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Os brinquedos-fósseis e o tempo da memóriaAndréa França1

“Fiz um filme que se chama Diário de uma busca noqual eu conto a história do meu pai, militante,que saiu do Brasil em 1971 e voltou com aanistia em 1979. No filme, eu volto aos paísesdo exílio que são também os países da minhainfância. Ao receber o convite para vir aquihoje, pensei em falar um pouco do que foi aminha experiência do exílio, como filha,criança e adolescente. Por ter conversado comvários filhos de exilados como eu, acredito quenossas experiências tem muito em comum. (...)Falar das crianças que acompanharam os pais quelutaram contra a ditadura - fora do Brasil - éfalar de um exílio invisível, sobre o qualainda foram colocadas poucas imagens oupalavras. (...) Em 1979, com a anistia, meuspais decidem voltar de um dia para o outro.(...) A volta ao Brasil do pais é mais umexílio para os filhos. A dor do exilio, paramim, é a dor do retorno. E se mistura a ela, arevolta – pois acontece numa idade em que jáexiste a consciência de que, dessa vez, setrata de uma escolha.” 2

Palavras-chaves: Diário de uma busca; documentário; memória; ditadura; brinquedos

O filme de Flavia Castro, Diário de uma busca (2010),

narra em primeira pessoa as tonalidades da complexa

experiência subjetiva que é a infância. Momento de

alegrias, de descobertas e de relações que se apresentam,

1 Profa. do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social daPUC-Rio. Doutora em Comunicação pela ECO/UFRJ. Pesquisadora doCNPq. Autora de inúmeros artigos e livros sobre cinema eaudiovisual.2 “O exílio invisível das crianças”, trecho da apresentação deFlavia Castro dentro do Seminário Encontros com o Exílio, organizadopela Biblioteca Nacional e pelo Programa de Pós-Graduação emHistória Social da UFRJ, no dia 05/12/2013, na BibliotecaNacional.

anos depois, como matriz de um trabalho de retomada e

montagem de imagens, sons e arquivos de origens diversas,

um trabalho de memória onde a imagem é um traço visual e

sonoro do tempo que gostaria de tocar. Assim como a

infância semeia instantes de júbilo, diz o filme, também

semeia momentos de dor e as tentativas árduas de sua

superação. A materialidade da dor é apresentada através

de planos fixos de brinquedos solitários, desprovidos de

seus pequenos seres criadores e curiosos, brinquedos cuja

paralisia parece exalar os espectros da ruína e da

finitude.

O plano fixo do escorrega colorido filmado em um dia

chuvoso, em meio aos transeuntes que passam apressados

com seus guarda-chuvas cinzas, revela o brinquedo

esquecido e confundido com seu entorno, a praça, o

encanto da infância rompido por uma história de

constantes viagens, uma história íntima que é

imediatamente pública e política. Sobre a imagem fixa do

escorrega molhado da chuva, a locução em off (cuja voz é

da própria Flavia) diz:

“Uma mala aberta sobre a cama, as mãos daminha mãe jogando roupas dentro, meu paiindo e vindo... Faço perguntas, mas nãoentendo que eles viajem de repente, no diado aniversário do pai. Ninguém viaja no diado seu aniversário! O silêncio deles meirrita e revelo então a lista de presentesque ele não ganhará, já que não vai estarconosco. Meu pai sorri, mas não meresponde...” (Diário de uma busca).

O ano é 1971. Ano que os pais de Flavia fogem do

Brasil em direção ao Chile, pois Celso Gay de Castro, seu

pai, deveria se apresentar ao DOPS na semana seguinte.

Diário de uma busca narra o período da ditadura civil-militar

no Brasil sob a ótica de uma documentarista, filha de ex-

militantes, que se volta para si mesma, que se debruça

sobre os anos de sua infância vivida na clandestinidade,

atenta às suas sensações, afetos, dúvidas, temores,

fantasias. A observação do mundo histórico e a observação

do eu, pretérito e presente, se fundem e essa mistura

tensiona os limites entre o objetivo e o subjetivo, o que

está dentro e o que está fora, o espaço doméstico e o

espaço público, favorecendo ainda a indeterminação entre

diretor e personagem, autenticidade e encenação,

experiência e representação, ficção e documentário. Se

essa indeterminação tem operado, mais amplamente, em uma

série de dispositivos comunicacionais e audiovisuais

contemporâneos, o filme de Flavia Castro contudo tensiona

as interpretações totalizantes e o pensamento da imagem

como mera ilustração de uma realidade preexistente.

Além de Diário de uma busca, filmes como Uma longa viagem

(Lucia Murat, 2011), Elena (Petra Costa, 2013), Memória Para

Uso Diário (Beth Formaggini, 2007), Utopia e barbárie (Silvio

Tendler, 2009), Cidadão Boilesen (Chaim Litewski, 2009),

Mariguella (Isa Grinspun Ferraz, 2011), O dia que durou 21 anos

(Camilo Tavares, 2012), Em busca de Iara (Flavio Frederico,

2013), Os dias com ele (Maria Clara Escobar, 2013) revelam,

em meio às suas diferenças expressivas e estéticas, o

momento atual do Brasil onde se engendra, lentamente, a

reivindicação pela memória dos vinte e um anos de

ditadura, com a punição de crimes e de torturadores, com

a abertura de arquivos secretos, com a restituição da

verdade em torno dos desaparecidos.

Mas não é só isso. Esses filmes explicitam também

que a prática cinematográfica documental vem passando por

profundas transformações. Ao invés de filmar outros

corpos, outros gestos, outras visões de mundo, ao invés

de filmar o “outro” e se manter à distância do universo

filmado, alicerces da tradição do documentário, esses

filmes registram o que é íntimo e próximo aos cineastas -

mesmo que, em muitos casos, essa intimidade se mostre

opaca e estranha. São obras em que os diretores estão

presentes na imagem, imprimindo na mesma uma dimensão que

pode ser confessional, autobiográfica, ensaística, de

diário íntimo, de testemunho, onde importa o processo de

investigar o presente e suas relações com a memória de

personagens e testemunhas, a sobrevivência do passado no

presente através de uma reconstituição subjetiva e

pessoal da História.

É claro que tais imagens “pessoais” se misturam e

implicam muitos riscos - de narcisismo, de exibicionismo,

da pose -, mas expressam também transformações mais

amplas na relação entre as esferas pública e privada na

sociedade contemporânea, onde a intimidade e a vida

ordinária são permanentemente convocadas à performance de

si mesmas, espetacularizadas.

Diário de uma busca é um relato pessoal da infância nos

países de exílio. Se o motivo da realização do

documentário parece ser, ao menos inicialmente, a busca

pela elucidação e pelo esclarecimento da morte misteriosa

de Celso Gay de Castro, pai da documentarista, à medida

que o filme avança o motivo se desloca e passa a se

relacionar também a aspectos da experiência pessoal e da

subjetividade da própria realizadora. Como se certas

imagens, reiteradas, dissessem que “é preciso parar

diante do tempo [da imagem] (...)” para despertar suas

virtualidades adormecidas (DIDI-HUBERMAN, 2003, p. 13).

***

“Não podemos recuperar totalmente o quefoi esquecido. E talvez seja bom assim. Ochoque do passado seria tão destrutivo que,no exato momento, forçosamente deixaríamosde compreender nossa saudade”. Infância emBerlim, Walter Benjamin.

Flávia Castro segue, no filme, o caminho das cartas

deixadas pelo pai, do seu próprio diário, dos espaços

vividos em países diversos, das lembranças de parentes e

companheiros de militância política de seus pais, de

fotografias da família e arquivos de jornais. A diretora

escava cartas, documentos, fichas criminais, reportagens

da imprensa, relatos de jornalistas e policiais à procura

de indícios que ocupem o vazio deixado pela versão

oficial da morte de seu pai. Jornalista, militante

político, guerrilheiro que lutou e foi perseguido pela

ditadura civil-militar, o pai teria se suicidado após uma

tentativa de assalto frustrada na noite que entrou armado

na casa de um cidadão alemão (supostamente, ex-oficial

nazista), na cidade de Porto Alegre, pouco depois da

decretação da anistia.

Retomar essa investigação encerrada, com desfecho e

elucidação duvidosos, constitui apenas um dos fios

narrativos da trama do filme que envolve memórias, afetos

e ambivalentes sentimentos familiares. A morte violenta

do pai havia apagado as lembranças de uma convivência

familiar sob constantes mudanças de endereço, de uma

infância de poucos amigos. Flávia, ora acompanhada da

mãe, ora acompanhada dos irmãos João Paulo Castro, o

Joca, e Maria, percorre cidades, ruas, casas, no Chile,

na Argentina, na França, no Brasil, procurando

identificar lugares esquecidos e encontrar vestígios de

uma infância vivida no exílio. Nessa jornada, leva

consigo as raras fotografias daquele tempo em uma

tentativa de reter algo que se esvai, que passa

irreversivelmente. As cores intensas das frutas

apodrecendo no chão, os lençóis brancos pendurados no

varal, os parques despovoados e tristes, os brinquedos

congelados pelo tempo, ganham todos uma dimensão afetiva,

como se cada um fosse depositário de uma história íntima,

portador de rastros de uma infância errante e perdida.

Há uma primeira infância colorida e cheia de aromas.

Há também uma segunda, cinza e triste. Da primeira, no

Brasil ainda antes do AI5, surge a imagem da paisagem

bucólica, da árvore carregada de flamboyant, da casa alegre

dos avós, sempre cheia de amigos, risadas e sonhos. Da

segunda, surge a infância no exílio e sombria. Em 1971,

Flávia com então cinco anos segue com o irmão rumo ao

Chile, aonde os pais, militantes do Partido Operário

Comunista (P.O.C.), se refugiam para escapar da prisão no

Brasil. Os anos seguintes traduzem-se em constantes

fugas, vida instável e perguntas não respondidas. “Por

que alguém [o pai] tem que viajar justamente no seu

aniversário?”; “Por que ela [Flavia] não pode falar o

nome do pai, só o codinome?”; “Por que ela e o irmão não

podem ir à escola como outras crianças?”; “Por que,

dentro da escola, não podem responder à pergunta da

professora sobre a profissão dos pais?”.

Retornar aos lugares de memória é aqui retornar à

casa do não-sentido, percorrer objetos que faltam em seu

lugar, sentir uma ausência presente porque é em função

desses objetos que tudo passa, que tudo se passa, que não

se fica imune e que não se é mais o mesmo. O filme

solicita que Flávia retorne à casa vazia, à casa dos

parques e dos brinquedos sem anima. Ao colocar o próprio

corpo em cena e em busca - da verdade sobre a morte do

pai? Da verdade sobre a experiência do exílio? Da verdade

sobre o ponto cego da infância? -, a cineasta só pode

vaguear, anotar lembranças, prescrutar fotografias,

descrever lugares, reler antigas cartas do pai, procurar

em cada criança filmada o rosto, os movimentos e o corpo

que um dia foi o seu.

São os brinquedos sem anima, anômalos, que pontuam o

filme como um refrão. Dessemelhantes a si, deslocados de

si mesmos, o escorrega colorido na praça, a cadeira de

balanço vermelha, a bicicleta encostada na parede, a mesa

de totó, os soldadinhos de plástico na janela, ocupam na

imagem um lugar sem ocupante, um lugar onde eles (os

brinquedos) não estão nunca onde o procuramos e,

inversamente, nunca os encontramos onde estão. Como se

tais imagens, filmadas em planos fixos, retirassem do

brinquedo seus afetos e memórias para devolver ao

espectador a artificialidade crua de sua materialidade.

Foto 1 – Passaporte de Flávia Castro em Diário de uma Busca

O ferro colorido do escorrega na praça em um dia

chuvoso é simplesmente o ferro, metal duro e resistente,

e não material de um objeto de interação, de criação, de

invenção de mundos. É como se o escorrega – lugar de

imaginários, ficções, crenças e linguagens lúdicas – só

pudesse gerar não-sentido, arrancado que foi,

bruscamente, do mundo da fantasia e do faz-de-conta. Essa

criança que se escondia para chorar, rememora Flavia

Castro, tinha um desejo permanente de desaparecer para

renascer como criança qualquer, criança que brinca de

casinha, que pode ir à escola normalmente, que não

precisa ficar sempre atenta ao entorno. No entanto,

descobre Flávia, essa criança que ela e o irmão foram um

dia não passava de um “estorvo” para seus pais, como

revela sua mãe, anos depois, para a filha-cineasta.

Todo um processo de esfacelamento da experiência do

brincar, de ser criança, que pode ser experimentado nos

planos fixos e de longa duração das praças e parques, dos

jardins inertes, dos galhos de árvores retesadas. É

justamente a montagem que vai possibilitar a abertura de

um relato pessoal da infância para uma experiência

coletiva, para a reescrita de uma história vivida pela

geração de filhos de militantes políticos que enfrentaram

diretamente a repressão. Não é o caso aqui de retomar

todo esse extenso debate, mas apenas lembrar que além

desse conjunto de produções audiovisuais no Brasil, há

sobretudo na Argentina e no Chile um amplo leque de

filmes documentais e ficcionais que exploram a história

política desses países por um viés explicitamente

subjetivo, a partir da intimidade, assim como existe

também uma vasta e heterogênea fortuna crítica dedicada a

essa produção (SARLO, 2007; AMADO, 2009; APREA, 2010).

No filme de Flavia, é na montagem que as cartas

escritas pelo pai para a família, lidas pela realizadora

e sobretudo por Joca, transformam-se em palavras

espectrais que vagueiam errantes por entre rostos amigos,

paisagens, ruas e tempos. Mais do que isso, a montagem

permite que o pai surja nas cartas não apenas como algo

íntimo ou privado, mas como um experimentar-se que deve

ser exteriorizado. Em uma carta escrita para sua

namorada, Ana, quando residia em Paris em meados dos anos

1970, ele diz:

“... a opção pela revolução é um elementodeterminante nas coisas que faço, demaneira estrutural. Não que me considere umsuper militante e que todos os meus atossejam um reflexo da minha consciênciabolchevique. O fato é que há muito tempominha preocupação principal se refere a umprojeto revolucionário. Também não querodizer que todo meu tempo eu dedico aotrabalho político, já que boa parte delededico a nada. Depois de quase dois anos emParis, consumindo-me num trabalho nagráfica, em reuniões e mais reuniões detodos os tipos, estava com umaprodutividade política absolutamenteinsatisfatória, buscando um outro tipo devida (...)”.

Sua auto-análise crítica, romântica e muitas vezes

melancólica produz a sensação de que, na verdade, somos

nós, espectadores, “o destinatário” desse mundo urgente,

guiado por fortes convicções, propósitos e códigos de

conduta. Suas cartas para a família permitem resgatar as

sensibilidades de uma época e de um grupo social que

apostou tudo na militância política. São cartas que

traduzem sentimentos, maneiras de falar, agir, ocupações

e ações de um tempo onde a juventude revolucionária

compartilhava praticamente o mesmo projeto de vida:

através da luta armada, derrubar o regime militar e,

ainda, revolucionar os costumes, os valores, as relações

sociais e afetivas que deveriam ser mais igualitárias.

A montagem da leitura das cartas, do diário e das

lembranças de Flavia – dos brinquedos, dos lugares e das

brincadeiras possíveis - nos oferece uma imagem do tempo

desejosa de pensar a criança construída na cineasta, a

infância forjada no adulto, pensar que tempo é este em

que a criança habita.

Se a montagem nos oferece uma outra imagem do tempo,

ou “consciência do tempo” para Michel Poivert (2007,

s/n), fazendo explodir a narrativa da história e a

disposição das coisas, no filme de Flavia Castro, a

montagem explode com a história quando faz dos brinquedos

vazios, das árvores do quintal, dos muros das casas, dos

lençóis no varal e das cartas do pai, imagens-vestígios do

exílio e de espaços da infância que não puderam ser

explorados, brincados, vividos. São os corpos da

cineasta, da sua mãe e dos irmãos que, como imagens-

vestígios, entram em cena para “performar o passado” de

pedra, enrijecido pelo tempo (POIVERT).

O filme evidencia assim o caráter lacunar e

transformador da memória que narra não o que viveu, isto

é, “um estoque pré-formado de imagens, sons e

referências”, mas histórias, sobrevivências e sensações

de uma época, “uma espécie de nuvem que acompanha e

acolhe o real” (REZENDE, 2013, p. 88). A partir de uma

jornada pessoal, Diário de uma busca produz imagens raras de

uma história silenciada e esquecida, das dores e das

faltas experimentadas por brasileiros que foram obrigados

a viver exilados, longe de pessoas amadas, proibidos de

estabelecer laços de afetos com quem estava ao redor. São

memórias de um “exílio invisível”, como destaca Flavia

Castro, memórias impedidas de tantas infâncias que ganham

imagens, palavras, cores e formas.

Se o filme nos faz ver o quão carregadas e prenhes

são essas memórias impedidas, talvez seja porque permite

que se experimente “o vestígio de hábitos perdidos”, ou

ainda, porque faz ver na “mistura com a poeira de nossas

moradas demolidas o segredo que o faz [o esquecimento]

sobreviver” (BENJAMIN, 1987, p.105, grifo nosso).

É verdade que a infância no exílio, além da tristeza

e de uma certa melancolia evocadas pelos brinquedos

petrificados, fósseis, tem também outros componentes que

são narrados em off pela voz suave da diretora. Trata-se

da capacidade de adaptação, de estabelecer novas

relações, a vida meio selvagem e em bando, a alegria com

pequenas coisas (como perceber no sobrenome “Castro” a

possibilidade de se fazer passar pela sobrinha de Fidel

Castro na escola...). Se a experiência do exílio na

infância não é simplesmente perda ou abandono do que

ficou para trás é porque, ainda assim, trata-se de uma

infância com sensações próprias à qualquer infância, com

seus temores, sonhos, pesadelos e descobertas. Uma

experiência que para ser retomada, anos depois, precisa

de um tempo e de um olhar que lhes são próprios,

singulares, por meio dos quais a realizadora escolhe e

tece suas imagens e sons, deslocando-se pelos labirintos

desses lugares outrora habitados.

As esquinas, as ruas, as escolas, as praças, os

quintais, os recantos e os esconderijos da casa, as

formigas no solo, o lençol branco pendurado no varal - a

remeter ao dia em que um lençol foi estendido no meio da

sala para que dois guerrilheiros pudessem trocar

informações, cada um de um lado do pano, sem se

(re)conhecerem, estimulando em Flavia, criança, a decisão

de transitar pelos dois lados do “muro” de modo a

favorecer e facilitar o diálogo em curso - são imagens em

meio às quais se exterioriza a condição mesma de ser

criança, um ser vulnerável, sensível, potente e capaz,

apesar de tudo. Depois do golpe militar no Chile, lembra

Flávia,

a gente se refugiou rapidamente naEmbaixada da Argentina. A experiência naEmbaixada, dentro da sucessão de países, éum capítulo à parte porque foram três mesesvivendo numa casa imensa, que parecia umpalácio, com um jardim incrível, e mais

outras setecentas pessoas... Apesar dagente não poder sair dali foi certamente umdos momentos em que me senti mais livre.Quando penso na minha infância, apesar dostiros, do risco, do medo (...), acho esseum dos momentos mais alegres (...). Isso seexplica pela convivência intensa comcrianças de toda América Latina que não sótinham experiências parecidas, mas queestavam ali como eu, esperando num lugarque não é um país e que é provisório paratodos.3

Durante os meses de permanência na Embaixada da

Argentina, a experiência do exílio parece oscilar entre o

desalento das dúvidas e o encanto do encontro com outros

pequenos seres cujas vidas se assemelham na instabilidade

das circunstâncias e na indeterminação sobre o futuro.

Em um belo artigo, a pesquisadora Laura U. Marks

analisa filmes que desvendam memórias de objetos. Trata-

se de imagens que mostram um objeto irredutivelmente

material que evoca memórias coletivas. São objetos-

imagens que condensam o tempo e que, desvendados,

permitem que o espectador possa expandi-los no tempo;

objetos-imagens cujos passados incomensuráveis são o

produto não apenas de uma história pessoal mas também de

desterritorialização cultural. Marks, fundamentada em

Walter Benjamin e Gilles Deleuze, analisa filmes que

tomam as coisas por suas imagens, apresentando-as “em

toda a sua estranheza tipo-fóssil” (MARKS, 2010, p.310),

de modo que reconectá-las com seu passado pode

eventualmente neutralizar seu poder perturbador. Tais

3 Seminário Encontros com o Exílio.

imagens de objetos juntam histórias e memórias que estão

perdidas ou encobertas no movimento desterritorializante

do exílio. Assim é que certas obras teriam a potência de

escavar nos objetos as camadas discursivas e afetivas que

tomam neles forma material, “os traumas mal-resolvidos

que neles estão incrustados e a história de interações

materiais que eles codificam” (p. 313).

Imagens portanto que teriam o poder de contar as

histórias dos lugares onde estiveram, objetos que uma

pessoa incorpora parcialmente no processo de

reorganização da subjetividade, brinquedos que a

realizadora recupera na sua mudez a fim de (nos) incitar

a memória da infância mesmo sem trazê-la de volta

completamente. As formigas, as frutas na terra, o

escorrega no parque, a mesa de totó, os soldadinhos são,

dentro dessa perspectiva, brinquedos-fósseis que ganham

sentido e luminosidade, na medida mesma em que o passado

traumático do exílio que evocam não acabou. Objetos tipo-

pedra, eles aparecem no documentário como testemunhas

silenciosas da história, testemunhas de um tempo que é

passado e presente, carregando consigo relações sociais,

afetivas, desterritorializações forçadas e histórias

esquecidas.

Para mim, o exílio sempre foi em relaçãoao ultimo país onde laços se criaram, ouseja, o país do qual “fugíamos”. E acho queisso, o fato do Brasil não ser a únicareferência, de às vezes nem ser ele o paísde origem, diferencia drasticamente oexílio das crianças da experiência deexílio dos adultos, para quem, o país que

se deixou é o Brasil e os outros são apenaspassagens... 4

Objetos tipo-fóssil, as imagens dos brinquedos são

vestígios do que falta, do que foi enterrado, do que uma

vez existiu e que se tornou pedra. Ainda assim, tais

imagens são capazes de destravar toneladas de memórias

silenciadas. Se como coloca Jean Marie-Gagnebin, a

imposição do esquecimento se dá como “um gesto forçado de

apagar e de ignorar, de fazer como se não houvesse havido

tal crime, tal dor, tal trauma, tal ferida do passado”

(2010, p.170), para o militante que sofreu a tortura e/ou

aquele que teve que fugir de seu país, ou seja, os

adultos, o esquecimento se torna uma estratégia de

sobrevivência, a maneira possível de expurgar a memória

da dor e da humilhação. Diferentemente da experiência dos

filhos, o esquecimento dos pais parece se tornar um dos

modos possíveis de apagar “a memória do golpe quase

mortal que sofreu seu desejo” - de mudança social,

política, cultural (ROLNIK, 1989, p.165).

4 Seminário Encontros com o Exílio já citado.

Foto 2 – Os soldadinhos, em Diário de uma Busca

Em Diário de uma busca, as imagens fixas de objetos da

infância e a narração suave e delicada de Flavia Castro

parecem documentar as desterritorializações e as relações

afetivas e sociais que os brinquedos carregam com eles. A

presença discreta mas reiterada dos planos dos

brinquedos, embora pareça dizer que não há muito o que

olhar neles, lembra que tais objetos mudos foram

efetivamente expostos àqueles eventos, sugere que de

algum modo os brinquedos “fotografaram” aqueles

acontecimentos.

As circunstâncias da morte de Celso Gay de Castro

foram de fato atípicas. Ex-guerrilheiro anistiado, ele

não conseguiu se integrar ao contexto social e político

brasileiro após o retorno do exílio. A volta ao Brasil

dos exilados significou, como ele mesmo escreveu em uma

de suas cartas, uma espécie de aniquilamento do projeto

coletivo das esquerdas, a dissolução do princípio de uma

autonomia econômica e política nas regiões da América

Latina, a derrota completa da lógica que contemplaria os

interesses nacionais e a justiça social. Sua exaltação em

torno do movimento operário proveniente de São Paulo,

nesse sentido, foi breve. O filme de Flavia Castro sugere

assim que a morte de Celso foi sobretudo resultado de uma

desilusão com a “transição democrática” que começava a se

constituir no país, um profundo desencanto com um tipo de

transição negociada sob a liderança de forças

representativas da então recente ordem ditatorial.

***

Podemos recuar na história do cinema documental

brasileiro e ver que essa dimensão subjetiva explicitada

não é nova. Cabra Marcado para morrer (Eduardo Coutinho,

1984) também mostra um diretor transformado em

protagonista de um processo de busca pessoal, um diretor

que interage com personagens e situações como sujeito

interessado, expondo como a macro história pôde afetar a

vida de uma família anônima de camponeses a ponto de

desintegrá-la, como a macro história pôde afetar

igualmente a vida do próprio diretor, obrigado a

suspender as filmagens, devido ao Golpe militar em 1964,

para retomar o projeto do filme muitos anos depois, com o

processo de abertura. Se, em muitos momentos de Cabra

Marcado, a narração é feita em primeira pessoa é porque

somente Coutinho poderia voltar ao interior do Nordeste

para filmar e reencontrar os camponeses que dirigiu

dezessete anos antes. E ele retorna, não apenas como

documentarista buscando resgatar uma história perdida,

mas como cineasta cuja experiência de filmagem havia sido

compartilhada por um grupo de pessoas anônimo, recusado

pela história oficial e pela mídia (LINS, 2004, p.32).

Um ano antes, em 1983, Eduardo Escorel realizaria

Chico Antonio – o herói com caráter em que também seria

protagonista de um processo de busca, sem saber ao certo

os resultados a que chegaria. O encontro vivido pelo

então jovem Escorel com o renomado coquista Chico

Antônio, personagem eternizado por Mario de Andrade no

livro Turista Aprendiz, só foi possível porque havia um filme

sendo feito, um filme onde o realizador precisava viver a

história desses encontros, entre ele mesmo e o já idoso

cantor de coco e também entre o afamado poeta e o cantor,

cinquenta anos antes. Viver o encontro como personagem

presente na imagem, para poder contá-la em seguida, como

cineasta.

Escorel vai até o local onde Mário de Andrade e Chico

Antonio se conheceram, no final da década de 1920 no Rio

Grande do Norte, e encontra um senhor de mais de oitenta

anos com alguma energia e memória suficiente para escavar

camadas de tempo esquecidas do encontro com o poeta.

Entre as cantorias com o ganzá e a narração de trechos de

Turista Aprendiz, o filme de Escorel restitui as imagens e os

sons à memória - musical, literária e afetiva - do

encontro que finalmente trouxe a equipe até o município

de Pedro Velho (RN).

Se, em ambos os filmes, Cabra Marcado e Chico Antonio, há

a presença privilegiada do “outro de classe” (BERNARDET,

2003), há igualmente um deslocamento formal e de

abordagem - do tradicional procedimento da entrevista,

tão caro ao documentário social e crítico das décadas

anteriores -, um desvio que explicita o processo de

reconstrução e de reinvenção da memória, a reflexividade

como traço dessas lacunas do tempo, o trabalho de

recuperação lenta de um passado esquecido, em retalhos,

onde o cineasta-personagem protagoniza uma procura.

Trata-se de um trabalho de recuperação porque tais

filmes mostram que as imagens estão condenadas desde

sempre a fazer a mediação entre o que foi e o que será,

mostrando que as passagens entre os diferentes tempos se

fazem por redes de afeto, de gestos, de movimentos, de

falas, de motivos visuais que se repetem na imagem. Em

Diário de uma busca, a mudez e a solidão dos brinquedos são

motivos visuais que revelam camadas e substratos de uma

memória soterrada pelo exílio invisível dos filhos,

motivos visuais que evocam a experiência daqueles que

carregam consigo histórias e imagens em meio às quais

viveram a infância. E cresceram.

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