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O CORPO NA GRÉCIA ANTIGA, NO CRISTIANISMO E

NAS TEORIAS PÓS-CRÍTICAS

Anselmo Lima de Oliveira1

Allessandra Elisabeth dos Santos2

GT6 − Educação, Inclusão, Gênero e Diversidade RESUMO

Este trabalho tem como propósito revisitar as representações e discursos sobre o corpo a partir da

Grécia antiga, do Cristianismo e das teorias pós-críticas a fim de problematizar as construções

estereotipadas que permeiam o campo educacional e, por conseguinte, as relações filosóficas, sociais,

políticas e culturais. Metodologicamente, nosso cerne está inserido nas análises e discussões

apreendidas nas aulas da disciplina Filosofia, vinculada ao Programa de Pós-graduação em Educação

da Universidade Federal de Sergipe (PPGED/UFS), no segundo semestre do ano letivo de 2015. Os

principais referenciais teóricos são Michel Foucault, Guacira Lopes Louro e Franco Cambi. Pretende-

se, neste trabalho, que os debates acerca das temáticas corpo e gênero avancem no campo da

educação, questionando as formas pelas quais os significados do corpo são construídos, visando, em

contrapartida, a desconstrução das normatizações apreendidas nos discursos heteronormativos.

Palavras-chave: Corpo. Gênero. Educação. Filosofia.

ABSTRACT This paper aims to revisit the representations and discourses on the body from ancient Greece,

Christianity and post-critical theories in order to question the stereotypical constructions that

permeate the educational field and therefore the philosophical, social, political and cultural.

Methodologically, our core is inserted in the analysis and discussion in class seized the Philosophy

discipline, linked to the Postgraduate Program in Education of the Federal University of Sergipe

(PPGED / UFS), in the second half of the school year 2015. The main theoretical references They are

Michel Foucault, Guacira Lopes Laurel and Franco Cambi. It is intended in this paper that the

discussions about the themes Body and Gender advance in the field of education, questioning the

ways in which the meanings of the body are built, aiming, on the other hand, the deconstruction of

norms seized in heteronormative discourse.

Keywords: Body. Gender. Education. Philosophy.

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem sua gênese enlaçada na curiosidade deste pesquisador em buscar

e compreender os processos de mudanças do corpo, ocorridos a partir do tempo absorto à

1 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe, vinculado ao Programa de Pós-graduação em

Educação (PPGED/UFS). Especialista em Gestão de Políticas Públicas com fogo em Gênero e Raça (GPP-GeR)

– CESAD/UFS. Graduado em Ciências Contábeis pela UFS. Pesquisador do Grupo de Pesquisa “Educação,

Formação, Processos de Trabalho e Relações de Gênero” (CNPq). Universidade Federal de Sergipe. E-mail:

<[email protected]>. 2 Especialista em Odontologia em Saúde Coletiva pelo Sindicato dos Cirurgiões Dentistas de Sergipe.

Especialista em Educação pela University of Winnipeg. Graduada em Odontologia pela Universidade Federal de

Sergipe. Graduada em Letras Inglês pela Universidade Federal de Sergipe. E-mail:

<[email protected]>.

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Grécia Antiga, ao Cristianismo e à Contemporaneidade. Assim, inferir os valores e os

desprezos, a importância e a negligência, a curiosidade e o medo, dados ao corpo em tempos

distintos. O corpo reverenciado, vulgarizado, mutilado, dominado, vilipendiado, ou seja,

adjetivações que perduraram/perduram nas mais diversas áreas das sociedades, em tempos

pretérito, presente e, possivelmente, vindouro.

No mundo atual – moderno para alguns, pós-moderno para outros; crítico, pós-

crítico -, onde a Educação traz à centralidade as discussões a partir da perspectiva do

multiculturalismo, do transversalismo e da interdisciplinaridade, é inconcebível não por em

relevo o debate sobre o corpo. Este que fora – ainda o é – objeto de estudos, sendo ora

estático, ora fluido; ora naturalizado pelas ciências médicas e biológicas, ora tido como

construção política, cultural e social, enfim, o corpo que sempre esteve em voga.

A problematização da categoria corpo insere-se à Filosofia, uma vez que esta se

espraia sobre e entre todas as disciplinas. A subjetivação amparada em Michel Foucault vive a

filosofia; a Educação é filosófica; a política apresenta-se no contexto filosófico, visando à

dominação, o convencimento, o poder etc. Portanto, a pertinência deste trabalho, pois objetiva

ampliar os debates filosóficos a partir da perspectiva de corpo.

Este trabalho situa-se em três instantes, a saber: o primeiro tem em sua

centralidade os discursos sobre corpo, apreendidos nos “principais” filósofos da Grécia

Antiga, Sócrates, Platão e Aristóteles; no segundo momento apresentamos e discutimos as

representações de corpo a partir dos construtos teóricos religiosos que obtiveram força a partir

do século XXVII; e, por fim, o terceiro, onde pomos em tela as subjetivações produzidas por

Foucault (1984, 1975, 2000, 2015).

Ainda, é possível salientar que nos momentos supraditos sempre estiveram

presentes os discursos cujos objetivos foram e são produzir verdades. Assim, os diversos

discursos fazem parte de uma disputa que objetiva construir as versões de verdade, onde “Não

existe uma verdade a ser descoberta; existem discursos que a sociedade aceita, autoriza e faz

circular como verdadeiros” (FOUCAULT, 2000, p. 23). Os regimes de verdade são

apresentados como legítimos, sendo tomados como frutos das condições históricas, culturais,

econômicas e políticas, de acordo com cada época. O discurso tem como função a “produção”

e “são práticas que formam sistematicamente os objetos de que fala” (FOUCAULT, 1995, p.

56). Desse modo, é importante observar que o real é uma construção com gênese no dito.

Também figuram indissociáveis as categorias de análise discurso, disciplina e

poder. Assim, “O poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal,

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constituída historicamente” (MACHADO, 2015, p. 12). Mancomunados, aqueles objetivam

ditar a “ordem” social, onde as disciplinas – instrumentos de poder – são “métodos que

permitem o controle minucioso das operações do corpo, que asseguram a sujeição constante

de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade” (FOUCAULT, 1975, p.

129).

Vamos aos fatos.

O CORPO DA GRÉCIA ANTIGA

Nesta sessão temos como propósito apresentar e apreender as ideias filosóficas

sobre corpo, absorvidas em Sócrates (470 a 399 a.C.), Platão (427 a 347 a.C.) e Aristóteles

(384 a 322 a.C.). Apesar da Grécia Antiga possuir sua centralidade na problematização da

Ética e da Política, estes filósofos gregos também se esmerilhavam nos debates sobre a

temática corpo e alma.

Antes de entrarmos no mérito da questão, é importante analisarmos como se

processava a educação do corpo na Grécia Antiga. Onde “A areté masculina e feminina

encontrava nos jogos agnósticos e nas suas provas um momento de tensão formativa e de

apelo à excelência que estabelecia com o corpo e com seu domínio uma precisa e harmoniosa

atividade espiritual” (CAMBI, 1999, p. 79-80). Os corpos femininos estavam submissos ao

pai e, após, ao marido. No interior do òikos (espaço familiar) reinava a mulher, sendo esposa e

mãe, “[...] mas subalterna, dedicada aos trabalhos domésticos e à criação dos filhos” (CAMBI,

1999, p. 80). No entanto, os mitos descrevem que as Amazonas e as Mênades eram mulheres

guerreiras, com corpos semelhantes ao masculino e que subvertiam o modelo patriarcal

estabelecido.

Os jovens gregos eram educados na escola e através das palestras sobre música,

leitura, escrita e educação física. Assim, “central era também o cuidado do corpo, para torna-

lo sadio, forte e belo, realizado nos gymnasia” (CAMBI, 1999, p. 84). Dessa forma, havia na

cultura grega a preocupação com o estado da alma, mas também com o aspecto do corpo.

Desse modo, Platão compreendia o corpo do homem grego como o responsável

pela representação da alma, sendo esta exaltada a partir do mundo conhecido como “mundo

das ideias”. Porém, o corpo era partícipe do meio impuro capaz de contaminar a alma. Para

Gonçalves (1984), Platão concebia dois mundos: o sensível que abrigava o corpo, portanto se

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transformava e se decompunha; o inteligível, ou seja, o mundo das ideias reais, eternas e

incorpóreas.

Segundo o estudioso Werneck (1995), ao contrário de Platão, Aristóteles não

separava o corpo sensível da alma inteligível. Porém, hierarquizava a relação alma e corpo,

onde este era escravo daquela, uma vez que a alma – considerada mais poderosa – controlava

o corpo. Platão não compreendia a ginástica como uma atividade capaz de promover a saúde,

mas a valorização da alma. Entretanto, Aristóteles defendia que o homem grego deveria

praticar ginástica objetivando a saúde do corpo para o cumprimento do trabalho.

O CORPO DO CRISTIANISMO

Analisar a categoria corpo é também compreender o sexo e este com o advento da

ordem burguesa passa a ser contingenciado, “[...] pondo a origem da Idade da Repressão no

século XVII, após centenas de anos de arejamento e de expressão livre, faz-se com que

coincida com o desenvolvimento do capitalismo [...]” (FOUCUALT, 2015, p. 10).

Depois do Concílio de Trento, realizado de 1545 a 1563, conhecido como o

Concílio da Contrarreforma – devido à Reforma Protestante -, há a evolução da pastoral

católica e do sacramento da confissão. O corpo e a mente passam, então, a ser a centralidade

dos discursos religiosos. Assim, “[...] pensamentos, desejos, imaginações voluptuosas,

deleites, movimentos simultâneos da alma e do corpo, tudo isso deve estar, agora, e em

detalhe, no jogo da confissão e da direção espiritual” (FOUCUALT, 2015, p. 21).

Dessa forma, é possível compreender como o corpo passa a ser compreendido

como algo capaz de interferir no processo de salvação da alma. Então, corpo e alma parecem

se digladiar a todo instante, onde a vitória da alma levaria ao céu e a do corpo traria um fim

tenebroso, o inferno.

Desse modo, o corpo passa a possuir o status da alma, porém com uma inclinação

nefasta. A vitória do prazer da carne (corpo) resultaria, sem dúvida, a derrota da alma, vice

versa. Portanto, todo o discurso, todo argumento, todas as ações religiosas estavam voltadas

ao aprisionamento, à sujeição do corpo. Este deveria ser dominado pela alma e esse controle

resultaria na salvação de um novo corpo, o celestial.

À época, o Estado não estava laicizado, então reforçou o coro religioso da

interdição. Então, “que o Estado saiba o que se passa com o sexo dos cidadãos e o uso que

dele fazem e, também, que cada um seja capaz de controlar sua prática” (FOUCAULT, 2015,

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p. 30). Para tanto, o corpo passa a ser vigiado nas diversas instituições, a saber: escolas,

igrejas, hospitais, prisões etc.

Nas Epístolas de São Paulo é possível encontrar aspectos pedagógicos

imbrincados no dualismo alma/corpo, onde existe “[...] a condenação da corporalidade, vista

como pecado, como algo que se contrapõe e perturba a vida do espírito, que implica uma

pedagogia da repressão dos instintos e da sublimação interior, operada através de uma luta

contra si mesmo” (COMBI, 1999, p. 124). Ainda que maquiada por “novos” discursos, ante

as novas tecnologias, essa pedagogia perdura até os dias atuais. Por exemplo, a masturbação

continua sendo considerada, para os cristãos, um ato pecaminoso.

O CORPO PÓS-CRÍTICO

Torna-se impossível dissociar o corpo dos estudos de gênero. Ainda, os Estudos

Culturais e a História do Corpo não negam a materialidade biológica do corpo, no entanto

justifica não ser por esta ciência (biologia) que as atribuições culturais dadas ao corpo devem

ser produzidas. Em Microfísica do Poder, Foucault (2000) apresenta o corpo como sendo uma

realidade “biopolítica”, ou seja, aquele é resultado de uma construção social, cultural e

histórica.

A partir dessa perspectiva, o corpo na teoria pós-crítica é fluido, não está

estabilizado, portanto, possibilita reagir, aceitar, resistir, negociar, transgredir, subverter,

negar etc. Dessa forma, tanto a cultura quanto o corpo são o resultado da produção do tempo

vivido, pois, se num determinado tempo as práticas de higienização do corpo não foram

estimuladas, noutro – o atual, por exemplo – é reforçada sob a tutela da manutenção da saúde.

Assim, “Corpos masculinos e femininos não têm sido percebidos e valorizados da mesma

forma. Há uma tendência a hierarquizá-los [...]” (FELIPE, 2010, p. 54-55).

Assim, se falamos de corpo, logo contextualizamos as categorias sexualidades,

onde, vistas a partir das teorias pós-críticas, refutam os argumentos essencialistas e

biológicos, aproximando-se, para tanto, dos ideários construtos social e culturalmente.

Compreender as sexualidades como algo naturalizado é desconsiderar que os sujeitos não são

uma construção social e cultural. No entanto, “podemos entender que a sexualidade envolve

rituais, linguagens, fantasias, representações, símbolos, convenções [...]”. (LOURO, 1997, p.

9). Quando Foucault - em História da Sexualidade 1: a vontade de saber (2015) - descreve que

a sexualidade é um “dispositivo histórico”, ele, de fato, está evidenciando que os discursos

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sobre o sexo – que normatizam e que produzem “verdades” – são uma invenção social,

construída historicamente.

As questões de gênero, fundamentadas nos Estudos Culturais, se coadunam com o

corpo e a sexualidade – dada a impossibilidade da dissociação. Gênero, aqui, desprende-se da

dicotomia feminino e masculino e evidencia-se em “Uma prática de improvisação que se

desenvolve no interior de uma cena de coerção” (BUTLER, 2006, p. 13). Assim, “[o] gênero

não está aprisionado no sexo e, além disso, o sexo é mais complicado do que uma simples

polaridade masculino-feminino” (LE BRETON, 2014, p. 19).

No entanto, na escola, organismo vivo e encharcado de multiculturalismo, “anula-

se o corpo nas salas de aula, numa perspectiva de separação entre mente e corpo, ou seja,

corpos sem desejos, sem erotismo, sem sexo”. (DIAS, 2013, p. 241). A escolarização do

corpo traz a reboque o disciplinamento de alunos e alunas e, na atualidade, essas condições

ocorrem sutilmente, continuamente, porém, eficazmente. Para tanto, se o corpo sofre o

exercício do poder, “emerge inevitavelmente a reivindicação do próprio corpo contra o

poder”. (FOUCAULT, 2000, p. 146). Dessa forma, ocorre um deslocamento: à medida que

acessa as questões de sexualidade e corpo, a escola, suposto lugar de conhecimento,

transporta-se para o lugar de ignorância.

O CORPO NA EDUCAÇÃO

Como dito, os discursos têm como função a produção de conceitos, estando

diretamente relacionados às relações de poder dos mais diferentes tipos, a saber: de gênero,

corpo, idade, sexualidade, de classe, geração, cultura etc.

Para tanto, entendemos que nas escolas as normas generificadas são ensinadas de

modo a garantir as diferenças entre meninos e meninas, produzindo, assim, hierarquizações e

desigualdades. Portanto, as “Diferenças, distinções, desigualdades... A escola entende disso.

Na verdade, a escola produz isso. Desde seus inícios, a instituição escolar exerceu uma ação

distintiva”. (LOURO, 1997, p. 57). No princípio, a escola fora criada para educar poucos,

porém, com o passar dos anos e as vindicações dos excluídos, esta passa a ser diversa.

Assim, essa diversidade – que objetivava a produção de direitos iguais a todos –

continuou e continua reproduzindo, agora num ambiente mais restrito, escola, as mais

diversas desigualdades advindas de um mundo maior, a sociedade. Tais desigualdades são

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perceptíveis a partir das delimitações espaciais escolares: lugares para meninos e meninas,

para pequenos e grandes etc.

Por reproduzir lugares sociais mais amplos, o ambiente escolar é naturalizado e

esta característica passa despercebida e desapercebida. “Mas as divisões de raça, classe, etnia,

sexualidade e gênero estão, sem dúvida, implicadas nessas construções [...]”. (LOURO, 1997,

p. 60). Tudo isso é o reflexo dos discursos disciplinares que circundam a escola. Então,

Foucault (2015), “A disciplina ‘fabrica’ indivíduos [...]” e esse “[processo] de ‘fabricação’

dos sujeitos é continuado e geralmente muito sutil, quase imperceptível”. (LOURO, 1997, p.

63). Concebê-la a partir de uma reprodução naturalizada é, sem dúvida, contrapor às

conjecturas espraiadas dentro das perspectivas socialmente e culturalmente construídas,

imbricadas conceitualmente em comportamentos e atitudes impressos no DNA dos sujeitos.

Trazer à tona as discussões a respeito das questões de gênero, corpo e

sexualidades no ambiente escolar é, por demais, desafiador, estimulante, intrigante e repleto

de motivações. Historicamente e culturalmente a escola serviu e serve de arcabouço,

construído com propósitos para vigiar e punir, trazendo no seu bojo uma estrutura superficial,

conforme descrito por Foucault (1975).

Não podemos (mais) conceber uma escola apolítica, fora dos debates que

circundam a sociedade moderna, quais sejam: gênero, sexualidades e corpo. Na escola insere-

se o saber e “Não há saber neutro. Todo saber é político [...] todo saber tem sua gênese em

relações de poder” (MACHADO, 2015, p. 28). Envolver docentes, discentes, servidores, pais,

comunidade nas discussões sobre as temáticas em tela é, por demais, urgente. Se primamos

pelos discursos da Ética e da Moral apreendidas nos filósofos gregos, logo, temos a

necessidade de produzir cidadania, evitando, assim, as discriminações e desigualdades.

Em Corpo, gênero e sexualidades, problematizando estereótipos, evidencia-se que “a

linguagem e os processos de significação influenciam a produção do conhecimento” (DIAS,

2015, p. 73), ou seja, o conhecimento absorvido pelo sujeito está interligado ao tipo de

linguagem acessada e, ainda, às significações dadas a cada tipo de linguagem. A partir dessa

percepção, o autor utilizava-se da abordagem qualitativa para produzir a pesquisa com 23

alunos do Curso de Licenciatura em Pedagogia da UFS, além de docentes da rede pública

municipal, localizados na cidade de Itabaiana, Sergipe, analisando, dessa forma, os tipos de

linguagem capazes de produzir estereótipos nos sujeitos.

Em uma análise criteriosa, Dias (2015) argumenta que docentes e discentes

questionam os processos normativos que visam à anulação dos corpos, gerando certo conflito

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entre a individualidade e o ideário social. Ainda, que a escola precisa se reprogramar a partir

da desconstrução dos discursos tradicionais sobre os corpos e passar a reconstruir e enxergar

as diversas variações corpóreas, sem discriminá-las ou excluí-las, mas, tão somente, criar

diálogos que apontem as diferenças, não as desigualdades.

No texto, o autor sugere que os debates sobre as temáticas citadas permanecem

instáveis, avançando em algumas áreas do conhecimento e estabilizando em outras. Dias

(2015) defende a existencialidade do corpo, considerando-o mutável e fragmentado pelas

experiências. Ainda, relembra a importância da centralidade dessas temáticas na educação,

tanto problematizando quanto desconstruindo estereótipos na formação docente.

A resignação pode gerar um processo de subversão. Então, o ser humano tem a

capacidade e a liberdade de se construir e desconstruir da forma que melhor lhe aprouver.

Ainda que as normatizações sociais exerçam forte influência à pessoalidade, os indivíduos são

suscetíveis a mudanças. Diante disso, Le Breton (2014, p. 26) escreve que “a reinvindicação

gender queer3 liberta de toda e qualquer ancoragem biológica ou convenção social e inventa

um indivíduo sem fronteiras de gênero [...]”. Então, as pessoas não são obrigadas a se fixar no

binarismo homem/mulher, por exemplo, pelo fato de ter nascido com o “sexo” considerado

masculino ou feminino. É possível, sim, desfazer-se de toda coercibilidade identitária e

reprogramar o próprio corpo, o gênero e a sexualidade.

Para Butler (2000), o “sexo” é analisado como norma e prática regulatórias, por meio

do poder produtivo que demarca e diferencia o corpo. Não há diferença sexual pela diferença

material, mas o que existe são as diferenças sociais e culturais criadas a partir dos discursos

heteronormativos. Desse modo é possível inferir que as normas regulatórias criam a

materialização dos corpos com uma única finalidade: a dominação. O que determina a norma

não é a norma em si, mas a instabilidade advinda do corpo, produzindo, assim, visibilidade e

estabilização das normas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os debates sobre o corpo no ambiente escolar andam a passos lentos. Mesmo

havendo diversos estudos científicos demonstrando a importância de trazer essas discussões à

escola e à comunidade, diversos empecilhos são construídos, impossibilitando, assim, a

construção de novos saberes. 3 Termo utilizado para designar as pessoas que não se enquadram dentro do binarismo homem/mulher.

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Em O corpo educado diversos autores problematizam as questões sobre corpo na

perspectiva da Educação. No primeiro capítulo, Pedagogias da Sexualidade, Guacira Lopes

Louro (2010) discute as temáticas gênero, corpo e sexualidades, onde a escola absorve os

discursos heteronormativos que apresentam fortes discriminações entre meninas e meninos.

Desse modo, tais práticas refletem nas várias camadas da sociedade.

No quarto artigo do livro citado, Eros, erotismo e o processo pedagógico, Bell

Hooks descreve a dicotomia corpo/mente, onde os docentes acessam a sala de aula para

ensinar a mente e anular o corpo. Assim, as paixões e sentimentos – pensados na mente, mas

sentidos no corpo – são convidados a se retirar da sala de aula para serem vividos no ambiente

privado. Portanto, a mente discute, aprende em sala de aula, porém, os corpos, mesmo estando

em sala, são compreendidos como se lá não estivessem.

Falar sobre sexo na escola tem sua permissividade vigiada. Geralmente, fala-se sobre

ele, mas ao rigor do determinismo biológico, bem como a partir das doenças sexualmente

transmissíveis, dentro da perspectiva médica. Afinal, ainda “[...] existem muitos obstáculos,

tanto nas mentes das professoras, quanto na estrutura da escola, que impedem uma abordagem

cuidadosa e ética da sexualidade na educação” (BRITZMAN, 2000, p. 62).

Os livros didáticos e as orientações dos pais estão, ainda hoje, investidos no

“puritanismo” e falar sobre sexualidade na escola é quebrar uma espécie de código de ética,

sugerindo, portanto, que as famílias construídas tradicionalmente, além de impedir que os

filhos debatam sobre essas questões na escola, não se permite discutir sobre sexualidade no

lar.

A “polícia do sexo”, escrita por Foucault (2015), não está ligada apenas à dureza da

interdição, mas, principalmente, mancomunada aos discursos que produzem a normatização

do sexo na escola. Nesta, a sexualidade é vigiada, reprimida, silenciada e, quase sempre,

coagida a estar genuflexa aos padrões heteronormativos.

Entretanto, “cobra-se da escola uma postura de “contenção” nas questões de

sexualidade dos alunos, mas os programas de auditório, novelas, músicas [...] trazem

constantemente provocações, o que torna difícil acerta a medida” (SEFFNER, 2011, p. 564).

Enquanto a escola continua retendo os debates sobre sexualidade, as diversas mídias

problematizam, distorcendo, muitas vezes, os conceitos e gerando polêmicas desnecessárias.

Evidenciando problematizar tais questões, Foucault (2015, p. 27) afirma que “deve-se

falar do sexo, e falar publicamente, de uma maneira que não seja ordenada em função da

demarcação entre o lícito e o ilícito [...]”. Todavia, esse “falar publicamente” não deve estar

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ligado à condenação, mas funcionar visando ao bem dos indivíduos, situado em algo

prazeroso. Isso propõe que nas sociedades modernas o sexo não fora condenado à

obscuridade, mas, ao contrário, falava-se demasiado sobre ele, porém em sigilo. Mas, o lícito

e o ilícito se encontravam sob a tutela de três forças: o direito canônico, a pastoral cristã e a

lei civil (FOUCAULT, 2015). Afinal, discutir abertamente sobre sexo torna-se possível, mas

sob o crivo dessas instituições.

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