amor quando ele passar!” Eu me dirigia ao banheiro quase ouvindo o que os olhares me apontavam.

Quando voltei pro meu banco, dei de frente com o meu companheiro de viagem. Era um homem branco, gestos finos e delicados, um sorriso fixo em sua boca. No meio da viagem, pediu licença e foi para o banheiro, tudo sem olhar em meus olhos. Depois fui saber que viajava com suas duas irmãs. Como os quartos eram para dois - sempre são para dois - então a família não pôde ficar junta.

Com toda perícia, o ônibus ziguezagueava nas ruelas na cidade balneária. Dezenas de outros ônibus cruzavam o caminho, despejando mais e mais gente. Seria um final de semana inesquecível. O céu estava cheio de estrelas e um calor terrível derretia todo e qualquer ar condiciona-do. Carros e mais carros entulhavam as ruas. Pessoas en-travam e saíam das lojas. A noite era erguida sob o brilho e o clamor das ofertas.

Viramos uma esquina e o Hotel irrompia seguro, já com os carregadores nos esperando. Da recepção para os quartos tivemos umas sete conferências de crachá pelos funcionários da agência de turismo. Era preciso mostrar que tudo está em ordem e sob controle. Após sete horas de viagem também o que eu mais queria era um banho e sair para beber nos clubes.

Dentro do quarto troquei algumas palavras com o ho-mem branco. Quando você viaja só é preciso conhecer as

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pessoas, conhecer cada uma delas. Não há como fugir. Você se vê obrigado a conversar com elas, ouvi-las. Mas o homem branco falava pouco. Apenas ria e concordava com tudo. Eu escolhi a cama, o armário, tudo o mais. Ele ria e ria, a cabeça dizendo um interminável ‘sim’ que logo me expulsou pra fora dali. Tomei um banho rápido e me vesti mais depressa ainda. O homem branco era imperme-ável. E até domingo à noite eu teria de conviver com isso.

Desci e fui fazer turismo no hotel. Realmente estava tudo conforme o folheto da agência. Muitas piscinas, sa-lão de jogos, restaurantes, lojinhas. Eu paguei por tudo isso. Paguei bem. Todos aqui pagaram por essa felicidade.

Sai do hotel e dei um passeio na cidade. Tudo também de acordo com o folheto. Ruas cheias de barraquinhas, ba-res cheios de atrações e atrativos, trios elétricos passando e chamando para as festas nos clubes. Gente indo e vindo por todos os lados. Agora era beber e entrar nesse mundo.

Em pé, na praça, eu via tudo isso enquanto sozinho to-mava uma garrafa de uísque. Era muito complicado pedir uma mesa. E, mesmo se conseguisse, pior era me sentar e pedir algo diante de casais e grupos e famílias em pé me olhando. Todos pagam por seu espaço. E um espaço ocupado por alguém como eu é muito pouco. Em pé ali na praça no centro da cidade eu via tudo isso, sabendo que, não estando preso a ninguém ou a uma mesa de bar, eu podia ver, observar tudo, conhecer todos, ser mais feliz enquanto esvaziava minha garrafa de uísque.

E depois de uma, duas horas, tudo estava leve e azul, as luzes mais densas em meu rosto. As pessoas iam se levantando de suas mesas e se dirigiam para os clubes. Uma multidão atravessava os portões com ingressos em uma mão e alguém na outra. E eu me vi no meio daquela gente que se esforçava para passar por caminhos estreitos e portas minúsculas, esmagados pela vontade de entrar.

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As vozes, muitas, as bocas ruidosas da multidão furiosa, vinham de todas as direções. Os corpos esbarravam um nos outros e quem conseguisse segurar seu companheiro poderia continuar junto. Eu rodava no meio daquele jorro de corpos, sorrindo, completamente entregue, não impor-tando pra onde ia. Eu rodava como se estivesse indo e vol-tando ao mesmo tempo, embalado pelos que se agitavam em busca de um lugar no clube. Era bom demais me per-der nesse fluxo de braços, nesse empurra-empurra, como se todos estivessem me levando prá algum lugar, como se eu mesmo estivesse impedindo a entrada de todos. Era bom demais sentir-me alvo de tudo de pior ou melhor pra aquela gente toda.

Quanto mais a confusa fila onde nós estávamos se aproximava da entrada do clube, mais os gritos frenéticos desse povo iam sendo abafados pela música que vinha lá de dentro. Tudo perdia rosto e ganhava paixão. O alto volume das guitarras, da bateria e das incompreensíveis vozes dos cantores recobriam o espaço de golpes contra nossos corpos. Éramos arremessados ao som da música. Todos os movimentos, todas as emoções, todas as vonta-des estavam subordinadas às caixas de som que, estriden-tes, reverberavam pelo salão.

Difícil era ver alguma coisa, difícil era ver alguém. Só restava pular - pular e beber. Principalmente porque apon-tavam os canhões de luz com toda violência contra nós. Impossível fugir do som e da luz multicor. Era terrível estar ali, mas não havia dor alguma. Uma noite assim au-menta a vida de um homem, aumenta a vontade de estar aqui.

Foi quando me deparei novamente com o homem bran-co. Cruzamos no caminho pro banheiro. Eu, desesperado por esvaziar a bexiga e ele, saindo de lá com o mesmo sorriso, porém mais branco que nunca. Ele resplandecia

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no meio da escuridão causada pela pressão das luzes e sons em nós. O homem branco agora era brilhante, única coisa de se ver na festa. Nos cumprimentamos rápido com um esbarrão e eu entrei no banheiro. Enquanto urinava, senti algo úmido e frio em meu ombro. Aos poucos essa sensação se espalhava como se algo ou meu ombro es-tivesse se evaporando, algo tomando conta de meu lado esquerdo, impregnando-o. Tudo foi rapidíssimo feito um assalto. O homem branco deixou em mim uma vertigem após o esbarrão.

Intrigado e curioso, voltei pra festa e segui o rastro lu-minoso dele. Eu estava já com outra garrafa de uísque na mão. Bebendo muito, com dificuldade conseguia me aproximar do homem branco. Todos pulavam sem cessar e era difícil não pular junto. Depois de um tempo de per-seguição, notei que, em vez de pular, eu estava andando rápido e correndo e quase voando atrás dele. O homem branco ficava dando voltas no salão. Ele estava acelerado, indo em sentido contrário ao de todos, alheio à loucura do lugar. O homem branco corria feito um louco sem parar e eu me cansei logo que entendi isso e desisti de repetir essa fuga dentro de um aquário.

Então parei em um canto e continuei a pular e beber muito. Em minha cabeça passavam encontros fantásticos, libidinosos, beijos e abraços demorados, o sussurrar de prazer em meus ouvidos. E eu beijava como nunca uma mulher sem nome que brigou com seu homem naquela festa. E eu a beijava bem na frente dele, na frente de to-dos, um beijo perfeito, o beijo mais bem acabado que já houve, as bocas sem deixar escapar nada, as cabeças ro-dando devagar e em sincronia, os braços puxando cada um prá dentro de si, nenhum cansaço, nenhuma parada pra respirar: cada um sendo o fôlego do outro, cada um alimentando o vigor e o desejo recíprocos, boca que se

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une a outra e faz tudo desaparecer. Nenhum som, nenhu-ma cor, apenas boca e boca devorando o amanhecer.

Chupando a garrafa de uísque eu me entregava a esse delírio enquanto uma chuva forte começou a varrer o lu-gar. Sentado no chão, vi a multidão correndo louca, saindo pelas estreitas portas do clube e o homem branco indo e entrando do banheiro. Era uma noite maravilhosa demais para terminar assim. Eu pagara muito. Pagara por mais. Não tinha horário pra voltar ao hotel. Eu precisava não voltar. Eu paguei pra não voltar pra cama senão arrastado, completamente destruído. Voltar pra quê? Mas naquele momento eu teria de voltar. Não estava no folheto. Não paguei por isso. Mais... eu queria mais! Todos se foram me deixando gritar sozinho no meio da chuva que lavava o salão.

As ruas estavam vazias e eu encharcado. O peso de minhas roupas e o dilúvio das águas não me deixavam ir muito adiante. Essa tempestade de verão sepultava a noite dos casais. Mas não a minha. Com todas as forças, com todo o esforço fui me arrastando pela calçada. Tudo estava fechado. Mas eu iria encontrar um lugar diferente de minha cama.

Depois de um tempo, ao dobrar a esquina, vi o hotel, o homem branco entrando no hotel e em frente ao hotel um quiosque vagabundo com uma tenda de lona armada. Sem dúvida alguma eu não iria passar a noite no mesmo quarto que o homem branco. Aquele quiosque era meu bônus de viagem.

Um senhor negro de óculos me atendeu educadamente. Pedi uma cerveja bem gelada. Em pé, em minha frente, um homem gordo já bebia a sua. Nós brindamos à noi-te chuvosa e rimos. Logo depois chegou mais um e logo mais outro em busca daquele refúgio. Então ali expri-midos, quatro homens desconhecidos, quatro solitários

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como eu bebiam em frente ao homem negro de óculos. Então cinco, cinco homens. E eu, feliz, olhei pro hotel e vi cada luz se apagando, o sono a contragosto em tudo, a vitória da solidão.

No escuro do quiosque mal iluminado bebíamos e con-versávamos rindo do desastre da noite, rindo por termos encontrado esse abrigo: “Você foi nossa salvação, seu Os-mar! Você nos salvou!” Seu Osmar, atrás de seus óculos, se alegrava pela inesperada companhia. “Eu já ia fechar. A patroa tem ódio desse lugar. A patroa odeia que eu tra-balhe à noite.” E ele falava dela, uma mulher loira, gorda e brava. Vieram pra cidade pra mudar de vida. “O passa-do, ela não suporta o passado. E aqui, todos que moram aqui, precisam conhecer o passado dos outros. Vocês vêm e vão. A gente fica e precisa enfrentar... se enfrentar...”

Havia algo de atrativo naquele homem. Ele falava de um jeito que não eram suas as palavras, não era ele o que mais chamava atenção. Seu Osmar tornou aquela noite perdida uma outra vida para nós.

“Eu também fazia muitas viagens. A gente, eu e a pa-troa, a gente gosta muito de excursão. Nossa lua de mel mesmo foi aqui, há uns 15 anos. A gente voltou prá esse lugar, mas agora tudo é diferente.”

Todos nós ouvíamos atentamente aquele homem. Com o tempo, ele era mais que alguém que nos servia bebida. No meio da escuridão que a tempestade trouxe, ele era uma certeza ali bem diante de nós. Por alguns instantes, dava prá esquecer o frio que a madrugada espalhava pelas ruelas.

“Olha, vocês podem ficar tranqüilos: a gente vai se di-vertir muito ainda essa noite. Enquanto a patroa não vier, a gente pode ficar aqui bebendo.” Seu Osmar pegou um copo e bebia com a gente. O quiosque era na frente de uma casa bem arrumadinha e pobre, uma das poucas ca-

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sas dessa cidade cheia de condomínios de luxo e edifícios. Uma luz lá dentro, lá nos fundos, na casa tremeluzia. A patroa devia estar acordada esperando. A qualquer mo-mento ela poderia acabar com a festa.

“A gente trabalha muito, não é? A gente se mata prá quê? Eu preciso de uma bebidinha de vez em quando. Nada mais justo.” E seu Osmar ia servindo nossos copos e o dele. Todos estavam rindo e contando piadas sujas. Há muito tempo, há muito tempo mesmo eu não me sentia tão bem assim. Eu pensava sem parar tentando lembrar de quando alguma outra vez na vida eu havia sentido tanta felicidade de uma vez só.

Quando a gente cansou das piadas, seu Osmar estra-nhamente perguntou qual era a pior coisa que havia acon-tecido com cada um de nós. Disse que a gente podia falar, que morria ali, que a gente era amigo agora e que amigo conta tudo. Ele era um homem experiente, 50 anos, ca-sou tarde, teve muitas mulheres, fez e desfez negócios e estava disposto a nos ouvir. A gente podia falar que ele ouvia. Foi tudo meio repentino e intimidante. Em uma excursão essas coisas não acontecem, não devem acon-tecer. Você não paga caro por um pacote de excursão pra enfrentar algo assim. Todos nós nos olhamos reticentes. Quem é esse homem? Um dono de um boteco quer nos ouvir? Tudo estava indo bem até que seu Osmar nos per-guntou algo tão direto e pessoal. Será que a gente poderia continuar a beber juntos?

E aconteceu o que ninguém espera, essas coisas que você pensa que nunca, nunca mesmo vão acontecer em sua vida. Você tem pai, mãe, irmão, amigo, mulher, mas nunca se mostra, nunca se revela. Tudo fica guardado, es-condido prá sempre. E por quê? Você pode passar a vida inteira escondendo o que você pensa, o que você quer.

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Vive com isso, morre disso - a boca presa, o olhar teme-roso.

Então chega uma noite como essa na qual o mundo se reduziu a uma lâmpada bem pequena e uma lona, e é o que você tem e mais nada. E ali estão homens como você. E todos querem falar, todos querem dizer. A chuva vai levando tudo e é hora de fazer as pazes com sua vida.

Foi o que pensei e acho que foi o que todos pensaram enquanto ocupavam com um constrangedor silêncio o olhar de espera de seu Osmar.

Então o gordo que estava ali antes de mim, o primeiro, ele começou a falar: “Eu viajo só, eu prefiro viajar só. Não é algo eu prefira mesmo: é melhor que eu fique só. Vocês entendem o que eu estou dizendo? Vocês entendem isso? Um homem pode saber o que é melhor pra ele, o que lhe dá mais prazer. E eu tenho viajado sozinho há muito tempo. Desde que eu era criança eu sabia disso, que nunca iria ficar com alguém. Eu tinha uma coisa, uma coisa em mim, pregada, era isso que eu tinha, mais que a vontade de estar com alguém. Detestava quando me pe-gavam, quando tocavam em mim. Eu vivia esbravejando prá todo mundo: ‘Não me toquem! Tirem as mãos de cima de mim!’ Meus castigos era ficar trancado em um quarto escuro. Entendem, um quarto escuro? Isso mesmo: sem saber, eles me devolviam prá onde eu queria sempre estar. E lá dentro eu sonhava, eu via um mundo só meu. Era o mundo em que eu conversava com elas, sabe, com elas. A minha vida inteira eu queria estar com elas, com todas. Eu recortava seus rostos, seios, pernas, tudo das revistas de meu pai. Eu tinha um caderno com elas todas coladas. Noite após noites eu ia pro quarto com meu caderno e folheava as partes delas ali. Tinha página só de rostos, só de pernas, só de seios. Todas as partes delas. Eu conhecia cada parte como se fosse uma pessoa, tudo tão perto que

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eu queria mais. Eu esfregava o caderno pelo meu corpo e dormia feliz e exausto naquele quarto escuro. Vocês po-dem imaginar alguém assim como eu, um monstro? Eu tinha tudo, tudo o que eu queria - eu tinha o caderno. Daí meu pai descobriu e me bateu muito, bateu com toda força falando: ‘Isso dói mais em mim que em você! É pro teu bem, é pro teu próprio bem!’ E rasgou o caderno. Daí eu fiz outros mais e levei outras surras cada vez piores até que ele desistiu de me bater e tudo ficou bem. Ele chegou até a pensar que eu fazia novos cadernos só pra apanhar. O pai largou de me bater porque achava que eu era louco. Parou de assinar revistas de mulher nua pensando que re-solveria o problema. Mas eu continuei com os cadernos, ouviram? Sempre tive os cadernos. Depois vieram filmes, filmes pornô. Eu tinha pilhas deles, pilhas. Eu editava fi-tas com pedaços de cenas, tudo desencontrado prá uns, mas lógico prá mim. Não é uma loucura? E com vinte e poucos anos me casei. Foi a pior coisa que fiz. Pior que as surras de meu pai. Mas não pior que aquilo que veio de-pois. É prá contar a pior coisa não é? Foi combinado con-tar o pior, não foi? Então eu me casei. Mas não conseguia esquecer de meu caderno de fotos. Na hora do sexo, as figuras se misturavam em minha cabeça e eu via melhor cada parte delas, cada uma delas bem em minha frente. Com o tempo fui me afastando e ouvindo o choro pela casa. A Lurdes não suportou aquilo e viajou pra Londres. Estava eu agora novamente sozinho com as imagens dos cadernos bem diante de mim. Mas foi quando a Lurdes viajou que tudo começou a piorar de verdade. Eu sentia uma falta tão grande dela que nem dormia. Eu escutava seu choro em cada canto da casa, em cada porta que eu abria, até em minhas roupas. Tudo que eu falava tinha um pouco dela. Tudo que minhas mãos tocavam, tocavam partes dela também. Então eu tive uma idéia, uma idéia

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doida, mas uma idéia. Resolvi fazer algo por Lurdes, por nós, chamar a mulher de volta. Eu me masturbava todas as noites em nossa cama chamando Lurdes, pensando nela. Na hora do gozo, eu recolhia tudo em minhas mãos e derramava num saquinho. Fui guardando saquinhos nessa espera pela volta de Lurdes todos os dias desses últimos anos. Eu amo tanto Lurdes, tanto que faria isso até o fim da minha vida. Vocês já viram uma coisa dessas, heim? Vocês já viram? Tenho completa certeza que Lurdes vai voltar! A casa está abarrotada de gozo! Ela precisa chegar o quanto antes! Eu sei o que é melhor prá mim! Sei que Lurdes está quase chegando! Sinto seu cheiro! Eu vejo as partes dela pela casa!”

Quando o gordo parou de falar, bebeu um gole e nos olhou. Acho que queria medir nosso entusiasmo. Ele be-beu outro gole e sorriu. Após um silêncio geral, Seu Os-mar deu uma risadinha e serviu o copo de todo mundo. Estávamos de volta ao começo, estávamos de volta ao nosso tempo feliz. A noite se debruçava toda sobre os edi-fícios, e os cães fugiam das ruas. Naquela cidade, somen-te nós continuávamos.

O segundo a falar tremia de frio, tremia mesmo. Era o mais jovem de todos, meio corcunda, magro demais, uma voz fina que arranhava até cárie. Ele quase não abria a boca ao falar. Tudo era lançado pelo nariz. “Sei que pode parecer absurdo, mas quem aqui nunca quis acabar com alguém, heim? É, matar um desgraçado. Eu não quero bo-tar medo, mas vocês nunca pensaram nisso? Nunca, nun-ca em um momento de raiva, de total e completa ira não veio uma incontrolável vontade de destruir alguma coisa viva? Eu duvido... Desde pequeno eu tinha essas coisas, esse desejo. Acho que sou filho disso, dessa vontade sem sossego ou cansaço. É um suspiro fundo mas silencioso, que atravessa todo meu corpo e estoura em minha cabeça.

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Aí eu fecho os olhos, contraio os olhos bem forte entre dor e prazer. Minha mãe me pedia pra cuidar de meu ir-mão mais novo. E, quando eu estava só, justamente quan-do não havia ninguém mesmo por perto, minha respiração mudava, o coração quase rasgando o peito. E eu andando pro berço. Meus olhos ardendo de febre, um êxtase ao ver o pescoço do neném. Eu pegava meu irmãozinho no colo, aquela coisa mole escorrendo em meus braços, e um calafrio percorria os caminhos abertos de minhas veias. Daí devolvia a criança pro berço, mas deixava um lado do berço aberto e esperava que ele mesmo caísse de cabeça no chão, enquanto a mãe vinha atrás do choro e me batia, eu chorando e rindo ao mesmo tempo. Desde essa épo-ca, nunca mais fui o mesmo. Não conseguia nunca sentir uma só coisa. Todas as desgraças que eu via me davam vontade de rir. E com tudo que era engraçado eu sofria, sofria muito. Com o tempo passando, eu me achava cada vez mais preparado para ir além, chegar no além do ber-ço. Então há uns dois anos atrás em um bar provoquei uma cena de ciúmes horrível. Toda vez que passava pra ir ao banheiro, eu olhava pra a mulher do cara. Dava prá ver que eles estavam discutindo, que o negócio entre eles já não ia bem. Eu passava pela mesa dele e olhava pra mulher, via sua tristeza em ser incapaz de ir embora, de viver outra vida com outra pessoa. Cada passeio meu des-montava o sujeito. Lá dentro do banheiro eu ria com o desespero do homem. De volta pra minha mesa, eu bebia feliz, saudando a inevitável desgraça que o bar inteiro iria participar. Mas no último de meus passeios, o homem se levantou e gritou tão alto e me olhou de um modo tão ameaçador que eu fiquei apavorado e estanquei ali parado diante dele, pronto pra receber uma enorme de uma sur-ra. Tão perplexo como eu, o homem, tremendo de ódio e confusão, pegou um garfo e começou a me espetar. Era

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tão ridícula e ao mesmo tempo tão perigosa a situação que ficamos assim ele e eu: um espetando, o outro se prote-gendo, durante quase uns três minutos. A mulher e o resto do bar, inconformados e perturbados com essa agressivi-dade tosca, nem apartavam a luta, nem a incentivavam. Não havia perdas o suficiente para uma intervenção. Eu provocara, e ele me humilhava. Ao fim, todos estavam entregues ao nada extraordinário de nossas vidas. Vendo que ele não se cansava de entortar aquele garfo em mim, virei as costas e fui andando, bufando em choramingos : “Isso não se faz, isso não se faz com um homem!” E ele crescia diante de minha derrota, e com mais força e descontrole se lançava sobre mim. Os garçons vieram e puxaram o sujeito raivoso, puxaram prá mesa aquele ho-mem barbudo e atrapalhado que se perdera com um garfo. Enquanto descia a rua, os olhos de todos em mim, eu es-cutava as sirenes. Logo cheguei em casa e tranquei a porta com medo dos guardas. Fui pro espelho e vi os pontos do garfo em minha pele. Eu estava tomado de sardas e denta-das e arranhões. Então corri pra porta e chutava, chutava tudo que havia em minha frente. E gritava tudo que vinha em minha cabeça. E xingava, xingava sem parar o que aconteceu comigo naquele e em todos os outros dias de minha vida até escorrer cansado pro chão e dormir. No dia seguinte ao sair de casa, nas escadas eu vi um homem bar-budo ainda mais forte que o da noite anterior. Quase cai nas escadas na reação de voltar pro apartamento. Tranquei tudo E liguei para o trabalho pedindo férias. A comida vi-nha pelo telefone. Tudo que tinha barba me apavorava. Eu não podia ver um homem barbudo que o meu peito sofria. Um chiado sem fim escapava de dentro do meu corpo. Em todo lugar que eu ia, em alguns horários bem alternativos, sentia que me observavam, que estavam atrás de mim por algo que eu havia feito. Mas nunca, nunca eu acabei o que

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deveria ter acabado. Uma dor imensa se arrastava em mi-nha pele, e eu só queria morrer, morrer de verdade. Então resolvia acabar com tudo. Com boné e casaco fui a uma farmácia e comprei uma seringa. Era só enfiar agulha e explodir minhas veias. Isso iria me acalmar, isso iria me dar uma paz, matar. Em um domingo à noite, tremendo de frio, com dificuldade abri o saquinho plástico, eu co-loquei a seringa em cima da mesa. Eu sempre quis acabar com alguma coisa viva. Estiquei o braço e dei a primeira picada. Mas doeu, doeu tanto que joguei longe a seringa. Meu braço sangrava um pouco no buraco que a agulha abriu. Então comecei a ver o sangue brotando, brotando das garfadas também, das marcas feitas pelo homem do bar. Tentei segurar o sangue com as mãos e nada. Deses-perado corria de um lado pro outro, espirrando verme-lhidão espessa nas paredes e no chão. Corri pro armário do banheiro pra pegar faixas e curativos e no espelho vi que eu estava barbudo, com uma barba de meses. Não me reconheci. Olhei atrás de mim pensando haver outro. Eu estava tanto tempo naquele apartamento sozinho, sem ver ninguém, que me apavorei com minha própria ima-gem. Com o duplo susto, dei um grito tão grande, mas tão grande e demorado que nunca mais consegui falar como antes. Eu perdi minha voz naquela noite. Mas não esque-ço que de tanto gritar fui perdendo aos poucos o medo e o sangue parou de escorrer. De uma hora prá outra, tudo cicatrizou. Fiz a barba devagar, bem devagar, como uma carícia, sentido na ponta dos dedos as minúsculas feridas que a lâmina produzia em minha pele. Voltei ao trabalho e às ruas. E sempre quando eu passo perto de um carrinho de bebê, não sei por que meu olhar vira uma pedra, mi-nhas mãos tremem, perco o fôlego e me dá uma vontade de fazer algo ruim... “

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Seu Osmar já estava rindo antes mesmo do fim da his-tória. Era um sorriso contido, seguro do passo seguinte. Sabia que a noite ainda iria demorar muito. Já devia ter passado noites acordadas, e não por nossa causa. Quantas vezes essa conversa de homens. Eu olhava para os fundos e via acesa a luz da casa de seu Osmar. A chuva atrapalha-va, mas eu tenho quase certeza que a mulher dele passea-va pelos quartos, uma mulher enorme de camisola branca atravessando a casa. Então me deu uma imensa vontade de voltar pro hotel. Depois de um tempo a bebida não des-ce mais. E ali, em pé, a gente fica apostando em algo me-lhor, sabendo que não há surpresas. Era no que eu pensava quando um sujeito avermelhado emergiu nas sombras da noite e começou a falar. Dizia não gostar de nada. Tudo o que comia, bebia não tinha mais sabor. Desejava há anos não sentir mais coisa alguma. Desejava ficar velho logo, tudo se acabando nele, principalmente o prazer.

Era incrível ouvir isso, um desejo como esse. O ho-mem avermelhado se enxugava o tempo inteiro enquanto falava. Dentro dele havia um ardor, um impulso sem li-mites. Durante toda a sua vida lutou com isso até se en-tregar de um modo todo especial. Ele queria não ser mais arrastado completamente. Falou que durante um tempo em sua vida andava de carro à noite inteira vendo homens e mulheres vendendo seus corpos bem devagar, passando rente à calçada, medindo uma violenta possessão. Um dia, após vagar a noite inteira, os olhos avermelhados, o corpo em agonia, largou o carro bem no meio da rua e, como um cão, farejava, entre a multidão que vinha de manhã para o trabalho, alguém pra levar pra a cama, o calor do sol ferindo seu rosto e ele inflexível caçador diante do mundo em movimento.

Anos antes, em um bar, enquanto bebia, ele se entrega-va a pensamentos sobre intimidades rompidas e devassa-

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das. As imagens de penetração e insaciedade repercutiam incessantemente dentro de sua cabeça, tudo sem som ou porquê. O brusco ímpeto de entrar nas carnes, de quem quer que seja, tragava todos os detalhes. Uma rápida su-cessão de corpos e partes de corpos anônimos sendo so-domizados passava bem em frente de seus olhos, tudo ao ponto de acontecer a qualquer momento. E na outra mesa do bar, perto dele, um outro homem o contemplava. Mi-nutos depois estavam entre abraços e beijos em um esta-cionamento nos arredores da cidade. O silêncio do homem avermelhado durante essas carícias era concentração em seu passado, criança brincando com crianças, ele, 6 anos de idade, um amiguinho de 7 e outro de 5. Então numa tarde chuvosa, a garagem um pouco escura, o menininho de 5 era a boneca deles, todos peladinhos naquele frio, e a bonequinha sentando no piu-piu dos dois e rindo. O de 7 rindo também. E ele vendo o sorriso dos dois, a brin-cadeirinha boba, a bonequinha pegando no piu-piu deles com tanto carinho. E ele ficou tão vermelho por estar ali nu entre os risos de seus amiguinhos, sendo obrigado a continuar a brincadeira por causa das ameaças do garoto de 7 anos, por tentar entender por que a bonequinha fazia aquilo e era tão bom que ele queria mais, todo dia. Era tão bom pegarem nele, era tão bom o que a bonequinha fazia. E ele saiu dali com um tremor nas pernas, como se tivesse corrido no parque a tarde inteira. E foi pra casa confuso, guardando essa tarde chuvosa dentro de seu co-ração. E chorava outras tardes mais depois com pena da bonequinha e com medo do garoto de 7 anos. E no meio desse choro, dentro do quarto, na cama, imaginava mais uma vez, só mais uma a mesma brincadeira na garagem. E nunca mais deixou de imaginar, de querer brincar de novo com a bonequinha. As imagens em sua cabeça vinham de longe, de muito tempo atrás. Mas tudo estava tão forte e

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vivo quanto o medo e o tremor nas pernas de antes. Por isso, o homem vermelho largou o estacionamento aquela vez e todas as outras vezes depois antes de qualquer coisa acontecer. E andava de carro todas as noites sem parar, sempre atrás da brincadeira, sempre querendo mais. E o homem vermelho quer que tudo isso acabe, que seu corpo não o arremesse mais pras ruas, que as imagens em sua cabeça de uma vez só se arrebentem em gritos de gozo e prazer, e que a brincadeira termine enfim. Pois ele não agüenta mais, pois ele não ouve nada mais em seu mundo, e toda comida e bebida não tem sabor.

O fôlego de todos foi roubado em seguida ao estupor que o homem vermelho nos impôs quando parou de falar. Ele olhou para o fundo da noite se que perdia lá bem em frente de nós e suspirou de um modo tão repentino como se tivesse sido sugado pela escuridão. Seria minha vez de falar agora, mas eu não tinha nada de especial pra dizer. Eu queria chorar, só isso. Estar ali com aqueles homens só me dava vontade de chorar. Há anos que não chorava. Estava tão perturbado, tão indeciso quanto ao que fazer que me perdia olhando pros outros e pra casa dos fundos e pros céus. Gotas de chuva se espatifaram contra meus olhos e tudo ficou escuro, dolorosamente escuro. Eu coça-va com força meus olhos, quando uma voz começou a dar sentido a tudo que havia ali. Era seu Osmar falando, uma outra voz no meio daquela noite.

“Então isso foi o pior? Um perde a mulher, outro perde a si mesmo ?!!! Mas tudo isso passa se o homem quiser. Sei apenas que a vida é mais que isso, meus amigos. Ago-ra, sabem o que é perder um filho, perder de verdade? Não, isso vocês não sabem. Até agora só ouvi coisas que começam e terminam em vocês mesmos. Isso é pouco, isso é nada. Mas, de novo: sabem o que é perder um filho? Pois foi por causa dele que eu e a patroa viemos pra cá. A

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gente passou a nossa lua de mel nessa cidade. Todos vêm pra esse lugar passar a lua de mel. A gente não tinha muito dinheiro, daí a lua de mel em uma excursão barata. Eu ha-via largado o tráfico prá casar com ela. Perdi tudo pra ter uma outra vida. Ela era a coisa mais linda que um homem poderia conseguir. Era alegre e engraçada. Quando ficou grávida, eu disse pros parceiros que tava fora, que ia sair daquilo. Eu vivia cercado de uma gente doida, com ódio de tudo. Quanto mais eu e a patroa a gente vivia junto, mais andar e negociar com aquela gente me fazia mal. De noite, eu na cama com ela, eu acordava ouvindo os passos deles, a polícia atrás de mim. Daí eu virava pro lado e lá estava ela dormindo, o nosso filho crescendo dentro dela. Então eu a abraçava forte e tudo sumia com o calor do seu corpo.

A gente mudou de morro e eu arranjei um lugarzinho na padaria de um tio da patroa. Não ganhava muito, mas estava longe da loucura da noite. O menino nasceu forte e sem choro, a cara da mãe. Eu trabalhava dois turnos prá não faltar nada em casa.

E o menino foi crescendo em meio àquela nossa po-breza e gente má de tudo quanto é lado. Eu e a patroa a gente já pensava em outra criança. A gente vivia sem dar confiança prá ninguém, sem vender ou comprar a vida dos outros. Só assim dá prá sobreviver num lugar desses.

Quando o menino tinha 5 anos, a patroa engravidou de novo. Foi uma festa. O menino perguntava tudo. Ele queria saber tudo sobre seu irmãozinho. Um dia, quando eu voltava da padaria, umas dez da noite, ninguém estava em casa. As portas abertas, e gritos ainda se ouviam pelas paredes. Fui correndo pro quarto e a patroa estava no chão ensangüentada, recitando em êxtase sua reza “Levaram ele, Osmar, levaram nosso filho!” Todo o passado se ar-rebentou contra minha cabeça. Agindo como o bandido

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de antes, segurei minha mulher pelos braços e a levei pro hospital. “Traz ele de volta, Osmar, traz ele! Faça tudo o que você pode! Mas traz nosso filho!”, ela me ordenava. Fui entrando no hospital chutando tudo que havia em mi-nha frente. Ameacei Deus e o mundo pra que ela fosse tratada na hora. O sangue em minha roupa vinha do filho que ela estava perdendo na barriga. Eu ia agora atrás do outro. Cheguei numa boca de fumo e fui espancando e gritando pelo garoto. Ninguém sabia de nada. Diziam que depois que eu fui embora não tinham mais nada comigo e nem eu com eles. Sai dali e cheguei aos berros no boteco de todos, bandidos e policiais uns vigiando os outros. Um camarada veio com um estilete enferrujado em minhas costas e me sangrou. Eu quebrei a mão dele e o estilete e acabei com resto do traíra. Perguntei prá todo mundo e nada. Voltei prá casa e os vizinhos fechavam portas e janelas. A polícia veio, fez umas rondas rápidas e sumiu. O boato era que meu filho estava brincando em frente de casa quando um homem alto, magro e bem pálido conver-sou com ele e levou o garoto embora. Não sabiam se era gringo ou doente. Voltei pro hospital e a patroa agonizava, não sei se pela dor ou pela perda. Fui de novo prá casa e já era de manhã. Acordei os vizinhos e fiz novas perguntas. Nada. Peguei umas fotos do menino e fui pro trabalho. Expliquei a situação pro tio da minha mulher e ele disse que não podia fazer nada. Larguei a bosta daquele empre-go e, com o pouco dinheiro que ganhei na demissão, fiz uns cartazes com a foto do garoto e saí colando os troços pelo morro. Com o resto do dinheiro, comprei uns remé-dios prá minha mulher. Levei cartaz até no jornal e na tv. Durante dois meses fizeram campanha. Todo dia tinha pista nova. Eu corria atrás de tudo quanto é informação. O menino aparecia toda hora em um lugar diferente. Todo dia alguém tinha visto meu filho em alguma rua por aí. Eu

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sabia que ele estava vivo. A patroa voltou para casa. Es-tava destruída. A casa vazia e ela também. Não conseguia nem chorar. Ficava o tempo na cama, o olhar contando as telhas no teto. Eu tinha de cuidar dela e correr atrás das pistas. Aos poucos ela foi se recuperando, mas nunca mais voltou a sorrir. Qualquer ruído lá fora e ela corria deses-perada pra ver o menino que não voltava. Nesse tempo, as pistas já tinha ido bem além do morro, bem além da cida-de: vinham de outros Estados. Eu vivia no telefone e fazia uns bicos pra conseguir pagar as contas. Voltei a mexer com o tráfico e ocupar posições de comando. Todo o di-nheiro era pras despesas com a busca do menino. Dentro do tráfico, eu poderia ficar mais informado. Toda semana chegava pista de um corpo de menino que eu tinha que ir lá olhar. Nunca vi tanto menino morto na minha vida. Eram queimados, baleados, espancados, estuprados. Tudo que se podia fazer com alguém eu via. A patroa passou a ficar do lado do telefone anotando os recados, checando pistas, arquivando desmentidos e frustrações.

Depois de seis meses do desaparecimento, a gente ti-nha em casa mais arquivos que a polícia ou IML. Eu con-segui encontrar muito menino dos outros. Muitos pais e mães tiveram sua paz. Muitos crimes foram resolvidos. Menos o meu. E, quanto mais o tempo passava, mais eu sabia que estava perto de meu filho. Muitas vezes eu che-gava tão perto que podia até ouvir seu coração bater. Em cada nova pequena ossada que eu encontrava, sentia alí-vio em saber que meu filho estava vivo, correndo por aí, rindo como antes.

Passei a viajar pra outros Estados e descobrir rotas de bandidos e desaparecidos. Tudo deixa rastro. Tudo respi-ra. Tudo pesa. E nesse nosso pequeno mundo não há um lugar onde se possa esconder pra sempre. O meu menino

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me chamava prá junto dele. E sua voz era viva como meu braço.

Uma vez de volta para casa, ia passando pelo quintal e dentro de casa vi a mulher em seu cotidiano de espera, andando de um lado pro outro. Já fazia mais dois anos que tudo havia acontecido. Era noite, era tarde e eu estava tão cansado que me passou pela cabeça a idéia de desistir. A gente podia ter outro filho. Muitas vezes eu pedi isso prá ela. Mas ela me respondia com raiva que já havia tido os seus e que era prá eu ir buscar onde eles estavam. Ela confundia o que morreu dentro dela com o que foi rouba-do. A patroa era mais forte que eu e tinha razão. Toda vez que eu voltava prá casa, a sua recusa me lembrava do que precisava continuar sendo feito. Então eu cheguei em casa e ela como sempre me perguntava sobre como as coisas estavam, resmungando que a gente não podia desistir, que nosso filho estava vivo esperando por nós. Isso me acal-mava. O desespero da patroa me dava paz. Fomos dormir exaustos entregues a essa certeza sem consolo.

No meio da noite, como em muitas outras vezes, o te-lefone tocou. Era um cara da polícia prá quem eu dava um dinheirinho. Tinha achado uma ossada com roupinhas iguais as do nosso filho. Fomos dessa vez eu e a patroa. Quando chegamos no IML vimos um bando de ossos car-bonizados há mais de dois anos. As roupas queimadas e sujas de barro eram muito parecidas com um calçãozinho e uma camisa de escola que meu filho usava. Os tênis pa-reciam os mesmos também. Uma correntinha antes dou-rada agora toda em ferrugem foi a prova decisiva pros po-liciais. Ali em minha frente estava o corpo de meu filho. Durante meses eu virei estrada atrás de meu garoto e ele estava agora inteirinho bem diante de mim. Encontram o corpo em um barraco abandonado bem no fim de mi-nha rua. A ossada estava a uns cem metros de minha casa.

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O barraco foi alugado por um drogado que eu conhecia. Vendi muita coisa prá ele. Ele apanhava muito por nunca pagar tudo o que devia e por molestar crianças. De tanto apanhar, quase não saía de casa. Fazia uns artesanatos que uns caras vinham pegar e vender. Trocava aquelas coisas de arame por comida e droga. E vivia espiando a rua pela janela. Era pálido, tinha os olhos enormes e sujos. Eu ro-dei o mundo inteiro atrás de meu filho e ele, segundo os polícias, estivera bem perto de meu quintal.

Meio a contragosto fizemos um enterro simples no dia seguinte. Chovia forte e alguns poucos amigos e fa-miliares foram comigo e a patroa pro cemitério. Todos vinham me consolar e eu calado pensando. Olhava em volta, olhava de volta pro túmulo. Tanta gente morta, tan-ta gente que perdeu um filho! Mas ao sair dali, após o fim da cerimônia, uma certeza foi tomando conta de mim. Eu não estava pronto prá aquilo. Passei em frente do barraco abandonado do suposto assassino e até chegar em casa fui sentindo um calorão que me percorria todo o corpo. A pa-troa sentou no sofá e olhava pra porta fechada como antes. Nada mudou com o enterro. Quando vi os trapinhos quei-mados e a ossada, eu sabia que não era meu filho. Não podia ser ele. Um pai sabe dessas coisas. Mesmo com as provas periciais e tudo aquilo ali metido num saco de lixo ou no túmulo de um cemitério de jeito algum era meu filho. Os telefones não cessaram. A procura não parou. Eu sei, por tudo que é mais sagrado, que meu filho vive e por certo vai se levantar de onde estiver, e vai bater a porta de nossa casa. Eu e a patroa, a gente sabe. A gente veio aqui prá essa estação das águas onde tanta gente chega nos fe-riados prá dizer isso. Ele pode até já ter passado por aqui. Mas um dia ele volta, de qualquer jeito ele volta. É no que mais eu acredito. Vocês acham que um pai não sabe de seu filho? Pois Deus conhece bem meu coração. Me converti

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há três anos e aguardo dia e noite, com todas minhas for-ças, o meu filho, meu único filho. Vocês perderam tudo? Vocês sofreram o bastante? Duvido. Por acaso algum de vocês perdeu um filho? Vocês sabem o que é perder um filho? Um filho?”

Seu Osmar nos olhava firme, as mãos indagando por uma resposta. A chuva já havia passado e a manhã estou-rava em nossos olhos. E a coisa mais estranha da minha vida foi acontecendo. Ao fim das palavras de Seu Osmar, me deu uma vontade imensa de chorar, chorar alto, chorar muito, chorar no meio daquelas pessoas. O dia nascendo e eu me desfazendo em lágrimas. Não lembro de quando havia chorado tanto nem antes nem depois dessa vez ali naquele quiosque. No meio de tanto choro, me surpreen-di com os outros narradores também chorando, todos nós abraçados. Nada nos impedia de estar assim, fraternos, quatro homens sozinhos, unidos pela desgraça maior e alheia. Juntos, a gente era uma lástima só, crescente, um coro para uma terrível ocasião. O pesado relato de seu Osmar nos abateu. Isolados, cada um de nós não era nada, nada que valesse a pena. A gente havia passado nossa vida assim presos a nós mesmos, egoístas, mesquinhos, zom-bando ou padecendo por pequenas coisas, armadilhas ou artifícios para esconder uma existência infinitamente ínfi-ma e vazia. Doía em nós esse nada, essa sobra sem apelo que pulsava em nosso rosto. A desgraça do Seu Osmar iluminou sem compaixão a vida de uns miseráveis como nós. Juntos, chorando, a gente chorava a nossa pequenez, o nosso abandono de anos. Ninguém naquela noite cho-raria por nós. Nada em nossa vida seria memorável. Aca-bamos, deixamos de ser ali em meio à chuva e à ronda da patroa do Seu Osmar. Encharcados no álcool, na chuva e na tristeza, a gente chorava se afogando em uma explo-são de sofrimento. A gente precisava de um abraço pra

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ser alguém, e ninguém, além de nós mesmos, dos filhos da noite, poderia ser esse nosso abraço. Sem conforto ou consolo, sem crença ou fé em coisa alguma, a gente era as crianças sem pai ou mãe de um dia novo que nos acusava e nos lançava prum futuro temerário. Fomos humilhados, devastados pelo esclarecimento de nossa falta. O que é isso quando não somos nem dignos de pena?

Paguei a conta e fui pro hotel. O peso e o suor e as lágrimas de meus companheiros se espalhava em minhas roupas. Mesmo com medo de olhar prá cima e ver o céu, no caminho notei que uma luz, uma única luz no em todo o hotel, a luz de meu quarto ainda estava acesa. No eleva-dor sentia como era leve minha presença, como eu não era obstáculo pra nada, uma transparência fútil e escorrega-dia. Fui abrindo a porta do quarto pensando em dormir prá sempre, pensando que tudo de pior já havia acontecido.

Ao entrar no quarto pude ver lá na janela, em pé, o homem branco, meu companheiro de excursão e aparta-mento, olhando pro infinito. Na mesa, fileiras de cocaína arrumadas. Ele se virou prá mim com um sorriso fixo no rosto, agora um sorriso mais repuxado quase rasgando sua pele. O homem branco foi para a mesa, aspirou uma imensa carreira, levantou a cabeça e perguntou se eu que-ria um pouco. Eu respondi que não e fui tomar banho. Lá do chuveiro dava prá escutar a gaita de foles de seu peito recolhendo até o mármore da mesa. Acho que todo o ar do apartamento era sugado nessa hora por aquele exaustor humano.

As camas ficavam uma lado do lado da outra, e meu cansaço me livrou de presenciar o resto da festa do ho-mem branco. Horas depois, com fome acordei e me depa-rei com o homem branco mais pálido do que antes sentado em sua cama bem em minha frente, como se estivesse me esperando pra conversar. Ele apertava impacientemente

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as mãos contra suas pernas e mordiscava os lábios, segu-rando algo dentro dele - a sua voz. Suor escorria de seu rosto e os cabelos e a camisa que vestia estavam com-pletamente úmidos. Ele tremia todo ali sentado, o ruído contínuo e sutil de seu colchão ecoando pelo quarto. Me vendo acordado, perguntou se eu havia dormido bem. Pela primeira vez conversamos. Era só o que me falta-va: pagar uma excursão e vir de brinde a um cara desses. Mas, tomado, acho, de um misto de compaixão e curiosi-dade cedi, ao contato inicial e fui entrando no mundo do Homem Branco. Ele me disse que sempre vinha nessas excursões e se trancava dentro do quarto e se embebedava e cheirava muita cocaína. Ainda mais quando era fim de ano. E, enfim, nessa noite de hoje, na virada, enquanto os fogos iluminarem a cidade, ele vai ter seu momento maior, esperado. Disse que dessa vez vai conseguir. Trou-xe muita droga, mais que o suficiente. Não passa de hoje à noite. Quando todos estiverem comemorando o ano novo, o Homem Branco vai cheirar até estourar. Ele planejou tudo muito bem, há anos vem planejando e executando a melhor maneira de fazer isso. Em meio aos gritos e luzes e bombas, o Homem Branco vai arrebentar seu coração e tudo que tem dentro dele. E nada, nem ninguém vai im-pedir.

Um suicida - eu divido o quarto com o louco de um suicida! Bem em minha frente, ele conta seus planos e eu só penso em como me ver livre do suicida. A vontade que eu tive foi de bater no cara, de espancar o Homem Branco e pegar a porcaria de sua droga e jogar na privada. Eu precisava fazer alguma coisa. Sai do quarto e fui comer. Eram umas cinco e meia da tarde. As piscinas de água quente estavam lotadas. Crianças correndo e esbarrando em mim. Casais se beijando, e homens e mulheres beben-do e urinando nas piscinas. Sentei em uma mesa de frente

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pra tudo isso e pedi o prato do dia. Ao mesmo tempo em que cortava um bife acebolado, o sol ia se pondo e todos voltavam pros seus quartos, preparando-se pra a festa de logo mais. Os funcionários do hotel passavam carregando os últimos enfeites do Reveillon. O branco ia tomando conta de tudo. Eu cruzava com gente de branco o tempo inteiro ao passear pelos espaços do hotel segurando mi-nha nova garrafa de uísque.

Fui pra a rua e ignorei o quiosque do Seu Osmar. De canto de olho, vi que os mesmos companheiros da noitada de ontem estavam lá. Eles me viram e me chamaram. Tive de responder. Disse que ia andar um pouco. Todos esta-vam alegres e me cumprimentaram erguendo os copos, os olhos brilhando. Seu Osmar me acompanhava silen-cioso secando um copo, limpando o meu lugar no bal-cão. A cidade estava toda pronta pra receber o novo ano. Luzes, muitas luzes realçavam a multidão que desfilava sua felicidade. Eles, como eu, pagaram muito pra estar ali. Todos se reuniam na unanimidade branca e feliz da última noite do ano. Novamente em pé, escorado em uma árvore na praça central da cidade, eu observava as pessoas entregues ao beber e ao vestir as cores novas de uma vida melhor.

E sem pesar algum no coração, lá pelas dez horas, vol-tei pro hotel. No pacote da excursão que eu comprei e dividi em três vezes sem juros estava incluída uma grande Festa de Reveillon. Passei novamente pelo quiosque do Seu Osmar. Ele me olhou bem de frente, de um modo que eu não podia evitar ou fugir. Eu vinha distraído de tudo e Seu Osmar me cobrava algo, me cobrava inteiro. Mas eu paguei a conta ao sair de lá hoje de manhã, eu sem-pre pago. Eu vivo pagando tudo quanto é conta. Mas não estava livre de Seu Osmar. Aquele olhar entrava dentro de minha cabeça e dizia coisas que eu não queria ouvir.

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Apressei o passo e entrei no hotel. No elevador, senti o ar me sufocando. A demora do elevador ao subir me tor-turava. Quando a porta se abriu, foi como se eu tivesse sido cuspido prá fora, um vômito expulso de um doente terminal. Tropeçando no tapete, fui dando passos dese-quilibrados rumo à porta de meu quarto, até cair lá dentro quase quebrando a cabeça no estrado da cama. O Homem Branco se levantou da mesma posição que estava quando saí do quarto e fechou a porta. Seus dentes tremiam tanto que parecia estar triturando gelo e pedras dentro da boca. Na mesa estava um saco cheio de cocaína e mais enormes carreiras. Ele começou a falar sem parar, falar dele, falar do que ele viu, de toda a sua vida. Em menos de meia hora eu estava empapuçado daquele monólogo. Ele falando e eu bebendo meu uísque.

Foi quando, depois de um tempo, os fogos arreben-tando pela cidade, cada vez mais fortes, que eu comecei a ouvir o que o Homem Branco dizia. Era uma história triste e comum. Coisas de família e histórias de amor, pes-soas que vêm, passam e deixam feridas. Uma vida qual-quer e sofrida. O Homem Branco precisava de alguém e eu era a única pessoa naquela noite. Sem movimentos combinados, ele foi se aproximando, se aproximando e colocou a mão bem no meio de minhas pernas e pegou em meu sexo. Eu me afastei, e ele várias e renovadas ve-zes tentou colocar a mão lá. Enquanto procurava me ver livre desse ataque inesperado, ele começou a me abraçar e beijar meu rosto, buscando minha boca. Eu agora pro-curava evitar sem violência essa investida, já sentindo aquela barba espessa e respiração ofegante arranhando meu rosto. Ao fim dessas tentativas, ele viu e entendeu que eu não estava disponível pra intimidades. Então o Ho-mem Branco começou a chorar, chorar aos pouquinhos, devagar, tímido, envergonhado, até transbordar em um

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choro completo. Emendando esse sofrimento em minha confusão, ele pulou no meu colo e me abraçou como um filho abraça seu pai. Sem saber o que fazer, eu o abracei também. Ele chorava com o rosto em meu peito. Minha camisa estava cheia de suas lágrimas e eu sentia aquela tristeza dentro de mim. Eu passava a mão por sua cabeça como se quisesse fazer com que ele dormisse, embalan-do um homem grande desses em meu colo. O Ano Novo entrou pela janela, barulhento e luminoso. Eu olhava pro céu e via o mundo explodindo em gritos e cores, tudo se fundindo nas brilhantes explosões dos fogos de artifício. Lá fora, homens e mulheres riam felizes com suas roupas de branco. Uma chuva fina espicaçava pouco de lama nos vestidos e camisas. Seu Osmar fechou o boteco e foi prá casa, ficar com sua mulher. E eu passeava pelo quarto do hotel carregando o imenso Homem Branco, que gemia em meus braços durante todo o resto da noite.

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Devaneios do homem pássaro

Quitinete alugado. Sem móveis. Um gravador. Um ho-mem deitado no chão. Ele fala

– ‘Saia da toca!’ As palavras do doutor ecoavam em minha cabeça, enquanto no vestiário eu me arrumava para a aula de natação. Era a coisa mais estúpida do mundo estar ali, em meio a homens que, sem vergonha ou ceri-mônia alguma, tiravam suas roupas. Desde pequeno me diziam ‘Guarde suas coisas! Não mostre o que é teu’. E agora eu estava em meio a esse exibicionismo peniano. O pior era que o vestiário tinha espelhos, muitos deles. Onde quer que eu olhasse havia espelhos e o reflexo da-queles homens-coisas. O difícil era não olhar. Mas, para isso, adotei uma técnica: chegava mais cedo e me enfiava dentro do banheiro e lá me trocava. Antes que todos, já estava na piscina, na sombra, esperando o professor e os membros dos outros que ficavam lá no banheiro saltitan-do, disputando entre si uma honra desnecessária.

Tudo por causa de umas caixas! Há anos essas caixas me perseguem! Eu fico me mudando de um lugar para ou-tro e as caixas só aumentam. Acho que tenho coisas acu-muladas desde o Centro Superior de Pesquisas. E a cada mudança se amontoam mais e mais esforço e caixas. Em minha primeira troca de moradia, do alojamento estudan-til para um apartamentozinho alugado, trouxe tudo o que era meu, sozinho, com as próprias mãos: uma mala, uma

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caixa com papéis e um violão. Minto: agora, lembrando bem. Chamei uns dois colegas de bar e paguei a eles um porre para que me ajudassem a transportar umas 12 cai-xas. Foi num domingo ensolarado e nós subindo escadas com uns pesos sem fim. Meus.

Um deles, já desistindo após a segunda ou terceira via-gem, quis saber o que tinha dentro das caixas para elas estarem assim tão pesadas. Eu já nem lembrava o que elas guardavam. Eu ia juntando as coisas sem saber por quê. Tudo era importante. Abri uma delas e brotaram manus-critos, revistas velhas, relógios, muitos relógios, fitas cas-sete, papéis dos mais variados tamanhos com anotações, cadernos, provas, apostilas, resumos de livros e livros, livros, uma infinidade de livros. ‘Eu tô carregando essa merda por quê? Tu não separou o importante? Pensei que era roupa, móveis. Tu não tem móveis não? Vai morar nos livros? Vai vestir papel? ‘

Depois que um deles desabafou, começamos a rir e beber. Ao fim do dia, as caixas estavam dentro do apar-tamento e a gente, bêbado, ia abrindo as caixas e rindo daquela loucura. Eles foram embora e no meio da noite acordei cercado daquelas caixas abertas e os papéis es-palhados pelo chão, burrice minha carregar essa tonela-da inútil, não jogar nada fora. Agora, com tudo revirado assim, seria mais difícil. Então fui separando o lixo das caixas. O problema era escolher o que ficava e o que ia embora. Enquanto selecionava o material, a novidade do lugar estalava e um medo se apossava de mim. Ali so-zinho, de noite, madrugada adentro, em meio a aquelas caixas reviradas, parecia que tudo era um roubo, e eu, um ladrão ou vítima. E a sensação das duas coisas combina-das me aterrorizou e todos os ruídos do mundo ecoavam tão perto de mim que eu conseguia ver os movimentos fu-turos de um crime ou de uma desgraça qualquer. Larguei

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as caixas e me encolhi num dos cantos do apartamento, esperando que a luz da manhã me devolvesse a visão e a certeza de algo que não ameaça.

Desde aquela noite decidi não mais abrir as caixas. E assim, de mudança em mudança, me entulhava com uma pesada herança. Na última, o pior aconteceu: odiando ter de carregar pela vigésima vez essa montanha de coisas, em completa raiva erguia as caixas. Num desses esforços, ouvi o som de algo se partindo, mas continuei o inútil trabalho.

Dormi no novo apartamento com um incômodo cres-cente nas costas. Assim fiquei durante umas semanas, dormindo no chão para afastar a dor. Até o ato de calçar os sapatos foi ficando insuportável. Um dia, chegando ao trabalho, fiquei parado dentro do carro. Minhas pernas, eu não sentia minhas pernas! Estava ali imóvel, guarda-do, uma coisa como uma caixa dentro do carro. Levei 40 minutos para subir as escadas e chegar a minha sala. 40 minutos! Cada passo era uma ponte para a eternidade im-possível de se alcançar.

Fui parar no hospital. Muitos exames depois e o médi-co vem e me diz ‘Saia da toca, meu rapaz, saia! Você vai ter que fazer exercícios físicos regulares. Seus músculos abdominais estão flácidos e não suportam a pressão da coluna. Sua postura é a de um morto. Erga a cabeça, en-direite os ombros, junte os pés! Você parece um velho, alguém que se entregou antes do tempo. Saia da toca, meu rapaz, é só o que eu tenho a lhe dizer’

E agora estou aqui na borda dessa piscina, a água fria em meus pés, uma vontade imensa de estar longe, antes que o professor e os homens penianos e as mulheres de muitos sorrisos invadam o espaço que é todo deles. Esse não é meu lugar. Não fui preparado para viver entre essas

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criaturas. Vou escolher uma raia vazia bem no canto da piscina.

Mas antes de tudo, devo entrar dentro da água. De sun-ga não: de calção. Com as mãos, espalho o frio da água em meu corpo. Todos vão chegando e me olham estra-nhando. Logo pulam dentro da piscina e eu ainda fazen-do chá em mim com a água da piscina. ‘Oito voltas de aquecimento!’, grita o professor. Oito voltas? Esse cara é louco. Eu vim aqui para me refrescar, para aliviar a dor de minhas costas. Eu não tô aqui para disputar as Olim-píadas! ‘Agora em suas raias! Vamos começar com nado livre!. Cinco minutos! Rápido: eu tô marcando o tempo!’ Começo a nadar e ouço o apito. O professor me chama de volta para a raia e eu quase nem havia saído do lugar. Primeiro ele me ensina a respirar. Depois os movimentos dos braços e os movimentos das pernas. Ouço aquele api-to várias vezes durante aquele dia e nos dias seguintes até o primeiro mês. Ouço também as risadas nas outras raias, tão pontuais quanto meu desespero.

Eu odeio estar lá. Odeio ouvir o apito. Ainda mais que minha raia fora invadida. Como as raias eram grandes, dois nadadores podiam lado a lado, em sentido inverso, fazer seus exercícios. E, para minha desgraça, veio para junto de mim um atleta. Ele não devia estar ali. Só por que a namorada dele nadava na raio do lado! Ele é forte e veloz. Enquanto eu nem chegava ao meio da piscina, ele estava dando uma volta e meia em mim. Como na-dávamos em sentidos opostos, seu rosto vinha como um foguete em minha direção. Era tudo de propósito, aquele rosto de pedra quase sorrindo passando por sobre mim. Ele quase sempre me atropelava. Acho que esquecia que estava dividindo a piscina com alguém. Eu era tão lento e atrapalhado, algo para não ser levado muito a sério...

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Ao fim do primeiro mês, eu queria desistir, ficar em casa. Mas a dor nas costas começava a diminuir. Eram as águas: o meu esforço em me manter em linha reta nas águas sempre ao meio-dia me assegurava uma sobrevida. Em meio à desistência e ao medo da dor, fui continuando a minha vergonha e humilhação cotidianas. O barrigudi-nho branquinho encurvado com medo de água fria, o ve-lho antes do tempo se esgueirava entre todos.

Com o tempo passando, fui tomando jeito prá coisa. Nadava mais e melhor, melhor que alguém que nunca na-dou. A Academia de Natação tinha uma alta rotatividade e novos e distintos alunos iam surgindo e desaparecendo. O banheiro masculino se entupia de caras e membros novos e eu me sentia mais seguro para me olhar no espelho e ver que meu corpo adotava novas formas pouco melhores que as de antes.

Troquei de raia. Sai da opressiva proximidade com o atleta e sua namorada para ficar no canto oposto, mais na sombra do teto da Academia, onde umas senhoras gordas e idosas vinham perder seu medo da água. Era bom de-mais nadar com elas. Eu era rápido e eficiente. Nos tiros de 100 metros, eu sempre ganhava de todas as senhoras gordas. Quando cruzava com uma dessas mulheres em minha raia, eu vinha rindo, quase esbarrando nelas, in-timidando-as como o atleta fazia comigo. A minha colu-na não doía mais. Eu tinha tanta felicidade por massacrar aquelas senhoras que me esquecia de tudo para estar ali. Eu tinha uma meta, uma razão sobre as águas: vencer. E a cada dia eu atingia minha meta e voltava absurdo de feliz para casa.

E aconteceu uma coisa estranhíssima: ao mesmo tem-po em que comecei a nadar de verdade, a sujeitar às águas ao peso de meu corpo, senti as partes de meu corpo vivas novamente, sentia cada pedaço de mim com sua função

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e agilidade. O auge dessa mudança foi quando estralou alguma coisa em meu pescoço, e minha cabeça começou a se soltar de sua cova nos ombros. Voltei a ficar ereto como nunca. Minha cabeça subia trazendo o pescoço e o resto de mim. Eu brotava novo daquilo que deixei para trás. Das águas, do meu esforço na piscina foi surgindo um outro homem.

Comecei a freqüentar outros horários da academia. Chegava sem pretensão, me arrumava no vestiário. To-dos deveriam estar perguntando ‘Quem é aquele? Será que sabe nadar?’ Daí eu me jogava nas águas e nadava, nadava muito, deixando todos para trás. Eles deviam ver meu sorriso contido. Dentro de mim eu sentia a decepção dos que perdiam nos tiros de 50, de 100 e de 200 metros. Agora eu era o centro das atenções e comentários.

Depois de seis meses, minha pele ficou mais morena, a gordura do corpo foi trocada por músculos e, abaixo de meus braços, eu tinha asas, asas mesmo. No vestiário me demorava olhando meu novo corpo: uma máquina de na-dar, de vencer não mais velhinhas gordas e brancas, mas qualquer um que viesse à minha piscina, à minha raia. O professor comentava que eu estava nadando muito. Passei a usar sunga em vez de imensos calções. O sol espalhava em mim seu impulso dominador.

Ao voltar para casa, não sentia mais o peso de carregar a mim mesmo, um peso tantas vezes irritante e inútil. Eu estava inteiramente mais leve. Tanto que comecei a gostar de andar, de passear comigo, me levando para cima e para baixo, não havendo mais lugar íngreme ou cansativo que eu não atravessasse.

E eu tinha uma fome enorme, viva, pulsante. Queria comer o tempo inteiro, devorar, expandir minha felicida-de, me expandir ao ponto de poder arruinar qualquer coisa

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em minha frente. Tudo em minha volta ia diminuindo e eu a tudo tragava.

Essa vontade de ser grande me trazia para a piscina. Aos poucos notei que tinha minha própria raia, meu so-litário domínio exclusivo. Ninguém mais nadava ao meu lado ou falava comigo. Eu passava horas indo e vindo dentro daquele magnífico aquário, o pulmão cheio de ar se esvaziando no momento certo, o simétrico revezamen-to das braçadas, as batidas das pernas controlados, os pa-rabéns do professor.

Com os olhos dentro d’água, eu via as almazinhas prin-cipiantes e estabanadas, as pernazinhas tortas vagando em um universo azul apavorante, e os desajeitados retornos à superfície atrás de ar, ar, quanto ar, meu Deus! E eu ria comigo de cada criaturazinha perdida naquelas águas. Eu podia ouvir o coração delas batendo rápido e sem segu-rança, o medo de serem engolidas pelo monstro do fundo da piscina. Me divertia com as cores ridículas dos ridícu-los maiôs e biquinis, uma horrível procissão sem fim de corpos tristes e sem forma bem em meus olhos.

E foi assim até o fim do ano. Aos poucos, a piscina no meu horário foi se esvaziando até que sobrei apenas eu mesmo, e o professor. Realmente, há meses o casal de nadadores profissionais não aparecia, tanto que eu me esquecera que a piscina tinha outro lado além do meu. As gordinhas e os desajeitadozinhos também sumiram. Era eu e piscina, ela inteira convertida em minha raia única.

Junto com o desaparecimento das pessoas, novos e bem vindos atrativos surgiam. Sem ninguém para me des-concentrar, como nadava ao meio dia e a piscina não era coberta, comecei a observar o impacto do sol, do céu so-bre as águas. Já com fôlego e com técnicas apuradas, po-dia melhor acompanhar a presença do outro mundo refle-tido na piscina. As águas ganhavam uma outra densidade

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e formato sob a luz intensa. Eu podia ver e ouvir um mo-vimento que vinha de fora, escondido sob a imobilidade daquele tanque. Um fio de luz se decompunha nas ondu-lações das águas e, entre uma camada e outra das ondas, esse fio incandescente sibilava continuamente, unindo os pedaços dispersos pelo vai-e-vem dali até desaparecer nas bordas da piscina. Minha meta era seguir esse feixe de luz até sua partida, no instante exato onde o som, a gota e o sol se encontravam. Eu queria ouvir o ruído da gota se fendendo para virar luz, ver aquele miúdo momento de algo se desfazendo para estar em todos os lugares.

Para conseguir isso, eu precisa nadar com mais força e mais resistência, esperando o lugar e a hora exatos dessa fantástica visão. E assim fui deixando de ser rápido para ser constante, entregue a uma louca missão que não mais me dizia respeito. Dentro d’água, eu era o perseguidor, o olhar atento e preparado, os braços fortes , o corpo dirigi-do para a oportunidade.

A enormidade da tarefa e sua preparação me causa-ram diversa experiência. Ao fim de mais três meses eu já deslizava naquelas águas. Não havia mais cansaço ou dificuldade. Eu e as águas éramos um só. De olhos fecha-dos, já sabia quando virar na margem seguinte e voltar e voltar sempre. De olhos fechados, eu me sentia mais leve esquecendo que havia uma reta, um mesmo caminho que há mais de ano percorria. Assim, absorto e distraído, co-mecei a sentir prazeres diferentes, complexos, incríveis, arrepios e calafrios percorrendo o corpo, uma vertigem e uma tontura que nem a língua dos amantes ou dos suici-das poderia descrever. Dia após dia, esse torpor era maior e mais intenso, sempre ao fim de meu horário de nadar. O que eu sentia vinha de me perceber sendo erguido das águas, voando em um infinito úmido que nunca cessava de crescer. Eu tinha asas. Agora eu voava, voava tanto

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e sem me cansar, um torpor de voar para não poder ir a lugar algum, apenas voar, voar. Nem para baixo e nem para cima: eu era o próprio vôo sem piloto ou motor, sem impulso ou verdade. Quem poderia dizer que aquilo não estava acontecendo comigo na piscina?

E assim foi durante os meses seguintes até que Acade-mia faliu. O professor se desculpou dizendo que ele havia segurado ao máximo o fechamento do lugar apenas para ficar admirando meu estranho nado, o meu prazer em na-dar.

Fazia tempo que não escutava uma voz humana e tanta besteira junta. Se quisesse fechar a droga do lugar, era só ter falado antes. Fiquei com tanto ódio daquilo, daquela desculpa sem fundamento que perdi o entusiasmo de ver outra Academia.

Voltei para o meu quitinete e as dores nas costas, após duas semanas, ressurgiram. Depois de dois meses eu era um depósito da gravidade da Terra. Eu me sentia mais pe-sado e mais doente que antes. As caixas cheias de papéis e livros novamente eram ameaçadoras.

De minha janela observava as pessoas fazendo sua ca-minhada ao fim da tarde. Muitas delas pareciam as mes-mas da academia, ridículas e atrapalhadas. Eram senhoras gordas, casais velhos e novos, homens e mulheres passe-ando com seus cães e uns outros solitários e esquecidos, pessoas saindo e voltando de casa. De cima, eu via um aquário estranho com raias imaginárias, cada criatura si-lenciosamente mantendo o fôlego aceso dentro delas.

E eu podia, eu podia ouvir o coração dessas criaturas batendo, sempre que dava oportunidade eu podia. Eles to-dos estavam ali vivos, andando, entregues ao cotidiano caminho de hoje e sempre. Seguindo os passos dos lentos caminhantes ou dos atletas desesperados, eu mapeava as

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espécies do aquário que em linha reta iam, entre suor e esforço, marcando o chão com sua presença.

As gordas senhoras passeavam como se estivessem fa-zendo tricô. Umas até faziam exercícios mecânicos com os braços, mostrando a total falta de intimidade com o seu físico. Os casais procuravam manter uma estúpida sincro-nia, volta e meia fortalecida e desestruturada por abraços ou mãos nas mãos. A bela moça com Ipod desfila um mo-delo novo de malha todo dia. Jovens com cães ladeiam moças com Ipods. Fora das águas, essas criaturas estavam mais entregues às outras que ao destino do andar.

Era o que me confirmava o estranho solitário de tênis e meia social que todo dia às sete horas da tarde passava em frente de minha janela. Como um relógio, vinha aquela figura estúpida com um sorriso fixo em seu rosto, alter-nado movimentos maquinais dos braços e passos iguais em centímetros. Algo notável. Aquilo não era humano. Entre as criaturas daquele aquário, o homem do sorriso espalmado realmente me mostrava o resumo de tudo que eu via.

No dia seguinte, resolvi percorrer a trilha dos amado-res caminhantes para descobrir o mundo que se desdo-brava em minha janela. E comecei a andar. Após alguns instantes, tive que dar uma pausa e sentar em um banco. O peso dessa nova atmosfera era insuportável. Para quem estivera acostumado a voar, a troca de passos contra o chão irregular e o contínuo desvio frente a novas criaturas era uma estafante atividade. Ninguém olha para onde vai - apenas uns desviam uns dos outros. O choque é iminente, a ferida já pulsa e a queda é um adiamento.

Após um descanso, retomei o caminho e lutava por en-tre os corpos que de todas as direções se entrecruzavam após mim. Mas o que me atrapalhava, além da diversa gravidade, eram os olhos e as vozes. Tudo era imenso re-

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percutindo dentro de minha cabeça. Inicialmente, pensava que era o ruído dos carros na pista lateral à calçada. O som insuportável que se apossava de mim parecia vir dos carros. Mas sintonizando melhor o que ouvia, pude perce-ber que eram vozes, sons humanos, vindo com seu fôlego e intenção. Olhava em volta e via crescer os olhos de to-dos em mim. Eram grandes, enormes, inteiras e completas as figuras dos caminhantes. Na medida em que cresciam em seu andar, tornando ínfimos minha presença e o meu caminho, elas se arrebentavam em soluços, xingamentos, súplicas, interrogações, ameaças e canções. As vozes de-las já com suas palavras desbragadamente se lançavam contra meus ouvidos, me desorientando totalmente.

Em meio a esse redemoinho de sons, acelerei o passo e voltei para casa. Era impossível crer no que estava acon-tecendo comigo. Eu me encontrava desprotegido, oprimi-do pelas vozes dos outros. Eu podia ouvir o que diziam, o que pensavam. Estava preso a isso, preso à terra, ao chão pisado por aquelas estúpidas criaturas. Minhas asas mur-chavam e me sentia como se estivesse plantado em um vaso. O lugar mais distante que eu poderia ir além de mim era o retorno à minha casa.

No dia seguinte e nos outros depois, eu retornava à caminhada de fim de tarde. As vozes, antes indistintas e indistinguíveis, agora tinham boca e corpo específicos. Eu podia ouvir e conhecer cada pessoa que andava, eu sabia o que se passava com cada uma delas. Bastava seguir o som e olhar em seus olhos. Como a calçada era dividida entre a raia dos que estão indo e a raia dos que estão voltan-do, se quisesse dominar melhor a história de alguém, eu deveria marcar e calcular o tempo dos caminhantes e de seus percursos. Enquanto andava, fazia isso mentalmente. De volta ao quitinete, eu anotava o que havia descoberto.

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Após alguns meses, eu conhecia vidas inteiras, passado, presente e futuro, sonhos e frustrações, desejos e medos.

Eu podia ouvir com exatidão o homem vindo da pa-daria amassando o pacote em suas mãos e debatendo-se sobre seu casamento. Ou a mulher com um sorriso reti-cente esforçando-se em sua caminhada para disfarçar o resultado de um exame de câncer. E a senhora velha em seus passos toscos contra o cimento que impede os pés se arrastarem, debatendo-se sobre os filhos que não vieram para o Natal.

Chegava também aos meus ouvidos a mulher com dú-vidas sobre a declaração de amor de seu noivo, uma vizi-nha com ciúme da vida sexual da outra vizinha, alguém reclamando de seu peso, sentindo-se ameaçado pelas ima-ginadas críticas em sua volta, o homem cheio de medo de morrer de todas as doenças que pensa haver e existir e a suicida:

“ Hoje a noite eu vou comprar a seringa. Não passa de hoje a noite. Chega! Chega! Cansei! Prá que continuar com essa vida? Me dói tudo já, nenhum remédio mais dá conta. Não tenho mais dinheiro, não tenho mais ninguém. Sobrou só eu mesma. Você chega até a acreditar que al-guém vai aparecer. Mas quem iria atrás da doente, da lou-ca trancada? Eu sou difícil? Eu é que sou difícil? Difícil é carregar o que carrego, essa dor que não passa nem deixa marca. Esfrego a pele e nada, nem vermelhidão. Nada pre-ga em mim. Sou escorregadia e frouxa como uma gosma, uma gosma sem cor ou cheiro. Pessoa alguma diz meu nome ou sabe onde moro. De noite, eu abro a janela e vejo a cidade cheia de luzes. Cada luz é uma casa, uma janela cheia de gente. E tudo silêncio, tudo escondido de mim. Enquanto ando, todos se afastam, como que me deixando fazer o que devo fazer. Não vou deixar bilhetes! Não vou fazer ninguém chorar. Depois que estourar meu coração,

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vou morrer sem lágrimas, sem dor, sem choro. Não quero pensar que saudade houve por minha causa. Meu fôlego vai se desfazer sem gemido ou clamor. Eu pertenço mes-mo a uma noite escura, sem voz ou sossego. “

Ela iria se matar? Quando voltei os olhos, a mulher estava longe. Esperei na caminhada de vinda encontrar a suicida e nada. De noite, perturbado com a iminente morta da rua, eu me vi assaltado por todas as vozes que nos últi-mos meses ouvira. Todas elas, com seus corpos e olhares, tomaram conta de minha pessoa. Era como se tivessem acelerado a gravação de uma ópera. Eu estava empapu-çado com tanta gente que jorrava aos borbotões de minha cabeça. Asfixiado por tudo isso, corri para a janela e não vi ninguém. Era tarde, noite, a cidade vazia. Mas as vozes e seus donos me perseguiram e não pude mais dormir com aquele pus ruidoso escarrado em mim.

No fim da tarde do dia seguinte, ainda debilitado, to-mado de um cansaço que nunca sentira em minha vida, fui andar. E nada da suicida. Eu a perdi. O mundo a perdeu. Durante esses meses eu perdera todos, todos os que pude ouvir. Não conversei com nenhum, não passei a limpo nenhuma biografia, não uni a voz à pessoa. Não ajudei ninguém. Apenas esvaziei as caixas de mudança e anotei sobre os livros e cadernos e papéis soltos tudo o que eu ouvia. Eu só queria as histórias. Eu não queria ninguém. Eu competia com as vozes para ver se conseguia transcre-ver tudo que passava pelos meus ouvidos. Era um grande esforço esse meu, uma belíssima atividade que só eu po-deria realizar.

E a moça anônima como as outras criaturas daquele aquário desapareceu sem deixar vestígio algum. Não con-seguia mais ver ou ouvir ninguém. As vozes cessaram. E nem minha respiração eu podia escutar direito. Era uma estranha sensação andar e não sentir nada. Caminhava em

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um vácuo que se estendia em volta de mim. Sei que ha-via outros caminhantes, mas, quando perdi a capacidade de entrar nas pessoas e ouvir suas vidas, perdi também a presença delas.

Continuei andando nessa paz infatigável. Eu estava leve, desobrigado de acompanhar as tristes biografias es-parramadas pelas calçadas. Se os outros se debatiam na angústia de seus pensamentos, no silêncio sem escape de suas ocultas confissões, o que eu tinha a ver com isso? Por que essas súplicas mudas? Que espécie de gente é essa que anda pedindo sem pedir, que quer e precisa, mas se cala, que olha quando deveria falar? Eu estava solto, o caminho aberto e sem fim. Nada de noites terríveis, o as-salto contra minha segurança. Acho que as asas voltavam a nascer e meu fôlego não era mais tão quente e áspero lutando dentro de mim. Ao fundo, com o sol já posto, eu via no céu um maravilhoso cintilar violeta dedilhando os meridianos do infinito: era a cor e o movimento de minha vertigem.

Fechei os olhos, deixando-me possuir por essa auréo-la que agora me vestia. E entre o arrebatamento e a des-pedida desse chão abri os olhos e ao fundo do caminho também vi surgir, no meu extremo oposto, tendo a apo-teose violeta em suas costas, o homem de tênis e meia social. Vinha ele maquinalmente alternando seus braços, consumindo com avidez o intervalo entre nós. Apavora-do, olhei sua camisa listrada e seu calção vestido ao con-trário. Atrás dele havia apenas um buraco de imagem, a dissipação de todas as coisas, como ele arrastasse tudo em seu passo contínuo. Apavorado, olhei com todas minhas forças para a máquina andarilha apressada em passar por cima de mim, e tentei ouvir seus pensamentos, penetrar em sua obscura natureza. E nada, nada! A máquina era indevassável. Vinha intrépida em seu sorriso de gravura

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- mãozinhas prá lá e prá cá, o som dos passos como um turbilhão. O cabelo penteadinho pro lado não se mexia, suor algum havia em seu rosto. E o turbilhão sonoro que ele trazia consigo nada mais era que gargalhadas, garga-lhadas. A boca imóvel explodia em destemperado ranger de dentes, uma irada e ameaçadora risada contra mim. E nada, nada: eu não ouvia nada dele. Sua mente estava fe-chada para mim. Mas ele me conhecia muito bem. A má-quina de andar avançava como uma ameaça sem retorno.

Voltei correndo para o quitinete, correndo e gritando, esbarrando em árvores, cães e pessoas. Fechei todas as portas possíveis e me deitei com meu cansaço e vergo-nha. E, tarde da noite, acordei com uma voz vinda lá de fora. Uma bela e irresistível voz. Mesmo sob a ameaça do sorriso de meia social, eu decidi descer e ver de quem era aquela voz. A duas quadras de meu prédio, um homem e uma mulher conversavam, apaixonados. Pensei que era o casal da academia. Estavam ainda se conhecendo, uma conversa boa que não cessava, um dando vez à fala do outro tão fácil que pareciam uma única voz. Daí ser for-te, bem feita e admirável essa voz coral. Por isso ouvi e fui atraído. Atrás de uma pilastra, eu via os dois falando das coisas mais simples, mais sem graça, tudo com hora, vez e lugar. E eles se divertiam com isso, esse negócio de juntar e formas novas coisas. Tudo era tão exato e perfei-to como se já estivesse preparado. Até os sorrisos, meu Deus, até os sorrisos pareciam combinados! Um falava algo, o outro vinha e completava, e depois riam todos, concordando, duas pessoas falando juntas e concordando. Eu nunca ouvira e nem vira semelhante coisa em minha vida. Em nenhum papel lá no quitinete havia algo assim. E eles passaram horas, horas falando e falando sem parar e não ficavam cansados. Não sei de onde tiravam tanta energia para tudo aquilo.

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Decidi entender o que estava acontecendo. Todos os dias ele passava em frente de meu prédio e ia para debaixo do prédio dela. Depois, voltava para sua casa. E eu ano-tando tudo, querendo ver em seu rosto o que eu precisava conhecer, essa nova maneira de estar aqui. Era só isso que eu tinha em mente quando voltei a anotar nos cadernos e nas folhas já cheias de garranchos e borrões. Eu escrevia por cima de tudo que eu havia escrito já há tanto tempo.

E era difícil descrever o dia novo, o dia dele, sua vol-ta cada vez mais feliz. O mais difícil não era saber que estava mais feliz, mas falar disso. E dia após dia, indo e vindo, passando em minha frente, ele me dava um imenso trabalho. Sua alegria era minha angústia. Eu não enten-dia como isso podia estar acontecendo. Como eu poderia anotar isso? Todo dia mais detalhes, mais diferenças que se acumulavam nos vazios não preenchidos de pontos de interrogação com os quais ocupava os papéis. O que ele carregava em cada vinda era grande demais para caber em minhas anotações. Cada dia eu tinha de dar conta das interrogações de ontem. Certas vezes, eu pedia para o ho-mem sem alma, de sorriso de gravura aparecer e acabar com aquele feliz andarilho. Nenhum dia que observei foi igual. Todos os dias o sujeito apaixonado vinha ao prédio da mulher, conversava com ela e voltava mais e mais ra-diante.

Então veio o mais estranho de todos os dias. Era quase uma da manhã, eu já exausto na busca de medir as trajetó-rias e os efeitos desse conúbio sem confissão ou desgraça, quando senti, do lado em que ele costuma vir, uma abra-sante luz que a tudo arrasta. Meu rosto estava fervendo com tamanha demonstração de força e vigor sobre-huma-nos. A quem pertencia essa irrupção sem limites? Virei o rosto e quase fiquei cego, mas não havia luz alguma. Nada de extraordinário a não ser o homem que conversava com

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a mulher, caminhando lá embaixo. Mas sem luz ou voz, ele brandia junto a si uma verdade incomensurável, gran-de demais para ele ou para qualquer um que eu conheça. Ele andava rindo quase pulando e se jogando para o ar. Não, ele não queria ir embora dali, não queria voar. Ele estava tão feliz, mas tão feliz que queria mais, ele mesmo era um lugar pequeno já para tanta felicidade. Nele havia algo imenso, bem maior que ele mesmo, que pulsava - o coração vivo oferecido sem sacrifícios para quem quer que desejasse tocá-lo.

E ele ria muito, completamente entregue a este ofer-tar, algo impossível de ser oculto ou ofuscado. E eu ouvia bem claramente ‘Ela disse que me ama, que me ama! Ela disse que me ama!”

Depois de ouvir isso, fiquei completamente perturba-do. Durante meses perdera meu tempo pensando ter en-contrado uma porta para o céu, uma salvaguarda contra a máquina que anda de tênis e meia social. Dias e noites desperdiçados em anotações, gráficos e enigmas falsos. Agora só me resta essa terra a dor nas costas, o peso co-tidiano do chão, andar, andar prá continuar vivo. Nunca mais o prazer maior, o encontro do ar com a invisível es-trada.

Mas tudo isso não poderia acabar assim, como uma de-silusão ecoando de boca em boca nas raias sempre ocupa-das por alguém. Não, comigo não: tinha que ser diferente. Sem poder dormir pela dor e falta de perspectiva, desci do quitinete e me sentei na calçada em frente ao prédio. Enquanto olhava para frente, idéia nenhuma voltejando em mim, ouvi uns passos e me virei: era o louco apaixo-nado, mais feliz que antes. Acho que estava noivo: um anel novo reluzia em sua mão. Vinha devagar, cada vez mais devagar, alheio a tudo em sua volta. Não me contive. Subi as escadas e voltei ao quitinete, enojado. Ao subir,

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ouvi umas vozes, umas vozes em minha cabeça, que me fizeram ir me deitar tranqüilo, como há anos eu não fazia:

– Lá vem o cara.– Todo o dia ele passa aqui.– É como eu te disse. E aí ? Tá a fim ainda? Não é

fácil?– Simbora: vamo acabar logo com isso!– E aí meu irmão? Tá indo aonde?– Cala a boca que ninguém que saber de nada!– Toma essa na cara prá não olhar prá mim, seu merda!– Olha aí, o cara é forte. Não reclama, não fala nada.– Vamo ver até onde ele agüenta.– E tem a mulherzinha dele esperando.– Tava pensando que era só contigo?!– A gente sabe o que você faz toda a noite.– E agora é a nossa vez de fazer também.– E melhor.– ...!?!!!

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Drogaditos

Pois mal eu saí da portaria e seu Raimundo já veio atrás de mim, me chamando com sua voz aguda e supli-cante: “É uma covardia, viu? Uma covardia daquela mu-lher do 501. O senhor tem que tomar providência. Eu tô falando com todo mundo. O senhor marca outra reunião do condomínio. Faltam só dois anos prá eu me aposentar. Dois anos! Se me tiram daqui, a firma vai me colocar em disposição. Eu trabalho nesse prédio há 22 anos. E ela vem dizer que eu durmo na portaria! Volta e meia a gente cochila. Ninguém é de ferro. O senhor sabe o que é passar a noite inteira num banco, num pedaço de pau como esse? Eu pedi por senhor uma poltrona. Com uma poltrona dá prá trabalhar melhor. Essa mulher sempre me perseguiu!” E eu tentando escapar para o estacionamento sem conse-guir. Desci apenas para passar na caixa de correios. Eu fiz como você me pediu: abrir a porta e dobrar logo pro corredor à direita. Não sei onde estava com a cabeça em aceitar ser síndico! Eu e minha grande boca! Ser bombei-ro dos outros! Agora esse homem me levando prá onde eu não quero ir! Tudo como você disse! Mas eu pensei, eu tinha quase certeza que uma carta sua havia chegado. Por isso desci. Já não agüento mais! Você está fora há quase um mês! Ainda bem que você telefonou. Pois eu vou te contar tudo, tudo que está acontecendo, tudo que aconte-ceu! Eu preciso!

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Enquanto ouvia as reclamações do porteiro, eu olhava em volta, procurando algo mais à frente, depois da pra-cinha das crianças, vazia por causa da noite. As pessoas metidas dentro de casa, longe da voz que me pedia: “Pois o senhor tem que fazer alguma coisa. O senhor é o síndi-co! Um homem na minha idade não pode passar por isso! Arrume outra reunião do condomínio que eu levo mais gente. O meu assunto ainda não ficou decidido não. Essa mulher do 501 é louca. Vive implicando comigo desde que eu cheguei aqui. São anos de perseguição. Imagine ficar a vida inteira infernizando o pobre de um porteiro! Todo mundo me defende. Até o rapaz do 104.” Nem pres-tei muita atenção quando ele pela primeira vez falou do homem que tem ocupado todo meu tempo nas últimas horas. A gente passa a vida inteira entrando e saindo de casa e nem conhece o vizinho. Chega a esperar o elevador ocupado passar prá não descer com ninguém ou vai de es-cada mesmo. Eu sou síndico de um prédio e nem sei quem são os moradores. Esse mês, só porque você viajou, teve reunião toda semana. É briga pelas vagas da garagem, é confusão entre apartamentos vizinhos, entre o andar de cima com o debaixo, é gente querendo trocar os funcio-nários da limpeza. E sempre o porteiro, sempre ele, um caso sério.

“Pois o rapaz do 104, aquele moço gordo e branco, votaria em meu favor se tivesse outra reunião. Pois não é que levaram o moço hoje de manhã pro hospital, mal que só? A gente nunca sabe no que a vida vai dar. De repente, explode tudo. Mas desse eu sabia. O senhor acredita que logo que ele chegou aqui no prédio, na primeira semana, ele salvou uma vida? Uns marginais drogados ali da rua de baixo confundiram o vigia do bloco aqui do lado com alguém que eles haviam discutido. Então esses vagabun-dos espancaram o vigia, deixaram o coitado largado no

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chão, todo ensangüentado, sem forças até para pedir aju-da. Nesse momento, chegou um táxi deixando o rapaz do 104. Quando vi, o vigia magrinho, caçando ar, os olhos girando sem parar, estava nos braços do gordinho branco e meio bêbado. Sai correndo e fui com eles, do táxi pro hospital, e depois prá delegacia. O rapaz do 104 dizia prá deixar tudo ele. Um sujeito bom, viu, um sujeito muito bom. Não se importava com o sangue sujando sua camisa. Tanto que no hospital pensaram que era ele quem havia levado uma surra, e, na delegacia, acharam que era ele quem havia sido roubado. O rapaz do 104 abria as portas prá gente assim como eu. Se o vigia arrebentado fosse lá sozinho ou comigo, duvido que ia resolver alguma coisa. Ninguém, seu síndico, ninguém seria capaz de ajudar um homem daqueles jogado no chão.

Um tempo depois ele me pediu prá fazer uma coisa no apartamento dele. O senhor já foi no 104? Pois eu fui. Dava pena, viu, muita pena. Ao abrir a porta, dei de cara com uma sala vazia, sem quadros, sem móveis, sem nada. Nem tv. Apenas uma cadeira para a varanda e as caixas de mudanças fechadas e empilhadas. O chão respingado pintura nova, tudo pronto prá se morar. Ele me levou para a cozinha. Me pediu para consertar a geladeira. Quando abri a geladeira, quase morri de susto e nojo: uma coisa viva fedia dentro de uma marmita. O rapaz do 104 ha-via esquecido comida dentro da geladeira e os vermes da carne tomaram conta de tudo. Eram escuros e espessos, como um fígado podre, como um bicho ainda vivo se me-xendo, com coração e boca e tudo. Demorei uns dois dias para limpar aquilo. Cheguei a jogar fora uma camisa que usei durante a limpeza. Até hoje, quando durmo, sonho com os vermes. O cheiro, o mais difícil era se livrar do cheiro. E eu tentando descobrir como ele fez para dormir com aquele cheiro. Daí minha mulher indicou a irmã dela

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prá trabalhar lá. Ela ficou trabalhando prá ele um par de tempo. Ela veio hoje visitar a gente. O senhor pode falar com ela se quiser. Vamos lá em casa e a gente discute também os acertos para a nova reunião do condomínio.”

Agradeci e fui me dirigindo para a caixa do correio. Nada, carta sua nenhuma. Eu tinha tanta esperança, tan-ta. Sei que é difícil quando a gente está longe. Pior é prá quem fica. O que eu não sabia era quanto ia ser difícil assim dessa vez. Em pé ali, a porta da caixa aberta, ape-nas folhetos de propaganda e catálogos de compras nas mãos, o porteiro em minhas costas. E eu fui me sentindo cansado, sem a mínima vontade de voltar para a portaria, o vento da noite arrepiando minha pele e eu sem saber mais para onde ir.

Quando vi, estava tomando um lanche no quartinho do porteiro. Uma cortininha separava a parte de entrada do resto da casa - o quarto de dormir - e crianças de vá-rias idades corriam entre os dois espaços, ventilando os odores de uma casa de uma porta só. Em minha frente, a mulher do porteiro e sua irmã. Eu tomava meu leite deva-gar. Em volta de mim, os olhos e dedos dos filhos delas todos misturados. Eu procurava sorrir e me ajeitar para ir embora. O porteiro sumiu. Sem ter com quem conversar, eu suspirava e suava. Meu suor, um grito tímido e sincero.

Foi nesse momento que a irmã da mulher do portei-ro começou a falar. Como ela era brava, meu Deus, uma mulher de dar medo! Eu podia continuar engolindo copos de leite quente, fervendo, sem me queimar que isso nunca iria substituir o impacto dela sobre mim. De tanto medo, eu tinha dor, dor mais forte que tudo. Principalmente de sua raiva, de seu inteiro e incontrolável ódio contra o ra-paz do 104. “Depois de tudo que fiz por ele, me despedir assim! Hã! Isso não é coisa de homem não! Um covar-de, um covarde! Disse que não precisava mais de mim,

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que a mãe dele vinha morar com ele. Conversa! Cadê a mãe? Vai ver nem mãe tem um homem assim. Deus me perdoe em dizer uma coisa dessas! Agora tá no hospital no morre-não-morre. Se eu tivesse ficado, tudo seria dife-rente. Mas não foi ele quem quis que eu fosse? Não, não tinha coragem de me dizer e daí inventou essa história de ‘mãe’. Pois eu falava com ele, eu aconselhava, ‘Olha, essa vida sua de trocar noite pelo dia e ficar trancado no quarto, sujo, imundo, largado... Essa gente que vem aqui e bebe e fuma e faz o que quer... Toma cuidado, toma cuidado!’ Pois eu digo isso com autoridade, seu síndico, com autoridade! Eu já fui mulher da rua, de trocar comida por cama e cigarro. Larguei esses caminhos de pecado por Jesus e agora sou uma nova criatura. Trabalho em casa de gente de família, ganho pouco, mas é meu. E tento, com a ajuda de Deus, levar a mensagem. Toda vez, antes de sair do trabalho, eu deixava um jornalzinho da igreja com ele. No aniversário dele, cheguei até a dar uma bíblia de presente. E eu falava ‘Olha, essa sua vida ruim tem prazo prá acabar. Quando eu enterro esses joelhos no chão e oro, sei que vem poder. Deus está chamando. Por bem ou por mal, ele vai te alcançar.’ No fim, foi por mal. Eu não tenho pena, viu seu síndico, pena nenhuma. Vinha na segunda bem cedo, ele dormindo ainda, e saía lavando o aparta-mento. Era sujeira que não acabava mais. Como num lugar tão pequeno como aquele podia caber tanta coisa ruim e podre? Toda semana eu lavando uma roupa quase sempre encardida e um chão tomado de cerveja e coisas que nem conheço, mas desconfio! Acho que começou a não querer mais meu serviço quando cismei de abrir aque-las caixas. Imagine, já mais de ano naquela casa e aquele monte de coisa guardada ocupando espaço! Ele saiu cor-rendo do quarto pra sala quando ouviu o barulho do pape-lão se rasgando. Um mês depois, no natal, no aniversário

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de Nosso Senhor, ele me falou da vinda da mãe. Em pleno fim de ano, sem aviso, sem nada, fiquei sem emprego. O senhor sabe o que é isso, seu síndico, cuidar de alguém e depois ser jogada na rua? Deus me perdoe, mas ele teve o que merece! Vivia trancado no quarto fazendo não sei o quê. Na cama, um lençol imundo, porco, tão usado, sujo e suado que tinha o contorno do corpo dele. Santo sudário! Santo sudário de sujeira! Agora tá melhor em um leito de hospital. Eu queria dizer essas coisas todas prá ele como estou falando pro senhor. Eu queria olhar na cara dele e dizer tudo, tudo que tenho aqui dentro. Por que, por que ele fez isso? O senhor pode me explicar, seu síndico? O senhor pode entender por quê?”

Aqueles imensos olhos negros não saíam de cima de mim. Parecia que eu era o monstro do 104, a sujeira dele respingando na sala da casa do porteiro. A qualquer mo-mento, a mulher forte e raivosa iria pular em meu pesco-ço, e seria o meu fim. Eu só pensava em voltar para casa correndo, mas não sabia como. Estava preso a tudo ali, àquela gente em minha volta. A novidade e o perigo da situação me empurravam contra uma parede que não me pertencia, da qual não consigo desgrudar. Minhas forças desapareciam frente à ignorância do que se passava e que iria continuar.

A porta atrás de mim e o vento da noite trouxeram a voz do porteiro. Aproveitei o impulso repentino e me le-vantei me despedindo. A mulher de olhos grandes espera-va uma resposta que fui deixando atrás de mim. No cami-nho de volta para a portaria, minhas mãos deixavam cair os papéis que peguei na caixa de correios. Abri a porta do elevador e apertei o número de meu andar: 5º. Em breve estaria em casa, de onde nunca deveria ter saído. Com o movimento lento do elevador, ouvia e imaginava suas

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engrenagens e cabos, meu retorno feliz por meio de uma máquina.

Pois a máquina estacou logo no primeiro andar. A vio-lência inesperada me fez perder o equilíbrio e me projetou para a porta do elevador que já foi se abrindo com o peso do meu corpo. Quase caindo no chão, fui ouvindo um som agudo cada vez mais forte, o chamado de um telefone. Ergui os olhos e a porta do 104 estava aberta. Sem pensar direito em coisa alguma, entrei para atender o telefone, que ficava lá no fundo da sala. Quando atendi, parou de tocar. O elevador já devia estar em meu andar e eu ainda ali dentro. Por que a porta do apartamento estava aberta? Fui pensando melhor, pois estava ali como um síndico e não como ladrão. Se alguém chegasse, minha presença estaria justificada. O que eu não conseguia justificar prá mim mesmo era o que eu fazia ali, o que me deu na cabeça para me envolver com essa história.

O interior do apartamento confirmava o que o porteiro e sua cunhada disseram. Mas estar dentro dele muda tudo. Ver com os próprios olhos, ouvir o que ainda sussurra a presença do rapaz é outra coisa. Fui para a varanda e pude contemplar melhor o estranho vazio de uma sala sem gen-te, sem móveis, sem nada. Havia uma cadeira na varanda voltada para fora do apartamento. Quem quer que moras-se naquele lugar, costumava se sentar nela, de costas para tudo, olhando para o céu, longe, muito longe. Virei a ca-deira para dentro do apartamento e me sentei. O telefone no chão, as caixas de mudança empilhadas, os respingos de tinta no piso de taco. Me levantei e fui para o quarto, fazendo, quem sabe, os mesmos caminhos do morador do 104. No quarto, papéis no chão, cheios de anotações es-critas em letra nervosa, rasuras - tudo ilegível - o armário sem portas com camisas dependuras e despencando, a ja-nela totalmente vedada com fita crepe e na cama realmen-

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te um lençol branco nos contornos, já poído, e no meio a silhueta de um corpo.

O telefone tocou novamente e eu, assombrado com a visão desse conjunto de coisas prá mim incoerente, fui atender. É como você dizia, é como você dizia. Eu preci-so me orientar, preciso mesmo. Essa gente, essa vida. Eu devia ter ficado onde estava. Eu devia não ter entrado no elevador. Eu não precisava disso, de jeito nenhum. Mas eu atendi o telefone, eu precisava, e não consegui mais desligar. Se ao menos você tivesse ligado antes, se alguma coisa tivesse acontecido no mundo, uma tempestade, uma desgraça, nada disso eu teria enfrentado.

Do outro lado da linha ninguém falava. Eu disse ‘alô’ umas cinco vezes, me identifiquei e ameacei desligar. De repente, uma voz agressiva e desconfiada irrompeu fazen-do perguntas e acusações. Sem querer me ouvir, sem que-rer me responder a voz atropelava toda a comunicação, impedindo qualquer contato. Até que aos poucos, a partir de algumas palavras, a voz foi desenvolvendo uma von-tade por estar ali e se mostrar. Enquanto ele falava sem parar, eu fui me calando para poder saber com que eu não conversava.

– Hospital, é? Eu sabia, eu sabia!... Hospital! Aquele merda não tinha jeito!... Amigo? Que amigo?!! O senhor não me conhece... Não conhece ele também. O que tá fa-zendo aí ? É da polícia, não é? É da polícia: eu não tenho nada a ver com isso. Não fui quem que trouxe mais nada prá ele... Ele sempre deixava a porta aberta. A gente mal chegava e a festa começava. Então tu não é sujeira não? Tu é de confiança? Tu tá é querendo conhecer também, não é? Tu também tá atrás daquilo. Todo mundo sabe que o cara usava. Daí tu veio atrás da coisa. Tá parecendo mo-leque quando quer comprar revista pornô e se fantasia e inventa história e diz que é pro tio, pro pai, querendo en-

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ganar o jornaleiro que vai vender a revista de qualquer jeito mesmo prá você. Mas eu tô fora, viu? Tô fora! Não mexo mais com essas coisas. Só de vez em quando, na social. O tempo da loucura se foi. Tô casado, meu pai me arranjou um negócio aí legal e não preciso mais circular. Tá me entendendo?... E não me vem com essa que eu não sou otário, seu merda! Todo mundo quer, todo mundo usa. Pó, meu irmãozinho, a merda da droga do pó! O cara daí se estourou por causa disso e tu diz que não sabe nada? Ele se estourou. Não conseguiu segurar a onda. No início era tudo bom. A gente saía e festejava. Depois ia prá aí e ficava até o dia amanhecer na varanda, falando, falan-do sem parar, o nariz todo agitado, o coração saindo pela boca. Foi muito bom, irmãozinho, muito bom até que a coisa perdeu a graça. Eu falava prá ele: ‘ Ô mane, vai devagar, vai devagar. Tem muito pó no mundo, tem prá sempre.’ Mas ele entrou numas de se fechar e não sair mais. Só saía prá comprar. Pegava um táxi, ia nas quebra-das e trazia prá aí. Ele dizia que em quinze minutos tinha o que queria. Quinze minutos e tudo bem! Aí foi enfiando tudo nessa droga. Cheirou um carro! Sabe o que é isso? Todo o dinheiro de um carro foi pelo nariz. Por isso an-dava de táxi. Pedia comida em casa e ficava lá no quarto gemendo e suspirando e anotando sei lá o quê. Eu vinha e chamava o cara prá noite e ele nada. Trouxe até mulher e o mané foi se fechando, fechando. Só queria falar, falar o tempo inteiro. Não queria mais saber de mulher nem coisa alguma. Era só a merda de cheirar e a falação. Eu fui sumindo, cansado disso. Volta e meia ele me ligava de madrugada só para falar, prá dizer que estava numa boa, perguntando de mim e de minha vida. A Rose do meu lado dormindo e o mané cuspindo sua loucura. Quando a Rose surgiu, eu fui largando esse negócio de noite e tudo mais. Ele não gostava da Rose, nem a Rose dele. Ele dizia que

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ela era interesseira, que estava ligada no que eu dava prá ela e tudo mais. Ela dizia que o cara tinha ciúmes, ciúmes de mim. A gente ficou um tempo grande junto, a gente parecia irmão. A gente ia prás festas, se enfurnava nos ba-nheiros e voltava completamente doido prá dançar e falar. Foi numa festa dessas que a gente se conheceu. Eu estava chegando na cidade, sem conhecer ninguém. Desconfiava de tudo, todo mundo querendo saber quem era meu pai e onde a gente morava e o cara nem aí prá isso. A gente zombava deles, do pessoal que ficava em volta da gente querendo entender tudo aquilo. E foi com o pó que a gente se abriu e falou tudo que queria dizer. Eu nunca conheci alguém como ele, a figura mais estranha e louca que exis-tiu. Ninguém poderia saber que o cara guardava dentro dele. E eu cheguei bem na hora que ele queria tirar isso de dentro dele. Umas coisas eu não entendia, outra fui entendendo. O pó, mané, a merda do pó. Ele aspirava com força, numa longa e feliz tragada, os olhos se abrindo, os pêlos se arrepiando, um calor subindo pelo corpo, a pele da cara se esticando e a bateção de dente, o come-come, o morde-morde sem parar. Ele dizia que puxava tudo prá respirar melhor, que se sentia vivo, inteiro, enorme, mais que tudo. Então podia entender todas as coisas com ele, comigo, com quem viesse. Era uma felicidade enorme, renovada a cada carreirinha da droga. Pois um dia a Rose viajou. Ele me ligou e insistiu prá gente cheirar. Sabia, pelos comentários, que ele tinha se entregado, que já não era mais o mesmo de antes. Como eu não aparecia mais, ele recebia todo o tipo de gente só para ter com quem con-versar. Era gente muito baixa, perigosa, mas que ele sabia controlar falando. Ele se impunha de boca aberta e com o pó. Eu não queria ir, mas fui. Sabia que alguma coisa iria acontecer. A gente foi preso, meu Deus, preso. A polícia estava de olho no tráfico, e quando a gente foi comprar e

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ele recebeu dois papelotes, dois apenas, chegaram os ca-ras com ordem de prisão. Era só ele jogar no chão e negar tudo. Daí o mala era preso e a gente se livrava. Mas não. O idiota me olhou sem saber o que fazer e segurou a dro-ga como se quisesse ser preso. Me olhou com tristeza de pai que se sacrifica pelos filhos e foi preso. Fomos todos prá delegacia e ele assumiu tudo. Fui liberado como tes-temunha. Ele ficou lá o dia inteiro. Depois teve audiência e toda aquela merda. Quando a Rose soube, a gente quase se separou. Meu pai me disse para eu me afastar dessas coisas senão me tirava o emprego e a grana e o aparta-mento e o carro. Eu me juntei com a Rose e larguei o cara prá lá. Burro! Burro! Não queria me proteger, não! Ele queria era que eu largasse tudo em consideração dele, que a gente voltasse a ter aquela vida. Ele não tinha mais nada prá me falar. Nada mais era novo. Era a mesma bateção de dente e mordida de lábio a noite inteira. Toda madruga-da cheia de geme-geme e idéias brilhantes. Eu precisava arrumar minha vida e agora vinha essa. Pois eu não tinha nada a ver com isso. Nada. Eu definitivamente fiquei as-sustado com ele quando no fim de uma noite acabou o pó e ele saiu catando no chão alguma sobra da droga. Com os respingos da tinta no taco do piso do apartamento dele, droga e sujeira eram tudo a mesma coisa e ele se jogou no chão como um cachorro atrás de comida, lambendo tudo, colocando tudo na boca. Ele devorava com desespero o que vinha em sua mão, o desespero de continuar a ficar li-gado, no geme-geme falador. E eu rindo, rindo sem parar. Daí ele teve a louca idéia de passar no Postinho e pegar mais com o Vovô. Todo mundo ia para lá nas madrugadas. O Vovô sempre tinha o que a gente queria. Pegamos a droga e ficamos muito loucos e veio na cabeça e idéia de ir prá praia. Era uma quinta feira à noite, e a gente estava completamente doido. Então saímos em direção à praia.

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Dava umas 14 horas de viagem. A gente tinha carro, pó e dinheiro. Umas duas horas depois, entramos na bosta de um lugarejo para abastecer e um caminhão deu ré e entrou no meio do carro. O motorista do caminhão esta-va bêbado, sem carteira e dinheiro. Fazia um frete ilegal transportando tijolos. Ali se acabou a viagem prá praia e o carro dele. A onda foi passando e na volta fui pensando na loucura de tudo aquilo. Ele continuava rindo e falando, mesmo depois de perder a merda do carro com tudo den-tro. Eu não podia mais fazer nada por ele. Ele se entregou e agora não passa de um gordo no hospital. Eu liguei prá ver se ele tinha alguma coisa. Me deu hoje uma vonta-de louca de falar. O meu tá acabando. Tem alguma coisa aí? Heim, tem alguma coisa? Olha debaixo da cama, olha dentro do armário! Nas caixas! Não me esconda nada, seu merda, não fique com tudo! Deixa um pouco prá mim! Tem muito, tem muito prá todo mundo, prá mim!!!....

... Quando dei por mim estava com o telefone na mão em um apartamento que não é meu onde um louco droga-do perigoso e estranho se escondia da polícia. O sinal de ocupado invadia a sala e procurava uma saída prá longe do silêncio dali. Eu havia ido longe demais para um síndi-co. E se essas caixas estivessem cheias de sacos de droga e a polícia ou bandidos ou o cara do telefone chegasse? Eu era cúmplice de um cara que tentou se matar de overdose? Minhas digitais, meus pés, meu fôlego!

Mas o terrível, o pior de tudo, é que apesar de estar me sentindo fazendo algo de errado, apesar de ter invadido um apartamento, apesar de toda a irregularidade da situa-ção, eu era arrastado por mais, mais que aquilo. Sabendo e não sabendo, não conseguia ir embora. Não era pela aven-tura, nunca fui disso. Esse homem sem nome, rosto ou mensagem ia aos poucos se tornando uma imagem atra-tiva para mim. E eu estava no lugar dele, na cadeira dele,

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em seus passos, no nervoso de sua caligrafia. Eu tinha a oportunidade de ver o que os outros não viram, de enten-der o que ninguém antes conseguiu entender, o que nem a minha vizinha, a louca do 501, poderia entender. Mais ainda eu estava só, rodeado pela ausência do drogadito, em meio às suas coisas, ali.

Me levantei da cadeira e como uma máquina me dirigi para as caixas. Pude ver que as de baixo eram mais velhas que as de cima. Ele continuava a empilhar coisas sem pa-rar, continuava a encaixotar e fazer sua mudança. Com muito esforço, consegui abrir uma. O drogadito havia ve-dado firme a caixa. Tão forte foi o esforço que, ao invés de abrir, rasguei a caixa. Um mar de papéis de vários ta-manhos e formas e cores escorreu como uma onda para o chão, realçando o brilho pulsante do piso de taco dividido entre seus respingos de tinta e o marrom da madeira. Me abaixei para colher as coisas que caíam, desesperado, fa-minto por tomar tudo aquilo em mãos, o cuidado com o que despencava se dispersando, o fôlego ofegante como de um cão. E enquanto inutilmente tentava segurar as fo-lhas que driblavam meus dedos, eu via as letras, as pala-vras, as vozes todas dos textos em sua curva descendente. Eu lia no ar pedaços de um corpo partido, entregue ao pormenor de seu ocaso. As dobras e voltas do papel em fuga faziam minha cabeça girar mais e mais pulando de um texto para outro, emendando tudo em um grande e inacabado livro. As folhas perdidas uma a uma se uniam nesse gigantesco mar que se espraiava em minha frente, e eu não mais de joelhos me entregava ao áspero cruzar do papel em meu rosto.

Distraído nessa brincadeira, não percebi a entrada do taxista. ‘O que você está fazendo aí ?’, ele me perguntou, não entendendo o que eu fazia ali. Respondi que era o síndico e que viera saber o que havia acontecido com o

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morador. Desconfiado, ele se aproximou de mim e depois que olhou bem em meu rosto começou a rir. “Ah, o senhor me pregou um susto. Parecia o patrão que acabei de dei-xar dormindo no hospital. Só faltava a tagarelice. Eu vim pegar umas roupas prá ele. O coitado vai ficar lá por um bom tempo. Homem bom, difícil encontrar alguém assim nos dias de hoje. Por isso vinham atrás dele. Ele não con-seguia dizer não, sempre ajudando os outros e recebendo só uns saquinhos de plástico, umas trouxinhas em troca. Eu falava prá ele: ‘Se cuide, cuidado com essa gente’. E ele me respondia, dizendo que sabia até onde poderia ir. Agora tá lá no hospital, uma judiação, calado, um peso sem peso sobre a cama.”

O taxista foi para o quarto e trouxe uma maleta. En-vergonhado, continuei na sala. Então ele me chamou para ajudá-lo. O taxista colocava as roupas na maleta que eu segurava, e ia falando “Pois eu conheci o patrão quando ele voltou de uma excursão prá praia. Eu trabalhava no aeroporto. O carro era de aluguel. Vivia noite e dia diri-gindo. Minha mulher tinha ido embora com meus filhos e só me sobrou o táxi alugado. Tudo que eu ganhava era para pagar o carro. No momento mais angustioso de mi-nha vida, ele veio em minha direção rindo e falando, todo agitado e feliz. Eu estranhei, seu síndico. Mas, como ta-xista vê muita coisa doida nesse mundo e meus problemas eram muitos maiores que um moço bêbado, não prestei muita atenção no sujeito. Ele entrou já falando da viagem prá praia, dos amigos que deixou por lá, das contas que pagou e disse que não queria ir mais embora e chegou até a ligar prá pousada prá cancelar o vôo de volta enquanto bebia com seus amigos e o pessoal da pousada avisou que não tinha jeito, que tinha de embarcar nesse vôo e a van já tinha partido. Então ele pegou um táxi e foi pro aeroporto. Quando chegou no check-in, o avião já estava na pista

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prestes a decolar. Tinham esperado muito. E não é que ele saiu correndo pelos corredores do aeroporto, invadiu a pista e foi em direção do avião gritando e sacudindo a mala chamando o piloto de ‘motorista’, ‘motorista’ e exigindo estar no vôo. Depois de muita insistência e dis-cussão, abriram a porta e ele entrou. Todos olhavam com ódio e desprezo para ele. O patrão atrasou o vôo e ainda embarcou. E entrou falando e pegando uísque. Sentou-se ao lado de um casal e não deixou eles em paz toda a via-gem. Quando aterrissaram, era uma corrida para sair do avião. Ninguém agüentava a felicidade daquele homem recontando repetidamente tudo que havia feito e visto. O patrão havia arranjado uns amigos na praia. Passavam as noites em claro bebendo e conversando. Voltou mais branco que antes. Em meu carro ele conta outra vez o que houve.

Então veio o extraordinário, seu síndico. O patrão se vira pra mim e pergunta porque eu estava tão triste. Eu pe-gava gente o dia inteiro e ninguém jamais parou prá falar comigo. O patrãozinho me olhou e quis saber de mim, seu síndico, um ninguém, sem casa e família que carrega gente de um lado pro outro em um táxi alugado. Eu falei prá ele o que me acontecia. E ele me ouviu, ouviu tudo com cui-dado, tudo que eu disse. Veja só isso, seu síndico, alguém ouvir um homem como eu. Isso eu não esperava, isso eu não esperava mesmo. Se ele só tivesse feito isso, eu já es-tava agradecido. Mas não. Ele fez mais. O patrãozinho me disse para encostar o carro. Eu não entendia. Ele repetiu o pedido com um olhar sério. Depois que encostamos, ele falou que eu não iria mais dirigir o carro. O patrãozinho trocou de lugar comigo e foi dirigindo o táxi até sua casa. O senhor já viu uma coisa dessas? Imagine: o passageiro trocar de lugar com o motorista. Ah, meu Deus ninguém, vai acreditar nessa. Essa eu preciso contar! O passageiro

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na direção, era o que eu dizia enquanto ele guiava o car-ro. Nunca, seu síndico, nunca me aconteceu uma coisa tão boa e inesperada. Eu estava no chão, destruído e me vem uma dessa. Olha, seu síndico, pode parecer uma coi-sa boba, mas aquilo me salvou, me salvou a vida. Eu já pensava até em fazer besteira. Mas vendo aquele homem assim naquele estado, alguém que você não conhece nem dá muito valor fazer aquilo por mim - foi a melhor coisa da minha vida, foi a felicidade, seu síndico, a felicidade! Depois disso, sempre que ele me liga, a gente faz viagem e a gente conversa e eu conto minha vida e ele ouve tudo, e se diverte comigo. O patrãozinho ri de minhas histórias, e sua risada, mesmo cada vez mais fraca, com dentes cada vez amarelos, é a melhor coisa de meu dia.”

Já estávamos no elevador, eu carregando duas malas e ele colocando outras duas no porta-malas. Hesitei en-tre continuar ou não a viagem, a lembrança vaga de meu apartamento ficando atrás, a pista em nossa frente se abrindo, eu no lugar do passageiro continuando a ouvir o que o taxista me dizia: “Fui eu quem levou o patrãozinho para o hospital ontem. Atendi o celular e uma voz fraca pedia ajuda. Ultimamente, entre uma risada e outra, o pa-trão deixava escapar uma fraqueza em meio à sua alegria. Dava prá ouvir alguma coisa chiando dentro dele. Apren-di isso com meu pai. Meu pai era mecânico. Era só você ligar o carro que ele identificava o defeito pelo ouvido. O pai dele, meu avô, que eu não conheci, ganhava a vida di-zendo o peso dos bois com os olhos. Herdei os sentidos da família. E dava prá ver e ouvir como o patrão estava indo de encontro com uma parede. Ultimamente eu o levava de volta prá casa complemente fora de si, dizendo coisas sem sentido. Antes era diferente, como se estivesse des-cobrindo algo, deslumbrado, feliz. Toda noite era festa. Eu não sei de onde ele tirava tanta energia. Pois essa fon-

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te foi secando. O patrão começou a sair menos e receber mais gente da rua. Uma vez no meu carro ele estava com um marginal conversando. Eu ouvi que o cara tinha ma-tado gente. Me deu um medo e preocupação. O cara tinha fugido prá se vingar por ter sido preso vendendo droga, imagine uma coisa dessas, seu síndico. O patrão ouviu o malandro, falou com ele e reverteu o perigo. Ao fim, eu vi pelo retrovisor o cara com os olhos esticados e brilhando, uma esperança em seu rosto. O patrãozinho tinha dito que ia ajudá-lo a sair dessa. O patrãozinho começou a recolher a rua inteira em sua casa, para ajudar. Chegou até a passar na rua da prostituição e levar todo mundo para um restau-rante, isso em uma segunda feira fria de agosto. Imagine meu carro cheio de pernas e perfume barato. Depois, as coisas começaram a mudar. O patrão começou a ficar em casa só. Eu tinha que buscar uma encomenda para ele toda noite, sua comida. Cada vez que atendia a porta ele estava mais e mais branco e pálido. O sorriso se desmanchava entre o rosto já sem marcas. Ele estava desaparecendo. Começou a deixar a porta sempre aberta e andar sem rou-pas e não tomar banho e a anotar coisas sem parar. Acho que ia se despedindo da vida, se esvaziando de tudo que viu e viveu. Pois ontem acho que veio o fim. No celular eu ouvia algo como uma interferência de linha, o som de uma tv fora do ar, algo que não era gente fazendo som, um puro ruído. Depois, esse fiapo indistinguível de nada foi se emendando em um suspiro metálico e distante, abafa-do e seco. E, para culminar, veio a voz suplicando ajuda. Eu conhecia bem essa voz. Disparei com o carro, che-guei logo correndo, subindo as escadas. Quando entrei no apartamento, o patrãozinho estava no chão enrolado em uma coberta, o olhar fixo na porta aberta, a mão estendida para algo que via sumir bem em sua frente. Ele chamava por nomes, de conhecidos seus, de amigos, de sua família,

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até despencar com a cara no chão. Fui em direção dele e, quando o peguei pelos braços e ergui, vi seu coração disparado ao máximo. O coração o sugou, a batida acele-rada do coração levou tudo dele. Coloquei o patrãozinho no carro e voei para o hospital. Agora é esperar. Olha, seu síndico, ninguém merece isso, ninguém. Morrer desse jeito é pior que ser atropelado. Eu não consigo esquecer o sofrimento dele se contorcendo e se espremendo todo por alguma coisa que foi embora. É como se ele tivesse sede e as águas se afastassem. Se meu pai estivesse vivo, eu pedia prá ele colocar o ouvido no peito do patrãozinho e descobrir o que tem de errado. Eu não entendo por que alguém assim como ele foi perdendo sua alegria.”

Estacionamos o carro e fomos com as malas para o quarto do morador do 104. Ao andar pelos corredores do hospital público, de cortininha em cortininha foram se abrindo mundos cada vez piores, tudo que de ruim havia escondiam ali. Nas macas e no chão se amontoavam doen-tes e acompanhantes, uns mais desfigurados que os outros. Quando chegamos na ala de nosso amigo, fui percebendo onde estava, até onde tinha ido pela simples curiosidade de conhecer gente por quem nunca tive a menor consi-deração. Até aquele momento de minha vida, conseguira uma existência imune a tudo que é imperfeito e perigoso. O maior risco que corri foi experimentar um pouco de comida exótica em aniversário de um colega de trabalho. Passei o resto do ano e os anos subseqüentes fugindo des-se meu colega. Agora estava ali, em meio a uma multidão de inválidos, com o serviçal do drogadito. Larguei as ma-las com ele e fui embora. Na pressa de escapar dali, me perdi completamente. Tudo era igual e mais dolorido. A brancura dos lençóis reunia todos em uma ardência que cegava, que encardia a pele. Em todos os lugares estavam os órgãos e as dores sendo expulsas dos corpos. E eu an-

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dando quase correndo sem parar de um lado para o outro, esbarrando em macas e biombos, em busca de uma porta aberta para fora dali, para longe, para a rua, para minha casa, para você, meu amor. E todos me olhavam, os doen-tes de olhos fechados, todos me olhavam com ódio e sem misericórdia, olhares trançados um após um, indo e vindo contra mim, pesando sobre minhas costas, as pernas se dobrando, o chão cada vez mais próximo, um cheiro terrí-vel tomando conta de tudo que eu vejo.

Foi quando um médico me aparou e sem interrupção reclamava raivosamente sobre o comportamento do mo-rador do 104. Dizia que por ele não fazia nada, que todos os drogados tinha que morrer, assim como os fumantes e os obesos e os marginais atingidos por tiro, e os bêbados e os suicidas e os idiotas e os ignorantes. Não dava conta de ficar o dia inteiro curando essa gente que depositavam no hospital, todo dia as portas abertas para essa multidão de desgraçados que buscavam acabar com suas vidas e não conseguiam. Agora ele tinha que ficar remendando o que não quiseram, arrumando o que jogaram fora, reunindo o que foi partido, costurando pedaços de gente que ele odiava, gente que não dava a mínima para nada. Enfim, ele não era Deus ou o mar para abrigar sem indignação tamanha quantidade de coisa sem o menor valor ou justi-ficativa. Não estudara a vida inteira “para cuidar da por-caria de um bosta de um drogado que se entope da merda de um pó o dia inteiro, até estourar por completo tudo que tem dentro, tudo que segura ainda o lixo de sua vida, até o ranho nojento que escorre de seu nariz e pinga no chão e é lambido, puxado de novo prá dentro, até esse ranho consistente e branco, essa sopa asquerosa e sem cheiro virar a única coisa que escorre nas veias e no cérebro des-se animal estúpido e sem graça que chega aqui com ros-to de suplicante, o homenzinho que precisa de alguém, o

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doentinho, o miserável da porra de um cara que fez tudo com plena consciência, o inteligente, o fala-muito, o tre-me-treme, o mente-ágil, o descobridor-de-caminhos, o guru, o pensador, o especial, o santo, o agradável sujeito dessas horas que todos gostam e perdoam e acolhem, que fez toda essa merda sabendo que iria parar aqui um dia, em minhas mãos, em minhas mãos, porque tenho o dever, a responsabilidade, a obrigação de cuidar desse tipo de gente que se empenha com todas as forças para conseguir, afinal, uma cama nesse lugar. E todo dia chega mais, e todo dia eu xingo, chuto, cuspo, berro e não sei onde vou parar, pois odeio essa gente, odeio esse povo que chega me impondo com sua presença uma atitude positiva, favo-rável, humana. Pois eu vou fazer somente o que estiver ao meu alcance, e que morram, morram e não voltem mais! Avisem pros seus amiguinhos, avisem pros coleguinhas risonhos que eu vou, de braços abertos e um olhar amea-çador, continuar esperando todos vocês.”

O médico, possesso e descabelado, me dizia aquilo como se eu fosse o culpado de tudo, como se eu fosse um dos doentes do lugar. Ele largou o meu braço e su-miu em meio às marcas e cortininhas. Em volta dele, mais à frente, pacientes erguiam suas mãos, acompanhantes e familiares pediam informações. Ele abria caminho entre a multidão, alvoroçando cabeças e pedidos que deixava para trás. Pensei em seguir o médico, mas fiquei senta-do em um banco sem saber o que fazer, o tempo de toda aquela longa noite passando bem diante de mim. Se eu tivesse um caderno, ia anotar tudo que vinha em minha mente.

E bem perto de onde eu estava foram surgindo umas vozes, muitas, conhecidas, um lamento conjunto, choros e gemidos que chamavam também. Eu me levantei e fui seguindo os fluxos e refluxos desses sons. Mais adiante,

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uma porta aberta. Uma luz que feria os olhos vinha lá de dentro. Entrei, e lá se encontravam o taxista, o vigia, a mulher do vigia e suas crianças e sua irmã e outras pes-soas, tantas outras que pareciam familiares para mim. E, no meio deles, na cama, um homem vestido de branco, um branco vivo que irradiava luz, um branco cor de outro mundo, a pura presença da céu. Desviei o rosto com medo e vi todos em prantos, mergulhados no sentimento comum de pertença ao enorme corpo quase sem vida. O quarto inteiro respirava junto, puxando forte o ar e trancando-o dentro do peito, até expirar tudo como que devolvendo aquilo que não era seu. E tudo por ele, ali deitado, insen-sível ao que acontecia em seu redor. Poderiam estar ao seu lado traficantes, prostitutas, amigos e vizinhos. Todos estavam naquele quarto, presos ao fim de todas as coisas. Um coração, meu amor, um coração apenas e nada mais. O mesmo coração batendo até parar. O mesmo coração enterrado no fôlego com hora exata para se extinguir. A vida muito menos que aquilo que você come. O devora-dor de cocaína no silêncio completo de seu adeus, a histó-ria de um quarto - gavetas, malas, caixas. Tudo dentro de tudo, até se desfazer pelo nariz.

Eu fui pensando nessas coisas e por elas sendo levado até em casa. Vim andando, a pé. Vi as pessoas entrando e descendo dos ônibus, os vagabundos dormindo enco-lhidos sob as letras dos jornais e caixas de papelão. Cães rosnavam quando eu passava e as mulheres tinham medo, sempre o medo. Carros e mais carros invadiam o calor do dia nascendo e o sol mostrava como tudo é para ser visto, o desejo de ficar preso nessas coisas surgindo com o nascer do sol. Eu passava a mão nas cercas, olhava os intervalos entre as pedras da calçada e os grafites nas pa-redes. Puxei um pequeno galho de uma árvore que pendia em meu caminho e fui desfiando o galho, puxando folhas,

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ramos, a casca do galho, fibra por fibra até meus dedos ficarem úmidos de verde. Fui repetindo isso até chegar em casa, desfiando a matéria das árvores, fazendo uma trilha de pedaços de coisa nenhuma. Quando cheguei em meu prédio, ninguém para me receber. Olhei em volta e as crianças não saíram para brincar. Um vento seco trans-punha os montinhos de areia do dia seguinte. Entrei na portaria e fui subindo as escadas. Nem lembrei do primei-ro andar e dos andares depois. Cheguei ao quinto. Abri a porta e olhei para o meu apartamento com todas as coisas em seu lugar. Móveis, sofá, quadros, fotos, plantas, som, tv, mesa, cadeiras, cds, vídeos, cortinas, copos, tapete, as paredes limpas, limpas, a casa cheia, tudo em seu lu-gar, nada faltando e eu sozinho ali me jogando no sofá, afundando em seu interior, um abraço de espuma e couro, o ruído da coisa com a roupa do homem. E comecei a chorar não querendo chorar, como se prendesse a respira-ção. E mordia os lábios e virava os olhos buscando algo para me distrair. E não houve jeito: abriram-se as portas há muito tempo fechadas e que ninguém mais poderia contê-las. Eu era uma coisa viva que chorava, as mãos contra o rosto, procurando ocultar o que saía de mim, as mãos inúteis contra a vergonha. Junto com as lágrimas, as muitas lágrimas que faziam desaparecer meu rosto e tudo que eu via, comecei a gritar sem palavra, sem nome para ninguém. Eu era todo ruído, todo garganta, a voz eterna-mente expulsa. Com as lágrimas e os gritos, o coração disparou, uma pressa nunca vista em chegar onde nunca esteve. Eu me contorcia para me proteger, para evitar que o resto de mim fosse embora. A boca seca, os lábios tre-mendo, o olhar em busca de uma parede. Depois de um tempo assim, fui encolhendo, abraçando meus joelhos até adormecer. Sonhei com cães me perseguindo. No sonho, eu parei de fugir e com um pedaço de pau batia, espanca-

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va e arrebentava os bichos, despedaçava cada um deles, até que virassem posta de sangue e monte de órgãos e ossos partidos. Em minha revolta, eu ia deixando o medo e tendo prazer de massacrar os cães. Eles, antes raivosos, iam perdendo seu vigor e ameaça, diminuindo a cada lati-do, até se transformarem em filhotes indefesos ganindo de dor e, enfim, em postas. De tanto bater, não sobrou mais nada, nem a farinha deles, nem o chão onde estavam os bichos. E então fui caindo, caindo da altura onde estava sem saber o quanto era alto. E quanto mais caía, mais rá-pida se tornava a queda e mais visível o impacto da terra. Como um olho enorme e desconhecido, o chão se apro-ximava de mim com toda velocidade e certeza. Frente ao iminente abalo final, eu acordei. O coração batia e muito, e nada do que eu fizesse poderia acalmá-lo. Estava tão fra-co e essa coisa dentro de mim tão violenta que não havia outra alternativa senão esperar. E fiquei horas entregue ao coração que, alheio a mim, construía meu desespero e inércia, horas como algo em si sem resistência e mudança. A única coisa que eu podia fazer era ouvir as batidas do coração, acompanhar a constante investida em me debili-tar. Veio o fim do dia e, após um dia inteiro de dependên-cia e inexistência, pude me erguer do sofá e ligar a tv. Era o jornal da noite. Veio comercial e notícia. E então a moça do tempo. Meu coração disparou novamente e eu liguei o gravador e comecei a falar sobre o que via, o coração ba-tendo forte, meus olhos vivos, a mente aberta, as palavras vindo sem parar, um líquido espesso saindo de meu nariz e eu mordendo o ar:

– Coitada da moça do tempo, como ela é triste! ‘Ama-nhã vai fazer frio e calor’. ‘Tomara que venha uma des-graça’, é o que ela pensa e quer. A moça do tempo mente sobre o amanhã. Ela morde seus lábios para não chorar.

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– Eu queria ficar sujo, sujo de verdade, dias sem tomar banho, o suor empedrando em mim, uma pasta viscosa e amarela na virilha que eu pego com os dedos e chei-ro, cheiro com toda a força, a virilha quentinha e assada quanto mais eu tiro a pasta.

– Meus dentes sangrando ao menor toque, o sangue escorrendo das gengivas e caindo do canto da boca em mim, a gostosa e escondida dor do sangue que sai e deixa, entre a gengiva e o dente inchado, o lugar da próxima dor.

– Eu dormindo na cama sonhando que devoro dentes, que masco dentes, os dentes mastigados, os dentes em pe-daços uns contra os outros, os dentes entrando nos outros dentes, dentes quebrados, dentes quebrando dentes, den-tes estourando dentes, não mais dentes.

– Minha mão arde. Dentro na noite eu vejo o movi-mento do pernilongo, seu vôo certeiro contra mim. Eu me cubro com as cobertas, o pernilongo sobrevoa e faz inves-tidas contra o pano que me envolve e sufoca. Faz calor, muito calor. Não consigo dormir. A noite passa. Preciso de ar. Para viver, tiro as cobertas e me deixo ser sugado, sentindo a penetração e o ruído de tudo. Durmo de cansa-ço e acordo com o bicho em meu braço.

– Há coisas em mim que vivem e eu quero matá-las. Não quero mais meu sangue nem o ar. Vou parar com tudo, vou acabar com a vida que não é minha, vou rasgar o sorriso dela. Quanto tempo eu agüento sem respirar? Quanto tempo eu agüento sem o coração? Quanto tempo, meu amor, quanto tempo?

Dia seguinte, eu acordo com o barulho na porta. Eu pensava que você tinha voltado. Abro e é a louca do 501 querendo falar sobre o porteiro. Eu olho para ela e come-ço a rir, rir em sua frente, ela em pé pedindo explicações, viu, explicações. Deixo a mulher na porta gritando com as

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paredes e chego a me jogar no sofá de tanto rir. Você me liga e eu atendo.

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Serenata

Um homem corre, fugindo, é noite alta. Atrás, outros homens. A correria me lança dentro dessa perseguição. Um tiro, um tiro, meu Deus! E gritos do fugitivo. Dentro do quarto eu acordo com o coração disparado e te abraço forte, forte! Minhas costas vão te proteger, meu amor, mi-nhas costas! Lá embaixo, na rua, a perseguição continua. Luzes se acendem, vozes das sombras crescem e comen-tam, sirenes de polícia piscam e berram, até que, mais à frente, o bandido é capturado e espancado. Eu ouço tudo aquilo que não é mais sono abraçado em ti.

E se um tiro desses tivesse vindo parar aqui e atraves-sado a janela e te atingido? O que seria de mim? Um tiro, meu amor, um tiro! A vida não mais vida por causa de um estúpido tiro?! O pior não seria minhas costas. O pior de tudo seria você, meu amor, você!

Agora não consigo dormir. Tudo vem em minha cabe-ça. Não é somente a confusão lá fora do apartamento. Aos poucos eu vou ouvindo menos do que realmente parece estar acontecendo e tiro meus olhos de você dormindo para me concentrar nos passos do andar de cima. Desde que a gente se mudou pra cá, todas as noites, a qualquer hora da noite que você quiser, alguém de sapato alto anda de um lado pro outro, percorrendo os quartos. Não há pressa, nem correria: apenas um caminho contínuo, eter-no por entre os espaços de sua casa.

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Na primeira semana após a lua de mel, eu me sentia completamente destroçado com esse passeio noturno. Pois, pela primeira vez em minha vida, eu morava em al-gum lugar. Passei anos em quartinhos de aluguel, e com você minha nova vida começava. Noites e noites sem dor-mir foram deixadas pra trás quando te conheci e eu pude dormir o sono bom da noite. E agora os passos, cada vez mais certeiros por causa do salto alto, o piso e o teto se fundindo em mim, em minha cabeça. Alguém sem poder dormir vagava a noite inteira tão próximo que eu podia ouvir sua respiração, desenhar sua rotina e quase ver seu rosto.

Eu havia deixado uma vida que eu queria esquecer e todas as noites essa caminhada me perturbava, e entre sonhos e esforços para dormir, as memórias de terríveis das coisas que vi ou fiz se apoderavam de mim com toda força, devolvendo tudo aquilo, tudo que eu havia negado, esquecido e deixado pra trás. Os pés lá em cima não pa-ravam de se mover e embaixo, na cama, eu lutava em me ver livre do passado, do que rejeitei, do que neguei e não queria mais pra mim ou mais ninguém.

E cama ficava estreita demais pra tudo aquilo. E eu me via entre pessoas e histórias de um tempo em que andava sempre atrás de algo pra fazer. O dia era breve demais e a noite deveria durar mais. E eu estava chegando, todos rindo, a gente sempre atrás, sempre. E, de repente, eu me via entre eles, os rostos, a festa, a música. E a música ia baixando e eu via meu copo cheio, cheio disso tudo em minhas mãos. E não conseguia me mover. Estava preso, preso ali. Então virava os olhos, de um lado pro o outro, e você não estava lá. Não havia a menor marca de sua presença. Todos se viravam pra mim rindo, perguntando o que estava acontecendo, por que eu estava olhando a todos daquele jeito, estranhando. E eles se aproximavam

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e eu não sabia o que fazer. Eu não sabia mais o que fa-zer. Não era um sonho porque não conseguia acordar. Eu repetia pra mim bem baixinho ‘Isso é um sonho, isso é um sonho! Vai passar, vai passar!’, mas não saía nada de minha garganta. Eu era alguém sem voz, parado ali diante das coisas acontecendo comigo dentro delas, como se es-tivesse imóvel e morto em uma cama, esquecido e largado há anos. Nem o sopro de minha respiração, nem o mínimo movimento do ar passava perto de minha pele, dos fios de meus pêlos. Eu estava ali sem poder me livrar do lugar onde eu estava. O mais terrível era não perceber o mínimo sinal de ti, meu amor. Eu não sabia que poderia haver um lugar na terra ou dentro de mim onde você não estivesse. O que era insuportável era que as coisas continuavam a acontecer e você de modo algum estava presente.

Em meio a essa prolonga estadia muito além do que re-almente importa, o impacto torturante de tua ausência aos poucos era substituído por um rumor indecifrável, quase imperceptível, vindo de longe, lá de um cantinho sem de-finição de fundo e futuro, bem de lá onde tudo acaba nos sonhos, vindo e chegando como cócegas nas costas do lado desconhecido da lua. Não dava para saber se era o som de gravetos se partindo ou queimando, ou ainda de agulhas caindo. Mas de longe, na mesma hora em que eu me via cada vez mais imerso na multidão que me levava de um lado para o outro festejando apenas estar comigo, foi aí, nesse momento, que os ruídos se deslocavam e ad-quirem pés e passos e chegavam calmamente em minha direção, até ficar em cima de mim, no andar de cima. Es-tranhamente, o mesmo passeio que me expulsava da cama contigo, me restituía, me trazia de volta.

Sabendo que estava ali contigo, não me contive e te abracei forte. Você dormindo, eu com os braços em volta de ti e os passos lá no vizinho. Eu tinha tantas saudades,

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tantas saudades. Rindo, eu parei de te abraçar e passei as mãos nos teus cabelos, arrumando teu rosto pra mais e melhor te ver. Linda, linda você! Enquanto você dormia, eu observava como você é linda, deitada ali ao meu lado. As imagens em minha cabeça cessaram. E no escuro do quarto nada mais havia senão você dormindo em minha frente, a respiração tua me trazendo de volta pra sempre, as mãos pequenas e quentes, quentes que eu peguei e fui medindo e comparando com as minhas, a boca deliciosa pedindo um beijo meu. O resto de teu corpo as cobertas não encobriam. E eu me aproximei em novo abraço, per-nas encostadas, e meu corpo tomou do teu um calor cada vez mais intenso e vivo, tanto que aos poucos fui dormin-do, dormindo, o ruidoso passeio lá em cima ficando mais distante e menor diante de tamanha paz.

Depois disso, todas as noites a luta entre o quarto de cima e o meu quarto foi deixando de ser uma luta. O calor de teu corpo, meu amor, o calor de teu corpo deu ao meu tudo o que ele algum dia desejou ou não sabia: um lugar onde estar, o seu lugar e nenhum outro mais. Um homem corre lá fora, em fuga, sendo perseguido. É noite, é tarde, é frio demais para se viver assim. Em suas costas, o fogo de um tiro vai queimar as carnes que se fecharão para sempre contra o asfalto duro. O homem corre com todas as suas forças, o coração já não se contendo em seu peito. O estouro da bala em seus ouvidos interrompe os pas-sos e inicia a queda. Nas janelas pipocam curiosos, entre o medo e o prazer de ver o corpo apanhado na fuga. A multidão se aquece na desgraça do outro. E eu, dentro do quarto, alheio a tudo isso, te abraço, meu amor, te abraço. Na escuridão da noite teu corpo brilha aceso, e eu posso me encontrar onde contigo moro. Adormeço em paz por-que teu calor silencia os passos e as vozes fora do quarto, bem em cima de nossas cabeças. Porque é bom dormir,

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meu amor, dormir! Como é bom dormir, meu amor, como é bom! Eu nunca havia dormido em minha vida! Como é bom fechar os olhos e dormir!

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Cadernetas azuis

“Você não mudou nada, meu filho!” Era o que ela dizia tentando carregar as malas. Muito a contragosto, o rapaz insistia para que deixasse tudo com ele. Mas era impos-sível controlar aquela mulher que já estava lá embaixo durante toda a manhã esperando com chuva e tudo, e que, vendo a chegada do táxi, saiu correndo feliz da vida na frente de todos dizendo: “É o meu filho, é o meu filho!”, já puxando a bagagem para a rua. Não poderia ter havi-do melhor recepção que esta. Após anos fora, ele voltava para casa. Após anos de adiado retorno, ele estava bem ali diante daquilo que sempre quis evitar. E todo seu esforço apenas o conduziu de volta – ela, bem ali em sua frente, rindo, rindo e chamando atenção de todos ao redor.

Enquanto subiam as escadas, a mãe não se cansava de falar e rir, elogiando as roupas novas, de marca, o corpo de homem, as mãos, o porte, o andar. “Parece teu pai! Igualzinho mesmo! Igualzinho!” E emendava os elogios em histórias e comentários sobre os demais membros da família. Ele olhava para cima, para trás e ia comparando o antigo lar com o de agora. Antes, eles moravam em uma casa com quintal. Na medida em que subiam as escadas, tudo ia ficando pequeno, menor, de se pegar. Nada de es-conderijos e lugares escuros, de sombras e monstros. A luz do dia mostrava a nova cor de tudo em seu lugar.

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Mal chegaram ao terceiro andar, já cansados, a porta se abriu e um rosto meio sorrindo, meio se escondendo surgiu. Era o seu irmão, o caçula, parado na porta, uma toalha na cabeça, aparelho nos dentes, nariz enorme, pele cravada de manchas e crateras - o porteiro do inferno. O visitante interrompeu seu caminho de retorno, procurando suspender o espanto e dúvida. O irmão sem sair da porta, entendeu tudo e, envergonhado, mostrou seu rosto de ódio e repudio ao susto do outro. A mãe foi logo emendan-do, “Mas o que é isso? Vocês são irmãos, são do mesmo sangue! Se abracem, vamos, se abracem!” Foi um cons-trangimento. Ela puxou para si seus filhos e os empurrou um para o outro, obrigando os irmãos a quase um beijo indesejado. Após se afastaram, carregaram as duas malas e o violão para dentro da casa. Cristiano, o irmão que não partiu, era grande e desajeitado. Arrastava os pés e a mala. Logo bateu na mesinha da sala e derrubou um copo que ele mesmo tinha deixado lá. O tapete ficou encharcado de coca-cola. “Quantas vezes eu te disse prá não deixar as coisas aí na mesa?! Não trabalha, não faz nada direito! Só come e faz sujeira! Tava tudo arrumado prá chegada de teu irmão! Você não se importa com ele, comigo, com ninguém! Segue o exemplo dele e arranja um emprego!” O Cristiano foi para seu quanto seguido pela voz de coti-diana repreensão de sua mãe, deixando sozinho no sofá o irmão que olhava para o apartamento tão apertado e para a proximidade de coisas que pensava nunca mais encontrar.

No sofá, o visitante afrouxou o cinto, tirou os sapatos e foi abrindo as malas. De onde estava era possível ver o quarto da mãe, ela fumando, olhando para o infinito, sem-pre a mesma pose de uma mulher mostrando sua tristeza para uma fotografia, um olhar pedindo algo, compaixão. Esvaziando a mala, ele foi fundindo a figura lá do fim do corredor com as fotos dos álbuns: o recorte da mulher,

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mostrando-se de lado, a boca semiaberta, os olhos abertos em movimento de se fechar. Ela continuava a suplicar, impondo sobre todos o seu pedido nunca dito, evaporan-do-se na fumaça do cigarro.

Ele se levantou e foi para o quarto do irmão, que ficava em frente do quarto da mãe. Apenas dois quartos o apar-tamento. Foi andando e pensando que ele poderia dormir até tarde vendo tv na sala. Assim o tempo iria passar rápi-do e logo estaria de volta para sua verdadeira casa. Parou em frente à porta fechada do quarto do Cristiano. Bateu na porta e o irmão resmungou lá dentro. Ao abrir a porta, o visitante deu de frente com o beliche, o mesmo de seu quarto da antiga casa. O Cristiano arrumava a cama para o irmão. Ainda tímido e desconfiado, ele concentrava-se em sua tarefa. No canto do quarto, estava o violão, o primeiro violão da vida do visitante. O visitante foi até lá, pegou o instrumento e se sentou na cama. Cristiano deixou de mexer com os lençóis do andar de cima do beliche e es-perou o irmão tocar algo. O violão estava muito velho, empenado, desafinado, sem a última corda. Ele afinou e arpejou alguns acordes. Cristiano soltou o primeiro sor-riso completo até ali. Na porta, a mãe chegou para con-templar os dois filhos, o encontro das distâncias. E não se conteve indo abraçar os dois. “ Somos uma família no-vamente, uma família!” As mãos dela quase sufocaram aqueles dois estranhos. Todos desequilibrados, acabaram por cair na cama. Cristiano conseguiu escapar e pegou o violão e começou a tocar a mesma seqüência de arpejos do irmão. A mãe se enfureceu, ergueu-se e tirou o violão de suas mãos. “Deixe seu irmão tocar, viu? O violão é dele!” O visitante saiu do quarto, foi para a sala e trou-xe seu violão importado e novinho. A mãe já tinha saído do quarto para fumar e o Cristiano, segurando sua fúria, arrumava raivosamente a cama de baixo. O visitante por

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gestos pediu para que o irmão o acompanhasse no violão velho. “Eu não toco nada. O violão é teu. Tudo agora é teu. Mas quem tem que ficar com ela aqui, quem tem que morar com ela, quem tem que ouvir ela falando de você sou eu, viu, sou eu!! “ Com o violão nas mãos, o visitante sentou-se no chão e ficou olhando o beliche. Lembrou do tempo de criança quando pegava o lençol da cama de bai-xo e enviava nas tábuas do beliche e fazia uma casa, uma casa toda sua. Ele tinha uma casa dentro da casa, uma casa onde só ele podia morar. Depois que o Cristiano cresceu e saiu do berço, teve de se mudar prá cama de cima do beliche e nunca mais fez a cama de lençol. Por isso vivia usando o garoto como brincadeira. Inventava jogos nos quais o irmão mais novo sempre perdia e ficava de casti-go fazendo coisas para o irmão mais velho. Uma vez por mês, eram feitas compras grandes e vinha só uma caixa com seis iogurtes. Ele queria tanto os iogurtes. Daí fazia um mapa: quem decifrasse as pistas e seguisse o caminho encontrava os iogurtes. Todo mês o visitante comia muito iogurte. Mas de noite o irmão mais novo se vingava. O Cristiano respirava mal enquanto dormia e o visitante ti-nha de vigiar o sono do garoto doente.

“Tá me olhando por quê? Também me acha horrível? Tem um amigo meu que falou que eu tenho a cara do saco dele.” Riram. O Cristiano pegou o violão do irmão e, an-tes de tocar, disse: “Tá vendo aqui, tem teu nome gravado. Tu gravou o nome por que? Achava que ia ficar famoso? Tem o nome, data e pseudônimo: ‘Falcão d’Doro Mc-SanMot’ Tu tirou isso da onde? De desenho animado? Tu quase acabou com o tampo do violão! Por isso que nunca consegui vender essa porcaria! Quem iria comprar um ne-gócio todo rabiscado de ‘Falcão d’Oro’... ? ” O visitante pediu que o irmão continuasse a tocar sem parar uma se-qüência simples de acordes para que ele improvisasse em

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cima dela. Depois de uns dez minutos, o Cristiano cansou e disse que não sabia tocar violão, e que não insistisse, e saiu do quarto. O visitante ficou ali no quarto sozinho, pensando em como suportaria isso tudo até o natal. O na-tal estava muito longe, muito. Naquela noite mesmo, o visitante acabou por decidir ir embora no dia seguinte.

Depois do jantar, o visitante passou grande parte do tempo antes de irem dormir tentando contar o que ha-via acontecido em sua vida durante todos esses anos. O máximo que conseguiu foi dizer que não estava casado, que não estava rico e que não ficaria com eles por mui-tos dias. Não conseguia completar nada do que falava. A cada instante era interrompido seja pela novela na tv, seja pelas longas falas da mãe: ‘Então heim? Heim? Já fez aquilo, heim ? Já fez? Já fez!!... Eu não criei filho prá virar mulherzinha. Mas tem que respeitar as moças, tem de dar carinho. Uma mulher precisa de carinho, viu, meu filho, muito carinho. Esse aí eu não sei não, oh: não sai do quarto, não namora ninguém. Ô Cristiano, olha pro teu irmão e aprende, olha prô teu irmão... Acho que ele não gosta de mulher... Ô Cristiano, tu gosta de mulher? Tu gosta? Aqui no prédio tinha uma moreninha linda, linda que ficava atrás dele e ele nada. Parecia que tava fugindo. Eu fui falar com ela e ela me disse que gostava dele, gos-tava mas que ele tinha que tomar banho e fazer a barba. Viu, Cristiano, olha pro teu irmão: olha essas roupas, esse rosto bonito, sem espinhas. Tudo do melhor, tudo coisa direito Agora tu quer saber com quem ele preferiu andar: com o vizinho aqui debaixo, um alemão que vive fazendo barulho só prá me atormentar. Daí eu pego a vassoura e bato no chão e ele continua a festa. Então é eu daqui e ele lá debaixo. Ele faz isso prá me irritar, prá me deixar louca. Não consigo dormir. Dei parte dele no condomínio. Ele recebe homens no apartamento. Eu falei pro Cristiano ter

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cuidado com esse veado, mulherzinha lá de baixo, mas ele não me ouve. Olha só onde eu vim parar. Nessa altura da minha vida, olha só onde eu fui parar, meu filho ! E o Cristiano não ajuda em nada! Ainda bem que você veio! Agora tudo vai melhorar! Você, meu filho, vai resolver tudo, vai dar um jeito nisso! Estudou, se formou e vai me ajudar! Olha aí, ouviu? Ou viu? Eu não disse?! Já come-çou a bateção. Tá ouvindo, tá ouvindo? É toda a noite. Esse veado lá de baixo, mulherzinha... ele quer me deixar louca. Onde é que eu vim parar, onde já se viu uma coisa dessas!!!” Enquanto falava, a mulher se levantou, pegou a vassoura e começou a bater no chão. Em poucos minutos dava para se ouvir a reclamação dos vizinhos do lado e de baixo. O Cristiano olhava para seu irmão com olhos de ontem: frente à frente estavam os dois, presos à mesma história. Nenhuma emoção diante do fim de noite cercado de gritos e xingamentos até que o cansaço levou sua mãe para o quarto. Havia silêncio em todas as coisas, mas a fumaça vinda do quarto da mãe trazia o brilho dos olhos que nunca se fechavam. Os dois irmãos calados viram tv até o dia raiar.

Acordaram meio dia com a mãe chamando para o al-moço. O visitante lavou-se rápido e foi para a mesa posta na sala. Depois de uns quarenta minutos, chega o Cristia-no com uma toalha na cabeça. Senta-se na mesa ouvindo as habituais descomposturas. A mãe pede para Cristiano não se sentar com a toalha molhada na mesa, pois vai es-correr água do banho e respingar na comida. O Cristia-no responde dizendo que o cabelo dele é assim, que está caindo, que ele passa um creme especial depois do banho e precisa ficar todo dia pelo menos uma hora com o creme na cabeça. Todo dia. Enquanto isso, o visitante começa a se lembrar do tempo quando tinha uns 7 anos e vendiam

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na farmácia um desodorante da sorte. O cheiro e o conte-údo eram apenas de água, pura água. Mas ele acreditava tanto naquilo, tanto que, antes de fazer prova no colégio ou de pedir, cheio de medo, presente de natal pros pais, ele passava o tal desodorante. Até seus catorze anos de idade, ele ainda passava aquele líquido ralo, ralo. O homem da farmácia já reservava os tubinhos mensais. Foi difícil pro visitante se livrar daquilo. Só conseguiu quando deixaram de fabricar. Teve dias que ele ficava nervoso, prestes a to-mar alguma decisão, e vinha a falta do seu desodorante da sorte, da aguazinha de fé. Às vezes até fazia o movimento com a mão, apertando um tubinho imaginário, e chega-va até a ficar refrescado. Então o visitante olhava para a situação e ficava com vontade de dizer pro seu irmão tirar essa toalha da cabeça, essa ridícula toalha. O Cris-tiano continuava comendo com aquela colorida montanha de algodão acima de suas orelhas, sem entender muito o que seu irmão mostrava nos olhos. Apenas retribuía com a certeza muda e visível de seus gestos que não podia con-fiar em nada do que o visitante tinha a dizer para ele. Para todos reunidos na mesa, comer era a única possibilidade de continuar ali sem ter de dar resposta alguma. Por isso eles comiam, comiam, esperando que viesse aquela las-sidão do corpo, o sono irresistível após as refeições, que leva consigo toda e qualquer eventual necessidade de se pensar sobre a razão de estarem ali.

E chovia, chovia muito naquela cidade, emendando to-das as horas umas nas outras. A chuva de ontem, de hoje e sempre não cessava de igualar o mundo em uma jaula cinza-escuro. Com o Cristiano e a mãe dormindo, o visi-tante se pôs a ligar para companhias de turismo a fim de completar suas férias. Ao sair de suas cidade, o plano era apenas uma rápida visita e depois ir sozinho para o lito-ral. O dinheiro estava contado. Nem trouxe presentes prá

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ninguém. Era dormir uma ou duas noites aqui e partir. Há anos não tirava umas férias, um descanso, um tempo só seu. Prá conseguir se manter no emprego, precisou abrir mão de folgas e substituir os colegas. Estava em período de avaliação. Tinha de mostrar todo seu potencial para ser aceito na empresa. Após se formar, ficara anos sem emprego fixo. Mas agora a situação se mostrava diferen-te. Contudo, o estranho residia nisso: tudo era tão certo e instável. Não bastava só a oportunidade. Tudo dependia e não dependia dele. Telefonando, a caça por férias melho-res, ele ficava pensando se deveria mesmo ter pedido esse folga para viajar.

A chuva intermitente o arremessou para um jogo entre passado e presente. Sempre odiou essa cidade, o frio que vinha de todos os lugares, a dificuldade para sair de casa, ficar ali na sala todos os dias vendo tv. A única coisa a fa-zer era brincar com o Cristiano. Presos ao mesmo espaço, precisavam não ficar loucos. O garoto quando novo era esperto e bonito, alvo maior de tudo que o irmão poderia fazer. Cristiano era o goleiro no corredor, o ouvinte das histórias de dar medo, o encarregado de recados estúpi-dos, platéia e ator de peças inventadas, cabide, armário, despertador e esconde-esconde esquecido em pé contando de 1 a 1000, o rosto na parede, olhos fechados, até o fim da tarde. O visitante ensinou Cristiano a ler e escrever para que pudesse resolver os quebra-cabeças e jogos de um jornalzinho de edições diárias que inventou. Depois vieram as revistinhas de heróis e aventuras. E depois ainda músicas e canções. Naquela casa, em meio a tanta chuva e frio, precisavam fazer alguma coisa para que não fossem destruídos por uma tristeza que rondava o lugar e os encarava dia após dia. Nas longas tardes em frente à tv - palavra alguma nos rostos refletindo a luz movente das atrações - algo se infiltrava nos corpos e os tomava. Iner-

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tes e sem ânimo, debatiam-se vendo a vida escorrendo sem suor pelo sofá desgastado e cheio de remendos. Até que um dia o visitante acordou desse sono sem sonhos e saiu de casa para nunca mais voltar.

Pelo telefone, comparando preço e itinerários, o visi-tante então aos poucos se fixava em uma ilha a três ho-ras da cidade. Desde pequeno sempre ouvira falar dessa Ilha para onde todos iam passar os melhores momentos de suas vidas. Agora que o mundo encolheu e encontrou suas dimensões definitivas, viu como estava tão perto de algo maravilhoso. Aqui, sempre chuva; lá, um sol que tar-de da noite se põe. O acesso à Ilha era somente por barcas nas segundas e quintas feiras. Podia ir e voltar no mesmo dia, ficar 3 noites ou a semana inteira. Com o dinheiro que tinha economizado dava para uma semana. Uma semana na Ilha! Poderia ir nessa quinta mesmo. Era preciso esco-lher a pousada, pagar antecipado, comprar as passagens de ônibus, as da barca e pronto. Amanhã tudo resolvido.

A mãe acordou, e, vendo o visitante no sofá, foi para o quarto acordar o Cristiano: “Acorda! Que falta de con-sideração! Teu irmão vem de longe e tu aí dormindo, dei-xando ele lá sozinho! Vamos fazer umas compras! Alugar uns vídeos! “ O Cristiano saiu aos empurrões do quarto e olhou seu irmão com raiva, e tênis na mão. Contra sua vontade e sem falar uma palavra, sentou-se no sofá e cal-çou seus tênis. Pegaram uns guarda-chuvas e foram para a parada de ônibus. Eles moravam em uma cooperativa habitacional popular, dezenas de prédios amontoados e iguais, como um brinquedo educativo. Demorava mais de duas horas para chegar no centro. No trajeto, o visitante procurava reconhecer sem sucesso algumas ruas e casas e pessoas que ficavam para trás. Ele estava na janela, com o Cristiano ao seu lado. A mãe no banco da outra fileira

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olhava para os dois juntos e ria e fumava. “Fale com seu irmão, Cristiano, fale com ele! Anos sem se ver e agora aí emburrado! Ele te ensinou a ler e escrever! Não adiantou muita coisa, não é mesmo? Mas agradeça, agradeça!” To-dos em volta no ônibus olhavam sem entender aquela que fala aos berros e sem diálogos da mulher.

No supermercado, a mãe ia enchendo o carrinho de compras: “Vou fazer o que você gostava, meu filho: bife à milanesa!” Ela compra carne e queijo e molho de tomate para um mês. O visitante se irrita cada vez mais. Precisa dizer que não vai ficar mais um dia com eles. Não há ne-cessidade nem de fazer compras. Um filho vem de longe depois de tanto tempo e a mãe quer fazer tudo para ele ficar. Mas quanto mais ela busca agradar, mais desper-ta nele a vontade de ir embora. Amanhã o visitante vai acertar tudo na Agência de Turismo. Por outro lado, essa comida toda aí pode ficar com eles. Seria o presente que ele não trouxe, uma retribuição pela ausência desses anos todos.

Quando chegaram ao caixa, a mãe foi tirando do sutiã uma bolsinha e , da bolsinha, o dinheiro que já entregou na mão no caixa. O visitante, constrangido, tomou o di-nheiro da mão do caixa discutindo com sua mãe. Mas ela responde mais forte: “Deixa que eu pago, deixa que eu pago! Você está de viagem, filho, teve muito gasto prá vir a aqui ver a gente. Deixe o seu dinheiro prá volta, meu filho. Deixe que a mãe paga tudo. Eu posso pagar, eu pos-so.” É completamente inútil dizer o contrário, tentar re-verter o impulso de cuidar e oferecer. Enquanto discutiam sobre o pagamento, atrás deles a fila e as reclamações au-mentam. O Cristiano anda de um lado para o outro, sem saber como se esconder de mais um tumulto de sua mãe. Ao fim, o visitante cede e eles deixam o supermercado carregados de carne e nenhum sorriso, só o da mãe, vendo

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seus filhos juntos, andando pelas ruas da cidade cheias das águas vindas dos céus, o peso das compras em seus braços, o frescor da chuva e tudo o mais em suas cabeças.

Andando sem se falar, os dois irmãos logo notam, umas ruas à frente, que a mãe ficara para trás, parada em frente de uma loja de colchões. Voltam e ela discute com o vendedor. “Olha, meu filho chegou de longe, é um tra-balhador, tem emprego. Não pode dormir no sofá. Faça um preço melhor!” Ela barganha o preço de um colchão para o visitante que vai ficar pouco tempo com eles. Logo que a mãe vê os filhos em volta dela, retoma com mais veemência a discussão com o vendedor: “Pois eu tô fa-lando com o moço aí que tá muito caro, caro demais esse colchão. Você merece o melhor, meu filho. Dormindo mal assim, desse jeito. Se a prima Marly vai lá em casa e te vê nessas condições, vai sair falando. Eu tenho um dinheiri-nho guardado. Não se preocupe que tua mãe dá um jeito!” O vendedor, para se livrar do incômodo, as pessoas da rua já se aproximando, acaba por vender o que ela queria, do modo como ela impôs. O visitante, sem saber o que fa-zer, olhou para o lado e o irmão havia sumido. Mas mais à frente, os pacotes de carne ainda nas mãos, foi achar, em um fliperama, o Cristiano completamente concentra-do em um jogo de luta. Ele entrou na loja e observou o domínio que o irmão possuía dos movimentos das teclas. Com as mãos, somente com as mãos, e os inimigos eram destruídos. Sob as muitas luzes e cores da tela, o rosto de Cristiano resplandecia e se iluminava. Cristiano era ou-tro. Mas um estouro irrompeu dentro da loja. Era a mãe que entrava e explodia a nave do Cristiano. “Inútil, inútil! Gastando dinheiro com essa porcaria! É por isso que eu me mato de trabalhar prá você perder tempo com besteira! Olhe seu irmão, um homem feito, empregado! Ele veio ver a gente e você nem dá bola. Mas prá ficar com os

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joguinhos de computador, com essas coisas de veado, de mulherzinha você não perde um minuto! Ainda bem que você veio, meu filho, ainda bem que você voltou pra me ajudar! Você precisa me ajudar a cuidar de seu irmão! O vendedor disse que o colchão chega amanhã. Tudo está voltando a ser como era antes! Vamos prá casa que eu tô cansada! ”

Cristiano foi o primeiro a sair da loja de jogos eletrô-nicos se sentindo completamente humilhando com a in-vasão da família, abaixando os olhos ao passar em meio aos outros jogadores e máquinas, todos alheios ao que acontecia. Os três pegaram um ônibus e chegaram tarde em casa. A chuva ajudou a tornar o silêncio da família du-rante o trajeto de volta algo menos inquietante. Sentaram em lugares separados, desculpa do ônibus lotado e do vo-lume das compras. A noite em frente à tv duplicou o ruído constante das águas.

O visitante, no intervalo comercial de alguma novela, aproveita a ida para o banheiro e entra no quarto dos ir-mãos. Abre a mala e confere o material que trouxe para suas férias: uma edição de Homero com a Ilíada e a Odis-séia e uma bela caixa contendo o fac-símile de um livro de Hieróglifos Maias, seguidos de seu comentário. Ao folhear tão precioso material, não percebe sua mãe já há um tempo em pé na porta observando. Ela ascende um ci-garro e diz: “Então você conseguiu, você se tornou o que sempre quis: escritor. É nisso que você trabalha, heim, meu filho, é disso que você tirar o pouco prá viver?” O visitante tenta dizer o que ela não quer ouvir. Sempre foi assim: era inútil tentar fazer com ela ouvisse o que tinha para dizer. Dava até um desânimo começar a falar. O vi-sitante queria responder, dizendo que ‘não’, que não era nada disso, que apenas trabalhava em numa editora fa-zendo resenhas, comentários de livros, que nunca havia

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escrito um livro seu e nem sabia se iria escrever algum. Ela interrompe essa expressão potencial para contar sua versão monologante de tudo isso: “Mas desde pequeno você gostava de papel, de ficar rabiscando, mesmo sem saber ler. Você escondia papel debaixo da cama e brigava comigo para eu não varrer lá. Dizia que aquilo era ‘muito impoltante’. Desde pequeno e já certo do que queria fa-zer.” E o visitante, ouvindo sua mãe e vendo o rosto triste dela devaneando, preso nesse sonho, não consegue retru-car, negar toda essa história, dizer que não era nada disso, que não era um escritor não, que ela parasse de falar isso para os outros, de se orgulhar de uma mentira. O visitante era somente isso - alguém que lia os livros dos outros e escrevia sobre que os outros escreveram. Somente isso, nada comparado ao que um escritor faz. “Você sempre viveu no meio de livros, lendo, fazendo livros. Eu nunca vi um garoto prá gostar tanto de coisa escrita, de papel como você. Obrigou seu pai a comprar uma enciclopédia, brigou, brigou até conseguir isso de presente no natal. Os outros meninos queriam bicicleta, boneco, e você uma en-ciclopédia. Aquilo me deixava preocupada, um menino assim o tempo inteiro dentro de casa, magrinho, doente, as outras mães falando que eu não cuidava direito dos fi-lhos. Será que vai virar mulherzinha? E quanto mais eu te via assim prá dentro das páginas, encolhendo, o rosto triste de dar dó, o corpinho branco igual a farinha, a papel, mais eu me perguntava sobre o que eu tinha feito de erra-do, se eu devia ter tirado de você esses livros.” Depois da história veio a grande pergunta, sempre, sempre a mesma pergunta, sempre depois de revirar as lembranças: “Então me responde:eu fui uma boa mãe, fui? Me fale. Agora que você voltou, agora que você está aqui entre nós e dorme e come nessa casa, me tire essa dúvida, esse peso de mi-nhas costas: eu fui boa mãe prá você? Você tem alguma

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mágoa? Pode dizer, pode me falar tudo. Tenho certeza que os livros, esses livros têm explicação, que foi culpa minha essa doença, essa mania das letras, feito uma traça devo-rando dia e noite, uma traça avançando por cima de tudo que é vivo, destruindo o que vê pela frente, até não sobrar mais nada. Quando você foi embora, meu filho, eu fui pensando na vida e escrevi um livro também, um livro prá entender o que tinha acontecido. Eu fiquei tão sozinha que comecei a colocar no papel tudo o que eu passei. Vou te trazer os cadernos. Você podia publicar lá no seu trabalho. É um livro bonito, sincero, cheio de coisas tristes. Leia e publique. Vai vender muito. Não tenha vergonha de sua mãe.” Ela sai do quarto apressada e traz uns cadernos em forma de diário, vários tipos de tinta, escrito em diferentes épocas. O visitante fica com aquele material nas mãos es-perando que ela saia do quarto. A mãe insiste para que ele comece a ler naquele exato momento em voz alta o que ela havia escrito. “Leia tudo: aí tem tudo de mim. Quando eu morrer, vocês vão me entender de verdade. Está tudo aí. Aí está toda a minha história, toda a minha vida. Você pode depois reescrever isso e publicar. Esse pode ser seu maior livro, meu filho, o seu maior livro. Você voltou prá isso, não foi?! ”

Assim que ela sai prá fumar lá para o seu quarto, ele joga o grosso conjunto de cadernos em cima da cama e volta para o seu material. Já conhecia esses cadernos, todas essas histórias. Há anos eram as mesmas. Cresceu ouvindo isso e, mesmo quando saiu de casa, recebia anu-almente como um cartão de natal o exemplar das memó-rias de sua mãe. Os anos todos que ficou fora de casa uma coisa era sempre certa: no natal sempre o alcançava, aon-de quer que ele estivesse, o envelope contendo as páginas da biografia materna. Nem sabe por onde andam agora os tantos exemplares que recebeu. Diante desse enorme es-

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forço dela de recontar do mesmo modo as mesmas coisas novamente, isso apenas proporcionava ao visitante a nos-talgia de estar o quanto mais rápido possível distante dali.

Lá pela meia noite, o Cristiano veio dormir. O visi-tante sai do quarto e vai para a sala. Podia agora ficar no sofá lendo. Volta-se para Homero. Sozinho, a chuva sem pausa, ele lê e marca no texto uma bela frase, a sin-taxe, uma imagem exata, momentos decisivos e palavras de ação, repetições, retomadas, contrastes, dimensões das cenas, presença do narrador, cortes. Aos poucos, o texto vai deixando de ser texto e os sons e as vozes e os rostos ficam delineados. O visitante agora pertencia ao relato e nada em sua volta existia. Para manter-se vinculado à presença sem moldura do que estava lendo, ele começa a escrever nas margens da folha tudo que vinha em mente. Inicialmente, são idéias abstratas e confusas, que procu-ram dar nomes e pensar tecnicamente o que está escrito. Depois, sem haver intervalo, sobrevém uma enumeração incessante de incidentes quando ele era menino. Ao mes-mo tempo que a guerra de Tróia continuava, o visitante se desfaz, derrama-se em sua memória pessoal de pequenos acontecimentos não completados da infância, uma infân-cia antiga. Esses pequenos fatos ele anota nas margens e no verso da cópia do livro que possui em mãos:

– Água no copo de plástico azul, água em movimento, o movimento sem fim da água dentro do copo escuro. Eu olho as águas que se movem. Todo olhar é para eu ver. Eu vejo, eu vejo. As águas me mostram. Jogo de pedrinhas, pedrinhas em minhas mãos. ‘Me diz onde está a pedra, me diz?’ Eu escondendo as pedras entre os dedos. As pedras se desmanchando, desmanchando minhas mãos. ‘Me diz onde está a pedra, me diz’. Agora eu não sei. Agora você me pegou. Esconde-esconde, amigo, esconde-esconde. Um lugar dentro de outro, um lugar sem mais ninguém.

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Um lugar para mim, meu amigo, um lugar só comigo, lon-ge e muito frio. Pega Maria, você, pega Maria prá brin-car. Joga o saquinho prá cima, pega os outros com a outra mão. Ouve o barulho do arroz se espalhando. Já sabemos quem não sabe jogar. Nas minhas costas, a cabeceira da cama, nas minhas costas. A porta do quarto nos pés. Eu vou girar, girar sem sair do lugar. Ainda é escuro, ainda é noite alta. Nas minhas costas a cabeceira da cama, nas minhas costas. Eu girei, girei, mas tudo continua em seu lugar. Olha firme, contra o ar, e não respira. Olha sem rir, olha: nada. Bolhinhas de ar descendo, sujas, coisinhas vi-vas com coisas dentro, ar e água, as bolhinhas caindo de lugar nenhum, bolhinhas, germes, germes. O ruído da tv, o que não quero, o que não devo ouvir, as vozes todas dos vivos e dos que não estão vivos, tudo ali. Trocar rápido de canal, colocar a mão nos ouvidos. Mas eu quero ouvir os não vejo, eu quero ouvir eles falando comigo. Linhas no chão, as pedras que não terminam, caminhos que se juntam para nossos pés. Eu sei que há algo, mãe, eu sei que algo existe e ninguém vê. Até as raízes das árvores racham o chão. Gato, gato me olha. Medo do gato, gato em minha frente. Bicho, coisa, pêlo, mordida, miado. Eu quero pisar, eu quero abrir, eu quero calar o gato, abrir o gato e jogar fora. Fazer mal, mal. Acabar com o gato. Ris-co o fósforo, luz e fogo. Luz e fogo e meu sorriso. Tudo se acaba logo. Risco outro e mais outro até ficar com dor no rosto de tanto rir. Pego outra caixa de fósforo, risco e queimo toda a caixa de uma vez, todos os palitos juntos, uma explosão. Susto e medo. Agora a casa, uma casa in-teira.

Difícil era continuar seguindo os eventos em Tróia. Quando o visitante dá por si, está parado em uma página do canto 13, dominado por visões de sua infância. E as vi-sões, deslumbres indefinidos e isolados, tornam-se cenas

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detalhadas, cada vez mais nítidas bem diante dele. Com a presença exclusiva dessas cenas, o visitante vai desapa-recendo, deixando de ser alguém que observa e registra para agonizar sem resposta na tentativa de encontrar um lugar para si em meio a tudo que ocupa a sala de sua mãe naquele instante. Somente percebe que deixa de ser quem é porque seu corpo treme, treme forte debatendo-se cada vez mais, como se estivesse ao ponto de explodir, tremen-do e tremendo muito, ele já sem controle de mais nada, apenas um corpo sem calor mecanicamente agitando-se, vibrando, fabricando a sua própria sobrevida. Larga o li-vro e a caneta e cai do sofá, cai, vai ao chão, de cara no mesmo tapete de antes, nos quadriláteros que quando me-nino contava, contava, assim como as tábuas do teto, e as persianas, e as estrelas do céu e as nuvens, e as vozes das pessoas, contava, contava até ficar cansado e dormir.

De o Cristiano está em pé em frente dele. “Vamos alu-gar uns filmes. A mãe deixou dinheiro.” Ainda com frio, o visitante vai se arrumar. O telefone toca. É da Agência de Turismo. O pacote de férias estava pronto e o irmão espe-rando na porta. Desconversando e pedindo desculpas para a agência e para o Cristiano, ele se veste e os dois saem de casa. Na locadora busca as fitas com preço em promoção ao mesmo tempo que o irmão demora-se nos lançamen-tos. Ao fundo, entre os esquecidos, na seção sem nome, ele pega fitas de O Gordo e o Magro. Há muito queria estudar a dupla, seus movimentos, a estranha e bem su-cedida verdade que os unia. Ainda mais um real por fita! De graça! Ao chegar no balcão com uma pilha de filmes de O Gordo e Magro encontra o irmão com outra pilha de filmes. ‘Filme em preto em branco? Ah, não!!! Não vai me dizer que tu vai querer levar isso tudo prá casa?! A mãe nunca deixa pegar nada. Agora, só porque tu veio ela tá abrindo a mão e eu não vou ver nada do que quero? Por

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que tu voltou, heim? Me diz o que tu veio fazer aqui de-pois de todos esses anos?!!!.’ Sem responder a nada que o Cristiano vomitava em sua ira, o visitante resolve a ques-tão alugando umas oito fitas de Gordo e Magro. Iria ver Gordo e Magro até enjoar, até não ver ou ouvir mais nada. A mãe não queria uma família? Pois então seria assim: to-dos juntos na sala em um dia de chuva perpétuo entregues a risadas uma atrás da outra, o tempo seu de serem felizes.

Após o almoço, mãe e filhos se sentam calados diante da imagem lenta e antiga costurada à mão dos dois su-jeitos, cujos rostos em close suspendiam-se em primeiro plano em frente de um zumbido constante que vinha atrás deles, a voz que não era de ninguém, a dublagem, a de-mora percebida das coisas que se mostram, e exibem um instante a mais, um instante outro que não é mais esse, longe, cada vez mais distante, zumbindo há tanto tempo e gravado para sempre nessas velhas imagens em movi-mento. A fita de O Gordo e Magro era o único negócio que calava a chuva. E, durante oito dias, naquelas tardes escuras e frias, pôde haver algum aconchego em meio ao céu turbulento e perturbador, as aventuras dos dois ho-mens que já se foram, sua presença bem ali na sala.

Em um dia qualquer dessa preciosa semana, a família toda faz uma visita a uma prima da mãe deles, vizinha de bloco. Era um finalzinho de tarde dolorido, os ossos can-sados já de tanto tremer de frio. Pedir que a noite viesse logo não seria uma covardia. Prima Marly serve bolachas Maria e chá quente de erva doce. “Que bom que você veio. Sua mãe não parava de falar disso. Você ficou muito tem-po fora, sem dar notícias. As pessoas não perguntavam se você tinha família?” “Essas cortinas, Marly, você com-prou quando, heim? Parecem com as lá de casa!” “Mas era só o que faltava: eu tenho essas cortinas há anos. Você é quem vive redecorando a casa depois que vem aqui!”

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“Pelo menos eu me arrumo, gasto meu dinheiro. A econo-mia é a base da porcaria.” “Sua mãe não ouve ninguém, briga com todo mundo, atiça, ofende, maltrata. Diz prá ele o que você faz com o vizinho, o coitado do...” “Marly, Marly, deixa os meninos fora disso e não me fale daquele seu namorado bicha. Depois de velha, fica acobertando veado. E servindo bolacha velha. Eu pelo menos fui casa-da, tive homem no direito, e não vivi na sem-vergonhice. Vocês estão vendo, meus filhos, como ela me despreza e quer me fazer mal? Vive falando mal de mim, vai lá em casa prá me expiar e copiar meus móveis, minha roupa, minha vida. Porque na verdade, Marly, na verdade você queria ter tido uma família como eu, um homem, filhos, ao invés de cuidar de sobrinhos, de filhos dos outros. Pois eu te entendo: essa inveja de tudo que é meu é medo, de-sespero por ficar sozinha, depois te ser tão usada. A velhi-ce chegando e não ter ninguém, ninguém prá ficar do seu lado. Isso deve ser horrível, não é Marly? Olha prá mim, olha de frente: viu meus filhos? Aqui estão meus filhos! Eles saíram de dentro de mim! Passei nove meses com so-frimento carregando eles. Deus sabe o que passei! Cuidei quando nasceram, quando ficaram doentes. E agora eles estão aqui comigo. E o que você tem, Marly, heim? Cor-tinas copiadas, bolacha Maria e uma noite toda prá não dormir e fumar, fumar, fumar até o dia nascer ferindo os olhos, queimando a sua cara assustada. Acabou-se a festa. Vamos prá casa, meus filhos. Deixem essa mulher velha que apodrece pelos cantos. Deixem a coitada aí largada. É o que todos falam dela, é o que se comenta nos corredores quando ela passa. ‘Lá vai a velha louca e sem ninguém.’ E abraçando os filhos, a mãe se colocou para fora do aparta-mento, em meio ao rosto assombrado de todos.

Na volta para casa, nunca a chuva havia sido tão fria, chegando até a ferir. Quantas vezes o visitante teve de

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sair de reuniões familiares arrastando a mãe e a vergonha. Pouco antes de ir embora para nunca mais voltar, fizeram um aniversário para ela, em um Janeiro há muito esqueci-do. A mesa posta, enfeitada, todos reunidos para comemo-rar e ser felizes. Serviram a comida e, enquanto comiam, ela, recusando o que lhe era oferecido - o prato vazio, o olhar atento a tudo em sua volta - tirou um maço de cigar-ros e começou a fumar, prazeirosamente fumando, como se estivesse descobrindo o vício naquela hora, como se fumasse pela primeira vez, o prazer de ser vista fumando, as cinzas se espalhando nos pratos em cima da mesa. As bocas mastigavam menos e a comida ia perdendo seu gos-to. Quando percebeu que os olhares todos estavam em sua baforada, começou a falar: “Então querem me comprar, heim, querem comprar logo a gata, a mulher de sete vi-das? Pois vocês achavam que por causa de um jantarzinho desses, uma comida muito mais ou menos, requentada e sem sal, eu, a gata, ia me deixar levar e esquecer tudo o que vocês fizeram comigo a vida inteira, contra mim? Eu tenho tudo anotado, viram ? Eu escrevi tudo. Ta tudo aqui nesses cadernos. Eu não esqueço! Eu não me esque-ço.” E para cada parente ali presente ela lançou palavras terríveis, um a um sendo revirado em suas mais ocultas intimidades. Tudo o que pensavam e queriam era estar o mais longe possível daquela mulher. Não havia como fazê-la parar de falar a não ser indo embora. Não houve choro ou mais assombro. Ninguém revidou ou se enfureceu. A mãe ficou falando sozinha para a salada de batatas e para os pedaços de pão que ela arremessava ao chão. Dois dias depois disso, o mesmo sujeito que agora abre a porta para que seu irmão e sua mãe entrem em casa, ele mesmo foi embora acreditando e prometendo para si mesmo que um passado ficava para atrás e uma nova vida deveria existir a partir daquele instante.

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Os dois irmãos foram para o quarto em silêncio. Do outro quarto vinha a vaporosa presença de sua mãe, de costas para a porta, olhando para a chuva que igualava o mundo lá fora. A campainha tocou. Era o Lido. O Lido era filho de uma irmã da prima Marly. A Marly cuidava desse e de outros mais, de todos. “Meu irmãozinho, como tu tá bem, heim? Soube que tu tá descolando maior grana lá no cerrado. Vamo embora nessa, vamo! Tu vai ficar mofando nessa casa prá sempre? Vamo lá na rua 24 horas que de lá a gente arruma algo prá fazer.” O visitante olhou para o Cristiano que se virou para a parede. A mãe gritou lá de seu quarto. “Leva teu irmão, leva ele! Eu não quero um fi-lho fraco, mulherzinha, viciado nessas máquinas de jogo. Leva teu irmão e faz dele um homem! ”

Contrariados, os dois irmãos saíram juntos do prédio com o Lido. “Tem dinheiro prá passagem? Pois eu não tenho. Depois a tia Marly paga. Depois eu pago vocês. Vamos logo que o negócio vai rolar quente hoje. Eu tô sentindo, eu tô sentindo de verdade.” Os dois irmãos se entreolharam e da parada de ônibus viram as luzes do pré-dio onde moravam. O ônibus chegou sem que tivessem excluído a pior situação possível para eles.

Duas horas depois e a rua 24 horas. “Olha só, meu ir-mão, olha só o movimento. Ainda tá devagar. Tá cedo. A gente toma uma cervejinha, come um tira-gosto e tu vai ver como as coisas vão melhorar. Hoje eu quero é ser fe-liz, hoje eu quero é me dar bem!” Sentaram em uma mesa de frente para onde as pessoas vêm e vão. O Lido já foi pedindo cerveja, batata-frita e frango à passarinho. “De-pois a gente pega uma picanha, viu? Tá me entendendo, tá me entendendo?!” O Cristiano tomava uma soda limona-da; o visitante, uma água mineral;o Lido alternava conha-que e Cerveja. “Com um frio desses, eu não acredito que tu vai ficar só na agüinha! Teu irmão, tudo bem, é meio

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novo, esquisito. Mas tu não, tu é das antigas, tu é meu amigo! Vai dar mole? Vai ficar nessa? Aproveita que tu tá comigo, primo, aproveita. Eu conheço cada centímetro desse lugar. A tia paga meus estudos, quer que eu me for-me, seja isso, seja aquilo. Mas o bom é aqui, ó, eu gosto é disso, da rua. Nunca me esqueci quando tu foi embora as-sim na maior coragem e dureza, largando essa gente doida daqui. Me escuta, primo, me escuta: eu sempre disse prá mim mesmo que tu era o cara, viu, que tu era o cara! Ô Cristiano, aprende com teu irmão, aprende com ele! Ou tu vai ficar a vida inteira comendo na mão da mamãezinha? Olha teu irmão aí com dinheiro e tudo mais. Tu ainda toca violão, primo? Tu ainda faz uma bagunça? Pois eu me amarro em som, cara, me amarro mesmo. Por tua causa eu também fui aprender violão. Eu tirei umas músicas aí de revistinha, umas que a galera gosta de cantar. Mais tarde aqui fica tudo cheio e a gente pode tocar prá mulherada, primo: a gente junto pode fazer o maior sucesso.”

O Lido não parou de falar até quase meia-noite. Houve um pouco de movimento na rua, mas o frio esvaziou o lugar. Lá pela uma da manhã duas mulheres se sentaram na mesa com eles. O Cristiano trocou a soda por cerveja. O Lido estava já no uísque. Elas pediram picanha ace-bolada e batata fita e seis coxinhas de galinha e uísque também. As mulheres encasacadas, de longas botas e ne-nhuma concordância verbal, devoravam famintas o que estava na mesa. Elas se comunicavam com gestos e risa-das, marcando o tempo da despedida. O Lido estava tão empolgado que fazia planos e promessas para uma noite longa e festiva. Depois de comerem, elas se levantaram e foram ao banheiro. “Umas princesas, heim Primo?! Umas princesas! Eu não te disse? Eu não te disse que comigo tu ia se dar bem?!! Tu quer qual, heim? Tu quer ficar com qual?” O Cristiano, já sob os primeiros efeitos do primei-

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ro copo de cerveja interrompeu pedindo: “A loirinha, a loirinha é demais!!!” Lido e o visitante se surpreenderam com o começo do primeiro porre do Cristiano e riram, ri-ram sem parar. O visitante pensou em perguntar pro Cris-tiano se ele estava bem, se estava tudo bem com ele, se queria que ir para casa. Mas o Cristiano não parava de falar “Acho que tô apaixonado. Que merda: acho que tô gostando dela. Vê se não ninguém me atrapalha, viu? Vê se não ninguém me estraga essa. A loirinha, eu quero a loirinha !!! ” O Lido, quase caindo da mesa de tanto rir, disse: “O garoto tá mandando ver, primo, mandando ver. Agora só tem uma. E ela é minha.” Depois de quase uma hora, constatado o real desaparecimento das mulheres, o visitante pagou a conta e eles deixaram a rua 24 horas an-dando pelas calçadas escuras, vazias e enlameadas da ci-dade das chuvas perpétuas. O Lido reclamava: “Também, era só eu agindo! Vocês aí como dois bichos do mato pa-rados assustando as princesas. Elas devem ter até pensa-do que eu tinha alguma coisa a ver com isso, com vocês, com essa má vontade, com esse medo de mulher. Pois elas estavam certas, viu, certas: quem é que quer uma gente morta como vocês, heim, com a cara do meu saco? Vocês estragaram minha noite!!!Acabaram com a festa! É sem-pre assim! Essa família de vocês sempre...” O Cristiano bêbado com duas cervejas gritava quase chorando para os outros dois: “Vamos atrás delas, caras, vamos atrás delas. Eu tô apaixonado, viu, apaixonado!”

Após rodarem pelo centro velho da cidade, as ruas foram ficando sujas e perigosas. Casas de muitas luzes e sons chamavam os homens da noite para dentro delas. Cada um que entrava recebia uma ficha para anotar a consumação e Lido, eufórico com o papel na mão e as mulheres em sua volta, tratava de descobrir o que cada quadradinho marcado trazia para se beber ou comer. Pe-

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garam uma mesa. O visitante ficou sentado vendo o irmão e o primo dançarem felizes entre sorrisos e fumaças de cigarro. Ele pediu a décima garrafa de água da noite e uma mulher com poucas roupas sentou-se ao lado dele: “Vocês aqui? Não lembra de mim? A gente estava lá na 24 horas.” Era a loirinha de seu irmão. O visitante co-meça a conversar com ela, tentando dizer, em meio ao som alto, como era loucura estar num lugar desses a essa hora da noite, mas que logo iria prá muito longe, longe de tudo que chegasse mesmo a lembrar que por algum minuto esteve aqui. Antes que ela conseguisse entender alguma coisa, ele disse como odiava ter voltado e ter vis-to como tudo piorou, que teve razão mesmo em largar sua gente e que confirmou em seu retorno o que pensava todos os dias. Enquanto ele despejava uma amarga bebida para uma noite dessas e num lugar desses, ela lhe deu um inesperado beijo, como um beijo roubado entre inocentes jovens em seus encontros escondidos e proibidos. De iní-cio, de olhos abertos, ele não deixava de olhar o cabelo da mulher, as várias tintas misturadas e gastas, os olhos fechados deixando visível a maquiagem apressada e des-feita pelo suor, os lábios secos, secos, a saliva espalhando nicotina e uma bala de menta, o abraço seu na pele dela cheia de pintas e sem maciez , os corpos bem próximos, quase uma dança, o fôlego pulsando no mesmo peito, a música em tudo, a música de uma vez só. E tudo ao mes-mo tempo foi perdendo seu horror e nojo e se tornando doce na boca, e suave nas mãos.

Mas quando ele fechou olhos, a única coisa que via em sua mente era uma mulher velha, enrugada e sem den-tes rindo dele, rindo, uma mulher cada vez mais velha na medida em que ria e erguia seus braços para ele, chaman-do-o através de uma irresistível repulsa. Em meio a esse vislumbre do fim, sentiu um golpe de mão nas costas que

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o fez desprender-se do beijo e do delírio: era o Cristiano gritando e empurrando seu irmão: “Ela não, de jeito ne-nhum! Ela é minha, viu? A loirinha é minha! Por que tu não vai embora prá sempre e me deixa em paz? Por que tu voltou pra me atrapalhar tudo?” Imediatamente os segu-ranças da boate expulsaram os dois irmãos. Em frente de todos do lugar, eles eram arrastados, um grande escândalo de boca em boca, como aqueles que a mãe deles fazia. So-mente o Lido ria abraçado a uma mulher sem rosto, feia, muito feia, ele divertindo-se e incentivando todos os pro-cedimentos para garantir a ordem no local. Ao passarem pelo primo, o Lido pediu baixinho: “Me esperem, caras, me esperem. Eu não tenho como voltar para casa! Me es-perem que eu resolvo tudo aqui dentro.”

Os dois irmãos foram jogados na chuva fina e contínua que vinha dos céus e traziam o peso das alturas. Não po-diam nem ficar em frente ao toldo da boate. Atravessaram a rua e do outro lado, sem conversar um com o outro, andavam sem parar, buscando um ângulo onde as águas menos atingissem. O tempo passou como uma ferida que não fecha e arde e sangra, o úmido do sangue escorrendo e você sentido o corpo afogando-se em uma poça escura e viscosa que cola pele e roupa, tudo unindo tudo e fazendo desaparecer todas as coisas sem alívio, uma vertigem que impõe a desistência do medo e do pavor em troca da visão do abandono, do deixar-se ir por entre as folhas e pedras no chão. E assim, com os olhos fixos na terra desfazendo-se, terra sendo carregada pela chuva, eles permaneceram em pé, tremendo de frio, o ruído surdo da boate em seus ouvidos, o neon firme contra a torrente de água que caía do céu. O Cristiano começou a falar: “E tu ia ser cientista, cientista maluco, lembra? Com a enciclopédia veio um mini laboratório. Imãs, limalha de ferro, produtos quí-micos, microscópio, lâminas, o manual de experimentos.

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Era só fazer. Mas tu não me deixava pegar em nada e nem sabia mexer direito naquilo. O único experimento que tu conseguiu realizar foi o da incubadora de ovos de galinha: uma caixa com lâmpadas para chocar os ovos das gali-nhas. Era para chocar, não para fritar os ovos. Mas tu quis fazer do teu jeito e largava tudo lá e os ovos rachavam cheios de pintinhos queimados. Depois disso, tu largou o mini-laboratório, fechou os experimentos em uma caixa, guardou tudo longe de mim, não me deixou usar coisa alguma. Eu queria tanto, eu queria tanto brincar com aqui-lo, eu queria tanto mexer naquela caixa. Quando tu foi embora, achava que o mini- laboratório ia ser meu. Mas a mãe não deixava eu pegar em nada do que tu deixou. ‘Não mexe nas coisas de teu irmão! Ele vai voltar, um dia ele volta. Quero tudo no lugar esperando por ele.’ E assim eu fiquei em meio das coisas que tu deixou sem poder usar nada e fui crescendo com isso. ‘Ele vai voltar, um dia ele volta’. Não podia nem passar perto da porcaria daquele violão! Sabe o que é isso, viver com alguém no teu ou-vido gritando ‘não’ o tempo inteiro? Sabe o que é isso, não poder morar no próprio quarto? Ah, tu não sabe, tu foi embora. Eu fiquei, eu tive que ficar com ela. E tu vem, volta e me rouba tudo de novo. Sempre foi assim. Agora tu quer que eu goste disso, que eu fique feliz? Eu sei que tu não agüenta mais e não voltou prá ficar. Eu só quero saber quando tu vai embora de vez. Diz logo prá ela, não esconde nada: diz que tu não vai mais ficar lá em casa.”

O visitante ficou ouvindo seu irmão falar como se es-tivesse fazendo um favor para o rapaz. Há muito tempo tinha consigo mesmo a orientação que discutir era inútil. O que ele viu, o que ele sabia morria dentro dele. Era preciso calar as vozes, era preciso não falar. Podia res-ponder mostrando que tudo o que o irmão passava eram as mesmas coisas ele mesmo havia sofrido antes de partir.

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Era tudo igual. O visitante fora alvo constante das mes-mas provocações e reprimendas e humilhações. Quando o visitante partiu, houve apenas a troca de alvo dessa lou-cura, a troca do vigia. De volta, o visitante pode perceber que os anos haviam duplicado a mesma criatura presa aos quartos e corredores da casa. Em pé na chuva, ouvindo a ira em meio à madrugada sem abrigo, ele olha seu irmão, a sua renovada imagem, e debate consigo, entre dizer ou não dizer: “Vá embora você também, meu irmão. Largue tudo. Deixe a casa e vá embora”Mas alguns dias mais e nada disso seria necessário. Em breve o visitante estaria na Ilha, longe, uma Ilha com sol e praia, uma Ilha só para ele, os livros e a música, uma Ilha enfim.

A madrugada deu lugar ao novo dia e a boate abriu suas portas. Bêbados abraçados a mulheres bêbadas sa-íram pelas portas e foram enchendo a rua tomada com táxis. E, em meio a essa impensada multidão que anda-va cambaleando na calçada como se estivesse saindo de um bombardeio, distinguia-se um casal muito apaixona-do envolvido em um beijo insaciável e coreografado, um casal composto pelo Lido e a loirinha do Cristiano. Os dois irmãos atravessaram a rua e foram separando o ca-sal. O Lido perguntava “Mas que é isso, primo, ainda não acabei?!! Me empresta um dinheirinho. Tem que pagar a conta do bar e a conta da dona aqui. Ela merece, ela vale o que pede. Tu não pagaria por ela? Vem, pode ir com a gente também, primo. Até tu Cristiano, até um garoto im-prestável como tu pode. Ela agüenta, ela agüenta nós três. Então o negócio é o seguinte: vamos tirar a virgindade do Cristiano, vamos fazer dele um homem. Não é o que a mãe de vocês sempre diz? A dona aqui faz um descon-to. Essa até eu pago prá ver. Tu me empresta o dinheiro, primo, e a gente faz a festa do Cristiano. Afinal, um ga-roto nessa idade já devia ter explorado o ambiente. Esse

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garoto tem é que virar homem e de uma vez!” A multidão em volta ria com seu rei da bagunça. O visitante tirou do bolso o dinheiro da conta e da mulher, pagou e levou em-bora dali o seu irmão. Pegaram um táxi e foram para casa. Ao abrirem a porta, a mãe veio correndo angustiada com a ausência dos filhos. Ficou sem dormir a noite inteira fumando na espera. Vendo o cheiro de álcool, começou a chorar e foi para seu quarto. Noite cara, desnecessária. Nenhuma coberta conseguia aquecer seus corpos agora.

A voz da atendente da Agência de Viagens era enfáti-ca: “Até o natal as reservas estão todas preenchidas. Ano Novo nem pensar. Espere uma desistência. Você demorou prá ligar.” O visitante desliga o telefone com um desâni-mo. Volta ao filme do Gordo e o Magro. Olha em volta e vê sua família se divertindo com a fita. ‘Até o Natal aqui?!!! Até o Natal !’ Com o tempo perdido ali na casa de sua mãe, o visitante já não possuía o valor integral da estadia na Ilha. Precisava do dinheiro do décimo terceiro salário. Precisava sobreviver até chegar em seu sonhado paraíso. Quando a mãe estava na cozinha e o irmão no quarto, ele ligava para seu trabalho ou para a Agência de Viagens. Naquela semana de véspera de Natal, teve umas duas ou três oportunidades de ir embora para suas férias tão esperadas. Mas, quando conseguia a vaga, o dinheiro do décimo terceiro não saía. O natal foi tranqüilo, sem confusões ou excessos. Foram todos ao cinema no Sho-pping na tarde e jantaram muito bem um frango assado de noite. A chuva e os vídeos ocupavam as longas horas do dia. O Ano Novo foi se aproximando e o visitante já se in-seria na rotina da casa, lavando louça e fazendo compras e pegando cartas na caixa do correio. As visitas aos familia-res ocorreram sem grandes complicações e traumas. Ape-nas seu contado dinheiro acabava com uma pressa nunca

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vista. Cada nota maior trocada, logo em seguida não dei-xava rastros, como se tudo fosse jogado pela janela, desli-zando rápido bueiro abaixo. O fim de ano e o aniversário de sua mãe iam se aproximando. Os parentes combina-vam uma festa, uma nova tentativa de confraternização com a difícil e desconfiada figura daquela mulher. Tudo era segredo e o visitante estava encarregado de organizar a festa surpresa. Seria na noite do primeiro dia do ano. Mais gastos, mais dinheiro, tanto investimento em algo que ele não queria ou acreditava. Seu coração batia por outras águas, por outra terra, um lugar sem rosto algum conhecido, um mês, um desejado mês para suas anotações e descanso. Era só o que pedia, era só por que suspirava: a Ilha. Saiu de casa, se formou, trabalhava sem parar na editora lendo livros que não queria, fazendo coisas que não gostava. Sempre a mesma vida, a mesma vida, nunca a dele. E agora na mala seu verdadeiro mini-laboratório - os livros, o mundo todo a descobrir, o violão, tocar as coisas que só ele poderia escutar ao invés de ter de en-frentar a repetida acusação: “Por que você não toca algo direito, algo que termine, algo que a gente conhece? Eu te dei o violão. Agora toque alguma coisa, toque alguma coisa que preste! Por que você fica lendo essas coisas tris-tes, horríveis? Por que você gosta disso, meu filho? É por minha causa, não é? Eu sou ruim prá vocês, eu sou a pior mãe do mundo. Eu vejo isso no rosto de vocês. Pois vocês vão se ver livre de mim, vão sim. Vocês querem que eu morra, não é? Que eu morra! Não é isso que vocês que-rem? A gente cria os filhos com o maior sacrifício e é isso que recebe em troca. Igualzinho ao pai, esse olhar contra mim. Pois vai lá, fica ele, fica. Mas eu te digo: quando teu pai soube que eu estava grávida, ele dizia pra eu tirar, prá te abortar, ouviu?!!. Isso mesmo, você gosta tanto dele e ele queria que eu te abortasse. Todos contra mim: tu,

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teu pai, a família inteira. E agora vem mais esse, outro homem, mais um pro time. Toca alguma coisa, toca. Um dia eu não vou mais estar aqui e daí tu não vai mais poder tocar nada. Daí vocês vão chorar muito, muito, chorar de culpa, porque não amaram a mãe de vocês e ela morreu sofrendo, abandonada. Tu vai levar isso na cara pro resto de tua vida. Eu quero que vocês lembrem de mim assim, sofrendo, triste e sem ninguém. É assim que eu vivo. É isso que vocês me fazem sentir.”

O próprio Diretor de Recursos Humanos dizia que não havia jeito e que a decisão era definitiva. Véspera de Ano Novo e o visitante sem emprego. Esforço inútil esse de fazer tudo o que te mandam, de agradar! Eis aí o presente pela estúpida servidão voluntária! Parte do décimo tercei-ro e da demissão estavam depositados. Agora o visitante tinha dinheiro, mas não a reserva da viagem. Passou a noite de 31 para 1o sem dormir pensando no que fazer. Na noite do dia seguinte seria a festa de aniversário da mãe. Ela estava mais calma, feliz. Mas, a qualquer momento, a mãe poderia cumprir as expectativas sobre ela. O irmão dormia alheio a tudo, preso ao cotidiano de fliperamas e muda ira. De seu lado, o visitante sabia que não havia mais nada, nada mais a perder ou ganhar. Então ele saiu de madrugada de casa, como no passado e foi para a ro-doviária. Lá pegou um ônibus para o porto de Paranaguá e, em seguida, uma barca para a Ilha. Comprou quinze cadernetas azuis para anotar os trinta dias que passaria na Ilha. Trinta, trinta esperados dias. Todo o dinheiro que tinha. Escreveu cada dia até a metade de cada caderneta. Quando chegou o dia 16, virou de ponta cabeça a cader-neta e passou a escrever na metade que faltava, tudo orga-nizado e muito bem anotado nas quinze cadernetas azuis do visitante.

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Primeiro Dia

“Eu sozinho no ônibus. Frio imenso até o porto. Moto-rista e cobrador conversando alheios a mim. Não sou filho nem querido.

Num dia longoa tarde desceem desvarioempalideceo dia breveo dia frioo dia meu desaparece.

Como algumas situações são desfavoráveis!!! O não ser visto, alguém que me serve mal, eu de tênis, calção e camiseta e eles trabalhando. No cais, a bela moça que limpa sujeira dos banheiros, das mesas dos bares, varren-do tudo para trás. Sempre será preciso limpar a mesa dos bares para os turistas. Casais e mais casais embarcando para a Ilha. Nativos carregando coisas prá vender. Pessoas andando de um lado para o outro. Ninguém se importando com nada, ninguém. Agora que o barco quase virou, todos sentam. Eu queria ver se o barco virasse, com eles... Essa gente fala, fala muito, fala do que fala o tempo inteiro. O barco é pequeno demais e não tem jeito. Estou molhado, todo molhado. O mar se chocando contra o barco. Esse sol, há anos que não sinto um sol desses. A pior viagem que já fiz. Está anotado: essa foi a pior viagem de minha vida, nesse barco, com essa gente. Se não morri foi por-que o que mar teve pena ou nojo.

Cais da Ilha. Para frente, o centro onde ficam os res-taurantes e pousadas mais badaladas, o agito. Estamos no

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lado que dá para o continente. Atravessando o grande es-paço do meio, chegamos ao lado que dá para o oceano. Cada lado se divide em duas grandes partes. Minha pou-sada está à esquerda do cais. Uns nativos se oferecem para carregar minha bagagem. Bobagem. Preciso economizar. É só andar pela praia. Em meia hora no máximo chegou à minha pousada, a pousada Morada Nova. Andando, vejo que estou no lado da Ilha que está afundando. Umas casas abandonadas e em ruínas. A areia fofa prende meus pés e o peso das malas e do violão e dos livros aumenta o sol de uma hora da tarde. Saí de casa sete da manhã e somen-te quase meio dia depois estou aqui. As pessoas passam e riem de meu cansaço. Não vou pagar mais, não vou. Homens e mulheres correm para o mar, que é raso e trans-parente, uma imensa piscina de águas quentes. Tudo que sempre sonhei. Já troquei de mão a mala umas dez vezes. A pousada parece estar no mesmo lugar. Olho para trás e o cais está longe. Por que não paguei prá alguém carre-gar essas tralhas? Pagar agora é prejuízo. Nos quiosques de frente prá praia os nativos observam meu atrapalho e minha pele branca suando, já toda avermelhada. Eu não agüento mais, não agüento!!!

Dona Marta me recebe na pousada e se espanta: “Um mês, vai ficar um mês, não é? E já se queimou todo?!!!” Vou para meu quarto passar pomada. Tudo arde. A marca da bagagem afundando na pele esfolada. Me bronzeei do modo mais estúpido e risível: sou bicolor, partes verme-lhas, partes brancas. Sou como essa Ilha, distribuída em duas partes. Vão me vender pros turistas como lembran-cinha do lugar. Vão usar minha pele como mapa. Só não vão poder negociar minha dor de cabeça e o prejuízo com a pomada. Tudo que se vende aqui é caro. Tem que ir no continente comprar o que se precisa. Até a água. Desmaio.

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Faminto acordo. São 8 da noite de meu primeiro dia no paraíso. Hoje é uma segunda-feira. Enquanto desembar-cava, havia uma fila dos que haviam vindo passar o fim de semana e agora esperam retornar para o continente. A Ilha se esvaziou e isso é muito bom. Minha vontade é fazer mal, fazer alguma coisa ruim. Roubar pés de chine-los e esconder, cavar armadilhas de picolé na areia, pisar em castelinhos e esculturas feitas na praia, cortar rede dos pescadores. Essa queimação nas costas não passa, não passa. Dona Marta não pára de me olhar ‘Por que será que um sujeito desses veio sozinho prá uma ilha ficar um mês?’ Dúvida minha: comer aqui na pousada ou ir pro centro da Ilha. Arrasto-me pelas areias, assoprando meus braços e pernas tão assados. Deveria é me comer, acabar logo com isso. Refaço sem sol o caminho da tarde. Não cumprimento ninguém, ninguém me cumprimenta. Até o cais tudo vai ficando muito escuro. Sempre há o rumor e o ruído. Olho para a direita. Vejo a cidade de Paranaguá distante, após o mar, suas luzes de cidade e um navio cru-zando sem pressa as águas do mar, rumando ao oceano. Não há estrelas e minhas chinelas estão cheias de areia, pedaços de pau e formiga. Todo o lixo do mundo é atraído por meus pés. As coisas são tão difíceis para mim, tão difíceis. Era o que minha mãe vivia me dizendo. Que não eu tinha jeito prá nada...

Chego ao restaurante-bar principal da Ilha. Lá pelas onze começa a boate. Recolhem as mesas e a música cha-ma todos para beber e dançar. Aqui a luz desliga à uma da manhã por causa do gerador a óleo. Depois somente o céu, somente o céu e as lanternas e lampiões. Sento e pego um cardápio. Nunca mais vou poder comer aqui. É tudo muito caro e tenho fome. Peço uma torta. A dura-ção da torta em minha boca é menor que a oportunidade de examinar onde estou. Estão me roubando, estão me

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roubando!!! Em minha frente duas mulheres não param de falar sem se ouvir. Eu ouço tudo. Logo armam o pal-co e um tal de Robertinho da Ilha canta músicas de seu horrível e ecológico e didático CD sobre as vantagens e os prazeres da Ilha. No lado oposto de onde estou, duas criaturas exageradamente se beijam, se engolem, multi-plicando-se na platéia em volta. Quando me vejo, estou no meio de outros tantos iguais, cabeludos, sorridentes, bronzeados, jovens, homens e mulheres para o que a vida lhes dá, provocando e sendo provocados, ensaiando os passos todos que se acabam entre os montes de areia da praia após as luzes se apagarem. Jogos entre iguais. A tor-ta difícil de se engolir. Em minha boca, o gosto da mulher da boate, misturado com areia e manteiga, muita mantei-ga. A queimação nas costas aumenta e eu descubro que a minha Ilha é habitada. O meu adiamento em vir aqui me fez perder o que desejava. Não há um lugar, não existe o mar. No momento, eu estou bem no meio do que não que-ro e desconheço. Por isso, após o som da música, eu vago com os olhos fixos nos amantes, meus olhos dizendo: ‘Eu odeio a sua raça, raça na qual você nasce e da qual não faz nenhum esforço para reproduzir! Não é uma raça, é uma disposição. Eu odeio sua raça e tudo o que a mantém viva!!’ Devo ir embora. Sou completamente incompeten-te para sobreviver aqui. A areia da praia apenas nos pés. No escuro, o pior retorno para a pousada. Andar, andar. Calar-se anônimo, sono protelado que chega, o dia novo não aqui. Dormir, dormir.

Dia 2

Impossível dormir. No quarto ao lado do meu as coisas estavam loucas. Sexo ruidoso e desabusado, espancando a parede, indo e vindo na madeira. Café da manhã e fico

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esperando o vizinho abrir a porta para conhecê-lo. Sai de lá de dentro um casal de meia idade e duas crianças, duas crianças, meu Deus! Sento-me na mesa em frente deles e procuro ouvir quem são. Duas crianças, duas crianças e tanta selvageria! Como fizeram isso? Toda noite o quarto vizinho vai sacudir e ninguém vai fazer nada?! Preciso comer bastante para não almoçar. Preciso não pensar nos outros para melhor estar aqui.

Não posso ir às águas do mar, não posso andar no sol. Sento-me debaixo de um guarda-sol e começo o trabalho que me trouxe até esta Ilha: decifrar os hieróglifos maias. Na rua 24 horas, eu disse para a mulher faminta que ia passar um mês na Ilha lendo hieróglifos e transcreven-do canções com o violão, um mês nessas aventuras. Ela foi ao banheiro e não voltou mais. Belo método meu de conquistar! Mas a verdade é que ninguém suporta que o outro esteja fazendo algo que importe, algo interessante e difícil. O meu trabalho, o que eu faço, aponta para o seu ócio, mostra sua perda de tempo. É por isso que não gostam de mim, é por isso que eu espanto sem surpreen-der. Minha mãe devia saber disso. Quem poderia pensar nessas coisas... O livro Maia não é um livro. Eu não sa-bia. Comprei sem ver direito. É um conjunto de imagens, ciclos de tempo, um calendário cheio de figuras que são augúrios, profecia e história. O que virá é uma repetição do que ocorreu. Doenças, comércio, vida e morte. Astros, homens e deuses. Homem-deus decapitado com braços atados atrás, deus com abano, velha deusa vermelha do tecido em frente do deus, deus da morte em preparativos para uma rede, deus do arroz enfia agulha para tecer, deus criador sustentando a armação vazia, concha de tartaruga, deusa da lua, deusa da morte. Um sacrificado. Dele sai uma árvore, raízes como cabeças de serpentes. Um abutre no alto da árvore arranca o olho, iguana-gente. Cão com

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parte das orelhas mordida, deus serpente, jaguar, prato de cacau, cântico dos deuses nas quatro direções do mundo, monstro do céu, dragão deus dentro, quem morde é o deus, boca, pendentes, potes, colar, braceletes, a morte como um olho fora do rosto, divindade feminina com nariz/flor, divindade feminina com capa atrativa da morte, deus ve-lho com dentes afiados, bolsa com sementes, caminhan-do, divindade com rostos amarelo joelhos contra ao peito, é sempre o deus com algo ou alguém, deus com colar de olhos da morte, a coisa verde, precioso jade, contagem dos grãos de arroz, canto das aves, arautos de pedra/madeira, deusa com serpente no cabelo, deus morte/caça, deusa da lua e eclipses, pestes, viajantes divinos comerciantes, le-var alguém nas costas – a morte, os homens, como os sor-teios, são filhos dos deuses, pernas entrelaçadas, cabeça descoberta – o coito, olho fechado - morte, sentar-se sobre uma esteira, sentar-se diante de um cão, deusa com cabelo desalinhado. O único que não ingere as oferendas é o deus da morte. Vênus estrela insere o mundo no céu, estrela que muda e traz o mundo inferior. O deus sem mandíbula, deus idoso, rostos sem nuances - mais uma vítima, ave/serpente, feroz homem cabeça de tartaruga, deus de olhos vendados, homens/iguanas. A morte em seu trono de os-sos, uma flor irrompendo dos ossos. A árvore espinhosa, a chuva eterna, os eclipses, caminhada entre nuvens, chu-va na boca de um dragão, o corpo da serpente desenha o augúrio, destruição pelas águas, resina que cai do céu. A morte devoradora de homens, abundância, guerra, morte. Cão que vomita e esculpe. A Quinta direção - o centro da terra. Cerimônias de Ano Novo....

Não entendi nada, não entendi nada. Ah dia longo nes-sa Ilha, dia longo debaixo do guarda sol! Fome e nenhuma vontade. Cansaço. Desgraça. Um inferno de luz e calor. O Garçom vem e vai. Pessoas falam e falam. Os pés feios

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de uma mulher. Alguém falando de alguém para alguém. Minha cabeça girando entre os hieróglifos sem resposta e as vozes do lugar. O mar sem luta em minha frente.

Dia 3

Novamente o sexo do casal vizinho não me fez dormir. Devoro com raiva minha única refeição. Hoje andar pela Ilha, na parte que dá para o mar. Ruínas. Mar agitado. Lá longe, um Forte antigo. Duas horas até o Forte. Sol terrível. Ando de camisa. A dor nas costas. Forte. As ce-las úmidas e escuras. O sangue enegrecido nas paredes. As paredes, pedras ásperas e irregulares, uma pele feri-da brilhando na escuridão. O vento circulando entre os corredores, o vento preso no Forte. Pessoas comendo e tirando fotos. Eu ouvindo o uivar do vento, vento velho como tudo que anda ou se arrasta, velho demais para sair daqui. Blocos de pedra erguidos contra as ondas do mar, um rosto contra o sol. Me sento feliz aqui dentro, as pe-dras, me sinto melhor entre essas celas. Tiro os chinelos e a dura pisada contra o chão me devolve um caminho que reverbera dentro de mim. É como se eu estivesse em casa outra vez, na minha casa, no meu lugar. O golpe do vento contra meu rosto e a dureza das pedras fortalecem um corpo que não fala. Fico ali até o sol se pôr. Deito-me sobre as pedras e vejo um céu cheio de estrelas, mas não menos escuro e distante e imenso.

Dia 4

Novamente o sexo ardente me tirou a paz. Deveria ter dormido no Forte, como náufragos ou prisioneiros. Des-ceram com as malas. O casal ardente foi embora. A cada três dias a Ilha se renova. Hoje vou poder dormir. Cansaço

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das andanças de ontem. Hoje transcrever canções debaixo do guarda-sol. Não entrei no mar ainda. As queimaduras estão diminuindo.

Violão e partitura. Começo a transcrever uma canção infantil. Quero descobrir como ela é feita e porque to-dos cantam uma música assim. Deve haver algo além da simplicidade da melodia e da harmonia. Eu quero desco-brir a fórmula dessa música impossível de ser esquecida, a razão de seu poderoso encantamento. Enquanto toco, aproxima-se uma criança, e mais outra e outra. A praia se esvazia para ver o homem com seu violão. Continuo fa-zendo meu trabalho. Pedem mais música, pedem música que querem ouvir. Eu não toco prá ninguém, eu não toco pros outros ouvirem. Desde pequeno era assim, as pesso-as na sala querendo me ouvir tocar. A mãe pedindo essas coisas, chamando essas pessoas. E eu tendo que tocar pra elas. Por que querem me ouvir tocar sempre as mesmas músicas? Depois, umas mulheres queriam ouvir músicas que embalam seus desejos e uns velhos, suas recordações. Eu quero a música somente, a música sem pessoa, a músi-ca, a música. Eu quero tocar é para ouvir, eu quero ouvir para onde a música aponta, não uma medicina ou uma misericórdia. Eu quero apenas isso: tocar, e deixar os sons aos poucos tomarem conta de tudo que ouço e vejo,e de olhos fechados poder ver e estar na música. Deixar de ser quem toca para estar preso nas pedras, no caminho sem maciez ou desculpa, tudo de outro modo que essa gente em volta de mim esperando o que eu não vou dar, pedin-do o que eu não tenho para oferecer. Pois eu não quero, não devo e nem preciso fazer o que me pedem. Pois eu vim para a minha Ilha, sem emprego, sem família, sem dinheiro, sem negócio e sem desejo. Eu vim somente co-migo para comprovar que não preciso de nada para iniciar minha nova vida, que posso enfrentar o amanhecer cruel,

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a noite solitária, o mar e tudo o que nele existe porque eu decidi fazer as coisas desse jeito. E nada nem ninguém vai me afastar dessa disposição.

Dia 5

Sexo! Sexo! Sexo! Uma barulheira terrível! Como?!!! Desço as escadas para o café. Dona Marta anda descon-fiada comigo. Reclamo. Ela me diz que não há ninguém lá. Subo novamente as escadas. Ela me segue contrariada. Dona Marta abre a porta. O ventilador se movimenta. O som do sexo, o som do sexo era o ventilador do teto, a base solta do ventilador batendo contra a madeira. Mas eu ouvi, eu ouvi o sexo!!!

Vou para meu primeiro banho de mar. Tiro a camisa e eis diante de todos os que riem o homem bicolor com suas duas faixas de vermelhidão, um x, uma marca, a pele do saco exposta na frente de todos. Sou a única criatura na Ilha reconhecível de longe.

Hoje chegam novos moradores da Ilha para o fim de semana. O cais fica repleto de gente e vendedores de água e lembrancinhas. Esse imenso motel sobre as águas vai ferver. E eu não tenho mais Ilha nem sossego.

De noite, vou para a recepção da pousada ver tv junto com os empregados do hotel. Toda noite faço isso. Não há mais nada o que fazer aqui antes de ir para a festa no restaurante principal da Ilha. Todos vão para lá, até que o gerador seja desligado e a noite encubra o que homens e mulheres vieram realmente fazer. Volto para a pousada pela orla do mar, chutando as ondas com ódio, tentando expulsar de meus ouvidos as mesmas músicas de hoje e sempre. Amanhã vão tocar de novo essas mesmas músi-cas também. Todos querem ouvir as mesmas músicas o tempo inteiro, as músicas que eu não toco e me recuso a

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tocar. Já não sou um turista. Volto com os empregados do hotel, ajudando a carregar o cozinheiro magricela que be-beu demais e começou a xingar sua vida e principalmente a terrível dona Marta.

Dia 6

Não consigo sair da cama. Estou fraco e doente. Uma gripe me derrubou. Dona Marta me traz o café no quarto e me cuida. Não consigo ler nem tocar violão. Os ruídos dos pés se arrastando para a praia, a madeira do hotel li-xada por esses pés, e eu aqui dentro do quarto, os olhos no ventilador. Uma enorme dor de cabeça. A ressaca do cozinheiro em mim. O dia inteiro deitado, inútil. O calor do sol lá fora me sufocando. As vozes correm de um lado para o outro. Ao fim da noite, Dona Marta vem me ver. Junto dela, a Gabriela. Depois, vendo a porta aberta, en-tra o Sílvio. Eles vão passar três semanas ali. A Gabriela entende de enfermagem. O Sílvio é curioso e entende de Gabriela. E eu me vejo em meio de tanta gente que não deixa em paz minha gripe recém surgida. Estamos todos ali, juntos entre chazinhos e conversas que ouço e não retribuo. Meu quarto, que eu paguei antecipado, repleto de figuras que não convidei, falando, falando sem parar. Tudo o que eu queria.

Dia 7

Minha primeira semana nessa merda de Ilha e hoje foi o pior dia de minha vida. A dor de cabeça não passou e meu corpo é uma tremedeira só. Algum bicho daqui deve ter me mordido, todos os bichos dessa Ilha me mastiga-ram. Sair de casa para morrer em uma porcaria dessas! Eu não sei porquê continuo escrevendo essas coisas. Eu

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não sei ainda como penso em algo para escrever. Parece a biografia de minha mãe. Eu só queria um lugar pra mim, um tempo meu. Não sei o que é pior: minha família de lá, ou essa daqui. Não param de ficar em volta de mim. Eu quero a Ilha sem pessoas, eu quero andar, andar sem ninguém. Me falaram dos golfinhos que chegam no Forte. Eu não vi nada, eu não consigo ver nada. E essa febre que não passa... Desde que eu pus os pés nessa Ilha, essa febre me atormenta... Chega disso, chega de tudo!!!

No dia seguinte, ele tomou a barca junto com o Sílvio e foram para Paranaguá se consultar e comprar coisas. Em meio à sua febre, ele comprou duas máquinas de fotogra-fias bem vagabundas e um monte de filmes. Eles tinham duas horas e meia antes da barca voltar para a Ilha. De repente, o Sílvio, que viera só de acompanhante, insistiu para que o visitante ainda doente o acompanhasse. Ele precisava fazer uma coisa. Não agüentava mais. Pegaram um táxi e foram para as casas de prostituição lá no porto. Como era cedo, não havia mulher alguma acordada ou disposta. “Eu preciso, viu, tá me entendendo? Eu não sei como você agüenta, ficar numa Ilha como aquela, ver o que a gente vê e nada. Eu tô precisando muito, cara, e é agora.” Depois de quase uma hora, o Sílvio conseguiu encontrar, com ajuda do taxista, um lugar cheio de mulhe-res ainda sonolentas e sem vontade. Mas estavam acorda-das, o importante era isso. À luz do dia e sem maquiagem ou banho, é impossível disfarçar os poucos atrativos e o cheiro dos outros homens. Mas o Sílvio escolheu logo a primeira que viu e foi para o quartinho com ela, enquanto o visitante tossia na sala de espera, sob os olhares irrita-dos das outras mulheres. Na volta, dentro do táxi, o Sílvio era outro “Como isso é bom, cara, é bom demais! Eu tô pronto prá tudo! Você também devia ter pego uma delas.

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Ia curar a sua doença. Isso aí é falta de mulher. Agora eu posso até dormir pelado dentro do mar a noite inteira que não pego coisa alguma. Eu tô bem, fortalecido. Foi bom e rápido. A dona veio cheio de papo, dizendo que tinha que fazer isso e aquilo. Mas eu vou é cair em conversar de puta? É reclamação e pedido o tempo inteiro. E pior essa aí que ainda queria contar vantagem. Disse que era estran-geira, de família rica e tudo mais. E que tinha namorado e tal, que o cara tinha bastante dinheiro e lhe dava coisas. Que ele era bom com ela e muito gostoso. Que ontem mesmo tinha levado ela para jantar em restaurante caro. Que ela não ia ficar muito tempo nessa vida, que o namo-rado ou a família iam tirar ela de lá. E tudo isso bem na minha frente, cara, enquanto eu ia tirando a roupa. Se quer falar, tudo bem. Sei que não sou um cara mais bonito do mundo, mas fazer propaganda de namorado na frente de cliente aí isso é demais. Daí se deitou como uma mulher de verdade e com voz suave e cheia de ar me pedia calma e carinho, que ela tinha tido muito trabalho noite passada. Só me faltava um troço desses!!! Mandei ela ficar de qua-tro e me esvaziei logo de uma vez, rapidinho. Mandei ela virar, e fui com tudo. Deixei ela ali ainda sem saber o que tinha acontecido e vesti as roupas. Agora, uma mulher dessas vem bancar a esposa comigo, achando que eu lá sou homem de cair em conversa de puta!!! Pois trabalhan-do em uma bosta de uma zona de porto quer mostrar o que não é prá quê?!!! E isso me deixou com raiva e com mais vontade de acabar com o negócio. Eu tô pagando, eu pago mesmo, pago prá não ouvir o que ela tem prá me dizer. Quando eu gozei e sai logo dela, a mulher ficou ainda um tempo de quatro esperando alguma coisa. E eu já estava lá fora pagando o quarto, que o dinheiro dela, ela, esperta, já havia recebido adiantado. Já viu uma coisa dessas? Va-

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mos, corre, depressa: senão a gente perde a barca de volta. Semana que vem eu volto. Mas quero outra mulher.”

Quando chegaram no porto, a barca estava quase sain-do. Correram e conseguiram entrar. O visitante volta para Ilha com um estranho e repugnante companheiro. O Síl-vio o tratava como amigo e confidente. Estavam tão pró-ximos como a doença no corpo do visitante. Contra sua vontade, ele tinha agora um amigo.

O resto do dia eles, junto com a Gabriela, andaram pela Ilha. O visitante tirava fotografias sem parar para não ter que falar muito. Os dois outros se admiravam de ver al-guém que, alternando as duas máquinas fotográficas, ti-rava fotos de troncos e galhos de árvores retorcidas no chão. Chegaram ao Forte e os golfinhos estavam agitados. Sob o pôr-do-sol daquele dia, mesmo com febre e fraco, ele pode ver os incríveis saltos dos golfinhos para fora do mar, o impulso para além das águas, o animal em seu vôo, saindo de seu lugar. Daí lembrou das fotos que tirou, das carcaças de coisas espalhadas pelas areias da Ilha. Cada galho, cada árvore tinha a forma de algo que não era árvo-re, do mesmo modo que as nuvens nos céus eram figuras das coisas da terra. Então, naquela noite, enquanto anda-vam os três amigos para a festa lá no centro da Ilha, no bar-restaurante onde o Robertinho da Ilha se apresentava cantando todos os dias as mesmas canções didáticas e eco-lógicas, ele pensava nessas coisas estranhas, visíveis den-tro das coisas vistas. As fotografias seriam a prova dessas visões – tudo se fundindo, a estranha maneira de tudo vir a se reunir e formar registros de uma existência profunda. Em meio às mesmas músicas de todos os dias, dos encon-tros e desencontros entre os amantes, da porcaria do show do Robertinho da Ilha e da volta para a Pousada, sob o céu de tantas estrelas, ele começou a perceber bem claro o que anos e anos buscara entender, algo que o fizesse sentir

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bem, completo e feliz. Tanto anos negando tudo e todos, fugindo de quantas casas precisasse, deixado o mini-labo-ratório sem uso e utilidade, encolhido em uma provisória maneira de viver, isso agora parece ficar para trás ao reto-mar o impulso do vôo dos golfinhos para observar de uma outra perspectiva o que acontecia em volta de si mesmo. Pois tudo ganhava um horizonte maior e mais atrativo, outras razões que os resmungos e insatisfações e a raiva. Aonde quer que ele fosse, de onde quer que ele tivesse saído, não adiantava nada tanto movimento e dispersão se sempre colidia bem de frente com essa dimensão mais ampla e primeira que somente hoje ele pode perceber. As visões das nuvens dos céus, e principalmente dos troncos e galhos na terra mostravam que as coisas se transformam em outras e que, infelizmente, só vemos partes, pedaços, restos de madeira morta no chão. A bruta fotografia con-gelava o instante em que era possível observar o encontro das coisas que faltam nas coisas vistas. A árvore em for-ma de rosto, as nuvens formando animais, os golfinhos de asas molhadas, o cruzamentos de todas as substâncias e matérias - ali, na Ilha, estranhando tudo em sua volta, ele estava diante de algumas quase respostas.

Trocando a febre da doença pela febre de querer mais entender, no dia seguinte o visitante tomou o café reforça-do de sempre e convocou seus amigos para uma expedi-ção em torno da Ilha. Os outros concordaram. Não havia o que fazer na Ilha e nem como resistir ao entusiasmo do antes calado companheiro da pousada. Arrastados por esse impulso, foram contornar a Ilha. Enquanto andavam, ele tirava fotografias das estranhas formas inscritas nas madeiras retorcidas. A maré estava subindo e ele continu-ava a andar na frente dos outros. Silvio e Gabriela conver-savam distraídos até que se viram quase debaixo d’água. “Vamos voltar. Daqui não dá mais para ir em frente. A

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maré vai subir mais.” Mas ele insistiu, insistiu até fica-rem apenas com a cabeça e os braços do lado de fora das águas. As margens desaparecem e eles estavam entre o mar e a vegetação, ilhados. Quase uma hora depois, pas-sou uma lancha e os levou para adiante. A loucura disso tudo apenas incentivou a continuidade da expedição. Pas-saram pelo lixo entulhado na margem extrema da Ilha e viram enormes urubus comendo comida estragada e res-tos de coisas mortas. Esse lado da Ilha é completamente deserto e desconhecido. Todos os restos e entulhos vêm parar aqui. Quando os urubus perceberam que a expedi-ção avançava na direção deles, os bichos começaram a andar, fugindo desajeitadamente, pesados que são para quem voa, até que conseguiram alçar vôo para os céus. Bem adiante estava o Forte. O trio andou mais duas horas e na praia em frente ao Forte os golfinhos, como antes, saltavam cada vez mais alto, cada vez mais longe do fun-do do mar. E, adiante, estavam os urubus, de guarda, espe-rando o cansaço, a morte de alguém. A expedição chegou na pousada 7 horas depois de sua partida. Em seu retorno, foi saudada por um som conhecido, o som do violão do visitante. O dono da pousada havia tomado emprestado o violão para tocar para os turistas e amigos canções co-nhecidas por todos. A pousada estava repleta de estranhos rostos. O visitante andou com passos firmes, tirou o seu instrumento das mãos do dono da pousada e acabou com a cantoria. Aquela noite o ódio o internou em seu quarto para uma longa noite sem imagens.

Nos dias seguintes novas expedições e mais fotos até que veio o dia de pegar a barca e revelar os filmes. O Sílvio foi com ele. Mal deixaram os filmes no mercado e o Sílvio não se conteve: “Estou precisando,cara, estou precisando: vem comigo, vamos pegar o táxi!” O Silvio

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ligou para o mesmo taxista da outra vez. Ficaram rodando o cais durante muito tempo e nada. Nessa demora, as re-velações já estavam prontas. A barca devia estar atracada, o abastecimento iniciado e os dois dando voltas inúteis pela cidade. “Eu preciso, eu não tô me agüentando mais, cara! Uma semana, uma semana é demais numa Ilha como aquela.” Já quase desistindo, o taxista, enfim, lembrou-se de uma casa lá na periferia onde morava uma mulher perigosa, uma antiga prostituta abandonada pelo compa-nheiro traficante. Chegaram lá e o Sílvio saiu correndo do táxi. Quase uma hora depois ele voltou completamen-te perturbado. “Toca para o cais, depressa, acelera essa merda!” Uma mulher vinha correndo em direção do carro com uma faca na mão. O taxista disparou, ela vindo atrás, até que chegaram ao cais e conseguiram embarcar para a Ilha. Durante o trajeto, o Sílvio não disse uma só palavra. Agora eram duas silenciosas criaturas voltando para Ilha com os novos e provisórios habitantes de fim de semana.

Na pousada, todos, desde Dona Marta e os funcionários e a Gabriela, estranharam as fotos. Era só foto de chão, de areia, pedra e galho. O visitante procurava explicar o que estavam vendo. Mas não conseguia convencer ninguém. Nem ele mesmo. Em suas mãos mais de trezentas fotos. Cada uma delas poderia ser associada somente aos deva-neios e narrativas que o visitante se esforçava em repe-tir. Depois desse frustrante exame das fotos, ele deixou de lado tamanho trabalho estúpido de ficar registrando o que havia pensado ver. Uma coisa era o que sua mente captava, outra o que a máquina registrou. Fizeram uma nova expedição agora para a outra margem extrema da Ilha. Mais sete horas. Na volta, o dono da pousada havia novamente tomado emprestado o violão. O visitante outra vez encerrou a cantoria. E naquela noite, quando estava dormindo, ouviu a porta do quarto se abrir e um homem

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bêbado foi se deitar na cama ao lado dele, onde ficavam as roupas e os cadernos de anotação. No dia seguinte, o dono da pousada explicou que era alta temporada e não podia segurar o apartamento para uma só pessoa, mesmo que essa pessoa em questão já tivesse pago antecipado tudo para ficar sozinha. E depois de tanto tempo ali, era como se o visitante fosse da casa. Não era mais como os que vêm para ficar um final de semana e vão embora. Já estava ali na terceira semana. Tinha que suportar a mesma vida de quem mora ali. Era um favor, uma cortesia. Só por dois dias.

Naquela segunda noite com o indesejado companheiro de quarto, o visitante não conteve seu ódio ao caminhar pela praia após o repetido show do Robertinho da Ilha e os anúncios da porcaria de fitas e camisetas instrutivas, turísticas e sociais. Ao voltar com os funcionários do ho-tel e a Gabriela e o calado Sílvio, pensava em porque de-via de tolerar algo que não era sua obrigação. O dono da pousada era um mau caráter que chegava nos fins de tarde em seu jet-ski com a amante e que nos fins de semana trazia a família, mulher e filhos, todos para aproveitar seu magnífico empreendimento comercial de merda. Dona Marta era uma mulher insuportável que gerenciava uma pousada porque os filhos não queriam vê-la por perto. O cozinheiro se embebedava todas as noites porque fora de-mitido de grandes restaurantes e cada vez mais bebia e era demitido. Gabriela veio parar aqui por causa de uma crise de sua relação com uma mulher mais velha, uma profes-sora sua. O Sílvio terminou seu casamento de dois anos por não conseguir mais satisfazer nem sua mulher e nem a si mesmo. E o Robertinho da Ilha canta mal, muito mal mesmo a mesma coisa e esquece das letras que ele mesmo fez, letras que só possuem duas frases: ‘Ilha do Mel, meu amor, ôôôôô, Ilha do Mel, meu Amor.’

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Enquanto andavam todos de volta para a pousada, uma enorme tempestade chegou com seus ventos e céu agita-do, escuro. As estrelas do céu foram devoradas pela vio-lência da nova paisagem, indiferente ao pavor e correria das pessoas. Os coqueiros e as árvores eram retorcidos, as ondas do mar se erguiam negras, e raios estilhaçavam o encontro do céu com as águas, tudo como um ataque sem trégua do firmamento contra a terra. E naquela noite sem fim, entre o ronco do hospede bêbado e indesejado e as explosões de luz e som da tempestade, o visitante viu-se pequeno, diminuto, tremendo debaixo das cobertas, inca-paz de escapar do enorme e incômodo frio que atravessa-va as paredes do quarto e revirava os corpos. Então, ele, cansado de lutar contra o frio, levanta-se na noite castiga-da pelos ventos, e avança na escuridão em direção à praia e, em meio à chuva, raios, trovões, anda e se senta na areia - a areia e o mar contra o seu rosto. E com dificuldade de ver e respirar, abre os braços e quase voa, arremessado pela descarga de força e poder que a tempestade provoca. E ele começa a rir dentro desse banho, desse oceano que cai sobre ele, feliz que está por nada esperar ou temer, ali inteiramente entregue ao mundo convulsionado e partido. E ele se deita na areia e deixa as ondas do mar brincarem e maltratarem seu corpo, a pele esfolada, a boca ferida, o sal rompendo a superfície dos membros e do rosto. De manhã ele volta para o quarto e desmaia depois de uma noite eterna entregue ao apelo indecifrável dos ventos e das águas.

Horas, muitas horas depois, o café da manhã perdido, ele acorda e vai tomar um banho. É noite, e todos estão indo para a festa no restaurante principal. Robertinho da Ilha está fazendo seu show. No intervalo, o visitante se aproxima e pede para tocar alguma coisa. Meio contra sua vontade, o Robertinho cede o violão. O visitante está ali

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diante de todos que mal suspeitam o que virá. Entre beijos e conversas, tira-gostos e bebidas, as pessoas vivem sua vida, passam seu tempo e estão ali enquanto podem. Ele apenas pega o violão e se senta.Fecha os olhos e toca um bordão grave, o ‘lá’, e fica ouvindo esse som reverberar. Quando o som começa a enfraquecer e sumir, ele repete a mesma nota, agora com mais força. Um e outro turista levantam a cabeça e buscam achar a fonte desse som di-ferenciado. E assim continua o estranho músico tocando uma só nota grave, a mesma, buscando ouvir em toda a sua amplitude e espectro o que ela traz consigo. Depois disso, ele faz ressoar um acorde nas cordas agudas, em contraponto ao bordão já tocado. E vai fazendo esse con-traponto não só de altura como também de ritmo. Parecia que mais de uma pessoa estava ali tocando. A partir disso, ele vai improvisando, expandindo esses materiais, os sons do violão, rumando para um clímax que nunca chega, di-versificando os contrastes, uma busca, uma descarga, uma música nunca antes tocada e ouvida. E os dedos vão para suas posições e não há pausa para descanso ou cansaço ou erro. O fôlego do violonista é o som vindo das cordas, é o que todos no restaurante respiram. Até que uma seqüência final muito mais complexa que as coisas tocadas até aqui, uma seqüência virtuosística é ouvida, e todos esperam ver até onde ela vai, até onde pode ir essa melodia sem me-lodia que fascina e cala tudo ao redor, até o mar. E, após uma explosão de todas as notas, de todos os sons, ao fim o violonista se levanta e o público aplaude e as ondas do mar cessam de ficar suspensas e estouram nas margens com tanta força quanto o que foi tocado e escutado no restaurante. As pessoas vêm felizes para abraçar o violo-nista que não sabe o que fazer diante desse acontecimento nunca antes testemunhado ou registrado: a noite em que o mar teve mãos e expulsou de dentro de si aquilo que

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escondia, o que era desconhecido e brutal, deslumbrante e avassalador. Nessa noite, aqueles que estavam ali na Ilha puderam ouvir e ver uma das raras manifestações de algo que não tem nome e que muitos passam a vida inteira que-rendo encontrar e às vezes morrem sem ter podido usu-fruir. E foram minutos extremos, intensos únicos e tudo era mais que um homem tocando seu violão, mais que uma pessoa sentindo um lamento sem compaixão. E não importava quem tocou ou quem ouviu. Juntos, ali, entre todos, passeou a extraordinária e descomunal presença de algo além das escalas e medidas, algo bom demais para continuar na mão de quem quer que estenda seu braço.

Quando o gerador foi desligado, alguns voltaram para as pousadas, outros foram se entreter debaixo dos coquei-ros, mas todos tinham a lembrança do que houve. Para sorte do visitante e do grupo que estava com ele, a chuva de ontem e a mudança da lua havia trazido plâncton. No caminho de volta para a pousada, Gabriela erguia, com as mãos, água do mar que escorria em forma de luz en-tre seus dedos. O cozinheiro louco começou a correr e a chutar as águas que espirravam em todas as direções mais luz. As águas brilhavam, acesas para a felicidade deles que se divertiam jogando para cima de suas cabeças go-tas luminosas do mar. Uns chutavam as ondas, abrindo caminhos brilhantes entre as águas, outros mergulhavam no mar, querendo entender ou se banhar de tudo aquilo. Enfim, dormir naquela noite foi tão bom e sem dificul-dade alguma para o visitante. Ele havia experimentado e partilhado tantas coisas. Ele poderia até deixar de existir, morrer, pois, pelo menos uma vez em sua vida, algo teria sentido não mais por ser contra alguém, algo assim inde-pendente de quem ou o que precisasse dele mesmo para se afirmar. Longe de quartinhos exprimidos em sua doente espera pelo melhor ou pior, longe da calada nostalgia de

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uma fuga ou outro mundo, ele estava ali dormindo com um sorriso em sua boca, um homem nada mais do isso, um rosto pleno na cama, desligado de tudo que houve ou deixou de haver.

E veio a última semana e os passeios finais pela Ilha. A pele do visitante estava mais morena e saudável. As andanças e as intensas e novas experiências moldaram uma presença atraente e prazeirosa. Os anos terríveis de sofrimento e autopiedade ficaram para trás. Trinta dias ali, trinta dias nessa Ilha foram a melhor coisa de sua obscura existência passada. A caminhada de despedida foi rumo ao Forte para ver os golfinhos. Dentro do Forte, as gra-des não traziam mais vozes antigas nem tristeza alguma. As folhas, os musgos verdes, verdes sepultavam a rotina e a ferrugem da pedra escura. Saindo do Forte, o vento deslizava macio no peito aberto sem camisa e bronzeado do visitante. Ele olhou para o mar e nada, nenhum golfi-nho. Só mais à frente, uma multidão de urubus. Confiante e curioso, ele foi andando em direção às repulsivas aves e, para seu espanto, viu que elas devoraram, às bicadas, um golfinho. Surpreso e perplexo diante desse inespera-do banquete, ele saiu correndo para afastar os comedores de carniça que continuaram indiferentes a aquele homem de braços abertos vindo na direção deles. As entranhas do belo animal morto eram disputadas com ferocidade. Os bicos mergulhavam no ventre aberto e voltavam com sangue e pedaços de carne e tripas. As cabeças dos uru-bus desapareciam naquela carcaça para retornar com uma úmida satisfação ameaçadora - os olhos terríveis contra os homens. Nesse instante, ele se deteve em sua estúpida correria e voltou para seu caminho de volta para a pousa-da. Enquanto o dono da pousada outra vez tocava o violão roubado do quarto, o visitante fazia as malas ainda sob o impacto da visão da carnificina e seus detalhes. Após

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uns instantes, o Sílvio bateu na porta e veio falar. “ Eu também vou embora. Eu não agüento mais. Até que ponto cheguei: ficar pegando mulher de porto. Pois sabe o que aconteceu da última vez? Entrei lá com toda a vontade do mundo pra me satisfazer e ir embora. Não sei porque faço isso mas preciso fazer. Eu sou homem. É assim que as coisas funcionam. Você faz de tudo para chegar no fun-do delas e depois vai embora, para quando der o tempo da próxima vez você fazer tudo de novo. Pois eu entrei naquela casa, as paredes sujas, sujas, tudo caindo aos pe-daços e fedendo. E veio uma mulher gorda, já nua, uma enorme barriga, ela dando de mamar a um recém nasci-do, e mais uma criança de três anos segurando sua mão. Tive vontade de vomitar. Sentei em um sofá quebrado para pensar no que fazer. Mas veio a vontade, e a vontade era maior que eu. Então fomos para a cama e transamos, o bebê recém-nascido chorando e a criança batendo no quarto querendo entrar. Nisso, ela me pede um beijo, um beijo naquela boca cheirando cigarro e dente podre. Ela me diz que o seu homem a largou porque ela esperava um filho dele e que não resta mais nada prá ela. Há tanto tempo ela não tem ninguém entre suas pernas que não lembra mais o que é sentir prazer e gostar de algo. Um homem, um homem pendendo em cima dela, o peso dele junto ao seu corpo, dentro dela, é isso o que ela mais quer. E a mulher gemia, gemia fundo, prá dentro, como se esti-vesse passando mal. E queria mais beijos, beijos, a boca dele úmida da baba que escorria da garganta dela aberta. E ela querendo mais, mais sexo, forte, fundo. E as dores do parto recente abrindo cicatrizes mal fechadas e trazen-do mais gemidos, sangue e prazer. Em meio a tudo isso eu vi seu corpo, suas tatuagens sem sentido e mal feitas, outras cicatrizes, e marcas de talhe de faca, de bala, man-chas e tantas histórias mais naquela pele que comecei a ter

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certeza que a qualquer momento alguma coisa iria acon-tecer comigo. Então o pior veio. Ela começou a gozar e puxar meus cabelos, e me trazer para os seus vastos seios, e passar as mãos pelo meu corpo e gritar, gritar como se fosse morrer. Eu pendi para o lado, louco para me ver li-vre de tudo aquilo, quando então a porta cedeu e a criança, uma menina suja e porca, entrou e começou a me olhar. Não havia como fugir. A única porta daquele quartinho imundo sem janelas estava guardada pela filha da enorme mulher nua desmaiada na cama após gozar. A menininha me olhava com ódio. Devia estar dizendo ‘O que você fez com minha mãe? O que você fez com ela ?’ A mulher estava suada e tremendo, como se estivesse tendo uma convulsão. Do meio de suas pernas escorria sangue e meu esperma. Eu me sentei no chão e fiquei segurando o cho-ro. Minutos depois senti uma leve mão em minha cabeça. Era a menininha que, sem falar e com um bico velho e quebrado em sua boca, queria saber o que havia acon-tecido comigo. Vesti minhas calças sob o som do bebê berrando de fome ou doença. Estava saindo do quarto, quando a mulher me segurou e me levou para o chuveiro. ‘Já saindo assim sem se despedir, cachorro?!’, dizia ela entre ameaças e sorrisos. ‘Eu quero mais. Eu quero agora é no chuveiro. Eu quero você todo outra vez bem limpi-nho prá mim.’ E aconteceu tudo de novo e sem tempo de colocar a camisinha. Eu estava louco, louco. As águas do chuveiro, os beijos dela, e quando vi estava fazendo tudo de novo. E o pior é que era bom, muito bom. Eu gostei de ter feito tudo outra vez com ela. O pior é estar ali naquele lugar, a menininha na porta, o bebê gritando, e eu debaixo do chuveiro com uma mulher como essa e ainda mais sen-tindo o enorme de um prazer. Enquanto ela se secava, me vesti rápido e sai correndo. Ela queria mais, eu nunca ia sair daquele quarto. A menininha iria crescer, o bebê virar

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uma menininha, e eu nunca iria conseguir sair dali, cara. Pois eu sai correndo de lá sem pagar, com esse sexo pe-rigoso preso em mim e eu tenho certeza que peguei algo, que vou morrer - tenho certeza que aquela mulher cheia de picos de agulhas e tatuagens e cicatrizes vai me matar, que um dia ela vai me matar!!!”

A barca levou todos nós para o porto de Paranaguá. O visitante havia se despedido de todos da pousada. Pegou o ônibus e foi para a cidade onde sua mãe morava. Ficou em um hotel e nem apareceu para ver o Cristiano ou sua mãe ou saber como fora a festa de aniversário que ele organizou. Três dias depois pegou o avião e voltou para o lugar de onde veio. Chegou em sua casa, desfez as malas e lá estavam as cadernetas azuis que nunca mais abriu para ler. Arranjou um novo emprego e logo depois se casou. Todos os anos vai passar as férias de fim de ano na casa dos sogros. É feliz ao lado da mulher e todos esperam a chegada de um filho para o próximo ano. E sua vida se-gue entre as extraordinárias descobertas de cada dia. Ga-nhou de aniversário uma tartaruga e toca violão de vez em quando. Nunca mais voltou para a Ilha, mas, de vez em quando, mostra, para divertimento de todos, as estranhas fotos de árvores retorcidas e de pedras, pedaços de pedras.

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Um estranho em seu rosto

Da sacada do grandioso Edifício de Projetos, sede do Círculo Maior de Altas Investigações, ele podia ver a noi-te sepultando tudo em seu redor. Nunca em sua vida, em nenhum momento de sua tão extraordinária ascensão até ali, havia pensado que estaria nessa sacada, contemplan-do a escuridão tomando conta do mundo. Intensas luzes partiam do Edifício diretamente para os jardins em volta, e dos jardins para os postes e para os automóveis que iam chegando, as roupas das pessoas em procissão entrando no Edifício, as luzes em todas as coisas, se expandido, para em seguida morrer lá, depois dos muros, no asfalto e além do asfalto nada, nada reconhecivelmente huma-no, nenhuma criatura, nada com voz ou vontade, apenas uma descida sem retorno para algo desconhecido, outro, inominável. Isso era a noite para ele. E disso ele ria, de costas a tudo que insistia sem sucesso para que voltas-se seu olhar rumo à cerimônia de admissão como o mais novo membro do Círculo. A multidão inquieta em suas cadeiras desconfiava da demora, da apressada escolha do Conselho em facultar a alguém tão inconfiável tamanha honraria. Sem participar dessas coisas, ele ampliava seu deslumbramento com as simples realidades que iam sur-gindo em sua frente. Da escuridão devorando e impondo limites, ele voltou seus olhos para o céu, o imenso céu que pendia eterno e desde sempre ali adiante. Foi nesse

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momento que ele riu, um sorriso curto, misto de surpresa e quase felicidade, parecendo uma tosse sem querer, um pigarro, o corpo mesmo agindo sem pensar. E continuou assim, novamente e mais outra vez até que estava rindo de verdade, alegre, os olhos úmidos, a boca mostrando sem vergonha alguma os dentes e a saliva. O jovem ria mais e mais, expulsando a impossibilidade da gargalhada que há tanto tempo o afligia – a felicidade de uma primeira vez, o rosto estúpido frente ao céu.

Ainda com esse mesmo sorriso no rosto, ele foi arras-tado pelo braço para dentro do Salão. O rumor da multi-dão avolumava-se ameaçadoramente. Tudo estava prestes a desabar e ele ali diante de todos. Tinha em seus ouvidos e olhos apenas a noite, a noite maior, a noite em tudo, voando por entre as cabeças, atravessando janelas, sob as asas do ruído das cigarras que lá fora zuniam seu canto de madeira partida.

Um dia antes e ele estava na casa do Sr. R. discutindo justamente os detalhes da cerimônia e os acontecimentos dos últimos meses. A aproximação entre passado e futuro imediato era estratégica para que o Sr. R. esclarecesse a perigosa situação envolvida nessa mudança de compor-tamento de M. : “O que você está pensando, M. ? Acha que ninguém percebeu o que você tem feito? Só porque eu te indiquei para o Círculo isso não quer dizer que você ganhou alguma coisa. Tudo que diz respeito a você está relacionado a minha pessoa.”

M. não ouvia e nem pensava em nada daquilo que o seu mestre e protetor dizia. Seus olhos e mente vagavam pelas inúmeras estantes espalhadas pela casa do Sr. R. Em cada uma delas, livros e mais livros que a vida inteira ele quis possuir. Ainda um pesquisador iniciante, na primei-ra vez que entrara naquela casa, desejou ter esses livros,

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todos eles, um a um, visita após visita, levando em sua pasta de anotações. O Sr. R. continuava falando acerca de suas angústias a respeito dos últimos dias e as expectati-vas para a cerimônia de amanhã enquanto M. começava a rir de suas lembranças, principalmente de seu primeiro roubo, realizado tão sem jeito e planejamento que, sem dúvida alguma, o Sr. R. não só desconfiou de tudo como também aproveitou a tensão envolvida durante a nervosa despedida do estudante ladrão para torturar, punir aquele que ousou. Agora M. ria relembrando seu pavor em ser descoberto quando o zíper de sua pasta emperrou e em sua mão já estava o livro, qualquer livro, o primeiro que pode pegar ao ver que o Sr. R. havia lhe dado as costas após ter ficado horas ali frente a frente com ele exibindo conhecimento e memórias. Eram tantos livros, tanto em volta deles e estavam ali uma tarde inteira já, o jovem pesquisador esperando o momento exato, a pasta em suas pernas, as mãos prontas para agir, o experiente mestre em sua frente, as palavras uma após a outra, os movimentos lentos de pegar os óculos e olhar para o infinito, buscan-do, de um profundo lugar desconhecido, frases e idéias que iam se juntando e adquirindo rigor e realidade. Já bem de noitinha, um acaso redentor: o Sr. R. , no êxtase de seus pensamentos, acabou por esbarrar em um livro que estava na ponta da escrivaninha. Enquanto o Sr. R. recolhia do chão, com todo falta de pressa, a obra que caiu, o jovem dispara seu olhar em mil direções, estende o braço para uma das estantes e pega um volume grosso e sem nome na capa. A luta com o zíper continua metódica e cruel. Estava ali roubando o seu futuro orientador de pesquisas. Se fosse descoberto, seria o fim de uma carreira sonha-da. Tinha talento e vontade. Mas por causa da porcaria de um ato estúpido na própria casa daquele que lhe abria tão imensas possibilidades iria perder tudo, tudo. O zíper

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cedeu e ele já desistia. Contudo, no momento em que pa-receu devolver o livro para a estante, a voz do Sr. R. per-dia a grave rouquidão de quem falava sem parar debaixo da escrivaninha, e a cabeça calva emergia sobre o móvel. M. joga o livro dentro da pasta e a fecha com toda força. A cabeça agora com olhos e boca e nariz do Sr. R. surge completa naquela sala, renovada, feliz e satisfeita com a estréia de seu mais novo orientando no mundo das pes-quisas e investigações. Anos depois, a compreensão dessa estranha felicidade impulsiona outro sorriso não mais no rosto do Sr. R. “Você ainda está rindo? Como você conse-gui rir numa hora dessas?!! Eu estou te avisando: eles não estão nada satisfeitos com o que está acontecendo. Mui-to menos eu... Você não sabe de nada, não quer saber de nada! Pare de rir, M. , pare de rir! Agora eu tenho certeza que você vai estragar tudo amanhã. Tudo por causa dele, tudo. Eu te avisei: cuidado, cuidado com esse material. Cuidado com ele!”

As mudanças que o Sr. R havia notado em M. foram se intensificando com a proximidade da cerimônia. Peque-nos e diversos incidentes haviam deixado bem claro que o jovem pesquisador não era aquela criatura imensamente generosa de antes. Estava fora de controle e perigoso. O primeiro sinal visual mais evidente foi o desaparecimento daquele atencioso e radiante olhar que tanto causara im-pacto no Sr. R. desde o primeiro contato entre eles em um banheiro público da faculdade. Enquanto senhor R uri-nava, o jovem M. se aproximou e disse que iria prestar exames para o Centro Superior de Pesquisas. O Sr. R. , sem interromper um instante a série de atos de satisfação de suas necessidades, permaneceu imune a aquele impul-so descabido. Após apertar a descarga, arrumar as calças e lavar as mãos, virou-se para o jovem que o seguia e fez algum sinal com a cabeça ou disse alguma coisa que

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pareceu mostrar que não só estava de acordo com aquilo tudo como também o parabenizava por sua audácia. “Nos vemos no próximo semestre, no início das aulas.”

E foi o que aconteceu. No seu primeiro dia no Centro Superior de Pesquisas o jovem vinha vibrante, tendo em mente o encontro no banheiro com o Sr. R. Pelos corre-dores do Centro pode ver cartazes de palestras, eventos, encontros, lançamento de livros, chamadas para pesqui-sas – um mundo imenso diante dele, confirmando tudo o que havia desejado e sonhado até este momento de sua vida. Não foi por acaso que neste deslumbramento acabou por esbarrar com o Sr. R. e um grupo de pesquisadores associados que disputavam todas os gestos e palavras que aquela eminente figura fazia questão de espalhar. O jo-vem procurou uma brecha entre a pequena multidão sem sucesso algum. Mas não desistiu: retornou sua persegui-ção, cruzando com novos grupos seguindo outros mestres e mais e mais cartazes e chamadas. As paredes lançavam para todas as direções ultimatos para insaciáveis mentes. E a quantidade de gente ali reunida e circulando somente reforçava o fato já inteiramente reconhecido pelo jovem que ele havia tomado a decisão certa e estava no melhor lugar para cumprir e executar aquilo para o qual tanto se preparou.

“Mas quem é esse tal de Sr. Libra???...” No início do último ano do Curso Básico, logo na aula do Sr. R, lá estava o não mais tão tímido e cru jovem do primeiro se-mestre, perguntando em forma de desafio e irreverência para alguns colegas, completamente alheio aos olhares de todos frente à desapercebida da entrada do mestre. “Então o rapaz quer saber quem é o Sr. Libra? Pois esse tópi-co nos dará a oportunidade de exercer uma reflexão mais profunda sobre a verdadeira natureza de nossa atividade

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nesse Centro, ainda mais que o ano que vem é dedicado a pesquisas de fim de curso e enfrentamento mais sério de quem realmente cada um vocês é, conhecimento muito mais relevante que qualquer saber já aprendido antes. Há quatro anos, justamente quando vocês faziam exames de admissão nesse lugar de excelência, desapareceu um de nosso mais problemáticos mestres, a quem, como depois saberemos, preferimos denominar Sr. Libra, e por quem, em virtude disso, decidimos abolir nomes e nos chamar por siglas e outras nomenclaturas menos pessoais. Este Sr. Libra trabalhava sozinho em difíceis e confusos pro-jetos, alheio às ordenanças de seus superiores e diretrizes maiores da instituição. Não dava mais aulas nem possuía mais orientados. O Comitê Executivo do Círculo maior de Altas Investigações havia retirado sua inscrição do Rol de Membros. O Sr. Libra conseguiu ser excluído de todas as organizações de pesquisas legítimas. Tomado pelo de-sespero, frente à estupidez e inutilidade de tudo que fez e planejava realizar, o Sr. Libra simplesmente desapareceu. Havia passado grande parte de sua carreira negando o que seus colegas descobriam em nome de algo que nunca con-seguiu demonstrar ou esclarecer. Ao fim, só deixou lacu-nas, dúvidas, coisa nenhuma. Não resolveu nada, assim como suas pesquisas inconclusas. Nada, nada. Nem mor-reu, nem foi seqüestrado. Nada de nada. Apenas sumiu, foi embora, desapareceu como um covarde. Para que não fosse criado um mito em volta dessa fuga sem enigmas, o Centro resolveu lacrar o imundo apartamento onde o Sr. Libra conspirava sua eternidade. Satisfeitos? E você? Respondi sua pergunta? Agora me deixem falar, deixem que uma vez por todas eu diga tudo e que esse assunto seja encerrado. O que me mais me irrita, viu, o que mais me fazer perder o controle é que logo na minha sala eu tenha de ouvir ainda, justamente de pessoas que se preparam o

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projeto final de curso, onde nós captamos os melhores dos melhores para os Seminários Avançados de Pesquisas, ouvir esse nome, o nome de alguém que eu me esforcei tanto em eliminar e destruir. Pois o perigo que ele injetava em todos nós, em todos vocês era a perigosa idéia de que na realidade o que estamos fazendo aqui não tem sentido algum e que apenas adiamos o inevitável encontro com essa verdade. Então todas essas salas, vejam, todas essas pessoas aqui reunidas para querer saber, todo o esforço de nossas vidas é coisa sem valor quando alguém que nunca realizou nada vem aqui e nos diz em nosso rosto, bem em frente de nós, que não temos nada para oferecer, nada que realmente tenha alguma existência além de nossas pala-vras e regras e modelos e instituições? Mas o perigo não está no fato que isso possa ser verdade, o perigo não está no fato dele ter desaparecido. O que é uma pessoa? O que me importa uma pessoa apenas, ela mesma falando essas coisas diante de mim contra tudo que já existe e foi dito? O perigo está é em acreditar nisso e deixar de fazer o que deve ser feito, em pastar nas ruínas de quem abandonou algo que nem chegou a acabar. Que ele venha aqui, na mi-nha sala, e não o boato! Que ele mesmo em pessoa venha aqui com alguma coisa já solidamente desenvolvida e me mostre, me explique, me ensine, me diga que descobriu o que ele pensava ter encontrado! Enquanto ele não fizer isso, vai ficar preso no lugar de onde nunca saiu: um em-poeirado quitinete repleto de coisas inacabadas, a eterni-dade uniforme e justa de uma insuportável derrota!”

Era impossível não bater palmas e rir e chorar e correr para o Sr. R. depois de tudo que foi dito. Foi a maior aula da vida de M. e foi nessa aula que ele resolveu ser grande e generoso como o seu mestre. A excitação daquela tarde tomava conta de seu corpo, possuindo-o até ficar enchar-cado de suor. Tudo era demais para ele, e por causa do

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excesso dessas coisas, o jovem adquiria uma incompará-vel disposição para os trabalhos que a aula exigia. Após ter se destacado durante o ano, chegara a vez de realizar Pesquisa de Conclusão do Curso, ponte para os Seminá-rios Avançados. Desde aquela magnífica aula do Sr. R. , o jovem M. sabia muito bem o que investigar e quem deveria orientá-lo.

Com essas idéias na cabeça e um sorriso imenso em seu rosto, dirigiu-se para a mansão do Sr. R. Esta entre-vista seria decisiva. A partir do que fosse ali resolvido, no-vas e maiores dimensões para sua vida seriam alcançadas. Um único erro e... Não, não haveria erros.

Então o jovem, vendo-se em uma das salas da mansão do Sr. R. , começou a expor seu projeto de pesquisa para o ano seguinte, ao mesmo tempo que admirava a enormi-dade de livros espalhados pelas inúmeras estantes daquela sala e dos outros espaços da casa. Tanta organização e limpeza, livros distribuídos por tamanho se encaixando perfeitamente nas estantes e, no chão, pilhas de revistas ainda dentro de suas embalagens de plástico. Tudo que existe no mundo e foi publicado estava lá na mansão do Sr. R. E nada melhor que ser orientado por ele para ter acesso a todo esse material.

O jovem M. falava sobre seu projeto, alheio ao olhar cada vez menos receptivo do Sr. R. Os dois frente a frente e cada qual em seu mundo. O Sr. R. tinha grandes expec-tativas para seu novo orientando. Mas, a cada frase, uma profunda aversão ia tomando contando do olhar do mes-tre. “Então deixa ver se eu entendo. Você quer estudar jus-tamente a obra desse homem, dessa desgraça que eu bani do Centro? Eu devo estar ficando louco! Como você vem à minha casa e diz esse nome ?” O que o Sr. R não espe-rava e o que o determinou aceitar M. não só para os Pes-quisa de Conclusão do Curso brilhantemente defendidos

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no ano seguinte como também nos Seminários Avançados foram as palavras de defesa do projeto que o jovem disse com uma tremenda autoridade e sabedoria, o rosto outro brilhando nele, uma esperança, uma certeza, uma terrifi-cante verdade que impressionou o Sr. R. O jovem M. fa-lou que pretendia se entregar com todas suas forças, com todo seu tempo e vontade para esmiuçar os documentos do desaparecido Sr. Libra, e vasculhar cada palavra, cada letra, cada suspiro impresso em seus vestígios lá no quiti-nete, nos restos de sua figura, com o supremo objetivo de definitivamente eliminar qualquer possibilidade de que o Sr. Libra tenha pensado ou dito algo de valor. Era preciso metódica e aplicadamente justificar a irrelevância plena daquele homem. Os decretos de banimento e exclusão poderiam ser contestados e revogados. Mas uma ampla e sistemática pesquisa nunca seria alvo de desconfiança. O saber se impõe contra a astúcia, e a continuidade das atividades de alto nível do Centro estaria assegurada.

O Sr. R., confuso e reticente, temendo revezes nesse empreendimento, pediu licença para consultar o Círculo Maior de Altas Investigações, para verificar se tamanha ousadia poderia ser autorizada. Enquanto o mestre se au-sentou da sala, o jovem andou por entre as estantes, depa-rando-se, a cada momento, com obras que desde criança sonhara encontrar. Textos de difícil acesso e esquecidos, sobre os quais lendas foram traçadas, estavam ali. Obras que mudaram nações, descobertas que libertaram os ho-mens de tanto sofrimento e mediocridade passavam pelos olhos dele – a história do mundo próxima de suas mãos. E ele precisava tanto daquilo, aqueles livros iam lhe fa-zer tanto bem, que em sua mente tão desperta por aquelas obras, tão sacudida por títulos cobiçados, começou a pla-nejar e justificar o assalto, a mudança de propriedade, a

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transferência oportuna do saber para quem melhor mereça e possa mais usufruir.

Contra esse trama sem voz, irrompeu o Sr. R na sala, tão estimulado quanto seu orientado: “Olha o que eu estou fazendo por você, garoto, olha o que eu estou fazendo! Pense bem nisso, pense mesmo. Eu coloquei minha re-putação nessa nossa pesquisa! Cuidado com o que você vai fazer! Está tudo em meu nome, ouviu? Tudo!!! O que você fizer, tudo tem o meu rosto. Agora, olhe bem para mim, olhe agora e não me esqueça: quando você estiver fazendo o que deve fazer, não tire os olhos daqui, ó – não tire os olhos de mim!”

Depois de outras e repetidas advertências, o jovem apesar de renovar com o assentimento da cabeça um pac-to com tudo o que o Sr. R dizia, aproveitava esse mesmo gesto para projetar-se rumo aos livros que tanto queria alcançar e possuir. Com o passar do tempo, ficou mais claro para ele que não iria sair daquela casa sem pelo me-nos um livro. Precisava ter pelo menos um. E com muito esforço conseguiu, e outro e mais outro, sempre. Nos anos seguintes, toda vez que vinha à casa do Sr. R para relatar os progressos das pesquisas, voltava para seu quartinho de estudante com mais um desejado volume. Deixou de pensar se o Sr. R desconfiava ou não. Para além da dúvi-da, havia somente a regular apropriação semanal. Quem sabe um dia teria uma biblioteca, uma casa tão grande quanto a do Sr. R. Na mente do jovem, a visão da cabeça calva do Sr. R. irrompendo por detrás da mesa já não cau-sava medo algum.

O quitinete do Sr. Libra contrastava terrivelmente com a mansão do Sr. R e isso proporcionava ao jovem uma alegria triunfante em virtude de ir confirmando a cada ins-tante ali tudo o que seu mestre dissera. Aquele pequeno

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espaço sem dono era a prova material do fracasso do Sr. Libra. Cadernos com esboços de pesquisas, projetos de publicações e investigações, pastas com anotações sem acabamento, tudo incompleto, provisório e sem orienta-ção. Aquele homem passara sua vida acumulando experi-ências e observações sem nexo algum. A leitura do mate-rial reunido pelo Sr. Libra era cansativa e repugnante, pura perda de tempo. Era impossível ordenar e classificar tanto caos. O que mais chamou a atenção do jovem pesquisador nos primeiros dias de sua investigação foi a descoberta de um estranho conjunto de diários. Eram 23 cadernos, 23 anos de anotações, e todos os cadernos mal acabavam em janeiro. O Sr. R. havia advertido seus orientandos para tomar cuidado com questões pessoais. As investigações deveriam se afastar de dados íntimos e se concentrar em tópicos que ultrapassassem situações individuais. “O que me importa uma pessoa? O que fazer com esse resíduo? Deixem os rostos para os espelhos e dirijam suas mentes para o que é mais fundamental e definitivo.” Como o Sr. R tinha razão! Um homem passa vinte e três anos de sua vida começando algo que nunca termina, anotando mi-nuto a minuto uma luta contra a inadiável vitória do que procura negar e esconder e não sabe o que é, nem sua cor, nem sua idéia, pois perdeu tanto tempo nessa luta, nesse esforço, que não pode mais, não consegue identificar o alvo de sua causa, a razão de tanto empenho. E o jovem, ao conseguir entender isso, ao relacionar esse fracasso do Sr. Libra com as teorias do Sr. R. , ficou tão feliz e extasia-do que em pouco mais de duas horas havia escrito sem in-terrupção umas vinte páginas de seu relatório, mesmo que para fundamentar seus registros e observações levasse em consideração documentos da intimidade do investigado, perigosa ação que o Sr. R ressaltou em seus comentários ao relatório preliminar do jovem.

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Com o prosseguir das investigações, a tensão entre a prática de observação e registro do jovem M. e as instru-ções do Sr. R começou a se acentuar. Pois o maior contato e familiaridade com os documentos existentes no quiti-nete exigiam uma maior flexibilidade dessas instruções. Afinal, as pesquisas mesmas do Sr. Libra eram baseadas em observações sobre pessoas, sobre indivíduos, tudo em completa e total oposição aos ensinamentos e prescrições do Centro e do Sr. R. O Sr. Libra havia se tornado famo-so por propor investigações que partissem da observação mais detida e densa de pessoas no comum de seu dia a dia. Sem que elas soubessem, o Sr. Libra anotava o que faziam, o que diziam, como reagiam aos mínimos e mais triviais acontecimentos. No quitinete estavam pastas e pastas contendo vidas registradas. Quanto mais o Sr. Li-bra avançava no registro e na compreensão de algumas dessas figuras isoladas, mais e mais os tipos de dados iam se diferenciando, até que ele abandonava o indivíduo que estava pesquisando para recomeçar, com mais precisão e eficiência, uma nova tarefa investigativa, um novo indiví-duo a ser registrado. Era como se estivesse experimentan-do e aperfeiçoando uma prática de observação e ao mes-mo tempo construindo uma teoria através dessas pessoas. Por isso não era preciso ir até ao fim. Uma figura analisa-da ia lançando para outra as dificuldades mesmas presen-tes a cada observação. Todas essas pessoas, de um certo ponto, pareciam resistir ao olhar examinador do Sr. Libra. Mas depois sucumbiam ao comum de algo já existente e anotado. Em virtude disso, os 23 diários incompletos se completavam com as pastas de anotações interrompi-das. O fracasso estava tanto na possibilidade de não haver nada além de uma especulação sem método ou resultados plausíveis quanto na impossibilidade de poder ser atingi-da alguma estabilidade qualquer minimamente compre-

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ensível. Pois um homem anotando tudo o que vê o tempo inteiro não é um pesquisador, mas ou um condenado ou um idiota. E essa compulsão por encontrar algo, essa bus-ca de um conhecimento a partir de um esforço para além dos limites físicos e mentais, impulso pleno para a plena realização de uma disposição absurda, confundiu tanto o jovem que ele começou a deixar de se extasiar com as di-retrizes do Sr. R para admirar e reconstruir mentalmente a loucura daquele que desapareceu.

Imagine ficar olhando as pessoas, elas mesmas, sem conhecê-las e perceber o que fazem todo dia, sempre e se deparar com aqueles momentos de viragem, para além da mecânica habitual, quando algo sem origem e sem porquê simplesmente acontece e as coisas parecem continuar sem alteração, como antes, apesar de tudo. Alheios ao que os sustém e move, cada um compra vende, come e joga fora sob o esse antigo sol sobre suas cabeças. E o Sr. Libra repassa suas vidas, arrancando detalhes de onde havia so-mente repetição e obscuridade, trazendo para o papel o sinuoso movimento de algo se formando entre os vazios e silêncios das coisas em sua volta. Uma pessoa apenas, vis-ta com demasiada atenção, uma pessoa é suficiente para modificar o modo de ver tudo imediatamente próximo. Um rosto somente, observado como nunca antes, o longo tempo de se medir o que dista dentro desse olhar que en-globa todos e atinge mais que seu lugar, por mais que não saiba disso. Em cada rosto, no simples rosto de alguém, o movimento sem igual de algo que se perde em seus traços, um esboço de infinitas, múltiplas direções que clamam ser mapeadas e distinguidas, e mão alguma completará a extraordinária duração e intensidade de um rosto.

Na medida em que M. mais e mais manuseava esses materiais, as pastas existentes no quitinete do Sr. Libra, ra-reavam as idas à casa do Sr. R. O jovem M. procurava aco-

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bertar suas ausências argumentando que a enorme quanti-dade de documentos a ser examinados iam dificultando a construção de uma imagem geral e única do pensamento do Sr. Libra, e, com isso, resultava extremamente difícil desenvolver uma monografia que destruísse uma vez por todas o espectro de sua influência. Parece que tudo fora bem pensado e planejado: esse fracasso teria sido bem articulado, pois o volume das observações e a riqueza de aspectos encontrados pelo Sr. Libra jamais desemboca em explícitos comentários sobre procedimentos de análise ou em explicações e conclusões que apresentem algo mais bem acabado sobre todo esse descomunal empenho em anotar vidas ordinárias. Nada: só as anotações, os efeitos cada vez mais elaborados e primorosos daquilo que o Sr. Libra observava cada vez melhor. Os indivíduos iam se transformando em campos amplos e complexos de fatos e conceitos e as anotações do Sr. Libra, uma após a outra, adquiriam novos padrões de observação e detalhamento, com ambos, figuras e análises, exibindo algo que poderia ser chamado de beleza, perfeição, entremeada pelo exces-so tanto de descoberta quanto de sofrimento, frente a esse extenuante impulso e fôlego de gerar novas e renovadas maravilhas.

E esse torpor pelas coisas do mundo tomou conta de M. que, mesmo estando na idade de se adiantar para além de seu tempo e ocasião, começou a lembrar de sua infân-cia enquanto lia as anotações sobre pessoas feitas pelo Sr. Libra. E sem conseguir deter essa confrontação com sua memória, viu-se ali frente a frente com ele mesmo, menino, esmagando folhas para fazer perfumes, acredi-tando encontrar uma fórmula que atuasse sobre os cora-ções. Emendando essa visão em outra, lá estava diante dele a sua tartaruga de estimação, verde-oliva, o andar desequilibrado pelo peso do casco, a boca sempre fecha-

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da, encolhendo e fazendo sumir suas patas, a cabeça e os enormes olhos girando de um lado para o outro, vascu-lhando o enorme menino diante dela. E ela duraria cem anos, cem, até que morreu pisoteada por uma visita desa-visada, e foi enterrada no jardim dos perfumes que nunca mais teve suas folhas arrancadas para nada. Enquanto o jardim crescia, o menino chorava dentro da biblioteca de seu pai, folheando sem parar as ilustrações dos livros, sem encontrar uma história que acabasse com sua tristeza. E meses depois começou a ler um livro só de rostos, fo-tos de grandes homens, homens que tinham enfrentando grandes dificuldades e, afinal, descobriram grandes coisas importantes para todos. E lendo as vidas e vendo as fotos, grande homem após grande homem, desaparecidos, todos incompreendidos e glorificados só depois da morte, o me-nino foi recuperando sua antiga felicidade de perfumista e companheiro dos bichos ao ter a idéia, a mais inesperada e impossível intuição: haveria, acima da sucessão aleatória daquelas vidas e obras e rostos, uma fórmula da invenção, um modo de se produzir todas as coisas pensadas e ima-ginadas, um artifício rigoroso e possível de ser domina-do, artifício esse que garantisse o acesso ao conhecimen-to dos conhecimentos, ao saber dos saberes, ao entender tudo, enfim, até reverter a morte das tartarugas, a dor pela morte de todas as tartarugas do mundo. E quem visse o menino naquela hora ficaria completamente impressio-nado com seu olhar. Ele estava vendo o que imaginava haver. E quando a descoberta se funde com o que se pensa mais que realizar, o que realmente importa é essa felici-dade tomando conta do olhar. E não havia ninguém mais feliz que ele, um rosto tomado pela posse de algo que o faz imergir por inteiro naquilo que mais deseja e quer.

Algumas batidas na porta do quitinete foram o sufi-ciente para acordar o jovem M. Ele levantou-se e abriu a

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porta. Era o Sr. R. que há dias vinha tentando entrar em contato com o jovem. “Desapareceu como o outro?” O prazo para a entrega do relatório final e conclusão do cur-so estava quase no limite. “ O que eu tinha dito prá você, heim? O que eu disse? Não é com você, não é contigo o problema. É o meu nome que está correndo de boca em boca no Círculo. Agora encontro você aqui de bar-ba enorme, sujo, entregue às baratas. É o que você quer fazer, continuar essa maldição, esse absurdo, essa louca insatisfação? Olhe, olhe bem para mim, olhe em volta: o que você vê, heim? O que você vê além de um quitinete vagabundo cheio de papéis mal escritos? Faça seu traba-lho, acabe suas coisas! Pare de se comportar como uma criatura ordinária e estúpida! Há grandes esperanças prá você, meu jovem. O Círculo deposita em você as mais altas expectativas. Acabe o seu relatório e você vai po-der trabalhar comigo nos Seminários Avançados e, quem sabe, se tornar o mais novo membro do Círculo. Não de-sapareça, não se acabe como ele!”

A Pesquisa de Conclusão do Curso foi apresentada diante de examinadores desconfiados e pouco receptivos. As perguntas foram respondidas pelo Sr. R, determina-do em insistir que, durante os Seminários Avançados, o jovem M. teria tempo e oportunidade para ir adiante das questões então esboçadas. De qualquer maneira, para os examinadores ficava bem visível, mais que o resultado da pesquisa, a vigorosa investigação realizada, o que ratifi-cou a avaliação do Sr. R. quanto ao potencial do jovem não ser um equívoco. Afinal, todos morrem, e é preciso que as mesmas cadeiras hoje ocupadas tão brilhantemente um dia seja assentos para homens de igual valor.

Era o que todos comentavam na reunião social que se seguiu após o exame da conclusão de curso de todos os pesquisadores do Centro. Naquela mesma noite, em

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meio à confraternização geral, foram escolhidos os proje-tos que seriam desenvolvidos nos Seminários Avançados durante os próximos anos. O Sr. R. argumentava com o jovem para que o material de investigação fosse trocado. “Uma mentira parece inesgotável quando se acredita nela. Os documentos do quitinete vão ser incinerados Segunda Feira. Com isso, garantiremos a continuidade e a pureza do Círculo.”

Todos foram convidados para o ato solene. Entre dis-cursos e procedimentos envolvidos na queima, pasta após pasta do Sr. Libra foi sendo destruída pelo fogo. Ao fim do último documento, o jovem completamente desorien-tado, atravessou a multidão e vagou pelas ruas da cidade, volta e meia esbarrando em algum desconhecido que em vão cuspia suas palavras contra o silêncio absoluto que escorria dos olhos do andarilho perplexo. O fogo disper-sava inquietações que os céus da noite espalharam pela infinita escuridão sem pessoa. Enquanto o jovem se afas-tava, o ruído do papel queimando e as saudações e os sor-risos dos homens de altos interesses lá do Círculo ficavam para trás. Em sua mente chegava, de trás para frente, a imagem da tartaruga esmagada, a sombra da inoportuna e assassina visita deixando a casa, o menino deitado no tapete com uma das mãos girando o diminuto réptil que reagia movendo as patas e a cabeça como se fosse um me-canismo, um relógio visto por dentro. E andando em meio às pessoas e esbarrando nelas, a visão do réptil cascudo, imóvel, suspenso, na órbita sua, essa visão durava mais que os segundos de suas lembranças, e adquiria mais e mais detalhes, rasgando a moldura que confinava a cena a um isolado e pontual registro da memória. Agora o me-nino, cansado do réptil cansado de espernear, aproxima o animal de si mesmo e observa o contorno verde que acompanha sua parte inferior. Todos sempre se detêm nos

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gomos do casco, no que se vê de longe e sempre. Mas ali estava aquela mancha sobre o fundo amarelo do casco, mancha derramada e oculta, entre seus padrões de claro e escuro, um esqueleto externo em movimento por sua forma e composição, um esqueleto líquido, a tinta do lí-quido-mancha-vazada girando sem parar cada vez mais dentro dos olhos do menino. E um perfume suave de coi-sas distantes e desejadas vinha não se sabe de onde. E ele largou o réptil no tapete para minutos depois voltar correndo com folhas e sumo das folhas em seus dedos e ouviu e viu que as pedras se quebram sob o peso dos pés e deixam escorrer um suco ralo sem cor e sem voz que as pessoas jogam fora.

Perdido entre os sons e luzes das ruas, o jovem apres-sava em chegar até o fundo dessa visão quando, após es-barrões sucessivos, foi retornando para onde estava. Não havia outra alternativa senão olhar para quem vinha em sua frente. Reunindo tudo o que experimentava naque-le momento, deixou de evitar os esbarrões com os que andavam em direção oposta à sua e começou a olhar fir-me, forte para eles, lançando um olhar que não somente confrontava mais exigia algo em troca. E ninguém gosta disso, que olhem e vejam, sem pressa ou medo, os seus olhos. Ninguém permitiu essa invasão, essa proibida ten-tativa de ir onde não se pode. Quando as pessoas do ca-minho percebiam que o jovem encarava todo mundo, o olhar firme contra o rosto delas, então atravessavam a rua e resmungavam. Algumas entravam no embate, mas não persistiam. Logo reconheciam que do outro lado estava acontecendo uma terrível perturbação dentro do jovem e ninguém queria participar disso.

Ao andar sem medo diante de todos, o jovem enten-deu que carregava em si parte dos materiais e das incon-clusas pesquisas do Sr. Libra. De tanto estudar aqueles

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documentos e buscar sistematizar o que não estava dito nos cadernos, o jovem era o decorrente e restante vínculo do mundo com esses escritos e com seu potencial de des-cobertas. As chamas não sepultaram a voz do Sr. Libra: ardiam mais raivosamente dentro de M. As restrições de acesso às anotações e rascunhos do Sr. Libra e esta extre-ma atitude de aniquilação, todas essas ações comandadas pelo Sr. R, nada disso conseguiu evitar que pudesse ha-ver o completo desaparecimento da figura do Sr. Libra. Era impossível expulsar da face da terra sua exorbitante presença. Como as manchas em movimento do casco do réptil, ou o fogo nos papéis ou ainda a multidão tentando se esconder, o Sr. Libra, o que ele fez parecia inesgotável. E somente o jovem M. restou para testemunhar isso.

Então, durante os anos dos estudos avançados, o antes atento orientando do Sr. R. foi se desdobrando no respon-sável em ampliar o conhecimento em volta das misteriosas contribuições do Sr. Libra. Para tanto, M. propôs, como objeto de sua pesquisa nos Seminários Avançados, uma caracterização global e minuciosa da história do Centro Superior de Pesquisas e, logicamente, do Círculo Maior de Altas Investigações. De posse desse mapeamento, ele poderia compreender melhor o circuito de influências e as práticas de legitimação desenvolvidas nessas instituições gêmeas e, com isso, esclarecer a maneira como e a razão pela qual o descrédito das atividades do Sr. Libra foi pro-duzido com tanta veemência e fervor.

O projeto do jovem foi recebido novamente com mui-tas ressalvas por parte dos membros do Círculo, mas, como das vezes passadas, o Sr. R assumiu todos riscos. “Precisamos, meus amigos, do trabalho desse rapaz. Um dia, quem sabe ele, será um de nós, um colega nosso. To-dos um dia vieram aqui e foram testados, expondo seus brilhantes argumentos. E o que é esse lugar senão um es-

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paço de desafio de nossas habilidades? A instituição pre-cisa desse esforço, desse trabalho estúpido e inútil que nós não precisamos mais fazer. Pois não me importa o que ele pesquise ou investigue, suas dúvidas ou curiosidades. Isso morre com ele, isso papel algum registra. Mas o que realmente nos interessa é que trabalhando em seu proje-to, ocupando-se dele, sendo consumido pela busca do que tanto almeja, ele deixe, enfim, de ser o que é, perca tudo o que foi e a cada dia, cada vez mais se aproxime mais pró-ximo de nós, acabando por virar um de nós mesmo. To-dos os dias nessas salas, em nossas bibliotecas, ouvindo o que falamos, acompanhando o que pensamos, cada dia, cada vez mais ele é o dissemos que deve ser, ele é o que queremos que ele pense, e assim não uma vida, mas uma melhor imagem de si mesmo ele adquire, mais correta, mais adequada, mais natural ao que realmente necessita. E então estará livre de sua pessoa, de sua face espantada com a confusão do mundo, estará livre para se reunir com seus iguais no melhor lugar que poderia existir para ele.”

Entre as mútuas palmas e congratulações, o jovem re-forçou sua resolução em decifrar aquilo que realmente era o mistério, a continuidade daquele espaço de escolhas e decisões. Contudo, quanto mais folheava os documentos do Centro e do Círculo guardados na casa do Sr. R, menos obtinha uma indicação mais exata do que estava procu-rando. Os dois primeiros anos de investigações passaram sem que ele conseguisse confirmar toda a conspiração que pensava fundamentar as instituições. Mais e mais ele se familiarizava com as rotinas burocráticas e com os discur-sos, recursos e com as pesquisas e com as biografias dos honráveis homens altamente qualificados que trabalhavam e dirigiam estas tão prestigiadas instituições de ensino e pesquisa. E esse cotidiano redundava mais e mais em um fracasso extraordinário. Nada do que aprendera na pes-

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quisa com as anotações do Sr. Libra era de utilidade ago-ra. Com os textos do Sr. Libra, M. era arremessado para sensações e experiências que ultrapassavam o horizonte estabelecido nas aulas e pesquisas do Centro. Tudo era excesso e exceção. Porém, a árida abstração de normas e princípios e sub-tópicos e organogramas dos documentos do Centro ocasionava uma situação intensamente opos-ta à leitura e análise dos cadernos do Sr. Libra. Lendo e analisando os documentos do Centro, era impossível for-mar um argumento ou uma tentativa de explicação: tudo estava tão resolvido e fechado, avesso à outra forma de participação senão a reprodução e o acatamento. Diaria-mente o jovem perdia horas e horas na inútil atividade de tentar penetrar em algo que não estivesse apenas exposto e escrito. As palavras e as frases e as páginas estavam tão bem fixadas, cada uma em seu lugar, que nada poderia ser removido ou alterado. Tudo estava ordenado de antemão, distribuído e bem fundamentado. Não havia nada com o que se discordar ou negar. Parecia simples e inevitável, bem ali diante do jovem. Era algo de se pegar e vestir e nunca mais tirar do corpo.

No terceiro e último ano dos Seminários Superiores, com a agitação e perplexidade diante dos prazos se extin-guindo e a iminência do estrondo de sua queda se apro-ximando, uma excêntrica e infundada paz aos poucos foi se apoderando de M. Tudo transmitia confiança e solidez. Passou a freqüentar ambientes comuns aos dos homens do Centro. Comia o que eles comiam, bebia da bebida deles, passava as noites nos lugares em que eles estavam. Em um inesquecível brinde, o Sr. R. propôs que após a apresentação de sua pesquisa, o jovem M. fosse aceito no Círculo. Inicialmente, todos ficaram bestificados e assom-brados com esta proposta tão ousada. Afinal, ninguém, ninguém havia sido aceito assim com tão pouca idade e

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experiência de pesquisa. Mas depois, em unanimidade, todos ergueram suas taças e sorriram para o jovem M. Em volta dele cantaram canções e se embebedaram. E, ao fim de tudo, ainda defendiam que ele nem precisaria entregar um texto final para conclusão de seu Seminário. O trabalho que ele realizara e sua importância eram já no-tórios e lendários entre os membros do Círculo. Em breve o jovem poderia até dar aulas no Centro. O Sr. R. ainda propôs que o jovem fosse chamado de Sr. M., ratifican-do o grau de elevada impessoalidade adquirida através de sua capacitação e relevância para o Círculo.

Até quase o fim daquele ano foram festas e encontros sociais os mais variados todas as noites. Como os demais membros do Círculo, o agora Sr. M. crescia em robustez física e mental, ultrapassando etapas e sorvendo em gran-des goles tudo o que a sua nova vida alcançava.

Então, estranhamente, a violenta face do caos virou-se contra ele. Em meio a tantas delícias, viu-se o Sr. M. de repente participando de uma orgia sem fim, homens e mulheres em todas as posições possíveis manipulando membros, abrindo e esticando peles. Entre bocas e ge-midos e movimentos selvagens, o Sr. M. sentia um ca-lor insuportável em volta dele, enquanto os insaciáveis amantes perdiam nitidez e peso e eram abraçados por uma brancura sem fim, pálida, enevoada, sem poros ou porme-nor. Diante dessa identidade imutável de todas as coisas, parecia que o mundo diante dele, aquela casa cheia de corpos nus e comida e banheiras, tudo isso ia se derreter e se fundir, transformando-se nas paredes sempre novas do lugar, impossível visão que fere o rosto em virtude do in-tenso brilho que cada vez mais a indefinição generalizada irradiava.

Desse modo, a festa que emendou noutra e depois vi-rou uma eternidade irresistível e dolorosa impedia o Sr.

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M. de usufruir dos prazeres de suas conquistas e nome-ações. Estas tantas maravilhas trespassavam seu corpo, rasgando, despedaçando o que encontravam em frente. O Sr. M. mesmo era um obstáculo para que os acontecimen-tos se realizassem em toda a sua amplitude.

Até que em uma noite ele conseguiu se abster de con-sumir a orgia diária, mesmo contra as solicitações de to-dos os membros do Círculo, e chegou exausto, desfigu-rado em seu quartinho, arrastando contra si a imensa luz que roubara seus olhos. Vendo apenas o que em seu rosto era uma máscara de gesso e confusão, o Sr. M. tropeçava entre as estantes tomadas dos livros que havia paciente-mente escondido em sua pasta durante as visitas ao Sr. R. O caminho em direção ao quarto ficou atapetado com as monumentais obras do espírito humano, virando coisas no chão pisadas pelos passos sem rumo de um extenuado e sem equilíbrio Sr. M. , até sua queda, o rosto contra a imensidão de palavras mudas escritas e publicadas.

E veio um sono, e não um pesadelo ao Sr. M. , um sono-desafio, a luta mesma entre o peito adormecido e o ar sufocado, os livros matando o homem bêbado jogado ao chão. E ora venciam os pulmões, ora a matéria bruta preponderava, e o homem dormindo continuava alheio a isso tudo, respirando em sua quase morte, puxando com todas as forças prá dentro de si a última oportunidade de cada instante. Até que aquilo que em seu peito se move o expulsou dessa noite árida e anônima, um golpe exato e sem misericórdia na boca do estômago, obrigando o Sr. M. a sair de sua posição de bruços, abrir os olhos e espu-mar arfando na caça ao resto de ar que dele fugia.

Sentado, apoiando as costas na parede, ele observa a multidão de obras espalhadas pelo chão. Sem saber o que sentir ou pensar pela primeira vez, o Sr. M. solta sua ca-beça contra o corpo, caindo bem devagar até perder-se

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em um olhar para o nada. Poderia ficar horas assim, o telefone tocando sem parar, os dias e as noites se reve-zando, vozes distantes e desconhecidas lá fora, a fome es-quecida e devorada. Mas nessa ausência de tudo, o Sr M. , sem querer notou um manuscrito perto de seus pés. Para acompanhar o seu total desânimo, resolveu ler o texto ali caído. Para sua surpresa, o texto era o relatório de uma expedição científica composta por vários especialistas, expedição organizada pelo Centro para decifrar achados de uma civilização desconhecida. E o relatório fora escri-to logo pelo desaparecido Sr. Libra.

Excitado pela descoberta da única obra do Sr. Libra não destruída pelas chamas, M. pegou o telefone e ligou para o Sr. R. Tinha diante dele o material para seu traba-lho de conclusão do Seminário Avançado. Mas essa felici-dade foi sendo completamente destruída pelas palavras do Sr. R. O mestre, possesso e fora de si, xingava e amaldiço-ava o Sr. M., exigindo que ele de imediato trouxesse esse documento ao Círculo para ser queimado em cerimônia pública.

Tamanho excesso do Sr. R. obrigou o Sr. M. a sair de casa com toda a pressa, o relatório na mão, mesmo com a dificuldade de ver ou fixar os olhos em qualquer coisa. Dentro do táxi, as suas mãos agarravam nervosas o maço de papéis encadernado. Mais uma vez ele dependia de si mesmo para mudar sua vida. Então o Sr. M. começou a ler aquele texto revelador e terrível. Nas densas flores-tas da América Central, dentro de uma caverna tida como santuário, foram encontraram dezenas de corpos mutila-dos, homens e mulheres. A partir dos dados ósseos e dos vestígios do lugar, bem como dos grafismos nas paredes, recontava-se uma história que ninguém gostaria de ouvir. Exames diversos demonstraram que eram todos da mes-ma tribo e possuíam uma elevada cultura. A chacina não

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fora causada por nenhum inimigo vindo de fora. A ex-tensão e qualidade das cinzas e os utensílios no chão de-mostravam que houve uma festa e que, durante essa festa, tudo aconteceu. As desfiadas e descoloridas vestimentas apodrecidas apontavam para uma cerimônia excepcional e de alto nível. Os ossos estavam quase todos quebrados e partidos, não havendo esqueleto intacto ou menos arrui-nado. Dentro daquela caverna deu-se uma estranha cele-bração na qual cada um compartilhou atos de violência que foi se generalizando, uma colheita que ceifa até as mãos do ceifeiro. Reunindo os dados dos especialistas, o Sr. Libra, especialista em observações, reconstituiu os detalhes e os acontecimentos desse sanguinário encontro entre iguais. Não houve fuga ou desespero: a cada golpe, todos ficavam embriagados com o sangue do outro jor-rando. Os ruídos dos ossos se partindo e atravessando as carnes eram acompanhados sem remorso ou horror pelos que ali estavam. Nas paredes das cavernas, esboços de figuras humanas dispostas em várias formas de tortura e lances de talhe e corte – a morte planejada, executada e anotada. Ao chão, a fogueira assando porções de gente que viu morrer e matar mais gente, uma refeição de dias e dias, uma brutal associação de homens e mulheres sem distinção de maior crueldade e invenção.

O táxi estacionou em frente à casa do Sr. R. Já diante do portão estavam, entre resmungos e olhares ameaçado-res, os membros do Circulo. O Sr. M. entregou o manus-crito para o Sr. R. que imediatamente lançou o texto em uma fogueira já preparada. Os outros atiçavam as chamas com todo prazer. O Sr. M retornou para o táxi e foi para seu quartinho.

Ao recém chegar em casa, o telefone tocou. O Sr. R. ordenava que voltasse imediatamente para uma reunião. O Círculo havia decidido, mesmo em meio a estes even-

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tos extraordinários, outorgar para o Sr. M. em uma solene cerimônia seu diploma nos Seminário Avançado e título de Pesquisador Consumado, e, além disso, aproveitar a ocasião para recebê-lo como membro. Esse acúmulo de honrarias exigia que discutissem os preparativos para o dia seguinte.

Um dia antes de sua completa consagração, o Sr. M estava na mesma sala de livros de anos atrás. “O que você está pensando, Sr. M? O que você pensa que pode ou vai fazer? Nada disso diz respeito a você, entendeu? Nada. Por acaso você acha que o Círculo não sabe disso, do que você está planejando?” O Sr. M. sabia o que iria fazer no dia seguinte, no grande dia, diante de todos. Seus olhos agora viam com todos os detalhes e dimensões tudo em seu redor. Nada do que o Sr. R. dissesse iria impedir que fosse dito o que deve ser dito: a descoberta do Sr. Libra, a revelação de nossa humanidade, o mistério de nossa raça, uma história não contada sobre nossa natureza. O Sr. M. estava com os olhos cheios da visão dos corpos destru-ídos, e continuava dentro de si esmiuçando mais e mais as imagens vindas do relatório. O Círculo havia enfatica-mente obstruído as pesquisas do Sr. Libra, uma voz que nunca vai se calar, uma voz contra essa rotina sem senti-do de produzir conhecimento somente dentro de rígidas normas pré-estabelecidas. Amanhã, diante de todos, o até então Sr. M. irá expor o que se esconde, o que não se quer mostrar. Esses restos de ossos e fraturas não podem ser evitados ou omitidos. O que foi feito ali naquela caverna nos pertence e nos define, a tua pessoa, a minha. Pois so-mos capazes disso, e fizemos e planejamos e cumprimos o pensado, uma idéia que age e não se detém enquanto não consome e elimina qualquer coisa em sua frente. E essa é a nossa face, avançando adiante de nós: o golpe e o

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fascínio da queda, a queda e o delírio dos pés, o êxtase da chama em sua própria devora. É para isso e nada mais o deslumbramento, o abate e a consumação – olhos, mãos, cabeça, pés.

De saída da casa do Sr R, ele ainda ouviu as últimas palavras: “Garoto burro! Burro! Desperdício! Covarde! O que você quer? O que você realmente quer? Ficou esse tempo todo investigando por que? Fale a verdade, pare de inventar uma! Ou você acha que alguém acreditou nesse negócio de Sr. Libra e relatório secreto e o tudo o mais !!?? Agora fale o que você realmente quis com tudo isso. Saia de seu quartinho cheio anotações e projetos que nun-ca vão ser realizados. Olhe bem para mim, garoto, olhe bem prá mim e fale o que realmente você fez, o que você perdeu ou esconde, o que você fez desaparecer! Fale e deixe tudo isso para trás! Você tem essa oportunidade. Amanhã todos vão estar lá prá te cumprimentar. Ninguém quer saber de sua loucura, dessa mundo fechado num ca-derno. Ninguém vai querer ouvir falar de uma vida que não se entende, de queixas, súplicas e acusações. Você tem se acabado, garoto, todos os dias perdido entre as pa-redes abstratas de lugarzinho imundo! E agora quer gritar e ferir e machucar, quer dizer o que pensou ver e ouvir quando estava só, pensado e pensando. O que é uma pes-soa, heim? O que é isso largado em um canto, se afogando com suas memórias e ressentimentos, abatido como uma coisa estúpida? É disso que você precisa se livrar, de sua pessoa, de você mesmo, garoto burro! Ouviu? Livre-se de sua pessoa, garoto, acabe com ela pois essa inquieta com-panheira é faminta parasita que quanto mais tem, mais quer, e só vai te deixar em paz quando roubar teu fôlego e mastigar teus olhos com prazer e ódio. Livre-se dela ago-ra, garoto burro, antes que o amanhã não triunfe!”

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Nunca alguém havia falado com o M daquele jeito, nunca havia sido tão ofendido assim por alguém. O Sr. R, com os olhos esbugalhados, não parou de humilhar e afligir até expulsar o Sr. M. da mansão. Do táxi para casa M. foi pensando nisso tudo. Estava completamente per-turbado com as idéias absurdas e provocativas do Sr. R. Vendo a noite pela janela, machucou-se inteiro dentro de si pensando em desde quando havia se tornado nisso que não mais se reconhece. Voltando para seu quitinete, o Sr M., perdia-se entre pensamentos que não se completavam. Nesse abandono de si, não conseguia dormir, perdido em meio aos sons e às cores das coisas que habitavam a longa escuridão da noite. Nada mais de especial havia em ver tantas coisas e apenas ver, como nada de especial havia em um coração condenado a exprimir-se entre a enormi-dade de órgãos, sangue e partes e pedaços de algo dentro do corpo.

Cansado de pensar sobre tudo que lhe acontecera até essa estranha véspera de algo que não sabe definir, M., em seguida, por algumas horas, angustiosas horas, tentou, pois, lembrar de algo além dos últimos anos. Inicialmente chegou até a brincar com essa dificuldade. Sempre ele re-tornava para o mesmo momento não muito bem definido no passado, mas tudo era passado recente, e só conseguia não esquecer dos acontecimentos dos últimos dias. Lá pela meia-noite nem isso mais: sua memória só alcançava o esforço sofrido e inútil de querer lembrar. Às três da ma-nhã, pior: cada minuto se fechava em si mesmo, o coração disparado sabendo que vai parar a qualquer momento. De repente tudo se acelerou e ele não conseguia se mexer: havia caído sobre os livros e permanecia imóvel como uma pedra. Tentou gritar e nada. Os olhos estavam aber-tos, mas reconhecia mais nenhum objeto ali existente. Os olhos estavam abertos para algo diferente. Então se viu

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criança, ágil e pequena correndo em um jardim e rasgan-do com força as cabeças das flores e rindo. Quando viu seu rosto, face a face, ele apavorou-se diante de alguém tão terrível em seus detalhes. O garoto mau destruidor de jardins continuou correndo, os passos pesados e ameaça-dores, as mãos prontas para romper e destruir. Cães e ga-tos pelas ruas fugiam dele. As pessoas desviavam o olhar. Até que ele passou por uma vitrine e viu um aquário com uma tartaruga dentro. Insistiu, insistiu tanto que compra-ram o réptil para ele. A carapaça dura, a carne mole em suas mãos. Em casa, agora ele coloca o bicho para andar no tapete. Passa horas observando a luta do bicho com sua carapaça. Os olhos da criança se amansam no incerto e desajeitado andar da casa de patas. Ele fica esperando no final do tapete o encontro de seus olhos com a enrugada e esverdeada cabeça do bicho. Agora o bicho anda menos, cada vez menos. Faz frio e a tartaruga é uma pedra es-quecida ali no tapete. A porta se abre e um pé sem querer esmaga o réptil. O garoto se apavora, larga as folhas que trouxe para cobrir o bicho e grita ao ver que a carne e a carapaça quebrada se fundem em uma geléia sob o seu próprio pé. O garoto, aos prantos, puxa com seus dedos a carne pregada na carapaça e gira, gira a coisa visguenta, espirrando a geléia nas paredes. Depois sofre, o garoto, uma dor imensa que não é só dele, que ele não consegue suportar. Um menino não deveria sofrer tanto, meu Deus! E ele chora e soluça e volta a chorar. Os dias não são bons e suas mãos têm o cheiro do réptil morto. Ele não vai con-tar prá ninguém o que aconteceu, ele vai mentir, esconder até que tudo seja esquecido. Vai contar outras histórias, inventar o que realmente houve. Como nos livros, como nas incríveis e fabulosas histórias que ele lê noite e dia, de homens que sempre encontram alguma coisa importan-te, descobrem algo. Ninguém fala da tartaruga esmagada,

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ninguém vai contar sobre o cheiro do réptil morto se es-palhando por tudo. Todos ali nas fotos mostram apenas as melhores e únicas coisas que realmente importam, todas as histórias de homens bons prá sempre, estranhos rostos bem diante de nós.

Impresso em Chiado Print, Lisboa, Portugal


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