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Uma imagem vale mais que mil palavras

Date post: 16-Nov-2023
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Uma imagem vale mais do que mil palavras? Vinicius Souza 1 Fotógrafo premiado retrata violência brasileira como guerra e reforça estereótipos que apoiam o genocídio da população pobre, jovem e negra. Praticamente nada nas sociedades humanas é “natural”. Mesmo as necessidades animais básicas como comer, beber e dormir, são feitas de maneiras culturalmente construídas e codificadas. Comer carne de vaca ou de cachorro, beber água ou refrigerante, dormir em cama ou em rede nos foi ensinado pelos que vieram antes de nós. No princípio da humanidade, a maneira mais usual de se transmitir o conhecimento (e com ele os critérios de escolha, valoração e padrões de comportamento) era a oral. Mas havia também a consolidação, perpetuação e transmissão dos conceito-chave para a convivência, e mesmo existência em sociedade, pela forma de raciocínio definida pelo filósofo tcheco Vilém Flusser como mágico-imagético-circular, porque baseada no modo como as pessoas leem as imagens, com o olhar circulando pela cena e apreendendo dela o que considera mais significativo, normalmente reforçando os conceitos que já temos arraigados dentro de nós. Por um breve período de tempo, cerca de 3.300 anos, desde a redação dos primeiros cinco livros da bíblia, a forma de raciocínio hegemônica na sociedade passou pouco a pouco a ser a tempo-histórico-linear, baseada em textos, que precisam de uma ordem linear para serem lidos, pressupondo causas e consequências em todas as relações. Com a invenção da fotografia, contudo, qualquer pessoa, mesmo que não saiba ler textos, pode construir mensagens imagéticas com um simples click. Este é, aliás, o slogan de lançamento da primeira câmera fotográfica da Kodak, em 1888: você aperta o botão e nós fazemos o resto. Para Flusser, 1 Fotógrafo, jornalista, pesquisador, professor. Doutorando em Comunicação UNIP. Esse texto foi originalmente escrito e publicado em https://medium.com/jornalistas-livres/uma-imagem-vale-mais-do-que-mil- palavras-6636d551ed4c#.34qk4gwvd
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Uma imagem vale mais do que mil palavras?

Vinicius Souza1

Fotógrafo premiado retrata violência brasileira como guerra e reforça

estereótipos que apoiam o genocídio da população pobre, jovem e negra.

Praticamente nada nas sociedades humanas é “natural”. Mesmo as

necessidades animais básicas como comer, beber e dormir, são feitas de

maneiras culturalmente construídas e codificadas. Comer carne de vaca ou

de cachorro, beber água ou refrigerante, dormir em cama ou em rede nos foi

ensinado pelos que vieram antes de nós. No princípio da humanidade, a

maneira mais usual de se transmitir o conhecimento (e com ele os critérios de

escolha, valoração e padrões de comportamento) era a oral. Mas havia

também a consolidação, perpetuação e transmissão dos conceito-chave para

a convivência, e mesmo existência em sociedade, pela forma de raciocínio

definida pelo filósofo tcheco Vilém Flusser como mágico-imagético-circular,

porque baseada no modo como as pessoas leem as imagens, com o olhar

circulando pela cena e apreendendo dela o que considera mais significativo,

normalmente reforçando os conceitos que já temos arraigados dentro de nós.

Por um breve período de tempo, cerca de 3.300 anos, desde a redação dos

primeiros cinco livros da bíblia, a forma de raciocínio hegemônica na

sociedade passou pouco a pouco a ser a tempo-histórico-linear, baseada em

textos, que precisam de uma ordem linear para serem lidos, pressupondo

causas e consequências em todas as relações.

Com a invenção da fotografia, contudo, qualquer pessoa, mesmo que

não saiba ler textos, pode construir mensagens imagéticas com um simples

click. Este é, aliás, o slogan de lançamento da primeira câmera fotográfica da

Kodak, em 1888: você aperta o botão e nós fazemos o resto. Para Flusser,

1Fotógrafo,jornalista,pesquisador,professor.DoutorandoemComunicaçãoUNIP.Essetextofoioriginalmenteescritoepublicadoemhttps://medium.com/jornalistas-livres/uma-imagem-vale-mais-do-que-mil-palavras-6636d551ed4c#.34qk4gwvd

esse é o início de uma nova era, chamada de pós-histórica, onde o raciocínio

mágico-imagético-circular volta com força. Com o advento dos meios de

comunicação em massa, as imagens, não só visuais mas compostas também

por textos, sons e narrativas orais, passam a fazer a mediação entre os

homens e o mundo e entre os homens e os homens. Assim, as opiniões e

conceitos que temos sobre os fatos hoje são construídas principalmente

pelas imagens captadas para e distribuídas pelos grandes fluxos de

informação. Como a forma de pensamento tem se tornado mais e mais

mágico-imagético-circular, cada vez menos as pessoas nas ruas buscam as

causas do que veem nos jornais, revistas TVs e Internet, e pouco se atentam

para as consequências dessas visões de mundo. As solução para problemas

complexos parecem, então, simples e mágicas. Basta matarmos todos os

bandidos, por exemplo, e viveremos em paz. Como diz Flusser:

O fascínio mágico que emana das imagens técnicas é palpável a

todo instante em nosso entorno. Vivemos, cada vez mais

obviamente, em função de tal magia imagética: vivenciamos,

conhecemos, valorizamos e agimos cada vez mais em função de

tais imagens

Numa sociedade altamente fundada na visibilidade como a nossa,

portanto, profissionais da imagem, como fotojornalistas, têm uma

responsabilidade enorme em passar para o público pontos de vista sobre a

realidade objetiva que levem à reflexão sobre como resolver de fato, ou ao

menos minimizar, os sérios problemas sociais que temos. Quando um

fotógrafo de conflitos internacionais que recebeu a mais importante

premiação de cobertura de guerra do mundo, a medalha de ouro Robert

Capa, decide retratar a violência brasileira, boa parte dos colegas ficamos

empolgados com a possibilidade deste que, a meu ver, é o principal problema

nacional (temos mais de 50 mil assassinatos por ano no Brasil há tempos)

fosse representado por imagens, textos e contextos que pudessem impactar

positivamente as políticas para o setor. Afinal, a visibilidade desse trabalho

seria imensa devido à reputação do fotógrafo e seu fácil acesso a todos os

grandes meios de comunicação do país. Infelizmente, não foi isso que

aconteceu. Bem ao contrário.

A mostra Revogo, exposta no Centro Cultural da Caixa Econômica

Federal de São Paulo desde o último dia 10 de outubro, traz 60 fotografias

tiradas em vários lugares do Brasil em três anos de atividade do fotojornalista

André Liohn depois que voltou ao país após ter sido preso na guerra civil na

Síria. Nas paredes estão distribuídas imagens de “trabalhadores” do tráfico

de drogas ilegais, das manifestações populares de 2013, consumo de crack

(resultantes de um ensaio encomendado pela revista Veja), bailes funk, e

ações da polícia. Não há separações nos temas, nem contextualização e

sequer legendas individuais. Num pequeno texto separado numa parede

oposta às fotos temos as informações de que o autor pretende com a

exposição “revogar” preconceitos de que o Brasil vive uma “guerra velada”

(para ele, a situação é de “delinquência generalizada”), que se trata de

retratos de momentos de “trauma” (quando a partir daí a vida toma

inevitavelmente outro rumo) e que todas as fotos têm uma única legenda:

Onde? Brasil. Quando? Hoje.

Reprodução da página de André Liohn no Facebook para divulgação da exposição

Revogo. Fotos de um lado, textos de outro. Disponível em

https://www.facebook.com/459960177375173/photos/a.494198500618007.1073741825.4599

60177375173/897289473642239/?type=3&theater, acesso em 23/10/2015.

Apesar de dizer na série de vídeos oficiais da mostra2 que a principal

foto da exposição é a que mostra uma jovem sem calça sendo apalpada por

quatro homens na Noite da Devassa, um baile funk promovido por uma

marca de cerveja, essa imagem vem tendo divulgação menor por causa seu

conteúdo de nudez. Outras aparecem apenas em galerias virtuais dos portais

de notícias sob o alerta: Atenção, as imagens a seguir são fortes. A mais

comumente publicada, distribuída junto com o press-release3 e que abre a

exposição, é a que mostra um menino negro de costas atirando com uma

pistola automática sobre um campo relvado que parece ser um morro

carioca. Em um dos vídeos oficiais, Liohn diz que foi dele a ideia de desafiar

a criança, que teria 10 anos de idade e trabalharia no tráfico de drogas, a dar

alguns tiros para provar que ela sabia atirar, contrariando os demais

traficantes que diziam que ela era péssima atiradora.

Foto de André Liohn, sem data, local ou legenda, distribuída com o Press Release de

divulgação da exposição Revogo

2 Disponíveis na página de Facebook do fotógrafo em https://www.facebook.com/Andr%C3%A9-Liohn-459960177375173/, acesso em 23/10/2015. 3 Disponível em http://www20.caixa.gov.br/Paginas/Releases/Noticia.aspx?releID=833, acesso em 22/10/2015.

Na reportagem de capa do caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo,

com o título Notícias de uma guerra particular, Lioh afirma que “As flores,

marias-sem-vergonha, ilustram como são nossas crianças: nascem do nada,

mas são frágeis, morrem do nada também”4. Na versão digital da reportagem

de Anna Virgínia Balloussier, o título muda para Vencedor da medalha

Robert Capa abre mostra sobre violência no Brasil. A matéria impressa,

contudo, tem mais impacto, já que tiro disparado pela criança “atinge” em

cheio as letras garrafais vermelhas que dão nome ao caderno de cultura do

jornal. Outras duas fotos de adolescentes traficantes, ambos negros,

aparecem na mostra. Nas duas os meninos portam pistolas automáticas, mas

como são fotografados de frente, suas identidades são preservadas por

máscaras representando demônios ou diabos.

4 Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/10/1690182-vencedor-da-medalha-robert-capa-abre-mostra-sobre-violencia-no-brasil.shtml, acesso em 17/10/2015.

Reprodução da primeira página do caderno Ilustrada, da Folha de S.Paulo de 5 de

outubro de 2015 sobre a exposição Revogo, de André Liohn

A matéria segue informando que “Liohn apontou sua lente para

enterros, policiais dando dura em jovens negros e uma menina alucinada

com o éter da garrafa plástica”. De fato, várias das fotos da mostra

apresentam policiais na ativa, e sempre de forma altiva. A imagem abaixo,

por exemplo, se assemelha muito a uma das fotos premiadas do conflito na

Líbia, com os soldados rebeldes subindo uma escada5. Todas as pessoas

detidas pela polícia nas imagens, por outro lado, estão de cabeça baixa,

algemadas e subjugadas, e, coincidentemente ou não, são negras, assim

como todos os cadáveres, cerca de 15, retratados nas fotografias. 5 Disponível em http://www.diariodocentrodomundo.com.br/wp-content/uploads/2012/09/libia7.jpeg, acesso em 23/10/2015.

Foto de André Liohn, sem data, local ou legenda.

Na única foto em que aparecem oficiais ajudando alguém, essa

pessoa também é um policial ferido, provavelmente numa das manifestações

de 2013 (como não há data ou local específico, é difícil identificar com

certeza). Durante as chamadas Jornadas de Junho, de 2013, tive a

oportunidade de encontrar André Liohn várias vezes nas ruas, trabalhando.

Em 7 de setembro de 2013, por exemplo, com a forte repressão policial às

manifestações levando a um grande número de feridos, fiz as imagens de

oficiais agredindo dois fotógrafos independentes: Rodrigo Zaim (do R.U.A.

Fotocoletivo) e Paulo Ishizuka (da Mídia Ninja). Também fiz um retrato de

Liohn, que chegou junto com alguns policiais quando os paramédicos vieram

atender uma manifestante atropelado por uma viatura policial.

Seu bom relacionamento com a polícia desde essa época certamente

o ajudou a fazer algumas das fotos que compõem a exposição,

acompanhando de dentro o trabalho da mais violenta tropa da corporação em

São Paulo: a Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar – ROTA. Se o método de

Liohn para fotografar a violência no Brasil é o mesmo que ele utiliza nas

guerras, conforme ele próprio afirma, sua cobertura é equivalente à dos

jornalistas embedded, que viajam junto com as tropas e portanto reproduzem

o seu ponto de vista e não o dos civis6.

Fotojornalistas Rodrigo Zaim (do R.U.A Fotocoletivo) e Paulo Ishizuka (Mídia Ninja) são agredidos pela PM em 07/09/2013. Foto: MediaQuatro – http://www.mediaquatro.com

6 Uma crítica contundente ao trabalho dos jornalistas “embutidos” ou embedded pode ser assistida no documentário A guerra que você não vê, do jornalista John Pilger. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pskjzl2czKg. Acesso em 23/10/2015.

André Liohn fotografando um manifestante atropelado por uma viatura policial sendo

atendido por paramédicos em 07/09/2013. Foto: MediaQuatro – http://www.mediaquatro.com

Quando entrevistado pelo programa Roda Viva7, assim que recebeu

em 2012 a Robert Capa Gold Medal por sua cobertura da queda do

Muammar Al Gaddafi na Líbia, Liohn afirmou que nunca se interessou em

estudar fotografia, mas alguns conceitos básicos são essenciais e deveriam

ter sido apreendidos ainda que de forma empírica no campo. Pra começar,

temos as proposições de Roland Barthes no clássico A Mensagem

Fotográfica8, publicado originariamente em 1962, onde ele define a fotografia

como uma “mensagem sem código”, já que seu significados não resultam

apenas dos componentes denotativos (o que realmente aparece nas imagens

e tem relação direta com o referente fotográfico) mas principalmente dos

elementos conotativos, que são atribuídos culturalmente para se dar

significação ao que se vê e estão presentes tanto dentro da imagem em si,

como nos textos que a acompanham e nos contextos em que ela é

apresentada.

7 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=SxDm-xVYk6w, acesso em 22/10/2015. 8 Disponível em https://veele.files.wordpress.com/2011/11/roland-barthes-a-mensagem-fotogrc3a1fica.pdf, acesso em 22/10/2015.

o código de conotação não era verossimilmente nem "natural" nem "artificial", mas histórico, ou, se se prefere: "cultural"; os signos aí são gestos, atitudes, expressões, cores ou efeitos, dotados de certos sentidos em virtude do uso de uma certa sociedade: a ligação entre o significante e o significado, isto é, a significação propriamente dita, permanece, senão imotivada, pelo menos inteiramente histórica. […] a significação é, em suma, o movimento dialético que resolve a contradição entre o homem cultural e o homem natural. Graças ao seu código de conotação, a leitura da fotografia é portanto sempre histórica: ela depende do "saber" do leitor, exatamente como se se tratasse de uma língua verdadeira, inteligível somente se aprendemos os seus signos.

No caso que Barthes chama de foto-choque, ou traumáticas, como as

fotografias de conflitos, mortes, incêndios, tragédias, etc, exatamente o que

Liohn se propõe a fazer, a tarefa de buscar reflexão sobre as problemáticas

envolvidas é ainda mais ingrata.

o trauma é precisamente o que suspende a linguagem e bloqueia a significação. Decerto, situações normalmente traumáticas podem ser apreendidas num processo de significação fotográfica; mas é que então precisamente elas são assinaladas por um código retórico que as distancia, as sublima, as pacifica. […] a foto-choque é por estrutura insignificante: nenhum valor, nenhum saber, em último termo nenhuma categorização verbal pode ter domínio sobre o processo institucional da significação. […] Por quê? É que, sem dúvida, como toda significação bem estruturada, a conotação fotográfica é uma atividade institucional; à escala da sociedade total, sua função é integrar o homem, isto é, dar-lhe segurança

Nesse sentido, é incompatível “dar segurança” à sociedade

“revogando” os preconceitos culturalmente associados à visão repassada

pela mídia hegemônica de que vivemos uma guerra. Principalmente se as

imagens reproduzem situações milhões de vezes representadas nos jornais,

revistas e TVs, e não trazem textos que podem contextualizar as

problemáticas envolvidas. Em seu ensaio de 1931, Pequena história da

fotografia, o ensaísta alemão Walter Benjamin já alertava para a importância

das legendas na contextualização de uma imagem, atribuindo-lhe

características e significados que não estão entre os elementos denotativos

da fotografia.

Aqui deve intervir a legenda, introduzida pela fotografia para favorecer a literalização de todas as relações da vida e sem a qual qualquer construção fotográfica corre o risco de parecer vaga e

aproximativa. [...] Já se disse que ‘o analfabeto do futuro não será quem não sabe escrever, mas quem não sabe fotografar’. Mas um fotógrafo que não sabe ler suas imagens não é pior do que um analfabeto? Não se tornará a legenda a parte mais essencial da fotografia?”

No final, ao invés de revogar preconceitos, a exposição de André

Liohn só faz reforçá-los. A leitura mágica-imagética-circular por uma

população com medo da violência urbana estampada nos jornais e gritada

nos programas policiais vespertinos das fotografias de Revogo, independente

do que o autor diz nas entrevistas ou escreve na parede, será

majoritariamente de que o perigo para a sociedade são meninos negros “de

menor” e “impunes” empunhando pistolas automáticas. Por consequência

dessa visão simplista e dualista, a única força armada que pode nos proteger

são os policiais que se arriscam diariamente nessa “guerra”. Ora, se estamos

tratando de uma guerra, e inevitável que eventualmente morram inocentes. É

o que os estadunidenses chamam eufemisticamente desde a Guerra do

Vietnã, quando começaram a morrer mais civis do que soldados, de “danos

colaterais”. Sob a mesma lógica, o inimigo deve ser exterminado, o que

condiz com pesquisas recentes que apontam metade da população brasileira

apoiando a máxima “bandido bom é bandido morto”9 e quase 90% exigindo a

diminuição da maioridade penal10. Afinal, como afirma Vilém Flusser,

O caráter mágico das imagens é essencial para a compreensão das suas mensagens. [...] Imagens são mediações entre o homem e o mundo. [...] Imagens tem o propósito de representar o mundo. Mas, ao fazê-lo, interpõem-se entre o mundo e o homem. Seu propósito é serem mapas do mundo, mas passam a ser biombos. O homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função das imagens. [...] O caráter aparentemente não-simbólico, objetivo, das imagens técnicas faz com que o observador as olhe como se fossem janelas, e não imagens. O observador confia nas imagens técnicas tanto quanto confia em seus próprios olhos. Quando critica as imagens técnicas (se é que as critica), não o faz enquanto imagens, mas enquanto visões do mundo. Essa atitude do observador em face das imagens técnicas caracteriza a situação atual, onde tais imagens se preparam para eliminar os textos. Algo que apresenta consequências altamente perigosas.

9 Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/10/1690176-metade-do-pais-acha-que-bandido-bom-e-bandido-morto-aponta-pesquisa.shtml, acesso em 15/10/2015. 10 Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/04/1616762-87-querem-reducao-da-maioridade-penal-numero-e-o-maior-ja-registrado.shtml, acesso em 15/10/2015.

Em nenhum momento as causas reais da violência brasileira cotidiana,

como a imensa letalidade policial (somente nos primeiros oito meses dessa

ano a polícia paulista matou, oficialmente, 571 pessoas, sem contar com as

chacinas como a de agosto último quando 32 pessoas foram executadas por

encapuzados11) foram abordadas. Como dito anteriormente, isso somente

reforça a “imagem” passada pelos meios de comunicação em massa, como a

Folha de S. Paulo que no dia 15 de agosto publicou um texto do editor do

Caderno Cotidiano especulando sobre como a maior chacina do ano pode

afetar as chances políticas do Secretário de Segurança Pública do Estado,

Alexandre Moraes, disputar (ou até ganhar) a prefeitura da capital, São

Paulo, para terminar com sua vaga promessa de “rapidamente dar uma

resposta’ sobre a noite mais violenta de sua gestão” 12, o que não aconteceu

até agora, passados mais de 70 dias. Em outro texto beirando o surreal para

quem não conhece a realidade das periferias brasileiras, parentes das

pessoas assassinadas afirmam não esperar por justiça e que as vítimas

estariam “no lugar errado, na hora errada” 13 . Não por acaso, o texto

imediatamente anterior no jornal traz a manchete “12 dos 18 mortos não

tinham antecedente criminal, diz polícia”14, trazendo implícita a concepção

largamente difundida na sociedade brasileira de que seis das vítimas seriam

criminosos e portanto mereciam morrer, apesar do país não possuir uma

pena capital e consequentemente sua execução extrajudicial ser um crime de

homicídio passível de 27 anos de cadeia.

Talvez Liohn pudesse aprender um pouco sobre o poder que as

imagens têm de influenciar na realidade com outro vencedor da medalha de

ouro Robert Capa, aliás, cinco vezes ganhador: o fotojornalista James

Natchwey. No autobiográfico Fotógrafo de Guerra (2001), ele conta que

escolheu a profissão no início dos anos 1970 exatamente por perceber que

11 Disponível em http://www.valor.com.br/politica/4233884/em-sao-paulo-policia-mata-571-pessoas-em-oito-meses, acesso em 23/10/2015. 12 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/229563-ataques-sao-primeiro-forte-reves-para-secretario.shtml acesso em 2 de Set de 2015. 13 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/229558-nao-vou-pedir-justica-afirma-mae-de-vitima.shtml acesso em 2 de Set de 2015. 14 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/229557-12-dos-18-mortos-nao-tinham-antecedente-criminal-diz-policia.shtml acesso em 2 de Set de 2015.

as imagens que chegavam do Vietnã mostravam uma realidade diferente

daquela presente nos discursos dos dirigentes políticos e militares.

Por que fotografar a guerra? Será possível colocar fim a uma forma de comportamento humano que existe ao longo de toda a história através da fotografia? A colocação dessa questão parece ridícula e completamente desajustada. Ainda assim é precisamente essa ideia que me motiva. Para mim, a força da fotografia reside na capacidade de evocar o sentido da humanidade. Se a guerra tenta negar a humanidade, a fotografia poderia conceber-se como o oposto da guerra. E, se for bem usada, constitui um poderoso antídoto contra a guerra. De certo modo, se um indivíduo assume o risco de colocar-se no meio de uma guerra para comunicar ao resto do mundo o que se passa, ele tenta negociar a paz. Por isso aqueles que perpetuam a guerra não gostam de ter fotógrafos por perto. No campo, aquilo que se experimenta é extremamente imediato. [...]. O que se vê é uma dor sem paliativos. É injustiça e miséria. Minha ideia é que se todos pudéssemos estar lá, pelo menos uma vez, e ver com nossos próprios olhos o que o fósforo branco faz no rosto de uma criança, a dor indizível que causa o impacto de uma única bala, como um estilhaço de morteiro arranca uma perna... Se cada um pudesse ver isso por si mesmo, o medo e o pesar, uma só vez, então compreenderia que nada justifica que as coisas levem a um ponto em que isso ocorra a uma única pessoa, muito menos a milhares. Mas nem todos podem ir lá, e é por isso que os fotógrafos de guerra vão. Para agarrá-los e fazer com que parem o que estão fazendo e prestem atenção ao que está acontecendo. Para criar fotografias suficientemente poderosas para ultrapassar o efeito ilusório da mídia e que sacudam as pessoas da sua indiferença. Para protestar e, com a força desse protesto, fazer com que outros também protestem. (FOTÓGRAFO... 2001, 1:27:17min a 1:30:05 min).


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