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ENTRE OBJETOS, UM SUJEITO-AUTOR: CONSIDERAÇÕES SOBRE

AUTORREPRESENTAÇÕES CONTEMPORÂNEAS EM ARTES VISUAIS Cláudia Maria França da Silva / Universidade Federal de Uberlândia Comitê de Poéticas Artísticas

ENTRE OBJETOS, UM SUJEITO-AUTOR: CONSIDERAÇÕES SOBRE AUTOR-REPRESENTAÇÕES CONTEMPORÂNEAS EM ARTES VISUAIS Cláudia Maria França da Silva / Universidade Federal de Uberlândia RESUMO

O presente texto apresenta considerações em torno da autoria e como esse conceito, tão importante para a produção autorrepresentacional, lida com as transformações na identida-de do sujeito (Colombo, Hall) e no modo como ele usa objetos para dizer de si. Por meio dos trabalhos artísticos “A Fonte” (Marcel Duchamp, 1917) e “La visite Guidée (Sophie Calle) são levantadas discussões sobre o enfraquecimento do sujeito-autor (Foucault e Barthes) e a emergência dos estudos autobiográficos (Steiner & Yang, Lejeune). PALAVRAS-CHAVE

autor; identidade; objetos autorrepresentacionais; arte contemporânea. ABSTRACT The present text shows considerations about authorship and the way this concept, so im-portant for self-representative artworks, it deals with the changes in subject’s identity (Co-lombo, Hall) as well as the manners of how one uses objects for referring to him or herself. Through artworks as “The Fountain” (Marcel Duchamp, 1917) and “The Guided Tour” (So-phie Calle, 1994), discussions about subject-author’s attenuation (Foucault and Barthes) and the emergency of autobiography studies (Steiner &Yang, Lejeune) are raised. KEYWORDS

author; identity; self-representative objects; contemporary art.

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Considerações iniciais

Este texto trata de alguns aspectos sobre a condição do autor na produção contem-

porânea de autorrepresentações em artes visuais. Estas constituem um “campo ex-

pandido”: conjunto de manifestações e dispositivos utilizados pelo “eu” para se reco-

locar e se deslocar, se redescobrir e questionar-se, mesmo que provisoriamente.

Pertencentes a esse campo seriam os autorretratos e outra tipologia em que apare-

ça a imagem reconhecível do autor; autobiografias (narrativas de desenvolvimento

de uma subjetividade no tempo) e a fusão possível entre vida cotidiana e arte. Para

este texto, pensamos na apresentação de objetos de vocação identitária: de que

modo determinado objeto ou conjunto de objetos remete à presença virtual daquele

sujeito que os escolheu, interferiu e os organizou espacialmente.

Para Abraham Moles (1981), a vida social contemporânea, permeada pela tecnolo-

gia e pela massificação da produção, distancia ainda mais os contatos intersubjeti-

vos. Isto gera um “vazio social”, em que impera a “reificação do Outro” e a “imperso-

nalização funcional dos seres”. O indivíduo, por essas e outras pressões da vida

moderna, acaba por se encerrar em seu ambiente doméstico, estabelecendo, majori-

tariamente, contatos do tipo telecomunicacional com o mundo exterior. Há um pre-

enchimento do vazio social pela promoção do objeto, que “testemunha” a existência

da sociedade industrial na esfera íntima do indivíduo.

Os objetos são portadores de signos: trazem consigo mensagens próprias, incorpo-

radas às mensagens de seus proprietários. Cercamo-nos de objetos que atestam

nossa capacidade – ou deles – de dizer sobre nós. Desse modo, ocorre uma pre-

sença muito mais indiciária do autor, o que nos permite pensar esta vertente autorre-

ferencial como uma tipologia importante no campo autorrepresentacional. Acredita-

mos que a mediação excessiva do objeto auxilia na problematização do radical “au-

to”, presente nos termos autorrepresentação, autorreferência, autoria e autor. Stei-

ner e Yang (2004, p.15) apontam que o radical “auto” parece “questionável à luz das

vistas cambiantes do ego, já que o termo sugere uma entidade autônoma e unifica-

da”. Qualquer prática autorrepresentacional vale-se de um imaginário particular cuja

marca oscila entre a constatação da fragmentação de suas imagens pessoais e o

desejo de síntese desses fragmentos em algo coerente e autônomo. O radical “auto”

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[...] deve ser visto como um termo variável e adaptável que tanto abraça quanto transcende o gênero, desafiando novos sentidos e constantemente ajustando seu foco de acordo com as demandas correntes do escritor, a pessoa em questão e o público (ibidem, tra-dução nossa).

A discussão sobre autoria é bastante genérica, indicando que o debate ilumina dife-

rentes acepções do conceito. As colocações de Foucault e Barthes relativizam a im-

portância do sujeito-autor. Mas contemporaneamente aos seus textos, houve uma

tomada de discussões sobre identidade, autobiografia, questões de gênero, como

“sintomas” da urgência reflexiva sobre as condições da subjetividade e da autoria na

contemporaneidade nas Humanidades. Isto fez José Carlos Barcellos pensar nosso

tempo como uma “hipertrofia do eu na cultura moderna” (2002). Esses aspectos são

bastante importantes para o artista em seu processo de criação; acreditamos que

qualquer trabalho artístico guarda algo autorrepresentacional, mesmo que não seja

essa a intenção primeira em sua elaboração. Reflexões sobre autoria, identidade e

subjetividade, conectam-se às reflexões feitas por ele sobre o fazer, notadamente

em trabalhos de cunho autorrepresentacional. Mencionamos Marcel Duchamp e A

Fonte (1917) e Sophie Calle, com La Visite Guidée (1994). Ao redor desses objetos,

considerações de Fausto Colombo, Stuart Hall, Michel Foucault, Roland Barthes e

Philippe Lejeune.

Uma fonte para uma visita guiada

O projeto poético de Sophie Calle realiza-se em sua vida diária, no rompimento ou

tensão entre o espaço da arte, a intimidade e o espaço público. Sua poética con-

substancia-se em práticas urbanas e em relações interpessoais; podemos compre-

endê-la como jogo entre o público e o privado, entre vida e arte. Vivências são ano-

tadas em diários e relatos fotográficos, com os quais realiza instalações, performan-

ces, livros e filmes. Podemos pensar suas produções como autobiográficas e inter-

textuais. Envolvem sempre uma alteridade que funciona como contorno, oposição e

complementaridade à ideia que faz de si mesma. Mas em algumas de suas narra-

ções, percebemos a importância de certos objetos, aparentemente sem importância.

No trabalho La Visite Guidée, exposto em 1994 no Museu Boymans van Beuningen,

o que se apresenta de início é um conjunto de 21 objetos da artista, espalhados e

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misturados a outros objetos do acervo do Museu de Artes Decorativas de Rotter-

dam. Ao visitante é oferecido um aparelho de audição portátil para ouvir a narração

da artista sobre seus objetos expostos. Para cada objeto, havia uma história pessoal

relacionada ao objeto em questão. Quando o visitante se depara com uma vitrine

com ânforas e potes antigos, encontra no meio deles um balde vermelho de plástico.

E ele pode ouvir a narração de Calle a respeito daquele objeto:

em minhas fantasias, eu sou um homem. Greg percebeu isso rapi-damente. Talvez seja por isso que um dia ele me convidou para uri-nar para ele. Isso se tornou um ritual: eu ficava por detrás dele, ce-gamente abria sua calça, tirava seu pênis e fazia o meu melhor pos-sível. Então, depois da costumeira sacudida, eu negligentemente co-locava-o de volta e fechava o zíper. Logo depois de nossa separa-ção, eu pedi a Greg uma lembrança fotográfica daquele ritual. Ele aceitou. Então, em um estúdio no Brooklin, eu o fiz urinar num balde de plástico, de frente para a câmera. Essa fotografia foi uma descul-pa para tocar no seu sexo mais uma vez. Naquela mesma noite, eu concordei com o divórcio. (CALLE apud GODFREY, 2006, p.404, tradução nossa)

Aqui não temos simplesmente a exposição da intimidade de Calle, por meio da nar-

ração de fatos acoplada a objetos pessoais. Parece haver uma tentativa de singula-

rizá-los, quando ela nos conta aspectos de sua vida em que objetos são persona-

gens fundamentais nas tramas. Calle torna-os identitários por meio de suas narra-

ções. E quando comparamos os objetos da artista com os outros exemplares do

museu, ficamos pensando nas histórias silenciadas de todos aqueles espécimes que

se avizinham do balde vermelho.

Quando o visitante olhava para aqueles objetos banais ele percebia que todos os objetos no museu uma vez já tiveram associações simi-lares, uma história social, pessoal, uma pátina de uso. O museu se tornou, mesmo que brevemente, como um museu vivo, não apenas de coisas. (Ibid, p. 402–404, tradução nossa)

La Visite Guidée parece friccionar nosso senso comum sobre museu tido como sim-

ples depositório de objetos, ali tornados inertes. O balde vermelho também fricciona

os objetos vizinhos. Sua presença ao lado de ânforas revitaliza nosso ato imaginati-

vo para a construção de narrativas outras, estimuladas pelo próprio objeto. Isto por-

que “quando colocado em um museu ou galeria, qualquer objeto – embora marcado

como especial – está efetivamente despojado de suas memórias, de suas histórias

originais e contextos que lhe deram seus significados” (Ibidem).

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Como não pensar aqui no mictório de Duchamp, no trabalho A Fonte? Do mesmo

modo que o balde vermelho, o mictório poderia estar no acervo de um museu antro-

pológico, exemplar de cultura material de uma sociedade. A operação de desloca-

mento do mictório de Duchamp para um museu de arte é relativamente análoga à

operação de deslocamento dos objetos cotidianos que passam a figurar no acervo

de um museu qualquer. Há, pois, um trânsito de objetos de suas funções originais

para serem objetos museais, constituírem outra função (valor de culto ou mesmo se

tornarem alegorias, conforme Walter Benjamin), suspendendo suas funções origi-

nais. Calle estaria desdobrando, por sua vez, o ato de deslocamento de Duchamp.

Na base, dois receptáculos produzidos industrialmente e apropriados. O mictório é

um receptáculo de urina e sêmen; Calle torna o balde um receptáculo com a mesma

finalidade. No entanto, no caso de Calle, ocorre uma contradição entre a condição

do balde como exemplar banal da cultura material contemporânea e sua temporária

vizinhança com outros espécimes de cultura material, já “auratizados” – estes pos-

suem sua unicidade, verniz adquirido pela passagem do tempo, enquanto o verniz

do balde é um polímero de cor chamativa, tal como uma “embalagem”.

Outro dado importante que conecta os trabalhos mencionados é o modo singular de

constituição de uma presença, no objeto, do sujeito relacionado a ele; podemos per-

ceber aproximações e distanciamentos entre as ações desses artistas. Há inicial-

mente uma aproximação pelo “estado de espírito” do objeto: uma ironia talvez, ou

mesmo um choque pela disjunção entre o balde vermelho e os outros objetos do

museu, no mesmo sentido em que o mictório provocou uma reação de estranhamen-

to quando se aventou a possibilidade de participar de uma exposição de arte.

No quesito “intencionalidade”, Duchamp singulariza o mictório com a assinatura “R.

Mutt” (um pseudônimo) no próprio objeto; Calle singulariza o balde com sua narra-

ção das reminiscências que o ligam a ele. No entanto, sem a sua narração, o objeto

volta a ser qualquer coisa. Mas se em Duchamp o ato de escolha não passa por seu

gosto ou por qualquer fato que o ligue à sua personalidade ou narrativa de vida – a

questão da “beleza da indiferença” (KRAUSS, 1998, p. 91) – Calle provavelmente o

escolheu após decidir realizar a fotografia-souvenir de sua ação com seu ex-marido.

Assim, a aquisição do balde vermelho estaria impregnada de um desejo de singula-

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rização daquele momento: espécie de “performance camuflada”, em que o objeto

seria o vestígio (e gatilho para uma lembrança) da ação. A artista detém a posse de

um souvenir daquele momento (uma fotografia particular), mas socializou sua expe-

riência íntima por meio do objeto/vestígio e da narração.

Apresentados esses dois trabalhos artísticos, com suas aproximações e distancia-

mentos, é preciso pensar que a “beleza da indiferença” como motivador de apropria-

ção em Duchamp responde a uma espécie de antecipação de um desejo de desper-

sonalização do sujeito, mesmo que a assinatura o singularize dentre os demais obje-

tos feitos em escala industrial. Já a ação de Calle buscou ressignificar o balde ver-

melho por meio de aspectos de sua vida íntima; nas diferenças contextuais, reside

um movimento pendular com respeito ao autor – de que modo ele se afirma ou des-

liza em meio a objetos tornados singulares.

Identidade

Stuart Hall (2004) identifica três concepções de sujeito: o “sujeito do Iluminismo” ba-

seava-se em uma ideia unificada e centrada de pessoa humana, cuja razão e ação

eram sempre coincidentes e estáveis ao longo da vida; o “sujeito sociológico” espe-

lhava a complexidade da vida moderna, atestando sua não-autonomia – sua identi-

dade era gerada pela mediação dos outros, numa concepção “interativa” do “eu” e

do ambiente. Já o “sujeito pós-moderno”, ambientado num mundo de mudanças es-

truturais e institucionais significativas, se compreende instável, em transformação

contínua. Tais nomeações se referem a passagens da modernidade, mas não invali-

dam o trabalho conjunto em uma mesma figura de subjetividade contemporânea. A

complexa sociedade atual exige-nos “identidades plurais”, marcadas por desigual-

dades e tensões. Experimentamos a ilusão de unicidade subjetiva versus nossa plu-

ralidade identitária, em que somos permeados por tantas representações (posições-

de-sujeito) quantas forem necessárias em nosso estar no mundo. “Dentro de nós há

identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que

nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas” (HALL, 2004, p.13).

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Por sua vez, Fausto Colombo (1991, p.124) expõe que vivemos uma “saudade de

identidade”, pela “ausência de um originário que foi perdido, ou esquecido”. Nesse

processo,

[...] a pulsão do novo sujeito para constituir-se como tal certamente supera a percepção da dispersão de um dado irrenunciável, própria das estratégias de suspeita. Todavia, essa saudade busca a identi-dade pelos caminhos do puro acúmulo e da mera aproximação de fragmentos, isto é, naquela mesma linha que teorizou a perda do su-jeito nos meandros das estruturas.

Fausto Colombo e Stuart Hall concluem suas colocações sobre identidade apontan-

do para uma instância mítica que guia o desejo de unificação do sujeito. Para Hall

(2004, p.13), “se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento

até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos

ou uma confortadora “narrativa do eu”; já para Colombo (1991, p.124), a identidade

atual “é então o mito da recuperação do originário através dos mesmos caminhos

que levaram ao seu esquecimento”. Tais colocações dizem de nossa vã tentativa de

recuperar algo que jaz em uma instância ideal. Colombo está preocupado com a

questão da identidade na sociedade contemporânea, que constrói outra relação com

a memória e com estratégias de não-esquecimento. Há uma relativização da potên-

cia memorialista, pela impossibilidade de retorno à totalidade da experiência originá-

ria, pelo excesso de vestígios e objetos com os quais nos cercamos e uma crença

de que a “super-presença” de imagens-lembrança, oferecida pelo excessivo registro

das experiências, poderá reconstituir nossa unidade subjetiva. Agindo desse modo,

acreditamos ainda que sobrará mais tempo para viver outros momentos ou mesmo

esquecer-nos dos momentos já vividos, agora retidos em códigos numéricos.

Autoria

Colombo emprega a expressão “percepção da dispersão de um dado irrenunciável”.

Dispersão pressupõe descentramento do sujeito e sua identidade, em que o papel

da memória “clássica” – o patrimônio memorialista definindo a identidade de alguém

e permitindo seu próprio reconhecimento no tempo e uma enunciação autobiográfica

cuja marca seja essa estabilidade identitária – transforma-se até se chegar à memó-

ria “crítica”, cuja dificuldade está em estabelecer-se como dispositivo de autorreco-

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nhecimento do sujeito, na medida das várias autorrepresentações, das diferenças

entre elas e nessas contínuas transformações da identidade. Para o autor, ocorre

como que uma pulsão de reorganização da identidade, mesmo que ela esteja dis-

persa.

Neste pensamento de Fausto Colombo sobre a “superação” de uma “subjetividade

fraca” contemporânea – com relação aos incessantes atos de gravar e arquivar nos-

sas experiências, ou ainda sobre a linha que “teorizou a perda do sujeito nos mean-

dros das estruturas” – são perceptíveis menções do autor à proposição estruturalis-

ta. Nesta, “os signos circulam, tomados num código que a análise permite decodifi-

car numa investida posterior. Bem independente do emissor, o código fundamental-

mente precede a mensagem que nele se inscreve” (DESCAMPS, 1991, p. 31). O

Estruturalismo prioriza a estrutura da linguagem como elemento norteador da com-

preensão do texto. Mais importante do que a singularidade do sujeito está a com-

preensão do modo de organização de seu texto e da articulação de seu discurso,

entendido aqui como as referências ideológicas, políticas, culturais que subjazem às

ações de alguém ou de um grupo. As estruturas, sobretudo as que regem a lingua-

gem verbal, organizam as práticas discursivas – a elas se submetem inclusive as

singularidades e idiossincrasias do sujeito.

É nesse contexto que Michel Foucault escreve seu texto, “O que é um autor?” Nele,

o filósofo detecta quatro características ou funções de um autor, a partir do fim do

século XVIII: 1) a autoria começou na designação de objetos de apropriação, resul-

tando em problemas penais de apropriação indébita, direitos de reprodução de um

objeto já definido por sua propriedade; 2) o volume de textos “científicos” que come-

çam a surgir, vinculados não a uma figura de autoria, mas a um sistema que os legi-

timaria. Nesse viés, “apaga-se a função autor, o nome do inventor serve para pouco

mais do que para baptizar um teorema, uma proposição, um efeito notável, uma

propriedade, um corpo, um conjunto de elementos” (FOUCAULT, 1992, p. 49). Dife-

rentemente, os discursos literários necessitam vincular-se a quem os escreveu: “se

na seqüência de um acidente ou da vontade explícita do autor, um texto nos chega

anónimo, imediatamente se inicia o jogo de encontrar o autor” (Ibidem). 3) A consti-

tuição de um “autor” demanda complexidade em função do contexto em que vive.

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Para “encontrá-lo”, é necessário verificar em sua produção uma unidade estilística,

coerência conceitual e de valores que possam explicitar as transformações de seu

tempo. A autoria não é mais atribuída espontaneamente a alguém, mas dá-se por

um conjunto de valores específicos. 4) No texto, há uma série de signos que direcio-

nam o leitor para o autor (pronomes pessoais, advérbios de tempo e lugar, conjuga-

ção verbal), mas que podem também revelar as figuras de alteridade do próprio au-

tor: o alter-ego, o narrador, uma “pluralidade de eus” (o eu que age, o que explica as

suas ações e o eu “impessoal”, figura que qualquer um pode assumir se concordar

com as proposições assinaladas). Desse modo, a função autor aqui é o que permite

a dispersão simultânea desses três “eus”.

Foucault ainda propõe o autor como o “instaurador de uma discursividade”: nomeia-

se com propriedade um “autor” quando ele instaura um campo de saberes. Não é

apenas “autor” de uma obra, mas produziu a “possibilidade e a regra de formação de

outros textos” (FOUCAULT, 1992, p.58). Freud não foi simplesmente o autor de “A

interpretação dos sonhos”, mas com sua obra propiciou um número indefinido de

discursos subsequentes, tanto análogos como questionadores ao discurso do autor.

Isto alterou o campo da Psicanálise.

Por fim, Foucault compreende que, na detecção do sujeito do discurso, importa mais

as condições de circulação, valorização, apropriação dos discursos em uma dada

cultura, no tempo. Suas reflexões sobre a função autor levam-no a considerar que é

importante que haja um autor, pois sem ele os discursos “desenrolar-se-iam no ano-

nimato do mundo” (Ibid, p. 70); no entanto, ao mesmo tempo propõe que se trata “de

retirar ao sujeito [...] o papel de fundamento originário e de o analisar como uma fun-

ção variável e complexa do discurso” (Ibidem). Em “A ordem do discurso”, Foucault

escreve que o autor não é a origem da obra, mas um ponto pelo qual são atravessa-

das várias referências. Ao leitor caberia o estabelecimento da unidade daquilo que

lê. Assim, dá-se a ideia de um sujeito não-individualizado, mas em compartilhamento

por meio da linguagem. Isso é perceptível quando escreve: “Gostaria de perceber

que no momento de falar uma voz sem nome me precedia há muito tempo” (FOU-

CAULT apud REVEL, 2005, p. 24).

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O texto A morte do autor, de Roland Barthes, também se inscreve na proposta estru-

turalista. Barthes escreve sobre a “tirania” do autor, que centra seus escritos nas

idiossincrasias de sua vida, esquecendo-se do leitor, destino da obra. Para ele,

quem deve falar é a linguagem, não o autor. Isso significa dar à linguagem certo

grau de impessoalidade para que o texto mesmo possa atuar, como uma multiplici-

dade de vozes, e chegar ao leitor. Ao referir-se ao “personagem” autor, adverte-nos:

“se quisesse exprimir-se, pelo menos deveria saber que a “coisa” interior que tem a

pretensão de “traduzir” não passa de um dicionário totalmente composto, cujas pala-

vras só podem explicar-se através de outras palavras, e isso indefinidamente...”

(BARTHES, 1987, p.52).

Por mais que se saliente a singularidade de um sujeito, o peso da linguagem colabo-

ra para outra compreensão da subjetividade na perspectiva voltada ao estruturalis-

mo. Observando esses textos, há uma referência ao “enfraquecimento” do sujeito do

conhecimento (ou sujeito do iluminismo, conforme Hall), na retirada da força do mito

da origem de uma ideia, pensando ainda que a vida una de um sujeito seria a fonte

igualmente única de suas percepções, memórias, experiências, conclusões. Esses

textos podem oferecer também um questionamento do termo “criação”, no sentido

em que este conceito convencionalmente pressupõe a instauração de algo a partir

do nada, tal como as situações míticas.

Duchamp, o instaurador de uma discursividade

Se a questão não passaria mais por “criação”, Barthes e Foucault alinham-se na

perspectiva de que “apropriação” ou mesmo “citação” – e consequentemente “com-

binação” – tornam-se mais condizentes para o sujeito operar na formação de ima-

gens, tendo em vista o volume de bens culturais já produzidos, impondo-nos outra

postura: citar, referir-se ao já existente, recombinar, propor outros agenciamentos.

Esta consideração é muito própria para pensarmos na produção de Marcel Du-

champ. Em sua afirmativa “o observador é quem faz o quadro”, Duchamp antecipa o

pensamento de Barthes e Foucault, ao compreender desde 1957 que o “ato criador

não é executado pelo artista sozinho; o público estabelece o contato entre a obra de

arte e o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas e,

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desta forma, acrescenta sua contribuição ao ato criador” (DUCHAMP, 1975, p.74).

Anne Cauquelin (2005, p. 103) percebe o mesmo, escrevendo que no artista há um

desaparecimento do autor “como sujeito livre e voluntário”. Desse modo, “Duchamp

prefigura o movimento de retirada do sujeito, seu lugar como elemento determinado

pelo sistema. Prenuncia Michel Foucault e Roland Barthes”.

Desde a década de 1910 Duchamp desestabiliza a noção de autor com seus ready-

mades. Apropriando-se de um urinol em “A Fonte” e inscrevendo-o como objeto ar-

tístico na exposição anual da Society of Independent Artists, ele levou ao limite qual-

quer expectativa do público em encontrar ali valores da arte tradicional (boa fatura,

mimese formal, consideração aos gêneros pictóricos). Dietmar Elger (2005, p.80)

observa que as operações de colocar o mictório sobre uma base, assiná-lo, datá-lo e

inscrevê-lo em uma exposição de arte são necessárias para designá-lo como objeto

de arte: o uso do pedestal o destaca do espaço circundante, elevando-o à categoria

de “escultura”; a assinatura designa uma autoria e a exposição pública em um espa-

ço expositivo reconhecido o legitimaria como objeto artístico (quanto a este item,

sabe-se que A Fonte foi recusada pelo júri de seleção da exposição).

Duchamp descentraliza sua posição como sujeito-autor por ter sido quem se apro-

priou de algo preexistente a si mesmo, inserindo-o em um circuito externo ao objeto.

A isso se alia a “assinatura” do urinol como R. Mutt, heterônimo de Duchamp que

descentraliza ainda mais sua posição como “verdadeiro” autor de A Fonte. Ele “não

usou deliberadamente o seu nome, mas sim um pseudónimo, porque para ele a as-

sinatura era um gesto artístico” (ibidem). A caligrafia da assinatura seria um resquí-

cio de sua presença na “obra”; mas na verdade, reenvia a autoria para um sujeito

fictício. Há desse modo, um “deslizamento” do sujeito-autor nesse trabalho, pois não

houve como “encontrá-lo” no objeto. Sabemos hoje que o autor é Duchamp por meio

de suas anotações e depoimentos.

Algo posto como se a assinatura feita por Duchamp fosse um “dedo indicador” que

apontasse para outrem. Nesse caso, “o autor desaparece como artista-pintor, ele é

apenas aquele que mostra” (CAUQUELIN, 2005, p.94). Aponta o dedo para qualquer

coisa passível de ser objeto de arte, em um momento determinado por certas condi-

ções. Pela contingência de produzir um objeto “indicador, um signo dentro de um

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sistema sintático” (Ibid, p. 96) é que Anne Cauquelin considera Marcel Duchamp um

“embreante”: figura singular cujas práticas “primeiramente desarmonizam, mas que

anunciam, de longe, uma nova realidade” (Ibid, p.87).

Em função dessas desterritorializações, a reflexividade do espectador reforça-se no

contato com o objeto, desestabilizando suas antigas convicções do que seja arte,

impondo-lhe juízos de valor sobre o que vê e o que pensa ser Arte. O atestado de

“força” do espectador no processamento da “obra” implica o enfraquecimento da “ti-

rania” do autor. Alia-se a isso o fato de que a consideração do objeto de arte como

“Arte”, seja por suas qualidades intrínsecas ou por determinação de seu autor-

propositor, são aspectos insuficientes para a legitimação do objeto de arte como “Ar-

te” pelo sistema. Por todas essas questões, Duchamp prepara o campo para a pro-

blematização da autoria na contemporaneidade. Desestabilizando a noção de auto-

ria, paradoxalmente Duchamp pode ser considerado como “autor” pelo viés de Fou-

cault (1992) por “instaurar uma discursividade” e ainda como “embreante” para Anne

Cauquelin (2005), pois o seu discurso abre caminho para discursos posteriores, tan-

to de artistas como de teóricos.

Sophie Calle e a prática confessional

Em La Visite Guidée, de Sophie Calle, percebemos a emergência de sua singulari-

dade, no tratamento dado ao objeto “balde”. Ao mesmo tempo em que realça a im-

portância do objeto, a artista usa um tom extremamente confessional nesse disposi-

tivo. Parece-nos que há uma relação entre seus trabalhos desde o fim dos anos

1970 com a existência de uma espécie de “reação” às posições estruturalistas sobre

a impessoalidade do autor.

A edição da coleção História da vida privada (1990) pretende detectar historicamen-

te (desde a Antiguidade clássica) a presença dos espaços de intimidade, formadores

da experiência da privacidade e da constituição paulatina do que conhecemos como

“sujeito”. Práticas de leitura e da escrita, estudos de gênero são temas muito abor-

dados nos volumes finais da coleção. Isto porque o estudo do espaço privado – es-

paço histórica e predominantemente ocupado por mulheres - faz relacionar esses

estudos com os estudos de gênero. A partir desses estudos, Ariès conclui que a

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questão da formação da vida privada, desde a modernidade, deve ser tratada pelas

relações entre o sujeito que habita o espaço doméstico e o sujeito de Estado, das

sociabilidades instauradas a partir daí e de suas noções de público e privado. Sheila

Dias Maciel (2004, s./p.) chama-nos a atenção para a proliferação atual de espéci-

mes em literatura confessional, embora o “instinto autobiográfico” seja “tão antigo

quanto o desejo humano de registrar suas vivências”. Essa proliferação de “escritas

de si” (FOUCAULT, 2006) pode ser considerada uma das marcas da modernidade e

da contemporaneidade, o que é confirmado por Peter Burke, ao nos alertar sobre a

importância que o conceito “memória” adquire atualmente pela inflação de informa-

ções fragmentadas que nos circundam. Nossa memória “natural” não é tão confiável

e assim adotamos várias práticas de memorização. Burke propõe uma coexistência

entre memórias naturais (memórias pessoais do próprio corpo, leituras intensivas de

textos) e memórias extensivas (memórias artificiais, arquivos, leituras rápidas via

internet), o que pode produzir outros horizontes para uma ideia de si. Daí a relação

que existe com nossas memórias pessoais e os atos de leitura e escrita1. Philippe

Lejeune, estudioso das autobiografias, revela-nos que “a autobiografia leva-nos a

nos abrir para outras disciplinas, essencialmente a psicanálise e a psicologia, a so-

ciologia, a história. Donde inúmeros contatos. Ela permite prestar atenção em si e

escutar o outro simultaneamente” (LEJEUNE, 2008, p.66). E mais à frente (p.82),

complementa que a palavra “autobiografia”, desde o fim dos anos de 1970, tem coe-

xistido com outros termos fora da Teoria Literária, expressões mais abrangentes

como os “relatos de vida”, termo comum às práticas de narrativas orais na sociolo-

gia, bem como as “escritas de si”, atestando com isso a importância da enunciação

autobiográfica, ou seja, o desejo do sujeito em se constituir como tal dizendo de si,

para além de uma linguagem específica.

Podemos perceber profundas alterações dos modos de operação na produção artís-

tica autorrepresentacional, mesmo que estejamos vivenciando a crise e o descen-

tramento das categorias identitárias do sujeito. Desse modo, parece haver uma “re-

tomada da posse da subjetividade do artista (e de um) imaginário individual, sem

preocupar-se com a unidade e com a coerência de seus trabalhos” (OLIVA apud

FABBRINI, 2002, p. 29). Esse imaginário vai além do uso direto do corpo e/ou de

uma forma corpórea na construção dessas imagens. Envolve um campo mais am-

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plo: uma ideia provisória que temos de nós mesmos, as nossas projeções, a nossa

memória, os nossos hábitos e os nossos círculos sociais. E também os nossos obje-

tos pessoais.

Considerações finais

Os autores citados tocam no aspecto da problematização da autoria e da identidade.

Por meio de seus textos, temos a constatação da cisão do sujeito, ou a inviabilidade

do sujeito iluminista – absoluto, centrado, uno e coerente, imagem esta que, de certa

maneira, ainda habita nosso imaginário, mesmo que seja como desejo. Tais autores

questionam a noção de autor como uma posição-de-sujeito estável e o entendem

como “articulação” de um trabalho de enunciação que supõe atitudes e autores di-

versos, inclusive o leitor.

Fica difícil uma conciliação da figura clássica de sujeito-autor com o contexto da cul-

tura e da arte contemporâneas. Para o sujeito converter-se em autor, necessita ado-

tar operações de compartilhamento de identidades e de empréstimo de saberes de

outros na conduta criadora. Percebemos esta complexidade como ponto de tensão

entre a fragmentação e recentramento do sujeito, entre o público e o privado, entre

singularização e despersonalização. Em Duchamp, essa pluralidade de sujeitos en-

foca-se mais no “fazer” propriamente dito do trabalho. O artista francês desinteressa-

se em ser ele mesmo a única causa eficiente de sua proposta artística, delegando a

qualquer um e a qualquer objeto a produção do trabalho.

Esta herança parece não abalar sua autoria ou autoridade quanto às suas propostas

artísticas, mas desfaz a noção de ubiquidade do autor em relação a um trabalho

pessoal, o que é bastante singular quando se pensa na formação de autorrepresen-

tações. E é isso o que postulam Barthes e Foucault em suas discussões sobre a

autoria, seja equilibrando a importância do autor com o leitor, seja com a própria lin-

guagem. Apresenta-se a perda de exclusividade e privacidade na atuação do artista

como elaborador de sua imagem, como se um espírito de “co-autoria” ou co-

participação repousasse em diversas autorrepresentações, destituindo de força uma

ideia narcísica do autor como subjetividade que expõe (via obra) sua pretensa unici-

dade e estabilidade.

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Para a questão autorrepresentacional, Duchamp radicaliza a noção corrente de au-

toria de um autorretrato, pois seu gesto permitiu a participação de alteridades no

processo formativo do trabalho. Sophie Calle é uma das herdeiras de Duchamp. No

entanto, Calle tem proposto uma superexposição de sua intimidade. Suas propostas

de desde o fim dos anos 1970 parecem-nos reações ao apagamento do sujeito-autor

nas propostas estruturalistas. Foucault inicia seu texto “O que é um autor”? apropri-

ando-se da frase de Beckett: “Que importa quem fala, disse alguém, que importa

quem fala”. Nessa indiferença para com o enunciador, o filósofo aponta que a ques-

tão ética na escrita contemporânea se apresenta por meio da referência a si mesma,

aos conteúdos intrínsecos de seus significantes, desdobrando-se em seu parentesco

com a morte, abrindo fendas: “é uma questão de abertura de um espaço onde o su-

jeito da escrita está sempre a desaparecer” (FOUCAULT, 1992, p.35). Para Sophie

Calle, “importa [sim] quem fala”: mesmo que quem fala seja um sujeito fragmentado,

ficcional, com identidades plurais, em trânsito, poroso ao espaço público, tendente à

publicização de seus conteúdos íntimos.

Notas

1 Peter Burke, anotações sobre a palestra “História da Leitura”, COLE/UNICAMP, Campinas, 22 de julho de

2009.

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Cláudia Maria França da Silva

Artista visual. Doutora em Artes pela UNICAMP, mestre em Artes Visuais pela UFRGS, ba-charel em Artes Plásticas pela UFMG. Professora na Graduação em Artes Visuais e Pós-Graduação em Artes pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Trabalha com dese-nho, objetos e instalações, expondo regularmente. Participa de reuniões científicas com produção textual.


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