Universidade do Grande Rio “Professor José de Souza Herdy”
Cristina da Conceição Silva
O Samba no Rio de Janeiro:
elementos socializadores dos grupos étnicos nos quintais de Madureira e Oswaldo Cruz
Duque de Caxias. 2013
O Samba no Rio de Janeiro:
elementos socializadores dos grupos étnicos nos quintais de Madureira e Oswaldo Cruz
Cristina da Conceição Silva
Trabalho de conclusão de Curso apresentado a Universidade do Grande Rio “Professor José de Souza Herdy”, como parte dos requisitos parciais para obtenção do grau de Mestre em Letras e Ciências Humanas.
Orientador Professor. Dr. José Geraldo Rocha
Obj100
Duque de Caxias, 2013O Samba no Rio de Janeiro:
elementos socializadores dos grupos étnicos nos quintais de Madureira e Oswaldo Cruz
Trabalho de conclusão de Curso apresentado a Universidade do Grande Rio “Professor José de Souza Herdy”, como parte dos requisitos parciais para obtenção do grau de Mestre em Letras e Ciências Humanas.
COMISSÃO EXAMINADORA_______________________
Dr. José Geraldo Rocha UNIGRANRIO
____________________
Dr.José Valter Pereira UFRRJ
______________________Drª. Cleonice Puggian
UNIGRANRIO
_____________________Dr. Márcio Corrêa Vilaça
UNIGRANRIODuque de Caxias, 2013
AgradecimentosEm primeiro lugar agradeço a minha mãe Amara Regina, que me ensinou a
admirar o ritmo do samba através dos festejos em nosso quintal
Aos meus sobrinhos Vladimir Coimbra e Danielle Coimbra pelo apoio moral e
afetivo durante a minha jornada de pesquisa.
Aos meus amigos do mundo do samba Carlinhos Maracanã, Surica, Áurea
Maria, Dona Neném, Zilmar Mendonça, Davi do Pandeiro, Marquinhos de Oswaldo
Cruz e Irani Belmiro por me emprestarem suas memórias, suas narrativas e apoiarem
minha pesquisa.
Aos meus amigos Pós Graduação, de trabalho e do Mestrado Darcilene Osório,
Daniele Miliolli, Anderson Leon, Neidiana Oliveira, Ana Cristina Coelho, Patrícia
Rangel, Maria Gorethe, Cláudia Maria, Bianca Lessa, Margarete Salomão, Patrícia
Jerônimo, Rosemary, Adreana, Cecília Ramos, Diana Luccas, Cidney e Fernanda Capri
que muito contribuíram com apoio moral, técnico e por me darem ouvidos nos
momentos de dúvidas.
Aos meus professores da Pós Graduação Leila Dupret e Valter Filé por
acreditarem que o tema samba agrega valores nos aspectos sociais.
Aos meus professores de Mestrado Cleonice Puggian, Jaqueline Cássia, Márcio
Vilaça, Robson Dutra, Cristina Novikoff por me abrirem novas perspectivas.
Ao Programa de Mestrado de Letras e Ciências Humanas da UNIGRANRIO,
por abrir espaço para o desenvolvimento desta pesquisa.
Em especial agradeço ao meu Orientador José Geraldo Rocha por acreditar no
meu projeto, pela paciência, vibração e afeição que apresentou ao longo desta pesquisa.
Duque de Caxias, 2013
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Dedicatória
Dedico este trabalho à minha mãe Amara Regina da Silva, que através dos festejos de
nosso quintal, transformou-me em praticante e admiradora do samba. Aos meus amigos da
Velha Guarda Portela que muito colaboraram com minha investigação, contribuindo com suas
entrevistas desde meu curso de especialização. E ao meu grande amigo Carlos Teixeira
Martins, que me abriu as portas do mundo do samba.
Duque de Caxias, 2013
Resumo
A presente dissertação busca compreender as origens da cultura do samba carioca a partir da
contribuição dos negros que chegaram à cidade, vindos de diferentes nações africanas, que ao
se socializarem com negros nascidos no Rio de Janeiro e posteriormente com os negros
oriundos da Bahia, produziram modelos de entretenimento e de fé, onde a comida, o batuque,
as relações sociais e os modelos de moradia foram a base para a formação da cultura do
samba carioca.As relações étnico-raciais que esses grupos estabeleceram ao longo de décadas
nos espaços que compreendem o trabalho, os cortiços e o carnaval nos forneceram uma
compreensão acerca do legado que os negros implantaram nesta geografia. Essa herança nos
remeteu a um período histórico na cidade do Rio de Janeiro ao qual o negro foi classificado e
denominado com inúmeras alcunhas e tratado com desprezo em virtude da tez da pele e do
seu jeito de ser e conduzir o seu cotidiano. Tais classificações mesmo após o término da
escravidão e no período que compreendeu a Primeira República se fizeram presentes na vida
5
de negros e mestiços na cidade do rio de Janeiro.Com base em um histórico que perpassa as
últimas décadas do século XIX chegando até a atualidade, buscaremos apresentar nesta
dissertação como as contribuição dos negros e suas relações com diferente grupos étnicos
contribuíram para a formação da Escolas de Samba Portela e Império Serrano, a partir de
encontros festivos nos quintais de Madureira de Oswaldo Cruz. Ao buscarmos compreender
os processos de socialização através das rodas de samba, dos festejos e encontros religiosos
no subúrbio, contaremos com literaturas e com as narrativas dos sambistas dos bairros de
Madureira e Oswaldo Cruz. Estes nos apresentarão os festejos de seus quintais, dos quintais
de amigos, no trem e na rua. Assim sendo, buscamos nesta pesquisa oferecer uma
contribuição no contexto da implementação da lei 10639/03 que institui o ensino de historia
da África e da cultura afro brasileira nas redes de ensino básico.
Palavras chaves-Negros- Madureira, Quintais, Roda de Samba.
Abstract
This dissertation seeks to understand the origins of Samba’s culture with the contribution
from African Citizens who came to the city from different African nations, which to socialize
with African Brazilians born in Rio de Janeiro and later with African Brazilians from Bahia,
producing models of entertainment and faith, where food, drumming, social relations and
models of housing were the basis for the formation of the carioca Samba’s culture. The
ethnic-racial relations that these groups have established over decades in spaces that
understand the work, the slums and the carnival provided us with an understanding of the
legacy that Africans have implemented in this geography. This heritage referred to a historical
period in the city of Rio de Janeiro to which Africans in general had been classified and
named with numerous nicknames and treated with contempt by reason of skin complexion
and the way they were and conducted their daily life. Such classifications even after the end
of slavery and the period that included the First Republic were present in the lives of African
Brazilians and mestizos in the city of Rio de Janeiro. Based on a history that permeates the
last decades of the nineteenth century to the present day, try to present this thesis as the
contribution of African Brazilian people and their relationships with different ethnic groups
contributed to the formation of the Portela’s Samba School and Imperio Serrano, from festive
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gatherings in backyards of Madureira and Oswaldo Cruz. As we seek to understand the
processes of socialization through samba circles, the festivities and religiousness gatherings in
the suburbs, we count on literatures and narratives from Sambistas, people who make samba,
from the districts of Madureira and Oswaldo Cruz. Those present us with the celebrations in
their yards, the yards of friends, on the train or on the streets. Therefore, in this research we
seek to offer a Contribution in the implementation of the law 10639/03 establishing the
teaching of African history and african Brazilian culture in the networks of basic education.
Keywords- African, Madureira, Backyards, Roda de Samba.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 11
Capítulo I-E o samba pede passagem no universo das expressões culturais 22
1.1 As origens e contribuições das matrizes africanas para o samba carioca 23
1.2 Os ranchos carnavalescos abrem caminho para as escolas de samba 25
1.3 As rodas de samba e partido alto no rio de janeiro 30
1.4 Relações étnicas raciais no espaço geográfico: do centro ao subúrbio carioca 33
Capítulo II- Rio de Janeiro território urbano e suas características escravistas do século XVIII ao século XX 37
2.1 A visão dos estrangeiros acerca do Rio de Janeiro e sobre os negros que habitavam na
cidade 39
2.2 A cultura escrava e as transformações urbanísticas da cidade 49
2.3 Conceitos e preconceitos acerca da população negra 61
2.4 Ampliações da cidade para o entorno 64
2.5 Reforma e bota - abaixo de Pereira Passos no Rio de Janeiro 70
2.6 A ocupação de novos territórios por uma população pobre e negra 77
Capítulo III - Elementos socializadores entre grupos étnicos do Centro da Cidade ao sertão carioca de Madureira e Oswaldo Cruz 82
3.1 De conversa em conversa 83
3.1.1 Dona Neném (Iolanda de Almeida Andrade) 84
3.1.2 Zilmar Mendonça 86
3.1.3Davi do Pandeiro ( Davi de Araújo) 88
3.1.4Irani Belmiro da Cunha 91
3.1.5 Surica (Iranette Ferreira Barcellos) 93
8
3.1.6 Marquinhos de Oswaldo Cruz (Marcos Sampaio de Alcântara) 97
3.1.7 Áurea Maria de Almeida Andrade 99
3.1.8 Carlinhos Maracanã (Carlos Teixeira Martins) 101
3.2 Festa, samba e religião no entorno da cidade carioca 103
3.3 O matriarcado 110
3.4 Transmissões de saberes coletivos 113
3.5 O trem e os trilhos 117
3.6 As casas dos sambistas em Madureira e Oswaldo Cruz 120
3.7 As festas e a fé 125
3.8 Os quintais, as iguarias e bebidas 128
3.9 A feira das Yabás em Oswaldo Cruz 132
4 Considerações Finais 142
5 Referências Bibliográficas 146
O SAMBA NO RIO DE JANEIRO: ELEMENTOS SOCIALIZADORES DOS GRUPOS ÉTNICOS NOS QUINTAIS DE MADUREIRA E OSWALDO CRUZ
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Introdução
O título desta investigação visa apresentar o advento do samba na cidade do Rio de Janeiro, a
partir das diversas práticas culturais exercidas pelos grupos étnicos, vindos do continente africano para
a cidade carioca. Esses grupos, ao longo do tempo, constituíram aspectos socializadores através dos
encontros festivos, promovidos em espaços privados no centro da cidade, e que se ambientou nos
quintais do subúrbio carioca. Neste sentido, abordaremos a história do samba através das práticas de
entretenimento desenvolvidas pelos negros que viviam na geografia carioca.
Para entendermos a cultura do samba, é necessário conhecer um pouco da história do samba, sem o que só a percebemos como expressão musical. No entanto não é só isso. Há uma construção de redes de significados, costumes, solidariedade, afirmação de um grupo social, de resistência cultural, política e étnica, ao mesmo tempo em que há um processo de trocas. As ambiguidades apresentadas neste processo acabam por revelar sua riqueza e complexidade. (LIMA, 2001,p.19).
O samba desempenhou o papel de elemento congregador dos negros na história do Rio de
Janeiro. O encontrar-se para cantar e dançar acabou se constituindo em práticas socializadoras e
estratégias de resistência cultural, que perduram até os dias atuais. Minhas inquietações, como
professora de História na educação básica e no contexto da lei 10.639/03, levam-me a buscar
compreender como os escravos no Rio de Janeiro oitocentista contribuíram para a formação da cultura
afro carioca.
O projeto, que originou o presente trabalho, teve seu início em 2010 por ocasião de minha
participação no curso de especialização em Diversidade Étnica Cultural. Foi durante o curso que
nasceram as inquietações a respeito da necessidade de pesquisar a cultura do samba na cidade do Rio
de Janeiro. Ao descobrir a existência do Mestrado em Letras e Ciências Humanas na Unigranrio, com
uma linha de pesquisa sobre Gênero, Etnia e Identidade, vislumbrei a possibilidade em dar
continuidade ao aprofundamento acadêmico nesse campo de pesquisa.
Esse interesse está aliado a minha trajetória de vida no universo do samba, que compreende
desde a minha infância até os dias atuais, bem como as minhas relações com os sambistas de
Madureira e Oswaldo Cruz, no subúrbio carioca. Muitas conversas desenvolvidas com os sambistas,
de modo informal ao longo de anos, assinalaram alguns caminhos interessantes para a realização de
minha pesquisa.
O passo seguinte foi organizar um referencial teórico como forma de fundamentar minhas
buscas enquanto pesquisadora. Através da pesquisa bibliográfica busquei amparar as minhas
expectativas investigativas quanto à história dos negros na cidade carioca e suas contribuições para os
eventos festivos que envolvem a cultura do samba.
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Para o desenvolvimento deste trabalho, utilizei minha própria memória e anotações das
conversas com os sambistas, fotografias e imagens de pintores do século XIX, que retratavam aspectos
identitários dos negros na cidade carioca, bem como seu cotidiano.
Para iniciar esta pesquisa, descrevo a minha relação com a cultura do subúrbio onde nasci e
moro até os dias atuais, e que me impulsionou desde muito pequena a desenvolver um gosto pelo
samba e pelo carnaval.No final da década de 70, por volta dos meus quinze anos, junto com minhas
irmãs mais velhas, as visitas às quadras do Império Serrano e Portela, nas rodas de samba no período
que antecedia o carnaval, faziam parte do nosso entretenimento.
No que se refere aos desfiles das escolas de samba, desde pequena minha mãe nos levava para
a Praça Onze para assistirmos o desfile. Lembro que na época o público era distanciado do desfile por
uma corda. Existiam nesse espaço do desfile, pessoas que alugavam caixotes para que o público que
não estava próximo à corda, subisse e tivesse uma visão privilegiada do desfile. Nessa época, eu tinha
uns cinco anos de idade e nem mesmo o caixote me ajudava, porém tinha sempre um amigo de minhas
irmãs que faziam parte dessa maratona e me colocava no ombro para assistir o desfile. Esse refazer da
memória encontra sintonia no pensamento de HALBWACHS, onde ele afirma:
Fazemos apelos aos testemunhos para fortalecer ou debilitar, mas também para completar, o que sabemos de um evento do qual já estamos informados de alguma forma, embora muitas circunstâncias nos permanecem obscuras. Ora, a primeira testemunha, à qual podemos sempre apelar, é a nós próprios. (HALBWACHS 1990 P.25)
Em minhas memórias de infância, lembro-me de detalhes que não se perderam até os dias
hoje, tais como, a polícia montada a cavalo encerrando cada desfile e dos pés dos desfilastes que
produziam um ritmo compassado com o ritmo da bateria. Essa maratona do subúrbio até o Centro da
cidade aconteceu em vários carnavais, até que minhas irmãs seguiram seus próprios rumos e não mais
se interessavam em assistir os desfiles, mas sim frequentar as quadras das escolas de Madureira e
Oswaldo Cruz.
As visitas a estas quadras me aproximaram de compositores, dirigentes e do grupo da Velha
Guarda da Portela. Aos dezessete anos de idade, passei a desfilar na Portela e aos vinte, já fazia parte
do conselho da escola, o qual me levou a diretoria. Minha aproximação com os grupos específicos da
escola foi de uma riqueza muito grande, pois as questões administrativas, as disputas, as escolhas de
enredo e samba enredo faziam parte o ano inteiro do meu cotidiano. Tendo em vista que o carnaval de
uma escola de samba começa a ser pensado após o sábado de aleluia e, ao contrário do que se pensa,
as reuniões e encontros de diretoria não param o ano inteiro.
Esses encontros não só acontecem para discutir sobre o desfile, mas também para discutir os
festejos do ano inteiro como: aniversário da escola, festa do padroeiro e da padroeira, a missa em
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homenagem aos padroeiros e em ação de graça a escola. As festas dos segmentos da escola também
são pensadas nesse período pós-carnaval. As reuniões abordam o que servir de iguaria, quem vai tocar
e cantar e a elaboração do convite. Os segmentos como baianas, bateria, harmonia, velha guarda,
compositores e departamento feminino discutem sobre os trajes que vão usar no dia de suas festas, a
cor da roupa, onde vai ser confeccionado e os demais detalhes para o sucesso da festa.
Além dos festejos que estão relacionados à escola e seus segmentos, tive a honra de conviver
com um grupo muito especial para a cultura afro carioca, que são os componentes da Velha Guarda
Show da Portela. Esse grupo apresenta tal denominação por serem pessoas que apresentam a arte de
cantar, compor e tocar e através de suas habilidades e o desejo de manter viva a chama do samba.
Eles disseminam sua arte em todo o território nacional e até mesmo internacional. Inclusive,
tive a oportunidade de acompanhar o grupo durante uma semana em Paris em suas apresentações. Tal
evento parisiense foi no ano de 2000, quando o Brasil foi homenageado pelos seus quinhentos anos.
Na ocasião muitos músicos e cantores brasileiros fizeram parte do evento, e lá estavam a Velha
Guarda Portela e Dona Ivone Lara do Império Serrano. Personagens afrodescendentes que muito
contribuíram e contribuem durante o ano inteiro com suas apresentações, dando visibilidade a suas
escolas de samba e aos bairros de Madureira e Oswaldo Cruz.
A minha convivência, especificamente, com a Velha Guarda da Portela em seus shows, nos
ensaios do grupo que antecedem aos shows, as festas em seus quintais nos bairros de Madureira e
Oswaldo Cruz me enriqueceram muito acerca do conhecimento da cultura afro carioca.
Ao consultar manuais que me indicassem um modelo de pesquisa, me deparei com
dificuldades em encontrar metodologias que recomendassem um modelo de regras de aproximação e
escuta na ocasião de uma pesquisa de campo, em que o pesquisador se apresenta intimamente
envolvido. Mesmo tendo um amplo conhecimento acerca da cultura do samba nos bairros de
Madureira e Oswaldo Cruz, devido a minha vivência, sentia a necessidade de buscar compreender
melhor a dinâmica do samba no Rio de Janeiro. Essa inquietação me levou a buscar junto aos
sambistas nos bairros de Madureira e Oswaldo Cruz informações a respeito das contribuições do
samba na cultura carioca.
Assim sendo, aproveitei o dia da feijoada em comemoração ao aniversário do compositor e
cantor Monarco, realizada na quadra da Portelinha (primeira quadra da Portela), evento onde todos os
personagens se faziam presentes, e pedi a colaboração do grupo (08 pessoas) para cooperar com
minhas indagações. Naquela oportunidade, expliquei aos personagens que já havia pesquisado alguma
coisa para o trabalho final do meu curso de especialização sobre as rodas de samba, e ressaltei a
importância da continuidade das narrativas para o meu curso de mestrado. E assim, fiz contatos
telefônicos confirmando local dia e hora para realizar as nossas conversas, uma vez que a
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informalidade estabelecida entre nós e a minha relação com o universo do samba dispensa a
formalidade da entrevista.
As conversas, que mantive com os grupos, aconteceram de maneira informal, pois a maioria
delas aconteceu em ambientes festivos e nos momentos em que a cerveja e as iguarias como feijoada,
churrasco, salgadinhos, cozido e o samba de raiz fizeram parte do meu trabalho de campo.
Para iniciar as minhas conversas de campo, entrei em contato com Marquinhos de Oswaldo
Cruz e Davi do Pandeiro, no mês de junho de 2012, e decidimos conversarmos sobre o conteúdo de
minha investigação no sábado da primeira semana do referido mês, no camarim do Cordão da Bola
Preta, pois eles fariam um show lá. Assim sendo, confirmei com eles e com Surica, que também iria ao
show. No sábado marcado, seguimos, eu e Surica, para Madureira, para nos encontrarmos com o
grupo da Velha Guarda e seguimos para a Bola Preta. Munida de máquina fotográfica para registrar o
encontro, termo de autorização e bloco para anotações, chegamos ao local e fomos encaminhados para
o camarim e compartilhamos de uma suculenta feijoada. Na ocasião, registrei com muitas fotos o
encontro do grupo de sambistas tanto no camarim como no palco.
Na qualidade de texto, que pressupõe competências para sua produção e leitura, a fotografia deve ser concebida como uma mensagem que se organiza a partir de dois segmentos: expressão e conteúdo. O primeiro envolve escolhas técnicas e estéticas, tais como enquadramento, iluminação, definição da imagem, contraste, cor etc. Já o segundo é determinado pelo conjunto de pessoas, objetos, lugares e vivências que compõem a fotografia. Ambos os segmentos se correspondem no processo contínuo de produção de sentido na fotografia, sendo possível separá-los para fins de análise, mas compreendê-los somente como um todo integrado. Historicamente, a fotografia compõe, juntamente com outros tipos de texto de caráter verbal e não-verbal, a textualidade de uma determinada época. Tal idéia implica a noção de intertextualidade para a compreensão ampla das maneiras de ser e agir de um determinado contexto histórico: à medida que os textos históricos não são autônomos, necessitam de outros para sua interpretação. (ANDRADE, 1996 P.10)
Após o almoço e beijinhos e abraços dos amigos que vinham chegando e que a muito não os
via, iniciei a conversa com o cantor e compositor Marquinhos de Oswaldo Cruz, morador do bairro,
cujo nome carrega em seu codinome artístico.
No momento da conversa, Marquinhos disse que compositores como Manacéia, Alberto
Lonato, Casquinha e Argemiro o influenciaram na carreira de sambistas, nas suas impressões acerca
dos quintais de Madureira e Oswaldo Cruz, como também o inspiraram na efetivação de seus projetos
como: O trem do samba e a Feira das Yabás. O primeiro projeto tem como finalidade resgatar a
história dos sambas no subúrbio através da malha ferroviária e o segundo está relacionado a
sistematizar o bairro de Madureira como um museu a céu aberto, onde a gastronomia e música negra
se fazem presentes.
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Após terminar a conversa com Marquinhos, iniciei um bate papo com Davi do Pandeiro que
começa narrando sua história de infância com o samba e com o carnaval, afirmando que sua mãe não
gostava desses festejos. Porém, seu tio abria os portões do quintal, onde morava, para receber amigos e
familiares no carnaval e nos encontros de entretenimento e que tais eventos aconteciam em Madureira.
Sua paixão pelo samba, mesmo contra a vontade de sua mãe, veio desses encontros e da convivência
com essa cultura.
Enquanto conversávamos, as anotações eram feitas e repetidas em minhas falas para
confirmação de seus relatos. Ao final da conversa, relatei a importância de suas contribuições para
minha investigação acadêmica.
Embora o espaço da realização das conversas com Marquinhos de Oswaldo Cruz e Davi do
Pandeiro tenha sido em uma casa de show, o ambiente do camarim foi bastante propício, devido à
presença de amigos, da comida e da bebida, elementos essencias no mundo do samba.
Outra conversa de campo, aconteceu num domingo do mês de junho de 2012, ao encontrar
com Áurea Maria, pastora da Velha Guarda da Portela, em um supermercado em Rocha Miranda e ela
me convidar para ir a um churrasco na casa de sua mãe Dona Neném, pois estavam lá uns amigos da
Ilha de Itaparica. Horas depois, segui para o evento com meu bloco, máquina fotográfica e termo de
autorização.
Quando cheguei ao quintal de Dona Neném, Áurea foi logo apresentando todos os aparatos
para facilitar os festejos do quintal, como um freezer na área de serviço, uma geladeira de modelo
antigo, um abridor de garrafas pendurado ao lado da geladeira e um fogão industrial para as frituras.
Em meio a todos os aparatos, uma mesa de madeira com capacidade para uns dez lugares, onde a
matriarca da família Dona Neném estava sentada com uma amiga “molhando as palavras”, o que quer
dizer no universo do sambista, bebendo uma cerveja.
Enquanto netos, netas, genros e filhas cuidavam do churrasco e seus acompanhamentos,
comecei conversar com Dona Neném retomando, ou seja, relembrando nossas conversas que travamos
ao longo de nossa convivência. Conversas essas que deram uma continuidade a minha pesquisa de
especialização e, nesse contexto, as narrativas de Dona Neném e sua filha Áurea se cruzavam e se
completavam no tempo e no espaço de referência, o quintal dessa família, onde ocorreram muitos
festejos.
No momento em questão, fiz algumas tomadas fotográficas e gravação de áudio e vídeo para
não perder o momento precioso em que a memória de uma matriarca, aos seus mais de 80 anos de
idade, se mantém lúcida ao contar a sua chegada em Oswaldo Cruz no ano de 1931, com sua mãe
Dona Ana e irmãos, e o percurso de sua vida neste bairro.
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Ainda nesse dia, Áurea liga para Marquinhos de Oswaldo Cruz, que minutos depois chega ao
quintal de Dona Neném. Para mim, foi muito significativo, pois Marquinhos continua seus relatos que,
também, estão entrelaçados com a história dessa família.
A nossa conversa começa com um almoço às 14h00, se estende pela noite com Marquinhos
cantando as músicas do compositor Manacéia (falecido esposo de Dona Neném) e tocando o cavaco
do falecido, uma relíquia da família. Para completar essa roda de samba improvisada, os instrumentos
também foram improvisados, uma vez que o balde se transformou no surdo de marcação, o utensílio
de sal grosso, o chocalho e o copo de vidro com o garfo, o reco-reco. Assim, o domingo da minha
pesquisa termina às 23h00 com caldo de ervilha, salgadinhos fritos e cerveja.
A terceira conversa com os sambistas se deu no quintal de Surica, onde as entrevistadas foram
a própria e sua irmã Irani. Esse momento aconteceu logo após o festejo do aniversário de uma amiga
neste mesmo lugar. Com Irani, busquei investigar as festas no quintal do compositor Argemiro do
Patrocínio, uma vez que ela fazia parte do grupo de cozinheiras que preparavam as iguarias servidas
nos ensaios da velha guarda que aconteciam no espaço em questão. E com Surica, investigar as suas
relações com o samba e os festejos organizados em seu quintal. Mais uma vez, as conversa se
entrelaçam, devido à convivência das irmãs e de suas primas, que se faziam presentes com as histórias
dos bairros.
O “enterro dos ossos”, como é chamado o dia posterior às festas no subúrbio, sempre é muito
divertido, uma vez que só os mais íntimos se fazem presentes. Esse foi o momento que aproveitei para
dar continuidade as nossas conversas sobre as festas e o samba. Conversas essas, que acontecem desde
que nos conhecemos, o que já se fazem algumas décadas. Para tal, levei meu bloco de anotações,
minha câmera fotográfica e termo de consentimento.
Na ocasião, Irani fala de suas contribuições para o ensaio da velha guarda na casa do
compositor Argemiro do Patrocínio, dos convidados, das iguarias e das bebidas, bem como das manias
de Argemiro. Em continuidade a conversa, Surica fala dos eventos que no seu quintal foram motivo de
audição de CDs e reportagens nos momentos que antecedem o carnaval e dos encontros com datas
marcadas, que acontecem em seu “cafofo” (denominação dada pelo amigo Ceroli a sua residência). A
conversa com as irmãs Surica e Irani teve como coadjuvantes o cozido servido no dia anterior, cerveja
e cantorias.
O quarto e quinto encontros que tive em julho de 2012 foram com o Ex-presidente da Portela
Carlinhos Maracanã e Zilmar Mendonça (filha do ex Presidente da Portela João Calça Curta) e, como
sempre, eu estava munida do bloco de anotações, a máquina fotográfica e termo de consentimento. O
encontro com Carlinhos Maracanã se deu em seu escritório na Pavuna, onde ele, nacionalidade
portuguesa, fala de seu envolvimento com o samba e faz uma relação das festas de sambistas com as
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festas lusitanas.
O encontro com Zilmar se deu em seu apartamento, onde fui recebida com petiscos e cerveja.
Sua narrativa aborda os encontros festivos entre as décadas de 50 e de 70, em que o prato principal era
os crustáceos. Os encontros antecediam a apuração do carnaval, em que sambistas de outras
agremiações carnavalescas, bem como jornalistas e formadores de opinião da imprensa compareciam
ao encontro no quintal de seu pai em Oswaldo Cruz.
Os conteúdos dos capítulos desta investigação, também contam com abordagens
bibliográficas, como livros e pesquisas acadêmicas, que mostrarão um panorama sobre a chegada de
grupos de escravos que chegavam à cidade do Rio de Janeiro para força de trabalho e a visão que se
tinha sobre os mesmos. Tais bibliografias também retratam a formação da cultura afro carioca, que
tem como maiores contribuintes o samba e as festas que aconteciam em ambientes privados, dando
destaque às figuras matriarcais, e as relações dos grupos.
Seguiremos na pesquisa bibliográfica com abordagens acerca da Reforma Pereira Passos, que
ao derrubar os cortiços promove novos modelos de moradia e leva grupos de diferentes etnias aos
subúrbios de Madureira e Oswaldo Cruz. Contaremos também nesta investigação com os relatos de
sambistas, moradores dos bairros de Madureira e Oswaldo Cruz, acerca da cultura do samba, que se
inicia com a chegada de muitas famílias na geografia em questão.
As conversas com sambistas revelaram que uma riqueza maior poderia ser entendida mediante
uma investigação documental e ou bibliográfica, em que pudesse explicitar a história do samba no Rio
de Janeiro à luz da chegada dos negros de diversas nações africanas. De forma que fiz inúmeras
anotações de autores de livros e produções acadêmicas para organizar esta parte do trabalho, lançando
mão de escritos que falavam sobre a história do Rio de Janeiro, que eventualmente descreviam sobre a
participação do negro na cidade carioca.
Minhas inquietações acerca de uma compreensão de como os negros no Rio de Janeiro
oitocentista viviam e se socializavam em um espaço urbano, provocou em mim a necessidade de uma
reconstrução da origem dos escravos na cidade carioca. Ao pensar no processo migratório, busquei
informações que me dessem subsídios sobre o cotidiano e a convivência desses grupos que de diversas
nações africanas chegaram à cidade carioca. Busquei também informações que antecedem a história
do samba na cidade do Rio de Janeiro e que se expande para o sertão carioca, cujo foco nesta pesquisa
são os bairros suburbanos de Madureira e Oswaldo Cruz.
O que muito me instigava para o desenvolvimento desta pesquisa, era investigar quem foram
os negros que contribuíram para a cultura carioca, como eram as relações entre si e com os seus
senhores e, especialmente, que bagagem cultural eles trouxeram.
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Tais inquietações vêm de encontro com minha pertença étnica e com minhas memórias de
infância a respeito dos encontros festivos promovidos nos quintais de minha família e vizinhos, que
sempre terminavam em samba. Além da minha formação acadêmica e atuação profissional como
professora de História, o que me instiga a entender a cronologia e tempo histórico em que se deu a
participação dos negros como promotores de um modelo de cultura afro carioca. É notória a ausência
de tais discussões no âmbito da educação. Neste sentido, o Despacho do Ministro, da Secretaria de
Igualdade Racial, publicado no Diário Oficial da União de 19/05/2004 Resolução Nº 1, de 17 de julho
de 2004, destaca que:
O ensino afro brasileiro poderá ser feito de diversas formas, sendo por atividades curriculares ou não: se explicitem, busquem compreender e interpretar, na perspectiva de quem o formule, as diferentes formas de expressão e de organização de raciocínios e pensamentos de raiz da cultura africana; - Promovam-se oportunidades de diálogo pondo em que se conheçam, se ponham em comunicação os diferentes simbolismos e estruturas conceituais, além da construção de projetos de sociedade em que todos se sintam encorajados a expor e defender a sua especificidade étnico-racial e a buscar garantias para que todos os façam;- Sejam incentivadas atividades em que pessoas-estudantes, professores, servidores, integrantes da comunidade externa aos estabelecimentos de ensino - de diferentes culturas interatuem e se interpretem reciprocamente, respeitado os valores, visões de mundo, raciocínio e pensamentos de cada um.(MINISTRO EDSON SANTOS DE SOUZA, 2009. P.88-89).
Após a realização de tantas conversas, ficou nítida a compreensão de que em um primeiro
instante de sistematização era necessário abordar certo apelo histórico do samba no Rio de Janeiro.
Para dar conta de tal realidade, organizamos um capítulo intitulado “O samba pede passagem no
universo das expressões culturais”, apresentado nesta pesquisa em seções. Elas estão identificadas
assim: “As origens e contribuições das matrizes africanas pra o samba carioca”, “Os ranchos
carnavalescos abrem caminho para as Escolas de Samba”, “As rodas de samba e o partido alto no Rio
de Janeiro” e “Relações étnico-raciais no espaço geográfico: do centro ao subúrbio carioca”. As seções
em pauta relatam a história do samba na cidade carioca, através dos ritmos como o lundu e o maxixe e
as origens dos ranchos e das escolas de samba.
Os encontros festivos e as afinidades étnico-raciais, que se deram através das rodas de samba
nos espaços que compreendem o centro da cidade e o subúrbio no período que abrange o século XIX,
são também identificados nas seções deste primeiro capítulo.
No segundo capítulo, cujo título “Rio de Janeiro território urbano e suas características
escravistas do século XVIII ao Século XIX”, apresentaremos seções que relatam “A visão dos
estrangeiros acerca do Rio de Janeiro e sobre os negros que na cidade habitavam”, “A cultura escrava
e as transformações urbanísticas da cidade”. Daremos continuidade neste segundo capítulo com as
seções intituladas “Conceitos e preconceitos acerca da população negra”, “Ampliações da cidade para
o entorno”, “Reforma e bota - abaixo de Pereira Passos no Rio de Janeiro” e “A ocupação de novos
17
territórios por uma população negra e pobre”.
Relataremos, através de tais seções, o período que compreende as chegada dos escravos de
diversas nações e de distintas culturas, que, com um modelo diaspórico, deram suas contribuições para
cultura carioca através do seu jeito de dançar, resistir à perseguição das elites, seu canto, seu batuque,
bem como as reformas da cidade que aconteceram com a chegada da família real e a Reforma Pereira
Passos. Tais reformas excluíam, no primeiro momento, a figura dos escravos e em um segundo
momento, os negros livres e outros grupos étnicos despossuídos de moradias e empregos formais, o
que aconteceu com o advento da República.
Finalmente, no último capítulo, retomamos as conversas realizadas com os sambistas e nosso
referencial teórico, e destacaremos os elementos socializadores dos negros no entorno da cidade
através da religião, do trabalho no Cais do Porto, dos modelos de moradia e a importância do
matriarcado através das Tias baianas. Além de abordarmos a influência do advento do trem para a
migração dos novos moradores para os bairros suburbanos de Madureira e Oswaldo Cruz.
Destacaremos, também, as contribuições dos moradores dos referidos bairros para a cultura do samba
carioca, bem como descreveremos as conversas com os sambistas que contribuem com a manutenção
da cultura afra carioca com os encontros festivos em seus quintais.
Neste sentido, o capítulo em pauta recebe a denominação de “Elementos socializadores entre
grupos étnicos do Centro da Cidade ao sertão carioca de Madureira e Oswaldo Cruz.” E neste
capítulo destacaremos os elementos socializadores do samba carioca através das seções denominadas
“Festa, samba e religião no entorno da cidade carioca”, “De conversa em conversa”, “O matriarcado”,
“Transmissão de saberes coletivos” e “O trem e os trilhos”. Apresentaremos também as seções “As
casas dos sambistas em Madureira e Oswaldo Cruz”, “As festas e a fé”, “Os quintais, as iguarias e
bebidas.” Estes elementos socializadores, que ao longo do século XX até a atualidade fizeram parte
dos encontros dos sambistas, contribuíram para sistematizar o capítulo em pauta e foram identificados
em literaturas pesquisadas, bem como através das conversas com os sambistas moradores dos bairros
de Madureira e Oswaldo Cruz.
Precisa o Brasil, país multi-étnico e pluri-cultural, de organizações escolares em que todos se vejam incluídos, em que lhes sejam garantidos o direito de aprender e de ampliar conhecimentos, sem ser obrigados a negar a si mesmo, ao grupo étnico/racial a que pertencem e a adotar costumes, idéias e comportamentos que lhes são adversos. (BRASIL, 2006,p.80).
Tendo em vista o exposto, visamos abordar nesta investigação a participação do negro na
cultura carioca, apontando e fornecendo dados que explicitam os caminhos percorridos após abolição
da escravatura.
18
A divulgação e valorização da cultura dos povos africanos1 e de seus afrodescendentes,
apresentada nesta investigação, tem como finalidade contribuir com aspectos positivos sobre a história
dos negros africanos e dos afrodescendentes no contexto carioca. Ao compreendermos que
conhecimentos desta natureza proporcionam um novo olhar acerca da cultura negra, nos bancos
escolares e acadêmicos2, entendemos ser relevante o desenvolvimento deste trabalho.
Assim sendo, os capítulos abaixo apresentam adventos históricos literários e de natureza oral,
que apresentam o negro na cidade do Rio de Janeiro, como sujeito detentor de costumes e tradições
representativas para a formação cultural do país.
1 Art. 1o A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:
" Art. 26-A . Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
"Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’."(BRASÍLIA,2003)
2 É preciso romper com o reducionismo de falar de cultura afro-brasileira somente no período próximo ao dia 20 de Novembro, Dia
Nacional da Consciência Negra. Faz-se necessário garantir que a cultura afro-brasileira seja abordada durante o ano todo. Além de 20 de novembro.
19
Capítulo I
1 E o samba pede passagem no universo das expressões culturais
A história do Samba carioca apresenta ao longo de sua existência um modelo de representação
de expressão cultural de grupos étnicos, que do continente africano vieram para cidade com seus
ritmos e danças. Tais representações culturais, ao longo dos séculos, ao se incorporarem as expressões
de grupos variados, existentes na cidade do Rio de Janeiro, deram origem a cultura afro carioca, em
especial o samba.
No cenário brasileiro, há artes musicais identificadas pelo termo, como o samba de roda do
Recôncavo e o samba rural paulista. No entanto, o samba do Rio de Janeiro se destaca por ser um
acontecimento cultural forte. Atravessou o século XX, passando de alvo de discriminação e
perseguição nas primeiras décadas a ritmo coligado com a própria nação, a ponto de ser um de seus
símbolos (THEODORO ET ALLI,2006)
Atualmente, o samba é celebrado como música popular do Brasil por excelência. Ele ocorre
em todo o país em inúmeros gêneros e subgêneros e em amostras musicais de dança e de festejos da
vida, ocasionadas pelo que foi difundido ao longo dos séculos pelas populações africanas e
afrodescendentes que aqui viveram e vivem.
No começo do século XX, comunidades negras do Rio de Janeiro “rejeitada de participação
integral nos processos produtivos e políticos formais, caçadas e impedidas de comemorar abertamente
suas folias e sua fé” deram forma a um novo samba, diferente dos tipos então conhecidos, que viria a
ser chamado de samba urbano, samba carioca, samba de morro ou simplesmente samba. Elas também
criaram as escolas de samba, espaços de reunião, troca de conhecimentos, estabelecimento de redes de
20
solidariedade, criação artística e festa. (THEODORO ET ALLI, 2006)
Ao longo de sua história, o samba deixou de ser uma prática de negros e pobres e de
moradores de morros e subúrbios para fazer parte da cultura carioca e do Brasil. A consolidação das
escolas de samba através do advento do rádio, principal veículo de comunicação entre as diferentes
classes sociais, e o uso político do ritmo para definir a etnia brasileira atrai músicos da classe média.
Tais fatores deram ao samba notoriedade e prestígio para grande parte da sociedade.
O advento da televisão fez com que o samba, paulatinamente, deixasse de ser um costume
enclausurado para adentrar na sociedade brasileira através dos desfiles das escolas de samba. Essa
notoriedade televisa atraiu para o universo do samba os brancos, os bem-sucedidos financeiramente e
artistas. Consequentemente, aos poucos originou a exclusão dos negros como verdadeiros sambistas.
Em meio a todos estes fatores aos quais os sambistas foram submetidos, como se não bastasse
o alto valor dos ingressos e das fantasias, é visível a apropriação dos brancos tanto dos desfiles como
das administrações das escolas de samba e das instituições responsáveis pelo carnaval.
1.1 As origens e contribuições das matrizes africanas para o samba carioca.
O povo brasileiro, no que se refere ao universo das manifestações artísticas, expressa através
da música um modelo evolutivo, sofisticado e original, apresentando uma riqueza melódica e inúmeras
possibilidades rítmicas. Nos quesitos harmonia e inventividade, os compositores e instrumentistas
brasileiros fazem da nossa produção musical um produto cultural de exportação respeitado e admirado
em todo o mundo. E o samba é a origem, a raiz, a tradição. É a essência que conta através do canto e
do ritmo o cotidiano do homem comum, dos que fizeram a história de nosso território nacional.
“Eu sou o samba o samba/ A voz do morro sou eu mesmo sim senhor/Quero mostrar ao mundo que tenho valor/Eu sou o rei do terreiro/Eu sou o samba/Sou natural daqui do Rio de Janeiro/Sou eu quem levo a alegria/Para milhões de corações brasileiros/Salve o samba,queremos samba/Quem está pedindo é a voz do povo de um país/Salve o samba, queremos samba/Essa melodia de um Brasil feliz”.( A VOZ DO MORRO-COMPOSITOR ZÉ KETI.ANO 1955).
No que se refere à contribuição da cultura africana à cultura brasileira, relata Costa (2000),
que devemos levar em conta que ela, a cultura africana, passou a ser considerada após a Abolição da
Escravatura, a partir de publicações de literaturas que abordaram o cotidiano dos negros em suas
senzalas ou em outros espaços manifestando suas expressões culturais. É fato que aos olhos das elites,
antes e pós-abolição, o negro africano ou nascido em território nacional era considerado como força de
trabalho e não como promotores de cultura.
O negro africano apresenta no período em que chegam ao território brasileiro a influência de
duas diásporas, ou seja, uma cultura que ele trás em sua bagagem e outra por força de mistura étnica
21
imposta pelos seus senhores. Considerando a influência diaspórica de negros escravos e negros livres
no Brasil, principalmente os de etnia Bantu, do culto a Nossa senhora do Rosário nasce à coroação dos
reis Congos, evento esse que os negros tinham seus momentos de glória ao serem coroados no adro da
igreja. Durante a festa, os negros cantavam e dançavam.
Outro modelo de representação diaspórica foi através da dança dos Cucumbis, que absorve
elementos indígenas misturados com os elementos africanos. Em suas representações como
dançarinos, eles lançavam mão de elementos indígenas, como tangas e cocares (em trajes), arco e
flecha (como adereços de mão) e instrumentos musicais os ganzás, xequerês e chocalhos e misturavam
esses elementos a adufes, agogôs e piano- de- cuia de procedência africana.
Dizem que a dança do Cucumbis nasceu na Bahia, mas que tomou forma no Rio de Janeiro.
Organizando-se em sociedades carnavalescas deu origem aos cordões e blocos através dos grupos,
como Iniciadores dos Cucumbis, Cucumbis Carnavalescos, Cucumbis Lanceiros Carnavalescos e
Triunfo dos Cucumbis (COSTA, 2000).
Essa representação cultural também acontecia nas senzalas no momento dos festejos
promovidos pela circuncisão dos filhos dos negros de origem congos e munhambanas. No momento
em questão, eles cantavam, dançavam e comiam. Essas características culturais aconteciam entre
gemidos e sussurros, o que estimulava a imaginação dos moradores das casas-grandes. Esse ritmo
ficou conhecido como lundu, que é o mais remoto ancestral do samba. Foi o primeiro elo musical
entre a casa grande e a senzala, além de ser o primeiro ritmo musical brasileiro a fazer sucesso fora do
país, por meio do mulato violinista e compositor Domingos Caldas Barboza, filho de pai português e
mãe angolana, nascido no Rio de Janeiro em 1740 (COSTA, 2000).
Nessa ocasião, declara Costa (2000), inicia-se a dança e o ritmo do samba, cujos elementos
básicos, dos movimentos e ritmos, eram da dança da umbigada (movimentos típicos do lundu). O
ritmo era marcado nos pés e nas mãos e os instrumentos iam sendo improvisados. Nessa época, esses
encontros ritmados e danças promovidas pelos negros eram denominados como batuque, que consistia
em um círculo formado por negros dançadores. Era convidado para o centro do círculo um negro ou
uma negra, que após executar vários passos, chamava o próximo dançador para ocupar o seu lugar no
centro do círculo com uma umbigada, que chamavam de semba.
Em 1880, surge o maxixe, dança originária do Rio de Janeiro, resultado da fusão da polca com
habanera, que sofreu uma forte campanha contra por parte da burguesia carioca e da igreja por não
tolerarem o ritmo. Costa (2000) aponta o carnaval e o teatro de revista como maiores divulgadores do
maxixe, além das sociedades carnavalescas (Estudantes de Heildelberg, Fenianos e Democráticos) que
passam futuramente a serem chamadas de grande sociedade. Eles foram, durante décadas, a grande
representação do carnaval carioca e não abriam mão do maxixe em suas festas. Esse ritmo musical
também foi levado para Europa pela bailarina e cantora Plácida dos Santos e depois pela dupla Duque
e Gaby.
No continente europeu foi difundido o novo ritmo, música e dança que nasciam no Brasil, com
22
destaque a cidade do Rio de Janeiro, bastante visitadas por estrangeiros, especialmente, pelos
europeus.
1.2 Os ranchos carnavalescos abrem caminho para as Escolas de Samba
Os ranchos carnavalescos são considerados uma das matrizes para a formação das escolas de
samba carioca, quiçá o precursor. Assim sendo, sua história se entrelaça com a organização de grupos
a margem das características culturais dos ranchos. Tendo em vista que esses grupos marginalizados
buscavam uma forma de se inserirem nos festejos carnavalescos da cidade carioca.
No Rio de Janeiro, os ranchos carnavalescos surgem no final do século XIX com Hilário
Jovino Ferreira, Tenente da Guarda Nacional, uma corporação de segunda linha do exército Nacional,
que conferia prestígio aos seus membros e proteção aos negros outorgados com a distinção. “Hilário
também conhecido como ‘Lalu de Ouro’” dizia que ao chegar ao Centro da cidade do Rio de Janeiro
encontrou o rancho Dois de Ouro e que ele fundou o Rei de Ouros. Araújo (2000) descreve, também,
que Hilário foi o maior incentivador do rancho carioca e que, a princípio, os grupos se apresentavam
em cortejos cantando chulas ingênuas de origem africana. A música era uma espécie de lundu
sapateado, acompanhada de uma orquestra composta por violões, violas, ganzás, pratos, castanholas e,
às vezes, flautas. Os pastores e pastoras se vestiam com fantasias vistosas e variadas para participarem
dos festejos.
Os primitivos ranchos saíam da Pedra do Sal, passavam pelo Valongo se apresentavam às Tias
Bibiana e Ciata em suas casas, para reverenciá-las. As tias retribuíam a essas homenagens entregando
ramos bentos como forma de gratidão.
Os ranchos aproveitavam a festa europeia do carnaval, como tática de penetração coletiva
espacial temporária no território urbano, e afirmar através da música e da dança um aspecto de
identidade cultural negra (ARAÚJO, 2000).
O carnaval é uma cultura de aspectos básicos, tendo sua verdadeira natureza nas culturas
populares da Idade Média e do Renascimento europeu, e que o evento apresenta características
lúdicas, o que o consagra como festa. Ressalta Bakhtin (1987) que essa consagração, na verdade,
representa uma vida comum concebida de uma forma diferente através das manifestações festivas e o
mundo passa a ser visto com um olhar diferenciado, em que as leis que imperam estão associadas à
festa e à liberdade.
No final de 1920, os organizadores dos blocos carnavalescos sentiram que havia necessidade
de acabar com as brigas e arruaças que aconteciam sempre que saiam nas ruas, daí ocorreu a ideia de
imitar os ranchos carnavalescos. Os blocos carnavalescos apresentavam muita violência em seus
desfiles, reação talvez resultante da perseguição, imposta ao modelo de cultura. Essa tentativa de
retomar o espaço e de livre manifestação da cultura negra, geralmente, terminava com repressão
23
policial (ARAÚJO, 2000)
Os ranchos carnavalescos tinham predominância de seus irmãos de cor (afrodescendentes),
oriundos de camadas pobres. Como os ranchos afirmavam sua identidade cultural de forma pacífica,
tinham presença oficial nos desfiles no cenário carnavalesco da cidade carioca. Partindo desse
princípio, um grupo de sambistas do bairro do Estácio composto por Ismael Silva, Nilton Bastos,
Baiaco, Mano Edgar, Mano Rubem, Osvaldo Papoula, Aurélio, Nanal, entre outros, resolveram imitar
os organizadores dos ranchos formando uma agremiação capaz de impor respeito e admiração.
Ainda segundo Araújo (2000), o grupo se reunia na esquina da Rua Joaquim Palhares com
Machado Coelho, próximo a uma escola de normalistas, daí surgiu o comentário entre os sambistas, se
quem ensinava criança era denominado professor, então eles, por saberem tudo de samba, também
eram mestres e podiam formar uma escola. Logo, eles denominam esse ideal de escola carnavalesca de
“Escola de Samba”, e assim nasce à primeira Escola de Samba a Deixa Falar.
O desenvolvimento do desfile, no que se refere à cadência do samba, também foi elaborado
pelo grupo, porque as pessoas não conseguiam andar pela rua. O macete final da cadência nasce com a
criação do surdo de marcação, pensado por Bide.
A origem em torno do termo Escola de Samba observa Araújo (2000), tem outras versões sem
ser a contada pelo grupo do bairro do Estácio. Para Almirante, o termo nasceu da popularização do tiro
de guerra, em 1916, quando se tornou comum o brado ‘Escola sentido!’, logo absorvido no meio dos
sambistas. A versão de Edson Carneiro aponta que o termo veio dos tiros de Guerra, como das
circunstâncias de se aprender a cantar e dançar o samba. Jota Efegê defende a tese que o termo existe
desde 1928. Na verdade, cada um conta um conto sobre a nomenclatura Escola de Samba. O fato é que
elas existem para o orgulho carioca
A “Deixa Falar” de Ismael Silva e seus parceiros deixaram a desejar na hora de se
transformarem em Escola de Samba, pois na verdade virou um rancho carnavalesco. Ela cresceu sem
acreditar em si mesma e no samba. Era identificada com marginalismo e malandragem. O grupo
admirado era os negros dos ranchos de cultura de ascendência baiana. Araújo (2000) explica que a
Deixa Falar situava se no Centro da cidade onde predominavam os negros iorubás emigrantes da
Bahia. A presença dos iorubás da Bahia reforçava a grande influência de uma elite negra nos ranchos
carnavalescos, logo a Deixa Falar ao se transformar em rancho, não consegue seguir seus próprios
caminhos.
Em Oswaldo Cruz, Paulo da Portela consciente dos valores de sua raça e das descriminações
que o negro sofria, organiza um grupo seleto que visava combater os preconceitos através de atitudes
educadas. Evita, assim, atitudes violentas, incorporando atitudes de responsabilidade, exatidão e união,
abraçando a bandeira de impor a arte através da raça, respeitando as leis existentes e fazendo que
respeitassem as leis do sambista. Para Paulo da Portela, observa Araújo (2000), as vestimentas dos
sambistas faziam parte de uma conduta respeitável, razão pela qual, se apresentavam de terno, gravata
24
e sapatos. A aparência para o grupo de Oswaldo Cruz era de suma importância para alcançar
respeitabilidade. A respeito da aparência, Paulo comentava com o grupo do Estácio, que eles ficavam
expostos ao usarem chinelos charlotes e lenço no pescoço. O grupo de Oswaldo Cruz saia de terno e
gravata, sapato tipo carrapeta, chapéu de palha, anéis de prata gravados em ouro com as iniciais de
seus nomes.
O sonho deles eram também desfilar na Avenida Rio Branco, recebendo os aplausos de todos, sem a incômoda perseguição da polícia. Essa verdadeira metamorfose que os sambistas da Deixa Falar não souberam fazer, os blocos de Oswaldo Cruz, conseguiram, os da Mangueira também e os da Favela idem. (ARAÚJO, 2000 p.265)
Fernandes (2001) descreve que a história das Escolas de Samba é também uma parte da
história da relação dos grupos populares do Rio de Janeiro com seu espaço vivido e meio ambiente -
bairros populares, subúrbios e favelas da cidade. Os grupos expulsos da cidade, marginalizados e
segregados político-culturalmente, foram postos a seguir para outros espaços, após a remodernização
da cidade do Rio de Janeiro. Esses grupos construíram e aperfeiçoaram o convívio comunitário, se
reinterpretaram e conquistaram uma identidade na cidade. Identidade que passou a ser não só a da
cidade, mas a da própria nação.
Fernandes (2001) expõe que a escola de samba, um dos maiores espetáculos festivos da
modernidade, é uma criação cultural popular inventada e organizada por grupos sociais das favelas,
subúrbios e bairros populares do Rio de Janeiro no final da década de 1920. Quando as Escolas de
Sambas surgiram, o carnaval carioca já era um evento célebre internacionalmente. Em grande parte,
era dominado por manifestações como as grandes sociedades e o corso, arquitetados e comandados
pelas classes superiores da capital do Brasil. Os criadores das escolas de samba não tinham um palco
festivo destinado a eles, desciam dos morros e subúrbios para ocupar espaços na cidade carioca com
seus espetáculos.
No Centro da cidade existiam competidores respeitáveis, como os ranchos, que apresentavam
exibições e desfiles espetaculares com enredos que reproduziam trechos de óperas clássicas. Frente a
esse quadro, os sambistas agiram de forma a se fazerem respeitados, e assim ocuparam um cenário na
cidade carioca, transformando sua cultura na principal cena festiva da cidade e como identidade
nacional.
Nos subúrbios e favelas do Rio de Janeiro, as escolas de samba demonstram as possibilidades
existentes entre os homens e o meio ambiente, uma vez que através dessas comunidades segregadas,
esses homens se uniram em prol de sua cultura. Tal aglutinação deu a esses homens vozes, ganhando
visibilidade através de uma expressão festiva, que aos poucos ganharam o direito a exibirem sua
cultura na cidade carioca. E o samba acaba por ser difundido como uma das representações mais
clássicas desta cidade e da nação (FERNANDES, 2001).
25
Por essas razões, o caminho bem-sucedido das escolas de samba serve de artifício para as
classes dominantes lançarem mão do discurso de raiz e de mito da democracia racial no Brasil.
Empreendendo esta busca, pudemos constatar, principalmente a partir de Martin-Barbero (1998), que, depois de ser descoberta pelos românticos no final do século XVII, a cultura popular evoluiu seguindo um curso de diluição entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, sobretudo pela emergência do conceito de classe social no pensamento marxista, e pelo de massa no discurso da direita. Além do mais, neste período a ideia de povo estava inteiramente associada ao Estado nacional moderno como mostra Hobsbawm. Entretanto, tal dissolução só não foi completa porque o anarquismo, com seus traços de romantismo, valorizou a cultura popular, suas músicas e festas e não desdenhou suas crenças religiosas.(FERNANDES,2001,p.28)
Relata Araújo (2000) que não existem registros oficiais que 1930 houve desfile, mas os
antigos diziam que a Escola de Samba de Oswaldo Cruz, desfilou em seu bairro e na Praça Onze com
o codinome de Quem Nos Faz é o Capricho, designação dada ao antigo Conjunto de Oswaldo Cruz.
Em 1931, a Quem nos Faz e o Capricho se apresenta na Praça Onze com o nome de Vai Como Pode.
O autor relata que não existem notícias de jornais da época sobre a ocorrência do desfile de escola de
samba nessa data.
Entretanto, Antonio Rufino dizia que o desfile aconteceu sim e que o enredo foi Sua
Majestade o Samba. Nesse ano, Antonio Caetano criou a primeira alegoria da Vai Como Pode no
carnaval, também nesse ano Mangueira, Estácio e Unidos da Tijuca se apresentaram na Praça Onze.
Os primeiros concursos extraoficiais, segundo Araújo (2000), aconteceram em 1932 com o
patrocínio de “O Mundo Sportivo”, a vencedora foi Mangueira; em 1933 o patrocinador foi o jornal
“O Globo”, a vencedora foi a Mangueira. Em 20 de janeiro de 1934, o então Prefeito Pedro Ernesto
organizou com as escolas de samba um desfile no campo de Santana, cobrando ingresso nas
arquibancadas, com um júri formado por cronistas, deu o primeiro lugar a Mangueira e o segundo
lugar a Vai como Pode. A partir dali ficou resolvido que o desfile seria no Stadium Brasil e que o povo
votaria. O grupo da Mangueira se rebelou contra. Com ausência da Mangueira, a campeã foi a Escola
de Samba Recreio de Ramos. Em 1935 o poder público estabelece um local para o desfile e o insere no
calendário oficial da cidade. Nessa época as escolas de samba ganham a sigla de GRES (Grêmio
Recreativo da Escola de Samba) e o direito do recebimento de uma verba, chamada subvenção. Nesse
ano de 1935, a vencedora foi a Vai Como Pode que é deu origem a Portela.
O autor ainda finaliza que, na década de 30, as Escolas de Samba procuram suas identidades,
tendo como exemplo os ranchos carnavalescos das grandes sociedades. Foi um tempo de criação. A
Portela saiu na frente introduzindo nos desfiles, a comissão de frente uniformizada; fez a primeira
alegoria; fez uso da corda nos desfiles; e a criação do primeiro enredo. A Deixa Falar (Estácio)
inventou o surdo e o tamborim, a Mangueira introduziu na bateria o pandeiro oitavado e a substituição
da gambiarra pela iluminação elétrica, A Vizinha Faladeira colocou cavalos e limusines na comissão
26
de frente, confeccionou os instrumentos com barrica francesa e iluminou a escola com lampiões de luz
de carbureto, e assim as inovações foram acontecendo lentamente (ARAÚJO, 2000).
1.3 As rodas de samba e o partido alto no Rio de Janeiro
Os encontros entre negros e mulatos ao final do século XIX nas casas das tias, ao término das
funções religiosas, nas casas de zungús, nos quintais suburbanos envolvidos pelo samba, comida,
bebida e batuque passam a ser denominados como pagode. Esses negros e mulatos discriminados
socialmente e racialmente buscam através dos batuques, cantos e danças minimizarem a sua condição
frente à sociedade através desse modelo de entretenimento.
Nei Lopes (2008) declara que as rodas de samba e partido alto no universo do samba se
fundem em virtude dos eventos promovidos e das indústrias fonográficas que identificam os estilos
musicais e os encontros entre sambistas e simpatizantes com tais denominações.
Assim sendo, o termo pagode, de acordo com Nei Lopes (2008), faz parte da linguagem
musical no Brasil desde o século XIX. Contudo, em 1980 tomou uma forma especificamente carioca
com um modelo moderno e inovador de se fazer samba. Esse modelo surgiu espontaneamente nos
pagodes, nas festas do samba e encontros entre sambistas.
O pagode teve seu auge no mercado em 1986, tendo, como mola mestra, a ampla exposição e
revalorização do partido alto. O partido alto era uma modalidade de samba, até os anos 80 do século
XX, de pouca visibilidade. Então, as rodas de samba dos fundos dos quintais revelaram e confirmaram
o talento de muitos bons versadores que cultuavam a velha arte, como o cantor Zeca pagodinho e Deni
de Lima, sobrinho do legendário compositor Osório Lima do Império Serrano.
Na década seguinte, a indústria fonográfica, ampliada e orientada pela globalização, batiza o
termo pagode como uma forma pop de fazer samba, que guardava poucos elementos do samba
inovador dos anos 80, massificando o samba de forma enganosa.
Observa Nei Lopes (2008) que essa diluição do pagode partia, nos anos 90, da cidade de São
Paulo, em que um grupo famoso da referida cidade engendra o rótulo equivocado de pagode paulista
por incluir nas partituras de seus primeiros lançamentos elementos do rock, que denominava o advento
de samba rock. Ao contrário da proposta deste grupo, o bom samba sempre primou pela riqueza
melódica com o uso dos instrumentos básicos do chorinho como violões de seis e sete cordas e
cavaquinhos.
Essa imposição de samba diluído, aborda Nei Lopes (2008), gerou reação de um segmento
público politizado do samba que se convencionou como “samba de raiz”, no qual o partido alto tem
lugar de destaque. Logo, na década de 90, com a expansão da internet, das produções fonográficas
independentes e de livrarias com estantes dedicadas a esse tipo de produção, não divulgadas pelas
grandes lojas de disco, os pagodeiros de raiz impuseram suas artes.
Com a invenção da Lapa Carioca como grande espaço musical, o samba, e nele o partido alto,
27
ganhou nova notoriedade.
Por outro lado, note-se que a descoberta do samba “de raiz” se insere em um contexto de busca da identidade cultural através da música popular experimentada por muitos jovens das grandes cidades brasileiras. Politizando, o jovem é naturalmente levado a um consumo mais seletivo, deixando de lado as facilidades e os imediatismos vendidos pela cultura de massa em favor da elaboração artística, trocando efêmero pelo permanente. (NEI LOPES, 2008, P.11)
O autor ainda relata que são os jovens frequentadores dos centros culturais e dos pequenos
espaços onde os de “raiz” se apresentam que vem sustentando, como fã ou através de estudos, a
tradição do partido alto, que vem se expandindo com toda força.
As rodas de samba, que ocorrem na cidade do Rio de Janeiro, são únicas e não são repetitivas.
Toda semana acontecem, em diversos lugares da cidade carioca e em outras cidades brasileiras,
dezenas de rodas de samba, que obedecem as suas próprias estruturas padrão, com regras e modelos
sempre muito bem definidos para os participantes. Como num ritual, a roda de samba preserva e
atualiza sua origem. (MOURA, 2004).
Na roda de samba, a tradição dialoga com o presente no curso da história, neste ambiente tudo
acontece de acordo com as condições materiais possíveis, porém se faz necessário que os fundamentos
sejam respeitados. Moura (2004) expõe que em suas visitas às rodas de samba, foi contagiado pelo
ritmo, inclusive algumas vezes ariscava tocar um instrumento. Em uma visita à roda de samba de
Dona Mariana no bairro da Muda no Rio de Janeiro, Moura (2004) observa a chegada dos
participantes e músicos que chegam de carro, taxi, de ônibus e os que moravam perto chegavam a pé.
De acordo com o autor, entre uma cerveja e outra, a roda foi se formando, as pessoas iam se
acomodando e nesse ambiente notava-se a hierarquia, pois todos os presentes aguardavam o sinal de
comando dos organizadores da roda. Enquanto os músicos se posicionavam em local destinado a eles
com seus instrumentos em volta de uma grande mesa, atrás deles, em pé, ficavam os simpatizantes.
Identifica Moura (2004) que, neste universo, existe certo clima de julgamento com relação ao
desempenho e a legitimação da canção. Esse espaço também é de teste de novas produções, de união
de pessoas, de troca de impressões, de sentimentos e de criatividades.
Souza (2007) descreve que as práticas nas rodas de samba, buscam trazer em seus repertórios
a tradicionalidade musical, bem como contextualizam a história social, apresentando uma função de
transmissora de memória e de construção de espaço de sociabilidade de saberes baseados no fazer
cultural. Esses saberes acontecem de forma compartilhada através do repertório, do canto, dos modos
de organização e realização das rodas, e os instrumentos fazem, também, parte desse contexto. Além
de remeterem a memória e as tradições dos grupos, o que apresenta um modelo de re-significação de
tais manifestações dentro desses contextos sociais e culturais capazes de gerar processos identitários,
que mantém os agrupamentos nas rodas de samba.
28
Segundo Souza (2007), o samba na sociedade brasileira se reveste de sentidos diversos e se
apresenta de maneiras variadas de acordo com o período e localidade, grupo social e cultural.
1.4 Relações étnico-raciais no espaço geográfico: do centro ao subúrbio carioca
Nosso estudo sobre o samba nos obrigou, em virtude de uma abordagem metodologia, a optar
por um recorte temporal e espacial. Em função disso, nos detemos em pesquisar o samba no Rio de
Janeiro no período compreendido entre final do século XIX e século XXI.
A cidade o do Rio de Janeiro apresenta, até os dias de hoje, características que marcaram as
relações étnico-raciais, seja no Cento da cidade, seja na geografia suburbana, tendo como marca as
festas, o carnaval e o samba. Esses eventos contribuíram para reforçar as relações raciais, entre negros
africanos e afros cariocas e negros e brancos, nos espaços que compreendem a difusão cultural dos
negros na cidade do Rio de Janeiro.
O Rio de Janeiro com suas medidas de saneamento e urbanização da capital da República nos
primórdios do século XX, aliados a outros fatores históricos e sociais, leva as populações mais pobres,
dentre eles negros, estrangeiros e brancos empobrecidos para o sertão carioca. Em virtude do advento
republicano, surgem moradias nas encostas e contraencostas dos espaços que envolvem a Zona Norte
da cidade carioca. Assim, vão nascendo núcleos residências e comercias nessa geografia. Nas margens
da malha ferroviária, um meio de transporte de massa, que auxiliou expansão, e o sistema de moradia
para outros espaços da cidade, antes e após a Reforma Urbana do Centro da cidade.
Nesse contexto é que esta investigação visa compreender as relações étnico-raciais, através
das culturas de matrizes africanas, especificamente, nos lugares que compreendem os bairros de
Madureira e Oswaldo Cruz.
O meu lugar, /é caminho de Ogum e Iansã,/lá tem samba até de manhã,/uma ginga em cada andar/ O meu lugar,/é cercado de luta e suor,/esperança de um mundo melhor,/e cerveja pra comemorar... O meu lugar,/tem seus mitos e seres de luz,/é bem perto de Oswaldo Cruz,/Cascadura, Vaz Lobo, Irajá./O meu lugar,/é sorriso é paz e prazer,/o seu nome é doce dizer,/Madureira, lá, laiá./Madureira, lá, laiá..../Ai meu lugar,/quem não viu Tia Eulália dançar,Vó Maria o terreiro benzer,/e ainda tem jongo à luz do luar.../Em cada esquina um pagode um bar,em Madureira./Império e Portela também são de lá,/Em Madureira.(“O MEU LUGAR”, DE AUTORIA DE ARLINDO CRUZ & MAURO DINIZ).
Os bairros de Madureira e Oswaldo Cruz e seus novos moradores que vieram das fazendas de
café do Vale do Paraíba e do Centro da Cidade, através da malha ferroviária, buscaram um espaço
para viverem com dignidade. No sertão carioca, cercado de campos vastos e amplos terrenos, a
população fixou suas residências nos bairros de Madureira e Oswaldo Cruz. Na falta de
entretenimento público nestes bairros, os moradores passam a promover encontros festivos nos
grandes quintais que residiam, e assim, minimizavam as ausências de políticas públicas, importantes
29
para a dignidade humana. Os encontros festivos, nos quintais dos novos moradores, culminam
inicialmente em Blocos Carnavalescos, que, tempos depois, recebem a denominação de Escolas de
Samba. Tais eventos promoveram encontros entre músicos e compositores já consagrados no mundo
do samba e revelaram novos talentos no samba carioca.
. .. Abre a roda chegou Madureira!/A poeira já vai levantar/O batuque/ginga ioiô/ginga Iaiá...
(Wanderley Monteiro, Luiz Carlos Máximo, André do Posto 7 e Toninho Nascimento-Portela 2013)
No bairro de Madureira, antes da chegada dos novos moradores, existiam vários engenhos,
tendo como destaque o Engenho da Portela. As áreas de morros contavam com uma vegetação cerrada
explorada por lenhadores para fabricarem carvão e as lavouras cultivavam café, aipim e batata doce. O
nome do bairro é em homenagem a um senhor de nome Lourenço Madureira que era agricultor e
boiadeiro da Fazenda de Campinho, cuja extensão territorial que se expandia até a área que
compreende o bairro de Madureira na atualidade.
A população que ocupou o bairro, especificamente no morro da Serrinha, se constituiu através
de trabalhadores expulsos dos morros de Santo Antonio, Favela (hoje Providência), Castelo e São
Carlos. Também, compuseram a população os imigrantes italianos, os negros familiares de ex-
escravos que vieram do interior do Estado do Rio de Janeiro e os negros urbanos, vindos do Centro da
cidade. No morro da Serrinha, em Madureira, eles construíram seus barracões de zinco, estuque e
sapê, além de praticarem o jongo, a ladainha, o samba e a umbanda, como forma de entretenimento e
expressão cultural.
...Eu fui a Portela ver os meus sambistas.../Mas consultando a minha lista /Também não fui feliz/Lá falaram-me de um tal terreiro/ Onde eles passam o dia inteiro/Num lugar qualquer de Oswaldo Cruz.../ É uma casa formosa/Que reúne paz, amor e alegria/Aí vi os sambistas de fato/Manacéia e Lonato e outros mais/Juro que fiquei boquiaberto/Nunca me senti tão perto/Da Portela de tempos atrás...(‘Homenagem a Velha Guarda’ de autoria de Monarco.)
O bairro de Oswaldo Cruz, em seus primórdios, era uma grande rua chamada de Rio das
Pedras, que por ser local de passagem por boiadeiros, foi tomando características de bairro. Seu nome
é uma homenagem ao médico sanitarista. Os moradores do bairro, negros, principalmente, os
perseguidos, que no passado utilizavam o canto, a dança, o batuque e sua religião para enfrentar a dor
do passado. Traz para a área, toda essa cultura como forma de divertimento e, principalmente, longe
do olhar crítico da elite carioca.
Os moradores dos referidos bairros, em virtude das ausências dos espaços públicos, constroem
um saber coletivo, legados de grupos específicos e de geografias diferenciadas, e estabelecem trocas
culturais que se disseminam nos bairros de Madureira e Oswaldo Cruz. Promovendo aspectos sociais e
identitários passam a identificar os bairros e seus moradores através de seus modelos culturais, sociais
30
e religiosos difundidos entre si.
Nesse contexto cultural, o jongo, a ladainha, as religiões de matrizes africanas, as iguarias, as
relações interétnicas e o trabalho fortalecem o saber coletivo em uma época onde as informações e
conhecimentos eram adquiridos em um modelo de fazer e das memórias coletivas.
Os modelos de convivência estabelecidos pelos moradores de Madureira e Oswaldo Cruz, com
o passar do tempo não se detém aos quintais, onde as trocas do saber coletivo aconteciam. Com suas
rodas de samba e o jongo, pela ausência de espaços públicos que contemplassem tais encontros, esses
grupos não se contentaram em dividir seus saberes em âmbito privado. Partiram para a organização de
blocos e espaços religiosos em âmbito público, onde frequentadores do Centro da cidade, que
comungavam dos mesmos saberes, passam a compartilhar dos mesmos lugares.
Partindo do princípio dos espaços públicos, as casas de encontros de matrizes africanas
ganham características públicas, seja por moradores ou visitantes de outros bairros que compartilham
da mesma cultura, como por figuras ilustres de tez branca. Esses espaços religiosos ao final de seus
encontros terminavam em pagodes com cantorias de composições inéditas ou não de sambas, que os
presentes como Paulo da Portela, Ismael Silva, dentre outros divulgavam, após os encontros
espirituais.
O nascimento das escolas de samba Portela e Império Serrano também se efetivam a partir
desse fazer coletivo dos bairros de Madureira e Oswaldo Cruz, que antes da denominação em pauta,
tiveram outras denominações e sofreram fusões através de inclusões de novos grupos.
E lá vou eu cantando com minha viola/O amor tem seus mistérios/Por onde me deixo levar/Laiá/Nossa história começa por lá/No engenho da fazenda/Dos cantos de "canaviá"/Bate o sino da capela/Ôi... que é dia de santo, sinhá/Tem mironga de jongueiro/O tambor me chamou pra dançar /...Surgiu a coroa imperial/Em outros caminhos para o mesmo ritual/Portela, meu orgulho suburbano/ Traz os poetas soberanos/nesse trem para cantar/Que Madureira é muito mais do que um lugar/É a capital do samba que me faz sonhar.. (Wanderley Monteiro, Luiz Carlos Máximo, André do Posto 7 e Toninho Nascimento-Portela 2013)
Os bairros foram crescendo ganhando notoriedade através dos campeonatos, dos sambas
enredos e dos compositores dessas escolas de samba, como Silas de Oliveira, Beto sem Braço, Aloísio
Machado, Zé Kéti,Candeia, Paulinho da Viola, Manacéia, Ari do Cavaco, Monarco, Mauro Diniz,
Mano Décio, Arlindo Cruz, entre outros.
A chegada do aparelho de rádio e televisão nas residências populares e mais distantes dos
bairros de Madureira e Oswaldo Cruz aproxima esse grupo de compositores, através de suas
31
composições e das escolas de samba, com a divulgação de seus sambas enredos3, de pessoas de outras
comunidades. Tal aproximação acontecia em festas de aniversários, em parques de diversão do
subúrbio e da baixada fluminense, que tocavam, em suas vitrolas de móveis, portáteis e nos altos
falantes, os sambas de enredos e os sambas de terreiro.
É do conhecimento de todos que muitos sambistas compuseram músicas de grande sucesso e qualidade reconhecida, que fazem parte das clássicas canções da chamada música popular brasileira. Homenageados como grandes compositores, no entanto suas histórias de vida, em sua maioria, estão recheadas de episódios que denunciam suas desfavoráveis condições de sobrevivência e os preconceitos em função da cor negra de sua pele. (LIMA, 2001, p.12).
Na busca de compreendermos o lugar ocupado pelo samba na cultura carioca, torna-se
imprescindível prescurtarmos a raiz das matrizes africanas na sociedade carioca. Assim sendo, o
próximo capítulo desta investigação observará as contribuições dos negros para a cultura afro carioca,
desde a sua chegada do continente africano à cidade do Rio de Janeiro.
Capitulo II
2 Rio de Janeiro - território urbano e suas características escravistas do século XVIII ao Século
XIX
O Rio de Janeiro do século XIX foi marcado pela chegada de vários negros de nações
africanas diferenciadas. Tais características provocam inúmeras discussões acerca da cidade, que se
transforma em espaços eminentemente negros. As discussões promovidas por estrangeiros em visita à
cidade, através das pranchas de pintores adventícios, descreviam sobre tópicos que envolviam sua
desagradável estrutura organizacional, o trânsito de negros na cidade e as características físicas destes
incomodavam vários visitantes.
A cidade do Rio de Janeiro, a partir da chegada da família real, passa por modificações que
envolvem as questões físicas, sociais e culturais. Tais modificações promoveram a ampliação da
cidade para novos espaços da cidade e seu entorno.
3 Samba de enredo é um sub-gênero do samba moderno, surgido no Rio de Janeiro na década de 1930, feito especialmente para o desfile de uma escola de samba(Araújo,1991)
32
Com advento da Abolição da escravidão, a Primeira República e a Reforma Pereira Passos,
final do século XIX e início do Século XX, promovem nos espaços do Centro da Cidade do Rio de
Janeiro e suas adjacências novos modelos de moradia, que incluem os cortiços e as favelas. Com
aparecimento da Primeira República, os brancos, que não mais dispunham de recursos financeiros para
desfrutarem dos novos modelos de imóveis do Centro da Cidade, passam a morar também nos cortiços
e favelas, que, em seus primórdios, eram ocupadas por negros e afrodescendentes.
O segundo capítulo trata de acontecimentos na cidade do Rio de Janeiro, que apontam para
investigação de elementos que nos mostre a reconstrução da vida e da cultura dos negros no período
escravistas e após abolição.
Para tal, contamos com registros que abordam relatos de viajantes, que pela cidade passaram e
expressaram suas perspectivas acerca do cotidiano da cidade do Rio de Janeiro. Aspectos que
abrangem a chegada dos negros de diferentes nações, trabalho escravo e de ganho, a cultura afro-
carioca, vida e morte e urbanização da cidade. Destacaremos a influência da chegada da família real,
conceitos e preconceitos acerca da figura do negro e do mulato após a Primeira República.
Relataremos aspectos que compreendem a ampliação da cidade para o seu entorno, os encontros
festivos e o cotidiano compartilhado entre negros e europeus, bem como as contribuições da
população negra para a cultura carioca e o advento da Reforma Pereira Passos.
2.1 A visão dos estrangeiros acerca do Rio de Janeiro e sobre os negros que habitavam na cidade
O Rio de Janeiro se torna um importante porto negreiro a partir do século XVIII, quando
cerca de dois milhões de negros ancoraram na cidade, principalmente a partir da segunda metade do
século. Nesse período, o tráfico negreiro trouxe para cidade, sobretudo, negros oriundos da costa de
Angola, Daomé e Costa da Mina, em virtude da necessidade da mão- de- obra escrava (MOURA,
1995).
Como observa Karasch (2000), existiam, pelo menos no Rio oitocentistas, sete principais
nações africanas, dentre outras. As mais significantes eram Mina, Cabinda, Congo, Angola (ou
Loande), Cacanje (ou Angola), Benguela e Moçambique. As menos abundantes, muitas incorporadas
às nações principais, eram Gabão, Anjico, Monjola, Moange, Rebola (Libolo), Cajenje, Calundá
(Bundo) Quilimane, Inhamban, Mucena e Monbaça. Esses termos ambíguos relacionados às nações
africanas que a princípio significam portos de exportação ou vasta região geográfica dirigem atenção
para á África Oriental e especialmente para o centro oeste africano, possivelmente tiveram a maioria
dos africanos que vieram para do Rio de Janeiro.
Os escravos de origem africana somavam um número expressivo da população escrava do Rio
de Janeiro nas primeiras décadas oitocentistas (FREITAS, 2009). Neste período os escravos são
divididos de acordo com o local de nascimento: África ou Brasil. Os brasileiros são classificados por
33
cor (pardo, crioulo, mulato, cabra etc.), enquanto os africanos, todos considerados negros, distinguem
por local de origem (Angola, Moçambique, Mina etc.).
Complementa Freitas (2009) que o uso constante das chamadas nações é utilizado como
mecanismo de identificação para os africanos traficados na organização dos grupos da América. O
modelo de identificação adotado redefine o limite entre grupos étnicos e através da formação de
unidade inclusiva faz surgir esferas de solidariedade entre diferentes grupos. Assim, as nações servem
como menção para estabelecer novas identidades para a população negra vinda de diversos países do
continente africano.
A variedade de termos usados para designar indivíduos africanos e seus descendentes nunca
possuiu significado fixo único. Mulato, negro, preto, pardo e mestiço foram usados em diferentes
momentos com distintas conotações. Até inícios do período moderno o termo negro ou seu equivalente
não eram usados para identificar uma raça específica, não remetendo a ancestralidade ou etnicidade,
mas sim para simples descrição da cor ou aparência percebida.
O tráfico de escravos de diversos portos trouxe para o Rio de Janeiro um grande número de
escravos de diferentes matizes de cores, o que resultou na tendência de se registrar os escravos através
do aspecto cor da tez para identificação individual e não com base na ancestralidade. O mesmo termo
é usado para diversos tipos de escravos, logo a definição das identidades em virtude da cor da pele foi
o recurso utilizado pelo tráfico de escravos (FORBES, 1993 APUD FREITAS, 2009).
Durante todo período colonial foram utilizadas grande variedade de codinomes para designar
pessoas não brancas e não índios, como pardos, mulatos, crioulos, cafuzos, cabras, bodes, pretos,
africanos, curibocas, forros e libertos. E nas últimas décadas do século XVIII já era bastante usual a
associação entre a cor negra da pele à escravidão. Insuficiente para delimitar a efetiva distinção social,
o registro da cor da pele precisava ser reforçado por informações da linguagem visual das hierarquias e
das representações sociais. As informações serviam também para apontar os diferentes tipos de
negros, seus usos e costumes, atribuindo-se às tatuagens, pinturas, adornos e fisionomia, valores
simbólicos distintos.
No século XIX, a noção de raça e de desigualdade cada vez mais toma forma no pensamento
cientifico. As diferenças de cor e características físicas reforçam as marcas hierárquicas nas sociedades
escravocratas, mas não eram necessárias para justificar a escravidão, fundada no estatuto da pureza do
sangue. Mesmo a pureza de sangue não serviu, no entanto, para definição de raça de forma homogênea
ao longo dos séculos de colonização. O uso confuso de diferentes divisões raciais, para identificar
indivíduos de ancestralidades variadas, estabelece um status legal para estes setores de população e
distinção o que estavam na base da hierarquia social (FREITAS, 2009).
A inquietação relativa à diversidade racial esteve, no inicio do século XIX, marcada por
preocupação de ordem eminentemente física, relacionadas à moral e aos costumes. O olhar científico
demarcou o busto e sobre ele lançou-se com ferocidade na tentativa de estabelecer afinidades e
diferenças, o que foi definido pelas imagens fisionômicas representadas nas pranchas de Debret e
34
Rugendas. Estes pintores fazem de suas representações uma fusão da tipologia das figuras por sua
fisionomia e marcas culturais embasando a interpretação da diversidade cultural.
A representação visual desses artistas marca o contraste entre os diferentes tipos de negro,
seus grupos sociais, abarcando características anatômicas, cor de pele, tatuagens, pertencimentos,
estilos de cabelo, adereços e deformações físicas. Tais aspectos eram considerados pelos artistas,
representada em suas pranchas, como marca de definição de papel social e pertença geográfica étnica
da população negra. O aspecto visual das pinturas de Debret e Rugendas estabelece uma verdadeira
linguagem iconográfica, que tinha por finalidade acentuar traços identitários e exaltar a enorme
diversidade entre escravos africanos. Essa iconografia buscou evidenciar os variados tipos de negros
por meio de aspectos culturais e fisionomia dos grupos étnicos que habitavam na cidade do Rio de
Janeiro.
A preocupação em definir etnia e caracteres, suas diferenças e similaridades entre as várias
nações, deixa de ser central. Ela leva os artistas a arquitetarem tipos genéricos destinados a compor
suas cenas, dando vida e movimento à cidade e seus arredores através de suas pranchas e pincéis.
Desse modo, o olhar volta-se então para identidades coletivas associadas, não mais aos traços raciais,
porém às ocupações, vestimentas, hábitos e linguagens que emergem nas ruas da cidade.
As imagens das páginas (40,41e 42) a primeira de título “Escravos Negros de Diferentes
Nações” (figura 01)4 é composta por 16 bustos femininos. Debret destaca as nações as quais as negras
pertenciam, em que família e posição servil que elas se encontravam. O pintor as identificava pelo
penteado e adornos.
No que se refere à segunda prancha intitulada “cabeça de negros de diferentes nações” (figura
02)5 é composta por 08 bustos masculinos. Debret atenta primordialmente aos tipos físicos.
As terceira e quarta pranchas de Rugendas intituladas “Cabinda, Quiloa, Rebola e Mina”
4 Figura 01-Esclaves Négres de Differentes Nations – Jean Baptiste Debret-Voyage pittoresque et historique au Brésil. A prancha
intitulada”escravos negros de diferentes nações figura 01 é composta por 16 bustos femininos, de forma a evidenciar rostos,penteados,adornos e a parte superior de seus vestes.Tais características permitem o pintor identificar a que tipo de família pertence,sua posição na família e sua origem de nação
5 Figura 02-Differentes Nations Négres– Jean Baptiste Debret-Voyage pittoresque et historique au Brésil.A prancha intitulada cabeças de
negros de diferentes nações figura 02 é composta por 09 bustos masculinos, de forma a evidenciar penteados, escarificações e tatuagens. Tais características permitem o pintor identificar a que grupo étnico pertence e a categoria de serviço que pertencem
35
(figura 03)6 e “Benguela, Angola, Congo e Monjolo” (figura 04)7 apresentam representações do tipo
de negro escravo, diferente de Debret, uma vez que o pintor se dedica a representar o negro através de
suas etnias, marcas, escarificações e tatuagens e não sua posição na família e características físicas.
Em seus trabalhos, alguns pintores, ainda que participassem de diferentes missões artísticas,
apresentavam partilham de mesmo olhar sobre a figura do negro (FREITAS, 2009).
8Figura 01
Não só os pintores pertencentes à missão artística francesa apresentam suas impressões sobre a
figura do negro. Os estrangeiros que passaram pelo Rio de Janeiro, segundo relatos de alguns autores,
como karasch (2000) e Honorato (2008), deixaram registros diversos sobre a exuberante beleza
6 Figura03- Escravos de Cabinda,Quiloa,Rebola,Mina-Jhoann Moritz Rugendas-Voyage Pittoresque dans et Brésil.Quatro diferentes
nações .A de mina se destaca pela tatuagem em todo o corpo.O negro Cabinda,cuja representação se restringe à cabeça também traz marcas no rosto.Já a negra rebolla é a que apresenta mais idade.
7 Figura 04-Escravos de Benguela-Angola-Congo-Monjola- Jhoann Moritz Rugendas-Voyage Pittoresque dans et Brésil. .O negro de
Benguela aparece de perfil com cabelos grande.Esta acompanhado de um negro Monjola,cuja blusa deixa mostra o colo tatuado, de um negro Congo e de Angola.
8 Esclaves Négres de Differentes Nations- Jean Baptiste Debret ;Disponível em http://www.brasiliana.usp.br.Acesso em
01/10/2012
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natural, a grande luz de cores e matizes da cidade
Seus registros também mostram o quanto criticavam a temperatura quente da cidade, bem
como reclamavam sobre da presença dos escravos e mendigos nas ruas, que causavam medo e
insegurança aos visitantes estrangeiros.
O medo manifestado pelos turistas estrangeiros também pairava sobre as elites que viviam na cidade
ao circularem pelos becos e vielas, onde os grupos excluídos da sociedade se aglomeravam. Tais
Grupos aos olhos da nata carioca estavam sempre prontos a se mostrarem, o que para o imaginário de
uma elite, causava um temor ao pensar em uma possível africanização no Brasil.
9Figura 02
9 Differentes Nations Négres– Jean Baptiste Debret. Disponível em http://www.brasiliana.usp.br .Acesso em 01/10/2012
37
10Figura 03
11Figura 04
A cidade ao mesmo tempo causava atração e medo. Os viajantes que por
10 Escravos de Cabinda,Quiloa,Rebola,Mina-Jhoann Moritz Rugendas .Disponível em http://pt.scribd.com . Acesso em 01/10/2012
11 Escravos de Benguela-Angola-Congo-Monjola- Jhoann Moritz Rugendas Disponível em http://pt.scribd.com .Acesso em
01/10/2012
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aqui passavam deixaram registros diversos e comentários sobre a exuberante beleza natural a grande luminosidade de tons e cores, mas reclamavam do excessivo calor, dos cheiros desagradáveis e mostravam-se amedrontados pela enorme quantidade de negros nas ruas. A mesma cidade que atraía, causava medo e insegurança (HONORATO. 2008 ,p.45)
.
Se recorrermos aos escritos dos viajantes que passaram pelo Rio de Janeiro no decorrer do
século XVIII, talvez possamos compreender um pouco mais a respeito da cidade do momento em
questão e das pessoas que nela habitavam. Os viajantes, que passaram pela cidade, descrevem o Rio de
Janeiro como um espaço desorganizado, uma vez que as ruas não eram calçadas e que a falta de
sistema de esgoto, de coleta de lixo e água encanada davam à cidade um aspecto mal-cheiroso, além
do calor escaldante e o vai- e- vem dos negros seminus. Aos olhos dos visitantes, especialmente o
europeu, estas características davam uma ideia de barbárie, por se encontrar fora dos modelos de
civilizações do velho mundo (BONET, 2009,FREITAS, 2009).
A circulação de negros pela cidade, aponta Benchimol (1992), eram constantes em virtude de
inúmeros ofícios que desempenhavam e ausência de estrutura na cidade. Um dos trabalhos mais
humilhantes se dava por conta da falta de fossas e de latrinas. As ausências de estrutura de esgoto na
cidade contribuíam para que o esgoto fosse levado por escravos na cabeça, para ser esvaziado na baía.
E os negros, que faziam este trabalho, eram chamados de tigres devido às manchas que adquiriam ao
longo do corpo, causadas pelo ofício. O abastecimento de água era feito através de fontes e chafariz,
locais onde negros carregadores e negras lavadeiras de roupas se faziam presente desempenhando seus
trabalhos.
Os estrangeiros, especificamente o europeu, comparavam o Rio de Janeiro do século XIX à
cidade árabe pelo estilo de comércio ruidoso e fervilhante. Eles descreviam as casas como mal
posicionadas, as ruas atravancadas e sujas, sem nenhuma simetria, o que também lembrava cidade
africana. As semelhanças com uma cidade africana, apontadas pelos estrangeiros, não só são
relacionadas à geografia e organização, mas ao expressivo número de negros que movimentavam o
trabalho urbano.
Os estrangeiros, ao permanecerem e se ambientarem na cidade, declara Karasch (2000),
comparavam o Rio de Janeiro a um país do continente africano, pois por volta de meio-dia os brancos
ficavam reclusos devido ao forte calor e só os negros transitavam pela cidade. O Rio de Janeiro era
único, não só pela sua beleza natural, mas também por sua grande população africana escrava.
A história carioca, observa Karasch (2000), sempre nos deu a impressão de uma cidade branca
com traços europeus e trajes muito refinados, o que destaca a presença da população europeia
residente e visitante da cidade. Os escritos dos lusos, residentes da cidade, ignoravam a presença dos
negros na sociedade urbana do Rio de Janeiro.
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Explica Bonet (2009) que os visitantes estrangeiros mais otimistas apontavam que os
portugueses não tinham construído nada de significativo na cidade, porém tinham o mérito de não
destruir muito a natureza. Tal natureza, por possuir exuberante beleza, sugeria compensar de certa
forma o viver em um espaço inabitável, com ruas estreitas, arquiteturas simples e janelas com treliças.
Os formatos das janelas impediam que se visualizasse o interior das casas, o que impedia os
visitantes de descrevê-las. Geralmente, essas descrições apareciam em inventários pós-morte através
da avaliação de bens. Em sua maioria, os cômodos apresentavam pouca ventilação, quartos sem
janelas, pouco mobiliário e desprovido de sofisticação. A presença do mobiliário “cama” era escassa,
pois muita gente dormia em rede, estrados ou esteiras de palha que forravam no chão. Nas salas mais
requintadas, apareciam as marquesas, que dividiam o espaço com as esteiras de palha trançada, estilos
decorativos que aparecem nos desenhos de alguns visitantes do século XIX (BONET, 2009).
Benchimol (1992) expõe que Thomas Ewbank12, em 1846, ao passar pela cidade em visita a seu irmão,
escreve em seu diário as características geográficas, habitacionais, de trabalho e populacional da
cidade do Rio de Janeiro. Em sua abordagem, Ewbank divulga que a cidade apresentava espaços não
bem cortados, uma vez que as maiorias das ruas se cruzam, impossibilitando o uso de uma bússola. O
contorno irregular das ruas da cidade era em função da geografia montanhosa, com baias e praias que
separam as ruas. A Rua da Alfândega era uma rua estreita com casas baixas nos dois lados.
Nesses espaços estreitos encontravam-se os meios fios de pedras, o que dificultava o movimento
dos carros que quase tocavam nas casas quando se cruzavam. De forma que nenhuma construção que
salientasse a casa poderia ser feita. Os sobrados eram um estilo de construção que predominava,
embora as casas térreas fossem numerosas na arquitetura da cidade.
As construções da cidade eram grotescas e nada era construído de maneira uniforme. Viam-se
os tijolos aparentes ou madeira. As maiorias das paredes eram de pedras brutas cobertas com
argamassas e caiadas de branco. Alguns proprietários coloriam as fachadas de azul ou rosa, que eram
as cores favoritas. Os telhados chamavam a atenção nestas residências, por serem mais ou menos
côncavos. As residências apresentavam estátuas de aves e outras figuras em seus berais. Nas janelas e
no andar superior eram comuns as sacadas.
Ewbank também apresenta as diversas modalidades de trabalho escravo urbano, que exigiam
força muscular dos negros e movimentavam as atividades portuárias, comércio ambulante, oficinas,
canteiros de obras e o transporte aos senhores. Na Avenida da Rua Direita, os passantes carregavam
trouxas, fardos, barris, carroças dentre outros objetos. Outra característica da avenida era a presença de
12 Thomas Ewbank - Escritor, inventor, etnólogo, cientista e desenhista Thomas Ewbank inglês radicado nos Estados Unidos, desembarca
no Rio de Janeiro em primeiro de fevereiro de 1846- http://eduem.uem.br aceso em 27/11/11
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negros barulhentos e suados, que por ali transitavam. Não existiam carros puxados por animais para o
transporte de mercadoria. As bestas de carga eram os escravos e o peso que estes carregavam era
suficiente para matar burros e cavalos. As ruas da cidade eram coloridas com pregões ambulantes com
todo tipo de mercadoria, como artigos importados e produzidos no local, alimentos e gêneros de
consumo.
Os negros alforriados dominavam a esfera produtiva. Embora ocupassem uma posição
subordinada na economia urbana, desempenhavam pequenos ofícios, como latoeiros, carpinteiros,
pedreiros, calceteiros, impressores, pintores de tabuletas e construtores. Mesmo em estabelecimentos,
as maiorias dos negros não tinham funções assalariadas. A separação social na Cidade entre o branco
livre e do escravo, mostram que os trabalhos especializados eram exercidos pelos brancos, cabendo
aos negros o trabalho braçal (BELCHIMOL, 1992).
Na cidade, cada vez mais o número de pequenos proprietários prosperavam sobre o manto do
poder e do prestígio dos grandes senhores rurais e dos remediados comerciantes investidos de títulos.
Sobre os escravos domésticos, descreve Lucccock:
Toda casa que se prezava era provida de escravos, os quais se haviam ensinado algumas ou mais artes comuns da vida e que não somente trabalhavam nessas especialidades para a família a que pertenciam, como eram também alugados pelos seus senhores a pessoas não tão bem providas quanto aqueles. ‘(JOHN LUCCCOCK APUD BELCHIMOL 1992.p.36)
Os serviços dos escravos eram de manutenção doméstica ou da propriedade territorial urbana.
Os mesmos eram alugados pelos seus senhores, uma vez que eram ensinados a eles alguns ofícios. Os
serviços ensinados aos negros abrangiam um leque bastante variado e algumas profissões eram
distribuídas às mulheres, homens e até mesmo às crianças. Dentre os trabalhos são citados o de
limpeza de esgoto e abastecimento de água. Estes serviços mais tarde passaram a ser rentáveis aos
serviços públicos nas mãos de companhias estrangeiras.
No período que compreende as primeiras décadas do século XIX, diz Honorato(2008) que os
escravos quase que exclusivamente desempenhavam todas as tarefas braçais, tanto na rua como no
interior das casas. A quantidade de negros que circulavam pelas ruas do Rio de Janeiro era tão grande
que a impressão dos viajantes era ser um país de negros e mestiços. Os contingentes de escravos
vindos de diversas regiões da África que desembarcavam no Porto do Rio, juntamente com os vindos
de outras regiões do país, se reuniam na cidade e desempenhavam diversas atividades, formando uma
expressiva população. Os negros de ganho e de aluguel trabalhavam ainda como operários nas
manufaturas, marinheiros, quitandeiros, barbeiros pescadores.
Os negros de ganho trabalhavam na rua e entregavam ao seu senhor uma quantia estipulada. As
diferenças entre o escravo de ganho e escravo de aluguel eram que o escravo de ganho trabalhava fora
e dividia o ganho com o seu senhor, ao passo que, o de aluguel, era alugado pelo seu senhor a outras
41
pessoas, a quem prestava serviços diversos mediante ao recebimento de uma renda. A quantia recebida
era entregue ao seu senhor, não tendo assim o escravo de aluguel nenhum ganho financeiro pelo fruto
de seu trabalho. O escravo de ganho tinha autonomia para cobrar seu serviço e após separar a
quantidade de seu senhor, poderia ficar com o que sobrava, e muitas vezes com esse trabalho,
juntavam um pecúlio ao qual poderia no futuro comprar sua alforria (HONORATO 2008).
Expõe Karasch (2000) que a cidade do Rio de Janeiro surpreendia os estrangeiros que por ela
passava, nos primórdios século XIX, ao perceberem que os escravos também apresentavam atividades
e profissões especializadas, diferentemente do que eles imaginavam - lavradores e preguiçosos, sem
nenhuma habilidade. Os escravos africanos tinham habilidades voltadas para a música, pintura e
esculturas. Muitas vezes os artistas de renome não eram brancos, mas negros ou mulatos, o que
causava surpresa aos visitantes da cidade.
2.2 A cultura escrava e as transformações urbanísticas da cidade
Explica Karasch (2000) que, na primeira metade do século XIX, a cultura escrava no
Rio de Janeiro é denominada como Samba e canção. Tal denominação foi associada à
linguagem, etiqueta, comida, vestimenta, arte, recreação, religião dentre outros aspectos.
O jeito como os escravos do Rio de Janeiro se comportavam, com seus cantos e
danças, forneceram novos aspectos culturais na cidade. Contribuiu e ainda contribui com o
jeito de ser, de viver e de se divertir do povo carioca até os dias de hoje. A autora ainda
descreve que os escravos do Rio de Janeiro sempre estavam cantando em sua língua natal,
quando não, cantavam em grupo quando trabalhavam nas casas de seus senhores, como
carregadores ou demais atividades na rua. Quando cantavam em grupo, sempre tinha um deles
que apresentava características do cantor principal e os demais o acompanhavam com um tipo
de refrão acompanhado por palmas e algumas vezes por instrumentos. A chegada de D. João
VI ao Rio de Janeiro foi marcada pelo canto de 12 escravos que o carregavam na cadeirinha e
cantavam assim “Nosso sinhô chego/Cativeiro já acabo.” Era um canto de esperança de dias
melhores.
Destaca Karasch (2000) que o cantar para os escravos no momento em que estavam
trabalhando, sendo em grupo ou não, especificamente nas ruas da cidade, era uma forma de
procurarem disfarçar o calor e o peso da mercadoria. A música puramente africana era uma
característica constante nesses atos. E assim, as imagens da página (48) provocam no nosso
imaginário, como possivelmente o ato de cantar acontecia durante o trabalho.
De acordo com a autora, muito dos escravos, que viviam pela cidade do Rio de
42
Janeiro, tocavam instrumentos europeus como profissão. A maior empregadora de músicos
escravos era a família real, que chegou a ter uma orquestra com 57 escravos, que se
apresentava em ocasiões especiais, em que tocavam música instrumental e vocal para uma
platéia branca. Os escravos também contribuíram com estilos musicais africanos nas igrejas,
principalmente, na Igreja de Nossa Senhora do Rosário.
Geralmente em feriados religiosos, especiais ou sempre que as procissões pedissem
uma banda pequena, os músicos barbeiros eram solicitados para os eventos. Os barbeiros
também tocavam nas festas da Igreja da Glória sobre a batuta de Dutra, mestre dos barbeiros
da Rua da Alfândega. Os músicos se trajavam de jaqueta branca, calça preta, chapéu alto e
com os pés descalços. Além da música, os barbeiros também exerciam práticas medicinais.
Graças à diversidade étnica dos escravos do Rio de Janeiro foi criada a cultura afro carioca
nova, combinação de tradições africanas e lusitanas. Assim, os negros aliviavam o fardo da
escravidão, transmitiam tradições religiosas e contribuíam para desfrute de uma vida social.
Caso desejassem, homens e mulheres livres podiam unir-se a eles em comemorações
populares. Na primeira metade do século XIX, alguns cativos se voltavam para as tradições
africanas e outros recorriam à herança luso-brasileira (CARVALHO.D. 2000, KARASCH,
1990).
Embora os escravos vivessem o constrangimento da vida urbana e apesar de seu
trabalho inflexível, eles eram participantes ativos de uma nova cultura, com linguagem e
etiqueta, comidas, roupas, artes, recreação, religião, vida em comum e estrutura familiar
própria.
No que se refere à comida, muitos foram os pratos de origem africanas incorporados à
cultura carioca, como farofa, pirão, angu, feijão e canja temperados generosamente com
pimenta. Os doces produzidos pelas negras, que vinham da Bahia para a cidade do Rio, foram
agrupados às demais iguarias produzidas pelas negras de diversas nações africanas que na
cidade residiam. Com o tempo essas mulheres já preparavam alimentos de muitas tradições
culturais europeias. Muitos dos escravos do Rio de Janeiro, sempre depois de uma refeição
apimentada, pegavam os instrumentos africanos construídos por eles mesmos e começavam a
tocar e cantar.
Havia tambores de muitos tamanhos e formatos. Os maiores como o caxambu, não eram, em geral, vistos e desenhados pelos artistas estrangeiros, porque a perseguição policial levava os escravos a escondê-los e só usá-los a noite em locais recônditos. (KARASCH, 2000, p.315.)
43
Figura 0513
Os escravos da Cidade do Rio de Janeiro dançavam com muita frequência
enquanto desempenhavam seus ofícios, independente de toques de instrumentos, que poderia
acontecer com palmas, latas e batidas de ferramentas. Em geral, os escravos traziam os
instrumentos europeus para suas habilidades musicais. O Rio do século XIX apresentava uma
cacofonia de tradições musicais, dando um estilo peculiar à cultura musical carioca. E esta
cultura afro-carioca, a partir das muitas tradições culturais, continua a dar forma cultural ao
jeito carioca de ser, em que o samba ainda é dançado e cantado. Nestas danças, instrumentos
da África Central ainda são tocados e espíritos africanos ainda são reverenciados
(KARASCH, 2000).
A literatura que aborda a história carioca, de acordo com a autora, deve ser analisada
cuidadosamente, pois a história da população negra na cidade do Rio de Janeiro não só se fez
presente nas lavouras e minas, mas também nos serviços domésticos, comerciais, artesanais e
até mesmo na arte musical.
13 Figura 05DEBRET, Jean B. “Negros de carros. Barque bresilienne faite avec un cuir de boeuf”.Voyage pittoresque et historique au
Brésil (volume 2). París, 1835Disponível em . http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/624520081. Acesso em 10/01/ de 2012às 16:29h
44
Na cidade do Rio de Janeiro, nos encontros dos escravos sempre haviam músicas e
danças, em que todos dançavam sozinhos ou em círculos com variáveis contorções e
gesticulações. Entretanto, a elite se sentia incomodada, de maneira que o governo passou a
perseguir estes atos sob a desculpa de manter a ordem pública, uma vez que a população
negra do Rio de Janeiro cresceu muito. A elite se preocupou com a manutenção da ordem
pública de uma cidade negra - negros livres e ainda escravizados. (KARASCH, 2000,
FLORENTINO, 2005).
Quando a corte portuguesa se transfere para o Rio de Janeiro, a cidade se torna a sede
da monarquia. Com a corte, também, chegaram seus administradores e mais quinze mil
estrangeiros. Os membros da corte e a população, que os acompanhavam, foram recebidos
com ruidosos entusiasmos pelas pessoas que aqui viviam.
No período em questão, o administrador da família real, Paulo Fernandes Viana,14 preocupou-
se com a estrutura da cidade para serem desfrutadas pelos estrangeiros, pois havia ausências de
serviços de saneamento, água, moradias, dentre outros serviços essenciais. As necessidades levaram o
administrador a desocupar a cadeia do Largo do Paço para fixar os soberanos, além de contratar
mineiros que possuíssem conhecimentos práticos sobre a construção de sistema de abastecimento de
água, por ser prioridade para a manutenção e sobrevivência dos estrangeiros. E assim o administrador
inicia as obras que levaram água até o Campo de Santana, onde foi levantado um Chafariz de 10 bicas
atendendo as necessidades da corte (CARVALHO, 1990).
A preocupação com a estrutura da cidade implicou numa série de mudanças, segundo
Honorato (2008). O Príncipe Regente aflito com as questões relacionadas à saúde, higiene e
saneamento encomendou ao físico-mor do reino, Manoel Vieira da Silva, uma avaliação das estruturas
da nova corte. O Príncipe pediu ao físico-mor um memorial que avaliasse as condições de salubridade
da nova corte e sugerisse soluções para os problemas existentes. Embora os morros realmente
perturbassem a circulação do ar, o maior problema da cidade eram os pântanos e charcos que
deixavam o ar úmido. Tais situações associadas ao intenso calor acomodavam ambiente favorável para
o desenvolvimento de doenças respiratórias e febres perigosas, resultando em epidemias que
frequentemente assolavam a população.
As soluções encontradas foram a derrubada de morros, como morro do Castelo, aterro dos
brejos e alagadiços, abertura de ruas e proibição da população de construir casas baixas. A maior
preocupação foi dotar o Rio de Janeiro de hábitos e políticas públicas que aproximassem à cidade dos
padrões de Lisboa. Outra providência tomada foi a vacinação da população pobre e dos escravos.
14 Intendente Geral de Polícia da Corte Joanina (1808-1821)
45
A Intendência da polícia, sob o comando de Paulo Fernandes Viana, assumiu a tarefa de
evidenciar a civilização do Rio de Janeiro, dando início a um longo processo de melhoramento no
aspecto da cidade. Em busca de resolver os problemas urbanos, numa tentativa de tornar a cidade
parecida com as capitais europeias, à Intendência cabia purgar a cidade de vadios, pessoas com mau
procedimento, castigar os perturbadores da ordem civil e da tranquilidade, bem como os corruptos da
moral pública. Cumpria também, à Intendência, a tarefa da urbanização do Rio. Enfim, a Intendência
Geral da Polícia da Corte acumulava várias funções.
A vinda da família real impõe ao Rio uma classe social até então inexistente.
Impõe também novas necessidades materiais que atendiam não só aos
anseios dessa classe, como facilitam o desempenho das atividades
econômicas, políticas e ideológicas que a cidade passa a exercer. (PEREIRA,
2007, p.70
A partir de então, como declara Pereira (2007), a cidade começa a sofrer várias transformações que
irão proporcionar à classe dominante uma melhor condição de vida, que será viabilizada com a vinda,
cada vez mais intensa, de escravos novos. Por volta da segunda década do século XIX, já havia
grandes estabelecimentos comerciais no Valongo. Essa região passou a ser um dos locais mais
frequentados do Rio de Janeiro. As casas comerciais, de importação e exportação, depósitos de
armadores e trapiches abarrotaram esta região nordeste da cidade. No mesmo período, o comércio
incentivou a ampliação na direção norte do Rio de Janeiro. A área da localização do Cais do Valongo
vivia anos de intenso movimento por causa da agitação constante de navios de grandes portes, que
nela atracavam e desembarcavam os escravos. Servia também para outras embarcações menores que
cuidavam de transportar os escravos para outras regiões litorâneas da Corte ou fora dela.
Os antigos sítios e chácaras localizados entre a Quinta e a Ponta do Caju, deram lugar às
residências aristocráticas para os membros da corte. Outros trechos da cidade velha dão espaço aos
cafés, bilhares e hotéis. As terras da praia da Gamboa e do Saco do Alferes foram utilizadas para
construção de armazéns e trapiches, e na praia do Valongo construíram o Cais com rampas e escadas
com objetivo de facilitar embarques e desembarques de pessoas e ser entreposto de comércio da
cidade, onde os produtos eram carregados por negros seminus. O Rio de Janeiro, por possuir uma
configuração espacial de muito difícil acesso, requeria mais e mais dos escravos, pois, afinal, eles se
tornaram as mãos e os pés do senhor.
A ocupação desordenada da cidade e a falta de uma política metódica de limpeza e
saneamento, aliadas às características climáticas, à região entrecortada por mangues e o mar faziam da
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cidade uma constante fonte de epidemias, que traziam a morte em todas as direções. Por conta da
busca do desenvolvimento da cidade, iniciou-se o adensamento da população dos bairros da Saúde,
Valongo e da Gamboa. Nesses bairros, os morros, encostas e enseadas foram ocupados por
residências, firmas comerciais e trapiches, que deram condições para aberturas de novas vias publicas
através do parcelamento de chácaras.
A região do Valongo apresentava uma geografia de complicado acesso, porque os morros
formavam obstáculos de difícil superação. O acesso às planícies litorâneas, cobertas por lodaçais e
situadas no fundo de três sacos, e a praia Formosa só era possível através de três passagens naturais.
A passagem mais ampla era da Prainha, que corresponde à atual Praça Mauá. No trecho entre
a Prainha e o Valongo havia outra barreira de circulação, a pedra da Prainha, que só foi abaixo em
meados do século XIX. Mais adiante, percorrendo o caminho entre o morro da Conceição e do
Livramento chegava-se ao Saco do Valongo. Esse caminho era conhecido como caminho do Valongo,
que deu origem a rua de mesmo nome. Pelo Saco do Valongo, que viria a ser mais tarde a Rua do
Livramento, contornando o morro da Saúde, chegava-se a Gamboa.
A terceira e última passagem do paredão situava-se no colo da atual Rua América, entre os
morros da Providência e do Pinto. Através dessa rua, chegava-se ao saco do Alferes e a Praia Formosa.
E pelo oeste, o alinhamento de morros era virtualmente intransponível, visto que, os manguezais de
São Diogo o cercavam pelo interior até sua base, praticamente impedindo a circulação terrestre
(LAMARÃO, 1991, PEREIRA, 2007, HONORATO, 2008).
O trajeto à Rua do Valongo, aponta Honorato (2008), foi implementado através das terras de
Manoel Campos Diniz e Manoel Casado Viana. E pelo caminho do Valongo, a população da cidade
tinha acesso à região de praias que se situavam por traz dos morros da Conceição e do Livramento. O
entorno dessas áreas foram crescendo com as implantações das igrejas, que tiveram papel importante
na expansão urbana, pois com elas vieram à construção de habitações, aluguel de moradias, hospitais,
boticas (farmácia), médicos, enfermeiros, etc.
Nesse período, também ocorre com muito fervor à expansão das atividades portuárias na
cidade que contribuiu para o processo de ocupação e povoamento da região do Valongo e seus
arredores. A transferência do mercado de escravo para região dinamizou as atividades comerciais e
portuárias, além de significar um importante marco no processo de especificação espacial da cidade.
Ao mesmo tempo, o Valongo era espaço de negociação de comércio escravo, retirava da Rua Direita
uma atividade que não condizia com as atribuições do espaço que era a principal artéria comercial da
cidade (HONORATO, 2008).
A imagem abaixo nos mostra o interior do armazém com grupos de escravos femininos,
masculinos e até crianças, para serem comercializados pelo atravessador. No novo espaço comercial,
47
os negros não mais são expostos na geografia que compreendia a metrópole
15Figura 6
Com o decorrer do tempo, novos caminhos surgiram dando acesso a esta geografia da cidade.
Os secamentos dos brejos e abertura de ruas em terras privadas deram corpo algumas vias públicas.
No passado, a difícil ligação entre o caminho da Gamboa e o Valongo deu lugar ao Cemitério dos
Negros Novos em um período em que a área era desabitada.
Nesse cemitério enterravam-se exclusivamente os negros novos, denominação dada aos
escravos recém-chegados da África para serem comercializados no Rio de Janeiro. Com o tempo, esse
local passa a ser considerado danoso à saúde publica, em virtude da área passar a ser habitada por
famílias da sociedade carioca, que sentiam-se incomodados com os odores liberados do cemitério.
Devido ao incomodo causado, a administração da Igreja Católica, responsável pelo cemitério, recebe
um ofício que relata a nocividade do Cemitério dos Pretos Novos nas cercanias, uma vez que o campo-
santo se encontrava em área residência. (HONORATO ,2008).
O Cemitério dos Pretos Novos funcionava como que acoplado às necessidades da sociedade escravista, continuamente alimentado pelo tráfico negreiro, que despejava no porto um número, a partir de 1769, cada vez maior de cativos. Para este momento, passagem do século XVIII para o XIX,
15 Figura 06 DEBRET, Jean B. “Boutique de la rue du Val-Longo”. Voyage pittoresque et historique au Brésil (volume 2). Paris, 1835.
Disponível em http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/624520067. Acesso em 09/12/2012
48
não encontramos reclamações sobre ele. No entanto, não é demais lembrar que o Valongo naquele momento não era tão povoado e o cemitério estava deste modo, em uma área afastada do perímetro urbano, longe do olfato e da visão dos homens da boa sociedade. Logo, os gases emanados dos cadáveres foram acusados de serem os causadores de várias doenças.A corte não tardaria a ser invadida por tais pensamentos e os moradores do Valongo se queixariam com freqüência.”. (MEDEIROS, 2007,p. 65)
Esse período é marcado pela preocupação com a higiene pública e algumas medidas foram
tomadas para minimizar questões relacionadas a asseio da cidade, dentre elas a extinção do uso de
rótulas e gelosias de madeiras, consideradas incômodas e prejudiciais à saúde dos moradores, pela
pouca entrada de ar que estes artefatos na janela impediam (LAMARÃO, 1991).
No período em questão, ocorrem também medidas enérgicas praticadas pela Intendência da
Polícia, que funcionava como uma Prefeitura dos tempos atuais. A cidade apresentava em seu
histórico, nesta ocasião, diversos registros de falta de segurança. Aos olhos das elites, a desordem nas
ruas, muitas vezes, era provocada por aqueles que se encontravam excluídos e eram considerados
como uma sub-população, composto por negros, pardos, escravos ou forros.
Eles, os excluídos, transformavam nos capoeiras que munidos de navalhas, facas e paus,
assolavam as vielas estreitas da nova corte. A medida tomada para coibir tais manifestações foi a
proibição de ajuntamentos, jogos noturnos, encontros festivos dentre outras atividades em grupo,
objetivando promover uma nação civilizada.
De acordo com as autoridades era preciso que a cidade adquirisse hábitos dos povos
civilizados, ou seja, dos povos europeus e para tal era preciso eliminar todos os hábitos bárbaros.
Fazia-se necessário extinguir a falta de higiene, além de outros aspectos que caracterizavam a não
civilidade do Rio de Janeiro. Assim, além de abolir as treliças ou gelosias, era preciso também abolir
o trabalho escravo (LAMARÃO, 1991). No entanto, não foi isso que aconteceu, pois uma cidade que
se acostumou a usar o trabalho escravo para tudo, cuja sociedade associava o trabalho braçal à
degradação, não poderia abrir mão do regime escravista. A saída encontrada foi usar essa mesma
mão- de- obra para construir a nova corte.
Neste sentido, o recurso encontrado para o problema foram os meios brutais da escravidão
para preservar a ordem e a civilidade. É possível observar, através das pranchas de Debret, Rugendas e
Ender16, tais brutalidades e controles da Intendência da Polícia. Nas pinturas dos artistas percebe-se
16 THOMAS ENDER- Nasceu em Viena,Áustria,em 04/11/1793 e faleceu na mesma cidade em 28/09/1875.Junto com Debret e
Rugendas,ele fecha a trilogia de desenhistas/pintores que passaram pelo Brasil no primeiro quarto de século XIX. http://www.pitoresco.com acesso em 12/12/2011
49
que além da grande presença de negros, representando o trabalho da escravidão ou sendo açoitados, há
também as presenças constantes de militares da guarda real nas cenas.
Nas imagens de Debret apresentam interações entre policiais, pescadores, comerciantes,
mulheres e escravos. Manifestam-se em pranchas, como ”Aplicação de castigo” (figura 7), ”Refresco
no Largo do Palácio” (figura 8), ”Loja de Rapé” (figura 9). As figuras produzidas por este artista nos
convidam a observar a presença militar como a manutenção da ordem pública, uma realidade histórica
brasileira (FREITAS, 2008, HONORATO, 2009).
Assim sendo, podemos observar nas pranchas da página (55 e 56) a presença da polícia nos
espaços da cidade carioca, seja no momento em que o negro era punido, ao transitarem pelo passeio
público e até mesmo nos momentos que eram expostos como mercadorias para vendas. Esses atos
caracterizavam uma forma de coerção implantada pelo poder da Intendência da Polícia da corte na
cidade do Rio de Janeiro.
O modelo coercivo e a manutenção da ordem utilizada pela Intendência da Polícia da Corte
nos remetem ao que aponta Foucault (2005) em Vigiar e Punir, ao descrever sobre as estratégias de
punição exercidas em finais do século XVIII e início do século XIX no cotidiano de uma sociedade
disciplinar.
O punir, na sociedade escravista, tinha a finalidade de impedir uma futura violação das leis
dos brancos porque só com o sofrimento causado ao corpo do negro se alcançava um sistema eficaz.
Através da submissão do corpo, a sociedade escravocrata reprimiu e exclui o negro da sociedade. O
suplício causado a esse corpo o torna um objeto de repressão, o que podia ou não acontecer em forma
de espetáculo público, de forma a representar uma ordem e o direito de posse desse corpo.
A sociedade brasileira, no período escravocrata, concebe o corpo como um bem material, ao
ponto de fazer dele sua propriedade, o transforma em força de trabalho e o submete ao poder do
branco, levando em questões econômicas da classe dominante. Logo, o ato de insubordinação exercido
pelos negros poderia causar prejuízo financeiro e até mesmo moral, assim sendo, a ação de vigiar e a
punição com chibatadas e outras atrocidades era uma forma de conter e suplicar os negros escravos.
50
17
Figura 07
17 Figura 07 Aplicação de Castigo.Disponível em http://www.grupos.com.br Acesso em 01/11/2012
51
18Figura 08
18Figura 08 Refresco no Largo do Palácio . Disponível em http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle Acesso em 12/12/2011
52
19 Figura 09
2.3 Conceitos e preconceitos acerca da população negra
No Brasil, as ideias e teorias racistas influenciaram muito na elaboração e promulgação de
Leis na Primeira República, o que impossibilitava os negros de reagirem diante da tantas manobras
políticas e sociais criadas para manter os negros na condição de seres inferiores. Ao mesmo tempo,
surgiam os conceitos dos monogenistas e poligenistas20 ,em que os primeiros baseavam-se no
argumento da diferença entre negros e brancos, no clima, na geografia, na cultura para explicar a
diferença entre os homens. Os segundos argumentavam que essas diferenças estavam ligadas a origem
de que cada ser provinha de um elemento diferente. Os dois grupos juntos se dividiam em
1918 Figura 09 Loja de Rapé. Disponível em http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle .Acesso em 12/12/2011
20 Monogenismo é a hipótese segundo a qual a humanidade constitui uma única espécie, descendente de um ancestral comum. (Como
hipótese ou teoria científica, o monogenismo tornou-se largamente aceito a partir de meados do século XIX, em decorrência da teoria darwiniana da evolução, sendo também um princípio hoje praticamente inquestionado da antropologia social e cultural.) Já o poligenismo é a hipótese segundo a qual a humanidade não tem uma origem comum, sendo que os diversos grupos humanos pré-históricos ou as supostas raças da humanidade atual descendem de espécies distintas. (O poligenismo, corrente difundida principalmente no século XIX, tornou-se
obsoleto com a aceitação da teoria darwiniana da evolução.) disponível www.klickeducacao.com.br/bcoresp/.../0,5991,POR-3893-h,00.html
acesso em 07/10/2012
53
evolucionistas e racistas, incitavam ideias que o destino dos povos estava determinado pelas raças
(SANTOS, 2002).
Santos (2002) relata que o conceito de raça era associado aos povos perfeitos e imperfeitos,
promovendo uma desigualdade social entre negros e brancos, que além da diversidade étnica, também
envolvia a sociedade a que cada negro pertencia.
As avaliações, que se faziam entre europeus e africanos, formaram o conceito que o branco era
superior ao negro biológica e intelectualmente. As afirmações eram avaliadas a partir da medida do
crânio e modo de se alimentar dos negros e brancos. As questões de ordem religiosa insinuavam que
os negros eram descendentes de Caim, logo deveriam sofrer as mazelas de suas condições na
sociedade. Essa teoria que dominava a Europa chega as Américas, o que reafirma e justifica a
escravidão, pois se o negro era inferior, nada mais justo torná-lo escravo. Tais teorias também
justificavam a inferioridade do negro como provindo de uma degeneração do ser branco e que um
processo evolutivo da raça negra levaria séculos para acontecer (SANTOS 2002).
No período em questão, não foi possível tirar esse conceito da ideia de muitas pessoas, pois
após a abolição da escravidão a aversão ao negro estava latente, no âmbito familiar, na cultura e na
sociedade em formação no Brasil. A sociedade brasileira renegava o negro, em virtude de seu
estereótipo - incapacidade de se superar e atingir o grau evolutivo do branco pautado em uma
inferioridade natural. E na falta de meios de explicações da cor da pele negra e suas diferenças
culturais e físicas é que a sociedade brasileira descrimina o negro culturalmente e socialmente
(SANTOS, 2002).
Expõe Moura (2005) que se como escravo a vida do negro era sofrida e longe da dignidade
humana, como homem livre, o Estado, não se preocupou com o que aconteceria com eles após
abolição, uma vez que não criaram uma política para a nova vida dos negros libertos. Os negros
nascidos na cidade ou de países da África defrontam com as exigências do mercado de trabalho que
privilegiava operário ocidental. O preconceito quanto à cor da pele dificultava a entrada dos negros no
mercado de trabalho das indústrias, dos comércios, no funcionalismo público e nas obras públicas. Tal
preconceito fez com que muitos negros se incorporassem ao grupo de desocupados, que lutavam pela
sobrevivência desempenhando atividades de subempregos e margeavam as ocupações registradas na
cidade.
No contexto de discriminação racial, as negras encontram alternativas no trabalho doméstico
nas casas dos brancos ou se tornam pequenas empresárias, devido suas habilidades de forno e fogão e
artesanatos. Para os homens, abrem-se oportunidades no Cais do Porto, para os mais claros no
funcionalismo e para todos no Exército e na Marinha. Os caminhos para outros grupos que não se
estabeleceram em nenhuma instituição ou não tinham habilidades foram às atividades de cafetões,
prostitutas, malandros, artistas em cabarés, teatros de revista, circos e palcos. Os negros improvisaram
profissões e redefiniram formas de ganhar a vida na cidade carioca, tendo em vista que os mesmos não
54
tinham oportunidades no mercado regular (MOURA, 2005).
A foto abaixo da negra ambulante com a criança ao lado (figura 10) nos mostra como os
negros buscavam alternativas para sobreviverem no período da Primeira República no Rio de Janeiro.
O autor expõe que as atividades de tarefas brutas, muita vezes, eram recusadas pelos negros
por lembrarem-se das humilhações sofridas na escravidão. Todavia, os imigrantes europeus, que
saíram das duras condições de vida na Europa, não hesitavam em aceitar os trabalhos subalternos.
Com o passar do tempo, as indústrias, o comércio e a construção civil passam admitir negros nos
trabalhos regulares, porém a desvantagem, frente ao branco do país ou estrangeiro, continuava visível
no mercado de trabalho do Rio de Janeiro Com base na pouca aceitação dos negros em determinados
setores do mercado de trabalho, a presença desse grupo se faz significativa no trabalho do cais do
Porto.
21 Figura 10
A maioria dos negros, entretanto, seguiu para ocupações marginais e como mão de obra barata
manipulada por empresários. Era comum verificar nas obras da cidade, o trabalho do negro, como um
exército proletário de segunda linha.
Observa Moura (2005) que muitos negros não procuravam o trabalho regular, mantinham
atividades inconstantes e ocupações sem paradeiros, em virtude dos traumas que carregavam pela
experiência como escravo. Daí esses se incorporavam às rodas da vagabundagem e eventualmente na
21 Figura 10 fotografia de Cristiano Jr. e Marc Ferrez. Disponível em http://www.bancariosrjes.org.br/novo/informativos/index.php?
pagina=5&set=INFORMES&id=2971
55
criminalidade, empurrados e estereotipados pela nova racionalidade social.
O reconhecimento da própria dignidade através da experiência da liberdade choca-se com a dramaticidade das condições de vida e de expressão a que é exposto o ex-escravo na República brasileira. Seu amoldamento à rotina do operário fabril é dificultada pela subestimação e pela suspeita, tornando freqüentes os casos de indisciplina agressiva ao sistema de supervisão e controle. Some-se a isso a desmotivação inicial frente aos modestos horizontes oferecidos como recompensa à atividade disciplinada e constante do trabalhador subalterno. (MOURA, 2005, P.95)
Segundo Moura, é possível verificar, através das fotos de Augusto Malta, entre outros
fotógrafos, a figura do negro como força física de trabalho ou dominando alguma técnica, que,
geralmente, eram realizadas em sua própria moradia em oficinas improvisadas e na cozinha. A rua
também foi um espaço de trabalho dos negros, pois eles aparecem trabalhando com vendas por terem
adquirido experiências quando eram escravos de ganho para os seus senhores.
Os negros que vieram de Salvador tinham experiências de vendedores
ambulantes. Vendiam quinquilharias, roletes de cana, refrescos ou fruto das suas habilidades como
artesãos e quituteiros. As vendas lhes garantiam o sustento familiar e sua dignidade com pessoa
humana. As crianças negras, também, faziam parte da contribuição financeira, desse modelo de
unidade familiar, pois vendiam biscoitos e balas. Bem cedo, contribuíam para o sustento da família, o
que os distanciavam da possibilidade de frequentarem a escola.
De forma que os negros criaram seus próprios canais para a sustentabilidade e criação de uma
cidadania possível e alternativa, em face das políticas excludentes do projeto republicano que
apresentava ideais europeus. Nesse sentido, as ruas do Rio de Janeiro foram sua escola, seu sustento e
espaço de socialização. Eles reinventaram um novo modelo de vida após abolição da escravidão
(MOURA ,2005).
2.4 Ampliações da cidade para o entorno
A primeira iniciativa concreta de melhoramento na cidade, como declara Rocha (1995), se
inicia com a criação da Cidade Nova, localizada entre o morro do Catumbi e Canal do Mangue, São
Cristovão e a área que compreende o atual Centro da Cidade. Isso culmina, concomitantemente, com o
advento do ônibus, um meio de transporte que era puxado por animais. O ônibus apresentava estrutura
de dois andares, com quatro rodas e carregava em média 20 pessoas.
Este modelo de transporte veio estimular o crescimento populacional em outros espaços da
cidade, como Andaraí, Caju e Pedregulho. O projeto do ônibus viabilizou o projeto da Cidade Nova,
especialmente, na região que compreende o Campo de Santana. Em função do crescimento dos
arredores da cidade, criam-se outras linhas de ônibus, como Andaria Pequeno, Rio Comprido e Rua do
56
Imperador22.
À medida que se aumentava o itinerário do ônibus, ampliava-se, também, o crescimento urbano.
Consequentemente, este meio de transporte torna-se insuficiente a demanda. Com objetivo de sanar as
dificuldades de transporte, o Barão de Mauá busca o modelo de transporte da Europa e América do
Norte, e assim, ele viaja até os Estados Unidos em busca de empréstimo junto aos banqueiros para este
empreendimento. O fato do Barão de Mauá não conseguir investimento, fez com que o governo
imperial autorizasse a transferência das ações da Companhia de Carris, criada pelo Barão de Mauá,
para uma companhia estrangeira a Bleker Street.
A concessão imperial concedida a Bleker Street, responsável pela criação de ruas, calçamentos e
manutenção, dificulta empreendedores brasileiros a participarem desta prestação de serviço. Com a
expansão urbana, áreas pantanosas e alagadiças constituem reais necessidades de ocupação,
aumentando a dificuldade quer para as construtoras, quer para as companhias de transportes.
O bonde supriu a demandado ônibus, pois o mesmo carregava 30 passageiros e apresentava
conforto por deslizar sobre trilhos, puxados por animais. Com a chegada do bonde, surge uma
especulação imobiliária em bairros que eram cortados por ele. Aumenta-se o número de usuários, a
ponto desse modelo de transporte não ser mais suficiente. Logo, as principais empresas não
conseguem atender à demanda nos horários
de maior fluxo. De forma que a substituição da tração animal se impõe. O caminho para minimizar a
demanda era o bonde elétrico, entretanto, não era possível para alguns empreendedores brasileiros
devido ao alto custo.
Na ocasião, a Prefeitura faz uma serie de imposições para os empreendedores dos serviços de
bonde, dentre elas a abertura de túneis ligando o centro à zona sul da cidade (ROCHA, 1995). Os
Vereadores puseram em pauta a abertura de túneis que levassem as regiões do Leme, Copacabana e
Ipanema, valorizando, assim, as áreas da Zona Sul.
Por sua vez, as companhias entendiam que o investimento não era rentável por serem
áreas arenosas e desérticas, motivo pelo qual as ocupações seriam lentas. No entanto, vários
argumentos foram pronunciados a favor da efetivação das linhas de bonde para a Zona Sul,
especificamente às regiões que abarcam a área de Copacabana. Os argumentos dos Vereadores
indicavam que era uma área salubre, longe das doenças, portanto, semelhante aos balneários europeus.
Uma nova alternativa para o transporte urbano foi a criação da Estrada de Ferro, Central do
Brasil, que inicialmente vai do centro da cidade até Irajá e depois para Cascadura. Os trens também
22 Atual Rua Mariz e Barros
57
possibilitaram a ocupação destes bairros, assim como os bondes no entorno do centro da cidade.
Algumas estações suburbanas recebem os nomes em função da construção ou de famílias, donas de
terras naquelas áreas, a exemplo de Cascadura que apresentava um solo muito resistente, daí o nome
proferido ao bairro ( ROCHA ,1995).
No final do século XIX, o Rio de Janeiro é dividido em áreas aristocratas e populares. A partir
disso, Copacabana e Botafogo se transformam em bairros de elite, ao passo que Inhaúma e Irajá em
bairros populares. Neste período, a maioria dos trabalhadores vivia em cortiços, casas de cômodos e
nos fundos dos quintais das fábricas onde trabalhavam. A opção por este tipo de estadia é em
decorrência dos altos preços das passagens para os bairros suburbanos.
O meio de transporte contribuiu para o crescimento da cidade, porém não mudou a característica
arquitetônica colonial de um século atrás. As transformações urbanas mobilizam não só grupos
ligados à engenharia, mas também os pertencentes às organizações intelectuais, que tiveram grande
contribuição para a Reforma Urbana na virada do século (ROCHA, 1995).
A ampliação da cidade para outros espaços geográficos, os investimentos para a construção de
vias férreas, dentre elas a do subúrbio da Central culminou em desordem no crescimento urbano da
cidade. Os adventos como o término da campanha de Canudos, a migração dos baianos, que
provavelmente vieram ao Rio para receber seus vencimentos atrasados pela participação na Guerra dos
Canudos e abolição dos escravos. Foram possivelmente acontecimentos que marcaram o período dos
anos 70 ao final dos 90 do século XIX, e provocaram um crescimento desordenado nas áreas próximas
ao centro da cidade.
As discussões entre políticos e investidores, acerca de uma nova roupagem para a cidade,
aconteciam com muito fervor nas décadas finais do século XIX. No início do século XX, ocorrem às
demolições da cidade e as antigas edificações dão espaço a avenidas largas, lojas e prédios luxuosos e
com isso quase vinte mil pessoas tiveram que procurar novas moradias (ROCHA, 1995)
Diante da política regeneradora implementada pelas elites, os poucos africanos que restaram na cidade, bem como os negros em geral, passaram a simbolizar atraso e barbárie, vestígios de um tempo em que a escravidão imperava, impedindo os caminhos da civilização. As transformações porque passava a cidade do Rio de Janeiro varreriam os cenários da “cidade negra” e, com elas, desagregava-se toda uma rede de relações construídas na vivência diária e pautadas em manifestações culturais de herança africana. (CARVALHO, 1990, p.79)
Identifica Arantes (2005) que os espaços no entorno da nova cidade, ocupados por
negros, aos poucos foram recebendo outras etnias. O ganha-pão desta população passa a ser o
trabalho do Cais do Porto, e daí a força da socialização entre os negros foi marcante, porque,
com o tempo, suas maneiras, gostos, e etc. adquirem ações e novos significados através do
58
contato com outros sujeitos.
No cais do porto e fora dele, pretos e brancos, brasileiros e imigrantes, estivadores,
arrumadores, foguistas e carvoeiros estavam sempre se esbarrando no dia-a-dia. Encontros
que também aconteciam nas ruas próximas ao Cais do Porto - nos botequins, nos cortiços e
nas horas de descanso ou lazer. Os momentos folgas e distrações devem ser entendidos como
um espaço de convívio, de troca e de criação de laços para além daqueles construídos durante
o cumprimento do trabalho ou da organização institucional. No porto, as relações mais
estreitas entre os trabalhadores davam-se, sobretudo a partir de relações de parentesco,
vizinhança, compadrio, de trabalho e em espaços de sociabilidade mais ou menos
particularizados.
O Cais do Porto e seu entorno sempre foi considerado uma zona perigosa da cidade,
cheio de riscos para quem se aventurasse pelas suas ruas e becos, ladeiras e morros, mas
também era um espaço onde os excluídos criavam laços de solidariedade.
Da região do Cais do Porto, relata Arantes (2005), poucos são os vestígios que
restaram. Essa antiga parte da cidade deu origem a muitas lendas em torno de sua própria
história e foi apontada como o berço do samba, do carnaval popular e de outras práticas
culturais associadas com identidades negras ou africanas.
Os espaços de moradia coletiva onde residiam grupos étnicos diversificados são
importantes para entender a experiência dos trabalhadores do porto, porque grande parte daqueles
homens morava nesses lugares, onde estabeleciam laços de solidariedade e eixos de conflito entre
pessoas de origens diversas. Assim, ao dividirem o mesmo teto, negros e brancos, portugueses e
brasileiros, enfim, pessoas de diferentes raças e nacionalidades compartilhavam experiências e
estabeleciam trocas culturais.
Na capital da recém-fundada república, as multidões anônimas, que ocupam as ruas, são
vistas como sinônimo de barbárie e atraso. Uma verdadeira ameaça à ordem. Essas multidões com sua
cultura, seus ritmos e seus hábitos estavam muito distantes dos padrões parisienses, que a estética
oficial sonhava implementar. A república era composta por um grupo elitizado, que almejava
disseminar a cultura europeia na cidade do Rio de Janeiro.
As manifestações culturais, de acordo com Arantes (2005), que, remetiam às heranças africanas,
sofreram com a repressão que pretendia derrubar os laços e instituições dos negros. Afinal, não foi
nada fácil vivenciar, no dia-a-dia, os laços que os uniam. Os ajuntamentos de pretos escravos foram
motivo de desconfiança, medo e repressão por parte das autoridades da cidade do Rio de Janeiro.
Ainda segundo a autora, o século XIX testemunhou a uma verdadeira guerra contra um desses
59
pontos de encontro de negros: as casas de angú ou zungús23. As casas, alugadas e frequentadas por
negros escravos ou libertos, sofreram perseguições por serem reconhecidas como refúgio de escravos
fugidos, locais de batuque, feitiçaria, entre outras atividades de origem africana.
De acordo Arantes (2005), os escritos de Carlos Eugênio L. Soares expõe que os espaços
onde os grupos étnicos habitavam foram importantes para a sobrevivência cultural e, principalmente,
religiosa. Os espaços criados pelos negros reproduziam práticas coletivas religiosas de origem africana
com certa segurança e longe dos olhares das autoridades.
Com o avançar do século XIX, esses espaços começam a ver seus quadros modificados pela
inserção, cada vez maior, de outros grupos étnicos. A população africana diminuía a olhos vistos. A
julgar, pelos registros da Casa de Detenção, às últimas décadas do XIX, que testemunharam a intensa
troca cultural entre os negros e os imigrantes, especialmente, portugueses.
Os imigrantes que conviviam junto com os negros, passaram a fazer parte nas prisões feitas
dentro dos zungús junto com negros africanos e crioulos, escravos ou libertos. As presenças dos
imigrantes retratam as transformações étnicas e culturais que se refletiam nos espaços coletivos.
A autora também identifica que, independentemente do potencial numérico, os africanos
ocuparam posições estratégicas dentro das hierarquias das comunidades, sendo muitas vezes os
mestres das casas coletivas. São destacadas entre as diversas nações, os minas como a mais
importante, sendo o elo fundamental com as raízes africanas dos Zungús. Não era difícil,
especialmente na segunda metade do XIX, encontrar trabalhadores ligados ao porto fazendo parte das
reuniões dos zungús.
No final do século XIX, ocorreu a última prisão em massa de membros de zungús. A polícia
deu uma batida no número 13 do Largo da Prainha, local conhecido como ponto de encontro de
trabalhadores portuários, e lá prendeu 30 pessoas. Diferentemente dos outros, este era um espaço
coletivo formado apenas por homens com “profissões da estiva”. Um aspecto interessante deste zungú
é que ele não era formado apenas por negros, mas também por estrangeiros. Essa relação entre negros
e estrangeiros, especialmente imigrantes portugueses, proclama o papel dos espaços coletivos na troca
cultural, característica das últimas décadas do XIX.
Os zungús se apresentam como uma forma de proximidade ocupacional e social entre lusos e
negros, permitindo um diálogo cultural. Com o fim da escravidão, a entrada massificada de imigrantes
se energiza desencadeando uma troca simbólica. Os diálogos culturais acontecem através da troca de
conhecimentos entre negros e brancos, que convivem nas habitações coletivas, frequentam os mesmos
botequins e mesmas festas, e que dividem o mesmo espaço de trabalho. A amplitude das relações entre
aqueles homens (negros e brancos) aumenta se levarmos em conta que a convivência entre as horas de
23 Zungús ou Angus Habitação coletiva das classes pobres também conhecido como cortiço ou cabeça de porco. (Aurélio Buarque de Holanda Ferreira). Cabeça de porco. Novo Dicionário Aurélio; 2ª edição – Revista ampliada Editora Nova Fronteira, 1987.
60
trabalho e o tempo livre instigava ainda mais o convívio entre eles, fora dos navios, dos armazéns ou
dos trapiches (ARANTES, 2005)
Arantes (2005) ao comentar a obra de Sidney Chalhoub24,observa que os republicanos, ao
perseguirem os capoeiras, demolirem cortiços25 e modificarem o projeto urbano da cidade num ensaio
de mudar o sentido da sua ampliação estavam, na verdade, agredindo a memória histórica da busca
pela liberdade, e que eles simplesmente demoliam casas e deslocavam entulhos. Os republicanos
procuravam também desconectar cenários, esvaziar significados penosamente construídos na longa
luta da cidade negra contra a escravidão. De qualquer forma, muitos aspectos dessa cultura, por mais
que tivessem sido alterados ou reformulados, não foram simplesmente sepultados pela fúria
regeneradora. Os negros permaneceram se organizando de várias maneiras, recriando suas tradições
culturais e políticas em diferentes espaços - nos cortiços, nas vendas e botequins da cidade, nas casas
de santo, no carnaval e, também, no trabalho no porto.
Tais atitudes nos permitem perceber a violência simbólica, conceito atribuído pelo
sociólogo Pierre Bourdieu26, exercida pelas elites e o poder público da cidade carioca, ao
segregarem e perseguiram as culturas dos negros e pobres.
Consequentemente, as relações sociais apresentavam um vínculo entre as classes com característica de
domínio e submissão. Inconscientemente, os dominados assimilavam os valores e a visão dos
dominadores, não reagindo às propostas impostas sutilmente, ou seja, sem coesão física, porém com
ações segregadoras.
2.5 Reforma e bota - abaixo de Pereira Passos no Rio de Janeiro
O crescimento urbano-industrial e as migrações internas provocadas pela abolição da
escravidão, também acarretariam para um crescimento populacional acelerado. Os imigrantes
europeus vêm para a indústria, migrantes internos chegam ao Rio de Janeiro ainda estropiado pelas
secas em busca de trabalho e alguns soldados das lutas de Canudos que também chegam ao Rio após o
advento ocorrido no nordeste do país. Essa população por falta de condição financeira e espaços na
24 Sidney Chalhoub (Rio de Janeiro, 1957) é um historiador e professor universitário brasileiro. Atualmente é também Diretor Associado
do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.
25 Cortiços Casa de cômodos: sobrado com várias subdivisões internas
26 Pierre de Bourdieu Antropólogo e Sociologia, cuja contribuição alcança as mais variadas áreas do conhecimento humano, discutindo em
sua obra temas como educação, cultura, literatura, arte, mídia, lingüística e política
61
cidade inventa suas casas no morro da Favela e nele fixam suas residências, pois a geografia em
questão ficava situada próximo ao mercado financeiro da cidade. E esses encontraram dificuldades de
serem absorvidos na maior parte do mercado de trabalho do Centro da cidade, dadas as suas
características raciais e culturais.
A vida dessa população a margem da sociedade e o esforço de consolidação nacional com a
República reforçam a máquina burocrática e repressiva estatal que se estrutura na cidade. Os
indivíduos heterogêneos, quanto à origem social, racial, cultural, ou quanto a sua experiência de
trabalho, formariam uma classe intercelular, prestadora de serviços ao complexo sócio-econômico que
liderava o país. O Rio de Janeiro “civiliza-se” (MOURA 1995).
Com a brusca mudança no meio negro ocasionada pela Abolição da Escravidão, que extingue
as organizações de nação africanas ainda existentes no Rio de Janeiro, o grupo baiano seria uma nova
liderança. A convivência de muitos negros do Rio de Janeiro promoveu um novo modelo de cultura
negra na cidade, como os alforriados de Salvador, que trouxeram o aprendizado de ofícios urbanos, às
vezes algum dinheiro poupado, a experiência de liderança religiosa e organização de grupos festeiros.
Consequentemente, essa convivência provocou uma das principais referências civilizatórias da cultura
nacional moderna.
O processo de industrialização do Rio coincide com o declínio da produção cafeeira na
província da cidade e a abolição da escravatura. Isso gera um afluxo migratório das áreas fluminense e
um significativo contingente de estrangeiros entrados pelo porto do Rio de Janeiro. O crescimento
populacional motiva a busca pela habitação dentro de um espaço urbano em transformação, o que
ocasiona um desequilíbrio no setor habitacional, afetando diretamente a população de baixa renda. A
população vivia, nas áreas mais centrais da cidade, em habitações coletivas, o que se entende como
famílias distintas, morando em um mesmo terreno ou sob o mesmo teto.
Tais modelos de moradias recebem denominações de cortiço ou estalagens, casas de cômodos,
avenidas, vilas operárias e mesmo favelas. Os cortiços eram a maioria das habitações das classes
pobres, geralmente, constituídos por pequenos quartos de madeira ou construções ligeiras, que,
algumas vezes, eram construídos nos fundos de prédios e outras vezes, uns sobre os outros. Eram
compostos por varandas e escadas de difícil acesso, sem cozinha, existindo ou não pequeno pátio ou
corredor, com aparelho sanitário e lavanderia comum. A estalagem apresentava um pátio, área ou
corredor, com quartos divididos em sala alcova, cozinha interna ou externa e com lavanderias e
aparelhos sanitários comuns nos pátios ( CARVALHO.L. 1995, MOURA , 1995).
Não moro em casa de cômodo/Não é por ter medo não/Na cozinha muita gente/Sempre da alteração/Mas batuque na cozinha /Sinhá não que, por causa/Do batuque eu queimei/Meu pé/Então não pula na cumbuca/Não espanta o churrasco/Se o branco tem ciúme/ Que dirá o mulato/Eu fui na cozinha/Prá vê uma cebola/E o branco com ciúme /De uma tal criola... (Batuque na Cozinha- João da Baiana,- Composição-1917)
62
As habitações eram condenadas pela administração pública municipal. Tendiam a desaparecer
com o rigor de uma política de erradicação aplicada a esses tipos de moradias. O fechamento dos
cortiços por ser considerados prejudiciais à salubridade, por um lado vinha resolver o antigo problema
de saneamento, através de novas obras nas ruas, por outro, deixava descoberto outro grave problema, o
de habitação popular. Não havendo moradias baratas em números suficientes, a população de baixa
renda ou se amontoavam nos prédios restantes da área central da cidade ou se mudavam para os
subúrbios distantes . E assim, os espaços das antigas ocupações passam a servir a um
propósito,idealizados por grupos que visavam dar outra roupagem ao centro da cidade
Os cortiços eram locais não só da moradia possível de muitos, mas, principalmente para as mulheres, local de trabalho de suas tarefas domésticas feitas para fora: as lavadeiras trabalhavam cercadas por suas crianças, as doceiras, confeiteiras, costureiras tornavam essas habitações coletivas pequenas unidades produtivas. Os cortiços eram locais de encontro para gente de diferentes raças, ali chegada por variados trajetos, que se enfrentava e se solidarizava frente às duras condições da vida para o subalterno e o pária na capital. (MOURA, 2005, p.75)
A figura abaixo nos mostra os modelos de moradias coletivas existentes na cidade do Rio de
Janeiro.
27
Expõe Rocha (1995) que, provavelmente, uns dos mais importantes grupos pensantes na
modernização da cidade foram os pertencentes ao Clube de Engenharia, uma extensão quase natural
27 Figura 11 Estalagem existente nos fundos dos prédios 12 a 44 da Rua do Senado. Foto de Augusto Malta, ACGRJ.Disponível em
http://www.unicamp.br/cecult/mapastematicos/corticos/cortimagens1.html Acesso em 22/04/12as 14h e 10 min
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da escola politécnica. Ela, a escola, foi criada a partir da transformação da escola central de engenharia
militar em engenharia civil, com o objetivo de sanar a falta de mão-de-obra especializada para as obras
realizadas na capital do país. Esta escola se destaca no cenário carioca por seus alunos, imbuídos do
conceito positivista, tomarem para si a resolução dos problemas da cidade e trazerem à tona problemas
de saneamento, abastecimento de água, dentre outros. É deste grupo nasce o Clube de Engenharia.
Em sua fundação, encontram-se nomes que no futuro contribuirão com a modernização da
cidade, como Francisco Pereira Passos, Conrado Niemeyer, Paulo de Frontin, Beford Roxo, Carlos
Sampaio, Vieira Souto e Francisco Bicalho.
Nesse mesmo período, Paulo de Frontin lança uma proposta de jorrar quinze milhões de litros
de água em seis dias, campanha liderada por Rui Barbosa, pois no momento o Rio de Janeiro passava
por um colapso de falta de água. A imprensa abraça o projeto de Paulo de Frontin considerado absurdo
pelo poder público. O ministro Rodrigo Silva tenta fazer, do possível fracasso de Frontin, uma arma à
oposição política a Rui Barbosa, e aceita o desafio de jorrar os quinze milhões de litros de água. O
engenheiro Paulo de Frontin organiza duas turmas de trabalho, tendo, à frente de cada turma, os
engenheiros Carlos Sampaio e Júlio Paranaguá. Também chamou seus alunos da Escola Politécnica e
os jornalistas Olavo Bilac, Coelho Neto e Raul Pompéia, que faziam a cobertura dos trabalhos das
equipes. No final de seis dias realmente a água jorra. Este episódio faz com que o grupo da
engenharia seja respeitado e consultado para resolver os problemas urbanos da cidade (ROCHA,
1995).
Na ocasião, observa Rocha (2005), a República no Brasil enfrenta problemas de facções,
ligados a Floriano, a burguesia cafeeira e até mesmo aos seguidores da monarquia, por apresentarem
cisões políticas. A Prefeitura do Rio de Janeiro passa por conjunturas políticas conturbadas, que
impediam dos gestores da cidade se manterem nos cargos durante um período significativo para
executarem os projetos de estrutura se melhoramentos.
Depois de tantos desacordos políticos, Barata Ribeiro, o presidente na Intendência
Municipal, estabelece que o prefeito do Distrito Federal seria escolhido pelo Presidente da República
e, posteriormente, esta escolha deveria ser aprovada pelo Senado. O decreto de Marechal Floriano
nomeia seu amigo, Barata Ribeiro, para o cargo de Prefeito do Distrito Federal. Seis meses depois, o
senado veta o nome dele.
A partir do veto de Barata Ribeiro, vários personagens assumiram o cargo de administrador da
cidade, e não conseguem gerir seguramente em virtude da falta de verbas nos cofres públicos. Embora,
a cidade apresentasse dificuldades financeiras foram iniciadas algumas obras para o melhoramento da
cidade. No momento em questão, cabe ao coronel Leite Ribeiro preparar a Lei que autorize o futuro
administrador municipal ser nomeado pelo Presidente do Brasil Rodrigues Alves, a governar sem a
fiscalização do Conselho Municipal, o que ocorre na administração de Pereira Passos.
64
Identifica Rocha (1995) que, na virada do século XIX, tem lugar, no Clube de Engenharia, o
Congresso de Engenharia e Indústria, cujo principal objetivo do congresso era a segunda tentativa de
sistematizar uma discussão em torno da reforma urbana da capital. A primeira comissão, conhecida
como comissão de melhoramento, apresentou um plano de alargamento e retificações de várias ruas da
capital e abertura de novas praças e vias. Tinham a finalidade de melhorar a higiene e promover a
circulação de pessoas e transportes no Centro da cidade. O projeto visualizava avenidas largas, com
calçadas, passeios laterais, drenagem e aterros de pântanos. A comissão conclui que os problemas
sanitaristas do Rio estavam nas habitações insalubres da cidade.
No século XX, ocorre a segunda tentativa de melhoramentos através do congresso, que
estabelece as soluções para as temáticas anteriormente apresentadas, e várias discussões acontecem
acerca da efetivação do projeto. Faziam parte das discussões as temáticas relacionadas à inexistência
de projetos bem definidos para o saneamento, a importância do abastecimento de água, que para
efetivação destes projetos se faria necessário o arrasamento de morros e calçamentos, para enfim,
embelezar a cidade. Dentre as discussões, a questão do saneamento do Rio, que não devia ser só um
problema municipal, mas também do Governo Federal. Com base nas discussões, Frontin sugere que
se forme uma comissão, chefiada por ele, encarregada de resumir as principais conclusões. E assim,
Frontin e o Clube de Engenharia terão um papel importante, antes, durante e após o período da
Reforma de Pereira Passos ( ROCHA ,1995).
O Conselho de Saúde do Distrito Federal denuncia as condições das habitações coletivas e
sugere que seus moradores sejam removidos para os arredores da cidade, em pontos por onde
passavam trens e bondes. Tal denuncia tem como finalidade pressionar o governo a desapropriar
aquelas construções para destruí-las, substituindo-as por casas unitárias para as famílias pobres que
habitavam em residências coletivas.
No entanto, o Rio, inchado pela chegada da corte portuguesa e ao longo do século por
contínuas migrações, era ainda uma cidade obsoleta e com foco de constantes epidemias. Assim,
Pereira Passos assume o cargo com poderes extraordinários para a direção das obras de remodelação,
embelezamento e saneamento da capital. Governando os primeiros meses com o Conselho Municipal
fechado, dá inicio a grandes projetos de ordem urbana e edificações modernas (MOURA, 1995,
ROCHA, 1995).
Na administração de Pereira Passos, iniciaram-se as grandes transformações urbanas,
derrubando-se casas para abertura de ruas e avenidas e fechando-se outras, por serem prejudiciais à
salubridade e à higiene. As avenidas contavam com domicílios particulares, independentes e
pequenos, com instalações sanitárias, cozinha, água e esgoto, dando todas as casas frente para uma rua
central ou lateral.
A inauguração da Avenida central separou para Cidade, senão para o
65
Brasil, de duas épocas. Os costumes modificaram-se, e com ele surgiu uma nova mentalidade. O carioca ampliou seu ângulo de visão. Estava preparado o caminho para o novo Rio de Janeiro, a Cidade Maravilhosa. E foi em 1908, que Coelho Neto lhe deu esse título, será conhecida para sempre e bem lhe cabe, tal como o de Cidade Eterna a Roma, e o de Cidade Luz à Paris. (BILAC Apud ROCHA, 1995, p. 69).
As obras do Governo Pereira Passos visavam à remodelação do porto da cidade e acesso pelo
prolongamento dos ramais da Central do Brasil e da Leopoldina. A abertura da Avenida Rodrigues
Alves e a construção da Avenida Central, atual Rio Branco, uniu diagonalmente, de mar a mar, as
partes sul e norte da península que atravessava o centro comercial e financeiro da cidade do Rio de
Janeiro. Tais obras redefiniram o acesso à Zona Sul da cidade, uma área que, definitivamente, passa a
ser local de moradia das classes mais prósperas da sociedade carioca. Com a construção da Avenida
Beira-Mar, a reforma dá acesso a Zona Norte da cidade pela abertura da Avenida Mem de Sá e pelo
alargamento das ruas Frei Caneca e Estácio de Sá. Além disso, inúmeras ruas menores são abertas ou
alargadas. A reforma da cidade se completa com a ampliação dos serviços urbanos, com a
pavimentação da cidade, e com a realização de uma importante campanha de saneamento
(CARVALHO. L. 1995, MOURA, 1995).
O combate epidêmico, realizado por Oswaldo Cruz, conjuga com grandes demolições
realizadas, principalmente, nos bairros centrais. As obras mobilizam metade do orçamento da União e
se valem da grande massa de trabalhadores disponível na capital, para tornar o Rio de Janeiro uma
“Europa possível”.
O novo estilo que justificava essa remodelação, a estética art nouveau dos novos edifícios e
mansões, e as medidas em nome da higiene e do saneamento urbano, culminam na demolição em
massa, “o bota abaixo” dos cortiços e dos antigos casarios habitados por populares e nas campanhas de
vacina obrigatória. Se por um lado, as medidas ajustam efetivamente a cidade às novas necessidades
da estrutura política e econômica calcada nos valores civilizatórios da burguesia, por outro lado, as
mesmas medidas, não consideravam os problemas de moradia das classes pobres.
Os problemas relacionados ao abastecimento e transporte daqueles deslocados de seus bairros
tradicionais no Centro para a periferia, subúrbio e favelas, que se formam progressivamente por todo o
Rio de Janeiro, não são ajuizados pela elite pensante. As dificuldades enfrentadas pelas classes pobres
e negras da cidade definem um padrão de ocupação e de convívio, que foi crescendo ao longo do
século sem devida atenção do poder público.
O projeto definido para a cidade tem, portanto, ênfases bem marcadas de acordo com os
interesses e as concepções das classes hegemônicas do governo. Apesar de apresentar algumas
preocupações com aspectos das condições gerais de vida do corpo maior da população carioca,
priorizam os trabalhadores assalariados.
As construções de vilas operárias, expansão do serviço de trens suburbanos e até a própria
66
campanha sanitária beneficiam todos incluídos nas medidas. O projeto executado secundariza esse
grande contingente de homens diversos reunidos na base da sociedade. Muitos destes homens seriam
completamente desprivilegiados em seus interesses, afastados e mantidos à margem dos benefícios
trazidos pela modernidade. Tais atitudes denotavam a falta de perspectiva da República, frente a novas
propostas paras as grandes massas populares herdadas do período colonial.
A República se mostrava associada ao racismo de suas elites, que, mesmo renovada, mantinha
os mesmos cacoetes do passado. Uma elite que apresentava uma necessidade crescente de mão-de-
obra barata para as fábricas, plantações e para a manutenção dos serviços domésticos. Essa posição
levou a “sociedade” aceitar a popularização da miséria em termos ainda inéditos no país. É fato que o
poder público assistia indiferente, o que culminou no nascimento das favelas do Rio de Janeiro e dos
guetos na Zona Norte.
O advento do “bota – abaixo” partiu a cidade do Rio de Janeiro, em partes irregulares, ou seja,
em bairros propriamente ditos e zonas subalternas e marginais, onde a população se formava quanto
classes hierárquicas na camada social (MOURA,1995).
2.6 A ocupação de novos territórios por uma população negra e pobre
A população de baixa renda via-se pressionada com a carestia dos imóveis e com as
posturas municipais, que limitavam a zona de construção de habitações coletivas, proibindo a
reconstrução dentro dessa área. Dessa maneira fecha-se o círculo contra os negros e pobres.
Muitos destes moradores preferiram não se transferir para periferia, em virtude da distância e
dificuldade de locomoção para seus empregos. Logo, optaram para subidas nos morros
centrais, onde os casebres iam se empilhando sem higiene e sem luz. O problema de moradia
das classes proletariados no Rio de Janeiro, seja por aspecto sanitário ou por manifestação de
ordem social, preocupou a administração pública em diversos momentos da história da
urbanização da cidade.
Depois da remodernização da cidade, são os espaços da Cidade Nova, da Gamboa, da
Saúde, de Frei Caneca, que sempre foram locais de residências de gente pobre, que se enchem
de cômodos, para que os operários com baixos salários possam pagar.
67
28Figura12
A população, como os carroceiros, trabalhadores, homens ao ganho, catraieiros29,
caixeiros, mulheres de vida reles, lavadeiras, costureiras de baixa freguesia, fora das medidas
idealizadas pelo Governo, se reúne em aglomerados que são antigos casarões de muitos
andares, divididos e subdivididos por tapumes de madeira. Às vezes, nem divisões de madeira
e, sim, sacos de aniagem estendidos verticalmente, permitindo quase uma vida em comum,
tendo, inclusive, características de promiscuidade.
Outro aspecto relacionado à moradia da população pobre é a questão das favelas. Um
espaço dedicado a uma nova forma de habitação, feitas de estuques, pequenas janelas e portas
estreitas, com telhados de zinco ou de folhas de latas. Um modelo de habitação que em sua
constituição apresentava um espaço livre entre um e outro casebre. Esta nova forma de
domicílio apontava como solução para os problemas de moradia das camadas mais
desfavorecidas da população. No início do século XX, além do morro da Providência (morro da favela), já existiam
as favelas no morro da Mangueira e no morro de São Carlos. Os materiais usados para
construção dos casebres têm procedência das demolições, sobras ou mesmo lixo das
28 Figura 12 MALTA, A. “Avenida Central”. Rio de Janeiro, data desconhecida. Disponível em http://www.flickr.com/photos/andre_so_rio/150457964/ . Acesso em 07 /03/12
29
68
derrubadas. A favela30 se constrói com o material “marginal” das demolições e construções da
cidade do Rio de Janeiro (Carvalho. L. 1995, Rocha, 1995).
A figura abaixo nos mostra vida marginal imposta ao afrodescendentes que viviam no Centro
da cidade do Rio de Janeiro.
31Figura 13
A Reforma Pereira Passos, com a derrubada indiscriminada das habitações coletivas,
provavelmente, tenha forçado o crescimento das favelas e a precariedade dos transportes
coletivos. Tal realidade obrigou o trabalhador a improvisar um local de moradia próximo ao
seu local de trabalho, no Centro da cidade, devido à falta de moradia popular nesta região.
30 Conjunto de habitações populares toscamente construídas e desprovidas de recursos de higiene- Novo dicionário Aurélio Buarque de
Holanda Ferreira 2ª edição,1986.Editora Nova Fronteira
31 Figura 13 Augusto Malta, Favela Morro do Pinto, Rio de Janeiro (1912) .Disponível em http://www.google.com.br/search?
q=augusto+malta+favela+do+pinto+foto&hl=pt-BR&prmd=imvnso&source=lnms&tbm=isch&ei=Ij2UT8TsIKrG6QHcyaW3BA&sa=X&oi=mode_link&ct=mode&cd=2&ved=0CBsQ_AUoAQ- Acesso em 21/04/12
69
Certamente, as autoridades não pensaram, nos seus planos de administração municipal, em
projetos que atendessem as camadas sociais menos favorecidas, no que se refere aos
problemas de moradia, dentre outras necessidades.
Uma vez que o “bota - abaixo” foi uma epidemia que atingiu os ilustres membros da
municipalidade, do Clube de Engenharia e das aristocráticas confeitarias frequentadas pelas
elites pensantes da cidade, efetivamente, idealizaram atender as expectativas estruturais dos
grupos abastados da sociedade carioca. Importante para a elite pensante era civilizar a cidade,
pouco importando pelo destino dos negros e pobres que residiam no Centro da cidade do Rio
de Janeiro. Em virtude do problema de habitação, Pereira Passos constrói 120 casas para
operários, localizadas na Avenida Salvador de Sá. No entanto, parece que o Prefeito esqueceu
que 120 casas não abrigariam todos os indivíduos desabrigados com as demolições.
32Figura14
32 Figura 14 MOURA ,Bernardo “Vila Operária _Estácio de Sá –Rua Salvador de Sá março 2009” .Disponível em http://extra.globo.com. Acesso07/01/2012-Vila operária construída por Pereira Passos
70
33 Figura15
Tendo em vista a política de remodernização da cidade e o título a ela conferido, podemos
perceber que a população composta por pobres e ex-escravos não combinava com o glamour do Rio de
Janeiro de inícios do século XX. Caberia a estas pessoas, negras e pobres, se deslocarem para a área
que compreende a Gamboa, Saúde, São Carlos, Praça Onze e, através da via férrea, para os espaços
geográficos denominados de Sertão Carioca (ROCHA, 1995).
A melhoria dos transportes, segundo Moura (2005), provocam a mudança de um determinado
grupo para os subúrbios, antes ocupados pela aristocracia com suas chácaras agrícolas destinadas ao
regalo dos fins de semana. Mudou, também, para atender um pequeno grupo da classe média carioca,
proprietária de lotes menores, assalariados que gozavam de relativa estabilidade de trabalho e podiam
arcar com os custos do transporte para seus empregos no Centro da cidade.
Com as novas linhas ferroviárias e o realismo do “bota abaixo”34, a cidade se expande para o
norte como local de moradia para uma população mais humilde. A população, que cresce em grande
número com as novas levas de migrantes, cria problemas em relação ao transporte da massa operária
suburbana e a seu custo. O subúrbio da cidade do Rio de Janeiro recebe pessoas em decadência,
33 Figura 15TORRES, João Martins. “Avenida Central, abertura 1903-04”. Rio de Janeiro, 1904,.Disponível em
http://www.flickr.com/photos/andre_so_rio/497863408/in/photostream/. Acesso em 27 /03/12
34 Bota –abaixo. Processo de derrubadas de edificações no Centro da cidade do Rio de Janeiro que aconteceram na gestão do Prefeito
Francisco Pereira Passos.
71
operários, militares de todas as patentes inferiores, funcionários públicos, e pessoas, que, apesar de
honestas, viviam de pequenas transações. O subúrbio é o refúgio dos infelizes, dos que perderam
empregos, as fortunas, os que faliram nos negócios e descem para a cidade a procura de seu ganha-pão
e sustento de sua família.
Em torno das estações de trem, nascem os núcleos suburbanos que formam um tecido urbano
no século XX. E pequenas companhias loteadoras passam explorar os terrenos no subúrbio, valendo-se
da expansão de serviços de transportes. Em torno das estações surgem as principais casas de comércio,
armazéns de comestíveis dos mais sortidos, os armarinhos, os açougues e quitandas. Eles atendiam as
necessidades de consumo dos novos moradores, bem como dos boiadeiros e mascates que utilizavam
os caminhos dos novos bairros suburbanos para seguirem a seus destinos comerciais.
Capítulo III
Elementos socializadores entre grupos étnicos do Centro da Cidade ao sertão carioca de
Madureira e Oswaldo Cruz
Os elementos socializadores são perceptíveis nas narrativas dos sambistas transcriadas nesta
pesquisa. Logo, no presente capítulo, apresentamos algumas dessas narrativas que nos mostram os
quintais suburbanos como espaços embrionários, onde foram gestados tais elementos no universo do
samba.
Assim sendo, passaremos analisar as narrativas dos sambistas de Madureira e Oswaldo Cruz,
que integraram e que ainda integram o universo do samba na cidade do Rio de Janeiro. Como aporte
teórico, utilizaremos a literatura que aborde os processos de socialização observados através das
conversas com os sambistas. Assim, ao analisarmos as conversas e fazermos a relação com o
referencial teórico, podemos constatar uma série de elementos que atuaram como práticas de
socialização dos negros no Rio de Janeiro.
O Rio de Janeiro do inicio do século XX, foi marcado pelas edificações onde aconteciam os
encontros entre negros e ficaram conhecidos pelos batuques e as festas que neles aconteciam. Dentre
72
os espaços, encontramos os cortiços, casas de cômodos e as casas de santo, no entorno do centro da
cidade e no sertão carioca. As relações entre os grupos da elite com os religiosos e sambistas também
ocorreram nesses lugares, como acontece até os dias de hoje nas quadras, nas casas dos sambistas e no
desfile oficial das Escolas de Samba.
As figuras das “Tias” e pastoras das escolas de samba, personagens matriarcais no universo
do samba, são identificadas nessa investigação, bem como a transmissão de saberes e fazeres coletivos
dos mais velhos para os mais novos. Também, fazem parte deste tópico a influência dos trilhos para a
manutenção do samba e dos quintais, para a religião e rodas de samba.
A importância dos bairros para a promoção de pertencimento da cultura do samba e a
formação de grandes escolas de samba gera orgulho para os moradores do subúrbio, a ponto de
promoverem, tanto no passado como na atualidade, importantes eventos, como Festa da Penha e as
rodas de samba nos quintais suburbanos. Esses elementos fazem parte dos conteúdos deste tópico para
compreendermos a formação das escolas de samba Império e Portela nos bairros de Madureira e
Oswaldo Cruz e da cultura do samba nos referidos bairros.
Para finalizarmos este capítulo, abordaremos o quanto os sambistas de Madureira e Oswaldo
Cruz reinventam seus espaços e modelos de socialização. Estes, não satisfeitos com os eventos de
rodas de samba em seus quintais e nas quadras das Escolas de samba, levam para a rua sua arte de
tocar, cantar e suas iguarias através de um evento denominado “Feira das Yabás”. Nesse encontro, o
samba é versado e a comida é apreciada pelos frequentadores do evento no bairro de Oswaldo Cruz.
3.1 De conversa em conversa
Durante os anos de relacionamento com os sambistas afros cariocas e dirigentes da Escola de
Samba Portela, conversamos muito sobre os eventos dos quintais, da quadra e dentre outros espaços
promovidos por amigos e familiares, bem como suas participações nessas iniciativas no passado ou
presente.
Embora a minha participação em tais eventos, em alguns casos, se fizesse presente, como
convidada ou co-colaboradora, se fez necessário sistematizar as narrativas dos sambistas de Madureira e
Oswaldo Cruz nesta investigação. De modo que, passo a transcriar as narrativas de Dona Neném, Áurea
Maria, Zilmar Mendonça, Davi do Pandeiro, Marquinhos de Oswaldo Cruz, Tia Surica, Irani e
Carlinhos Maracanã. Este grupo de sambistas ao colaborarem com esta investigação apresentou uma
grande satisfação por suas informações contribuírem para o meio acadêmico, além de promover
visibilidade a suas histórias.
73
As conversas com os mesmos aconteceram em ambientes residenciais, de trabalho e em espaços
de entretenimento, cujos registros se deram através de filmagens e anotações. Estes diálogos nos
proporcionaram uma perspectiva ampla acerca da cultura suburbana. Este modelo de cultura evidencia
aspectos socializadores que ocorrem nas rodas de samba nos quintais de Madureira e Oswaldo Cruz,
espaço onde as trocas de saberes acontecem naturalmente.
Neste sentido, as narrativas dos sambistas nos apresentam através do samba, da comida, da
bebida e das relações de amizade um processo de socialização peculiar dos moradores do subúrbio, em
especial, de grupos que praticam a cultura do samba.
Então como declara Benjamim (1985, p.205) acerca da narrativa.
A narrativa que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão- no campo, no mar e na cidade-, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador como a mão do oleiro na argila do vaso.
Neste contexto exposto por Benjamim (1985), podemos declarar que as narrativas dos sambistas
de Madureira e Oswaldo Cruz estabelecem, no ato de contar sobre sua vida e de seus amigos, uma
relação artesanal ao atuar como um sábio que detém o conhecimento de toda uma vida e até mesmo da
vida do outro.
3.1.1 Dona Neném (Iolanda de Almeida Andrade)
Certo dia, no mês de Junho, encontrei com Áurea Maria no mercado próximo a minha casa e ela
me convidou para um encontro ente amigos que iria acontecer naquele dia em sua casa. Horas depois
segui para casa de Áurea Maria e, ao chegar lá, encontrei Dona Neném com uma amiga sentada nos
fundos do quintal, bebendo uma cerveja. Aproveitei o momento para estabelecer uma conversa com
Dona Neném, esposa do compositor Manacéia e mãe de Áurea Maria (pastora da Velha Guarda da
Portela).
A matriarca da família narra que a casa onde ela vive até os dias hoje foi comprada por sua
mãe Dona Ana na década de 30. As rodas de samba em seu quintal começaram com a mudança da
família do bairro de Botafogo para o subúrbio de Oswaldo Cruz. Dona Ana, ao perceber a tristeza de
seu filho Lincoln, por não mais morar em uma área nobre, comprou lhe um violão com parte do
dinheiro recebido do pecúlio de seu marido falecido. Lincoln, que trabalhava na cidade, passou a se
74
relacionar com compositores que se reuniam em frente ao edifício Darc no bairro da Cinelândia e
começou a escrever samba.
Dona Ana, então viúva, se casou com um vizinho também viúvo, que tinha o hábito de se
reunir com amigos para tocar chorinho. Seu filho Lincoln começou a trazer os seus amigos para o
quintal da família, dentre eles os compositores Aniceto e Paulo da Portela. Nesses encontros, os
compositores e músicos se reuniam para cantarem e tocarem. Enquanto isso, Dona Ana cuidava das
iguarias para alimentar os amantes do chorinho e do samba, que frequentavam seu quintal. Ela não
permitia que eles saíssem dos encontros festivos sem antes experimentar suas iguarias.
É nesse universo, entre vizinhos, familiares e amigos de Lincoln, que Dona Neném conhece o
compositor Manacéia, irmão dos compositores Aniceto e Miginha, e se casam. Desse casamento
nascem as filhas Heloísa e Áurea Maria. O casal ainda criou uma sobrinha de Dona Neném, Ana
Maria.
Essa família de afrodescendentes, hoje com netos e bisnetos, reside no quintal de Dona Ana
em Oswaldo Cruz. A casa de Dona Ana, na época da adolescência e vida adulta de suas filhas, passa a
ser um a espécie de atelier da Escola de Samba Portela, pois as jovens se reuniam no quintal para
elaborarem fantasias para o desfile. Após o falecimento de Dona Ana, o casal Neném e Manacéia e
suas filhas deram continuidade as atividades festivas no quintal, bem como o atelier improvisado para
a roupa das meninas.
Conta Dona Neném que, em certa ocasião, as meninas não tinham dinheiro para comprar
tecido e que a cauda de seu vestido de noiva foi utilizada para fazer a fantasia de Ana Maria e da
Surica. Segundo Dona Neném, Surica se encarregava de procurar, entre os sambistas dos bairros de
Madureira e Osvaldo Cruz, sobras de adereços para estilizar as fantasias para elas desfilarem na
Portela.
Dona Neném narrou que os encontros com rodas de samba em seu quintal eram corriqueiros
entre os familiares e vizinhos. Era comum, sempre era posterior a um jogo de sueca, seu marido
Manacéia começar a tocar o cavaquinho e as crianças acompanharem cantando. Enquanto isso, a sopa
de ervilha ou de legumes era providenciada.
Esses encontros geraram a preparação de composições e atraíram pessoas famosas do mundo
do samba, como Paulinho da Viola, que certa vez foi levado ao quintal da família e se encantou com
aquele encontro. Ela, Dona Neném, contou que certo dia Paulinho compareceu em sua casa à procura
do seu marido, o compositor Manacéia, que estava na casa de amigos em Vila Isabel. Dona Neném
passou o endereço para Paulinho e seguiu para o destino em que se encontrava o seu marido. Lá,
comentou sobre a visita de Paulinho. Surpreendentemente, Paulinho chegou à casa dos amigos de Seu
Manacéia e foi um alvoroço. Os donos da casa pediram aos vizinhos que emprestassem louças mais
75
apresentáveis para servir ao cantor. O dono da casa, Seu Pará, chegou a chorar de emoção.
O motivo da visita ao compositor Manacéia foi propor a filmagem de um documentário em
seu quintal, dirigido por Leon Hirzsman e produzido por Paulinho da Viola. Ele aceitou e o
documentário recebeu a denominação de “História do Partido Alto”. Foi filmado no quintal de
Manacéia, em Oswaldo Cruz, e de Candeia, em Jacarepaguá.
Finaliza Dona Neném, que a presença de Paulinho da Viola, junto ao grupo de sambistas de
Oswaldo Cruz, culminou na organização do Grupo Show Velha Guarda da Portela, por isso, Paulinho
recebeu o título de padrinho da velha guarda.
3.1.2 Zilmar Mendonça
Ao encontrar com Zilmar Mendonça, filha do ex-Presidente da Portela, Seu João Calça Curta,
marcamos um encontro em seu apartamento, que fica em frente à quadra da Portela em Madureira. No
momento em que cheguei a seu apartamento, a recepção foi muito calorosa, acompanhada de petiscos,
cervejas e uma agradável conversa.
Em conversa com Zilmar, ela contou que a peixada em seu quintal promovida por seu pai, no
bairro de Oswaldo Cruz, ficou tão famosa na época que atraiu revistas e jornais (Fatos e Fotos e O
Globo). Contou também que a figura lendária, Natal da Portela, nos dias da Peixada, passava em sua
casa e de gozação dizia ao Seu João “se faltar peixe eu pego no meu alcário”.
O “alcário”, ao qual Natal da Portela se referia, de acordo com Zilmar, era o aquário que ele
tinha em sua casa. Natal era conhecido por se atrapalhar com as palavras. Menciona Zilmar que
personagens de outras escolas de samba, como Salgueiro e Império Serrano, também frequentavam a
peixada de Seu João, embora a proposta fosse discutir o desfile da Portela.
Zilmar Mendonça expõe que os encontros promovidos no quintal por seu pai, enquanto
Presidente da Portela, não só aconteciam na quarta feira de cinzas, como no dia que antecedia o
desfile. Ele promovia um feijão para um grupo seleto, a fim de discutirem o desfile da Portela.
Nos dias de momo, grupos de desfilantes, antes do desfile oficial da Portela, promoviam um
bloco do sujo no bairro de Oswaldo Cruz. Os desfilantes passavam no quintal da família Mendonça e
Dona Léa, esposa de João Calça Curta, já os esperava para servi-los cachorro-quente e batida de
limão.
Zilmar relatou que seu pai era muito namorador. Como esse encontro dos blocos de embalo da
76
Portela acontecia na casa de sua mãe, uma namorada de seu pai, moradora de Cascadura, passou a
promover lanches para receber os foliões da Portela. E, consequentemente, carregar seu João para o
quintal dela para receber os foliões.
Tais encontros, segundo Zilmar, promovidos por seu João, em seu quintal, só terminaram com
a morte de sua mãe, em 1978, e que nessa última roda de samba ou pagode, como João Calça Curta
denominava, foram consumidos 120 quilogramas de peixes. Zilmar desabafa, ao final da entrevista,
que embora seu pai tenha sido uma pessoa que contribuiu significativamente para o universo do
samba, especificamente para Portela, às vezes, ela é impedida de entrar na quadra por funcionários que
desconhecem a contribuição de sua família para a história cultural e social da referida Escola de
Samba e do bairro de Oswaldo Cruz.
A figura de número abaixo apresenta um dos encontros festivos, onde a peixada era o prato
principal, no quintal do ex-presidente da Portela João Calça Curta.
35Figura 18
3.1.3 Davi do Pandeiro (Davi de Araújo)
A conversa com o músico, cantor e compositor Davi do Pandeiro, integrante da Velha
Guardam Show da Portela, aconteceu no camarim do Cordão da Bola Preta, pois já havíamos
combinado um encontro no local em questão. Logo iniciamos nossa conversa, após Seu Davi, aos seus
78(setenta e oito anos de idade), comer uma suculenta feijoada antes de sua apresentação no show.
Davi do Pandeiro iniciou nossa conversa contando que sua avó veio para o Brasil em um dos
35 Figura 18 Acervo Zilmar Mendonça- Roda de samba e Peixada no quintal de João calça Curta em Oswaldo Cruz-
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navios negreiros que comercializavam escravos e que seu pai nasceu em terras brasileiras. Os
ancestrais de Davi do Pandeiro, de acordo com sua narrativa, foram escravos em uma fazenda em Ubá
no Estado de Minas Gerais. Após abolição da escravidão saíram da fazenda e vieram para o Rio de
Janeiro.
Ao chegarem ao Rio de Janeiro, fixaram residência em Madureira e seu entorno. Nas
primeiras décadas do século XX, seu tio Juvenal se destacava por promover no seu quintal, em
Madureira, jogos de dama, rodas de samba e chorinho.
36Figura 19
Os encontros do quintal de seu Juvenal contavam com a presença de Donga, Pixinguinha e Paulo da
Portela. Era comum, no período de carnaval, a família, vizinhos e amigos promoverem um bloco do
sujo, em que o samba era versado pelos sambistas presentes e ritmado através dos músicos com suas
flautas, clarinete e outros instrumentos.
A tia de Davi e outras mulheres da família ou da vizinhança cuidavam da comida para nutrir
os foliões e sambistas nos dias de momo e nos dias de roda de samba. No bloco promovido por sua
família, os homens se vestiam de mulher e as mulheres se vestiam de homem. “Nessa época as rodas
de samba e os blocos não contavam com o instrumento surdo de marcação, porém o violão, reco-reco,
cabaças, bandolim, matraca, castanhola e pratos de louças tocados com facas ou colheres faziam parte
36 Figura 19.Acervo pessoal Cristina da Conceição Silva .Davi do Pandeiro no camarim do Bola Preta,2012.
78
da bateria ou conjunto das rodas de samba”, segundo Davi.
O pai de Davi, de acordo com seu relato, tocava nas rodas de samba das casas das tias baianas
no centro da cidade do Rio de Janeiro. As tias, a quem Seu Davi se refere eram Tia Ciata, Tia
Perpétua, Tia Amélia do Aragão, Tia Perciliana e Tia Mônica. Ele, desde criança, frequentava a casa
das tias baianas junto com seu pai e já era elogiado por elas pelos passos de samba que mesmo
pequeno desempenhava.
Relata Davi do Pandeiro que seu pai e sua mãe se separaram em 1943. Sua mãe o internou
juntamente com seu irmão, pois não queria que eles se envolvessem com samba, uma vez que ela não
gostava da cultura. A mãe de Davi o internou no colégio interno na cidade de Passa Quatro e seu
irmão em Quintino. No internato, ele se unia aos colegas e fazia pandeiro da lata de goiabada.
Inventava uns versos e desfilava no bloco da instituição de camisola e com a cabeça raspada, durante o
carnaval.
Certo dia, Davi veio visitar sua mãe e não mais voltou para o internado em Passa Quatro. Sua
mãe solicitou sua transferência para a Escola XV em Quintino, onde estava internado seu irmão e lá
permaneceu até em 1949. Ao sair do internato e voltar para viver ao lado de sua mãe pediu a uma
vizinha que o levasse no Bloco Paz e Amor de Bento Ribeiro para se divertir. Após essa visita ao
bloco, ele começou a tocar pandeiro e passou a ser o primeiro pandeirista desfilando a frente da bateria
do Bloco Paz e Amor.
A partir daí, começou a fazer de sua arte, lazer e profissão, ao ministrar aulas de pandeiro e
sair à frente da bateria. No período em questão, já à frente da bateria do Unidos da Capela, começou a
participar como músico no grupo de Herivelto Martins, além de trabalhar na Rádio Tupi e Rádio
Mayrink Veiga como músico.
O pandeirista Davi comentou que junto de Mestre André da Mocidade Independente de Padre
Miguel, saiu à frente da bateria da referida Escola de Samba. O maior pontapé para sua carreira foi o
lançamento do CD Tudo Azul da Velha Guarda da Portela. O lançamento do referido CD, iniciativa da
cantora Marisa Monte e que também o produziu, oportunizou a ele viagens para fora do Brasil,
participação em eventos da música brasileira no Teatro Municipal e shows em grandes casas de
espetáculos na cidade do Rio de Janeiro e em outros Estados brasileiros.
Em nossa conversa, Davi relatou que o negro, embora tenha vivido e ainda passe por muitas
discriminações, tem o samba como um trampolim para chegar a alguns espaços dentro da sociedade.
3.1.4 Irani Belmiro da Cunha
79
A narrativa dos eventos do quintal do falecido Argemiro do Patrocínio foi uma colaboração de
Irani, amiga do compositor e irmã de Tia Surica. A conversa aconteceu no enterro dos ossos da festa
de aniversário de uma amiga, realizada no quintal das irmãs. Irani narrou que Argemiro vivia em um
quintal situado numa vila de casas em Oswaldo Cruz e nos dias de quartas-feiras, após o término da
feira que acontecia no local, tinha início o ensaio do grupo da Velha Guarda Show.
Esse espaço era frequentado por cantores e compositores de nome e que os vizinhos nem se
incomodavam com o batuque na roda de samba, em virtude da presença dos visitantes ilustres. Narrou
ainda que esses encontros no quintal de Argemiro iniciaram quando Monarco, Argemiro e Alberto
Lonato, todos integrantes da Velha guarda Show da Portela, na década de 80, começaram a fazer um
peixe às quartas – feiras. “Nesse dia eles promoviam uma roda de samba redondinha!”
Nos encontros promovidos pelos sambistas, não tinha a figura feminina para cuidar das
iguarias, logo, eles as chamaram, como Surica, a falecida Doca e Eunice, para prepararem os
alimentos. O peixe, às vezes, era frito e outras, cozido e sempre acompanhado de bebidas quentes e
cervejas. Algumas vezes, era servido carne seca com abóbora, tripa lombeira e para “tira gosto”, jiló e
quiabo. No final, Argemiro exigia que as louças fossem lavadas.
Segundo Irani, certa vez o Zeca Pagodinho foi à casa de Argemiro com umas amigas,
comeram e beberam, e quando Zeca se despede, Argemiro diz: “Vai embora nada, manda estas donas
lavar as louças!”
A roda de samba do quintal do Argemiro, de acordo com Irani, ficou famosa. Certa vez, a
Velha Guarda foi fazer um show fora de Madureira e alguns rapazes aproximaram-se do grupo e
Argemiro os convidou para sua roda de samba.
80
37Figura 20
Após uma semana, esses rapazes faltaram o trabalho, pegaram o trem para Oswaldo Cruz e, ao
chegarem ao bairro, saíram perguntando até chegarem à casa do compositor. Eles se encantaram pelo
ambiente e a partir daquele encontro, um dos rapazes de nome Ceroli se declarou portelense. De
acordo com ele, aquele espaço era contagiante pelas pessoas e pelo samba que ali se cantava e tocava.
A partir daquela visita à roda de samba de Argemiro, esses rapazes faltavam até o trabalho para
comparecerem ao encontro desse quintal.
Irani narrou que Zeca Pagodinho tinha cadeira cativa às quartas-feiras na roda de samba.
Outros participantes também faziam parte de um grupo efetivo desse encontro, como Marquinhos
Diniz, Cristina Buarque de Holanda e Paulão Sete Cordas. Certa vez, Martinho da Vila prestigiou a
roda de samba no quintal de Argemiro.
“Argemiro era uma pessoa muito divertida e fazia caretas e graças com a falta de dentes que
tinha. Toda vez que perguntavam a ele, porque não colocava uma dentadura, ele dizia:” A Beth
Carvalho diz que é meu charme a falta de dentes!. “No momento, Irani lembrara-se do samba que
Beth Carvalho gravou de autoria de Argemiro e canta um pedaço da composição. “A chuva cai lá
fora/ Você vai se molhar/ vai se molhar.../ até a própria natureza / tá pedindo pra você ficar...”.
37 Figura 20 Foto Show da Velha Guarda da Portela no canecão Marisa Monte e Argemiro do Patrocínio.Disponível soundemaven.com-
acesso em 12/12/2012 ás 18h.15 minutos
81
Irani comentou ainda que, quando acabava a roda no quintal de Argemiro, todos seguiam para
o botequim da esquina da casa dele, e lá tomavam mais algumas cervejas. “Esses encontros só
acabaram depois que ele foi morar com a Nina e ela o levou para viver no quintal de sua família em
São João de Meriti. Mas, uma vez por outra, ele recebia os amigos na nova residência com o mesmo
fervor que acontecia em Oswaldo Cruz. ‘-Tempos memoráveis, tempo bom que não volta mais!’”
Exclamou Irani ao final de nossa conversa.
3.1.5 Surica(Iranette Ferreira Barcellos)
A conversa com Surica aconteceu no mesmo dia em que conversei com Irani, sua irmã. No
mundo do samba, Surica é conhecida como Tia Surica e famosa por promover feijoadas em eventos na
cidade do Rio de Janeiro. Iniciamos nossa conversa com Surica narrando que desde quatro anos de
idade desfila pela Portela. Sua mãe a carregava encaixada no quadril para o desfile. Surica contou que
sua mãe era oriunda do morro da Mangueira e seu Pai, codinome Pio, era integrante da Portela.
Pio, morador de Madureira, teve 18 filhos com sua mãe, 16 filhos com a mulher com quem era
casado e mais 16 filhos com outra mulher. Ela, entretanto, foi criada pelos seus avós na Rua Júlio
Fragoso em Madureira.
De acordo com sua narrativa, ela foi muito discriminada quando adolescente. Os pais de outras
garotas diziam para as filhas não andarem com ela por causa do samba. “O samba é reconhecido hoje
como cultura e os sambistas têm valor. Antigamente eram discriminados. Hoje me aplaudem, mais já
fui discriminada!”
Segundo Surica, em sua casa não aconteciam rodas de samba, mas ela fugia de casa para ir ao
quintal de Dona Esther, frequentar os bailes e rodas de sambas. O quintal de Dona Esther era muito
grande e contava com muitos sambistas locais e de outros bairros. Surica também frequentava as rodas
de samba do quintal do falecido compositor Manacéia, esposo de Dona Neném.
Surica contou que as rodas de samba em seu quintal começaram em seu aniversário de 50
anos, quando ela convidou muitas pessoas e dentre elas foram produtores de televisão, sambistas,
cantores e outros personagens do mundo do samba.
A partir daquele evento, Tetéu e Manoel Alves da Rede Globo de televisão, produtores de
entrevistas de carnaval e samba, começaram a fazer algumas matérias de samba no quintal onde ela
mora. Eles contribuíam com produtos alimentícios para que fosse feita a comida e compravam a
cerveja. Outras emissoras de televisão, como SBT e CNT, também fizeram algumas reportagens com
82
teor de carnaval e samba. Inclusive, algumas audições de CDs aconteceram no quintal da Vila em que
mora, como a do Marquinhos de Oswaldo Cruz, Ernesto Pires e o Tudo Azul da Velha Guarda da
Portela, produzido por Marisa Monte.
Esses eventos foram tomando um vulto significativo para amigos do samba e moradores da
vila, que há 10 anos, no dia 1º de janeiro, todos se encontram no quintal para comer, beber, ouvir
samba, falar de carnaval e compartilhar das iguarias que todos os participantes levam. Além da
comemoração do primeiro dia do ano, o dia da apuração dos desfiles, também, reúne um grupo grande
de sambistas para assistirem na TV as notas dadas pelos jurados. Nesse dia todos os participantes
levam cervejas e 1 quilo de carne, asa ou lingüiça para ser feito o churrasco. “Eu gosto de receber e
promover estas festas. Eu quero manter a chama do samba acessa!” - exclama Surica.
Ao conversarmos sobre os bairros de Madureira e Oswaldo Cruz, retomamos as histórias do
passado e Surica relata que os compositores muitas vezes mal assinavam o nome. É o caso, por
exemplo, de Miginha, irmão de Manacéia, que não sabia lê, mas que era compositor. E exclama: “A
inspiração destas pessoas vinham da alma, era a mão de Deus que estava sobre a cabeça delas!”
Ela expõe que sua relação com a família de Manacéia sempre foi muito intensa, e lembra que
ela já frequentava a casa da família desde época que Dona Ana, sogra de Manacéia, e a Mãe de Dona
Neném eram vivos. Na época do carnaval, a casa de Dona Neném virava um atelier. Como ela e a Ana
(filha de dona Neném) ficavam loucas para desfilar na Portela, mas não tinham dinheiro, Dona Neném
confeccionou a fantasia de baianinhas delas com o seu vestido de noiva. Sua participação na Portela e
com demais moradores se estreitavam por causa do desfile de carnaval e as rodas de samba que
aconteciam nos bairros de Madureira e Oswaldo Cruz.
Narra Surica que esse envolvimento com o universo do samba, especificamente com a Portela,
levou-a ser componente de alas, a fazer parte do coro do desfile da escola samba e que até samba
puxou na avenida. Conta à entrevistada que, em 1966, foi convidada por Natal da Portela para
defender o samba de Paulinho da Viola na avenida. O enredo foi “Memórias de um Sargento de
Milícias” e, no momento do convite, ela ficou com as pernas bambas de tanta felicidade.
(Lançamento do CD “Tudo Azul da Velha Guarda da Portela” Quintal da Tia Surica)
83
38Figura 21
Naquela época as escolas de samba ficavam na avenida mais de duas horas, não tinha
cronometragem. “E haja gogó. No final do desfile a voz estava boa, mas os pés estavam todo
machucado de tanto tempo andando!” E nesse ano, expõe Surica, que a Portela foi campeã e o samba
enredo foi o único da carreira de compositor de Paulinho da Viola na história da Portela.
O envolvimento de Surica com a Velha Guarda Show da Portela, começou há 32 anos,
quando, em 1980, o compositor Manacéia a chamou e pediu para ela cantar sambas de terreiro da
Portela. Ao terminar de cantar, Manacéia diz que ela era a mais nova integrante do grupo. “Era um
teste e eu nem sabia!”
Ao retomarmos o assunto sobre o seu quintal, Surica comenta que muitos artistas e políticos
passaram por lá e que inclusive um dos aniversários de Marisa Monte foi festejado em seu quintal. O
prato foi galinha com macarrão acompanhado de muita cerveja. Nesse dia, estiveram presentes
Alcione (a Marrom), Miúcha, Carlinhos Brown e Beth Carvalho, que sempre se faz presente nos
festejos do quintal de Surica.
Além dessas participantes ilustres, ela apresenta uma lista de pessoas que já participaram das
rodas de samba em seu quintal, como os artistas Cristina Buarque de Holanda, Marquinho Satã,
38 Figura 21- Acervo pessoal Cristina da Conceição Silva.-lançamento do cd Tudo Azul quintal de Surica(Marisa Monte no centro da foto
de camiseta branca),2000
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Martinho da Vila, Adriana Bombom, Dudu Nobre, Zeca Pagodinho, Neguinho da Beija Flor, Beth
Mendes e Adriana Lessa; os carnavalescos Silvio Cunha, Alexandre Louzada, Caê Rodrigues, Milton
Cunha e Amarildo; e os políticos Vereador Eliomar Coelho, o Ministro da Cultura Francisco Wefforde
o Prefeito Eduardo Paes.
Seja em seu aniversário e de amigos ou em festejos sem motivos aparentes, ela gosta é de
receber amigos em seu cafofo e cantar os sambas memoráveis. Ela conta que seu envolvimento com o
samba tem lhe rendido visibilidade no cenário carioca, tanto que ela tem um espaço para receber seus
convidados e mostrar seus dotes culinários e de suas meninas, como ela se refere à irmã Irani, primas e
amigas que confeccionam a feijoada, que acontece no último sábado de cada mês do Teatro Rival.
O dote culinário de Surica a levou a ministrar eventos de cervejaria em um bar da Lapa, em
encontros políticos do atual Prefeito Eduardo Paes, aniversários de amigos e no lançamento do Bloco
Paulinho da Viola que aconteceu no início de 2012 em seu quintal, cujo Prefeito da cidade do Rio de
Janeiro se fez presente. Sua casa é conhecida como o “Cafofo da Surica”, alcunha proferida por seu
amigo Ceroli, e na porta da entrada tem uma placa que se refere à alcunha.
Ela exclama no final da conversa “Acho que vou registrar o nome Cafofo da Surica!”.
3.1.6 Marquinhos de Oswaldo Cruz (Marcos Sampaio de Alcântara )
Em uma feijoada no Cordão da Bola Preta, no dia em que marquei o encontro com Davi do
Pandeiro, encontrei com o compositor e cantor Marquinhos de Oswaldo Cruz. Aproveitei para
conversar com ele e colher material para minha investigação acadêmica.
Em conversa com Marquinhos, ele relatou que seu pai tinha um comércio no bairro de
Oswaldo Cruz e não tinha nenhuma feição pelo samba. A família morava em uma vila operária e ele
trabalhava na loja com seu pai. Sempre que o compositor Manacéia ia a sua loja, falava de samba e
cavaquinho e tudo que se relacionava a samba.
Segundo Marquinhos, Seu Manacéia ficava meio “cabreiro” em conversar com ele sobre
samba, pois sabia que o pai dele não apoiava seu gosto pelo samba. De vez em quando, ele comparecia
na casa do compositor e músico Manacéia e, posteriormente, ele ficou sabendo que o compositor
comentava com a família “já vem este menino, o pai dele não gosta que ele se envolva com sambista!”
Marquinhos conta que era comum, no bairro, os vizinhos festejarem em seus quintais com
instrumentos improvisados como baldes, latas, pratos entre outros utensílios da casa, e que tais festejos
aconteciam nos fundos dos quintais, que naquela época eram de grande extensão. O bairro de Oswaldo
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Cruz, em sua infância, já era conhecido por manter as tradições herdadas pelos irmãos da África e
pelos vários quintais bem frequentados por sambistas conhecidos, que participavam das rodas de
samba.
Ele narrou que também frequentou o pagode de Tia Doca, onde se integra com mais afinco
com os versos de improvisos, devido a presença dos bambas da arte de improvisar naquele espaço.
Nesses pagodes não podiam faltar comidas e bebidas. Nesses espaços se construíam boas amizades.
As pessoas se agregavam em prol do samba sem compromisso de fazer sucesso.
O compositor e cantor lembra que sua primeira composição musical foi elaborada aos 20 anos de
idade e que inclusive o Compositor Argemiro do Patrocínio fez elogio a sua composição denominada
“Chuva e frio”. Em sua vida de sambista, as figuras que muito representaram para sua carreira foram
Argemiro, Monarco, Alberto Lonato, Jair do Cavaquinho, Casquinha, Tia Doca e Manacéia. Através
desses sambistas, ele idealiza um projeto denominado “Acorda Oswaldo Cruz” para o bairro de
Oswaldo Cruz, visando a valorização cultural do bairro na década de 80.
O projeto foi a recriação do pagode do trem no dia 02 de dezembro, “Dia Nacional do Samba”,
a fim de valorizar o bairro de Oswaldo Cruz, uma vez que é a última estação dos pagodeiros que vem
da central. Marquinhos frisa que o projeto começou com um número pequeno de músicos, incluindo
componentes da Velha Guarda da Portela, que vieram cantando e tocando, no trem, melodias de
compositores memoráveis, além dos seus padrinhos portelenses como Argemiro, Manacéia e outros
compositores da sua querida escola.
Atualmente, no trem do samba, embarcam compositores, sambistas e os amantes da cultura do
samba. Saem da central do Brasil no dia 02 de dezembro e seguem até a estação de Oswaldo Cruz. No
referido dia, são dispostos dos dois lados do bairro palanques e barracas com bebidas e quitutes. Os
sambistas cantam, tocam, se divertem e agradam o público presente.
Ele declara ter saudades das aulas matinais na padaria com Argemiro, Monarco e de Manacéia
e que eles são os seus heróis do bairro de Oswaldo Cruz, por expressarem a cultura negra tantas vezes
tentada ao silêncio. O compositor ainda narra sobre a importância, para os sambistas, dos festejos
promovidos por Surica, e Áurea Maria (filha de Dona Neném).E que os festejos nestes espaços são
importantes para manter ativa a memória e a oralidade dos mais velhos e abastecer os mais novos com
seus conhecimentos e vivências acerca da cultura de rodas de samba do bairro.
Marquinhos ainda relata o seu orgulho de ser morador do bairro de Oswaldo Cruz, e que suas
letras musicais e iniciativas culturais têm a finalidade de fazer do bairro e seu entorno um exemplo de
cultura negra. É com base nesse raciocínio que ele se empenha em colocar os bairros de Oswaldo Cruz
e Madureira em evidência através de seus projetos como o “Trem do Samba” e a “Feira das
Yabás”( feira gastronômica ). Esse último projeto visa valorizar a culinária do sambista e tornar o
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bairro com maior visibilidade no cenário carioca.
3.1.7 Áurea Maria de Almeida Andrade
A entrevista com Áurea se deu no mesmo encontro de entrevista que tive com sua mãe Dona
Neném. Um momento festivo e com visitantes da Ilha de Itaparica e vizinhos, em que o churrasco era
o prato do dia, e não a famosa galinha com quiabo feita por Dona Neném. Áurea fez questão de
mostrar que a organização do quintal para as rodas de samba está completa, pois nos fundos tem uma
geladeira com um abridor de garrafas pendurado ao lado, além de um fogão industrial e um freezer.
Áurea relata que o quintal de sua casa sempre foi muito festivo e que, desde época de seus
avôs maternos, o chorinho e o samba se fizeram presente. Aos domingos, era comum ela e suas irmãs
acordarem com o som de um instrumento.
No momento da entrevista, Áurea pede licença e liga para Marquinhos de Oswaldo Cruz,
chamando-o para participar do churrasco. Após a ligação retomamos a nossa entrevista. Continuando
a conversa, ela coloca que quando criança seus tios Miginha e Aniceto, irmãos de seu pai, o
compositor Manacéia, também eram compositores e que sempre estavam no quintal de sua casa. A
visita de seus tios ao seu pai sempre culminava em cantoria e apresentação de novas composições.
O compositor Miginha não dominava a escrita e a leitura. Ele a chamava e suas irmãs para
ouvirem suas composições para que elas gravassem na memória. Na época não existia instrumentos
eletrônicos domésticos para gravar as composições musicais. O hábito de usar a memória dela e de
suas irmãs, também era utilizado por seu pai, que era alfabetizado, porque, tal estratégia, garantia não
esquecer a melodia. É tanto que quando crianças nós brincávamos de roda com essas composições e
com os sambas de enredo da Portela. “Tal atitude de meu pai me aproximou muito das atividades
musicais dele, tanto que compus uma música com ele, cuja letra tem o nome de “Volta meu amor”.
Essa música que foi escolhida por Marisa Monte, para o CD Tudo Azul da Velha Guarda da Portela”.
De acordo com Áurea, não só as músicas faziam parte da vida dela e de suas irmãs nos
encontros de sueca, que terminavam em roda de samba no quintal de sua família. A comida também se
fazia presente nesse contexto tanto que ela suas irmãs e uma amiga da vizinhança, de nome Aparecida,
descascavam legumes para a feitura de uma sopa para sustentar fisicamente os cantores e
instrumentistas. Naquela época, segundo Áurea, a vida era mais difícil e a galinha com quiabo e a
rabada com polenta, também especialidade culinária da família, acontecia em momentos especiais.
No que se refere à memória, ela relata um episódio de quando seu pai juntou um grupo
composto por Alvaiade, Caetano, Alberto Lonato, Chico Santana, Manacéia, Aniceto, Miginha,
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Vicentina, Iara, Lurdes e Nei da Portela para cantar e compor sem grandes pretensões. Paulinho é
convidado a ir ao aniversário de Manacéia por Alberto Lonato, ele se encanta com o movimento e
convida Leon Hirzsman, um produtor, para registrar aquele movimento. De acordo com Áurea o
movimento produzido pelos amigos, pai e tios, tinha finalidade de se encontrarem comerem e se
divertirem - “um olhar inocente”. Porém para quem veio de fora, como Paulinho da Viola, enxergou
aquele encontro como produção cultural, de um grupo que nem sequer tinham noção do que faziam ao
se encontrarem.
A partir desse documentário, Paulinho orienta aos sambistas a fundarem um grupo,
denominado a Velha Guarda Show da Portela. O nome Velha Guarda já existia no universo do samba,
porque as pessoas mais velhas nas escolas de samba recebiam as alcunhas de velha guarda. Inclusive
nesses encontros, Paulinho da Viola sugeriu a Cristina Buarque de Holanda que gravasse uma música
de velha guarda e, assim, a cantora o fez e gravou a música de Manacéia de título Tantas lágrimas.
Na ocasião da nossa conversa, dá inicio a uma pequena roda de samba e Áurea e todos os
presentes começam a cantar. Dona Neném pede para a filha pegar o cavaco de Manacéia e entrega ao
Marquinhos de Oswaldo Cruz. O marido de Áurea (Marcus) com o balde, Áurea com o pote de sal
grosso e seu amigo com um copo de vidro e um garfo, iniciam uma cantoria, em que os bisnetos
também cantam as composições do bisavô.
A foto abaixo nos mostra um pequeno grupo nos fundo do quintal de Dona Neném, mãe de Áurea
Maria, cantando e tocando ao final de nossa conversa.
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39Figura 22
3.1.8 Carlinhos Maracanã (Carlos Teixeira Martins)
O ex Presidente da Portela Carlos Teixeira Martins, conhecido como Carlinhos Maracanã,
alcunha que adquiriu em virtude de ter sido um dos donos do extinta Rede de Mercados Maracanã.
Recebeu-me em seu escritório no bairro da Pavuna e no momento em questão fui acolhida com muito
carinho, tendo em vista que fui diretora e Presidente do Conselho Fiscal em sua gestão, durante 22
anos. A estreita amizade estabelecida durante anos nos aproxima das histórias dos portelenses,
especificamente da Velha Guarda, que na sua gestão sempre teve dispensada uma grande atenção.
No momento de nossa conversa, Carlinhos Maracanã aborda que foi para Portela quando ainda
era Presidente do Madureira Atlético Clube por meio de Natal da Portela, um dos diretores do clube
mais atuantes. O bairro de Madureira não ficou famoso pelo samba, mas também pelo futebol, pois o
Clube de Futebol Madureira foi a primeira agremiação esportiva a entrar em Cuba depois da revolução
Socialista de 1959. E no período em pauta, o time foi recebido pelo maior revolucionário de todos os
tempos, Ernesto Che Guevara, o que aconteceu em sua gestão e de Natal da Portela.
Ele contou que por ser português enxergava nos sambistas, como Manacéia, Alberto Lonato,
Argemiro, Chico Santana, João Calça Curta, dentre outros que promoviam encontros envolvidos com
alimentos, samba e comida em seus quintais, as tradições de sua terra Trás dos Montes. As tradições
em Portugal, nos encontros lusitanos que aconteciam após as missas de domingo, também envolvem a
comida, o vinho e o fado. A família se reunia em volta de uma grande mesa farta e comiam, bebiam e
cantavam os fados.
Retomando ao nosso tema samba, ele compara a quadra da Portela a um grande quintal, pois
ele fez questão, após a compra de uma antiga garagem para onde foi transferida a escola de samba, em
1972, de manter uma área significativamente grande sem cobertura, onde foram plantadas árvores e
plantas decorativas. O que para o entrevistado era uma forma desse grupo ver no espaço que
compreendia a escola, a extensão de seus quintais e dos quintais que eles eram acostumados a
frequentarem.
Carlinhos Maracanã expõe que esse espaço gerou um novo modelo de encontro, que teve,
39 Figura 22 Acervo pessoal Cristina da Conceição Silva.Roda de samba improvisada no quintal de Dona Neném,2012, com áurea
Maria e marquinhos de Oswaldo Cruz
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como mola mestra, as comidas feitas por Tia Vicentina, irmã de Natal, que tinha a feijoada como prato
mais famoso. Nesse período, a fama da feijoada da Portela atraiu muitos artistas dentre eles Paulinho
da Viola, Clara Nunes e também os moradores da Zona Sul da cidade e do entorno da quadra, que
vinham para a escola para provar a feijoada da Tia Vicentina.
Ele declara que as escolas de samba, em geral, e os bailes no subúrbio sempre tiveram em seus
encontros festivos algum prato em especial, como angu, caldo verde, sopa de ervilha entre outros.
No momento da conversa ele diz “Você e Marquinhos de Oswaldo Cruz são responsáveis pelo
retorno da feijoada da Portela e quem sabe do mundo do samba na atualidade, pois se não fossem
vocês dois a me convencerem que valia apena resgatara feijoada de Vicentina eu não teria pensado
nisso. Vocês dois são responsáveis, não só pela da Portela, mas pelas outras que seguiram os mesmos
passos. Imagina se vocês tivessem patenteado!”
Ele termina sua entrevista dizendo que a cidade do Rio de Janeiro sempre foi marcada por
hábitos alimentares que se transformam em moda, seja nas quadras, nos clubes, nos estabelecimentos e
até mesmo nas ruas, como o famoso Angu do Gomes e do Feijão do Januário em Caxias.
3. 2 Festa, samba e religião no entorno da cidade carioca
Após apresentarmos a transcriação das conversas com os sambistas, passamos a destacar para
efeito de análise os elementos socializadores. Os primeiros elementos são a festa, o samba e a religião,
que demarcavam os encontros festivos que aconteciam na cidade do Rio de Janeiro e seu entorno no
final do século XIX e início do século XX.
Neste sentido, destacamos que nos arredores da Praça Onze, a Rua João Caetano, foi endereço
de um importante candomblé da cidade, a casa de Cipriano Abedé pai – de- santo, e de figuras
importantes e de sambistas conhecidos, como João da Baiana, (compositor) que fora estivador em sua
juventude.
A rua, em questão, ficava próxima a maioria dos cortiços, que também eram próximos à casa de
santo do importante pai de santo Assumano Mina do Brasil, um africano que era da Costa da África e
que foi um dos primeiros candomblés a se instalar na cidade. A Rua Visconde de Itaúna cedia espaço
para a Casa de Tia Ciata, conhecido como reduto de sambistas negros, especialmente dos baianos. Tia
Ciata era frequentadora dos candomblés da região.
As festas na casa de Tia Ciatatornaram se tradicionais e ganhou respeitabilidade em função de
seu marido ser funcionário público e futuramente Chefe de Polícia. Descreve Moura (2005) que o
90
cargo de Chefe de Polícia concedido ao marido de Tia Ciata ocorreu em função de a baiana ter curado
a perna do Presidente da República Venceslau Brás de uma ulceração insistente.
Por Tia Ciata ter acesso a instituição policial, pelo seu marido pertencer ao quadro da
incorporação, sua casa era livre das batidas polícias. Sua residência passa a ser um lugar privilegiado
para as reuniões entre negros artesões, funcionários públicos, policiais, por mulatos e brancos de
classe média baixa. As pessoas que se aproximam, através do samba e do carnaval, são atraídas pelo
exotismo das celebrações e passam a frequentar as rodas de sambas e encontros festivos na casa de Tia
Ciata.
Em uma rua próxima, à Marquês de Sapucaí, estava à casa de Benzinho Bamboxê, outro pai-
de-santo afamado. As ruas Visconde da Gávea e Barão de São Félix, também típicas de cortiços,
ficavam mais próximas do porto e era nesta segunda rua que, no fim do século XIX, moraram mais de
3.000 pessoas.
Morava também, nestas imediações, o conhecido Dom Obá II d’África, um líder religioso
muito conceituado. Na Rua Barão de São Félix, funcionava o candomblé de João Alabá, muito
conhecido por ser o pai- de- santo de Tia Ciata e de muitos sambistas que frequentavam sua famosa e
festeira casa.
Certamente, esses espaços festeiros e religiosos fizeram parte da vida de muitos homens que
trabalhavam no porto, porque essas ruas contavam com os cortiços e outras moradias populares. Essa
referência é ainda mais forte se pensarmos nos portuários negros, que, assim como no trabalho, ainda
guardavam em suas memórias – mas também na prática diária – os costumes e as tradições religiosas
dos tempos da escravidão (MOURA, ARANTES,1995,2005).
A freguesia de Santana era, sem dúvida, a região da cidade onde se concentrava a maior parte
dos candomblés. É justificado, porque a zona portuária, arredor da Cidade Nova e Praça Onze foram
locais de grande concentração dos negros (africanos ou crioulos). Nesses lugares, chegaram também
inúmeros grupos oriundos da Bahia na segunda metade do século XIX, em virtude da cidade
apresentar ampla concentração financeira. Os grupos baianos iriam situar-se na parte da cidade com
moradia mais barata, na Saúde, perto do cais do porto, onde os homens, como trabalhadores braçais,
buscavam vagas na estiva (MOURA, 1995).
O crescimento das atividades portuárias e a inauguração da Estrada de Ferro Central do Brasil
transformaram a região num pólo de atração da população pobre, especialmente os baianos, que
poderiam conseguir empregos. Nas cercanias da cidade era possível encontrar abrigo e solidariedade
baseados em laços de parentesco de sangue ou “de nação” e afinidades religiosas.
Assim, os negros que na cidade chegavam, se reuniam em torno dos negros já instalados. No
passado, tinha na Pedra do Sal, na Saúde, uma casa de baianos e africanos que viam o navio chegando
com os negros da África ou da Bahia e eles davam o sinal, uma bandeira branca com símbolo de
Oxalá, avisando que vinha chegando gente. A casa era no morro, pertencia aos africanos, Tia Dadá e
Tio Ossum. Eles davam agasalho e tudo mais até a pessoa se aprumar na cidade do Rio de Janeiro.
91
Percebe-se como a identificação étnica e a religião dos orixás exerciam forte eixo de ligação
entre os que ali já estavam com os negros que ali chegavam. A expressão cunhada mais tarde por um
de seus moradores deu àquela região uma definição que ficou na memória – construída posteriormente
– da cidade: “Era a Pequena África no Rio de Janeiro”. Confirmada pelo sambista negro Heitor dos
Prazeres, referindo-se ao espaço nas primeiras décadas do século XX(CARVALHO, D.,
1990,MOURA, 1995, ARANTES, 2005). E assim, o enredo da Escola de samba Beija Flor de
Nilópolis apresenta através do seu enredo essa África: Do Berço Real a Corte Brasiliana- A pequena
África do Rio de Janeiro.
Olodumarê, o deus maior, o rei senhor/Olorum derrama a sua alteza.../Oh! Majestade negra, oh! mãe da liberdade/África: o baobá da vida ilê ifé /África: realidade e realeza, axé/Calunga cruzou o mar /Nobreza a desembarcar na Bahia/A fé nagô yorubá/Um canto pro meu orixá tem magia/Machado de Xangô, cajado de Oxalá /Ogum yê, o Onirê, ele é odara/É Jeje, é Jeje, é Querebentã /A luz que bem de Daomé, reino de Dan /Arte e cultura, Casa da Mina Quanta bravura, negra divina/Zumbi é rei Jamais se entregou, rei guardião/Palmares, hei de ver pulsando em cada coração/ Galanga, pó de ouro e a remição, enfim/Maracatu, chegou rainha Ginga/Gamboa, a Pequena África de Obá/Da Pedra do Sal, viu despontar a Cidade do Samba/Então dobre o Run/Pra Ciata da Oxum, imortal/Soberana do meu carnaval.../ Agoyê, o mundo deve o perdão /A quem sangrou pela história/Áfricas de lutas e de glórias. Compositores: Cláudio Russo, J. Velloso, Gilson Dr., Carlinhos do Detran-(2007)
Se por um lado o codinome não dava conta da diferença étnica e cultural da região naqueles
tempos (afinal, a região era moradia de muitos brancos, inclusive estrangeiros), como nos diz Arantes
(2005), por outro, ela pode ser interessante para expressar parte da vida cultural dos negros que ali
viviam. O ambiente festeiro e religioso da “Pequena África” marcou a experiência dos homens do Cais
do Porto que circulavam pela região frequentemente.
O espaço denominado como Pequena África, tal como o zungú do largo da Prainha, misturou
pretos e brancos, inclusive estrangeiros, às festas e aos rituais que aconteciam ali. Não era privilégio
dos pretos e pardos, mas também de outros grupos étnicos. Era comum, nesses ambientes, ver brancos
e pretos participando das mesmas festas de samba, macumbas e comemorações. Referindo-se às festas
que a baiana Tia Ciata dava constantemente em sua casa, João da Baiana dizia que ‘A festa era de
preto, mas branco também ia lá divertir’.
Os ajuntamentos de pretos e manifestações culturais que remetessem às heranças africanas
não eram bem vistos pelas autoridades. Especialmente, em ocasiões em que os negros promoviam
encontros festivos eram constantemente vítimas das manhas e prisões de uma polícia que suspeitava e
reprimia vadios, ébrios, capoeiras, feiticeiros e sambistas, e que associava a malandragem.
92
No entanto, eles tinham suas próprias formas criativas de lidar com a repressão e uma das
maneiras era esconder tais práticas no âmbito privado. Certa vez João da Baiana referiu-se às festas
nas casas das tias baianas como espaços onde se misturava samba e candomblé, dentre outros
eventos. O compositor João da Baiana contava que as festas na casa de Tia Ciata eram organizadas
nos espaços existentes da casa: o baile acontecia na sala de visitas, o samba de partido alto nos fundos
da casa e a batucada no quintal (ARANTES, 2005).
O compositor João da Baiana, ao discursar acerca das tradições festeiras e musicais dos
baianos, que seriam uma das fontes primordiais dessa cultura popular, dizia:
As nossas festas duravam dias, com comida e bebida, samba e batucada. A festa era feita em dias especiais, para comemorar algum acontecimento, mas também para reunir os moços e o povo “de origem”. Tia Ciata, por exemplo, fazia festa para os sobrinhos dela se divertirem. A festa era assim: baile na sala de visitas, samba de partido alto nos fundos da casa e batucada no terreiro. A festa era de preto, mas branco também ia lá se divertir. No samba só entravam os bons no sapateado, só a “elite”. Quem ia pro samba, já sabia que era da nata. Naquele tempo eu era carpina (carpinteiro). (MOURA, 1995, p.87)
Os chamados feiticeiros João Alabá, Cipriano Abedé, Pai Assumano e Bamboxê, só para citar
os que ficaram mais conhecidos, tinham pessoas ilustres em seus quadros de relações, certamente
interessadas em seus “poderes sobrenaturais. Pai Assumano-
Príncipe dos Alufás’40 tinha como admirador de suas atividades religiosas José do Patrocínio Filho,
que foi apresentado pelo sambista sinhô, frequentador do terreiro.
A casa de Cypriano Abedé, na Rua João Caetano, 69 era frequentada pelo senador Irineu
Machado. Diz-se ainda que, nesta casa de santo, em dias de função paravam grandes fileiras de
automóveis de luxo, de onde descia gente de Copacabana, Botafogo, Laranjeiras, entre outros bairros
nobres. O filho do Presidente da República, o Sr. Washington Luiz, também teve seu carro
estacionado na casa do pai- de- santo. As ligações de pessoas da elite com os feiticeiros divulgam um
aberto diálogo cultural entre indivíduos de diferentes origens sociais, conforme descreve Arantes
(2005. p.123)
Francisco Guimarães, o Vagalume, também mencionou em suas memórias as relações entre os “pais de santo” e “muita gente boa”. Segundo o cronista, entre os admiradores de Pai Assumano – o“ Príncipe dos Alufás” – estava José do Patrocínio Filho, que o teria conhecido por intermédio do sambista Sinhô, que freqüentava o terreiro. Vagalume conta ainda que as festas na casa de Cypriano Abedé – “o maior Babalaô do Brasil” – também eram
40 Alufás- O termo designa líder religioso para os negros muçulmanos no Rio de Janeiro http://dicionario24.info/Aluf%C3%A1 acesso em
27/11/11
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freqüentadas pela “gente da alta roda”, incluindo o Senador Irineu Machado, que teria pagado 20:000$000 réis para que os trabalhos de Abedé lhe garantissem as eleições.
Ao descrever os relatos Gabriela dos Reis Sampaio, Arantes (2005) aponta que as relações
entre negros e brancos vinham de longe, desde os tempos da história do famoso feiticeiro negro Juca
Rosa, que, na segunda metade do século XIX, mantinha relações com a “fina flor da nobreza
imperial”. E essas redes ligavam poderosos e subordinados. As trocas culturais constantes e os
conflitos permanentes, também, envolviam senhores e dependentes, em função de conviverem em
espaços em comuns.
Os movimentos de interpenetração de mútuas influências entre brancos e negros, entre elites e
subordinados aconteciam involuntariamente, já que os escravos e outros dependentes viviam no
mesmo mundo e até no mesmo teto que senhores brancos, convivendo diariamente.
A religião era parte importante da vida daquelas pessoas e a manutenção de suas crenças e práticas
religiosas tinham uma dimensão fundamental na organização de suas vidas. Tais aspectos contribuíam
para a sociabilização e articulação de identidades. Manter relações com pessoas “da alta roda” era uma
estratégia possível de sobrevivência, uma maneira de garantir proteção para dar continuidade aos seus
ritos. Tais alianças podiam incluir até mesmo autoridades policiais.
Segundo autora, João do Rio descreveu em suas narrativas que um delegado, estando
amarrado a uma paixão, conseguiu seus intuitos graças ao prodígio de um galo preto. E conforme
Vagalume, cronista, as funções no candomblé de Sua Alteza Cypriano Abedé eram perfeitamente
permitidas pela polícia por ser uma Sociedade de Ciências Ocultas com organização de sociedade
civil. Provavelmente, Abedé teria obtido tal permissão com uma ajudinha de seus seguidores
influentes.
O estivador, Ogã41, sambista e compositor João da Baiana também tinha suas amizades na
política, bem pautadas em um jogo de interesses mútuos. Ele mesmo sugeriu ter atuado como cabo
eleitoral de muitos deles no cais do porto. Entre eles, Irineu Machado, que teria pagado Cypriano
Abedé para fazer um trabalho que lhe garantisse o Senado e Mendes Tavares, o candidato do
presidente Arthur Bernardes para o senado. O sambista contava que estes e outros ilustres, como o
Coronel Costa e Marechal Hermes “viviam nas casas das baianas”. Segundo o próprio sambista, em
um de seus depoimentos, que era bom se relacionar com gente do governo, pois garantiam salvo
conduto para que homens como ele e outros pudessem continuar suas macumbas, tocar seus sambas.
Relata Arantes( 2005, p. 125) que:
41 Ogã - O homem que é o guardião e auxiliar com muitas funções junto ao zelador ou zeladora das divindades www.estanciadeluz.com.br
acesso em 27/11/11
94
O sambista contava que estes e outros ilustres, como o Coronel Costa e Marechal Hermes “viviam nas casas das baianas”63 Segundo o próprio sambista, em um de seus depoimentos, para ele e seus companheiros “era bom andar com o governo. Davam automóvel pra gente e salvo conduto para polícia.
As atitudes que até então eram proibidas, bem como exibir seus pandeiros, instrumento visto
com maus olhos pela polícia, como “coisa de malandro e vagabundo”, passam a se toleradas em
virtude das relações dos sambistas com pessoas da alta roda da sociedade carioca. Ficou, assim,
famosa a história do Pandeiro de João da Baiana, que, segundo ele mesmo gostava de contar nas suas
entrevistas, foi furado pelo policial que o prendeu por vadiagem em 1908, quando este se dirigia à
Festa da Penha. Na ocasião, outro influente político, o Senador Pinheiro Machado, mandou fazer-lhe
outro pandeiro e nele escreveu uma dedicatória assinada para que nunca mais a polícia o tirasse.
As práticas culturais associadas à população negra, como candomblés e sambas, eram
perseguidos, conforme já foi dito por diversos autores e pelos próprios contemporâneos em
depoimentos posteriores.
Ao olhar das elites, essas manifestações não eram lá muito civilizadas. No entanto, apesar de
toda repressão sofrida, esses homens e mulheres souberam, de diferentes formas, dialogarem com as
regras impostas pelas elites ao se manterem em seus espaços.
Esses ambientes foram significativos quanto à troca de experiências que aconteceram entre
pessoas de diferentes cores, nacionalidades e culturas. Essas relações eram estabelecidas nos diversos
espaços de convivência, como nos bares, nas habitações coletivas, nos carregamentos de café, nas
casas de santo, nas festas religiosas e no profano carnaval, que tinha ali um dos principais redutos da
folia da gente pobre.
95
42Figura 23
Através dessas relações, os pobres se divertiam nos dias de folguedos, nos cordões e nos
ranchos que desfilavam nas ruas próximas à Praça da República. E se divertiam durante todo o ano nos
bailes dançantes organizados pelas mesmas agremiações, que faziam a festa durante três dias do mês
de fevereiro. Entre esses trabalhadores pobres, iremos encontrar muitos portuários curtindo, mas
também organizando festas (ARANTES, 2005).
3.3 O matriarcado
No período, denominado como Belle Époque, a cidade passou por modificações em sua
estrutura urbanística. A finalidade de Pereira Passos era estabelecer uma harmonia da cidade com uma
modernidade associada ao modelo europeu. Destaca Velloso (1989) que, no entanto, a harmonia
desejada se apresenta precária e artificial pelas bases políticas e administrativas serem escravistas.
Consequentemente, a cidade apresenta uma influência marcante da cultura africana. A
influência escravista elabora contornos específicos na história carioca, sendo a cidade definida por
uma dualidade cultural do mundo europeu e do africano. Ao reunir realidades tão distintas na cidade
carioca, o Rio de Janeiro, a elite experimenta dificuldades em adequar-se a realidade imposta
naturalmente, uma vez que a cidade atraia negros de várias regiões do país e traziam em suas bagagens
42 Figura 23 Jornal Última Hora. “João da Baiana de pandeiro na mão”. Figura 16
http://www.revistabrasileiros.com.br/imagens/1607/em/textos/307/ Acessado em 09/01/2012
96
experiências culturais distintas.
No período, segundo a autora, ocorre um fosso entre o Estado e a sociedade, tendo em vista
que o Estado objetivava impor padrões de condutas e valores culturais europeus.Tais valores tidos
como universais, tinham a finalidade de atender as expectativa de uma sociedade extremamente
fragmentada, que criava seus próprios canais de integração à margem da vida política tradicional.
O projeto modernizador que visava desmistificar os codinomes dados pelas elites da cidade à
geografia carioca, como Cidade sertaneja, aldeamento indígena, feira africana, não foi suficiente para
homegenizar e integrar a sociedade carioca aos elementos indesejáveis, como, por exemplo, os negros.
Nesse contexto, surge a ideia de pertencimento ao espaço e a noção de nós por parte dos
grupos marginalizados pela elite. Pertencer a um espaço não implica na questão latifundiária, mas nas
redes de relações, que acabam fazendo parte da identidade desses grupos marginalizados. Assim
sendo, a Pequena África, dentre outros espaços, no entorno da cidade, são locais defendidos pelos
negros, especialmente os baianos, e se constituem em geografias demarcadas pelos negros, em que
surgem as mais variadas práticas cotidianas (VELLOSO,1989).
Nesses espaços criados pelos negros, a figura feminina se faz presente com muita expressão
no cenário carioca, especialmente as mais velhas. As venerandas senhoras que passam a ser chamadas
de Tias, independente de laços sanguíneos, agregam em suas residências aspectos das culturas de
matrizes africanas.
Elas exerceram um doce matriarcado, graças aos quitutes que preparavam e por manterem
viva a ascendência religiosa africana. Na grande maioria, essas Tias eram babalorixás, entre as mais
famosas encontravam-se Tia Prisciliana, Tia Bebiana, Tia Amélia Quitundi, e, principalmente, Tia
Ciata.
A Tia Ciata era uma foliona convicta e criou o Rancho Rosa Branca. Era também conhecida
pelos deliciosos quitutes que preparava e pelas festas que duravam três dias em sua casa. Além de ficar
eternizada pelo fato do primeiro samba, Pelo telefone, ter nascido em um dos encontros festivos de sua
casa (COSTA, 2000).
As mulheres negras, especialmente as baianas, incorporam um poder não formal, arquitetando
enérgicas redes de sociabilidade. Essas mulheres a margem da sociedade carioca, destituídas de
cidadania e de identidade, criam novos canais de comunicação sociopolítica. Esse tipo de
sociabilidade, baseado em papéis improvisados, são de fundamental importância para
compreendermos a dinâmica da formação de parte da cultura afro carioca (DIAS, 1985).
Essa força e liderança da mulher negra, na cidade carioca, vêm de encontro com o passado
escravocrata, em que ela foi incorporada ao ciclo reprodutivo, que, muitas vezes, acontecia à revelia
de seu amado.Porém, que atendia as necessidades do homem branco preocupados de assegurar a
97
reprodução de sua mão de obra. A legislação escravista garantia o poder da mãe com relação ao filho e
quanto ao pai não havia nenhuma preocupação com esse laço de parentesco, logo, cuidar dos filhos era
uma obrigação da mulher. Após a Abolição da Escravidão, pouco mudou no papel da mulher negra na
sociedade brasileira (VELLOSO, 1989).
No Rio de Janeiro, as mulheres negras conseguiam ter mais oportunidades que os homens
negros. Através das atividades domésticas, biscates e da culinária garantiam, mesmo que
precariamente, o sustento de seus filhos. Era comum, as mulheres negras assumirem seus filhos e o lar,
pois além do homem não ter acesso ao mercado de trabalho, muitas vezes, não assumia sua
responsabilidade como pai e chefe de família.
Então, podemos observar em um trecho do samba de João da Baiana de 1915, que diz “Quem
paga a casa pra homem, é mulher” denominado “Quando a Polícia Vier”,como o poder matriarcal na
manutenção da família e do lar se fazia presente .
Se é de mim pode falar/Se é de mim pode falar/Meu amor não tem dinheiro, não vai roubar prá me dar (bis)/Quando a polícia vier e souber,quem paga casa pra homem é mulher(bis)/No tempo que ele podia/Me tratava muito bem/Hoje está desempregado/Não me dá porque não tem/Quando a polícia vier e souber,quem paga casa pra homem é mulher(bis)/Quando eu estava mal de vida/Ele foi meu camarada/Hoje dou casa e comida,dinheiro e roupa lavada(João da Baiana)
A mulher negra tinha um papel diferente da mulher branca na sociedade, uma vez que a
mulher branca se detinha a cuidar dos filhos e do lar e o seu marido tinha o poder sobre decisões e
garantiam a subsistência da família. O que não quer dizer que entre casais negros não acontecessem
uma unidade familiar. A exemplo de Tia Ciata, que garantia padrões comportamentais em sua casa,
mesmo com o entra e sai de gente e das festas, graças ao seu marido, que era chefe de polícia. Cabe
lembrar, no entanto, que esse cargo foi conseguido através dos préstimos de Tia Ciata junto ao
Presidente da República, Venceslau Brás.
No que se refere à autoridade feminina, no contexto relacionado à criança negra, entram em
ação as Tias que, na maioria das vezes, não faziam parte da família consanguínea. Era comum que
essas Tias ocupassem ascendência sobre as crianças, muitas vezes, maior que os pais. O papel
significativo das avós, tias e madrinhas na vida dessas crianças afro cariocas é fato no contexto da
cidade do Rio de Janeiro. Essas mulheres eram alvo de respeito, admiração, carinho e prestigio.
No universo do matriarcado, as Tias são o exemplo do processo de sociabilidade entre os
negros e do poder matriarcal, uma vez que, em sua maioria, davam espaços em seus lares para
cuidarem dos filhos das negras que buscavam trabalho para o sustento de seus filhos ou contribuírem
com seus companheiros para a manutenção econômica de seus lares. No caso dos aspectos de
sociabilidade das tias negras, o parentesco pode ou não estar relacionado a laços consanguíneos, mas
por laços de afetividade e convivência (VELLOSO, 1989).
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Nesse sentido podemos observar ao longo dos séculos XIX ao século XXI, que a figura da
“Tia” vem se mantendo presente em vários aspectos da cultura carioca. Na atualidade, essas não mais
são “Tias” das crianças negras que necessitavam de seus cuidados, elas são as “Tias” do samba e da
culinária carioca, que tem como sobrinhos não sanguíneos, não só os negros, como também os
brancos. Tais aspectos nos mostram o poder da mulher afro carioca no que se refere à figura matriarcal
na cidade do Rio de Janeiro.
3.4 Transmissões de saberes coletivos
Os negros no Rio de Janeiro passaram por muitas perseguições, fatos que aconteceram mesmo
após a Abolição da Escravidão. Tais perseguições se deram tanto no campo cultural como no campo
social. Seus encontros festivos e modelos de moradias foram foco de discussão entre as elites, que
desejavam um modelo europeu para a cidade carioca. Em meio às críticas quanto aos modelos
culturais e sociais, aos quais os afro cariocas se inseriam, a cidade vai recebendo outros grupos de
negros do interior do Estado e de outros Estados do Brasil, especialmente da Bahia.
Essas migrações de negros para a cidade carioca reforçam o processo de socialização, que
culmina em trocas de saberes e caminha de encontro às produções coletivas. Nesse sistema de
socialização e produções, podemos sinalizar as festas religiosas e de entretenimento, os modelos de
moradias, a música, a comida, a ajuda mútua e as relações com as Tias, personagens instituídas de tais
denominações independentes de laços sanguíneos.
Os saberes produzidos pelos negros, que após a Primeira República passam a ser
compartilhados com brancos de origem europeia e da nação brasileira, produzem um modelo
intelectual coletivo, embora os atores não fossem pessoas diplomadas, ou seja, investidos de um saber
literário e cientifico. Esses atores de diversas etnias incorporam seus saberes singulares aos saberes
coletivos através das trocas simbólicas, que acontecem à medida passam a conviverem
comunitariamente em diferentes espaços. Os espaços de trocas de saberes aconteciam na cidade
carioca, no cotidiano de trabalho, nos encontros festivos, nos espaços públicos, como bares, meio de
transporte e nos privados, como as residências e terreiros religiosos.
Esse fenômeno de saberes coletivos se estabelece naturalmente, porém o objeto dessas
trocas tem como foco o entretenimento promovido por um grupo à margem da sociedade. A falta de
reconhecimento da existência desse grupo marginalizado, a indiferença e crítica por parte da elite
carioca acerca de seus modelos de entretenimento reforçam um modelo de produção colaborativa,
99
especificamente nesta investigação sobre o samba.
O ambiente que envolveu os encontros desses sambistas, declara Theodoro et alii(2005),
são espaços de transmissão de saber. O samba de Hélio e Rubens da Silva gravado pela sambista e
compositora Dona Ivone Lara, em 1978, intitulado “Samba Minha verdade, Samba minha raiz”
descreve a transmissão de saber entre os grupos de sambistas na cidade do Rio de Janeiro.
Qualquer criança/bate um pandeiro/ e toca um cavaquinho/,acompanha o canto de um passarinho/sem errar o compasso,/quem não acreditar/poderemos provar,/pode crer,nós não somos de enganar/melodia mora lá/no Prazer da Serrinha.
Esse saber coletivo de acordo com Theodoro etalii (2005) que se estabelece com grupos
étnicos na cidade carioca, ao longo dos séculos XIX e X,X se dá através da oralidade e pela
convivência com os mais velhos. As crianças afro cariocas, desde pequenas, vivenciam a cultura negra
junto a suas “Tias” (mulheres de liderança religiosa ou que acolhiam os pequenos enquanto suas mães
trabalhavam), suas avós, seus pais, seus irmãos e vizinhos. Tal fenômeno, ao longo do tempo,
acontece nos espaços, como bloco, ranchos, roda de samba, nas comunidades e nas escolas de samba
entre mulheres, homens, jovens e crianças.
Maurice Halbwachs em seu livro “Memória Coletiva” expõe que:
Na medida em que a presença de um parente idoso está de algum modo impressa em tudo aquilo que nos revelou de um período e de uma sociedade antiga, que ela se destaca em nossa memória não como aparência física um pouco apagada,mas como relevo e a cor de um personagem que está no centro de todo um quadro que o resume e o condensa.( HALBWACHS, 1990, p.65 )
É sabido que, no contexto da cultura popular, a transmissão do conhecimento tem como marca
a oralidade, fato que se dá longe do ensino formal, por isso, a terminologia escola de samba se investe
de forte significado, assim sendo, passa a ser um espaço privilegiado de transmissão de saberes e
fazeres.
Ao mesmo tempo, a cultura afro carioca, especialmente o samba, é marcada pelo respeito à
memória e oralidade dos mais velhos, que no universo do samba, é considerado como quem sabe mais,
logo tem mais para dar.
Em entrevista com Leci Brandão e Xangô da Mangueira, Theodoro et alii(2005) relata que
Leci Brandão (cantora de Samba) aprendeu a tocar e versar pela experiência vivida e pelo que
presenciava na casa do compositor Cartola, quando certo dia versaram para ela e a mesma teve que
responder em verso. E que em outra ocasião, numa festa do Neguinho da Beija-Flor, alguém enviou
um verso para ela e a mesma respondeu, e, assim, foi aceita no mundo do samba como partideira.
O compositor Xangô da Mangueira narrou que o samba, em Rocha Miranda, acontecia em
100
uma escola de samba muito pequena, e nela existia um diretor de nome Lilico, que era tratado como
papai. O Lilico o sabatinava quanto ao seu estilo de tocar e sambar. Ainda lhe ensinou a versar no
partido-alto. No inicio Xangô utilizava os versos dos outros e com o tempo foi improvisando seus
próprios versos (THEODORO ET ALLI, 2005).
Relatos como esses são comuns no universo do samba, uma vez que o saber de um
componente, especialmente os mais antigos, é transmitido aos mais novos. Isso pode acontecer
voluntariamente ou involuntariamente. É comum observarmos, nos encontros nas quadras das escolas
de samba, crianças imitando os mais velhos, seja no manuseio de instrumentos ou na dança do samba.
No universo do samba é comum a presença de crianças que são levadas pelos seus familiares, uma vez
que normalmente essas famílias não têm com quem deixá-las. Assim sendo, elas participam das
atividades e interagem com a cultura dos mais velhos e decoram com facilidade as letras e as
melodias, como nas rodas de samba, nas festas, nos ensaios das quadras, nos quintais de sambistas e
no próprio desfile das escolas de samba. No evento do desfile das escolas de samba é facultativa a
presença de crianças acima de sete anos, em alas específicas para elas.
A importância atribuída à presença da criança no universo do samba se dá para manter a
cultura do samba em evidência. Várias escolas de samba carioca ao perceberem o risco de
enfraquecimento das tradições do samba, criam escolas de samba mirins. Elas criam, também,
escolinhas de baterias, mestre sala e porta bandeira e passista para no futuro substituírem os mais
velhos. Tais iniciativas revelam um processo de sucessão comum nas escolas de samba por
parentescos sanguíneos ou por afinidades, nos quesitos e na diretoria. São interiorizadas pelas
crianças, nesse contato com os mais velhos, não apenas as práticas da dança, do canto, e do
instrumento transmitidas aos pequenos sambistas, mas também a riqueza do rito que compõem o
cotidiano do samba, como trajes, comidas e narrativas.
Essa noção de pertencimento, no universo do samba, envolve os sentimentos de emoção de
raiz e tradição. Para as famílias, o samba é uma forma de organização em comunidade. O samba
festeja o nascimento, anima aniversário, celebra casamento e consola a separação, bem como no toque
do surdo, lamenta enterros de bambas, mas na mesma despedida, ele também exalta vidas bem
vividas.
O samba reúne e aproxima as pessoas no vagão do trem, na volta do trabalho, no campo de
futebol. No dia de folga, ele ocupa toda a casa, o quintal, os cômodos, a laje. É no cotidiano dessas
famílias do samba, que o saber fazer passa de uma geração à outra.
Desde 1984, ano de fundação do pioneiro Império do Futuro, escola de samba mirim vinculada ao Império Serrano, tornou-se comum a criação de escolas especificamente destinadas às crianças. Ainda não é consenso ser este o melhor caminho para a questão: exatamente por seu caráter segregacionista, é discutível se tais agremiações têm condições de proporcionar aos futuros sambistas a necessária proximidade com a prática
101
cotidiana do samba, em que o caráter institucional é exatamente o dado menos relevante.(THEODORO ET ALLI,2005,P.95)
A transmissão de conhecimento, os sambistas ensinam aos seus filhos o que aprenderam de
seus pais, é um dos traços da permanência do samba, em qualquer de suas modalidades, como valor
cultural dotado de importância nas comunidades estudadas.
Desde o primeiro momento, das décadas que abriram o século XX, o samba não se limitou a
um lugar, a um espaço único de manifestação, embora as quadras das escolas de samba tenham sido
consideradas o celeiro da cultura do samba. Em função da sua caracterização,as quadras, foram e são
ainda um espaço fundamental para a transmissão e criação do samba. O samba se deu e se dá em
qualquer espaço, em qualquer hora, bastando que os sambistas se reúnam. Foi assim que ele se
manifestou pela cidade carioca e vem se espalhando até os dias de hoje.
Ao longo dos anos, a geografia do samba ganhou e perdeu espaços no subúrbio da cidade
carioca e no centro da cidade, a exemplo da Lapa que retoma o espaço com encontros de sambistas,
consolidando o espaço com rodas de samba e pagodes, consagrando o samba tradicional. Os quintais
de Madureira e Oswaldo Cruz foram e são exemplos da manutenção e transmissão do samba. Embora
alguns não mais existam, outros se mantêm ao longo do século e outros surgiram.
Neste sentido, a memória, o saber coletivo e a transmissão de saberes são responsáveis pela
manutenção da história do samba na cidade carioca.
3.5 O trem e os trilhos
Na história do samba, o trem se constitui em mais um dos espaços de socialização. Foi dentro
dos trens, que o samba chegou ao sertão carioca de Madureira e Oswaldo Cruz, compartilhado com os
bambas do bairro do Estácio de Sá, o que foi evidenciado pelos moradores em torno de jaqueiras,
mangueiras e tamarineira nos quintais suburbanos.
O boiadeiro e lavrador Lourenço Madureira foi quem deu nome ao bairro. Em 1816, arrendou
as terras da Fazenda Campinho, pertencentes ao Capitão Francisco Inácio de Couto para o cultivo do
café, aipim e batata doce. A lavoura se estendia até a subida do morro, onde havia uma vegetação
serrada (GANDRA, 1995).
Os escritos de Vasconcellos (1928) abordam que o bairro de Madureira tem a inauguração de
sua estação de trem em novembro de 1880. Até este período, o trem ia até o bairro de Cascadura e
retornavam a estação do campo de Sant'Anna. A Mecânica do retorno ao percurso inicial funcionava
com um sistema giratório, que era feito vagão por vagão. No final do século XIX, foi dado fim ao
sistema giratório com a inauguração da estação Dona Clara.
Essa estação foi arquitetada na antiga chácara de Dona Clara Simões. As terras dos bairros de
Madureira e do Campinho até a Estrada da Portela pertenciam a Dona Rosa Maria dos Santos. Antes
102
de seu falecimento, Dona rosa divide suas terras entre amigos e parentes. Domingues Lopes Cunha,
nome da atual Rua de Madureira, inventariante e amigo de Dona Rosa, também recebeu parte das
terras. Domingos Lopes, tempos depois, casou-se com a filha de Vitorino Simões, também beneficiado
por Dona Rosa, cuja filha respondia sobre a alcunha de Clara Simões. A estação que era em
homenagem a Dona Clara, situada no entorno de Madureira, após a morte do médico sanitarista
Oswaldo Cruz, recebe o nome do mesmo e passa a ser considerado um novo bairro, ou seja, bairro de
Oswaldo Cruz.
A inauguração da estação ferroviária, portanto, não trouxe somente progresso para a região com a implantação de novos comércios e habitações mais bem construídas, mas também alterou econômica e culturalmente a população local, que passou a ser composta por migrantes de outras regiões da cidade. Assim, Oswaldo Cruz se transformou, como outros bairros do Rio de Janeiro, num espaço híbrido formado por grupos cultural, geográfica, política e economicamente diferenciados. (RODRIGUES, 2008, p.03)
Em 1908, é inaugurada a estação de Inharajá, que tempos depois receberia o nome de estação
de Magno, localizada em frente ao Mercadão de Madureira, cujo nome atualmente é em homenagem
ao referido Mercado. A estação fica ao lado da atual quadra do Império Serrano e seus componentes,
no passado, tinham um trem exclusivo para levá-los até a Praça Onze nos dias de carnaval para
desfilarem.
O Jornalista Claudio Vieira declara que o samba ganha rumo na direção ao subúrbio sobre os
trilhos nas décadas de 30 e 40. As composições atrasavam muito na saída da Central do Brasil, fato
que irritavam os passageiros, exceto os passageiros do trem das 18h04min, horário de encontros de
sambistas. Esses passageiros ao saírem do trabalho, diariamente tinham um encontro com o samba no
vagão, logo, não se incomodavam com a demora da saída das composições, pois era uma oportunidade
de encontrarem os compositores das Escolas de Samba do Subúrbio, situadas ao longo da malha
ferroviária.
Os passageiros do trem das 18h04 iniciavam seu percurso com uma batucada na Praça da
Bandeira e só terminavam na Pavuna. As marmitas dos sambistas eram usadas para tamborilar leves e
os bancos dos trens eram surdos de marcação.
Entre os frequentadores, existia um jovem de 13 anos, Olivério Ferreira, que trabalhava em
uma fábrica em Del Castilho. Esse jovem era fascinado por Cartola e o acompanhava pelas notícias de
jornais. Olivério não sabia explicar, mas seu coração pulsava pela Estação Primeira, hoje a
conhecidíssima Escola de Samba Mangueira. Nunca tinha colocado os pés lá, porém, tudo isso se deu
por causa de Cartola, com lindas letras de música, que ele conhecia pelos jornais e algumas ouvidas
nos pagodes diários do trem (VIEIRA, 2008).
... O Samba no Trem acaba por ser lido como um meio de resistência e de espaço preservacionista frente aos projetos de aniquilamento do samba.
103
Podíamos tratar com mais profundidade da relação entre apropriação resistência no samba. (RODRIGUES, 2008 p.05).
O jornalista também narra que Olivério nasceu no Estácio, terra do compositor Ismael Silva,
foi morar no bairro de Éden com seus pais, depois mudaram para Paracambi, Juiz de Fora e ao
retornarem para o Rio de Janeiro, seus familiares fixaram residência em Rocha Miranda. A família foi
morar próxima a União de Rocha Miranda e Olivério se integrou a bateria da União de Rocha
Miranda.
Em sua viagem diária no trem, fez boas relações com os compositores de Madureira e seu
entorno. Nesse encontro do trem das dezoito e quatro, o samba difundia os talentos de várias
comunidades. O menino Olivério, como muitos de sua idade naquela época, foi amadurecendo sobre a
orientação dos mais velhos. No trabalho ele apelidava todos os colegas, até que um dia foi apelidado
de xangô. Quando foi levado a Portela pelos integrantes da União de Rocha Miranda, foi apresentado a
Paulo da Portela, Paulo Benjamim de oliveira, a quem passa a seguir os passos, procurando aprender a
liderança que Paulo exercia e os versos improvisados nas rodas de samba.
O desligamento de Paulo com a Escola de Samba Portela motivou o menino a pedir ao seu
mestre que o apresentasse a alguém na Mangueira. Paulo da Portela atende ao seu pedido e o apresenta
ao seu grande amigo Cartola. Enfim, Xangô realiza seu sonho, sendo integrado ao grupo de
compositores de sua escola de coração ao lado de seu ídolo Cartola, comenta Claudio Vieira (2008).
O trem para os sambistas dos bairros de Madureira e Oswaldo Cruz tem uma representatividade
histórica e cultural, o que os leva a elaborar composições musicais, poetizando o transporte e os
moradores dos bairros da estação de Madureira e Oswaldo Cruz, além de contribuir para a memória
dos bairros. Marquinhos de Oswaldo Cruz, além de homenagear a estação de trem, cita os moradores
sambistas dos bairros de Madureira e Oswaldo Cruz em seu samba “Décima sexta estação”.
Décima sexta estação de trem/Do ramal da Central do Brasil/O que lá mais tem/Trabalhadores humildes.../Terra de Monarco, Argemiro,/Tia Doca, Surica e Candeia/Esta velha guarda/Que para o samba é a verdadeira luz.../...O trem parou rapaziada/Chegou a hora de tomar uma gelada/Paulo professor de Alcides, Aniceto e Miginha/Lembro Chico traidor, Manacéa,/Alvaide, Casquinha,/“doce melodia”,um “dia de graça”,/“dancei” “Saco de feijão”,uma gelada/E não vai terminar.
O encontro do trem nas décadas antes citadas, nesta investigação, era um espaço de
convivência entre os moradores do subúrbio, que cultuavam a cultura do samba em um período onde o
samba era perseguido. Assim sendo, os negros e pobres moradores do sertão carioca, grupo
104
marginalizados culturalmente, além de seus quintais, tinham o trem como um lugar onde realizavam
trocas simbólicas.
3.6 As casas dos sambistas em Madureira e Oswaldo Cruz
A socialização entre os negros acontecem também nos espaços privados. As casas dos
sambistas vão se tornar espaços privilegiados de encontros socializadores dos grupos étnicos, tanto em
função da convivência quanto do espaço celebrativo de caráter religioso.
Conta Silva e Santos (1986) que uma característica interessante no bairro de Oswaldo Cruz é a
associação religiosa e profana. Os descendentes de africanos não desassociam as exteriorizações de
crenças com manifestações de alegria, de tal maneira que muitas vezes é difícil separá-las. É possível
verificar tais associações, uma vez que, os festeiros de Oswaldo Cruz, sem exceção, eram lideres
religiosos, quase sempre, de cultos afro-brasileiros.
A residência de seu Napoleão, José do Nascimento, era sistematicamente frequentada pelos
amigos de seus filhos Natalino (O mítico Natal da Portela), Vicentina e Nozinho, e também pelas
pessoas que o seguiam no culto dirigido por ele e Dona Benedita. Dona Benedita, também dirigente do
culto com Seu Napoleão, morava no bairro do Estácio e, quando subia para Oswaldo Cruz, trazia
consigo os sambistas do seu bairro, Brancura, Baiaco, Aurélio e Ismael. Finalizadas as sessões,
começavam as festas. Dessa forma, o ritmo desenvolvido no bairro do Estácio era difundido no sertão
carioca no bairro de Oswaldo Cruz ( SILVA & SANTOS, 1986).
As autoras ainda declaram que a cultura de Oswaldo Cruz também apresentava influências
rurais, em virtude da chegada de moradores de vários pontos do Brasil, especialmente de Minas Gerais
e do Estado do Rio de Janeiro. No início do século XX, as festas em Oswaldo Cruz, basicamente, eram
animadas pelo jongo e caxambu, devido à forte influência das migrações mineira e fluminense, logo o
samba não era a única forma de festejar no bairro.
Apesar de fazer uma descrição muito precisa daquela parte da periferia urbana do Rio de Janeiro, Silva e Santos (1986) afirmam que “Osvaldo Cruz era, em 1922, uma grande favela na planície”. Entretanto, tal como a Serrinha, Osvaldo Cruz não foi uma favela, mas apenas um remoto, pequeno e desconhecido subúrbio do Rio de Janeiro no início do século XX, até que sua poderosa escola de samba escrevesse o seu nome na história do samba, do Carnaval e da identidade nacional brasileira. (FERNANDES,2001, p.82)
A sistematização desses festejos passa a contar com Paulo da Portela, um negro de jeito
manso, político e frequentador de todas as festas do bairro. Isso o levou a ser o escolhido por todos,
105
como organizador das festas do bairro. Até mesmo na casa de Dona Esther, a mulher mais evidente da
história do subúrbio carioca por abrir o portão do seu quintal para os festejos do bairro, Paulo estava
presente na organização.
Dona Esther Maria Rodrigues, mulher branca, alta, cabelos negros e de personalidade forte,
Por volta de 1921, aos seus 25 anos, apareceu em Oswaldo Cruz, vinda de Madureira. Ela e seu
marido Euzébio Rosas eram porta-bandeira e mestre-sala do Cordão Estrela Solitária. Seu marido
Euzébio era um negro calmo e cordado, tocava violão muito mal, tinha um cavalo branco de nome
Faísca, que ele mantinha impecável. O casal ao se transferir para Oswaldo Cruz foi morar na Rua
Adelaide Badajós, nº95 em um quintal enorme, que atingia outro quarteirão da Rua Joaquim Teixeira.
Em pouco tempo no bairro, os festejos no quintal de Dona Esther ganham notoriedade e
passam a ser centro de vida social de Oswaldo Cruz. Ela assume a liderança religiosa de um
determinado grupo de pessoas. Sua residência era frequentada por pessoas desde classe popular como
da alta classe social, como também vizinho e artistas de rádio, dentre eles Roberto Silva, Augusto
Calheiros, Pixinguinha, Zé e Zilda, Luperce Miranda, Donga, Gilberto Alves e Ademilde Fonseca.
Alguns políticos em evidência também compareciam as reuniões de Dona Esther.
Nos fundos do quintal de sua casa havia uma palhoça coberta de sapê, onde Paulo da Portela já
mostrava sua liderança ao dizer para os presentes ‘Minhas meninas, meus rapazes! Moças para lá e
rapazes para cá’, organizando o canto e a dança dos festejos.
Dona Esther também fundou, no bairro, o bloco Quem Fala de Nós Come Mosca. Nesse bloco,
que desfilava no bairro, tinha a presença de crianças. No mesmo período Antônio Rufino e Antônio
Caetano fundaram o Bloco Baianinha de Oswaldo Cruz.
Podemos observar, na foto abaixo, como Dona Esther promovia um espaço de socialização em seu
quintal e como a comunidade se fazia presente e a respeitava.
Dona Esther tinha grande influência oficial e por conta disso conseguiu permissão e
documentação para o funcionamento do bloco, que desfilava durante o dia por ter crianças como
componentes. O Bloco Baianinha descia para o centro da cidade durante a noite para o desfile, e como
não tinha licença, usava a licença emprestada por Dona Esther do Quem Fala de Nós Come Mosca.
106
43Figura 24
Em 1926, o “Baianinha de Oswaldo Cruz” é destituído e num belo dia, no quintal de seu
Napoleão, sob a sombra de uma mangueira, foi fundado o bloco carnavalesco, “Conjunto de Oswaldo
Cruz”, que tinha como idealizadores Paulo Benjamin de Oliveira (o Paulo da Portela), Antônio
Caetano e Antônio Rufino.
Do final do Baianinha até abril de 1926, quando alugaram uma casa no número 412 da estrada do Portela, onde também funcionava o Bar do Nozinho, Rufino, Caetano e Paulo se reuniam debaixo da mangueira do seu Napoleão e também com mais outros no trem das 18:04 h da Central, arquitetando planos, examinando as finanças, articulando as festas, compondo sambas. Assim, conceberam a formação de uma “caixinha” que emprestava dinheiro a juros, que se constituiu no início de uma estrutura financeira independente que evitaria que o futuro bloco caísse nas “garras” de um “dono”. Sob a administração do tesoureiro e mineiro Rufino, logo se acumularam bons resultados que, em resumo, refletiam o crescimento do grupo, com as festas na casita em que Paulo da Portela vivia com a mãe, dona Joana, do jongo nas casas de seu Vieira e seu Napoleão, dos encontros com sambistas da Serrinha e do Estácio.(FERNANDES,2001, p.85)
Em 20 de janeiro de 1929, dia de Oxóssi, Heitor dos Prazeres confere ao bloco o nome de
“Quem nos Faz é o Capricho”. Em 1930, Manuel BamBamBam assume o controle e denomina o
bloco de “Vai Como Pode”. Apesar de ser citado como antecessor da Portela, podemos observar que
os pioneiros da escola de Samba Portela também são O Baianinha de Oswaldo Cruz e o Quem Fala de
Nós Come Mosca, de Dona Esther. Somente em 1935, o já consagrado bairro de Oswaldo Cruz,
43 Figura 24- Fotos no quintal de Dona Esther- festa de 50 anos de Caetano, .Dona Esther com a mão nos ombros do aniversariante
.Fotografo desconhecido- Imagem do Livro Paulo da Portela Traço de União Entre Duas Culturas .Autoras Marília. T. Barboza da Silva e Lygia Santos
107
conhecido como reduto do samba, se consagra com a fundação do Grêmio Recreativo Escola de
Samba Portela (SILVA E SANTOS,1986, ARAÚJO, 1991).
Em Madureira, especificamente na Serrinha, a chegada da população do Vale do Paraíba
transformou esta geografia do sertão carioca em um espaço de grande concentração de jongueiros.
Embora essas famílias negras viessem para uma área não mais rural continuaram a dança o jongo pela
semelhança com as antigas fazendas onde eles viviam. Graças à memória dos mais velhos, que
chegaram a Serrinha, foi possível reviver o passado das rodas de jongo nesse novo espaço (BOY,
2006)
Seguindo uma tradição dominante entre os africanos, o jongo é um exemplo de dança de roda, na qual um ou mais elementos são destacados do círculo em certo momento para dançarem e cantarem em seu centro por certo tempo, até voltarem para a roda e serem substituídos por outros participantes. O desenvolvimento do canto e da dança é comandado por um mestre e outros elementos que sabem perguntar e responder cantando de improviso. Assim o jongo é pautado segundo diversos “pontos”: a) ponto de louvação: no início; b) ponto de saudação: para saudar, ou “saravar”, alguém; c) ponto de visaria ou bizarria: para alegrar a dança; d) ponto de demanda ou porfia: para desafio; e) ponto de gurumenta ou gromenta: para briga; f) ponto de encante: para magia. (FERNANDES,2001. p.79).
Destaca Gandra (1995) que Eulália do Nascimento, falecida em 2005, aos 97 anos, contava
que a Serrinha em sua infância parecia uma floresta com bambuzais. Tinha árvores frutíferas, minas de
água e até onça jaguatirica na floresta da Serrinha em Madureira. Dona Eulália dizia que não havia
tanta diferença entre o novo espaço de moradia com os espaços da fazenda do interior de onde sua
família veio.
O acesso entre as residências na Serrinha eram por trilhas no meio do mato. O morro era de barro,
não existiam calçamento, nem água encanada e nem luz, os moradores catavam lenha na mata para
cozinhar. O bairro de Madureira era desprovido de infra- estrutura, o que obrigava os moradores a se
deslocarem para a cidade em busca de emprego no centro da cidade do Rio de Janeiro (BOY, 2006).
A autora relata que muitos homens negros ligados ao samba, jongo e umbanda iam para o Cais
do Porto em busca da “ganha pão”, um dos poucos mercados de trabalho que absorvia os negros. A
forma de divertimento destes moradores eram os blocos carnavalescos, os pagodes, grupo de
pastorinhas, a ladainha e o jongo. Os moradores construíam seu lazer em sua própria comunidade.
O samba se constituiu como uma instituição forte e agregadora dentro destes espaços, fazendo
com que esta comunidade aparecesse com força no cenário político, através da formação sindical
destes negros no Cais do Porto. Esta força negra, que também promovia eventos comunitários, fez
108
com que seus festejos tomassem visibilidade no cenário carioca, atraindo visitantes intelectuais,
políticos e artistas do outro lado da cidade para suas rodas de samba, jongo e umbanda no bairro.
Os moradores da Serrinha promoviam festas com a dança de jongo em datas especiais como
relata Fernandes (2001 p.81) que:
No dia 29 de junho, dia de São Pedro, o jongo era na casa do estivador Antenor dos Santos. Na mesma Rua Itaúba onde morava o Nascimento, mas no número 298, dona Marta ou Tia Marta do Império (1886-1993), que nasceu em 26 de julho, dia de Santana, também dava jongo no seu aniversário. Mãe- de- santo respeitada na Serrinha, antes de pertencer ao Império Serrano defendeu as escolas de samba Rainha das Pretas e Corações Unidos do subúrbio de Rocha Miranda. Nos dias de Santana, o terreiro era coberto de folhas verdes e o jongueiro João Ricardo, que morava em Jacarepaguá, puxava o ponto inaugural. (FERNANDES,2001, p.81)
Descreve Araújo (1991) que, em 1947, nasce em Madureira o Grêmio Recreativo Escola de
Samba Império Serrano, no quintal de Tia Eulália, no alto do Morro da Serrinha. Seu pai, Francisco
Zacarias, era o organizador dos blocos “Prazeres da Serrinha” (na Serrinha) e no Centro da cidade, o
mesmo desfilava com o nome de “Os Dois Jacarés”.
Seu Francisco era um homem de muita influência junto ao Ministro Edgar Romero. Sua casa
vivia repleta de músicos e lá aconteciam pastoris, gafieiras, serestas e rodas de samba. Tia Eulália, no
momento da fundação do Império, já era casada com o senhor José Nascimento, um empregado do
Cais do Porto, que era praticante do jongo. Em seu aniversário, ele se arrumava para assistir a missa na
Igreja de São José, após a missa, seguia para casa para preparar as iguarias e o quintal para os festejos.
Durante a festa, nas altas horas da madrugada, o chão do quintal ficava coberto de flores
jogadas pelos jongueiros durante as rodas de jongo. Tais especificidades apresentadas nos ambientes
privados, nos bairros de Madureira e Oswaldo Cruz, nos mostram a importância desses espaços para
manutenção da cultura de matriz africana, e que os eventos promovidos culminaram no surgimento
das Escolas de samba Império Serrano e Portela
3.7 As festas e a fé
O samba e a religião, de acordo com Theodoro et alli (2005), foram durante muito tempo, e
são até hoje, elementos que muitas vezes se associam, embora os sambistas durantes anos precisassem
esconder ou negar sua associação com as religiões de matrizes africanas. O fato é que, no final do
século XIX e inicio do século XX, não faltam informações para confirmar que festa e fé andaram
quase sempre de mãos dadas.
109
A festa e a fé eram cultuadas por uma classe social distinta, descendente de escravo, e
estavam agrupadas nas chamadas escolas de samba. Para esse grupo, a palavra ainda continuava
designando a dança de roda de umbigada, de ritmo muito semelhante ao das cerimônias religiosas de
matriz africana. O samba compunham elementos, como ritmo, coreografia, gênero, enfim, muito
adjacente ao dos pontos de invocação dos orixás.
Segundo Theodoro et alli(2005), tais aspectos são citados por Marília Barboza da Silva e
Arthur de Oliveira Filho. Eles afirmam que:
Por uma classe social diferente. Agora eram os descendentes de escravos, reunidos nas chamadas escolas de samba, para os quais a palavra ainda continuava designando a dança de roda de umbigada, de ritmo muito semelhante ao das cerimônias religiosas das macumbas. Samba para eles constituía um ritmo, uma coreografia, um gênero, enfim, muito próximo ao dos pontos de invocação dos orixás afro-brasileiros. Os sambistas primeiros, na esmagadora maioria, eram também pais ou mães-de-santo famosos e temidos: Elói Antero Dias, José Espinguela, Alfredo Costa, Tia Fé, seu Júlio, Juvenal Lopes, dona Ester de Oswaldo Cruz. Os terreiros de samba eram também terreiros de macumba. Cartola, que foi cambono de rua do terreiro de seu Júlio, dizia: “Naquela época samba e macumba era tudo a mesma coisa”(THEODORO ET ALLI, 2005, p.66).
Esses sambistas geralmente alugavam casas grandes, com uma sala de visitas ampla, onde nos
dias de festa acontecia o baile, tocavam-se os sambas de partido entre os mais velhos e mesmo música
instrumental. Quando apareciam os músicos profissionais negros, muitos da primeira geração dos
filhos dos baianos, também tocavam para alegria dos donos das residências.
Essas residências se estendiam para os fundos, tendo um corredor escuro onde ficavam os
quartos, no fundo, uma sala de refeições, a cozinha grande para fazer os quitutes, e a despensa para
guardar mantimentos. Em relatos de sambistas, de acordo com Theodoro et alii (2005), os espaços
religiosos nesses ambientes, muitas vezes, se faziam presentes, pois geralmente ao fundo dessas casas
existiam quintais com barracões de madeira e chão de terra batida.
Espaços reservados, para os cultos das religiões de matriz africana associados ao samba,
encontravam-se o da casa de seu Napoleão Nascimento, pai de Natal da Portela em Oswaldo Cruz; a
casa de Tancredo da Silva, grande pai de santo de omolokô, no Estácio; e,na Mangueira, a casa de
Dona Maria da Fé.
A relação entre festa e fé ainda se apresenta viva e pujante na maioria das comunidades de samba do Rio, sobretudo nas mais tradicionais. A festa em honra do padroeiro é o mais vivo exemplo disso. A Mangueira e Portela promovem em honra a São Sebastião uma alvorada, em que a bateria tem papel destacado, tocando nos primeiros segundos do raiar do dia 20 de janeiro, data consagrada a seu padroeiro. Após queima de fogos, é servido aos ritmistas um copo de chocolate, e o samba prossegue até manhã alta. No Império Serrano a procissão motorizada em honra a São Jorge, padroeiro da
110
escola, acontece no domingo subsequente ao dia 23 de abril e dura o dia inteiro. (THEODORO ET ALLI2005 P.67).
Os sambistas de Madureira, Oswaldo Cruz e demais bairros cariocas, nos primórdios do
século XX, além de cultuarem as religiões de matrizes africanas e de homenagearem santos católicos,
seja em residência ou nos espaços das quadras das Escolas de Samba. Elegem também a Festa da
Penha, no mês de outubro, como um espaço para socializar seus encontros e difundirem a cultura do
samba.
Expõe Theodoro et alii (2005) que, ao longo de quase todo o século XX, a Festa da Penha
representava uma importante ocasião de congraçamento e até de competição. Era quase que
obrigatório compor para a Festa da Penha, local de reunião em que o trabalho dos compositores
populares tinha espaço para divulgação.
Segundo testemunho de vários sambistas e cronistas carnavalescos, era na Penha que se
lançavam os sambas novos. As mulheres se vestiam de baianas, e havia contenda sobre qual delas era
a mais bela do grupo. Após o aparecimento das escolas de samba, firmou-se uma tradição de que cada
uma das consideradas “grandes” escolas de samba, Mangueira, Portela, Império Serrano e Salgueiro,
liderariam a festa em cada domingo do mês de outubro.
A Festa da Penha, tal como a Praça Onze, conforme observa Fernandes (2001), foi um lugar
especial para a geografia do samba carioca. Depois do carnaval, a festa da Padroeira Nossa Senhora da
Penha foi o evento mais importante para a cidade e para os sambistas pioneiros, que no local se
encontravam para festejar a santa e realizar seus batuques. Naquele tempo, não havia rádio e os
sambistas difundiam seus sambas na festa da padroeira, e quando o samba caia no gosto dos presentes,
os compositores ficavam felizes. Muitos desses sambistas ficaram conhecidos através do evento da
Festa da Penha.
Isto foi verdade para todos os músicos populares e sambistas da época, desde gente da nova geração do samba, como Heitor dos Prazeres, até para os grandes expoentes do samba amaxixado, como Donga e Sinhô, passando por gente mais identificada com outros gêneros populares, a exemplo de Pixinguinha e João Pernambuco. Não por acaso Noel Rosa, nos anos 30, homenageia a Penha como um “santuário do samba” em “Feitio de Oração”: (FERNANDES, 2001.P.81)
Embora a Festa da Penha tenha tomado um grande vulto no subúrbio, os sambistas não
deixaram de ser alvo das repressões policiais, em virtude das batucadas que promoviam na festa
religiosa. Tal repressão denunciada pelos sambistas era uma campanha desenvolvida pelo Estado, por
grande parte da imprensa e pelos padres redentoristas. Era notório o envolvimento, nesse contexto de
repressão, a presença de intelectuais como Olavo Bilac, que visavam impedir a crescente participação
111
de grupos populares sobre a segunda maior festa da cidade. A Festa da Penha recebia gente de todas as
classes sociais da cidade nos finais de semana de outubro. A geografia do lugar assemelhava-se a um
arraial do subúrbio, porém, nos dias de festas, se tornava Centro de cidade, em virtude da grande
concentração de fiéis.
Até as últimas décadas do século XIX, a festa era tomada pelos portugueses, que depois das
obrigações religiosas, tomavam o espaço com seus fados e comidas típicas. Com a forte imigração e
com a abolição, os negros tomaram conta do evento, como uma espécie de ensaio do que fariam no
carnaval. A campanha repressiva era notadamente observada pelo grande efetivo policial ao decorrer
dos anos. As forças militares, utilizadas na festa, compunham elementos treinados para guerra, e,
muitas vezes, esses eram infiltrados no movimento festivo para provocar desordens. É tanto que os
noticiários dos jornais da época apresentam a desordem provocada pelas forças encarregadas de
manter a ordem.
Em 1903, logo no primeiro domingo da festa, às duas e meia da tarde, quando a festa estava mais animada, alguns praças do Exército, um tanto alcoolizados, viraram um tabuleiro de doces pertencente a uma preta. O delegado da Primeira Circunscrição ali presente logo interveio, com o fim de prender os praças, mas ante as solicitações desistiu da providência. O problema não estava, porém, resolvido – quando o delegado fazia comentários, numa roda, sobre o ocorrido, foi agredido por um alferes. Um grande conflito se instaurou em que tomaram parte praças do Exército, policiais e pessoas do povo. Muitos saíram feridos do tumulto em que “se trocaram a esmo espaldeiradas e cacetadas durante longo tempo”. Gritos de socorro, mulheres e crianças pisoteadas e correrias completaram a cena. Mas, com tantas autoridades envolvidas, como costuma acontecer, nenhuma prisão se efetuou. (FERNANDES,2001,P.38)
As forças de segurança, além de se comportarem do mesmo modo nos anos seguintes, se
voltaram contra a presença das manifestações culturais dos negros, proibindo a presença dos cordões
carnavalescos e as rodas de capoeira, que na festa se apresentavam. Elas proibiam também a utilização
de instrumentos que lembrassem os batuques dos negros.
Tais medidas foram apoiadas pela maioria da imprensa e de intelectuais, que publicavam
artigos violentos sobre a festa. Era o caso de Olavo Bilac que, segundo Fernandes (2001), em 1906,
publica na Revista Cosmo um artigo em que fala de sua descrença no confinamento da Festa da Penha44.
Em 1907, o samba foi liberado com a proibição de instrumentos. Para o cumprimento do
impedimento foram colocados soldados na estação da Penha. Todavia, o que os idealizadores não
previram é que para aquela gente organizar uma roda de samba e divulgarem sua cultura bastavam
44 A Igreja da Penha é um santuário situado no cima de um outeiro de pedra, na estação do subúrbio da Estrada de Ferro Leopoldina .
112
palmas, pratos, talheres, seus corpos e vozes (FERNANDES 2001).
Não dá para negar, segundo Theodoro et alli (2005), que na origem das escolas de samba se
encontra não apenas as marcas da religiosidade afro-brasileira como também as características da
religiosidade europeia, que podem ser observadas no próprio caráter processional de deslocamento das
escolas, típico das festas religiosas do Rio de Janeiro colonial.
3.8 Os quintais, as iguarias e bebidas
Os quintais suburbanos são uma extensão da própria casa, pois neles lavam-se roupas, jogam-
se cartas, as crianças brincam, promovem-se aniversários, churrascos e rodas de samba. Esses quintais
podem, algumas vezes, agregar tais atividades na frente, na lateral ou nos fundos. Isso depende dos
números de construções existentes nele, uma vez que é comum, nos quintais suburbanos, as famílias
construírem suas casas em um mesmo espaço. Assim sendo, descreveremos os eventos que
aconteceram e que ainda acontecem nos quintais de Madureira e Oswaldo Cruz, bem como os pratos e
bebidas servidas pelos anfitriões desses espaços.
No bairro de Oswaldo Cruz, conforme relatos de Vargens (2008), a casa de João Calça Curta
era conhecida por promover rodas de partido-alto em seu quintal, acompanhado de uma peixada às
quartas feiras de cinza. Nos anos 50 e 70, o carnaval dos portelenses se prolongava até quarta-feira de
cinzas com muito samba e crônica dos dias de momo. Peixes e crustáceos, à vontade, eram servidos.
Era coisa de louco. Surgia como uma benção dos deuses suburbanos, embora nem todos tivessem o
privilégio de participar. Tudo isso acontecia na casa de João Calça Curta, o introdutor da bermuda em
bairro de Oswaldo Cruz, o ex-presidente da Portela.
Na véspera, os sambistas se deliciavam com mocotó, no quintal do compositor Candeia, no
bairro de Jacarepaguá. Já na quarta, na casa de Seu João Calça Curta, que, além da peixada, servia
mexilhões e camarões. Os convidados na casa de Seu João eram recebidos com caldinhos, sardinhas
fritas, cerveja preta e beijinhos entre os presentes. O seu amplo quintal tinha o encontro festivo
organizado na frente do quintal. Os convidados consumiam a bebida e se deliciavam com o aroma das
iguarias, que sensibilizavam e aguçavam os sentidos de cheiro e paladar. Dentre os convidados,
encontravam-se sambistas, formadores de opinião da mídia e artistas, o que atraia a presença de
jornais e revistas.
Na quarta feira de cinza, todos se reuniam na casa de João Calça Curta, para discutirem e
opinarem sobre os desfiles das escolas de samba, pois o resultado oficial, naquela época, era divulgado
na quinta-feira. A escola de samba campeã desfilava no sábado na Avenida Atlântica. E se caso a
Portela fosse campeã, especificamente ela, desfilava também no Hipódromo, na quinta-feira na pista
113
de grama, após o último páreo das corridas de cavalo (VARGENS, 2008).
Entre os convidados que frequentaram a peixada de João Calça Curta durante
aproximadamente 20 quartas-feiras de cinzas, dentre as décadas de 50 e 70, estavam Haroldo, Costa,
Sergio Cabral, Tereza Aragão.Além de Candeia, Zé Keti, Paulinho da Viola, o cartunista Lan,
Casquinha, Norival Reis, Joãozinho da Pecadora, as Irmãs Marinhos (passistas do salgueiro), as atrizes
Cléa Simões e Léa Garcia. Na quarta de momo, a roda de samba corria solta. Os passos e os versos de
improvisos eram marcados por palmas em uma imensa roda humana calorosa de alegria, um modelo
de entretenimento que acompanha as histórias dos afro-brasileiros no Rio de Janeiro (VARGENS,
2008).
Segundo Monte e Vargens (2000), os quintais de Oswaldo Cruz não têm a mesma conotação
dos dicionários, mas sim um espaço de reunião social para as tarefas do dia a dia, como também para
momentos lúdicos. Com a gravação do primeiro disco da Velha Guarda da Portela, os componentes
passam a ensaiar no quintal do compositor Manacéia, além dos componentes, outras pessoas
participavam destes ensaios, como amigos íntimos e vizinhos que ficavam expiando por cima do
muro.
O encontro era acompanhado de galinha com quiabo feita por Dona Neném. O samba,
geralmente, começava após uma partida de sueca e não tinha hora de acabar. Também, eram servidas
batidas, sopa de legumes e de ervilha para dar energia aos sambistas e convidados.
Desde os tempos de Tia Ciata, em cujo quintal muito se criou e consumiu comida e arte, sabor e saber musical se misturaram nas comunidades do samba carioca. Não há reunião de sambistas sem o prazer do preparo e da degustação de iguarias feitas pelas tias baianas. (THEODORO ET ALLI 2005 P.69)
No quintal de Dona Neném, segundo Monte e Vargens (2000), aconteceu um episódio muito
interessante, quando o escritor Manuel Rui, escritor angolano acompanhado de sua mulher, vai a uma
roda de samba no quintal de Dona Neném em Oswaldo Cruz para degustar uma galinha com quiabo.
Ao chegar ao quintal, surpreende-se com sua mulher aos prantos, pois, ao presenciar aquela reunião no
fundo do quintal, ela se lembrou da casa de seus avôs em Luanda.
O acontecido, de acordo Monte e Vargens (2000), levou o escritor Manoel Rui a escrever um
artigo na Revista Caderno do 3º Mundo, no qual o poeta romancista estabelece o espaço social do
quintal lusitano comum a todos os países colonizados por Portugal.
O quintal de Tia Surica fica em uma vila, como o do falecido compositor Argemiro. Esses
espaços reuniram e reúnem mestres do samba. O “Cafofo” da Surica, como é chamado, tornou-se
público através de um samba gravado por Tereza Cristina. Assim declara Monte e Vargens (2000).
O samba Cafofo da Surica, de autoria de Tereza Cristina, apresenta em sua letra o componente
114
da velha Guarda e foi composto no próprio quintal da Surica em uma roda de samba.
Davi no pandeiro/Casemiro na Cuíca/Olha, a festa já vai começar/ No cafofo da Surica/Seu Osmar do Cavaco/Puxou um partido/Do mestre Casquinha/Que versou com Argemiro/Lembrando dos tempos/ lá da Portelinha.../ Porque a festa já vai começar/No cafofo da Surica...
No quintal de Tia Surica, segundo Monte e Vargens (2000), também foi um espaço de ensaio
da Velha Guarda e, nesses encontros, o macarrão com galinha acompanhado de cerveja se faziam
presentes.
As rodas de samba do quintal do compositor Argemiro do Patrocínio aconteciam todas as
quartas-feiras após o término de uma feira, que acontecia em sua rua. De acordo com Vargens e Monte
(2000), a corvina ensopada, feita pelas pastoras da Portela, era o prato mais constante nos encontros,
juntamente com a cerveja e a batida.
O “quintal” de Argemiro Patrocínio, expõe Rodrigues (2008), era em uma vila de casas perto
da estação de trem de Oswaldo Cruz e o seu quintal era o espaço de circulação. À frente de sua casa
alongava-se por toda a vila abrigando instrumentos, mesas, panelas e transformando-se num dos
“quintais” da Velha Guarda.
“Em 1989 fui convidado por Marcos Sampaio (Marquinhos de Oswaldo Cruz) para participar de uma “tripa lombeira” no quintal da casa de Argemiro Patrocínio, um dos integrantes da Velha Guarda da Portela. Era uma espécie de almoço-ensaio que acontecia em “quintais” dos integrantes do grupo, uma atividade tão comum e popular que acabou imortalizando alguns “quintais” dos integrantes da Velha Guarda como os “quintais” da tia Doca, da tia Surica, do Manaceá e do próprio Argemiro do Patrocínio.” (RODRIGUES, 2008 p. 13)
Esses quintais não são só marcados pela rodas de samba, mas também pelo o que se servia de
iguarias e bebidas. Nesse contexto de iguarias servidas nas rodas de samba, percebemos que a comida
reproduz e atualiza a dinâmica do comer e beber da tradição africana. Transcendendo a simples ação
biológica de nutrir o corpo constitui-se numa maneira de renovar a energia de toda a comunidade.
Comer no samba equivale a viver, preservar, comunicar e reforçar memórias individuais e coletivas. A
comida concebe a criação e as escolas de samba, criadas em torno dessas reuniões festivas, bem como
muitas associações, são regadas a petiscos, cervejas, almoços e jantares. O próprio samba registra essa
ligação íntima, como o Quitandeiro, de Monarco e Paulo da Portela45 (THEODORO ET ALLI, 2005)
Quitandeiro/Leva cheiro e tomate/ pra casa de Chocolate/Que hoje vai ter macarrão/Prepara a barriga macacada/Que a bóia tá enfezada/E o pagode fica bom/Leva uns 30 litros de uca/para fechar as butucas/destes negros beberrão/Chocolate tu avisa pra crioula/que carregue na cebola/ e no queijo parmesão...
45 Paulo Benjamin de Oliveira, popularmente conhecido como Paulo da Portela (Rio de Janeiro, 18 de junho de 1901 — 31 de janeiro de
1949) foi um sambista brasileiro. Seu apelido é uma referência à Estrada do Portela, uma via que corta os bairros de Madureira e Oswaldo Cruz(Silva e Santos,1986)
115
Relatam Monte e Vargens (2000) que, no final do regime escravista, a comida assume um
grande fator de resistência e de reunião para os negros, uma vez que libertos, sem lugar para morar e
sem qualificação para o trabalho, os negros não tinham como sobreviver imediatamente. O que
restaram a esses negros foram os pequenos ofícios e o trabalho ambulante. Foi com as negras forras,
na venda de quitutes em seus tabuleiros, que começou se formar uma nova família negra, em torno das
quais foram criados os filhos. Talvez, por isso, a comida no mundo do samba tenha tanta importância,
devido à presença feminina de descendência africana se apresenta em um número significativo. Logo,
observamos, no cardápio das iguarias servidas nos quintais de Madureira e Oswaldo Cruz, a presença
das afro cariocas no preparo..
As rodas de samba nos quintais de Madureira e Oswaldo Cruz nos mostram como a presença
da comida e da bebida fazem parte dos encontros promovidos pelos anfitriões dos quintais, como de
João Calça Curta, Manacéia e sua esposa Dona Neném, Tia Surica e Argemiro do Patrocínio. Tais
abordagens acerca dos eventos promovidos por esses afro cariocas são identificadas nessa
investigação, através das conversas com os anfitriões e sambistas dos bairros de Madureira e Oswaldo
Cruz, que relatam as festas num período que compreende aos anos 30 do século passado até a
atualidade.
3.9 A feira das Yabás em Oswaldo Cruz
Começaremos definindo quem são as Yabás, no universo religioso de matriz africana, é um
termo dado aos orixás feminino e são Mães Rainhas. Na África, o termo se aplica aos orixás femininos
Yemanjá e Oxum. Esses orixás, em especial, estão ligados a gestação e ao parto. Foram rainhas e mães
cuidadosas com seus filhos. No Brasil, o termo se aplica a todos os orixás femininos.
Tendo em vista a explicação sobre o termo Yabás, fica explícito que a feira das
Yabás de Oswaldo Cruz apresenta, em sua constituição, um universo feminino que
divide, com toda a cidade do Rio de Janeiro, suas habilidades gastronômicas,
vendidas em barracas devidamente identificadas com seus nomes. As barracas, na
parte frontal, apresentam o cardápio principal e o nome das habilidosas cozinheiras
que são moradoras de Oswaldo Cruz e Madureira e fazem parte do universo do
samba.
Essas Yabás do subúrbio são filhas, viúvas e esposas de compositores, como
Candeia, Manacéia, Chico Santana e Luiz Carlos da Vila, ou são representantes do
grupo das baianas e da Velha Guarda da Portela. Essas barracas vendem suculentos
116
pratos e são dívidas assim: Tia Neném oferece rabada com polenta e agrião e para
petisco, bolinho de abóbora com carne seca; Marlene vende feijoada; Rose faz
galinha com quiabo; Rosângela Maria, tutu a mineira; e Neide Santana prepara
angú a baiana e feijoada de frutos do mar.
A feira também conta com as barracas de Jussara (bobó de camarão), Tia Surica
(mocotó e como petisco pastel de carne seca e aipim com calabresa), Selma Candeia
(abóbora com carne seca), Vera de Jesus (doces),Tia Natercia e Marli (Vaca
Atolada) e de aperitivo aipim com carne seca, Romana(caldos e carré a mineira).
Além das barracas de Jane Carla (Cozido de Peixe),Tia Edith(macarrão com carne
assada),Tia Nira (peixe frito), Jane Pereira(caldos e canjas e de aperitivo jiló e
berinjela fritos com queijo parmesão) e para finalizar a lista das iguaria, a barraca
de Vera Caju( cozido) .
Todo esse ambiente tem, como fundo musical, grupos e cantores do mundo do
samba do Rio de Janeiro, muita cerveja para animar, bem como as presenças de
visitantes de toda a cidade carioca, produtoras de documentários da cidade e de
outras cidades, turistas estrangeiros e do território nacional.
46
Figura s19
O evento não só apresenta a denominação de matriz africana, também apresenta
um subtítulo (conforme apresenta fotografia de número 20) para reforçar a cultura
negra nos espaços de Oswaldo Cruz e Madureira e no samba carioca.
A Feira da Yabás foi uma iniciativa do cantor e compositor Marquinhos de Oswaldo
46 Figura 25 Fachadas das barracas-foto Cristina da Conceição Silva em 09/09/2012
117
Cruz, no ano de 2009. No mesmo período, o compositor apresenta um projeto ao atual
prefeito do Rio de Janeiro denominado “Madureira museu a céu aberto”. Tal projeto
evidenciava algumas edificações a serem tombadas como a casa de Dona Esther, de Paulo da
Portela e o prédio da gafieira Cedo feita em Bento Ribeiro, onde o maestro Pixinguinha
tocava.
47Figura 20
Além do tombamento e recuperação das edificações, foi proposta a criação de espaços
culturais homenageando os compositores Candeia e Zé Keti, visando revitalizar a cultura do subúrbio
e atrair o turismo.
O evento das Yabás, em sua versão original, acontecia por insistência de Marquinhos de
Oswaldo Cruz e com o apoio das mulheres que não desistiram de montarem suas barracas artesanais e
venderem suas iguarias. Não contavam com banheiros químicos, som adequado, entre outras
necessidades para garantir a qualidade do evento. Tanto que por um período de 03 anos, a feira ficou
basicamente inerte.
No ano de 2012, a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro reconhece o valor cultural e social
desse encontro e legaliza o espaço, com palco adequado, banheiros químicos, barracas padronizadas,
uma tenda para receber músicos e cantores. Além de manter um efetivo da guarda municipal,
uniformizar as cozinheiras e equipes de apoio e disponibilizar som e luz para a alegria dos sambistas,
que frequentam a feira. Evento este que acontece no segundo domingo de cada mês na Estrada do
Portela, próximo à primeira quadra da Portela (Portelinha) e da Praça Paulo da Portela. Os sambistas
de Madureira e Oswaldo Cruz, nos tempos modernos, não se contentaram com as rodas de samba nas
quadras das Escolas de Samba e nos quintais, uma vez que levaram para o espaço público, a rua, sua
cultura musical e gastronômica para a contemplação de moradores e visitantes.
47 Figura 26 Título e subtítulo da feira-Feira das Yabás- Música e Gastronomia Negra Carioca. Foto- Cristina da conceição Silva em
09/09/12
118
4 Considerações finais
Passaram três anos desde que vislumbrei dar início a este trabalho que tomou corpo no curso
de Mestrado. As minhas inquietações acerca das culturas existentes na cidade do Rio de Janeiro
desenhou-se através de uma investigação que buscou compreender a contribuição do negro para a
cultura afro carioca. A importância de tais contribuições nos levou a pensar sobre a significância dos
adventos que envolveram e que ainda envolvem os grupos étnicos de ancestralidade africana na cidade
do Rio de Janeiro.
O nosso maior desafio para sistematizar esta investigação, foi encontrar uma vasta literatura
que contemplassem o nosso desejo de abordar sobre a cultura negra na cidade do Rio de Janeiro.
Logo, investigamos literaturas que abordassem a história da cidade carioca, e neste contexto, fomos
organizando as informações de forma que atendessem as nossas perspectivas.
Ao investigarmos literaturas com abordagens voltadas para a participação do negro na cidade
carioca, observamos o quanto os diferentes grupos de nações africanas, que vieram para o trabalho
119
escravo no século XIX, foram importantes para a cultura do samba e da religiosidade. A presença
desses grupos de negros na cidade do Rio de Janeiro foi de uma riqueza imensurável, pois os mesmos
ao longo dos séculos XIX até o momento atual fomentaram, nesta geografia, ritmos musicais, formas
de entretenimento, gastronomia e religiosidades.
Embora esses negros tivessem passado por humilhações e perseguições, em meio a tanto
sofrimento, eles apresentaram modelos de civilidade no trato com outros grupos étnicos, que na cidade
carioca chegaram à busca de novas possibilidades no mercado de trabalho. Esse período que aconteceu
após a abolição da escravidão, também foi marcado pelas reformas urbanísticas que a cidade carioca
passou.
As transformações da cidade provocaram uma integração entre negros e brancos, seja no
trabalho ou nas moradias coletivas. Tais aproximações entre grupos étnicos de diferentes continentes
promoveram um modelo cultural único no Centro da cidade que se espalhou pelo subúrbio do Rio de
Janeiro, em especial nos bairros de Madureira e Oswaldo Cruz. Assim sendo, percebemos o quanto o
negro demonstrou nas relações com outros personagens que chegaram à cidade, um modelo de
civilidade através do trato com outras etnias e suas culturas.
Tais relações tiveram continuidade nos quintais dos adeptos do samba, espaço onde se
estabeleceram trocas simbólicas diversificadas, em virtude dos saberes individuais. Esses personagens,
adeptos do samba do subúrbio de Madureira e Oswaldo Cruz foram pessoas de suma importância para
a cultura do samba. Os mesmos contribuíram para o surgimento das Escolas de Samba Portela e
Império Serrano, o que aconteceu através das práticas de entretenimento nos encontros festivos nos
quintais dos amantes do samba, do jongo e demais culturas de matrizes africanas.
O contexto em que esses grupos conviveram e que ainda convivem, sejam nos quintais
suburbanos, nas moradias coletivas e demais espaços, nos revelam aspectos socializadores importantes
para manutenção da cultura do samba carioca, que contribuíram e ainda contribuem para o jeito
carioca de ser e de viver. Assim, as conversas com os sambistas nos mostraram como se deram e como
se dão os processos socializadores nos encontros festivos e nas relações inter-raciais entre os amantes
do samba.
Observamos, através das narrativas dos sambistas dos quintais de Madureira e Oswaldo Cruz,
o quanto as rodas de samba consolidaram as práticas de construções coletivas. Além disso, esses
encontros foram elos entre os grupos de sambistas, suas comunidades e até mesmo de outras
comunidades. O que torna tais práticas uma lição e um rico espaço de convivência e trocas de
conhecimentos no contexto das aprendizagens culturais.
Esta investigação ao longo do curso de mestrado nos demonstrou que os aspectos culturais
carioca são eminentemente de origem negra, tendo em vista os elementos socializadores explicitados
120
nesta pesquisa.
A cultura musical, especificamente o samba, faz do Rio de Janeiro e do Brasil uma geografia
conhecida mundialmente, através dos desfiles carnavalescos, que em um passado distante foi
idealizado por negros e mulatos. Esses personagens, que no passado foram perseguidos por
disseminarem seu ritmo musical e sua dança, deixaram um legado para a cidade, que, na atualidade,
faz parte de uma política cultural, que atrai turista e movimenta o capital do comércio, indústria e
hotelaria.
Entretanto, o que observamos neste contexto que movimenta a cidade, é a falta de personagens
negros representando as administrações carnavalescas, as entidades públicas e privadas que
administram o intitulado maior espetáculo a céu aberto da Terra, os desfiles carnavalescos da cidade
do Rio de Janeiro
1 Neste sentido compreendemos que esta investigação, revelou não só o
interesse pelo tema por parte da investigadora, como também sugere reflexões nos espaços
acadêmicos acerca das práticas pedagógicas e das relações com os seres humanos. Propicia
também, especialmente, no que se refere aos aspectos étnicos e culturais, o fomento de uma
educação inter-étnica e intercultural.
2 Entendemos que este exemplo de educação, poderá ser possível se
alimentarmos o espaço acadêmico e a sala de aula de conhecimentos que coloquem em
evidência as contribuições dadas por aqueles que no passado se encontraram em
desigualdade e invisibilizados frente a outros grupos da cidade carioca.
3 No entanto, ao descrevermos, nesta investigação, como o negro foi tratado
discriminadamente e contarmos suas histórias de contribuições nas artes, na música dentre
outros aspectos, estaremos tratando o negro como sujeito imprescindível no processo de
constituição cultural da cidade do Rio de Janeiro. Isso significa uma valorização do seu
legado na cultura afro carioca.
4 O legado cultural afro carioca ao qual nos referimos fornecerá subsídios
para que possamos discutir e programar em nossas classes fundamental, média e
acadêmica. Logo, princípio legal estabelecido pela Lei 10639/03 que versa sobre o ensino
da história e cultura afro-brasileira e africana, ressalta a importância da cultura negra na
formação da sociedade brasileira.
Finalmente, a partir do nosso trabalho é possível constatar que a pesquisa sobre o samba no
Rio de Janeiro pode trazer para as salas de aula elementos de aprendizagens de natureza geográfica,
étnica, cultural, social e de gênero de forma a evidenciar tais contribuições para a conservação da
121
história do negro na cidade.
As rodas de samba nos quintais de Madureira e Oswaldo Cruz e o poder das mulheres na
manutenção da cultura do samba carioca são riquezas invisibilizadas neste universo afro carioca, que
através desta investigação buscamos dar a devida importância e visibilidade.
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