8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964
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J o s ~ uiz iorin
8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964
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Jos Luiz iorin
O
R GIM
DE 964
Discurso e Ideologia
988
SRIE
LENDO
Coordenao
eth
Brait
8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964
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Capa:
Zildo
Braz
sobre arte de Alexandre Martins Fontes)
AUf
Composio:
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~ T - C 5 l 3 ~
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Luiz
Fiorin
Dados de Catalogao na
Publlca )
CIP) Internacional
Cmara Brasileira do Livro, SP Brasil)
Fiorin,
Jos
Luiz.
F553r
O regime de
1964
: discurso e ideologia/ Jos Luiz Fiorin.
87 0618
1. ed. - So Paulo : Atual, 1988.
Srie lendo)
Bibliografia.
1. Brasil - Histria - Revoluo de
1964
2. Brasil - Poltica
e governo - 1964 I Ttulo.
I I
Srie.
1ndices para catlogo sistemtico:
1 Brasil: Discurso poltico, 1964
320.98108
2. Brasil : Histria, 1964
981.08
1:3
Brasil : Ideologia poltica, 1964
320.98108
4. Revoluo
de
1964 : Brasil : Histria 981.08
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SUMR O_
INTRODUO
1
I - LINGUAGEM E IDEOLOGIA: A BUSCA DA HIST
RIA
PERDIDA
O Objeto da Lingstica .
O Alargamento do Objeto
da
Linglstica
.
Formalistas e ldeologistas .
O Discurso: Autonomia e Determinao
.
Formcu;es Ideolgicas e Formaes Discursivas
.
O Social e o Individual: Discurso e Texto
.
O Problema do Sujeito do Discurso .
Concluso ;
O Discurso Lacunar: Algumas Opes e t o d o l g i ~ a s ..
O Discurso Lacunar: Algumas Opes Metodolgicas ..
O Discurso Construdo: Invariantes do Discurso de
6
.
O Componente Narrativo e a Semntica do Comp onente
Discursivo , , :
Temas e Figuras: Posio de Classe do Narrador e do
Narratrio :
.
Alguns Procedimentos Discursivos
.
O Componente Fundamental
3
3
4
5
6
12
14
15
17
18
18
20
21
8
125
133
III
- A SACRALIZAO DO
DISCURSO
POUTICO
139,
.
O Discurso Religioso e o Discurso Poltico.
139
O Problema da Sacralizao ~ 7
CONCLUSO ; . . . . . . . . . . . . . . 152
BIBLIOGRAFIA
_,
- -
............
........... ...............................
154
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1
LINGUAGEM E IDEOLOGIA BUSCA
D
HISTRI PERDIDA
O Objeto da Llngilistica
acabou vendo Joan Brossa
que
os
verbos do catalo
tinh m
coisas por detrs
eram s palavras, no.
Joo Cabral de Melo Neto
Saussure, em seu Curso de Lingtstica Geral, mostra
que
a
linguagem
um
fenmeno
multiforme
e
heterclito ,
com
muitos
nveis e dimenses,
uma
vez que fsica, fisiolgica e psquica,
individual
e social. Diante dessa
multiplicidade
de
fenmenos,
se
ria preciso estabelecer
o
objeto da cincia da
linguagem. Prope
ele, ento, a
distino entre
lngua e
fala.
A lngua
suscetvel
de
uma definio
autnoma, pois
a
parte
social da lingut\gem, ex-
terior
ao
indivduo, que
no
pode
cri-la nem modific-la .
Para
Saussure,
a lngua um produto
acabado
que o falante registra
em sua memria. Constitui
ela
um
sistema
que conhece apenas
sua prpria ordem. A ll\ lYlla no ,
para
Saussure, uma
lista
de
palavras
ou
de sons, mas um
conjunto
de relaes. Segundo ele,
na
lngua no
h
seno
diferenas. Assim, a lngua forma e no
substncia. O exemplo do
jogo
de
xadrez
ilustra essas concepes.
No
importa para
o
jogo
que
as
peas
sejam
grandes
ou pequenas,
de
marfim ou de
madeira, etc. O
que importa
o
valor que as
pe
as
tm, ou seja, as diferenas que uma tem em
relao a todas
as outras,
o que
lhe d uma funo especfica dentro do jogo.
-
sim tambm,
o
valor
especfico
de
mala
advm
do
fato
de
que
ela
diferente
de
bala , sala , mata , mela ,
etc.
A
fala
a atualizao do sistema lingstico (lngua)
numa
dada
situao.
Por isso, a
fala
individual, um ato de vontade
e de inteligncia, o lugar da liberdade e da criao. Se a lngua
constitui
um
cdigo, a fala so as combinaes pelas quais o indi
vduo realiza
o cdigo
da lngua com
a finalidade
de exprimir seu
pensamento.
Ao
separar
a
lngua
d
fala, Saussure
estabelece
que
o
objeto
da
Lingstica a lngua. Afasta,
assim,
a fala da
cincia da
lin
guagem. Ao
mesmo
tempo,
ao verificar
a autonomia
da
lngua, pe
marge1ll
da Lingistica tudo aquilo que
ele
chama
elementos
externos da
lngua,
entre eles
as
relaes
entre
lngua e h i s t r i ~
As mudanas no sistema lingstico se do por razes
internas
~
3
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pr9prio sistema como por
exemplo,
a
instabilidade
das oposies
isoladas ou o preenchimento
de
casas vazias para o
estabelecimen
de
correlaes perfeitas.
pensamento saussuriano bastante complexo e trouxe ine-
gveis progressos para a cinca da linguagem. A distino
de
base
de Saussure
sorreu
alteraes,
mudanas,
ac.rscimos
ao longo
da
histria da Lingstica. Houve mesmo
mudanas
significativas na
maneira
de
encarar o
objeto
da Linglstica.
No entanto,
resumin-
do de
uma
maneira um tanto
esquemtica, poderamos dizer que
a Lingstica moderna
desenvolveu durante
muito
tempo
a Lin
gstica da
lngua
pautando-se
sempre pelo princpio da
imanncia
e deixando
de
lado portanto, os elementos considerados
externos.
Tudo
na linguagem
deveria ser
exp1icado pelas relaes
internas.
Por isso os campos
que
conheceram
um extraordinrio
desenvol-
vimento
nas ltimas dcadas
foram a
fonologia a .morfologia e
a sintaxe. So esses os nveis em
que a lngua
tem
autonomia
em
relao prtica social.
A
semntica,
o contrrio,
teve
at recen
temente um pequeno avano, pois
o estudo dos
significados no
poderia ser feito s na bas.e dos mtodos
da
fonologia.
O largamento
o
Objeto da Llngstlca
Um
dos problemas da Lingstica da lngua
que
seu limite
o nvel da frase uma vez que o texto pertence muito mais fala
do que propriamente
lngua. No entanto,
a
nica
realidade para
o falante .so os discursos e no os fonemas
os
morfemas ou
as
frases isoladas.
Com o temp esse e
outros
problemas
novos
se colocam.
Lembremos,
rapidamente, alguns: o problema
do
uso
da
lingua
gem, dos
atos
de fala
da
contextualizao, das
relaes
entre
lin
guagem e sociedade
das
condies de produo do discurso,
da
argumentao, da
enunciao, da
textualizao. O
nmero das
no-
vas questes que se discutem imenso.
Os
lingistas sentem as
insuficincias da teoria e a estreiteza de seu
objeto
de estudos.
Comeam a ajuntar
os problemas
novos ao clssico objeto
da
Lin-
gilistica como espcies
de
anexos
mais
ou menos heterogneos
em
relao ao corpo trico
assentado.
A Llngstica inicia sua crise
epistemolgica.
No
nossa inteno
discutir
todos
os
problemas que se co-
locam
hoje
para a Lingstica. Tomaremos apenas um aspecto, o
das relaes entre linguagem e
histria
e esboaremos a
respeito
desse problema algumas idias, que carecelll ainda ~ refinamen1o.
A preocupao com as relaes d
linguagem
com a histria
no deriva da opo
pessoal
de
alguns
Ungistas pela novidade in
conseqente,
nem. de
seu gosto por aquilo que se considerou,
por
4
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muito tempo,
como elementos extralingsticos,
nem
mesmo de
seu desejo de incorporar
a Cincia
da linguagem
cincia da
his
tria,
mas decorre
do. prprio
desenvolvimento da Lingstica.
Quando
esta
comea
a estudar problemas
como
as condies de
produo
discursiva,
a enunciao, a intertextualidade, etc., surge
o
problema da determinao histrica da linguagem.
Pode-se dizer
que
o
aparecimento
dessa questo
no
mbito
da
Lingstica
tem
sua origem
na
crise epistemolgica
da
cincia da linguagem, ou
seja,
na prpria histria
da
Lingilistica.
ormalistas e
ldeologlst s
Aqueles que
se
interessam
pelos
estudos
lingsticos podem-se
dividir,
de
maneira
esquemtica,
em
duas
grandes
tendncias:
o
formalismo
e o
ideologismo.
A
primeira, em termos
gerais,
concebe
a
linguagem como uma
autarcia, ou seja, como um sistema fechado
em
si mesmo; com
preende
o
texto
como um
todo que
se
basta
a
si mesmo,
no.
se
importando
com
as relaes entre
a linguagem e a
histria.
A se
gunda
despreza
os
elementos
lingsticos e
procura relacionar, de
maneira direta e
.mecnica, tal ou
qual
aspecto
do
texto
com a es
trutura
social.
Bakhtin
Todorov, 1981), ao fazer um
balano
das
duas
tendncias,
mostra que, embora os formalistas
estejam
fun
dados
sobre
pressupostos
filosficos
falsos,
.eles
contriburam, de
maneira inegvel, para o avano da Lingstica,
ao
discutir
pro
blemas do
funcic::iamento especfico da linguagem que
no
podem
mais
ser
ignorados. Seu
julgamento em
relao aos ideolegistas
muito mais
severo: eles no s
ajudaram no
desenvolvimento dos
estudos
lingsticos, como
contriburam,
de
maneira poderosa, para
a vulgarizao do marxismo. Segundo Bakhtin, preciso herdar o
formalismo, recolocando-o
sobre
riovas
bases
filosficas.
O primeiro
problema do lingista , pois,
perceber
que
a lip-
guagem goza de uma
certa
autonomia em relao s
fo:rmaes
sociais,
mas, ao mesmo tempo, sofre determinaes histrcas.
As
sim, uma
teoria
geral
da linguagem
deveria comear por
reconhe
cer os
nveis
e as
dimenses em que
a
linguagem tem
uma certa
autonomia e aqueles em que ela sofre
determinaes.
A renncia a considerar a existncia
dos
diferentes nveis de
articulao
e
as
variadas
dimenses
da
linguagem
gerou
erros
en-
tre os quais um sociologismo
e
um
historicismo ,
c9mo os da
teoria
marrista, que
pretendem
explicar
toda
a
linguagem
e
as
suas muta_s
pelas
mudanas na infra-estrutura
econmica
e que
trazem como conseqncia
a impossibilidade
de explicar
certas
.
categorias lingilisticas
e determinadas mutaes
internas
que
se
operam
em
alguns nveis. da
linguagem,
como, por exemplo,
no
n-
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vel fonolgico. No se_poder explicar a sonorizao das consoan
tes surdas intervoclicas
na
passagem do
latim
ao portugus
por
mutaes na infra-esttutura. Nota o prprio Engels, em
carta
a
Bloch,
que nem
todas
as
alteraes se
explicam
por causas
eco
nmicas e exemplifica essa afirmao com a mutao consonntica
do
alto alemo, que se processa por fatores exclusivamente lings
ticos (Marx
e
Engels,
1977, 34). Dessa forma, a lngua,
no
sentido
saussuriano,
goza
de
certa
autonomia
em
relao
s
formaes
sociais. O
russo
e o chins tm o mesmo sistema fonolgico e mor
fossinttico antes e depois da Revoluo. O sistema fonolgico do
portugus
fundamentalmente
o
mesmo
do sculo
XVI at
nossos
dias.
Abandonado,
pois, o
sistema,
voltemo-nos
para
a fala, para
investigar
se
ela sofre determinaes sociais.
A
fala,
em
Saussure,
o
domnio da liberdade
e da
criao.
Nota Rgine Robin (1977, 25)
que
essa
concepo
de discurso ar
ticula-se
no
interior
de
uma
filosofia
do
sujeito neutro , que
se
conhece
muito
bem (uma filosofia anterior a Freud). e da concep
o
de
sujeito como
um ser que
no. sofre
qualquer
determinao
scio-ideolgica
(uma
filosofia de
antes
de Marx). E mais uma ida
de que eu falo do que a de que eu sou falado por um
determi
nado
discurso.
Da
tornar-se impossvel
uma cincia da atividade
lingstica,
pois, nesse campo, tudo se passa como se
fosse
inde
terminado,
como
se
nada fosse comum, como
se
no
houvesse
re-.
petio.
No
entanto, dois pontos devem
ser
examinados: a liber
dade;, da
fala,
na maioria das
vezes, dissolve-se
no interior de
falas
estereotipadas (lembremo-nos
das
pessoas que
falam
sentenciosa
mente por meio de provrbios); h determinaes que incidem so
bre
a
linguagem, levando
criao
desses
esteretipos.
De
agora em diante, no se
usar mais o termo fala mas
so-
mente
o vocbulo discurso Esta no simplesmente uma
mudan
a
terminolgica,
mas
revela uma
determinada postura diante do
problema
da atividade lingstica, pois
a
noo de discurso pres
supe
a
de
sujeito.
Co.qio a
linguagem
um
fato
caracteristica
mente
humano e social, s
se
pode falar
de
sujeito
no
quadro
das
relaes sociais
que se estabelecem no interior
de uma formao
social. Assim, falar de
discurso
remeter ao problema da relao
da linguagem
com
a histria.
O
Discurso:
Autonomia e
Determinao
Quando se fala em determinao do discurso, pergunta-se
ime
diatamente
se
ele um fenmeno
de superestrutura.
Muitos on
sideraram o
prprio sistema
lingstico como
um fenmeno
de
classe. A lngua em sr no um fenmeno de classe, uma vez que
ela existe nas sociedades sem classes,
existe
nas sociedades
de
6
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classes e continuar existindo quando as classes forem abolidas.
Como mostra E 1gels (s.d.b, 174-175), ela surge da necessidade de
relaes sociais, que no se reduzem, porm, ao mero intercmbio
de idias,
uma vez que
a linguagem
to
complexa quanto os de-
mais fenmenos sociais.
Enfatiza
Engels
que
o trabalho a cate
goria fundadora da histria e que, a
partir
do
processo de traba
lho, estabelecem-se relaes
sociais
que
esto
na base da origem
da
linguagem.
Por seu
turno, trabalho
e linguagem
esto
associa
dos
no
desenvolvimento da
capacidade de
pensar, que, por sua vez,
aperfeioou a linguagem e os processos de trabalho. Assim, a lin
guagem no
um
.fenmeno de classe, mas recebe as marcas da
existncia
das
classes sociais, ou seja,
as
classes,
ou fraes
de
classe,
apropriam-se
da linguagem para
transmitir
suas
represen
" taes ideolgicas e, assim, agir no mundo. No a linguagem
propriamente um fenmeno de superestrutura,
mas
o
veculo
das manifestaes
superestruturais que,
por
isso,
moldam
nela
suas representaes. Determinaes scio-ideolgicas esto pre-
sentes na
linguagem,
ou mais precisamente
no
.diSUrso
uma
vez
que consideramos o
sistema
u elemento que goza de
relativa
autonomia
em relao
s formaes sociais. determinao
sobre
o discurso no ,
porm,
reecnica, mas passa por sucessivas me
diaes, e
tem,
por isso, tambm o discurso relativa autonomia.
Dizer
que as representaes ideolgicas
moldam o discurso,
mas que
h
uma
relativa
.autonomia
da
linguagem
em
r e l o ~
ideologia,
ou seja,
que o nvel lingstico -no
se
reduz ao nvel
ideolgico, implica
distinguir
nveis e
dimenses
do discurso e
os
componentes
de
cada
nvel.
O
discurso
no
um
amontoado de
frases,
mas
regido por
' eis de estruturao, para que
ganhe
sentido. Esses mecanismos
de
estruturao
discursiva, sua sintaxe, so
dotados
de uma relativa
autonomia em relao s formaes sociais. Mecanismos como o
discurso direto, o
discurso indireto,
o
discurso
indireto livre,
uma
vez criados, podem veicular contedos de
distintas
formaes ideo-
lgicas. Isso significa que o lugar
por
excelncia da manifestao
ideolgica o nvel semntico do discurso.
Mas
preciso ir deva
gar. Diversas objees j se levantam.
Distinguimos inicialmente
uma
sintaxe e uma
semntica no
discurso. No entanto, h que pensar tambm que, depois de
Chomsky, a
Lingstica
no pode
mais
deixar de
considerar
a exis
tncia de
uma
estrutura
superficial e
uma
estrutura profunda.
Assim, deve-se
pensar, ao propor
u
modelo
de anlise,
que
a es
trutura
discursiva constituda de nveis de invarincia sempre
crescente, que explicam como ir da manifestao instncia b
quo
da
gerao
do
sentido.
O modelo de anlise vai propor a exis
tncia
de
um
percurso
gerativo
do sentido.
7
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10/159
A necessidade de
uma
anlise do discurso
por
meio de um
percurso
gerativo justifica-se na medida em
que um investimento
semntico mais abstrato como a conjuno de um sujeito com o
objeto-valor liberdade pode
ser recoberto por
diferentes atores,
temas e figuras. O
enunciador
pode
manifestar o sujeito
como
um
indivduo
ou
uma classe social. A conjuno
com
a liberdade pode
ser
a evaso temporal, figurativizada,
por
exemplo,
pela
volta
infncia ou pela volta Idade Mdia; a evaso espacial, figurati
vizada pela ida para. lugares exticos ou para
outros
planetas; a
derrubada
de opressores; a violao de usos e costumes, figura
tivizada, por exemplo,
pelo
uso
da
cala velha, azul e desbotada .
Para compreender bem a multiplicidade dos
investimentos
s e m n ~
ticos concretos,
preciso reduzi-los a investimentos
mais
abstra
tos. Entendendo o elemento abstrato e a concretizao possvel,
no se vai apreender, por exemplo, a liberdade e a
democracia
como elementos indistintos,
apaream onde
e como aparecerem.
Na
anlise do percurso gerativo
de
sentido,
h
que distinguir,
em
primeiro
lugar, a imanncia
da
manifestao. Aquela o plano
de contedo, e esta a unio de
um
plano de contedo
com
um pla
no
de
expresso. Tal distino se faz necessria,
pois
o
mesmo
plano de contedo pode ser veiculado
por
diferentes planos de
expresso: verbal, visual, etc. Beijo da
Mulher ranha
livro,
filme e pea de teatro.
E
claro que tambm o plano
de
expresso
agrega significados
ao
cntedo.
No
totalmente
indistinto
trans
mitir um
determinado contedo
por
este
ou aquele meio
.de ex
presso. Mas voltaremos a isso mais diante.
m
segundo lugar,
h
que distinguir os diferentes nveis de
generalizao
do
contedo.
Greimas
1979,
157-160) prope um
percurso
gerativo
de
sen
tido (referente, portanto,
ao
plano do contedo), que,
embora
su
jeito a c r t i c s ~ e revises,
r e v e l a s ~
operatrio
para
o
estudo
do
discurso
em
nveis
crescentes
de
invarincia.
Poderia ele
ser
es
quematizado
da seguinte forma:
Componente sintxico
Componente semntieo
Estruturas
Nvel
Sintaxe
smio-narra
Semntica-fundamental
tivas
profundo fundamental
Nfvel da
Sintaxe
Semntica narrativa
superfcie
narrativa
1
8
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11/159
Sintaxe discursiva
Semntica
discursiva
Discursivizao
Estruturas
discursivas
actorialilao J
J
tematizao
temporaliz:ao
figurativizao
espacializao
O nvel profundo
constitudo dos
elementos mais abstratos,
responsveis pela produo, pelo funcionamento e pela compreen
so
do
discurso, que pode ser manifestado verbalmente ou no
verbalmente; a instncia
ab quo
do
percurso
gerativo. A semn-
tica fundamental aparece corno um inventrio de oposies se
mnticas, que sero
trabalhadas pelo
sujeito da enunciao. Assim,
no
romance
A Cidade e s Serras de
Ea de
Queirs, a categoria
de base com
que
opera o autor
a oposio /civilizao/vs./natu
reza/. Um dos elementos
da categoria
semntica
de
base
consi
derado
eufrico
e o
outro
disfrico. No caso, ao final do
romance,
verifica-se que a civilizao o termo disfrico e a natureza o ter
mo
eufrico.
s duas operaes
da
sintaxe fundamental so a
negao
e a
assero. Ao negarmos um termo qualquer de urna oposio se
mntica,
que
constituda de termos contrrios entre si,
temos
um termo contraditrio:
civilizao - no-civilizao;
natureza
-
no-natureza. A assero permite reunir os
termos
situados no eixo
dos contrrios
ex.: natureza e civlizao) ou no eixo
dos
sub
contrrios ex.: no-natureza e no-civilizao). O mito
parece
ser
sempre
a unio de contrrios
ou
de
subcontrrios.
No
interior
do
sistema de valores do cristianismo, Cristo , por exemplo, divino
e
humano,
enquanto os anjos so no--divinos e no-humanos. Em
A
Cidade e as
Serras e s ~ s operaes
transformaes)
so as se
guintes; afirmao do termo a civilizao vida em Paris); negao
do termo a no-civilizao
momento
da chegada
de
Jacinto a
Portugal);
afirmao
do termo b natureza
descoberta
do valor
das coisas simples,
em
Portugal).
Os elementos
do
nvel fundamental so retoma.dos pelo nvel
narrativo,
que
constitudo de um conjunto de estados relao
de um sujeito
com
um objetal e de
transformaes
alterao da
relao de
um sujeito
com
um
objeto). O nvel narrativo faz tor
narem-se
um
pouco menos
abstratas
as categorias do nvel fun
damental.
Os
elementos
semnticos
do
nvel
fundamental so
ins
critos no objeto do nvel narrativo. Assim, no nosso
exemplo,
a
civilizao disfrica a doena e a infelicidade, enquanto a natu
reza eufrica
a
sade
e a felicidade. O sujeito, na civilizao,
est
em
relao
conjuntiva
coin a doena e a infelicidade e, con
seqentemente,
em relao
disjuntiva com
a
sade
e a felicidade.
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No percurso
narrativo, essa relao
altera-se
e o
sujeito
entra
em
conjuno
com
a sade e a felicidade. A semntica
narrativa trata
dos valores inscritos nos objetos, enquanto a sintaxe narrativa
contm as operaes
de
transformao de estados.
A sintaxe
discursiva
contm
as operaes
de actorializao, de
espacializao e
de
temporalizao, que
inscrevem
os enunciados
narrativos
em coordenadas espao-temporais
e
revestem os papis
narrativos, como sujeito
e
objeto, de atores discursivas. Isso se
faz pelos
mecanismos
de
enunciao. Nesse nvel, colocam-se to
dos os
problemas
da relao enunciador-enunciatrio, como, por
exemplo, as estratgias
argumentativas. As
operaes da sintaxe
discursiva
visam a criar efeitos de
realidade
e
de verdade,
com o
objetivo de
convencer
o enunciatrio, de faz-lo crer. A semntica
discursiva constituda de
temas
e figuras, que so dois patama
res sucessivos
de
concretizao
do sentido
e que
geram,
respecti
vamente,
os discursos
no-figurativos e
os
discursivas
figurativos.
A tematizao o revestimento de um dado percurso narrativo
com atores e coordenadas espao-temporais no concretizados. No
nosso exemplo, reveste-se o percurso da busca
da
felicidade
pelo
sujeito com
o tema da
evaso
espacial, que o
deslocamento de
algum no
espao.
A figurativizao o revestimento de um
tema
por figuras, que so signos cujo plano de contedo
remete
a ele
mentos
presentes
no mundo
natural.
Em
A Cidade e
s
Serras
o
tema da
evaso
temporal
figurativizado
como:
Jacinto
deixou
Paris e partiu
para
Tormes.
Como
se v, nesse romance, Paris e
Tormes figurativizam, respectivamente, a civilizao e a
natureza.
J
dissemos que o
componente
sintxico
do discurso
garante
sua
estruturao peculiar e
garante sua relativa autonomia em
re
lao
s formaes
sociais. J o
investimento semntico revela
o
universo ideolgico
do
sujeito enunciador, pois no
indistinto
o
estabelecimento dos objetos
disciplina ou liberdade (cf.
os
dis
cursos
dos
pensadores
polticos
autoritrios
e
os
dos anarquistas),
riqueza
ou
glria
de
Deus (cf. os discursos do Tio Patinhas, de
Walt
Disney, e o discurso
jesutio que expressava
sua finalidade
pela mxima
Ad majorem Dei gloriam ).
Por
outro lado, a
aplicao
dos termos eufrico e disfrico
s
categorias semnticas fundamentais no
neutra,
mas revela
um
universo ideolgico. Assim, um conto de fadas como A
Gata
Bor-
ralheira
revela uma determinada formao ideolgica, ao conside
rar
eufricas as
virtudes da obedincia,
da submisso
e d
hu
mildade,
que so recompensadas,
e
disfricos
o
orgulho
e a
pre
potncia,
que so
castigados. O romance
Justine
de Sade, mostra
um
universo
ideolgico
contrrio,
pois nele disfrkos so o
amor
ao
1
pr?'imo, a caridade e a
bondade,
que
so
sempre
castigados,
enquanto eufricos
so ludibriar
os vutros e cometer malvadezas,
que so aes premiadas.
1
8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964
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O nvel por excelncia de manifestao ideolgica , porm, o
nvel discursivo, ou seja, no nvel da semntica
discursiva
que,
realmente, as formaes ideolg{cas se manifestam, pois um ~ -
mo
valor
(elemento da
semntica
narrativa),
como a liberdade ,
pode ser tematizado, pela
assuno
do papel temtico do omo
ludens
e pela negao
do
papel
temtico
do
homo faber
figurati
vizados
por
jovens
no
espao e no tempo do lazer. Analise-se,
por
exemplo, a pea publicitria
de
jeans que diz Liberdade uma
cala velha, azul e desbotada . Nesse caso, a liberdade o lazer,
figurativizado pelo
no-trabalho, indicado
pela roupa. Liberdade
pode
ser tematizada
pelo direito diferena , corno no cii.so dos
discursos de minorias sexuais. Pode
ainda
ser tematizada pela
no-explorao da fora de trabalho produtiva . Essas trs tema
tizaes diferentes do mesmo
valor pertencem
a formaes ideo
lgicas distintas.
As
duas primeiras pertencem
ao
universo ideolgico
que
v a
liberdade como a -possibilidade de o indivduo ou de
um
grupo de
indivduos libertar-se
das
coeres sociais.
Embora
pertenam elas
ao
mesmo quadro de valores, so
distintas:
a primeira coloca-se
no
domnio
das opes
permitidas;
a segunda, no das injunes
negativas, sejando
tornar
o
que proibido
permitido, numa
dada
sociedade.
A
terceira
pertence a outro universo ideolgico,
pois v a liberdade
como
decorrncia da .alterao de todo o sis
t ~ m
de
relaes sociais.
O
discurso
religioso
catlico
apresenta, em nossos dias, Cristo
m dois papis temticos
distintos:
salvador e libertador.
Insiste
no
papel
temtico salvador o discurso de parcelas tradicionais
da Igreja. Ressalta o papel libertador a faco comprometida
com a chamada opo preferencial pelos pobres .
Nos discursos no-figurativos, a ideologia patenteia-se
num
dado conjunto de temas, enquanto nos discursos figurativos
re
vela-se,
de maneira
explcita,
na
relao
entre
temas e
figuras;
pois
o
mesmo
tema,
relacionado com
figuras distintas, pode
aparecer em
formaes
ideolgicas
distintas.
O
tema
do exlio'', em Gonalves
Dias, aparece relacionado
s
figuras da natureza em que a ptria
maior e melhor que a
terra
do exlio. Isso reflete o momento
da
constituio da
nacionalidade. O
mesmo
tema aparece, em
Murilo
Mendes,. relacionado s figuras da dominao cultural
estrangeira
( Minha terra tem macieiras
da
Califrnia,/onde
cantam gatura
mos
de Veneza ).
determinao do
discurso
bastante complexa, pois h
um
campo da manipulao eonsciente e um da determinao
incons
ciente.
O campo da manipulao consciente o da sintaxe discursiva,
em
que o enunciador lana mo de estratgis argumentativas e
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de
outros
procedimentos
para criar
efeitos de
verdade
e -
de rea
lidade,
com
a
finalidade de convencer
o interlocutor.
O enuncia
dor organiza
a estratgia discursiva em
funo
de
um
jogo
de
ima
gens: a imagem
que
tem do
interlocutor,
a imagem que pensa
que o
interlocutor
tem dele, a
imagem
que deseja passar para o
interlocutor, etc. (Pecheux, 1975). em funo
desse jogo
de ima
gens
que
ele
usa certos
expedientes
argumentativos
e
no outros.
Embora consideremos
este o campo
da
manipulao
consciente,
pode-se,
em virtude de hbitos adquiridos, usar esses recursos
de
maneira inconsciente.
O
campo das
determinaes
inconscientes
constitudo de
um
conjunto de
temas
e
figuras
que constituem a maneira domi
nante de explicar
os
fatos do mundo numa dada poca
e
que so
oriundos de outros discursos
j
articulados, cristalizados e cujas
condies
de
produo
foram
apagadas.
Este o
campo
da
deter
minao
ideolgica
propriamente
dita.
Conquanto seja
incons
ciente a determinao ideolgica,
pode
ela ser tambm
consciente.
necessrio agora precisar
os
conceitos
de
formao
ideolgica
e de formao discursiva.
Formaes Ideolgicas e Formaes Discursivas
Marx mostra,
em
O
Capital
que
h
no real
um
nvel
de
es
sncia e um nvel de aparncia.
No
modo
de produo capitalista,
a aparncia do real vista como o prprio
real.
O capitalismo
engendra formas
que
mascaram sua e s s n c j ~ Assim, por exem
plo, no
nvel
da
circulao aparncia), todos os homens apare
cem
como
iguais, pois todos
so
detentores de mercadorias, que
so
trocadas.
Alguns vendem
seu
trabalho,
livres
de quaisquer
vnculos
de
dependncia pessoal;
so
livres para estabelecer rela
es
contratuais
com
outros homens
e
em troca
recebem
um
sa
lrio. Aprofundando-se,
no
entanto, a
anlise, nota-se que
eles
no
vendem
seu
trabalho, mas
sua
fora
de
trabalho.
Com
isso, ob
serva-se que
a jornada de trabalho divide-se em tempo
de traba
lho pago
e
tempo
de trabalho no pago. O
capitalista apropria-se
do trabalho no pago, constitutivo
da
mais-valia. O salrio,
que
no
seno
o
elemento destinado
reproduo
da mo-de-obra,
apaga a
distino entre tempo de trabalho necessrio
repro
duo
da fora
de
trabalho e
tempo
no
pago.
O salrio, no
nvel
da
aparncia,
aparece
como
o
pagamento do trabalho
e
no
da fora
de trabalho.
Observe-se, ento,
que,
no nvel da circulao, as
relaes
so
ciais
aparecem como relaes
entre
indivduos livres e
iguais.
Entretanto, no nvel da fSsncia, essas relaes so entre classes
e no entre pessoas.
No existe
a troca,
mas
a
explorao. No
2
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h nesse nvel, nem igualdade nem liberdade mas relaes de
poder. A partir da
produo
estabelecem-se as classes, sociais; a
h exploradores a explorados. O real
no
nvel da aparencia pe
se invertido
e , a partir da, que
se
elaboram as
repiesentaes
que servem para pensar a
relao
dos homens entre si. Assim,
ideologia o conjunto
de representaes elaboradas
a
partir
da
aparncia do real o conjunto de racionalizaes que justificam
no
nosso
caso
a
sociedade burguesa.
No
entanto
h a seguinte questo. Por que a Economia Pol
tica s6 ficou na aparncia do real, ao
analisar
a sociedade capita
lista, e
no
chegou sua essncia? A resposta que ela se identi
ficava
com
os
interesses
da
burguesia e
portanto
s poderia ir
at aquelas formas do real engendradas para mascarar a essn
cia
da
sociedade capitalista.
Isso
no quer
dizer que a classe he
gemnica s revele os fatos que lhe
interessam
ocultando deli
beradamente outros
para
ludibriar
o
proletariado. Embora
no
se possa excluir essa possibilidade as representaes ideolgicas
esto presentes
na
maneira de todas as classes
pensarem
a socie
dade. Elas justificam a hegemonia de uma classe
para
todos os
membros
da
sociedade.
Assim, os problemas que a
Economia
Po
ltica clssica se colocava eram aqueles relacionados com a apa
rncia
do real.
Isso
significa
que nenhum conhecimento
neutro
pois ele expressa sempre uma viso de mundo. Dessa forma h
um
corihecimento
que
sobrepaira
as
aparncias
e
outro que
vai
at a
essncia
do real. Podemos, pois
entender
nesse sentido, a
ideologia
como
uma viso de
mundo
que no
seno
o ponto
de
vista
de
uma
classe social. Assim, poder-se-ia
historicizar
o
onceito
de
ideologia: so representaes que se elaboram a par
tir da
realidade
seja
de suas
formas aparentes seja
de
suas for
mas essenciais.
A
partir
da, pode-se observar que
no
h uma
separao
en
tre ideologia e cincia, como queria
por
exemplo, Althusser,
pois
a cincia
que
trata das aparncias do real analisa tambm ele
mentos reais
como o salrio, a mercadoria o preo etc. A ideolo
gia
assim
constituda pela realidade e constituinte
da
realidade.
Na sociedade burguesa
o ponto de vista burgus
a viso
de
mundo
elaborada
a partir das
aparncias
do real, enquanto a
proletria
organizada
a partir
de sua
essncia.
H que
observar
entretanto que a viso de mundo domina,nte na sociedade bur
guesa a
cosmoviso
burguesa.
Como
se
materializam
essas vises
de
mundo?
Materializam
se
na linguagem
em
suas
i ~ r e n t e s
manifestaes: a
verbal
a
visual, a gestual etc. Essas vises
de
mundo corporificam-se num
estoque
de temas e figuras,
que
constituem a
maneira
de pensar
o mundo numa dada poca.
Esses
temas e figuras So repetidos
na
maior
parte dos discursos produzidos
numa
formao social
3
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concreta.
Temos, ento, que considerar a form o ideolgic
como
urna viso de mundo,
ou
seja, o ponto de vista de uma elas
se
presente
numa determinada formao social, e a f
rm o dis
cursiv
como o
conjunto de
ternas e figuras que materializam
uma
dada formao
ideolgica.
Ainda resta o
espinhoso
problema do sujeito que produz o
discurso. Em primeiro lugar, existe o sentimento arraigado
de
que
o homem livre para
pensar
e para
produzir
enunciados.
Em segundo, nota-se
que os
textos
que
os
homens produzem no
so iguais, o que invalidaria, segundo
certos
crticos, a idia de
que os
discursos
so determinados
pelas
formaes ideolgicas.
Comecemos pela
segunda
objeo. Para respond-la
preciso
pen-
sar um
outro
nvel
da
linguagem, o da manifestao.
O Social e o Individual Discurso e Texto
At agora estivemos refletindo sobre o plano do contedo.
contedo
manifesta-se por meio de um
plano
de expresso. A ma
nifestao , pois, o
encontro do plano
de
contedo
discursivo
com um plano de er:presso, que pode ser verbal, visual,
gestual,
etc. O
plano
de
expresso
veicula o significado. Nesse plano, ocor
rem os efeitos estilsticos e as mltiplas coeres do
material
uti
lizado.
Os efeitos estilsticos agregam sentidos da
expresso
ao pla
no
do contedo. No verso Pedras, pingos pulam de alegria , do
poema
Chuva de Pedra , de Augusto Meyer, a aliterao do /p/
patenteia
o saltitar das gotas
duras .
No verso de Garcilaso ces
tillos blancos
de purpreas
rosas ,
mostra
Dmaso Alonso
que
o
vermelho ias rosas oferecidas
ninfa morta
destacado certa
mente pelo contraste com o branco dos cestinhos
em que
eram
trazidos, porm esse contraste reforado pela ordem quistica
das
palavras dos dois sintagmas, pelo contraste dos timbres e
u
nos adjetivos e pelos acentos colocados sobre essas
duas
vogais.
A
coero do material responsvel pelo fato
de
determina-
dos aspectos do
sentido serem
mais bem expressos por um
plano
de manifestao
do
que por
outro. A
cor
tem
importncia muito
grande no filme Gritos e sussurros ,
de
Bergman. H todo
um
sentido derivado do
contraste
entre os tons escuros e os tons
claros
e luminosos. Dificilmente esse sentido seria revelado por
um plano verbal
de manifestao.
Essa
coero
ocorre
tambm
quando usamos uma lngua e no outra. Da a dificuldade de tra
duo do texto potico, que faz
largo
uso dos efeitos estilsticos
de expresso. Se se
traduz
o verso virgiliano Stetit illa tremens
por E ela parou tremendo ,
perdemos
o valor sonoro do
tremor,
dado pela aliterao do
/t/.
4
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discurso
pertence
ao plano
do
contedo. :e o
cemponente
do. percurso gerativo p ~ sentido em que as formas
do
componente
narrativo so r ~ v e s t i d s de temas e figuras, localizadas ac::orial,
espacial e temporalmente. texto o lugar da
unio
de um plano
de contedo
com um
plano de expresso.
O
texto
tambm um lugar da
manipulao consciente
em /-
que
o
falante pode organizar
os
recursos
da
expresso
para
vei
cular da melhor maneira possvel certo discurso. A formao
discursiva constitui
a matria-prima. de que um
homem de
uma
dada
formao
social dispe para elaborar seus discursos. Ele,
no
geral
reproduz
em seus discursos os
temas
e as figuras pre
sentes nos discursos dominantes
de
uma dada poca. No entanto
cada pessoa
textualiza
diferefl:temente os temas e figuras -repe
tidos na maior
parte
dos discursos produzidos numa
certa
poca
numa dada formao social. O discurso o lugar do social, en- i
quanto
o
texto
o
lugar
por
excelncia
do
individual.
A iluso da
liberdade
discursiva situa-se no
fato de
que o
texto individual ou seja
nico
e irrepetvel. O
discurso
smu
la ser individual, porque o texto que o veicula e
que enquanto
plano
de
expresso no tem sentido varia
de
pessoa
para
pessoa.
Entretanto deve-se ressaltar que se a textualizao individual
ou
seja subjetiva essa subjetividade objetivada
isto essa
individualidade socializada, uma vez que ela formada por meio
de operaes
modelizantes
de aprendizagem,
que
incluem
o
apren
dizado da lngua, da retrica e dos procedimentos de formas de
elocuo.
O mesmo discurso pode manifestar-se
por
muitos textos di:
ferentes. Por
isso, a liberdade de textualizar
muito
grande
e
est condicionada apenas pelos processos modelizantes de apren
dizagem ou seja
pela
tradio textual.
O
Prob\ema do
Sujeito do Discurso
Muitas vezes se diz, que m p ~ s s v e l pensar o p r o b l e ~ , a ~ -
relao
entre
classe social e discurso
porque
o enunciador real
pode simular um
discurso
que
no
represerita a
formao
ideol
gica a que ele est ligado. Desse modo, no se
pode
dizer que
quem
pl Oduziu um discurso
seja um burgus ou
um
proletrio
..
Esse
um
falso
problema.
Seno
vejamos.
Bakhtin
mostra
que
a realidade da conscincia a linguagem. Os contedos da
conscincia so
lingsticos.
Segundo
ele, sem
linguagem. no
se
pode
falar
em
psiquismo
humano
mas
somente
em processos
fisiolgicos ou processos do sistema? nervoso. No
h para
ele,
uma atividade mental independente
da
linguagem. O discurso no
5
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expresso de uma conscincia mas esta formada pelo con
junto
de
d i s u r ~ o s
interiorizados pelo indivduo. Se os discursos
so sociais a conscincia tambm o .
A ideologia burguesa
reluta em
apoiar a tese de que a cons
cincia
social pois
repousa
sobre o conceito de individualidade
e concebe a conscincia como o lugar da liberdade do indivduo.
No
mago
do seu ser ele
estaria
livre
da
opresso
social. Desses
conceitos derivam as idias de uma liberdade abstrata
de
pensa
mento e expresso e
de uma criatividade
que
seria preciso
culti
var
pois seria
a expresso
da subjetividade
da
conscincia indivi
dual. No entanto como a conscincia constituda
de
discursos
ela social. No existe a liberdade
absoluta
do indivduo preco
nizada
pela
ideologia burguesa pois o indivduo produto de
relaes
sociais.
O
enunciador
enquanto ser
social
depositrio de
vrias
formaes discursivas que existem numa
formao social
concre-.
ta dividida em classes sociais distintas embora em geral ele
seja
suport apenas da formao discursiva dominante aquela
que
materializa
a formao ideolgica
dominante.
Assim a anlise do
discurso no se interessa por
saber
se o enunciador real est re
velando ou
pcultando
com
o
discurso sua posio
de classe.
n
lise do discurso no investigao policial. O interesse da anlise
pela ideologia
transmitida
pelo
enunciador
inscrito no interior
do
discurso
ou seja
aquele
que no
discurso
diz eu
O enunciador real sempre vocaf:a as formaes ideolgicas
existentes
na
formao
social em
que vive. Ao
enunciar
revelan
do
ou ocultando sua posio de classe ele
d
voz
aos
diferentes
agentes do discurso que so as classes ou as
fraes
de
classe de
uma
determinada formao social.
Tolstoi
era
aristocrata
mas
em seus romances ele
d
voz
por
exemplo ao campesinato. O
que certo
que um enunciador
no foge nunca a uma
das
for
maes
discursivas
da
sociedade
em
que
vive.
O discurso no
portanto
o lugar
da
liberdade e
da
criao
mas o lugar de reproduo dos discursos das classes e
das
fraes
de classe. O
indivduo
no fala o
que quer mas
o
que as
formaes
discursivas querem que ele fale. Ele no fala mas
falado por
um
discurso. Quando se diz porm que
cada
classe
tem o seu discurso
no
se pode
esquecer que
assim
como
a ideo
logia dominante a da classe
dominante
o
discurso
dominante
o
da
classe dominante.
No
se
exclui
e v i d e n t ~ e n t e
a possibili
dade de
o homem
forjar discursos
crticos
qiferentes portanto
dos discursos dominantes. S que o discurso crtico no surge
do
nada
mas
est previsto numa
formao
social.
Se o sujeito do discurso
no
um indivduo pouco importa
que
seu
discurso seja
sincero
ou mentiroso ele
estar sempre
16
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manifestando alguma
formao
discursiva
exfstente na sociedade.
Mesmo quando cria outros mundos,
como, por
exemplo,
na
fico
cientfica, ele revela os valores, as carncias e as
angstias
>re-
sentes
numa
dada
formao
social.
oncluso
Uma teoria geral da
linguagem
deve estar atenta. para
as de-
terminaes sociais
que
incidem
sobre
a
linguagem
e
para
a rela
fiva
autonomia da
linguagem
em relao
s formaes sociais.
Para
isso,
unia
teoria
deve comear
por
distinguir
nveis e dimen
ses
determinados ou
autnoroos,
individuais ou
sociais. O lin
gista deve
ter
presente a fala
de Riobaldo em Grande Serto
Veredas;
Todos
esto loucos, neste mundo?
Porque
a cabea da gente uma
s, e as coisas
que h
e que este> para
haver so
demais
de
muitas,
muito maiores
diferentes, e a gen.te
tem que necessitar de aumentar
a
cabea
para o
total.
17
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II O DELITO SEMNTICO
A semntica tortuosa
dos
demagogos
transmudava o mal em bem e o bem
em mal, prenunciando trgica
noite
da
naufrgio de nossas mais puras tra-
dies culturais.
Ernesto
Geisel
O
Discurso
Lacunar: Algumas Opes Metodolgicas
A
revoluo
produziu
uma enorme massa de discursos.
Para tratar esses dados tivemos que tomar algumas decises meto
dolgicas.
Em
primeiro lugar, limitamos a
nossa tarefa,
principal
mente, ao
estudo dos
discursos
do
marechal
Castelo
Branco.
Cre
mos que
seus discursos so representativos do discurso
do movi
mento militar
de
64,
porque,
conforme constatamos, seus temas
e as figuras invariantes esto presentes, em sua plenitude, no dis
curso
do
primeiro presidente ps-64 e porque, agindo o presidente,
assim como
todos os demais que
se
lhe
seguiram, como delegado
e
representante
do
que se
convencionou
chamar sistema ,
fala
ria a palavra do ncleo do poder. Ademais, como chefe
de
um
poder
executivo
todo-poderoso, que tirou do legislativo muitos
dos
seus poderes,
submetendo-o a
seus
desgnios
por meio
de
uma maioria
dcil e da
cassao dos mandatos
dos
insubmissos,
que subtraiu,
por
meio
de
atos institucionais, muitas das suas
atividades da apreciao
do
judicirio, que
conseguiu
muitas vi-
trias
polticas
nos
tribunais
superiores,
cassando
alguns dos
seus
membros, aumentando ou
diminuindo
o
nmero de
juzes
conforme
seus
interesses e suspendendo as garantias constitu
cionais de vitaliciedade
e inamovibilidade
da magistratura,
o pre
sidente
da
Repblica imprimia
a
linha
a
ser seguida nos discursos
situacionistas.
Alm disso, todos os
presidentes
que se segui
raro ao
marechal Castelo Branco
apresentaram-se como
con
tinuadores
da obra da
revoluo
de 64 e,
assim sendo,
no
poderiam falar um outro discurso.
-Em segundo lugar, deliberamos e s c ~ l h e r
dentro
da
massa
de
dados, os pontos que
sero
analisados. O ato de conhecer uma
interao entre
o
sujeito cognoscente
e o objeto.
conhecimento
no , como queriam
os idealistas,
apenas produto ou construo
da subjetividad_e,
nem
como ensinavam os _positivistas, produto
' da
realidade
objetiva. O sujeito desernpenh um papel ativo no
processo
cognitivo.
No entanto,
deve-se
entender
que. o sujeito
8
8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964
21/159
no uma
subjetividade pura,
mas uma consc1encia, que contm
predilees, pontos e vista. _ :nfim, uma viso de mundo, que
resulta
das
condies materiais de existncia. Essa subjetividade
tem origens
sociais e,
por isso, ela no
qualifica
apenas u
dado
indivduo.
Assim,
se
ela
resultante
dos condicionamentos sociais,
exteriores ao indivduo, - uma subjetividade objetiva. Objetividade
e subjetividade fundem-se no processo
do
conhecimento (Bakhtin,
1972,
21-22, 34;
Marx, 1968, 59).
-
Se
o
conhecimento
uma
interao dialtica do sujeito
cog
noscente e
do objeto,
no
h possibilidade
de
uma nica leitura
dos textos, mas abre-se a possibilidade de diversas leituras que
f se fundamentam nas escolhas que fz o analist_a. O texto a ser
analisado
um texto construdo com base
nos diferentes textos
ocorrncia. Com isso,
estamos
alertando para o fato de que o
texto construdo
no
apresenta todos
os
programas
narrativos,
os
temas
e
as
figuras e
os processos
de enunciao
que
aparecem
nos textos-ocorrncia, mas somente aqueles elementos
pertinentes
de cada
nvel de
anlise
que
constituem inv ri ntes do
discurso
revolucionrio .
A marcha da anlise um vaivm do texto cons
trudo
para os textos-ocorrncia.
Este estudo pretende desvendar
as lacunas do cfGcurso do
poder. Como mostra Marilena Chau 1981, 21), o
discurso
ideol
gico
lacunar
e
sua
coerncia
no
existe, apesar dessa lacuna
ridade, mas
graas a ela.
Diz
a
mesma
autora
que ele
coerente
e
eficaz
porque no diz
tudo nem pode
diz-lo. O preenchimen
to
das lacunas no corrigiria o discurso ideolgico, mas destru
lo-ia,
porque
retiraria
dele
a condio necessria de
sua
existn
eia e de sua fora. Esta provm de uma lgica que poderia
ser
chamada lgica
da
lacuna,
lgica do
branco .
Este trabalho pretende
mostrar
as lacunas do discurso revo
lucionrio . Como, porm, mostr-las, cingindo-se
apenas
ao tex-
' ,
to
analisado?
H contradies
facilmente
demonstrveis no texto.
A presena, entretanto,
de
um nico
enunciador
garante uma cer
ta
homogeneidade ao discurso.
Diferentemente, por exemplo, de
uma pea teatral
em
que h vrios enunciadores,
manifestando
-diferentes
vises-
da
realidade, e
em
que
no
h, seno nas mar
cas cnicas (ou s vezes no coro que sublinha uma viso do real),
um narrador
que exerce
uma
funo veridictria,
apresentando
enunciados
que
determinam o que verdade e o
que
mentira,
o discurso poltico tem
um narrador
nico,
presente
corno ator
na
narrativa.
Se
no
h
vrios narradores,
no
h
vrias vises
da narrativa.
Para
mostrar
a ambigidade
da narrativa,
preciso
ouvir narradores diferentes. No
caso
de discursos que tm por
funo precpua
transmitir
uma
ideoloiia,
preciso
ouvir
narra
dores diferentes, colocados em lugares sociais
distintos
e q\le te-
nhal11;, por isso, ideologias _diversas.
.
19
8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964
22/159
Tendo levantado os
diferentes
contedos aII).bguos, a opo
por
uma das verses da
narrativa
se faz
com fundamento
numa
postura
ideolgica.
Nota
Rastier 1973, 93) que,
quando
Greirnas,
no comeo da descrio da narrativa mtica, considera que o me
nino
que viola a me um tr.aidor, ele o faz eqm base no conhe
cimento
de uma axiologia
social
que
tem
as relaes. sexuais
entre
me
e filho
n
conta
de interdies. Nada
impede
que, den
tro de outro. sistema social, o
mesmo ator seja
o heri. Da mes
ma
forma, os contedos investidos
no
discurso do poder ganham
um determinado valor na
verso
de
um
enunciador e
outro
na
de um segundo responsvel pela enunciao. O traidor de um
verso ser
o heri de outra, o
que eufrico
numa
ser
disf
rico noutra e assim sucessivamente.
Reconhecemos
que
nosso estudo fundado numa viso de
mundo,
pois no
admitimos, conforme
explicamos em outra par
te, a neutralidade cientfica.
H,
porm, estudos que ficam na
aparncia
do real e outros que procuram
chegr
at sua essncia.
Quer este
trabalho mostrar que o discurso do golpe de 64
tenta
fazer crer que formas aparentes do
real
constituam a realidade
total.
O Discurso Construdo: . Invariantes do Discurso
de 64
a)
O
povo elegeu
Goulart
vice-presidente da
Repblica.
b)
Goulart tomou posse da presidncia na vacncia do
cargo
por
renncia do
seu
titular
.,,, c) Goulart conduz o
pas para
o
caos
subverso poltica,
estagnao
econmica e
corrupo).
d) A imprensa informa o povo do
verdadeiro
sentido dos
atos
de
Goulart.
e)
povo, descontente com
a
siruao, desqualifica
Goulart
e
qualifica as
Foras
Armadas
para
dirigir
o
pas.
f) As Foras
Armadas
depem Goulart, para .salvar o pals do
comunismo. .
g)
As
Foras Armadas repem o pas no caminho da
ordem
e do desenvolvimento e acabam com
a
corrupo. O que as Foras
Armadas fizeram foi uma revoluo; no deram um golpe .de
Estado,
h) H algumas dificuldades
no presente,
mas anuncia-se
para
o
pas uma
poca
de grande prosperidade
e
tranqilidade em que
o Brasil realizar o
seu
destino histrico de
grande
potncia. Nes
se
tempo, todos os brasileiros colhero os butos do desenvolvi
mnto.
i) H alguns antipatriotas que pretendem contestar o regime.
j)
O que cada
um
deve fai:er, dentro
do sistema,
trabalhar
para o engrandecimento do Brasil.
21
8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964
23/159
1
As realizaes da revoluo em seu
trabalho
pelo cresci
mento
do Brasil so X
11
X
2
X 3 X n
m) O
coqflito
que
se travou no
Brasil_ est irlserido na
luta
entre a democracia e o comunismo.
Ao relacionar.
as
proposies
invarin
tes do discurso
do
po-
der, o
que
fizemos foi transformar
os
discursos-oorrncia
em
discurso do descritor ,
ou
s e j ~
reduzimqs
as
variantes a inva
riantes.
Os
discursos-ocorrncia
nada
mais fazem do que saturar j
semanticamente
a forma abstrata acima exposta. '
A
reduo
foi feita,
limitando-se as sinonmias
parciais. Cons
tituram-se, assim,
as
classes
de
contedo a
operar. Essas
classes
definem
atores e processos. Para. chegar, entretanto, aos enun
ciados cannicos da narrativa,
onde
sero
identificados
estados
e'
transformaes, . preciso substituir
os enunciados
lingsticos
derivados por
sua estrutura
de base
{Rastier,
1973, 97-98.) Isso
ser
feito
medida que cada enunciado for sendo
analisado.
.
Deve-se notar
que
os
enunciados
narrativos sero apresen
tados na
ordem de
sucesso no
tempo
d
narrativa
e no na.
ordem
de
manifestao
no discurso lingstico.
O Componente
Narrativo
e a Semntica do Componente Discursivo
A Eleio de Jango
1. O mecanismo
democrtico
O princpio
sobre
o
qual
se fundamentam
as democracias
.
burguesas
o que est inscrito no artigo
primeiro
da Constitui
o
do
Brasil:
Todo poder emana
do povo e em seu nome
exercido . Nota Marilena Chau {1980, 88-89)
que
o liberalismo
concebe
a
democracia exclusivamente como um sistema poltico
que
repousa sobre cinco postulados institucionais:
a) eleio dos
governantes por
melo de consulta popular pe
ridica,
em que
prevalece a
vontade
da
maioria;
b) competio entre posies diversas de
homens, gIUJ?OS ou
partidos nas
eleies;
c) liberdade de expresso e de
divulgao
de opinies diver
gentes na competio;
d)
proteo
maioria contra a perpetuao de um grupo no
poder
e
minoria contra
o
alijamento das
assemblias
em
que
se discutem e decidem questes de. interesse pblico;
e)
proteo
dada pelo judicirio ao
cidado
contra o arbtrio.
dos
governantes
e
ao
sistema 'contra o despotismo, submete_ndo
governantes e. governados ao
imprio
da
lei,
ou
seja,
da
corisfi
tuio.
8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964
24/159
No se
pretende
discutir aqui se esses postulados correspon
dem ou no realidade, quais so suas fraquezas e
seus
pont-os
falhas. Sero aceitas, para efeito de argumentao, da maneira
como
esto
postos. Teoricamente, numa democracia, o povo o
detentor do poder.
Por isso, nesse sistema poltico
deve
haver,
peiodicamente,
eleies
livres
em
que
os
governantes so esco
lhidos
pela maioria
dos
eleitores
e
as
minorias esto represen
tadas
no
Parlamento. Isso se
faz conjugando-se o
sistema de
elei
es
rnajoritrias
com o sistema de eleies proporcionais>
O processo democrtico pode ser analisado
como
uma srie
de enunciados narrativos. Uma
eleio
um
contrato
entre um
destinador e
um destinatrio-sujeito.
O
destinador
a
maioria dos
cidados
de um pas,
de um
Estado ou
de um
municpio nas
eleies
rnajoritrias
ou
uma parte
deles nas eleies
proporcio
nais.
O
destinatrio pode
ser
um
homem,
um
grupo
ou
um
par
tido. O contrato unilateral, pois o destinador manifesta urna
proposio que pode ser interpretada como: D
1
(destinador) quer
que
D
2
(destinatrio)
seja
governante e
faa
aquilo que ele props
fazer em
seu
plano de
governo;
o
destinatrio,
por
sua
vez, as
sume o
compromisso que
no_
seno
o
dever de
D
2
de
execut:rr
o
querer de
D
1
O
contrato unilateral composto
de uma deter
minao
e uma
aceitao. Por
isso, o
contrato
altera o.
estatuto
de
cada
participante.
No
momento em
que se
d
o
contrato
elei
o), o destinador torna o destinatrio-sujeito competente segundo
o poder pois lhe transmite o
/poder-fazer/
(todo poder
emana
do
povo), embora no
renuncie
a ele o
povo
sempre detentor
do poder), mas
ao seu
exerccio direto o poder exercido em
nome do
povo).
Ocorre, aqui, o dom do /poder-fazer/, porque a
uma atribuio do objeto a D
2
corresponde uma
renncia
por parte
de D
1
O
destinador
atribui o poder ao destinatrio e ren_uncia a seu
exerccio.
O
contrato
estabelece um dever-fazer para D
2
(prescrio) e,
ao mesmo tempo, institui um /no-poder-no-fazer/ obedincia),
que
implica
um /poder-fazer/. Correlacionados o
/dever-fazer/
de
D
2
, que
conforme
com o /querer/ de D
1
, e o /no-poder-no
fazer/, que
obriga o governante a fazer
aquilo
que est
previsto
no
plano
de
governo,
o /poder-fazer/ da
resultante
poderia
ser
denominado liberdade vigiada .
No
final da execuo
do
fazer
do
sujeito (fim
do
mandato).
o destinador povo)
exerce
a sua
sano sobre
seu fazer. A sano
executada
pelo destinador cognitiva e
pragmtica,
positiva ou
negativa.
Se
o
sujeito
cumpriu as obrigaes
contratuais
recebe
a recompensa positiva).
Em
caso contrrio, sofre a punio ne
gativa).
No sistema democrtico, se a
sano cognitiva
e
pragm
tica for positiva, o destinador tem como recompensa a atri-
8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964
25/159
buio do
poder
por um
outro
perodo determinado (novo m n-
daw).,Se
for negativa, a punio ser-,a-cas ae,oo:poder atribudo
anteriormente (no-reeleio). O poder e o
querer
so intrnsecos
condio
de cidado.
-,
Para
que haja democracia
preciso
que
haja competio
liV're
entre
os concorrentes ao
papel
de
contratante com
o povo. O des
tinador, ento, escolhe seu destinatrio. Desse modo, o contrato
precedido por uma outra
operao da
ordem do
saber em que
programas virtuais
de
fazer (programas de governo) so propos
tos para
o destinador.
Essa operao
cognitiva e
pressupe um
fazer persuasivo dos que pretendem
ser
o
destinatrio
do /poder
fazer
atribudo
pelo
povo e um fazer interpretativo do destina
dor
do
poder. Os
diferentes candidatos procuram comunicar um
objeto
do saber (plano de governo), modalizado como verdadeiro.
Os eleitores
exercem um
fazer interpretativo
que
procura avaliar
o
objeto
a
partir
da
sua
viso
de mundo.
a
um
fazer
dedutivo,
que tem
um
estatuto formal comparvel ao do raciocnio mate
mtico:
os
teoremas que se podem deduzir
de um
axioma
dado
so corretos, mas no
so
verdadeiros no sentido
estrito do
ter
mo; seu valor
de verdade
depende inteiramente d verdade
dos
enunciados
constitutvos
do axioma (Greimas, 1976, 188).
Assim,
os eleitores estabelecem a
verdade falsidade mentira
do objeto
transferido,
com
base em valores
da
sua viso de mundo, tomada
como
um
axioma.
o
saber
que
adquirem,
nesse
caso'
no
neces
sariamenie verdadeiro,
mas
correto
em
relao
sua
ideologia.
Nessa operao de transferncia do
saber,
os candidatos so des
tinadores
e
o povo o destinatrio. Os candidatos apresentam-se
como
sujeitos
competentes segundo o saber.
Tendo
o povo reali
zado
o fazer interpretativo,
realiza
a seleo de
um
dos progra- ,
mas e quer
que
ele
seja
executado. Para isso, sendo o destinador
segundo o poder, o n e d ~ a competncia /poder-fazer/ ao candi
dato
escolhido, que o destinatrio segundo o poder, o querer
e, agora tambm, segundo o sber.
O discurso poltico _ essencialmente persuasivo. Distingue-se
em discurso poltico
da
situao e da oposio. o discurso situa
cionista
o
diSCW sa
da
prestaa
.de contas, ou seja,.
aquele que
visa a persuadir o destindor da sano de que o que foi contratado
foi cumprido e de que, por isso, o sujeito deve receber uma san
o positiva
no
plano cognitivo e no plano pragmtico. O
dscurso
oposicionista pretende mostrar que o
fazer
no foi executado ou
que
foi
danoso
ao
povo e que,
por
isso, o
sujeito
deve
sofrer
uma
sano
negativa. Alm disso,
prope
a execuo de
um outro
fa.
zer e, para isso, deseja obter o poder de que o povo detntor.
Situao e oposio desejam fazer com que o povo atribua a um
partido e no a outro o poder. eleio
,
antes _de mais nada,
um conflito de manipuladores, em que o povo escolhe
um e l e s ~
23
8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964
26/159
fundamental, para que
haja processo democrtico, que
pos
sa haver competio entre pessoas, grupos ou partidos, o que im
plca
a possibilidade de
alternncia no
poder, ou
seja,
que exista
uma relao entre desapossameI1to_e
atribuio
do poder. No
pode,
entretanto,
haver
uma
oposio entre desapossamento e
atribuio, pois cada uma dessas
operaes
no a projeo si- -
mtrica
da
outra. A
relao entre elas
,
ento, urna
relao fun.
dada em um princpio de sucesso. No entanto, como cada
um
dos
termos
sucessivos projeta a
sua
imagem invertida,
ocorrendo
uma
relao entre
desapossamento
e atribuio, devem essas trans
formaes estar correlacionadas, respectivamente, com a apropria
o
e a renncia. O povo, na eleio,
apropria-se
do poder que
atribura a um destinatrio e,
por
conseguinte, desapossa-o dele.
Em seguida, atribui-o a
outro destinatrio
ou
ao
mesmo e
renun
:i ; eia a seu exerccio direto. A eleio o
momento
em que h
ntida
distino
entre
o
poder'
e o
seu ocupante,
ou
seja,
entre
objeto
modal e sujeito.
As categorias semnticas usadas no discurso so temporali
zadas
e, ento,
articulam-se
numa nova categoria
/permanncia/ vs. /incidncia/
que
a adaptao ao
tempo
da categoria
/contnuo/ vs.
/descontnu()/.
O
discurso
aparece,
ento,
como
uma
sucesso
de
permanncias
e
de incidncias. Uma incidncia deve necessariamente intercalar-se
entre
duas permanncias, para
que
elas possam ser tom.adas como
distintas. O tempo articula-se na manifestao com um aspecto,
que a maneira como um
observador
percebe a temporalidade.
Para ele, a permanncia durativa,
enquanto
a incidncia pon
tual.
O
encadeamento
de /permanncia/ e de /incidncia/ s se
transforma
em processo se a
/pontualidade/
marcada
como
o
fim
(terminatividade)
ou
o
comeo
(incoatividade) do
processo
de
/duratividade/.
As temporalidades podem ser denominadas e
' investidas de um conjunto de
determinaes
semnticas. O pe
riodo
uma
permanncia denominada e o acontecimento uma
incidncia
denominada
Greimas, 1976, 71-72).
Dentro
do
processo democrtico de
transferncia de poder, a
eleio um
acontecimento,
enquanto o tempo
de
governo e a
legislatura
so
um
perodo, A incidncia, articulando-se com o va
lor aspectual /pontualidade/, incio de um perodo Uini::oativi
dade/)
e fim
de
outro
(/terminatividade/).
O
que
caracteriza
o
processo democrtico que o
perodo
r e ~ a r ou seja, tem
um
tempo de
durao delimitado
a priori No
se pode, sem
que
se
resvale na
tirania, aumentar a durao do perodo, enquanto
ele
transcorre,
sem
consulta
populao. Da mesma forma, no
se pode diminuir o
perodo.
24
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28/159
fazer/,
que lhe
fora atribudo
pelo
povo, disjunge-se dele
por
von.
tade
prpria .
4
Nessa poca
Goulart
estava viajandp,
em
misso
oficial,
pela
China
e pelo Oriente Mdio. renncia apanhou-o em Paris. Ao
lhe
ser
comunicada a notcia da renncia de Jnio, Goulart co
mea
sua viagem de volta para o
Brasil.
De Paris voou para Nova
York
(30
de
agosto);
da, para Montevidu
(31
de agosto);
da
Ca"
pital do Uruguai
para
Porto Alegre 1.
0
de
setembro).
Chegou de
avio a
Braslia
no dia 5 de setembro.
O presidente interino, Ranieri Mazzilli, notificou ao
Congresso
Nacional, no dia 28 de
agosto,
que os principais lderes militares
eram contrrios ascenso
de
Jango
presidncia por razes
de
segurana
nacional. Na vspera, o marechal Odlio Denys, minis
tro da Guerra, declarara que havia chegado a hora
de
optar en
tre o comunismo e o
Brasil
(Young, 1973,
125-126).
No dia 30,
os
ministros militares
divulgam 'uma
nota
conjunta em que
ma
nifestam
que o regresso
do
vice-presidente ao pas
era
um risco,
pois, por suas posies ideolgicas, conduziria o pas ao caos,
anarquia
e
guerra
civil,
terminando
por entreg-lo
ao comunis
mo, que faria ruir as instituies democrticas e, com elas, a
justia, a
liberdade,
a paz social, todos os mais altos padres de
nossa cultura crist .
5
Comea a ruir o discurso
revolucionrio ,
pois, antes de Goulart
tomar
posse, ele
j estava prejulgado.
O
golpe foi
abortado
e
outro
comeou
a
ser
preparado
(Dreifuss,
1981). Na realidade, o povo mais uma vez, por meio das suas
lideranas
polticas
eleitas, qualificava
Goulart.
O destinador (povo) havia estabelecido Goulart como o
desti
natrio virtual do
poder.
O
cargo
de vice
sempre
uma posio
virtual, pois ele
um
sujeito instaurado antes de sua juno. Ha
vendo uma disjuno
entre
o titular
do
cargo e o poder, ocorre
a conjuno que estabelece a realizao. Os lderes militares
so oponentes
da
transformao
do sujeito
virtual
em
sujeito
real, enquanto os governadores do Rio Grande do Sul, Gois,.
Santa
Catarina, Paran,
o III Exrcito, a cadeia da legalidade ,
populares
e
outras
personalidades civis e militares que
se pronun
ciaram a
favor
da posse de Goulart so os adjuvantes.
Para que
houvesse a posse de
Goulart
(conjuno com o po
der)
houve
um contrato
unilateral.
O Congresso Nacional desa
possa Goulart de parte do poder (poder executivo de
governar)
e atribui esse
objeto
a um
primeiro-ministro;
ao mesmo tempo,
atribui
a
Goulart
o
poder de chefe
de Estado.
A
relao
entre
desapossamento e atribuio
tematiz'da
pela implantao do
regime
parlamentarista
no Brasil. O querer do Congresso, ex
presso
em
emenda Constituio, implica uma obrigao
(/lever
fazer/)
para Goulart. A determinao
do
Congresso corresponde
uma aceitao de Goulart.
26
8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964
29/159
A
reforma
constitucional determinava que
um
presidente,
eleito pelo Congress, oomearia
um p r i l l 1 e i r ~ m i n i s t r o cm
a apro
vao
da
Cmara dos Deputados; o primeiro-ministro,
como
pre
sidente do gabinete,
desempenharia
os poderes executivos ante
riormente exercidos pelo presidente; o Congresso poderia destituir
o primeiro-ministro; um plebiscito seria realizado em
1965
para
que o povo decidisse se o regime
parlamentarista continuaria
a
existir no Brasil
ou
no.
O presidente estabeleceria um
sujeito
virtual do
poder-fazer
executivo (nomeao). A virtualidade tornar-se-ia realizao pela
vontade da Cmara dos
Deputados. A
Cmara poderia tambm
desapossar
o
sujeito
(primeiro-ministro) do poder. O povo,
pro
todestinador do poder, seria chamado a manifestar o
seu
querer
sobre a transformao que ocorrera, manifestando a sua sano
positiva. No dia
6
de
janeiro
de
1963,
o povo sancionou
negativa
mente
o
parlamentarismo
e voltou-se
ao
presidencialismo,
onde
no
h
separao entre chefia do governo e do Estado. Novamen
te
Goulart
foi sancionado
positivamente
pelo povo. ,,.-
A Beira do Abismo
Comearemos, agora, a
anlise
do discurso explcito
do p -
der. Antes, analisamos alguns
elementos
implcitos
pressupostos
logicamente pelos
0ntedos
explcitos.
Os papis narrativos colocados pelo discurso revolucion
rio e os atores correspondentes so:
Sujeito de Estado . . .
..
. . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . .
Brasil;
Objetos-valor ordem e caos;
e Objeto modal ,. poder;
e Destinador do
poder
. . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . .
..
. . . . . povo;
e Sujeito do fazer Foras Armadas
e
Anti-sujeito do
fazer
, . . . . . . . . . . Governo
Goulart.
Goulart
opera
uma
disjuno entre o Brasil e a
ordem
e uma
conjuno entre o Brasil e o
caos.
Os parassinnimos do
caos ,
que aparecem
no discurso do golpe,
so;
entre outros;'desorden ,
desrespeito , ''indisciplina , solapamento da autoridade , ' 'que
bra da hierarquia , subverso , estagnao econmica , orgia
inflacionria . '.'anarquia , '.'corrupo , demagogia , i n s o l v : Q . ~
financeira do
pas .
Goulart levou o Brasil
ao
caos,
porque seu
fim
ltimo era . bolchevizar
o
pas ,
ou
seja, operar
uma.
disjuno
entre o Brasil e o capitalismo e
uma
conjuno entre o pas e o
comunismo (1,
157; 2, 34;
2,
111; 3, 186; 3,
207;
3,
292 .
Diz o discurso que a nao estava
beira
do abismo . O
fundo
seria o comunismo. Goulart
no
conseguiu levar a nao
at l,
graas
pronta ao das Foras
Armadas
(2, 261-262).
Nem
27
111 ; 1
8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964
30/159
sempre
a expresso
beira do abismo aparece
manifestada.
Entretanto,
o
seu significado
pode ser
depreendido
de
l e ~ e m s ou
expresses
qu indicam um
quase ,
como perigos {tninentes
pairavam-sobre
a nacionalidade , s
port s da
anarquia'', pre-
nn io da
agonia ,
do
uso do
pretrito
imperfeito do indicativo,
que
indica
uma
ao no
acabada, como
em marchvamos
para
a
desordem'',
da utilizao
de
expresses
como
a Nao esteve
exposta a riscos
1,
84; 2, 21; 2,
285;
3, 50; 3, 245). Esses tempos
verbais e esses
lexemas
e
expresses
remetem
para
o significado
beira .
Para
perceber
o significado
abismo'',
temos que
opor
o
governo
Goulart, que
fazia
o pas
caminhar para
baixo ( afun
dava
o pas na corrupo e
na
subverso ), aos governos revo
lucionrios , que
procuravam levar o pas
para
o
alto
( tarefa de
soerguimento nacional e emergir
do
caos financeiro
em que
framos
mergulhados )
2, 33;
1,
14; 1, 21; 1 65; 2, 47; 2, 68; 2,
9_;
2
205;
3,
25).
Para
descrever a expresso locativa
beira
do abismo , deve
se recorrer aos procedimentos de