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Uso de Entorpecentes e os critérios distintivos entre os delitos previstos nos arts. 28 e 33 da Lei...

Date post: 29-Jan-2023
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1 USO DE ENTORPECENTES E OS CRITÉRIOS (?) DISTINTIVOS ENTRE OS DELITOS PREVISTOS NO ARTS. 28 E 33 DA LEI 11.343/06 À LUZ DA ATUAL JURISPRUDÊNCIA: PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA E OFENSIVIDADE. (USE OF DRUGS AND THE CRITERIA (?) BETWEEN THE OFFENCES PROVIDED FOR IN THE DISTINCTIVE ARTS. 28 AND 33 OF THE LAW 11,343/06 IN THE LIGHT OF CURRENT CASE LAW: THE PRINCIPLE OF INSIGNIFICANCE AND OFFENSIVENESS.) Gustavo Tozzi Coelho 1 RESUMO: O presente artigo tem como escopo principal demonstrar as discrepâncias dentre a jurisprudência quanto aos critérios distintivos entre usuário e traficante de entorpecentes dispostos na Lei de Tóxicos. Tendo em vista que tais critérios não são auferidos minuciosamente pela jurisprudência, o presente artigo busca elencar algumas incongruências identificadas nos julgados de nossas Cortes. Desta forma, abordaremos as circunstâncias dispostas no §2º do art. 28 da Lei nº 11.343/06, demonstrando que tais critérios são insuficientes para a correta apuração da classificação dos delitos: se de porte para consumo pessoal ou tráfico. Igualmente, trabalharemos com a possibilidade de aplicação do Princípio da Insignificância em delitos de tóxicos por nossas Cortes, que atualmente resistem quanto à sua incidência. Ao final, concluiremos cotejando as posições jurisprudenciais aqui reproduzidas com os princípios da dignidade da pessoa humana e da ofensividade: nullum poena, nullum crimen sine iuria, Palavras-chave: Drogas; Critérios; Princípios da Insignificância e Ofensividade. ABSTRACT: This article has as main scope demonstrate the discrepancies among the jurisprudence regarding the distinctive criteria between user and trafficker of narcotics placed in Toxic law. Considering that such criteria are not earned thoroughly by the jurisprudence, this article if provided to point out some incongruities found in the judged of our Courts. In this way, we will discuss the circumstances provided for in paragraph 2 of art. 28 of law nº 11,343/06, demonstrating that such criteria are insufficient for the correct determination of the classification of offences: If, for personal consumption or trafficking. Also, we will work with the possibility of applying the principle of insignificance in toxic torts by our courts, which currently are obstacles in its incidence. However, the Supreme Court has been admitting such a possibility. In the end, we will conclude checking the jurisprudence positions here reproduced with the principles of human dignity and of offensiveness (nullum crimen sine iuria). Keywords: drugs; Criteria; Principles of insignificance and Offensiveness. SUMÁRIO: 1. APRESENTAÇÃO HISTÓRICA; 2. A DISCUSSÃO JURISPRUDENCIAL: 2.1 OS CRITÉRIOS (?) UTILIZADOS PARA DISTINGUIR O PORTE PARA CONSUMO PRÓPRIO E O TRÁFICO; 2.2 DA (IN)APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA EM DELITOS DA LEI DE TÓXICOS; 3. CONCLUSÃO; BIBLIOGRAFIA. 1 Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em 2008.. Juiz Leigo. Advogado. Extensão em Direito Penal e Processual Penal pelo Instituto de Desenvolvimento Cultural (IDC), em 2009.
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USO DE ENTORPECENTES E OS CRITÉRIOS (?) DISTINTIVOS

ENTRE OS DELITOS PREVISTOS NO ARTS. 28 E 33 DA LEI 11.343/06 À LUZ

DA ATUAL JURISPRUDÊNCIA: PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA E

OFENSIVIDADE.

(USE OF DRUGS AND THE CRITERIA (?) BETWEEN THE OFFENCES

PROVIDED FOR IN THE DISTINCTIVE ARTS. 28 AND 33 OF THE LAW

11,343/06 IN THE LIGHT OF CURRENT CASE LAW: THE PRINCIPLE OF

INSIGNIFICANCE AND OFFENSIVENESS.)

Gustavo Tozzi Coelho1 RESUMO: O presente artigo tem como escopo principal demonstrar as discrepâncias dentre a

jurisprudência quanto aos critérios distintivos entre usuário e traficante de entorpecentes dispostos na

Lei de Tóxicos. Tendo em vista que tais critérios não são auferidos minuciosamente pela jurisprudência,

o presente artigo busca elencar algumas incongruências identificadas nos julgados de nossas Cortes.

Desta forma, abordaremos as circunstâncias dispostas no §2º do art. 28 da Lei nº 11.343/06,

demonstrando que tais critérios são insuficientes para a correta apuração da classificação dos delitos: se

de porte para consumo pessoal ou tráfico. Igualmente, trabalharemos com a possibilidade de aplicação

do Princípio da Insignificância em delitos de tóxicos por nossas Cortes, que atualmente resistem quanto

à sua incidência. Ao final, concluiremos cotejando as posições jurisprudenciais aqui reproduzidas com

os princípios da dignidade da pessoa humana e da ofensividade: nullum poena, nullum crimen sine iuria,

Palavras-chave: Drogas; Critérios; Princípios da Insignificância e Ofensividade.

ABSTRACT: This article has as main scope demonstrate the discrepancies among the

jurisprudence regarding the distinctive criteria between user and trafficker of narcotics placed in Toxic

law. Considering that such criteria are not earned thoroughly by the jurisprudence, this article if provided

to point out some incongruities found in the judged of our Courts. In this way, we will discuss the

circumstances provided for in paragraph 2 of art. 28 of law nº 11,343/06, demonstrating that such criteria

are insufficient for the correct determination of the classification of offences: If, for personal

consumption or trafficking. Also, we will work with the possibility of applying the principle of

insignificance in toxic torts by our courts, which currently are obstacles in its incidence. However, the

Supreme Court has been admitting such a possibility. In the end, we will conclude checking the

jurisprudence positions here reproduced with the principles of human dignity and of offensiveness

(nullum crimen sine iuria).

Keywords: drugs; Criteria; Principles of insignificance and Offensiveness.

SUMÁRIO: 1. APRESENTAÇÃO HISTÓRICA; 2. A DISCUSSÃO

JURISPRUDENCIAL: 2.1 OS CRITÉRIOS (?) UTILIZADOS PARA DISTINGUIR O

PORTE PARA CONSUMO PRÓPRIO E O TRÁFICO; 2.2 DA (IN)APLICAÇÃO DO

PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA EM DELITOS DA LEI DE TÓXICOS; 3.

CONCLUSÃO; BIBLIOGRAFIA.

1 Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em 2008..

Juiz Leigo. Advogado. Extensão em Direito Penal e Processual Penal pelo Instituto de Desenvolvimento

Cultural (IDC), em 2009.

2

INTRODUÇÃO

A questão relativa ao uso de entorpecentes sempre foi questão de polêmica, tanto em

nossa sociedade como no meio jurídico. Muitas vezes, o assunto foi tratado com descaso, outras

com rigor, mas a maioria das vezes o que realmente acontece é uma distorção da realidade dos

fatos, talvez por não quererem enxergar esta realidade que está tão próxima de seus olhos, ou

talvez por verdadeiro despreparo.

Desde a confusão entre usuário e dependente químico que existia anteriormente

(somente hoje, após a edição da Nova Lei de Tóxicos (Lei 11.343/06) é que podemos perceber

uma distinção) até a introdução dos “discursos de pânico” por parte dos meios de comunicação

em meados da década de setenta, é possível perceber uma política criminal anti-drogas no Brasil

extremamente repressora, fundamentada no discurso jurídico-político, onde o traficante é

apontado como inimigo de Estado a ser eliminado pelas agências punitivas.

Pois bem.

Passados quase sete anos da nova legislação e o temor da doutrina tornou-se realidade:

a dificuldade na classificação dos fatos pelos órgãos policiais e judiciais - se porte para consumo

próprio ou se tráfico - conforme se percebe pelos inúmeros julgados de nossas cortes que aqui

nos propomos a apontar.

O que pretendemos trabalhar no presente artigo é justamente a ausência de qualquer

parâmetro distintivo entre os delitos de porte e tráfico (arts. 28 e 33, L. 11.343/06); e a atual

aceitação – ainda que minoritária na jurisprudência - da aplicação do princípio da

insignificância em delitos desta espécie. Ainda, a parte final do §2º do art. 28 da Lei de Tóxicos

dispõe critérios (um tanto quanto questionáveis) para apuração pelo magistrado acerca da

destinação do entorpecente, se para uso pessoal ou traficância:

2§º - Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz

atenderá à natureza e a quantidade da substância apreendida, ao local e às

condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e

pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. (grifo nosso).

São essas incongruências trazidas pela Lei 11.343/06 que continuam distorcendo a

realidade fática existente entre o usuário e o traficante, ainda não supridas por nossa

jurisprudência. Para tanto, remetemos o leitor ao capítulo específico, não antes de

contextualizar a problemática na história.

3

1. APRESENTAÇÃO HISTÓRICA

O uso, o porte e o comércio de substâncias entorpecentes foram criminalizados pela

primeira vez quando foram instituídas as Ordenações Filipinas, que em seu Livro V, Título

LXXXIX, trazia a tipificação da conduta2.

O Código Penal Brasileiro do Império, de 1830, foi omisso quanto à matéria, não se

encontrando nele nenhuma tipificação que se refira a entorpecentes.

Veio então o Código de 1890, regulamentando os crimes contra a saúde pública, e no

art. 159, o tipo penal3. Várias circunstâncias favoreceram, mas talvez o tratamento penal de

forma indulgente estabelecido no Código de 1890 tenha sido fundamental para com que

membros da emergente burguesia de Rio de Janeiro e São Paulo formassem, no início do século

XX, clubes de toxicômanos, assim como em Paris. O consumo de ópio e haxixe, no meio

intelectual, aumentava cada vez mais, e havia necessidade de uma nova regulamentação sobre

o uso e comércio de substâncias entorpecentes.

Ocorre que o fato de as incriminações terem se estendido, a substituição do termo

“substâncias venenosas” por “substâncias entorpecentes”, a previsão de penas carcerárias e as

determinações formais de venda e subministração ao departamento Nacional de Saúde,

2 Nenhuma pessoa tenha em sua caza para vender, rosalgar branco, nem vermelho, nem amarello, nem

solimão, nem agua delle, nem escamonéa, nem opio, salvo se fôr Boticario examinado, e que tenha licença

para ter Botica, e usar do Officio.

E qualquer outra pessoa que tiver em sua caza alguma das ditas cousas para vender, perca toda sua fazenda,

ametade para nossa Câmera, e a outra para quem o accusar, e seja degradado para África até a nossa mercê.

1. E os Boticarios não vendão, nem despendão, se não com os Officiaes, que por razão de seus Officios as

hão mistér, sendo porem Officiaes conhecidos per elles, e taes, de que se presuma que as não darão à outras

pessoas.

E os ditos Officiaes as não darão, nem venderão a outrem, porque dando-as, e seguindo-se disso algum

dano, haverão a pena que de Direito seja, segundo o dano fôr.

2. E os Boticários poderão metter em suas mezinhas os ditos materiais, segundo pelos Médicos, Cirurgiões,

Escriptores for mandada.

E fazendo o contrario, ou venddedo-os a outras pessoas, que não forem Officiaes conhecidos, pola primeira

vez paguem cincoenta cruzados, metade para quem accusar, e descobrir.

E pola segunda haverão mais qualquer pena, que houvermos por bem. In: PIERANGELI, José Henrique.

Códigos penais do Brasil. Evolução histórica. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. 3 Expor à venda, ou ministrar, substancias venenosas, sem legitima autorização e sem as formalidades

prescriptas nos regulamentos sanitários:

Pena – de multa de 200$000 a 500$000. In: PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais do Brasil.

Evolução histórica. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 350.

4

passariam a formar um novo modelo repressivo, tendo seus fundamentos nos Decretos 780-36

e 2.953/38 para marcar seu início na luta contra as drogas no Brasil.

Com o Decreto-Lei n.º 891 de 25 de novembro de 1938, que fora inspirado na

Convenção de Genebra, se definiram as substâncias consideradas tóxicas, e foram estabelecidas

normas que regulassem sua produção, comercialização e consumo, prevendo, a internação e

inclusive a interdição civil dos toxicômanos. O Decreto-Lei n.º 891 mantém praticamente o

mesmo conteúdo do disposto no artigo 159 da Consolidação das Leis Penais de 1932, mas inova

em alguns aspectos4.

Diante do cenário legislativo sobre entorpecentes no Brasil até o fim da década de 30,

Salo de Carvalho comenta:

[...] é lícito afirmar que, embora sejam encontrados resquícios de

criminalização das drogas ao longo da história legislativa brasileira, somente

a partir da década de 40 é que se pode verificar o surgimento de política

proibicionista sistematizada. Diferentemente da criminalização esparsa, a qual

apenas indica preocupação com determinada situação, nota-se que as políticas

de controle (das drogas) são estruturadas com a criação de sistemas punitivos

autônomos que apresentam relativa coerência discursiva, isto é, modelos

criados objetivando demandas específicas e com processos de seleção

(criminalização primária e incidência dos aparatos repressivos (criminalização

secundária) regulados com independência de outros tipos de delito.5

Após a homologação da Convenção Única Sobre Entorpecentes (onde foram elencadas

quatro longas listas de drogas e seus preparados), a nossa legislação penal incorreu em mais

algumas alterações. Assim, a série de entorpecentes listados e previstos no Decreto-Lei n.º 891

de 25 de novembro 1938, acabou por sofrer uma expressiva mudança. Porém, as alterações não

ficam por aí. A Convenção Única Sobre Entorpecentes foi homologada pelo Decreto n.º 54.126,

sendo então consagrada a reincidência internacional, onde as condenações que ocorressem no

estrangeiro, passariam a ser consideradas para os efeitos da reincidência.

4 Art. 33 - Facilitar, instigar por atos ou por palavras, a aquisição, uso, emprego ou aplicação de

qualquer substância entorpecente, ou, sem as formalidades prescritas nesta lei, vender, ministrar,

dar, deter, guardar, transportar, enviar, trocar, sonegar, CONSUMIR substâncias compreendidas

no Art.1 ou plantar, cultivar, colher as plantas mencionadas no Art.2, ou de qualquer modo

proporcionar a aquisição, uso ou aplicação dessas substâncias .

Penas - um a cinco anos de prisão celular e multa de 1:000$000 a 5:000$000. [Grifos nossos]. 5 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e Dogmático). 4.

ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 12-13.

5

O disposto no art. 281 do Código Penal de 19406, decorrente do princípio da

proporcionalidade7, estabelecia a punição exclusiva do comerciante de drogas, uma vez que o

entendimento do Supremo Tribunal Federal era o da abrangência dos consumidores.

A descriminalização (caso de descriminalização judicial) do uso, no entanto, causava

preocupação entre os entes repressores.

Então, mesmo contrariando a orientação internacional e rompendo com o discurso da

diferenciação (entre traficante/usuário), veio o Decreto-Lei para modificar o art. 281 do Código

Penal, agora criminalizando o usuário com a mesma pena aplicável ao traficante8. O Decreto-

Lei 385/68 teve vigência por três anos.

Após, a Lei n.º 5.726/71 marca definitivamente a descodificação da matéria, ao

adequar o sistema repressivo brasileiro de drogas às orientações internacionais. A Lei n.º

5.726/71 serviu para redefinir as hipóteses de criminalização e modificar o rito processual,

mostrando certa inovação ao reprimir os entorpecentes9. Porém, pode-se afirmar que o fato de não

considerar mais o dependente como um criminoso estaria mascarado pelo lado cruel da Lei, que

continuava a equiparar o usuário ao traficante, cabendo-lhe pena restritiva de liberdade de 01 a 06

anos.

Salo de Carvalho leciona que não se percebem grandes diferenças entre as figuras

típicas encontradas nos estatutos precedentes, notadamente o texto do art. 281 do Código Penal

com a redação fornecida pela Lei 5.726/71, entendendo que a distinção que se vislumbra residia

6 6 Importar ou exportar, vender ou expor à venda,, fornecer, ainda que a titulo gratuito, transportar, trazer

consigo, ter em depósito, guardar, ministrar ou de, qualquer maneira, entregar a consumo substância

entorpecente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa, de dois a dez contos de réis. 7 Ibidem, p. 17. 8 Foi incluído um novo parágrafo que previa:

Art. 281. Nas mesmas penas quem ilegalmente: traz consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou

que determine dependência física ou psíquica. 9 Importar ou exportar, preparar, produzir, vender, expor a venda ou oferecer, fornecer, ainda que

gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar ou ministrar, ou entregar de qualquer

forma ao consumo substância entorpecente ou que determine de pendência

[...]

Nas mesmas penas incorre: quem traz consigo, para uso próprio, substância entorpecente, ou que determine

dependência física ou psíquica.

6

na graduação das penas, cujo efeito reflexo foi a definição do modelo político-criminal

configurador do estereótipo do narcotraficante10.

Fica claro, portanto, que o discurso médico-jurídico (usuário como dependente e traficante

como delinquente) tão utilizado na década de 60 se manteve.

Advém, então, a Lei n.º 6.368/76, instaurando-se um modelo inédito de controle,

conforme as orientações político-criminais dos países centrais, fundadas nos tratados e

convenções internacionais11.

O projeto repressivo norte-americano refletiu diretamente nas políticas de segurança

pública de praticamente todos os países da América latina. Percebe-se na Lei 5.726/71 o reflexo

desta assertiva; na Lei 6.368/76 entra em cena o discurso jurídico-político para servir de modelo

oficial do repressivismo brasileiro12.

Neste contexto, vale o registro sobre o fenômeno repressivo na América Latina trazido

pela socióloga venezuelana, Rosa Del Olmo:

[...] em 1970 havia 68 mil 894 viciados registrados, enquanto em 1971 a cifra

aumento para 490 mil 912 heroínomanos. Evidentemente o consumo se

estendia a todo tipo de droga, não apenas de origem vegetal (heroína ou

maconha), mas também às drogas sintéticas produzidas pelos grandes

laboratórios.

As primeiras medidas internas da época dentro dos Estados Unidos tinham a

ver com o discurso jurídico, mediante a criação de uma série de leis severas,

como por exemplo o Comprehensive Drug Abuse Prevention and Control Act,

o Controlled Substances Act, o Racketeer Influenced and Corrupt

Organization Statue. Ao mesmo tempo, se criaria toda uma série de escritórios

federais até culminar com o surgimento, em 1973, da Drug Enforcement

Agency, poteriormente Drug Enforcement Administration ou DEA, ligada ao

Departamento de Justiça, que fundia vários escritórios federais criados

anteriormente para converter-se no organismo responsável pela coordenação

e implementação das funções de informação e investigação relacionadas com

a repressão à drogas ilícitas. Assim disse Nixon ao referir-se a ela: ‘ A

10 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e Dogmático). 4.

ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 21. 11 Durante os anos 60, a ratificação por mais de cem países da Convenção Única sobre Estupefacientes,

marcou o êxito da chamada estratégia de globalização do controle penal sobre drogas ilícitas. A

consolidação ocorreu com a aprovação do Convênio sobre Substâncias Psicotrópicas, (ocorrido em Viena,

em 1971). No entanto, conforme as agências centrais, especialmente as norte- americanas, mesmo com o

esforço da política repressiva externa, o prolema das drogas só se agravava, pois o consumo de drogas como

a maconha e a heroína aumentava cada vez entre a classe média-alta, e não se conseguia reverter os índices

do comercio doméstico. 12 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e Dogmático). 4.

ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 22.

7

consolidação de todas as forças antidrogas sob um comando de todas as forças

antidrogas sob um comando único unificado.13

Embrião da Lei 6.368/7614, o relatório da Resolução 116/74 demonstra a sintonia

existente ao modelo transnacionalizado na preservação do discurso médico-jurídico e na

introdução normativa do discurso jurídico político.

Portanto, quanto ao aspecto político-criminal, a Lei 6.368/76 preservou o discurso

médico-jurídico, com a distinção tradicional entre o consumidor (tratando-se de dependente

e/ou usuário) e traficante, na afirmação dos estereótipos consumidor-doente e traficante-

delinqüente. Assim, com o discurso jurídico-político sendo introduzido gradualmente na

segurança pública, o traficante tornou-se considerado inimigo interno, justificando, desta

maneira, as exacerbações de pena no que tange à quantidade e forma de execução, que

ocorreram a partir do final da década de 70.

A Lei 11.343/06 foi fundada com a mesma ideologia da antiga Lei 6.368/76, e tinha

como um dos objetivos principais estabelecer importantes diferenças entre seus institutos

criminais. Ao passo que na L. 6.368/06 o discurso jurídico-político tomava a frente do médico-

jurídico por pregar exatamente a “eliminação” do traficante, sendo, portanto, intensificada a

repressão ao comércio ilegal e amenizada a resposta penal aos usuários e dependentes químicos

(situação mais perceptível após a redação da Lei dos Juizados Especiais, Lei n.º 9.099/95), a

Nova Lei de Tóxicos – em um primeiro momento - ressaltava a importância da distinção do

tratamento penal entre usuário e traficante, concebendo dois estatutos autônomos, com sanções

completamente diferentes. O traficante é tratado com alto nível de repressão, com o aumento

na pena privativa de liberdade em relação à lei anterior (pena pode ser fixada entre 05 e 15

anos); quanto ao usuário, cabe aplicação de penas - consideradas pela doutrina15 de medidas

socioeducativas, como advertência sobre o uso da droga e comparecimento a curso educativo.

Cumpre lembrar, que quando a nova legislação entrou em vigor, surgiram inúmeras

teses doutrinárias acerca da descriminalização do porte para consumo, haja vista não caber mais

13 OLMO, Rosa Del. A face oculta da droga. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 42-43. 14 O art. 16 da Lei 6.368, que regulava o porte e o consumo trazia o seguinte texto:

Art 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso próprio, substância entorpecente ou que determine

dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - Detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de (vinte) a 50 (cinqüenta) dias-multa. 15 Vide Gilberto Thums.

8

pena privativa de liberdade ao usuário; outros sustentavam se tratar de infração sui generis16,

fundamentando sua posição no art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal17, entendendo que

o fato criminalizado saiu da esfera penal, pois cabíveis apenas sanções de caráter

administrativo.

No calor da divergência, começo de 2007, a Primeira Turma do Supremo Tribunal

Federal se posicionou sobre o assunto quando do julgamento do RE-QO 430105 / RJ18, decidindo

que não se tratava de abolitio criminis, mas de despenalização, pois retirada a pena privativa de

liberdade como sanção.

Mesmo diante do posicionamento do Pretório Excelso, não houve uniformidade na

doutrina, permanecendo até hoje inúmeras teses e críticas sobre a natureza jurídica do tipo

16 GOMES, Luiz Flávio. Nova lei de drogas: descriminalização da posse de drogas para consumo pessoal.

Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1236, 19 nov. 2006. Disponível em:

<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9180>. Acesso em: 14 abr. 2008. 17 Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente,

quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração a que a lei comina,

isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente 18 RE-QO 430105 / RJ - RIO DE JANEIRO QUESTÃO DE ORDEM NO RECURSO

EXTRAORDINÁRIO Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE Julgamento: 13/02/2007 Órgão

Julgador: Primeira Turma.

EMENTA:I. Posse de droga para consumo pessoal: (art. 28 da L. 11.343/06 - nova lei de drogas): natureza

jurídica de crime. 1. O art. 1º da LICP - que se limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando

se está diante de um crime ou de uma contravenção - não obsta a que lei ordinária superveniente adote

outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça para determinado crime - como o fez o art. 28 da L.

11.343/06 - pena diversa da privação ou restrição da liberdade, a qual constitui somente uma das opções

constitucionais passíveis de adoção pela lei incriminadora (CF/88, art. 5º, XLVI e XLVII). 2. Não se pode,

na interpretação da L. 11.343/06, partir de um pressuposto desapreço do legislador pelo "rigor técnico", que

o teria levado inadvertidamente a incluir as infrações relativas ao usuário de drogas em um capítulo

denominado "Dos Crimes e das Penas", só a ele referentes. (L. 11.343/06, Título III, Capítulo III, arts.

27/30). 3. Ao uso da expressão "reincidência", também não se pode emprestar um sentido "popular",

especialmente porque, em linha de princípio, somente disposição expressa em contrário na L. 11.343/06

afastaria a regra geral do C. Penal (C.Penal, art. 12). 4. Soma-se a tudo a previsão, como regra geral, ao

processo de infrações atribuídas ao usuário de drogas, do rito estabelecido para os crimes de menor

potencial ofensivo, possibilitando até mesmo a proposta de aplicação imediata da pena de que trata

o art. 76 da L. 9.099/95 (art. 48, §§ 1º e 5º), bem como a disciplina da prescrição segundo as regras do

art. 107 e seguintes do C. Penal (L. 11.343, art. 30). 6. Ocorrência, pois, de "despenalização",

entendida como exclusão, para o tipo, das penas privativas de liberdade. 7. Questão de ordem

resolvida no sentido de que a L. 11.343/06 não implicou abolitio criminis (C.Penal, art. 107). II.

Prescrição: consumação, à vista do art. 30 da L. 11.343/06, pelo decurso de mais de 2 anos dos fatos, sem

qualquer causa interruptiva. III. Recurso extraordinário julgado prejudicado.

Decisão : A Turma, resolvendo questão de ordem, julgou prejudicado o recurso extraordinário. Unânime.

Não participou, justificadamente, deste julgamento, a Ministra Cármen Lúcia. 1ª.Turma, 13.02.2007.

9

elencado no art. 28 da Lei de Tóxicos, bem como as maneiras de distinguir o usuário do

traficante.

À época da promulgação da atual legislação antitóxica, já existia um temor por parte

de doutrinadores19, que, para combater a despenalização e impunidade tão difundida pela mídia

de massa, ocorressem exageros por parte dos órgãos policiais e judiciais na classificação dos

tipos para enquadrá-los erroneamente como fatos incursos no art. 33 da Lei 11.34320.

2. A DISCUSSÃO JURISPRUDENCIAL:

2.1 OS CRITÉRIOS (?) UTILIZADOS PARA DISTINGUIR O PORTE PARA

CONSUMO PRÓPRIO E O TRÁFICO.

19 Vide Gilberto Thums, Alexandre Bizzoto e Samuel Miranda Arruda. 20 Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal,

drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às

seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer,

ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer

drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou

regulamentar:

Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos)

dias-multa.

§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:

I - importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em

depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo

com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à

preparação de drogas;

II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou

regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas;

III - utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou

vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em

desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas.

§ 2o Induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga: (Vide ADI 4274)

Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa de 100 (cem) a 300 (trezentos) dias-multa.

§ 3o Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a

consumirem:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.500 (mil e quinhentos)

dias-multa, sem prejuízo das penas previstas no art. 28.

§ 4o Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a

dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons

antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa. (Vide Resolução

nº 5, de 2012)

10

Como se verifica pela leitura do §2º, art. 28º, Lei n.º 11.343/06, mais uma vez o

legislador não observou princípios básicos do Direito Penal de um Estado Democrático de

Direito, onde o agente deve ser julgado pelos fatos e não pelo que é.

Reflexo imediato, restou à jurisprudência estabelecer – ou, ao menos, tentou – alguns

parâmetros de valoração acerca da destinação do entorpecente (uso ou traficância) que não se

mostram harmônicos e, às vezes, desamparados de qualquer critério lógico e coerente.

Assim, para corroborar o que estamos nos propondo a apresentar, citam-se os julgados

de nosso Egrégio Tribunal de Justiça quanto às hipóteses de desclassificação (ou não) dos

delitos de porte e tráfico e os critérios utilizados: Apelação Crime Nº 7005433950221; Apelação

21 APELAÇÃO-CRIME. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. INSUFICIÊNCIA DE PROVAS

DA CIRCULAÇÃO DA DROGA. DESCLASSIFICAÇÃO PARA USO. PRESCRIÇÃO.

MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. Tráfico. O contexto probatório não evidencia a ocorrência da

traficância. O réu manteve hígida sua versão desde a fase investigativa aduzindo que a droga era para

consumo próprio. Sua companheira confirmou que ele era usuário. Além disso, o policial ouvido apresentou

depoimento judicial com detalhes distintos daqueles fornecidos na fase investigativa. Somente restou

comprovado que o apelado estava na posse de 81,84 gramas de maconha na ocasião dos fatos. Não

comprovada a circulação da droga é caso de manutenção da sentença que extinguiu a punibilidade pela

prescrição da pretensão punitiva estatal. APELAÇÃO IMPROVIDA. SENTENÇA MANTIDA. (Apelação

Crime Nº 70054339502, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Diogenes Vicente

Hassan Ribeiro, Julgado em 13/06/2013)

11

Crime Nº 7005452001022; Apelação Crime Nº 7004301472923; Apelação Crime Nº

7005132316024.

22 APELAÇÃO CRIME. TRÁFICO DE DROGAS. ART. 33 DA LEI N.º 11.343/06.

DESCLASSIFICAÇÃO. ART. 28. PORTE PARA USO PRÓPRIO. A quantidade da droga apreendida

(08 pedras de crack, pesando 1,30g), ainda que possa ser destinada ao tráfico, também é compatível com

o porte para consumo pessoal. O monitoramento e a abordagem casual, aliados às circunstâncias do

flagrante do delito, que não evidenciam o comércio de drogas, bem como quantidade da droga, não são

indicativos suficientes da traficância. Inexistente prova segura do tráfico, opera-se a desclassificação. O

porte de substância entorpecente para uso pessoal, mesmo com a edição da nova Lei de Drogas, manteve a

natureza da conduta ilícita, apenas, agora, considerada como de menor potencial ofensivo. O Plenário do

STF, por ocasião do julgamento de Questão de Ordem suscitada nos autos do RE 430.105 QO/RJ, rejeitou

as teses de abolitio criminis e infração penal sui generis para o delito previsto no art. 28 da Lei 11.343/06,

afirmando a natureza de crime da conduta perpetrada pelo usuário de drogas, não obstante a

descarcerização. Embora comprovada a posse, esta Terceira Câmara Criminal sufragou o entendimento de

que a solução é a absolvição (Súmula n.º 453 do STF), pois não há emendatio libelli na desclassificação do

delito de tráfico para posse de drogas e, sim, mutatio libelli. Ressalvado o entendimento do Relator. APELO

DEFENSIVO PROVIDO. (Apelação Crime Nº 70054520010, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de

Justiça do RS, Relator: Jayme Weingartner Neto, Julgado em 27/06/2013) 23 Ementa: APELAÇÃO DEFENSIVA. TRÁFICO DE DROGAS. - Há prova da existência do fato. - O

réu, ouvido em Juízo, negou a prática do delito. Asseverou, em suma, que era usuário de drogas ("Juíza:

Você era usuário de drogas? Interrogado: Usava nos finais de semana assim, mas não era sempre."). Negou,

contudo, que o entorpecente apreendido lhe pertencia, sendo que não sabia da existência da balança. - Elvis,

ouvido na polícia e em Juízo, confirmou que consumia cocaína junto com o réu, na residência deste.

Assegurou, contudo, não adquiria a droga do acusado. - Na fase inquisitorial foram ouvidas várias

testemunhas, entre eles usuários e ex-viciados que apontaram o ora recorrente como traficante. - A

testemunha Ivan confirmou, em juízo, suas declarações. É verdade, também, que as testemunhas Luciana e

Gustavo, conforme aponta a combativa defesa, bem assim Eli, em juízo, retrataram-se. - Temos que o édito

condenatório não merece censura. Na espécie, não há dúvida que r. sentença, da lavra da digna Magistrada,

Dra. Lilian Raquel Bozza Pianezzola, que concluiu pela condenação do ora apelante, tem base nos

elementos da prova colhida, sendo que ao reexame do conjunto probatório não chegamos a conclusão

diversa. Com efeito, o édito condenatório deu valoração adequada a fatores (circunstâncias) que mereciam

ponderação, apreciando na justa medida a prova colhida, chegando a acertada conclusão. Os argumentos

defensivos não têm força para alterar a decisão combatida. -Anotamos, então. A eficácia probatória do

testemunho do policial não pode ser desconsiderada. Precedentes dos Tribunais Superiores. - Quanto a

retratação do depoimento pela testemunha, temos lição do insigne processualista Eduardo Espínola Filho.

Na espécie, as declarações prestadas, em juízo, pelas testemunhas que se retrataram não demonstraram que

as afirmações anteriores foram fantasistas, principalmente frente a apreensão do cartão magnético da Caixa,

pertencente a G.S., na residência do ora apelante. - Devemos lembrar que "A decisão judicial", conforme

deixou assentado o eminente Ministro Felix Fischer, quando do julgamento, em 12/11/2002, do RESP

282.728/GO, pela egrégia 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, "não pode escapar da prova colhida e

admitida e nem ferir o senso comum.". - No que tange a configuração do delito (tráfico), não podemos

olvidar que as Turmas (5ª e 6ª) componentes da 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça já haviam firmado

orientação no sentido de que para a consumação do delito de tráfico de entorpecentes bastava à prática de

qualquer um dos verbos previstos no art. 12 da Lei nº 6.368/76. Para adequação típica não se exigia qualquer

elemento subjetivo adicional. O entendimento jurisprudencial, deve ser lembrado, continua atual, pois "Na

nova Lei de Tóxicos (Lei nº 11.343/06) as exigências para a tipificação do delito de tráfico são as mesmas

da Lei nº 6.368/76" (passagem da ementa do REsp 846481/MG, Relator Ministro FELIX FISCHER). -

Além disso, na espécie, diferentemente do alegado pela defesa (pequena quantidade de droga), a quantidade

da substância entorpecente apreendida, considerando sua espécie, foi expressiva (6 gramas) - poderiam ser

confeccionadas, no mínimo, 120 doses, podendo alcançar a feitura de 240 doses. - e também está a indicar

a configuração do injusto previsto no artigo 33, caput, da Lei n.º 11. 343/06. Precedente da Corte, do

12

Superior Tribunal de Justiça e magistério do perito Marcos Passagli. - O pedido de desclassificação, desta

forma, não tem passagem. Para evitar futura alegação de omissão do julgado consigno que Superior

Tribunal de Justiça já deixou assentado que " O juiz não está obrigado a apreciar as teses da defesa que

restam logicamente excluídas pelas razões de decidir." (passagem da ementa do HC 27347/RJ, Rel.

Ministro HAMILTON CARVALHIDO, SEXTA TURMA, julgado em 16/12/2004, DJ 01/08/2005, p.

560). - Cumpre repisar que o tráfico ilícito de entorpecente resta configurado com a prática de qualquer das

condutas descritas na norma incriminadora, entre elas a simples guarda, posse ou depósito de substância

entorpecente, tratando-se, assim, de tipo misto alternativo ou de ação múltipla ou de conteúdo variado

[Edilson Mougenot Bonfim e Fernando Capez, in Direito Penal, Parte Geral, Editora Saraiva, 2004, pág.

459/460), relativamente a "CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES", ensinam: "Crime de ação múltipla ou

conteúdo variado: É aquele em que o tipo penal descreve várias modalidades de realização do crime (tráfico

de drogas - art. 12 da Lei n. 6.368/76; instigação, induzimento ou auxílio ao suicídio - art. 122 etc.)." ] -

Além disso, trata-se de tipo congruente ou congruente simétrico, esgontando-se o seu tipo subjetivo no dolo

genérico. Precedentes. - Anotamos, então, que cumpria a defesa o ônus da prova da ocorrência do elemento

subjetivo alegado em favor do recorrente (posse, guarda ou depósito para exclusivo uso próprio). Aplica-

se a espécie, mutatis mutandis, o seguinte precedente do Superior Tribunal de Justiça: REsp 704.188/SC,

Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 11/04/2006, DJ 08/05/2006, p. 273. -

Importante salientar, por fim, que a alegada situação de viciado ou usuário, conforme reiteradamente

se tem decidido, não afasta a traficância. Precedentes. - Por fim, tratando-se de delito de tráfico de drogas

- tendo em consideração, ainda, a quantidade de entorpecente apreendido -, inviável a incidência do

princípio da insignificância. Observe-se: HC 122.682/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA

TURMA, julgado em 18/11/2010, DJe 06/12/2010; HC 156543/RJ, Ministro OG FERNANDES, SEXTA

TURMA, j. em 25/10/2011; e, HC 104158/SP, Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA

TURMA, j. em 27/09/2011. APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Crime Nº 70043014729, Segunda

Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Aurélio de Oliveira Canosa, Julgado em

27/06/2013)

“No dia 19 de fevereiro de 2010, por volta das 13 horas, na Rua Albino Xavier Teixeira, nº 223, Bairro São

Paulo, em Tapejara-RS, o denunciado tinha em depósito, drogas, para fins de venda, uma pedra de crack,

pesando seis gramas, conforme auto de fls., substância que causa dependência física e psíquica, sem

autorização e em desacordo com determinação legal e regulamentar.” 24 APELAÇÃO. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. DESCLASSIFICAÇÃO PARA USO

COMPARTILHADO. Ao afastar a hipótese de tráfico de entorpecentes e dar ao fato definição jurídica

diversa, de posse para uso compartilhado, reconheceu o magistrado singular circunstância elementar do

tipo penal que não constou na denúncia e, por isso, não foi objeto do contraditório judicial. Hipótese, pois,

de mutatio libelli, e não de emendatio libelli, que como tal depende de prévio aditamento da acusação e da

abertura de prazo para o exercício da ampla defesa. Impossibilidade de desclassificação de tráfico para

posse, seja para consumo pessoal, seja para consumo compartilhado, sem a observância do procedimento

disposto no artigo 384 do Código de Processo Penal. Precedentes dessa Câmara Criminal. Vedação da

mutatio libelli em segunda instância, nos termos da súmula 453 do STF. Juízo desclassificatório reformado.

Absolvição decretada. RECURSO PROVIDO. (Apelação Crime Nº 70051323160, Terceira Câmara

Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nereu José Giacomolli, Julgado em 13/06/2013)

13

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, citam-se: RHC 35.519/MG25; AgRg no

REsp 1007409/PR26 e REsp 1133943/MG27.

25 RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. TESE DE QUE O

RECORRENTE SERIA APENAS USUÁRIO DE DROGAS. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-

PROBATÓRIA. PRISÃO PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. REITERAÇÃO

CRIMINOSA. MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS DA PRISÃO. DESCABIMENTO.

CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. RECURSO DESPROVIDO.

1. Hipótese em que o Recorrente foi preso em flagrante, no dia 27 de outubro de 2012 - na posse de três

porções de cocaína, uma de maconha e de pedras de crack, além da quantia de R$ 195,00 (cento e noventa

e cinco reais) - e denunciado como incurso no delito previsto no art. 33 da Lei 11.343/06.

2. Não é cabível, na estreita via do writ, proceder ao aprofundado reexame de fatos e provas para apreciar

o pleito de desclassificação da conduta de tráfico para a de uso de entorpecentes.

3. O decreto de prisão preventiva, mantido pelo acórdão recorrido, encontra-se suficientemente

fundamentado no fato de o denunciado ser conhecido por envolvimento com o comércio de drogas, tanto

que já foi preso em flagrante em outras ocasiões pelo suposto cometimento do mesmo delito, o que indica

a reiteração na prática criminosa e justifica a medida constritiva para a garantia da ordem pública, evitando,

assim, a reiteração e a continuidade da atividade ilícita.

4. Válida a fundamentação utilizada pelas instâncias ordinárias que, com expressa menção à situação

concreta, entenderam inadequadas e insuficientes para garantia da ordem pública quaisquer das medidas

cautelares alternativas à prisão, elencadas no art. 319 do Código de Processo Penal, com redação dada pela

Lei n.º 12.403/2011.

5. Recurso desprovido. (RHC 35.519/MG, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em

28/05/2013, DJe 06/06/2013) 26 AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. DESCLASSIFICAÇÃO DA CONDUTA DO

AGRAVANTE, PELO TRIBUNAL A QUO, DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES PARA USO

PRÓPRIO. AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DO DOLO ESPECÍFICO DO AGENTE.

PRECEDENTES DO STJ. POSSE DE 21 EMBALAGENS CONTENDO COCAÍNA. AGRAVO

REGIMENTAL DESPROVIDO.

1. Conforme registrado na decisão ora guerreada, entendimento há muito sedimentado nesta Corte

Superior exige, para caracterização do delito tipificado no art. 16 da Lei 6.368/76, um especial dolo do

agente, consubstanciado no uso próprio do entorpecente, mas não especificado pelo Tribunal a quo quando

da desclassificação operada.

2. Assim, ao contrário do sustentado pelo agravante, inexiste necessidade de revolvimento do conjunto

probatório - inadmissível na espécie recursal em exame -, tratando-se, tão-somente, de hipótese de mero

juízo de subsunção dos fatos narrados à figura típica prevista no delito de tráfico de entorpecentes (posse

de 21 invólucros de plástico contendo cocaína).

3. Agravo Regimental desprovido. (AgRg no REsp 1007409/PR, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES

MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 30/10/2008, DJe 01/12/2008) 27 PENAL. RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. TIPO SUBJETIVO.

ESPECIAL FIM DE AGIR (FINS DE MERCANCIA). DESNECESSIDADE.

DESCLASSIFICAÇÃO DO DELITO. IMPOSSIBILIDADE.

I - O tipo previsto no art. 33 da Lei nº 11.343/06 é congruente ou congruente simétrico, esgotando-se, o seu

tipo subjetivo, no dolo.

As figuras, v.g., de transportar, trazer consigo, guardar ou, ainda, de adquirir não exigem, para a adequação

típica, qualquer elemento subjetivo adicional tal como o fim de traficar ou comercializar.

Além do mais, para tanto, basta também atentar para a incriminação do fornecimento (Precedentes).

II - O tipo previsto no art. 28 da Lei nº 11.343/06, este sim, como delictum sui generis, apresenta a estrutura

de congruente assimétrico ou incongruente, visto que o seu tipo subjetivo, além do dolo, exige a finalidade

do exclusivo uso próprio. (Precedentes). Recurso especial provido. (REsp 1133943/MG, Rel. Ministro

FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 06/04/2010, DJe 17/05/2010)

14

Importante ressaltar, que a maioria dos casos que chegam à última instância (STF),

elegem a via do Habeas Corpus para rediscussão da matéria, o que resulta no prejuízo do pedido,

pois incabível o reexame aprofundado dos fatos.

De acordo com os precedentes supracitados, percebe-se certa incongruência em

relação aos critérios utilizados, senão vejamos: v.g. no julgado de n.º Apelação Crime Nº

70054339502, a quantidade de droga apreendida (mais de 80g de maconha) não foram

suficientes para condenação por tráfico, operando-se a desclassificação para “uso”; da mesma

forma, no julgamento da Apelação Crime Nº 70054520010, 8 pedras de crack foram

consideradas como porte para consumo próprio. Mais: em quase todos os casos que operou-se

a desclassificação de tráfico para uso, decorreu de insuficiência probatória.

Ainda, em se tratando de ônus probatório para desclassificação de tais delitos, a

matéria foi recentemente tratada quando da publicação do Informativo de Jurisprudência n.º

711 do STF.28

Em sentido contrário, na Apelação Crime Nº 70043014729, uma pedra de crack

pesando 6g foi considerada suficiente para caracterizar o tráfico, em face da potencialidade

lesiva da droga.

Já na esfera do STJ, dificilmente se opera a desclassificação das condutas, ora

condenando por tráfico o réu porque “na posse de três porções de cocaína, uma de maconha e

28 INFORMATIVO Nº 711 TÍTULO Tráfico de drogas e lei mais benéfica – 3 PROCESSO HC - 107448

ARTIGO: Em conclusão de julgamento, a 1ª Turma, por maioria, concedeu habeas corpus para determinar

a designação de audiência na qual os pacientes deverão ser advertidos sobre os efeitos do uso de

entorpecente. Na espécie, pretendia-se a desclassificação da conduta imputada, prevista no art. 12 da Lei

6.368/76 (“Importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda ou

oferecer, fornecer ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever,

ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substância entorpecente ou que determine dependência

física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”), para a

disposta no art. 33, § 3º, da Lei 11.343/2006 (“§ 3º Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro,

a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem”) — v. Informativo 626. Aduziu-se que o

acórdão impugnado teria invertido a ordem processual quanto à prova, atribuindo aos pacientes o dever de

demonstrar sua condição de usuários, o que não se coadunaria com o Direito Penal. Registrou-se que eles

não teriam o dever de demonstrar que a droga apreendida se destinaria ao consumo próprio e de amigos, e

não ao tráfico. Asseverou-se que caberia à acusação comprovar os elementos do tipo penal. Reputou-se que

ao Estado-acusador incumbiria corroborar a configuração do tráfico, que não ocorreria pela simples compra

do entorpecente. Salientou-se que o restabelecimento do enfoque revelado pelo juízo seria conducente a

afastar-se, até mesmo, a condenação à pena restritiva da liberdade. Vencido o Min. Ricardo Lewandowski,

que denegava a ordem. O Min. Dias Toffoli reajustou seu voto para conceder o writ. HC 107448/MG, rel.

orig. Min. Ricardo Lewandowski, red. p/ o acórdão Min. Marco Aurélio, 18.6.2013. (HC-107448)

15

de pedras de crack, além da quantia de R$ 195,00 (cento e noventa e cinco reais)”; ora

condenando o réu por tráfico pela posse de 21 invólucros contendo cocaína. Assim como

ocorrente no STF, grande parte dos julgados se dá em se de Habeas Corpus, o que impede a

rediscussão da matéria.

Ora, como facilmente se percebe, não há um critério específico para aferição se a droga

se destinava para o consumo próprio ou para fins de mercancia. Como acima exposto, não

parece ser a quantidade da droga o critério mais valorado: por que mais de 80g de maconha é

considerado para consumo próprio, ao passo que 6g de crack – ou mesmo uma “porção” de

maconha junto com outras drogas - conduz à condenação por tráfico? Não podemos olvidar que

os testemunhos dos policiais no momento da abordagem do agente são praticamente

determinantes para as decisões de tais demandas, o que muitas vezes acaba por prejudicar a

defesa do réu, pois dificilmente palavra dos policiais será avaliada de forma minuciosa pelo

magistrado; ao contrário, por muitas vezes acaba sendo o fator probatório decisivo no destino

do réu: condenação por tráfico.

E neste contexto que se insere a parte final do §2º do art. 28: “... às circunstâncias

sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.

Analisando tais critérios, percebe-se o porquê das decisões acima elencadas: nos casos

envolvendo condenação por tráfico (onde não ocorreu a desclassificação), a maioria – se não

todos – os réus possuíam “maus antecedentes”, além de viverem à margem da sociedade. Logo,

o que se coloca de maneira temerária é a possibilidade – ou probabilidade? – de se fazer um

juízo valorativo em face de tais circuntâncias, sociais e pessoais de agente; sem falar, claro, nos

antecedentes.

Explico: alguém dirigindo uma camionete de luxo, portando consigo 80g de maconha

(como no julgado acima colacionado), e uma carteira com várias notas de R$100,00, poderia

ser enquadrado no art. 28, alegando que a droga era para “curtir” suas férias no litoral

catarinense, e o dinheiro para gastar na viagem, além do fato de ser primário. Agora, se alguém

é flagrado perto de alguma periferia, conduzindo uma motocicleta, p.ex., e portando duas

“buchinhas” de cocaína e duas “pedrinhas” de maconha, com dinheiro trocado no bolso porque

acabou de abastecer o veículo, tendo “maus antecedentes”, será preso em flagrante e

dificilmente escapará da condenação por tráfico.

16

Mas afinal de contas, devemos ser julgados pelo que somos ou pelo que fizermos? Não

estaríamos estimulando cada vez mais o direito penal do autor?

Num breve cotejo doutrinário, BITENCOURT ressalta o fato de que um indivíduo,

mesmo que sem antecedentes criminais, possa ter sua vida repleta de deslizes, infâmias,

imoralidade, reveladores de desajuste social29. Contudo, alerta o doutrinador que também seria

possível que um indivíduo, mesmo que portador de antecedentes criminais seja autor de atos

beneméritos, ou de grande relevância social ou moral. Por entender que nem sempre os autos

do processo oferecem elementos suficientes para aferir um juízo de valor sobre a conduta social

do réu, BITENCOURT assevera que milita em favor do réu o princípio constitucional da

presunção de inocência.30

Aliás, consoante ZAFFARONI, para o direito penal do autor identificado como uma

divindade interpessoal e mecânica, o delito se mostra como uma falha em um aparato complexo,

mas que não deixa de ser uma complicada peça de outro maior, que é a sociedade31. Deste

modo:

“a falha no pequeno mecanismo acarreta um perigo para o mecanismo maior,

isto é, indica um estado de periculosidade ...é bom destacar que os argumentos

do direito penal do autor, que idolatra a divindade mecânica e impessoal, nem

sempre são coerentes com suas exposições, pois costumam ocultar posições

de sua versão contrária e revestir de ciência mecanicista valorações

meramente moralizantes... o discurso do direito penal do autor propõe tipos

operadores jurídicos de negação de sua própria condição de pessoa humana.”32 Destarte, pelos posicionamentos até aqui esposados, questiona-se: até quando, na

sociedade moderna em que vivemos, preconceitos de cunho moral/religioso – também

remanescente do “discurso do pânico” pregado pelo DEA Norte-Americano (Drug

Enforcement Administration) – influenciarão nosso legislador e a jurisprudência?

Não deveria o Direito Penal de Garantias prevalecer em nosso “Estado Democrático

de Direito”?

Sendo crime de perigo abstrato o tipo do art. 28, Lei n.º 11.343/06, desnecessitando de

efetiva lesão ao bem jurídico tutelado (saúde pública), não haveria ofensa ao princípio da

29 Idem. 30 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral 1. 19ª ed. rev, ampli e atual.

São Paulo: Saraiva, 2013., pág. 769. 31 ZAFFARONI, E. Raúl. Direito penal do autor e Direito penal do Ato, p. 132 32 ZAFFARONI, Ob.cit. pg. 133

17

ofensividade? Ainda, se o delito tipificado no art. 28 da Lei antitóxicos é de ínfimo potencial

ofensivo33, por que a jurisprudência vem resistindo em aplicar o princípio da insignificância?

É o que pretendemos expor nas próximas linhas.

2.2 DA (IN)APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA EM

DELITOS DA LEI DE TÓXICOS:

Quanto à aplicação do princípio da insignificância, também os critérios utilizados –

quando o são – não se mostram suficientes; mas a maioria da jurisprudência insiste em não

admitir a insignificância em delitos dessa espécie em face do bem jurídico tutelado (= saúde

pública), o que pretendemos abordar em cotejo com os princípios da ofensividade, legalidade

e, consequentemente, da taxatividade da lei penal.

Atualmente, tanto a doutrina quanto a jurisprudência ainda resistem na aplicação do

princípio da insignificância; ora sob o argumento de que a porte de pequena quantidade é

inerente ao tipo do art. 28, ora veem no cometimento do delito em questão dano à saúde pública,

bem jurídico tutelado, não se abrindo espaço, portanto, para a aplicação do Princípio da

Insignificância34; ou, ainda, sob a tese de que a insignificância não está na quantidade da

substância apreendida, mas na qualidade desta e na circunstância de perigo decorrente do fato35.

33 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. Vol. I. 7 ed. São Paulo,

ed. Revista dos Tribunais, p. 369. 34 Recurso Crime Nº 71003816436, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Fabio Vieira

Heerdt, Julgado em 20/08/2012. 35 Recurso Crime Nº 71004409884, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Edson Jorge

Cechet, Julgado em 08/07/2013.

18

Na jurisprudência gaúcha, para ilustrar melhor os questionamentos suscitados, citam-

se: Recurso Crime Nº 7100387311436; Recurso Crime Nº 7100289462437; Recurso Crime Nº

7100424933038; Apelação Crime Nº 7005392711739; Recurso Crime Nº 7100430816940;

36 APELAÇÃO CRIME. POSSE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. ART. 28 DA LEI 11.343/06. 1.

Não há inconstitucionalidade a ser reconhecida quanto ao delito de posse de substância entorpecente. A

disposição prevista no art. 28 da Lei n. 11.343/06 busca coibir a difusão da droga, resguardando a saúde

pública, sem afronta a qualquer das franquias constitucionais. MATERIALIDADE. RESQUÍCIO DE

DROGA QUE NÃO GERA OFENSA AO BEM JURÍDICO TUTELADO. 2. Inincidência da norma penal

quando se trata de resquício de droga (guimba, bituca, ponta ou pedaço), cuja potência não mais existe,

afastando o caráter penal do fato em relação ao portador ou ao usuário. Quantidade apreendida (0,242g),

em forma de uma ponta de cigarro artesanal, que não chega a ofender o bem jurídico tutelado, sem que isso

altere a posição da Turma no tocante ao princípio da insignificância. ABSOLVIÇÃO POR ATIPICIDADE.

APELO PROVIDO. (Recurso Crime Nº 71003873114, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais,

Relator: Edson Jorge Cechet, Julgado em 06/08/2012) 37 APELAÇÃO CRIME. ART. 28 DA LEI 11.343 DE 2006. POSSE DE DROGAS. REJEIÇÃO DE

DENÚNCIA. Decisão que rejeitou a denúncia mantida, eis que a norma penal não incide quando se trata

de resquício de droga, cuja potência não mais existe e afasta o caráter penal do fato em relação ao portador

ou usuário. A quantidade apreendida não chega a ofender o bem jurídico tutelado, sem que isso altere a

posição da Turma no tocante ao princípio da insignificância. Decisão mantida. APELO DESPROVIDO.

(Recurso Crime Nº 71002894624, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Edson Jorge

Cechet, Julgado em 13/12/2010) 38 PORTE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. ART. 28 DA LEI Nº 11.343/2006. SENTENÇA

CONDENATÓRIA REFORMADA. - O réu não foi beneficiado anteriormente pela transação penal e a

conduta social, personalidade, motivos e circunstâncias do crime não se mostram capazes de inviabilizar o

oferecimento da benesse. Entretanto, não é o caso de anular o feito, considerando o encaminhamento do

voto no sentido da absolvição, sendo, portanto, mais benéfico ao réu. - O ato de portar uma "ponta de

cigarro" ou "guimba" de maconha já parcialmente consumida, quando pequena a quantidade da substância

entorpecente remanescente, não importa em ofensa ao bem jurídico tutelado, ou seja, à saúde pública.

RECURSO PROVIDO. (Recurso Crime Nº 71004249330, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais,

Relator: Eduardo Ernesto Lucas Almada, Julgado em 10/06/2013). 39APELAÇÃO CRIME. POSSE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE PARA USO PRÓPRIO. ART. 28

DA LEI Nº 11.343/06. ABOLITIO CRIMINIS INEXISTENTE. CONDUTA TÍPICA. O porte de

substância entorpecente para uso pessoal, mesmo com a edição da nova Lei de Drogas, manteve a natureza

da conduta ilícita, apenas, agora, considerada como de menor potencial ofensivo. A posse de drogas é crime

formal e de perigo abstrato, cujo bem jurídico é a saúde pública. Presente a ofensividade presumida,

desnecessária a efetiva lesão à saúde para se consumar. O Plenário do STF, por ocasião do julgamento de

Questão de Ordem suscitada nos autos do RE 430.105 QO/RJ, rejeitou as teses de abolitio criminis e

infração penal sui generis para o delito previsto no art. 28 da Lei 11.343/06, afirmando a natureza de crime

da conduta perpetrada pelo usuário de drogas, não obstante a descarcerização. Embora comprovada a posse,

esta Terceira Câmara Criminal sufragou o entendimento de que a solução é a absolvição (Súmula n.º 453

do STF), pois não há emendatio libelli na desclassificação do delito de tráfico para posse de drogas e, sim,

mutatio libelli, que exige aditamento da denúncia e não se aplica em grau de recurso. Ressalvado o

entendimento do Relator. Absolvição mantida. RECURSO DESPROVIDO. 40 PORTE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. ART. 28 DA LEI Nº 11.343/2006. CASSADA A

DECISÃO QUE REJEITOU A DENÚNCIA. TRANSAÇÃO PENAL NÃO OFERECIDA. REQUISITOS

LEGAIS PREENCHIDOS.

Inexiste inconstitucionalidade, porquanto o art. 28 da Lei de Drogas tenha como objetivo tutelar a saúde

pública, que se reveste do caráter de direito coletivo, sobrepondo-se ao direito individual daquele que utiliza

substância entorpecente. Não se cogita quanto à descriminalização da conduta em face do advento da lei

nº. 11.343/06. Com efeito, a infração tipificada no artigo 28 da Lei de Drogas se caracteriza como de menor

19

Recurso Crime Nº 7100440988441; Recurso Crime Nº 7100136487642; Recurso Crime Nº

7100381643643.

potencial ofensivo, comportando a aplicação de penas mais brandas, dentre as quais não se insere a privação

de liberdade, o que não significa dizer tenha a conduta sido descriminalizada. Impossível desconsiderar, na

hipótese, que o seu cometimento configura dano à saúde pública, bem jurídico tutelado, não se abrindo

espaço, portanto, para a aplicação do Princípio da Insignificância. Típica se afigura, portanto, a conduta de

quem porta substância entorpecente, mesmo que ínfima a quantidade, o que se constitui em característica

do delito em questão. Hipótese em que se impunha, por preenchidos, em tese, os requisitos que autorizariam

a transação penal, ter sido oferecida a medida, já que tal se constitui em direito subjetivo do acusado e pode

ser oferecida até o final da instrução processual. RECURSO PROVIDO. (Recurso Crime Nº 71004308169,

Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Roberto Behrensdorf Gomes da Silva, Julgado em

08/07/2013) 41 POSSE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. ART. 28, CAPUT, DA LEI 11.343/06. "CRACK".

"COCAÍNA". INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA MANTIDA. A Lei n.

11.343/2006 não descriminalizou a conduta de porte de substância entorpecente para uso próprio, vindo

apenas a cominar novas modalidades de sanção para o tipo penal previsto em seu artigo 28, inexistindo

impedimento legal a que penas restritivas de direito sejam a única sanção cominada ao tipo penal. Conduta,

por sinal, lesiva, por extrapolar a esfera da discricionariedade do indivíduo em causar dano próprio para

atingir o coletivo. Princípio da insignificância afastado. A insignificância não está na quantidade da

substância apreendida, mas na qualidade desta e na circunstância de perigo decorrente do fato. Prova

produzida mediante contraditório judicial que desautoriza a condenação do recorrente. Inexistência de

elementos probatórios suficientes, que determinam a aplicação do brocardo in dubio pro reo. APELAÇÃO

DESPROVIDA. (Recurso Crime Nº 71004409884, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator:

Edson Jorge Cechet, Julgado em 08/07/2013): “Primeiramente, deve-se ter em conta a necessária correlação

entre o fato imputado e o que é reconhecido na prova e que influi, então, no ato decisório. A denúncia

refere que o denunciado trazia consigo, para consumo pessoal, uma pedra de crack e duas buchas de

cocaína, pesando respectivamente, 0,276g e 0,481g”. 42 APELAÇÃO CRIME. POSSE DE SUSBSTÂNCIA ENTORPECENTE. ART. 28 DA LEI 11.343/06.

COCAÍNA. TIPICIDADE. DESCRIMINALIZAÇÃO. INSIGNIFICÂNCIA . PENA DE

ADVERTÊNCIA. 1.Abolitio Criminis inexiste, porque, pela Lei 11.343/06, a posse de substância

entorpecente é crime com punição diferente da pena carcerária. 2.Insignificância afastada pela posse de

quantidade igual a 11g de cocaína. 3. Havendo prova da materialidade e autoria certa, a condenação é

imperativa. 4. A pena de advertência sobre os efeitos das drogas é suficiente para reprovar a conduta do

acusado com único antecedente criminal, cuja pena já cumpriu, sem reincidência. PROVIDA A

APELAÇÃO. UNÂNIME. (Recurso Crime Nº 71001364876, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais,

Relator: Nara Leonor Castro Garcia, Julgado em 13/08/2007) (Ênfase acrescentada) 43 APELAÇÃO CRIMINAL. PORTE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. ART. 28 DA LEI Nº.

11.343/2006. DEPOIMENTO POLICIAL APTO A EMBASAR JUÍZO CONDENATÓRIO.

SUFICIENCIA DE PROVAS. PENA READEQUADA DE OFÍCIO. A conduta de quem porta substância

entorpecente, mesmo que ínfima a quantidade, afigura-se típica, o que se constitui em característica do

delito em questão. Não se cogita quanto à descriminalização da conduta em face do advento da lei nº.

11.343/06. A infração tipificada no artigo 28 da Lei de Drogas se caracteriza como de menor potencial

ofensivo, comportando a aplicação de penas mais brandas, dentre as quais não se insere a privação de

liberdade, o que não significa a descriminalização da conduta. Jurisprudência majoritária que vê no

cometimento do delito em questão dano à saúde pública, bem jurídico tutelado, não se abrindo espaço,

portanto, para a aplicação do Princípio da Insignificância. O depoimento policial, aliado às demais provas

dos autos, se mostra apto a embasar a condenação, visto trata-se de pessoa idônea e que merece

credibilidade, não se verificando, ainda, que tivesse qualquer motivo para realizar uma falsa imputação

contra o réu. Pena readequada para advertência, já que todos os vetores do art. 59 são favoráveis ao acusado.

RECURSO IMPROVIDO. PENA READEQUADA DE OFÍCIO. (Recurso Crime Nº 71003816436, Turma

20

Novamente, a incoerência demonstrada nos julgados acima colacionados é gritante:

um cigarro de maconha parcialmente consumido parcialmente e pesando 0,643g não representa

perigo de lesão ou ofensa à saúde pública; contudo, uma pedra de crack e duas buchas de

cocaína, pesando respectivamente, 0,276g e 0,481g, afastam a insignificância pela “qualidade”

e “potencialidade” das mesmas.

Num silogismo infame, podemos concluir que maconha seria melhor – ou menos

lesiva – à saúde pública? Diante de tais critérios, a questão se torna complexa.

A situação se repete no STJ: HC 171655 / SP44.

Contudo, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem admitido a aplicabilidade,

aos crimes militares, do princípio da insignificância, mesmo que se trate do crime de posse de

Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Fabio Vieira Heerdt, Julgado em 20/08/2012) (Ênfase

acrescentada). 44 HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. FALTA GRAVE. POSSE DE DROGAS PARA USO

PRÓPRIO. QUANTIDADE ÍNFIMA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE.

DESCRIMINALIZAÇÃO DA CONDUTA PELA LEI N. 11.343/2006. INOCORRÊNCIA. FATO

DEFINIDO COMO CRIME DOLOSO. INTERRUPÇÃO DA CONTAGEM DO TEMPO PARA A

CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. PERDA

DOS DIAS REMIDOS. LEI N. 12.433/2011. NORMA POSTERIOR MAIS BENÉFICA. APLICAÇÃO

RETROATIVA.

1. Esta Corte possui o entendimento de que "a pequena quantidade de substância entorpecente, por ser

característica própria do tipo de posse de drogas para uso próprio (art. 28 da Lei 11.343/06), não afasta a

tipicidade da conduta" (HC n. 158.955/RS, Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Quinta Turma, DJe

30/5/2011).

2. A posse de drogas para uso próprio, no estabelecimento prisional, configura falta grave, nos termos do

art. 52 da Lei de Execução Penal, haja vista a natureza de crime da conduta do usuário de drogas,

reconhecida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento de questão de ordem suscitada nos

autos do RE n. 430.105 QO/RJ.

3. O cometimento de falta grave no curso da execução penal não implica a interrupção do cômputo do

tempo para a concessão de benefícios, incluindo a progressão de regime, sob pena de violação do princípio

da legalidade. Precedentes da Sexta Turma.

4. A prática de falta grave impõe a perda de dias remidos.

5. A partir da vigência da Lei n. 12.433, de 29/6/2011, que alterou o disposto no art. 127 da Lei de Execução

Penal, a perda de dias remidos está limitada a 1/3 do total.

6. Por se tratar de norma penal mais benéfica, deve a nova regra incidir retroativamente.

7. Cabe ao Juízo da execução, considerando "a natureza, os motivos, as circunstâncias e as consequências

do fato, bem como a pessoa do faltoso e seu tempo de prisão", consoante o disposto no art. 57 da Lei de

Execução Penal, aferir o quantum da penalidade.

8. Habeas corpus parcialmente concedido, apenas para afastar a interrupção do cômputo do tempo para a

concessão de benefícios inerentes à execução penal, ante o cometimento de falta grave pelo paciente. Ordem

concedida de ofício, a fim de determinar que o Juízo da execução proceda à nova análise da perda de dias

remidos com base na atual redação do art. 127 da Lei de Execução Penal.

HC 171655 / SP, 6ª. Turma, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 18/10/2011 (Ênfase acrescentada)

21

substância entorpecente, em quantidade ínfima, para uso próprio, ainda que cometido no

interior de Organização Militar. Entendimento que se extrai do HC 94809/RS45.

Desta forma, questiona-se: por que a diferença verificada nos julgados supracitados

quando da aplicação da insignificância, se o Direito Penal – entendido como ultima ratio - não

deveria se ocupar de condutas que produzam resultado cujo desvalor - por não importar em

45 E M E N T A: "HABEAS CORPUS" IMPETRADO POR MEMBRO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

MILITAR DE PRIMEIRA INSTÂNCIA - PORTE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE - CRIME

MILITAR (CPM, ART. 290) - PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - IDENTIFICAÇÃO DOS

VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE

POLÍTICA CRIMINAL - CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM

SEU ASPECTO MATERIAL - DELITO DE POSSE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE -

QUANTIDADE ÍNFIMA, PARA USO PRÓPRIO - DELITO PERPETRADO DENTRO DE

ORGANIZAÇÃO MILITAR - CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - DOUTRINA - PRECEDENTES - PEDIDO DEFERIDO.

"HABEAS CORPUS" IMPETRADO, ORIGINARIAMENTE, PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL

FEDERAL, POR MEMBRO DO MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR DE PRIMEIRA INSTÂNCIA.

LEGITIMIDADE ATIVA RECONHECIDA. DOUTRINA. JURISPRUDÊNCIA. - O representante do

Ministério Público Militar de primeira instância dispõe de legitimidade ativa para impetrar "habeas corpus",

originariamente, perante o Supremo Tribunal Federal, especialmente para impugnar decisões emanadas do

Superior Tribunal Militar. Precedentes. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO

FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL. - O princípio da

insignificância - que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da

intervenção mínima do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade

penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado - que considera necessária,

na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima

ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau

de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em

seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal

reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público.

O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: "DE MINIMIS, NON

CURAT PRAETOR". - O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação

da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à

própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais,

notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou

potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito penal não se deve ocupar de condutas que

produzam resultado cujo desvalor - por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes -

não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à

integridade da própria ordem social. APLICABILIDADE, AOS DELITOS MILITARES, INCLUSIVE AO

CRIME DE POSSE DE QUANTIDADE ÍNFIMA DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE, PARA USO

PRÓPRIO, MESMO NO INTERIOR DE ORGANIZAÇÃO MILITAR (CPM, ART. 290), DO PRINCÍPIO

DA INSIGNIFICÂNCIA. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem admitido a aplicabilidade,

aos crimes militares, do princípio da insignificância, mesmo que se trate do crime de posse de substância

entorpecente, em quantidade ínfima, para uso próprio, ainda que cometido no interior de Organização

Militar. Precedentes.

(HC 94809, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 12/08/2008, DJe-202

DIVULG 23-10-2008 PUBLIC 24-10-2008 EMENT VOL-02338-04 PP-00644 RTJ VOL-00209-01 PP-

00292)

22

lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo

importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social?

Justamente, tal questionamento tem sua resposta prejudicada em face da ausência de

critérios suficientes para apurar se suficientemente lesiva a conduta do usuário que porta

substância entorpecente para consumo próprio.

Na doutrina, Fábio Roberto D’Avila aduz que:

O modelo de crime como ofensa a bens jurídicos corresponde a uma

compreensão material do ilícito penal centrada na ofensa a bens

juridicamente tutelados, na qual o desvalor de resultado é, por isso,

chamado para a posição de pedra angular do ilícito-típico. O crime

encontra-se materialmente limitado às hipóteses de ofensa ao objeto da

tutela penal da norma, não havendo crime (legítimo) sem ofensa ao bem

jurídico–penal.46

Entendendo que o modelo de crime como ofensa a bens não se esgotaria em uma

compreensão material do fato criminoso, Fábio Roberto D’Avila assevera que a mais

significativa expressão do modelo de crime como ofensa a bens no espaço de discursividade

jurídico penal advém do princípio da ofensividade, e explica:

O princípio da ofensividade, límpida projeção deste modelo de crime, do

crime como ofensa a bens jurídicos, representa, antes de qualquer coisa, a

expressão político-ideológica de um estado ‘pluralista, laico, inspirado em

valores de tolerância, no qual todo o poder estadual emana do povo soberano,

que reconhece no homem o valor da dignidade e um núcleo de direitos

invioláveis’. Logo, de um Estado que não pode admitir senão um direito penal

de efetiva tutela de bens jurídicos no qual não absolutamente espaço para a

persecução de objetivos éticos, para a punição de inclinações anti-sociais ou

da mera infração ao dever.47

Ainda nessa linha, Fábio Roberto D’Avila explica ser o princípio da ofensividade um

princípio de Direito penal com um caráter garantista destacado e que surge, ao lado da

culpabilidade e da materialidade como um dos princípios fundamentais dos ordenamentos de

inspiração liberal e democrática.48

46 D’AVILA, Fábio Roberto. Ofensividade e Crimes omissivos próprios. Coimbra: Editora Coimbra, 2005,

p. 46. 47 Ibidem, p. 48. 48 D’AVILA, Fábio Roberto. Ofensividade e Crimes omissivos próprios. Coimbra: Editora Coimbra, 2005,

p. 48.

23

Pelo que já foi colocado até o momento, fica claro que de acordo com o princípio da

ofensividade (nullum crimen sine iniuria), só há crime se existir lesão ou perigo concreto de

lesão ao bem jurídico tutelado.

3. CONCLUSÃO

Pelos julgados aqui reproduzidos, tentamos demonstrar as incongruências que assolam

nossa jurisprudência, pois se utiliza de critérios descompassados na aplicação do §2º do art. 28

da Lei de Tóxicos (11.343/2006); seja para enquadrar erroneamente o usuário no delito de

tráfico, seja para desclassificar o tráfico para o porte para consumo próprio.

Em clara violação da dignidade da pessoa humana, princípios basilares do Direito

Penal de Garantias estão sendo “esquecidos” – quando não distorcidos ou desconsiderados –

por nossas Cortes, pois fazem uso de critérios que ousamos discordar:

Condições sociais e pessoais do agente: Valorar (negativamente) a conduta social do

indivíduo afronta o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), uma vez que não

pode o agente ser julgado pelo modo de vida ou comportamento. Da mesma forma, a condição

pessoal do agente, em virtude dos argumentos doutrinários aqui expostos, tal circunstância não

deve ser levada em conta pelo juiz quando da apuração dos critérios para caracterização do

porte para consumo próprio ou para operar a desclassificação do tráfico, pois configura o temido

direito penal do autor e afronta a dignidade da pessoa humana. Ainda, não possui o magistrado

conhecimentos técnicos específicos para aferição da personalidade do agente, por isso que não

deverá valorar tal circunstância.

Antecedentes: Após a matéria ter sido sumulada (n.º444, STJ), ainda assim

entendemos que tal circunstância não deveria ser valorada, corroborando com o entendimento

de CARVALHO49 e ZAFFARONI, uma vez que o que deve ser valorado é o fato e não o autor:

“o direito penal do autor parece o produto de um crítico desequilíbrio deteriorante da dignidade

humana daqueles que o sofrem e o praticam”.50. Deste modo, entendemos que a valoração dos

49 CARVALHO, Salo. CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da pena e garantismo, pág. 45. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2001 50 ZAFFARONI, Op. cit. p.132

24

(maus) antecedentes viola o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º, LVII,

CF).

No que tange à aplicação do princípio da insignificância, o principal óbice – do qual

também discordamos – reside no fato de ser a saúde pública, a coletividade, o bem jurídico

tutelado pela lei em questão, fazendo com que em uma hipótese de flagrante, a posse de uma

pequena quantidade já seria suficiente para uma incriminação, tal qual demonstrado pela

jurisprudência aqui elencada.

Assim, é claro que o princípio da intervenção mínima não é aplicado na sua

integralidade; consequência direta, em virtude da dignidade da pessoa humana – que é um dos

princípios fundamentais de nossa República (art.1º, III, CRFB’88) – não se mostra cabível

qualquer punição, dentro da esfera penal, que resulte em sanção, por menor que seja, se o bem

jurídico tutelado não for de fato lesionado. Neste interim, a quantidade mínima de entorpecente

não seria suficiente nem para a tipificação do delito previsto no art. 28 da Lei de Tóxicos.51

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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atual. São Paulo: Saraiva, 2013.

CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo Criminológico e

Dogmático). 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

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Coimbra, 2005.

GOMES, Luiz Flávio. Nova lei de drogas: descriminalização da posse de drogas para consumo

pessoal. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1236, 19 nov. 2006. Disponível em:

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LUISI, Luiz. A legislação penal sobre entorpecentes. In: Drogas: abordagem interdisciplinar.

Fascículos de Ciências Penais (03). Porto Alegre: Fabris, 1990.

51 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit., p.299

25

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. Vol. I. 7 ed. São

Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 2013.

OLMO, Rosa Del. A face oculta da droga. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais do Brasil. Evolução histórica. 2. ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2001.

THUMS, Gilberto; PACHECO, Vilmar. Nova lei de drogas. Crimes, investigação e processo.

Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007.

ZAFFARONI, E. Raúl. Direito penal do autor e Direito penal do Autor. Material

disponibilizado no Mooldle, AJURIS, 2013.


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