Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
31 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos
Rui Nunes or the brief story of gestures
Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS Universidade do Porto
diogobarbosamartinsgmailcom
ID ORCID httpsorcidorg0000-0003-0976-1642
RESUMO
Na literatura portuguesa contemporacircnea Rui
Nunes (n 1945) destaca-se pela singularidade
inclassificaacutevel da sua escrita na qual a crise da representaccedilatildeo do humano da identidade do
corpo eacute levada a uma zona limite que torna
indiscerniacuteveis porque mutuamente implicados uma radical crise genoloacutegica e as fragilidades
fiacutesicas do proacuteprio autor uma miopia progressiva
leva-o a exacerbar a monstruosidade do pormenor do descontiacutenuo e do fragmento em
detrimento das ldquograndes coesotildeesrdquo textuais
orgacircnicas ou metafiacutesicas Desfazendo o mundo dos objectos agraves personagens em ldquoescombrosrdquo e
ldquoruiacutenasrdquo o humano eacute reconduzido ao absurdo da
ldquocarnerdquo esvaziada de qualquer fundamento ontoloacutegico Eacute essa escrita-olhar que estaacute no
acircmago deste ensaio articulando-se para o efeito
com o ldquomomento qualquerrdquo na literatura segundo Jacques Ranciegravere o poeta Henri
Lefebvre um poema de Rilke e o problema do
ldquocorpo paliativordquo segundo Byung-Chul Han
PALAVRAS-CHAVE Rui Nunes olhar
escrita gesto corpo ruiacutena
ABSTRACT
In Portuguese contemporary literature Rui Nunes (b 1945) stands out for the
unclassifiable singularity of his writing in
which the crisis of representation (what it means to be human to have an identity to
understand onersquos body) is taken to a limit zone
In fact a radical genological crisis and the physical weaknesses of the author himself turn
indiscernible due to his progressive myopia
Rui Nunes exacerbates the monstrosity of detail discontinuity and fragment in detriment
of textual organic or metaphysical ldquogreat
cohesionsrdquo From objects to characters his world is a wasteland made of ldquohavocrdquo and
ldquoruinsrdquo bringing the human back to the
absurdity of his ldquofleshrdquo emptied of any ontological foundations This writing-look is at
the heart of this essay exploring its
connections to ldquothe random occurrencerdquo in literature according to Jacques Ranciegravere the
poet Henri Lefebvre a poem by Rilke and the
contemporary ldquopalliative bodyrdquo according to
Byung-Chul Han
KEYWORDS Rui Nunes look writing
gesture body ruin
Artiacuteculo recibido Febrero 2021
Artiacuteculo aceptado Abril 2021
Nuacutemero 9 pp 31-46 DOI
httpsdoiorg1031921microtextualidadesn9a
3
ISSN 2530-8297 2021 Microtextualidades
Microtextualidades
Revista Internacional de
microrrelato y minificcioacuten
Directora Ana Calvo Revilla
Editor adjunto Aacutengel Arias Urrutia
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
32 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
1 Alguns meses antes de morrer numa entrevista o poeta e tradutor Rui Caeiro
descreveu Rui Nunes (n 1945) da seguinte maneira
O Rui Nunes eacute daqueles casos em que eu costumo dizer lsquo[hellip] haacute aiacute uns tipos a escrever
umas coisas e que pretendem ser escritores agora o Rui Nunes eacute outra coisa esse eacute um
escritor a seacuterio natildeo faz coisinhas esse lida com a literatura luta com a literatura tem
raiva agrave literaturarsquo Eacute preciso ter raiva agrave literatura para se fazer alguma coisa interessante
neste campo porque de outra maneira estatildeo apenas a repetir-se as banalidades que andam
no ar (Caeiro 17 de Abril de 2018 em linha)
Lidar com lutar com ter raiva este ensaio mais natildeo eacute do que uma demorada (e
sofrida) aproximaccedilatildeo a esse clima visceralmente tenso que caracteriza a escrita de Rui
Nunes Nos seus livros como veremos a coesatildeo textual eacute desconjuntada com violecircncia desfeita em ldquobocadosrdquo ou ldquoescombrosrdquo dedicando-se uma extrema minuacutecia agrave
ocorrecircncia simultacircnea quase sempre caoacutetica de muacuteltiplos micro-acontecimentos O que
os liga Talvez esta foacutermula extrema para os tempos extremos desta eacutepoca a
ldquointimidade de uma ruiacutenardquo (Nunes 2020 28)
Por sua vez Rui Caeiro conclui aquela descriccedilatildeo dizendo que o autor de O Anjo
Camponecircs ldquo[hellip] tem outra caracteriacutestica que eu aprecio muito a pessoa e o poeta satildeo parecidos que eacute uma coisa que nem sempre acontecerdquo (ibidem) O regime das
semelhanccedilas eacute problemaacutetico sobretudo quando o que estaacute em jogo nesta afirmaccedilatildeo
decorre intimamente da subjectividade do entrevistado e dos laccedilos afectivos que os
unem Mas a parecenccedila aqui talvez seja o termo mais coloquial e por isso mais eficaz
para esboccedilar o efeito de contaacutegio entre a escrita e quem a escreve ndash sobretudo quando lendo os seus textos constatamos que ldquoa pessoa e o poetardquo estatildeo indiscernivelmente
ligados ao olhar aos seus constrangimentos e debilidades E os olhos de Rui Nunes
vecircem muito mal Mas vecircem vecircem o mal ou uma feiccedilatildeo imanente desse mal a
malignidade inscrita nas coisas nas palavras e nas relaccedilotildees humanas Em A margem de
um livro aponta
Os olhos na sua contiacutenua destruiccedilatildeo vecircem a luz
Satildeo os olhos destruiacutedos a luz
satildeo os olhos a destruiccedilatildeo da luz
(Nunes 2017a 46)
Destruir enquanto vocaccedilatildeo inerente ao acto de ver enquanto condiccedilatildeo inescapaacutevel
da doenccedila com que se nasce a doenccedila de ver muitiacutessimo mal E o que faz um homem que vecirc muitiacutessimo mal e que apesar disso ou ateacute forccedilosamente por isso escreve O que
diz a cegueira funcional de uma escrita que resiste agrave sua proacutepria anulaccedilatildeo que se
esforccedila letra a letra por perseverar E que resta da destruiccedilatildeo que um par de olhos
inflige sobre o mundo para desesperadamente ousar esclarececirc-lo no mesmo movimento
em que o corrompe
Por fim repare-se neste detalhe Rui Caeiro diz ldquoo poetardquo e natildeo ldquoo escritorrdquo quando descreve Rui Nunes Escritores satildeo os outros esses ldquotiposrdquo que escrevem ldquoumas
coisasrdquo Para demarcar uma niacutetida clivagem entre dois modos de relaccedilatildeo com a palavra
escrita o ldquopoetardquo surge como aquele cujos usos da palavra iluminam uma ideia de
verdade um comprometimento poliacutetico da palavra eacutetica e esteacutetica indissociavelmente
Ao longo deste ensaio veremos aonde isso nos leva a escrita o olhar a verdade ou a
intimidade da ruiacutena
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
33 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
2 ldquoJames Joyce e John Milton escreveram as suas obras-primas Finneganrsquos
Wake e Paradise Lost enquanto perdiam a visatildeordquo (Lefebvre 2019 27) Idecircntico comentaacuterio poderia ser feito acerca de Rui Nunes que natildeo tem feito outra coisa durante
mais de meio seacuteculo senatildeo escrever livros enquanto se foi esbatendo a visatildeo Uma
miopia progressiva que vem desde tenra idade somando-se essa a outras doenccedilas
obrigou o autor a conviver de perto com a falecircncia do corpo experimentando o corpo
senatildeo como invoacutelucro de crise sempre na iminecircncia de falhar de doer de exacerbar o seu deacutefice A sua escrita natildeo poderia estar senatildeo no limite ldquoNo limite da narrativa no
limite da linguagem no limite da visatildeo no limite das forccedilasrdquo (Coelho 2003 78) Uma
escrita-limite cujo condatildeo de representar o mundo ndash representar efabular urdir intrigas
e enredos ndash eacute obsessivamente assediado pela impotecircncia fundacional das palavras ou
melhor pela sua inerente cegueira (cf Derrida 2010) com um claro efeito devastador
As palavras morreram com os olhos
Morreram quando os olhos Distanciaram
Morreram os olhos quando distanciaram
Falamos palavras mortas
acumuladas no tempo de todos os mortos
Morremos E natildeo somos
mais do que o estrume de outras palavras mortas
Algumas vezes o ranho a merda e o choro
o gesto que a matildeo destroacutei na outra matildeo
eacute o que conseguimos
mais proacuteximo de ser verdade
(Nunes 2016 29-30)
A escrita de Rui Nunes insiste nesta exasperaccedilatildeo a de um mundo que apoacutes ter
conhecido piacutencaros de loucura destrutiva natildeo tem mais com que nos enganar E a
literatura ou diz esse engano sem reservas nem truques eufemiacutesticos ou eacute ela proacutepria
nada mais do que a consolidaccedilatildeo da infacircmia feita de palavras mortas e que cavam cada
vez mais longas distacircncias entre si e o mundo esse ldquoestrumerdquo a que nos vemos impiedosamente reduzidos Natildeo haacute uma saiacuteda faacutecil nenhum plano B Ter perdido a
esperanccedila mas sem desesperar eis a vereda pela qual esta escrita abre caminho numa
luacutecida acidez Foram-se acabando os mundos uns atraacutes dos outros a humanidade resta
como o eco de uma palavra destroccedilada pela sua tatildeo abusada quanto abusiva eloquecircncia
Morrem palavras cegam-se os olhos E ldquoo que conseguimos mais proacuteximo de ser verdaderdquo eacute apenas ldquoo gesto que a matildeo destroacutei na outra matildeordquo (ibidem) Natildeo a matildeo
iacutendice dessa continuidade ilusoacuteria que o corpo eacute enquanto organismo na sua plenitude
figurativa Natildeo a matildeo mas o gesto evanescecircncia o desenho no ar do que natildeo deixa
rasto A impressatildeo de um ritmo a inscriccedilatildeo de um movimento no corpo da escrita fazer
com as palavras o que uma matildeo desfaz no puro acontecer dos seus gestos Uma escrita que funcione como esses gestos tatildeo impossiacutevel quanto isso como um gesto fixado pelo
gesso da escrita ou uma labareda que o gelo preservasse Uma contradiccedilatildeo insuperaacutevel
como eacute a de um homem capturado no seu ldquoesbracejarrdquo Esse caldo aflitivo de gestos
seraacute para o autor o seu retrato mais verdadeiro mas mais verdadeiro natildeo significa que
seja menos terriacutevel
O fogo natildeo tem um desenho propaga-se ateacute agrave cinza o sinal do vento Um homem
confunde-se com a chama Instaacutevel como ela nos movimentos desconexos Na sua
afliccedilatildeo esbraceja Eacute um instante completo o esbracejar de um homem (idem 36-7)
3 Se eacute verdade que todos os livros de Rui Nunes constituem uma forma de
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
34 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
humilhaccedilatildeo das garantias do romance enquanto veiacuteculo de descriccedilatildeo e fluecircncia
narrativa faz sentido destacar Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado (1995) como o livro-charneira dos ulteriores e agudizados desvios que o autor infligiraacute
na composiccedilatildeo dos textos O que A Matildeo do Oleiro (2011) Barro (2012) Armadilha
(2013) ou A margem de um livro (2017a) tecircm em comum eacute o progressivo esboroamento
da condensaccedilatildeo narrativa o texto esfrangalha-se a coesatildeo das manchas graacuteficas tende
para uma dispersatildeo cada vez maior Surgem pequenas ilhas de texto de tamanho desigual com a insistecircncia do autor no uso de marcas tipograacuteficas distintas (itaacutelicos
negritos espaccedilos em branco) as frases surgem abruptamente interrompidas como
gaguejos que natildeo chegam sequer a completar uma unidade miacutenima de sentido capaz de
funcionar como frase
Comeccedila-se partindo (espatifando repetindo ateacute ao riso ateacute perguntarem que merda eacute esta natildeo sabes escrever E eu ainda natildeo) desenhando o labirinto de um espaccedilo vazio
O espaccedilo interminaacutevel de uma parede (Nunes 2017a 27)
Cada acantonamento de ideias eacute travado pela pontuaccedilatildeo marcando natildeo
meramente um ritmo proacuteprio de leitura mas um tipo de leitura radicalmente inaugural
como se de facto ao ser confrontado com esta escrita o leitor reaprendesse a ler ndash e a verndash reencenando-se assim o que o filoacutesofo Pierre Alferi considera o efeito
instaurador e natildeo descritivo das frases da literatura isto eacute como se a literatura
inventasse ldquoo passado das frasesrdquo (Alferi 1999 19-20) O uso de dois pontos figurando
muitas vezes como o uacutenico elemento visiacutevel numa linha marca um intervalo entre
imagens distintas agraves vezes ligadas justamente pela ausecircncia de ligaccedilatildeo sem relaccedilatildeo causa-efeito Ou abusa-se do ponto final para singularizar em sequecircncias tatildeo breves
quanto fulminantes o que cada instacircncia ndash homem som animal bocado ndash possui de
irredutiacutevel violento ou simultacircneo Quanto mais concentradas ficam as palavras maior
a densidade do seu enigma quanto mais se desobedecer agrave ldquotirania das grandes frasesrdquo
mais ldquoa palavra solta liberta a poeacutetica da erracircnciardquo (Nunes 2005 69) Como formulou Eduardo Prado Coelho a respeito do livro Catildees trata-se de ldquouma lsquoarte poverarsquo em
sentido literal e por isso exiacutegua de lances metamorfoses surpresas ou desenlacesrdquo
(Coelho 2003 78)
E eacute por isso tambeacutem que a escrita de Rui Nunes confessada agrave partida a
impossibilidade de a escrita vir a esgotar a realidade ou de dizer em plenitude o mundo
dos seres e das coisas numa utopia de sinoacutenimos perfeitos estaacute votada ao jogo inacabado das coexistecircncias contiacutenuas ldquoum tempo da coexistecircncia da igualdade e da
entre-expressividade dos momentos oposto ao tempo da sucessatildeo e da destruiccedilatildeordquo
segundo Jacques Ranciegravere (2019 108) Em Rui Nunes uma coisa a par de outra coisa
um fenoacutemeno contiacuteguo a outro fenoacutemeno a solidatildeo a escassez e a singularidade de
cada existencial de pensamentos e digressotildees interiores imbricados uns nos outros de falas e vozes misturadas de tempos e lugares heterogeacuteneos justapostos resistindo cada
elemento contra a transcendecircncia da realidade
o que tenho para descrever eacute a prolongada exposiccedilatildeo a uma falta por isso descrevo tudo o
que vejo amontoo nomes eis o caos
os caixotes abarrotam de lixo pela sua boca entreaberta saem sacos de plaacutestico folhas de
jornal gargalos de garrafas a perna de uma cadeira uma fita de gravaccedilatildeo nem os ratos
se aproximam destas montureiras batidas pelo vento destes foacutesseis que jaacute nasceram
foacutesseis eternidade rudimentar soacute as gaivotas debicam por aqui e por ali (Nunes 1999
26-7)
4 O tempo da coexistecircncia eacute o que Jacques Ranciegravere em As Margens da Ficccedilatildeo
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
35 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
(2019) expotildee como a inteligibilidade inaugural que marca escritores tatildeo diferentes
quanto Flaubert Virginia Woolf Rainer Maria Rilke W G Sebald ou Guimaratildees Rosa
A ficccedilatildeo fazia-se ela proacutepria anunciar atraveacutes da especificidade das personagens e das
aventuras que inventava assim como e mais que tudo pela sua estrutura temporal ela
dava resposta ao seu conceito quando a sucessatildeo de acontecimentos obedecia aiacute a um
encadeamento de causas e efeitos dotado de uma necessidade superior agrave do desenrolar dos
acontecimentos da vida comum Eacute esta sobre-racionalidade que se perdeu quando o
romance no seacuteculo XIX mergulhou no universo das coisas comuns e do tempo sem
objectivo O tempo da ficccedilatildeo jaacute natildeo estaacute estruturado pelo encadeamento das causas e dos
efeitos Deve conservar-se num soacute bloco como se fosse percorrido pelo sopro de uma
mesma modalidade de existecircncia (Ranciegravere 2019 96)
O que significa coexistir no realismo romanesco de Madame Bovary ou nrsquoOs
Cadernos de Malte Laurids Brigge Por um lado a coexistecircncia ilumina na trama
narrativa personagens e situaccedilotildees que pela sua condiccedilatildeo social ou anoacutedina indistinccedilatildeo
estariam agrave partida excluiacutedos de qualquer visibilidade daacute-se quando os vaacuterios indiviacuteduos das camadas populares incluindo pobres e marginais satildeo tidos em conta natildeo como um
pretexto moral para apelar agrave caridade e aos bons sentimentos mas antes como figuras
dotadas de complexidade subjectiva de pleno direito que habitam ruas e casas
inscrevendo nelas desejos paixotildees e atitudes consequentes
Constatar as suas existecircncias implica perceber o modo com actua ldquoa virtude do
realrdquo segundo Ranciegravere ndash e essa virtude consiste em aprender a desimaginar ldquoDeixar de imaginar eacute deixar de possuir o esquema que jaacute conhece o que se apresenta aos nossos
olhos o esquema que precede e ordena todo o encontrordquo (idem 45) Desperta naquele
que escreve a humildade de natildeo transformar os outros em objectos despojados da sua
obscuridade quer dizer que os signos desertam dos seus supostos referentes os
referentes desertam dos espartilhos habituais que os oprimem com uma sobrecodificaccedilatildeo Estes suacutebitos protagonistas preservam assim a sua proacutepria
ldquolinguagem secretardquo (idem 46) destituindo os signos de qualquer univocidade
Por outro lado e ainda decorrente dessa inscriccedilatildeo dos excluiacutedos na coexistecircncia
difusa e anoacutenima da vida Ranciegravere cita o uacuteltimo capiacutetulo do estudo seminal Mimesis
(1946) de Erich Auerbach dedicado ao ldquomomento qualquerrdquo na narrativa de Virginia
Woolf partindo do romance To the Lighthouse (1927) O ldquomomentordquo ou ldquoacontecimento qualquerrdquo desestabiliza a organizaccedilatildeo espaacutecio-temporal e a prevalecircncia
de um ponto de vista central seja o de uma personagem seja o do proacuteprio narrador Daacute-
se uma suacutebita irrupccedilatildeo de feixes na intriga ndash um vago olhar pela janela um mergulho
interior um telefonema evocado o relampejar de cores e sons ndash que desarranja quer as
hierarquias temaacuteticas de um texto dissolvendo as fronteiras entre intrigas principais e enredos secundaacuterios quer os posicionamentos ontoloacutegicos dos seres vivos ou inertes
humanos ou natildeo-humanos No fundo eacute arrancado a cada um desses seres e disposto em
luminosa evidecircncia o seu vitalismo intriacutenseco a sua forccedila de acaso o seu tumulto a sua
transpessoalidade numa espeacutecie de fraternidade panteiacutesta
Auerbach entrevia nesses cristais com algum optimismo gnosioloacutegico a
possibilidade de se refundar uma comunidade de homens e mulheres que partilharia uma mesma vocaccedilatildeo para a surpresa do instante ndash e isto sobretudo apoacutes a experiecircncia
das duas guerras travadas e dos infortuacutenios causados (note-se que o ensaiacutesta estava
exilado na Turquia tendo assim escapado agraves atrocidades nazis) pois ldquoquanto mais
diversos e mais simples apareccedilam os seres humanos como objetos de tais instantes
quaisquer tanto mais efetivamente deveraacute transluzir a sua comunidaderdquo (Auerbach
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
36 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
2001 497)
5 Uma drsquoAs peccedilas que faltam no vasto e inconclusivo cataacutelogo do poeta Henri
Lefebvre eacute uma citaccedilatildeo atribuiacuteda a Victor Serge que diz ldquoSomos todos sem-nome Inacabadosrdquo (Lefebvre 2019 81) Este curioso livro elenca uma seacuterie de perdidos-e-
achados da Histoacuteria mais perdidos do que achados na verdade oscilando entre a tiacutemida
comicidade perante um breve e anoacutedino apontamento (por exemplo uma parte de On
the Road de Kerouac que foi comida por um catildeo) e a secura brutal do facto exposto
(como quando enuncia sem mais ldquoAs gravidezes de Frida Khalordquo idem 25) Um livro que nunca chega a comeccedilar e que parece natildeo ter fim mas que atira o leitor para o meio
de uma descontinuidade irreparaacutevel filmes que natildeo se filmaram livros que natildeo se
escreveram bibliotecas reduzidas a cinzas cartas extraviadas fotografias por revelar
especulaccedilotildees vaacuterias Tudo o que natildeo se cumpriu tudo o que natildeo chegou sequer a ser
O ensaiacutesta e escritor de contos dinamarquecircs Villy Soslashrensen termina um primeiro romance
aos dezasseis anos e destroacutei-o aos dezassete William Burroughs natildeo guardava nenhuma
memoacuteria da redacccedilatildeo do Festim Nu No seu filme Scarlet Diva Asia Argento pede aos
seus actores para terem relaccedilotildees sexuais natildeo simuladas depois elimina as cenas na
montagem Rua Beautreillis em Paris a banheira em que morreu Jim Morrison foi
destruiacuteda (idem 34)
Este pequeno livro reverbera a pilha de destroccedilos com que o ldquoanjo da histoacuteriardquo
benjaminiano contempla o progresso ou a nua verdade das suas sobras e ruiacutenas o ldquolixo-
limpordquo da cataacutestrofe (Nunes 2020 82) E o que eacute o progresso afinal Aiacute estaacute ele
segundo Lefebvre numa fila indiana de disparates separados por pontos o progresso como a consequecircncia destrutiva da acccedilatildeo humana a destruiccedilatildeo como acto de
esquecimento que propicia o trabalho da memoacuteria (e o trabalho de luto pelo que se
perdeu) Um monte de pedras um lastro de perdas
Se a lista de Lefebvre eacute inacabaacutevel se o que a anima eacute a vontade intriacutenseca de natildeo
deixar que nada da Histoacuteria caia no esquecimento (como acontecia a Walter Benjamin
com o seu furor de coleccionista e o seu materialismo histoacuterico agrave la trapeiro) podemos aqui intercalar quase como um acidente de percurso ndash como se dispuseacutessemos todos os
livros de Rui Nunes sobre a mesa e abriacutessemos um numa paacutegina agrave sorte ndash esta
passagem de Baixo Contiacutenuo com a memoacuteria desavinda em instantacircneos avulsos
ldquocomo peccedilas desirmanadas de um mosaico romanordquo
O grande plano da cara de Monica Vitti nrsquoO Deserto Vermelho de Antonioni Dirk
Bogarde agrave volta de um James Fox adormecido em O Criado de Losey Hinauf Hinauf
do poema Ganimedes de Goethe o morcego a bater-me na cara nas ruiacutenas do Castelo de
Satildeo Filipe eu e meu avocirc sentados na praia vazia de Albarquel frente ao mar a aacutegua a
escorrer por uma talha de barro o velho na varanda a olhar o pessegueiro em flor e a
dizer lindo como um esposado a manhatilde do dia em que meu pai morreu a matildeo de minha
matildee a segurar a minha as lentes redondas dos oacuteculos do meacutedico sobras de tudo o que
sobra natildeo haacute histoacuterias mas traccedilos imagens relacircmpagos natildeo somos mais do que isso soacute
isso com o nosso corpo a ligar tudo isso cada bocado vai perdendo ateacute ter nascido um
bocado (Nunes 2017b 13-4)
Na mesma cadeia de acidentes irrompem as personagens de Rui Nunes ou as
visotildees imprecisas que as esquissam tornando impossiacutevel (e ateacute indesejaacutevel) a sua
unidade e representaccedilatildeo O ldquofasciacuteniordquo do olhar em Rui Nunes pela singularidade das
coisas contamina o seu fasciacutenio pelos humanos pela sua dissemelhanccedila irredutiacutevel pelo
potencial assombro que cada um desperta O ofiacutecio implacaacutevel de decompor a paisagem ndash por exemplo uma ida ao cafeacute e o empregado que o serve ndash desagua num monstruoso
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
37 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
caos de ldquoobjectos desgarradosrdquo
que estou aqui a fazer entre objectos desgarrados
os meus olhos soacute vecircem uma coisa apoacutes outra incapazes de abarcar toda a sala
assemelham-se a ocelos de uma simplicidade furiosa perseguem os objectos e quando
os apanham nunca mais os largam o rapaz por exemplo que anda por entre as mesas
uma rodilha na matildeo direita a limpar os tampos enquanto a esquerda flutua indecisa ora
coccedila a orelha ora pousa nas calccedilas ora esfrega uma borbulha no nariz matildeo pobre quase
se diria inuacutetil que atrapalha a outra matildeo que o rapaz conhece tatildeo mal com uma vida
autoacutenoma que ele natildeo controla eacute o meu fasciacutenio este ver a pequena histoacuteria dos gestos
princiacutepio e fim tatildeo proacuteximos
ndash o seu cafeacute
a matildeo surgiu e desapareceu
A chaacutevena
Levo-a agrave boca
Os laacutebios tocam-lhe
Afasto-a
Volto a aproximaacute-la
Afasto-a de novo
Ateacute natildeo ter medo
Ateacute
(idem 2011 46)
Este excerto assemelha-se a um movimento de zoom operado pelo olhar da nuvem de gestos do funcionaacuterio ateacute agrave chaacutevena sobre a mesa a circunstacircncia especiacutefica
que aqui nos eacute apresentada afunila vertiginosamente num devir-molecular O que resta
Para que ponto culmina ldquoAteacute natildeo ter medordquo lecirc-se Mas medo de quecirc Talvez medo da
imprevisibilidade iacutensita de todos os gestos esfumados medo da ameaccedila obscura que se
aninha em cada objecto levando o observador a afastar toda a ganga circundante a depurar a realidade objectiva ateacute chegar a esse resiacuteduo precaacuterio cuja nitidez de tatildeo
desprotegida que fica natildeo oferece qualquer margem para elucubraccedilotildees e equiacutevocos
ldquoAteacuterdquo termina ndash mas termina apenas o que eacute verbalmente alcanccedilaacutevel Aquele uacuteltimo
ponto final natildeo finaliza coisa alguma eacute o foco possiacutevel o zoom que deforma a
magnitude do pormenor a expansatildeo sem fim do que permaneceraacute inacabado Abre-se um silecircncio no coraccedilatildeo do texto Ao natildeo se fechar natildeo haacute um sentido inequiacutevoco uma
legenda que seja que se possa consagrar como verdade ou certeza ndash essa face totalitaacuteria
do poder
as pessoas satildeo pormenores o brilho de um liacutequido que se evapora o gosto salobro do
sangue na boca a mancha de um eczema no braccedilo Nunca vi uma pessoa na sua
integridade frente a mim Soacute paacutelpebras laacutebios crostas pecirclos mapas irregulares Vejo tatildeo
pouco que preciso de aproximar os olhos do que quero ver E nessa aproximaccedilatildeo tudo se
torna monstruoso e doente
(ou natildeo vejo ou vejo a morte)
natildeo te vejo E aproximo de ti os olhos Quando te comeccedilo a ver natildeo eacute a ti que vejo mas a
uma paisagem cancerosa que me dizes ser tua uma madeixa de cabelo um azul circular
uma ferida Muacuteltiplos fragmentos com uma voz pelos seus meandros (Nunes 1995 30)
Por isso nesta escrita tudo o que existe denuncia uma irremediaacutevel incompletude
ontoloacutegica
Satildeo esboccedilos as pessoas que encontramos Esboccedilos com a persistecircncia do que nasceu
incompleto Caminhamos rodeados de esboccedilos As palavras satildeo esboccedilos ateacute as mais
iacutentimas a que nunca chegaste (idem 2016 30)
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
38 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
6 Para Manuel Frias Martins
[a] prioridade eacutetica da escrita de Rui Nunes construiacuteda predominantemente em torno de
uma esteacutetica de imagens manchadas de sangue menstrual urina fezes viacutesceras
grosserias insultos e violecircncias diversas faz do abjecto o lugar mais adequado de
comunicaccedilatildeo natildeo soacute com o mundo mas tambeacutem com Deus Eacute como se fosse necessaacuterio
descer aos infernos para encontrar o bem supremo a paz eterna o prazer infinito a
inteligecircncia sem rosto da iluminaccedilatildeo interior (Martins 2009 49)
A cataacutebase eacute um passeio normal pela cidade o horror eacute a experiecircncia democraacutetica
das nossas derivas fascizantes Daiacute os olhos de Rui Nunes verem um mundo que jaacute eacute o
de um poacutes-apocalipse qualquer Natildeo o anuacutencio de um fim de mundo ostensivamente
decorado por uma aparatosa pirotecnia escatoloacutegica (degelos erupccedilotildees asteroacuteides pandemias) mas a consumaccedilatildeo desse epiacutelogo num instante que se arrasta infinita e
indefinidamente um presente eternizado um tempo que nunca mais acaba a sua
sucessiva desagregaccedilatildeo ateacute ao desgaste de todas as palavras que o descrevam e de todas
as imagens que o ilustrem Um apocalipse cujo dia seguinte manteacutem os cafeacutes abertos a
mesma moeda a consciecircncia da morte entranhada ateacute aos ossos O mesmo silecircncio cavado no interior das palavras das conversas esvaziando-as de qualquer
encadeamento de sentido fala-se mas natildeo se sabe a quem nem porquecirc nem com que
palavras Fala-se ndash e falta-se falha-se Os dias que se sucedem ao fim do mundo
glosam na escrita de Rui Nunes este empobrecimento da palavra ldquoQuanto mais se
escreve mais faltardquo (Nunes 2018 55) Descer aos infernos eacute habitar essa falta eacute escrever a partir ldquodos escombros com os escombros de uma liacutenguardquo (idem 2012 52)
Como quem assiste agrave ldquopequena histoacuteria dos gestosrdquo no corpo de um rapaz agrave mesa do
cafeacute no dia a seguir ao fim do mundo
A prioridade eacutetica de Rui Nunes ilumina personagens sobrecodificadas pelo seu
estigma Figuras que estatildeo refeacutens da inescapaacutevel ostensividade do seu corpo que satildeo
apenas ou sobretudo o seu exterior a evidecircncia ameaccedilante do cheiro que exalam da sujidade na roupa da homossexualidade como afronta puacuteblica os demais signos da
exclusatildeo Porque ldquoqualquer pobreza segrega o mesmo Tudo eacute igual rente ao chatildeordquo
(idem 2016 31) A consistecircncia dessa segregaccedilatildeo de texto para texto de livro para
livro reitera a presenccedila de figuras como o homossexual (em Sauromaquia) o
toxicodependente (em Que sinos dobramhellip) ou a mulher romena sentada no chatildeo com
um copo de plaacutestico para as esmolas (em A Crisaacutelida)
Mais do que agentes a matildeos com as peripeacutecias de foro aristoteacutelico (e daiacute o termo
personagens ser problemaacutetico porque carrega toda uma tradiccedilatildeo do romance que Rui
Nunes desconstroacutei) tais figuras constituem ldquoesboccedilosrdquo sucessivos que condensam a
rejeiccedilatildeo de quaisquer princiacutepios humaniacutesticos (porquanto incarnam a decadecircncia da
humanidade a sua parte maldita) e como tal satildeo seres de suspensatildeo sem uma meta a percorrer rumo a um determinado fim (cf Ranciegravere op cit) Muito aqueacutem do papel de
viacutetimas de uma sociedade que os marginaliza viacutetimas agrave mercecirc da caridade alheia e da
reactivaccedilatildeo de discursos morais (o que as tornaria estereoacutetipos lassos) satildeo sobretudo
hiatos vivos a ordem dos encadeamentos sucessivos esboroa-se neles destruindo
quaisquer ligaccedilotildees de sentido Satildeo o improdutivo por excelecircncia o tempo estaciona nestas figuras de tal maneira que se torna uma experiecircncia de vida natildeo-viviacutevel
intoleraacutevel para quem os olha e prontamente os expele com esse olhar reduzindo-os a
um insulto
sem importacircncia suficiente somos os esconjurados [hellip] Fodamos mas calados discretos
Natildeo nos beijemos em nenhuma rua o mundo que havemos de salvar natildeo nos pertence
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
39 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Viver ningueacutem nos proiacutebe se o fizermos no interior das casas respeitando os vizinhos do
lugar Assento temos em qualquer revoluccedilatildeo se obliterarmos uma parte de noacutes Seres
truncados Ou tolerados apenas Seres proibidos de dizer Esquizofrenizados Seres que se
tornaratildeo uma ameaccedila puacuteblica Seres que desejam os nossos filhos que os conspurcam
capazes de todos os crimes Seres coitados nos momentos mais benignos Seres de antes
ladratildeo que maricas (Nunes 1983 105)
Nesta passagem de Sauromaquia os homossexuais satildeo o alvo predilecto de uma
natildeo-inscriccedilatildeo no real para que sem eles sob a perspectiva do opressor (a
heteronormatividade neste caso) a vida se assemelhe a uma continuidade fluida num
tempo sem memoacuteria sem negatividade (que eacute a marca da diferenccedila do que potencia o
encontro com o novo e o diferente o atrito mobilizador ou heuriacutestico sem o qual o humano se dissolve numa mesmidade opressiva) Mas eacute ao afundar-se no inominaacutevel da
dor que Rui Nunes procura de certa forma ldquosobreviver agrave dor no interior da proacutepria
dorrdquo segundo Eduardo Prado Coelho (1997 208) Pois
[hellip] na dor mais extrema aquilo que resta se alguma coisa resta eacute o corpo refuacutegio dos
sem-ningueacutem abrigados nele enrolados nele mesmo velho mesmo feio natildeo sempre soacute
agraves vezes mas a vida eacute soacute agraves vezes (Nunes 2018 53)
Rui Nunes natildeo torna o homossexual ou a mulher romena como figuras de
autoridade narrativa agrave volta das quais a acccedilatildeo se vai desnovelando numa seacuterie de
episoacutedios ou acidentes com ou sem catarse agrave vista Natildeo eacute a sua densidade psicoloacutegica
que eacute posta agrave prova nos enredamentos da intriga ou no virtuosismo retoacuterico do autor As personagens natildeo satildeo retratos ou metaacuteforas do que quer que seja mas incarnam o
expoente maacuteximo de uma dor inconvertiacutevel em palavras Uma dor uma solidatildeo um
terror atroz ndash modos de existecircncia que se manifestam num grito num choro desalmado
num bloqueio do corpo que emudecem a vocaccedilatildeo dialogante das palavras E eacute por isso
que a devastaccedilatildeo emocional de um drogado ou a anguacutestia de um narrador que engata um estranho na rua e depois o leva para casa ou que teme pela vida num WC puacuteblico
nunca satildeo o tema deste ou daquele livro nem procuram descrever experiecircncias de vida
que nos embaciem os olhos pela descompaixatildeo geral O excesso de uma dor natildeo se
compraz com descriccedilotildees ndash faacute-las explodir E a escrita comeccedila quando torna essa
explosatildeo na sua uacutenica modalidade de existecircncia eacute quando a dor natildeo conhece palavras que a digam servindo-se delas como um espelho diaacutefano que a literatura tem lugar
Surgem entatildeo os nomes proacuteprios os objectos dispostos numa sala as figuras
interpelaacuteveis que perguntam e respondem que se movem de um lugar para outro neste
ou naquele tempo Funcionam como efeitos de uma intimidade inacessiacutevel mas que
deixam lastro em forma de escrita A esse lastro agrave falta de melhor termo damos o nome
de literatura
cumpres a funccedilatildeo de ser personagem por isso te concedo a escassez de algumas linhas
natildeo te deixo desenvolver plenamente para que natildeo me esqueccedila de que eacutes fictiacutecia de que
sou capaz de interromper a tua maturaccedilatildeo adiar-te odiar-te espacejar mais o teu rosto
instalar-me na pupila tornada o sossego letal acompanhar a laacutegrima pensar-te o
sofrimento (Nunes 1986 49)
Hoje natildeo consigo recompor o teu rosto e se nitidamente te imagino natildeo eacutes bem tu mas
uma qualquer fotografia tua Hoje a tua fotografia apropriou-se de ti deve ser assim
que se comeccedila a morrer Quando agrave nossa volta um corpo desaparece nos sinais da sua
passagem (idem 2013 25)
7 Um corpo que desaparece nos sinais da sua passagem Poderaacute esta imagem ser
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
40 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
contiacutegua agrave daquele torso arcaico de Apolo (c 480-470 aC) que no princiacutepio do seacuteculo
numa ida ao Louvre despertara em Rilke uma visatildeo profusamente enigmaacutetica num desvio pela eacutecfrase Sem cabeccedila perdidos os braccedilos e as pernas o resto mutilado de
uma unidade perdida comunica ao poeta um dos mais conhecidos e insoacutelitos remates da
poesia moderna do Ocidente ldquoTens de mudar de vidardquo (Du muszligt dein Leben aumlndern)
Natildeo conhecemos a sua cabeccedila inusitada
onde luziam maduras as pupilas Mas inteiro
o seu torso ainda arde como o candeeiro
que daacute ao seu olhar a luz apenas degradada
persistecircncia e brilho Pois natildeo sendo assim natildeo
poderia a onda do peito cegar-te nem no leve
torcer das ancas haver o sorriso que corre
para aquele centro da procriaccedilatildeo
Assim natildeo sendo seria disforme e curta a pedra
caiacuteda da transparente travessa dos ombros
e natildeo cintilaria como pele de fera
e natildeo explodiria por todos os lados e pontos
como uma estrela pois natildeo haacute ali lugar
donde ele te natildeo veja Tens de mudar a tua vida
(Rilke apud Sloterdijk 2018 35)
Como assim mudar de vida De onde vem este apelo tatildeo suacutebito no imperativo
quando nada nos treze versos anteriores fazia prever este inesperado alccedilapatildeo no fim do
soneto Quem nos fala do sem-fundo numinoso de uma pedra esculpida Que nos
revela a sensibilidade de Rilke ao pocircr no artefacto na coisa inerte esse mutismo eloquente ndash e sobretudo exortativo pois nos obriga a repensar a nossa vida a duvidar
de que estamos no caminho certo
Segundo a leitura que Peter Sloterdijk fez do poema jaacute natildeo eacute o corpo total que
necessariamente inspira uma essecircncia de verdade uma autoridade excepcional
impondo-se aos olhos alheios como um modelo de beleza fiacutesica ndash tal como os corpos
musculados da Antiguidade esses arqueacutetipos da perfeiccedilatildeo que serviriam de incentivo a que os sujeitos rivalizassem com os deuses pelo poacutedio da gloacuteria eterna No lugar dessa
coesatildeo orgacircnica e triunfante caberia agora a um torso mostrar-se como a ruiacutena da
eternidade a eternidade desfeita nos sinais da sua passagem ldquoA intensidade [do
fragmento] bate a perfeiccedilatildeo normalizada [do corpo inteiramente visiacutevel]rdquo (idem 36)
Qual peccedila votada ao abandono pelo desbaste do tempo as suas partes ausentes jamais restituiacuteveis provocam a consciecircncia adensam-lhe a inquietude existencial somos o que
somos sobretudo porque somos o que nos falta Eacute essa falta que desperta a sensaccedilatildeo de
nos sentirmos acossados pela presenccedila rumorejante dos objectos que transmitem uma
ldquoenergia-mensagemrdquo (idem 34) As coisas olham-nos intui Rilke Haacute uma cabeccedila
ausente naquele torso que emite um olhar que vem do fundo do tempo E eacute mais veemente esse olhar que nos lanccedila do que a exiacutegua soberania vigilante que lhe
conseguimos devolver
Cem anos apoacutes o sinal que Rilke nos fez compreendemos sem duacutevida esta indicaccedilatildeo
melhor ainda do que os seus contemporacircneos pois a nossa capacidade de perceccedilatildeo mais
do que a de nenhuma outra geraccedilatildeo anterior agrave nossa estaacute anestesiada e foi saqueada pela
conversa fiada dos corpos sem maacutecula (idem 36)
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
41 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Tal vez nos possamos apropriar desta qualidade da coisa ainda para mais
desconjuntada para reler a escrita de Rui Nunes agrave luz dessa enigmaticidade do fragmento nos antiacutepodas dos ldquocorpos sem maacuteculardquo da contemporaneidade Que corpos
satildeo estes Incarnam o triunfo da vida nua satildeo os apoacutelogos da wellness que medem
analisam e quantificam os seus vaacuterios desempenhos sob pressatildeo de terem a sauacutede em
permanente performance Entregam-se sem reserva agrave imensa orgia digital cuja coacccedilatildeo
da transparecircncia ndash a vida exposta nos social media como prova de que aconteceu ndash os esvazia de qualquer risco sombra vacilaccedilatildeo ou atrito para que esplendam enquanto
puras superfiacutecies do consumo na sociedade capitalista e no inferno da felicidade
permanente Corpos de uma sauacutede totalitaacuteria ficam refeacutens de todas as comodidades
materiais e incapazes de imaginar um futuro sem elas estatildeo agrave mercecirc de uma ldquohipocondria digitalrdquo (Han 2020 26) ndash por isso recusam-se a tolerar a dor e o
envelhecimento evitam qualquer experiecircncia que possa ameaccedilar o cerco paliativo com
que se vedam ao inesperado agrave contingecircncia agrave absoluta alteridade do outro (que
constitui sempre uma ameaccedila em potecircncia estrangeiro inimigo terrorista fonte de
contaacutegiohellip) Satildeo corpos com medo de tudo ndash ateacute de si proacuteprios
Se tais corpos fossem plasmaacuteveis num determinado comportamento de escrita numa literatura a condizer esta teria que ser a denegaccedilatildeo manifesta daquele medo
seria entatildeo uma escrita cobarde uma escrita aliteratada que se entreteacutem a ldquocontar
histoacuteriasrdquo e desse modo respeitando sigilosamente a liacutengua ndash ao inveacutes de manter com a
liacutengua uma relaccedilatildeo de profunda desconfianccedila com vista a desarmar e desarticular o seu
poder Por isso
[hellip] o meu corpo sobrevive na desarmonia eacute um corpo contra o olhar de Deus contra
todas as ditaduras sem histoacuteria natildeo sou capaz de histoacuterias de me internar pelas suas ruas
previsiacuteveis e mortas por isso soacute consigo viver o presente e o seu terror cheio de
exaltaccedilatildeo e assim quero continuar [hellip] (Nunes 1999 114)
Com os seus esboccedilos de vidas esta escrita rompe com as sequecircncias
contemporacircneas de corpos lisos e homogeacuteneos ldquosem maacuteculardquo segundo Sloterdijk Mostra-nos a decadecircncia fiacutesica sem qualquer pudor ou preconceito natildeo porque se
queira rebelar contra a vergonha social que coage essa decadecircncia a esconder-se mas
porque eacute na decadecircncia que um corpo vivo se solidariza com a presenccedila da morte a
ruiacutena comum a todas as coisas Eacute por via da dor que eacute restituiacutedo ao corpo a sua
realidade por um efeito de choque E regressamos assim agrave decomposiccedilatildeo de um corpo pelos gestos que faz ao seu apodrecimento insaciaacutevel ateacute ser reduzido a um naco
insensato de carne como se lecirc em O Anjo Camponecircs
Abre a torneira Deixa que o jacto de aacutegua lhe bata nas matildeos se espalhe e lhe salpique o
pijama sente a forccedila da aacutegua a bater-lhe nas matildeos ensaboa-as gesto automaacutetico que o
deixa livre para quecirc o corpo eacute um animal que regressa insidioso este eacute o meu corpo diz
e sorri empobrece e regressa [hellip] as matildeos estremecem semiabertas no rebordo do
lavatoacuterio uma sobre a outra jaacute natildeo duas matildeos mas um bocado de carne um frio
disforme uma humidade disforme natildeo haacute dedos nem palmas nem pele a separar uma
matildeo da outra haacute aquele bocado de carne no rebordo do lavatoacuterio [hellip] (idem 2020 48)
Um pedaccedilo de carne um torso escultoacuterico De novo o bocado o despojo a ruiacutena
Pelos interstiacutecios desta escrita reacende-se o iacutempeto obscuro de uma voz imaterial que
confere agraves coisas residuais aos gestos mais comuns uma intensa carga dramaacutetica Note-
se a encenaccedilatildeo criacutestica do dictum ldquoeste eacute o meu corpordquo na passagem acima transcrita
sem o milagre da transubstanciaccedilatildeo este corpo sabe-se reconduzido tatildeo-soacute ao milagre precaacuterio da imanecircncia O corpo eacute uma vanitas em movimento contiacutenuo ateacute agrave sua
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
42 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
erosatildeo Pelo caminho como fogos-faacutetuos extingue-se a iacutenfima solidez antropoloacutegica
que a identidade o eu ou o self poderiam salvaguardar como derradeira imagem do humano agora que essa imagem se nulifica na ldquoviolecircncia banal de um bocado de carnerdquo
ndash a carne que jaacute em Suiacutete e Fuacuteria livro anterior a O Anjo Camponecircs eacute apresentada
como o elo irredutiacutevel que une qualquer ldquoanoacutenimo do que foi vivordquo (Nunes 2018 57)
Vale a pena a citaccedilatildeo inteira pelo que nela se afirma como uma extraordinaacuteria e natildeo
menos terriacutevel legenda verbal do que satildeo os corpos escorchados dos bois maneiristas [fig 3] ou as variaccedilotildees da pele esfolada e da carne viva de Maacutersias por exemplo na
pintura de Francis Bacon e Egon Schiele (que natildeo por acaso figuram nas capas de Que
sinos dobram por aqueles que morrem como gado e Catildees respectivamente) [fig 1 e
fig 2] ou ainda cumprindo-se o movimento de zoom deste olhar-escrita ateacute ao horror absurdo do pormenor ampliado a brutalidade evidente da carne nos trabalhos de Anish
Kapoor crus manifestos de que o humano uacuteltimo reduto de um limiar metafiacutesico eacute ele
proacuteprio um limiar extinto ou esvaziado de qualquer transcendecircncia [fig 4]
[hellip] um gato um boi um catildeo uma osga um pombo um homem Natildeo haacute dissonacircncias
neste bocado de carne os animais todos rodeiam-no para serem baptizados Ou para se
certificarem do nome que hatildeo-de perder do nome que hatildeo-de ganhar A morte eacute um
crisma Um baptismo eu te dou o nome de carne E dela se faraacute a fome Ou o inequiacutevoco
de uma arma A metaacutefora eacute a grande felicidade dos que tecircm nome proacuteprio Dos que
podem ser chamados Mas carne Estaacute no fim da escala abaixo de rio por exemplo rio
qualquer que seja tem nascente foz margens Mas carne Eacute simplesmente um bocado O
informe Pode dizer-se ensanguentada Poreacutem esse sangue natildeo pertence agrave sua definiccedilatildeo
haacute uma carne sem sangue mas natildeo um rio sem nascente A carne eacute sempre um bocado E
estaacute tudo dito Ningueacutem perguntaraacute a quem a quecirc pertenceu esse bocado Eacute soacute uma coisa
morta Na verdade natildeo haacute carne viva A carne viva eacute sempre em carne-viva uma ferida
uma chaga nas pernas de uma crianccedila no cachaccedilo de um boi nas matildeos de um miseraacutevel
nunca na matildeo do senhor doutor do senhor engenheiro do senhor ministro de vossa
excelecircncia do senhor presidente do meu caro amigo uma ferida em carne-viva eis o
ldquooutrordquo que nojo (ibidem)
Fig 1 Fig 2
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de
abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se
delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali
sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na
pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que
nada tem a exprimir
Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia
de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima
instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como
signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um
diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo
cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto
impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de
criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia
do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber
impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste
como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico
amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete
ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa
carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da
sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne
e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo
Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da
Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de
Rembrandt
Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts
(2013-2015) de Anish Kapoor
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os
louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz
ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida
9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere
define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo
(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em
termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo
estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da
subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo
menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o
ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios
imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam
os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs
Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a
literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de
sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as
hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas
as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que
determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem
descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no
exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o
novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de
acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar
o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes
oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a
racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo
o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e
resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar
incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da
experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos
temposrdquo (idem 111)
Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo
vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim
aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA
pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria
mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta
rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do
pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever
Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Escrever natildeo ilumina escurece
Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute
Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda
(Nunes 2014 90)
Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece
como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua
impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute
um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a
esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-
se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas
palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e
intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim
por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a
potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida
Referecircncias bibliograacuteficas
Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999
Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad
Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001
Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997
Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003
Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda
Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010
ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em
httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)
Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo
Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019
Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui
Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009
Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983
Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986
Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993
Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio
DrsquoAacutegua 1995
Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999
Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005
Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011
Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013
Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014
Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016
Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a
Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b
Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018
Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
32 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
1 Alguns meses antes de morrer numa entrevista o poeta e tradutor Rui Caeiro
descreveu Rui Nunes (n 1945) da seguinte maneira
O Rui Nunes eacute daqueles casos em que eu costumo dizer lsquo[hellip] haacute aiacute uns tipos a escrever
umas coisas e que pretendem ser escritores agora o Rui Nunes eacute outra coisa esse eacute um
escritor a seacuterio natildeo faz coisinhas esse lida com a literatura luta com a literatura tem
raiva agrave literaturarsquo Eacute preciso ter raiva agrave literatura para se fazer alguma coisa interessante
neste campo porque de outra maneira estatildeo apenas a repetir-se as banalidades que andam
no ar (Caeiro 17 de Abril de 2018 em linha)
Lidar com lutar com ter raiva este ensaio mais natildeo eacute do que uma demorada (e
sofrida) aproximaccedilatildeo a esse clima visceralmente tenso que caracteriza a escrita de Rui
Nunes Nos seus livros como veremos a coesatildeo textual eacute desconjuntada com violecircncia desfeita em ldquobocadosrdquo ou ldquoescombrosrdquo dedicando-se uma extrema minuacutecia agrave
ocorrecircncia simultacircnea quase sempre caoacutetica de muacuteltiplos micro-acontecimentos O que
os liga Talvez esta foacutermula extrema para os tempos extremos desta eacutepoca a
ldquointimidade de uma ruiacutenardquo (Nunes 2020 28)
Por sua vez Rui Caeiro conclui aquela descriccedilatildeo dizendo que o autor de O Anjo
Camponecircs ldquo[hellip] tem outra caracteriacutestica que eu aprecio muito a pessoa e o poeta satildeo parecidos que eacute uma coisa que nem sempre acontecerdquo (ibidem) O regime das
semelhanccedilas eacute problemaacutetico sobretudo quando o que estaacute em jogo nesta afirmaccedilatildeo
decorre intimamente da subjectividade do entrevistado e dos laccedilos afectivos que os
unem Mas a parecenccedila aqui talvez seja o termo mais coloquial e por isso mais eficaz
para esboccedilar o efeito de contaacutegio entre a escrita e quem a escreve ndash sobretudo quando lendo os seus textos constatamos que ldquoa pessoa e o poetardquo estatildeo indiscernivelmente
ligados ao olhar aos seus constrangimentos e debilidades E os olhos de Rui Nunes
vecircem muito mal Mas vecircem vecircem o mal ou uma feiccedilatildeo imanente desse mal a
malignidade inscrita nas coisas nas palavras e nas relaccedilotildees humanas Em A margem de
um livro aponta
Os olhos na sua contiacutenua destruiccedilatildeo vecircem a luz
Satildeo os olhos destruiacutedos a luz
satildeo os olhos a destruiccedilatildeo da luz
(Nunes 2017a 46)
Destruir enquanto vocaccedilatildeo inerente ao acto de ver enquanto condiccedilatildeo inescapaacutevel
da doenccedila com que se nasce a doenccedila de ver muitiacutessimo mal E o que faz um homem que vecirc muitiacutessimo mal e que apesar disso ou ateacute forccedilosamente por isso escreve O que
diz a cegueira funcional de uma escrita que resiste agrave sua proacutepria anulaccedilatildeo que se
esforccedila letra a letra por perseverar E que resta da destruiccedilatildeo que um par de olhos
inflige sobre o mundo para desesperadamente ousar esclarececirc-lo no mesmo movimento
em que o corrompe
Por fim repare-se neste detalhe Rui Caeiro diz ldquoo poetardquo e natildeo ldquoo escritorrdquo quando descreve Rui Nunes Escritores satildeo os outros esses ldquotiposrdquo que escrevem ldquoumas
coisasrdquo Para demarcar uma niacutetida clivagem entre dois modos de relaccedilatildeo com a palavra
escrita o ldquopoetardquo surge como aquele cujos usos da palavra iluminam uma ideia de
verdade um comprometimento poliacutetico da palavra eacutetica e esteacutetica indissociavelmente
Ao longo deste ensaio veremos aonde isso nos leva a escrita o olhar a verdade ou a
intimidade da ruiacutena
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
33 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
2 ldquoJames Joyce e John Milton escreveram as suas obras-primas Finneganrsquos
Wake e Paradise Lost enquanto perdiam a visatildeordquo (Lefebvre 2019 27) Idecircntico comentaacuterio poderia ser feito acerca de Rui Nunes que natildeo tem feito outra coisa durante
mais de meio seacuteculo senatildeo escrever livros enquanto se foi esbatendo a visatildeo Uma
miopia progressiva que vem desde tenra idade somando-se essa a outras doenccedilas
obrigou o autor a conviver de perto com a falecircncia do corpo experimentando o corpo
senatildeo como invoacutelucro de crise sempre na iminecircncia de falhar de doer de exacerbar o seu deacutefice A sua escrita natildeo poderia estar senatildeo no limite ldquoNo limite da narrativa no
limite da linguagem no limite da visatildeo no limite das forccedilasrdquo (Coelho 2003 78) Uma
escrita-limite cujo condatildeo de representar o mundo ndash representar efabular urdir intrigas
e enredos ndash eacute obsessivamente assediado pela impotecircncia fundacional das palavras ou
melhor pela sua inerente cegueira (cf Derrida 2010) com um claro efeito devastador
As palavras morreram com os olhos
Morreram quando os olhos Distanciaram
Morreram os olhos quando distanciaram
Falamos palavras mortas
acumuladas no tempo de todos os mortos
Morremos E natildeo somos
mais do que o estrume de outras palavras mortas
Algumas vezes o ranho a merda e o choro
o gesto que a matildeo destroacutei na outra matildeo
eacute o que conseguimos
mais proacuteximo de ser verdade
(Nunes 2016 29-30)
A escrita de Rui Nunes insiste nesta exasperaccedilatildeo a de um mundo que apoacutes ter
conhecido piacutencaros de loucura destrutiva natildeo tem mais com que nos enganar E a
literatura ou diz esse engano sem reservas nem truques eufemiacutesticos ou eacute ela proacutepria
nada mais do que a consolidaccedilatildeo da infacircmia feita de palavras mortas e que cavam cada
vez mais longas distacircncias entre si e o mundo esse ldquoestrumerdquo a que nos vemos impiedosamente reduzidos Natildeo haacute uma saiacuteda faacutecil nenhum plano B Ter perdido a
esperanccedila mas sem desesperar eis a vereda pela qual esta escrita abre caminho numa
luacutecida acidez Foram-se acabando os mundos uns atraacutes dos outros a humanidade resta
como o eco de uma palavra destroccedilada pela sua tatildeo abusada quanto abusiva eloquecircncia
Morrem palavras cegam-se os olhos E ldquoo que conseguimos mais proacuteximo de ser verdaderdquo eacute apenas ldquoo gesto que a matildeo destroacutei na outra matildeordquo (ibidem) Natildeo a matildeo
iacutendice dessa continuidade ilusoacuteria que o corpo eacute enquanto organismo na sua plenitude
figurativa Natildeo a matildeo mas o gesto evanescecircncia o desenho no ar do que natildeo deixa
rasto A impressatildeo de um ritmo a inscriccedilatildeo de um movimento no corpo da escrita fazer
com as palavras o que uma matildeo desfaz no puro acontecer dos seus gestos Uma escrita que funcione como esses gestos tatildeo impossiacutevel quanto isso como um gesto fixado pelo
gesso da escrita ou uma labareda que o gelo preservasse Uma contradiccedilatildeo insuperaacutevel
como eacute a de um homem capturado no seu ldquoesbracejarrdquo Esse caldo aflitivo de gestos
seraacute para o autor o seu retrato mais verdadeiro mas mais verdadeiro natildeo significa que
seja menos terriacutevel
O fogo natildeo tem um desenho propaga-se ateacute agrave cinza o sinal do vento Um homem
confunde-se com a chama Instaacutevel como ela nos movimentos desconexos Na sua
afliccedilatildeo esbraceja Eacute um instante completo o esbracejar de um homem (idem 36-7)
3 Se eacute verdade que todos os livros de Rui Nunes constituem uma forma de
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
34 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
humilhaccedilatildeo das garantias do romance enquanto veiacuteculo de descriccedilatildeo e fluecircncia
narrativa faz sentido destacar Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado (1995) como o livro-charneira dos ulteriores e agudizados desvios que o autor infligiraacute
na composiccedilatildeo dos textos O que A Matildeo do Oleiro (2011) Barro (2012) Armadilha
(2013) ou A margem de um livro (2017a) tecircm em comum eacute o progressivo esboroamento
da condensaccedilatildeo narrativa o texto esfrangalha-se a coesatildeo das manchas graacuteficas tende
para uma dispersatildeo cada vez maior Surgem pequenas ilhas de texto de tamanho desigual com a insistecircncia do autor no uso de marcas tipograacuteficas distintas (itaacutelicos
negritos espaccedilos em branco) as frases surgem abruptamente interrompidas como
gaguejos que natildeo chegam sequer a completar uma unidade miacutenima de sentido capaz de
funcionar como frase
Comeccedila-se partindo (espatifando repetindo ateacute ao riso ateacute perguntarem que merda eacute esta natildeo sabes escrever E eu ainda natildeo) desenhando o labirinto de um espaccedilo vazio
O espaccedilo interminaacutevel de uma parede (Nunes 2017a 27)
Cada acantonamento de ideias eacute travado pela pontuaccedilatildeo marcando natildeo
meramente um ritmo proacuteprio de leitura mas um tipo de leitura radicalmente inaugural
como se de facto ao ser confrontado com esta escrita o leitor reaprendesse a ler ndash e a verndash reencenando-se assim o que o filoacutesofo Pierre Alferi considera o efeito
instaurador e natildeo descritivo das frases da literatura isto eacute como se a literatura
inventasse ldquoo passado das frasesrdquo (Alferi 1999 19-20) O uso de dois pontos figurando
muitas vezes como o uacutenico elemento visiacutevel numa linha marca um intervalo entre
imagens distintas agraves vezes ligadas justamente pela ausecircncia de ligaccedilatildeo sem relaccedilatildeo causa-efeito Ou abusa-se do ponto final para singularizar em sequecircncias tatildeo breves
quanto fulminantes o que cada instacircncia ndash homem som animal bocado ndash possui de
irredutiacutevel violento ou simultacircneo Quanto mais concentradas ficam as palavras maior
a densidade do seu enigma quanto mais se desobedecer agrave ldquotirania das grandes frasesrdquo
mais ldquoa palavra solta liberta a poeacutetica da erracircnciardquo (Nunes 2005 69) Como formulou Eduardo Prado Coelho a respeito do livro Catildees trata-se de ldquouma lsquoarte poverarsquo em
sentido literal e por isso exiacutegua de lances metamorfoses surpresas ou desenlacesrdquo
(Coelho 2003 78)
E eacute por isso tambeacutem que a escrita de Rui Nunes confessada agrave partida a
impossibilidade de a escrita vir a esgotar a realidade ou de dizer em plenitude o mundo
dos seres e das coisas numa utopia de sinoacutenimos perfeitos estaacute votada ao jogo inacabado das coexistecircncias contiacutenuas ldquoum tempo da coexistecircncia da igualdade e da
entre-expressividade dos momentos oposto ao tempo da sucessatildeo e da destruiccedilatildeordquo
segundo Jacques Ranciegravere (2019 108) Em Rui Nunes uma coisa a par de outra coisa
um fenoacutemeno contiacuteguo a outro fenoacutemeno a solidatildeo a escassez e a singularidade de
cada existencial de pensamentos e digressotildees interiores imbricados uns nos outros de falas e vozes misturadas de tempos e lugares heterogeacuteneos justapostos resistindo cada
elemento contra a transcendecircncia da realidade
o que tenho para descrever eacute a prolongada exposiccedilatildeo a uma falta por isso descrevo tudo o
que vejo amontoo nomes eis o caos
os caixotes abarrotam de lixo pela sua boca entreaberta saem sacos de plaacutestico folhas de
jornal gargalos de garrafas a perna de uma cadeira uma fita de gravaccedilatildeo nem os ratos
se aproximam destas montureiras batidas pelo vento destes foacutesseis que jaacute nasceram
foacutesseis eternidade rudimentar soacute as gaivotas debicam por aqui e por ali (Nunes 1999
26-7)
4 O tempo da coexistecircncia eacute o que Jacques Ranciegravere em As Margens da Ficccedilatildeo
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
35 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
(2019) expotildee como a inteligibilidade inaugural que marca escritores tatildeo diferentes
quanto Flaubert Virginia Woolf Rainer Maria Rilke W G Sebald ou Guimaratildees Rosa
A ficccedilatildeo fazia-se ela proacutepria anunciar atraveacutes da especificidade das personagens e das
aventuras que inventava assim como e mais que tudo pela sua estrutura temporal ela
dava resposta ao seu conceito quando a sucessatildeo de acontecimentos obedecia aiacute a um
encadeamento de causas e efeitos dotado de uma necessidade superior agrave do desenrolar dos
acontecimentos da vida comum Eacute esta sobre-racionalidade que se perdeu quando o
romance no seacuteculo XIX mergulhou no universo das coisas comuns e do tempo sem
objectivo O tempo da ficccedilatildeo jaacute natildeo estaacute estruturado pelo encadeamento das causas e dos
efeitos Deve conservar-se num soacute bloco como se fosse percorrido pelo sopro de uma
mesma modalidade de existecircncia (Ranciegravere 2019 96)
O que significa coexistir no realismo romanesco de Madame Bovary ou nrsquoOs
Cadernos de Malte Laurids Brigge Por um lado a coexistecircncia ilumina na trama
narrativa personagens e situaccedilotildees que pela sua condiccedilatildeo social ou anoacutedina indistinccedilatildeo
estariam agrave partida excluiacutedos de qualquer visibilidade daacute-se quando os vaacuterios indiviacuteduos das camadas populares incluindo pobres e marginais satildeo tidos em conta natildeo como um
pretexto moral para apelar agrave caridade e aos bons sentimentos mas antes como figuras
dotadas de complexidade subjectiva de pleno direito que habitam ruas e casas
inscrevendo nelas desejos paixotildees e atitudes consequentes
Constatar as suas existecircncias implica perceber o modo com actua ldquoa virtude do
realrdquo segundo Ranciegravere ndash e essa virtude consiste em aprender a desimaginar ldquoDeixar de imaginar eacute deixar de possuir o esquema que jaacute conhece o que se apresenta aos nossos
olhos o esquema que precede e ordena todo o encontrordquo (idem 45) Desperta naquele
que escreve a humildade de natildeo transformar os outros em objectos despojados da sua
obscuridade quer dizer que os signos desertam dos seus supostos referentes os
referentes desertam dos espartilhos habituais que os oprimem com uma sobrecodificaccedilatildeo Estes suacutebitos protagonistas preservam assim a sua proacutepria
ldquolinguagem secretardquo (idem 46) destituindo os signos de qualquer univocidade
Por outro lado e ainda decorrente dessa inscriccedilatildeo dos excluiacutedos na coexistecircncia
difusa e anoacutenima da vida Ranciegravere cita o uacuteltimo capiacutetulo do estudo seminal Mimesis
(1946) de Erich Auerbach dedicado ao ldquomomento qualquerrdquo na narrativa de Virginia
Woolf partindo do romance To the Lighthouse (1927) O ldquomomentordquo ou ldquoacontecimento qualquerrdquo desestabiliza a organizaccedilatildeo espaacutecio-temporal e a prevalecircncia
de um ponto de vista central seja o de uma personagem seja o do proacuteprio narrador Daacute-
se uma suacutebita irrupccedilatildeo de feixes na intriga ndash um vago olhar pela janela um mergulho
interior um telefonema evocado o relampejar de cores e sons ndash que desarranja quer as
hierarquias temaacuteticas de um texto dissolvendo as fronteiras entre intrigas principais e enredos secundaacuterios quer os posicionamentos ontoloacutegicos dos seres vivos ou inertes
humanos ou natildeo-humanos No fundo eacute arrancado a cada um desses seres e disposto em
luminosa evidecircncia o seu vitalismo intriacutenseco a sua forccedila de acaso o seu tumulto a sua
transpessoalidade numa espeacutecie de fraternidade panteiacutesta
Auerbach entrevia nesses cristais com algum optimismo gnosioloacutegico a
possibilidade de se refundar uma comunidade de homens e mulheres que partilharia uma mesma vocaccedilatildeo para a surpresa do instante ndash e isto sobretudo apoacutes a experiecircncia
das duas guerras travadas e dos infortuacutenios causados (note-se que o ensaiacutesta estava
exilado na Turquia tendo assim escapado agraves atrocidades nazis) pois ldquoquanto mais
diversos e mais simples apareccedilam os seres humanos como objetos de tais instantes
quaisquer tanto mais efetivamente deveraacute transluzir a sua comunidaderdquo (Auerbach
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
36 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
2001 497)
5 Uma drsquoAs peccedilas que faltam no vasto e inconclusivo cataacutelogo do poeta Henri
Lefebvre eacute uma citaccedilatildeo atribuiacuteda a Victor Serge que diz ldquoSomos todos sem-nome Inacabadosrdquo (Lefebvre 2019 81) Este curioso livro elenca uma seacuterie de perdidos-e-
achados da Histoacuteria mais perdidos do que achados na verdade oscilando entre a tiacutemida
comicidade perante um breve e anoacutedino apontamento (por exemplo uma parte de On
the Road de Kerouac que foi comida por um catildeo) e a secura brutal do facto exposto
(como quando enuncia sem mais ldquoAs gravidezes de Frida Khalordquo idem 25) Um livro que nunca chega a comeccedilar e que parece natildeo ter fim mas que atira o leitor para o meio
de uma descontinuidade irreparaacutevel filmes que natildeo se filmaram livros que natildeo se
escreveram bibliotecas reduzidas a cinzas cartas extraviadas fotografias por revelar
especulaccedilotildees vaacuterias Tudo o que natildeo se cumpriu tudo o que natildeo chegou sequer a ser
O ensaiacutesta e escritor de contos dinamarquecircs Villy Soslashrensen termina um primeiro romance
aos dezasseis anos e destroacutei-o aos dezassete William Burroughs natildeo guardava nenhuma
memoacuteria da redacccedilatildeo do Festim Nu No seu filme Scarlet Diva Asia Argento pede aos
seus actores para terem relaccedilotildees sexuais natildeo simuladas depois elimina as cenas na
montagem Rua Beautreillis em Paris a banheira em que morreu Jim Morrison foi
destruiacuteda (idem 34)
Este pequeno livro reverbera a pilha de destroccedilos com que o ldquoanjo da histoacuteriardquo
benjaminiano contempla o progresso ou a nua verdade das suas sobras e ruiacutenas o ldquolixo-
limpordquo da cataacutestrofe (Nunes 2020 82) E o que eacute o progresso afinal Aiacute estaacute ele
segundo Lefebvre numa fila indiana de disparates separados por pontos o progresso como a consequecircncia destrutiva da acccedilatildeo humana a destruiccedilatildeo como acto de
esquecimento que propicia o trabalho da memoacuteria (e o trabalho de luto pelo que se
perdeu) Um monte de pedras um lastro de perdas
Se a lista de Lefebvre eacute inacabaacutevel se o que a anima eacute a vontade intriacutenseca de natildeo
deixar que nada da Histoacuteria caia no esquecimento (como acontecia a Walter Benjamin
com o seu furor de coleccionista e o seu materialismo histoacuterico agrave la trapeiro) podemos aqui intercalar quase como um acidente de percurso ndash como se dispuseacutessemos todos os
livros de Rui Nunes sobre a mesa e abriacutessemos um numa paacutegina agrave sorte ndash esta
passagem de Baixo Contiacutenuo com a memoacuteria desavinda em instantacircneos avulsos
ldquocomo peccedilas desirmanadas de um mosaico romanordquo
O grande plano da cara de Monica Vitti nrsquoO Deserto Vermelho de Antonioni Dirk
Bogarde agrave volta de um James Fox adormecido em O Criado de Losey Hinauf Hinauf
do poema Ganimedes de Goethe o morcego a bater-me na cara nas ruiacutenas do Castelo de
Satildeo Filipe eu e meu avocirc sentados na praia vazia de Albarquel frente ao mar a aacutegua a
escorrer por uma talha de barro o velho na varanda a olhar o pessegueiro em flor e a
dizer lindo como um esposado a manhatilde do dia em que meu pai morreu a matildeo de minha
matildee a segurar a minha as lentes redondas dos oacuteculos do meacutedico sobras de tudo o que
sobra natildeo haacute histoacuterias mas traccedilos imagens relacircmpagos natildeo somos mais do que isso soacute
isso com o nosso corpo a ligar tudo isso cada bocado vai perdendo ateacute ter nascido um
bocado (Nunes 2017b 13-4)
Na mesma cadeia de acidentes irrompem as personagens de Rui Nunes ou as
visotildees imprecisas que as esquissam tornando impossiacutevel (e ateacute indesejaacutevel) a sua
unidade e representaccedilatildeo O ldquofasciacuteniordquo do olhar em Rui Nunes pela singularidade das
coisas contamina o seu fasciacutenio pelos humanos pela sua dissemelhanccedila irredutiacutevel pelo
potencial assombro que cada um desperta O ofiacutecio implacaacutevel de decompor a paisagem ndash por exemplo uma ida ao cafeacute e o empregado que o serve ndash desagua num monstruoso
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
37 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
caos de ldquoobjectos desgarradosrdquo
que estou aqui a fazer entre objectos desgarrados
os meus olhos soacute vecircem uma coisa apoacutes outra incapazes de abarcar toda a sala
assemelham-se a ocelos de uma simplicidade furiosa perseguem os objectos e quando
os apanham nunca mais os largam o rapaz por exemplo que anda por entre as mesas
uma rodilha na matildeo direita a limpar os tampos enquanto a esquerda flutua indecisa ora
coccedila a orelha ora pousa nas calccedilas ora esfrega uma borbulha no nariz matildeo pobre quase
se diria inuacutetil que atrapalha a outra matildeo que o rapaz conhece tatildeo mal com uma vida
autoacutenoma que ele natildeo controla eacute o meu fasciacutenio este ver a pequena histoacuteria dos gestos
princiacutepio e fim tatildeo proacuteximos
ndash o seu cafeacute
a matildeo surgiu e desapareceu
A chaacutevena
Levo-a agrave boca
Os laacutebios tocam-lhe
Afasto-a
Volto a aproximaacute-la
Afasto-a de novo
Ateacute natildeo ter medo
Ateacute
(idem 2011 46)
Este excerto assemelha-se a um movimento de zoom operado pelo olhar da nuvem de gestos do funcionaacuterio ateacute agrave chaacutevena sobre a mesa a circunstacircncia especiacutefica
que aqui nos eacute apresentada afunila vertiginosamente num devir-molecular O que resta
Para que ponto culmina ldquoAteacute natildeo ter medordquo lecirc-se Mas medo de quecirc Talvez medo da
imprevisibilidade iacutensita de todos os gestos esfumados medo da ameaccedila obscura que se
aninha em cada objecto levando o observador a afastar toda a ganga circundante a depurar a realidade objectiva ateacute chegar a esse resiacuteduo precaacuterio cuja nitidez de tatildeo
desprotegida que fica natildeo oferece qualquer margem para elucubraccedilotildees e equiacutevocos
ldquoAteacuterdquo termina ndash mas termina apenas o que eacute verbalmente alcanccedilaacutevel Aquele uacuteltimo
ponto final natildeo finaliza coisa alguma eacute o foco possiacutevel o zoom que deforma a
magnitude do pormenor a expansatildeo sem fim do que permaneceraacute inacabado Abre-se um silecircncio no coraccedilatildeo do texto Ao natildeo se fechar natildeo haacute um sentido inequiacutevoco uma
legenda que seja que se possa consagrar como verdade ou certeza ndash essa face totalitaacuteria
do poder
as pessoas satildeo pormenores o brilho de um liacutequido que se evapora o gosto salobro do
sangue na boca a mancha de um eczema no braccedilo Nunca vi uma pessoa na sua
integridade frente a mim Soacute paacutelpebras laacutebios crostas pecirclos mapas irregulares Vejo tatildeo
pouco que preciso de aproximar os olhos do que quero ver E nessa aproximaccedilatildeo tudo se
torna monstruoso e doente
(ou natildeo vejo ou vejo a morte)
natildeo te vejo E aproximo de ti os olhos Quando te comeccedilo a ver natildeo eacute a ti que vejo mas a
uma paisagem cancerosa que me dizes ser tua uma madeixa de cabelo um azul circular
uma ferida Muacuteltiplos fragmentos com uma voz pelos seus meandros (Nunes 1995 30)
Por isso nesta escrita tudo o que existe denuncia uma irremediaacutevel incompletude
ontoloacutegica
Satildeo esboccedilos as pessoas que encontramos Esboccedilos com a persistecircncia do que nasceu
incompleto Caminhamos rodeados de esboccedilos As palavras satildeo esboccedilos ateacute as mais
iacutentimas a que nunca chegaste (idem 2016 30)
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
38 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
6 Para Manuel Frias Martins
[a] prioridade eacutetica da escrita de Rui Nunes construiacuteda predominantemente em torno de
uma esteacutetica de imagens manchadas de sangue menstrual urina fezes viacutesceras
grosserias insultos e violecircncias diversas faz do abjecto o lugar mais adequado de
comunicaccedilatildeo natildeo soacute com o mundo mas tambeacutem com Deus Eacute como se fosse necessaacuterio
descer aos infernos para encontrar o bem supremo a paz eterna o prazer infinito a
inteligecircncia sem rosto da iluminaccedilatildeo interior (Martins 2009 49)
A cataacutebase eacute um passeio normal pela cidade o horror eacute a experiecircncia democraacutetica
das nossas derivas fascizantes Daiacute os olhos de Rui Nunes verem um mundo que jaacute eacute o
de um poacutes-apocalipse qualquer Natildeo o anuacutencio de um fim de mundo ostensivamente
decorado por uma aparatosa pirotecnia escatoloacutegica (degelos erupccedilotildees asteroacuteides pandemias) mas a consumaccedilatildeo desse epiacutelogo num instante que se arrasta infinita e
indefinidamente um presente eternizado um tempo que nunca mais acaba a sua
sucessiva desagregaccedilatildeo ateacute ao desgaste de todas as palavras que o descrevam e de todas
as imagens que o ilustrem Um apocalipse cujo dia seguinte manteacutem os cafeacutes abertos a
mesma moeda a consciecircncia da morte entranhada ateacute aos ossos O mesmo silecircncio cavado no interior das palavras das conversas esvaziando-as de qualquer
encadeamento de sentido fala-se mas natildeo se sabe a quem nem porquecirc nem com que
palavras Fala-se ndash e falta-se falha-se Os dias que se sucedem ao fim do mundo
glosam na escrita de Rui Nunes este empobrecimento da palavra ldquoQuanto mais se
escreve mais faltardquo (Nunes 2018 55) Descer aos infernos eacute habitar essa falta eacute escrever a partir ldquodos escombros com os escombros de uma liacutenguardquo (idem 2012 52)
Como quem assiste agrave ldquopequena histoacuteria dos gestosrdquo no corpo de um rapaz agrave mesa do
cafeacute no dia a seguir ao fim do mundo
A prioridade eacutetica de Rui Nunes ilumina personagens sobrecodificadas pelo seu
estigma Figuras que estatildeo refeacutens da inescapaacutevel ostensividade do seu corpo que satildeo
apenas ou sobretudo o seu exterior a evidecircncia ameaccedilante do cheiro que exalam da sujidade na roupa da homossexualidade como afronta puacuteblica os demais signos da
exclusatildeo Porque ldquoqualquer pobreza segrega o mesmo Tudo eacute igual rente ao chatildeordquo
(idem 2016 31) A consistecircncia dessa segregaccedilatildeo de texto para texto de livro para
livro reitera a presenccedila de figuras como o homossexual (em Sauromaquia) o
toxicodependente (em Que sinos dobramhellip) ou a mulher romena sentada no chatildeo com
um copo de plaacutestico para as esmolas (em A Crisaacutelida)
Mais do que agentes a matildeos com as peripeacutecias de foro aristoteacutelico (e daiacute o termo
personagens ser problemaacutetico porque carrega toda uma tradiccedilatildeo do romance que Rui
Nunes desconstroacutei) tais figuras constituem ldquoesboccedilosrdquo sucessivos que condensam a
rejeiccedilatildeo de quaisquer princiacutepios humaniacutesticos (porquanto incarnam a decadecircncia da
humanidade a sua parte maldita) e como tal satildeo seres de suspensatildeo sem uma meta a percorrer rumo a um determinado fim (cf Ranciegravere op cit) Muito aqueacutem do papel de
viacutetimas de uma sociedade que os marginaliza viacutetimas agrave mercecirc da caridade alheia e da
reactivaccedilatildeo de discursos morais (o que as tornaria estereoacutetipos lassos) satildeo sobretudo
hiatos vivos a ordem dos encadeamentos sucessivos esboroa-se neles destruindo
quaisquer ligaccedilotildees de sentido Satildeo o improdutivo por excelecircncia o tempo estaciona nestas figuras de tal maneira que se torna uma experiecircncia de vida natildeo-viviacutevel
intoleraacutevel para quem os olha e prontamente os expele com esse olhar reduzindo-os a
um insulto
sem importacircncia suficiente somos os esconjurados [hellip] Fodamos mas calados discretos
Natildeo nos beijemos em nenhuma rua o mundo que havemos de salvar natildeo nos pertence
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
39 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Viver ningueacutem nos proiacutebe se o fizermos no interior das casas respeitando os vizinhos do
lugar Assento temos em qualquer revoluccedilatildeo se obliterarmos uma parte de noacutes Seres
truncados Ou tolerados apenas Seres proibidos de dizer Esquizofrenizados Seres que se
tornaratildeo uma ameaccedila puacuteblica Seres que desejam os nossos filhos que os conspurcam
capazes de todos os crimes Seres coitados nos momentos mais benignos Seres de antes
ladratildeo que maricas (Nunes 1983 105)
Nesta passagem de Sauromaquia os homossexuais satildeo o alvo predilecto de uma
natildeo-inscriccedilatildeo no real para que sem eles sob a perspectiva do opressor (a
heteronormatividade neste caso) a vida se assemelhe a uma continuidade fluida num
tempo sem memoacuteria sem negatividade (que eacute a marca da diferenccedila do que potencia o
encontro com o novo e o diferente o atrito mobilizador ou heuriacutestico sem o qual o humano se dissolve numa mesmidade opressiva) Mas eacute ao afundar-se no inominaacutevel da
dor que Rui Nunes procura de certa forma ldquosobreviver agrave dor no interior da proacutepria
dorrdquo segundo Eduardo Prado Coelho (1997 208) Pois
[hellip] na dor mais extrema aquilo que resta se alguma coisa resta eacute o corpo refuacutegio dos
sem-ningueacutem abrigados nele enrolados nele mesmo velho mesmo feio natildeo sempre soacute
agraves vezes mas a vida eacute soacute agraves vezes (Nunes 2018 53)
Rui Nunes natildeo torna o homossexual ou a mulher romena como figuras de
autoridade narrativa agrave volta das quais a acccedilatildeo se vai desnovelando numa seacuterie de
episoacutedios ou acidentes com ou sem catarse agrave vista Natildeo eacute a sua densidade psicoloacutegica
que eacute posta agrave prova nos enredamentos da intriga ou no virtuosismo retoacuterico do autor As personagens natildeo satildeo retratos ou metaacuteforas do que quer que seja mas incarnam o
expoente maacuteximo de uma dor inconvertiacutevel em palavras Uma dor uma solidatildeo um
terror atroz ndash modos de existecircncia que se manifestam num grito num choro desalmado
num bloqueio do corpo que emudecem a vocaccedilatildeo dialogante das palavras E eacute por isso
que a devastaccedilatildeo emocional de um drogado ou a anguacutestia de um narrador que engata um estranho na rua e depois o leva para casa ou que teme pela vida num WC puacuteblico
nunca satildeo o tema deste ou daquele livro nem procuram descrever experiecircncias de vida
que nos embaciem os olhos pela descompaixatildeo geral O excesso de uma dor natildeo se
compraz com descriccedilotildees ndash faacute-las explodir E a escrita comeccedila quando torna essa
explosatildeo na sua uacutenica modalidade de existecircncia eacute quando a dor natildeo conhece palavras que a digam servindo-se delas como um espelho diaacutefano que a literatura tem lugar
Surgem entatildeo os nomes proacuteprios os objectos dispostos numa sala as figuras
interpelaacuteveis que perguntam e respondem que se movem de um lugar para outro neste
ou naquele tempo Funcionam como efeitos de uma intimidade inacessiacutevel mas que
deixam lastro em forma de escrita A esse lastro agrave falta de melhor termo damos o nome
de literatura
cumpres a funccedilatildeo de ser personagem por isso te concedo a escassez de algumas linhas
natildeo te deixo desenvolver plenamente para que natildeo me esqueccedila de que eacutes fictiacutecia de que
sou capaz de interromper a tua maturaccedilatildeo adiar-te odiar-te espacejar mais o teu rosto
instalar-me na pupila tornada o sossego letal acompanhar a laacutegrima pensar-te o
sofrimento (Nunes 1986 49)
Hoje natildeo consigo recompor o teu rosto e se nitidamente te imagino natildeo eacutes bem tu mas
uma qualquer fotografia tua Hoje a tua fotografia apropriou-se de ti deve ser assim
que se comeccedila a morrer Quando agrave nossa volta um corpo desaparece nos sinais da sua
passagem (idem 2013 25)
7 Um corpo que desaparece nos sinais da sua passagem Poderaacute esta imagem ser
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
40 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
contiacutegua agrave daquele torso arcaico de Apolo (c 480-470 aC) que no princiacutepio do seacuteculo
numa ida ao Louvre despertara em Rilke uma visatildeo profusamente enigmaacutetica num desvio pela eacutecfrase Sem cabeccedila perdidos os braccedilos e as pernas o resto mutilado de
uma unidade perdida comunica ao poeta um dos mais conhecidos e insoacutelitos remates da
poesia moderna do Ocidente ldquoTens de mudar de vidardquo (Du muszligt dein Leben aumlndern)
Natildeo conhecemos a sua cabeccedila inusitada
onde luziam maduras as pupilas Mas inteiro
o seu torso ainda arde como o candeeiro
que daacute ao seu olhar a luz apenas degradada
persistecircncia e brilho Pois natildeo sendo assim natildeo
poderia a onda do peito cegar-te nem no leve
torcer das ancas haver o sorriso que corre
para aquele centro da procriaccedilatildeo
Assim natildeo sendo seria disforme e curta a pedra
caiacuteda da transparente travessa dos ombros
e natildeo cintilaria como pele de fera
e natildeo explodiria por todos os lados e pontos
como uma estrela pois natildeo haacute ali lugar
donde ele te natildeo veja Tens de mudar a tua vida
(Rilke apud Sloterdijk 2018 35)
Como assim mudar de vida De onde vem este apelo tatildeo suacutebito no imperativo
quando nada nos treze versos anteriores fazia prever este inesperado alccedilapatildeo no fim do
soneto Quem nos fala do sem-fundo numinoso de uma pedra esculpida Que nos
revela a sensibilidade de Rilke ao pocircr no artefacto na coisa inerte esse mutismo eloquente ndash e sobretudo exortativo pois nos obriga a repensar a nossa vida a duvidar
de que estamos no caminho certo
Segundo a leitura que Peter Sloterdijk fez do poema jaacute natildeo eacute o corpo total que
necessariamente inspira uma essecircncia de verdade uma autoridade excepcional
impondo-se aos olhos alheios como um modelo de beleza fiacutesica ndash tal como os corpos
musculados da Antiguidade esses arqueacutetipos da perfeiccedilatildeo que serviriam de incentivo a que os sujeitos rivalizassem com os deuses pelo poacutedio da gloacuteria eterna No lugar dessa
coesatildeo orgacircnica e triunfante caberia agora a um torso mostrar-se como a ruiacutena da
eternidade a eternidade desfeita nos sinais da sua passagem ldquoA intensidade [do
fragmento] bate a perfeiccedilatildeo normalizada [do corpo inteiramente visiacutevel]rdquo (idem 36)
Qual peccedila votada ao abandono pelo desbaste do tempo as suas partes ausentes jamais restituiacuteveis provocam a consciecircncia adensam-lhe a inquietude existencial somos o que
somos sobretudo porque somos o que nos falta Eacute essa falta que desperta a sensaccedilatildeo de
nos sentirmos acossados pela presenccedila rumorejante dos objectos que transmitem uma
ldquoenergia-mensagemrdquo (idem 34) As coisas olham-nos intui Rilke Haacute uma cabeccedila
ausente naquele torso que emite um olhar que vem do fundo do tempo E eacute mais veemente esse olhar que nos lanccedila do que a exiacutegua soberania vigilante que lhe
conseguimos devolver
Cem anos apoacutes o sinal que Rilke nos fez compreendemos sem duacutevida esta indicaccedilatildeo
melhor ainda do que os seus contemporacircneos pois a nossa capacidade de perceccedilatildeo mais
do que a de nenhuma outra geraccedilatildeo anterior agrave nossa estaacute anestesiada e foi saqueada pela
conversa fiada dos corpos sem maacutecula (idem 36)
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
41 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Tal vez nos possamos apropriar desta qualidade da coisa ainda para mais
desconjuntada para reler a escrita de Rui Nunes agrave luz dessa enigmaticidade do fragmento nos antiacutepodas dos ldquocorpos sem maacuteculardquo da contemporaneidade Que corpos
satildeo estes Incarnam o triunfo da vida nua satildeo os apoacutelogos da wellness que medem
analisam e quantificam os seus vaacuterios desempenhos sob pressatildeo de terem a sauacutede em
permanente performance Entregam-se sem reserva agrave imensa orgia digital cuja coacccedilatildeo
da transparecircncia ndash a vida exposta nos social media como prova de que aconteceu ndash os esvazia de qualquer risco sombra vacilaccedilatildeo ou atrito para que esplendam enquanto
puras superfiacutecies do consumo na sociedade capitalista e no inferno da felicidade
permanente Corpos de uma sauacutede totalitaacuteria ficam refeacutens de todas as comodidades
materiais e incapazes de imaginar um futuro sem elas estatildeo agrave mercecirc de uma ldquohipocondria digitalrdquo (Han 2020 26) ndash por isso recusam-se a tolerar a dor e o
envelhecimento evitam qualquer experiecircncia que possa ameaccedilar o cerco paliativo com
que se vedam ao inesperado agrave contingecircncia agrave absoluta alteridade do outro (que
constitui sempre uma ameaccedila em potecircncia estrangeiro inimigo terrorista fonte de
contaacutegiohellip) Satildeo corpos com medo de tudo ndash ateacute de si proacuteprios
Se tais corpos fossem plasmaacuteveis num determinado comportamento de escrita numa literatura a condizer esta teria que ser a denegaccedilatildeo manifesta daquele medo
seria entatildeo uma escrita cobarde uma escrita aliteratada que se entreteacutem a ldquocontar
histoacuteriasrdquo e desse modo respeitando sigilosamente a liacutengua ndash ao inveacutes de manter com a
liacutengua uma relaccedilatildeo de profunda desconfianccedila com vista a desarmar e desarticular o seu
poder Por isso
[hellip] o meu corpo sobrevive na desarmonia eacute um corpo contra o olhar de Deus contra
todas as ditaduras sem histoacuteria natildeo sou capaz de histoacuterias de me internar pelas suas ruas
previsiacuteveis e mortas por isso soacute consigo viver o presente e o seu terror cheio de
exaltaccedilatildeo e assim quero continuar [hellip] (Nunes 1999 114)
Com os seus esboccedilos de vidas esta escrita rompe com as sequecircncias
contemporacircneas de corpos lisos e homogeacuteneos ldquosem maacuteculardquo segundo Sloterdijk Mostra-nos a decadecircncia fiacutesica sem qualquer pudor ou preconceito natildeo porque se
queira rebelar contra a vergonha social que coage essa decadecircncia a esconder-se mas
porque eacute na decadecircncia que um corpo vivo se solidariza com a presenccedila da morte a
ruiacutena comum a todas as coisas Eacute por via da dor que eacute restituiacutedo ao corpo a sua
realidade por um efeito de choque E regressamos assim agrave decomposiccedilatildeo de um corpo pelos gestos que faz ao seu apodrecimento insaciaacutevel ateacute ser reduzido a um naco
insensato de carne como se lecirc em O Anjo Camponecircs
Abre a torneira Deixa que o jacto de aacutegua lhe bata nas matildeos se espalhe e lhe salpique o
pijama sente a forccedila da aacutegua a bater-lhe nas matildeos ensaboa-as gesto automaacutetico que o
deixa livre para quecirc o corpo eacute um animal que regressa insidioso este eacute o meu corpo diz
e sorri empobrece e regressa [hellip] as matildeos estremecem semiabertas no rebordo do
lavatoacuterio uma sobre a outra jaacute natildeo duas matildeos mas um bocado de carne um frio
disforme uma humidade disforme natildeo haacute dedos nem palmas nem pele a separar uma
matildeo da outra haacute aquele bocado de carne no rebordo do lavatoacuterio [hellip] (idem 2020 48)
Um pedaccedilo de carne um torso escultoacuterico De novo o bocado o despojo a ruiacutena
Pelos interstiacutecios desta escrita reacende-se o iacutempeto obscuro de uma voz imaterial que
confere agraves coisas residuais aos gestos mais comuns uma intensa carga dramaacutetica Note-
se a encenaccedilatildeo criacutestica do dictum ldquoeste eacute o meu corpordquo na passagem acima transcrita
sem o milagre da transubstanciaccedilatildeo este corpo sabe-se reconduzido tatildeo-soacute ao milagre precaacuterio da imanecircncia O corpo eacute uma vanitas em movimento contiacutenuo ateacute agrave sua
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
42 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
erosatildeo Pelo caminho como fogos-faacutetuos extingue-se a iacutenfima solidez antropoloacutegica
que a identidade o eu ou o self poderiam salvaguardar como derradeira imagem do humano agora que essa imagem se nulifica na ldquoviolecircncia banal de um bocado de carnerdquo
ndash a carne que jaacute em Suiacutete e Fuacuteria livro anterior a O Anjo Camponecircs eacute apresentada
como o elo irredutiacutevel que une qualquer ldquoanoacutenimo do que foi vivordquo (Nunes 2018 57)
Vale a pena a citaccedilatildeo inteira pelo que nela se afirma como uma extraordinaacuteria e natildeo
menos terriacutevel legenda verbal do que satildeo os corpos escorchados dos bois maneiristas [fig 3] ou as variaccedilotildees da pele esfolada e da carne viva de Maacutersias por exemplo na
pintura de Francis Bacon e Egon Schiele (que natildeo por acaso figuram nas capas de Que
sinos dobram por aqueles que morrem como gado e Catildees respectivamente) [fig 1 e
fig 2] ou ainda cumprindo-se o movimento de zoom deste olhar-escrita ateacute ao horror absurdo do pormenor ampliado a brutalidade evidente da carne nos trabalhos de Anish
Kapoor crus manifestos de que o humano uacuteltimo reduto de um limiar metafiacutesico eacute ele
proacuteprio um limiar extinto ou esvaziado de qualquer transcendecircncia [fig 4]
[hellip] um gato um boi um catildeo uma osga um pombo um homem Natildeo haacute dissonacircncias
neste bocado de carne os animais todos rodeiam-no para serem baptizados Ou para se
certificarem do nome que hatildeo-de perder do nome que hatildeo-de ganhar A morte eacute um
crisma Um baptismo eu te dou o nome de carne E dela se faraacute a fome Ou o inequiacutevoco
de uma arma A metaacutefora eacute a grande felicidade dos que tecircm nome proacuteprio Dos que
podem ser chamados Mas carne Estaacute no fim da escala abaixo de rio por exemplo rio
qualquer que seja tem nascente foz margens Mas carne Eacute simplesmente um bocado O
informe Pode dizer-se ensanguentada Poreacutem esse sangue natildeo pertence agrave sua definiccedilatildeo
haacute uma carne sem sangue mas natildeo um rio sem nascente A carne eacute sempre um bocado E
estaacute tudo dito Ningueacutem perguntaraacute a quem a quecirc pertenceu esse bocado Eacute soacute uma coisa
morta Na verdade natildeo haacute carne viva A carne viva eacute sempre em carne-viva uma ferida
uma chaga nas pernas de uma crianccedila no cachaccedilo de um boi nas matildeos de um miseraacutevel
nunca na matildeo do senhor doutor do senhor engenheiro do senhor ministro de vossa
excelecircncia do senhor presidente do meu caro amigo uma ferida em carne-viva eis o
ldquooutrordquo que nojo (ibidem)
Fig 1 Fig 2
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de
abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se
delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali
sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na
pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que
nada tem a exprimir
Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia
de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima
instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como
signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um
diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo
cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto
impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de
criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia
do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber
impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste
como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico
amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete
ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa
carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da
sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne
e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo
Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da
Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de
Rembrandt
Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts
(2013-2015) de Anish Kapoor
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os
louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz
ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida
9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere
define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo
(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em
termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo
estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da
subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo
menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o
ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios
imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam
os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs
Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a
literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de
sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as
hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas
as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que
determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem
descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no
exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o
novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de
acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar
o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes
oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a
racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo
o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e
resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar
incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da
experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos
temposrdquo (idem 111)
Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo
vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim
aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA
pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria
mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta
rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do
pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever
Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Escrever natildeo ilumina escurece
Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute
Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda
(Nunes 2014 90)
Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece
como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua
impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute
um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a
esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-
se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas
palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e
intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim
por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a
potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida
Referecircncias bibliograacuteficas
Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999
Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad
Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001
Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997
Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003
Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda
Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010
ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em
httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)
Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo
Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019
Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui
Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009
Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983
Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986
Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993
Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio
DrsquoAacutegua 1995
Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999
Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005
Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011
Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013
Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014
Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016
Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a
Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b
Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018
Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
33 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
2 ldquoJames Joyce e John Milton escreveram as suas obras-primas Finneganrsquos
Wake e Paradise Lost enquanto perdiam a visatildeordquo (Lefebvre 2019 27) Idecircntico comentaacuterio poderia ser feito acerca de Rui Nunes que natildeo tem feito outra coisa durante
mais de meio seacuteculo senatildeo escrever livros enquanto se foi esbatendo a visatildeo Uma
miopia progressiva que vem desde tenra idade somando-se essa a outras doenccedilas
obrigou o autor a conviver de perto com a falecircncia do corpo experimentando o corpo
senatildeo como invoacutelucro de crise sempre na iminecircncia de falhar de doer de exacerbar o seu deacutefice A sua escrita natildeo poderia estar senatildeo no limite ldquoNo limite da narrativa no
limite da linguagem no limite da visatildeo no limite das forccedilasrdquo (Coelho 2003 78) Uma
escrita-limite cujo condatildeo de representar o mundo ndash representar efabular urdir intrigas
e enredos ndash eacute obsessivamente assediado pela impotecircncia fundacional das palavras ou
melhor pela sua inerente cegueira (cf Derrida 2010) com um claro efeito devastador
As palavras morreram com os olhos
Morreram quando os olhos Distanciaram
Morreram os olhos quando distanciaram
Falamos palavras mortas
acumuladas no tempo de todos os mortos
Morremos E natildeo somos
mais do que o estrume de outras palavras mortas
Algumas vezes o ranho a merda e o choro
o gesto que a matildeo destroacutei na outra matildeo
eacute o que conseguimos
mais proacuteximo de ser verdade
(Nunes 2016 29-30)
A escrita de Rui Nunes insiste nesta exasperaccedilatildeo a de um mundo que apoacutes ter
conhecido piacutencaros de loucura destrutiva natildeo tem mais com que nos enganar E a
literatura ou diz esse engano sem reservas nem truques eufemiacutesticos ou eacute ela proacutepria
nada mais do que a consolidaccedilatildeo da infacircmia feita de palavras mortas e que cavam cada
vez mais longas distacircncias entre si e o mundo esse ldquoestrumerdquo a que nos vemos impiedosamente reduzidos Natildeo haacute uma saiacuteda faacutecil nenhum plano B Ter perdido a
esperanccedila mas sem desesperar eis a vereda pela qual esta escrita abre caminho numa
luacutecida acidez Foram-se acabando os mundos uns atraacutes dos outros a humanidade resta
como o eco de uma palavra destroccedilada pela sua tatildeo abusada quanto abusiva eloquecircncia
Morrem palavras cegam-se os olhos E ldquoo que conseguimos mais proacuteximo de ser verdaderdquo eacute apenas ldquoo gesto que a matildeo destroacutei na outra matildeordquo (ibidem) Natildeo a matildeo
iacutendice dessa continuidade ilusoacuteria que o corpo eacute enquanto organismo na sua plenitude
figurativa Natildeo a matildeo mas o gesto evanescecircncia o desenho no ar do que natildeo deixa
rasto A impressatildeo de um ritmo a inscriccedilatildeo de um movimento no corpo da escrita fazer
com as palavras o que uma matildeo desfaz no puro acontecer dos seus gestos Uma escrita que funcione como esses gestos tatildeo impossiacutevel quanto isso como um gesto fixado pelo
gesso da escrita ou uma labareda que o gelo preservasse Uma contradiccedilatildeo insuperaacutevel
como eacute a de um homem capturado no seu ldquoesbracejarrdquo Esse caldo aflitivo de gestos
seraacute para o autor o seu retrato mais verdadeiro mas mais verdadeiro natildeo significa que
seja menos terriacutevel
O fogo natildeo tem um desenho propaga-se ateacute agrave cinza o sinal do vento Um homem
confunde-se com a chama Instaacutevel como ela nos movimentos desconexos Na sua
afliccedilatildeo esbraceja Eacute um instante completo o esbracejar de um homem (idem 36-7)
3 Se eacute verdade que todos os livros de Rui Nunes constituem uma forma de
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
34 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
humilhaccedilatildeo das garantias do romance enquanto veiacuteculo de descriccedilatildeo e fluecircncia
narrativa faz sentido destacar Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado (1995) como o livro-charneira dos ulteriores e agudizados desvios que o autor infligiraacute
na composiccedilatildeo dos textos O que A Matildeo do Oleiro (2011) Barro (2012) Armadilha
(2013) ou A margem de um livro (2017a) tecircm em comum eacute o progressivo esboroamento
da condensaccedilatildeo narrativa o texto esfrangalha-se a coesatildeo das manchas graacuteficas tende
para uma dispersatildeo cada vez maior Surgem pequenas ilhas de texto de tamanho desigual com a insistecircncia do autor no uso de marcas tipograacuteficas distintas (itaacutelicos
negritos espaccedilos em branco) as frases surgem abruptamente interrompidas como
gaguejos que natildeo chegam sequer a completar uma unidade miacutenima de sentido capaz de
funcionar como frase
Comeccedila-se partindo (espatifando repetindo ateacute ao riso ateacute perguntarem que merda eacute esta natildeo sabes escrever E eu ainda natildeo) desenhando o labirinto de um espaccedilo vazio
O espaccedilo interminaacutevel de uma parede (Nunes 2017a 27)
Cada acantonamento de ideias eacute travado pela pontuaccedilatildeo marcando natildeo
meramente um ritmo proacuteprio de leitura mas um tipo de leitura radicalmente inaugural
como se de facto ao ser confrontado com esta escrita o leitor reaprendesse a ler ndash e a verndash reencenando-se assim o que o filoacutesofo Pierre Alferi considera o efeito
instaurador e natildeo descritivo das frases da literatura isto eacute como se a literatura
inventasse ldquoo passado das frasesrdquo (Alferi 1999 19-20) O uso de dois pontos figurando
muitas vezes como o uacutenico elemento visiacutevel numa linha marca um intervalo entre
imagens distintas agraves vezes ligadas justamente pela ausecircncia de ligaccedilatildeo sem relaccedilatildeo causa-efeito Ou abusa-se do ponto final para singularizar em sequecircncias tatildeo breves
quanto fulminantes o que cada instacircncia ndash homem som animal bocado ndash possui de
irredutiacutevel violento ou simultacircneo Quanto mais concentradas ficam as palavras maior
a densidade do seu enigma quanto mais se desobedecer agrave ldquotirania das grandes frasesrdquo
mais ldquoa palavra solta liberta a poeacutetica da erracircnciardquo (Nunes 2005 69) Como formulou Eduardo Prado Coelho a respeito do livro Catildees trata-se de ldquouma lsquoarte poverarsquo em
sentido literal e por isso exiacutegua de lances metamorfoses surpresas ou desenlacesrdquo
(Coelho 2003 78)
E eacute por isso tambeacutem que a escrita de Rui Nunes confessada agrave partida a
impossibilidade de a escrita vir a esgotar a realidade ou de dizer em plenitude o mundo
dos seres e das coisas numa utopia de sinoacutenimos perfeitos estaacute votada ao jogo inacabado das coexistecircncias contiacutenuas ldquoum tempo da coexistecircncia da igualdade e da
entre-expressividade dos momentos oposto ao tempo da sucessatildeo e da destruiccedilatildeordquo
segundo Jacques Ranciegravere (2019 108) Em Rui Nunes uma coisa a par de outra coisa
um fenoacutemeno contiacuteguo a outro fenoacutemeno a solidatildeo a escassez e a singularidade de
cada existencial de pensamentos e digressotildees interiores imbricados uns nos outros de falas e vozes misturadas de tempos e lugares heterogeacuteneos justapostos resistindo cada
elemento contra a transcendecircncia da realidade
o que tenho para descrever eacute a prolongada exposiccedilatildeo a uma falta por isso descrevo tudo o
que vejo amontoo nomes eis o caos
os caixotes abarrotam de lixo pela sua boca entreaberta saem sacos de plaacutestico folhas de
jornal gargalos de garrafas a perna de uma cadeira uma fita de gravaccedilatildeo nem os ratos
se aproximam destas montureiras batidas pelo vento destes foacutesseis que jaacute nasceram
foacutesseis eternidade rudimentar soacute as gaivotas debicam por aqui e por ali (Nunes 1999
26-7)
4 O tempo da coexistecircncia eacute o que Jacques Ranciegravere em As Margens da Ficccedilatildeo
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
35 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
(2019) expotildee como a inteligibilidade inaugural que marca escritores tatildeo diferentes
quanto Flaubert Virginia Woolf Rainer Maria Rilke W G Sebald ou Guimaratildees Rosa
A ficccedilatildeo fazia-se ela proacutepria anunciar atraveacutes da especificidade das personagens e das
aventuras que inventava assim como e mais que tudo pela sua estrutura temporal ela
dava resposta ao seu conceito quando a sucessatildeo de acontecimentos obedecia aiacute a um
encadeamento de causas e efeitos dotado de uma necessidade superior agrave do desenrolar dos
acontecimentos da vida comum Eacute esta sobre-racionalidade que se perdeu quando o
romance no seacuteculo XIX mergulhou no universo das coisas comuns e do tempo sem
objectivo O tempo da ficccedilatildeo jaacute natildeo estaacute estruturado pelo encadeamento das causas e dos
efeitos Deve conservar-se num soacute bloco como se fosse percorrido pelo sopro de uma
mesma modalidade de existecircncia (Ranciegravere 2019 96)
O que significa coexistir no realismo romanesco de Madame Bovary ou nrsquoOs
Cadernos de Malte Laurids Brigge Por um lado a coexistecircncia ilumina na trama
narrativa personagens e situaccedilotildees que pela sua condiccedilatildeo social ou anoacutedina indistinccedilatildeo
estariam agrave partida excluiacutedos de qualquer visibilidade daacute-se quando os vaacuterios indiviacuteduos das camadas populares incluindo pobres e marginais satildeo tidos em conta natildeo como um
pretexto moral para apelar agrave caridade e aos bons sentimentos mas antes como figuras
dotadas de complexidade subjectiva de pleno direito que habitam ruas e casas
inscrevendo nelas desejos paixotildees e atitudes consequentes
Constatar as suas existecircncias implica perceber o modo com actua ldquoa virtude do
realrdquo segundo Ranciegravere ndash e essa virtude consiste em aprender a desimaginar ldquoDeixar de imaginar eacute deixar de possuir o esquema que jaacute conhece o que se apresenta aos nossos
olhos o esquema que precede e ordena todo o encontrordquo (idem 45) Desperta naquele
que escreve a humildade de natildeo transformar os outros em objectos despojados da sua
obscuridade quer dizer que os signos desertam dos seus supostos referentes os
referentes desertam dos espartilhos habituais que os oprimem com uma sobrecodificaccedilatildeo Estes suacutebitos protagonistas preservam assim a sua proacutepria
ldquolinguagem secretardquo (idem 46) destituindo os signos de qualquer univocidade
Por outro lado e ainda decorrente dessa inscriccedilatildeo dos excluiacutedos na coexistecircncia
difusa e anoacutenima da vida Ranciegravere cita o uacuteltimo capiacutetulo do estudo seminal Mimesis
(1946) de Erich Auerbach dedicado ao ldquomomento qualquerrdquo na narrativa de Virginia
Woolf partindo do romance To the Lighthouse (1927) O ldquomomentordquo ou ldquoacontecimento qualquerrdquo desestabiliza a organizaccedilatildeo espaacutecio-temporal e a prevalecircncia
de um ponto de vista central seja o de uma personagem seja o do proacuteprio narrador Daacute-
se uma suacutebita irrupccedilatildeo de feixes na intriga ndash um vago olhar pela janela um mergulho
interior um telefonema evocado o relampejar de cores e sons ndash que desarranja quer as
hierarquias temaacuteticas de um texto dissolvendo as fronteiras entre intrigas principais e enredos secundaacuterios quer os posicionamentos ontoloacutegicos dos seres vivos ou inertes
humanos ou natildeo-humanos No fundo eacute arrancado a cada um desses seres e disposto em
luminosa evidecircncia o seu vitalismo intriacutenseco a sua forccedila de acaso o seu tumulto a sua
transpessoalidade numa espeacutecie de fraternidade panteiacutesta
Auerbach entrevia nesses cristais com algum optimismo gnosioloacutegico a
possibilidade de se refundar uma comunidade de homens e mulheres que partilharia uma mesma vocaccedilatildeo para a surpresa do instante ndash e isto sobretudo apoacutes a experiecircncia
das duas guerras travadas e dos infortuacutenios causados (note-se que o ensaiacutesta estava
exilado na Turquia tendo assim escapado agraves atrocidades nazis) pois ldquoquanto mais
diversos e mais simples apareccedilam os seres humanos como objetos de tais instantes
quaisquer tanto mais efetivamente deveraacute transluzir a sua comunidaderdquo (Auerbach
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
36 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
2001 497)
5 Uma drsquoAs peccedilas que faltam no vasto e inconclusivo cataacutelogo do poeta Henri
Lefebvre eacute uma citaccedilatildeo atribuiacuteda a Victor Serge que diz ldquoSomos todos sem-nome Inacabadosrdquo (Lefebvre 2019 81) Este curioso livro elenca uma seacuterie de perdidos-e-
achados da Histoacuteria mais perdidos do que achados na verdade oscilando entre a tiacutemida
comicidade perante um breve e anoacutedino apontamento (por exemplo uma parte de On
the Road de Kerouac que foi comida por um catildeo) e a secura brutal do facto exposto
(como quando enuncia sem mais ldquoAs gravidezes de Frida Khalordquo idem 25) Um livro que nunca chega a comeccedilar e que parece natildeo ter fim mas que atira o leitor para o meio
de uma descontinuidade irreparaacutevel filmes que natildeo se filmaram livros que natildeo se
escreveram bibliotecas reduzidas a cinzas cartas extraviadas fotografias por revelar
especulaccedilotildees vaacuterias Tudo o que natildeo se cumpriu tudo o que natildeo chegou sequer a ser
O ensaiacutesta e escritor de contos dinamarquecircs Villy Soslashrensen termina um primeiro romance
aos dezasseis anos e destroacutei-o aos dezassete William Burroughs natildeo guardava nenhuma
memoacuteria da redacccedilatildeo do Festim Nu No seu filme Scarlet Diva Asia Argento pede aos
seus actores para terem relaccedilotildees sexuais natildeo simuladas depois elimina as cenas na
montagem Rua Beautreillis em Paris a banheira em que morreu Jim Morrison foi
destruiacuteda (idem 34)
Este pequeno livro reverbera a pilha de destroccedilos com que o ldquoanjo da histoacuteriardquo
benjaminiano contempla o progresso ou a nua verdade das suas sobras e ruiacutenas o ldquolixo-
limpordquo da cataacutestrofe (Nunes 2020 82) E o que eacute o progresso afinal Aiacute estaacute ele
segundo Lefebvre numa fila indiana de disparates separados por pontos o progresso como a consequecircncia destrutiva da acccedilatildeo humana a destruiccedilatildeo como acto de
esquecimento que propicia o trabalho da memoacuteria (e o trabalho de luto pelo que se
perdeu) Um monte de pedras um lastro de perdas
Se a lista de Lefebvre eacute inacabaacutevel se o que a anima eacute a vontade intriacutenseca de natildeo
deixar que nada da Histoacuteria caia no esquecimento (como acontecia a Walter Benjamin
com o seu furor de coleccionista e o seu materialismo histoacuterico agrave la trapeiro) podemos aqui intercalar quase como um acidente de percurso ndash como se dispuseacutessemos todos os
livros de Rui Nunes sobre a mesa e abriacutessemos um numa paacutegina agrave sorte ndash esta
passagem de Baixo Contiacutenuo com a memoacuteria desavinda em instantacircneos avulsos
ldquocomo peccedilas desirmanadas de um mosaico romanordquo
O grande plano da cara de Monica Vitti nrsquoO Deserto Vermelho de Antonioni Dirk
Bogarde agrave volta de um James Fox adormecido em O Criado de Losey Hinauf Hinauf
do poema Ganimedes de Goethe o morcego a bater-me na cara nas ruiacutenas do Castelo de
Satildeo Filipe eu e meu avocirc sentados na praia vazia de Albarquel frente ao mar a aacutegua a
escorrer por uma talha de barro o velho na varanda a olhar o pessegueiro em flor e a
dizer lindo como um esposado a manhatilde do dia em que meu pai morreu a matildeo de minha
matildee a segurar a minha as lentes redondas dos oacuteculos do meacutedico sobras de tudo o que
sobra natildeo haacute histoacuterias mas traccedilos imagens relacircmpagos natildeo somos mais do que isso soacute
isso com o nosso corpo a ligar tudo isso cada bocado vai perdendo ateacute ter nascido um
bocado (Nunes 2017b 13-4)
Na mesma cadeia de acidentes irrompem as personagens de Rui Nunes ou as
visotildees imprecisas que as esquissam tornando impossiacutevel (e ateacute indesejaacutevel) a sua
unidade e representaccedilatildeo O ldquofasciacuteniordquo do olhar em Rui Nunes pela singularidade das
coisas contamina o seu fasciacutenio pelos humanos pela sua dissemelhanccedila irredutiacutevel pelo
potencial assombro que cada um desperta O ofiacutecio implacaacutevel de decompor a paisagem ndash por exemplo uma ida ao cafeacute e o empregado que o serve ndash desagua num monstruoso
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
37 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
caos de ldquoobjectos desgarradosrdquo
que estou aqui a fazer entre objectos desgarrados
os meus olhos soacute vecircem uma coisa apoacutes outra incapazes de abarcar toda a sala
assemelham-se a ocelos de uma simplicidade furiosa perseguem os objectos e quando
os apanham nunca mais os largam o rapaz por exemplo que anda por entre as mesas
uma rodilha na matildeo direita a limpar os tampos enquanto a esquerda flutua indecisa ora
coccedila a orelha ora pousa nas calccedilas ora esfrega uma borbulha no nariz matildeo pobre quase
se diria inuacutetil que atrapalha a outra matildeo que o rapaz conhece tatildeo mal com uma vida
autoacutenoma que ele natildeo controla eacute o meu fasciacutenio este ver a pequena histoacuteria dos gestos
princiacutepio e fim tatildeo proacuteximos
ndash o seu cafeacute
a matildeo surgiu e desapareceu
A chaacutevena
Levo-a agrave boca
Os laacutebios tocam-lhe
Afasto-a
Volto a aproximaacute-la
Afasto-a de novo
Ateacute natildeo ter medo
Ateacute
(idem 2011 46)
Este excerto assemelha-se a um movimento de zoom operado pelo olhar da nuvem de gestos do funcionaacuterio ateacute agrave chaacutevena sobre a mesa a circunstacircncia especiacutefica
que aqui nos eacute apresentada afunila vertiginosamente num devir-molecular O que resta
Para que ponto culmina ldquoAteacute natildeo ter medordquo lecirc-se Mas medo de quecirc Talvez medo da
imprevisibilidade iacutensita de todos os gestos esfumados medo da ameaccedila obscura que se
aninha em cada objecto levando o observador a afastar toda a ganga circundante a depurar a realidade objectiva ateacute chegar a esse resiacuteduo precaacuterio cuja nitidez de tatildeo
desprotegida que fica natildeo oferece qualquer margem para elucubraccedilotildees e equiacutevocos
ldquoAteacuterdquo termina ndash mas termina apenas o que eacute verbalmente alcanccedilaacutevel Aquele uacuteltimo
ponto final natildeo finaliza coisa alguma eacute o foco possiacutevel o zoom que deforma a
magnitude do pormenor a expansatildeo sem fim do que permaneceraacute inacabado Abre-se um silecircncio no coraccedilatildeo do texto Ao natildeo se fechar natildeo haacute um sentido inequiacutevoco uma
legenda que seja que se possa consagrar como verdade ou certeza ndash essa face totalitaacuteria
do poder
as pessoas satildeo pormenores o brilho de um liacutequido que se evapora o gosto salobro do
sangue na boca a mancha de um eczema no braccedilo Nunca vi uma pessoa na sua
integridade frente a mim Soacute paacutelpebras laacutebios crostas pecirclos mapas irregulares Vejo tatildeo
pouco que preciso de aproximar os olhos do que quero ver E nessa aproximaccedilatildeo tudo se
torna monstruoso e doente
(ou natildeo vejo ou vejo a morte)
natildeo te vejo E aproximo de ti os olhos Quando te comeccedilo a ver natildeo eacute a ti que vejo mas a
uma paisagem cancerosa que me dizes ser tua uma madeixa de cabelo um azul circular
uma ferida Muacuteltiplos fragmentos com uma voz pelos seus meandros (Nunes 1995 30)
Por isso nesta escrita tudo o que existe denuncia uma irremediaacutevel incompletude
ontoloacutegica
Satildeo esboccedilos as pessoas que encontramos Esboccedilos com a persistecircncia do que nasceu
incompleto Caminhamos rodeados de esboccedilos As palavras satildeo esboccedilos ateacute as mais
iacutentimas a que nunca chegaste (idem 2016 30)
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
38 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
6 Para Manuel Frias Martins
[a] prioridade eacutetica da escrita de Rui Nunes construiacuteda predominantemente em torno de
uma esteacutetica de imagens manchadas de sangue menstrual urina fezes viacutesceras
grosserias insultos e violecircncias diversas faz do abjecto o lugar mais adequado de
comunicaccedilatildeo natildeo soacute com o mundo mas tambeacutem com Deus Eacute como se fosse necessaacuterio
descer aos infernos para encontrar o bem supremo a paz eterna o prazer infinito a
inteligecircncia sem rosto da iluminaccedilatildeo interior (Martins 2009 49)
A cataacutebase eacute um passeio normal pela cidade o horror eacute a experiecircncia democraacutetica
das nossas derivas fascizantes Daiacute os olhos de Rui Nunes verem um mundo que jaacute eacute o
de um poacutes-apocalipse qualquer Natildeo o anuacutencio de um fim de mundo ostensivamente
decorado por uma aparatosa pirotecnia escatoloacutegica (degelos erupccedilotildees asteroacuteides pandemias) mas a consumaccedilatildeo desse epiacutelogo num instante que se arrasta infinita e
indefinidamente um presente eternizado um tempo que nunca mais acaba a sua
sucessiva desagregaccedilatildeo ateacute ao desgaste de todas as palavras que o descrevam e de todas
as imagens que o ilustrem Um apocalipse cujo dia seguinte manteacutem os cafeacutes abertos a
mesma moeda a consciecircncia da morte entranhada ateacute aos ossos O mesmo silecircncio cavado no interior das palavras das conversas esvaziando-as de qualquer
encadeamento de sentido fala-se mas natildeo se sabe a quem nem porquecirc nem com que
palavras Fala-se ndash e falta-se falha-se Os dias que se sucedem ao fim do mundo
glosam na escrita de Rui Nunes este empobrecimento da palavra ldquoQuanto mais se
escreve mais faltardquo (Nunes 2018 55) Descer aos infernos eacute habitar essa falta eacute escrever a partir ldquodos escombros com os escombros de uma liacutenguardquo (idem 2012 52)
Como quem assiste agrave ldquopequena histoacuteria dos gestosrdquo no corpo de um rapaz agrave mesa do
cafeacute no dia a seguir ao fim do mundo
A prioridade eacutetica de Rui Nunes ilumina personagens sobrecodificadas pelo seu
estigma Figuras que estatildeo refeacutens da inescapaacutevel ostensividade do seu corpo que satildeo
apenas ou sobretudo o seu exterior a evidecircncia ameaccedilante do cheiro que exalam da sujidade na roupa da homossexualidade como afronta puacuteblica os demais signos da
exclusatildeo Porque ldquoqualquer pobreza segrega o mesmo Tudo eacute igual rente ao chatildeordquo
(idem 2016 31) A consistecircncia dessa segregaccedilatildeo de texto para texto de livro para
livro reitera a presenccedila de figuras como o homossexual (em Sauromaquia) o
toxicodependente (em Que sinos dobramhellip) ou a mulher romena sentada no chatildeo com
um copo de plaacutestico para as esmolas (em A Crisaacutelida)
Mais do que agentes a matildeos com as peripeacutecias de foro aristoteacutelico (e daiacute o termo
personagens ser problemaacutetico porque carrega toda uma tradiccedilatildeo do romance que Rui
Nunes desconstroacutei) tais figuras constituem ldquoesboccedilosrdquo sucessivos que condensam a
rejeiccedilatildeo de quaisquer princiacutepios humaniacutesticos (porquanto incarnam a decadecircncia da
humanidade a sua parte maldita) e como tal satildeo seres de suspensatildeo sem uma meta a percorrer rumo a um determinado fim (cf Ranciegravere op cit) Muito aqueacutem do papel de
viacutetimas de uma sociedade que os marginaliza viacutetimas agrave mercecirc da caridade alheia e da
reactivaccedilatildeo de discursos morais (o que as tornaria estereoacutetipos lassos) satildeo sobretudo
hiatos vivos a ordem dos encadeamentos sucessivos esboroa-se neles destruindo
quaisquer ligaccedilotildees de sentido Satildeo o improdutivo por excelecircncia o tempo estaciona nestas figuras de tal maneira que se torna uma experiecircncia de vida natildeo-viviacutevel
intoleraacutevel para quem os olha e prontamente os expele com esse olhar reduzindo-os a
um insulto
sem importacircncia suficiente somos os esconjurados [hellip] Fodamos mas calados discretos
Natildeo nos beijemos em nenhuma rua o mundo que havemos de salvar natildeo nos pertence
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
39 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Viver ningueacutem nos proiacutebe se o fizermos no interior das casas respeitando os vizinhos do
lugar Assento temos em qualquer revoluccedilatildeo se obliterarmos uma parte de noacutes Seres
truncados Ou tolerados apenas Seres proibidos de dizer Esquizofrenizados Seres que se
tornaratildeo uma ameaccedila puacuteblica Seres que desejam os nossos filhos que os conspurcam
capazes de todos os crimes Seres coitados nos momentos mais benignos Seres de antes
ladratildeo que maricas (Nunes 1983 105)
Nesta passagem de Sauromaquia os homossexuais satildeo o alvo predilecto de uma
natildeo-inscriccedilatildeo no real para que sem eles sob a perspectiva do opressor (a
heteronormatividade neste caso) a vida se assemelhe a uma continuidade fluida num
tempo sem memoacuteria sem negatividade (que eacute a marca da diferenccedila do que potencia o
encontro com o novo e o diferente o atrito mobilizador ou heuriacutestico sem o qual o humano se dissolve numa mesmidade opressiva) Mas eacute ao afundar-se no inominaacutevel da
dor que Rui Nunes procura de certa forma ldquosobreviver agrave dor no interior da proacutepria
dorrdquo segundo Eduardo Prado Coelho (1997 208) Pois
[hellip] na dor mais extrema aquilo que resta se alguma coisa resta eacute o corpo refuacutegio dos
sem-ningueacutem abrigados nele enrolados nele mesmo velho mesmo feio natildeo sempre soacute
agraves vezes mas a vida eacute soacute agraves vezes (Nunes 2018 53)
Rui Nunes natildeo torna o homossexual ou a mulher romena como figuras de
autoridade narrativa agrave volta das quais a acccedilatildeo se vai desnovelando numa seacuterie de
episoacutedios ou acidentes com ou sem catarse agrave vista Natildeo eacute a sua densidade psicoloacutegica
que eacute posta agrave prova nos enredamentos da intriga ou no virtuosismo retoacuterico do autor As personagens natildeo satildeo retratos ou metaacuteforas do que quer que seja mas incarnam o
expoente maacuteximo de uma dor inconvertiacutevel em palavras Uma dor uma solidatildeo um
terror atroz ndash modos de existecircncia que se manifestam num grito num choro desalmado
num bloqueio do corpo que emudecem a vocaccedilatildeo dialogante das palavras E eacute por isso
que a devastaccedilatildeo emocional de um drogado ou a anguacutestia de um narrador que engata um estranho na rua e depois o leva para casa ou que teme pela vida num WC puacuteblico
nunca satildeo o tema deste ou daquele livro nem procuram descrever experiecircncias de vida
que nos embaciem os olhos pela descompaixatildeo geral O excesso de uma dor natildeo se
compraz com descriccedilotildees ndash faacute-las explodir E a escrita comeccedila quando torna essa
explosatildeo na sua uacutenica modalidade de existecircncia eacute quando a dor natildeo conhece palavras que a digam servindo-se delas como um espelho diaacutefano que a literatura tem lugar
Surgem entatildeo os nomes proacuteprios os objectos dispostos numa sala as figuras
interpelaacuteveis que perguntam e respondem que se movem de um lugar para outro neste
ou naquele tempo Funcionam como efeitos de uma intimidade inacessiacutevel mas que
deixam lastro em forma de escrita A esse lastro agrave falta de melhor termo damos o nome
de literatura
cumpres a funccedilatildeo de ser personagem por isso te concedo a escassez de algumas linhas
natildeo te deixo desenvolver plenamente para que natildeo me esqueccedila de que eacutes fictiacutecia de que
sou capaz de interromper a tua maturaccedilatildeo adiar-te odiar-te espacejar mais o teu rosto
instalar-me na pupila tornada o sossego letal acompanhar a laacutegrima pensar-te o
sofrimento (Nunes 1986 49)
Hoje natildeo consigo recompor o teu rosto e se nitidamente te imagino natildeo eacutes bem tu mas
uma qualquer fotografia tua Hoje a tua fotografia apropriou-se de ti deve ser assim
que se comeccedila a morrer Quando agrave nossa volta um corpo desaparece nos sinais da sua
passagem (idem 2013 25)
7 Um corpo que desaparece nos sinais da sua passagem Poderaacute esta imagem ser
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
40 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
contiacutegua agrave daquele torso arcaico de Apolo (c 480-470 aC) que no princiacutepio do seacuteculo
numa ida ao Louvre despertara em Rilke uma visatildeo profusamente enigmaacutetica num desvio pela eacutecfrase Sem cabeccedila perdidos os braccedilos e as pernas o resto mutilado de
uma unidade perdida comunica ao poeta um dos mais conhecidos e insoacutelitos remates da
poesia moderna do Ocidente ldquoTens de mudar de vidardquo (Du muszligt dein Leben aumlndern)
Natildeo conhecemos a sua cabeccedila inusitada
onde luziam maduras as pupilas Mas inteiro
o seu torso ainda arde como o candeeiro
que daacute ao seu olhar a luz apenas degradada
persistecircncia e brilho Pois natildeo sendo assim natildeo
poderia a onda do peito cegar-te nem no leve
torcer das ancas haver o sorriso que corre
para aquele centro da procriaccedilatildeo
Assim natildeo sendo seria disforme e curta a pedra
caiacuteda da transparente travessa dos ombros
e natildeo cintilaria como pele de fera
e natildeo explodiria por todos os lados e pontos
como uma estrela pois natildeo haacute ali lugar
donde ele te natildeo veja Tens de mudar a tua vida
(Rilke apud Sloterdijk 2018 35)
Como assim mudar de vida De onde vem este apelo tatildeo suacutebito no imperativo
quando nada nos treze versos anteriores fazia prever este inesperado alccedilapatildeo no fim do
soneto Quem nos fala do sem-fundo numinoso de uma pedra esculpida Que nos
revela a sensibilidade de Rilke ao pocircr no artefacto na coisa inerte esse mutismo eloquente ndash e sobretudo exortativo pois nos obriga a repensar a nossa vida a duvidar
de que estamos no caminho certo
Segundo a leitura que Peter Sloterdijk fez do poema jaacute natildeo eacute o corpo total que
necessariamente inspira uma essecircncia de verdade uma autoridade excepcional
impondo-se aos olhos alheios como um modelo de beleza fiacutesica ndash tal como os corpos
musculados da Antiguidade esses arqueacutetipos da perfeiccedilatildeo que serviriam de incentivo a que os sujeitos rivalizassem com os deuses pelo poacutedio da gloacuteria eterna No lugar dessa
coesatildeo orgacircnica e triunfante caberia agora a um torso mostrar-se como a ruiacutena da
eternidade a eternidade desfeita nos sinais da sua passagem ldquoA intensidade [do
fragmento] bate a perfeiccedilatildeo normalizada [do corpo inteiramente visiacutevel]rdquo (idem 36)
Qual peccedila votada ao abandono pelo desbaste do tempo as suas partes ausentes jamais restituiacuteveis provocam a consciecircncia adensam-lhe a inquietude existencial somos o que
somos sobretudo porque somos o que nos falta Eacute essa falta que desperta a sensaccedilatildeo de
nos sentirmos acossados pela presenccedila rumorejante dos objectos que transmitem uma
ldquoenergia-mensagemrdquo (idem 34) As coisas olham-nos intui Rilke Haacute uma cabeccedila
ausente naquele torso que emite um olhar que vem do fundo do tempo E eacute mais veemente esse olhar que nos lanccedila do que a exiacutegua soberania vigilante que lhe
conseguimos devolver
Cem anos apoacutes o sinal que Rilke nos fez compreendemos sem duacutevida esta indicaccedilatildeo
melhor ainda do que os seus contemporacircneos pois a nossa capacidade de perceccedilatildeo mais
do que a de nenhuma outra geraccedilatildeo anterior agrave nossa estaacute anestesiada e foi saqueada pela
conversa fiada dos corpos sem maacutecula (idem 36)
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
41 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Tal vez nos possamos apropriar desta qualidade da coisa ainda para mais
desconjuntada para reler a escrita de Rui Nunes agrave luz dessa enigmaticidade do fragmento nos antiacutepodas dos ldquocorpos sem maacuteculardquo da contemporaneidade Que corpos
satildeo estes Incarnam o triunfo da vida nua satildeo os apoacutelogos da wellness que medem
analisam e quantificam os seus vaacuterios desempenhos sob pressatildeo de terem a sauacutede em
permanente performance Entregam-se sem reserva agrave imensa orgia digital cuja coacccedilatildeo
da transparecircncia ndash a vida exposta nos social media como prova de que aconteceu ndash os esvazia de qualquer risco sombra vacilaccedilatildeo ou atrito para que esplendam enquanto
puras superfiacutecies do consumo na sociedade capitalista e no inferno da felicidade
permanente Corpos de uma sauacutede totalitaacuteria ficam refeacutens de todas as comodidades
materiais e incapazes de imaginar um futuro sem elas estatildeo agrave mercecirc de uma ldquohipocondria digitalrdquo (Han 2020 26) ndash por isso recusam-se a tolerar a dor e o
envelhecimento evitam qualquer experiecircncia que possa ameaccedilar o cerco paliativo com
que se vedam ao inesperado agrave contingecircncia agrave absoluta alteridade do outro (que
constitui sempre uma ameaccedila em potecircncia estrangeiro inimigo terrorista fonte de
contaacutegiohellip) Satildeo corpos com medo de tudo ndash ateacute de si proacuteprios
Se tais corpos fossem plasmaacuteveis num determinado comportamento de escrita numa literatura a condizer esta teria que ser a denegaccedilatildeo manifesta daquele medo
seria entatildeo uma escrita cobarde uma escrita aliteratada que se entreteacutem a ldquocontar
histoacuteriasrdquo e desse modo respeitando sigilosamente a liacutengua ndash ao inveacutes de manter com a
liacutengua uma relaccedilatildeo de profunda desconfianccedila com vista a desarmar e desarticular o seu
poder Por isso
[hellip] o meu corpo sobrevive na desarmonia eacute um corpo contra o olhar de Deus contra
todas as ditaduras sem histoacuteria natildeo sou capaz de histoacuterias de me internar pelas suas ruas
previsiacuteveis e mortas por isso soacute consigo viver o presente e o seu terror cheio de
exaltaccedilatildeo e assim quero continuar [hellip] (Nunes 1999 114)
Com os seus esboccedilos de vidas esta escrita rompe com as sequecircncias
contemporacircneas de corpos lisos e homogeacuteneos ldquosem maacuteculardquo segundo Sloterdijk Mostra-nos a decadecircncia fiacutesica sem qualquer pudor ou preconceito natildeo porque se
queira rebelar contra a vergonha social que coage essa decadecircncia a esconder-se mas
porque eacute na decadecircncia que um corpo vivo se solidariza com a presenccedila da morte a
ruiacutena comum a todas as coisas Eacute por via da dor que eacute restituiacutedo ao corpo a sua
realidade por um efeito de choque E regressamos assim agrave decomposiccedilatildeo de um corpo pelos gestos que faz ao seu apodrecimento insaciaacutevel ateacute ser reduzido a um naco
insensato de carne como se lecirc em O Anjo Camponecircs
Abre a torneira Deixa que o jacto de aacutegua lhe bata nas matildeos se espalhe e lhe salpique o
pijama sente a forccedila da aacutegua a bater-lhe nas matildeos ensaboa-as gesto automaacutetico que o
deixa livre para quecirc o corpo eacute um animal que regressa insidioso este eacute o meu corpo diz
e sorri empobrece e regressa [hellip] as matildeos estremecem semiabertas no rebordo do
lavatoacuterio uma sobre a outra jaacute natildeo duas matildeos mas um bocado de carne um frio
disforme uma humidade disforme natildeo haacute dedos nem palmas nem pele a separar uma
matildeo da outra haacute aquele bocado de carne no rebordo do lavatoacuterio [hellip] (idem 2020 48)
Um pedaccedilo de carne um torso escultoacuterico De novo o bocado o despojo a ruiacutena
Pelos interstiacutecios desta escrita reacende-se o iacutempeto obscuro de uma voz imaterial que
confere agraves coisas residuais aos gestos mais comuns uma intensa carga dramaacutetica Note-
se a encenaccedilatildeo criacutestica do dictum ldquoeste eacute o meu corpordquo na passagem acima transcrita
sem o milagre da transubstanciaccedilatildeo este corpo sabe-se reconduzido tatildeo-soacute ao milagre precaacuterio da imanecircncia O corpo eacute uma vanitas em movimento contiacutenuo ateacute agrave sua
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
42 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
erosatildeo Pelo caminho como fogos-faacutetuos extingue-se a iacutenfima solidez antropoloacutegica
que a identidade o eu ou o self poderiam salvaguardar como derradeira imagem do humano agora que essa imagem se nulifica na ldquoviolecircncia banal de um bocado de carnerdquo
ndash a carne que jaacute em Suiacutete e Fuacuteria livro anterior a O Anjo Camponecircs eacute apresentada
como o elo irredutiacutevel que une qualquer ldquoanoacutenimo do que foi vivordquo (Nunes 2018 57)
Vale a pena a citaccedilatildeo inteira pelo que nela se afirma como uma extraordinaacuteria e natildeo
menos terriacutevel legenda verbal do que satildeo os corpos escorchados dos bois maneiristas [fig 3] ou as variaccedilotildees da pele esfolada e da carne viva de Maacutersias por exemplo na
pintura de Francis Bacon e Egon Schiele (que natildeo por acaso figuram nas capas de Que
sinos dobram por aqueles que morrem como gado e Catildees respectivamente) [fig 1 e
fig 2] ou ainda cumprindo-se o movimento de zoom deste olhar-escrita ateacute ao horror absurdo do pormenor ampliado a brutalidade evidente da carne nos trabalhos de Anish
Kapoor crus manifestos de que o humano uacuteltimo reduto de um limiar metafiacutesico eacute ele
proacuteprio um limiar extinto ou esvaziado de qualquer transcendecircncia [fig 4]
[hellip] um gato um boi um catildeo uma osga um pombo um homem Natildeo haacute dissonacircncias
neste bocado de carne os animais todos rodeiam-no para serem baptizados Ou para se
certificarem do nome que hatildeo-de perder do nome que hatildeo-de ganhar A morte eacute um
crisma Um baptismo eu te dou o nome de carne E dela se faraacute a fome Ou o inequiacutevoco
de uma arma A metaacutefora eacute a grande felicidade dos que tecircm nome proacuteprio Dos que
podem ser chamados Mas carne Estaacute no fim da escala abaixo de rio por exemplo rio
qualquer que seja tem nascente foz margens Mas carne Eacute simplesmente um bocado O
informe Pode dizer-se ensanguentada Poreacutem esse sangue natildeo pertence agrave sua definiccedilatildeo
haacute uma carne sem sangue mas natildeo um rio sem nascente A carne eacute sempre um bocado E
estaacute tudo dito Ningueacutem perguntaraacute a quem a quecirc pertenceu esse bocado Eacute soacute uma coisa
morta Na verdade natildeo haacute carne viva A carne viva eacute sempre em carne-viva uma ferida
uma chaga nas pernas de uma crianccedila no cachaccedilo de um boi nas matildeos de um miseraacutevel
nunca na matildeo do senhor doutor do senhor engenheiro do senhor ministro de vossa
excelecircncia do senhor presidente do meu caro amigo uma ferida em carne-viva eis o
ldquooutrordquo que nojo (ibidem)
Fig 1 Fig 2
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de
abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se
delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali
sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na
pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que
nada tem a exprimir
Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia
de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima
instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como
signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um
diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo
cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto
impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de
criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia
do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber
impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste
como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico
amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete
ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa
carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da
sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne
e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo
Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da
Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de
Rembrandt
Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts
(2013-2015) de Anish Kapoor
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os
louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz
ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida
9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere
define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo
(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em
termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo
estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da
subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo
menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o
ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios
imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam
os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs
Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a
literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de
sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as
hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas
as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que
determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem
descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no
exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o
novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de
acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar
o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes
oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a
racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo
o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e
resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar
incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da
experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos
temposrdquo (idem 111)
Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo
vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim
aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA
pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria
mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta
rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do
pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever
Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Escrever natildeo ilumina escurece
Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute
Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda
(Nunes 2014 90)
Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece
como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua
impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute
um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a
esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-
se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas
palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e
intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim
por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a
potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida
Referecircncias bibliograacuteficas
Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999
Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad
Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001
Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997
Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003
Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda
Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010
ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em
httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)
Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo
Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019
Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui
Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009
Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983
Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986
Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993
Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio
DrsquoAacutegua 1995
Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999
Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005
Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011
Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013
Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014
Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016
Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a
Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b
Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018
Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
34 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
humilhaccedilatildeo das garantias do romance enquanto veiacuteculo de descriccedilatildeo e fluecircncia
narrativa faz sentido destacar Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado (1995) como o livro-charneira dos ulteriores e agudizados desvios que o autor infligiraacute
na composiccedilatildeo dos textos O que A Matildeo do Oleiro (2011) Barro (2012) Armadilha
(2013) ou A margem de um livro (2017a) tecircm em comum eacute o progressivo esboroamento
da condensaccedilatildeo narrativa o texto esfrangalha-se a coesatildeo das manchas graacuteficas tende
para uma dispersatildeo cada vez maior Surgem pequenas ilhas de texto de tamanho desigual com a insistecircncia do autor no uso de marcas tipograacuteficas distintas (itaacutelicos
negritos espaccedilos em branco) as frases surgem abruptamente interrompidas como
gaguejos que natildeo chegam sequer a completar uma unidade miacutenima de sentido capaz de
funcionar como frase
Comeccedila-se partindo (espatifando repetindo ateacute ao riso ateacute perguntarem que merda eacute esta natildeo sabes escrever E eu ainda natildeo) desenhando o labirinto de um espaccedilo vazio
O espaccedilo interminaacutevel de uma parede (Nunes 2017a 27)
Cada acantonamento de ideias eacute travado pela pontuaccedilatildeo marcando natildeo
meramente um ritmo proacuteprio de leitura mas um tipo de leitura radicalmente inaugural
como se de facto ao ser confrontado com esta escrita o leitor reaprendesse a ler ndash e a verndash reencenando-se assim o que o filoacutesofo Pierre Alferi considera o efeito
instaurador e natildeo descritivo das frases da literatura isto eacute como se a literatura
inventasse ldquoo passado das frasesrdquo (Alferi 1999 19-20) O uso de dois pontos figurando
muitas vezes como o uacutenico elemento visiacutevel numa linha marca um intervalo entre
imagens distintas agraves vezes ligadas justamente pela ausecircncia de ligaccedilatildeo sem relaccedilatildeo causa-efeito Ou abusa-se do ponto final para singularizar em sequecircncias tatildeo breves
quanto fulminantes o que cada instacircncia ndash homem som animal bocado ndash possui de
irredutiacutevel violento ou simultacircneo Quanto mais concentradas ficam as palavras maior
a densidade do seu enigma quanto mais se desobedecer agrave ldquotirania das grandes frasesrdquo
mais ldquoa palavra solta liberta a poeacutetica da erracircnciardquo (Nunes 2005 69) Como formulou Eduardo Prado Coelho a respeito do livro Catildees trata-se de ldquouma lsquoarte poverarsquo em
sentido literal e por isso exiacutegua de lances metamorfoses surpresas ou desenlacesrdquo
(Coelho 2003 78)
E eacute por isso tambeacutem que a escrita de Rui Nunes confessada agrave partida a
impossibilidade de a escrita vir a esgotar a realidade ou de dizer em plenitude o mundo
dos seres e das coisas numa utopia de sinoacutenimos perfeitos estaacute votada ao jogo inacabado das coexistecircncias contiacutenuas ldquoum tempo da coexistecircncia da igualdade e da
entre-expressividade dos momentos oposto ao tempo da sucessatildeo e da destruiccedilatildeordquo
segundo Jacques Ranciegravere (2019 108) Em Rui Nunes uma coisa a par de outra coisa
um fenoacutemeno contiacuteguo a outro fenoacutemeno a solidatildeo a escassez e a singularidade de
cada existencial de pensamentos e digressotildees interiores imbricados uns nos outros de falas e vozes misturadas de tempos e lugares heterogeacuteneos justapostos resistindo cada
elemento contra a transcendecircncia da realidade
o que tenho para descrever eacute a prolongada exposiccedilatildeo a uma falta por isso descrevo tudo o
que vejo amontoo nomes eis o caos
os caixotes abarrotam de lixo pela sua boca entreaberta saem sacos de plaacutestico folhas de
jornal gargalos de garrafas a perna de uma cadeira uma fita de gravaccedilatildeo nem os ratos
se aproximam destas montureiras batidas pelo vento destes foacutesseis que jaacute nasceram
foacutesseis eternidade rudimentar soacute as gaivotas debicam por aqui e por ali (Nunes 1999
26-7)
4 O tempo da coexistecircncia eacute o que Jacques Ranciegravere em As Margens da Ficccedilatildeo
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
35 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
(2019) expotildee como a inteligibilidade inaugural que marca escritores tatildeo diferentes
quanto Flaubert Virginia Woolf Rainer Maria Rilke W G Sebald ou Guimaratildees Rosa
A ficccedilatildeo fazia-se ela proacutepria anunciar atraveacutes da especificidade das personagens e das
aventuras que inventava assim como e mais que tudo pela sua estrutura temporal ela
dava resposta ao seu conceito quando a sucessatildeo de acontecimentos obedecia aiacute a um
encadeamento de causas e efeitos dotado de uma necessidade superior agrave do desenrolar dos
acontecimentos da vida comum Eacute esta sobre-racionalidade que se perdeu quando o
romance no seacuteculo XIX mergulhou no universo das coisas comuns e do tempo sem
objectivo O tempo da ficccedilatildeo jaacute natildeo estaacute estruturado pelo encadeamento das causas e dos
efeitos Deve conservar-se num soacute bloco como se fosse percorrido pelo sopro de uma
mesma modalidade de existecircncia (Ranciegravere 2019 96)
O que significa coexistir no realismo romanesco de Madame Bovary ou nrsquoOs
Cadernos de Malte Laurids Brigge Por um lado a coexistecircncia ilumina na trama
narrativa personagens e situaccedilotildees que pela sua condiccedilatildeo social ou anoacutedina indistinccedilatildeo
estariam agrave partida excluiacutedos de qualquer visibilidade daacute-se quando os vaacuterios indiviacuteduos das camadas populares incluindo pobres e marginais satildeo tidos em conta natildeo como um
pretexto moral para apelar agrave caridade e aos bons sentimentos mas antes como figuras
dotadas de complexidade subjectiva de pleno direito que habitam ruas e casas
inscrevendo nelas desejos paixotildees e atitudes consequentes
Constatar as suas existecircncias implica perceber o modo com actua ldquoa virtude do
realrdquo segundo Ranciegravere ndash e essa virtude consiste em aprender a desimaginar ldquoDeixar de imaginar eacute deixar de possuir o esquema que jaacute conhece o que se apresenta aos nossos
olhos o esquema que precede e ordena todo o encontrordquo (idem 45) Desperta naquele
que escreve a humildade de natildeo transformar os outros em objectos despojados da sua
obscuridade quer dizer que os signos desertam dos seus supostos referentes os
referentes desertam dos espartilhos habituais que os oprimem com uma sobrecodificaccedilatildeo Estes suacutebitos protagonistas preservam assim a sua proacutepria
ldquolinguagem secretardquo (idem 46) destituindo os signos de qualquer univocidade
Por outro lado e ainda decorrente dessa inscriccedilatildeo dos excluiacutedos na coexistecircncia
difusa e anoacutenima da vida Ranciegravere cita o uacuteltimo capiacutetulo do estudo seminal Mimesis
(1946) de Erich Auerbach dedicado ao ldquomomento qualquerrdquo na narrativa de Virginia
Woolf partindo do romance To the Lighthouse (1927) O ldquomomentordquo ou ldquoacontecimento qualquerrdquo desestabiliza a organizaccedilatildeo espaacutecio-temporal e a prevalecircncia
de um ponto de vista central seja o de uma personagem seja o do proacuteprio narrador Daacute-
se uma suacutebita irrupccedilatildeo de feixes na intriga ndash um vago olhar pela janela um mergulho
interior um telefonema evocado o relampejar de cores e sons ndash que desarranja quer as
hierarquias temaacuteticas de um texto dissolvendo as fronteiras entre intrigas principais e enredos secundaacuterios quer os posicionamentos ontoloacutegicos dos seres vivos ou inertes
humanos ou natildeo-humanos No fundo eacute arrancado a cada um desses seres e disposto em
luminosa evidecircncia o seu vitalismo intriacutenseco a sua forccedila de acaso o seu tumulto a sua
transpessoalidade numa espeacutecie de fraternidade panteiacutesta
Auerbach entrevia nesses cristais com algum optimismo gnosioloacutegico a
possibilidade de se refundar uma comunidade de homens e mulheres que partilharia uma mesma vocaccedilatildeo para a surpresa do instante ndash e isto sobretudo apoacutes a experiecircncia
das duas guerras travadas e dos infortuacutenios causados (note-se que o ensaiacutesta estava
exilado na Turquia tendo assim escapado agraves atrocidades nazis) pois ldquoquanto mais
diversos e mais simples apareccedilam os seres humanos como objetos de tais instantes
quaisquer tanto mais efetivamente deveraacute transluzir a sua comunidaderdquo (Auerbach
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
36 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
2001 497)
5 Uma drsquoAs peccedilas que faltam no vasto e inconclusivo cataacutelogo do poeta Henri
Lefebvre eacute uma citaccedilatildeo atribuiacuteda a Victor Serge que diz ldquoSomos todos sem-nome Inacabadosrdquo (Lefebvre 2019 81) Este curioso livro elenca uma seacuterie de perdidos-e-
achados da Histoacuteria mais perdidos do que achados na verdade oscilando entre a tiacutemida
comicidade perante um breve e anoacutedino apontamento (por exemplo uma parte de On
the Road de Kerouac que foi comida por um catildeo) e a secura brutal do facto exposto
(como quando enuncia sem mais ldquoAs gravidezes de Frida Khalordquo idem 25) Um livro que nunca chega a comeccedilar e que parece natildeo ter fim mas que atira o leitor para o meio
de uma descontinuidade irreparaacutevel filmes que natildeo se filmaram livros que natildeo se
escreveram bibliotecas reduzidas a cinzas cartas extraviadas fotografias por revelar
especulaccedilotildees vaacuterias Tudo o que natildeo se cumpriu tudo o que natildeo chegou sequer a ser
O ensaiacutesta e escritor de contos dinamarquecircs Villy Soslashrensen termina um primeiro romance
aos dezasseis anos e destroacutei-o aos dezassete William Burroughs natildeo guardava nenhuma
memoacuteria da redacccedilatildeo do Festim Nu No seu filme Scarlet Diva Asia Argento pede aos
seus actores para terem relaccedilotildees sexuais natildeo simuladas depois elimina as cenas na
montagem Rua Beautreillis em Paris a banheira em que morreu Jim Morrison foi
destruiacuteda (idem 34)
Este pequeno livro reverbera a pilha de destroccedilos com que o ldquoanjo da histoacuteriardquo
benjaminiano contempla o progresso ou a nua verdade das suas sobras e ruiacutenas o ldquolixo-
limpordquo da cataacutestrofe (Nunes 2020 82) E o que eacute o progresso afinal Aiacute estaacute ele
segundo Lefebvre numa fila indiana de disparates separados por pontos o progresso como a consequecircncia destrutiva da acccedilatildeo humana a destruiccedilatildeo como acto de
esquecimento que propicia o trabalho da memoacuteria (e o trabalho de luto pelo que se
perdeu) Um monte de pedras um lastro de perdas
Se a lista de Lefebvre eacute inacabaacutevel se o que a anima eacute a vontade intriacutenseca de natildeo
deixar que nada da Histoacuteria caia no esquecimento (como acontecia a Walter Benjamin
com o seu furor de coleccionista e o seu materialismo histoacuterico agrave la trapeiro) podemos aqui intercalar quase como um acidente de percurso ndash como se dispuseacutessemos todos os
livros de Rui Nunes sobre a mesa e abriacutessemos um numa paacutegina agrave sorte ndash esta
passagem de Baixo Contiacutenuo com a memoacuteria desavinda em instantacircneos avulsos
ldquocomo peccedilas desirmanadas de um mosaico romanordquo
O grande plano da cara de Monica Vitti nrsquoO Deserto Vermelho de Antonioni Dirk
Bogarde agrave volta de um James Fox adormecido em O Criado de Losey Hinauf Hinauf
do poema Ganimedes de Goethe o morcego a bater-me na cara nas ruiacutenas do Castelo de
Satildeo Filipe eu e meu avocirc sentados na praia vazia de Albarquel frente ao mar a aacutegua a
escorrer por uma talha de barro o velho na varanda a olhar o pessegueiro em flor e a
dizer lindo como um esposado a manhatilde do dia em que meu pai morreu a matildeo de minha
matildee a segurar a minha as lentes redondas dos oacuteculos do meacutedico sobras de tudo o que
sobra natildeo haacute histoacuterias mas traccedilos imagens relacircmpagos natildeo somos mais do que isso soacute
isso com o nosso corpo a ligar tudo isso cada bocado vai perdendo ateacute ter nascido um
bocado (Nunes 2017b 13-4)
Na mesma cadeia de acidentes irrompem as personagens de Rui Nunes ou as
visotildees imprecisas que as esquissam tornando impossiacutevel (e ateacute indesejaacutevel) a sua
unidade e representaccedilatildeo O ldquofasciacuteniordquo do olhar em Rui Nunes pela singularidade das
coisas contamina o seu fasciacutenio pelos humanos pela sua dissemelhanccedila irredutiacutevel pelo
potencial assombro que cada um desperta O ofiacutecio implacaacutevel de decompor a paisagem ndash por exemplo uma ida ao cafeacute e o empregado que o serve ndash desagua num monstruoso
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
37 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
caos de ldquoobjectos desgarradosrdquo
que estou aqui a fazer entre objectos desgarrados
os meus olhos soacute vecircem uma coisa apoacutes outra incapazes de abarcar toda a sala
assemelham-se a ocelos de uma simplicidade furiosa perseguem os objectos e quando
os apanham nunca mais os largam o rapaz por exemplo que anda por entre as mesas
uma rodilha na matildeo direita a limpar os tampos enquanto a esquerda flutua indecisa ora
coccedila a orelha ora pousa nas calccedilas ora esfrega uma borbulha no nariz matildeo pobre quase
se diria inuacutetil que atrapalha a outra matildeo que o rapaz conhece tatildeo mal com uma vida
autoacutenoma que ele natildeo controla eacute o meu fasciacutenio este ver a pequena histoacuteria dos gestos
princiacutepio e fim tatildeo proacuteximos
ndash o seu cafeacute
a matildeo surgiu e desapareceu
A chaacutevena
Levo-a agrave boca
Os laacutebios tocam-lhe
Afasto-a
Volto a aproximaacute-la
Afasto-a de novo
Ateacute natildeo ter medo
Ateacute
(idem 2011 46)
Este excerto assemelha-se a um movimento de zoom operado pelo olhar da nuvem de gestos do funcionaacuterio ateacute agrave chaacutevena sobre a mesa a circunstacircncia especiacutefica
que aqui nos eacute apresentada afunila vertiginosamente num devir-molecular O que resta
Para que ponto culmina ldquoAteacute natildeo ter medordquo lecirc-se Mas medo de quecirc Talvez medo da
imprevisibilidade iacutensita de todos os gestos esfumados medo da ameaccedila obscura que se
aninha em cada objecto levando o observador a afastar toda a ganga circundante a depurar a realidade objectiva ateacute chegar a esse resiacuteduo precaacuterio cuja nitidez de tatildeo
desprotegida que fica natildeo oferece qualquer margem para elucubraccedilotildees e equiacutevocos
ldquoAteacuterdquo termina ndash mas termina apenas o que eacute verbalmente alcanccedilaacutevel Aquele uacuteltimo
ponto final natildeo finaliza coisa alguma eacute o foco possiacutevel o zoom que deforma a
magnitude do pormenor a expansatildeo sem fim do que permaneceraacute inacabado Abre-se um silecircncio no coraccedilatildeo do texto Ao natildeo se fechar natildeo haacute um sentido inequiacutevoco uma
legenda que seja que se possa consagrar como verdade ou certeza ndash essa face totalitaacuteria
do poder
as pessoas satildeo pormenores o brilho de um liacutequido que se evapora o gosto salobro do
sangue na boca a mancha de um eczema no braccedilo Nunca vi uma pessoa na sua
integridade frente a mim Soacute paacutelpebras laacutebios crostas pecirclos mapas irregulares Vejo tatildeo
pouco que preciso de aproximar os olhos do que quero ver E nessa aproximaccedilatildeo tudo se
torna monstruoso e doente
(ou natildeo vejo ou vejo a morte)
natildeo te vejo E aproximo de ti os olhos Quando te comeccedilo a ver natildeo eacute a ti que vejo mas a
uma paisagem cancerosa que me dizes ser tua uma madeixa de cabelo um azul circular
uma ferida Muacuteltiplos fragmentos com uma voz pelos seus meandros (Nunes 1995 30)
Por isso nesta escrita tudo o que existe denuncia uma irremediaacutevel incompletude
ontoloacutegica
Satildeo esboccedilos as pessoas que encontramos Esboccedilos com a persistecircncia do que nasceu
incompleto Caminhamos rodeados de esboccedilos As palavras satildeo esboccedilos ateacute as mais
iacutentimas a que nunca chegaste (idem 2016 30)
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
38 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
6 Para Manuel Frias Martins
[a] prioridade eacutetica da escrita de Rui Nunes construiacuteda predominantemente em torno de
uma esteacutetica de imagens manchadas de sangue menstrual urina fezes viacutesceras
grosserias insultos e violecircncias diversas faz do abjecto o lugar mais adequado de
comunicaccedilatildeo natildeo soacute com o mundo mas tambeacutem com Deus Eacute como se fosse necessaacuterio
descer aos infernos para encontrar o bem supremo a paz eterna o prazer infinito a
inteligecircncia sem rosto da iluminaccedilatildeo interior (Martins 2009 49)
A cataacutebase eacute um passeio normal pela cidade o horror eacute a experiecircncia democraacutetica
das nossas derivas fascizantes Daiacute os olhos de Rui Nunes verem um mundo que jaacute eacute o
de um poacutes-apocalipse qualquer Natildeo o anuacutencio de um fim de mundo ostensivamente
decorado por uma aparatosa pirotecnia escatoloacutegica (degelos erupccedilotildees asteroacuteides pandemias) mas a consumaccedilatildeo desse epiacutelogo num instante que se arrasta infinita e
indefinidamente um presente eternizado um tempo que nunca mais acaba a sua
sucessiva desagregaccedilatildeo ateacute ao desgaste de todas as palavras que o descrevam e de todas
as imagens que o ilustrem Um apocalipse cujo dia seguinte manteacutem os cafeacutes abertos a
mesma moeda a consciecircncia da morte entranhada ateacute aos ossos O mesmo silecircncio cavado no interior das palavras das conversas esvaziando-as de qualquer
encadeamento de sentido fala-se mas natildeo se sabe a quem nem porquecirc nem com que
palavras Fala-se ndash e falta-se falha-se Os dias que se sucedem ao fim do mundo
glosam na escrita de Rui Nunes este empobrecimento da palavra ldquoQuanto mais se
escreve mais faltardquo (Nunes 2018 55) Descer aos infernos eacute habitar essa falta eacute escrever a partir ldquodos escombros com os escombros de uma liacutenguardquo (idem 2012 52)
Como quem assiste agrave ldquopequena histoacuteria dos gestosrdquo no corpo de um rapaz agrave mesa do
cafeacute no dia a seguir ao fim do mundo
A prioridade eacutetica de Rui Nunes ilumina personagens sobrecodificadas pelo seu
estigma Figuras que estatildeo refeacutens da inescapaacutevel ostensividade do seu corpo que satildeo
apenas ou sobretudo o seu exterior a evidecircncia ameaccedilante do cheiro que exalam da sujidade na roupa da homossexualidade como afronta puacuteblica os demais signos da
exclusatildeo Porque ldquoqualquer pobreza segrega o mesmo Tudo eacute igual rente ao chatildeordquo
(idem 2016 31) A consistecircncia dessa segregaccedilatildeo de texto para texto de livro para
livro reitera a presenccedila de figuras como o homossexual (em Sauromaquia) o
toxicodependente (em Que sinos dobramhellip) ou a mulher romena sentada no chatildeo com
um copo de plaacutestico para as esmolas (em A Crisaacutelida)
Mais do que agentes a matildeos com as peripeacutecias de foro aristoteacutelico (e daiacute o termo
personagens ser problemaacutetico porque carrega toda uma tradiccedilatildeo do romance que Rui
Nunes desconstroacutei) tais figuras constituem ldquoesboccedilosrdquo sucessivos que condensam a
rejeiccedilatildeo de quaisquer princiacutepios humaniacutesticos (porquanto incarnam a decadecircncia da
humanidade a sua parte maldita) e como tal satildeo seres de suspensatildeo sem uma meta a percorrer rumo a um determinado fim (cf Ranciegravere op cit) Muito aqueacutem do papel de
viacutetimas de uma sociedade que os marginaliza viacutetimas agrave mercecirc da caridade alheia e da
reactivaccedilatildeo de discursos morais (o que as tornaria estereoacutetipos lassos) satildeo sobretudo
hiatos vivos a ordem dos encadeamentos sucessivos esboroa-se neles destruindo
quaisquer ligaccedilotildees de sentido Satildeo o improdutivo por excelecircncia o tempo estaciona nestas figuras de tal maneira que se torna uma experiecircncia de vida natildeo-viviacutevel
intoleraacutevel para quem os olha e prontamente os expele com esse olhar reduzindo-os a
um insulto
sem importacircncia suficiente somos os esconjurados [hellip] Fodamos mas calados discretos
Natildeo nos beijemos em nenhuma rua o mundo que havemos de salvar natildeo nos pertence
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
39 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Viver ningueacutem nos proiacutebe se o fizermos no interior das casas respeitando os vizinhos do
lugar Assento temos em qualquer revoluccedilatildeo se obliterarmos uma parte de noacutes Seres
truncados Ou tolerados apenas Seres proibidos de dizer Esquizofrenizados Seres que se
tornaratildeo uma ameaccedila puacuteblica Seres que desejam os nossos filhos que os conspurcam
capazes de todos os crimes Seres coitados nos momentos mais benignos Seres de antes
ladratildeo que maricas (Nunes 1983 105)
Nesta passagem de Sauromaquia os homossexuais satildeo o alvo predilecto de uma
natildeo-inscriccedilatildeo no real para que sem eles sob a perspectiva do opressor (a
heteronormatividade neste caso) a vida se assemelhe a uma continuidade fluida num
tempo sem memoacuteria sem negatividade (que eacute a marca da diferenccedila do que potencia o
encontro com o novo e o diferente o atrito mobilizador ou heuriacutestico sem o qual o humano se dissolve numa mesmidade opressiva) Mas eacute ao afundar-se no inominaacutevel da
dor que Rui Nunes procura de certa forma ldquosobreviver agrave dor no interior da proacutepria
dorrdquo segundo Eduardo Prado Coelho (1997 208) Pois
[hellip] na dor mais extrema aquilo que resta se alguma coisa resta eacute o corpo refuacutegio dos
sem-ningueacutem abrigados nele enrolados nele mesmo velho mesmo feio natildeo sempre soacute
agraves vezes mas a vida eacute soacute agraves vezes (Nunes 2018 53)
Rui Nunes natildeo torna o homossexual ou a mulher romena como figuras de
autoridade narrativa agrave volta das quais a acccedilatildeo se vai desnovelando numa seacuterie de
episoacutedios ou acidentes com ou sem catarse agrave vista Natildeo eacute a sua densidade psicoloacutegica
que eacute posta agrave prova nos enredamentos da intriga ou no virtuosismo retoacuterico do autor As personagens natildeo satildeo retratos ou metaacuteforas do que quer que seja mas incarnam o
expoente maacuteximo de uma dor inconvertiacutevel em palavras Uma dor uma solidatildeo um
terror atroz ndash modos de existecircncia que se manifestam num grito num choro desalmado
num bloqueio do corpo que emudecem a vocaccedilatildeo dialogante das palavras E eacute por isso
que a devastaccedilatildeo emocional de um drogado ou a anguacutestia de um narrador que engata um estranho na rua e depois o leva para casa ou que teme pela vida num WC puacuteblico
nunca satildeo o tema deste ou daquele livro nem procuram descrever experiecircncias de vida
que nos embaciem os olhos pela descompaixatildeo geral O excesso de uma dor natildeo se
compraz com descriccedilotildees ndash faacute-las explodir E a escrita comeccedila quando torna essa
explosatildeo na sua uacutenica modalidade de existecircncia eacute quando a dor natildeo conhece palavras que a digam servindo-se delas como um espelho diaacutefano que a literatura tem lugar
Surgem entatildeo os nomes proacuteprios os objectos dispostos numa sala as figuras
interpelaacuteveis que perguntam e respondem que se movem de um lugar para outro neste
ou naquele tempo Funcionam como efeitos de uma intimidade inacessiacutevel mas que
deixam lastro em forma de escrita A esse lastro agrave falta de melhor termo damos o nome
de literatura
cumpres a funccedilatildeo de ser personagem por isso te concedo a escassez de algumas linhas
natildeo te deixo desenvolver plenamente para que natildeo me esqueccedila de que eacutes fictiacutecia de que
sou capaz de interromper a tua maturaccedilatildeo adiar-te odiar-te espacejar mais o teu rosto
instalar-me na pupila tornada o sossego letal acompanhar a laacutegrima pensar-te o
sofrimento (Nunes 1986 49)
Hoje natildeo consigo recompor o teu rosto e se nitidamente te imagino natildeo eacutes bem tu mas
uma qualquer fotografia tua Hoje a tua fotografia apropriou-se de ti deve ser assim
que se comeccedila a morrer Quando agrave nossa volta um corpo desaparece nos sinais da sua
passagem (idem 2013 25)
7 Um corpo que desaparece nos sinais da sua passagem Poderaacute esta imagem ser
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
40 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
contiacutegua agrave daquele torso arcaico de Apolo (c 480-470 aC) que no princiacutepio do seacuteculo
numa ida ao Louvre despertara em Rilke uma visatildeo profusamente enigmaacutetica num desvio pela eacutecfrase Sem cabeccedila perdidos os braccedilos e as pernas o resto mutilado de
uma unidade perdida comunica ao poeta um dos mais conhecidos e insoacutelitos remates da
poesia moderna do Ocidente ldquoTens de mudar de vidardquo (Du muszligt dein Leben aumlndern)
Natildeo conhecemos a sua cabeccedila inusitada
onde luziam maduras as pupilas Mas inteiro
o seu torso ainda arde como o candeeiro
que daacute ao seu olhar a luz apenas degradada
persistecircncia e brilho Pois natildeo sendo assim natildeo
poderia a onda do peito cegar-te nem no leve
torcer das ancas haver o sorriso que corre
para aquele centro da procriaccedilatildeo
Assim natildeo sendo seria disforme e curta a pedra
caiacuteda da transparente travessa dos ombros
e natildeo cintilaria como pele de fera
e natildeo explodiria por todos os lados e pontos
como uma estrela pois natildeo haacute ali lugar
donde ele te natildeo veja Tens de mudar a tua vida
(Rilke apud Sloterdijk 2018 35)
Como assim mudar de vida De onde vem este apelo tatildeo suacutebito no imperativo
quando nada nos treze versos anteriores fazia prever este inesperado alccedilapatildeo no fim do
soneto Quem nos fala do sem-fundo numinoso de uma pedra esculpida Que nos
revela a sensibilidade de Rilke ao pocircr no artefacto na coisa inerte esse mutismo eloquente ndash e sobretudo exortativo pois nos obriga a repensar a nossa vida a duvidar
de que estamos no caminho certo
Segundo a leitura que Peter Sloterdijk fez do poema jaacute natildeo eacute o corpo total que
necessariamente inspira uma essecircncia de verdade uma autoridade excepcional
impondo-se aos olhos alheios como um modelo de beleza fiacutesica ndash tal como os corpos
musculados da Antiguidade esses arqueacutetipos da perfeiccedilatildeo que serviriam de incentivo a que os sujeitos rivalizassem com os deuses pelo poacutedio da gloacuteria eterna No lugar dessa
coesatildeo orgacircnica e triunfante caberia agora a um torso mostrar-se como a ruiacutena da
eternidade a eternidade desfeita nos sinais da sua passagem ldquoA intensidade [do
fragmento] bate a perfeiccedilatildeo normalizada [do corpo inteiramente visiacutevel]rdquo (idem 36)
Qual peccedila votada ao abandono pelo desbaste do tempo as suas partes ausentes jamais restituiacuteveis provocam a consciecircncia adensam-lhe a inquietude existencial somos o que
somos sobretudo porque somos o que nos falta Eacute essa falta que desperta a sensaccedilatildeo de
nos sentirmos acossados pela presenccedila rumorejante dos objectos que transmitem uma
ldquoenergia-mensagemrdquo (idem 34) As coisas olham-nos intui Rilke Haacute uma cabeccedila
ausente naquele torso que emite um olhar que vem do fundo do tempo E eacute mais veemente esse olhar que nos lanccedila do que a exiacutegua soberania vigilante que lhe
conseguimos devolver
Cem anos apoacutes o sinal que Rilke nos fez compreendemos sem duacutevida esta indicaccedilatildeo
melhor ainda do que os seus contemporacircneos pois a nossa capacidade de perceccedilatildeo mais
do que a de nenhuma outra geraccedilatildeo anterior agrave nossa estaacute anestesiada e foi saqueada pela
conversa fiada dos corpos sem maacutecula (idem 36)
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
41 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Tal vez nos possamos apropriar desta qualidade da coisa ainda para mais
desconjuntada para reler a escrita de Rui Nunes agrave luz dessa enigmaticidade do fragmento nos antiacutepodas dos ldquocorpos sem maacuteculardquo da contemporaneidade Que corpos
satildeo estes Incarnam o triunfo da vida nua satildeo os apoacutelogos da wellness que medem
analisam e quantificam os seus vaacuterios desempenhos sob pressatildeo de terem a sauacutede em
permanente performance Entregam-se sem reserva agrave imensa orgia digital cuja coacccedilatildeo
da transparecircncia ndash a vida exposta nos social media como prova de que aconteceu ndash os esvazia de qualquer risco sombra vacilaccedilatildeo ou atrito para que esplendam enquanto
puras superfiacutecies do consumo na sociedade capitalista e no inferno da felicidade
permanente Corpos de uma sauacutede totalitaacuteria ficam refeacutens de todas as comodidades
materiais e incapazes de imaginar um futuro sem elas estatildeo agrave mercecirc de uma ldquohipocondria digitalrdquo (Han 2020 26) ndash por isso recusam-se a tolerar a dor e o
envelhecimento evitam qualquer experiecircncia que possa ameaccedilar o cerco paliativo com
que se vedam ao inesperado agrave contingecircncia agrave absoluta alteridade do outro (que
constitui sempre uma ameaccedila em potecircncia estrangeiro inimigo terrorista fonte de
contaacutegiohellip) Satildeo corpos com medo de tudo ndash ateacute de si proacuteprios
Se tais corpos fossem plasmaacuteveis num determinado comportamento de escrita numa literatura a condizer esta teria que ser a denegaccedilatildeo manifesta daquele medo
seria entatildeo uma escrita cobarde uma escrita aliteratada que se entreteacutem a ldquocontar
histoacuteriasrdquo e desse modo respeitando sigilosamente a liacutengua ndash ao inveacutes de manter com a
liacutengua uma relaccedilatildeo de profunda desconfianccedila com vista a desarmar e desarticular o seu
poder Por isso
[hellip] o meu corpo sobrevive na desarmonia eacute um corpo contra o olhar de Deus contra
todas as ditaduras sem histoacuteria natildeo sou capaz de histoacuterias de me internar pelas suas ruas
previsiacuteveis e mortas por isso soacute consigo viver o presente e o seu terror cheio de
exaltaccedilatildeo e assim quero continuar [hellip] (Nunes 1999 114)
Com os seus esboccedilos de vidas esta escrita rompe com as sequecircncias
contemporacircneas de corpos lisos e homogeacuteneos ldquosem maacuteculardquo segundo Sloterdijk Mostra-nos a decadecircncia fiacutesica sem qualquer pudor ou preconceito natildeo porque se
queira rebelar contra a vergonha social que coage essa decadecircncia a esconder-se mas
porque eacute na decadecircncia que um corpo vivo se solidariza com a presenccedila da morte a
ruiacutena comum a todas as coisas Eacute por via da dor que eacute restituiacutedo ao corpo a sua
realidade por um efeito de choque E regressamos assim agrave decomposiccedilatildeo de um corpo pelos gestos que faz ao seu apodrecimento insaciaacutevel ateacute ser reduzido a um naco
insensato de carne como se lecirc em O Anjo Camponecircs
Abre a torneira Deixa que o jacto de aacutegua lhe bata nas matildeos se espalhe e lhe salpique o
pijama sente a forccedila da aacutegua a bater-lhe nas matildeos ensaboa-as gesto automaacutetico que o
deixa livre para quecirc o corpo eacute um animal que regressa insidioso este eacute o meu corpo diz
e sorri empobrece e regressa [hellip] as matildeos estremecem semiabertas no rebordo do
lavatoacuterio uma sobre a outra jaacute natildeo duas matildeos mas um bocado de carne um frio
disforme uma humidade disforme natildeo haacute dedos nem palmas nem pele a separar uma
matildeo da outra haacute aquele bocado de carne no rebordo do lavatoacuterio [hellip] (idem 2020 48)
Um pedaccedilo de carne um torso escultoacuterico De novo o bocado o despojo a ruiacutena
Pelos interstiacutecios desta escrita reacende-se o iacutempeto obscuro de uma voz imaterial que
confere agraves coisas residuais aos gestos mais comuns uma intensa carga dramaacutetica Note-
se a encenaccedilatildeo criacutestica do dictum ldquoeste eacute o meu corpordquo na passagem acima transcrita
sem o milagre da transubstanciaccedilatildeo este corpo sabe-se reconduzido tatildeo-soacute ao milagre precaacuterio da imanecircncia O corpo eacute uma vanitas em movimento contiacutenuo ateacute agrave sua
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
42 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
erosatildeo Pelo caminho como fogos-faacutetuos extingue-se a iacutenfima solidez antropoloacutegica
que a identidade o eu ou o self poderiam salvaguardar como derradeira imagem do humano agora que essa imagem se nulifica na ldquoviolecircncia banal de um bocado de carnerdquo
ndash a carne que jaacute em Suiacutete e Fuacuteria livro anterior a O Anjo Camponecircs eacute apresentada
como o elo irredutiacutevel que une qualquer ldquoanoacutenimo do que foi vivordquo (Nunes 2018 57)
Vale a pena a citaccedilatildeo inteira pelo que nela se afirma como uma extraordinaacuteria e natildeo
menos terriacutevel legenda verbal do que satildeo os corpos escorchados dos bois maneiristas [fig 3] ou as variaccedilotildees da pele esfolada e da carne viva de Maacutersias por exemplo na
pintura de Francis Bacon e Egon Schiele (que natildeo por acaso figuram nas capas de Que
sinos dobram por aqueles que morrem como gado e Catildees respectivamente) [fig 1 e
fig 2] ou ainda cumprindo-se o movimento de zoom deste olhar-escrita ateacute ao horror absurdo do pormenor ampliado a brutalidade evidente da carne nos trabalhos de Anish
Kapoor crus manifestos de que o humano uacuteltimo reduto de um limiar metafiacutesico eacute ele
proacuteprio um limiar extinto ou esvaziado de qualquer transcendecircncia [fig 4]
[hellip] um gato um boi um catildeo uma osga um pombo um homem Natildeo haacute dissonacircncias
neste bocado de carne os animais todos rodeiam-no para serem baptizados Ou para se
certificarem do nome que hatildeo-de perder do nome que hatildeo-de ganhar A morte eacute um
crisma Um baptismo eu te dou o nome de carne E dela se faraacute a fome Ou o inequiacutevoco
de uma arma A metaacutefora eacute a grande felicidade dos que tecircm nome proacuteprio Dos que
podem ser chamados Mas carne Estaacute no fim da escala abaixo de rio por exemplo rio
qualquer que seja tem nascente foz margens Mas carne Eacute simplesmente um bocado O
informe Pode dizer-se ensanguentada Poreacutem esse sangue natildeo pertence agrave sua definiccedilatildeo
haacute uma carne sem sangue mas natildeo um rio sem nascente A carne eacute sempre um bocado E
estaacute tudo dito Ningueacutem perguntaraacute a quem a quecirc pertenceu esse bocado Eacute soacute uma coisa
morta Na verdade natildeo haacute carne viva A carne viva eacute sempre em carne-viva uma ferida
uma chaga nas pernas de uma crianccedila no cachaccedilo de um boi nas matildeos de um miseraacutevel
nunca na matildeo do senhor doutor do senhor engenheiro do senhor ministro de vossa
excelecircncia do senhor presidente do meu caro amigo uma ferida em carne-viva eis o
ldquooutrordquo que nojo (ibidem)
Fig 1 Fig 2
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de
abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se
delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali
sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na
pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que
nada tem a exprimir
Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia
de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima
instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como
signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um
diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo
cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto
impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de
criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia
do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber
impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste
como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico
amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete
ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa
carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da
sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne
e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo
Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da
Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de
Rembrandt
Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts
(2013-2015) de Anish Kapoor
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os
louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz
ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida
9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere
define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo
(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em
termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo
estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da
subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo
menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o
ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios
imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam
os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs
Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a
literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de
sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as
hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas
as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que
determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem
descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no
exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o
novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de
acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar
o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes
oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a
racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo
o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e
resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar
incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da
experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos
temposrdquo (idem 111)
Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo
vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim
aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA
pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria
mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta
rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do
pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever
Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Escrever natildeo ilumina escurece
Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute
Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda
(Nunes 2014 90)
Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece
como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua
impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute
um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a
esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-
se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas
palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e
intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim
por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a
potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida
Referecircncias bibliograacuteficas
Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999
Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad
Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001
Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997
Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003
Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda
Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010
ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em
httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)
Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo
Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019
Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui
Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009
Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983
Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986
Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993
Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio
DrsquoAacutegua 1995
Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999
Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005
Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011
Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013
Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014
Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016
Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a
Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b
Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018
Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
35 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
(2019) expotildee como a inteligibilidade inaugural que marca escritores tatildeo diferentes
quanto Flaubert Virginia Woolf Rainer Maria Rilke W G Sebald ou Guimaratildees Rosa
A ficccedilatildeo fazia-se ela proacutepria anunciar atraveacutes da especificidade das personagens e das
aventuras que inventava assim como e mais que tudo pela sua estrutura temporal ela
dava resposta ao seu conceito quando a sucessatildeo de acontecimentos obedecia aiacute a um
encadeamento de causas e efeitos dotado de uma necessidade superior agrave do desenrolar dos
acontecimentos da vida comum Eacute esta sobre-racionalidade que se perdeu quando o
romance no seacuteculo XIX mergulhou no universo das coisas comuns e do tempo sem
objectivo O tempo da ficccedilatildeo jaacute natildeo estaacute estruturado pelo encadeamento das causas e dos
efeitos Deve conservar-se num soacute bloco como se fosse percorrido pelo sopro de uma
mesma modalidade de existecircncia (Ranciegravere 2019 96)
O que significa coexistir no realismo romanesco de Madame Bovary ou nrsquoOs
Cadernos de Malte Laurids Brigge Por um lado a coexistecircncia ilumina na trama
narrativa personagens e situaccedilotildees que pela sua condiccedilatildeo social ou anoacutedina indistinccedilatildeo
estariam agrave partida excluiacutedos de qualquer visibilidade daacute-se quando os vaacuterios indiviacuteduos das camadas populares incluindo pobres e marginais satildeo tidos em conta natildeo como um
pretexto moral para apelar agrave caridade e aos bons sentimentos mas antes como figuras
dotadas de complexidade subjectiva de pleno direito que habitam ruas e casas
inscrevendo nelas desejos paixotildees e atitudes consequentes
Constatar as suas existecircncias implica perceber o modo com actua ldquoa virtude do
realrdquo segundo Ranciegravere ndash e essa virtude consiste em aprender a desimaginar ldquoDeixar de imaginar eacute deixar de possuir o esquema que jaacute conhece o que se apresenta aos nossos
olhos o esquema que precede e ordena todo o encontrordquo (idem 45) Desperta naquele
que escreve a humildade de natildeo transformar os outros em objectos despojados da sua
obscuridade quer dizer que os signos desertam dos seus supostos referentes os
referentes desertam dos espartilhos habituais que os oprimem com uma sobrecodificaccedilatildeo Estes suacutebitos protagonistas preservam assim a sua proacutepria
ldquolinguagem secretardquo (idem 46) destituindo os signos de qualquer univocidade
Por outro lado e ainda decorrente dessa inscriccedilatildeo dos excluiacutedos na coexistecircncia
difusa e anoacutenima da vida Ranciegravere cita o uacuteltimo capiacutetulo do estudo seminal Mimesis
(1946) de Erich Auerbach dedicado ao ldquomomento qualquerrdquo na narrativa de Virginia
Woolf partindo do romance To the Lighthouse (1927) O ldquomomentordquo ou ldquoacontecimento qualquerrdquo desestabiliza a organizaccedilatildeo espaacutecio-temporal e a prevalecircncia
de um ponto de vista central seja o de uma personagem seja o do proacuteprio narrador Daacute-
se uma suacutebita irrupccedilatildeo de feixes na intriga ndash um vago olhar pela janela um mergulho
interior um telefonema evocado o relampejar de cores e sons ndash que desarranja quer as
hierarquias temaacuteticas de um texto dissolvendo as fronteiras entre intrigas principais e enredos secundaacuterios quer os posicionamentos ontoloacutegicos dos seres vivos ou inertes
humanos ou natildeo-humanos No fundo eacute arrancado a cada um desses seres e disposto em
luminosa evidecircncia o seu vitalismo intriacutenseco a sua forccedila de acaso o seu tumulto a sua
transpessoalidade numa espeacutecie de fraternidade panteiacutesta
Auerbach entrevia nesses cristais com algum optimismo gnosioloacutegico a
possibilidade de se refundar uma comunidade de homens e mulheres que partilharia uma mesma vocaccedilatildeo para a surpresa do instante ndash e isto sobretudo apoacutes a experiecircncia
das duas guerras travadas e dos infortuacutenios causados (note-se que o ensaiacutesta estava
exilado na Turquia tendo assim escapado agraves atrocidades nazis) pois ldquoquanto mais
diversos e mais simples apareccedilam os seres humanos como objetos de tais instantes
quaisquer tanto mais efetivamente deveraacute transluzir a sua comunidaderdquo (Auerbach
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
36 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
2001 497)
5 Uma drsquoAs peccedilas que faltam no vasto e inconclusivo cataacutelogo do poeta Henri
Lefebvre eacute uma citaccedilatildeo atribuiacuteda a Victor Serge que diz ldquoSomos todos sem-nome Inacabadosrdquo (Lefebvre 2019 81) Este curioso livro elenca uma seacuterie de perdidos-e-
achados da Histoacuteria mais perdidos do que achados na verdade oscilando entre a tiacutemida
comicidade perante um breve e anoacutedino apontamento (por exemplo uma parte de On
the Road de Kerouac que foi comida por um catildeo) e a secura brutal do facto exposto
(como quando enuncia sem mais ldquoAs gravidezes de Frida Khalordquo idem 25) Um livro que nunca chega a comeccedilar e que parece natildeo ter fim mas que atira o leitor para o meio
de uma descontinuidade irreparaacutevel filmes que natildeo se filmaram livros que natildeo se
escreveram bibliotecas reduzidas a cinzas cartas extraviadas fotografias por revelar
especulaccedilotildees vaacuterias Tudo o que natildeo se cumpriu tudo o que natildeo chegou sequer a ser
O ensaiacutesta e escritor de contos dinamarquecircs Villy Soslashrensen termina um primeiro romance
aos dezasseis anos e destroacutei-o aos dezassete William Burroughs natildeo guardava nenhuma
memoacuteria da redacccedilatildeo do Festim Nu No seu filme Scarlet Diva Asia Argento pede aos
seus actores para terem relaccedilotildees sexuais natildeo simuladas depois elimina as cenas na
montagem Rua Beautreillis em Paris a banheira em que morreu Jim Morrison foi
destruiacuteda (idem 34)
Este pequeno livro reverbera a pilha de destroccedilos com que o ldquoanjo da histoacuteriardquo
benjaminiano contempla o progresso ou a nua verdade das suas sobras e ruiacutenas o ldquolixo-
limpordquo da cataacutestrofe (Nunes 2020 82) E o que eacute o progresso afinal Aiacute estaacute ele
segundo Lefebvre numa fila indiana de disparates separados por pontos o progresso como a consequecircncia destrutiva da acccedilatildeo humana a destruiccedilatildeo como acto de
esquecimento que propicia o trabalho da memoacuteria (e o trabalho de luto pelo que se
perdeu) Um monte de pedras um lastro de perdas
Se a lista de Lefebvre eacute inacabaacutevel se o que a anima eacute a vontade intriacutenseca de natildeo
deixar que nada da Histoacuteria caia no esquecimento (como acontecia a Walter Benjamin
com o seu furor de coleccionista e o seu materialismo histoacuterico agrave la trapeiro) podemos aqui intercalar quase como um acidente de percurso ndash como se dispuseacutessemos todos os
livros de Rui Nunes sobre a mesa e abriacutessemos um numa paacutegina agrave sorte ndash esta
passagem de Baixo Contiacutenuo com a memoacuteria desavinda em instantacircneos avulsos
ldquocomo peccedilas desirmanadas de um mosaico romanordquo
O grande plano da cara de Monica Vitti nrsquoO Deserto Vermelho de Antonioni Dirk
Bogarde agrave volta de um James Fox adormecido em O Criado de Losey Hinauf Hinauf
do poema Ganimedes de Goethe o morcego a bater-me na cara nas ruiacutenas do Castelo de
Satildeo Filipe eu e meu avocirc sentados na praia vazia de Albarquel frente ao mar a aacutegua a
escorrer por uma talha de barro o velho na varanda a olhar o pessegueiro em flor e a
dizer lindo como um esposado a manhatilde do dia em que meu pai morreu a matildeo de minha
matildee a segurar a minha as lentes redondas dos oacuteculos do meacutedico sobras de tudo o que
sobra natildeo haacute histoacuterias mas traccedilos imagens relacircmpagos natildeo somos mais do que isso soacute
isso com o nosso corpo a ligar tudo isso cada bocado vai perdendo ateacute ter nascido um
bocado (Nunes 2017b 13-4)
Na mesma cadeia de acidentes irrompem as personagens de Rui Nunes ou as
visotildees imprecisas que as esquissam tornando impossiacutevel (e ateacute indesejaacutevel) a sua
unidade e representaccedilatildeo O ldquofasciacuteniordquo do olhar em Rui Nunes pela singularidade das
coisas contamina o seu fasciacutenio pelos humanos pela sua dissemelhanccedila irredutiacutevel pelo
potencial assombro que cada um desperta O ofiacutecio implacaacutevel de decompor a paisagem ndash por exemplo uma ida ao cafeacute e o empregado que o serve ndash desagua num monstruoso
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
37 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
caos de ldquoobjectos desgarradosrdquo
que estou aqui a fazer entre objectos desgarrados
os meus olhos soacute vecircem uma coisa apoacutes outra incapazes de abarcar toda a sala
assemelham-se a ocelos de uma simplicidade furiosa perseguem os objectos e quando
os apanham nunca mais os largam o rapaz por exemplo que anda por entre as mesas
uma rodilha na matildeo direita a limpar os tampos enquanto a esquerda flutua indecisa ora
coccedila a orelha ora pousa nas calccedilas ora esfrega uma borbulha no nariz matildeo pobre quase
se diria inuacutetil que atrapalha a outra matildeo que o rapaz conhece tatildeo mal com uma vida
autoacutenoma que ele natildeo controla eacute o meu fasciacutenio este ver a pequena histoacuteria dos gestos
princiacutepio e fim tatildeo proacuteximos
ndash o seu cafeacute
a matildeo surgiu e desapareceu
A chaacutevena
Levo-a agrave boca
Os laacutebios tocam-lhe
Afasto-a
Volto a aproximaacute-la
Afasto-a de novo
Ateacute natildeo ter medo
Ateacute
(idem 2011 46)
Este excerto assemelha-se a um movimento de zoom operado pelo olhar da nuvem de gestos do funcionaacuterio ateacute agrave chaacutevena sobre a mesa a circunstacircncia especiacutefica
que aqui nos eacute apresentada afunila vertiginosamente num devir-molecular O que resta
Para que ponto culmina ldquoAteacute natildeo ter medordquo lecirc-se Mas medo de quecirc Talvez medo da
imprevisibilidade iacutensita de todos os gestos esfumados medo da ameaccedila obscura que se
aninha em cada objecto levando o observador a afastar toda a ganga circundante a depurar a realidade objectiva ateacute chegar a esse resiacuteduo precaacuterio cuja nitidez de tatildeo
desprotegida que fica natildeo oferece qualquer margem para elucubraccedilotildees e equiacutevocos
ldquoAteacuterdquo termina ndash mas termina apenas o que eacute verbalmente alcanccedilaacutevel Aquele uacuteltimo
ponto final natildeo finaliza coisa alguma eacute o foco possiacutevel o zoom que deforma a
magnitude do pormenor a expansatildeo sem fim do que permaneceraacute inacabado Abre-se um silecircncio no coraccedilatildeo do texto Ao natildeo se fechar natildeo haacute um sentido inequiacutevoco uma
legenda que seja que se possa consagrar como verdade ou certeza ndash essa face totalitaacuteria
do poder
as pessoas satildeo pormenores o brilho de um liacutequido que se evapora o gosto salobro do
sangue na boca a mancha de um eczema no braccedilo Nunca vi uma pessoa na sua
integridade frente a mim Soacute paacutelpebras laacutebios crostas pecirclos mapas irregulares Vejo tatildeo
pouco que preciso de aproximar os olhos do que quero ver E nessa aproximaccedilatildeo tudo se
torna monstruoso e doente
(ou natildeo vejo ou vejo a morte)
natildeo te vejo E aproximo de ti os olhos Quando te comeccedilo a ver natildeo eacute a ti que vejo mas a
uma paisagem cancerosa que me dizes ser tua uma madeixa de cabelo um azul circular
uma ferida Muacuteltiplos fragmentos com uma voz pelos seus meandros (Nunes 1995 30)
Por isso nesta escrita tudo o que existe denuncia uma irremediaacutevel incompletude
ontoloacutegica
Satildeo esboccedilos as pessoas que encontramos Esboccedilos com a persistecircncia do que nasceu
incompleto Caminhamos rodeados de esboccedilos As palavras satildeo esboccedilos ateacute as mais
iacutentimas a que nunca chegaste (idem 2016 30)
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
38 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
6 Para Manuel Frias Martins
[a] prioridade eacutetica da escrita de Rui Nunes construiacuteda predominantemente em torno de
uma esteacutetica de imagens manchadas de sangue menstrual urina fezes viacutesceras
grosserias insultos e violecircncias diversas faz do abjecto o lugar mais adequado de
comunicaccedilatildeo natildeo soacute com o mundo mas tambeacutem com Deus Eacute como se fosse necessaacuterio
descer aos infernos para encontrar o bem supremo a paz eterna o prazer infinito a
inteligecircncia sem rosto da iluminaccedilatildeo interior (Martins 2009 49)
A cataacutebase eacute um passeio normal pela cidade o horror eacute a experiecircncia democraacutetica
das nossas derivas fascizantes Daiacute os olhos de Rui Nunes verem um mundo que jaacute eacute o
de um poacutes-apocalipse qualquer Natildeo o anuacutencio de um fim de mundo ostensivamente
decorado por uma aparatosa pirotecnia escatoloacutegica (degelos erupccedilotildees asteroacuteides pandemias) mas a consumaccedilatildeo desse epiacutelogo num instante que se arrasta infinita e
indefinidamente um presente eternizado um tempo que nunca mais acaba a sua
sucessiva desagregaccedilatildeo ateacute ao desgaste de todas as palavras que o descrevam e de todas
as imagens que o ilustrem Um apocalipse cujo dia seguinte manteacutem os cafeacutes abertos a
mesma moeda a consciecircncia da morte entranhada ateacute aos ossos O mesmo silecircncio cavado no interior das palavras das conversas esvaziando-as de qualquer
encadeamento de sentido fala-se mas natildeo se sabe a quem nem porquecirc nem com que
palavras Fala-se ndash e falta-se falha-se Os dias que se sucedem ao fim do mundo
glosam na escrita de Rui Nunes este empobrecimento da palavra ldquoQuanto mais se
escreve mais faltardquo (Nunes 2018 55) Descer aos infernos eacute habitar essa falta eacute escrever a partir ldquodos escombros com os escombros de uma liacutenguardquo (idem 2012 52)
Como quem assiste agrave ldquopequena histoacuteria dos gestosrdquo no corpo de um rapaz agrave mesa do
cafeacute no dia a seguir ao fim do mundo
A prioridade eacutetica de Rui Nunes ilumina personagens sobrecodificadas pelo seu
estigma Figuras que estatildeo refeacutens da inescapaacutevel ostensividade do seu corpo que satildeo
apenas ou sobretudo o seu exterior a evidecircncia ameaccedilante do cheiro que exalam da sujidade na roupa da homossexualidade como afronta puacuteblica os demais signos da
exclusatildeo Porque ldquoqualquer pobreza segrega o mesmo Tudo eacute igual rente ao chatildeordquo
(idem 2016 31) A consistecircncia dessa segregaccedilatildeo de texto para texto de livro para
livro reitera a presenccedila de figuras como o homossexual (em Sauromaquia) o
toxicodependente (em Que sinos dobramhellip) ou a mulher romena sentada no chatildeo com
um copo de plaacutestico para as esmolas (em A Crisaacutelida)
Mais do que agentes a matildeos com as peripeacutecias de foro aristoteacutelico (e daiacute o termo
personagens ser problemaacutetico porque carrega toda uma tradiccedilatildeo do romance que Rui
Nunes desconstroacutei) tais figuras constituem ldquoesboccedilosrdquo sucessivos que condensam a
rejeiccedilatildeo de quaisquer princiacutepios humaniacutesticos (porquanto incarnam a decadecircncia da
humanidade a sua parte maldita) e como tal satildeo seres de suspensatildeo sem uma meta a percorrer rumo a um determinado fim (cf Ranciegravere op cit) Muito aqueacutem do papel de
viacutetimas de uma sociedade que os marginaliza viacutetimas agrave mercecirc da caridade alheia e da
reactivaccedilatildeo de discursos morais (o que as tornaria estereoacutetipos lassos) satildeo sobretudo
hiatos vivos a ordem dos encadeamentos sucessivos esboroa-se neles destruindo
quaisquer ligaccedilotildees de sentido Satildeo o improdutivo por excelecircncia o tempo estaciona nestas figuras de tal maneira que se torna uma experiecircncia de vida natildeo-viviacutevel
intoleraacutevel para quem os olha e prontamente os expele com esse olhar reduzindo-os a
um insulto
sem importacircncia suficiente somos os esconjurados [hellip] Fodamos mas calados discretos
Natildeo nos beijemos em nenhuma rua o mundo que havemos de salvar natildeo nos pertence
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
39 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Viver ningueacutem nos proiacutebe se o fizermos no interior das casas respeitando os vizinhos do
lugar Assento temos em qualquer revoluccedilatildeo se obliterarmos uma parte de noacutes Seres
truncados Ou tolerados apenas Seres proibidos de dizer Esquizofrenizados Seres que se
tornaratildeo uma ameaccedila puacuteblica Seres que desejam os nossos filhos que os conspurcam
capazes de todos os crimes Seres coitados nos momentos mais benignos Seres de antes
ladratildeo que maricas (Nunes 1983 105)
Nesta passagem de Sauromaquia os homossexuais satildeo o alvo predilecto de uma
natildeo-inscriccedilatildeo no real para que sem eles sob a perspectiva do opressor (a
heteronormatividade neste caso) a vida se assemelhe a uma continuidade fluida num
tempo sem memoacuteria sem negatividade (que eacute a marca da diferenccedila do que potencia o
encontro com o novo e o diferente o atrito mobilizador ou heuriacutestico sem o qual o humano se dissolve numa mesmidade opressiva) Mas eacute ao afundar-se no inominaacutevel da
dor que Rui Nunes procura de certa forma ldquosobreviver agrave dor no interior da proacutepria
dorrdquo segundo Eduardo Prado Coelho (1997 208) Pois
[hellip] na dor mais extrema aquilo que resta se alguma coisa resta eacute o corpo refuacutegio dos
sem-ningueacutem abrigados nele enrolados nele mesmo velho mesmo feio natildeo sempre soacute
agraves vezes mas a vida eacute soacute agraves vezes (Nunes 2018 53)
Rui Nunes natildeo torna o homossexual ou a mulher romena como figuras de
autoridade narrativa agrave volta das quais a acccedilatildeo se vai desnovelando numa seacuterie de
episoacutedios ou acidentes com ou sem catarse agrave vista Natildeo eacute a sua densidade psicoloacutegica
que eacute posta agrave prova nos enredamentos da intriga ou no virtuosismo retoacuterico do autor As personagens natildeo satildeo retratos ou metaacuteforas do que quer que seja mas incarnam o
expoente maacuteximo de uma dor inconvertiacutevel em palavras Uma dor uma solidatildeo um
terror atroz ndash modos de existecircncia que se manifestam num grito num choro desalmado
num bloqueio do corpo que emudecem a vocaccedilatildeo dialogante das palavras E eacute por isso
que a devastaccedilatildeo emocional de um drogado ou a anguacutestia de um narrador que engata um estranho na rua e depois o leva para casa ou que teme pela vida num WC puacuteblico
nunca satildeo o tema deste ou daquele livro nem procuram descrever experiecircncias de vida
que nos embaciem os olhos pela descompaixatildeo geral O excesso de uma dor natildeo se
compraz com descriccedilotildees ndash faacute-las explodir E a escrita comeccedila quando torna essa
explosatildeo na sua uacutenica modalidade de existecircncia eacute quando a dor natildeo conhece palavras que a digam servindo-se delas como um espelho diaacutefano que a literatura tem lugar
Surgem entatildeo os nomes proacuteprios os objectos dispostos numa sala as figuras
interpelaacuteveis que perguntam e respondem que se movem de um lugar para outro neste
ou naquele tempo Funcionam como efeitos de uma intimidade inacessiacutevel mas que
deixam lastro em forma de escrita A esse lastro agrave falta de melhor termo damos o nome
de literatura
cumpres a funccedilatildeo de ser personagem por isso te concedo a escassez de algumas linhas
natildeo te deixo desenvolver plenamente para que natildeo me esqueccedila de que eacutes fictiacutecia de que
sou capaz de interromper a tua maturaccedilatildeo adiar-te odiar-te espacejar mais o teu rosto
instalar-me na pupila tornada o sossego letal acompanhar a laacutegrima pensar-te o
sofrimento (Nunes 1986 49)
Hoje natildeo consigo recompor o teu rosto e se nitidamente te imagino natildeo eacutes bem tu mas
uma qualquer fotografia tua Hoje a tua fotografia apropriou-se de ti deve ser assim
que se comeccedila a morrer Quando agrave nossa volta um corpo desaparece nos sinais da sua
passagem (idem 2013 25)
7 Um corpo que desaparece nos sinais da sua passagem Poderaacute esta imagem ser
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
40 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
contiacutegua agrave daquele torso arcaico de Apolo (c 480-470 aC) que no princiacutepio do seacuteculo
numa ida ao Louvre despertara em Rilke uma visatildeo profusamente enigmaacutetica num desvio pela eacutecfrase Sem cabeccedila perdidos os braccedilos e as pernas o resto mutilado de
uma unidade perdida comunica ao poeta um dos mais conhecidos e insoacutelitos remates da
poesia moderna do Ocidente ldquoTens de mudar de vidardquo (Du muszligt dein Leben aumlndern)
Natildeo conhecemos a sua cabeccedila inusitada
onde luziam maduras as pupilas Mas inteiro
o seu torso ainda arde como o candeeiro
que daacute ao seu olhar a luz apenas degradada
persistecircncia e brilho Pois natildeo sendo assim natildeo
poderia a onda do peito cegar-te nem no leve
torcer das ancas haver o sorriso que corre
para aquele centro da procriaccedilatildeo
Assim natildeo sendo seria disforme e curta a pedra
caiacuteda da transparente travessa dos ombros
e natildeo cintilaria como pele de fera
e natildeo explodiria por todos os lados e pontos
como uma estrela pois natildeo haacute ali lugar
donde ele te natildeo veja Tens de mudar a tua vida
(Rilke apud Sloterdijk 2018 35)
Como assim mudar de vida De onde vem este apelo tatildeo suacutebito no imperativo
quando nada nos treze versos anteriores fazia prever este inesperado alccedilapatildeo no fim do
soneto Quem nos fala do sem-fundo numinoso de uma pedra esculpida Que nos
revela a sensibilidade de Rilke ao pocircr no artefacto na coisa inerte esse mutismo eloquente ndash e sobretudo exortativo pois nos obriga a repensar a nossa vida a duvidar
de que estamos no caminho certo
Segundo a leitura que Peter Sloterdijk fez do poema jaacute natildeo eacute o corpo total que
necessariamente inspira uma essecircncia de verdade uma autoridade excepcional
impondo-se aos olhos alheios como um modelo de beleza fiacutesica ndash tal como os corpos
musculados da Antiguidade esses arqueacutetipos da perfeiccedilatildeo que serviriam de incentivo a que os sujeitos rivalizassem com os deuses pelo poacutedio da gloacuteria eterna No lugar dessa
coesatildeo orgacircnica e triunfante caberia agora a um torso mostrar-se como a ruiacutena da
eternidade a eternidade desfeita nos sinais da sua passagem ldquoA intensidade [do
fragmento] bate a perfeiccedilatildeo normalizada [do corpo inteiramente visiacutevel]rdquo (idem 36)
Qual peccedila votada ao abandono pelo desbaste do tempo as suas partes ausentes jamais restituiacuteveis provocam a consciecircncia adensam-lhe a inquietude existencial somos o que
somos sobretudo porque somos o que nos falta Eacute essa falta que desperta a sensaccedilatildeo de
nos sentirmos acossados pela presenccedila rumorejante dos objectos que transmitem uma
ldquoenergia-mensagemrdquo (idem 34) As coisas olham-nos intui Rilke Haacute uma cabeccedila
ausente naquele torso que emite um olhar que vem do fundo do tempo E eacute mais veemente esse olhar que nos lanccedila do que a exiacutegua soberania vigilante que lhe
conseguimos devolver
Cem anos apoacutes o sinal que Rilke nos fez compreendemos sem duacutevida esta indicaccedilatildeo
melhor ainda do que os seus contemporacircneos pois a nossa capacidade de perceccedilatildeo mais
do que a de nenhuma outra geraccedilatildeo anterior agrave nossa estaacute anestesiada e foi saqueada pela
conversa fiada dos corpos sem maacutecula (idem 36)
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
41 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Tal vez nos possamos apropriar desta qualidade da coisa ainda para mais
desconjuntada para reler a escrita de Rui Nunes agrave luz dessa enigmaticidade do fragmento nos antiacutepodas dos ldquocorpos sem maacuteculardquo da contemporaneidade Que corpos
satildeo estes Incarnam o triunfo da vida nua satildeo os apoacutelogos da wellness que medem
analisam e quantificam os seus vaacuterios desempenhos sob pressatildeo de terem a sauacutede em
permanente performance Entregam-se sem reserva agrave imensa orgia digital cuja coacccedilatildeo
da transparecircncia ndash a vida exposta nos social media como prova de que aconteceu ndash os esvazia de qualquer risco sombra vacilaccedilatildeo ou atrito para que esplendam enquanto
puras superfiacutecies do consumo na sociedade capitalista e no inferno da felicidade
permanente Corpos de uma sauacutede totalitaacuteria ficam refeacutens de todas as comodidades
materiais e incapazes de imaginar um futuro sem elas estatildeo agrave mercecirc de uma ldquohipocondria digitalrdquo (Han 2020 26) ndash por isso recusam-se a tolerar a dor e o
envelhecimento evitam qualquer experiecircncia que possa ameaccedilar o cerco paliativo com
que se vedam ao inesperado agrave contingecircncia agrave absoluta alteridade do outro (que
constitui sempre uma ameaccedila em potecircncia estrangeiro inimigo terrorista fonte de
contaacutegiohellip) Satildeo corpos com medo de tudo ndash ateacute de si proacuteprios
Se tais corpos fossem plasmaacuteveis num determinado comportamento de escrita numa literatura a condizer esta teria que ser a denegaccedilatildeo manifesta daquele medo
seria entatildeo uma escrita cobarde uma escrita aliteratada que se entreteacutem a ldquocontar
histoacuteriasrdquo e desse modo respeitando sigilosamente a liacutengua ndash ao inveacutes de manter com a
liacutengua uma relaccedilatildeo de profunda desconfianccedila com vista a desarmar e desarticular o seu
poder Por isso
[hellip] o meu corpo sobrevive na desarmonia eacute um corpo contra o olhar de Deus contra
todas as ditaduras sem histoacuteria natildeo sou capaz de histoacuterias de me internar pelas suas ruas
previsiacuteveis e mortas por isso soacute consigo viver o presente e o seu terror cheio de
exaltaccedilatildeo e assim quero continuar [hellip] (Nunes 1999 114)
Com os seus esboccedilos de vidas esta escrita rompe com as sequecircncias
contemporacircneas de corpos lisos e homogeacuteneos ldquosem maacuteculardquo segundo Sloterdijk Mostra-nos a decadecircncia fiacutesica sem qualquer pudor ou preconceito natildeo porque se
queira rebelar contra a vergonha social que coage essa decadecircncia a esconder-se mas
porque eacute na decadecircncia que um corpo vivo se solidariza com a presenccedila da morte a
ruiacutena comum a todas as coisas Eacute por via da dor que eacute restituiacutedo ao corpo a sua
realidade por um efeito de choque E regressamos assim agrave decomposiccedilatildeo de um corpo pelos gestos que faz ao seu apodrecimento insaciaacutevel ateacute ser reduzido a um naco
insensato de carne como se lecirc em O Anjo Camponecircs
Abre a torneira Deixa que o jacto de aacutegua lhe bata nas matildeos se espalhe e lhe salpique o
pijama sente a forccedila da aacutegua a bater-lhe nas matildeos ensaboa-as gesto automaacutetico que o
deixa livre para quecirc o corpo eacute um animal que regressa insidioso este eacute o meu corpo diz
e sorri empobrece e regressa [hellip] as matildeos estremecem semiabertas no rebordo do
lavatoacuterio uma sobre a outra jaacute natildeo duas matildeos mas um bocado de carne um frio
disforme uma humidade disforme natildeo haacute dedos nem palmas nem pele a separar uma
matildeo da outra haacute aquele bocado de carne no rebordo do lavatoacuterio [hellip] (idem 2020 48)
Um pedaccedilo de carne um torso escultoacuterico De novo o bocado o despojo a ruiacutena
Pelos interstiacutecios desta escrita reacende-se o iacutempeto obscuro de uma voz imaterial que
confere agraves coisas residuais aos gestos mais comuns uma intensa carga dramaacutetica Note-
se a encenaccedilatildeo criacutestica do dictum ldquoeste eacute o meu corpordquo na passagem acima transcrita
sem o milagre da transubstanciaccedilatildeo este corpo sabe-se reconduzido tatildeo-soacute ao milagre precaacuterio da imanecircncia O corpo eacute uma vanitas em movimento contiacutenuo ateacute agrave sua
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
42 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
erosatildeo Pelo caminho como fogos-faacutetuos extingue-se a iacutenfima solidez antropoloacutegica
que a identidade o eu ou o self poderiam salvaguardar como derradeira imagem do humano agora que essa imagem se nulifica na ldquoviolecircncia banal de um bocado de carnerdquo
ndash a carne que jaacute em Suiacutete e Fuacuteria livro anterior a O Anjo Camponecircs eacute apresentada
como o elo irredutiacutevel que une qualquer ldquoanoacutenimo do que foi vivordquo (Nunes 2018 57)
Vale a pena a citaccedilatildeo inteira pelo que nela se afirma como uma extraordinaacuteria e natildeo
menos terriacutevel legenda verbal do que satildeo os corpos escorchados dos bois maneiristas [fig 3] ou as variaccedilotildees da pele esfolada e da carne viva de Maacutersias por exemplo na
pintura de Francis Bacon e Egon Schiele (que natildeo por acaso figuram nas capas de Que
sinos dobram por aqueles que morrem como gado e Catildees respectivamente) [fig 1 e
fig 2] ou ainda cumprindo-se o movimento de zoom deste olhar-escrita ateacute ao horror absurdo do pormenor ampliado a brutalidade evidente da carne nos trabalhos de Anish
Kapoor crus manifestos de que o humano uacuteltimo reduto de um limiar metafiacutesico eacute ele
proacuteprio um limiar extinto ou esvaziado de qualquer transcendecircncia [fig 4]
[hellip] um gato um boi um catildeo uma osga um pombo um homem Natildeo haacute dissonacircncias
neste bocado de carne os animais todos rodeiam-no para serem baptizados Ou para se
certificarem do nome que hatildeo-de perder do nome que hatildeo-de ganhar A morte eacute um
crisma Um baptismo eu te dou o nome de carne E dela se faraacute a fome Ou o inequiacutevoco
de uma arma A metaacutefora eacute a grande felicidade dos que tecircm nome proacuteprio Dos que
podem ser chamados Mas carne Estaacute no fim da escala abaixo de rio por exemplo rio
qualquer que seja tem nascente foz margens Mas carne Eacute simplesmente um bocado O
informe Pode dizer-se ensanguentada Poreacutem esse sangue natildeo pertence agrave sua definiccedilatildeo
haacute uma carne sem sangue mas natildeo um rio sem nascente A carne eacute sempre um bocado E
estaacute tudo dito Ningueacutem perguntaraacute a quem a quecirc pertenceu esse bocado Eacute soacute uma coisa
morta Na verdade natildeo haacute carne viva A carne viva eacute sempre em carne-viva uma ferida
uma chaga nas pernas de uma crianccedila no cachaccedilo de um boi nas matildeos de um miseraacutevel
nunca na matildeo do senhor doutor do senhor engenheiro do senhor ministro de vossa
excelecircncia do senhor presidente do meu caro amigo uma ferida em carne-viva eis o
ldquooutrordquo que nojo (ibidem)
Fig 1 Fig 2
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de
abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se
delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali
sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na
pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que
nada tem a exprimir
Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia
de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima
instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como
signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um
diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo
cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto
impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de
criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia
do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber
impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste
como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico
amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete
ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa
carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da
sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne
e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo
Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da
Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de
Rembrandt
Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts
(2013-2015) de Anish Kapoor
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os
louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz
ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida
9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere
define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo
(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em
termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo
estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da
subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo
menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o
ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios
imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam
os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs
Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a
literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de
sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as
hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas
as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que
determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem
descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no
exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o
novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de
acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar
o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes
oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a
racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo
o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e
resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar
incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da
experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos
temposrdquo (idem 111)
Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo
vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim
aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA
pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria
mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta
rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do
pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever
Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Escrever natildeo ilumina escurece
Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute
Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda
(Nunes 2014 90)
Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece
como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua
impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute
um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a
esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-
se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas
palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e
intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim
por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a
potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida
Referecircncias bibliograacuteficas
Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999
Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad
Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001
Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997
Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003
Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda
Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010
ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em
httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)
Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo
Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019
Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui
Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009
Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983
Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986
Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993
Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio
DrsquoAacutegua 1995
Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999
Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005
Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011
Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013
Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014
Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016
Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a
Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b
Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018
Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
36 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
2001 497)
5 Uma drsquoAs peccedilas que faltam no vasto e inconclusivo cataacutelogo do poeta Henri
Lefebvre eacute uma citaccedilatildeo atribuiacuteda a Victor Serge que diz ldquoSomos todos sem-nome Inacabadosrdquo (Lefebvre 2019 81) Este curioso livro elenca uma seacuterie de perdidos-e-
achados da Histoacuteria mais perdidos do que achados na verdade oscilando entre a tiacutemida
comicidade perante um breve e anoacutedino apontamento (por exemplo uma parte de On
the Road de Kerouac que foi comida por um catildeo) e a secura brutal do facto exposto
(como quando enuncia sem mais ldquoAs gravidezes de Frida Khalordquo idem 25) Um livro que nunca chega a comeccedilar e que parece natildeo ter fim mas que atira o leitor para o meio
de uma descontinuidade irreparaacutevel filmes que natildeo se filmaram livros que natildeo se
escreveram bibliotecas reduzidas a cinzas cartas extraviadas fotografias por revelar
especulaccedilotildees vaacuterias Tudo o que natildeo se cumpriu tudo o que natildeo chegou sequer a ser
O ensaiacutesta e escritor de contos dinamarquecircs Villy Soslashrensen termina um primeiro romance
aos dezasseis anos e destroacutei-o aos dezassete William Burroughs natildeo guardava nenhuma
memoacuteria da redacccedilatildeo do Festim Nu No seu filme Scarlet Diva Asia Argento pede aos
seus actores para terem relaccedilotildees sexuais natildeo simuladas depois elimina as cenas na
montagem Rua Beautreillis em Paris a banheira em que morreu Jim Morrison foi
destruiacuteda (idem 34)
Este pequeno livro reverbera a pilha de destroccedilos com que o ldquoanjo da histoacuteriardquo
benjaminiano contempla o progresso ou a nua verdade das suas sobras e ruiacutenas o ldquolixo-
limpordquo da cataacutestrofe (Nunes 2020 82) E o que eacute o progresso afinal Aiacute estaacute ele
segundo Lefebvre numa fila indiana de disparates separados por pontos o progresso como a consequecircncia destrutiva da acccedilatildeo humana a destruiccedilatildeo como acto de
esquecimento que propicia o trabalho da memoacuteria (e o trabalho de luto pelo que se
perdeu) Um monte de pedras um lastro de perdas
Se a lista de Lefebvre eacute inacabaacutevel se o que a anima eacute a vontade intriacutenseca de natildeo
deixar que nada da Histoacuteria caia no esquecimento (como acontecia a Walter Benjamin
com o seu furor de coleccionista e o seu materialismo histoacuterico agrave la trapeiro) podemos aqui intercalar quase como um acidente de percurso ndash como se dispuseacutessemos todos os
livros de Rui Nunes sobre a mesa e abriacutessemos um numa paacutegina agrave sorte ndash esta
passagem de Baixo Contiacutenuo com a memoacuteria desavinda em instantacircneos avulsos
ldquocomo peccedilas desirmanadas de um mosaico romanordquo
O grande plano da cara de Monica Vitti nrsquoO Deserto Vermelho de Antonioni Dirk
Bogarde agrave volta de um James Fox adormecido em O Criado de Losey Hinauf Hinauf
do poema Ganimedes de Goethe o morcego a bater-me na cara nas ruiacutenas do Castelo de
Satildeo Filipe eu e meu avocirc sentados na praia vazia de Albarquel frente ao mar a aacutegua a
escorrer por uma talha de barro o velho na varanda a olhar o pessegueiro em flor e a
dizer lindo como um esposado a manhatilde do dia em que meu pai morreu a matildeo de minha
matildee a segurar a minha as lentes redondas dos oacuteculos do meacutedico sobras de tudo o que
sobra natildeo haacute histoacuterias mas traccedilos imagens relacircmpagos natildeo somos mais do que isso soacute
isso com o nosso corpo a ligar tudo isso cada bocado vai perdendo ateacute ter nascido um
bocado (Nunes 2017b 13-4)
Na mesma cadeia de acidentes irrompem as personagens de Rui Nunes ou as
visotildees imprecisas que as esquissam tornando impossiacutevel (e ateacute indesejaacutevel) a sua
unidade e representaccedilatildeo O ldquofasciacuteniordquo do olhar em Rui Nunes pela singularidade das
coisas contamina o seu fasciacutenio pelos humanos pela sua dissemelhanccedila irredutiacutevel pelo
potencial assombro que cada um desperta O ofiacutecio implacaacutevel de decompor a paisagem ndash por exemplo uma ida ao cafeacute e o empregado que o serve ndash desagua num monstruoso
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
37 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
caos de ldquoobjectos desgarradosrdquo
que estou aqui a fazer entre objectos desgarrados
os meus olhos soacute vecircem uma coisa apoacutes outra incapazes de abarcar toda a sala
assemelham-se a ocelos de uma simplicidade furiosa perseguem os objectos e quando
os apanham nunca mais os largam o rapaz por exemplo que anda por entre as mesas
uma rodilha na matildeo direita a limpar os tampos enquanto a esquerda flutua indecisa ora
coccedila a orelha ora pousa nas calccedilas ora esfrega uma borbulha no nariz matildeo pobre quase
se diria inuacutetil que atrapalha a outra matildeo que o rapaz conhece tatildeo mal com uma vida
autoacutenoma que ele natildeo controla eacute o meu fasciacutenio este ver a pequena histoacuteria dos gestos
princiacutepio e fim tatildeo proacuteximos
ndash o seu cafeacute
a matildeo surgiu e desapareceu
A chaacutevena
Levo-a agrave boca
Os laacutebios tocam-lhe
Afasto-a
Volto a aproximaacute-la
Afasto-a de novo
Ateacute natildeo ter medo
Ateacute
(idem 2011 46)
Este excerto assemelha-se a um movimento de zoom operado pelo olhar da nuvem de gestos do funcionaacuterio ateacute agrave chaacutevena sobre a mesa a circunstacircncia especiacutefica
que aqui nos eacute apresentada afunila vertiginosamente num devir-molecular O que resta
Para que ponto culmina ldquoAteacute natildeo ter medordquo lecirc-se Mas medo de quecirc Talvez medo da
imprevisibilidade iacutensita de todos os gestos esfumados medo da ameaccedila obscura que se
aninha em cada objecto levando o observador a afastar toda a ganga circundante a depurar a realidade objectiva ateacute chegar a esse resiacuteduo precaacuterio cuja nitidez de tatildeo
desprotegida que fica natildeo oferece qualquer margem para elucubraccedilotildees e equiacutevocos
ldquoAteacuterdquo termina ndash mas termina apenas o que eacute verbalmente alcanccedilaacutevel Aquele uacuteltimo
ponto final natildeo finaliza coisa alguma eacute o foco possiacutevel o zoom que deforma a
magnitude do pormenor a expansatildeo sem fim do que permaneceraacute inacabado Abre-se um silecircncio no coraccedilatildeo do texto Ao natildeo se fechar natildeo haacute um sentido inequiacutevoco uma
legenda que seja que se possa consagrar como verdade ou certeza ndash essa face totalitaacuteria
do poder
as pessoas satildeo pormenores o brilho de um liacutequido que se evapora o gosto salobro do
sangue na boca a mancha de um eczema no braccedilo Nunca vi uma pessoa na sua
integridade frente a mim Soacute paacutelpebras laacutebios crostas pecirclos mapas irregulares Vejo tatildeo
pouco que preciso de aproximar os olhos do que quero ver E nessa aproximaccedilatildeo tudo se
torna monstruoso e doente
(ou natildeo vejo ou vejo a morte)
natildeo te vejo E aproximo de ti os olhos Quando te comeccedilo a ver natildeo eacute a ti que vejo mas a
uma paisagem cancerosa que me dizes ser tua uma madeixa de cabelo um azul circular
uma ferida Muacuteltiplos fragmentos com uma voz pelos seus meandros (Nunes 1995 30)
Por isso nesta escrita tudo o que existe denuncia uma irremediaacutevel incompletude
ontoloacutegica
Satildeo esboccedilos as pessoas que encontramos Esboccedilos com a persistecircncia do que nasceu
incompleto Caminhamos rodeados de esboccedilos As palavras satildeo esboccedilos ateacute as mais
iacutentimas a que nunca chegaste (idem 2016 30)
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
38 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
6 Para Manuel Frias Martins
[a] prioridade eacutetica da escrita de Rui Nunes construiacuteda predominantemente em torno de
uma esteacutetica de imagens manchadas de sangue menstrual urina fezes viacutesceras
grosserias insultos e violecircncias diversas faz do abjecto o lugar mais adequado de
comunicaccedilatildeo natildeo soacute com o mundo mas tambeacutem com Deus Eacute como se fosse necessaacuterio
descer aos infernos para encontrar o bem supremo a paz eterna o prazer infinito a
inteligecircncia sem rosto da iluminaccedilatildeo interior (Martins 2009 49)
A cataacutebase eacute um passeio normal pela cidade o horror eacute a experiecircncia democraacutetica
das nossas derivas fascizantes Daiacute os olhos de Rui Nunes verem um mundo que jaacute eacute o
de um poacutes-apocalipse qualquer Natildeo o anuacutencio de um fim de mundo ostensivamente
decorado por uma aparatosa pirotecnia escatoloacutegica (degelos erupccedilotildees asteroacuteides pandemias) mas a consumaccedilatildeo desse epiacutelogo num instante que se arrasta infinita e
indefinidamente um presente eternizado um tempo que nunca mais acaba a sua
sucessiva desagregaccedilatildeo ateacute ao desgaste de todas as palavras que o descrevam e de todas
as imagens que o ilustrem Um apocalipse cujo dia seguinte manteacutem os cafeacutes abertos a
mesma moeda a consciecircncia da morte entranhada ateacute aos ossos O mesmo silecircncio cavado no interior das palavras das conversas esvaziando-as de qualquer
encadeamento de sentido fala-se mas natildeo se sabe a quem nem porquecirc nem com que
palavras Fala-se ndash e falta-se falha-se Os dias que se sucedem ao fim do mundo
glosam na escrita de Rui Nunes este empobrecimento da palavra ldquoQuanto mais se
escreve mais faltardquo (Nunes 2018 55) Descer aos infernos eacute habitar essa falta eacute escrever a partir ldquodos escombros com os escombros de uma liacutenguardquo (idem 2012 52)
Como quem assiste agrave ldquopequena histoacuteria dos gestosrdquo no corpo de um rapaz agrave mesa do
cafeacute no dia a seguir ao fim do mundo
A prioridade eacutetica de Rui Nunes ilumina personagens sobrecodificadas pelo seu
estigma Figuras que estatildeo refeacutens da inescapaacutevel ostensividade do seu corpo que satildeo
apenas ou sobretudo o seu exterior a evidecircncia ameaccedilante do cheiro que exalam da sujidade na roupa da homossexualidade como afronta puacuteblica os demais signos da
exclusatildeo Porque ldquoqualquer pobreza segrega o mesmo Tudo eacute igual rente ao chatildeordquo
(idem 2016 31) A consistecircncia dessa segregaccedilatildeo de texto para texto de livro para
livro reitera a presenccedila de figuras como o homossexual (em Sauromaquia) o
toxicodependente (em Que sinos dobramhellip) ou a mulher romena sentada no chatildeo com
um copo de plaacutestico para as esmolas (em A Crisaacutelida)
Mais do que agentes a matildeos com as peripeacutecias de foro aristoteacutelico (e daiacute o termo
personagens ser problemaacutetico porque carrega toda uma tradiccedilatildeo do romance que Rui
Nunes desconstroacutei) tais figuras constituem ldquoesboccedilosrdquo sucessivos que condensam a
rejeiccedilatildeo de quaisquer princiacutepios humaniacutesticos (porquanto incarnam a decadecircncia da
humanidade a sua parte maldita) e como tal satildeo seres de suspensatildeo sem uma meta a percorrer rumo a um determinado fim (cf Ranciegravere op cit) Muito aqueacutem do papel de
viacutetimas de uma sociedade que os marginaliza viacutetimas agrave mercecirc da caridade alheia e da
reactivaccedilatildeo de discursos morais (o que as tornaria estereoacutetipos lassos) satildeo sobretudo
hiatos vivos a ordem dos encadeamentos sucessivos esboroa-se neles destruindo
quaisquer ligaccedilotildees de sentido Satildeo o improdutivo por excelecircncia o tempo estaciona nestas figuras de tal maneira que se torna uma experiecircncia de vida natildeo-viviacutevel
intoleraacutevel para quem os olha e prontamente os expele com esse olhar reduzindo-os a
um insulto
sem importacircncia suficiente somos os esconjurados [hellip] Fodamos mas calados discretos
Natildeo nos beijemos em nenhuma rua o mundo que havemos de salvar natildeo nos pertence
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
39 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Viver ningueacutem nos proiacutebe se o fizermos no interior das casas respeitando os vizinhos do
lugar Assento temos em qualquer revoluccedilatildeo se obliterarmos uma parte de noacutes Seres
truncados Ou tolerados apenas Seres proibidos de dizer Esquizofrenizados Seres que se
tornaratildeo uma ameaccedila puacuteblica Seres que desejam os nossos filhos que os conspurcam
capazes de todos os crimes Seres coitados nos momentos mais benignos Seres de antes
ladratildeo que maricas (Nunes 1983 105)
Nesta passagem de Sauromaquia os homossexuais satildeo o alvo predilecto de uma
natildeo-inscriccedilatildeo no real para que sem eles sob a perspectiva do opressor (a
heteronormatividade neste caso) a vida se assemelhe a uma continuidade fluida num
tempo sem memoacuteria sem negatividade (que eacute a marca da diferenccedila do que potencia o
encontro com o novo e o diferente o atrito mobilizador ou heuriacutestico sem o qual o humano se dissolve numa mesmidade opressiva) Mas eacute ao afundar-se no inominaacutevel da
dor que Rui Nunes procura de certa forma ldquosobreviver agrave dor no interior da proacutepria
dorrdquo segundo Eduardo Prado Coelho (1997 208) Pois
[hellip] na dor mais extrema aquilo que resta se alguma coisa resta eacute o corpo refuacutegio dos
sem-ningueacutem abrigados nele enrolados nele mesmo velho mesmo feio natildeo sempre soacute
agraves vezes mas a vida eacute soacute agraves vezes (Nunes 2018 53)
Rui Nunes natildeo torna o homossexual ou a mulher romena como figuras de
autoridade narrativa agrave volta das quais a acccedilatildeo se vai desnovelando numa seacuterie de
episoacutedios ou acidentes com ou sem catarse agrave vista Natildeo eacute a sua densidade psicoloacutegica
que eacute posta agrave prova nos enredamentos da intriga ou no virtuosismo retoacuterico do autor As personagens natildeo satildeo retratos ou metaacuteforas do que quer que seja mas incarnam o
expoente maacuteximo de uma dor inconvertiacutevel em palavras Uma dor uma solidatildeo um
terror atroz ndash modos de existecircncia que se manifestam num grito num choro desalmado
num bloqueio do corpo que emudecem a vocaccedilatildeo dialogante das palavras E eacute por isso
que a devastaccedilatildeo emocional de um drogado ou a anguacutestia de um narrador que engata um estranho na rua e depois o leva para casa ou que teme pela vida num WC puacuteblico
nunca satildeo o tema deste ou daquele livro nem procuram descrever experiecircncias de vida
que nos embaciem os olhos pela descompaixatildeo geral O excesso de uma dor natildeo se
compraz com descriccedilotildees ndash faacute-las explodir E a escrita comeccedila quando torna essa
explosatildeo na sua uacutenica modalidade de existecircncia eacute quando a dor natildeo conhece palavras que a digam servindo-se delas como um espelho diaacutefano que a literatura tem lugar
Surgem entatildeo os nomes proacuteprios os objectos dispostos numa sala as figuras
interpelaacuteveis que perguntam e respondem que se movem de um lugar para outro neste
ou naquele tempo Funcionam como efeitos de uma intimidade inacessiacutevel mas que
deixam lastro em forma de escrita A esse lastro agrave falta de melhor termo damos o nome
de literatura
cumpres a funccedilatildeo de ser personagem por isso te concedo a escassez de algumas linhas
natildeo te deixo desenvolver plenamente para que natildeo me esqueccedila de que eacutes fictiacutecia de que
sou capaz de interromper a tua maturaccedilatildeo adiar-te odiar-te espacejar mais o teu rosto
instalar-me na pupila tornada o sossego letal acompanhar a laacutegrima pensar-te o
sofrimento (Nunes 1986 49)
Hoje natildeo consigo recompor o teu rosto e se nitidamente te imagino natildeo eacutes bem tu mas
uma qualquer fotografia tua Hoje a tua fotografia apropriou-se de ti deve ser assim
que se comeccedila a morrer Quando agrave nossa volta um corpo desaparece nos sinais da sua
passagem (idem 2013 25)
7 Um corpo que desaparece nos sinais da sua passagem Poderaacute esta imagem ser
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
40 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
contiacutegua agrave daquele torso arcaico de Apolo (c 480-470 aC) que no princiacutepio do seacuteculo
numa ida ao Louvre despertara em Rilke uma visatildeo profusamente enigmaacutetica num desvio pela eacutecfrase Sem cabeccedila perdidos os braccedilos e as pernas o resto mutilado de
uma unidade perdida comunica ao poeta um dos mais conhecidos e insoacutelitos remates da
poesia moderna do Ocidente ldquoTens de mudar de vidardquo (Du muszligt dein Leben aumlndern)
Natildeo conhecemos a sua cabeccedila inusitada
onde luziam maduras as pupilas Mas inteiro
o seu torso ainda arde como o candeeiro
que daacute ao seu olhar a luz apenas degradada
persistecircncia e brilho Pois natildeo sendo assim natildeo
poderia a onda do peito cegar-te nem no leve
torcer das ancas haver o sorriso que corre
para aquele centro da procriaccedilatildeo
Assim natildeo sendo seria disforme e curta a pedra
caiacuteda da transparente travessa dos ombros
e natildeo cintilaria como pele de fera
e natildeo explodiria por todos os lados e pontos
como uma estrela pois natildeo haacute ali lugar
donde ele te natildeo veja Tens de mudar a tua vida
(Rilke apud Sloterdijk 2018 35)
Como assim mudar de vida De onde vem este apelo tatildeo suacutebito no imperativo
quando nada nos treze versos anteriores fazia prever este inesperado alccedilapatildeo no fim do
soneto Quem nos fala do sem-fundo numinoso de uma pedra esculpida Que nos
revela a sensibilidade de Rilke ao pocircr no artefacto na coisa inerte esse mutismo eloquente ndash e sobretudo exortativo pois nos obriga a repensar a nossa vida a duvidar
de que estamos no caminho certo
Segundo a leitura que Peter Sloterdijk fez do poema jaacute natildeo eacute o corpo total que
necessariamente inspira uma essecircncia de verdade uma autoridade excepcional
impondo-se aos olhos alheios como um modelo de beleza fiacutesica ndash tal como os corpos
musculados da Antiguidade esses arqueacutetipos da perfeiccedilatildeo que serviriam de incentivo a que os sujeitos rivalizassem com os deuses pelo poacutedio da gloacuteria eterna No lugar dessa
coesatildeo orgacircnica e triunfante caberia agora a um torso mostrar-se como a ruiacutena da
eternidade a eternidade desfeita nos sinais da sua passagem ldquoA intensidade [do
fragmento] bate a perfeiccedilatildeo normalizada [do corpo inteiramente visiacutevel]rdquo (idem 36)
Qual peccedila votada ao abandono pelo desbaste do tempo as suas partes ausentes jamais restituiacuteveis provocam a consciecircncia adensam-lhe a inquietude existencial somos o que
somos sobretudo porque somos o que nos falta Eacute essa falta que desperta a sensaccedilatildeo de
nos sentirmos acossados pela presenccedila rumorejante dos objectos que transmitem uma
ldquoenergia-mensagemrdquo (idem 34) As coisas olham-nos intui Rilke Haacute uma cabeccedila
ausente naquele torso que emite um olhar que vem do fundo do tempo E eacute mais veemente esse olhar que nos lanccedila do que a exiacutegua soberania vigilante que lhe
conseguimos devolver
Cem anos apoacutes o sinal que Rilke nos fez compreendemos sem duacutevida esta indicaccedilatildeo
melhor ainda do que os seus contemporacircneos pois a nossa capacidade de perceccedilatildeo mais
do que a de nenhuma outra geraccedilatildeo anterior agrave nossa estaacute anestesiada e foi saqueada pela
conversa fiada dos corpos sem maacutecula (idem 36)
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
41 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Tal vez nos possamos apropriar desta qualidade da coisa ainda para mais
desconjuntada para reler a escrita de Rui Nunes agrave luz dessa enigmaticidade do fragmento nos antiacutepodas dos ldquocorpos sem maacuteculardquo da contemporaneidade Que corpos
satildeo estes Incarnam o triunfo da vida nua satildeo os apoacutelogos da wellness que medem
analisam e quantificam os seus vaacuterios desempenhos sob pressatildeo de terem a sauacutede em
permanente performance Entregam-se sem reserva agrave imensa orgia digital cuja coacccedilatildeo
da transparecircncia ndash a vida exposta nos social media como prova de que aconteceu ndash os esvazia de qualquer risco sombra vacilaccedilatildeo ou atrito para que esplendam enquanto
puras superfiacutecies do consumo na sociedade capitalista e no inferno da felicidade
permanente Corpos de uma sauacutede totalitaacuteria ficam refeacutens de todas as comodidades
materiais e incapazes de imaginar um futuro sem elas estatildeo agrave mercecirc de uma ldquohipocondria digitalrdquo (Han 2020 26) ndash por isso recusam-se a tolerar a dor e o
envelhecimento evitam qualquer experiecircncia que possa ameaccedilar o cerco paliativo com
que se vedam ao inesperado agrave contingecircncia agrave absoluta alteridade do outro (que
constitui sempre uma ameaccedila em potecircncia estrangeiro inimigo terrorista fonte de
contaacutegiohellip) Satildeo corpos com medo de tudo ndash ateacute de si proacuteprios
Se tais corpos fossem plasmaacuteveis num determinado comportamento de escrita numa literatura a condizer esta teria que ser a denegaccedilatildeo manifesta daquele medo
seria entatildeo uma escrita cobarde uma escrita aliteratada que se entreteacutem a ldquocontar
histoacuteriasrdquo e desse modo respeitando sigilosamente a liacutengua ndash ao inveacutes de manter com a
liacutengua uma relaccedilatildeo de profunda desconfianccedila com vista a desarmar e desarticular o seu
poder Por isso
[hellip] o meu corpo sobrevive na desarmonia eacute um corpo contra o olhar de Deus contra
todas as ditaduras sem histoacuteria natildeo sou capaz de histoacuterias de me internar pelas suas ruas
previsiacuteveis e mortas por isso soacute consigo viver o presente e o seu terror cheio de
exaltaccedilatildeo e assim quero continuar [hellip] (Nunes 1999 114)
Com os seus esboccedilos de vidas esta escrita rompe com as sequecircncias
contemporacircneas de corpos lisos e homogeacuteneos ldquosem maacuteculardquo segundo Sloterdijk Mostra-nos a decadecircncia fiacutesica sem qualquer pudor ou preconceito natildeo porque se
queira rebelar contra a vergonha social que coage essa decadecircncia a esconder-se mas
porque eacute na decadecircncia que um corpo vivo se solidariza com a presenccedila da morte a
ruiacutena comum a todas as coisas Eacute por via da dor que eacute restituiacutedo ao corpo a sua
realidade por um efeito de choque E regressamos assim agrave decomposiccedilatildeo de um corpo pelos gestos que faz ao seu apodrecimento insaciaacutevel ateacute ser reduzido a um naco
insensato de carne como se lecirc em O Anjo Camponecircs
Abre a torneira Deixa que o jacto de aacutegua lhe bata nas matildeos se espalhe e lhe salpique o
pijama sente a forccedila da aacutegua a bater-lhe nas matildeos ensaboa-as gesto automaacutetico que o
deixa livre para quecirc o corpo eacute um animal que regressa insidioso este eacute o meu corpo diz
e sorri empobrece e regressa [hellip] as matildeos estremecem semiabertas no rebordo do
lavatoacuterio uma sobre a outra jaacute natildeo duas matildeos mas um bocado de carne um frio
disforme uma humidade disforme natildeo haacute dedos nem palmas nem pele a separar uma
matildeo da outra haacute aquele bocado de carne no rebordo do lavatoacuterio [hellip] (idem 2020 48)
Um pedaccedilo de carne um torso escultoacuterico De novo o bocado o despojo a ruiacutena
Pelos interstiacutecios desta escrita reacende-se o iacutempeto obscuro de uma voz imaterial que
confere agraves coisas residuais aos gestos mais comuns uma intensa carga dramaacutetica Note-
se a encenaccedilatildeo criacutestica do dictum ldquoeste eacute o meu corpordquo na passagem acima transcrita
sem o milagre da transubstanciaccedilatildeo este corpo sabe-se reconduzido tatildeo-soacute ao milagre precaacuterio da imanecircncia O corpo eacute uma vanitas em movimento contiacutenuo ateacute agrave sua
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
42 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
erosatildeo Pelo caminho como fogos-faacutetuos extingue-se a iacutenfima solidez antropoloacutegica
que a identidade o eu ou o self poderiam salvaguardar como derradeira imagem do humano agora que essa imagem se nulifica na ldquoviolecircncia banal de um bocado de carnerdquo
ndash a carne que jaacute em Suiacutete e Fuacuteria livro anterior a O Anjo Camponecircs eacute apresentada
como o elo irredutiacutevel que une qualquer ldquoanoacutenimo do que foi vivordquo (Nunes 2018 57)
Vale a pena a citaccedilatildeo inteira pelo que nela se afirma como uma extraordinaacuteria e natildeo
menos terriacutevel legenda verbal do que satildeo os corpos escorchados dos bois maneiristas [fig 3] ou as variaccedilotildees da pele esfolada e da carne viva de Maacutersias por exemplo na
pintura de Francis Bacon e Egon Schiele (que natildeo por acaso figuram nas capas de Que
sinos dobram por aqueles que morrem como gado e Catildees respectivamente) [fig 1 e
fig 2] ou ainda cumprindo-se o movimento de zoom deste olhar-escrita ateacute ao horror absurdo do pormenor ampliado a brutalidade evidente da carne nos trabalhos de Anish
Kapoor crus manifestos de que o humano uacuteltimo reduto de um limiar metafiacutesico eacute ele
proacuteprio um limiar extinto ou esvaziado de qualquer transcendecircncia [fig 4]
[hellip] um gato um boi um catildeo uma osga um pombo um homem Natildeo haacute dissonacircncias
neste bocado de carne os animais todos rodeiam-no para serem baptizados Ou para se
certificarem do nome que hatildeo-de perder do nome que hatildeo-de ganhar A morte eacute um
crisma Um baptismo eu te dou o nome de carne E dela se faraacute a fome Ou o inequiacutevoco
de uma arma A metaacutefora eacute a grande felicidade dos que tecircm nome proacuteprio Dos que
podem ser chamados Mas carne Estaacute no fim da escala abaixo de rio por exemplo rio
qualquer que seja tem nascente foz margens Mas carne Eacute simplesmente um bocado O
informe Pode dizer-se ensanguentada Poreacutem esse sangue natildeo pertence agrave sua definiccedilatildeo
haacute uma carne sem sangue mas natildeo um rio sem nascente A carne eacute sempre um bocado E
estaacute tudo dito Ningueacutem perguntaraacute a quem a quecirc pertenceu esse bocado Eacute soacute uma coisa
morta Na verdade natildeo haacute carne viva A carne viva eacute sempre em carne-viva uma ferida
uma chaga nas pernas de uma crianccedila no cachaccedilo de um boi nas matildeos de um miseraacutevel
nunca na matildeo do senhor doutor do senhor engenheiro do senhor ministro de vossa
excelecircncia do senhor presidente do meu caro amigo uma ferida em carne-viva eis o
ldquooutrordquo que nojo (ibidem)
Fig 1 Fig 2
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de
abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se
delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali
sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na
pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que
nada tem a exprimir
Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia
de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima
instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como
signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um
diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo
cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto
impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de
criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia
do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber
impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste
como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico
amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete
ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa
carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da
sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne
e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo
Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da
Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de
Rembrandt
Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts
(2013-2015) de Anish Kapoor
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os
louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz
ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida
9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere
define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo
(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em
termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo
estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da
subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo
menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o
ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios
imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam
os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs
Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a
literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de
sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as
hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas
as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que
determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem
descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no
exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o
novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de
acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar
o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes
oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a
racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo
o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e
resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar
incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da
experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos
temposrdquo (idem 111)
Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo
vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim
aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA
pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria
mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta
rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do
pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever
Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Escrever natildeo ilumina escurece
Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute
Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda
(Nunes 2014 90)
Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece
como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua
impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute
um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a
esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-
se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas
palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e
intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim
por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a
potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida
Referecircncias bibliograacuteficas
Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999
Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad
Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001
Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997
Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003
Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda
Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010
ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em
httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)
Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo
Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019
Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui
Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009
Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983
Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986
Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993
Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio
DrsquoAacutegua 1995
Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999
Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005
Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011
Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013
Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014
Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016
Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a
Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b
Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018
Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
37 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
caos de ldquoobjectos desgarradosrdquo
que estou aqui a fazer entre objectos desgarrados
os meus olhos soacute vecircem uma coisa apoacutes outra incapazes de abarcar toda a sala
assemelham-se a ocelos de uma simplicidade furiosa perseguem os objectos e quando
os apanham nunca mais os largam o rapaz por exemplo que anda por entre as mesas
uma rodilha na matildeo direita a limpar os tampos enquanto a esquerda flutua indecisa ora
coccedila a orelha ora pousa nas calccedilas ora esfrega uma borbulha no nariz matildeo pobre quase
se diria inuacutetil que atrapalha a outra matildeo que o rapaz conhece tatildeo mal com uma vida
autoacutenoma que ele natildeo controla eacute o meu fasciacutenio este ver a pequena histoacuteria dos gestos
princiacutepio e fim tatildeo proacuteximos
ndash o seu cafeacute
a matildeo surgiu e desapareceu
A chaacutevena
Levo-a agrave boca
Os laacutebios tocam-lhe
Afasto-a
Volto a aproximaacute-la
Afasto-a de novo
Ateacute natildeo ter medo
Ateacute
(idem 2011 46)
Este excerto assemelha-se a um movimento de zoom operado pelo olhar da nuvem de gestos do funcionaacuterio ateacute agrave chaacutevena sobre a mesa a circunstacircncia especiacutefica
que aqui nos eacute apresentada afunila vertiginosamente num devir-molecular O que resta
Para que ponto culmina ldquoAteacute natildeo ter medordquo lecirc-se Mas medo de quecirc Talvez medo da
imprevisibilidade iacutensita de todos os gestos esfumados medo da ameaccedila obscura que se
aninha em cada objecto levando o observador a afastar toda a ganga circundante a depurar a realidade objectiva ateacute chegar a esse resiacuteduo precaacuterio cuja nitidez de tatildeo
desprotegida que fica natildeo oferece qualquer margem para elucubraccedilotildees e equiacutevocos
ldquoAteacuterdquo termina ndash mas termina apenas o que eacute verbalmente alcanccedilaacutevel Aquele uacuteltimo
ponto final natildeo finaliza coisa alguma eacute o foco possiacutevel o zoom que deforma a
magnitude do pormenor a expansatildeo sem fim do que permaneceraacute inacabado Abre-se um silecircncio no coraccedilatildeo do texto Ao natildeo se fechar natildeo haacute um sentido inequiacutevoco uma
legenda que seja que se possa consagrar como verdade ou certeza ndash essa face totalitaacuteria
do poder
as pessoas satildeo pormenores o brilho de um liacutequido que se evapora o gosto salobro do
sangue na boca a mancha de um eczema no braccedilo Nunca vi uma pessoa na sua
integridade frente a mim Soacute paacutelpebras laacutebios crostas pecirclos mapas irregulares Vejo tatildeo
pouco que preciso de aproximar os olhos do que quero ver E nessa aproximaccedilatildeo tudo se
torna monstruoso e doente
(ou natildeo vejo ou vejo a morte)
natildeo te vejo E aproximo de ti os olhos Quando te comeccedilo a ver natildeo eacute a ti que vejo mas a
uma paisagem cancerosa que me dizes ser tua uma madeixa de cabelo um azul circular
uma ferida Muacuteltiplos fragmentos com uma voz pelos seus meandros (Nunes 1995 30)
Por isso nesta escrita tudo o que existe denuncia uma irremediaacutevel incompletude
ontoloacutegica
Satildeo esboccedilos as pessoas que encontramos Esboccedilos com a persistecircncia do que nasceu
incompleto Caminhamos rodeados de esboccedilos As palavras satildeo esboccedilos ateacute as mais
iacutentimas a que nunca chegaste (idem 2016 30)
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
38 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
6 Para Manuel Frias Martins
[a] prioridade eacutetica da escrita de Rui Nunes construiacuteda predominantemente em torno de
uma esteacutetica de imagens manchadas de sangue menstrual urina fezes viacutesceras
grosserias insultos e violecircncias diversas faz do abjecto o lugar mais adequado de
comunicaccedilatildeo natildeo soacute com o mundo mas tambeacutem com Deus Eacute como se fosse necessaacuterio
descer aos infernos para encontrar o bem supremo a paz eterna o prazer infinito a
inteligecircncia sem rosto da iluminaccedilatildeo interior (Martins 2009 49)
A cataacutebase eacute um passeio normal pela cidade o horror eacute a experiecircncia democraacutetica
das nossas derivas fascizantes Daiacute os olhos de Rui Nunes verem um mundo que jaacute eacute o
de um poacutes-apocalipse qualquer Natildeo o anuacutencio de um fim de mundo ostensivamente
decorado por uma aparatosa pirotecnia escatoloacutegica (degelos erupccedilotildees asteroacuteides pandemias) mas a consumaccedilatildeo desse epiacutelogo num instante que se arrasta infinita e
indefinidamente um presente eternizado um tempo que nunca mais acaba a sua
sucessiva desagregaccedilatildeo ateacute ao desgaste de todas as palavras que o descrevam e de todas
as imagens que o ilustrem Um apocalipse cujo dia seguinte manteacutem os cafeacutes abertos a
mesma moeda a consciecircncia da morte entranhada ateacute aos ossos O mesmo silecircncio cavado no interior das palavras das conversas esvaziando-as de qualquer
encadeamento de sentido fala-se mas natildeo se sabe a quem nem porquecirc nem com que
palavras Fala-se ndash e falta-se falha-se Os dias que se sucedem ao fim do mundo
glosam na escrita de Rui Nunes este empobrecimento da palavra ldquoQuanto mais se
escreve mais faltardquo (Nunes 2018 55) Descer aos infernos eacute habitar essa falta eacute escrever a partir ldquodos escombros com os escombros de uma liacutenguardquo (idem 2012 52)
Como quem assiste agrave ldquopequena histoacuteria dos gestosrdquo no corpo de um rapaz agrave mesa do
cafeacute no dia a seguir ao fim do mundo
A prioridade eacutetica de Rui Nunes ilumina personagens sobrecodificadas pelo seu
estigma Figuras que estatildeo refeacutens da inescapaacutevel ostensividade do seu corpo que satildeo
apenas ou sobretudo o seu exterior a evidecircncia ameaccedilante do cheiro que exalam da sujidade na roupa da homossexualidade como afronta puacuteblica os demais signos da
exclusatildeo Porque ldquoqualquer pobreza segrega o mesmo Tudo eacute igual rente ao chatildeordquo
(idem 2016 31) A consistecircncia dessa segregaccedilatildeo de texto para texto de livro para
livro reitera a presenccedila de figuras como o homossexual (em Sauromaquia) o
toxicodependente (em Que sinos dobramhellip) ou a mulher romena sentada no chatildeo com
um copo de plaacutestico para as esmolas (em A Crisaacutelida)
Mais do que agentes a matildeos com as peripeacutecias de foro aristoteacutelico (e daiacute o termo
personagens ser problemaacutetico porque carrega toda uma tradiccedilatildeo do romance que Rui
Nunes desconstroacutei) tais figuras constituem ldquoesboccedilosrdquo sucessivos que condensam a
rejeiccedilatildeo de quaisquer princiacutepios humaniacutesticos (porquanto incarnam a decadecircncia da
humanidade a sua parte maldita) e como tal satildeo seres de suspensatildeo sem uma meta a percorrer rumo a um determinado fim (cf Ranciegravere op cit) Muito aqueacutem do papel de
viacutetimas de uma sociedade que os marginaliza viacutetimas agrave mercecirc da caridade alheia e da
reactivaccedilatildeo de discursos morais (o que as tornaria estereoacutetipos lassos) satildeo sobretudo
hiatos vivos a ordem dos encadeamentos sucessivos esboroa-se neles destruindo
quaisquer ligaccedilotildees de sentido Satildeo o improdutivo por excelecircncia o tempo estaciona nestas figuras de tal maneira que se torna uma experiecircncia de vida natildeo-viviacutevel
intoleraacutevel para quem os olha e prontamente os expele com esse olhar reduzindo-os a
um insulto
sem importacircncia suficiente somos os esconjurados [hellip] Fodamos mas calados discretos
Natildeo nos beijemos em nenhuma rua o mundo que havemos de salvar natildeo nos pertence
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
39 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Viver ningueacutem nos proiacutebe se o fizermos no interior das casas respeitando os vizinhos do
lugar Assento temos em qualquer revoluccedilatildeo se obliterarmos uma parte de noacutes Seres
truncados Ou tolerados apenas Seres proibidos de dizer Esquizofrenizados Seres que se
tornaratildeo uma ameaccedila puacuteblica Seres que desejam os nossos filhos que os conspurcam
capazes de todos os crimes Seres coitados nos momentos mais benignos Seres de antes
ladratildeo que maricas (Nunes 1983 105)
Nesta passagem de Sauromaquia os homossexuais satildeo o alvo predilecto de uma
natildeo-inscriccedilatildeo no real para que sem eles sob a perspectiva do opressor (a
heteronormatividade neste caso) a vida se assemelhe a uma continuidade fluida num
tempo sem memoacuteria sem negatividade (que eacute a marca da diferenccedila do que potencia o
encontro com o novo e o diferente o atrito mobilizador ou heuriacutestico sem o qual o humano se dissolve numa mesmidade opressiva) Mas eacute ao afundar-se no inominaacutevel da
dor que Rui Nunes procura de certa forma ldquosobreviver agrave dor no interior da proacutepria
dorrdquo segundo Eduardo Prado Coelho (1997 208) Pois
[hellip] na dor mais extrema aquilo que resta se alguma coisa resta eacute o corpo refuacutegio dos
sem-ningueacutem abrigados nele enrolados nele mesmo velho mesmo feio natildeo sempre soacute
agraves vezes mas a vida eacute soacute agraves vezes (Nunes 2018 53)
Rui Nunes natildeo torna o homossexual ou a mulher romena como figuras de
autoridade narrativa agrave volta das quais a acccedilatildeo se vai desnovelando numa seacuterie de
episoacutedios ou acidentes com ou sem catarse agrave vista Natildeo eacute a sua densidade psicoloacutegica
que eacute posta agrave prova nos enredamentos da intriga ou no virtuosismo retoacuterico do autor As personagens natildeo satildeo retratos ou metaacuteforas do que quer que seja mas incarnam o
expoente maacuteximo de uma dor inconvertiacutevel em palavras Uma dor uma solidatildeo um
terror atroz ndash modos de existecircncia que se manifestam num grito num choro desalmado
num bloqueio do corpo que emudecem a vocaccedilatildeo dialogante das palavras E eacute por isso
que a devastaccedilatildeo emocional de um drogado ou a anguacutestia de um narrador que engata um estranho na rua e depois o leva para casa ou que teme pela vida num WC puacuteblico
nunca satildeo o tema deste ou daquele livro nem procuram descrever experiecircncias de vida
que nos embaciem os olhos pela descompaixatildeo geral O excesso de uma dor natildeo se
compraz com descriccedilotildees ndash faacute-las explodir E a escrita comeccedila quando torna essa
explosatildeo na sua uacutenica modalidade de existecircncia eacute quando a dor natildeo conhece palavras que a digam servindo-se delas como um espelho diaacutefano que a literatura tem lugar
Surgem entatildeo os nomes proacuteprios os objectos dispostos numa sala as figuras
interpelaacuteveis que perguntam e respondem que se movem de um lugar para outro neste
ou naquele tempo Funcionam como efeitos de uma intimidade inacessiacutevel mas que
deixam lastro em forma de escrita A esse lastro agrave falta de melhor termo damos o nome
de literatura
cumpres a funccedilatildeo de ser personagem por isso te concedo a escassez de algumas linhas
natildeo te deixo desenvolver plenamente para que natildeo me esqueccedila de que eacutes fictiacutecia de que
sou capaz de interromper a tua maturaccedilatildeo adiar-te odiar-te espacejar mais o teu rosto
instalar-me na pupila tornada o sossego letal acompanhar a laacutegrima pensar-te o
sofrimento (Nunes 1986 49)
Hoje natildeo consigo recompor o teu rosto e se nitidamente te imagino natildeo eacutes bem tu mas
uma qualquer fotografia tua Hoje a tua fotografia apropriou-se de ti deve ser assim
que se comeccedila a morrer Quando agrave nossa volta um corpo desaparece nos sinais da sua
passagem (idem 2013 25)
7 Um corpo que desaparece nos sinais da sua passagem Poderaacute esta imagem ser
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
40 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
contiacutegua agrave daquele torso arcaico de Apolo (c 480-470 aC) que no princiacutepio do seacuteculo
numa ida ao Louvre despertara em Rilke uma visatildeo profusamente enigmaacutetica num desvio pela eacutecfrase Sem cabeccedila perdidos os braccedilos e as pernas o resto mutilado de
uma unidade perdida comunica ao poeta um dos mais conhecidos e insoacutelitos remates da
poesia moderna do Ocidente ldquoTens de mudar de vidardquo (Du muszligt dein Leben aumlndern)
Natildeo conhecemos a sua cabeccedila inusitada
onde luziam maduras as pupilas Mas inteiro
o seu torso ainda arde como o candeeiro
que daacute ao seu olhar a luz apenas degradada
persistecircncia e brilho Pois natildeo sendo assim natildeo
poderia a onda do peito cegar-te nem no leve
torcer das ancas haver o sorriso que corre
para aquele centro da procriaccedilatildeo
Assim natildeo sendo seria disforme e curta a pedra
caiacuteda da transparente travessa dos ombros
e natildeo cintilaria como pele de fera
e natildeo explodiria por todos os lados e pontos
como uma estrela pois natildeo haacute ali lugar
donde ele te natildeo veja Tens de mudar a tua vida
(Rilke apud Sloterdijk 2018 35)
Como assim mudar de vida De onde vem este apelo tatildeo suacutebito no imperativo
quando nada nos treze versos anteriores fazia prever este inesperado alccedilapatildeo no fim do
soneto Quem nos fala do sem-fundo numinoso de uma pedra esculpida Que nos
revela a sensibilidade de Rilke ao pocircr no artefacto na coisa inerte esse mutismo eloquente ndash e sobretudo exortativo pois nos obriga a repensar a nossa vida a duvidar
de que estamos no caminho certo
Segundo a leitura que Peter Sloterdijk fez do poema jaacute natildeo eacute o corpo total que
necessariamente inspira uma essecircncia de verdade uma autoridade excepcional
impondo-se aos olhos alheios como um modelo de beleza fiacutesica ndash tal como os corpos
musculados da Antiguidade esses arqueacutetipos da perfeiccedilatildeo que serviriam de incentivo a que os sujeitos rivalizassem com os deuses pelo poacutedio da gloacuteria eterna No lugar dessa
coesatildeo orgacircnica e triunfante caberia agora a um torso mostrar-se como a ruiacutena da
eternidade a eternidade desfeita nos sinais da sua passagem ldquoA intensidade [do
fragmento] bate a perfeiccedilatildeo normalizada [do corpo inteiramente visiacutevel]rdquo (idem 36)
Qual peccedila votada ao abandono pelo desbaste do tempo as suas partes ausentes jamais restituiacuteveis provocam a consciecircncia adensam-lhe a inquietude existencial somos o que
somos sobretudo porque somos o que nos falta Eacute essa falta que desperta a sensaccedilatildeo de
nos sentirmos acossados pela presenccedila rumorejante dos objectos que transmitem uma
ldquoenergia-mensagemrdquo (idem 34) As coisas olham-nos intui Rilke Haacute uma cabeccedila
ausente naquele torso que emite um olhar que vem do fundo do tempo E eacute mais veemente esse olhar que nos lanccedila do que a exiacutegua soberania vigilante que lhe
conseguimos devolver
Cem anos apoacutes o sinal que Rilke nos fez compreendemos sem duacutevida esta indicaccedilatildeo
melhor ainda do que os seus contemporacircneos pois a nossa capacidade de perceccedilatildeo mais
do que a de nenhuma outra geraccedilatildeo anterior agrave nossa estaacute anestesiada e foi saqueada pela
conversa fiada dos corpos sem maacutecula (idem 36)
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
41 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Tal vez nos possamos apropriar desta qualidade da coisa ainda para mais
desconjuntada para reler a escrita de Rui Nunes agrave luz dessa enigmaticidade do fragmento nos antiacutepodas dos ldquocorpos sem maacuteculardquo da contemporaneidade Que corpos
satildeo estes Incarnam o triunfo da vida nua satildeo os apoacutelogos da wellness que medem
analisam e quantificam os seus vaacuterios desempenhos sob pressatildeo de terem a sauacutede em
permanente performance Entregam-se sem reserva agrave imensa orgia digital cuja coacccedilatildeo
da transparecircncia ndash a vida exposta nos social media como prova de que aconteceu ndash os esvazia de qualquer risco sombra vacilaccedilatildeo ou atrito para que esplendam enquanto
puras superfiacutecies do consumo na sociedade capitalista e no inferno da felicidade
permanente Corpos de uma sauacutede totalitaacuteria ficam refeacutens de todas as comodidades
materiais e incapazes de imaginar um futuro sem elas estatildeo agrave mercecirc de uma ldquohipocondria digitalrdquo (Han 2020 26) ndash por isso recusam-se a tolerar a dor e o
envelhecimento evitam qualquer experiecircncia que possa ameaccedilar o cerco paliativo com
que se vedam ao inesperado agrave contingecircncia agrave absoluta alteridade do outro (que
constitui sempre uma ameaccedila em potecircncia estrangeiro inimigo terrorista fonte de
contaacutegiohellip) Satildeo corpos com medo de tudo ndash ateacute de si proacuteprios
Se tais corpos fossem plasmaacuteveis num determinado comportamento de escrita numa literatura a condizer esta teria que ser a denegaccedilatildeo manifesta daquele medo
seria entatildeo uma escrita cobarde uma escrita aliteratada que se entreteacutem a ldquocontar
histoacuteriasrdquo e desse modo respeitando sigilosamente a liacutengua ndash ao inveacutes de manter com a
liacutengua uma relaccedilatildeo de profunda desconfianccedila com vista a desarmar e desarticular o seu
poder Por isso
[hellip] o meu corpo sobrevive na desarmonia eacute um corpo contra o olhar de Deus contra
todas as ditaduras sem histoacuteria natildeo sou capaz de histoacuterias de me internar pelas suas ruas
previsiacuteveis e mortas por isso soacute consigo viver o presente e o seu terror cheio de
exaltaccedilatildeo e assim quero continuar [hellip] (Nunes 1999 114)
Com os seus esboccedilos de vidas esta escrita rompe com as sequecircncias
contemporacircneas de corpos lisos e homogeacuteneos ldquosem maacuteculardquo segundo Sloterdijk Mostra-nos a decadecircncia fiacutesica sem qualquer pudor ou preconceito natildeo porque se
queira rebelar contra a vergonha social que coage essa decadecircncia a esconder-se mas
porque eacute na decadecircncia que um corpo vivo se solidariza com a presenccedila da morte a
ruiacutena comum a todas as coisas Eacute por via da dor que eacute restituiacutedo ao corpo a sua
realidade por um efeito de choque E regressamos assim agrave decomposiccedilatildeo de um corpo pelos gestos que faz ao seu apodrecimento insaciaacutevel ateacute ser reduzido a um naco
insensato de carne como se lecirc em O Anjo Camponecircs
Abre a torneira Deixa que o jacto de aacutegua lhe bata nas matildeos se espalhe e lhe salpique o
pijama sente a forccedila da aacutegua a bater-lhe nas matildeos ensaboa-as gesto automaacutetico que o
deixa livre para quecirc o corpo eacute um animal que regressa insidioso este eacute o meu corpo diz
e sorri empobrece e regressa [hellip] as matildeos estremecem semiabertas no rebordo do
lavatoacuterio uma sobre a outra jaacute natildeo duas matildeos mas um bocado de carne um frio
disforme uma humidade disforme natildeo haacute dedos nem palmas nem pele a separar uma
matildeo da outra haacute aquele bocado de carne no rebordo do lavatoacuterio [hellip] (idem 2020 48)
Um pedaccedilo de carne um torso escultoacuterico De novo o bocado o despojo a ruiacutena
Pelos interstiacutecios desta escrita reacende-se o iacutempeto obscuro de uma voz imaterial que
confere agraves coisas residuais aos gestos mais comuns uma intensa carga dramaacutetica Note-
se a encenaccedilatildeo criacutestica do dictum ldquoeste eacute o meu corpordquo na passagem acima transcrita
sem o milagre da transubstanciaccedilatildeo este corpo sabe-se reconduzido tatildeo-soacute ao milagre precaacuterio da imanecircncia O corpo eacute uma vanitas em movimento contiacutenuo ateacute agrave sua
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
42 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
erosatildeo Pelo caminho como fogos-faacutetuos extingue-se a iacutenfima solidez antropoloacutegica
que a identidade o eu ou o self poderiam salvaguardar como derradeira imagem do humano agora que essa imagem se nulifica na ldquoviolecircncia banal de um bocado de carnerdquo
ndash a carne que jaacute em Suiacutete e Fuacuteria livro anterior a O Anjo Camponecircs eacute apresentada
como o elo irredutiacutevel que une qualquer ldquoanoacutenimo do que foi vivordquo (Nunes 2018 57)
Vale a pena a citaccedilatildeo inteira pelo que nela se afirma como uma extraordinaacuteria e natildeo
menos terriacutevel legenda verbal do que satildeo os corpos escorchados dos bois maneiristas [fig 3] ou as variaccedilotildees da pele esfolada e da carne viva de Maacutersias por exemplo na
pintura de Francis Bacon e Egon Schiele (que natildeo por acaso figuram nas capas de Que
sinos dobram por aqueles que morrem como gado e Catildees respectivamente) [fig 1 e
fig 2] ou ainda cumprindo-se o movimento de zoom deste olhar-escrita ateacute ao horror absurdo do pormenor ampliado a brutalidade evidente da carne nos trabalhos de Anish
Kapoor crus manifestos de que o humano uacuteltimo reduto de um limiar metafiacutesico eacute ele
proacuteprio um limiar extinto ou esvaziado de qualquer transcendecircncia [fig 4]
[hellip] um gato um boi um catildeo uma osga um pombo um homem Natildeo haacute dissonacircncias
neste bocado de carne os animais todos rodeiam-no para serem baptizados Ou para se
certificarem do nome que hatildeo-de perder do nome que hatildeo-de ganhar A morte eacute um
crisma Um baptismo eu te dou o nome de carne E dela se faraacute a fome Ou o inequiacutevoco
de uma arma A metaacutefora eacute a grande felicidade dos que tecircm nome proacuteprio Dos que
podem ser chamados Mas carne Estaacute no fim da escala abaixo de rio por exemplo rio
qualquer que seja tem nascente foz margens Mas carne Eacute simplesmente um bocado O
informe Pode dizer-se ensanguentada Poreacutem esse sangue natildeo pertence agrave sua definiccedilatildeo
haacute uma carne sem sangue mas natildeo um rio sem nascente A carne eacute sempre um bocado E
estaacute tudo dito Ningueacutem perguntaraacute a quem a quecirc pertenceu esse bocado Eacute soacute uma coisa
morta Na verdade natildeo haacute carne viva A carne viva eacute sempre em carne-viva uma ferida
uma chaga nas pernas de uma crianccedila no cachaccedilo de um boi nas matildeos de um miseraacutevel
nunca na matildeo do senhor doutor do senhor engenheiro do senhor ministro de vossa
excelecircncia do senhor presidente do meu caro amigo uma ferida em carne-viva eis o
ldquooutrordquo que nojo (ibidem)
Fig 1 Fig 2
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de
abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se
delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali
sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na
pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que
nada tem a exprimir
Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia
de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima
instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como
signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um
diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo
cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto
impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de
criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia
do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber
impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste
como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico
amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete
ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa
carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da
sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne
e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo
Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da
Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de
Rembrandt
Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts
(2013-2015) de Anish Kapoor
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os
louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz
ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida
9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere
define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo
(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em
termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo
estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da
subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo
menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o
ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios
imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam
os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs
Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a
literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de
sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as
hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas
as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que
determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem
descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no
exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o
novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de
acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar
o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes
oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a
racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo
o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e
resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar
incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da
experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos
temposrdquo (idem 111)
Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo
vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim
aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA
pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria
mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta
rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do
pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever
Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Escrever natildeo ilumina escurece
Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute
Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda
(Nunes 2014 90)
Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece
como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua
impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute
um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a
esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-
se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas
palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e
intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim
por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a
potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida
Referecircncias bibliograacuteficas
Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999
Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad
Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001
Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997
Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003
Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda
Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010
ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em
httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)
Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo
Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019
Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui
Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009
Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983
Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986
Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993
Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio
DrsquoAacutegua 1995
Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999
Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005
Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011
Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013
Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014
Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016
Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a
Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b
Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018
Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
38 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
6 Para Manuel Frias Martins
[a] prioridade eacutetica da escrita de Rui Nunes construiacuteda predominantemente em torno de
uma esteacutetica de imagens manchadas de sangue menstrual urina fezes viacutesceras
grosserias insultos e violecircncias diversas faz do abjecto o lugar mais adequado de
comunicaccedilatildeo natildeo soacute com o mundo mas tambeacutem com Deus Eacute como se fosse necessaacuterio
descer aos infernos para encontrar o bem supremo a paz eterna o prazer infinito a
inteligecircncia sem rosto da iluminaccedilatildeo interior (Martins 2009 49)
A cataacutebase eacute um passeio normal pela cidade o horror eacute a experiecircncia democraacutetica
das nossas derivas fascizantes Daiacute os olhos de Rui Nunes verem um mundo que jaacute eacute o
de um poacutes-apocalipse qualquer Natildeo o anuacutencio de um fim de mundo ostensivamente
decorado por uma aparatosa pirotecnia escatoloacutegica (degelos erupccedilotildees asteroacuteides pandemias) mas a consumaccedilatildeo desse epiacutelogo num instante que se arrasta infinita e
indefinidamente um presente eternizado um tempo que nunca mais acaba a sua
sucessiva desagregaccedilatildeo ateacute ao desgaste de todas as palavras que o descrevam e de todas
as imagens que o ilustrem Um apocalipse cujo dia seguinte manteacutem os cafeacutes abertos a
mesma moeda a consciecircncia da morte entranhada ateacute aos ossos O mesmo silecircncio cavado no interior das palavras das conversas esvaziando-as de qualquer
encadeamento de sentido fala-se mas natildeo se sabe a quem nem porquecirc nem com que
palavras Fala-se ndash e falta-se falha-se Os dias que se sucedem ao fim do mundo
glosam na escrita de Rui Nunes este empobrecimento da palavra ldquoQuanto mais se
escreve mais faltardquo (Nunes 2018 55) Descer aos infernos eacute habitar essa falta eacute escrever a partir ldquodos escombros com os escombros de uma liacutenguardquo (idem 2012 52)
Como quem assiste agrave ldquopequena histoacuteria dos gestosrdquo no corpo de um rapaz agrave mesa do
cafeacute no dia a seguir ao fim do mundo
A prioridade eacutetica de Rui Nunes ilumina personagens sobrecodificadas pelo seu
estigma Figuras que estatildeo refeacutens da inescapaacutevel ostensividade do seu corpo que satildeo
apenas ou sobretudo o seu exterior a evidecircncia ameaccedilante do cheiro que exalam da sujidade na roupa da homossexualidade como afronta puacuteblica os demais signos da
exclusatildeo Porque ldquoqualquer pobreza segrega o mesmo Tudo eacute igual rente ao chatildeordquo
(idem 2016 31) A consistecircncia dessa segregaccedilatildeo de texto para texto de livro para
livro reitera a presenccedila de figuras como o homossexual (em Sauromaquia) o
toxicodependente (em Que sinos dobramhellip) ou a mulher romena sentada no chatildeo com
um copo de plaacutestico para as esmolas (em A Crisaacutelida)
Mais do que agentes a matildeos com as peripeacutecias de foro aristoteacutelico (e daiacute o termo
personagens ser problemaacutetico porque carrega toda uma tradiccedilatildeo do romance que Rui
Nunes desconstroacutei) tais figuras constituem ldquoesboccedilosrdquo sucessivos que condensam a
rejeiccedilatildeo de quaisquer princiacutepios humaniacutesticos (porquanto incarnam a decadecircncia da
humanidade a sua parte maldita) e como tal satildeo seres de suspensatildeo sem uma meta a percorrer rumo a um determinado fim (cf Ranciegravere op cit) Muito aqueacutem do papel de
viacutetimas de uma sociedade que os marginaliza viacutetimas agrave mercecirc da caridade alheia e da
reactivaccedilatildeo de discursos morais (o que as tornaria estereoacutetipos lassos) satildeo sobretudo
hiatos vivos a ordem dos encadeamentos sucessivos esboroa-se neles destruindo
quaisquer ligaccedilotildees de sentido Satildeo o improdutivo por excelecircncia o tempo estaciona nestas figuras de tal maneira que se torna uma experiecircncia de vida natildeo-viviacutevel
intoleraacutevel para quem os olha e prontamente os expele com esse olhar reduzindo-os a
um insulto
sem importacircncia suficiente somos os esconjurados [hellip] Fodamos mas calados discretos
Natildeo nos beijemos em nenhuma rua o mundo que havemos de salvar natildeo nos pertence
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
39 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Viver ningueacutem nos proiacutebe se o fizermos no interior das casas respeitando os vizinhos do
lugar Assento temos em qualquer revoluccedilatildeo se obliterarmos uma parte de noacutes Seres
truncados Ou tolerados apenas Seres proibidos de dizer Esquizofrenizados Seres que se
tornaratildeo uma ameaccedila puacuteblica Seres que desejam os nossos filhos que os conspurcam
capazes de todos os crimes Seres coitados nos momentos mais benignos Seres de antes
ladratildeo que maricas (Nunes 1983 105)
Nesta passagem de Sauromaquia os homossexuais satildeo o alvo predilecto de uma
natildeo-inscriccedilatildeo no real para que sem eles sob a perspectiva do opressor (a
heteronormatividade neste caso) a vida se assemelhe a uma continuidade fluida num
tempo sem memoacuteria sem negatividade (que eacute a marca da diferenccedila do que potencia o
encontro com o novo e o diferente o atrito mobilizador ou heuriacutestico sem o qual o humano se dissolve numa mesmidade opressiva) Mas eacute ao afundar-se no inominaacutevel da
dor que Rui Nunes procura de certa forma ldquosobreviver agrave dor no interior da proacutepria
dorrdquo segundo Eduardo Prado Coelho (1997 208) Pois
[hellip] na dor mais extrema aquilo que resta se alguma coisa resta eacute o corpo refuacutegio dos
sem-ningueacutem abrigados nele enrolados nele mesmo velho mesmo feio natildeo sempre soacute
agraves vezes mas a vida eacute soacute agraves vezes (Nunes 2018 53)
Rui Nunes natildeo torna o homossexual ou a mulher romena como figuras de
autoridade narrativa agrave volta das quais a acccedilatildeo se vai desnovelando numa seacuterie de
episoacutedios ou acidentes com ou sem catarse agrave vista Natildeo eacute a sua densidade psicoloacutegica
que eacute posta agrave prova nos enredamentos da intriga ou no virtuosismo retoacuterico do autor As personagens natildeo satildeo retratos ou metaacuteforas do que quer que seja mas incarnam o
expoente maacuteximo de uma dor inconvertiacutevel em palavras Uma dor uma solidatildeo um
terror atroz ndash modos de existecircncia que se manifestam num grito num choro desalmado
num bloqueio do corpo que emudecem a vocaccedilatildeo dialogante das palavras E eacute por isso
que a devastaccedilatildeo emocional de um drogado ou a anguacutestia de um narrador que engata um estranho na rua e depois o leva para casa ou que teme pela vida num WC puacuteblico
nunca satildeo o tema deste ou daquele livro nem procuram descrever experiecircncias de vida
que nos embaciem os olhos pela descompaixatildeo geral O excesso de uma dor natildeo se
compraz com descriccedilotildees ndash faacute-las explodir E a escrita comeccedila quando torna essa
explosatildeo na sua uacutenica modalidade de existecircncia eacute quando a dor natildeo conhece palavras que a digam servindo-se delas como um espelho diaacutefano que a literatura tem lugar
Surgem entatildeo os nomes proacuteprios os objectos dispostos numa sala as figuras
interpelaacuteveis que perguntam e respondem que se movem de um lugar para outro neste
ou naquele tempo Funcionam como efeitos de uma intimidade inacessiacutevel mas que
deixam lastro em forma de escrita A esse lastro agrave falta de melhor termo damos o nome
de literatura
cumpres a funccedilatildeo de ser personagem por isso te concedo a escassez de algumas linhas
natildeo te deixo desenvolver plenamente para que natildeo me esqueccedila de que eacutes fictiacutecia de que
sou capaz de interromper a tua maturaccedilatildeo adiar-te odiar-te espacejar mais o teu rosto
instalar-me na pupila tornada o sossego letal acompanhar a laacutegrima pensar-te o
sofrimento (Nunes 1986 49)
Hoje natildeo consigo recompor o teu rosto e se nitidamente te imagino natildeo eacutes bem tu mas
uma qualquer fotografia tua Hoje a tua fotografia apropriou-se de ti deve ser assim
que se comeccedila a morrer Quando agrave nossa volta um corpo desaparece nos sinais da sua
passagem (idem 2013 25)
7 Um corpo que desaparece nos sinais da sua passagem Poderaacute esta imagem ser
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
40 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
contiacutegua agrave daquele torso arcaico de Apolo (c 480-470 aC) que no princiacutepio do seacuteculo
numa ida ao Louvre despertara em Rilke uma visatildeo profusamente enigmaacutetica num desvio pela eacutecfrase Sem cabeccedila perdidos os braccedilos e as pernas o resto mutilado de
uma unidade perdida comunica ao poeta um dos mais conhecidos e insoacutelitos remates da
poesia moderna do Ocidente ldquoTens de mudar de vidardquo (Du muszligt dein Leben aumlndern)
Natildeo conhecemos a sua cabeccedila inusitada
onde luziam maduras as pupilas Mas inteiro
o seu torso ainda arde como o candeeiro
que daacute ao seu olhar a luz apenas degradada
persistecircncia e brilho Pois natildeo sendo assim natildeo
poderia a onda do peito cegar-te nem no leve
torcer das ancas haver o sorriso que corre
para aquele centro da procriaccedilatildeo
Assim natildeo sendo seria disforme e curta a pedra
caiacuteda da transparente travessa dos ombros
e natildeo cintilaria como pele de fera
e natildeo explodiria por todos os lados e pontos
como uma estrela pois natildeo haacute ali lugar
donde ele te natildeo veja Tens de mudar a tua vida
(Rilke apud Sloterdijk 2018 35)
Como assim mudar de vida De onde vem este apelo tatildeo suacutebito no imperativo
quando nada nos treze versos anteriores fazia prever este inesperado alccedilapatildeo no fim do
soneto Quem nos fala do sem-fundo numinoso de uma pedra esculpida Que nos
revela a sensibilidade de Rilke ao pocircr no artefacto na coisa inerte esse mutismo eloquente ndash e sobretudo exortativo pois nos obriga a repensar a nossa vida a duvidar
de que estamos no caminho certo
Segundo a leitura que Peter Sloterdijk fez do poema jaacute natildeo eacute o corpo total que
necessariamente inspira uma essecircncia de verdade uma autoridade excepcional
impondo-se aos olhos alheios como um modelo de beleza fiacutesica ndash tal como os corpos
musculados da Antiguidade esses arqueacutetipos da perfeiccedilatildeo que serviriam de incentivo a que os sujeitos rivalizassem com os deuses pelo poacutedio da gloacuteria eterna No lugar dessa
coesatildeo orgacircnica e triunfante caberia agora a um torso mostrar-se como a ruiacutena da
eternidade a eternidade desfeita nos sinais da sua passagem ldquoA intensidade [do
fragmento] bate a perfeiccedilatildeo normalizada [do corpo inteiramente visiacutevel]rdquo (idem 36)
Qual peccedila votada ao abandono pelo desbaste do tempo as suas partes ausentes jamais restituiacuteveis provocam a consciecircncia adensam-lhe a inquietude existencial somos o que
somos sobretudo porque somos o que nos falta Eacute essa falta que desperta a sensaccedilatildeo de
nos sentirmos acossados pela presenccedila rumorejante dos objectos que transmitem uma
ldquoenergia-mensagemrdquo (idem 34) As coisas olham-nos intui Rilke Haacute uma cabeccedila
ausente naquele torso que emite um olhar que vem do fundo do tempo E eacute mais veemente esse olhar que nos lanccedila do que a exiacutegua soberania vigilante que lhe
conseguimos devolver
Cem anos apoacutes o sinal que Rilke nos fez compreendemos sem duacutevida esta indicaccedilatildeo
melhor ainda do que os seus contemporacircneos pois a nossa capacidade de perceccedilatildeo mais
do que a de nenhuma outra geraccedilatildeo anterior agrave nossa estaacute anestesiada e foi saqueada pela
conversa fiada dos corpos sem maacutecula (idem 36)
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
41 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Tal vez nos possamos apropriar desta qualidade da coisa ainda para mais
desconjuntada para reler a escrita de Rui Nunes agrave luz dessa enigmaticidade do fragmento nos antiacutepodas dos ldquocorpos sem maacuteculardquo da contemporaneidade Que corpos
satildeo estes Incarnam o triunfo da vida nua satildeo os apoacutelogos da wellness que medem
analisam e quantificam os seus vaacuterios desempenhos sob pressatildeo de terem a sauacutede em
permanente performance Entregam-se sem reserva agrave imensa orgia digital cuja coacccedilatildeo
da transparecircncia ndash a vida exposta nos social media como prova de que aconteceu ndash os esvazia de qualquer risco sombra vacilaccedilatildeo ou atrito para que esplendam enquanto
puras superfiacutecies do consumo na sociedade capitalista e no inferno da felicidade
permanente Corpos de uma sauacutede totalitaacuteria ficam refeacutens de todas as comodidades
materiais e incapazes de imaginar um futuro sem elas estatildeo agrave mercecirc de uma ldquohipocondria digitalrdquo (Han 2020 26) ndash por isso recusam-se a tolerar a dor e o
envelhecimento evitam qualquer experiecircncia que possa ameaccedilar o cerco paliativo com
que se vedam ao inesperado agrave contingecircncia agrave absoluta alteridade do outro (que
constitui sempre uma ameaccedila em potecircncia estrangeiro inimigo terrorista fonte de
contaacutegiohellip) Satildeo corpos com medo de tudo ndash ateacute de si proacuteprios
Se tais corpos fossem plasmaacuteveis num determinado comportamento de escrita numa literatura a condizer esta teria que ser a denegaccedilatildeo manifesta daquele medo
seria entatildeo uma escrita cobarde uma escrita aliteratada que se entreteacutem a ldquocontar
histoacuteriasrdquo e desse modo respeitando sigilosamente a liacutengua ndash ao inveacutes de manter com a
liacutengua uma relaccedilatildeo de profunda desconfianccedila com vista a desarmar e desarticular o seu
poder Por isso
[hellip] o meu corpo sobrevive na desarmonia eacute um corpo contra o olhar de Deus contra
todas as ditaduras sem histoacuteria natildeo sou capaz de histoacuterias de me internar pelas suas ruas
previsiacuteveis e mortas por isso soacute consigo viver o presente e o seu terror cheio de
exaltaccedilatildeo e assim quero continuar [hellip] (Nunes 1999 114)
Com os seus esboccedilos de vidas esta escrita rompe com as sequecircncias
contemporacircneas de corpos lisos e homogeacuteneos ldquosem maacuteculardquo segundo Sloterdijk Mostra-nos a decadecircncia fiacutesica sem qualquer pudor ou preconceito natildeo porque se
queira rebelar contra a vergonha social que coage essa decadecircncia a esconder-se mas
porque eacute na decadecircncia que um corpo vivo se solidariza com a presenccedila da morte a
ruiacutena comum a todas as coisas Eacute por via da dor que eacute restituiacutedo ao corpo a sua
realidade por um efeito de choque E regressamos assim agrave decomposiccedilatildeo de um corpo pelos gestos que faz ao seu apodrecimento insaciaacutevel ateacute ser reduzido a um naco
insensato de carne como se lecirc em O Anjo Camponecircs
Abre a torneira Deixa que o jacto de aacutegua lhe bata nas matildeos se espalhe e lhe salpique o
pijama sente a forccedila da aacutegua a bater-lhe nas matildeos ensaboa-as gesto automaacutetico que o
deixa livre para quecirc o corpo eacute um animal que regressa insidioso este eacute o meu corpo diz
e sorri empobrece e regressa [hellip] as matildeos estremecem semiabertas no rebordo do
lavatoacuterio uma sobre a outra jaacute natildeo duas matildeos mas um bocado de carne um frio
disforme uma humidade disforme natildeo haacute dedos nem palmas nem pele a separar uma
matildeo da outra haacute aquele bocado de carne no rebordo do lavatoacuterio [hellip] (idem 2020 48)
Um pedaccedilo de carne um torso escultoacuterico De novo o bocado o despojo a ruiacutena
Pelos interstiacutecios desta escrita reacende-se o iacutempeto obscuro de uma voz imaterial que
confere agraves coisas residuais aos gestos mais comuns uma intensa carga dramaacutetica Note-
se a encenaccedilatildeo criacutestica do dictum ldquoeste eacute o meu corpordquo na passagem acima transcrita
sem o milagre da transubstanciaccedilatildeo este corpo sabe-se reconduzido tatildeo-soacute ao milagre precaacuterio da imanecircncia O corpo eacute uma vanitas em movimento contiacutenuo ateacute agrave sua
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
42 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
erosatildeo Pelo caminho como fogos-faacutetuos extingue-se a iacutenfima solidez antropoloacutegica
que a identidade o eu ou o self poderiam salvaguardar como derradeira imagem do humano agora que essa imagem se nulifica na ldquoviolecircncia banal de um bocado de carnerdquo
ndash a carne que jaacute em Suiacutete e Fuacuteria livro anterior a O Anjo Camponecircs eacute apresentada
como o elo irredutiacutevel que une qualquer ldquoanoacutenimo do que foi vivordquo (Nunes 2018 57)
Vale a pena a citaccedilatildeo inteira pelo que nela se afirma como uma extraordinaacuteria e natildeo
menos terriacutevel legenda verbal do que satildeo os corpos escorchados dos bois maneiristas [fig 3] ou as variaccedilotildees da pele esfolada e da carne viva de Maacutersias por exemplo na
pintura de Francis Bacon e Egon Schiele (que natildeo por acaso figuram nas capas de Que
sinos dobram por aqueles que morrem como gado e Catildees respectivamente) [fig 1 e
fig 2] ou ainda cumprindo-se o movimento de zoom deste olhar-escrita ateacute ao horror absurdo do pormenor ampliado a brutalidade evidente da carne nos trabalhos de Anish
Kapoor crus manifestos de que o humano uacuteltimo reduto de um limiar metafiacutesico eacute ele
proacuteprio um limiar extinto ou esvaziado de qualquer transcendecircncia [fig 4]
[hellip] um gato um boi um catildeo uma osga um pombo um homem Natildeo haacute dissonacircncias
neste bocado de carne os animais todos rodeiam-no para serem baptizados Ou para se
certificarem do nome que hatildeo-de perder do nome que hatildeo-de ganhar A morte eacute um
crisma Um baptismo eu te dou o nome de carne E dela se faraacute a fome Ou o inequiacutevoco
de uma arma A metaacutefora eacute a grande felicidade dos que tecircm nome proacuteprio Dos que
podem ser chamados Mas carne Estaacute no fim da escala abaixo de rio por exemplo rio
qualquer que seja tem nascente foz margens Mas carne Eacute simplesmente um bocado O
informe Pode dizer-se ensanguentada Poreacutem esse sangue natildeo pertence agrave sua definiccedilatildeo
haacute uma carne sem sangue mas natildeo um rio sem nascente A carne eacute sempre um bocado E
estaacute tudo dito Ningueacutem perguntaraacute a quem a quecirc pertenceu esse bocado Eacute soacute uma coisa
morta Na verdade natildeo haacute carne viva A carne viva eacute sempre em carne-viva uma ferida
uma chaga nas pernas de uma crianccedila no cachaccedilo de um boi nas matildeos de um miseraacutevel
nunca na matildeo do senhor doutor do senhor engenheiro do senhor ministro de vossa
excelecircncia do senhor presidente do meu caro amigo uma ferida em carne-viva eis o
ldquooutrordquo que nojo (ibidem)
Fig 1 Fig 2
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de
abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se
delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali
sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na
pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que
nada tem a exprimir
Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia
de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima
instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como
signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um
diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo
cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto
impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de
criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia
do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber
impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste
como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico
amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete
ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa
carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da
sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne
e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo
Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da
Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de
Rembrandt
Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts
(2013-2015) de Anish Kapoor
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os
louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz
ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida
9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere
define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo
(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em
termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo
estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da
subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo
menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o
ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios
imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam
os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs
Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a
literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de
sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as
hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas
as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que
determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem
descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no
exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o
novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de
acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar
o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes
oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a
racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo
o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e
resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar
incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da
experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos
temposrdquo (idem 111)
Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo
vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim
aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA
pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria
mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta
rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do
pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever
Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Escrever natildeo ilumina escurece
Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute
Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda
(Nunes 2014 90)
Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece
como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua
impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute
um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a
esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-
se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas
palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e
intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim
por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a
potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida
Referecircncias bibliograacuteficas
Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999
Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad
Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001
Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997
Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003
Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda
Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010
ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em
httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)
Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo
Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019
Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui
Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009
Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983
Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986
Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993
Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio
DrsquoAacutegua 1995
Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999
Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005
Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011
Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013
Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014
Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016
Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a
Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b
Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018
Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
39 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Viver ningueacutem nos proiacutebe se o fizermos no interior das casas respeitando os vizinhos do
lugar Assento temos em qualquer revoluccedilatildeo se obliterarmos uma parte de noacutes Seres
truncados Ou tolerados apenas Seres proibidos de dizer Esquizofrenizados Seres que se
tornaratildeo uma ameaccedila puacuteblica Seres que desejam os nossos filhos que os conspurcam
capazes de todos os crimes Seres coitados nos momentos mais benignos Seres de antes
ladratildeo que maricas (Nunes 1983 105)
Nesta passagem de Sauromaquia os homossexuais satildeo o alvo predilecto de uma
natildeo-inscriccedilatildeo no real para que sem eles sob a perspectiva do opressor (a
heteronormatividade neste caso) a vida se assemelhe a uma continuidade fluida num
tempo sem memoacuteria sem negatividade (que eacute a marca da diferenccedila do que potencia o
encontro com o novo e o diferente o atrito mobilizador ou heuriacutestico sem o qual o humano se dissolve numa mesmidade opressiva) Mas eacute ao afundar-se no inominaacutevel da
dor que Rui Nunes procura de certa forma ldquosobreviver agrave dor no interior da proacutepria
dorrdquo segundo Eduardo Prado Coelho (1997 208) Pois
[hellip] na dor mais extrema aquilo que resta se alguma coisa resta eacute o corpo refuacutegio dos
sem-ningueacutem abrigados nele enrolados nele mesmo velho mesmo feio natildeo sempre soacute
agraves vezes mas a vida eacute soacute agraves vezes (Nunes 2018 53)
Rui Nunes natildeo torna o homossexual ou a mulher romena como figuras de
autoridade narrativa agrave volta das quais a acccedilatildeo se vai desnovelando numa seacuterie de
episoacutedios ou acidentes com ou sem catarse agrave vista Natildeo eacute a sua densidade psicoloacutegica
que eacute posta agrave prova nos enredamentos da intriga ou no virtuosismo retoacuterico do autor As personagens natildeo satildeo retratos ou metaacuteforas do que quer que seja mas incarnam o
expoente maacuteximo de uma dor inconvertiacutevel em palavras Uma dor uma solidatildeo um
terror atroz ndash modos de existecircncia que se manifestam num grito num choro desalmado
num bloqueio do corpo que emudecem a vocaccedilatildeo dialogante das palavras E eacute por isso
que a devastaccedilatildeo emocional de um drogado ou a anguacutestia de um narrador que engata um estranho na rua e depois o leva para casa ou que teme pela vida num WC puacuteblico
nunca satildeo o tema deste ou daquele livro nem procuram descrever experiecircncias de vida
que nos embaciem os olhos pela descompaixatildeo geral O excesso de uma dor natildeo se
compraz com descriccedilotildees ndash faacute-las explodir E a escrita comeccedila quando torna essa
explosatildeo na sua uacutenica modalidade de existecircncia eacute quando a dor natildeo conhece palavras que a digam servindo-se delas como um espelho diaacutefano que a literatura tem lugar
Surgem entatildeo os nomes proacuteprios os objectos dispostos numa sala as figuras
interpelaacuteveis que perguntam e respondem que se movem de um lugar para outro neste
ou naquele tempo Funcionam como efeitos de uma intimidade inacessiacutevel mas que
deixam lastro em forma de escrita A esse lastro agrave falta de melhor termo damos o nome
de literatura
cumpres a funccedilatildeo de ser personagem por isso te concedo a escassez de algumas linhas
natildeo te deixo desenvolver plenamente para que natildeo me esqueccedila de que eacutes fictiacutecia de que
sou capaz de interromper a tua maturaccedilatildeo adiar-te odiar-te espacejar mais o teu rosto
instalar-me na pupila tornada o sossego letal acompanhar a laacutegrima pensar-te o
sofrimento (Nunes 1986 49)
Hoje natildeo consigo recompor o teu rosto e se nitidamente te imagino natildeo eacutes bem tu mas
uma qualquer fotografia tua Hoje a tua fotografia apropriou-se de ti deve ser assim
que se comeccedila a morrer Quando agrave nossa volta um corpo desaparece nos sinais da sua
passagem (idem 2013 25)
7 Um corpo que desaparece nos sinais da sua passagem Poderaacute esta imagem ser
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
40 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
contiacutegua agrave daquele torso arcaico de Apolo (c 480-470 aC) que no princiacutepio do seacuteculo
numa ida ao Louvre despertara em Rilke uma visatildeo profusamente enigmaacutetica num desvio pela eacutecfrase Sem cabeccedila perdidos os braccedilos e as pernas o resto mutilado de
uma unidade perdida comunica ao poeta um dos mais conhecidos e insoacutelitos remates da
poesia moderna do Ocidente ldquoTens de mudar de vidardquo (Du muszligt dein Leben aumlndern)
Natildeo conhecemos a sua cabeccedila inusitada
onde luziam maduras as pupilas Mas inteiro
o seu torso ainda arde como o candeeiro
que daacute ao seu olhar a luz apenas degradada
persistecircncia e brilho Pois natildeo sendo assim natildeo
poderia a onda do peito cegar-te nem no leve
torcer das ancas haver o sorriso que corre
para aquele centro da procriaccedilatildeo
Assim natildeo sendo seria disforme e curta a pedra
caiacuteda da transparente travessa dos ombros
e natildeo cintilaria como pele de fera
e natildeo explodiria por todos os lados e pontos
como uma estrela pois natildeo haacute ali lugar
donde ele te natildeo veja Tens de mudar a tua vida
(Rilke apud Sloterdijk 2018 35)
Como assim mudar de vida De onde vem este apelo tatildeo suacutebito no imperativo
quando nada nos treze versos anteriores fazia prever este inesperado alccedilapatildeo no fim do
soneto Quem nos fala do sem-fundo numinoso de uma pedra esculpida Que nos
revela a sensibilidade de Rilke ao pocircr no artefacto na coisa inerte esse mutismo eloquente ndash e sobretudo exortativo pois nos obriga a repensar a nossa vida a duvidar
de que estamos no caminho certo
Segundo a leitura que Peter Sloterdijk fez do poema jaacute natildeo eacute o corpo total que
necessariamente inspira uma essecircncia de verdade uma autoridade excepcional
impondo-se aos olhos alheios como um modelo de beleza fiacutesica ndash tal como os corpos
musculados da Antiguidade esses arqueacutetipos da perfeiccedilatildeo que serviriam de incentivo a que os sujeitos rivalizassem com os deuses pelo poacutedio da gloacuteria eterna No lugar dessa
coesatildeo orgacircnica e triunfante caberia agora a um torso mostrar-se como a ruiacutena da
eternidade a eternidade desfeita nos sinais da sua passagem ldquoA intensidade [do
fragmento] bate a perfeiccedilatildeo normalizada [do corpo inteiramente visiacutevel]rdquo (idem 36)
Qual peccedila votada ao abandono pelo desbaste do tempo as suas partes ausentes jamais restituiacuteveis provocam a consciecircncia adensam-lhe a inquietude existencial somos o que
somos sobretudo porque somos o que nos falta Eacute essa falta que desperta a sensaccedilatildeo de
nos sentirmos acossados pela presenccedila rumorejante dos objectos que transmitem uma
ldquoenergia-mensagemrdquo (idem 34) As coisas olham-nos intui Rilke Haacute uma cabeccedila
ausente naquele torso que emite um olhar que vem do fundo do tempo E eacute mais veemente esse olhar que nos lanccedila do que a exiacutegua soberania vigilante que lhe
conseguimos devolver
Cem anos apoacutes o sinal que Rilke nos fez compreendemos sem duacutevida esta indicaccedilatildeo
melhor ainda do que os seus contemporacircneos pois a nossa capacidade de perceccedilatildeo mais
do que a de nenhuma outra geraccedilatildeo anterior agrave nossa estaacute anestesiada e foi saqueada pela
conversa fiada dos corpos sem maacutecula (idem 36)
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
41 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Tal vez nos possamos apropriar desta qualidade da coisa ainda para mais
desconjuntada para reler a escrita de Rui Nunes agrave luz dessa enigmaticidade do fragmento nos antiacutepodas dos ldquocorpos sem maacuteculardquo da contemporaneidade Que corpos
satildeo estes Incarnam o triunfo da vida nua satildeo os apoacutelogos da wellness que medem
analisam e quantificam os seus vaacuterios desempenhos sob pressatildeo de terem a sauacutede em
permanente performance Entregam-se sem reserva agrave imensa orgia digital cuja coacccedilatildeo
da transparecircncia ndash a vida exposta nos social media como prova de que aconteceu ndash os esvazia de qualquer risco sombra vacilaccedilatildeo ou atrito para que esplendam enquanto
puras superfiacutecies do consumo na sociedade capitalista e no inferno da felicidade
permanente Corpos de uma sauacutede totalitaacuteria ficam refeacutens de todas as comodidades
materiais e incapazes de imaginar um futuro sem elas estatildeo agrave mercecirc de uma ldquohipocondria digitalrdquo (Han 2020 26) ndash por isso recusam-se a tolerar a dor e o
envelhecimento evitam qualquer experiecircncia que possa ameaccedilar o cerco paliativo com
que se vedam ao inesperado agrave contingecircncia agrave absoluta alteridade do outro (que
constitui sempre uma ameaccedila em potecircncia estrangeiro inimigo terrorista fonte de
contaacutegiohellip) Satildeo corpos com medo de tudo ndash ateacute de si proacuteprios
Se tais corpos fossem plasmaacuteveis num determinado comportamento de escrita numa literatura a condizer esta teria que ser a denegaccedilatildeo manifesta daquele medo
seria entatildeo uma escrita cobarde uma escrita aliteratada que se entreteacutem a ldquocontar
histoacuteriasrdquo e desse modo respeitando sigilosamente a liacutengua ndash ao inveacutes de manter com a
liacutengua uma relaccedilatildeo de profunda desconfianccedila com vista a desarmar e desarticular o seu
poder Por isso
[hellip] o meu corpo sobrevive na desarmonia eacute um corpo contra o olhar de Deus contra
todas as ditaduras sem histoacuteria natildeo sou capaz de histoacuterias de me internar pelas suas ruas
previsiacuteveis e mortas por isso soacute consigo viver o presente e o seu terror cheio de
exaltaccedilatildeo e assim quero continuar [hellip] (Nunes 1999 114)
Com os seus esboccedilos de vidas esta escrita rompe com as sequecircncias
contemporacircneas de corpos lisos e homogeacuteneos ldquosem maacuteculardquo segundo Sloterdijk Mostra-nos a decadecircncia fiacutesica sem qualquer pudor ou preconceito natildeo porque se
queira rebelar contra a vergonha social que coage essa decadecircncia a esconder-se mas
porque eacute na decadecircncia que um corpo vivo se solidariza com a presenccedila da morte a
ruiacutena comum a todas as coisas Eacute por via da dor que eacute restituiacutedo ao corpo a sua
realidade por um efeito de choque E regressamos assim agrave decomposiccedilatildeo de um corpo pelos gestos que faz ao seu apodrecimento insaciaacutevel ateacute ser reduzido a um naco
insensato de carne como se lecirc em O Anjo Camponecircs
Abre a torneira Deixa que o jacto de aacutegua lhe bata nas matildeos se espalhe e lhe salpique o
pijama sente a forccedila da aacutegua a bater-lhe nas matildeos ensaboa-as gesto automaacutetico que o
deixa livre para quecirc o corpo eacute um animal que regressa insidioso este eacute o meu corpo diz
e sorri empobrece e regressa [hellip] as matildeos estremecem semiabertas no rebordo do
lavatoacuterio uma sobre a outra jaacute natildeo duas matildeos mas um bocado de carne um frio
disforme uma humidade disforme natildeo haacute dedos nem palmas nem pele a separar uma
matildeo da outra haacute aquele bocado de carne no rebordo do lavatoacuterio [hellip] (idem 2020 48)
Um pedaccedilo de carne um torso escultoacuterico De novo o bocado o despojo a ruiacutena
Pelos interstiacutecios desta escrita reacende-se o iacutempeto obscuro de uma voz imaterial que
confere agraves coisas residuais aos gestos mais comuns uma intensa carga dramaacutetica Note-
se a encenaccedilatildeo criacutestica do dictum ldquoeste eacute o meu corpordquo na passagem acima transcrita
sem o milagre da transubstanciaccedilatildeo este corpo sabe-se reconduzido tatildeo-soacute ao milagre precaacuterio da imanecircncia O corpo eacute uma vanitas em movimento contiacutenuo ateacute agrave sua
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
42 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
erosatildeo Pelo caminho como fogos-faacutetuos extingue-se a iacutenfima solidez antropoloacutegica
que a identidade o eu ou o self poderiam salvaguardar como derradeira imagem do humano agora que essa imagem se nulifica na ldquoviolecircncia banal de um bocado de carnerdquo
ndash a carne que jaacute em Suiacutete e Fuacuteria livro anterior a O Anjo Camponecircs eacute apresentada
como o elo irredutiacutevel que une qualquer ldquoanoacutenimo do que foi vivordquo (Nunes 2018 57)
Vale a pena a citaccedilatildeo inteira pelo que nela se afirma como uma extraordinaacuteria e natildeo
menos terriacutevel legenda verbal do que satildeo os corpos escorchados dos bois maneiristas [fig 3] ou as variaccedilotildees da pele esfolada e da carne viva de Maacutersias por exemplo na
pintura de Francis Bacon e Egon Schiele (que natildeo por acaso figuram nas capas de Que
sinos dobram por aqueles que morrem como gado e Catildees respectivamente) [fig 1 e
fig 2] ou ainda cumprindo-se o movimento de zoom deste olhar-escrita ateacute ao horror absurdo do pormenor ampliado a brutalidade evidente da carne nos trabalhos de Anish
Kapoor crus manifestos de que o humano uacuteltimo reduto de um limiar metafiacutesico eacute ele
proacuteprio um limiar extinto ou esvaziado de qualquer transcendecircncia [fig 4]
[hellip] um gato um boi um catildeo uma osga um pombo um homem Natildeo haacute dissonacircncias
neste bocado de carne os animais todos rodeiam-no para serem baptizados Ou para se
certificarem do nome que hatildeo-de perder do nome que hatildeo-de ganhar A morte eacute um
crisma Um baptismo eu te dou o nome de carne E dela se faraacute a fome Ou o inequiacutevoco
de uma arma A metaacutefora eacute a grande felicidade dos que tecircm nome proacuteprio Dos que
podem ser chamados Mas carne Estaacute no fim da escala abaixo de rio por exemplo rio
qualquer que seja tem nascente foz margens Mas carne Eacute simplesmente um bocado O
informe Pode dizer-se ensanguentada Poreacutem esse sangue natildeo pertence agrave sua definiccedilatildeo
haacute uma carne sem sangue mas natildeo um rio sem nascente A carne eacute sempre um bocado E
estaacute tudo dito Ningueacutem perguntaraacute a quem a quecirc pertenceu esse bocado Eacute soacute uma coisa
morta Na verdade natildeo haacute carne viva A carne viva eacute sempre em carne-viva uma ferida
uma chaga nas pernas de uma crianccedila no cachaccedilo de um boi nas matildeos de um miseraacutevel
nunca na matildeo do senhor doutor do senhor engenheiro do senhor ministro de vossa
excelecircncia do senhor presidente do meu caro amigo uma ferida em carne-viva eis o
ldquooutrordquo que nojo (ibidem)
Fig 1 Fig 2
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de
abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se
delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali
sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na
pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que
nada tem a exprimir
Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia
de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima
instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como
signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um
diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo
cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto
impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de
criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia
do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber
impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste
como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico
amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete
ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa
carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da
sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne
e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo
Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da
Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de
Rembrandt
Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts
(2013-2015) de Anish Kapoor
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os
louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz
ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida
9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere
define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo
(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em
termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo
estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da
subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo
menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o
ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios
imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam
os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs
Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a
literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de
sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as
hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas
as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que
determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem
descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no
exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o
novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de
acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar
o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes
oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a
racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo
o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e
resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar
incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da
experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos
temposrdquo (idem 111)
Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo
vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim
aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA
pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria
mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta
rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do
pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever
Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Escrever natildeo ilumina escurece
Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute
Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda
(Nunes 2014 90)
Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece
como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua
impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute
um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a
esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-
se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas
palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e
intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim
por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a
potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida
Referecircncias bibliograacuteficas
Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999
Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad
Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001
Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997
Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003
Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda
Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010
ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em
httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)
Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo
Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019
Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui
Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009
Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983
Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986
Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993
Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio
DrsquoAacutegua 1995
Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999
Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005
Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011
Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013
Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014
Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016
Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a
Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b
Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018
Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
40 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
contiacutegua agrave daquele torso arcaico de Apolo (c 480-470 aC) que no princiacutepio do seacuteculo
numa ida ao Louvre despertara em Rilke uma visatildeo profusamente enigmaacutetica num desvio pela eacutecfrase Sem cabeccedila perdidos os braccedilos e as pernas o resto mutilado de
uma unidade perdida comunica ao poeta um dos mais conhecidos e insoacutelitos remates da
poesia moderna do Ocidente ldquoTens de mudar de vidardquo (Du muszligt dein Leben aumlndern)
Natildeo conhecemos a sua cabeccedila inusitada
onde luziam maduras as pupilas Mas inteiro
o seu torso ainda arde como o candeeiro
que daacute ao seu olhar a luz apenas degradada
persistecircncia e brilho Pois natildeo sendo assim natildeo
poderia a onda do peito cegar-te nem no leve
torcer das ancas haver o sorriso que corre
para aquele centro da procriaccedilatildeo
Assim natildeo sendo seria disforme e curta a pedra
caiacuteda da transparente travessa dos ombros
e natildeo cintilaria como pele de fera
e natildeo explodiria por todos os lados e pontos
como uma estrela pois natildeo haacute ali lugar
donde ele te natildeo veja Tens de mudar a tua vida
(Rilke apud Sloterdijk 2018 35)
Como assim mudar de vida De onde vem este apelo tatildeo suacutebito no imperativo
quando nada nos treze versos anteriores fazia prever este inesperado alccedilapatildeo no fim do
soneto Quem nos fala do sem-fundo numinoso de uma pedra esculpida Que nos
revela a sensibilidade de Rilke ao pocircr no artefacto na coisa inerte esse mutismo eloquente ndash e sobretudo exortativo pois nos obriga a repensar a nossa vida a duvidar
de que estamos no caminho certo
Segundo a leitura que Peter Sloterdijk fez do poema jaacute natildeo eacute o corpo total que
necessariamente inspira uma essecircncia de verdade uma autoridade excepcional
impondo-se aos olhos alheios como um modelo de beleza fiacutesica ndash tal como os corpos
musculados da Antiguidade esses arqueacutetipos da perfeiccedilatildeo que serviriam de incentivo a que os sujeitos rivalizassem com os deuses pelo poacutedio da gloacuteria eterna No lugar dessa
coesatildeo orgacircnica e triunfante caberia agora a um torso mostrar-se como a ruiacutena da
eternidade a eternidade desfeita nos sinais da sua passagem ldquoA intensidade [do
fragmento] bate a perfeiccedilatildeo normalizada [do corpo inteiramente visiacutevel]rdquo (idem 36)
Qual peccedila votada ao abandono pelo desbaste do tempo as suas partes ausentes jamais restituiacuteveis provocam a consciecircncia adensam-lhe a inquietude existencial somos o que
somos sobretudo porque somos o que nos falta Eacute essa falta que desperta a sensaccedilatildeo de
nos sentirmos acossados pela presenccedila rumorejante dos objectos que transmitem uma
ldquoenergia-mensagemrdquo (idem 34) As coisas olham-nos intui Rilke Haacute uma cabeccedila
ausente naquele torso que emite um olhar que vem do fundo do tempo E eacute mais veemente esse olhar que nos lanccedila do que a exiacutegua soberania vigilante que lhe
conseguimos devolver
Cem anos apoacutes o sinal que Rilke nos fez compreendemos sem duacutevida esta indicaccedilatildeo
melhor ainda do que os seus contemporacircneos pois a nossa capacidade de perceccedilatildeo mais
do que a de nenhuma outra geraccedilatildeo anterior agrave nossa estaacute anestesiada e foi saqueada pela
conversa fiada dos corpos sem maacutecula (idem 36)
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
41 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Tal vez nos possamos apropriar desta qualidade da coisa ainda para mais
desconjuntada para reler a escrita de Rui Nunes agrave luz dessa enigmaticidade do fragmento nos antiacutepodas dos ldquocorpos sem maacuteculardquo da contemporaneidade Que corpos
satildeo estes Incarnam o triunfo da vida nua satildeo os apoacutelogos da wellness que medem
analisam e quantificam os seus vaacuterios desempenhos sob pressatildeo de terem a sauacutede em
permanente performance Entregam-se sem reserva agrave imensa orgia digital cuja coacccedilatildeo
da transparecircncia ndash a vida exposta nos social media como prova de que aconteceu ndash os esvazia de qualquer risco sombra vacilaccedilatildeo ou atrito para que esplendam enquanto
puras superfiacutecies do consumo na sociedade capitalista e no inferno da felicidade
permanente Corpos de uma sauacutede totalitaacuteria ficam refeacutens de todas as comodidades
materiais e incapazes de imaginar um futuro sem elas estatildeo agrave mercecirc de uma ldquohipocondria digitalrdquo (Han 2020 26) ndash por isso recusam-se a tolerar a dor e o
envelhecimento evitam qualquer experiecircncia que possa ameaccedilar o cerco paliativo com
que se vedam ao inesperado agrave contingecircncia agrave absoluta alteridade do outro (que
constitui sempre uma ameaccedila em potecircncia estrangeiro inimigo terrorista fonte de
contaacutegiohellip) Satildeo corpos com medo de tudo ndash ateacute de si proacuteprios
Se tais corpos fossem plasmaacuteveis num determinado comportamento de escrita numa literatura a condizer esta teria que ser a denegaccedilatildeo manifesta daquele medo
seria entatildeo uma escrita cobarde uma escrita aliteratada que se entreteacutem a ldquocontar
histoacuteriasrdquo e desse modo respeitando sigilosamente a liacutengua ndash ao inveacutes de manter com a
liacutengua uma relaccedilatildeo de profunda desconfianccedila com vista a desarmar e desarticular o seu
poder Por isso
[hellip] o meu corpo sobrevive na desarmonia eacute um corpo contra o olhar de Deus contra
todas as ditaduras sem histoacuteria natildeo sou capaz de histoacuterias de me internar pelas suas ruas
previsiacuteveis e mortas por isso soacute consigo viver o presente e o seu terror cheio de
exaltaccedilatildeo e assim quero continuar [hellip] (Nunes 1999 114)
Com os seus esboccedilos de vidas esta escrita rompe com as sequecircncias
contemporacircneas de corpos lisos e homogeacuteneos ldquosem maacuteculardquo segundo Sloterdijk Mostra-nos a decadecircncia fiacutesica sem qualquer pudor ou preconceito natildeo porque se
queira rebelar contra a vergonha social que coage essa decadecircncia a esconder-se mas
porque eacute na decadecircncia que um corpo vivo se solidariza com a presenccedila da morte a
ruiacutena comum a todas as coisas Eacute por via da dor que eacute restituiacutedo ao corpo a sua
realidade por um efeito de choque E regressamos assim agrave decomposiccedilatildeo de um corpo pelos gestos que faz ao seu apodrecimento insaciaacutevel ateacute ser reduzido a um naco
insensato de carne como se lecirc em O Anjo Camponecircs
Abre a torneira Deixa que o jacto de aacutegua lhe bata nas matildeos se espalhe e lhe salpique o
pijama sente a forccedila da aacutegua a bater-lhe nas matildeos ensaboa-as gesto automaacutetico que o
deixa livre para quecirc o corpo eacute um animal que regressa insidioso este eacute o meu corpo diz
e sorri empobrece e regressa [hellip] as matildeos estremecem semiabertas no rebordo do
lavatoacuterio uma sobre a outra jaacute natildeo duas matildeos mas um bocado de carne um frio
disforme uma humidade disforme natildeo haacute dedos nem palmas nem pele a separar uma
matildeo da outra haacute aquele bocado de carne no rebordo do lavatoacuterio [hellip] (idem 2020 48)
Um pedaccedilo de carne um torso escultoacuterico De novo o bocado o despojo a ruiacutena
Pelos interstiacutecios desta escrita reacende-se o iacutempeto obscuro de uma voz imaterial que
confere agraves coisas residuais aos gestos mais comuns uma intensa carga dramaacutetica Note-
se a encenaccedilatildeo criacutestica do dictum ldquoeste eacute o meu corpordquo na passagem acima transcrita
sem o milagre da transubstanciaccedilatildeo este corpo sabe-se reconduzido tatildeo-soacute ao milagre precaacuterio da imanecircncia O corpo eacute uma vanitas em movimento contiacutenuo ateacute agrave sua
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
42 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
erosatildeo Pelo caminho como fogos-faacutetuos extingue-se a iacutenfima solidez antropoloacutegica
que a identidade o eu ou o self poderiam salvaguardar como derradeira imagem do humano agora que essa imagem se nulifica na ldquoviolecircncia banal de um bocado de carnerdquo
ndash a carne que jaacute em Suiacutete e Fuacuteria livro anterior a O Anjo Camponecircs eacute apresentada
como o elo irredutiacutevel que une qualquer ldquoanoacutenimo do que foi vivordquo (Nunes 2018 57)
Vale a pena a citaccedilatildeo inteira pelo que nela se afirma como uma extraordinaacuteria e natildeo
menos terriacutevel legenda verbal do que satildeo os corpos escorchados dos bois maneiristas [fig 3] ou as variaccedilotildees da pele esfolada e da carne viva de Maacutersias por exemplo na
pintura de Francis Bacon e Egon Schiele (que natildeo por acaso figuram nas capas de Que
sinos dobram por aqueles que morrem como gado e Catildees respectivamente) [fig 1 e
fig 2] ou ainda cumprindo-se o movimento de zoom deste olhar-escrita ateacute ao horror absurdo do pormenor ampliado a brutalidade evidente da carne nos trabalhos de Anish
Kapoor crus manifestos de que o humano uacuteltimo reduto de um limiar metafiacutesico eacute ele
proacuteprio um limiar extinto ou esvaziado de qualquer transcendecircncia [fig 4]
[hellip] um gato um boi um catildeo uma osga um pombo um homem Natildeo haacute dissonacircncias
neste bocado de carne os animais todos rodeiam-no para serem baptizados Ou para se
certificarem do nome que hatildeo-de perder do nome que hatildeo-de ganhar A morte eacute um
crisma Um baptismo eu te dou o nome de carne E dela se faraacute a fome Ou o inequiacutevoco
de uma arma A metaacutefora eacute a grande felicidade dos que tecircm nome proacuteprio Dos que
podem ser chamados Mas carne Estaacute no fim da escala abaixo de rio por exemplo rio
qualquer que seja tem nascente foz margens Mas carne Eacute simplesmente um bocado O
informe Pode dizer-se ensanguentada Poreacutem esse sangue natildeo pertence agrave sua definiccedilatildeo
haacute uma carne sem sangue mas natildeo um rio sem nascente A carne eacute sempre um bocado E
estaacute tudo dito Ningueacutem perguntaraacute a quem a quecirc pertenceu esse bocado Eacute soacute uma coisa
morta Na verdade natildeo haacute carne viva A carne viva eacute sempre em carne-viva uma ferida
uma chaga nas pernas de uma crianccedila no cachaccedilo de um boi nas matildeos de um miseraacutevel
nunca na matildeo do senhor doutor do senhor engenheiro do senhor ministro de vossa
excelecircncia do senhor presidente do meu caro amigo uma ferida em carne-viva eis o
ldquooutrordquo que nojo (ibidem)
Fig 1 Fig 2
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de
abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se
delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali
sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na
pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que
nada tem a exprimir
Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia
de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima
instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como
signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um
diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo
cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto
impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de
criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia
do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber
impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste
como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico
amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete
ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa
carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da
sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne
e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo
Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da
Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de
Rembrandt
Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts
(2013-2015) de Anish Kapoor
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os
louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz
ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida
9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere
define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo
(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em
termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo
estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da
subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo
menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o
ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios
imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam
os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs
Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a
literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de
sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as
hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas
as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que
determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem
descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no
exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o
novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de
acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar
o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes
oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a
racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo
o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e
resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar
incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da
experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos
temposrdquo (idem 111)
Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo
vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim
aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA
pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria
mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta
rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do
pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever
Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Escrever natildeo ilumina escurece
Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute
Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda
(Nunes 2014 90)
Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece
como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua
impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute
um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a
esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-
se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas
palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e
intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim
por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a
potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida
Referecircncias bibliograacuteficas
Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999
Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad
Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001
Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997
Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003
Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda
Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010
ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em
httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)
Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo
Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019
Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui
Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009
Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983
Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986
Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993
Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio
DrsquoAacutegua 1995
Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999
Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005
Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011
Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013
Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014
Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016
Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a
Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b
Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018
Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
41 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Tal vez nos possamos apropriar desta qualidade da coisa ainda para mais
desconjuntada para reler a escrita de Rui Nunes agrave luz dessa enigmaticidade do fragmento nos antiacutepodas dos ldquocorpos sem maacuteculardquo da contemporaneidade Que corpos
satildeo estes Incarnam o triunfo da vida nua satildeo os apoacutelogos da wellness que medem
analisam e quantificam os seus vaacuterios desempenhos sob pressatildeo de terem a sauacutede em
permanente performance Entregam-se sem reserva agrave imensa orgia digital cuja coacccedilatildeo
da transparecircncia ndash a vida exposta nos social media como prova de que aconteceu ndash os esvazia de qualquer risco sombra vacilaccedilatildeo ou atrito para que esplendam enquanto
puras superfiacutecies do consumo na sociedade capitalista e no inferno da felicidade
permanente Corpos de uma sauacutede totalitaacuteria ficam refeacutens de todas as comodidades
materiais e incapazes de imaginar um futuro sem elas estatildeo agrave mercecirc de uma ldquohipocondria digitalrdquo (Han 2020 26) ndash por isso recusam-se a tolerar a dor e o
envelhecimento evitam qualquer experiecircncia que possa ameaccedilar o cerco paliativo com
que se vedam ao inesperado agrave contingecircncia agrave absoluta alteridade do outro (que
constitui sempre uma ameaccedila em potecircncia estrangeiro inimigo terrorista fonte de
contaacutegiohellip) Satildeo corpos com medo de tudo ndash ateacute de si proacuteprios
Se tais corpos fossem plasmaacuteveis num determinado comportamento de escrita numa literatura a condizer esta teria que ser a denegaccedilatildeo manifesta daquele medo
seria entatildeo uma escrita cobarde uma escrita aliteratada que se entreteacutem a ldquocontar
histoacuteriasrdquo e desse modo respeitando sigilosamente a liacutengua ndash ao inveacutes de manter com a
liacutengua uma relaccedilatildeo de profunda desconfianccedila com vista a desarmar e desarticular o seu
poder Por isso
[hellip] o meu corpo sobrevive na desarmonia eacute um corpo contra o olhar de Deus contra
todas as ditaduras sem histoacuteria natildeo sou capaz de histoacuterias de me internar pelas suas ruas
previsiacuteveis e mortas por isso soacute consigo viver o presente e o seu terror cheio de
exaltaccedilatildeo e assim quero continuar [hellip] (Nunes 1999 114)
Com os seus esboccedilos de vidas esta escrita rompe com as sequecircncias
contemporacircneas de corpos lisos e homogeacuteneos ldquosem maacuteculardquo segundo Sloterdijk Mostra-nos a decadecircncia fiacutesica sem qualquer pudor ou preconceito natildeo porque se
queira rebelar contra a vergonha social que coage essa decadecircncia a esconder-se mas
porque eacute na decadecircncia que um corpo vivo se solidariza com a presenccedila da morte a
ruiacutena comum a todas as coisas Eacute por via da dor que eacute restituiacutedo ao corpo a sua
realidade por um efeito de choque E regressamos assim agrave decomposiccedilatildeo de um corpo pelos gestos que faz ao seu apodrecimento insaciaacutevel ateacute ser reduzido a um naco
insensato de carne como se lecirc em O Anjo Camponecircs
Abre a torneira Deixa que o jacto de aacutegua lhe bata nas matildeos se espalhe e lhe salpique o
pijama sente a forccedila da aacutegua a bater-lhe nas matildeos ensaboa-as gesto automaacutetico que o
deixa livre para quecirc o corpo eacute um animal que regressa insidioso este eacute o meu corpo diz
e sorri empobrece e regressa [hellip] as matildeos estremecem semiabertas no rebordo do
lavatoacuterio uma sobre a outra jaacute natildeo duas matildeos mas um bocado de carne um frio
disforme uma humidade disforme natildeo haacute dedos nem palmas nem pele a separar uma
matildeo da outra haacute aquele bocado de carne no rebordo do lavatoacuterio [hellip] (idem 2020 48)
Um pedaccedilo de carne um torso escultoacuterico De novo o bocado o despojo a ruiacutena
Pelos interstiacutecios desta escrita reacende-se o iacutempeto obscuro de uma voz imaterial que
confere agraves coisas residuais aos gestos mais comuns uma intensa carga dramaacutetica Note-
se a encenaccedilatildeo criacutestica do dictum ldquoeste eacute o meu corpordquo na passagem acima transcrita
sem o milagre da transubstanciaccedilatildeo este corpo sabe-se reconduzido tatildeo-soacute ao milagre precaacuterio da imanecircncia O corpo eacute uma vanitas em movimento contiacutenuo ateacute agrave sua
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
42 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
erosatildeo Pelo caminho como fogos-faacutetuos extingue-se a iacutenfima solidez antropoloacutegica
que a identidade o eu ou o self poderiam salvaguardar como derradeira imagem do humano agora que essa imagem se nulifica na ldquoviolecircncia banal de um bocado de carnerdquo
ndash a carne que jaacute em Suiacutete e Fuacuteria livro anterior a O Anjo Camponecircs eacute apresentada
como o elo irredutiacutevel que une qualquer ldquoanoacutenimo do que foi vivordquo (Nunes 2018 57)
Vale a pena a citaccedilatildeo inteira pelo que nela se afirma como uma extraordinaacuteria e natildeo
menos terriacutevel legenda verbal do que satildeo os corpos escorchados dos bois maneiristas [fig 3] ou as variaccedilotildees da pele esfolada e da carne viva de Maacutersias por exemplo na
pintura de Francis Bacon e Egon Schiele (que natildeo por acaso figuram nas capas de Que
sinos dobram por aqueles que morrem como gado e Catildees respectivamente) [fig 1 e
fig 2] ou ainda cumprindo-se o movimento de zoom deste olhar-escrita ateacute ao horror absurdo do pormenor ampliado a brutalidade evidente da carne nos trabalhos de Anish
Kapoor crus manifestos de que o humano uacuteltimo reduto de um limiar metafiacutesico eacute ele
proacuteprio um limiar extinto ou esvaziado de qualquer transcendecircncia [fig 4]
[hellip] um gato um boi um catildeo uma osga um pombo um homem Natildeo haacute dissonacircncias
neste bocado de carne os animais todos rodeiam-no para serem baptizados Ou para se
certificarem do nome que hatildeo-de perder do nome que hatildeo-de ganhar A morte eacute um
crisma Um baptismo eu te dou o nome de carne E dela se faraacute a fome Ou o inequiacutevoco
de uma arma A metaacutefora eacute a grande felicidade dos que tecircm nome proacuteprio Dos que
podem ser chamados Mas carne Estaacute no fim da escala abaixo de rio por exemplo rio
qualquer que seja tem nascente foz margens Mas carne Eacute simplesmente um bocado O
informe Pode dizer-se ensanguentada Poreacutem esse sangue natildeo pertence agrave sua definiccedilatildeo
haacute uma carne sem sangue mas natildeo um rio sem nascente A carne eacute sempre um bocado E
estaacute tudo dito Ningueacutem perguntaraacute a quem a quecirc pertenceu esse bocado Eacute soacute uma coisa
morta Na verdade natildeo haacute carne viva A carne viva eacute sempre em carne-viva uma ferida
uma chaga nas pernas de uma crianccedila no cachaccedilo de um boi nas matildeos de um miseraacutevel
nunca na matildeo do senhor doutor do senhor engenheiro do senhor ministro de vossa
excelecircncia do senhor presidente do meu caro amigo uma ferida em carne-viva eis o
ldquooutrordquo que nojo (ibidem)
Fig 1 Fig 2
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de
abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se
delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali
sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na
pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que
nada tem a exprimir
Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia
de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima
instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como
signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um
diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo
cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto
impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de
criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia
do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber
impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste
como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico
amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete
ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa
carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da
sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne
e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo
Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da
Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de
Rembrandt
Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts
(2013-2015) de Anish Kapoor
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os
louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz
ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida
9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere
define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo
(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em
termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo
estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da
subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo
menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o
ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios
imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam
os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs
Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a
literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de
sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as
hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas
as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que
determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem
descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no
exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o
novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de
acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar
o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes
oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a
racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo
o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e
resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar
incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da
experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos
temposrdquo (idem 111)
Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo
vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim
aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA
pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria
mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta
rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do
pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever
Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Escrever natildeo ilumina escurece
Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute
Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda
(Nunes 2014 90)
Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece
como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua
impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute
um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a
esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-
se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas
palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e
intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim
por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a
potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida
Referecircncias bibliograacuteficas
Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999
Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad
Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001
Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997
Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003
Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda
Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010
ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em
httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)
Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo
Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019
Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui
Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009
Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983
Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986
Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993
Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio
DrsquoAacutegua 1995
Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999
Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005
Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011
Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013
Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014
Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016
Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a
Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b
Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018
Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
42 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
erosatildeo Pelo caminho como fogos-faacutetuos extingue-se a iacutenfima solidez antropoloacutegica
que a identidade o eu ou o self poderiam salvaguardar como derradeira imagem do humano agora que essa imagem se nulifica na ldquoviolecircncia banal de um bocado de carnerdquo
ndash a carne que jaacute em Suiacutete e Fuacuteria livro anterior a O Anjo Camponecircs eacute apresentada
como o elo irredutiacutevel que une qualquer ldquoanoacutenimo do que foi vivordquo (Nunes 2018 57)
Vale a pena a citaccedilatildeo inteira pelo que nela se afirma como uma extraordinaacuteria e natildeo
menos terriacutevel legenda verbal do que satildeo os corpos escorchados dos bois maneiristas [fig 3] ou as variaccedilotildees da pele esfolada e da carne viva de Maacutersias por exemplo na
pintura de Francis Bacon e Egon Schiele (que natildeo por acaso figuram nas capas de Que
sinos dobram por aqueles que morrem como gado e Catildees respectivamente) [fig 1 e
fig 2] ou ainda cumprindo-se o movimento de zoom deste olhar-escrita ateacute ao horror absurdo do pormenor ampliado a brutalidade evidente da carne nos trabalhos de Anish
Kapoor crus manifestos de que o humano uacuteltimo reduto de um limiar metafiacutesico eacute ele
proacuteprio um limiar extinto ou esvaziado de qualquer transcendecircncia [fig 4]
[hellip] um gato um boi um catildeo uma osga um pombo um homem Natildeo haacute dissonacircncias
neste bocado de carne os animais todos rodeiam-no para serem baptizados Ou para se
certificarem do nome que hatildeo-de perder do nome que hatildeo-de ganhar A morte eacute um
crisma Um baptismo eu te dou o nome de carne E dela se faraacute a fome Ou o inequiacutevoco
de uma arma A metaacutefora eacute a grande felicidade dos que tecircm nome proacuteprio Dos que
podem ser chamados Mas carne Estaacute no fim da escala abaixo de rio por exemplo rio
qualquer que seja tem nascente foz margens Mas carne Eacute simplesmente um bocado O
informe Pode dizer-se ensanguentada Poreacutem esse sangue natildeo pertence agrave sua definiccedilatildeo
haacute uma carne sem sangue mas natildeo um rio sem nascente A carne eacute sempre um bocado E
estaacute tudo dito Ningueacutem perguntaraacute a quem a quecirc pertenceu esse bocado Eacute soacute uma coisa
morta Na verdade natildeo haacute carne viva A carne viva eacute sempre em carne-viva uma ferida
uma chaga nas pernas de uma crianccedila no cachaccedilo de um boi nas matildeos de um miseraacutevel
nunca na matildeo do senhor doutor do senhor engenheiro do senhor ministro de vossa
excelecircncia do senhor presidente do meu caro amigo uma ferida em carne-viva eis o
ldquooutrordquo que nojo (ibidem)
Fig 1 Fig 2
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de
abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se
delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali
sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na
pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que
nada tem a exprimir
Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia
de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima
instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como
signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um
diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo
cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto
impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de
criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia
do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber
impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste
como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico
amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete
ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa
carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da
sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne
e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo
Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da
Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de
Rembrandt
Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts
(2013-2015) de Anish Kapoor
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os
louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz
ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida
9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere
define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo
(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em
termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo
estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da
subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo
menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o
ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios
imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam
os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs
Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a
literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de
sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as
hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas
as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que
determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem
descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no
exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o
novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de
acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar
o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes
oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a
racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo
o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e
resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar
incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da
experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos
temposrdquo (idem 111)
Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo
vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim
aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA
pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria
mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta
rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do
pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever
Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Escrever natildeo ilumina escurece
Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute
Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda
(Nunes 2014 90)
Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece
como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua
impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute
um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a
esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-
se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas
palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e
intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim
por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a
potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida
Referecircncias bibliograacuteficas
Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999
Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad
Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001
Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997
Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003
Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda
Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010
ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em
httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)
Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo
Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019
Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui
Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009
Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983
Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986
Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993
Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio
DrsquoAacutegua 1995
Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999
Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005
Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011
Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013
Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014
Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016
Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a
Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b
Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018
Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de
abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se
delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali
sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na
pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que
nada tem a exprimir
Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia
de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima
instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como
signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um
diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo
cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto
impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de
criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia
do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber
impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste
como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico
amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete
ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa
carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da
sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne
e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo
Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da
Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de
Rembrandt
Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts
(2013-2015) de Anish Kapoor
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os
louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz
ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida
9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere
define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo
(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em
termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo
estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da
subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo
menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o
ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios
imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam
os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs
Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a
literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de
sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as
hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas
as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que
determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem
descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no
exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o
novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de
acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar
o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes
oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a
racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo
o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e
resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar
incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da
experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos
temposrdquo (idem 111)
Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo
vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim
aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA
pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria
mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta
rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do
pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever
Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Escrever natildeo ilumina escurece
Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute
Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda
(Nunes 2014 90)
Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece
como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua
impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute
um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a
esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-
se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas
palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e
intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim
por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a
potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida
Referecircncias bibliograacuteficas
Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999
Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad
Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001
Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997
Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003
Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda
Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010
ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em
httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)
Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo
Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019
Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui
Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009
Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983
Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986
Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993
Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio
DrsquoAacutegua 1995
Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999
Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005
Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011
Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013
Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014
Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016
Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a
Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b
Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018
Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os
louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz
ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida
9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere
define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo
(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em
termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo
estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da
subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo
menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o
ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios
imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam
os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs
Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a
literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de
sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as
hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas
as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que
determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem
descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no
exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o
novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de
acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar
o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes
oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a
racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo
o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e
resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar
incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da
experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos
temposrdquo (idem 111)
Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo
vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim
aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA
pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria
mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta
rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do
pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever
Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Escrever natildeo ilumina escurece
Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute
Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda
(Nunes 2014 90)
Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece
como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua
impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute
um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a
esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-
se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas
palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e
intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim
por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a
potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida
Referecircncias bibliograacuteficas
Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999
Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad
Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001
Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997
Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003
Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda
Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010
ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em
httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)
Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo
Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019
Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui
Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009
Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983
Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986
Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993
Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio
DrsquoAacutegua 1995
Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999
Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005
Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011
Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013
Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014
Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016
Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a
Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b
Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018
Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Escrever natildeo ilumina escurece
Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute
Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda
(Nunes 2014 90)
Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece
como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua
impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute
um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a
esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-
se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas
palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e
intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim
por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a
potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida
Referecircncias bibliograacuteficas
Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999
Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad
Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001
Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997
Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003
Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda
Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010
ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em
httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)
Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo
Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019
Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui
Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009
Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983
Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986
Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993
Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio
DrsquoAacutegua 1995
Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999
Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005
Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011
Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013
Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014
Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016
Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a
Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b
Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018
Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020
Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS
46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297
Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013
Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014
Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016
Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a
Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b
Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018
Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020