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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES
Improvisando em Msica Popular
Um estudo sobre o choro, o frevo e o baio e sua relao com a msica LQVWUXPHQWDOEUDVLOHLUD
Almir Cortes Barreto
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Msica do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos para obteno do ttulo de Doutor em Msica. rea de Concentrao: Prticas Interpretativas Orientador: Prof. Dr. Esdras Rodrigues Silva
Campinas SP 2012
iv
34
acordes menores com stima menor (Dm7 e Ebm7) que esto associados a suas
respectivas escalas modais: R-menor drico e Mi bemol-menor drico.
Nas dcadas seguintes houve uma fase mais ousada dentro do universo jazzstico, representada pela denominao de free jazz. Destaca-se aqui DXWLOL]DomRGHSURFHGLPHQWRVHQYROYHQGRDWRQDOLVPRGLVVROXomRGD OHYDGDRXdo pulso regular, incorporao explcita do rudo, etc. Como mencionado
anteriormente, tais procedimentos que rompem com o tonalismo no sero
abordados nesta pesquisa.
Este breve panorama apresentado aqui pode ser conferido em grande
riqueza de detalhes em trabalhos como Schuller (1970), Hobsbawn (1990), Collier
(1995), dentre muitos outros. O objetivo deste pequeno resumo pontuar a
transio entre a improvisao coletiva e o solo individual, observando a
FRQVDJUDomRGRIRUPDWRchorusLPSURYLVRVREUHDHVWUXWXUDKDUP{QLFDGHXPDpea) e do formato tema-improviso-tema. Como veremos ao longo deste trabalho,
tais procedimentos foram amplamente empregados por determinados segmentos
da msica brasileira.
1.2.3 Definindo improvisao
7HQGR HP YLVWD D PXOWLSOLFLGDGH GH VLJQLILFDGRV FRPSRUWDPHQWRV HSUiWLFDV .(11
35
SRGHVHUFRQVLGHUDGDFRPR LPSURYLVDomR LGLRPiWLFD (BAILEY, 1993), ao passo que faz uso de elementos e procedimentos que, ao serem combinados,
representam RLGLRPD 33 de um determinado gnero musical.
Para a realizao de tal improvisao, o msico utiliza todo o material
musical que foi absorvido atravs de estudo prvio (citaes de outras msicas,
figuras rtmicas recursivas, fraseado relacionado do gnero em questo, dentre
outras coisas). O que nos leva seguinte questo: se a progresso harmnica
encontra-se definida e os elementos musicais so previamente estudados, onde
estaria a improvisao? Acredita-se que a improvisao reside na maneira de
articular esses elementos no momento da performance, nas escolhas feitas pelo
solista, nas conexes que ele realiza entre os elementos estudados e aquilo que o
ouvinte espera como resultado final.
Em pesquisa anterior, realizada durante o mestrado (CRTES, 2006),
foi constatado que alm dos elementos musicais descritos pela anlise, existem
algumas diretrizes que conferem unidade e estruturam a aplicao do material
musical. Portanto, fez-se necessria a elaborao de uma linha de pensamento
que permita melhor assimilao de tais elementos, para sua subsequente
aplicao prtica. Para tanto, foram utilizadas as noes de knowledge base (conhecimento de base) - o conhecimento que o msico traz para a performance,
o material musical, as habilidades motoras, ou seja, tudo que est internalizado e
automatizado; e de referent (referente) - um aspecto externo ao msico, que est relacionado com elementos idiomticos de determinado gnero musical, que vo,
por sua vez, delimitar as escolhas do improvisador, e que esto inseridos num
contexto cultural, estabelecendo uma ligao direta com a expectativa dos
ouvintes (KENNY, GELLRICH, 2002). Desta forma, possvel refletir sobre as
33 No jargo musical utiliza-VHRWHUPROLQJXDJHP'e forma bastante informal, usual falar-se da OLQJXDJHPGRFKRURGDOLQJXDJHPGRjazz, etc.
36
implicaes contidas na relao entre D EDJDJHPPXVLFDOHRcontexto cultural no momento da improvisao.
[...] O que nos parece mais interessante e acertado a nfase posta no processo, considerado desde o ponto de vista psicolgico, como uma interao entre o instante psicolgico do criador e sua experincia prvia, como fator que vai configurando um modelo, que com maior ou menor grau de concretude, se toma como referncia, ou com o qual o sujeito interage no momento de improvisar 34 (VILCHES, 2002:148).
1.2.4 Aspectos da improvisao em msica popular brasileira
Em meio s diferentes manifestaes musicais desenvolvidas no Brasil
encontramos algumas prticas musicais nas quais a improvisao executada
atravs do canto. Talvez uma das mais conhecidas seja a cantoria de viola
nordestina, tDPEpP FKDPDGD GH UHSHQWH RX GHVDILR 5$0$/+2 ). Entretanto, sabe-se da existncia de outras modalidades como o samba-de-partido altoEDLDQRFDULRFD35 e o cururu36 do interior paulista, um dos gneros da msica caipira37. De uma forma geral, tais improvisaes esto centradas
basicamente na criao de versos, uma espcie de poesia cantada. No caso da
34 Traduo realizada pelo autor. Texto original: Pero lo que nos parece ms interessante y acertado es el nfasis puesto em el proceso, considerado desde el puento de vista psicolgico, como uma interaccin entre el instante psicolgico del creador y su experiencia previa, como fator que va configurando um modelo que con mayor o menor grado de concrecin se toma como referencia, o com el cual interacta el sujeto em el momento de improvisar (VILCHES, 2002:148). 35 $GHQRPLQDomREDLDQRFDULRFDIRLXWLOL]DGDFRQIRUPH6DQGURQL-108). 36 6HJXQGR$OOHRQLDWXDOPHQWHQR9DOHGR0pGLR7LHWrHQFRQWUD-se em forma de canto de desafio entre duas duplas de cururueiros que se alternam entoando versos improvisados seguindo uma rima pr-GHWHUPLQDGDSHORSULPHLURFDQWRUFKDPDGDGHFDUUHLUDGRGLYLQRWHUPLQDQGRHPLQRGRVDJUDGRWHUPLQDQGRDGRGH6mR-RmRWHUPLQDQGRHPmRHWF3,172H76). 37 Em todas essas atividades e prticas ldico-religiosas como a Folia do Divino, a Folia dos Santos Reis, a dana de Santa Cruz e de So Gonalo, o Cururu, a Catira ou Cateret, a Moda de Viola, a Quadrilha, a Cana-Verde, o Congado, o Moambique, o Catop, o Caiap e outras, a viola aparece como instrumento obrigatrio. A dimenso musical representada pelos seus toques, somados aos gneros e ritmos caipiras que acompanhavam tais manifestaes, apresenta-se como um elemento fundamental, atuando tanto como meio de orao como de lazer. esta dimenso musical das prticas que se denomina msica caipira e que deu origem ao segmento do mercado fonogrfico chamado de msica sertaneja (MARTINS, 1975, p.105,111; MARTINS, 2004 apud PINTO, 2008:16).
37
cantoria, existe uma melodia pr-estabelecida sobre a qual os participantes
improvisam o texto, entrecortado por um interldio instrumental executado com a
viola de 10 cordas.
No caso do choro, do frevo e do baio, do ponto de vista tcnico-
musical, encontramos o uso de procedimentos que fazem aluso s tcnicas
encontradas na msica de concerto europeia38. Nota-se o uso de ornamentao
na reexposio das melodias, muito presente na prtica do choro, e as variaes
rtmico-meldicas, tambm utilizadas na prtica do frevo e do baio, cujo resultado
final se mantm prximo da melodia original. Um tipo de improvisao que amplia
e ornamenta a melodia, por vezes utilizando apenas notas importantes do tema
como ponto de partida e finalizao de novas frases. Apesar de tal prtica ser
bastante associada ao choro, percebe-se que a mesma recorrente em outros
gneros populares, como no repertrio instrumental da msica caipira39 ou do
tango argentino.
Encontramos tambm na prtica do choro, do frevo e do baio
improvisaes que acontecem de maneira sbita sobre um trecho da harmonia,
retomando em seguida a melodia principal. Podem acontecer em qualquer ponto
da melodia, dando a impresso que o momento para a realizao de tal
improvisao no precisa estar previamente decidido. O msico decide abandonar
momentaneamente a linha meldica e improvisar um novo trecho que no tem
relao de variao com a melodia original.
38 &RQIHULUSRUH[HPSORRWUDWDGR2QSOD\LQJWKHIOXWHHVFULWRHPSHOR compositor e flautista alemo Johann Joachim Quantz (1797-1773). Dentre outros procedimentos e tcnicas, o trabalho trata da ornamentao barroca. 39 &RQIHULU$P~VLFDLQVWUXPHQWDOVHUWDQHMD3,1728:19-31).
38
1.2.5 Improvisao e forma no choro
Embora o ato de improvisar no choro esteja bastante associado
realizao dos contracantos executados ao violo 7 cordas40, ao
acompanhamento (violo, cavaquinho e pandeiro) ou mesmo realizao da
ornamentao, articulao e variaes41, pode-se constatar atravs de gravaes,
apresentaes e rodas de choro que a improvisao de uma nova linha meldica
(SUy[LPDDRformato chorus) tem sido cada vez mais constante, pelo menos nos ltimos 30 ou 40 anos.
[...] No Choro pode ser encontrada uma improvisao mais ornamental [...] a prtica de improvisao em chorus tornou-se mais comum depois da Bossa Nova. Por fim, como no Jazz, muito do acompanhamento improvisado, balizados pela funo dos instrumentos no conjunto, pela harmonia e pelo tempo estabelecido na msica. (SANTOS, 2006:179).
Esta melodia improvisada, que interage com a liberdade do
acompanhamento, no tem relao de variao com a melodia principal, trata-se
realmente de uma nova linha elaborada sobre a progresso harmnica de uma
das partes do choro. Contudo, variaes meldicas e ornamentos continuam
recorrentes, sendo que uma prtica no anula a outra. No capitulo III, na parte
&KRUR - sugestes para a prtica da improvisao, so apresentadas algumas situaes nas quais a variao e a ornamentao podem auxiliar na construo de
uma melodia improvisada.
[...] De fato, no choro o solista improvisador toca a melodia com liberdade para interpret-la, flore-la, vari-la, mantendo seus traos temticos sempre claros. Pode-se dizer que o solista, assim como o
40 Trabalhos como Contracantos de Pixinguinha: contribuies histricas e analticas para a FDUDFWHUL]DomRGRHVWLOR0$*$/+(6 H3L[LQJXLQKDH'LQRVHWH&RUGDVUHIOH[}HVVREUHD LPSURYLVDomR QR FKRUR *(86 RIHUHFHP PDLRU GHWDOKDPHQWR VREUH D SUiWLFD RVcontracantos no choro. 41 7UDEDOKRV FRPR 0DQH]LQKR GD )ODXWD XPD FRQWULEXLomR SDUD R HVWXGR GD IODXWD EUDVLOHLUD*25,7=.,$OWDPLUR&DUULOKRIODXWLVWDHPHVWUHGRFKRUR6$50(172H2HVWLORLQWHUSUHWDWLYRGH-DFREGR%DQGROLP&57(6EXVFDPGHPRQVWUDUR uso de tais recursos na prtica do choro.
39
acompanhamento de base, especialmente as linhas de baixo, esto improvisando (variando) durante a msica inteira. Atualmente, temos notado choros com improvisos em sees do tipo chorus, ou seja, o foco no improviso de um msico solista sobre a base harmnico-polifnica do tema (BASTOS, PIEDADE, 2006:933).
Pode-se supor que improvisaes prximas do formato chorus j aconteciam nas rodas de choro, no entanto, demoram a aparecer em gravaes.
Acreditamos que a falta de improvisao encontrada nas gravaes no era necessariamente o que acontecia nas rodas de choro. Talvez seja precipitado afirmar que o choro era tocado da mesma maneira nos dois lugares, uma vez que nas rodas existia mais liberdade e no havia o limite do tempo dos estdios de gravao; alm disso, a descontrao do ambiente - geralmente familiar e aberto tanto a amadores quanto a profissionais favorecia a improvisao (VALENTE, 2009:43).
O que se escreveu, mitificando a criatividade de interpretao do choro, no est registrado nas gravaes, nem da primeira e nem deboa parte da segunda dcada do sculo XX. Talvez razes comerciais no permitissem arriscar as ceras com possveis erros ou com questionamentos nas execues; ou, at mesmo, por disciplina, os msicos fossem obrigados a executar o que estava na pauta, sem se permitirem qualquer improviso. O que est gravado, salvo raras excees, repetitivo e sem nenhuma criatividade de interpretao, apesar de sua indiscutvel qualidade musical. As primeiras manifestaes de que algo novo estava ocorrendo, em interpretao, foram dadas pelo Choro Carioca, em 1914. Mas s em 1919, nas primeiras gravaes individuais de Pixinguinha que vemos despontar o que sempre se louvou como interpretao criativa do choro, desde as ltimas dcadas do sc. XIX e nas duas primeiras do sculo XX, mas que em disco ningum ouvira (FRANCESCHI, 2000:138 apud VALENTE, 2009:42).
Verifica-se que muito tem sido comentado ou escrito sobre a habilidade
de Pixinguinha enquanto improvisador42, tanto em suas primeiras gravaes
flauta quando nos contrapontos gravados no saxofone tenor ao lado do flautista
Benedicto Lacerda. Tais registros evidenciam suas habilidades como solista
(ornamentando e realizando variaes) e acompanhador (conduzindo de forma
SUy[LPDDRHVWLORTXHVHWRUQRXWtSLFRGRYLROmRFRUGDV
42 Conferir, por exemplo, o depoimento de Jacob do Bandolim (1967), os livros de Cabral (1978) e Cazes (1998) e as dissertaes de Tin (2001) e Bessa (2005).
40
Inclusive improvisar, ele pode pegar um tema e desenvolver. Eu vi Pixinguinha tocar s vezes 40 minutos, 45 minutos em cima de um tema sem repetir [...]. Isso que sH ID] FRP 8UXEX0DODQGUR R SHVVRDO ILFDbrincando, etc., ele fazia com um choro qualquer (Jacob do Bandolim, 1967).
Os registros fonogrficos do msico no apresentam improvisaes no
formato chorus. O caso mais prximo aqui seria a gravao da composio que atualmente conhecida como 8UXEX PDODQGUR H HQFRQWUD-se registrada com DXWRULD GH /RXUR H -RmR GH %DUUR 43, os pseudnimos de Lourival Incio de Carvalho e Braguinha. H duas gravaes desta pea feitas por Pixinguinha: a
primeira gravao foi IHLWDFRPRJUXSRRV2LWR%DWXWDVVHQGRUHJLVWUDGDFRPRVDPEDFRPRWtWXORGH8UXEXVictor, 1923) - (CD anexo-pasta Captulo I-faixa 2); a segunda gravao levou apenas o nome do intrprete e foi registrada como
FKRUR VRE R WtWXOR GH 2 XUXEX H R JDYLmR 9LFWRU - (CD anexo-pasta Captulo I-faixa 3)1RVGRLVFDVRV3L[LQJXLQKDWHULDLPSURYLVDGRVREUHRVJUDXV,e V744. Contudo, contando com a observao de Valente (2009:61), nota-se que
as duas interpretaes so semelhantes, dando a impresso que o solo teria sido
ensaiado e interpretado com a inteno de soar como improviso.
Vale notar que solos desse tipo so recorrentes em diferentes gneros
populares: Jacob do Bandolim utilizou o mesmo procedimento na gravao de
%UHMHLUR (UQHVWR1D]Dreth) (CD anexo-pasta Captulo I-faixa 4) presente no GLVFR9LEUDo}HV5&$45; em rodas de choro usual improvisar sobre o I e o V7 (Dm-$ GD SHoD &RUWD-MDFD &KLTXLQKD*RQ]DJD FRPR VHUi GHWDOKDGRmais abaixo, Luiz Gonzaga realiza um procedimento semelhante na gravao de
9LUD H PH[H /XL] *RQ]DJD QR XQLYHUVR GD P~VLFD LQVWUXPHQWDO VHUWDQHMD
43 &RQIHULURYROXPHGRSongbook &KRUR&+(',$.2009:242-243). 44 A utilizao de um acorde ou dois, ou mesmo de uma pequena sequncia de acordes que repetida inmeras vezes para se improvisar denominada de vamp dentro da jazz theory. 45 Conferir transcrio e comentrio sobre este solo em Crtes (2006:74-77).
41
podemos conferir alguns solos desse tipo realizados, por exemplo, pelo violeiro
Tio Carreiro46.
Ao mesmo tempo, a observao da parte B do choro 8P D ]HUR(figura 1.3) demonstra que esta se parece com um solo improvisado que foi
posteriormente escrito.
A parte B tem 32 compassos, sendo 16 o B propriamente dito e os 16 UHVWDQWHVXPDYDULDomRGRVSULPHLURV2WHUPRYDULDomRDTXLSRGHVHUsubstitXtGRSHORGHLPSURYLVDomRHVFULWD7,1e55).
46 Conferir transcries do violeiro realizadas por Pinto (2008).
42
Figura 1.3 6HomR%GH8PD]HUR3L[LQJXLQKD%HQHGLcto Lacerda).
A audio de gravaes dos saraus realizados por Jacob do Bandolim
nos mostra um pouco da improvisao no choro fora do ambiente dos estdios de
43
gravao. Na gravao domstica de 1RLWHV&DULRFDV 47 (Jacob do Bandolim) (CD anexo-pasta Captulo I-faixa 5), por exemplo, a parte B teria sido utilizada
como uma espcie de chorus, sobre o qual acontecem variaes meldicas e trechos de improvisaes que se afastam consideravelmente da melodia original.
Na gravao citada, os improvisos que se apresentam como mais distantes da
melodia so a interveno do msico Dino 7 cordas aos 6:38 minutos e o ltimo
chorus que Jacob realiza aos 7:45 minutos na prxima reexposio da seo B. De forma geral, em algum ponto da execuo o bandolinista retoma a melodia
original, ou alguma variao desta, mas ao mesmo tempo apresenta tambm
trechos mais livres, contendo IUDVHV ou pequenos padres meldicos elaborados sobre a base harmnica.
Grande parte dos choros possui trs sees distintas que so
executadas da seguinte forma: AA BB A CC A. Os choros de duas sees tm o
seguinte formato: AA BB A. Com base na audio de gravaes, e tambm na
participao do pesquisador em rodas de choro, nota-se que a seo mais
utilizada para a improvisao em composies de trs partes a seo C. Porm,
pode-se utilizar tambm a seo B para o desenvolvimento dos solos. No caso
dos choros de duas partes, geralmente o improviso construdo sobre a harmonia
da seo %FRPRRH[HPSORFRPHQWDGRGH1RLWHVFDULRFDVApesar da seo A ser a parte que mais se repete, no um procedimento usual realizar o improviso
sobre a mesma. Entretanto, esta a seo onde predominam as ornamentaes e
variaes rtmico-meldicas.
No caso das rodas de choro, esta prtica se d basicamente da
seguinte forma:
47 Gravao feita a partir de um sarau realizado na casa do bandolinista em 1968 e registrado no GLVFR2VVDUDXVGH-DFRE5&$
44
1. Exposio de todas as sees do choro (AA BB A CC A ou AA
BB A);
2. Retorno harmonia da seo C48 ou B, repetindo-a vrias vezes;
3. Cada um dos integrantes (ou aqueles que se julgarem
habilitados) improvisa uma melodia sobre a harmonia da seo
que foi retomada para os solos;
4. Os msicos vo revezando os solos como num desafio;
5. Retorno para uma ltima exposio da seo A.
Antes de executar a parte final existem algumas possibilidades para
terminar a seo de solos:
1. Um dos msicos pode tocar a melodia original da seo
escolhida indicando o trmino dos solos;
2. Com um gesto, um dos msicos pode pedir que o grupo retome
a seo A;
3. Pode-se deixar um improviso do instrumento de percusso (na
maioria das vezes o pandeiro) para indicar o fim da seo.
De forma geral, cada msico improvisa sobre apenas um chorus de 16 compassos, ou seja, cada um faz um solo sobre a progresso harmnica
completa. No entanto, nada impede que em um arranjo o mesmo msico possa
improvisar mais vezes sobre a progresso. Dentre as msicas que geralmente
tm a seo C improvisada dessa maneira em rodas de choro, podemos citar
&RFKLFKDQGR Pixinguinha/Benedicto Lacerda Um a zero(Pixinguinha/Benedicto Lacerda), 6RQRURVR .-ximbinho), e GR TXH Ki /XL]Americano) H0XUPXUDQGR)RQ-fon/Mrio Rossi). Dentre as msicas nas quais a seo % p PDLV XWLOL]DGD WHPRV 1RLWHV FDULRFDV 5HFHLWD GH VDPED H
48 Outra possibilidade aqui seria realizar os improvisos j na primeira reexposio da seo C, antes de retomar a seo A.
45
$VVDQKDGRGH-DFREGR%DQGROLPH(XTXHURpVRVVHJR.-ximbinho). Dentre msicos com expressiva atuao no campo do choro, e que improvisaram desta
maneira em suas gravaes, podemos destacar Raphael Rabello, Paulo Moura,
Z da Velha, Izaas Bueno e Nailor AzevHGR3URYHWD
1.2.6 Improvisao e forma no frevo
De acordo com Saldanha (2008), a improvisao dentro do frevo teve
incio com a composio de variaes 49 sobre a seo B das peas. Com o passar do tempo tais variaes passaram a ser improvisadas. A forma padro do frevo AA BB A, sendo que possvel encontrarmos em alguns frevos um trecho
FXUWRTXHVHUYHGH SRQWHHQWUHDVSDUWHV7DO IRUPDHPJHUDOp UHSHWLGDSHORVmenos duas vezes nas gravaes (AA-BB-AA-BB-A). Na terceira vez que a seo
B aparece, esta pode ser repetida inmeras vezes para que o solista possa
desenvolver seu improviso. Havendo mais que um solista, comum que os
mesmos se revezem intercalando um chorus para cada um. Ao final dos solos, em geral, a seo A retomada para finalizar a pea.
Ainda nesse perodo [ps Primeira-Guerra Mundial], temos a influncia da msica improvisada que, no frevo, ficaram conhecidas como variaes sobre o tema principal. Algumas foram escritas, como as do saxofonista Flix Lins de Albuquerque, o Felinho, compostas em 1941 sobre o tema de Vassourinhas, foram 08 ao todo e se tornaram clssicas. Contudo, em alguns outros casos eram realmente improvisadas. As variaes ocorriam FRPRDLQGDRFRUUHPVHPSUHVREUHDHVWUXWXUDKDUP{QLFDGDVHomR%do tema que, em alguns casos, sequer tinha ou mesmo tm a sua linha meldica principal executada ou mencionada. O uso do termo [variao] justificava-se pelo fato de serem construdas novas estruturas meldicas sobre o tema principal (SALDANHA, 2008: 213).
49 Supe-se que seja um procedimento semelhante ao realizado por Pixinguinha nas gravaes de 8UXEX0DODQGURHQDVHomR%GH8PD]HUR7UDWD-se de um solo, ensaiado ou escrito, que ficou FRQKHFLGRFRPRYDULDomRGHQWURGRXQLYHUVRGRIUHYR
46
Saldanha fala tambm da presena atual da improvisao no frevo, ao
apontar para o surgimento de uma nova esttica de interpretao, classificada
pelo autor como subgnero, e alcunhada de frevo-de-salo 50.
Mesmo que no habitualmente, observou-se que a prtica das variaes ainda hoje existe, contudo, aos poucos foi se tornando mais comum uma QRYDSUiWLFDLQLFLDGDFRPDJHUDomRVXUJLGDQRFHQiULRPXVLFDODSDUWLUdas dcadas de 1950 e 1960 (Clovis, Duda, Menezes, Ademir, Edson, etc.), j no perodo da Rdio Jornal do Commrcio2 QRYR HVWLOR GHperformance adotado foi o da criao instantnea e espontnea, isso claro, dentro de padres estticos de linguagem estabelecidos, ou seja, obedecendo a critrios de estrutura tonal, modal, harmnica, de fraseados meldicos e escalares. Em resumo, uma linguagem de improvisao de estrutura jazzista propriamente dita, nos moldes como a conhecemos hoje, contudo, adaptada ao contexto da msica local. Ratificado pela gerao atual, esse estilo interpretativo vem sendo largamente utilizado, se tornando, inclusive, uma das caractersticas identificadoras do subgnero chamado frevo-de-salo. Muito embora, alguns msicos dessa prtica no admitam ser de base jazzista os argumentos de inspirao e tcnica usados. (SALDANHA, 2008: 252).
Conforme a citao acima h o uso de um formato proveniente do jazz, o qual consiste em desenvolver uma nova melodia em tempo real sobre a
progresso harmnica do tema, ou seja, o j comentado formato chorus. No entanto, ainda em consonncia com Saldanha, este modelo foi adaptado msica
local, no caso o frevo, resultando numa improvisao peculiar, que faz uso de
elementos musicais recorrentes no gnero. Portanto, importante levar em
considerao a diferena entre adotar um formato ou tcnica de arranjo advindo
do jazz, e copiar suas idiossincrasias rtmicas e meldicas. Por exemplo, pode-se usar o formato chorus para improvisao sem ter que necessariamente utilizar elementos recursivos do bebop. Da mesma forma, pode-se compor utilizando uma forma representativa do perodo barroco, como a fuga, sem utilizar elementos
musicais e estilsticos que caracterizam tal perodo.
50 Subgnero recente dentro do frevo-de-rua, classificado pelo compositor e maestro Edson Rodrigues. Resumidamente o frevo-de-VDOmRFRQVLVWHHPXPD OHLWXUDPRGHUQDGR IUHYR-de-rua. Atravs de recursos como rearmonizao, incluso de tenses na harmonia e uso da improvisao. Tem como um dos seus principais expoentes o grupo Spok Frevo Orquestra.
47
vlido FRPHQWDUPRV R FDVR GD P~VLFD 9DVVRXULQKDV $ REUD IRLcomposta como marcha cantada em 1909 por Mathias da Rocha e Joana Baptista,
FRPR WtWXOR LQLFLDO GH 0DUFKDQ GRV9DVVRXULQKDV3RVWHULRUPHQWH WHYH VXDprimeira gravao instrumental realizada em 1949 pela Orquestra Tabajara,
comandada pelo compositor Severino Arajo. Devido principalmente ao grande
nmero de regravaes e execues pblicas realizadas aps esse perodo,
9DVVRXULQKDVWRUQRX-se referncia enquanto composio instrumental dentro do repertrio do frevo.
Vassourinhas se tornou o mais conhecido entre todos os frevos, na verso instrumental. Hino do Clube Carnavalesco Mixto Vassourinhas que, ainda hoje detm os direitos sobre a marcha, passou a ser, tambm considerado, o hino do carnaval de Pernambuco. (SALDANHA, 2008:178).
Como j foi mencionado, as variaes que se tornaram clssicas dentro
do frevo, e que abriram caminho para a insero de trechos improvisados, foram
FRPSRVWDV VREUH D SURJUHVVmR KDUP{QLFD GD SDUWH % GH 9DVVRXULQKDV SHORsaxofonista Flix Lins de Albuquerque51- (CD anexo-pasta Captulo I-faixa 6). Tal
fato nos oferece um bom ponto de partida para a sistematizao de uma moldura
harmnica para o estudo da improvisao no gnero.
1.2.7 Improvisao e forma no baio
No foram encontradas improvisaes no formato chorus nas gravaes de Luiz Gonzaga. Talvez o caso mais prximo seja a j comentada
JUDYDomR GH 9LUD H PH[H /XL] *RQ]DJD 5&$ (CD anexo-pasta Captulo I-faixa 7). Trata-se de uma msica instrumental na qual h um solo sobre
os graus I e V7. Alm de Gonzaga na sanfona h tambm um solo de cavaquinho,
cujo intrprete no foi identificado. A gravao foi rotulada na poca como
51 Conferir transcrio e FRPHQWiULRV VREUH HVWDV YDULDo}HV QD SDUWH )UHYR - transcries de LPSURYLVRVGRFDStWXOR- IV.
48
FKDPHJR (QWUHWDQWR QRWD-se que apesar da percusso ainda no utilizar a
figura rtmica que se tornaria representativa do baio , a sanfona j conduz
XVDQGRR IROH GH IRUPD SHUFXVVLYD52 apresentando um padro de acentuaes TXHFRUUHVSRQGHPDWDOOHYDGD
Dentro do repertrio de baies selecionado para esta pesquisa,
encontram-se apenas trechos instrumentais e pequenos improvisos vocais. Seria
interessante ter acesso a alguma gravao do baio que era executado nos forrs
nordestinos antes da estilizao realizada por Luiz Gonzaga na dcada de 1940.
O msico e reparador de sanfonas Janurio Gonzaga, pai de Luiz, j se
apresentava em forrs quando Gonzaga era criana. Como se sabe, os forrs so
festas danantes e o baio53 faz parte deste contexto, juntamente com o xote
nordestino (CD anexo-pasta Captulo I-faixa 8), a marcha junina (tambm conhecidDFRPRDUUDVWDSp (CD anexo-pasta Captulo I-faixa 9) e o xaxado (CD anexo-pasta Captulo I-faixa 10) 54. Em tais festas, os msicos envolvidos na
apresentao musical tocavam muitas horas seguidas para as pessoas danarem.
possvel que eles improvisassem ou realizassem variaes para aumentar a
durao das msicas. A formao dos sanfoneiros se dava basicamente por meio
da tradio oral, ou seja, eles precisavam aprender o repertrio imitando os
msicos mais experientes para poder trabalhar. Este mais um aspecto que pode
contribuir para a presena da improvisao. Na medida em que o msico alcana
52 Ver mais detalhes sobre esta tcnica QDSDUWH%DLmR- DIULFomRPRGDOWRQDOGRFDStWXOR9 53 Existe uma confuso com o termo forr, que, por vezes, classificado como gnero em alguns livros e catlogos de gravadoras. Msicos que no so familiarizados com este tipo de msica tendem a chamar de forr as gravaes do repertrio do baio. 54 eEDVWDQWHFRPSOLFDGRGHILQLUFRPSUHFLVmRWDLVGDQoDVTXHFRPS}HRJXDUGD-FKXYDIRUUy$Vdenominaes so confusas e h diferentes formas de interpretao entre os estados nordestinos. Contudo, possvel citar msicas gravadas por Gonzaga que de forma geral, pelo menos entre os P~VLFRV TXH WUDEDOKDP FRP IRUUy UHSUHVHQWDP WDLV JrQHURV 0HX Sp GH VHUUD /XL]Gozaga/Humberto Teixeira5&$UHSUHVHQWDRTXHVHULDXP[RWHQRUGHVWLQR2OKDSURFpX-RVp )HUQDQGHV/XL] *RQ]DJD 5&$ UHSUHVHQWD XPD PDUFKD MXQLQD RX DUUDVWD Sp H;D[DGR/XL]*RQ]DJD+HUYr&RUGRYLO5&$FRPRRSUySULRWtWXORGHL[DFODURUHSUHVHQWD um xaxado.
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maior proficincia em seu instrumento, juntamente com um maior domnio sobre
GHWHUPLQDGR HVWLOR H[LVWH XPD WHQGrQFLD SDUD D FULDomR HVSRQWkQHD GHvariaes sobre as melodias que so repetidas exaustivamente. Tais variaes
podem se tornar cada vez mais ousadas e se distanciar quase por completo da
melodia original.
Tin (2008, p. 86) aponta para outra importante manifestao cultural do
nordeste brasileiro, as bandas de pfanos: um conjunto de percusso e sopro que
toca um repertrio instrumental que se assemelha quele executado pelos grupos
de choro. Certamente houve troca de influncias entre tais bandas e os msicos
do forr. Contudo, tambm no h informao sobre a prtica da improvisao no
formato chorus neste contexto.
No nordeste, a presena dos gneros que vo constituir a famlia do choro evidencia-se, por exemplo, no repertrio das bandas de pfanos, que so verdadeiros relicrios de gneros antigos como polcas, choros, maxixes e at tangos brasileiros (CAMPOS, 2006:23).
Parece que a improvisao no formato chorus passou a figurar no baio a partir da atuao de sanfoneiros que foram influenciados e incentivados por Gonzaga. Dentre eles destacam-se principalmente Dominguinhos, Sivuca e
Oswaldinho do Acordeom. O formato tema/improviso/tema sobre parte do
repertrio de Luiz Gonzaga pode ser encontrado no disco Cada um belisca um SRXFR(Biscoito fino, 2004) gravado pelos trs sanfoneiros. Outro disco que traz DPHVPDDERUGDJHPXWLOL]DQGR UHSHUWyULR VHPHOKDQWH p R 3LIH0XGHUQR (Rob Digital, 1999) do msico Carlos Malta. Em ambos os casos percebe-se a
construo de improvisos LGLRPiWLFRVXWLOL]DQGRSDUWHGR repertrio de Gonzaga.
O baio possui basicamente a mesma estrutura formal do frevo, ou seja,
AA BB A. No entanto, atualmente encontramos na prtica do baio algumas
possibilidades diferentes para a insero de trechos improvisados:
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1. Pode-se improvisar apenas sobre a parte A. Na gravao de
4XL QHP jLOy (Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira) realizado por &DUORV0DOWDHP3LIHmXGHUQR5ob Digital, 1999) (CD anexo-pasta Captulo I-faixa 11), por exemplo, a improvisao foi
realizada na reexposio da parte A da msica.
2. Pode se improvisar sobre a forma completa, como, por exemplo,
na gravao de )HLUD GHmDQJDLR 6LYXFD*OyULD *DGHOKD (CD anexo-pasta Captulo I-faixa 12) presente no disco &DGDXP EHOLVFD XP SRXFR %LVFRLWR ILQR UHDOL]DGR SRUDominguinhos, Sivuca e Oswaldinho. Em tal faixa, aps a
execuo do tema cada um dos sanfoneiros improvisa sobre um
chorus55. Entre os solos a introduo da pea (16 compassos) executada, servindo como elemento de transio que demarca a
troca de um solista para o outro.
3. Outra opo, muito utilizada em baies que possuem trechos
modais, consiste em selecionar apenas um ou dois acordes que
representem o modo para servir de base para a improvisao56.
Nesse caso, aps a execuo de toda a pea, a parte modal
retomada para os solos57.
1.3 Interao entre os gneros populares urbanos
Para este estudo foi feito um recorte temporal que priorizou o perodo
no qual o choro, frevo e baio se estabeleceram como gneros musicais e, de
certa forma, fixaram suas caractersticas. Neste sentido, cabvel optar pelo
perodo que vai de 1920, um pouco antes da cKDPDGDpSRFDGHRXURGRUiGLR, e
55 Ver a transcrio e apreciao GR VROR GH 'RPLQJXLQKRV QD SDUWH Baio - transcrio de LPSURYLVRVGRFDStWXOR9 56 Ver exemplos de tais sequncias de acordes no captulo V, na parte %DLmR molduras- SDGUmR 57 Procedimento que se assemelha j comentada vamp da jazz theory.
Raphael Ferreira