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Teocomunicação Porto Alegre v. 44 n. 3 p. 396-417 set.-dez. 2014
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A APATIA SOBRENATURAL E A VONTADE DE SENTIDO: PASCAL E FRANKL
The supernatural apathy and the will to meaning: Pascal and Frankl
Carlos Frederico Lauer Garcia*
RESUMONeste trabalho, apresentamos um paralelo entre Blaise Pascal e Viktor Frankl a partir da comparação entre a finitude da compreensão humana e o desejo humano de um sentido infinito. Num primeiro momento, trataremos da expressão “apatia sobrenatural” em Pascal. Em seguida, apresentaremos a relação, ainda em Pascal, entre o sofrimento e a perturbação dessa apatia. Com relação a Frankl, examinaremos primeiramente a relação entre sentido e transcendência, mesmo no sofrimento. A partir daí, concluiremos com a questão de um sentido infinito. Ao longo do texto, proporemos um diálogo entre nossos autores, principalmente a partir da segunda parte.Palavras-chave: Apatia. Sentido da vida. Sentido infinito. Sofrimento. Transcendência. Vontade de sentido.
ABSTRACTIn this paper, we present a parallel between Blaise Pascal and Viktor Frankl from the comparison between the finitude of human understanding and the human desire for infinite meaning. In a first moment, we will discuss the term “supernatural apathy” in Pascal. Then, we will present the connection, still in Pascal, between the suffering and the perturbation of this apathy. With regard to Frankl, we will examine firstly the connection between meaning and transcendence, still in the suffering. From then on, we will conclude with the question of a infinite meaning. In the course of the paper, we will propose a dialogue between our authors, mainly from the second part.Keyworks: Apathy. Meaning of life. Infinite meaning. Suffering. Transcendence. Will to meaning.
* DoutorandoemFilosofiapeloProgramadePós-GraduaçãoemFilosofiadaPUCRS.
PENSAR PLURAL: Experiência Humana e Religiosa PLURAL THINKING: Human and Religious Experience
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Introdução
BlaisePascaleViktorFranklsãodoisautoresque,entreumalongasériequeincluinomescomoSantoAgostinho(emoposiçãoaPelágio),Kierkegaard (emoposição aHegel) eDostoiévski (emoposição aosniilistasrussos),perceberam,cadaqualemseucontexto–Pascalemoposição a qualquer pretensão de autonomia da razão e Frankl emoposiçãoaqualquerreducionismodoserhumano,sejaemseuaspectobiológico,sociológicooupsicológico–,anecessidadedeconceberoserhumanoapartirdeumaaberturaparaoeterno.
Oque propomos aqui é estabelecer umparalelo entrePascal eFranklapartirdaquestãodosentidodaexistênciacomoumproblemaprimário do ser humano e, entretanto, definitivamente insolúvel emtermosdiscursivos,masapenasexistenciais.Afinaldecontas, seporsentido entendemos, como Frankl, “o que se tenciona, seja por umapessoaquemeperguntaalgo,sejaporumasituaçãoqueencerraumapergunta e clama por resposta”,1 então é bastante fácil compreenderquearespeitodecadasituaçãoqueseiniciaeseencerra,ouseja,paracadasituaçãovivida,podemoscomsucessoinvestigartantoosentidoda situaçãocomosehouveumsentido realizado.Mas,nãopode seresseocasoquandoseperguntapelosentidodaprópriavida,umavezquearespeitodelanãotemosconhecimentoexatodeseuinício,nemmuitomenosdeseufim.E,entretanto,semo inícioeofimdavida,permanecemos em um “vasto meio, sempre incertos e vacilantes”,2 para usarmos os termos de Pascal.
Em um primeiro momento, procuraremos expor o problemaemPascal a partir da expressão “apatia sobrenatural”, utilizadaparadescreveroestadodosujeitoquesemantémindiferenteaesseproblema.Emseguida,atentaremosumpoucoparaatemáticadosofrimentoemPascal–naformadeenfermidade–,encarando-acomoummododetornar-sesensívelparaamortee,portanto,paraoproblemadafinitudedavida,aomesmotempoemquefazsurgirumdesgostopelosbensrelacionados ao divertissement,istoé,aquelesquedesviamoserhumanodaconsideraçãodapossibilidadedebensperpétuos.
1 FRANKL,Viktor.A vontade de sentido:fundamentoseaplicaçõesdalogoterapia.2.ed.SãoPaulo:Paulus,2013,p.81.
2 Laf.199.
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Emumsegundomomento,começaremosexpondoarelaçãoentresentido e autotranscendência emFrankl, comoobjetivode enfatizarque,talcomoemPascal,arealizaçãohumanaconsisteprimariamenteemumesquecimentodo eu que, em seu termo, permite que se faleem aniquilação. Em seguida, abordaremos a questão do sentido nosofrimento, buscando ressaltar uma decisão última que garante aintegridade e responsabilidade humana mesmo nas situações maiscalamitosas.Apartirdaí,finalmente,consideraremosarelaçãoentreoserhumanoemsuaprofundidade–medianteoconceitodecoraçãoemPascal–eaquestãodeumsentidoinfinito,levantadaporFrankl.
1 A apatia sobrenatural
A tensão entre o finito e o infinito é uma dasmais acentuadascaracterísticas da antropologia pascaliana.De fato, toda perturbaçãodoserhumanoquesedeparacom“infinidadespor todasaspartes”,3 incapaz, portanto, de estabelecer o seu lugar próprio na natureza, éumaperturbaçãoprópriadeumser“quenãoéproduzidosenãoparao infinito”.4Essadiferençaradicalentreacondiçãodoserhumanoeoseufimúltimosefaznotartantonaordemracionalquantonaordemvolitiva.Taldistinçãoéfundamentalparanossopropósito,poiséapartirdela quepoderemos entender emque consiste a apatia que é objetoderepreensãoporpartedePascal.Primeiramente,porém,citemosumfragmentoqueestáentreosmaiselucidativosdoproblemacomoqualora nos ocupamos:
Poisenfimoqueéohomemnanatureza?Umnadaemrelaçãoaoinfinito,umtudoemrelaçãoaonada,ummeioentrenadaetudo,infinitamentedistantedecompreenderosextremos;ofimdascoisaseseusprincípiosestãoparaeleinvencivelmenteescondidosnumsegredoimpenetrável.5
Quando Pascal procura descrever qualquer aspecto da misériahumana–e,nessecaso,porenquanto,estamosdiantedamisériacognitiva–,asuaretóricanãocostumasevalerdeamenizações:seosextremosdarealidadeestão infinitamentedistantesdenossacompreensão, isso
3 Laf.427.4 PASCAL,B.Oeuvres complètes. Organização por Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963.
p. 231.5 Laf.199.
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significa–paranãorecorreraoutralinguagemquenãoapropriamentepascaliana–quenãoháproporçãoentre a compreensãohumanae aestrutura da realidade.6RecorrendoaofragmentonoqualPascalexpõede maneira mais acentuada a heterogeneidade entre as ordens darealidade,podemosdizerquedomesmomodoque“detodososcorposjuntos,nãosepoderiachegaraumpequenopensamento”,7 tampouco arazão,naexcelênciadeseuexercício,poderiajulgararealidadeemsuatotalidade.Aocontrário,arazãochegaaseulimitejustamenteemreconhecerqueháumainfinidadedecoisasqueaultrapassam.8 Desse modo,écompreensívelqueseacusedesoberbaarazãoquepretendaestenderoseujulgamentoparaalémdeumarealidade9parcial,ouseja,arazãoquepretendaoperarforadesuaordem:éjustamenteoconceitodetirania em Pascal.10Bastantesignificativo,ademais,équeaacusaçãodesoberbaencontreumcontextonoqualseinsereoproblemado“princípiodascoisas”:“Éumacoisaestranhaqueeles[oshomens]tenhamqueridocompreenderosprincípiosdascoisasedeaíchegaratéconhecertudo,porumapresunçãotãoinfinitaquantoseuobjeto”.
Éjusto,portanto,quearazão,assim,desordenada,sofra,sobre- tudo num contexto apologético, um processo de humilhação, peloqualviráaconhecerseuslimites.Pascalnãohesitaemexpressaroseuagradoao“veressasoberbarazãohumilhadaesuplicante”.11 É a isso quesedeve,principalmente,oflertedojansenistacomopirronismo em diversas passagens dos Pensées,12 bem como o seu elogio aMontaignenaEntretien avec M. de Saci.Se“Deusdevereinarsobretudo, e tudo se relacionar comEle”,13 comodiz o outro fragmento
6 Sabemos,porém,quePascalvaimuitomaislonge,chegandoaidentificaradesproporçãonamesmaordemdanatureza.É justamenteocasodofragmentodosdois infinitos,aoqualpertenceapassagemcitada.Todavia,comonossoobjetivoéencaminharadiscussãoparaosentidoúltimodavidahumananosobrenatural,deixaremosdeladooaspectodadesproporçãointernaàpróprianatureza.Aoleitorinteressadonesseponto,remetemosaPONDÉ,L.F.O homem insuficiente:comentáriosdaantropologiapascaliana.SãoPaulo:EDUSP,2001,especialmentep.189-191.
7 Laf.308.8 Cf.Laf.188.9 Laf.199.10 Cf.Laf.110.EtambémLaf.58:“Atiraniaconsistenodesejodedominação,universal eforadesuaordem”.
11 Laf.52.12 Alistadessasocorrênciasseriamuitoextensa,mascertamenteumadasmaissignificativasencontramosemLaf.691:“Opirronismoéoverdadeiro,pois,afinaldecontas,oshomens,antesdeJesusCristo,nãosabiamondeestavam,nemseeramgrandesoupequenos[...]”.
13 Laf.933.
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acercadastrêsordens,entãohumilhararazãoconsisteemorientá-laparaaquiloqueaultrapassa,istoé,emúltimainstância,oseupróprioCriador.
Comisso,porém,oquesebuscanãoéumaatitudeirracionalistadafé14–oflertedePascaléapenasparcial–,masantesumacompreensãodoatodefédentrodoqualarazãotenhaoseuexercíciolegítimo.Ora,paraPascal,nãoapenasaatitudede“asseverar,quandonecessário”,mastambémaatitudede“submeter-se,quandonecessário”15sãoprópriasdeumarazãoemseu legítimoexercício.Comotudonaantropologiapascaliana,essecuidadoremontaàquestãodaatuaçãodohomemempecado,portanto,àquestãodaconcupiscênciae,nessecasoespecífico,àconcupiscênciadoespírito,querecebeonomedecuriosidade.Essaúltimaconsistenapretensãode autonomiadaordem racional, oqueculminanaseparaçãoentreaciênciaeamoral,medianteaincapacidadedohomememseencontraremmeioàdiversidadequeéobjetomesmode sua curiosidade: “Pois uma só coisa é necessária, e nós amamosa diversidade”.16 O ceticismo aparece como o fim de tal pretensão,portanto,comooseufracasso:“Éassimqueele[Montaigne]repreendetãoforteecruelmentea razãodesprovidadafé,apontodefazer-lheduvidar se ela é racional, e se os animais o são ounão [...]”.17Toda pretensão humana de estabelecer os seus fundamentos fora de umaconvergênciaparao sobrenatural resulta tambémemPascalemumadissolução tanto do conhecimento que o ser humanopossa ter de simesmoquantoemumadissoluçãopropriamenteontológica:
Acuriosidadeimpeleaestudarcoisasnãoabstratasnelasmesmas,mas que fazemabstraçãodo conhecimento de si.Ora, não tomandoporbaseesseprimeiroconhecimento,ohomemcorreoriscodeseverdispersado,dissipadoporumamultidãodeciênciasdiferentes,semlinhaentreelas.Acuriosidadeé,assim,prejudicial tantoporqueelaafasta
14 ÉsempreumaadvertênciapertinenteadequePascalnãoadotaumaposturaantifilosófica.Os“meiosdecrer”nãodeixamdúvidaquantoaisso:“[...]énecessárioabriroespíritoàsprovas[...]”.Cf.,ademais,Cf.MICHON,H.L’ordreducoeur:philosophie,théologieetmystiquedanslesPenséesdePascal.Paris:HonoréChampion,1996,p.115:“[...]Pascalnãorecusaotrabalhodarazão,oqueseriaopontodevistadeumantifilósofo,elecontestaaocontrárioapossibilidadedeumdiscursodarazãopura,querdizer,darazãoconstituídaemúnicaautoridade,privadadaluzdafé”.
15 Laf.268.16 Laf. 270.Note-se simultaneidade, umadasmais comuns emPascal, entre o problemadoconhecimentoeodobemverdadeiro.Aesserespeito,cf.RUSSIER,J.La foi selon Pascal:Dieusensibleaucoeur.Paris:PUF,1949,p.51-52.
17 PASCAL,1963,p.294.
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ohomemdoconhecimentodelemesmoquantoporqueelaimpededeunificarseusaber.18
Todavia,se,porumlado,édenunciadaapresunçãodarazãoemestenderoseudomínioparaalémdoempíricoedoinfinitoquelhesãopróprios,19poroutrolado,demaneiranenhumaatotalidadehumanaéencerradaemsuaordemracional.Permanecenoserhumanoodesejodaquilomesmoqueultrapassa infinitamentea razão, issoé,odesejo deumbemparaalémdosbensparticulares:“Elescompreenderamqueoverdadeirobemdeviasertalquetodospudessempossuí-loaomesmotempo semdiminuição e sem inveja, e queninguémpudesse perdê-lo contra a sua vontade”.20Acrescente-seaesseúltimocritérioparaadistinçãodoverdadeirobem–quenãosepodeperdercontraavontade–odequedeveresultaremumafelicidadetãodurávelquantoaprópriaalma imortal.21
Sofreriaessedesejodoinfinitoamesmacondenaçãoquearazãoque pretende fazer-se infinita?De jeito nenhum, pois a infinidade éa constituiçãomesmado ser humano,mas – e aqui a tensão a qualaludimos inicialmente aparece em sua formamais veemente – trata-sedeum“abismoinfinito”quesópodeserpreenchidoporumobjetoinfinitoeimutável”,22oqual,todavia,faltaaohomemdesdeopecado.Esseúltimodeuorigemaumaqueda,masumaquedaincompleta,quelançaoserhumanomeio-termoentreapresençaeaausênciadeseufimúltimo:“Oqueaíaparecenãomarcanemumaexclusãototal,nemumapresençamanifestadadivindade,masapresençadeumDeusqueseesconde.Tudotrazessecaráter”.23
18 MICHON,1996,p.35.A respeitodacontribuiçãoquePascalencontranopirronismo,conferirRUSSIER,J,1949,p.53:“Ditodeoutromodo,desdequearazãoderasimesmauma explicação e uma justificação autônoma, construir um sistema, em lugar de secontentarcomcertezaselementaresqueanaturezanostemprovidenciado,tentaelaborarumateoriadoconhecimentoquebasteasimesma,opirronismoestáaíparalhemostraravaidadedeseuempreendimento: todapretensãodefilosofar,edefilosofar sema fé,terminanecessariamentenele,eissonosadvertenãodequeénecessáriodeter-senele,masdeque,tendotomadoummaucaminho,nósdevemosvoltaratrásepôrdeoutromodooproblemahumano”.
19 Cf.MICHON,1996,p.204.20 Laf.148.21 Sur la conversion du pécheur. PASCAL,1963,p.290.22 Laf. 148. Sobre a relação entre os últimos fragmentos citados, cf. LACOMBE,
L’Apologétique de Pascal:étudecritique.Paris:PUF,1958,p.156.23 Laf.449.Cf.tambémMICHON,1996,p.272:“Poisoqueéodesejo,senãoaqueleestadointermediárioentreapresençaeaausência,entreaposseeaprivação?”
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Apareceaqui,demaneirabastanteclara,comoatemáticadodesejoinsatisfeitodoserhumanoremeteàtemáticadoDeus absconditus. Ora, abuscaporesseDeusnãoseráemnenhummomentocondenadacomosoberba,masseráantescritériodesensatez:“[...]háapenasdoistiposdepessoasquesepodemchamarderazoáveis:aquelesqueservemDeusdetodoseucoraçãoapóstê-LoencontradoeaquelesqueOprocuramdetodocoraçãoporqueelesaindanãoOconhecem”.24
ConformePascalexpõeemoutropensamento,25háumaterceiracategoria a ser considerada: a dos que nem buscam Deus, nem Oencontram.26AindignaçãodePascalparacomessesúltimosultrapassaemmuitosuazombariaparacomarazãoquenãosesubmetaaosseuslimites.Aosquevivemindiferentes–ou,pelomenos,tentammanter-se indiferentes – frente àmesmadúvida que abala os que já não seconformam com a satisfação dos desejos concupiscentes, emboraaindanãotenhamdescobertonadamaissólido,istoé,frenteàdúvidaforçosamentepostapelaantevisãodeumfimpróximoeinevitávelcomoamorte,Pascalreservaumamisturadeiraedesprezopeloqueelechamade“apatiasobrenatural”:
Nadaétãoimportanteparaohomemquantoseuestado;nadalheétãotemívelcomoaeternidade.Assim,nãohánadadenaturalemseencontrarhomens indiferentesquantoàperdadeseuserequantoaoperigodeumaeternidadedemisérias.Elessãobemdiferentesarespeitode todas as outras coisas: temem até as mais leves, eles as preveem, eles as sentem;e essemesmohomemquepassa tantosdias enoitesenfurecido e desesperado pela perda de um cargo, ou por qualquerimagináriaofensaàsuahonra,essemesmohomemsabequevaiperdertudocomamorte,epermaneceseminquietaçãoesememoção.Éumacoisamonstruosavernummesmocoração, e aomesmo tempo, essasensibilidadepelasmenorescoisaseessaestranhainsensibilidadepelas
24 Laf. 427.A exigência de que a busca seja “de todo coração” émuito significativa nocontextoapologético.ÀvontadecorrompidapelopecadobastaamenordasdistraçõesparaquesedesviedeseudesejoporDeus.Nessecaso,asinceridadecomquesebuscacorrespondeapreferirotormentodenadaencontraràtranquilidadesempreameaçadadodivertissement.Cf.RUSSIER,1949,p.177-178.
25 Laf.160.26 Interessanteperguntarsehaveriaapossibilidadedeumquartogrupo:odosqueconhecemDeus semO ter buscado.Ora, o contextodagratuidadedagraça, noqualPascal estásubmerso, parece dever incluir essa possibilidade, de uma inclinação do coração semumabuscaprévia.ÉtalvezoqueseexponhaemLaf.380.Cf.tambémRUSSIER,1949, p.195-198.
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maiores.Éumencantamentoincompreensível,umaapatiasobrenatural,sinaldeumaforçatodo-poderosaqueocausa.27
Ora,aausênciadedúvidaemquestãoserefere,comoprocuramosencaminharlogoemnossaprimeiracitação,ao“fimúltimodavida”.28 Se, anteriormente, Pascal tomava como causa de perturbação aincompetênciadoserhumanofrenteaoconhecimentodosextremosdanatureza,éagoraseusprópriosextremosquelheescapam.É,pois,arespeitodoproblemadatotalidadedesuaprópriavidaquePascalnãocompreendeaatitudeda“tãoextravagantecriatura”quesemantenha“tranquilaesatisfeita”.Sabemosdeantemão,portanto,queabuscaquePascalentendeseramaisconformeanósnãoéprópriadainvestigaçãoracional,umavezqueseuresultadosequerpodeterproporçãocomarazão.Defato,PascalalertarepetidamentequeabuscadohomemporDeusdeveserde“todoseucoração”enãocomtodaforçadesuarazão.29
Talvezaindignaçãodojansenistanãofossetãograndeseaapatiafosseestendidaportodasasquestõesdavida,asmenoreseasmaiores.Oquesurpreende,porém,éumamesmadisposiçãodistribuídadeformatãoinjusta:aafliçãopelaperdadocargooudahonraeatranquilidadediantedaperdadaprópriavida.Ora,omesmoamorpróprioquedesencadeiaaprimeirapreocupação,deveriacommuitomaisintensidadedesencadearasegunda,porummerosensodeproporções.Abuscaporumbemmaissólidoqueumcargoouahonradeve-sedarpelosimples“interessedeamor-próprio”,oqual,presenteemtudoomais,pareceestranhamentenãoteroseuefeitosobreumaquestãotãodecisiva.Maisdoqueisso,manter-se“tranquiloesatisfeito”diantedamorteiminenteéapenasoaspectonegativo–ausênciade sentimento–do incrédulo.ÉprecisoteremcontaqueadescriçãodePascalacrescenta:“[...]seeleprofessatais coisas, e se ele enfim faz disso objeto de sua alegria e de sua
27 Laf. 427.A expressão que é aqui traduzida por apatia é assoupissement, que, maisnaturalmentedeveriasertraduzidaporadormecimento.Anossaescolhaporessatraduçãose deve a dois motivos principais: em primeiro lugar, apatia está mais próxima detédio,conceitofundamentalnadinâmicadohomemincapazdeaquietar-secomosbensmundanos;emsegundolugar,seohomemqueseenfurecepelaperdadeumcargosabe quevaiperderessetalcargoetudoomaiscomamorte,asuacondiçãonãopareceserexatamenteadeumadormecido,portanto,inconscientedesuarealidade,mas,justamente,adeumapáticofrenteaessarealidadequeelenãoignora,apesardemanter-seinsensível.Ademais,SérgioMilliet,in:PASCAL,Blaise.Pensamentos.SãoPaulo:DifusãoEuropeiadoLivro,1961,p.101,optapelotermoapatia.
28 Laf.427.29 Cf.,nocontextodosPenséesLaf.427,Laf.149eLaf.269.
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vaidade [...]”.30Taisatitudes tornamdifícilpensaraquiemumameravisão restrita das coisas: o problema damorte não é ignorado,masrejeitado.Nessasuaformamaisradical,aapatiaaparececomoaatitudedeliberadadeserecusaradarqualquerimportânciaparaofimúltimodavidahumana.31
Que a apatia seja qualificada como sobrenatural é bem justo,desdequetenhamosemcontanãoapenasaprimaziadagraçasobre o conhecimento mesmo do pecado, mas também a conformidadecom a SagradaEscritura.32 A respeito desse segundo aspecto, mais queapatia,ouadormecimento,oqueéqualificadocomosobrenaturalé o que se pode traduzir por “cegueira” (aveuglement): “Se é umacegueirasobrenaturalviversemprocuraroquesomos,éumacegueiraterrívelvivermalcrendoemDeus”.33Mas,aquinãoparecesetratarmeramentedeumdefeitonosentidodavisão–oque,decertomodo,provocariaumparadoxocomalucidez,referidaacima,doincrédulocomrespeitoaoseuestado–,masantesdealgomaispróximodeumaobstinaçãooudeuma ilusão,umaobstinaçãonaescuridão impostaaopecador,quesópelagraçapodedar-secontadamisériaemqueseencerrou.34
Agora,se,porumlado,aevidênciadeumamorteiminentepossaserassimdesconsiderada,poroutro,acompreensãodafinitudedavidadeverá estar presente no rejeitado.Pode apenas ser desviadode suacausamesma,Deus,paraofinito:
Certamente, ele não pode não desejar, segundo as palavras dePascal[Laf.401],maselepodeconsentirounãoaessedesejo:aquele
30 Laf.427.31 Maisadiantenofragmento,adecisãopelaindiferençaéexplicitada:“Tudooqueeuseiéquedevomorrerlogo;masissoqueeumaisignoroéessamortequeeunãopoderiaevitar.Assimcomonãoseideondevenho,tampoucoseiparaondevou;eeuseisomenteque,saindodessemundo,caireiparasemprenonada,ounasmãosdeumDeusirritado,semsaberparaqualdessasduascondiçõeseudevoserentregueeternamente.Eismeuestado,plenodefraquezaedeincerteza.E,detudoisso,concluoqueeudevopassartodososdiasdeminhavidasempensaremprocuraroquemedeveacontecer”.
32 Cf.Laf.893.33 Laf.623.34 Sobreasrelaçõesentrepecado(miséria)ecegueira,cf.,porexemplo,Laf.149:“[...]eelesestãosubmersosnasmisériasdesuacegueiraedesuaconcupiscência[...]”;Laf.198:“Vendoacegueiraeamisériadohomem[...]”;Laf.502:“[...]umacegueirasemelhanteàquelaqueacarnelançanoespírito[...]”.E,umadasmaissignificativas,Laf.781:Ela[aEscritura]diz,aocontrário,queDeuséumDeusescondidoeque,depoisdacorrupçãodanatureza,EleosdeixounumacegueiradaqualelesnãopodemsairsenãoporJesusCristo,foradoqualétiradatodacomunicaçãocomDeus”.
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quesediverteéaqueleque,nãoconsentidoemdesejarDeus,desejatodooresto,querdizer,todasascoisas.35
Odivertimento,istoé,odesviodaconsideraçãodarealidadedenossacondição, é,de fato,postoemxequepelaevidênciadamorte.Trazeressaúltimaforçosamenteàmemória,perturbandoocostumedesedeleitarnosbensparticulares,éumatarefaconstantedaapologéticapascaliana. Averiguemos esse ponto.
2 O costume perturbado
AinsensibilidadeestáentreosmaisrelevantesefeitosquePascalatribui ao costume. Ora, no contexto que até agora formulamos, écertamente a insensibilidade com relação àmorte que aparece comoamais relevante, ainda que indissociável de outros aspectos.Nessesentido, a primeira coisa a se constatar é uma forte relação entre ocostume e o divertimento: “[...] o divertimento nos distrai e nos fazchegar insensivelmente àmorte”.36Mas, como faz isso, senão pelacontinuidade dos afazeres mais triviais, tais como “correr atrás deumalebre”?37Aeficáciadodivertimentonãodependetantodotipodeobjetoquediverte: “Ohomem,aindaqueplenoda tristezaque seja,casoseconsigafazercomqueeleentreemalgumdivertimento,ei-lofelizdurante esse tempo [...]”.38Ademais,umavezqueseinterrompao divertimento, “imediatamente,sairádofundodesuaalmaotédio,aescuridão,atristeza,aaflição,orancor,odesespero”.39Pascal,defato,parecenãodeixarumaterceiraalternativa:“Semdivertimento,nãoháalegria;comdivertimento,nãohátristeza”.40
Assim,aeficáciadodivertimentodependedailusãodaperpetuidadedaquiloquediverte,eessa ilusão,porsuavez,éenraizadamediantea repetição: “Quem demonstrou que amanhã será dia e que um diamorreremos?Ehaveráalgoemquemaisseacredite?”.41 Desse modo, éfundamentalparaoapologistadesfazerailusãodaperpetuidadedenossosprazerescotidianose tornarsensívelamorte,fimde todosos
35 MICHON,1996,p.277.36 Laf.414.37 Laf.136.38 Laf.136.Grifonosso.39 Laf.622.Grifonosso.40 Laf.136.41 Laf.821.
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prazeres. Issoequivalea tornarsensívelumgraumaiorderealidade:“Nãohánadamaisrealdoqueisso,nemnadamaisterrível”.42
Todavia,a tarefade tornaramortesensível,comoobjetivode,por um lado, aniquilar o deleite causado pelos bens corriqueiros dodivertimento e, por outro, despertar o anseio por bens eternos, nãoencontraráoseuêxitoemmeioaoraciocínioqueenvolvaumsensodeproporçõesentreasnossaspreocupaçõescotidianaseaincertezasobrea nossa condição futura,mas antes na experiênciamesmaquemaisaproximadamorte,istoé,aenfermidade.Àperspicáciadeumarazãosã,contrapõe-seagoraahumilhaçãodeumcorpoenfermo:
Vósmedestesasaúdeparavosservir,eeufizdelaumusotodoprofano.Vósme enviais agora a enfermidade parame corrigir: nãopermitiqueeuauseparaVosirritarporminhaimpaciência.Euuseimalminhasaúde,eVósmuitojustamentemepunistes.[...].Pois,Senhor,comonoinstantedeminhamorteeumeencontrareiseparadodomundo,despidodetodasascoisas,sozinhoemVossapresença,pararesponderàVossajustiçaportodososmovimentosdemeucoração,fazeicomqueeuconsidereessaenfermidadecomoumaespéciedemorte,separadodomundo,despidodetodososobjetosdeminhasafeições,sozinhoemVossapresença,paraimplorarporVossamisericórdiaaconversãodemeucoração.43
AcorreçãoquePascalentendeserofimdeseusofrimento temdoisaspectosprincipais.Emprimeirolugar,trata-sedeumacorreçãodaafeição,quenãomaispodetercomoobjetoaquiloqueserádestruídocomamorte.Emsegundolugar,trata-sedeumacorreçãopropriamenteintelectual, no sentido de compreender que não pode haver nadarealmente digno de amor senão Deus. Compreende-se, portanto, asúplicadePascal,nessemesmoopúsculo:“Fazei-meagraça,Senhor,dereformarminharazãocorrompidaedeconformarmeussentimentosaos Vossos”.44
42 Laf.427.Cf.também,FERREYROLLES,Gérard.Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chezPascal. Paris:HonoréChampionÉditeur, 1995, p. 35: “Quandoocristãosefizerapologista,elechamaráosensocríticodeseuinterlocutorparaoconvidarasuspenderoencadeamentomortaldohábito.Dizerque‘énecessárioviverdeoutromodonomundo’,dependendoseaídeveremosestarsempreou‘seécertoqueaínãoestaremospormuitotempoeincertoseaíestaremosumahorasequer’[Laf.154],éinterromperafascinaçãodenossoprimeirohábito, que é esse deviver, pela consideraçãodamorte,termodetodososhábitos”.
43 Prière pour demander a Dieu le bon usage des maladies.PASCAL,1963,p.362-363.44 Ibidem,p.364.
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A enfermidade aparece aqui, desse modo, não apenas como ajustiçapelospecadoscometidos,mascomoagraçade fazer sentirodesgostopelomundo,aomesmotempoemqueseantevêbensantestão insensíveis e distantes quanto amorte que agora os revela.Essainsensibilidade, por sua vez, antes de dar lugar à justa afeição peloeterno,faz-seconhecersobaformadedesgostopeloperecível.Trata-se claramente do processo de conversão, e é o que se descreve emoutroopúsculo,muitosemelhanteaPrièresobdiversosaspectos:“Porumlado,apresençadosobjetosvisíveisatoca[naalma]maisqueaesperançadosinvisíveis,eporoutro,asolidezdosinvisíveisatocamaisqueavaidadedosinvisíveis”.45
Aantecipaçãodamortecausa,pois,umaconfusão–uma“santaconfusão”46 – entre a nossa condição finita e o infinito que se fazsentir: a alma “reconhece a graça” queDeus lhe fez “demanifestarSuainfinitamajestadeaumvermezinhotãodébil”.47Taldestruiçãodaapatiasobrenaturalpelagraçasobrenaturalabre,então,caminhoparaumabuscacontínuapelaconformaçãodacriaturaaoCriador,medianteaperseverançaquerenovasempreasensibilidadedeseufimúltimo,demodoqueohábitoseconverteemperseverança:“Umacontinuaçãoquenãoécontinuidade,umarepetiçãoqueérenovamento,umdeleitequecavaodesejoqueelepreenche:essechefedeobradohábitoqueéaperseverançafinaléumhábitoaoqualnãonoshabituamos”48.Emsuma,umaorientaçãoparaumDeusabsconditus,“umDeusqueseescondepara ser procurado”.49
3 Sentido e autotranscedência
Em Pascal, o divertimento consiste, em termos teológicos, natentativa – inevitavelmente frustrada – de satisfazer, mediante aconquistadebensparticulares,umavontadedoinfinitoquepermanecenoserhumanodesdeaqueda.Dessemodo,essaconstantefrustração,aomesmotempoemquecaracterizaamisériadohomem,ésinaldeumagrandezaperdida.ViktorFranklconsiderademaneirasemelhanteaconsciênciahumana:
45 Sur la conversion du pécheur. PASCAL,1963,p.290.46 Ibidem,p.290.47 Ibidem,p.291.48 FERREYROLLES,1995,p.113-114.49 MICHON,1996,p.328.
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Damesmamaneira que o umbigo humano, considerado por simesmo, pareceria sem sentido, porque só pode ser compreendido apartir da pré-história, ou melhor, da história pré-natal do homem,como sendoum“resto”nohomemqueo transcende eo leva à suaprocedênciadoorganismomaterno,noqualestavacontido,exatamentedesta mesma forma a consciência só pode ser entendida em seusentidoplenoquandoaconcebermosà luzdeumaorigemtranscen- dente.50
Algonohomemindicaqueháalgoparaalémdohomem.Abuscaporessealgoalémdesimesmo,queserveparaPascalcomocritériode razoabilidade, conformeexpusemosacima,éparaFranklcritériomesmodeumahumanidadeplena:“Serhumanoéserdirecionadoaalgo que não a simesmo”.51Ainda que não por esse nome, o temadaautotranscendênciaestáclaramentepresentenaanálisepascalianado divertimento, na medida em que o amor próprio é tanto maissatisfeito quantomais o sujeito se diverte, isto é, se desvia de suacondiçãoreal.52Etantomaissedivertequantomenospensanotermoiminente de tododivertimento.Trata-se, em suma, de uma inversãoquebuscananaturezaoqueestádirecionadoinfinitamenteparaalém dela.
Essamesma inversãoFranklaplicaàconsciência.Eparanossoobjetivoémuitorelevanteteremcontaque,paraFrankl,“aconsciênciaé umórgão de sentido.Ela poderia ser definida como a capacidadede procurar e descobrir o sentido único e exclusivo oculto em cadasituação”.53TalvezmaissignificativoaindaéofatodeFranklchamarde irreligioso o homem que não concebe uma instância superior à sua consciência, uma instância da qual a própria consciência seria nãomais que porta-voz.54Disso decorre – e o próprioFrankl assimexplicita–queumcritériodareligiosidadeéjáabuscaporumsentido.DaíFranklreconhecerareligiosidadecomoalgodemodoalguminato, 50 FRANKL,Viktor.A presença ignorada de Deus.7.ed.SãoLeopoldo:Sinodal;Petrópolis:
Vozes, 1992, p. 41.51 FRANKL,2013,p.67.52 Cf.Laf.978.53 FRANKL,1992,p.68.54 Ibidem,p.42:“Ohomemirreligioso,portanto,éaquelequeignoraestatranscendênciadaconsciência.Comefeito,tambémohomemirreligioso‘tem’consciência,assimcomoresponsabilidade;apenaselenãoquestionaalém,nãoperguntapeloqueéresponsável,nemdeondeprovémsuaconsciência”.
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massimprimariamentehumano,istoé,reconhecernoserhumanouma“religiosidade inconsciente”.55
Dadonossoobjetivogeral,éumpassoimportanteagoraconsiderarqueissoqueFranklentendeseradistinçãohumanaporexcelência,asuaautotranscendência,queredundanabuscaporumsentido,podeserfrustrada,easuaausênciasentidasobaformadevazioexistencial.Asemelhança comPascal não se dá unicamente por uma coincidênciaterminológica–àqual,aliás,deve-seacrescentarqueovazioexistencialsemanifestasobaformadetédioeapatia56–,maspelaanálisemesmaqueFranklfazdomododeexpressãodessevazioexistencial:
Existemaindadiversasmáscarasedisfarces sobosquais trans- pareceovazioexistencial.Àsvezes,avontadedesentidofrustradaévicariamente compensada por uma vontade de poder, incluindo sua mais primitivaforma,queéavontadededinheiro.Emoutroscasos,olugardavontadedesentidofrustradaétomadopelavontadedeprazer.Éporissoque,muitasvezes,afrustraçãoexistencialacabaemcompensaçãosexual. Podemos observar nesses casos que a libido sexual assumeproporçõesdescabidasnovazioexistencial.57
A frustração do sentido existencial, isto é, uma repressão dareligiosidadeinconscientedoserhumano,degenera–vemosaqui–napretensãodefazerdopoderoudalibidoumabsolutoquesubstituaatranscendênciadosentido.Falamosacimadaconcupiscênciadoespíritoealudimosbrevementeàrelaçãoentreconcupiscênciaecegueira(ouobstinaçãonopecado).Ora,nadamaisprópriodaconcupiscênciadoqueacegueiraparaoquetranscendeoserhumano,istoé,emPascal,“aconcupiscênciaqueodesvia de Deus”.58Ora,desviaréexatamenteumsentidobastantepróximododivertissement,59quedesviaanossaatenção do vazio interior a ser verdadeiramente preenchido por umsentidoúltimo,tãoinfinitoquantoavontadenaqualdeixouamarcadesuaausência,masnãoaausênciadeseudesejo.Temos,aqui,umdos 55 Ibidem,p.51:“Porconservarocaráterespiritual-existencialdareligiosidadeinconsciente,aoinvésdeatribuí-laàfacticidadepsicofísica,logicamentetorna-setambémimpossívelconsiderá-lacomoalgoinato.Aonossoparecer,areligiosidadenãopodeserinatapornãoestarpresaaobiológico”.
56 Cf.FRANKL,2013,p.107:“Asprincipaismanifestaçõesdefrustraçãoexistencial–tédioeapatia–têmsetornadoumdesafio,tantoparaaeducaçãoquantoparaapsicologia”.
57 FRANKL,Viktor.Em busca de sentido. Umpsicólogonocampodeconcentração.25.ed.SãoLeopoldo:Sinodal;Petrópolis:Vozes,2008,p.132.
58 Laf.269.Grifonosso.59 Cf.PONDÉ,L.F.O homem insuficiente: comentáriosdaantropologiapascaliana.SãoPaulo:EDUSP,2001,p.7.
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aspectosmaisfortementeagostinianosdePascal,motivopeloqualsetornamuitosignificativaaseguintealusãodeFrankl:“[...]transcender-se a simesma é um constitutivo da existência humana. Em termos agostinianos,poderíamosdizerqueocoraçãodohomemnãodescansaatéqueseencontreeserealizeosentidodavida”.60
Agora,talcomofoiocasoquepudemosveremPascal,odenão apenas ser comoquedespertado,pela enfermidade,deumsonocon- cupiscente,masvislumbrarumsentidonessaenfermidade,Frankltam- béminvestigaumsentidonosofrimento.Cabe-nosaveriguaresseponto.
4 Sentido e sofrimento
Acapacidadede realizar um sentidono sofrimento–peloqualseconsideraa tríadedor,culpaemorte–éa terceiramodalidadederealização de sentido – modalidades inclusivas, nunca exclusivas,importantenotar–abordadaporFranklecertamenteamaislongamenteabordada.Emnossocontexto,écertamenteamaisdignadeatenção.Asoutrasduassãoarealizaçãodesentidoatravésdacriação,istoé,atravésdeumaobra,earealizaçãodesentidoatravésdoamorporoutroserhumano,istoé,umsentidomediante“oqueohomemdá ao mundo” e umsentidomedianteoque“ohomemrecebe do mundo, em termos de encontroseexperiências”.61
Quanto à dor, culpa emorte são casos emque a realização dosentidodeixadedependerdeumaalteraçãonasituaçãoemqueosujeitoseencontra–mudançaqueéamiúdeimpossível–epassaaconsistiremumamudançadoprópriosujeito.Paratanto,aterminologiausadaé valor de atitude.Nessecaso,torna-semaisexpressivadoquenuncaaatuaçãodeumaliberdadequesuperatodososcondicionantes,sejamelesbiológicos,psicológicosesociológicos.Radicalmentecontrárioatodoreducionismo,Franklfazquestãodeenfatizarumaliberdadequepermaneceintocávelapesardasmaisatrozescondiçõesexteriores,62 tal 60 FRANKL,2013,p.73.Cf.,ademais,FRANKL,1992,p.52:“Porém,dosrecônditosdeseu ‘inconsciente transcendente’, esta transcendência reprimida emerge àsvezes como‘inquietudedocoração’,quepodeocasionalmentelevaraumaevidentesintomatologianeurótica,istoé,podemanifestar-secomoumaneurose”.
61 FRANKL,2013,p.90-91.Grifosnooriginal.Cf.,ademais,FRANKL,2008,p.136.62 Cf.FRANKL,2008, p. 152: “Antes demais nada, há umperigo inerente na doutrinado‘nadamaisque’aplicadoàpessoa;a teoriadequeoserhumanoé‘nadamaisque’o resultado de condicionantes biológicos, psicológicos e sociológicos, ou produto dahereditariedade e domeio ambiente.Semelhantevisãodo ser humano fazoneuróticoacreditarnoqueelejátendeapensardequalquerforma,asaber,queéumfantoche,vítima
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comoem seupróprio caso comoprisioneironos camposde concen- traçãonazistas.
A respeito da possibilidade de encontrar um sentido em taiscircunstâncias, devemos aqui considerar uma das ideias mais fun- damentaisparanossoobjetivo,adequeparaFrankladescobertadeumsentidono sofrimento,ou seja,osvaloresdeatitude, “constituemosmaisaltosvalorespossíveis.Osentidodosofrimento–doinevitáveleinescapávelsofrimentoemsi,obviamente–constituiomaisprofundosentidopossível”.63
Frankl insiste que há uma relação de proporção direta entre adificuldadedeencontrarumsentidoeaprofundidadedosentidoaserencontrado, o que se evidencia na pergunta por um sentido último,conformeveremosadiante.Emsituaçõesnasquaisháumclarosucessoalcançado–sejanoníveldamerasatisfaçãocorporaloudeumplanomaiselevado,comoaconquistadeumcargoouocrescimentodeumafamília–,osentidopareceestarclaramenteàvista.Agora,nocasodosofrimentoinevitável,aconsciência,órgãodosentido,écomoquedeixadasemo amparo de uma realidade minimamente agradável que quase porsi própria responda pela razoabilidade do rumo dos eventos.Nessecaso,portanto,oencontrodeumsentidonecessariamenteultrapassarátoda realidade imediata e, tal comovimos ser o casodePascal, nãodescansarásenãonovislumbredeumbemeterno.UmadasilustraçõesmaissignificativasqueFranklforneceaesserespeito–embora,ébomlembrar,“emsimesma,alogoterapiaé[seja]umaabordagemlaicadeproblemasclínicos”64–éadeumapacientedeoitentaanosdeidadecom
deinfluênciasexternasoucircunstânciasinternas.Essefatalismoneuróticoéfomentadoereforçadoporumapsicoterapiaquenegaliberdadeàpessoa.Semdúvida,oserhumanoéumserfinitoesualiberdadeérestrita.Nãosetratadeestarlivredefatorescondicionantes,massimdaliberdadedetomarumaposiçãofrenteaoscondicionamentos”.InteressantenotarasemelhançacomoconceitodevontadeemAgostinho,segundooqual,empoucaspalavras,ainversãodaordeminternahumana,istoé,oapetitesubordinadoàrazão,sejaumainversãoemúltimainstânciavoluntária,ouseja,antesdoserhumanoserdominadopor sua animalidade, ele decide livremente por essa dominação, preservada, portanto,a intocabilidade de sua vontade.Que, dada a inversão, já não se possamais atribuirliberdadeaosujeitodesordenado,issoemnadacomprometesuaresponsabilidadeúltima.EmPascal, essaquestão ressurgedemaneirabastanteclaranadiscussãodo jansenistacontra a casuística jesuíta, em especial na IV Provincial. O hábito de pecar em nada diminuiagravidadedopecado,sobaalegaçãodeausênciadeforçapararesistiraele:“Ospecadoresporhábitomerecembemserchamados,emtodorigordotermo,de‘livres pecadores’”.FERREYROLLES,1995,p.96.Grifodoautor.
63 FRANKL,2013,p.97.64 Ibidem,p.152.Paramaisinformaçõesarespeitodarelaçãoentrelogoterapiaeteologia,cf.FRANKL,1992,p.59-65.
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umcâncersobreoqualnenhumtratamentotevesucesso.Emvistadisso,apessoaenvolvidadesenvolveuumadepressão.Noiníciodaentrevista,Franklexplicitaofimpróximodetudooqueapacienteexperimentou.Há,então,umaprimeirareviravolta,quandoFranklprocurafazercomqueasenhorapercebaqueninguémpodeapagarassuasconquistas,nemabondadeencontradaaolongodavida,nemossofrimentossuperados.65 Atéaqui,aplica-seumadasmáximasdeFrankl:“Ser-passadoéaformamais segura de ser”.66
Uma segunda reviravolta – emais significativa para os nossospropósitos–ocorrequandoasenhorarevelatermedodequeseusofri- mentosejaumapuniçãodivina:“Massabe,doutor,euvejomeusofrimentocomoumapunição.EuacreditoemDeus”.AoqueFrankl,procurandopôr-se no lugar da paciente, improvisa as seguintes questões: “Mas,seráque,àsvezes,osofrimentonãoéumdesafio?NãoseriaconcebívelpensarqueDeusquisvercomoAnastasiaKotekosuportaria?Talvez,devendo até admitir: ‘é, ela o suportou bravamente’”.E acrescenta,retornandoàquestãodaperpetuidadedopassado:“Agoramediga:podealguémremovertalconquistadomundo,senhoraKotek?”“Certamente,ninguém pode!”,67respondeasenhora.
TantonessecasocomoemoutrosqueFranklrelataacercadeumamudançadeposturafrenteaofimdeumavidaaoqualseacrescenteaindaosofrimento,parecehaverumamudançadecompreensãodavidaporpartedopaciente.Cabe-nosagora,portanto,perguntaromotivopeloqualFranklusapara taiscircunstânciasaexpressãovalordeatitude, conformealudimosacima.Seocursodascoisasnãopodeseralteradonessescasos,nãoseriamaiscorretofalaremcompreensão,aoinvésdeatitude?
Ora, se o sentido mais profundo se descobre em meio a umsofrimento–emboraFrankl insistaquedemodoalguménecessáriosofrerparasedescobrirumsentido–,arelaçãomaisprofunda–devemosdizer,maisíntima–doserhumanocomosentidosedáemumadecisãolivre.Osentidodeveserdescoberto,masosujeitodevedecidir-seporele,mesmo–etalvezprincipalmente–noscasosemqueessadecisãonão se reflete em nenhuma mudança perceptível exteriormente. Adecisãoé,defato,ocritériomaiordareligiosidade:
65 FRANKL,2013,p.152.66 Ibidem,p.150.67 Ibidem,p.152-153.
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Averdadeirareligiosidadenãotemcaráterdeimpulso,mas,antes,dedecisão.Areligiosidadesemantémpeloseucaráterdedecisão,edeixadeserquandopredominaocaráterdeimpulso.Areligiosidadeouéexistencial,ounãoénada.68
Agora,énaquestãodeumsentidoúltimo,deumsuprassentido,queocaráterexistencialdareligiosidadeatingeoseucume.Paraalémdetodosossentidosparticulares,háumsentidoinfinitoquesedirigeparao fundodapersonalidadehumana, isto é, parao “coração”, emtermospascalianos.Resta-nosaveriguaresseponto.
5 Osentidoinfinitoeaordemdocoração
Aoseaproximardasquestõesacercadeumsentidoqueultrapassetodosossentidosparticulares,Frankl insistena ideiadeque“quanto mais amplo for o sentido, menos compreensível ele se torna”.69 Apesar disso, a buscamesmapor sentido não se detémnos casos limitadose, portanto, acessíveis a nossa compreensão.A incompreensibilidadedetémunicamenteacompreensão,nuncaavontadedesentido.OquetalvezpossaserconsideradocomoumadasmaisfortesevidênciasparaissosãoosresultadosdopróprioFranklnosentidodequeafrustraçãoexistencialseencontraabundantementeemmeioaosucessoprofissionalouàaltaqualidadedevida.70Acrescentem-seaissoosinúmeroscasosdefelicidadenosmeiosmaisadversos.71
A tensão que agora queremos explicitar é a que há entre umaquestão que ultrapassa infinitamente a compreensão humana, isto é,adeumsentidoinfinito,eofatodequeé justamenteessaaquestãomais decisiva para o ser humano.Se levarmos emconta quePascalnuncadesassocia o problemada existênciadeDeusdoproblemadaimortalidade da alma,72entãovalechamaratençãoqueparaojansenista“a imortalidadedaalmaéumacoisaquenos importa tanto,quenostocatãoprofundamente,queénecessárioterperdidotodosentimentoparaestarindiferentequantoasaberqualocaso”.Entretanto,pormais
68 FRANKL,1992,p.50.69 FRANKL,1992,p.90.Grifosnooriginal.70 Cf.,porexemplo,FRANKL,2008,p.125e131.EtambémFRANKL,Um sentido para a
vida:psicoterapiaehumanismo.Aparecida:EditoraSantuário,1989,p.27.71 Cf.FRANKL,1989, p. 15, onde é citadoodepoimentodeumprisioneiro americano,CleveW.:“Aquinaprisão...hámuitasemuitoagradáveisocasiõesdeserútiledecrescer.Narealidadesoumaisútilagoradoqueemqualqueroutraocasião”.
72 Cf.RUSSIER,1949,p.70.
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importantequesejatalquestão,acompreensãohumananãotendeparanenhumlado:“IncompreensívelqueDeusexistaeincompreensívelqueElenãoexista,queaalmaexistacomocorpo,quenósnãotenhamosalma[...]”.73
Opassomais decisivo a respeito de tal tensão entre a finitudeda ordem do espírito e a infinidade da ordem da vontade está naconsideraçãodequeoincompreensível,emboranãopossaserobjetodedemonstração,podeserobjetodecrença,e,maisainda,dacrençamaisdecisivadavidahumana,queéacrençaemumsentidodavidahumana.Umadasformasdesecompreenderque“ohomemultrapassainfinitamenteohomem”74équesepodeacreditarnoincompreensível,ideia que se encontra demaneira praticamente idêntica emPascal eFrankl.75
Devemosacentuarocaráterdedecisãoqueenvolveacrençaemumsentidoúltimodetodaaexistência:
Defato,éimpossíveldescobrirapenaspelointelectose,emúltimaanálise,tudoédesprovidodesentido,ouseexisteumsentidoencobertopor detrás de tudo.Embora nãohaja uma resposta intelectual a estapergunta,épossívelassumirdiantedelaumadecisãoexistencial.Diantedofatodequeéigualmenteconcebívelquetudotenhaumsentido,eque tudosejadesprovidodesentido,ouseja,queosargumentospróoucontraumúltimosentidosemantenhamequilibradosnospratosdabalança,podemosjogaropesodenossoprópriosernopratoafavordosentido,decidindo-nosporumadasduaspossibilidadesdepensamento.76
Agora,paraqueessadecisãotenhaelamesmaalgumefeitosobreavidadosujeitoquedecide,éprecisoque,àadvertênciadadiferençaentreincompreensíveleinacreditável,some-seaadvertênciadequeaausênciaderelaçãoentrehomemeDeusserestrinjaàsegundaordem.À ordem racional, que se aniquila ao não admitir os seus limites,como procuramos expor no início, contrapõe-se uma “faculdade dedesproporção”,77oudo“claro-obscuro”,78qualseja,aordemdocoração,
73 Laf.809.74 Laf.131.75 FRANKL, 1992, p. 90: “o que é incompreensível não precisa necessariamente serinacreditável”.E,emPascal,Laf.“Nemtudooqueéincompreensíveldeixadeexistir”.
76 Ibidem,p.84.Cf.tambémanota(p.91)queFranklescrevearespeitodessapassagem:“Nãoéapartirdeumaleilógica,masapenasapartirdaprofundezadeseupróprioserqueohomemconseguetomaressadecisão,conseguedecidir-seporumououtrocaminho”.
77 Cf.MICHON,1996,p.286.78 Ibidem,p.288.
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cujoalvopróprioéDeus,aindaqueessealvoseapresentesobaformadedesejo.Aqui,aautotranscendênciahumanaconheceoseumaiornível,odaalmaque,reconhecendo“porumaluztodapura”queo“soberanobem”nãoestánascoisasqueestãonela,nemforadela,nemdiantedela,começaaprocuraracimadela”.79Seháumsentidoúltimoaserbuscado,aautotranscendênciaétantomaisexcelentequantoconsistirnaaberturaparaessesentidoúltimo,a talpontoqueaalma“seaniquilaemsuapresença”.80Trata-sedeumaentregatotal,deumaabdicaçãodecisivadeestabeleceremsimesmaasuaidentidade.Éatranscendênciaprópriadeumserproduzidounicamenteparaoinfinito.
NãopoderíamosdeixardecitaraquiumapassagemnaqualFranklsevaledopróprioPascalparaexplicaremqueconsistearelaçãoentrealimitaçãodacompreensãohumanaeaquestãodeumsentidoúltimo:
Quantomaisabrangenteforumsentido,maisdifícilseráapreendê-lo.Osentidoinfinitonemestáaoalcancedacompreensãodeumentefinito.Neste ponto a ciência desiste e a sabedoria toma a palavra, asabedoria do coração, da qual Blaise Pascal afirmou certa vez: “Ocoraçãotemrazõesquearazãonãoconhece”.Mesmoosalmistafalade uma sapientia cordis(Salmo89).
Defato,ocoraçãoemPascaltambémtemasuafunçãocognitiva,maispropriamentecompreendidacomointuição.Trata-se,porém,emoposiçãoàrazão,deumaapreensãoincompleta,ummeiotermoentreaausênciaeapresença,meiotermoquepermitejustamenteodesejoeabusca–masquepermitetambéma“confusão”deamarinfinitamenteofinito.Seosentidodenossaexistêncianãoestátotalmenteausentenemtotalmentepresente,éjustamenteissoquenospermiteperguntarporele,buscarporele,enosenganarquantoaele.Essaúltimahipótese,porém,éaindamelhordoqueadenãoinvestigarnadaaesserespeito,queéahipótesequeentendemosseraapatiasobrenaturaldaqualfalamosnoinício.
AintuiçãoàqualnosreferimoséilustradadiversasvezesporFranklmedianteanoveladeTolstóiintituladaA morte de Ivan Ilitch,naqualsenarraoquesepodedescrevercomoadescobertadeumsentidoapósumavidaapáticaparatudooquetranscendesseasconveniênciassociaismaisimediatas.Quandoamortesetornaiminente,háumareviravoltaqueFranklassimdescreve:
79 Sur la conversion du pécheur.PASCAL,1963,p.291.80 Ibidem,p.291.ArespeitodaaberturaemFrankl,bemcomodoperigodeseencerraroserhumanoemprocessosdecondicionamento,cf.FRANKL,1989,p.47-48.
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Maspor uma intuição ele percebe, não apenas ao confrontar amorte,masaodar-secontadequehaviadesperdiçadoavida,quesuaexistênciaforapraticamentesemsentido–porestaintuiçãoeleseelevaacimadesimesmo,cresceparaalémdesieassimfinalmenteécapazderetroativamenteencheraprópriavidacomumsentidoinfinito.81
Nãopoderíamosexigirmaisconformidadecomaalmaquesuplica:“[...]tendovividonaamargurademeuspecadosduranteapaz,[que]euaprecieasdoçurascelestesdeVossagraçaduranteosmalessalutarescomosquaisVósmeafligis”.82
Conclusão
Abuscafirmementedecidida,umabuscadetodocoração,porumDeus absconditus,noqualsecompletaosentidoúltimodaexistência,éaexpressãomaisperfeitadaimperfeiçãohumana:aimperfeiçãodeumsercujorepousoestáemumDeusque,aindaquerejeitado,inquietaocoraçãohumano.Essainquietude,porsuavez,emvistadafaltadeclarezadesuaorigem,podetantoresultarnabuscaporsentidoquantonacaçadeumalebre.
Ora, nem uma das duas buscas será plenamente satisfeita. Ocaçadorlogoseentediaráquandoalcançaralebree,então,partiráatrásdeoutra,umavezqueoqueelebuscaéaprópriabuscaquepordefiniçãonãosepodealcançar.OhomemquebuscaDeus,porsuavez,tampoucopoderápossuí-Locompletamente.Mas,éessaimpossibilidademesmaque decide a diferença entre os dois casos: no primeiro, umabuscafracassadaporumobjetoimpróprioàvontadequebusca;nosegundo,uma busca eternamente realizada pelo único ser que corresponde àvontadeinfinitaqueobusca.Nosdoiscasos,ohomemtranscendeasipróprio,comadiferençadequeapenasnosegundoessatranscendênciaéumaaberturaparasuaidentidadeúltima,umadecisãoconformeaumserconscientedesuavidafinitaedesejosodeumsentidoinfinito.Diantedesseúltimo,porém,afinitudemesmadohomemjásetransfigurafaceàeternidadequeaprecedeequeaguardaasuadecisão,aqualnãopoderáconsistirnoresultadodeumexercíciodarazão,massomenteemumatodefé:“Nãoconseguimosrelacionar-noscomessesuprassentidoemsolopuramenteracional,mas,apenas,emsoloexistencial,atravésde
81 FRANKL,1989,p.84.82 Prière pour demander a Dieu le bon usage des maladies.PASCAL,1963,p.362.
Teocomunicação, Porto Alegre, v. 44, n. 3, p. 396-417, set.-dez. 2014
417A apatia sobrenatural e a vontade de sentido
todonossoser,istoé,pormeiodafé”.83 “Através de todo nosso ser”, querdizer,domaisprofundodenossapersonalidade:84umadecisãoporAquelequequerserdescobertoporaqueles“queoprocuramdetodoocoração”.85
Referências
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Recebido:18/07/2014Avaliado:25/07/2014
83 FRANKL,2013,p.181.84 Arespeitodarelaçãoentrecoraçãoefundodoserhumano,cf.RUSSIER,1949,p.156.85 Laf.149.Cf.tambémMICHON,1996,p.288:“Pascalprivilegiadetalmodoestepontoque a fé se torna para ele um ato essencialmente devido à vontade: ela podemesmoserdefinidacomoodesejodeDeus,poiselaéumatensãoparaAquelequenãoénemtotalmente presente nem totalmente ausente”.