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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Letras

Ana Luiza Franco de Oliveira

GRANDE VIÉS: VEREDAS

— A indumentária masculina em Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa

Belo Horizonte

2021

Ana Luiza Franco de Oliveira

GRANDE VIÉS: VEREDAS

— A indumentária masculina em Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), como requisito parcial para a obtenção do título de Mestra em Literaturas de Língua Portuguesa. Orientadora: Prof.ª Dra. Márcia Marques de Morais Área de concentração: Literaturas de Língua Portuguesa Linha de Pesquisa: Trânsitos literários: produção, tradução e recepção

Belo Horizonte

2021

Ana Luiza Franco de Oliveira

GRANDE VIÉS: VEREDAS

— A indumentária masculina em Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), como requisito parcial para a obtenção do título de Mestra em Literaturas de Língua Portuguesa. Orientadora: Prof.ª Dra. Márcia Marques de Morais

____________________________________________________________________

Prof.ª Dra. Márcia Marques de Morais — PUC Minas (Orientadora)

____________________________________________________________________

Prof.ª Dra. Ivete Lara Camargos Walty — PUC Minas/UFMG (Banca Examinadora)

____________________________________________________________________

Prof.ª Dra. Telma Borges da Silva — UFMG (Banca Examinadora)

Belo Horizonte

20 de dezembro de 2021

A Antonieta, Leonel e Priscila, meus encantados, pela memória do sertão de minha infância.

A Izabel e Lucas, meus encantadores, pela companhia corajosa na travessia.

AGRADECIMENTOS

À Izabel, minha “mamãezinha da fililhinha”, pela vida, sobrevivência, respiração e

existência; por ser exemplo de professora e costureira; por me ensinar a ler, escrever e

costurar; pela herança de minhas paixões; e pelos meus tortos dedos que escreveram todas

essas palavras.

Ao Lucas, meu amô, meu leitor, meu revisor, meu companheiro, meu manuelzinho-da-

crôa, coraçãomente, por ser amor-amigo; pela admiração, carinho, cuidado, incentivo,

companhia, alegria, coragem, respeito e liberdade; pela travessia do Liso do Sussuarão à

nossa Refazenda Verde-Alecrim.

À Malvina e Úrsula, por cada ronron, raspadinha, pulinhos, espreguiçadas,

brincadeiras a interromperem minha escrita para recarregar minha feli(ni)cidade — “(...)

quem bem-trata gato, consegue boa-sorte” (ROSA, 2015, p. 290).

Ao Roberto, meu pai, pelo incentivo, sustento, sobrevivência, sacrifício; por cobrar

constantemente que eu aprendesse e respeitasse a Língua Portuguesa (mesmo que me sirva,

hoje, também para subvertê-la); por demonstrar em ações o que ainda não sabemos em

palavras.

À Pollyanna, minha irmã-amiga, por seus esmerados esmartes olhos trazendo a certeza

de que o vento é verde; pela admiração, incentivo, companhia e amor; pela (dê)mão; por

atravessarmos juntas o viver tão perigoso.

À Fayga, minha amiga, mas minha estranha, por me permitir o bom proveito de falar

assim com quem me ouve e logo vai-se embora, fazendo com que eu fale é mais comigo

mesma; por não me colocar em julgamento; pelo vinho de carne brava; pela sabedoria,

reflexão e apoio.

À Maria Lyra e ao Breno, minha amiga e meu amigo, e ao José, meu amigo-cunhado,

por serem bando, comunidade, vila, cooperativa, família; apoio, carinho, intelecto e

admiração.

À Aline e Arlete, por nossos nomes darem trio; por em nossas vidas, darmos o sangue;

por nosso vínculo eterno.

Às minhas amigas, Karina, Celeste, Danusa, Natália, Rafaela, Jéssica, Raquel, Anna

Luíza, Gabriela, Carla e Carolina, por — cada uma a seu tempo ou muitas o tempo todo —

fazerem do deserto, um carnaval; da dor, uma piada; do seco, taça cheia de vinho. Algumas,

por saberem também quem fui e, outras, por amarem quem sou e quem serei. E aos meus

amigos, Rafael, Igor, Guilherme e Wanderson, pelo carinho, diálogo e admiração.

A Francisco, Cecília, Eduardo, Anabelle, Olga, Ana Flávia, Gustavo, Inácio, Maria

Morena e Aurora, minhas esperanças, por renovarem o mundo; por me fazerem lembrar do

melhor que podemos ser.

À minha família materna, em especial, Tio Pedro, Tia Simone, Gláucia e Éder, por me

acolherem com tamanho carinho quando retornei para o sertão de minha infância.

À Márcia Marques de Morais, minha orientadora e amiga, pelo ânimo e esperança;

pelo primeiro dia de Grande Sertão: Veredas, na graduação, em 2009; e por agora, no

mestrado, enfrentar a encruzilhada de minha escrita por três vezes até que se costurasse a

trama de minha análise; pelo carinho e confiança; pelo brilho nos olhos toda vez que escuta o

nome de João Guimarães Rosa; por tanto e pelo muito.

À Ivete Walty e Priscila Campello, minhas amigas-professoras, pela confiança,

carinho e atenção; pela humanidade e simpatia; por me ensinarem a ler e desconfiar,

desconfiar e ler literatura; pelo espelho do que almejo ser.

À Sandra Cavalcante, Juliana Assis e Daniella Lopes, minhas amigas-professoras,

mestras da linguagem, da linguística, desse nosso falar e compreender; pelo carinho e cada

sorriso desde o início de minha caminhada; pelas tantas memórias de alegria mesmo que num

breve esbarrar de corredores acadêmicos; pelo entusiasmo contagiante que muito me ensina.

Ao Kaio, meu amigo, meu leitor, por me dar a mão no início e meio da travessia; por

colocar na minha vida o Grande Sertão: Veredas; por sua alta opinião a compor minha valia

acadêmica.

A Marilane Cazorla, Vinícius Linhares, Alexandre Veloso, Telma Borges, Flávia

Virgínia, queridos e queridas amigas, por todas as indicações de leitura e colaboração com os

materiais, além do apoio. E ao Luís Borges, meu amigo, pela delicadeza de me presentear

com um dos livros mais utilizados nesta pesquisa.

À PUC Minas, minha universidade, berço de meus estudos superiores, casa de minha

intelectualidade, lar de meu crescimento, por brilhar em meu universozinho infinita

constelação.

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela

oportunidade da realização da pesquisa financiada por uma bolsa de mestrado; pelo sonho

realizado ao me afirmar Pesquisadora; pelo incentivo à Ciência; e por resistir em prol da

inteligência em tempos de “Terra plana”.

À Dilma e ao Lula, minha presidenta e meu presidente, por teimarem; pela resistência;

pelo Partido dos Trabalhadores; por provarem que o Brasil é mesmo grande.

O senhor fia? Pudesse tirar de si esse medo de-

errar, a gente estava salva. O senhor tece? Entenda

meu figurado.

(ROSA, 2015, p. 159)

Já ando nos preparativos, arrumando mochila,

cantil, roupa cáqui, pois serão 15 dias no ermo, a

carne seca com farinha-de-mandioca e café com

rapadura, sob sol, poeira, lama, chuva. Odisseus.

(João Guimarães Rosa em carta a Mário Calábria;

Rio de Janeiro, 31 mar. 1952. In: COSTA, 2006, p. 29)

RESUMO

Nesta pesquisa, buscamos analisar a indumentária masculina descrita na trama do romance

Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, com o intuito de compreender como cada

peça de vestuário tanto contribui para a construção da verossimilhança — em relação ao

tempo e espaço, ou seja, à cultura — quanto serve de ferramenta para reforçar o mistério do

enredo — como encobrimento do corpo de Diadorim. Para a realização dessa análise,

inicialmente, fizemos o fichamento de todos os itens de indumentária citados na trama para,

posteriormente, recortarmos os que dialogavam entre si e quais significados transcendiam da

seleção final, a partir de estudos das áreas de Literatura Brasileira, Sociologia da

Indumentária, Moda, História, Antropologia e Psicologia, além de pontuações sobre Ecologia,

Geografia e Engenharia Têxtil. O objetivo principal de nossa pesquisa é refletir sobre como o

diálogo interdisciplinar pode contribuir para a escrita e interpretação literárias, analisando

para isso as ocorrências de descrição de indumentária na obra de João Guimarães Rosa.

Assim, valemo-nos da reflexão de teóricos das diversas áreas, já citadas, como Walnice

Galvão, Frederico Pernambucano de Mello, Diane Crane, Patricia R. Anawalt, Peter

Stallybrass, Fredéric Godart, Antonio Candido, Roland Barthes, Paulo Ronái, Willi Bolle,

dentre outros, como segurança na compreensão dos aspectos múltiplos que se entrelaçam às

peças de vestuário reais e fictícias. Por isso, organizamos o texto de forma a, inicialmente,

estudar o significado linguístico, social e histórico do que é a indumentária, passando-se a um

estudo sobre a indumentária inscrita nas linhas literárias, refletindo tanto sobre trabalhos

acadêmicos que, assim como nós, se debruçaram sobre a temática, quanto sobre exemplos em

breve cronologia da literatura brasileira que vai de Machado de Assis a Ana Martins Marques,

para, finalmente, adentrar a análise das peças entrelaçadas ao sertão rosiano. No decorrer de

nossa análise foi possível perceber particularidades sobre como o vestuário masculino reforça

o mistério do enredo, bem como pontua anunciações, metaforiza sentimentos, demarca

autoridades, salienta ambiguidades, dentre outras descobertas.

Palavras-chave: Literatura Brasileira; Indumentária; Estudo Comparado;

Interdisciplinaridade; Literatura e Moda.

ABSTRACT

In this research, we seek to analyze the male attire described in the plot of the novel Grande

Sertão: Veredas (or “The Devil to Pay in the Backlands”), by João Guimarães Rosa, in order

to understand how each garment contributes to the construction of verisimilitude — in

relation to time and space, that is, to culture — as well as it serves as a tool to reinforce the

mystery of the plot — as a cover for Diadorim's body. In order to conduct this analysis, all the

items of clothing mentioned in the plot were initially registered and, later, those that

dialogued and whose meanings transcended the final selection, based on studies in the areas

of Brazilian Literature, Sociology of Clothing, Fashion, History, Anthropology and

Psychology, as well as scores on Ecology, Geography and Textile Engineering were selected

for this analysis. The main objective of this research is to reflect on how interdisciplinary

dialogue can contribute to literary writing and interpretation, analyzing the occurrences of

clothing descriptions in the work of João Guimarães Rosa. Thus, we draw on the reflection of

theorists from different areas, previously mentioned, such as Walnice Galvão, Frederico

Pernambucano de Mello, Diane Crane, Patricia R. Anawalt, Peter Stallybrass, Fredéric

Godart, Antonio Candido, Roland Barthes, Paulo Ronái, Willi Bolle, among others, as an

assurance to comprehend the multiple aspects that are intertwined with real and fictitious

garments. Therefore, the text was organized in order to, initially, study linguistic, social and

historical meanings of what clothing is, moving on to a study of clothing inscribed in literary

lines, reflecting both on academic works that, along with this one, pored over the theme, as

well as examples in a brief chronology of Brazilian literature, ranging from Machado de Assis

to Ana Martins Marques, to finally dive into the analysis of the articles of clothing intertwined

with the Rosian hinterland. During this analysis, it was possible to notice particularities about

how men's clothing reinforce the mystery of the plot, as well as punctuating annunciations,

serving as metaphors for feelings, demarcating authorities, highlighting ambiguities, among

other discoveries.

Keywords: Brazilian Literature, Clothing, Compared Study, Interdisciplinarity, Literature and

Fashion.

SUMÁRIO

1 FIO DA MEADA............................................................................................... 12

2 INDUMENTÁRIA — COSTURAR COSTUMES....................................... 16

2.1 Ser cerzidor: costurar para (sobre)viver............................................................ 22

2.2 “Descomposto nu”: cultura encobridora........................................................... 28

2.3 “O senhor ponha enredo”: o figurino do cotidiano........................................... 31

3 LITERATURA E INDUMENTÁRIA: TRAMAS TECIDAS....................... 37

3.1 Análises da indumentária literária brasileira “com toda leitura e suma

doutoração”............................................................................................................. 42

3.2 Tramando o gosto de especular personagens: breve cronologia da

indumentária em algumas obras da literatura brasileira.......................................... 51

4 GRANDE VIÉS: VEREDAS — A INDUMENTÁRIA MASCULINA EM

GRANDE SERTÃO: VEREDAS........................................................................... 63

4.1 Indumentária masculina: “macho em suas roupas”........................................... 65

4.1.1 Gibão: o jagunço antigo................................................................................ 69

4.1.2 Calça: o homem............................................................................................. 76

4.1.3 Camisa estampada: o “pano do destino”...................................................... 81

4.1.4 Colete-jaleco ou jaleco: proteção e afirmação social................................... 86

4.1.5 Chapéu: distintíssimo homem........................................................................ 91

4.1.6 Sapato, bota, alpercata: a hierarquia............................................................ 98

4.1.7 Lenço, capanga bordada, cinto-cartucheira: acessórios historientos........... 103

5 ARREMATE...................................................................................................... 108

REFERÊNCIAS.................................................................................................... 111

12

1 FIO DA MEADA

Na extraordinária obra-prima Grande Sertão: Veredas há de tudo para quem souber ler, e nela tudo é forte, belo, impecavelmente realizado. Cada um poderá abordá-la a seu gosto, conforme o seu ofício; mas em cada aspecto aparecerá o traço fundamental do autor: a absoluta confiança na liberdade de inventar (CANDIDO, 2002, p. 121).

— “Atravessa!” — é a frase que nos ressoa ao adentrar a investigação proposta

quando a obra envolvida é Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. E, por mais

clichê, carece mesmo de ter coragem, justamente por se tratar de um romance que já foi tão

diversamente analisado, em milhares de teses, dissertações, ensaios e artigos, dentre outros,

por nomes consagrados da crítica literária, como Walnice Galvão, Antonio Candido, David

Arrigucci Jr., Márcia Marques de Morais, José Miguel Wisnik etc. Porém, a escrita de

Guimarães Rosa “dá pano para a manga”, e é literalmente nisso que este trabalho se trama: a

indumentária masculina rosiana.

Ao lermos as centenas de páginas de Grande Sertão: Veredas, o maior espanto se

dispõe no final, quando o narrador nos revela, diante do corpo morto de seu companheiro, que

o jagunço “(...) Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita...” (ROSA, 2015, p. 485).

A nossa surpresa se dá porque Diadorim é apresentado na prosa de Riobaldo, desde criança,

como alguém que se vestia com indumentária masculina, com chapéu, calça, colete, camisa

— vestimenta clássica masculina em áreas rurais, entre o final do século XIX e início do XX.

E essa surpresa se explica pelo que Paulo Ronái (2020) chama de “realismo psicológico”,

sobre o qual a indumentária nos serve de ferramenta de verossimilhança na construção da

interpretação. Logo, Ronái (2020) destaca que

(...) todas as audácias da construção, toda a riqueza do conteúdo filosófico, seriam apenas jogos de inteligência se o sertão de Guimarães Rosa não fosse também, além de símbolo, realidade viva e concreta, com seus bichos, plantas, gentes e superstições admiravelmente descritos; se a narração de Riobaldo não fosse, além de uma teia engenhosamente urdida, um tecido de casos, encontros, acontecimentos e cenas de insuspeita autenticidade porque vistos de seu ângulo de jagunço; e se a intervenção do sobrenatural não fosse tramada com arte das mais sutis, de modo que nunca entra em choque com o realismo psicológico (RONÁI, 2020, p. 35-36, grifo nosso).

Sob um viés, percebemos como “realidade viva e concreta” a indumentária rosiana,

assim, a descrição das peças masculinas na obra de Guimarães Rosa parece servir de

ferramenta para que esse “tecido de casos, encontros, acontecimentos e cenas” seja ilustrado

13

de forma verossímil, dando conforto ao nosso “realismo psicológico” quando na interpretação

das “gentes”-jagunços da trama. Portanto, notamos que a indumentária está na trama de forma

descritiva buscando delinear espaço, tempo e cultura reais, mas vai além tramando também o

próprio mistério cujo clímax se dá com a revelação do corpo morto de Diadorim, por

exemplo.

Dessa forma, as roupas da personagem sustentam também a barreira encontrada por

Riobaldo quanto ao amor por seu amigo, já que cobre o corpo de Diadorim transformando a

interpretação sobre ele, afligindo o protagonista quanto aos seus sentimentos: “De que jeito

eu podia amar um homem, meu de natureza igual, macho em suas roupas e suas armas,

espalhado rústico em suas ações?!” (ROSA, 2015, p. 403, grifo nosso).

É justamente a partir desse questionamento de Riobaldo, sobre amar um homem

macho em suas roupas, que a ideia para essa análise começou. Despertou-nos curiosidade

saber o que seria esse macho em suas roupas. E de que forma essa macheza contribui para o

mistério acerca do corpo de Diadorim na trama, além dos fatores relativos à sua sexualidade e

identidade de gênero. Mas salientamos que não temos o intuito de focar nas personagens para

explicar as roupas. Logo, analisaremos as peças de indumentária para saber das personagens,

do coletivo e da individualidade que elas apontam. Portanto, nossas personagens sob foco são

as calças, os coletes, as camisas, o gibão, dentre outras.

Buscamos, com isso, desenvolver um estudo multidisciplinar, cujo diálogo se faz,

sobretudo, entre as áreas de Literatura Brasileira e Sociologia da Indumentária, valendo-nos

ainda, principalmente, de pontuações da Psicologia, História, Antropologia, Engenharia Têxtil

e Linguística.

Consideramos, também, aspectos sobre o próprio autor, João Guimarães Rosa, que não

só se inspirou na vestimenta da cultura sertaneja, com seus gibões de couro e demais

paramentas que percorrem a narrativa, mas deu papel protagonista ao vestuário em Grande

Sertão: Veredas, o que parecia ser comum até mesmo em sua realidade, com a atenção às

roupas notada desde a sua inseparável gravata borboleta — registrada tantas vezes em

fotografias e no poema-homenagem de Drummond1 — até a citação de peças em cartas, como

a que ele enviou, em 31 de março de 1952, a seu amigo Mário Calábria, antes de uma viagem,

quando acompanhou uma comitiva de vaqueiros e parecia não querer ficar de fora da moda do

sertão, como podemos ver no seguinte trecho:

1 Poema “Um chamado João”, de Carlos Drummond de Andrade, publicado no Correio da manhã, no dia 22 de novembro de 1967, três dias após a morte de seu grande amigo João, autor da obra que aqui analisamos (DRUMMOND apud ROSA, 2015, p. 9-12).

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Você vai para Roma, minha branda inveja esvoaça. Quando ouço ou penso Itália, minhalma se prostra... Mas amo também outras regiões, mais ásperas. Prova? Estou-me preparando para, daqui há dias, ir acompanhar, rústica, árdua, autenticamente, uma boiada brava, em percurso de 40 léguas, lá do sertão sagarânico, da fazenda da Sirga — entre buritizais belíssimos e chapadões de matagal inviolado — até a fazenda São Francisco, de um meu primo, lá perto de Cordisburgo. Já ando nos preparativos, arrumando mochila, cantil, roupa cáqui, pois serão 15 dias no ermo, a carne-seca com farinha de mandioca e café com rapadura, sob sol, poeira, lama e chuva. Odisseus (ROSA, 1952 apud COSTA, 2006, p. 29).

Percebemos que das prioridades elencadas pelo autor quando na preparação para a

viagem, que seria fonte de inspiração para a escrita de Grande Sertão: Veredas, há, logo após

a mochila e o cantil, ou seja, os indispensáveis compartimentos para carregar seus pertences e

a água, a roupa em cor cáqui, essencial para camuflagem na paisagem árida, além de moda

recorrente sertaneja, onde reinam as cores da terra nas vestimentas. Rosa, então, parecia

querer pertencer, se misturar através das roupas à terra e aos sertanejos, participar

integralmente da experiência na travessia.

Por isso, diante desse macho em suas roupas, tanto nas palavras de Riobaldo quanto

nas preocupações de viagem do autor, percebemos que se faz necessário compreender mais

profundamente tais roupas. Para isso, analisaremos o conceito de indumentária e sua

importância na história humana, desde item básico de sobrevivência até recorrente

demarcador social.

Nossa travessia, então, começa no campo antropológico, conhecendo os primórdios da

relação desenvolvida por peças feitas a partir de couro animal ou tecidas com fios vegetais,

como o linho e o algodão, observando também a relação sociológica de poder que já se

estabelecia nos primórdios da humanidade, ilustrada a partir de uma ou outra peça de

vestuário.

Logo, o próximo capítulo desta análise será dedicado a esmiuçar tanto o conceito de

indumentária e sua etimologia quanto a relação da roupa e a sobrevivência humana, além de

abordar o entrelaçamento social e psicológico ligados à mesma.

No campo dos estudos psicológicos, observaremos a pessoa e a sua expressividade,

que muitas vezes se dá pelas escolhas de certas indumentárias, podendo trazer à luz

discussões sobre gênero, identidade, imagem social constituída a partir da interação com o

outro.

Já no terceiro capítulo, inspiramo-nos em pesquisas desenvolvidas abarcando o

diálogo entre literatura brasileira e moda (no âmbito da indumentária), observando alguns

resultados alcançados em análises anteriores, descobrindo diversas possibilidades

15

interpretativas sobre a encenação de indumentária nas linhas literárias, como as feitas por

Geanneti Silva Tavares Salomon (2007) e Gilda de Mello e Souza (2005). Além disso,

exemplificaremos brevemente os enlaces de peças de vestuário a tramas urdidas por autores e

autoras brasileiras, pontuando cerca de um século, indo do romancista Machado de Assis a

poeta Ana Martins Marques.

E, no quarto capítulo, encontra-se o foco central dessa pesquisa: a análise sobre as

peças de vestuário masculino inscritas na narrativa de Grande Sertão: Veredas, de João

Guimarães Rosa. Nele, de forma geral, analisaremos as peças como protagonistas que se

costuram à travessia, tramando à narrativa de Riobaldo possíveis significados, decifrados a

partir de diversas áreas do conhecimento, conforme supracitado. Portanto, dentre o que se

pergunta, aqui, temos: o que os chapéus nos acenam? E os lenços, o que sinalizam? Os

sapatos caminham para qual rumo interpretativo? O que tramam as camisas? E o corpo sem a

roupa, ressignifica?

Antes de propor respostas ou realizar ainda mais perguntas, adentremos esta análise

pelo básico a saber, esmiuçando o que é a indumentária e qual a sua relação com o ser

humano, que já dura milhares de anos. Depois, conheceremos brevemente algumas veredas da

literatura brasileira que demonstram ser a indumentária interessante ferramenta de

significação de personagens e contextos históricos e sociais. Para, finalmente, buscar o fio da

meada que entrelaça urdume e trama sobre as peças masculinas costuradas à narrativa de

Grande Sertão: Veredas.

16

2 INDUMENTÁRIA — COSTURAR COSTUMES

(...) Agora — digo por mim — o senhor vem, veio tarde. Tempos foram, os costumes demudaram. Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra nada. (...) Mesmo que os vaqueiros duvidam de vir no comércio vestidos de roupa de couro, acham que traje de gibão é feio e capiau (ROSA, 2015, p. 33).

Poucos minutos após o parto, o bebê humano já se encontra vestido. Sai de sua bolha

placentária para a trama 100% algodão, num molde de vestuário que geralmente tem o nome

de body (ou seja, corpo, em português). O bebê, assim, recebe sua pele cultural: “vermelho

para garantir muita saúde”; “verdinho para ter sorte na vida!”; “azul porque é menino”. E é

realmente curioso pensarmos que, geralmente, a primeira roupa de enorme parcela da

população mundial venha a se chamar corpo, porque, assim sendo, o vestuário poderia

simbolizar o próprio sujeito, sua pele, seu formato físico, sua imagem, seu cheiro e sua

textura, para além da proteção que o mantém.

Além disso, a ação dos adultos vestirem o bebê logo que nascido denota

psicologicamente uma tentativa de iludir a criança para que ela ainda se sinta envolta na

barriga da mãe, conforme afirma o psicanalista John Carl Flügel (2008, p. 14): “Mal nasceu e

a criança é envolvida em roupas muito volumosas, como se nós quiséssemos lhe restituir

assim o abrigo confortável que ela acabou de perder ao deixar a matriz”. Num sentido mais

amplo, a pesquisadora e professora Ana Cláudia de Oliveira (2021) afirma:

Ao se confundir com a própria história humana, a roupa que veste o corpo está registrada em incontáveis manifestações, desde urnas funerárias, pinturas, estatuárias, desenhos até literatura, entre outras modalidades, atravessando os séculos, o que a torna um dos artefatos mais característicos da humanidade. Em suas figuratividades e plasticidades, animada pelo movimento ritmado em complexo imbricamento, a roupa carrega, na interação com o corpo e nas mais diversas sociedades, a própria história das pessoas no mundo pelos saberes e, mais ainda, pelos sentidos que põe em circulação (OLIVEIRA, 2021, p. 15, grifo nosso).

Assim, compreendemos que, para além do isolamento térmico, a indumentária é responsável

pela significação, através da semiótica, do ser humano como sujeito social.

Mesmo em algumas culturas indígenas, cuja tradição, às vezes, liga-se à nudez,

portanto, sem a peça body para o bebê que acaba de nascer, há a pintura e/ou assessórios

como adornos que significam socialmente cada indivíduo em suas comunidades, ou seja,

como afirma a pesquisadora Poliene Soares dos Santos Bicalho (2018),

17

A pintura corporal e a plumária, desde os tempos do Brasil Colônia até os dias atuais, representam uma segunda pele, a chamada pele social indígena, pois, ao vestirem os corpos com as tintas e penas, uma série de significados e sentidos imprescindíveis estão imbricados, atrelados às explicações de mundo e às continuidades mitológicas e identitárias do grupo étnico que as comportam (BICALHO, 2018, p. 90, grifo da autora).

Dessa forma, mesmo que haja enormes diferenças entre culturas quanto às suas formas

de expressão e motivações ligadas à indumentária, “(...) em todas as sociedades o corpo é

“vestido”, pois mesmo que as roupas sejam dispensadas, sempre há alguma camada de

indumentária (...) sobre a pele, seja através de tatuagens, pinturas corporais ou adornos”

(BONADIO apud BICALHO, 2018, p. 90).

Sabendo-se, portanto, que os estudos sobre a indumentária são tão múltiplos quanto os

diversos assuntos que permeiam a antropologia e a sociologia, já que cada comunidade pode

trazer aspectos bastante particulares acerca do corpo e do vestuário, e como toda pesquisa

exige um recorte, esclarecemos que o nosso foco de análise é a indumentária masculina

encenada na obra Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, publicada em 1956, na

qual

Uma pessoa idosa, recolhida em suas terras, narra os acontecimentos marcantes de sua juventude, vivida nas aventuras dos bandos armados que teriam agido no interior brasileiro — Minas Gerais, sul da Bahia, oeste de Goiás e Tocantins atual —, nos primeiros tempos da República, últimos anos dos séculos XIX e início do XX (UTÉZA, 2016, p. 23).

Logo, a indumentária que necessitamos compreender é, sobretudo, a entrelaçada à sociedade

brasileira, entre o final do século XIX e início do XX, de cultura cristã e rural, do sertão

— tempo e espaço nos quais se desenrola a narrativa de Riobaldo, o protagonista-narrador.

Para além da localização geográfica do chamado sertão, que Francis Utéza (2016, p.

23) recorta como “Minas Gerais, sul da Bahia, oeste de Goiás e Tocantins atual” ao se referir

ao espaço da narrativa rosiana, Walnice Nogueira Galvão (1972) descreve:

É o núcleo central do país. Sua continuidade é dada mais pela forma econômica predominante, que é a pecuária extensiva, do que pelas características físicas, como o tipo de solo, clima e vegetação. Embora uma das aparências do sertão possa ser radicalmente diferente de outra não muito distante — a caatinga seca ao lado de um luxuriante barranco de rio, o grande sertão rendilhado de suas veredas —, o conjunto delas forma o sertão, que não é uniforme, antes bastante diversificado. (...) É a presença do gado que unifica o sertão. Na caatinga árida e pedregosa como nos campos, nos cerrados, nas virentes veredas; por entre as pequenas roças de milho, feijão, arroz ou cana, como por entre as ramas de melancia ou jerimum; junto às culturas de vazante como às plantações de algodão e amendoim; — lá está o gado, nas planícies como nas serras, no descampado como na mata. As reses pintalgam qualquer tom de paisagem sertaneja, desde a sépia da caatinga no tempo

18

das secas até o verde vivo das roças novas no tempo das águas (GALVÃO, 1972, p. 25-27, grifo nosso).

Portanto, a indumentária foco de nossa análise é a que permeia a narrativa de Grande Sertão:

Veredas, que cobre o corpo da personagem brasileira sertaneja, combinando ou destoando

com a paisagem, reforçando-se que por se tratar de uma obra ficcional, e não documental,

abre-se espaço para elementos imaginários, além do descritivo com função de

verossimilhança.

Todavia, servindo a realidade como base para a criação literária, valemo-nos da

antropóloga Patricia Rieff Anawalt (2011, p. 8) para salientar que “já que a história do mundo

se caracteriza por um constante processo de migração e troca, não é surpresa que seja possível

rastrear influências entre diversas culturas”, justamente como desconfia o próprio Riobaldo:

“Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a

esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado...”

(ROSA, 2015, p. 187).

Dessa forma, realidade e imaginação se misturam em nosso principal material de

análise, fazendo-se o recorte do tempo — final do século XIX e início do XX — e do espaço

— sertão brasileiro como “Minas Gerais, sul da Bahia, oeste de Goiás e Tocantins atual”

(UTÉZA, 2016, p. 23), incluindo-se ainda o interior de outros estados do Nordeste por onde

jagunços/cangaceiros circularam, como Pernambuco, Alagoas, Ceará e Sergipe — como um

ponto fixo do qual poderemos observar o que se aproxima e o que se afasta da realidade

geográfica e histórica dessa parte do Brasil, permitindo-nos, assim, despir os véus com os

quais a indumentária encobre a narrativa.

Ao utilizar diversas fontes, tanto nacionais quanto internacionais, será possível

perceber que a indumentária pode costurar em si uma diversidade de culturas num mundo de

tantas migrações, refletida por consequência na cultura brasileira sertaneja. E convém, ainda,

ressaltar o fato de que a maior parte das personagens de Grande Sertão: Veredas é composta

por jagunços, o que pode misturar ainda mais as significações entrelaçadas ao vestuário, já

que “O homem do sertão sempre impôs dificuldades à consciência urbana e civilizada que

sobre ele se debruça, a fim de estudá-lo” (GALVÃO, 1972, p. 18).

Mas o que é indumentária? — pergunta necessária antes de qualquer outro recorte,

afinal trabalhamos aqui com a escrita de João Guimarães Rosa, autor declaradamente

apaixonado pela língua, linguagem, idiomas, etimologia, as possibilidades de significados que

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as palavras podem ter, como declarou de forma plural a Günter Lorenz (1973), numa das

conversas-não-entrevistas2 que deu na vida:

A língua e eu somos um casal de amantes que juntos procriam apaixonadamente, mas a quem até hoje foi negada a bênção eclesiástica e científica. Entretanto, como sou sertanejo, a falta de tais formalidades não me preocupa. Minha amante é mais importante para mim (LORENZ apud MARTINS, 2020, p. x). (...) amo a língua, realmente a amo como se ama uma pessoa. Isto é importante; pois sem esse amor pessoal, por assim dizer, não funciona. Aprendi algumas línguas estrangeiras apenas para enriquecer a minha própria e porque há demasiadas coisas intraduzíveis, pensadas em sonhos, intuitivas, cujo verdadeiro significado só pode ser encontrado no som original (LORENZ, 1973). Hoje, um dicionário é ao mesmo tempo a melhor antologia lírica. Cada palavra é, segundo sua essência, um poema. Pense só em sua gênese. No dia em que completar cem anos, publicarei um livro, meu romance mais importante: um dicionário. Talvez um pouco antes. E este fará parte de minha autobiografia (LORENZ apud MARTINS, 2020, p. x).

Conforme podemos ver, Rosa não só estudava as palavras para sua escrita, mas se

considerava íntimo delas — seu amante. Não à toa, portanto, traz em sua narrativa diversos

conceitos do que seria o verbete sertão, numa tentativa de significar e ressignificar o termo

para além da geografia, muitas vezes poeticamente: “Sertão. O senhor sabe: sertão é onde

manda quem é forte, com as astúcias” (ROSA, 2015, p. 28); “Sertão. Sabe o senhor: sertão é

onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar” (ROSA, 2015, p.

33); “O sertão é do tamanho do mundo” (ROSA, 2015, p. 71); “Sertão é isto, o senhor sabe:

tudo incerto, tudo certo” (ROSA, 2015, p. 136); “Sertão é isto: o senhor empurra para trás,

mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera, digo

(ROSA, 2015, p. 238); “Sertão é o sozinho. Compadre meu Quelemém diz: que eu sou muito

do sertão? Sertão: é dentro da gente” (ROSA, 2015, p. 256).

Além disso, o autor era adepto a inventar palavras, resultando em neologismos

diversos, como:

Coraçãomente. Só o um-e-outra, um em-si-juntos, o viver em ponto sem parar, coraçãomente: pensamento, pensamor (PE [Primeiras Estórias] — IXI, 156/142). / ND [não dicionarizado]. Com todo o coração, em estreita fusão de sentimento. // O adv. [advérbio] cordialmente, já gasto, até burocratizado, não poderia satisfazer ao tom lírico desejado pelo A [autor]. Criou então essa forma insólita em que o

2 Rosa não gostava de entrevistas e declarou isso em diversas “conversas”, como a com seu interlocutor Lorenz, em 1965: “(...) peço-lhe que não use essa horrível expressão ‘entrevista’. Eu certamente não teria aceito seu convite se esperasse uma entrevista. As entrevistas são trocas de palavras em que um formula ao outro perguntas cujas respostas já conhece de antemão. Vim, como combinamos, porque desejávamos conversar. Nossa conversa, e isto é o importante, desejamos fazê-la em conjunto” (LORENZ, 1973).

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substantivo radical é preservado em sua inteireza (MARTINS, 2020, p. 134, grifos da autora). Deamar. Deamar, deamo... relembro Diadorim (GSV [Grande Sertão: Veredas], 34/37); E Nhorinhá eu deamei no passado, com um retardo custoso (GSV [Grande Sertão: Veredas], 109/131). / ND [não dicionarizado]. Amar. // O pref. [prefixo] de- não acrescenta nenhuma noção, é enfatizante e constitui, no caso, uma inovação (MARTINS, 2020, p. 149, grifos da autora). Entreamor. Assim são lembrados em par os dois — entreamor — Drizilda e o Moço, paixão para toda a vida (T [Tutaméia] — III, 20/25). / ND [não dicionarizado]. Amor recíproco, correspondido. // Neologismo que intensifica a afetividade do subst. [substantivo] amor pelo acréscimo da ideia de reciprocidade (MARTINS, 2020, p. 190, grifos da autora).

A exemplo do mestre, cuja alta qualidade de criação literária compõe nossa valia, faz-

se fundamental investigar a palavra indumentária, tanto sua origem etimológica quanto seus

possíveis significados.

Temos, então, que o verbete presente no Grande Dicionário Houaiss da Língua

Portuguesa delimita os significados acerca de indumentária como:

1 arte relacionada com o vestuário 2 história do vestuário ou de hábitos relacionados com o traje em determinada época, local, cultura etc. 3 conjunto de vestimentas us. em determinada época ou por determinado povo, classe social, profissão etc. 4 o que uma pessoa veste; roupa, indumento, induto, vestimenta (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1608).

Já no viés etimológico, sabe-se que indumentária deriva do termo em latim

“indumentum”, que quer dizer “vestuário, revestimento” (CUNHA, A., 2010, p. 356), ou

ainda, “indumento + -ária” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1608), e que indumento traz,

dentre seus significados, “o que encobre, disfarça; envoltório, induto, indúvia, revestimento”

(HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1608), tendo sua origem etimológica descrita como

“vestidura, traje, máscara, véu, envoltório, manto, cobertura” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p.

1608), logo, pensamos em tudo o que encobre, que impede a visão de ver o corpo através do

que o cobre, como um véu, um manto, uma máscara, uma pintura, conforme já citado, ou

mesmo uma neblina, como quis Rosa que Diadorim fosse para Riobaldo: “Digo. Em

Diadorim, penso também — mas Diadorim é minha neblina...” (ROSA, 2015, p. 32).

Dessa forma, poderia ser o Grande Sertão: Veredas um romance cujo corpo faz-se em

narrativa de uma história de amor trajado e, por isso, encoberto pela guerra? Seria essa

neblina, roupa líquida da natureza, no meio árido do sertão, a máscara que mantém o mistério

sobre o corpo vestido até o fim de Diadorim, homem, macho, aos olhos de Riobaldo? Seria a

obra uma narrativa que vai soltando seus véus, um a um, como em uma dança cuja plateia

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leitora segue ansiosa pelo desvendamento do corpo/enredo? Seria, então, a indumentária uma

das principais ferramentas na construção literária mais consagrada de João Guimarães Rosa?

Antes de nos aprofundarmos nas linhas tecidas por Rosa, delongaremos na

investigação sobre a indumentária, cuja percepção de seu significado, através dos dicionários,

leva-nos a saber que desde sua origem até os dias atuais está relacionada a vestuário,

revestimento, roupa, indumento, ou seja, é tudo aquilo que alguém veste ou no qual é vestido,

todo artifício utilizado para encobrir parte ou todo o corpo, também se considerando o tempo

e o espaço, além das motivações ligadas a três motivos principais: proteção, pudor e

decoração/enfeite. Sobre isso, John Flügel (2008) afirma:

Os antropólogos e os historiadores nos dizem que as roupas têm três funções principais, que correspondem às necessidades da decoração, da proteção e do pudor. Os psicólogos que abordam os problemas do vestuário (e até o momento existem poucos que se deram ao trabalho de se dedicar a estas questões) advertiram inicialmente que de suas três funções, duas — a decoração e o pudor — são de natureza puramente psicológica; e que a terceira — a proteção — mesmo parecendo à primeira vista um assunto de fisiologia, corresponde, ela também, a necessidades não somente do corpo, mas também da alma. Notaram, em seguida, que há aí uma relação ambivalente entre as duas funções puramente psíquicas; o pudor e a decoração têm suas origens nos instintos opostos e nos conduzem a ações contrárias (FLÜGEL, 2008, p. 13).

Para entender melhor essas três motivações que costuram o ser humano à

indumentária, é necessário dissertar, brevemente, sobre a história do vestuário e seu aspecto

sociológico, esmiuçando-se tanto a necessidade de proteção para a sobrevivência da espécie

quanto as significações psicológicas entrelaçadas ao costume de se vestir por pudor ou

decoração/enfeite.

Flügel (2008) afirma que, de acordo com a cronologia da história da espécie Homo

sapiens, a primeira motivação identificada através de estudos arqueológicos e antropológicos

foi a decoração, já que nossos ancestrais evoluíram a partir das terras quentes do território

africano, assim não havia a necessidade fisiológica de proteção ao frio. A partir dessa

primeira aquisição cultural de se ornamentar, surgiu o pudor, como consequência da

comparação entre o que está ou não vestido, adornado, envolto em indumentária. E só por

fim, milhares de anos após, inerente às migrações humanas para territórios congelados ou em

períodos de glaciação é que nossa espécie desenvolveu vestimentas com o intuito de proteção

ao clima frio.

Todavia, a cultura modificou-se através do tempo e das práticas, observando-se hoje

uma ordem de motivação para a utilização de indumentária diversa da original de nossa

espécie. Assim, ao nascer, recebemos proteção; ainda na infância, perto dos 6 ou 7 anos de

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idade, nos é ensinado o pudor; e, logo no início da adolescência, priorizamos a decoração

corporal (FLÜGEL, 2008).

Portanto, com a intenção de compreender um pouco mais acerca das motivações sobre

a cultura da indumentária humana, buscando, ainda, recortar os aspectos sobre o vestuário

sertanejo brasileiro do final do século XIX e início do XX, discorreremos nos três

subcapítulos, a seguir, sobre a proteção, o pudor e a decoração/enfeite, respectivamente, para

posteriormente alcançarmos sua significação ficcionalizada em Grande Sertão: Veredas, de

João Guimarães Rosa.

2.1 Ser cerzidor: costurar para (sobre)viver

Mas, aí, eu fiquei inteiriço. Com a dureza de querer, que espremi de minha sustância vexada, fui sendo outro — eu mesmo senti: eu Riobaldo, jagunço, homem de matar e morrer com a minha valentia. Riobaldo, homem, eu, sem pai, sem mãe, sem apego nenhum, sem pertencências. Pesei o pé no chão, acheguei meus dentes. Eu estava fechado, fechado na ideia, fechado no couro (ROSA, 2015, p. 172).

A história do ser humano moderno, ou Homo sapiens, se mistura com a história da

indumentária, com pesquisas antropológicas e arqueológicas demonstrando que o vestuário

não só o acompanha há milhares de anos, como é o responsável por sua sobrevivência, por

exemplo, em locais cujo clima lhe seja naturalmente prejudicial (ANAWALT, 2011, p. 80).

Sabe-se, então, que nossa espécie habita o planeta há pelo menos 100 mil anos a.C., evoluindo

na África e migrando para o que hoje é o Oriente Médio, a Europa e a Ásia.

Alguns dos primeiros registros de indumentária com função de proteção datam do

período Paleolítico Superior, quando o ser humano moderno migrou para a Europa e

enfrentou o final da última glaciação severa terrestre, assim,

Os períodos de glaciação tiveram profundo impacto na atividade humana. A solução para o problema de viver num ambiente extremamente frio foi criar roupas grossas que protegessem os membros, acompanhassem os contornos do corpo e cobrissem a cabeça. Esses trajes de pele animal eram provavelmente parecidos com os que os inuítes do Alasca ainda usavam no início do século XX (...). Tal analogia é reforçada por descobertas arqueológicas na Europa, como agulhas de chifre, pedra ou marfim, e também por indícios de roupas encontrados em sepulturas antigas (ANAWALT, 2011, p. 81, grifo nosso).

Logo, para suportar baixíssimas temperaturas extremas, desenvolveram-se técnicas de costura

de peles de animais, surgindo, assim, as peças de couro de vestuário que proporcionaram à

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nossa espécie a possibilidade de sobrevivência no ambiente inóspito congelado. Sobre essa

matéria-prima, Ana Cláudia Silva Farias et al. (2014) afirmam que

O couro possui atributos de versatilidade, durabilidade e história que servem de diferenciais para concepção de um produto. A prática de curtimento do couro é uma atividade que vem acompanhando a humanidade desde a pré-história. Conta Laver (2001), que as peles de animais eram usadas para se protegerem das condições climáticas e como diferenciação social pelas primeiras civilizações, sendo curtidas por eles pela mastigação e salivação no intuito de deixarem maleáveis. Na história, encontram-se registros de civilizações como o Egito antigo, China, Babilônios, Hebreus, Árabes, que desenvolviam processos de curtimento artesanais e fabricavam objetos de couro, como elmos, escudos, calçados e gibões (FARIAS et al., 2014, p. 63).

É curioso notar que, mesmo após milhares de anos, ainda hoje o ser humano utiliza o

vestuário como artefato para sua própria sobrevivência, devido a fatores como contato com

materiais tóxicos ou mesmo pelas intempéries climáticas. Nessa linha, Peter Stallybrass

(2008, p. 47) relatou, em seu artigo “O casaco de Marx”, que no gelado inverno de Londres,

de 1850, o filósofo Karl Marx afirma ironicamente em carta a seu amigo e parceiro Engels:

“Há uma semana cheguei ao agradável ponto no qual não posso sair por causa dos casacos

que tive que penhorar”. O pesquisador explica que, sem os casacos, Marx acabara limitado,

pois não conseguia enfrentar a fria estação inglesa devido à sua condição frágil de saúde —

que, em 1883, o levou a falecer por causa da bronquite e laringite, doenças bastante agravadas

pelo ar frio — e, além disso, era regra do Museu Britânico que qualquer frequentador

estivesse “vestido em condições em que pudesse ser visto” (STALLYBRASS, 2008, p. 48).

Assim, notamos que, para além da própria sobrevivência devido ao clima hostil, a

indumentária de Marx o limitava socialmente, devendo estar “apresentável” para frequentar a

biblioteca do Museu onde começaria a escrever aquela que seria sua mais famosa obra, O

Capital. Sobre isso, Stallybrass (2008) ressalta que:

O casaco de inverno de Marx estava destinado a entrar e a sair da loja de penhores durante todos os anos de 1850. E seu casaco determinava diretamente que trabalho ele podia fazer ou não. Se seu casaco estivesse na loja de penhores durante o inverno ele não podia ir ao Museu Britânico. Se não pudesse ir ao Museu Britânico, ele não podia realizar a pesquisa para O Capital. As roupas que Marx vestia determinavam assim o que ele escrevia (STALLYBRASS, 2008, p. 48).

Tendo em vista as condições severas climáticas e a sobrevivência, percebemos que a

indumentária, assim como nas eras glaciais ou em parte da biografia de Marx, está presente no

cotidiano humano com o sentido de proteção. Sendo assim, observamos, no contexto de nossa

análise sobre o sertanejo brasileiro, o enfrentamento, sobretudo, de altas temperaturas sob um

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sol escaldante e a árida paisagem espinhenta, como relata Euclides da Cunha (2016), em Os

sertões:

O vaqueiro, porém, criou-se em condições opostas, em uma intermitência, raro perturbada, de horas felizes e horas cruéis, de abastança e misérias — tendo sobre a cabeça, como ameaça perene, o Sol, arrastando de envolta no volver das estações, períodos sucessivos de devastações e desgraças. (...) O seu aspecto recorda, vagamente, à primeira vista, o de um guerreiro antigo exausto de refrega. As vestes são uma armadura. Envolto no gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta; apertado no colete também de couro; calçando as perneiras, de couro curtido ainda, muito justas, cozidas às pernas e subindo até as virilhas, articuladas em joelheiras de sola; e resguardados os pés e as mãos pelas luvas e guarda-pés de pele de veado — é como a forma grosseira de um campeador medieval desgarrado em nosso tempo. Esta armadura, porém, de um vermelho pardo, como se fosse de bronze flexível, não tem cintilações, não rebrilha ferida pelo Sol. É fosca e poenta. Envolve ao combatente de uma batalha sem vitórias... (...) Este equipamento do homem e do cavalo talha-se à feição do meio. Vestidos doutro modo não romperiam, incólumes, as caatingas e os pedregais cortantes (CUNHA, E., 2016, p. 118-119, grifos do autor).

Com isso, percebemos, através do autor cuja obra inspirou, segundo Willi Bolle (2004, p. 26-

27), João Guimarães Rosa a escrever Grande Sertão: Veredas, que o sertanejo se vale de

artifícios ancestrais, com milhares de anos que o separam da origem da invenção da

vestimenta de couro como proteção ao clima, carregando consigo uma cultura milenar.

Além disso, afirmar-se pela indumentária como sujeito coletivo, do grupo social, no

âmbito dos jagunços rosianos, por exemplo, é também tática de sobrevivência, sendo o tipo de

traje de gibão, conforme citado na epígrafe deste capítulo, um símbolo de reconhecimento, de

pertencimento ao bando por seus membros. Uniforme tal qual o usado por soldados,

possibilitando-se o reconhecimento alheio como aliado ou inimigo já à primeira vista. Diane

Crane (2006) explica que

As roupas, como artefatos, “criam” comportamentos por sua capacidade de impor identidades sociais e permitir que as pessoas afirmem identidades sociais latentes. (...) Por séculos têm-se usado uniformes (militares, policiais ou religiosos) para impor identidades sociais aos indivíduos de forma mais ou menos voluntária (CRANE, 2006, p. 22).

Dessa forma, quando pensamos na travessia de Riobaldo em meio ao bando de jagunços em

seus múltiplos combates pelo sertão, notamos que o traje uniformizado além de lhe permitir a

sobrevivência ao clima quando seco na paisagem árida, o demarcava como inimigo ou aliado.

Além disso, tal traje de gibão, retomando o descrito por Euclides da Cunha (2016, p.

119), apresenta-se como uma “armadura, porém, de um vermelho pardo, como se fosse de

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bronze flexível, não tem cintilações, não rebrilha ferida pelo Sol. É fosca e poenta”. Logo,

percebemos que o homem se mistura ao meio, camufla-se na terra da paisagem vermelho-

alaranjada do sertão, assim como o fazem soldados do exército em roupas com estampa

camuflada nas tonalidades em verde e marrom quando em território de densas florestas.

Porém, ao contrário da paisagem do sertão que em suas diversas veredas muda,

passando da “sépia da caatinga no tempo das secas até o verde vivo das roças novas no tempo

das águas” (GALVÃO, 1972, p. 27), o jagunço permanece árido, seco em seu gibão de couro,

poento, fosco como a terra, afinal assim também se tinha uma tática de sobrevivência, já que

“Em jagunço com jagunço, o poder seco da pessoa é que vale...” (ROSA, 2015, p. 77),

mantendo-se na travessia “fechado na ideia, fechado no couro” (ROSA, 2015, p. 172). Mas,

quando em guerra, o jagunço rosiano também se vale de táticas de camuflagem, com adereços

da própria natureza, confundindo o reconhecimento de inimigos:

O inimigo nunca se via, nem bem o malmal, na fumacinha expelida, de cada uma pólvora. Arte, artimanha: que agora eles decerto andavam disfarçados de mbaiá — o senhor sabe — isto é, revestidos com moitas verdes e folhagens. Adequado que, embaiados assim, sempre escapavam muito de nosso ver e mirar (ROSA, 2015, p. 292, grifo nosso).

As técnicas para enganar os inimigos, utilizadas pelos jagunços, para além das

representadas na literatura rosiana sobre a camuflagem, também podem ser encontradas na

história do mais famoso jagunço/cangaceiro brasileiro, o “Capitão Virgulino Ferreira da Silva,

vulgo Capitão Lampião”, conforme seu cartão de visitas anunciava (FRÓIS, 2021), afinal,

dentre as muitas excentricidades da indumentária de Lampião — que costumava ser,

paradoxalmente, um fugitivo que gostava de chamar a atenção, orgulhando-se de suas vestes

bordadas e coloridas, chamativas no meio da árida paisagem sertaneja —, havia o costume de

encomendar com artesãos seleiros calçados de couro, no estilo alpercatas, com uma função

estratégica: “O modelo se diferenciava dos outros por um detalhe importante: o solado

retangular, usado pelo cangaceiro para confundir a polícia — que diante das pegadas com

todos os lados iguais, não saberia se andarilho ia ou voltava” (FRÓIS, 2021).

A referência às vestimentas dos cangaceiros, nesta análise sobre jagunços rosianos,

faz-se válida por duas afirmações feitas por Maria Zaíra Turchi (2006), sendo a primeira delas

a constatação de que

O cangaceiro, comum no Nordeste brasileiro, é uma espécie de jagunço, que se caracteriza pela errância, fazendo parte de bandos itinerantes liderados por um chefe, sendo o mais famoso deles Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. A semelhança

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entre jagunços e cangaceiros manifesta-se na organização interna e nas regras de convivência dentro do bando, nas práticas de confisco e saque, nas estratégias de guerra, no tratamento aos inimigos, nos códigos de honra (TURCHI, 2006, p. 123, grifo nosso).

E a segunda inerente à própria escrita de Rosa, sobre a qual destaca:

(...) certamente o relato de Optato Gueiros, comandante das forças que mataram Lampião e liquidaram com o cangaço no Nordeste, pelas anotações marginais no exemplar do Acervo João Guimarães Rosa, sugeriu ao escritor mineiro meios de construir as ações dos jagunços em Grande sertão: veredas (TURCHI, 2006, p. 123).

Portanto, jagunços e cangaceiros se aproximavam pelo comportamento, bem como por sua

indumentária, tendo a mesma matéria-prima — o couro — e usos com motivação de proteção

bastante parecidos. Seria possível pensar que até mesmo pelos figurinos sociais semelhantes,

cangaceiros e jagunços acabassem significados como sinônimos. Além disso, é possível

considerar que o bando de Lampião serviu de inspiração para a escrita de Grande Sertão:

Veredas, inclusive pela data em que viveu o famoso cangaceiro cuja trajetória se deu na

mesma época em que os acontecimentos na travessia do jagunço Riobaldo são narrados, ou

seja, no início do século XX.

As vestimentas de couro, como podemos notar até aqui, envolvem o corpo humano

desde os primórdios para, sobretudo, o proteger. Mas, além dessa matéria-prima, outro

aspecto sobre indumentária e proteção é fundamental para compreender as encenações das

peças na obra de João Guimarães Rosa. Falemos, então, do valor “metafísico-religioso” da

indumentária, compreendendo a importância que o autor dava a simbologias que transcendem

o plano material do mundo. Sobre isso, Francis Utéza (2011), ao se orientar para a escrita de

sua obra JGR: Metafísica do Grande Sertão, traz o seguinte trecho de uma carta de Rosa

enviada a seu tradutor italiano:

Sou profundamente, essencialmente religioso, ainda que fora do rótulo estrito e das fileiras de qualquer confissão ou seita; antes, talvez como o Riobaldo do Grande Sertão: Veredas, pertença eu a todas. E especulativo demais. Daí todas as minhas, constantes, preocupações religiosas, metafísicas, embeberem os meus livros. Talvez meio-existencialista-cristão (alguns me classificam assim), meio neoplatônico (outros me carimbam disto) e sempre impregnado de hinduísmo (conforme terceiros). Os livros são como eu sou. (...) Ora você já notou, decerto, que, como eu, os meus livros, em essência, são “anti-intelectuais” — defendem o primado da intuição, da revelação, da inspiração, sobre o bruxulear presunçoso da inteligência reflexiva, da razão, a megera cartesiana. Quero ficar com o tao, com o vedas e os Upanixades, com os Evangelistas e São Paulo, com Platão, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff — com Cristo, principalmente. Por isto mesmo, como apreço de essência e acentuação, assim gostaria de considerá-los: a) cenário e realidade sertaneja: 1 ponto;

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b) enredo: 2 pontos; c) poesia: 3 pontos; d) valor metafísico-religioso: 4 pontos (BIZARRI; ROSA, 1981, p. 57-58 apud UTÉZA, 2011, p. 10).

É possível saber, então, que as escolhas vocabulares de Rosa para sua obra perpassam

a característica religiosa, costurada a crenças de que certos objetos têm o poder de proteção,

como esculturas de santos ou cordões chamados escapulários, como o que Riobaldo carrega

pendurado sobre o peito mesmo após acreditar ter feito o pacto com o Diabo:

Comigo só o escapulário ainda ficou. Aquele escapulário, dito, que conservava pétalas de flor, em pedaço de toalha de altar recosturadas, e que consagrava um pedido de benção à minha Nossa Senhora da Abadia. Que, mesmo, mais tarde, tornei a pendurar, num fio oleado e retrançado. Esse eu fora não botava, ah, agora podia desdeixar não; inda que ele me reprovasse, em hora e hora, tantos meus malfeitos, indas que assim requeimasse a pele de minhas carnes, que debaixo dele meu peito todo torcesse que nem pedaço quebrado de má cobra (ROSA, 2015, p. 360).

Diante desse trecho, é preciso saber que o escapulário é um tipo de amuleto, podendo

ser descrito como um cordão com dois pingentes, contendo a imagem de algum santo ou

santa, a quem o devoto pede proteção. Pendura-se no pescoço, deixando-se, geralmente, um

dos pingentes no centro do peito, e o outro, nas costas, de forma a estar protegido pela

santidade de tudo o que possa lhe ferir pela frente ou por trás.

Poderíamos pensar que a utilização desse tipo de indumentária, por sua marca cultural,

se configura pela motivação da proteção — metafísica, espiritual, religiosa —, bem como as

vestes de couro protegem fisicamente o ser humano do frio e da aridez do ambiente.

Essa preocupação metafísica também se entrelaça à indumentária cangaceira,

motivando os integrantes dos bandos a bordar amuletos em suas vestes no formato de estrelas

de couro de quatro, seis ou oito pontas, além da flor-de-lis e a cruz de malta, todas carregando

simbologias de proteção a quem usasse a vestimenta, assim,

A roupa também era uma espécie de blindagem mítica. Funcionava como um amuleto da sorte e de defesa. Quando um cangaceiro chegava em uma casa, por exemplo, a vítima do assalto não o via com bons olhos, odiava este homem, por isso os amuletos serviam como neutralizadores do mau-olhado (MILAN, 2010).

Sobre isso, ressaltam Acom, Bosak e Moraes (2019):

O uso de roupas para a proteção está associado à manutenção da temperatura corporal: contra os excessos e intempéries do frio, vento e sol. Mas a proteção, de acordo com Flügel (1966), pode ser espiritual também, nas crenças relacionadas aos

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usos de amuletos ou patuás, que servem de adorno e identificam culturas (ACOM; BOSAK; MORAES, 2019, p. 192).

Logo, a indumentária envolve o corpo humano por sua motivação de proteção, sendo

indispensável à sobrevivência e servindo também de conforto mental, o que, como vimos até

aqui, se faz presente na narrativa de João Guimarães Rosa e na trama sertaneja de Grande

Sertão: Veredas. Mas, além desta motivação para se vestir, Rosa ilustra também a

necessidade humana em encenar um papel social, exigindo-se para isso seu figurino do

cotidiano. Resta-nos, por isso, compreendermos para além da proteção, percorrendo as

motivações sobre o pudor e a decoração.

2.2 Descomposto nu: cultura encobridora

Mas jamais ninguém ficasse nú-de-Deus ou indecente descomposto, no meio dos outros, isso não e não (ROSA, 2015, p. 142).

Só sentimos pudor pela nudez após aprendermos sobre a importância de se estar

encoberto, vestido. É a cultura que instaura a percepção sobre o aspecto social de um corpo

vestido em relação ao nu. Quando observamos as crianças que arrancam suas roupas ou vivem

a perder seus sapatos, notamos que somente com o passar dos anos é que elas vão aceitando a

indumentária. Nesse sentido, segundo John Carl Flügel (2008),

(...) os adultos impõem à criança hábitos que correspondem às suas próprias ideias de higiene, de moral e de estética, mais do que às necessidades e desejos da própria criança. Temos boas razões para acreditar que esta não aceita de bom grado, no início, todos os detalhes do regime que lhe é imposto. Não sabemos se a criança aprecia a matriz artificial que lhe fornecemos para seus primeiros dias. Mas sabemos bem que, um pouco mais tarde, ela sente a restrição que as roupas impõem, e que fica contente de se desembaraçar delas, regozijando-se da liberdade que possui no momento de dormir ou de tomar seu banho. Suas roupas lhe dão mais aborrecimento que prazer (FLÜGEL, 2008, p. 14).

Consequentemente, ainda segundo este autor, é a partir das percepções e experiências

infantis que um adulto vai, posteriormente, ter uma boa ou má relação com a indumentária.

Haverá aqueles que sempre se sentirão numa prisão enquanto vestidos e, por isso, se

apresentarão mal vestidos por não se interessarem pela função decorativa do vestuário,

concentrando-se, sobretudo, na necessidade de proteção ou nas exigências sociais quanto ao

pudor. Em contrapartida, haverá indivíduos cujo quesito fundamental é a decoração, o adorno,

o enfeite, mesmo que considerem as regras sobre pudor ou as exigências climáticas.

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Sobre o pudor, Acom, Bosak e Moraes (2019) afirmam:

(...) parece um dos atributos mais fracos se não o pensarmos diretamente relacionado com o relativismo cultural de cada meio. Em um primeiro olhar, pensamos na atual civilização ocidental, em que não é aceito andar nu, assim como apresentar-se com roupas de baixo. Por mero convencionalismo as pessoas usam trajes de banho em público, mesmo que cubra menos certas partes do corpo do que uma calcinha, por exemplo. Em muitas culturas a vergonha é mais associada ao fato de eu não possuir certo adereço ou elemento tradicional, do que ao ato de exibir o corpo nu, que pode ser vergonhoso ou agressivo no mundo ocidental. “Não há qualquer conexão essencial entre indumentária e pudor, uma vez que cada sociedade tem sua própria concepção de traje e comportamento recatado” (ROACH; EICHER apud BARNARD, 2003, p. 84) (ACOM; BOSAK; MORAES, 2019, p. 191-192).

Assim, ao se debruçarem sobre essa temática, as pesquisadoras percebem que “O uso da

indumentária não surge de nenhum senso inato de pudor, mas o pudor resulta de hábitos

costumeiros de indumentária e ornamentação do corpo e de suas partes” (ACOM; BOSAK;

MOARES, 2019, p. 192).

A partir disso, percebemos que tanto os estudos da psicologia quanto os da sociologia

da indumentária destacam que o pudor quanto ao corpo é um resultado cultural, advindo pela

comparação com o que está sob indumento e reforçado principalmente por crenças religiosas.

Nesse sentido, é importante considerarmos o viés religioso do pudor, já que Riobaldo,

nosso protagonista-narrador, traz em sua contação inúmeras referências que apontam para um

sujeito religioso, cujo tempo se ocupa entre Deus e o Diabo, além de inúmeros santos e suas

diversas rezas, como ilustrado no trecho:

Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar — o tempo todo. Muita gente não me aprova, acham que lei de Deus é privilégios, invariável. E eu! Bofe! Detesto! O que sou? — o que faço, que quero, muito curial. E em cara de todos faço, executado. Eu? — não tresmalho! Olhe: tem uma preta, Maria Leôncia, longe daqui não mora, as rezas dela afamam muita virtude de poder. Pois a ela pago, todo mês — encomenda de rezar por mim um terço, todo santo dia, e, nos domingos, um rosário. Vale, se vale. Minha mulher não vê mal nisso. E estou, já mandei recado para uma outra, do Vau-Vau, uma Izina Calanga, para vir aqui, ouvi de que reza também com grandes meremerências, vou efetuar com ela trato igual. Quero punhado dessas, me defendendo em Deus, reunidas de mim em volta... Chagas de Cristo! (ROSA, 2015, p. 25-26).

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Da mesma forma, como vimos na citação feita no subcapítulo anterior — acerca do

aspecto metafísico —, sabemos que o autor, João Guimarães Rosa, declara-se um sujeito

religioso:

Sou profundamente, essencialmente religioso, ainda que fora do rótulo estrito e das fileiras de qualquer confissão ou seita; antes, talvez como o Riobaldo do Grande Sertão: Veredas, pertença eu a todas. E especulativo demais. Daí todas as minhas, constantes, preocupações religiosas, metafísicas, embeberem os meus livros. (...) Quero ficar com o tao, com o vedas e os Upanixades, com os Evangelistas e São Paulo, com Platão, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff — com Cristo, principalmente (BIZARRI; ROSA, 1981, p. 57-58 apud UTÉZA, 2011, p. 10, grifo nosso).

Analisando, então, sob a ótica cristã católica, o Padre Márcio Leandro Fernandes

(2018, grifo nosso), da Comunidade Canção Nova, afirma que a Igreja católica ensina que “o

pudor preserva a intimidade da pessoa. Consiste na recusa de mostrar aquilo que deve ficar

escondido. Está ordenado à castidade, exprimindo sua delicadeza. Orienta os olhares e os

gestos em conformidade com a dignidade das pessoas e de sua união”. Assim, o líder

religioso explica ainda que, para além do modo de vestir, o pudor está relacionado com o

comportamento, é ligado à modéstia, pois “mantém o silêncio ou certa reserva quando se

entrevê o risco de uma curiosidade malsã. Torna-se discrição” (FERNANDES, 2018). Tendo

o foco de seu artigo relacionado ao corpo e à sexualidade, traz o pudor como algo esperado do

cristão, e que ele o tenha como um sentimento positivo, que o protege das “imoralidades

sexuais” (FERNANDES, 2018).

Já a Bíblia, obra fundadora das religiões cristãs, afirma, logo no início do livro

Gênesis, que Deus criou a primeira mulher, Eva, para ser companheira do primeiro homem,

Adão, deixando-os nus, assim, “Tanto o homem como a sua mulher estavam nus, mas não

sentiam vergonha” (BÍBLIA SAGRADA, 2005, Gênesis 2, 25). Porém, Eva e Adão comeram

a fruta, que Deus havia lhes proibido, da “(...) árvore que dá o conhecimento do bem e do

mal” (BÍBLIA SAGRADA, 2005, Gênesis 2, 17), e por isso “(...) os olhos dos dois se

abriram, e eles perceberam que estavam nus. Então costuraram umas folhas de figueira para

usar como tangas” (BÍBLIA SAGRADA, 2005, Gênesis 3, 7, grifo nosso). Deus, ao

descobrir que o homem e a mulher estavam vestidos e com medo por se perceberem nus, os

questionou e soube que haviam lhe desobedecido. Então, a divindade castigou ambos,

expulsando-os do Jardim do Éden, sob penalidades como o trabalho duro da lavoura ao

homem e as dores do parto à mulher, mas não sem antes demonstrar que também era alfaiate,

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assim “(...) o SENHOR Deus fez roupas de peles de animais para Adão e a sua mulher se

vestirem” (BÍBLIA SAGRADA, 2005, Gênesis 3, 21).

Dessa forma, seria possível pensarmos que o viés cristão sobre o pudor está

relacionado à dicotomia do bem e do mal, onde a nudez — natural do ser humano — é

sinônimo de mal, pois gera vergonha, enquanto vestir-se parece ser algo do bem, valorizado

não como proteção contra o clima ou toxinas, mas como um artifício que cubra o corpo,

sobretudo as genitálias, no caso do uso de tangas, o que aponta para a conclusão sobre a

“imoralidade sexual” supracitada.

Destacamos, ainda, o fato curioso de que a ordem do tipo de matéria-prima, vegetal e

animal, para as roupas humanas, nos acontecimentos em Gênesis, é a mesma das descobertas

dos estudos arqueológicos e antropológicos, ou seja, primeiro o ser humano se valeu de

plantas para se vestir, como as fibras de cânhamo, algodão e linho, e, posteriormente,

protegeu-se em peles de animais, devido aos períodos de glaciação enfrentados enquanto em

migração pela região onde hoje é a Europa.

Porém, ao contrário da visão bíblica, conforme veremos no próximo subcapítulo, a

primeira motivação para se vestir com matéria-prima vegetal não parece ter partido de frutas

proibidas, ou seja, do pudor, mas da vaidade, que impulsiona os seres humanos, desde os

primórdios de nossa existência, a decorar seus corpos, enfeitarem-se, adornarem-se para

significar no meio social.

2.3 “O senhor ponha enredo”: o figurino do cotidiano

Porque não narrei nada à-tôa: só apontação principal, ao que crer posso. Não esperdiço palavras. Macaco meu veste roupa. O senhor pense, o senhor ache. O senhor ponha enredo (ROSA, 2015, p. 256).

A indumentária encena o figurino do ser humano em todas as culturas. Em nossas

vestimentas, estão expostas informações importantes sobre quem somos e nossos costumes.

Para além da necessária motivação de proteção, alinhavamos às nossas vestes conteúdos que

podem bordar em nossos corpos linhas e cores da sociologia.

Sendo a indumentária importante à significação sociológica humana, é interessante

perceber que das três motivações — proteção, pudor e decoração/enfeite — a que parece ter

inaugurado a relação do corpo com a indumentária é a decoração, responsável por suprir a

necessidade do sujeito de significar-se, encenar socialmente, assim,

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(...) a indumentária situa-se ao lado da linguagem e da arte como prática significante e, como objeto, faz parte do conjunto de instrumentos por meio dos quais o homem interfere no ambiente natural, domínio da cultura material. A produção de sentido se dá através de sua estética, expressa pelas matérias, cores e formas empregadas na construção da indumentária e, ao mesmo tempo, pela ligação intelectual e afetiva que se estabelece entre o traje e seu usuário (VOLPI, 2014, p. 72, grifo nosso).

Percebemos, assim, que tal motivação está presente em todas as culturas mundiais,

conforme podemos ver no trabalho da antropóloga Patricia Rieff Anawalt (2011), em seu

livro A história mundial da roupa, no qual expõe o resultado de sua pesquisa que a levou a

percorrer todos os continentes, nos quais estudou e catalogou as roupas das sociedades

originárias de cada lugar, demonstrando que em todas há a preocupação de enfeitar-se,

ornamentar-se, significar-se diante do outro. Nesse sentido, John Carl Flügel (1966) afirma:

A primazia da proteção, como motivo para o uso de roupas, tem poucos defensores; estudantes de humanidades parecem relutantes em admitir que uma instituição tão importante como a roupa tenha tido uma origem tão puramente utilitária. (...) o exemplo de certos povos primitivos existentes, notadamente os habitantes da Terra do Fogo, mostra que a roupa não é essencial, mesmo num clima úmido e frio. Neste assunto, as conhecidas observações de Darwin acerca da neve derretendo nos corpos destes (...) parecem ter mostrado à alarmada geração do século XIX que seus confortáveis agasalhos, por mais cômodos e desejáveis que pudessem parecer, não eram inexoravelmente requeridos pelas necessidades da constituição humana. Ao pudor, além de parecer gozar da autoridade da tradição bíblica, foi concedido o primeiro lugar por uma ou duas autoridades no campo puramente antropológico. A grande maioria dos estudiosos tem, sem hesitação, considerado o enfeite como o motivo que conduziu, em primeiro lugar, à adoção de vestimentas (...) Os dados antropológicos demonstram principalmente o fato de que entre as raças mais primitivas existem povos sem roupa, mas não sem enfeites (FLÜGEL, 1966, p. 13 apud ACOM; BOSAK; MORAES, 2019, p. 191, grifo nosso).

Dessa forma, historicamente é possível notar que anterior às roupas de couro, adotadas

principalmente como item de sobrevivência — conforme vimos no primeiro subcapítulo —,

surgiram as peças tecidas a partir de matéria-prima vegetal, com fios de cânhamo, linho ou

algodão. Esses tecidos tinham, sobretudo na Mesopotâmia (6500 a.C.), a função sociológica

de demarcar o status diferenciador de fases da vida e de classes sociais, conforme descobertas

arqueológicas:

Aparentemente, as roupas de fibras vegetais mais antigas não tinham nenhuma relação com aquecimento ou pudor, e sim com a sinalização de um estágio da vida, especialmente o início da fertilidade e/ou casamento. Nem todas, entretanto, chamam a atenção para os órgãos reprodutores do corpo. A evidência mais antiga de roupa de fibra vegetal, cujos fragmentos foram encontrados na caverna Nahal Hermar, em Israel, data de 6500 a.C. e indica a confecção de um saco de linho não

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tecido, emalhado com agulha e contendo botões de pedra, possivelmente usado como chapéu cerimonial. De fato, um dos primeiros trajes feitos de fibra vegetal parece ter sido o chapéu (...). Normalmente, a função aparente era anunciar a idade ou o status da pessoa (ANAWALT, 2011, p. 18, grifo nosso).

Assim, temos que a indumentária e o corpo humano se ligam historicamente há

milhares de anos. E o uso de vestuário transcende a necessidade com sentido único de

sobrevivência, afinal, em pinturas e esculturas encontradas por diversos arqueólogos e

analisadas por antropólogos ao redor do mundo é possível notar toucas trançadas na cabeça de

corpos femininos nus em peças esculpidas por motivação erótica; múmias com roupas

estampadas em cores vivas para se destacar no grupo/tribo; joias variadas e exuberantes feitas

com metais e pedras preciosas para rainhas egípcias e faraós; cocares de penas coloridas dos

indígenas da América do Sul; humanos da era glacial enterrados com suas grossas roupas de

couro e uma série de pulseiras e colares de uma só cor indicando seu pertencimento à

determinada tribo/comunidade (ANAWALT, 2011), dentre vários outros exemplos.

Percebemos, portanto, que a indumentária era (e ainda é) um dos mais eficientes

demarcadores sociais, alinhando a cada objeto/peça significados culturais, o que explica o

costume dos indivíduos de adornarem seus corpos em praticamente todas as sociedades, seja

com um cocár, um colar, um chapéu ou desenvolvendo para suas roupas tecidos estampados

com símbolos representativos de famílias, por exemplo.

O pesquisador Frédéric Godart (2010) cita:

Para Simmel et al. (1998), o “adorno” permite aos indivíduos exibir-se mutuamente e, portanto, ligar-se por meio de considerações estéticas. Ele é a parte “artificial” da aparência: trata-se de uma manipulação dos sinais relativos aos vestuários ou aos cosméticos, que visam veicular uma determinada impressão (GODART, 2010, p. 35).

Nesse sentido, o filósofo Roland Barthes (2009) observa:

Quanto ao corpo humano, Hegel já sugerira que ele mantém uma relação de significação com o vestuário: como sensível puro, o corpo não pode significar; o vestuário propicia a passagem do sensível ao sentido; digamos que ele é o significado por excelência (BARTHES, 2009, p. 382, grifo nosso).

O que é possível perceber, inerente aos estudos das Ciências Sociais e Humanas, é que

o ser humano se tece trançado à indumentária para viver, seja por sobrevivência, por status,

para reprodução, sedução, para ser singular ou mostrar pertencimento a um grupo, para

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demarcar oposição entre grupos (como fazem os soldados uniformizados em guerras, por

exemplo).

O corpo necessita do indumento para significar em relação à sua cultura ou mesmo

pela singularidade no grupo, para ser lido pelos interlocutores como uma primeira mensagem

(ou até mesmo a única transmitida, como no caso dos fósseis humanos encontrados), logo,

“Ao escolher as roupas e os acessórios, os indivíduos reafirmam constantemente sua inclusão

ou sua não inclusão em certos grupos sociais, culturais, religiosos, políticos ou ainda

profissionais” (GODART, 2010, p. 36).

Inerente a tal constatação, percebemos que a roupa de couro, citada no subcapítulo

anterior, do sertanejo/jagunço brasileiro, vai além da sobrevivência na travessia pela paisagem

por vezes árida: a indumentária inteira de couro do humano jagunço o coletiviza e até mesmo

o animaliza, como rebanho, no espaço cuja cultura da criação de gado é marcante.

Assim, vê-se em Grande Sertão: Veredas, para além da função de proteção da roupa, a

desumanização do sujeito, o bicho com “seu couro” exposto ao sol a percorrer o sertão, uma

espécie de boi-humano, como um minotauro, no romance em que na

(...) percepção do narrador-personagem, bois e boiadas lhe servem para a construção de imagens que modelem seus chefes e companheiros, bem como as relações entre eles. Os jagunços são vistos como rebanho e só os chefes merecem imagens individuais. (...) para os jagunços, a boiada; para os chefes, bois individuais; só para os dois superchefes o touro: para Joca Ramiro, “grande homem príncipe (GSV, 18), “imperador em três alturas” (GSV, 170), e para Medeiro Vaz, “o rei dos gerais” (GSV, 76,62, 285), ou seja, para o chefe maior da banda de lá do Rio e para o chefe maior da banda de cá do Rio (GALVÃO, 1972, p. 28-29).

Dessa forma, a indumentária dos jagunços transcende a significação do homem em seu

ambiente e tempo, e, apesar de descrita de forma bastante fragmentada, como tudo no

romance de Rosa, nos convida, pela leitura, a assistir à encenação da sociedade pecuarista

brasileira, onde os seres uniformizados não só se vestem de boi (com seu couro) como se

transformam em rebanho, atravessam o sertão juntos, resistindo sob a grossa pele, enquanto

seu sangue e carne servem à terra:

Olhe: jagunço se rege por um modo encoberto, muito custoso de eu poder explicar ao senhor. Assim — sendo uma sabedoria sutil, mas mesmo sem juízo nenhum falável; o quando no meio deles se trança um ajuste calado e certo, com semêlho, mal comparando, com o governo de bando de bichos — caititu, boi, boiada, exemplo (ROSA, 2015, p. 145).

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Notamos, então, que o aspecto uniformizador da indumentária jagunça se faz

importante ferramenta para a metaforização do humano em bicho, em boiada. Além disso, o

comportamento de bando, como rebanho, reforça a imagética quando imaginamos a cena com

os sujeitos juntos, vestidos iguais, atravessando as veredas do grande sertão.

Devido, justamente, a essa constatação sobre a estética sertaneja, foi que o já citado

Capitão Virgulino Lampião, o mais famoso jagunço/cangaceiro, designer de sapatos de solado

retangular para enganar seus inimigos, inovou radicalmente subvertendo o “uniforme” inteiro

de seu bando, conforme retrata a pesquisadora Camila Fróis (2021):

Além da capacidade de escapar com maestria dos homens da lei e apavorar seus inimigos, Virgulino ficou conhecido por muitos outros feitos. Um deles é o fato de ter criado um “dress code” para o seu bando que logo o tornaria um símbolo cultural de todo o sertão. Ao entrar para a história, o rei do cangaço eternizou seu apurado senso estético. (...) Lampião sabia que construir uma auto-imagem (sic) autêntica ajuda na comunicação com o outro e transmite confiança. Vestir-se bem, portanto, era essencial para triunfar. Mais do que cuidar do estilo, porém, era preciso divulgá-lo. Ainda distante da era das redes sociais, o líder contratava retratistas e posava com lenços de seda no pescoço, broches e caros anéis nas mãos, fosse ao lado de sua companheira Maria Bonita, com espingarda em punho, lendo a bíblia ou dançando xaxado. (...) Com a fama, seus coletes, broches, cartucheiras e embornais bordados viraram símbolos de distinção, colocando em questão — já no início do século passado — a ideia de um Nordeste rude e sem sofisticação. (...) os cangaceiros pós Lampião vestiam-se de forma colorida, cobertos por adornos de ouro e sabiam confeccionar toda a sorte de objetos e vestimentas sem que, por isso, se questionasse sua virilidade. “O ‘rei do cangaço’ costurava suas roupas e a de seus afilhados e bordava à máquina com perfeição, orgulhando-se da sua habilidade. No auge dos anos 30, seu bando possuía preocupações estéticas mais frequentes e profundas que as do homem urbano moderno”, afirma o autor [Frederico Pernambucano de Mello] (FRÓIS, 2021).

Virgulino era subversivo em sua forma de pensar-se cangaceiro. Através do minucioso

cuidado estético, entrou para a história brasileira deixando seu legado de resistência, mas

também sua primorosa indumentária, servindo de fonte de inspiração para inúmeros artistas,

dentre estilistas, figurinistas e escritores. O “rei do cangaço” exigia que todos os integrantes

de seu bando usassem a indumentária de acordo com os seus critérios estéticos exigentes,

conforme Camila Fróis (2019) afirmou. E essa não era uma tarefa simples já que

Andar no sertão nordestino com uma roupa que pesava cerca de 30 quilos pode parecer loucura, ainda mais em uma época em que 80% dos deslocamentos eram feitos a pé. Mas para os cangaceiros, que não se importavam com o desconforto, com cansaço ou mesmo com a morte, o importante era se vestir bem, com uma estética tão peculiar que poderia facilmente identificá-los. Tanto foi assim que as várias camadas de roupas e acessórios que compunham o figurino de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, não perdiam em nada no quesito peso às armaduras

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dos cavalheiros (sic) medievais ou às couraças dos samurais japoneses (MILAN, 2010, grifo nosso).

Logo, notamos que significar em seu meio era mais importante do que o conforto para

o “rei do cangaço”, por isso “Foi com Lampião que os cangaceiros passaram a usar roupas

mais requintadas, com bornais forrados de bordado a tal ponto que o tecido desaparecia

debaixo das linhas coloridas” (MILAN, 2010).

O vestuário, inerente à história de Lampião, realiza sociologicamente a significação do

sujeito em seu meio. Pautando-se pela semelhança ou pela diferença, os seres humanos, desde

os primórdios, carregam em seus corpos indicativos psicológicos, significantes semióticos

sobre si e sobre a sociedade na qual estão inseridos. Ao citarmos Lampião, buscamos dialogar

com as múltiplas estéticas que permeiam a história do sertão brasileiro, visando esmiuçar,

posteriormente, se a extravagância dos cangaceiros nordestinos se reflete na indumentária

rosiana, mesmo que essa à primeira vista carregue sua característica animalizadora e

camufladora do ser humano.

No capítulo 4, portanto, discorreremos sobre a indumentária das personagens de

Grande Sertão: Veredas. Antes, porém, interessa-nos percorrer alguns caminhos da pesquisa

sobre a indumentária na literatura brasileira, analisados cientificamente, para nos embasar nas

travessias anteriores e observar exemplos do uso de indumentos como estratégia de escrita

literária de diversos autores, em variadas épocas e espaços.

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3 LITERATURA E INDUMENTÁRIA: TRAMAS TECIDAS

A guerra fina caprichada, bordada em bastidor (ROSA, 2015, p. 290).

A indumentária é o adorno do corpo e a literatura, o enfeite da palavra — dentre

outros aspectos. Duas formas estéticas de expressão da identidade do ser humano. Ambas são

construções da subjetividade do sujeito no mundo. Não por acaso, a indumentária e a

literatura estão costuradas à sociologia, psicologia, cultura, ao corpo e pensar humanos, à

linguagem e até entre si, em sua etimologia que aponta para a mesma origem de “texto” e

“têxtil”, sabendo-se que a tecelagem é mais antiga que a escrita na história da humanidade.

A própria superfície do tecido possui uma carga de significação inerente, já que o termo “intertexto” se refere ao entrelaçamento dos fios no ato de tecer. “Texto” e “têxtil” são palavras nascidas do mesmo radical e se referem a um fazer cultural que o ser humano exerce pela palavra e pelo fio. Expressões como “tecer comentário”, “costurar os sentidos de um texto” e “arrematar ideias” revelam a matriz simbólica comum da literatura e da tecelagem, além das possíveis associações entre trama e enredo, novelo e novela, o fio da meada, tanto no ato de escrever quanto no de bordar (ROTHBERG, 2012, p. 53, grifo nosso).

A literatura entrelaça diversos tipos de sociedades à ficção. A partir do trabalho

estético de autores, constitui sujeitos fragmentados que se realizam pela leitura. Já a

indumentária, cria narrativas diversas e diárias à interpretação semiótica sobre o sujeito

vestido, adornado. Mas e quando a indumentária é parte da trama literária? O que é possível

interpretar do adorno grafado, da encenação da ornamentação corporal pela palavra

esteticamente bordada?

Conforme vimos no capítulo anterior, as significações da indumentária para o ser

humano perpassam sempre motivações sociológicas e psicológicas que vão além da mera

sobrevivência. Segundo Anawalt (2011, p. 81), mesmo quando as roupas de couro dos fósseis

encontrados em locais onde houve períodos extremos climáticos de glaciação apontavam para

a utilização dessa indumentária com motivação de proteção, foi possível constatar que tais

indivíduos utilizavam uma grande quantidade de colares e pulseiras sinalizando o

pertencimento a um grupo, uma comunidade. Além disso, eles foram enterrados

completamente vestidos, o que os antropólogos consideraram ser uma sinalização de afeto e

exclusividade de suas roupas, já que cada peça era feita costurada de acordo com o contorno

de cada corpo, além de crenças ligadas à vida após a morte.

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Assim, a indumentária, para além de sua função protetiva, carrega consigo, há

milhares de anos, histórias. E foi justamente pelas peças encontradas em fósseis que muito da

trajetória humana se explicou ou sobre a qual se criaram possíveis narrativas. Dessa forma, a

indumentária exerce também o papel de memória material humana, narrativa semiótica lida

pelos mais diversos pesquisadores e, diariamente, por qualquer pessoa inserida em um meio

social.

Nesse sentido, o professor Peter Stallybrass (2008, p. 10-11), em sua pesquisa sobre

roupa e memória, ressalta que “A roupa tende pois a estar poderosamente associada com a

memória ou, para dizer de forma mais forte, a roupa é um tipo de memória”. Como exemplo,

o autor conta que os remendos feitos em casacos, no século XIX, eram chamados de memória,

porque sinalizavam o desgaste do tempo nas roupas, assim como o envelhecimento do corpo.

Esse fato recorda o que Anawalt (2011) relata em sua pesquisa ao perceber que só seria

possível tecer narrativas históricas sobre algumas sociedades a partir dos vestígios de tecidos

encontrados que indicavam o uso de chapéus ou saias, mas cujos corpos humanos já não se

encontravam nem mesmo fossilizados.

Assim, poderíamos chegar à mesma conclusão que Stallybrass (2008, p. 10-11) ao

afirmar que “Os corpos vêm e vão: as roupas que receberam esses corpos sobrevivem. (...) As

roupas recebem a marca humana”. Essa marca humana nas roupas possibilita criar narrativas

históricas e sociológicas, e mesmo fictícias, sobre a própria existência humana. Logo, a

indumentária, isolada da literatura, já carrega em si muitas vozes, entrelinhas permeadas de

memórias que nelas se tramam.

Sendo um significante tão potente, acaba por não ser raro encontrar vocábulos que

remetam à indumentária em tramas literárias. Parece ser, assim, uma importante ferramenta de

caracterização psicológica e sociológica de personagens que, além de cumprir um papel

inerente à estratégia de verossimilhança, pode ser responsável por sustentar todo o mistério de

um enredo, como no caso da obra Grande Sertão: Veredas e o vestuário masculino encobridor

do corpo feminino de Diadorim.

Compondo textos históricos, relatórios, publicações teóricas, a indumentária tende a

ser interpretada como verdade, como real, e serve como prova do acontecido, muitas vezes

conservada, no caso dos estudos arqueológicos, em museus ou laboratórios como uma

memória ancestral. Já em textos literários, os vocábulos que permeiam o universo da

indumentária buscam encenar a personagem como se ela fosse real ou dispõem objetos

afetivos à cultura humana, que podemos reconhecer e que nos permitem produzir sentidos

sobre detalhes importantes para se compreender a trama.

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Vale ressaltar que essa interpretação como se fosse realidade permeia os estudos sobre

a leitura literária, concluindo que a trama literária sempre nos convida para um jogo, o jogo

do texto, e nele assumimos uma posição ativa como leitor. Logo, é no leitor que o sentido do

texto se realiza. Mesmo que respeitemos os limites recortados pelo autor no seu trabalho

estético, nossa imaginação acaba atuando de forma totalmente única fazendo com que cada

pessoa tenha uma percepção particular do texto; mesmo que se chegue à mesma conclusão

sobre o geral do enredo, as minúcias podem ser infinitas justamente porque infinitas são as

percepções humanas de mundo. Nesse sentido, Wolfgang Iser (1979) afirma que:

Os autores jogam com os leitores e o texto é o campo do jogo. O próprio texto é resultado de um ato intencional pelo qual um autor se refere e intervém em um mundo existente, mas, conquanto o ato seja intencional, visa a algo que ainda não é acessível à consciência. Assim o texto é composto por um mundo que ainda há de ser identificado e que é esboçado de modo a incitar o leitor a imaginá-lo e, por fim, interpretá-lo. Essa dupla operação de imaginar e interpretar faz com que o leitor se empenhe na tarefa de visualizar as muitas formas possíveis do mundo identificável, de modo que, inevitavelmente, o mundo repetido no texto começa a sofrer modificações. Pois não importa que novas formas o leitor traz à vida: todas elas transgridem — e, daí, modificam — o mundo referencial contido no texto. Ora, como o texto é ficcional, automaticamente invoca a convenção de um contrato entre o autor e o leitor, indicador de que o mundo textual há de ser concebido, não como realidade, mas como se fosse realidade (ISER, 1979, p. 107, grifo do autor em itálico, grifo nosso em negrito).

Dessa forma, interpretar a indumentária das linhas literárias requer uma série de

contextos que se relacionam com a cultura do tempo e espaço do enredo, mas sempre

ampliando as possibilidades de cada vestuário à imaginação que faz cada peça única no como

se de cada leitor. Assim, mais exclusiva do que a alta costura é cada peça de indumento

literária, unicamente percebida por cada interlocutor no jogo do texto.

Uma meia puída, em um romance, pode significar, segundo os indícios da trama, a

condição financeira precária da personagem ou o apego a um objeto afetivo herdado, mas a

aparência dessa meia será sempre única em cada imaginação — quando não citada a cor, por

exemplo, cada leitor escolherá a que sua imaginação trouxer à tona. Já se a meia for descrita

como transparente, preta e fina, contornando toda a perna feminina, pode ilustrar a

sensualidade ou pode ser um incômodo para a personagem que a veste como uniforme todos

os dias no calor do Rio de Janeiro, mas se é composta de fio 20 ou 50 só o leitor poderá dizer.

Um par de meias, dobrado e guardado na gavetinha do quarto infantil e nunca usado,

possibilita a dimensão da angústia quanto à ausência da criança perdida ou a alegria na espera

por quem ainda não nasceu, mas se a meia é de listrinhas ou bolinhas muitas vezes fica a

cargo do leitor, que chega a imaginar até mesmo suas próprias meias de quando era criança.

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De toda forma, a indumentária não se inscreve gratuitamente nas linhas literárias:

pontua nas entrelinhas significados de mundo que o leitor realiza como se fosse realidade, mas

valendo-se das lacunas que podem vir a ser bordadas com sentidos além do instigado pelo

texto em si.

Assim, a indumentária imaginada a partir da palavra que a descreve oferece à leitura

literária a potencialidade de unir os conhecimentos sociológicos e históricos à trama como se

fosse realidade, construindo a interpretação pela verossimilhança, a partir do que é íntimo a

todos os seres humanos: o vestuário que acompanha diariamente cada sujeito.

Nesse sentindo, questiona o filósofo Roland Barthes (2009), ao analisar a descrição

nas legendas de fotos de revistas de vestuário de moda:

(...) o que ocorre no momento em que um objeto, real ou imaginário, é convertido em linguagem? Ou, para deixar ao circuito tradutor a ausência de vetor de que falamos: no momento em que ocorre o encontro de um objeto com uma linguagem? Se o vestuário de Moda parecer um objeto irrisório perante uma interrogação tão ampla, pense-se que essa mesma relação se estabelece entre o mundo e a literatura: não será ela a instituição que parece converter realidade em linguagem, que situa seu ser nessa conversão, tanto quanto nosso vestuário escrito? Aliás, a Moda escrita não será uma literatura? (BARTHES, 2009, p. 33, grifo do autor em itálico, grifo nosso em negrito).

Barthes (2009) questiona as significações da indumentária como linguagem escrita,

em sua obra Sistema da Moda, referindo-se aos objetos de vestuário descritos em revistas de

moda, cuja leitura geralmente se faz de maneira a buscar uma interpretação literal do que se

lê. O autor percebe que, enquanto a fotografia do indumento possibilitava uma apreensão mais

literal do que seria tal item de vestuário — como uma calça, um cinto, um detalhe de flor no

tecido —, a legenda descritiva permitia uma interpretação além, que ampliava as conclusões

sobre o que seria a peça, indo até mesmo além do disposto na imagem. Assim, enquanto

conjunto, fotografia e descrição/legenda ornavam um sentido literal da indumentária, porém,

quando analisadas separadamente, a legenda descritiva possibilitava um significado muito

mais subjetivo de cada item, dando a perceber assim uma estratégia similar à utilizada por

autores literários enquanto no uso da descrição de indumentária em suas obras, nas quais o

vestuário não é mero detalhe, mas demarcador social e encenador psicológico, e criador de

um vínculo mais próximo do leitor com o corpo das personagens.

Como observam Geanneti Salomon e Adriana Baggio (2020), a indumentária, como

um importante fenômeno cultural, influenciou escritoras e escritores em suas criações

literárias, assim,

41

Toda sua potência tem sido usada na caracterização de personagens, possibilitando às leitoras e aos leitores perceberem nela aspectos culturais, sociais, psicológicos e políticos e as diversas representações humanas no âmbito das sociedades (BAGGIO; SALOMON, 2020, p. 8).

Portanto, ao se valer do indumento como vocábulo, a literatura amplia seu potencial semiótico

de significação humana. Nesse sentido, ao recortar seus estudos sobre a indumentária, a partir

do termo moda3, Silvia Barbosa e Flávia Teixeira (2020, p. 16) citam: “(...) ‘como extensão

do corpo, a moda significa, num dado momento, o próprio sujeito’ (Castilho; Martins, 2005,

p. 109)”, então,

A literatura, nesse contexto, posiciona-se como uma relevante trama de significação social, cujos elementos vão além da historicidade do próprio corpo e da moda, de modo a fazer erguer um novo corpo juntamente com os seus inúmeros processos de subjetivação (BARBOSA; TEIXEIRA, 2020, p. 16-17, grifo nosso).

Percebemos, segundo o que afirma Salomon (2020), que poucas foram as pesquisas

acadêmicas a analisar as possibilidades desse “novo corpo”, resultado do diálogo entre

indumentária e literatura. A autora constatou que até o ano de 2020 foram identificados 23

trabalhos em instituições brasileiras cuja localização geográfica se concentra, sobretudo, no

Sudeste do país, excetuando-se somente quatro casos que são do Sul.

Dessas 23 pesquisas, apenas 17 dedicaram-se exclusivamente à indumentária na

literatura brasileira, as demais analisaram o diálogo entre as áreas em obras de outras

nacionalidades. E, desse reduzido número de investigações com corpus nacional, 9 trazem

estudos sobre a indumentária na obra de Machado de Assis, ou seja, mais da metade é

dedicada a apenas um escritor.

Percorreremos, então, algumas dessas pesquisas acerca da encenação da indumentária

na literatura brasileira com o propósito de observar suas significações geradas a partir da

leitura de tramas de diversos autores, destacando-se, contudo, Machado de Assis, já que sobre

sua obra é que se concentra o maior número de pesquisas. E, posteriormente, ilustraremos a

3 O conceito de moda contém em parte o de indumentária, porém é mais extenso, podendo abarcar a moda na arquitetura ou na automobilística, por exemplo. Quando se refere à indumentária, ou seja, a indumentária de moda, diz além do comportamento humano em relação ao vestuário, apontando para algo mais relacionado ao consumo de indumentos e sua constante renovação, enquanto os estudos de indumentária são mais antropológicos e percorrem a história das vestimentas junto a dos seres humanos, desde os primórdios de nossa espécie. Assim, utilizamos nesta pesquisa fontes como Anawalt (2011) e Peter Stallybrass (2008) como principais para falar sobre a história, psicologia e sociologia da indumentária, nos valendo também de outras, como Crane (2006), Godart (2010) e Anjos (2020), dentre outros, para falar da indumentária sob o viés da moda, mas valendo-nos apenas do aspecto sociológico e psicológico do vestir estudado também na moda, sem aprofundar em suas nuances comercias e sazonais atuais, por exemplo. Escolhemos o termo indumentária para esta pesquisa pois ele nos atende melhor, já que o jagunço parece atravessar os tempos resistindo também em sua indumentária, fechado no couro.

42

constância de termos do universo do vestuário que permeiam a literatura brasileira, a partir de

alguns exemplos, e que poderiam ser alvo de pesquisas além dessa que fazemos, para que seja

possível perceber como a indumentária é quase sempre indispensável à escrita literária para se

alcançar aspectos psicológicos e sociológicos das personagens.

3.1 Análises da indumentária literária brasileira “com toda leitura e suma doutoração”

Sou só um sertanejo, nessas altas ideias navego mal. Sou muito pobre coitado. Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração (ROSA, 2015, p. 24).

Levando-se em consideração que a trama acompanha o ser humano desde os

primórdios da espécie, tanto tecida em sua indumentária quanto em sua cognição e linguagem,

é surpreendente a rara dedicação científica para analisar os significados da indumentária

urdida nas linhas literárias, até então.

Trabalhos feitos anteriormente, com registros encontrados a partir de 1950, servem-

nos de inspiração, embasamento e comparação para a realização da análise da indumentária

masculina presente no enredo de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, obra

envolta a um instigante impedimento de um relacionamento sexual amoroso que é reforçado

devido ao vestuário da personagem Diadorim, no tempo e espaço cuja cultura não tolerava e

muito menos compreendia a diversidade de gênero e a multiplicidade dos desejos sexuais.

Buscamos, portanto, com este subcapítulo, expor nosso Estado da Arte4. Logo,

pretende-se uma ilustração nos valendo de análises científicas com a mesma temática —

investigar os significados da indumentária na literatura brasileira — que sejam indicativos dos

efeitos que essa estratégia de escrita pode causar na leitura literária e que corroboram para

que, posteriormente, nossa análise possa encontrar seus próprios resultados, aproximando ou

distanciando a narrativa de João Guimarães Rosa dos demais escritores brasileiros citados

aqui.

A pioneira na análise da indumentária na literatura brasileira foi Gilda de Mello e

Souza, em 1950, ao defender sua tese, resultado do Doutorado em Sociologia, da

Universidade de São Paulo. A partir dessa tese, a autora publicaria um artigo em seu livro A

ideia e o figurado, em 2005. Intitulado “Macedo, Alencar, Machado e as roupas”, o artigo nos

traz uma reflexão sobre os usos da indumentária como estratégia de escrita de três autores

4 “(...) expressão usada para definir estudos de portes diversos que pretendem expor trabalhos publicados em determinadas áreas do conhecimento e analisá-los, ou apenas apontá-los, promovendo uma revisão bibliográfica” (SALOMON, 2020, p. 163).

43

brasileiros, da segunda metade do século XIX, sendo eles Joaquim Manuel de Macedo, José

de Alencar e Machado de Assis.

Segundo a autora, os três escritores utilizam a indumentária com diferentes estratégias,

mas sempre com o intuito que perpassa alcançar a sociologia e a psicologia das personagens.

Vemos, então, que Macedo descreve minuciosamente cada detalhe da vestimenta feminina,

trazendo informações que vão desde a cor do laço que enfeita um vestido até o valor

demandado para se vestir bem de acordo com os costumes da época encenada na narrativa.

Dessa forma, o autor se preocupa em ser o mais verossímil possível, encenando através do

vestuário o tempo e o espaço social em que vivem suas personagens, assim “O feitio, o tecido,

os enfeites, as flores e fitas, os brincos e adereços são mencionados, não por pendor estético

do narrador, mas porque constituem sinais eficientes de classe ociosa” (SOUZA, 2005, p. 74).

Já sobre a obra de José de Alencar, Souza (2005) aponta que o romancista reduz o

detalhamento na descrição do indumento e concentra-se em outras formas de encenar pelo

vestuário, assim, em Lucíola (1862), por exemplo, “Alencar utiliza a oposição de vestimentas

para descrever simbolicamente a psicologia da protagonista” (SOUZA, 2005, p. 75) que ora

pode ser interpretada como alguém entregue à “redenção purificadora do amor”, através de

um vestido todo branco de renda, ora pode ser uma mulher entregue ao “júbilo satânico do

pecado”, composta em um erótico vestido escarlate e preto.

E, ao inaugurar a pesquisa sobre o até hoje mais trabalhado autor do diálogo entre

indumentária e literatura, Gilda de Mello e Souza (2005) analisa a obra de Machado de Assis

perpassando diversos textos, dentre os romances e contos de sua produção literária. Constata

que Machado diverge dos demais, pois se concentra mais na indumentária masculina para

falar do social e de sua cultura no tempo de seus enredos, ao passo que sobre o vestuário

feminino interessam-lhe mais as encenações em ambientes íntimos, fora da vista da

sociedade.

Portanto, a partir da indumentária masculina em tramas como as dos contos O espelho

(1882) e Capítulo dos chapéus (1883), Souza (2005) percebe que:

Cada criatura humana não conta com uma alma apenas, mas com duas: “Uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro” e constitui a alma exterior. As duas almas, igualmente necessárias, completam o homem; mas é a exterior que estabelece a relação do indivíduo com o mundo, os valores, a opinião e, de certo modo, institui a identidade (SOUZA, 2055, p. 79).

Percepção, essa, conivente com a afirmação do defunto narrador Brás Cubas, no romance

Memórias Póstumas de Brás Cuba (1881), ao falar da impressão que teve sobre as vestes de

44

seu amigo Quincas Borba: “Calo-me; digo somente que se o principal característico do

homem não são as feições, mas o vestuário” (ASSIS, 2019, p. 325).

Além disso, Souza (2005) analisa a diferença quanto ao vestuário feminino descrito,

constatando que para Machado de Assis “a tarefa que cabe à vestimenta das mulheres é

acelerar o impulso erótico, exacerbá-lo através do negaceio constante entre o empecilho da

roupa e o desvendamento da nudez” (SOUZA, 2005, p. 83). Dessa forma, ao contrário de

Joaquim Manuel de Macedo, “Machado jamais se limita à descrição da roupa, preferindo

deter-se no que ela sublinha, destaca, deixa adivinhar; no que se vê de perto, no espaço

vertiginoso da intimidade” (SOUZA, 2005, p. 85), encenando, de forma semelhante a José de

Alencar, o erotismo a partir da indumentária feminina.

Por comparação, Gilda de Mello e Souza (2005) conclui que, ao se utilizar de

vocábulos inerentes à indumentária, a estratégia principal de Macedo era refletir a “opinião

dominante da burguesia média” (SOUZA, 2005, p. 88) detalhando o vestuário de acordo com

os usos dessa classe social e sua cultura, enquanto José de Alencar buscava, além de espelhar

a psicologia das personagens, trabalhar a essência erótica do vestuário feminino num jogo de

esconder e mostrar, sugerir por cores e transparências das roupas.

Já para Machado de Assis,

(...) era preciso distinguir a função diversa que a vestimenta desempenhava para o grupo masculino e o grupo feminino. No primeiro caso ela cumpria sobretudo um papel civil, definidor de status e instaurador de uma identidade fictícia, mas pacificadora; no segundo, era o auxiliar eficiente do jogo erótico, num momento social instável, ambíguo, de conquistas recentes e aspirações sufocadas (SOUZA, 2005, p. 88, grifo da autora).

Ainda sobre este diálogo entre a indumentária e a literatura machadiana, mais

precisamente a indumentária da obra Dom Casmurro, destacamos a dissertação Registros

realistas da moda como parte do jogo irônico em Dom Casmurro, de Machado de Assis, de

Geanneti Silva Tavares Salomon (2007)5. No mesmo ano de defesa da pesquisa, 2007, a

autora publicou um artigo, na revista científica Scripta, com título homônimo, do qual nos

valemos para uma breve explanação sobre o seu trabalho.

Na análise de Salomon (2007), a indumentária da obra Dom Casmurro, de Machado

de Assis, funciona como uma ferramenta alegórica que, além de participar da delineação do

tempo e espaço, ainda caricaturiza as personagens e as encena como em uma peça teatral,

5 Ressaltamos que Geanneti Salomon realizou o mestrado neste mesmo curso — Literaturas de Língua Portuguesa — e instituição — Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais — no qual agora realizamos a análise sobre a indumentária masculina da obra Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa.

45

entrelaçando à trama ambiguidade e duplicidade, constituintes da ironia, servindo de

importante estratégia de descrição a Machado de Assis, autor justamente aclamado por seus

enredos irônicos.

Nesse sentido, Salomon (2007, p. 108-109, grifo da autora) explica: “Uma análise dos

descritivos da indumentária das personagens da obra nos fez constatar que a ambiguidade e a

duplicidade de vários aspectos da moda parecem ter sido utilizadas para a manutenção dessa

atmosfera instável de que falamos em Dom Casmurro”, sendo tal “atmosfera instável” a

conclusão acerca da estrutura da trama ser “construída visando à manutenção da ambiguidade

e da instabilidade de múltiplos sentidos que não se deixam fixar” (SALOMON, 2007, p. 108).

Buscando analisar a importância da indumentária para a obra Dom Casmurro,

Salomon (2007) elabora sua pesquisa mostrando que

(...) a questão da indumentária se estrutura em duas vertentes que se desenvolvem juntas e se completam, produzindo o mesmo efeito: a exposição de uma intenção autoral na construção de uma narrativa deslizante. A primeira vertente surge de uma análise da imagem criada para as personagens José Dias, Capitu e Escobar (manipuladoras, calculistas, movidas por interesses), através do descritivo de sua indumentária, que se opõe à imagem de Bentinho (aparentemente inocente, ingênuo), sem suporte de indumentária. A segunda vertente se baseia na presença de peças de moda, características do período, que são inseridas em episódios da obra, contados pelo narrador como se ali estivessem descompromissadas com o todo da narrativa, como se apenas fizessem parte de suas “reminiscências” (SALOMON, 2007, p. 109, grifo nosso).

Além disso, sua leitura ainda esmiúça a escrita de Machado de Assis, da qual se pode

perceber que

O traço vestimentar garante a coerência visual da imagem cênica da obra ao não se apresentar com detalhes excessivos que pudesse subverter a narrativa, ao estar de acordo com o seu próprio tempo histórico, com o tipo físico das personagens, sua posição social e cultural. Mas, principalmente, a indumentária dessas personagens cumpre o papel de dar-lhe características instáveis, propiciando uma intenção aparentemente primordial: a de manter a ambiguidade, na medida em que são inseridas incongruências em seu funcionamento (SALOMON, 2007, p. 110, grifo nosso).

Dessa forma, a autora consegue alcançar tanto os significados psicológicos quanto os

sociais da narrativa machadiana que permeiam o comportamento das personagens em um

texto cuja indumentária lhe parece indispensável.

Por se fazer tão importante ferramenta de escrita para Machado de Assis, raros

trabalhos científicos fugiram à indumentária de sua obra. Temos, dentre poucos, a análise

46

feita por Franciane Pimentel Melo (2017) em sua dissertação6, intitulada O costurar da moda,

da literatura e do jornalismo nas crônicas de João do Rio. Em sua pesquisa, a autora buscou

“costurar os tecidos da moda com linhas extraídas das malhas da literatura e jornalismo”

(MELO, 2017, p. 58), a partir da leitura e análise de duas crônicas do escritor Paulo Barreto,

conhecido como João do Rio.

Um dado importante a sabermos para compreender a escrita de João do Rio é que o

escritor estava imerso em uma sociedade em transformação, cuja indumentária da alta classe

da cidade do Rio de Janeiro seguia a moda parisiense da Belle Époque, que se caracteriza por

vestuários alegres, ornados com flores e plumas, muito detalhados, bordados e brilhosos. A

elegância se unia à alegria, descontração, para inspirar a época em questão. Marnie Fogg

(2013, p. 196) explica que “O período conhecido como Belle Époque (1890-1914)

corresponde mais ou menos ao divertido e sensual movimento art nouveau”, tempo em que a

sociedade parisiense saía do rígido período vitoriano para “uma era de afrouxamento da

moralidade” (FOGG, 2013, p. 196), o que seria refletido na indumentária.

Por pesquisas históricas, através de fotografias, pinturas e indumentárias conservadas

em museus e acervos, Marnie Fogg (2013) percebe que a indumentária masculina trazia

novidades, sobretudo, nos tecidos coloridos que por vezes fugiam às cores preta, azul-escuro e

branco/cru, além da inovadora estampa risca de giz ou com listras mais grossas, o que

Franciane Pimentel Melo (2017, p. 61) aponta como sendo a própria vestimenta do autor João

do Rio, adepto a ternos que iam “dos tons básicos, como o branco, preto e verde, até chegar

aos tons de rosa e cereja”.

Já sobre o vestuário feminino, Fogg (2013), discorre detalhadamente, demonstrando

que, esse sim, abrilhantava qualquer espaço pelo qual as mulheres circulavam. Logo, essa

autora expõe:

Na art nouveau, os desenhos tinham como base os caules em vez das pétalas das flores. A moda imitava a arte, e a Belle Époque se caracterizou pelo alongamento da silhueta feminina. Os vestidos foram ajustados acompanhando as curvas sinuosas do corpo, desde as costelas até o quadril, o que exigia roupas íntimas diferentes. Surgiram mangas de formatos variados, desde a manga presunto, em c.1890, até o estilo lenço dos vestidos de chá; algumas eram mais fluidas e faziam par com luvas brancas longas. Os decotes eram quase sempre altos, indo até o queixo nos vestidos diurnos, o que alongava mais o corpo, apesar de as cinturas estarem no lugar ou levemente acima da costela, e o caimento era reto nos quadris, com as saias com nesgas estilo linha A alçando suavemente ao chão. Chapéus largos do tipo Viúva Alegre, com a copa exageradamente enfeitada com aves-do-paraíso, flores de seda (...) ou plumas e penas, acompanhando coques bufantes. Chapéus estilo lingerie, feitos de renda cor de merengue, eram reservados para os ricos em férias. Por volta

6 Defendida e aprovada no Mestrado em Humanidades, Culturas e Artes, da Universidade do Grande Rio

47

de 1910, a touca ou o turbante alto da rainha Maria começaram a ser usados como acessórios da silhueta tipo coluna, enfeitados com egretes de plumas e diamantes (FOGG, 2013, p. 197).

Sem a necessidade de nos atermos a cada detalhe descrito, percebemos pelo conjunto que se

tratava de um estilo de vestuário altamente ornamentado, com plumas, flores e até mesmo

diamantes que garantiam o brilho almejado pela sociedade parisiense.

Franciane Pimentel Melo (2017, p. 90) destaca que, na cidade do Rio de Janeiro, a

“Belle Époque Tropical” foi marcada por imensa modernização do espaço urbano pautada na

estética europeia, com largas avenidas, café e livrarias, ou ainda,

Na Belle Époque o uso e os costumes da Europa tinham esse ar moderno de viver e se divertir. Os cafés assim como as livrarias eram verdadeiros pontos de encontros entre doutores de toda a sorte e formação, principalmente, médicos e advogados. A Academia Brasileira de Letras estava recém-fundada e seus acadêmicos tinham o costume de se encontrarem na Livraria Garnier (MELO, 2017, p. 54).

Em meio a toda pompa e modernização, a autora ainda ressalta:

A Belle Époque carioca queria estar à altura da perfeição que havia ficado Paris. Mesmo que aqui as construções, demolições e transformações tenham um embelezamento, a questão social se agravou e boa parte da população que deveria também por usufruir dos espaços, em muitos aos (sic) casos, foi excluída e sendo “empurrada” para localidade e bairros cujo conceito da Belle Époque não fazia parte da realidade. Felizmente ou infelizmente, parte da imprensa era o reflexo e reforçava esses comportamentos (MELO, 2017, p. 55).

Focando na escrita de João do Rio, importante autor da imprensa carioca do início do

século XX, Melo (2017) percebeu que, por escrever crônicas sobre um tempo imerso no

fervor da Belle Époque Tropical, o autor se valeu de inúmeras descrições de vestuário que

construíam os próprios espaços sociais opostos, tendo ele mesmo circulado por comunidades

pobres e ricas. Por transitar entre espaços tão contrastantes, as crônicas refletiam as

impressões críticas do autor sobre a cidade em plena transformação, de estilo e de ritmo, já

que seu tempo marcava o início da República no Brasil. Notava assim que a influência

francesa acontecia tipicamente sobre as classes mais altas, enquanto a população pobre era

indiferente àquela moda estrangeira.

Ao observar a indumentária francesa mesclar-se à parte da cultura carioca, João do Rio

fazia da moda instrumento jornalístico e literário, ao mesmo tempo. Enquanto a descrição

servia de relato de um tempo, o contar em crônica abria espaço à imaginação dos leitores e à

encenação de personagens que se distanciavam da realidade pela ficcionalização.

48

Melo (2017) destaca que a obra de João do Rio é constantemente atravessada por

descrições de indumentária urbana carioca, traço explicado pelo gosto particular do autor em

acompanhar a moda de seu tempo, além de observá-la como instrumento gerador de

contrastes sociais esteticamente notáveis na população.

A pesquisadora seleciona duas crônicas para sua análise de forma a reforçar a leitura

do contraste entre as comunidades cariocas. Assim, Melo (2017) destaca que em “Barracão

das Rinhas”, há uma cena periférica, cuja população mais pobre diverte-se num esporte

estranho ao narrador-testemunha, que transita observando a cena à margem da alta sociedade

da cidade do Rio de Janeiro. Diante de uma rinha de galos, o narrador destaca que a ocasião

parecia exigir certo luxo, estando todos com suas melhores roupas, indumentos usados

geralmente para ir à igreja aos domingos, para assistir a galos se dilacerando até a morte.

Melo (2017) faz uma reflexão sobre a roupa da qual conclui que o ato de se vestir de

determinada maneira representa um figurino social para ser aceito em delimitado espaço em

seu tempo, por isso, as personagens do conto “estavam nesse barracão, o sol queimando as

suas peles, as suas roupas, camisas de manga e provavelmente alguém estava de paletó, todos

vestidos de forma ‘endomingada’ para juntos se divertirem com a crença de que ali estavam a

assistir um esporte” (MELO, 2017, p. 102). O estranhamento do narrador se dá pelo fato de

que as camisas de manga e o paletó sob o quente sol do Rio de Janeiro pareciam representar

um luxo forçado, acima dos limites de conforto que o clima exigia. Logo, abafadas em suas

melhores roupas, as personagens seguem nessa atmosfera violenta da rinha encenando uma

pompa que não chega aos padrões da alta sociedade em plena estética da Belle Époque, mas

que não deixa de ser um figurino de desfile diante do grupo de sua comunidade.

Já na segunda crônica selecionada por Franciane Pimentel Melo (2017), “Gente de

Music-Hall”, o narrador, novamente como testemunha, se encontra num cassino, onde a alta

classe social desfila os mais requintados modelos parisienses da Belle Époque em plena Rio

de Janeiro do início do século XX. Em sua leitura, Melo (2017) percebe que a apresentação

das personagens sugere puro luxo, com homens em seus smokings, e mulheres envoltas em

plumas, com vestidos de corte francês e anéis em todos os dedos, além de uma dançarina com

meia de seda cor de carne e vestido de lantejoulas prateadas.

Diante do brilho luxuoso descrito pela indumentária do ambiente também de jogos,

como no conto anterior, porém este sendo noturno e muito mais sofisticado, o narrador

possibilita a pesquisadora refletir, conforme Castilho (2004 apud MELO, 2017), que:

49

Ao eleger esta ou aquela forma de se vestir, o ser humano entra num sistema de moda. Se ele segue padrões “modais” da época, ele afirma o “outro”, a alteridade, ao mesmo tempo em que se põe como partícipe desse “outro”, desse grupo, que passa a ser o mesmo de sua própria identidade. Se ele, por outro lado, não segue padrões “modais” da época, ele nega o “outro”, a alteridade, ao mesmo tempo em que se afirma como o “diferente”, mas é justamente aí que se apreende a sua identidade (CASTILHO, 2004 apud MELO, 2017, p. 104).

Dessa forma, Melo (2017) conclui que, mesmo em ambientes tão contrastantes, as

crônicas de João do Rio demonstram a necessidade de coletividade humana, de estar de

acordo com o que manda o figurino social de cada fatia da população carioca, cada uma em

seu espaço, ligadas pela mesma cidade e época. Assim, a indumentária serve a João do Rio

como um marcador social, de classes, que colabora também com a marcação espácio-

temporal de suas crônicas.

Dando seguimento às pesquisas que compõem nosso Estado da Arte, chegamos à

última, na qual a antropóloga Solange Mezabarba (2020), que também fugiu às linhas

machadianas, encontrou em Clarice Lispector um chapéu para sua análise. Em seu artigo “O

vestir e os conflitos femininos na obra de Clarice Lispector: o caso do chapéu da rapariga”, a

pesquisadora expõe a análise feita sobre o conto “Devaneios e embriaguez de uma rapariga”,

publicado no livro Laços de família, em 1950, no qual a narrativa de Lispector conta sobre

uma portuguesa de classe média, casada, mãe, e enfadada de sua vida doméstica no Brasil,

que se defronta com o inesperado chapéu na cabeça de outra mulher, em um encontro de

negócios, ao qual foi como acompanhante do marido.

O chapéu incomoda a protagonista por vê-lo como contraste à sua própria cabeça

exposta, nua, sem revestimento. Mezabarba (2020) explica que a importância do chapéu se dá

pelos seus significados sociais, assim, a autora se vale de diversos pesquisadores para

destacar:

Pitt-Rivers (PERISTIANY, s.d.) observa que a cabeça é a parte do corpo na qual cabem as demonstrações de honra e respeito, reveladas, muitas vezes, em adornos e coberturas, exatamente como o chapéu da antagonista no conto de Lispector. Já a condição de adorno do chapéu em questão, para Simmel (2008), pode ser um meio de transformar a força e a dignidade sociais em perceptível proeminência pessoal. O chapéu, elemento de proteção de uma parte “nobre” do corpo, a cabeça, na virada do século XX, encontra na moda um conceito que o mantém como peça-chave para a apresentação de si. Delius (2000) recorda que a peça pode reunir diversos significados, desde a religiosidade até a posição social, a nacionalidade e mesmo o pertencimento político. Crane elenca o chapéu como um dos acessórios que, no século XIX, “constituíam símbolos poderosos de identidade masculina, [e] foram igualmente incorporados pelas mulheres durante esse período” (CRANE, 2006, p. 206) (MEZABARBA, 2020, p. 35-36, grifo nosso).

50

Nesse sentido, lembramos o registro feito por Patricia R. Anawalt (2011), na obra

História Mundial da Roupa, que revela que o chapéu é a indumentária mais antiga do mundo,

encontrado em fósseis, tanto feito em couro quanto tecido por fios de matéria-prima vegetal,

como o linho, sendo interpretado por antropólogos e arqueólogos como indicador de status

social em cada comunidade em que fora encontrado, muitas vezes utilizado por líderes.

Tendo, historicamente, tamanha importância social, o chapéu alheio, no conto de

Clarice, segundo Mezabarba (2020), causa inicialmente uma espécie de pudor na

protagonista, pela nudez de sua cabeça. Essa percepção pelo contraste faz com que a

personagem se sinta desonrada, inferior diante da outra. Porém, valendo-se de valores sociais

que permeavam a vida feminina na década de 1950, encontra conforto ao constatar que apesar

do poderoso chapéu, a mulher possui um corpo extremamente magro, o que a impediria de ser

mãe, de ser fértil, segundo a protagonista.

Nesse ponto, Solange Mezabarba (2020) afirma que a protagonista passa a se sentir,

então, superior, pois é mãe, cumprira assim seu papel social dignamente; sente-se, portanto,

honrada novamente mesmo que lhe falte o chapéu. Como se o adereço na cabeça alheia agora

lhe parecesse um disfarce pela desonra de não poder cumprir o papel destinado à mulher de

classe média da década de 1950. A pesquisadora conclui, então, que o chapéu no conto de

Lispector possibilita a reflexão sobre honra e respeito, sobre estilo de vida e padrão social de

gênero:

(...) o chapéu, eivado de significados, interpõe-se entre protagonista e antagonista como elemento comparativo de um estilo de vida. A que se vê afetada por sua condição socioeconômica liberta-se ao entender que leva uma vida honrada de acordo com os padrões da época. O chapéu, ao fim, não é apenas uma parte, mas se caracteriza como sinédoque de um estilo de vida que ele declara, o artefato integra a figura daquela mulher que, por sinal, muito magra, poderia falhar ao ser chamada para assumir seu papel dentro desse esquema social. Cumprindo com aquele elemento da aparência que lhe garante a formação de uma família, a protagonista se resigna. Ou seja, desprovida do chapéu, a personagem criada por Clarice se conforma com o destino que lhe é imposto e, mais, valoriza a posição de mãe, esposa e dona de casa que lhe é designada como valor social inquebrantável e, portanto, algo que deve ser celebrado. Com uma faxina! (MEZABARBA, 2020, p. 39, grifo nosso).

Desse modo, o chapéu, simbólico adorno social, passa a contrastar com a própria

mulher que o utiliza e não mais com a sua observadora, focando não mais no significado

histórico da peça, mas encenando um figurino que mascara a realidade da mulher que o usa.

Tudo isso, afirma Mezabarba (2020), sendo conclusão da protagonista que se encontra

51

embriagada, conforme o título do conto, e após grande demonstração de inveja pelo notável

item de indumentária alheia.

Diante de todas essas pesquisas, conseguimos perceber que a indumentária é

importante ferramenta de encenação social nas obras literárias. Seja disposta na descrição de

diversos itens ou limitada a apenas uma peça, pontua no enredo características acerca da

personagem que com ela se reveste. Encobre para mostrar alguma informação.

Sabemos que ao perceber tamanha importância do indumento literário acabamos mais

atentos às suas ocorrências. Por isso, exemplificaremos, a seguir, brevemente, a ocorrência

notada por nós em diversas obras brasileiras, organizadas cronologicamente, demonstrando

que, a despeito dos poucos trabalhos científicos dedicados ao diálogo entre as áreas —

indumentária e literatura brasileira —, a indumentária está constantemente disposta nos

cabides da ficção, costurando às entrelinhas os mais diversos significados acerca das

personagens, do tempo e do espaço.

3.2 Tramando o gosto de especular personagens: breve cronologia da indumentária em

algumas obras da literatura brasileira

O senhor fia? Pudesse tirar de si esse medo de-errar, a gente estava salva. O senhor tece? Entenda meu figurado (ROSA, 2015, p. 159).

A indumentária percebida nas linhas literárias nos permite encontrar possibilidades de

significação infinitas e está presente em diversos autores brasileiros e internacionais,

mostrando que a relação do ser humano com o vestuário é realmente universal e bastante

íntima. Tão íntima que se fundem personagem e vestuário, convidando sempre o leitor a

calçar os seus sapatos. Além disso, a indumentária pode ir além da singularidade do sujeito

encenando também o espaço e o tempo da trama.

Neste sentido, é possível notar que fazendo um breve passeio pelos bosques e avenidas

da ficção brasileira, dentre prosa e poesia, aqui ou ali há sempre uma peça de roupa

pendurada, um corpo adornado ou mesmo uma referência direta à confecção de indumentária.

Como forma de exemplificar, alinhavamos uma sequência cronológica que parte do século

XIX, com o romancista Machado de Assis, até o arremate contemporâneo, pontuado pelos

versos de Ana Martins Marques.

Em 1899, Machado de Assis publicou Dom Casmurro. A narrativa traz inúmeras

descrições de vestuário que, como vimos, serviram de corpus para a pesquisadora Geanneti

52

Salomon (2007, p. 12), e essa autora explica que sua escolha se deu porque a

indumentária/moda parecia ter uma função alegórica no romance, percebendo-se, para além

de meros objetos de cenas, signos inerentes às significações da composição das próprias

personagens, além da indumentária configurar cenograficamente uma espécie de figurino

devido à trama machadiana se desenrolar de forma teatral.

Como vimos, Salomon (2007) disserta que há um jogo de ironia e ambiguidade no

romance costurado ao vestuário que não só veste as personagens como as caracteriza

psicologicamente e socialmente, além de as caricaturar. Essa pesquisadora se concentrou,

principalmente, na indumentária que envolve as personagens Capitu, Escobar e José Dias,

para embasar suas observações sobre a ambiguidade alinhavada à personalidade de cada uma

dessas figuras.

Assim como Geanneti Salomon (2007), ao ler Dom Casmurro, notamos que a trama é

realmente carregada de indumentos, permitindo-nos, já nas primeiras linhas, encontrar

vocábulos referentes ao vestuário, como quando o narrador Bentinho conta: “Uma noite

dessas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do

bairro, que eu conheço de vista e chapéu” (ASSIS, 2020, p. 13). Sabemos que conhecer

alguém “de vista” é popularmente entendido como uma pessoa que não se conhece a fundo,

mas somente por encontros esporádicos, superficiais, ou alguém que já se tenha visto poucas

vezes antes, mas conhecer alguém “de chapéu” sugere-se a necessidade de certo

conhecimento de sociologia da indumentária para ser possível construir cognitivamente a

significação de que o termo conhecer junto a de chapéu interage com a informação de que por

muitos séculos, até a primeira metade do XX, o chapéu foi item indispensável no vestuário

humano, sobretudo no masculino, como ilustrador de status social, profissional e/ou de poder

(CRANE, 2006).

Assim, quando o narrador diz que conhece o rapaz “de vista e chapéu”, passando-se a

narrativa no século XIX, pode-se interpretar, segundo as informações sobre o chapéu na

temática da indumentária masculina como demarcador social, que o rapaz seja de uma classe

social próxima à de Bentinho, já que lhe era familiar (e não estranho) pelos locais que

frequentava e pelo chapéu que usava para lhe ser permitido estar em determinados locais.

Machado utiliza-se da descrição de indumentária para que seu caro leitor alcance,

assim, as características sociais das personagens junto às psicológicas, conforme vimos este

mesmo apontamento no trabalho de Salomón (2007).

Adentrando o século XX, o modernista Mário de Andrade publicou Macunaíma, em

1928. Para além da linguagem inovadora, o autor traz toda a ação da narrativa ligada ao

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movimento de seu protagonista (homônimo ao título) impulsionado pelo talismã

“Muiraquitã”, colar com pingente com o qual Ci presenteia Macunaíma, antes de subir ao céu,

para proteção e sorte do protagonista, porém o talismã é roubado pelo gigante Venceslau

Pietro Pietra. A tentativa de recuperação do afetivo indumento de proteção, Muiraquitã, é que

faz “o herói sem nenhum caráter” (ANDRADE, 2017), nascido “No fundo do mato virgem”

(ANDRADE, 2017, p. 13), deslocar-se para a cidade grande, levando-o a enfrentar o mundo

mesmo com sua constante preguiça.

Já em 1930, o poeta Carlos Drummond de Andrade publica seu primeiro livro, Alguma

Poesia, e dentre seus versos inaugurais — e mais famosos —, estão os que dizem:

O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada (DRUMMOND DE ANDRADE, 2015, p. 10).

Nesse trecho, do “Poema de Sete Faces”, é possível perceber a principal mudança na

indumentária feminina a partir da década de 1920: “As barras das saias subiram para acima do

joelho pela primeira vez entre 1925 e 1928” (FOGG, 2013, p. 239). Assim, mesmo não

descrevendo o vestuário, o poeta o faz por metáfora, pela qual é possível chegar ao sentido

que: se havia pernas à mostra; se a vestimenta feminina era a de saias mais curtas permitindo

a observação de tais pernas; se o coração se aflige enquanto os olhos apenas observam sem

questionar, logo, pensa-se no tom erótico inerente à cena em que o eu lírico admira a nova

moda vestida pelas mulheres no bonde em que estava, sem seus olhos questionarem, talvez

como alguém que se deleita com a transição do tamanho das saias que quebram parte do

pudor corporal feminino, a partir da década de 1920.

Seguindo na linha versada, entre 1940 e 1941, João Cabral de Melo Neto publica

Pedra do Sono, seu segundo livro de poesias, das quais destacamos alguns versos de Os

manequins: “Tenho no meu quarto manequins corcundas / onde me reproduzo / e me

contemplo em silêncio” (NETO, 2020, p. 36). Aqui, é possível perceber, a conversa com o

mundo da confecção de indumentária a partir da utilização do vocábulo manequins, que

geralmente é um objeto-ferramenta tanto para a exposição de roupas quanto para a

modelagem das peças, pelo método francês moulage.

54

Todavia, curioso é o adjetivo que poeta apresenta sobre os manequins: corcundas. Um

manequim torto, como um gauche do Drummond7, sendo esse inclusive um autor de grande

admiração por João Cabral de Melo Neto. Um manequim que não serve mais à sua função,

porque inviabiliza a modelagem e fica esteticamente inútil à exposição de peças. No entanto,

é justamente nesse feio e inútil que o eu lírico se reproduz e se contempla. A fusão do corpo

humano com o objeto-ferramenta expositor de uma identidade composta pelo vestuário, a

comparação entre um e outro, juntando-se aos versos iniciais que falam sobre os sonhos

cheios de pó e do homem enforcado que se sente metaforizam para a interpretação de que a

melancolia é contemplável bem como a própria morte.

Além disso, a poesia foi inspirada na obra de Giorgio De Chirico (1988-1978), pintor

italiano precursor do surrealismo que também era figurinista e cenógrafo, cuja temática em

suas obras traziam muitos manequins representando o corpo humano, como o sujeito-objeto

em cena.

Adiante, o ano 1946 marca a estreia literária de João Guimarães Rosa, autor da obra de

nossa análise nesta pesquisa — Grande Sertão: Veredas —, trazendo a público o conjunto de

contos que compõe a publicação Sagarana. Dentre os nove contos, está o intitulado

“Conversa de bois”, que narra a travessia feita por um carro-de-bois, com o carro, os bois, o

guia e o carreiro. Dessa trama, vale-nos destacar a indumentária que envolve o corpo do

menino Tiãozinho. Não são muitas as peças de vestuário presentes na descrição de

personagens, o que nos ajuda a compreender a função específica dos indumentos para a

caracterização do menino que guia o carro-de-bois. Na verdade, somente as roupas de

Tiãozinho são descritas, reforçando a estratégia de escrita adotada por Rosa, que

compreenderemos analisando-o brevemente.

Vemos, então, que o menino acaba de se tornar órfão por parte de pai, e a travessia se

dá no deslocamento do corpo desse pai até o arraial onde irão enterrá-lo, servindo o carro-de-

bois como transporte funerário. O ambiente é rural, como os muitos descritos em toda a obra

de Guimarães Rosa, lembrando os cenários facilmente encontrados no interior de Minas

Gerais, por exemplo. Na estrada de terra, Tiãozinho segue guiando o carro-de-bois com o

carreiro Agenor Soronho, com quem tem conflituosa relação.

Quando o carro-de-bois aponta na estrada de terra, observado por uma irara (que

narraria a cena a Manuel Timborna, que posteriormente contaria a estória ao narrador, que

7 Os primeiros versos publicados, de Carlos Drummond de Andrade, em seu Poema de Sete Faces, anunciam: “Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida” (DRUMMOND DE ANDRADE, 2015, p. 10, grifo do autor).

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agora nos narra a mesma, em sua versão), é descrito que o menino-guia, Tiãozinho, é “um

pedaço de gente, com a comprida vara no ombro, com o chapéu de palha furado, as calças

arregaçadas, e a camisa grossa de riscado, aberta no peito e excedendo atrás em fraldas

esvoaçantes” (ROSA, 2017, p. 267), e, além disso, trazia alpercatinhas nos pés. Percebemos,

com o decorrer da trama, que a indumentária de Tiãozinho aponta para a idade do menino, sua

estrutura física e o estado psicológico do mesmo, além de servir como um anúncio em certo

momento, do qual falaremos adiante.

Primeiramente, observamos que o adjetivo “riscado” para descrever a estampa da

grossa camisa que estaria “aberta no peito” aponta metaforicamente para a ferida de sua

tristeza pela morte do pai: um riscado aberto no peito. Além disso, sendo “um pedaço de

gente”, sua camisa “excedendo atrás em fraldas esvoaçantes” reduz ainda mais o menino, o

transformando em um bebê, além de permitir compreender o seu sentimento de insegurança,

tão pequeno sem poder contar com a proteção do pai (considerando-se a figura paterna como

símbolo de proteção na cultura ocidental e religiosa cristã, conforme é corriqueiro nas

comunidades do interior do Brasil), aspecto que o chapéu de palha furado também salienta,

prejudicando a proteção contra o sol forte, reforçando o desamparo do menino.

A camisa lhe parece grande demais, sobrando, esvoaçando, o que nos leva a entender

que o menino não vestia roupas próprias, mas sobras de alguém ou emprestadas, o que

apontaria para uma situação financeira cuja família poderia ser pobre, necessitando reutilizar e

compartilhar as mesmas roupas, e/ou que as mesmas poderiam ser a herança de seu pai. Nesse

mesmo viés, Tiãozinho usava calças arregaçadas, dando a entender que lhe pareciam também

muito grandes, fazendo com que na cena imaginada o menino fosse realmente muito pequeno.

E, para reforçar ainda mais sua pequenez, calçava sapatos descritos no diminutivo: “as

alpercatinhas” (ROSA, 2017, p. 267).

Inerente a essas informações, notamos que a estratégia literária inicial é a de nos fazer

ler Tiãozinho como uma personagem infantil, pequena — calçando ainda alpercatinhas —,

magro — já que tudo lhe era esvoaçante, arregaçado — e frágil em sua tristeza pelo luto

vivido.

Assim, Tiãozinho pensa que os demandos e surras que leva de Agenor Soronho se

devem ao tamanho de ambos, sendo ele tão pequeno e o carreiro tão grande. Então, o menino

devaneia que “Há-de chegar o dia!... Quando ele crescer, quando ficar homem, vai ensinar ao

seu Agenor Soronho... Ah, isso vai!...” (ROSA, 2017, p. 277). E duas páginas após, uma cena

parece nos trazer um anúncio do desenlace, que se dá com a morte de Agenor Soronho,

livrando Tiãozinho dos desmandos do antagonista e fazendo o menino crescer, ficando, então,

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homem, conforme ele pensa sobre quando crescer. Destacamos, portanto, tal cena aqui porque

é justamente pela indumentária que se anuncia que Tiãozinho estava crescendo na narrativa:

Estancam todos, bois e carros, no meio do chapadão. Foi o guia Tiãozinho, que teve de parar para segurar as calças, que lhe tinham caído de repente até os pés. Depôs a vara no chão, depressa, porque estava até vermelho, só em camisão e perninhas magrelas, que vergonha. E agora está-lhe custando para amarrar a tira de pano na cintura e ficar composto outra vez. Com o céu todo, vista longe e ar claro — da estrada suspensa no planalto — grandes horas do dia e horizonte: campo e terras, várzea, vale, árvores, lajeados, verde e cores, rotas sinuosas e manchas extensas de mato — o sem-fim da paisagem dentro do globo de um olho gigante, azul-espreitante que esmiúça: posto no dorso da mão da serrania, um brinquedo feito, pequeno, pequeno: engenhoca minúscula de carro, recortado; e um palito de vara segura no corpo de um boneco homem-polegar, em pé, soldado-de-chumbo com lança, plantado, de um lado; e os boizinhos-de-carro de presépio, de caixa de festa. E o menino Tiãozinho, que cresce, na frente, por mágica. Pronto. As calças não vão cair mais! (ROSA, 2017, p. 279, grifo nosso).

Notamos, então, que enquanto a cena abre com Tiãozinho sentindo vergonha pela

humilhação de suas largas calças caírem durante a travessia, a mesma se fecha com Tiãozinho

composto outra vez, com as calças amarradas que não cairiam mais. Logo, o trecho anuncia

que Tiãozinho não sofreria mais a humilhação por ser pequeno: “As calças não vão cair

mais!” (ROSA, 2017, p. 279). Ao mesmo tempo, o tom da narrativa ganha um aspecto lúdico,

onde o carro-de-bois e Agenor Soronho se transformam em miniaturas de brinquedo diante da

criança que cresce, por mágica, como em uma brincadeira infantil. E as peças do brinquedo da

criança à sua disposição sugerem que ele pode tomar as decisões em sua vida.

Dessa forma, o fato das calças não mais caírem anuncia o que saberíamos ao fim da

narrativa, cujo desfecho se dá com a morte de Agenor Soronho, agente das maiores

humilhações de Tiãozinho, após uma ordem do próprio menino que, inconscientemente — ou

ainda, a consciência de seus desejos desvela-se nas falas dos bois, que ele escuta em um

estado de semissono, mas não percebe, mesmo que no início do conto o narrador afirme que

os bichos falam com os humanos —, autoriza os bois a darem o arranque que derruba o

carreiro que acaba com o pescoço esmagado pela roda do carro.

Por fim, limitando-nos a não alongar profundamente na análise desse conto, mas

apenas exemplificarmos brevemente, notamos que com poucas peças a figurarem em uma só

personagem, Guimarães Rosa constrói com a indumentária os aspectos psicológicos e sociais

de Tiãozinho, além de se valer do enlace das calças com um pano na cintura a garantir que

não cairiam mais como uma estratégia de anunciação sobre o desenlace do conto, onde o

menino se vê livre da humilhação quando quem cai é seu antagonista.

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Já em 1958, Jorge Amado publicou Gabriela, cravo e canela. Dentre os inúmeros

indumentos apresentados na narrativa, como o vestido de chita da protagonista, Gabriela, ou a

sua recusa aos sapatos, chama-nos a atenção também a indumentária de outra personagem: as

meias pretas de Sinhazinha Guedes Mendonça. A importância dessa peça de vestuário é

tamanha que há inclusive o capítulo “Das meias pretas”, dedicado a elas.

Sabemos que, na abertura do romance, o narrador anuncia que o marido de Sinhazinha

Guedes Mendonça, Jesuíno Mendonça, a matou a tiros junto ao seu amante, o cirurgião-

dentista Dr. Osmundo Pimentel, fazendo com que a discussão sobre a absolvição por legítima

defesa da honra fosse desenrolada como principal temática da obra. Assim, no capítulo “Das

meias pretas”, há um verdadeiro alvoroço entre os homens a dialogar sobre o crime no bar

Vesúvio, pois tomaram conhecimento de que ela foi morta nua, somente com meias pretas:

No bar, Ari Santos — o Ariosto das crônicas no Diário de Ilhéus, empregado em casa exportadora e presidente do Grêmio Rui Barbosa — curvou-se sobre a mesa, ciciou o detalhe: — Ela estava nuinha... — Toda? — Inteira? — a voz gulosa do Capitão. — Todinha... A única coisa que levava era umas meias pretas. — Pretas? — Nhô-Galo escandalizava-se. — Meias pretas, oh! — o Capitão estalava a língua. — Devassa... — condenou o dr. Maurício Caires. — Devia estar uma beleza. — O árabe Nacib, de pé, viu de repente dona Sinhazinha nua, calçada de meias pretas. Suspirou. O detalhe constaria nos autos, depois. Requinte do dentista, sem dúvida, moço da capital, nascido e formado na Bahia, de onde viera para Ilhéus, após a colação de grau, há poucos meses, atraído pela fama da terra rica e próspera. (...). Consultório bem montado na sala da frente mas o fazendeiro encontrou a esposa foi no quarto, vestida apenas — como contava Ari e constou nos autos — com “depravadas meias pretas” (AMADO, 2008, p. 110-111, grifo do autor).

Para compreender o espanto de uns e a surpresa de todos ao saberem das meias pretas

é preciso considerar que, conforme retrata Marnie Fogg (2013), após as saias tornarem-se

mais curtas na década de 1920, influenciadas pela cultura francesa, como vimos ao falar do

poema de Carlos Drummond de Andrade, as mulheres aderiram a meias claras de seda para

esconderem o que consideravam imperfeições de suas pernas, como manchas, varizes ou

cicatrizes. A ideia era fazer com que as pernas parecessem nuas, mas torneadas pelas meias.

As meias, então, eram “feitas com dois pedaços de seda bege ou cor da pele que depois eram

costurados um ao outro, elas faziam a perna parecer nua, com exceção da costura que subia

pela parte de trás” (FOGG, 2013, p. 225). Assim, descobrimos que a cor preta das meias de

Sinhazinha Guedes Mendonça é uma informação que liga à personagem significados de

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devassidão porque tais meias pretas jamais poderiam ser usadas por mulheres como ela, de

alta classe social, católica, mãe de família tradicional.

As meias pretas, em 1925, ano da trama de Gabriela, cravo e canela, compunham

figurinos de teatro ou se limitavam ao uso por prostitutas, por serem consideradas muito

eróticas (FOGG, 2013). Reforçando a influência francesa sobre as meias femininas, as cores

claras dominavam porque essa população tinha a pele clara. No Brasil, mesmo que a

Sinhazinha Guedes Mendonça fosse descrita como morena, usar meias pretas, “— Finíssimas,

meu caro, estrangeiras...” (AMADO, 2008, p. 111), incorporava os significados eróticos

inerentes à peça de indumentária importada.

Assim, o diálogo dos homens no bar Vesúvio sobre as tais meias pretas permite

compreender que era realmente inesperado o vestuário de Sinhazinha Guedes Mendonça, o

que justificaria o impulso de seu marido ao assassiná-la com tamanho ódio, junto ao amante:

dois tiros em cada um.

A partir das meias pretas, a trama se desenrola no questionamento sobre o crime e sua

absolvição, onde a parte masculina traída no relacionamento tinha o direito de matar a parte

feminina envolvida, bem como o amante, sem ter que responder judicialmente por isso. A

trama de Jorge Amado, através também da indumentária, traz importante questionamento,

ainda na década de 1950 (quase 1960), sobre os direitos das mulheres, possessividade em

relacionamentos afetivo-sexuais, novas formas de se pensar o amor e a crítica à legítima

defesa da honra — argumento jurídico que absolvia os maridos que assassinavam suas

companheiras (atualmente, crime que se enquadra na denominação “feminicídio”) e que só foi

proibido em tribunais brasileiros em fevereiro de 2021, ano em que escrevemos esta pesquisa.

Dando continuidade aos exemplos de encenação envolta pela indumentária, em 1971,

a literatura marginal ganha forças e mantém as vestes. Dentre seus poemas mais lembrados

está o rápido e rasteiro, do poeta Chacal, cuja peça emblemática dos versos é “o sapato”:

vai ter uma festa que eu vou dançar até o sapato pedir pra parar. aí eu paro tiro o sapato e danço o resto da vida (CHACAL, 1971 in MORICONI, 2001, p. 271, grifo nosso).

Seria necessária uma ampla análise histórica da política brasileira para compreender a

importância desse elemento naquele tempo, todavia, por não se tratar do material principal de

análise nesta pesquisa, apresentamos nossa leitura de forma resumida. Portanto, em meio à

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Ditadura Militar, com suas exigências de rigidez comportamental, o sapato seria a repressão, a

indumentária em formato compacto, de material rígido, que contrasta com o movimento do

corpo do eu lírico ao dançar. Então, em um gesto de libertação, ele tira o sapato para

continuar seus passos sem que lhe aperte e restrinja os pés.

Ao mesmo tempo, estando “o sapato” no singular, nota-se que a peça de vestuário é a

própria metáfora do soldado que ordena parar de dançar, uma metonímia — a parte comum ao

vestuário do agente militar —, porém o eu lírico se recusa/desobedece ao “tirar” (que em um

sentido popular poderia ser entendido como o ato de deferir palavras de baixo calão contra

alguém) o sapato/soldado, e como castigo acaba por “dançar” (como gíria), ou seja, se dar

mal, sofrer violência, a vida inteira. O sapato figura um símbolo de dureza e seriedade do

tempo, a rigidez militar, que, como veremos, aparece inerente às solas dobradas de grossas

dos sapatos do delegado Jazevedão, em Grande Sertão: Veredas.

E seguindo a linha da poesia marginal, em 1982, Antônio Carlos de Brito — o Cacaso

— publica Posteridade, poema dedicado ao multiartista Mário Carneiro, cujas fotografias

inspiraram o poeta em seus versos. A peça da vez é um colete preto como a própria

representação do corpo humano na imagem: “O colete preto de meu avô montava num burro”

(BRITO, 2012, p. 15). E o colete, versos à frente, “virou sorvete”, como que congelado no

tempo pelo retrato para o qual o avô havia posado.

A roupa aparece como a simbologia da permanência na memória, mesmo que o avô

venha a ficar demente. Aquele sujeito na foto com seu colete preto permanece, afinal, a

“roupa tende pois a estar poderosamente associada com a memória ou, para dizer de forma

mais forte, a roupa é um tipo de memória. Quando a pessoa está ausente ou morre, a roupa

absorve sua presença ausente” (STALLYBRASS, 2008, p. 14).

Em 1990, deixando a poesia marginal para deleitarmo-nos com a obra de Hilda Hilst,

temos, no livro Alcoólicas, nove poemas, sendo que seis deles apresentam a peça de

indumentária “casaco rosso”. Após percorrer os caminhos da embriaguez, nos quais “a Vida é

líquida” (HILST, 2017, p. 470), o eu lírico despende sua atenção ao casaco no oitavo (e

penúltimo) poema:

O casaco rosso me espia. A lã Desfazida por maus-tratos É gasta e rugosa nas axilas. A frente revela nódoas vivas Irregulares, distintas Porque quando arranco os coturnos Na alvorada, ou quando os coloco rápida Ao crepúsculo, caio sempre de bruços.

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A Vida é que me põe em pé. E a sede. E a saliva. A língua procura aquele gosto Aquele seco dourado, e acaricia os lábios Babando imprudente no casaco. É bom e manso o meu casaco rosso Às vezes grita: ah, se te lembrasses de mim Quando prolixa. Lava-me, hilda (HILST, 2017, p. 474).

Notamos que a palavra italiana rosso nos informa a cor do casaco — vermelho — e

que o eu lírico parece ser autobiográfico já que leva o mesmo nome da autora — hilda —, o

que nos faz imaginar o casaco na mesma cena que uma mulher branca que poderia vir a ficar

rosada ou vermelha quando embriagada, como geralmente ficam as pessoas de pele muito

clara, assim, percebemos que o casaco rosso é o próprio corpo da poeta, o corpo rosso

embriagado na vida líquida. Logo, Hilda sente-se como em um casaco rosso quando bêbada,

aquecida em uma cor quente. E a autora confirma sua metáfora no poema anterior, ao

divulgar, nos versos: “Eu, e o casaco rosso / Que não tenho, mas que a cada noite recrio /

Sobre a espádua” (HILST, 2017, p. 473), que recria a indumentária a cada noite de

embriaguez.

Já no início do século XXI, Luiz Ruffato publica, em 2001, o romance Eles eram

muitos cavalos, no qual a narrativa fragmentada apresenta 68 capítulos/contos a compor o

romance cujo enredo encena diversas personagens unidas pela localidade geográfica, a cidade

de São Paulo, no mesmo tempo, o dia 9 de maio de 2000.

É possível perceber personagens pertencentes ao que seria a classe média brasileira,

por vezes até mais pobres, significadas em suas calças a roçar nos matos secos do

acostamento da rodovia onde caminham à noite; uma mulher em seus óculos pretos com

esparadrapo, xale com camisola de alcinha; sapatos e meias brancas de um médico; os tênis

brancos com a calça escolar azul-marinho da estudante etc. Em todos os capítulos/contos em

que o vestuário aparece, não é sempre descrito com cor, modelo, marca, textura e demais

características; aparecem em fragmentos como todos os elementos dessa narrativa em

pedaços.

Assim, a experiência de leitura convida a imaginar todas as peças de acordo com o

conhecimento de mundo do leitor, mas delimita em parte a interpretação ao trazer descrições

simples e objetivas, como costumam ser as roupas de pessoas que não têm acesso a marcas de

luxo, com suas ostentadas etiquetas; bem como salienta o tédio na cena cotidiana da classe

social em questão, onde um sapato é só um sapato, que serve para calçar e ir trabalhar, um

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uniforme está no corpo a caminho da escola; não há nenhuma camisola de seda, é somente

uma camisola de alcinha cujo tecido fica por conta do leitor.

Ao mesmo tempo, a indumentária encena gostos pessoais das personagens ou mesmo

o clima quando faz combinações de camisola de alcinha com xale e pantufas ou quando o

tênis da estudante está impecavelmente branco, apontando talvez para uma moda entre os

adolescentes ou para a limpeza da personagem oposta à paisagem suja urbana pela qual se

move.

Já em uma escrita mais atual, a poeta Ana Martins Marques encenou em seus versos:

“em casa trocamos de pele para sair à rua” (2017, p. 27). Não há a citação direta sobre

qualquer que seja a peça que se usa, mas o verso dialoga justamente com a necessidade

humana do vestuário para se expressar enquanto sujeitos sociais. O corpo revestido de uma

pele social; a proximidade da pele e do vestuário; a fusão do que é pele e o que é roupa como

significante do sujeito. Assim, como afirma a neurocientista Nathalia Anjos (2020, p. 31), “as

roupas — e não os olhos, como os poetas gostam de dizer — são o primeiro elemento que

capta nossa atenção na sociedade”.

O poema de Ana Martins Marques foi escrito durante um exercício criativo sobre a

temática do morar, do residir, quando a autora se hospedou poucos meses na casa de um

amigo que havia viajado. Assim, estando em uma casa alheia, mas como se fosse sua, a poeta

pensa sobre o dentro e o fora das paredes de um dos apartamentos do Edifício JK, no Centro

de Belo Horizonte.

Enquanto no verso supracitado Ana Martins Marques diz de nossa pele social, do

nosso figurino cotidiano, em outro poema se vale do vestuário para construir a seguinte cena:

Ela comprou material de limpeza e umas cervejas e um whisky ela nunca bebe whisky e enquanto toma as cervejas pensando que não basta se mudar para mudar ela pensa na mulher que ela seria se morasse de fato ali se aprendesse mesmo a beber sem desmoronar dentro do próprio vestido se adentrasse os olhos naquela paisagem clara e áspera e incorporasse ao seu corpo os imensos barulhos da noite (MARQUES, 2017, p. 10).

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Logo, percebemos que o vestido representa para o eu lírico o espaço social onde sua estrutura

pode vir a desmoronar. A autora constrói a alegoria onde o corpo e seu vestuário encenam a

própria moradia, além de demarcar o gênero fazendo com que a mulher não beba o forte

destilado, whisky, para que não desmorone, mantendo sua pose na peça de indumentária

tipicamente feminina. E, ainda, é possível sentir o erotismo construído quando, na cena,

misturam-se os termos “dentro do próprio vestido”, “adentrasse os olhos”, “incorporasse ao

seu corpo”, “imensos barulhos da noite”, trazendo no vestido a abertura, o buraco por onde se

adentra, como uma janela a permitir a vista da paisagem.

Por fim, de Machado de Assis à Ana Martins Marques, buscamos demonstrar

resumidamente que os entrelaçamentos entre literatura e indumentária não são somente atuais,

mas de longa data, visto que ambas as áreas tratam de construções humanas advindas de

experimentações pessoais e sociais. A estética está presente em ambas. E como algo tão

próximo ao corpo, tão fundido a ele, a indumentária aparece como elemento natural na

composição de muitas escritoras e escritores justamente por simbolizar tantas significações

quanto ao sujeito no mundo.

Tendo em vista tantos exemplos e como a indumentária participa da realização do

sentido do enredo literário, atravessaremos, no próximo capítulo, a narrativa escrita por João

Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, analisando de que forma as peças de vestuário

masculino contribuíram para a encenação no contar de Riobaldo.

63

4 GRANDE VIÉS: VEREDAS — A INDUMENTÁRIA MASCULINA EM GRANDE

SERTÃO: VEREDAS

Diadorim – nu de tudo. E ela disse: — “A Deus dada. Pobrezinha...” E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu não contei ao senhor — e mercê peço: — mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube... Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita... Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. A côice d’arma, de coronha... Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão para me benzer — mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucúia, como eu solucei meu desespero (ROSA, 2015, 484-485).

Pensar a indumentária na obra Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa,

leva-nos a questionar se o maior mistério do romance não seria também sustentado pelo

vestuário de Diadorim. Vestido de jagunço, confunde e perturba Riobaldo: “De que jeito eu

podia amar um homem, meu de natureza igual, macho em suas roupas e suas armas,

espalhado rústico em suas ações?!” (ROSA, 2015, p. 403, grifo nosso). Cada peça da

indumentária masculina de Diadorim, descrita espaçadamente por Riobaldo, em fragmentos,

veste e esconde a possibilidade da realização do amor ao mesmo tempo em que desperta o

questionamento sobre a descoberta da própria bissexualidade — Riobaldo ama um homem,

Diadorim, o jagunço Reinaldo, além do amor pelas mulheres Nhorinhá e Otacília. Ama,

assim, o masculino inscrito pelas roupas em Diadorim. Dessa forma, a indumentária não se

faz mero detalhe descritivo no romance rosiano: ela é também neblina a encobrir a narrativa

por suas centenas de páginas.

É possível perceber a indumentária como um véu tecido para o encobrimento do corpo

feminino de Diadorim. Véu que costura metaforicamente à trama de Rosa questionamentos

sobre homossexualidade e bissexualidade (ou ainda, sobre sexualidade em suas muitas

manifestações: hetero, homo, bi etc.), assuntos perturbadores e proibidos até quase o final do

século XX, sendo a obra publicada em 1956 e apresentando uma história romanesca que se

refere aos últimos momentos do século XIX e se estende até a primeira metade, com ênfase

nas primeiras décadas, do século XX. A narrativa nos entrelaça à angústia e à coragem do

protagonista nas suas percepções amorosas, do desejo. Desejamos, junto a Riobaldo, “um

Diadorim assim meio singular, por fantasma, apartado completo do viver comum,

64

desmisturado de todos” (ROSA, 2015, p. 242), um sujeito único, não como os demais — um

Diadorim só para Riobaldo —, cuja indicação do homem em suas machas roupas não fosse

impedimento para o desejo e a realização da satisfação do amor.

Outro aspecto importante sobre o vestuário em Grande Sertão: Veredas pode ser

observado acerca das próprias vestimentas do protagonista-narrador, Riobaldo, que se faz

jagunço somente enquanto vestido como tal, com suas cintas-cartucheiras, como veremos

adiante.

Além disso, a indumentária demarca a sociologia da trama, pontuando cada

personagem em determinadas posições sociais, políticas e até mesmo geográficas. Os

uniformes presentes na narrativa trazem o tom do poder, da despersonalização do sujeito

enquanto peça no jogo da hierarquia, ser coletivo, ao mesmo tempo em que diversas

singularidades são apontadas em peças que fazem sobressair um ou outro jagunço, soldado ou

político.

Fato interessante é notar que Riobaldo descreve com esmero a indumentária das

pessoas com as quais conviveu em sua travessia pelo sertão. Assim, recebem mais alusões as

peças que seus companheiros de travessia vestem do que personagens que só entram em sua

vida após deixar a jagunçagem, como seu compadre Quelemén de Góis. Vemos, portanto, que

o efêmero fazendeiro Seo Habão, por exemplo, tem suas vestes descritas quando aparece no

caminho da travessia do protagonista, na breve estadia de Riobaldo em sua fazenda, enquanto

o amigo-cumpadre Quelemém de Góis, conhecido somente pós-travessia jagunça, não ganha

nem um chapéu, símbolo de status masculino por séculos, de acordo com a sociologia da

indumentária (CRANE, 2006; ANAWALT, 2011). Só é contado ao interlocutor que

Quelemém plantava algodão, e, por associação, pode-se lembrar que o algodão foi a principal

matéria-prima para a confecção de roupas até a primeira metade do século XX (quando os

materiais sintéticos ganham força): “No tempo de maio, quando o algodão lãla8. Tudo o

branquinho. Algodão é o que ele mais planta, de todas as modernas qualidades: o rasga-letras,

bibol, e mussulim” (ROSA, 2015, p. 491).

Quelemén cultiva na terra do sertão uma das duas fibras vegetais mais antigas usadas

em fiação para tecelagem: o algodão e o linho. Há registros, como o de Heródoto (445 a.C.),

que descrevem essa ligação do algodão à indumentária humana: “Ali encontramos grandes

árvores em estado selvagem cuja fruta é uma lã melhor e mais bonita que a de carneiro. Os

8 Segundo Nilce Sant’Anna Martins (2020, p. 294), este é um neologismo com função poética, de João Guimarães Rosa, para o momento em que o algodão passa a “dar lã, abrir-se em flocos”, que é justamente quando possibilita a fiação para posteriormente servir à tecelagem.

65

indianos utilizam essa lã de árvore para se vestir” (HERÓDOTO, 445 a.C. apud PEZZOLO,

2017, p. 25). Assim, é como se Quelemén cultivasse o fio das gerações humanas, a origem do

tecer da indumentária que socializa o sujeito há mais de 3000 a.C., conforme confirmam os

registros antropológicos sobre o algodão como matéria-prima para a confecção de roupas

(ANAWALT, 2011, p. 18).

Curioso notar que a safra do algodão fica em ponto de colheita, quando “lãla”, ou seja,

se faz lã, podendo ser tecido, no mês de maio. Mês esse das mães, e de grandes

acontecimentos da vida de Riobaldo. Além disso, é o último trecho da narrativa em que se

toca em assunto que alude à indumentária, como se convidasse o leitor a tecer outros fios de

uma nova colheita da trama que se finda na palavra “Travessia” (ROSA, 2015, p. 492).

Para o desenrolar desta análise, optamos recortar por peças a indumentária rosiana de

Grande Sertão: Veredas. Assim, serão vistos os sapatos, chapéus, gibões, peças demarcadoras

de gênero e função social, não nos prendendo, a partir daqui, individualmente, a nenhuma

personagem, mas recortando o que, na trama, o vestuário teria a dizer.

4.1 Indumentária masculina: “macho em suas roupas”

De que jeito eu podia amar um homem, meu de natureza igual, macho em suas roupas e suas armas, espalhado rústico em suas ações?! (ROSA, 2015, p. 403).

A indumentária, assim como ocorre em toda a história humana, aparece para ilustrar

socialmente os sujeitos. Imersa no texto literário, a descrição de peças parece querer transpor

a realidade ao alcance das mãos do leitor. Demarca o tempo, o espaço e até mesmo os

sentimentos de quem interpreta o outro pelo que o encobre.

Ao falar de descrição de moda (exclusivamente acerca de vestuário), Barthes (2009, p.

33-34, grifo do autor) afirma: “Moda e literatura dispõem de uma técnica comum cuja

finalidade é parecer transformar um objeto em linguagem: é a descrição”. Então, inserida no

texto literário rosiano, as peças de vestuário assumiriam o gênero de uma descrição: a

descrição de indumentária, envolvendo o objeto real por um véu imaginário, transformando

em linguagem as marcas temporais, espaciais e psicológicas inerentes a cada peça descrita no

discurso de Riobaldo.

Poderíamos pensar, então, que a indumentária masculina, em Grande Sertão: Veredas,

seria como os pequenos contos que atravessam a narrativa, trazendo um fundo falso, um vão,

uma gaveta descritiva para indicar particularidades sobre cada personagem envolto por peças

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têxteis. Dessa forma, cada personagem é uma coisa-sujeito dentro da coisa-roupa. Nesse

sentido, Walnice Galvão (1972), ao falar sobre os contos dentro do contar de Riobaldo e

eleger a categoria “coisa dentro da outra” como matriz formal do romance, afirma:

(...) A imagem da coisa dentro da outra, visualmente tão impressiva e tão rica do significado global do romance — bem como dos fragmentos de significado que o compõem —, reitera-se em suas páginas em diversas variantes. Tôdas essas variantes giram em torno do fulcro central que lhes deu origem; o que varia é a natureza do material que põem em jogo, o espaço abrangido, o grau de abstração, etc. A coisa dentro da outra tanto pode tomar a forma de um bicho repulsivo como de um mau sentimento; ou então, a coisa pode estar contida por algo tão grande quanto a própria Terra ou tão pequeno como o ôlho de um homem; o ouvido e o som podem ser traços relevantes ou podem desaparecer inteiramente. Ainda, a coisa que está dentro da outra pode se dar à percepção apenas por um sinal externo, ou, ao contrário, é a menção dela que faz pressupor os efeitos que causa (GALVÃO, 1972, p. 121, grifo da autora).

Conforme afirma Galvão (1972), a menção da coisa pode “pressupor os efeitos que

causa”, como no caso do gibão — que veremos adiante —, que, ao ser citado, sendo uma peça

de indumentária tão característica de um espaço e de um tempo, traz à narrativa elementos

importantes para a compreensão tanto dos sujeitos que o vestiram quanto de informações que

foram além da descrição de vestuário em si. E, além do gibão, o que as outras peças de

indumentária mostram ou escondem?

As roupas masculinas, na narrativa de Riobaldo, parecem ter um alto valor. Assim,

necessitam ser guardadas e protegidas. Quando o bando de jagunços, comandados por

Medeiro Vaz, se dispersa para distrair os soldados que os perseguiam, o protagonista e

Sesfrêdo seguem juntos na busca por se esconder em um local seguro até que consigam

novamente se juntar aos companheiros de travessia. Nesse momento, Riobaldo tem o cuidado

de narrar: “Nossas armas, com parte de roupas, campeamos um seguro lugar, deixamos

escondidas” (ROSA, 2015, p. 68), demonstrando que mesmo em meio à guerra, à

perseguição, roupas e armas eram guardadas em lugar seguro, num modo de equivalência de

valor dos objetos.

As armas, sabemos, eram necessárias para a proteção e ataque no combate. Já sobre as

roupas, é possível que alguns fatores influenciassem a preocupação de guardá-las em local

seguro. Além do vestuário servir de proteção ao sujeito e o sinalizar socialmente, comprar

roupas exigia considerável desembolso, até o final do século XIX. Segundo Diane Crane

(2006),

Até a Revolução Industrial e o surgimento de vestuário confeccionado por máquinas, as roupas geralmente se incluíam entre os mais valiosos pertences de uma

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pessoa. Roupas novas eram inacessíveis aos pobres, que vestiam roupas usadas, normalmente passadas por muitas mãos antes de chegarem a eles. Geralmente, um homem pobre possuía um único conjunto de roupas. (...) Os que eram ricos o suficiente para possuir guarda-roupas consideráveis julgavam as roupas uma valiosa forma de propriedade para ser legada, após a morte, a parentes e criados. Os tecidos eram tão caros e preciosos que constituíam uma espécie de moeda de troca e frequentemente substituíam o ouro como forma de pagamento por serviços. Quando os recursos escasseavam, as roupas eram penhoradas juntamente com joias e outros valores (CRANE, 2006, p. 24-25).

Dessa forma, percebemos que guardar as roupas em meio à guerra no sertão era

importante para além da função que a peça cumpria em relação ao sujeito, mas por seu valor

financeiro. Nesse sentido, Riobaldo relembra também a sua herança após a morte de sua mãe,

Bigrí:

De herdado, fiquei com aquelas miserinhas — miséria quase inocente — que não podia fazer questão: lá larguei a outros o pote, a bacia, as esteiras, panela, chocolateira, uma caçarola bicuda e um alguidar; somente peguei minha rede, uma imagem de santo de pau, um caneco de asa pintado de flores, uma fivela grande com ornados, um cobertor de baeta e minha muda de roupa. Puseram para mim tudo em trouxa, como coube na metade dum saco (ROSA, 2015, p. 100-101, grifo nosso).

Vemos, portanto, que mesmo tendo lhe restado apenas umas “miserinhas”, o que faz

questão de levar é o que lhe parece importante, observando-se que dentre seis itens, três são

têxteis — a rede, o cobertor e as roupas — e dois são itens de indumentária — a fivela grande

com ornados e a muda de roupa. Tal fivela é curiosa na cena, porque é descrita com ornados.

Soa, assim, como um item feminino, algo que pudesse pertencer à mãe. Além disso, algo que

é ornado denota certa vaidade, uma peça que enfeita, que orna a indumentária do sujeito que a

veste.

Ainda ao relembrar sua infância, Riobaldo narra um dos episódios que para nós,

leitores, é dos mais marcantes: o encontro com o Menino no encontro de dois rios — o De-

Janeiro e o São Francisco. Na cena de sua memória, a demarcação de status pelas roupas é

explícita:

Ele, o menino, era dessemelhante, já disse, não dava minúcia de pessoa outra nenhuma. Comparável um suave de ser, mas asseado e forte — assim se fosse um cheiro bom sem cheiro nenhum sensível — o senhor represente. As roupas mesmas não tinham nódoa nem amarrotado nenhum, não fuxicavam (ROSA, 2015, p. 95, grifo nosso).

Enquanto isso, Riobaldo percebia-se: “(...) eu reparei, me acanhava, comparando como eram

pobres as minhas roupas, junto das dele (ROSA, 2015, p. 98, grifo nosso).

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As roupas dos dois meninos descritas pelo narrador constituem elementos

fundamentais para compreender a posição social de cada um deles no momento de seu

primeiro encontro. O Menino era Diadorim, filho de fazendeiro e chefe jagunço importante,

Joca Ramiro. E Riobaldo era um pobre menino, como sua mãe, desfrutando, somente após a

morte dessa, “do bom e do melhor” às custas de seu padrinho/pai Selorico Mendes, com quem

vai morar e que vai torná-lo herdeiro de duas “possosas” fazendas.

Quando se muda para a casa do pai/padrinho, de onde vai estudar no Curralinho,

residindo na casa de Nhô Marôto, amigo de Selorico, permanece amparado pela riqueza

paterna:

Lá eu não carecia de trabalhar, de forma nenhuma, porque padrinho Selorico Mendes acertava com Nhô Marôto de pagar todo fim de ano o assentamento da tença e impêndio, até da botina e roupa que eu precisasse. Eu comia muito, a despesa não era pequena, e sempre gostei do bom e do melhor (ROSA, 2015, p. 102, grifo nosso).

Notamos, também, que o advérbio “até”, no período grifado, salienta as despesas de

Riobaldo que corriam por conta de Selorico Mendes, parecendo mesmo ser uma espécie de

luxo pagar botina e roupa que o afilhado/filho precisasse, e permitindo ao protagonista uma

vida bem diversa da que tinha, anteriormente, com a mãe.

Poderíamos interpretar que, ainda que mencione tão poucas peças de indumentária na

narrativa de Grande Sertão: Veredas, o autor dá-lhes notável valor. Talvez João Guimarães

Rosa buscasse ser fiel ao reduzido guarda-roupas das famílias e indivíduos brasileiros do final

do século XIX e início do XX, já que, no Brasil, segundo Ruth Sepaul e Netília Seixas (2017),

as máquinas de costura domésticas chegariam somente em 1858, sob altos preços (por serem

produtos importados até 1950), com regras de parcelamento para a sua compra favorecendo,

majoritariamente, famílias abastadas e ateliês. Além disso, mesmo que tal produto tenha

chegado ao Brasil em 1858, a venda de máquinas de costura só foi regularizada em 1888,

tardando e dificultando a aquisição das mesmas. Para além, naquele mesmo ano houve a

abolição da escravatura, o que gerou problemas à escravocrata indústria têxtil artesanal,

reduzindo a escala de confecção de roupas devido à escassa mão de obra.

Há também o fato de que a população sertaneja brasileira vivia ainda mais afastada da

possibilidade de ter uma máquina de costura, o que dificultava o acesso ao vestuário. Nesse

sentido, vale observar, por exemplo, o estudo de Frederico Pernambucano de Mello (A

estética..., 2000) sobre a estética da indumentária dos cangaceiros nordestinos, sobre a qual o

historiador afirma que eles, como os do grupo de Virgulino Ferreira, o Lampião, costuravam

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suas próprias roupas nos acampamentos pelo sertão. Ao assaltar grandes fazendas, de famílias

muito abastadas, acabavam tomando para si objetos de grande valor, dentre eles, as joias, bem

como a própria máquina de costura Singer com a qual foi fotografado Lampião em seu labor

de alfaiate-bordador.

Assim, notamos que as roupas, no final do século XIX e início do XX, no Brasil, para

além da personalidade de cada sujeito e um código social de origem e bons modos,

denotavam riqueza, poder de posse e autoridade, o que se reflete na narrativa de Riobaldo,

como vemos na descrição da variedade de homens no acampamento do Hermógenes, durante

a perseguição a Zé Bebelo e seu bando:

Assaz toda espécie de roupa, divulguei: até sujeito com cinta larga de lã vermelha; outro com chapéu de lebre e colete preto de fino pano, cidadão; outros com coroça e bedém, mesmo sem chuva nenhuma; só que de branco vestido não se tinha: que com terno claro não se guerreia. Mas jamais ninguém ficasse nu-de-Deus ou indecente descomposto, no meio dos outros, isso não e não (ROSA, 2015, p. 142, grifo nosso).

Riobaldo descreve, assim, nesse curto trecho, a diversidade de classes sociais dos

sujeitos e permite “ler” o código de vestimenta que assinala o poder e o respeito entre os

companheiros tão diversos. Destacamos, do excerto, o “terno claro”, com o qual não se

guerreia no sertão, o que confirma o código de vestimenta imposto para os jagunços. Além

disso, visto que é branca a vestimenta, leva-nos a pensar na importância de permanecer limpo

o sujeito que o veste, sem manchas, sem a marca da vermelha terra pela qual atravessam e do

sangue que se espalha nos conflitos. A necessidade de estar vestido de acordo com a função

realizada explica a inadequação de tal terno na guerra, sendo restrito o mesmo aos que não

vão ao conflito, que permanecem imaculados. Assim, o terno claro nos leva a pensar em

grandes chefes, fazendeiros, políticos importantes, donos das ordens, mas que nunca as

executam.

Para além disso, tem-se “toda espécie de roupa”, ou seja, toda espécie de sujeitos,

como os que veremos, adiante, através dos detalhes da indumentária analisados

separadamente por cada peça, como forma de organizar e dar atenção a algumas significações.

4.1.1 Gibão: o jagunço antigo

A palavra “gibão” ocorre somente cinco vezes em todo o Grande Sertão: Veredas, o

que é curioso para um romance com tantos jagunços, mas isto não reduz a importância desta

70

indumentária. Pelo contrário, seu uso na narrativa pontua marcos temporais, aspectos sociais

e, até mesmo, devaneios sentimentais do próprio Riobaldo.

É válido, primeiramente, saber que gibão é uma peça de vestuário tradicionalmente

utilizada por vaqueiros do norte e nordeste do Brasil. É uma “espécie de casaco curto de couro

us. pelos vaqueiros” (MARTINS, 2020, p. 249), geralmente com cordões de amarração

entrelaçados na parte frontal do peito; uma armadura para a sobrevivência na paisagem

espinhenta e ensolarada dos sertões, conforme já descrevera Euclides da Cunha, em Os

sertões, ao falar sobre “O homem”:

O seu aspecto recorda, vagamente, à primeira vista, o de guerreiro antigo exausto da refrega. As vestes são uma armadura. Envolto no gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta; apertado no colete também de couro; calçando as perneiras, de couro curtido ainda, muito justas, cosidas às pernas e subindo até as virilhas, articuladas em joelheiras de sola; e resguardados os pés e as mãos pelas luvas e guarda-pés de pele de veado — é como a forma grosseira de um campeador medieval desgarrado em nosso tempo. (...) Vestidos doutro modo não romperiam, incólumes, as caatingas e os pedregais cortantes (CUNHA, 2016, p. 119, grifo em itálico do autor, grifo em negrito nosso).

De forma diversa ao que faz Euclides da Cunha, o que encontramos em Rosa são

apenas fragmentos da indumentária. O gibão, em Grade Sertão: Veredas, aparece sozinho,

isolado do traje quase sempre. A primeira vez que se inscreve no texto, vem demarcando um

tempo que se foi, uma moda ultrapassada narrada por Riobaldo no início de seu contar:

Agora — digo por mim — o senhor vem, veio tarde. Tempos foram, os costumes demudaram. Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada. Os bandos bons de valentões repartiram seu fim; muito que foi jagunço, por aí pena, pede esmola. Mesmo que os vaqueiros duvidam de vir no comércio vestidos de roupa inteira de couro, acham que traje de gibão é feio e capiau (ROSA, 2015, p. 33, grifo nosso).

Observamos que, de toda a “roupa inteira de couro”, a única peça que ganha

nomenclatura específica é o gibão. Assim, é possível notar a importância e singularidade do

mesmo. Além disso, notamos que o trecho traz a referência à moda da indumentária que, com

o passar do tempo, sofreu modificações, já que, enquanto no período de jagunço de Riobaldo,

o gibão e a roupa inteira de couro eram, para além da armadura, o costume, o usual, o bonito.

Dentre as possíveis motivações para o uso do gibão, na obra rosiana, vemos o intuito

de proteção, já que a travessia se dá pelo sertão e sua diversidade climática, onde os jagunços

enfrentam tanto o árido e quente Liso do Sussuarão quanto o tempo das tempestades. Dessa

71

forma, estar vestido com algo que protegesse o corpo era necessário para suportar ora o sol

forte ora o frio e a chuva.

Além disso, partindo do pressuposto de que casacos de couro, como o gibão, passaram

a ser confeccionados com o intuito de proteção contra tiros em combates, conforme, por

exemplo, o registro de Anawalt (2011, p. 505) ao falar sobre o “casaco de sete camadas de

couro de cavalo” dos guerreiros tehuelches, da Patagônia, do início do século XIX,

lembramo-nos que, no sertão rosiano, o couro segue a mesma função de proteção, como no

combate na Fazenda dos Tucanos em que se estendem os couros, tapando as janelas para que

as balas dos inimigos ricocheteiem e caiam no chão, sem atingir o bando de Riobaldo,

comandado naquele momento por Zé Bebelo:

Na janela, ali, tinham pendurado igualmente um daqueles couros de boi: bala dava, zaque-zaque, empurrando o couro, daí perdia a força e baldava no chão. A cada bala, o couro se fastava, brando, no ter o choque, balangava e voltava no lugar, só com mossa feita, sem se rasgar. Assim, ele amortecia as todas, para isso era que o couro servia (ROSA, 2015, p. 273).

Servindo o couro de obstáculo no caminho das balas, vestidos de gibão de igual

material, os jagunços usavam a mesma estratégia de proteção, encobrindo a própria pele e o

lugar dos principais órgãos vitais com outras camadas de pele, o couro bovino, e, assim,

buscavam poupar o corpo do ataque das balas alheias. O gibão, assim, em primeiro momento,

pela função do vestuário em si na história da indumentária, é proteção.

Mas, vestidos de couro, o gibão transforma também os jagunços em gado, homem em

pele de bovino, homem-boi do sertão. Nesse sentido, Walnice Galvão (1972, p. 28), ao falar

do couro, destaca que por Riobaldo “os jagunços são vistos como rebanho”. E procurando em

toda a narrativa, percebemos que Riobaldo não se coloca em um gibão. O narrador, nesse

sentido, parece “animalizar” os companheiros, até mesmo Diadorim, mas não nos fornece sua

própria imagem nesta peça de indumentária tão ilustrativa do sujeito jagunço.

Além de homem-boi, — com a informação do casaco de sete camadas de couro de

cavalo em mente, conforme Anawalt (2011) — a trama parece se costurar à mitologia, aonde

cada jagunço poderia ser também, por estar vestido de couro da cabeça aos pés e montado em

cavalo, uma espécie de centauro, cuja “animalização” é reforçada em trechos como o que

Riobaldo descreve sobre avistar pela primeira vez o bando de Joca Ramiro, recém-chegado e

acampado na fazenda São Gregório, de seu pai/padrinho Selorico Mendes:

72

Aí mês de maio, falei, com a estrela-d’alva. O orvalho pripingando, baciadas. E os grilos no chirilim. De repente, de certa distância, enchia espaço aquela massa forte, antes de poder ver eu já pressentia. Um estado de cavalos. Os cavaleiros. Nenhum não tinha desapeado. E deviam de ser perto duns cem. Respirei: a gente sorvia o bafejo — o cheiro de crinas e rabos sacudidos, o pelo deles, de suor velho, semeado das poeiras do sertão. Adonde o movimento esbarrado que se sussurra duma tropa assim — feito de uma porção de barulhinhos pequenos, que nem o dum grande rio, do a-flôr. A bem dizer, aquela gente estava toda calada. Mas uma sela range de seu, tine um arreaz, estribo, e estribeira, ou o coscós, quando o animal lambe o freio e mastiga. Couro raspa em couro, os cavalos dão de orêlha ou batem com o pé. Daqui, dali, um sopro, um meio-arquêjo. E um cavaleiro ou outro tocava manso sua montada, avançando naquele bolo, mudando de lugar, bridava. Eu não sentia os homens, sabia só dos cavalos. Mas os cavalos mantidos, montados. É diferente. Grandeúdo. E, aos poucos, divulgava os vultos muitos, feito árvores crescidas lado a lado. E os chapéus rebuçados, as pontas dos rifles subindo das costas. Porque eles não falavam — e restavam esperando assim — a gente tinha medo. Ali deviam de estar alguns dos homens mais terríveis sertanejos, em cima dos cavalos teúdos, parados contrapassantes. Soubesse sonhasse eu? (ROSA, 2015, p. 105-106, grifo nosso).

A descrição mistura homens e cavalos, entrelaçando características que se confundem

ou que fundem ambos. Assim, ao mesmo tempo em que restam calados os homens, também

rangem os couros que se raspam. E quais são os couros que se raspam? De cavalo com cavalo,

de homem com cavalo, de homem com homem? O protagonista, em meio há uns cem

homens, não os sente, sabe só dos cavalos. Os homens não falam, mas a imponência de seu

tamanho homem-cavalo-jagunço desperta medo. A figura do centauro sertanejo, então,

emerge das entrelinhas do discurso de Riobaldo também pela descrição, na qual o vestuário,

mesmo sem ser citado peça por peça, está presente nos couros que ilustram o homem e o

cavalo como um só.

Outro aspecto interessante sobre essa “animalização” é que os chefes também são

diferenciados por Riobaldo do resto do bando, comparando-os a touros solitários, segundo

Galvão (1972), mas não se encontrando, na descrição, indicativo de que vestissem roupa

inteira de couro. Mesmo quando na recepção do bando de Joca Ramiro na fazenda de Selorico

Mendes, Riobaldo presencia todos “trajados de capotes e capas” (ROSA, 2015, p. 104), mas

não cita a matéria-prima de tais vestimentas.

Somente um dos chefes ganha explicitamente o gibão, detalhe que soa como um

demarcador de peça antiga, ao vestir com ele Sô Candelário. É como se o gibão sinalizasse a

antiguidade de um jagunço, considerando-se a época em que Riobaldo pertencia ao bando.

Assim, o protagonista descreve que, ao ser solicitada a opinião de tal chefe no julgamento de

Zé Bebelo, sob o comando de Joca Ramiro, ouve-se: “Sobre o que, sobreveio Sô Candelário,

arre avante, aos priscos, a figura muita, o gibão desombrado” (ROSA, 2015, p. 222). Nesse

momento da narrativa, a solução que Sô Candelário propõe acerca do prisioneiro Zé Bebelo é

73

um duelo de faca, ação bastante rústica, antiga, já que não envolve as modernas armas, mas,

sim, uma das formas de defesa e ataque mais antigas usadas pelo ser humano. Além disso,

indica a hombridade de Candelário ao propor o corpo-a-corpo, estando ele protegido por seu

gibão.

O adjetivo “desombrado”, escolhido pelo autor, apesar de soar familiar, não é uma

palavra dicionarizada em Língua Portuguesa. E fugiu ao dicionário de Nilce Sant’Anna

Martins (2020), em O Léxico de Guimarães Rosa, já citado anteriormente nesta pesquisa. A

autora Patrizia Bastianetto (1998), ao analisar a tradução dos neologismos de Rosa para o

italiano, informa: “Para a tradução do neologismo ‘desombrado’, na descrição do giibão (sic),

o tradutor emprega a locução giiidallespalle, ‘abaixo do ombro’. A modalidade tradutória é,

portanto, a equivalência” (BASTIANETTO, 1998, p. 131). Assim, temos que “desombrado”

seria um gibão posto abaixo do ombro ou, melhor, pendurado nos ombros, para uma lógica no

português.

Entendemos, ainda, que o prefixo des-, além de ser seguido de ombr (que remete

mesmo a ombro ou caído dos ombros), ecoa de -sombra, compondo “desombrado”, podendo

remeter também à des + sombra, ou seja, à ausência de sombra: um gibão sem sombra,

iluminado, claro como a opinião de Sô Candelário ao propor um duelo à faca para Zé Bebelo,

sem contornos em sua decisão, simples e direto no sertão onde “jagunço com jagunço — aos

peitos, papos” (ROSA, 2015, p. 222). Observando-se também que peito é justamente o local

de proteção do gibão, bem como as costas e os braços.

Além disso, a ligação gibão e sombra poderia remeter a um passado obscuro, de ações

do mal, ilustrando um sujeito das sombras, como foi o comportamento dos jagunços e

cangaceiros na história brasileira. E é justamente pela má fama que Riobaldo afirma logo no

início da narrativa que tinha ido consultar um médico em Sete Lagoas, e para isso escolhera

sua indumentária de forma a evitar que pudessem o confundir com jagunço: “Fui vestido bem,

e em carro de primeira, por via das dúvidas, não me sombrearem por jagunço antigo”

(ROSA, 2015, p. 27, grifo nosso). Logo, “vestido bem” se afastava do sombreamento do

passado violento, do lugar na sombra que o jagunço ocupa.

Retomando, ainda, a ideia do marco temporal inscrito no gibão de Sô Candelário,

temos, na peça, um indicador cronológico social, pois é o jagunço antigo que resiste,

resistência essa inscrita na moda.

Já em outra ocorrência do aparecimento do gibão na narrativa, a sinalização temporal

parece apontar também para uma marcação psicológica do tempo. Riobaldo, ainda em meio à

perseguição sofrida pelo bando comandado então por Medeiro Vaz, conta: “Diante de mim,

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nunca terminava de atar as correias do gibão um Cunha Branco, sarado, cabra velho

guerreiro” (ROSA, 2015, p. 68). Percebemos, então, os seguintes aspectos: o gibão como uma

indumentária com várias correias que se necessitam atar para estar protegido na guerra, o que

confirma sua função de armadura; o jagunço que o vestia era um “velho guerreiro”,

reafirmando a moda antiga inerente à peça; e, ao se referir à demora no atar as correias do

gibão, pode-se ler que esse tempo era moroso para um Riobaldo ansioso, o que induz também

à leitura de um tempo psicológico.

Vemos, então, que o gibão, além de proteção, costura-se à cronologia do conflito, da

guerra. A indumentária ata-se à trama narrativa para pontuar o tempo dos acontecimentos

passados.

Posteriormente, a peça de couro aparece no nome de uma árvore: “Agalopando assim,

joguei fora meu revólver. Joguei — ou foi um ramo de rompe-gibão que relou arrancando a

arma de meu pulso” (ROSA, 2015, p. 402, grifo nosso). Na cena, Riobaldo se afasta do bando

que agora ele mesmo comanda, e caça um homem leproso que havia avistado. Diadorim o

segue e, em meio à distração com a presença do companheiro, o leproso acaba por fugir de

Riobaldo.

A árvore é chamada de “rombe-gibão”, dentre outros nomes, por possuir em seus

galhos espinhos grandes (SAPUTIABA, 2020), que seriam eficazes para rasgar até mesmo

um gibão de couro. Além disso, a espécie só nasce perto de cursos d’água ou do mar.

Juntando-se as informações sobre o nome da árvore ao fato da perseguição ao leproso

acontecer pouco antes de Riobaldo anunciar que iria atravessar o Liso do Sussuarão,

percebemos que há uma metáfora anunciando os perigos que viriam romper na travessia.

Assim, “rompe-gibão” também aponta para o caminho tortuoso, espinhento que o bando

enfrentaria logo em seguida. Serve também de indicativo de coragem com o gibão de cada

jagunço a romper o Liso do Sussuarão.

Os galhos da árvore, ainda, desarmam Riobaldo, bem como a presença de seu amigo

Diadorim. Seria o “rompe-gibão” um anúncio do segredo de Diadorim que o vestuário

esconde? Ao romper, rasgar como no final do romance, à faca, suas vestes de jagunço,

revelando o corpo feminino desse. O desarmar do protagonista por um rompe-gibão seria uma

metáfora da revelação do corpo de Diadorim?

Propomos essa “perigosa” ilação devido à sequência que se dá à narrativa: “Joguei —

ou foi um ramo de rompe-gibão que rolou arrancando a arma de meu pulso. Cheguei, esbarrei.

Meu cavalo, tão airoso, batia mão, rapava; ele deu um bufo de burro. Vi Diadorim” (ROSA,

2015, p. 402). Riobaldo vê Diadorim, após ser desarmado por um rompe-gibão. E no

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parágrafo seguinte, desarma seu sentimento, revelando o conteúdo de seu próprio peito quanto

ao companheiro e faz ainda menção ao vestuário masculino do mesmo:

Mas Diadorim, conforme diante de mim estava parado, reluzia no rosto, com uma beleza ainda maior, fora de todo comum. Os olhos — vislumbre meu — que cresciam sem beira, dum verde dos outros verdes, como o de nenhum pasto. E tudo meio se sombreava, mas só de boa doçura. Sobre o que juro ao senhor: Diadorim, nas asas do instante, na pessoa dele vi foi a imagem tão formosa da minha Nossa Senhora da Abadia! A santa... Reforço o dizer: que era belezas e amor, com inteiro respeito, e mais o realce de alguma coisa que o entender da gente por si não alcança. Mas repeli aquilo. Visão arvoada. Como que eu estava separado dele por um fogueirão, por alta cerca de achas, por profundo valo, por larguez enorme dum rio em enchente. De que jeito eu podia amar um homem, meu de natureza igual, macho em suas roupas e suas armas, espalhado rústico em suas ações?! Me franzi. Ele tinha a culpa? Eu tinha a culpa? Eu era o chefe. O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa... Aquilo eu repeli? (ROSA, 2015, p. 403, grifo nosso).

E antes que a qualquer conclusão chegasse sobre a possibilidade de seu amor pelo

homem “macho em suas roupas”, o próprio Diadorim recolhe do chão e entrega novamente a

arma à Riobaldo, armando-o novamente, como quem se fecha num gibão.

Além disso, na última citação ao gibão, a indumentária aparece novamente com a

imagem de Diadorim atrelada. Na memória de Riobaldo, há as recordações de seus devaneios

durante a travessia. E é em meio a um desses devaneios que novamente o gibão é citado na

narrativa para imaginar seu reencontro com Diadorim após ter procurado Otacília pelo sertão,

antes de finalmente caminhar ao Paredão, onde acontece o conflito final do romance. Assim,

lemos:

Agora minha alegria era mais minha, por outro destino. Otacília ia ter boa guarda. E então, por uma vez, eu peguei o pensamento em Diadorim, com certo susto, na liberdade. Constante o que relembrei: Diadorim, no Cererê-Velho, no meio da chuva — ele igual como sempre, como antes, no seco do inverno-de-frio. A chuva água se lambia a brilhos, tão tanto riachos abaixo, escorrendo no gibão de couro. Só esses pressentimentos, sozinho eu senti. O sertão se abalava? (ROSA, 2015, p. 464, grifo nosso).

Para além de imaginar Diadorim na roupa típica dos velhos jagunços, como vimos nas

outras aparições dessa peça, há certa sensualidade que enlaça um enorme traço erótico com a

liquidez da água, inequívoco símbolo do feminino, ao couro do gibão. A saudade faz com que

Riobaldo, tendo passado algum tempo distante, retorne devaneando Diadorim na chuva, no

gibão molhado. O uso do verbo “lambia” reforça o tom erótico na imaginação do

protagonista, bem como “escorrendo”. Dessa forma, o gibão aparece compondo-se como uma

peça misturada (feminina/masculina) e sensual a tomar o pensamento do narrador. Ao mesmo

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tempo, sabemos que Diadorim foi morto a facadas. Assim, notamos que os pressentimentos

aos quais Riobaldo desconfia sentir sozinho podem estar ligados ao próprio sangue, o líquido

de Diadorim a escorrer no gibão, dando a chuva o tom melancólico à cena.

Portanto, apesar das poucas ocorrências, o gibão de Rosa participa da narrativa para

demarcar aspectos importantes da obra, costurando personagens a tempo e espaço específicos,

além de reforçar o encobrimento/descobrimento do segredo do corpo de Diadorim.

4.1.2 Calça: o homem

Atualmente, pensar em uma mulher vestindo calças não constitui uma diferença

significante em relação a um homem com tal peça de vestuário. Porém, até 1939, as calças

representavam um dos principais itens do vestuário masculino, ou seja, até a primeira metade

do século XX, a indumentária feminina era restrita a saias e vestidos. O uso de calças por

mulheres na cultura ocidental teve um marco principal: a Segunda Guerra Mundial. Assim,

“(...) pela primeira vez, usar calças de corte masculino na vida cotidiana tornou-se aceitável

para as mulheres; as calças ajudavam na mobilidade e evitavam a necessidade de usar meias”

(FOGG, 2013, p. 283).

Sobre a calça, nos séculos XIX e XX, Diane Crane (2006) afirma:

O papel da calça no vestuário feminino, ao longo do século XIX, ilustra as diferentes atitudes com relação ao vestuário entre as mulheres de classe média e as de classe operária. A cultura da era vitoriana associava calça à autoridade masculina. As reformadoras de vestuário tentaram convencer as mulheres de classes média e alta a usá-las, mas no geral não tiveram sucesso, provavelmente porque a visão que se tinha das mulheres que usavam calças era a de que tentavam usurpar a autoridade masculina (CRANE, 2006, p. 255, grifo nosso).

Pelo sertão, até mesmo as cangaceiras que compunham o bando de Lampião, como

Maria de Déa (conhecida como Maria Bonita, após a morte), atravessavam a caatinga

espinhenta usando saias ou vestidos de tamanho midi ou na altura dos joelhos, com meias

grossas e alpercatas de couro (A estética..., 2000; FEMININO... 2016).

Logo, não era costume no Ocidente mulheres usarem calças no final do século XIX e

início do XX, tempo no qual se passa a estória narrada por Riobaldo. Assim, temos algumas

calças em Grande Sertão: Veredas, todas simbolizando os sujeitos como homens.

A calça é uma peça que aparece mais vezes na narrativa do que o gibão. Mas é

mantida a economia de descrição da indumentária.

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Sabemos que Riobaldo não se coloca em um gibão. E é curioso que com a calça o

mesmo venha a acontecer. Apesar de possuir a peça, nas duas ocorrências relativas a si em

que aparece, ele não a veste. Assim, o narrador conta, na primeira citação a essa peça: “Ele

[Diadorim] tinha lavado minha roupa: duas camisas e um paletó e uma calça, e outra camisa,

nova, de bulgariana” (ROSA, 2015, p. 40, grifo nosso) e a cena que antecede essa é o

encontro com Ana Duzuza, no qual descobre que Medeiro Vaz iria atravessar o Liso do

Sussuarão. Já na segunda vez, conta: “tinha pegado calça e camisa em mão, e esbarrei, num

demorado sem termo, no meio de me revestir, e eu num latejo frouxo pensando: – Não chego

em tempo... Não adianta... Não chego em tempo nenhum...” (ROSA, 2015, p. 470, grifo

nosso), episódio acontecido quando o conflito final com o bando do Hermógenes explode no

Paredão.

Notamos, então, que as duas citações sugerem que antes dos maiores perigos de sua

travessia — o Liso do Sussuarão e o confronto com os hermógenes — Riobaldo é “pego com

as calças nas mãos”, conforme o dito popular: ora nas próprias mãos, ora nas mãos de

Diadorim. A autoridade do protagonista, inscrita na masculinidade de sua calça, parece

abalada, já que ele não se encontra devidamente vestido para o evento.

Já sobre as calças alheias, Riobaldo descreve outras três personagens com a peça,

sendo o amigo Diadorim, o inimigo Hermógenes e o menino Guirigó.

No caso de Diadorim, a calça se funde ao corpo do sujeito. Assim, Riobaldo narra que,

em meio à perseguição ao grupo de Zé Bebelo, sob o comando de Joca Ramiro, em

determinado momento, o bando encontra-se descansando. E, na cena em questão, após ter

ficado um tempo deitado, “Diadorim se levantou, ia em alguma parte. Guardei os olhos, meio

momento, na beleza dele, guapo tão aposto — surgido sempre com o jaleco, que ele tirava

nunca, e com as calças de vaqueiro, em couro de veado macho, curtido com aroeira-brava e

campestre” (ROSA, 2015, p. 151, grifo nosso). Assim, notamos que a escolha vocabular de

Rosa para descrever o material da calça de Diadorim parece anunciar algo sobre o gênero do

corpo que Riobaldo observa: “macho”. O vocábulo “veado” remete tanto ao animal do qual se

usa o couro para a confecção de tal calça, quanto ao uso em linguagem informal para se

referir à pessoa homossexual do sexo masculino (MICHAELIS, 2021). Além disso, nas

espécies de veados que ocorrem no Brasil, não há diferença de coloração entre a fêmea e o

macho, sendo os chifres os demarcadores de gênero, pois aparecem somente nos machos

(ARAGUAIA, 2021; LACERDA, 2008). Assim, quando Riobaldo vê a calça de Diadorim e a

descreve como feita com “couro de veado macho”, é possível entender a ambiguidade

78

presente nas calças do amigo, misturando-se a peça de indumentária ao gênero do corpo de

Diadorim interpretado pelo protagonista.

Já em outro momento, após o primeiro conflito do bando de Joca Ramiro contra os zé-

bebelos, Diadorim/Reinaldo se ausenta e Riobaldo tem notícias do amigo por outro jagunço:

E dizendo vou. No mais, que quando se alcançou o nosso bom esconder, num boqueirãozinho, já achamos companheiros outros, diversos, vindos de armas, e que chegavam separadamente, naquela satisfação de vida salva. Um era o Feijó. Será, se tinha avistado o Reinaldo sem perigo? A meio perguntei. Por causa que só em Diadorim era que eu pensava. O Feijó em tanto tinha notado: Diadorim, na retirada, bem conseguido; depois se retrasou, por uma cacimba de grota. — “...Estava com sangue numa perna de calça. Para mim, foi nada, arranho à-tôa...” O que me ensombreceu — então Diadorim estava ferido (ROSA, 2015, p. 184, grifo nosso).

Dessa forma, notamos que Feijó anuncia o ferimento de Diadorim fazendo da calça a própria

perna. A perna da calça estava com sangue; logo, o sujeito que a vestia estava ferido, o que

concluiu Riobaldo. A calça se funde ao corpo, sendo a própria pele do sujeito a sangrar. A

calça como a pele é material que se rasga e sangra.

Além disso, o fato de Diadorim sempre vestir calças, e não vestidos ou saias, no final

do século XIX e início do XX, permite-nos a observação sobre sua masculinidade e sua

autoridade no sertão, como homem e não como uma mulher vestida de homem. Como vimos,

segundo Frederico Pernambucano de Mello (A estética..., 2000; FEMININO... 2016), mesmo

em combate, as cangaceiras usavam vestidos e saias. As mulheres guerreiras do sertão podiam

usar chapéus, lenços de seda importados e todos os demais acessórios que os homens usavam,

com exceção das armas de maior tamanho e as calças. Esses itens, pelo sertão brasileiro,

pertenciam somente aos homens. Portanto, Diadorim em suas calças de veado macho poderia

ser um homem homossexual, ou ainda, como questionado por Laísa Bastos (2016), um

homem transexual homossexual:

Nunca saberemos por que Diadorim se apresenta como homem. Seria apenas um disfarce, como sugere o mito da donzela guerreira? Trata-se de uma identificação psico-social (sic) da personagem com o gênero masculino? Sabemos contudo que é assim que ele se apresenta enquanto personagem viva. Se, como afirmou Simone de Beauvoir, uma mulher não nasce mulher, torna-se, podemos conjecturar que Diadorim torna-se homem a partir de sua performatividade masculina. (...) se pensarmos em Diadorim como um homem trans também ele nutriria pelo amigo um desejo homoafetivo, irreconciável (sic) com a imagem que tem de si mesmo como um “jagunço muito macho”. Sob essa perspectiva, como pode a crítica, a exemplo do personagem Riobaldo, afirmar com exatidão o gênero de Diadorim? Esse é um problema que Riobaldo resolve para si, mas que Guimarães Rosa não resolve para nós, leitores (BASTOS, 2016, p. 338; 341, grifo em itálico da autora, grifo em negrito nosso).

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Portanto, as calças de Diadorim representam a peça principal para a afirmação de sua

sexualidade e gênero. E sendo tão importantes para a personagem e para a sustentação da

narrativa, entende-se a naturalidade com que se funde ao corpo da mesma, rasgando-se e

sangrando como sua pele ferida em combate.

Há, ainda, a descrição dessa vestimenta no antagonista, Hermógenes. Riobaldo

menciona duas vezes as calças do inimigo, em dois momentos marcantes para a guerra contra

Zé Bebelo.

Primeiramente, estando na Fazenda São Gregório, de Selorico Mendes, em certa

madrugada, conhece os famosos jagunços que seu padrinho/pai tanto mencionava, quando

contava seus causos. Assim, dentre os seis homens ali presentes na casa principal para

tratarem do início da luta contra os bebelos, Riobaldo nota: “(...) As calças dele [Hermógenes]

como que se enrugavam demais da conta, enfolipavam em dobrados. As pernas, muito

abertas; mas, quando ele caminhou uns passos, se arrastava — me pareceu — que nem queria

levantar os pés do chão (...)” (ROSA, 2015, p. 105).

Temos, então, um Hermógenes pesado, preso ao chão, arrastando-se como cobra, e

com calças que se dobram de tão grandes para o corpo pequeno que as veste; calças que se

dobram como pele que cobra troca. Tem-se, portanto, uma personagem pequena dentro de

uma peça de indumentária grande, deixando, assim, Hermógenes reduzido na descrição da

cena. Então, Riobaldo, quando vê pela primeira vez Hermógenes, o vê como um chefe

reduzido, socado em suas roupas grandes. Tem-se também alguém sob o peso da perseguição,

que se esgueira pelo solo, que se arrasta sem levantar os pés do chão. Ou ainda, um herói

inferior na gradação aristotélica dos heróis, como lê David Arrigucci (1994), em seu ensaio

“O mundo misturado: romance e experiência em Guimarães Rosa”, em que frisa que

Hermógenes é um ser híbrido de jiboia, ser ctônico, como um ser que emerge da terra.

Já a segunda observação sobre as calças do antagonista aconteceu enquanto estavam

acampados no Cansanção-Velho, poucos dias antes da explosão do conflito final contra o

bando de Zé Bebelo. Assim, Riobaldo traz uma descrição paradoxal àquela primeira, na qual

Hermógenes é “narrado” assim:

Naqueles dias ele andava de pé-no-chão, mais com uma calça apertada nas canelas e encurtada, e mesmo muito esmolambado na camisa. Até que de barba grande, parecia um pedidor. E caminhava com os largos passos, mais o muito nas pontas, vinha e ia com um sorrizinho besteante, rodeava por toda a parte (ROSA, 2015, p. 197).

80

Logo, essa descrição nos apresenta um Hermógenes que parece crescer além do tamanho de

seu vestuário, com uma calça apertada nas canelas e encurtada, como uma criança que cresceu

e continua a usar suas calças curtas. O corpo do antagonista, sob essa ótica, aparece

aumentado em relação ao vestuário, como se a importância dele no bando também

representasse maior poder pouco antes da captura de Zé Bebelo. Além disso, a forma leve

como ele anda sugere certa autoconfiança. E lembra, até mesmo, um balé, onde com calças

apertadas rodopia nas pontas dos pés em passos largos.

A descrição das calças de Hermógenes cria uma alegoria sobre o tamanho do corpo da

personagem, como figurino de teatro cujas proporções são ora muito aumentadas, ora muito

reduzidas, para causar ilusão de ótica nos espectadores, conotando, dessa forma, aspectos

sobre seu estado psicológico. Quando acuado, Hermógenes se encolhe; quando confiante em

sua vitória, parece maior e à vontade no sertão.

Por fim, as últimas calças citadas por Riobaldo vestem o menino Guirigó, no

inesperado encontro quando o bando de jagunços, comandado naquele momento por Zé

Bebelo, após a guerra na Fazenda dos Tucanos, passa pela abandonada fazenda de Seo Habão,

onde Guirigó praticava pequenos furtos:

Um rapazola retinto, mal aperfeiçoado; por dizer, um menino. Nu da cintura para os queixos. As calças, rotas em todas as partes, andavam cai’caindo; ele apertou perna em perna. (...) Cuido que por não perder de todo as calças como vestimenta, ele se ajoelhou — chato no chão, mais deitado do que ajoelhado. — “A benção!” — pois disse. (...) Arte que a aproveitar, ele tornou a atar melhor o resumo de embira, que cinturava aqueles molambos de calças (ROSA, 2015, p. 324).

As calças de Guirigó lembram as de Tiãozinho, do conto “Conversa de bois”, que

vimos no subcapítulo 3.2 deste trabalho. Calças que caem, largas, grandes demais para o

corpo que as veste. A mesma estratégia, então, é notada na escrita de Rosa: fazer os meninos

parecerem bem pequenos a partir de sua indumentária. Além disso, pode ser também pensada,

como naquele conto, sobre roupas herdadas, doadas, ou, no caso específico de Guirigó,

furtadas de sítios abandonados.

Além disso, as calças de Guirigó eram “rotas em todas as partes”, “molambos”, o que

denuncia sua condição social de miséria, pobreza. E mesmo nu da cintura para cima e

furtando em fazenda alheia, o menino parece querer obedecer ao código de respeito, evitando

ficar nu de todo, mantendo-se vestido como pode, em meio a seu susto ao ser interceptado

81

pelos jagunços. Guirigó aperta melhor a corda, “o resumo da embira” que segurava suas

calças, conseguindo desse modo se recompor, apesar de sua meia nudez.

Mesmo sendo um “Menino muito especial” (ROSA, 2015, p. 325), por sugestão de

suas feições, traços físicos e certo desconcerto na coordenação motora9, Guirigó entende a

importância de sua vestimenta para não desrespeitar os demais ao redor e para ser

reconhecido como homem, como ser humano. Nesse sentido, podemos recordar que,

anteriormente, outro menino, também especial, foi morto e comido pelo bando de jagunços ao

ser confundido com um macaco, o chamado José dos Anjos, que se encontrava “nu por falta

de roupa” (ROSA, 2015, p. 56).

Logo, as calças de Guirigó sinalizavam seu tamanho, sua pobreza e o configuravam

como homem em meio ao sertão. E a cena toda atrapalhada da sua tentativa de segurar as

calças demonstra sua dificuldade de habilidade motora, reforçando sua condição de “Menino

muito especial”.

Vimos, portanto, que João Guimarães Rosa se vale de diversas estratégias no uso das

calças em suas personagens. Mas todas elas afirmam a masculinidade do sujeito,

diferenciando-o das mulheres e dos animais. A calça faz do homem: homem e macho. Afirma

sua liberdade de movimentação quando devidamente vestida. Sugere, ainda, condições

sociais, físicas e psicológicas dos sujeitos. A calça, portanto, traz um leque de significados

mais diversos do que o gibão.

Porém, como não convém permanecer nem meio nu no sertão, veremos adiante o que

cobre o peito das personagens masculinas, dentre camisas, coletes-jalecos e tudo o mais,

descrito por Riobaldo.

4.1.3 Camisa estampada: o “pano do destino”

A camisa do final do século XIX e início do XX, segundo Diane Crane (2006), pode

ser pensada como o que hoje percebemos sobre a camiseta: uma peça democrática, de ampla

acessibilidade por todas as classes, diferenciando-se o seu preço pela matéria-prima e local de

produção. Em Grande Sertão: Veredas, há algumas dessas peças descritas que pedem nossa

atenção. Deter-nos-emos, então, em alguns aspectos sobre camisas que são “usadas” no texto

rosiano.

9 Características que podem sugerir, talvez, ser Guirigó um menino portador de Síndrome de Down: “(...) Olhos dele eram externados, o preto no meio dum enorme branco de mandioca descascada. (...) E quando espiava para a gente, era de beiços mostrando a língua à grossa, colada no assoalho da boca, mas como se fosse uma língua demasiada demais, que ali dentro não pudesse caber (...). Menino muito especial. (...).” (ROSA, 2015, p. 325).

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O primeiro aspecto se liga ao fato de que Riobaldo descreve a camisa por sua matéria-

prima ou estampa que aponta para o desenho xadrez, o que poderia reproduzir as

encruzilhadas. Assim, têm-se “camisa, nova, de bulgariana” (ROSA, 2015, p. 40), “camisa de

xadrezim” (ROSA, 2015, p. 180) e “camisa de baetilha” (ROSA, 2015, p. 481), cada uma

pertencendo a uma personagem diversa.

Para compreender a camisa de xadrezim é necessário saber que, na tecelagem, xadrez

é um desenho feito geralmente no ato de tecer linhas de cores complementares (como a

vermelha na trama e a verde no urdume) para criar uma série de múltiplos quadrados que

formam encruzilhadas na estampa. Essa camisa, então, veste o jagunço Garanço, companheiro

de luta de Riobaldo, durante o primeiro confronto contra o bando de Zé Bebelo:

Ao que, eu descansava meus olhos nas costas do Garanço, ali quase em minha frente. O Garanço tinha arrumado no chão o bissaco e o cobertor, estava sem jaleco, só com a camisa de xadrezim. Eu vi o suor minar em mancha, na camisa, no meio das costas dele, Garanço, aquela nódoa escura ia crescendo, arredondada, alargada. O Garanço disparava, sacudia o corpo, ele era amigo meu, com minúcia de valentia. Rapaz de como se querer, homem de leal qualidade (ROSA, 2015, p. 180, grifo nosso).

Além disso, xadrez também faz menção ao jogo, levando-nos a pensar em peças no

tabuleiro quadriculado. Assim, Riobaldo observa seu amigo Garanço no meio da luta como

uma peça no tabuleiro de um xadrez reduzido, no diminutivo, observando as múltiplas

encruzilhadas na estampa da camisa de xadrezim, como quem anuncia que aquele era apenas

o menor dos conflitos que estariam por vir.

A encruzilhada na camisa de xadrezim também pode remeter ao fato de que Riobaldo

brigava agora contra Zé Bebelo, por quem anteriormente já havia lutado, deixando, dessa

forma, o protagonista em uma encruzilhada em meio aos dois bandos pelos quais lutou e luta.

A cena da observação da camisa parece anunciar mais uma informação na estampa

sugestiva:

(...) Escorei o cano do rifle, num duro de moita. Eu olhava aquele bom suor, nas costas do Garanço. Ele atirava. Eu atirava. (...) (...) Eu olhei. Olhava para as costas do Garanço, ela, a mancha, estava ficando de outra cor... O suor vermelho... Era sangue! Sangue que empapava as costas do Garanço – e eu entendi demais aquilo. O Garanço parado quieto, sempre empinado com a frente do corpo, semelhando que o cupim ele tivesse abraçado. A morte é corisco que sempre já veio (...) (ROSA, 2015, p. 182, grifo nosso).

Assim, tem-se a camisa de xadrezim empapada de sangue junto às costas do Garanço. A

narrativa cria uma imagem na qual podemos ver múltiplas encruzilhadas estampadas cobertas

83

por sangue. Pela mistura de recordações que Riobaldo narra, seria a camisa de xadrezim com

a mancha de sangue um anúncio dos perigos das encruzilhadas, incluindo-se o desfecho do

romance, cujo sangue na encruzilhada marca o momento da morte de Diadorim?

Essa ilação surge porque, além da camisa de xadrezim e suas encruzilhadas, outra

camisa também remete a uma estampa xadrez, sendo justamente a descrita no momento do

confronto final entre Diadorim e Hermógenes:

Sangue. Cortavam toucinho debaixo de couro humano, esfaqueavam carnes. Vi camisa de baetilha, e vi as costas de homem remando, no caminho para o chão, como corpo de porco sapecado e rapado... Sofri rezar, e não podia, num cambaleio. Ao ferreio, as facas, vermelhas, no embrulhável. A faca a faca, eles se cortaram até os suspensórios... (ROSA, 2015, p. 481).

Importa saber que “baetilha” é uma “espécie de flanela” (MICHAELIS, 2021), sendo

uma versão mais fina de baeta (tecido de lã grosso usado, sobretudo, para a confecção de

cobertores axadrezados). Portanto, novamente a descrição de Riobaldo nos traz uma camisa

cuja estampa geralmente é xadrez10 pelo tipo de tecido utilizado.

As duas camisas se entrelaçam no enredo revelando ser uma a anunciação da outra,

ambas terminadas com manchas do sangue da personagem que as veste. Em ambos os casos,

Riobaldo observa as camisas sem poder interferir no desfecho. Vê o sangue de Garanço

crescer em mancha em sua camisa de xadrezim; observa a sangrenta cena a qual a camisa de

baetilha compõe.

Além disso, no início de sua narração, em cerca de vinte páginas, Riobaldo rememora

que, ao saber por Ana Duzuza que Medeiro Vaz havia decidido atravessar o Liso do

Sussuarão, encontrou Diadorim o esperando: “Ele tinha lavado minha roupa: duas camisas e

um paletó e uma calça, e outra camisa, nova, de bulgariana (ROSA, 2015, p. 40, grifo

nosso). Na descrição, há um destaque especial para a camisa nova, com atenção à sua

composição: bulgariana.

O termo “bulgariana” se refere a um “Tecido simples e barato, ger. de padronagem

xadrez, us. para confecção de camisas e saias” (AULETE DIGITAL, 2021). Temos, também,

uma estampa xadrez que aponta para o Tabuleiro, sendo este o próprio relevo do Liso do

Sussuarão, conforme Riobaldo explica nos parágrafos anteriores:

10 Há camisas de baetilha e flanela lisas, porém, no interior do país, a preferência pela estampa axadrezada é notável ainda nos dias de hoje. Sobretudo, no vestuário dos homens sertanejos, residentes rurais. O xadrez parece remeter ao rústico. Vide a moda “camisa de lenhador”, bastante atual.

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(...) A gente ali rói rampa... Ah, o Tabuleiro? Senhor então conhece? Não, esse ocupa é desde a Vereda-da-Vaca-Preta até Córrego Catolé, cá embaixo, e de em desde a nascença do Peruaçu até o rio Cochá, que tira da Várzea da Ema. Depois dos cerradões das mangabeiras... Nada, nada vezes, e o demo: esse, Liso do Sussuarão, é o mais longe — pra lá, pra lá, nos ermos. Se emenda com si mesmo. Água, não tem. Crer que quando a gente entesta com aquilo o mundo se acaba: carece de se dar volta, sempre. Um é que dali não avança, espia só o começo, só. Ver o luar alumiando, mãe, e escutar como quantos gritos o vento se sabe sozinho, na cama daqueles desertos. Não tem excrementos. Não tem pássaros (ROSA, 2015, p. 40, grifo nosso).

E, por emendar em si mesmo, o perigoso deserto lembra a trama do próprio tecido xadrez,

com fios que se entrelaçam cruzados a formar a estampa. Por isso, percebemos que a camisa

em destaque na descrição de Riobaldo pode estar anunciando, como as outras, os perigos e o

derramamento de sangue que posteriormente seriam narrados por ele.

E a estampa nos trazendo, agora sim, o xadrez associado diretamente a tabuleiro,

conforme “desconfiado” sobre a camisa de xadrezim de Garanço, permitindo que se leia

“jogo”, ou seja, conforme Castagnino (1969) observa, o jogo de xadrez, caríssimo à literatura

de Rosa e estratégia autoral que preza o ludus, a literatura com função lúdica, e, conforme Eco

(1994) e Iser (1979), propondo a leitura como jogo, a que o autor convida o leitor para jogar

— ou ainda, reformulando, seria um convite para que nós também vistamos os perigos da

camisa axadrezada, colocando-nos na pele das personagens?

Para além, logo na sequência em que cita a camisa de bulgariana, e menciona que

Diadorim lavava suas roupas, porque “praticava com mais jeito, mão melhor” (ROSA, 2015,

p. 40), dando assim um tom ambíguo ao gênero de seu amigo, Riobaldo lamenta não ter

perguntado à Ana Duzuza um resumo do futuro:

Também uma coisa, de minha, fechada, eu devia de perguntar. Coisa que nem eu comigo não estudava, não tinha coragem. E se Ana Duzuza adivinhasse mesmo, conhecesse por detrás do pano do destino? Não perguntei, não tinha perguntado. Quem sabe, podia ser, eu estava enfeitiçado? Me arrependi de não ter pedido o resumo à Ana Duzuza (ROSA, 2015, p. 41, grifo nosso).

Nesse momento, a escolha vocabular da função autor reforça a atenção à indumentária na

trama, fazendo com que as peças ali descritas possam ser o próprio “pano do destino”, como

vimos no subcapítulo sobre as calças e o encobrimento do corpo de Diadorim.

Por vir logo na sequência da “camisa de bulgariana”, diferenciada em sua descrição

em meio às outras peças, a narrativa parece nos convidar a olhar a estampa xadrez com mais

cuidado. Afinal, ela voltaria a anunciar as tragédias no enredo?

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Para além das três camisas citadas, outra que parece anunciar algo em sua estampa é

inerente a um presente que Riobaldo ganha: “E o Reinaldo, doutras viagens, me deu outros

presentes: camisa de riscado fino, lenço e par de meia, essas coisas todas (ROSA, 2015, p.

128). A estampa “riscado fino” é geralmente de tecido requintado, de peças de alfaiataria,

cujo desenho se faz em listras finas, iguais, com cerca de meio ou um centímetro de

espaçamento, mantendo-se as linhas em paralelo. São linhas, portanto, que seguem lado a

lado, por todo o percurso, sem se tocar, sem se encontrar, diferentes da estampa axadrezada,

em que linhas se entrecruzam. Assim, a estampa de riscado fino mantém sempre a mesma

distância, as linhas não se cruzam.

Sendo um presente de Diadorim/Reinaldo, poderia metaforizar a própria relação desse

com o protagonista: companheiros que seguiram toda a travessia lado a lado, mas que não se

cruzaram, mantiveram a distância entre seus corpos num espaço e tempo em que a

homossexualidade era condenada pela sociedade, em geral, e população sertaneja, em

particular.

Além disso, a própria construção da narrativa para chegar ao ponto da estampa de

riscado fino da camisa sugere a ideia do que é par, da dupla, do lado a lado, da cumplicidade.

Assim, parte-se do ponto em que Diadorim e Riobaldo ficam a observar pássaros, trazendo à

cena o favorito Manuelzinho-da-crôa que “sempre em casal” é “o pássaro mais bonito gentil

que existe” (ROSA, 2015, p. 126), seguido pela narração de que Diadorim afirma que os

nomes dos dois — “Riobaldo... Reinaldo...” (ROSA, 2015, p. 127) — dão par, para se chegar

ao ponto em que ambos cuidam, lado a lado, da aparência, tendo até mesmo Diadorim a cortar

os cabelos de Riobaldo. Por fim, rememorando a capanga com os utensílios de cuidado com a

qual Diadorim presenteia Riobaldo, o narrador também recorda os demais presentes, dentre os

quais está a “camisa de riscado fino”.

Tendo em vista o que dá par, pensemos novamente nas camisas de bulgariana e

baetilha. Sendo ambas de estampa xadrez, conforme vimos, e ambas podendo sugerir

desfechos para a narrativa, poderíamos pensar que também elas dão par?

A camisa de bulgariana é de Riobaldo. Já a camisa de baetilha parece ser de Diadorim,

conforme Riobaldo narra sobre o conflito final: “(...) esfaqueavam carnes. Vi camisa de

baetilha, e vi as costas de homem remando, no caminho para o chão, como corpo de porco

sapecado e rapado... (ROSA, 2015, p. 481, grifo nosso), logo, pela escolha do verbo

“esfaqueavam”, teríamos permissão para se ler que se tratava de mais de um agente, que eram

dois em conflito — Diadorim e Hermógenes —, e a sequência com o verbo “ver” sugere uma

soma, como se ele olhasse para um e para outro: “Vi (...), e vi (...)”. Assim, sabendo-se que

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“as costas de homem” comparadas a um “porco” parecem fazer menção ao Hermógenes, já

que o antagonista, visto pela primeira vez por Riobaldo, foi descrito como tendo “(...) umas

costas desconformes, a cacunda amontoava, (...) se arrepanhava de não ter pescoço. (...) As

pernas, muito abertas (ROSA, 2015, p. 105), lembrando, portanto, a aparência de um suíno,

resta imaginarmos que a camisa de baetilha, notada pelo narrador, só poderia estar vestindo

Diadorim. Além disso, até que seu corpo estivesse morto, Diadorim jamais apareceu nu,

sendo muitas vezes descrito pela sua indumentária, o que reforça a ideia de que a camisa era

sua.

Então, percebendo que a camisa que fecha o romance pode ser de Diadorim/Reinaldo

e a que abre a trama é de Riobaldo, ambas axadrezadas e iniciadas pela mesma consoante,

como seus nomes — “Riobaldo... Reinaldo...” (ROSA, 2015, p. 127) —, no guarda-roupas do

Grande Sertão: baetilha e bulgariana dão par?

Com tudo isso em vista, percebemos que, em sua construção narrativa, Guimarães

Rosa optou novamente por trazer um fundo falso na escolha das camisas, estampando em seus

tecidos também aspectos caros à trama do romance.

Dobrando-se as camisas e as páginas, abriremos, no próximo subcapítulo, o

compartimento dos coletes-jalecos ou jalecos, para ler seus avessos e perceber seus arremates,

como fizemos com as demais peças de indumentária até aqui.

4.1.4 Colete-jaleco ou jaleco: proteção e afirmação social

Cada peça da indumentária de Grande Sertão: Veredas parece sinalizar aspectos tanto

da construção da narrativa em si quanto de particularidades sobre a sociedade sertaneja e as

personagens que as vestem. Assim, temos a calça como símbolo do masculino, a camisa como

estampa da encruzilhada e o gibão como marcação social do jagunço de tempo mais antigo

comparado ao que vive o narrador. Ao retirarmos mais um cabide rosiano, encontramos uma

peça que encena diversas funções: o colete-jaleco ou jaleco. Essa peça pouco citada no

romance é bastante representativa.

Ao retomarmos a análise sobre as calças, recordamos que Riobaldo observa Diadorim

em um momento de descanso no tempo em que estavam no início do conflito contra o bando

de Zé Bebelo. Naquela ocasião, o protagonista conta que seu amigo estava com “(...) as calças

de vaqueiro, em couro de veado macho, curtido com aroeira-brava e campestre” (ROSA,

2015, p. 151). Além disso, Riobaldo ainda narra que Diadorim estava “(...) sempre com o

jaleco, que ele tirava nunca (ROSA, 2015, p. 151). Dessa forma, surge mais um elemento de

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vestuário que nos leva a pensar sobre o corpo de Diadorim. Por que ele não tirava nunca o

jaleco ou colete-jaleco? Porque ele estava sempre surgindo vestido assim? O que a peça

esconde? Mas o que é um jaleco ou colete-jaleco, afinal?

Essa peça de indumentária, geralmente feita em couro, é típica do vaqueiro e dos

cangaceiros anteriores ao grupo de Lampião. Segundo Frederico Pernambucano de Mello (A

estética..., 2000), os cangaceiros, a partir de Lampião, passaram a vestir apenas uma espécie

de farda de brim e o gibão (em alguns casos), mas não o colete-jaleco, como forma de reduzir

o peso da indumentária. Porém, sabemos que, anteriormente, os cangaceiros ou jagunços

utilizavam tal peça graças ao registro fotográfico feito por Flávio de Barros, sobre a prisão de

um jagunço em 1897, divulgado em Os sertões, de Euclides da Cunha (2016, p. 603). E

mesmo este autor descreve, no capítulo “O Homem”, conforme vimos na análise do gibão, a

presença do colete: “(...)Envolto no gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta; apertado

no colete também de couro (...)” (CUNHA, 2016, p. 119, grifo do autor em itálico, grifo

nosso em negrito). Assim, sabemos que o colete-jaleco não é um gibão, mas também não é

um colete comum, como os usados embaixo de ternos de alfaiataria, por exemplo.

Por ser de couro, como quase todas as outras peças utilizadas por jagunços, o colete-

jaleco se inclui nos itens usados por proteção contra as intempéries climáticas e as

adversidades do relevo da caatinga e do cerrado. Além disso, protege o peito e as costas das

balas dos inimigos durante os conflitos armados, oferecendo uma dupla camada de couro,

sendo, a outra, o gibão que é posto por cima do colete-jaleco. E por não possuir mangas,

permite maior liberdade de movimentos dos braços.

Na fotografia de Barros11 (apud CUNHA, 2016, p. 603), vê-se que o colete-jaleco

tinha a abertura para a cabeça, por onde se vestia o mesmo; era aberto nas laterais, nas quais

possuía amarrações por cordões, compondo-se o molde por dois retângulos inteiros de couro,

ligados por costura no ombro, sendo um para ser posto sobre o peito e o outro, sobre as

costas. Tem o comprimento até o quadril, sendo, portanto, mais curto que o gibão.

Antes de retomarmos o mistério dessa peça no corpo de Diadorim, ressaltamos que a

motivação de proteção inerente ao colete-jaleco é encenada pelo autor na figura do narrador

Riobaldo.

11 Não temos, aqui, intenção de reproduzir tal fotografia, bem como nenhuma outra imagem de indumentárias. Seguindo a lógica proposta por Barthes (2009) sobre a descrição de vestuário ser algo próximo da escrita literária, descrevemos aqui o que vemos na fotografia de Barros (apud CUNHA, 2016, p. 603) com o intuito de nos mantermos fiéis à temática literária desta pesquisa, convidando nossos leitores a criarem conosco o que se pode imaginar de um colete-jaleco na obra rosiana.

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Em um primeiro momento, o colete-jaleco, ou somente denominado jaleco, aparece

quando o protagonista relembra a morte de Garanço, o jagunço que usava a camisa de

xadrezim, vista anteriormente. Sobre a cena, Riobaldo descreve que “O Garanço tinha

arrumado no chão o bissaco e o cobertor, estava sem jaleco, só com a camisa de xadrezim

(ROSA, 2015, p. 180, grifo nosso), logo, percebemos que seu companheiro de luta estava sem

o item de proteção que lhe custou a vida, findando-se morto no combate por um tiro que lhe

atravessou o peito e as costas, manchando de sangue a camisa de xadrezim.

Ainda sob a justificativa de proteção, o colete-jaleco, ou somente denominado jaleco,

aparece na narrativa vestindo Riobaldo que, agora como chefe do bando, encontrava-se, no

início da batalha no Tamanduá-tão — o conflito final —, parado “debaixo de uma árvore

muito galhosa” (ROSA, 2015, p. 449), montado em seu cavalo Siruiz, com os braços junto ao

corpo, refletindo sobre sua chefia, enquanto a guerra explodia ao seu redor. Nesse momento,

ele relembra:

E quando a guerra para o meu lado relambeu, feito repentina labareda dum fogo. Uns vieram, — deles, — bala batia e rebatia. Cortavam capim do chão, que riscavam com punhado de terra. Tch’avam partes de ramos da árvore por cima de mim, e vagens do angico, que então reconheci por isso. Como quieto fiquei. Eu não era o chefe? Mesmo que uma carga de rifle se passou em meu chapéu-de-couro-de-vaca, e que outra, zoante, em meu jaleco raspou. A mil, que não movi mão, mas dei desprezo. Mas, eu tivesse alargado braço e movido mão, para com tiros de meu revólver ripostar, e eu mal morto estava — ponto que enquadrado de passantes balas, que rentes, até quentes (ROSA, 2015, pág. 450, grifo nosso).

Logo, percebemos que o jaleco de Riobaldo o protegeu em meio à explosão do conflito

mesmo contra as balas de rifle que somente rasparam sem furar a peça, imagem essa que

reforça a ideia de armadura do jagunço, descrita por Euclides da Cunha (2016), em Os

sertões.

Além da proteção, o colete-jaleco também aparece entrelaçado ao sentimento de

Riobaldo por Diadorim. Nesse sentido, Riobaldo narra que, ao presentear Diadorim com seu

escapulário para o proteger durante a travessia do Liso do Sussuarão, com o bando que agora

comandava, “enfiei mão: por entre armas e cartucheiras, e correias de mochilas, abri à berra

meu jaleco e a minha camisa. Aí peguei o cordão, o fio do escapulário da Virgem — que em

tanto cortei, por não poder arrebentar — e joguei para Diadorim, que aparou na mão (ROSA,

2015, p. 403).

Nesse trecho, vemos que, além de querer proteger espiritualmente Diadorim, o

protagonista demonstra confiar tanto em seu amigo que abre o jaleco diante dele, deixando

assim seu peito à mostra. Além disso, a abertura de sua camada de proteção poderia

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metaforizar o sentimento de Riobaldo por Diadorim, fazendo da indumentária sua própria pele

para encenar que abria também seu peito ao amor pelo companheiro, que fora questionado

logo no parágrafo anterior: “De que jeito eu podia amar um homem, meu de natureza igual,

macho em suas roupas e suas armas, espalhado rústico em suas ações?!” (ROSA, 2015, p.

403).

Outro aspecto acerca do colete-jaleco de Riobaldo é encenado quando ele faz paragem

no pequeno povoado Verde-Alecrim. Ao se hospedar na casa das duas mulheres-damas —

Maria-da-Luz e Hortência —, que mandavam no lugar, o protagonista se deleita num ménage

à trois com elas, ficando, portanto, “perfeito descomposto nú” (ROSA, 2015, p. 428). Mas de

madrugada, a pedido delas, Riobaldo resolve convidar o vigia, Felisberto, para tomar um café

com eles no interior da casa. Nesse momento, preocupa-se com sua posição de autoridade

enquanto chefe do bando e narra:

(...) Só que, pelo respeito, eu sendo Chefe, não ia poder deixar o Felisberto me avistar assim, perfeito descomposto nú, como eu estava. Maria-da-Luz aí trouxe uma roupagem velha dela, que era para eu amarrar na cintura, tapando as partes. Experimentei. Daí, entendi o desplante, me brabeei, com um repelão arredei a mulher, e desatei aquilo, joguei longe. Tornei a vestir minhas roupas, botei até jaleco. Elas melhor me riam. Eu era algum saranga? Eu podia dar bofetadas — não fosse a só beleza e a denguice delas, e a estrôina alegria mesma, que meio me encantava (ROSA, 2015, p. 428, grifo nosso).

Observamos que, além da necessidade de se afirmar como macho em suas roupas,

achando um “desplante” o fato de entender-se nas roupas femininas de Maria-da-luz, a

importância do colete na composição da indumentária, para Riobaldo, na cena, dá-se por uma

motivação de cunho social, afinal, seu traje de Chefe só se completa vestindo “até jaleco”.

Essa necessidade de compor o traje com um colete parecia uma moda mundial, já que

é interpretada também pela socióloga Diane Crane (2006), ao analisar a indumentária de

trabalhadores estadunidenses, do final do século XIX. Em sua pesquisa, Crane (2006) afirma

que todos os trabalhadores rurais e até mesmo os ladrões de gado usavam coletes, porque “(...)

O colete do trabalhador rural constituía, na verdade, uma expressão de conformidade com o

estilo do período” (CRANE, 2006, p. 141), sendo usado inclusive com trajes mais informais.

Portanto, estar composto “até” com o jaleco parecia ser a regra, significava estar de acordo

com a sociedade, com o meio, portando-se como o uniformizado Chefe Riobaldo.

E por fim, parodiando o narrador, “vemos voltemos” ao início deste subcapítulo e,

assim, chegamos ao anunciado colete-jaleco de Diadorim, que, por duas vezes, aparece no

contar de Riobaldo.

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Ao observar o amigo, trecho pelo qual questionamos a importância dessa peça para

Diadorim, Riobaldo narra: “Guardei os olhos, meio momento, na beleza dele, guapo tão

aposto — surgido sempre com o jaleco, que ele tirava nunca, e com as calças de vaqueiro,

em couro de veado macho, curtido com aroeira-brava e campestre (ROSA, 2015, p. 151, grifo

nosso). É informado, portanto, que Diadorim “tirava nunca” essa peça da indumentária

sertaneja. E esse “nunca” é confirmado quando Diadorim recebe a notícia do assassinato de

Joca Ramiro, seu pai, trazendo-nos a segunda citação ao colete-jaleco na cena narrada por

Riobaldo:

Caiu, tão pálido como cera do reino, feito um morto estava. Ele, todo apertado em seus couros e roupas, eu corri, para ajudar. A vez de ser um desespero. O Paspe pegou uma cuia d’água, que com os dedos espriçou nas faces do meu amigo. Mas eu nem pude dar auxílio: mal ia pondo a mão para desamarrar o colete-jaleco, e Diadorim voltou a seu si, num alerta, e me repeliu, muito feroz. Não quis apoio de ninguém, sozinho se sentou, se levantou. Recobrou as cores, e em mais vermelho o rosto, numa fúria, de pancada. Assaz que os belos olhos dele formavam lágrimas (ROSA, 2015, p. 246, grifo nosso).

Notamos, assim, que, mesmo em meio ao desespero reforçado pelos couros apertados

de sua indumentária que dificultavam sua respiração, Diadorim nunca tira seu colete-jaleco.

Permanece vestido, protegido dos males da guerra e dentro da regra social do vestuário

masculino do sertão. E é esse último ponto que nos parece mais importante sobre a peça que

sempre veste o corpo dessa personagem: o fato de que o jaleco encobriria os seios, apertando-

os, disfarçando-os e criando a ilusão de um peitoral masculino. Afinal, somente depois de

morto é que sabemos, junto a Riobaldo, que “Diadorim era o corpo de uma mulher, moça

perfeita...” (ROSA, 2015, p. 485).

Reforçamos, ainda, como foi analisado no subcapítulo sobre a calça, que o colete-

jaleco parece ter a mesma função daquela: afirmar o “macho em suas roupas” (ROSA, 2015,

p. 403), inscrevendo no corpo de Diadorim a sua transexualidade, já que “o gênero são os

significados culturais assumidos pelo corpo sexuado” (BUTLER apud BASTOS, 2016, p.

340). Temos, portanto, um “macho em suas roupas” enquanto vivo: Diadorim, por sua

indumentária, é um homem sertanejo. Tendo maior importância nessa afirmação social,

sobretudo, suas “(...) calças de vaqueiro, em couro de veado macho, curtido com aroeira-brava

e campestre” e seu colete-jaleco, “que ele tirava nunca” (ROSA, 2015, p. 151).

Restando-nos, ainda, analisar que, do ponto de vista social, a nudez do corpo morto de

Diadorim não basta para, como quis Riobaldo, significá-lo como “uma mulher, moça

91

perfeita...” (ROSA, 2015, p. 485), na tentativa de justificar sua perturbadora paixão pelo

amigo, já que, segundo Simone de Beauvoir (2016),

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado, que qualificam de feminino (BEAUVOIR, 2016, p. 11, grifo nosso).

Logo, Riobaldo apenas tem a informação de que aquele corpo sem suas roupas já não era mais

o homem Reinaldo/Diadorim, mas, ainda assim, não poderia se afirmar como mulher, já que,

para isso, Diadorim necessitaria comportar-se de acordo com o que “qualificam de feminino”

(BEAUVOIR, 2016, p. 11). Enquanto vivo, sujeito em ação, agente de sua existência,

Diadorim permanece vestido com seu figurino social, agindo como um homem. Portanto, o

jaleco de Diadorim também se funde ao seu corpo, significando sua identidade de gênero.

Fechamos, assim, a análise do colete-jaleco, para buscarmos outro item da

indumentária do sertanejo: o chapéu.

4.1.5 Chapéu: distintíssimo homem

De todos os itens da indumentária sertaneja, o mais citado é o chapéu, em Grande

Sertão: Veredas. Por ser tão marcante seu uso em todos os níveis e ambientes sociais,

sobretudo até a primeira metade do século XX, essa peça reflete, na narrativa de Riobaldo, um

espelhamento de hierarquia, código de conduta e status do sujeito.

Segundo Diane Crane (2006),

Até a década de 1960, o item de vestuário que desempenhava o papel mais importante em indicar distinções sociais entre os homens era o chapéu. O fato de ter deixado de fazê-lo na década de 1960 indica que, no século XIX, os chapéus, que continuaram a ser usados na primeira metade do século XX, eram particularmente apropriados para o ambiente social do período. Diversos tipos de chapéu surgiram ao longo do século XIX e foram rapidamente adotados em diferentes níveis sociais (CRANE, 2006, p. 167, grifo nosso).

Notamos que Guimarães Rosa se vale dessa característica distintiva social do chapéu,

para inserir no contar de Riobaldo aspectos sobre o status das personagens. Assim, dentre os

trechos, há a notável comparação que o protagonista faz de sua pobreza quando criança no

encontro com o menino:

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Aí, pois, de repente, vi um menino, encostado numa árvore, pitando cigarro. Menino mocinho, pouco menos que eu, ou devia de regular minha idade. Ali estava, com um chapéu-de-couro, de sujigola baixada, e se ria para mim. (...) O chapéu-de-couro que ele tinha era quase novo (ROSA, 2015, p. 94; 97, grifo nosso).

Lembrança essa que retorna mais adiante na narrativa e que recobra a imagem do chapéu:

“Diadorim, o Reinaldo, me lembrei dele como menino, com a roupinha nova e o chapéu novo

de couro, guiando meu ânimo para se aventurar a travessia do Rio do Chico, na canoa

afundadeira” (ROSA, 2015, p. 335, grifo nosso).

Na sua recordação, o chapéu de Diadorim era quase novo, e Riobaldo não possuía

nenhum chapéu ou não o cita, concentrando-se somente na peça usada pelo Menino como um

contraste social, como se o que chamou a atenção no outro fosse o que fugisse ao seu poder de

posse: as roupas e o chapéu novos.

Além disso, Riobaldo ainda descreve que, ao retornar ao Paredão — após ter deixado

o bando para tentar encontrar Otacília no sertão —, Diadorim o esperava e que “Tudo estava

perfeito tranquilo. Diadorim – com chapéu xíspeto, alteado (ROSA, 2015, p. 464). Segundo

Nilce Sant’Anna Martins (2020, p. 530), o adjetivo “xíspeto” indica algo “De boa qualidade,

bonito”, portanto, ao caracterizar o chapéu de seu amigo, aponta para a condição financeira do

mesmo, como se ele possuísse peças de alto valor — quando menino, com seu chapéu novo;

quando moço, com seu chapéu xíspeto.

A posição social é tão marcante para Riobaldo, que ele só dá tamanha distinção pelo

chapéu a dois chefes: “Zé Bebelo, (...) com um chapéu distintíssimo na cabeça” (ROSA,

2015, p. 117) e “(...) Joca Ramiro (...) o chapéu dele se desabava muito largo. Dele, até a

sombra, que a lamparina arriava na parede, se trespunha diversa, na imponência, pojava

volume” (ROSA, 2015, p. 105). Logo, Zé Bebelo, primeiro e último chefe de Riobaldo, é

distintíssimo; enquanto o “grande homem príncipe” (ROSA, 2015, p. 26), Joca Ramiro, é

imponente como o filho, Diadorim.

Além dessa distinção das personagens de maior valia para Riobaldo, cuja expressão

pelo chapéu alcança o sentimento do protagonista pela admiração aos que descreve, essa peça

de vestuário também se entrelaça à narrativa para reforçar o que Crane (2006) afirma sobre a

sociologia inerente a seu uso:

O significado social dos acessórios de cabeça masculinos é indicado pelo fato de que, desde o início do século XIX, tem havido grande uniformidade naquilo que os homens americanos e europeus colocam sobre a cabeça. Em certo período, havia menos de uma dúzia de modelos de chapéu, cada qual podendo ser vendido com pequenas variações de cor, tamanho, formato da aba e material, as quais não eram

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suficientes para impedir que os chapéus fossem reconhecidos como pertencentes a uma das categorias principais (CRANE, 2006, p. 169).

Assim, “‘Possuir um chapéu era um reconhecimento dos códigos que regiam a admissão em

uma esfera particular da vida pública em questão’” (SONENSCHER apud CRANE, 2006, p.

168), portanto, nenhum dos sujeitos do sertão queria estar fora do código de indumentária, da

linguagem corporal de conformidade com o status social.

Nesse sentido, outro menino ilustra bem essa interpretação sobre o símbolo social

encenado pelo chapéu. Assim, temos Guirigó que, após ter sido encontrado roubando a casa

de Seo Habão — no Valado, na travessia do Sucruiú —, vestindo somente uma calça

amarrada por um cordão de embira para não ficar nu de todo, como vimos anteriormente, ao

conviver com os jagunços e perceber os significados da indumentária, faz um pedido: “(...)

que um dia se mandasse costurar para ele uma roupa, e prover um chapéu-de-couro para o

tamanho de sua cabeça dele, que até não era pequena, e umas cartucheiras apropositadas”

(ROSA, 2015, p. 370). Logo, Guirigó procura fazer parte do bando, ser incluído.

Sobre isso, o pesquisador Frederico Pernambucano de Mello (A estética..., 2000)

relata que os ingressantes no grupo de Lampião alcançavam melhor nível na hierarquia

quando ganhavam apetrechos para compor sua indumentária, sendo o chapéu bordado com

estrelas de couro o mais importante item de sua vestimenta, pois, além das estrelas de

Salomão e a flor-de-lis serem símbolo de proteção contra todo o mal, o chapéu permitia a

identificação do sujeito no sertão como pertencente ao bando.

Há, ainda, outra ocorrência social inscrita na narrativa de Riobaldo que se relaciona à

descrição dos tamanhos dos chapéus das personagens. Ao encontrar, pela primeira vez, o

grupo de jagunços na Fazenda São Gregório, de seu padrinho/pai Selorico Mendes, o

protagonista descreve:

Assim que saí da cama e fui ver se era de se abrir, meu padrinho Selorico Mendes com a lamparina na mão, já estava pondo para dentro da sala uns homens, que eram seis, todos de chapéu-grande e trajados de capotes e capas, arrastavam esporas. Ali entraram com uma aragem que me deu susto de possível reboldosa. Admirei: tantas armas. Mas eles não eram caçadores. Ao que farejei: pé de guerra (ROSA, 2015, p. 104, grifo nosso).

Na ocasião, estavam Alarico Totõe e seu irmão Aluiz Totõe — fazendeiros abastados —, Joca

Ramiro — o chefe dos jagunços e fazendeiro importante —, Ricardão, Hermógenes e Alaripe

— jagunços de confiança do chefe, sendo os dois primeiros também fazendeiros ricos.

94

Portanto, sabemos que naquela reunião havia homens importantes, do alto da

hierarquia e do status, o que explica a preocupação de Riobaldo em informar que usavam

“chapéu-grande” todos eles. O tamanho de chapéu que usavam confirmava, então, seus

lugares na sociedade. Sobre isso, Crane (2006, p. 170) afirma que, no final do século XIX e

início do XX, os patrões e homens de alta classe, da elite em geral, começaram a ter a

preocupação de se diferenciar dos trabalhadores de classes inferiores. A partir disso, a cartola,

por exemplo, virou símbolo de luxo, sendo usada somente por homens de classes altas. E a

sua altura salientava a importância econômica do sujeito na sociedade: quanto mais alta a

cartola, maior a hierarquia. Nesse sentido, observamos que João Guimarães Rosa utiliza-se

dessa lógica em sua escrita, porém inverte o sentido vertical das altas cartolas para o

horizontal das largas abas dos chapéus, como se o poder do sujeito fosse tão largo quanto o

ambiente sertão — além da necessidade da sombra no clima de sol intenso.

Por isso, Riobaldo, nesse mesmo encontro na fazenda de Selorico Mendes, descreve o

chefe Joca Ramiro com um chapéu de aba muito larga, cuja sombra da lamparina na parede

“pojava volume” (ROSA, 2015, p. 105). E, como sujeito inferior no nível hierárquico e

antagonista, a Hermógenes restava um chapéu descrito pelo narrador como: “raso em cima,

mas chapéu redondo de couro, que se que uma cabaça na cabeça. (...) Naquela hora, eu estava

querendo que ele não virasse a cara. Virou. A sombra do chapéu dava até em quase na boca,

enegrecendo” (ROSA, 2015, p. 105).

Notamos que Rosa tanto espelha o poder na aba do chapéu que, ao descrever

novamente o de Hermógenes, já sobre o conflito final entre o antagonista e Diadorim,

Riobaldo relembra: “chefiando os dele, o Hermógenes! Chapéu na cabeça era um bandejão

redondo... Homem que se desata...” (ROSA, 2015, p. 480). Portanto, Hermógenes, agora

chefe de seu próprio bando e maior inimigo, possuía um chapéu maior, de aba que era “um

bandejão redondo”, aumentando assim sua circunferência, ocupando maior espaço de

diâmetro no sertão do que quando visto, pela primeira vez, acompanhando Joca Ramiro com

um chapéu que lembrava uma cabaça.

Dos demais significados inerentes ao uso do chapéu, Crane (2006) ainda cita que “‘um

homem sem chapéu era uma anomalia’” (SEVERA, 1995, p. 210 apud CRANE, 2006, p.

175). Assim, mesmo quando mortos, na narrativa de Riobaldo, os homens permanecem com

seus chapéus, como podemos ver na cena da morte de Marcelino Pampa:

E eu peguei puxei o corpo para não ficar em cima dum vestígio de lama — porque ali de noite tinha chovido; e Diadorim panhou o chapéu-de-couro, com qual tapou o rosto do dono. A paz no Céu ainda hoje-em-dia, para esse companheiro,

95

Marcelino Pampa, que de certo dava para grande homem-de-bem, caso se tivesse nascido em grande cidade (ROSA, 2015, p. 471-472).

Um homem só tirava seu chapéu em sinal de respeito, ou seja, existiam “Maneiras

requintadas de ‘tirar o chapéu’ como meio de expressar deferências aos seus superiores [que

refletiam] sua importância para marcar fronteiras de classe” (CRANE, 2006, p. 167). Esse ato

também se insere no romance rosiano, no qual há passagens como a que Riobaldo conta sobre

seu encontro com Seo Ornelas (fazendeiro que hospeda o bando na travessia): “Apreciei a

soberania dele, os cabelos brancos, os modos calmos. Bom homem, abalável. Para ele, por

nobreza, tirei meu chapéu e conversei com pausas” (ROSA, 2015, p. 369); ou quando,

sabendo da morte de Medeiro Vaz, Zé Bebelo demonstra seu respeito: “(...) Zé Bebelo tirou o

chapéu e se persignou, parando um instante sério, num ar de exemplo, que a gente até se

comoveu” (ROSA, 2015, p. 83).

Esse gesto social de tirar o chapéu em respeito acompanha a obra de Rosa inclusive no

conto “Os chapéus transeuntes” — publicado na póstuma obra Estas estórias, em 1969 —,

cujo título já anuncia a importância da indumentária. Nele, sabemos que a personagem Vovô

Barão está à beira da morte. E que tal avô não se dobra a ninguém, encenando em sua

personalidade subversões às lógicas sociais, como quando em seu último anúncio, antes de

falecer: “conservara-se de chapéu à cabeça. Para na aba tocar, com dois dedos, respeito aos

homens, e tirá-lo, para as senhoras, por completo, num gesto muito âmbito” (ROSA, 2015x,

p. 79). Logo, ao não tirar o chapéu para os homens, limitando-se a expressar respeito no

máximo por dois dedos na aba, a personalidade é reforçada como aquela do patriarca

imponente, casmurro, rabugento, que não se importa com as convenções sociais, e que não

respeita tanto assim os homens ao seu redor ou que nenhum mereça de fato tanto respeito;

além da ironia ao “desnudar-se” para as mulheres, mesmo que tal avô tenha construído um

muro na própria casa para se manter separado de sua esposa.

Ainda sobre este conto, o narrador recorda que as expressões, por parte do avô, no uso

de suas indumentárias eram constantes, contando-se que ia à missa “não raro de roupão, de

rodaque, e chinelos, ele que dentro de casa calçava quase sempre botas altas, ou escarpins de

saraus, quando não fortes grossas botinas ringidoras, conforme o capricho do humor, assim

como entrado em estreito colete, verde ou vermelho ou azul, e de chapéu de formato à

cabeça” (ROSA, 2015x, p. 60-61, grifo nosso). Mesmo vestindo-se, portanto, conforme o

humor, o chapéu para Vovô Brandão é de suma importância, acompanhando o formato de sua

cabeça (ou dando, a própria peça, o formato de sua cabeça). E, sendo transeunte, a peça

encena ainda o próprio sujeito, passageiro que atravessa rapidamente a estória para confirmar

96

sua última vontade e, por fim, falecer, quando de sua cabeça o chapéu cai e acaba pisado por

seus parentes. Assim, o chapéu encena a parte pelo todo, estratégia de criação que já vimos

com outras peças de indumentária rosiana, nesta pesquisa.

Vale ressaltar, ainda, em nossa análise, um último chapéu, sendo esse o mais diverso

do romance, cujo longo trecho que citaremos, a seguir, ressalta a atmosfera de seu mistério:

Aquilo, que eu ainda não tinha sido capaz de executar. Aquilo, para satisfazer honra de minha opinião, somente que fosse. — “Ah, qualquer dia destes, qualquer hora...” — era como eu me aprazava. O dum dia, duma noite. Duma meia-noite. Só para confirmar constância da minha decisão, pois digo, acertar aquela fraqueza. Ao que, alguma espécie aquilo continha? Na verdade real do Arrenegado, a célebre aparição, eu não cria. Nem. E, agora, com isto, que falei, já está ciente o senhor? Aquilo, o resto... Aquilo — era eu ir à meia-noite, na encruzilhada, esperar o Maligno — fechar o trato, fazer o pacto! Vejo que o senhor não riu, mesmo em tendo vontade. Também tive. Ah, hoje, ah — tomara eu ter! Rir, antes da hora, engasga. E eu me enviava pelo sério. Uma precisão eu encarecia: aí, de sopesar minhas seguidas forças, como quem pula a largura dum barranco, como quem saca sua faca para relumiar. E veio mesmo outra manhã, sem assunto, eu decidi comigo: — É hoje... Mas dessa vez eu ainda remudei. Sem motivo para sim, sem motivo para não. Delonguei, deveras. Não é que, não foi de medo. Nem eu cria que, no passo daquilo, pudesse se dar alguma visão. O que eu tinha, por mim — só a invenção de coragem. Alguma coisice por principiar. O que algum tivesse feito, por que era que eu não ia poder? E o mais — é peta! — nonada. Do Tristonho vir negociar nas trevas de encruzilhadas, na morte das horas, soforma dalgum bicho de pelo escuro, por entre chorinhos e estados austeros, e daí erguido sujeito diante de homem, e se representando, canhim, beiçudo, manquinho, por cima dos pés de bode, balançando chapéu vermelho emplumado, medonho como exigia documento com sangue vivo assinado, e como se despedia, depois, no estrondo e forte enxofre. Eu não acreditava, mesmo quando estremecia. T’arreneguei (ROSA, 2015, p. 336-337, grifo nosso).

Riobaldo narra a lembrança de um devaneio que tivera pouco antes de chegar à

fazenda de Seo Habão, enquanto ainda esperava no lugar chamado Coruja, que serviu de

parada ao bando sob o comando de Zé Bebelo. Naquele momento, eles buscavam o grupo do

Hermógenes, e o assunto sobre o antagonista ser pactário permeava o imaginário do

protagonista. Além disso, os pensamentos de Riobaldo sobre o diabo acontecem pouco antes

de sua decisão em fazer ele mesmo um pacto nas Veredas-Mortas — evento que irá

questionar por toda a vida.

Na imaginação de Riobaldo, o Maligno aparece sob a forma de um “bicho de pelo

escuro”, com “pés de bode”, que se faz “erguido sujeito diante de homem” cuja única peça de

indumentária é um “chapéu vermelho emplumado”.

A descrição do chapéu do demo — diabo, Tristonho, Arrenegado, Maligno etc. — é

ambígua, afinal, o chapéu costumava ser um item “obrigatório” do vestuário masculino, no

final do século XIX e início do XX, mas sendo emplumado, neste período de tempo, nos leva

97

a pensar em algo feminino, enfeitado, como os utilizados pelas mulheres parisienses no

período da Belle Époque — cerca de 1890 a 1920 (FOGG, 2013, p. 197). Mas se pensado

como algo de séculos anteriores — como o XVI e o XVII —, seria um item escolhido por

monarcas franceses ou imperadores (FOGG, 2013, p. 86). Assim, teríamos pelo chapéu

femininamente emplumado, se em moda atual à época do romance rosiano, um demônio

citado no masculino como sujeito duplo em seu gênero por sua indumentária feminina; ou se

em chapéu masculino de moda ultrapassada, que recorde monarcas ou imperadores dos

séculos anteriores, um demônio que reina soberano nas terras do sertão.

Reforçado a ambiguidade do demo, segundo Crane (2006) e Fogg (2013), os chapéus

comuns aos homens usados no final do século XIX e início do XX eram geralmente nas cores

preta ou marrom, além do chapéu palheiro, num tom bege claro. A tonalidade vermelha

ligava-se principalmente ao modelo de chapéu chamado “galero”, que era um item de

indumentária católica, exclusiva dos cardeais (abaixo do Papa, o cargo de maior hierarquia

dentro da Instituição). Sabe-se do uso do chapéu galero desde o século XIV, mas somente em

1905 foi regulamentado pelo Papa Pio XI, e permaneceu nos rituais católicos até 1969,

quando a Igreja compreendeu que o uso de itens tão elaborados poderia afastar o povo de seus

líderes. Porém, os cardeis continuaram a utilizar a cor vermelha no solidéu, que substituiu o

chapéu galero (WIKIPÉDIA, 2019).

Sendo o diabo personagem presente na doutrina cristã, talvez se possa construir,

interpretativamente aqui, também a ambiguidade que envolve a figura imaginada por

Riobaldo com seu chapéu vermelho emplumado: o chapéu do masculino com as plumas do

feminino, como já dito, somado ao fato de vestir a cabeça de um demônio, enquanto ao

mesmo tempo é importante peça da indumentária de representantes de Deus — “O diabo na

rua, no meio do redemunho...” (ROSA, 2015, p. 21), tudo muito misturado tecendo o mistério

da cena imaginada por Riobaldo.

Percebemos, portanto, que ao escolher cada chapéu para cada personagem, Guimarães

Rosa mantém a fragmentação que envolve todo o seu romance num véu, assim, Riobaldo não

diz muito sobre cada um, mas um pouco sobre cada. Porém, não escapa, à narrativa, a

importância social do chapéu como incorporação do sujeito em seu meio, ou ainda, retomando

o conto “Os chapéus transeuntes”: “o chapéu, que compõe o homem” (ROSA, 2015x, p. 77).

Nesse sentido, lembramos, também, o conto “O capítulo dos chapéus”, de Machado de Assis

(1884), no qual a personagem Conrado Seabra reflete que “(...) pode ser até que nem mesmo o

chapéu seja complemento do homem, mas o homem do chapéu...” (ASSIS, 1884).

98

4.1.6 Sapato, bota, alpercata: a hierarquia

A invenção do calçado se deu por motivação de proteção. Tanto em locais com clima

quente quanto nos muito frios, há registros em pinturas do uso de calçados, além de alguns

pares encontrados fossilizados (ANAWLAT, 2011). Com o passar do tempo, outra motivação

passou também a se relacionar com o uso de calçados: o status. Assim, “civilizações da

Antiguidade, como a dos egípcios, já utilizavam do artefato calçado como um diferenciador

social. Apenas os mais abastados usavam sandálias com joias incrustadas, como o faraó e sua

rainha; os pobres e escravos andavam descalços” (FERREIRA, 2010, p. 85). Além disso, o

calçado é também usado como uniformizador, compondo indumentárias de classes

trabalhadoras específicas (CRANE, 2006). Assim, sabemos que calçamos todos os dias peças

para nos proteger, nos diferenciar e/ou nos uniformizar.

Em Grande Sertão: Veredas, a motivação de diferenciação social é a mais recorrente,

demarcando níveis hierárquicos e de classe. Poucas personagens ganham essa peça de

indumentária, sendo quase exclusiva dos chefes, ricos fazendeiros e trabalhadores de alta

patente. A quantidade de tipos de calçados também é bastante reduzida, sendo descritos

apenas quatro modelos: sapato, botina, bota e alpercata.

A primeira citação na narrativa é a lembrança recente que Riobaldo tem acerca de seu

encontro no trem com o delegado profissional Jazevedão, um homem bruto que “Não ria”

(ROSA, 2015, p. 27). Essa personagem deixa cair alguns papéis, e o protagonista, sentado

próximo, abaixa para pegá-los e devolver. Ao abaixar, nota o calçado do delegado:

Até as solas dos sapatos dele — só vendo —que solas duras grossas, dobradas de enormes, parecendo ferro bronze. Porque eu sabia: esse Jazevedão, quando prendia alguém, a primeira quieta coisa que procedia era que vinha entrando, sem ter que dizer, fingia umas pressas, e ia pisava em cima dos pés descalços dos coitados. E que nessas ocasiões dava gargalhadas, dava... (ROSA, 2015, p. 28).

Na cena, nota-se que os sapatos de Jazevedão seriam também um “instrumento de

tortura” utilizado contra os sujeitos que são presos em sua delegacia. O poder se instaura tanto

pelo fato da personagem ser alguém calçado em um local onde outros andam descalços,

quanto na bruteza de suas solas “dobradas de enormes”, pisando nos pés dos coitados presos.

A utilização dos sapatos como uma espécie de ferramenta de tortura pela polícia lembra a

estratégia utilizada pelo poeta Chacal, no poema “rápido e rasteiro”, que citamos no

subcapítulo 3.2 desta pesquisa. A ideia é a de que o delegado se funde com a bruteza de seu

sapato e instaura sua autoridade também pelas duras e grossas solas de sua indumentária.

99

Jazevedão é a única personagem que calça sapatos na narração de Riobaldo. Como se os

sapatos fossem um uniforme policial, mas que, mesmo uniformizando, distinguem as

autoridades no sertão.

Já na diferenciação de hierarquia e classe social na travessia do bando de jagunços, as

botas ilustram os chefes, políticos e fazendeiros, pessoas abastadas em geral. Por isso,

enquanto ainda é moço, dependente de seu padrinho/pai Selorico Mendes, como já dissemos,

Riobaldo relembra, de quando se hospedou no Curralinho: “Lá eu não carecia de trabalhar, de

forma nenhuma, porque padrinho Selorico Mendes acertava com Nhô Marôto de pagar todo

fim de ano o assentamento da tença e impêndio, até da botina e roupa que eu precisasse”

(ROSA, 2015, p. 102). Assim, enquanto afilhado/filho de um rico fazendeiro, o protagonista

calçava botinas ao invés de andar descalço. Podemos, ainda, observar que a grafia da palavra

“botina” aponta para uma forma diminutiva de “bota”, o que nos parece um modo de dizer

sobre a condição de dependente/filho daquele que provavelmente usaria botas, como os

demais fazendeiros. Como se a botina em relação à bota soasse algo do dito popular “filho de

peixe, peixinho é”.

Sobre isso, observamos o fato de que, posteriormente, quando foge da fazenda de

Selorico Mendes e rompe com a figura paterna, Riobaldo passa a usar somente alpercatas:

“(...) Assim o Paspe tinha agulhas grandes, fio e sovela: consertou minhas alpercatas (...)”

(ROSA, 2015, p. 159); “(...) Eu apertei o pé na alpercata, espremi as tábuas do assoalho (...)”

(ROSA, 2015, p. 276), buscando, talvez, uma forma de se misturar com o bando de jagunços

para o qual ingressara, uniformizando-se entre os sujeitos que atravessam e lutam no sertão.

O uso de alpercatas, na história brasileira da indumentária sertaneja, era comum entre

os pobres, pela necessidade de um sapato barato e resistente, além de ser uniforme de

jagunços/cangaceiros, tendo até mesmo um modelo exclusivo criado por Lampião para o seu

bando, ao adicionar uma tira a mais de couro para prender melhor no pé e não soltar durante a

fuga. Além disso, vale lembrar a já citada pesquisa de Frederico Pernambucano de Mello (A

estética..., 2000), pela qual sabemos que Lampião encomendava alpercatas com solados no

formato de um retângulo, evitando assim que as pegadas do bando servissem de informação

sobre a direção em que seguiam em suas fugas, conforme vimos no subcapítulo 2.1. Logo, a

marca retangular no solo não permitia à polícia saber se o bando ia ou vinha do ponto onde a

encontrassem.

Por ser uniforme de jagunços/cangaceiros, poderíamos pensar, também, que, como

apelido dado a Jõe Bexiguento, o “Alpercatas” (ROSA, 2015, p. 185), conota a essa

personagem aspectos sobre sua condição mesma de ser um jagunço, com suas ligeiras

100

sandálias a atravessar o sertão confundindo policiais e protegendo os pés dos espinhaços,

fazendo da parte de sua indumentária — as alpercatas — o todo do sujeito — “o Alpercatas”

—, caminhando em passos firmes por sua sina determinista, conforme sugere Euclides da

Cunha (2016) sobre os cangaceiros que descreve em Os sertões, tendo por destino lhe restado

apenas ser mesmo jagunço:

Pecados, vagância de pecados. Mas, a gente estava com Deus? Jagunço podia? Jagunço — criatura paga para crimes, impondo o sofrer no quieto arruado dos outros, matando e roupilhando. Que podia? Esmo disso, disso, queri, por pura toleima; que sensata resposta podia me assentar o Jõe, broeiro peludo do Riachão do Jequitinhonha? Que podia? A gente, nós, assim jagunços, se estava em permissão de fé para esperar de Deus perdão de proteção? Perguntei, quente. — “Uai?! Nós vive...” — foi o respondido que ele me deu. Mas eu não quis aquilo. Não aceitei. Questionei com ele, duvidando, rejeitando. Porque eu estava sem sono, sem sede, sem fome, sem querer nenhum, sem paciência de estimar um bom companheiro. Nem o ouro do corpo eu não quisesse, aquela hora não merecia: brancura rosada de uma moça, depois do antes da lua-de-mel. Discuti alto. Um, que estava com sua rede ali a próximo, de certo acordou com meu vozeio, e xingou xiu. Baixei, mas fui ponteando opostos. Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o ruim ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado... Mas Jõe Bexiguento não se importava. Duro homem jagunço, como ele no cerne era, a ideia dele era curta, não variava. — “Nasci aqui. Meu pai me deu minha sina. Vivo, jagunceio...” — ele falasse. Tudo poitava simples. Então — eu pensei — por que era que eu também não podia ser assim, como o Jõe? Porque, veja o senhor o que eu vi: para o Jõe Bexiguento, no sentir da natureza dele, não reinava mistura nenhuma neste mundo — as coisas eram bem divididas, separadas. — “De Deus? Do demo?” — foi o respondido por ele — “Deus a gente respeita, do demônio se esconjura e aparta... Quem é que pode ir divulgar o corisco de raio do borro da chuva, no grosso das nuvens altas?” E por aí eu mesmo mais acalmado ri, me ri, ele era engraçado. Naquele tempo, também, eu não tinha tanto o estrito e precisão, nestes assuntos (ROSA, 2015, p. 187, grifo nosso).

Assim, as alpercatas na trama rosiana parecem encenar o próprio jagunço, calçando

desde os pés de Riobaldo, enquanto na travessia, ao apelido de Jõe Bexiguento, o jagunço que

nasceu para ser jagunço, mesmo que a ideia acerca do determinismo sugerida por Euclides da

Cunha (2016) seja criticada por João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, a partir

do questionamento sobre a reversibilidade de tudo (BOLLE, 2004).

Todavia, voltando às botas, Riobaldo descreve cinco vezes suas aparições durante a

travessia, sendo todas de chefes, fazendeiros e políticos. Logo, têm-se na trama, as “(...) botas

de caititú, tão antigas (...)” (ROSA, 2015, p. 37), de Medeiro Vaz, ex-fazendeiro e chefe dos

jagunços; “(...) as botas russianas (...)” (ROSA, 2015, p. 43), de Joca Ramiro, chefe maior e

grande fazendeiro; as “(...) botas amareladas (...)” (ROSA, 2015, p. 114), de Zé Bebelo,

político e chefe; as “(...) pretas botas joelhudas (...)” (ROSA, 2015, p. 337), de Seo Habão,

101

fazendeiro e capitão da guarda nacional; e as “(...) botas-de-montar muito boas, dessas de

couro de sucurijú, de que eles faziam antigamente (...)” (ROSA, 2015, p. 435), de Zabudo,

fazendeiro.

Notamos, portanto, que as botas eram um artigo de luxo, restringindo seu uso a

homens de poder, alta classe social e elevada hierarquia. A matéria-prima diversificada de

cada uma delas insere particularidades sobre cada poderoso sujeito.

Medeiro Vaz usava botas de couro de caititú — um animal cujo comportamento é o de

andar em bando e ser diurno, também chamado de porco-do-mato (AULETE DIGITAL,

2021; MARTINS, 2020, p. 93) — e eram “tão antigas”, o que nos leva a pensar que a menção

à matéria-prima das botas desse chefe aponta para o próprio sujeito, “(...) um homem

antigo...(...)” (ROSA, 2015, p. 26) que percorreu a trama sempre em bando, morrendo cercado

de couros.

Nesse sentido, o fazendeiro Zabudo também parece ter sua idade espelhada na bota,

cujo modelo “faziam antigamente”, além do tipo de material apontar para a malícia do sujeito

ambicioso: couro de sucurijú, ou o mesmo que sucuri (MARTINS, 2020, p. 471), cobra que

mata por asfixia suas presas, apertando-as até que fiquem sem respirar (CRUZ, 2021); afinal,

a hospedagem do bando de Riobaldo, na Fazenda Carimã, só não foi um bote porque o

protagonista resolve ir logo embora:

Ele se saiu quite, por pouco não pegou até dinheiro meu emprestado. Mesmo pelos cavalos e burros que cedeu, recebeu igual quantidade dos nossos, bem melhores, somente que estavam cansados. Teve até permissão de conservar o dele próprio, o baio, que disse ser de venerada estimação, por herdado pessoal do pai. Nele, amontado prazido, naquela dita cutuca, pandegamente, pois ainda veio, por quarto-de-légua, fazendo companhia à gente. Coisa assim, não se vê. Tanto ambicionava, que nem temia (ROSA, 2015, p. 438, grifo nosso).

Além disso, a figura da cobra não venenosa, mas fatal, ligada a essa personagem que

cerceia o bando de Riobaldo, como quem aperta ao redor até sufocar, lembra-nos do que

Antonio Candido (2004) afirma sobre a liberdade do jagunço versus a máquina econômica

representada por fazendeiros, como o Zabudo:

É interessante notar, a propósito, que, quando ambos [Riobaldo e Zabudo] entram em contato, o risco (ao contrário do que seria normal) é todo do jagunço, não do homem da ordem. Este constitui uma ameaça à natureza do jagunço, um perigo de reduzi-lo à peça de engrenagem, destruindo a sua condição de aventura e liberdade (CANDIDO, 2004, p. 113).

102

Portanto, as botas de Zabudo, de couro de cobra sucurijú e tão antigas, parecem

ilustrar o sistema econômico em si, antigo e sufocante, do sertão.

Já as botas do fazendeiro Seo Habão parecem espelhar outra espécie de ambição: a de

controlar o bando como a um batalhão, já que ele era capitão. Assim, a cor preta lembra-nos

algo típico dos uniformes militares, como seus coturnos pretos. E a extensão da bota até o

joelho, maior do que todas as outras botas descritas na narrativa — com exceção das de Joca

Ramiro —, remete ao status de Seo Habão como homem poderoso e abastado.

Na sequência, as “botas amareladas”, de Zé Bebelo, permitem duas vias de

interpretação: pela cor amarela; pelo desgaste do material. Quanto à cor amarela, as botas do

“deputado” parecem se aproximar do material comumente utilizado para fabricar alpercatas,

feitas de couro bovino, geralmente em um tom caramelo (A estética..., 2000). Assim, Zé

Bebelo estaria tanto próximo dos jagunços pelo material, quanto dos fazendeiros pelo fato de

usar botas. Além disso, sendo aspirante a político — deputado — a cor amarela pode remeter

ao que é nacional, sendo a bota o amarelo no verde do sertão, além de também vestir brim

azul, o que refletiria a própria bandeira brasileira nas cores da indumentária da personagem.

Todavia, a escolha do adjetivo “amareladas” parece dizer daquilo que amarelou,

perdeu a cor, desbotou, envelheceu, uma ideia ligada à avançada idade, como no conto — já

mencionado — “Os chapéus transeuntes”, em que aquele narrador de Guimarães Rosa conta

que o moribundo Vovô Barão se encontrava “na amarela idade” (ROSA, 2015x, p. 75).

Assim, o adjetivo, na descrição das botas de Zé Bebelo, permite-nos interpretar o calçado do

“deputado” como a sua própria condição política, afinal, “Zé Bebelo quis ser político, mas

teve e não teve sorte: raposa que demorou” (ROSA, 2015, p. 26).

Ao contrário disso, as “botas russianas” de Joca Ramiro trazem a indumentária do

“grande homem príncipe — [que] era político!” (ROSA, 2015, p. 26). A denominação

escolhida para as botas do maior chefe de Riobaldo parece apontar para a alta qualidade do

item, além de incluir significações acerca da extensão territorial abrangida por Joca Ramiro,

fazendo menção até mesmo àquilo que é internacional: “russilhonas: s. f. pl. || (Bras., Sul)

botas altas para montar; russianas (Nordeste). Cf. Roque Callage, Vocabul. Gaúcho, p. 120,

ed. 1928. F. de Rússia, n. pr. (por terem sido de couro da Rússia)” (AULETE DIGITAL,

2021). Logo, temos, a partir desse verbete, o conhecimento de que “russianas” é sinônimo de

“russilhonas”, uma denominação gaúcha para um tipo comum, no Sul do país, de bota de

montaria de cano muito alto, cujo comprimento ia até a metade da coxa, e que, por volta do

século XVIII, eram importadas da Rússia (BOTAS..., 2017).

103

As botas de Joca Ramiro, então, nos fazem questionar a origem do próprio sujeito —

seria um gaúcho? —, bem como ampliar a percepção sobre seu status, tanto em hierarquia

política, por atravessar o Brasil do Sul ao Nordeste — ação que geralmente interessava

somente aos altos cargos governamentais —, quanto por sua condição social que o permitia

adquirir produtos importados tão raros e caros até a segunda metade do século XX, no Brasil.

Além disso, é o chefe com as maiores botas, cuja extensão alcança as coxas, passando dos

joelhos, superando em poder, assim, até mesmo o capitão Seo Habão.

O que pudemos observar das escolhas feitas por João Guimarães Rosa para a

ilustração de suas personagens é que, em poucos itens, a descrição de Riobaldo traz,

sobretudo, aspectos históricos e sociológicos inerentes aos calçados, como as alpercatas aos

jagunços pobres e as botas aos homens de alta classe, ajudando, dessa forma, a construir a

verossimilhança quanto ao espaço e tempo da narrativa. Além disso, cada bota analisada

separadamente nos ajuda a perceber a dimensão de cada chefe e aspectos de sua

individualidade.

4.1.7 Lenço, capanga bordada e cinto-cartucheira: acessórios historientos

Como últimos itens de nossa pesquisa, recortaremos três peças para destacar aspectos

importantes construídos, na narrativa, a partir dos acessórios na indumentária de Grande

Sertão: Veredas. Não temos, portanto, a intenção de esmiuçar todos os acessórios presentes

na trama, mas recortar, como exemplo, o trio que insere específico contexto histórico à obra:

o lenço de Zé Bebelo, a capanga bordada de Diadorim e o cinto-cartucheira de Riobaldo.

Assim, esses três acessórios da indumentária descrita por Riobaldo parecem costurar

ao romance o fio da história brasileira do cangaço/jagunçagem, conforme comparação feita

com base na análise de Frederico Pernambucano de Mello (A estética..., 2000;

DOCUMENTÁRIO..., 2016) sobre peças utilizadas pelos cangaceiros no final do século XIX

e início do XX.

Temos, então, o lenço de Zé Bebelo a inaugurar nossa interpretação, que foi descrito

pelo protagonista quando o vê pela primeira vez, assim que chega na Fazenda Nhanva, no

lugar chamado Palhão, onde fora lecionar como Professor Riobaldo:

Ele era imediatamente estúrdio, vestido de brim azul e calçando botas amareladas. Era nervoso, magro, um pouco mais para baixo do que o tamanho mediano, e com braços que pareciam demais de compridos, de tanto que podiam gesticular. Fui indo, ele veio vindo, o grande revólver na cintura; um lenço no pescoço dele esvoaçava. E aquele cabelo bom, despenteado alto, topete arrepiadinho (ROSA, 2015, p. 114).

104

Para compreendermos as possíveis significações do lenço na cena, precisamos antes

observar a totalidade do vestuário de Zé Bebelo: brim azul, botas amareladas, grande revólver

na cintura, lenço no pescoço. Logo, temos três itens grossos, rústicos, de materiais pesados —

o brim, provavelmente o couro e o ferro —. Assim, o lenço aparece como item de leveza, de

fluidez, como algo a se contrapor à sisudez do restante das peças que encenam o figurino

desse chefe. Além disso, no final do século XIX e início do século XX, havia importação de

lenços de seda (e outros tecidos finos, como o tafetá) da Europa, adquiridos no Brasil por

pessoas abastadas, o que nos leva a compreender o poder de compra de Zé Bebelo. Mas, para

além, outro fato sobre os lenços parece se inscrever nas linhas rosianas.

Nas fotografias registradas por Flávio de Barros (apud CUNHA, 2016, p. 588-597),

em Os sertões, é possível ver o uso de lenços no pescoço por policiais da infantaria, atuantes

na Guerra de Canudos. Os jagunços de Antonio Conselheiro, então, não utilizavam lenços.

Porém, com a formação do bando de Lampião, Frederico Pernambucano de Mello (A

estética..., 2000) relata que, ao assaltar abastadas fazendas, Virgulino levava consigo objetos

de alto valor, dentre eles, os lenços de seda e tafetá — seus preferidos — importados. Além

disso, fazendeiros que ofereciam hospedagem ao bando também presenteavam Lampião com

itens caros, buscando manter a paz em sua propriedade ao agradar o líder do banditismo.

Dessa forma, sabemos que o uso de lenços no pescoço se liga tanto à polícia quanto ao

cangaço.

E o lenço, somado à roupa de brim azul, de Zé Bebelo, remete tanto aos uniformes

policiais, feitos desse material nas cores cáqui ou cinza, quanto à moda do cangaço, já que era

costume a utilização de roupas de brim nas cores cáqui e azul e, em raros casos, na cor cinza

(DOCUMENTÁRIO..., 2016). Assim, o lenço de Zé Bebelo envolve a personagem em

ambiguidade, ora representante da polícia, ora de jagunços, valendo-se da estética histórica da

indumentária dos guerreiros do sertão nordestino. A indumentária de Zé Bebelo, analisada a

partir de seu lenço, desvenda a ilustração da própria trajetória que a personagem cumpriria na

trama posteriormente ao primeiro encontro com Riobaldo, partindo da posição de aspirante a

político ao lado da polícia para chefe dos jagunços na tentativa de vingar a morte de Joca

Ramiro.

Além do lenço, Guimarães Rosa escolheu pontuar as lembranças de Riobaldo com

outra peça típica do cangaço: a capanga “bordada e historienta” (ROSA, 2015, p. 128) de

Diadorim/Reinaldo:

105

Aí nesse mesmo meio-dia, rendidos na vigiação, o Reinaldo e eu não estávamos com sono, ele foi buscar uma capanga bonita que tinha, com lavores e três botõezinhos de abotoar. O que nela guardava era tesoura, tesourinha, pente, espelho, sabão verde, pincel e navalha. Dependurou o espelho num galho de marmelo-do-mato, acertou seu cabelo, que já estava cortado baixo. Depois quis cortar o meu. Me emprestou a navalha, mandou eu fazer a barba, que estava bem grandeúda (...) (ROSA, 2015. p. 127, grifo nosso).

Nesse trecho, Riobaldo conta que junto a Diadorim cuidava da aparência porque, conforme

aprendeu com o amigo, “Pessoa limpa, pensa limpo” (ROSA, 2015, p. 128). E relembra

também que Diadorim o presenteou com o item:

(...) De estar folgando assim, e com o cabelo de cidadão, e a cara raspada lisa, era uma felicidadezinha que eu principiava. Desde esse dia, por animação, nunca deixei de cuidar de meu estar. O Reinaldo mesmo, no mais tempo, comprou de alguém uma outra navalha e pincel, me deu, naquela dita capanga. Às vezes, eu tinha vergonha de que me vissem com peça bordada e historienta; mas guardei aquilo com muita estima (...) (ROSA, 2015, p. 128, grifo nosso).

Importa saber que a capanga é uma bolsa menor do que o bornal e que, geralmente,

tem uma alça para ser transpassada no corpo ao ser pendurada. Servia para carregar objetos

pessoais bem como pequenas porções de comida durante a travessia. O que diferencia a

capanga de Diadorim das peças dos demais jagunços são os adjetivos escolhidos para

descrevê-la. Assim, é informado que se trata de uma capanga “bordada”, característica já dita

anteriormente sob o sinônimo de “lavores”, e “historienta”, que é uma nova informação sobre

a peça.

Sobre ser “bordada”, pensamos em um item tanto mais feminino quanto mais vaidoso,

diferenciador, individual, aspecto que contribuiria com a ambiguidade sobre a personagem

Diadorim, um corpo entre o masculino e o feminino, em neblina na interpretação do

protagonista-narrador. Já o adjetivo “historienta” colabora com duas interpretações: a

primeira, liga-se ao significado como peça “Cheia de enfeites, de luxo. // Bras. pop.”

(MARTINS, 2020, p. 265), que pode apontar para o status de Diadorim, bem como sua roupa

nova e chapéu novo desde criança, conforme já citamos, além de reforçar a ambiguidade

sobre o gênero da personagem; a segunda, ao vermos “historienta” como uma peça com

história, que pertence a certo espaço e tempo, que contém alguma substância social e política

de determinada região.

Nesse sentido, as mais famosas capangas e bornais bordados e historientos, dentro da

temática do jagunço, são as confeccionadas pelos cangaceiros, sobretudo do grupo de

Lampião, que revolucionou a estética do cangaço, segundo Frederico Pernambucano de Mello

106

(A estética..., 2000; FRÓIS, 2021). Em seu bando, o costume era que cada cangaceiro de

maior hierarquia ganhasse ou ele mesmo confeccionasse seus bornais e capangas de lona ou

brim, cobertos por lavores coloridos e com motivos desenhados individualmente para cada

um.

A partir desse registro histórico, percebemos que a capanga “bordada e historienta”

pode fazer de Diadorim um jagunço ainda mais “macho em suas roupas” e em sua bolsa, tão

cabra macho quanto os cangaceiros da história brasileira. E, ao presentear Riobaldo com sua

capanga bordada e historienta, Diadorim também indicava que o amigo subia na hierarquia,

ganhava assim, além do seu afeto, um símbolo de pertencimento e confiança no bando cujo

pai de Diadorim — Joca Ramiro — era o chefe.

Por fim, encerrando o diálogo entre os acessórios rosianos e lampiônicos, há o cinto-

cartucheira. Essa peça se constitui em uma espécie de cinto grosso de couro, com diversas

pequenas bainhas nas quais se armazenam os cartuchos de armas maiores, como rifles

(carabinas, fuzis) e espingardas. Geralmente, são usados pendurados nos ombros, cruzando-as

pelo peito, bem como podem ser usados na cintura, como um cinto (DOCUMENTÁRIO...,

2016). Não são de uso comum, sendo vistos, sobretudo, em cenários de guerras, usados por

soldados.

Logo, temos um item projetado para a guerra encenado na indumentária dos jagunços

rosianos. E a peça específica que nos interessa nesta análise é a que pertence a Riobaldo, pois

ela determina a condição do protagonista como jagunço. Assim, Riobaldo narra, ao final do

conflito com o Hermógenes, findada a guerra e realizada a vingança — pela qual Diadorim

deu a própria vida — pela morte de Joca Ramiro:

E aquela era a hora do mais tarde. O céu vem abaixando. Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi. Aqui a estória se acabou. Aqui, a estória acabada. Aqui a estória acaba. Resoluto saí de lá, em galope, doidável. Mas, antes, reparti o dinheiro, que tinha, retirei o cinturão-cartucheiras — aí ultimei o jagunço Riobaldo! Disse adeus para todos, sempremente (ROSA, 2015, p. 486. grifo nosso).

Portanto, ao retirar seu cinto-cartucheira, o protagonista “ultima” o jagunço Riobaldo, ou seja,

se despe de sua munição, abre mão do que alimenta suas armas, encerra o peso das balas

sobre seu corpo, finda a travessia no banditismo. Além disso, a escolha lexical ao chamar o

cinto de “cinturão” também permite a interpretação de Riobaldo como um lutador que ganhou

107

a luta, mas que abandona seu prêmio para “ultimar” sua carreira, já que o cinturão é um dos

prêmios dado a boxeadores desde 1922 (WIKIPÉDIA, 2021).

Por fim, percebemos que os três acessórios analisados dialogam historicamente com o

vestuário do cangaço brasileiro, ajudando a contextualizar o cenário da estória, e se

entrelaçam a aspectos da caracterização de cada personagem, tanto por sua jornada na trama

quanto por seu mistério. Temos, portanto, Zé Bebebo e seu lenço indicativo de sua

duplicidade de posições na guerra do sertão — ora policial, ora jagunço; Diadorim com sua

capanga bordada e historienta, envolto no mistério de seu gênero; Riobaldo e seu cinturão-

cartucheira, vencedor e perdedor na luta ao fim da árdua travessia.

108

5 ARREMATE

No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso... (ROSA, 2015, p. 80).

Aqui, a dissertação acaba. A dissertação acaba aqui. Iniciada e finalizada com clichês

do universozinho rosiano, resultado da incorporação de palavras, modos de escrita e pensar

pelos apaixonados pela grande obra de João Guimarães Rosa.

E, como em Grande Sertão: Veredas, guardamos um mistério em nossa trama, contido

no nome escolhido para esta pesquisa, sobre o qual somente agora discursamos. Contamos,

portanto, que a escolha por Grande Viés: Veredas, além de parodiar o nome da obra estudada,

reflete duas vertentes, sendo uma literária e outra acerca de conhecimentos de corte e costura.

Assim, com “Viés”, buscamos informar que se trata de uma possibilidade interpretativa da

obra, dentre tantas veredas possíveis, o que sabemos ser óbvio. E também consideramos o

significado dado ao termo no âmbito da confecção de indumentária, já que cortar e costurar

um molde no viés do tecido costuma ser, além de muito dificultoso, um risco imenso de

perder a peça por problemas no entrelaçamento da linha, sendo que a mesma pode enrugar ou

rasgar durante o processo, além do resultado final restar torto, como um gauche.

Logo, o nome desta pesquisa espera fazer jus à interpretação que nela realizamos,

buscando, apesar de todos os riscos críticos, demonstrar como a indumentária masculina

encena diversas possibilidades de significação em Grande Sertão: Veredas. Por aqui, vimos

que o gibão aponta para algo antigo; a calça, para a macheza; a camisa, para o futuro da

trama; o colete, para o mistério; o chapéu, para a distinção social; o sapato, para a hierarquia;

e os acessórios, para a história brasileira, dentre outras características.

Tendo isso em vista, foi possível perceber que, além da própria encenação da estória e

a manutenção de seus mistérios, a indumentária ajuda a nortear nossa leitura na compreensão

do tempo, espaço e cultura do enredo. Observar pesquisas que se debruçaram sobre a

sociologia e a história do vestuário nos possibilitou delimitar uma interpretação partindo-se do

que é verossímil, para só então descobrirmos em que detalhes o autor insere aspectos que vão

além da cultura, espaço e tempo, como vimos na estampa das camisas, por exemplo, a

anunciarem desfechos próximos a suas descrições.

Sabendo da riqueza do diálogo entre áreas, esperamos que nosso viés contribua com os

estudos interdisciplinares, colocando em diálogo conhecimentos diversos, como os da

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literatura brasileira e da sociologia da indumentária, que se costuram, desdobram-se uma no

bolso da outra, entrelaçam-se como um nó apertado em corda rústica para nos dar o trabalho

imenso ao tentar desatar pela leitura.

Alfredo Bosi (1988, p. 275), afirma que “Ler é colher tudo quanto vem escrito. Mas

interpretar é eleger (ex legere: escolher), na messe das possibilidades semânticas, apenas

aquelas que se movem no encalço da questão crucial: o que o texto quer dizer?”. Sabendo-se

que Grande Sertão: Veredas quer dizer muitas coisas, tantas que infinitas são suas análises,

como já o disse Antonio Candido (2002), acreditamos que, ao abordar a leitura da

indumentária masculina de sua trama, alcançamos apenas uma pequena possibilidade de

compreender o que teria feito João Guimarães Rosa em sua “absoluta confiança na liberdade

de inventar” (CANDIDO, 2002, p. 121).

Assim, chegamos ao fim de nossas pontuações sobre os aspectos importantes da

indumentária masculina rosiana, que encena, dentre outras coisas, o homem Diadorim, e

mesmo diz acerca da vaidade de Riobaldo, que busca sempre estar de acordo com o “bando”

no qual está inserido, seja de botinas na fazenda ou de alpercatas na jagunçagem.

Conforme explicitado na introdução desta pesquisa, não tivemos a intenção de delinear

nenhuma personagem individualmente, mas observar o sentido emergente do contraste entre

as peças de indumentária da narrativa. Assim, notamos que cada calça, por exemplo, encena

uma particularidade acerca da personagem que a veste ou a possui, mas partindo sempre do

vestuário para tal análise, e não do sujeito da trama.

Além disso, sabemos que nesta caminhada algumas perguntas findaram sem respostas,

por necessitarem de mais tempo, espaço e cultura para que sejam elaboradas. E, conforme

aprendemos no ambiente acadêmico, saber elaborar perguntas é tão importante quanto a busca

por suas respostas. Sobretudo na área de Humanas, são as perguntas a nossa própria

elaboração e não a certeza das exatidões. Então, se realmente podemos ler Diadorim como um

homem trans, só uma pesquisa com esse recorte talvez esclareça. Aqui, limitamo-nos a

analisar o que cada peça de seu vestuário sugere de acordo com a cultura de seu tempo e

espaço.

Percebemos, ainda, a riqueza e a complexidade das escolhas feitas em sua escrita pelo

autor empírico, o sábio e apaixonado pelas palavras João Guimarães Rosa. Assim, temos

detalhes fragmentados e dispersos por toda a narrativa que apenas nos deixam um pequeno

rastro de apontamentos sobre um tempo e um espaço bordados em cada peça de vestuário,

mas carregados de mistério, a nos permitir apenas ilações muito perigosas.

110

Além disso, vale notar que o próprio autor tinha sua inconfundível marca de

indumentária: a inseparável gravata borboleta. Registrada inclusive em entrevistas, como:

(...) Estamos quase chegando e eu pergunto cretinamente: — Por que você só usa gravata borboleta? Não é, pergunta de entrevista, é? — Não. É que eu acho que a gravata borboleta define as pessoas. É porque nunca aprendi a dar laço nas gravatas comuns. Acho esta mais fácil (...) (BLOCH, 1989, grifo do autor). (...) Lá está o lacinho (ou gravata-borboleta, meu chapa?) simetricamente impecável, fazendo pendant com os óculos claros, tão claros que ainda esclarecem mais os olhos sempre inquiridores, atentos. E é curioso como um mineiro de Cordisburgo, a dois passos (brasileiros) da Itabira de Drummond, gosta, ao contrário deste (à primeira vista), de falar, de contar, de ser ouvido (...) (SARAIVA, 2000).

Esses trechos, extraídos de duas conversas-não-entrevistas feitas por dois interlocutores

diferentes — Pedro Bloch e Arnaldo Saraiva —, em tempos diversos — 1963 e 1966,

respectivamente —, trazem o traço de vestuário eternizado na imagem do autor. E mesmo que

o autor afirme ser sua escolha de vestuário feita pela facilidade inerente ao modelo de sua

gravata, poderíamos desconfiar que também se trata de uma diferenciação, em seu tempo, dos

demais homens, afinal sabemos o quão peculiar foi e é João Guimarães Rosa. Tão peculiar

que resta-nos questionar, como o Drummond (2015 apud ROSA, 2015, p. 9):

João era fabulista? fabuloso? fábula? Sertão místico disparando no exílio da linguagem comum? Projetava na gravatinha a quinta face das coisas inenarrável narrada? Um estranho chamado João para disfarçar, para forçar o que não ousamos compreender?

E seguir a travessia desconfiando de muita coisa, dentro da coisa, dentro da trama, dentro do

infinito entrelaçado e urdido nas entrelinhas de Rosa.

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