Dívida soberana: Heranças clássica e bíblica em "Desejo Sob os Ulmeiros", de Eugene O’Neill, e...

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FACULDADE DE LETRAS

UNIVERSIDADE DO PORTO

Pedro Miguel Meleiro Sobrado

2.º CICLO DE

Heranças clássica e bíblica em

de Eugene O’Neill, e notícia de duas encenações em Portugal

Orientador: Professora Doutora Isabel Morujão

Classificação: Ciclo de estudos:

Dissertação:

Pedro Miguel Meleiro Sobrado

ICLO DE ESTUDOS EM ESTUDOS DE TEATRO

Dívida soberana Heranças clássica e bíblica em Desejo Sob os Ulmeiros

Eugene O’Neill, e notícia de duas encenações em Portugal

2014

Orientador: Professora Doutora Isabel Morujão

Classificação: Ciclo de estudos: 19

20

Desejo Sob os Ulmeiros,

Eugene O’Neill, e notícia de duas encenações em Portugal

Versão definitiva

Resumo

Em 1924, Eugene O’Neill estreou Desejo Sob os Ulmeiros, folk tragedy que representou o ápex da

primeira fase da sua produção dramática e outorgou ao proclamado fundador da moderna dramaturgia

norte-americana uma estatura internacional. Impugnando a despótica centralidade do argumento

biografista e clínico na interpretação da peça, a presente dissertação pondera as relações intertextuais que

ela estabelece, por um lado, com a tragédia clássica e, por outro, com as narrativas sagradas. Mais do que

um levantamento exaustivo de paralelismos, citações e ressonâncias, procura-se compreender como os

arquétipos clássicos e bíblicos operam no interior do texto o’neilliano e quais as suas consequências, em

termos de expressividade dramática e de sentido. Se o Hipólito de Eurípides se afigura a raiz de Desejo

Sob os Ulmeiros – serve-lhe de eixo e modelo –, a simbólica bíblica manifesta-se rizomaticamente: é

acentrada, plural, dinâmica. Sendo o teatro uma “arte a dois tempos” (Henri Gouhier), que reclama o

devir cénico dos seus textos, a nossa reflexão é complementada pela avaliação da posteridade de Desejo

Sob os Ulmeiros no teatro português, através da análise de encenações de João Lourenço (1990) e, em

especial, de Nuno Cardoso (2011).

Palavras-chave: Eugene O’Neill, Desejo Sob os Ulmeiros, Drama Americano, Tragédia Clássica,

Eurípides, Hipólito, Bíblia, Teatro Português, João Lourenço, Nuno Cardoso

Abstract

In 1924, Eugene O’Neill premiered Desire Under the Elms, a folk tragedy that marked the high point of

the first phase of his dramatical production and conferred international status on the proclaimed founding

father of modern American drama. Challenging the despotic centrality of the biographical and clinical

argument in the interpretation of the play, this dissertation considers its intertextual relations with

classical tragedy, on the one hand, and with sacred narratives, on the other. Not just an exhaustive survey

of parallels, citations and resonances, this work aims to examine how classical and biblical archetypes

operate within O’Neill’s text, and how they effect its dramatic expressiveness and meaning. If Euripides’

Hippolytus seems to lie at the root of Desire Under the Elms – serving as a fulcrum and a model –, the

biblical symbolism operates rhizomatically, being eccentric, plural and dynamic. Understanding theatre as

an “art à deux temps” [art in two steps] (Henri Gouhier) that demands the actual staging of the text, our

reflexion is supplemented by a look at how posterity has treated Desire Under the Elms in the context of

Portuguese theatre. We analyse the staging of the play by João Lourenço (1990) and, particularly, by

Nuno Cardoso (2011).

Keywords: Eugene O’Neill, Desire Under The Elms, American Drama, Greek Tragedy, Euripides,

Hippolytus, Bible, Portuguese Theatre, João Lourenço, Nuno Cardoso

- 3 -

Índice

Agradecimentos………………………………………………………………………….4

Introdução………………………………………………………………………………..8

1. Uma dramaturgia na primeira pessoa………………………………………………..13

2. Herança clássica

Limiar……………………………………………………………………...……21

2.1. Uma tragédia por escrever…………………………………………………23

2.2. Núpcias de morte…………………………………………………………..27

2.3. Caracteres de uma primitiva escrita………………………………………..36

2.4. The Force behind…………………………………………………………..45

3. Herança bíblica

Limiar…………………………………………………………………………...55

3.1. Pedras de tropeço…………………………………………………………..58

3.2. Trinta moedas, e um prato de lentilhas…………………………………….64

3.3. Máquina de emaranhar paisagens………………………………………….71

4. Notícia de duas encenações em Portugal

4.1. Muito cuidado com o teatro………………………………………………..77

4.2. Ecos do primeiro Desejo – a encenação João Lourenço…………………...82

4.3. O som e a fúria – a encenação de Nuno Cardoso………………………….88

Conclusão……………………………………………………………………………..107

Bibliografia……………………………………………………………………………114

Anexos………………………………………………………………………………...120

- 4 -

Agradecimentos

À Professora Isabel Morujão, que me demonstrou que uma orientadora pode albergar em si uma

pequena multidão: professora, psicóloga, amiga, cúmplice (quase no sentido criminal!), personal trainer,

sage… Não fossem o seu saber e ânimo (apetece dizer: a sua gaia ciência), a minha errática conduta

académica teria conduzido a nenhures. A nossa demanda pela História de Deus de Gil Vicente deixou de

ser passível de breve sumário numa dissertação de mestrado: partindo dessa pedregosa terra do demo

(“terra que tenho de cardos e de pedras/ que vai desde Sintra até Torres Vedras…”), vimo-nos chegados à

puritana Nova Inglaterra de O’Neill, onde God’s hard, not easy.

Ao Teatro Nacional São João – nas pessoas dos seus Administradores Francisca Carneiro Fernandes,

Salvador Santos e José Matos Silva e do seu Diretor Artístico, Nuno Carinhas –, instituição onde tenho

o privilégio de trabalhar e que pronta e generosamente me apoiou; à Paula Braga e ao ‘seu’ Centro de

Documentação, em cujas estantes encontrei boa parte da minha biblioteca.

À Professora Alexandra Moreira da Silva, pelo desafio que me lançou para cursar este Mestrado de

Estudos de Teatro, arduamente planeado com Paulo Eduardo Carvalho, e por tudo o que com ela – e ele

– aprendi. À Professora Marta Várzeas, pela atenção que dedicou a um trabalho preliminar sobre a

afinidade entre o Desejo o’neilliano e o Hipólito euripidiano, formulando recomendações que, pelo seu

acerto, não pude senão aproveitar. Agradecimento devido também pelos posteriores esclarecimentos

sobre alguns aspetos da cultura clássica.

Ao meu dedicado amigo Nuno Moreira , exemplar investigador desta Casa, no qual estas páginas

encontraram o mais entusiasmado leitor a que poderiam aspirar. Ao Ricardo, que não leu, mas creu –

bem-aventurado!

À Vera San Payo de Lemos, que amavelmente se dispôs a fornecer-me elementos sobre a encenação de

Desejo Sob os Ulmeiros realizada por João Lourenço, e à Joana Grande, do Teatro Aberto, pelo expedito

envio de artigos e imagens. Ao David Antunes, pela pronta cedência das suas traduções de Nevoeiro e

Sede. Ao João Tuna, pelas fotografias que fazem a nossa memória de espectadores.

Ao Nuno Carinhas, que me inventou como ‘dramaturgista’: a sua amizade e confiança valem-me mais

do que um grau académico. Ao João Luís Pereira, colega de carteira nas Edições do TNSJ, o

espectador emancipado que, em boa medida, me iniciou no Teatro.

À Abigail (a minha tão assisada Abbie!), a quem gostaria de devolver o tempo de vida que este curso de

mestrado, ou melhor, que a minha dispersão, indisciplina e vis inertiae criminosamente lhe subtraíram.

- 5 -

Aos meus pais, Ernesto e Leonor,

e aos meus irmãos, Jorge e Susana.

- 6 -

Indicações de leitura

Os passos de Desejo Sob os Ulmeiros transcritos nesta dissertação provêm de uma

tradução de Jorge de Sena, realizada no final da década de 1950 e disponível numa

edição das Publicações Europa-América. Tendo em conta o número de citações,

optamos por não incluir em rodapé qualquer nota, indicando entre parênteses retos o ato

e a cena a que cada uma diz respeito e remetendo para a bibliografia final o crédito

editorial. O mesmo se aplica à tradução do Hipólito, da autoria de Frederico Lourenço.

No que se refere às peças de Eugene O’Neill, nomeamos o título da tradução portuguesa

mais recente ou familiar (sinalizando, na primeira menção, o título original entre

parênteses retos e o ano da sua estreia); nos casos em que as peças não foram traduzidas

para edição ou cena, mencionamos o título original.

A quase totalidade das citações de ensaios, biografias e obras especializadas sobre

Eugene O’Neill e Desejo Sob os Ulmeiros provém de obras publicadas em língua

estrangeira. Optamos por incluir esses passos numa tradução da nossa responsabilidade

(exceto quando indicado), remetendo para rodapé as respetivas referências

bibliográficas.

Em relação às citações bíblicas, privilegiamos, de um modo geral, a versão da Bíblia

Sagrada da Difusora Bíblica (Franciscanos Capuchinhos), publicada pela primeira vez

em 1998. Em alguns casos, por razões estritamente literárias, citamos a tradução da

Bíblia realizada, no século XVII, por João Ferreira d’Almeida, um improvável

protestante português na ilha de Java.

- 7 -

A gente não sabe o lugar certo de colocar o desejo.

CAETANO VELOSO, “Pecado Original” (1978)

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Introdução

EBEN: Eu sou… o herdeiro.

EUGENE O’NEILL, Desejo Sob os Ulmeiros

“A obra dramática de Eugene O’Neill é a de um herdeiro.”1 Assim inicia Jean-

Pierre Sarrazac o ensaio que dedicou ao dramaturgo norte-americano nascido em 1888 –

o mesmo ano que viu nascer Fernando Pessoa, como lembrou Jorge de Sena2 – e

desaparecido em 1953. A proposição do dramaturgo e ensaísta francês considera

naturalmente o pesado legado familiar de O’Neill, a sua manifesta impossibilidade em

romper o vínculo parental, uma memória da infância impossível de rasurar. Mas Jean-

Pierre Sarrazac não tem apenas em mente aquilo que tem sido explorado ad nauseam

por comentadores e comentadores de comentadores: se é possível classificar Longa

Jornada para a Noite [Long Day’s Journey Into Night, 1956] como a obra de um

herdeiro é porque O’Neill se apropria de um legado que é tão desejado quanto a

herdade – palavra que é sinónima de herança – disputada pelas personagens de Desejo

Sob os Ulmeiros [Desire Under the Elms, 1924]. Referimo-nos aos grandes dramaturgos

da viragem do século, de que a obra desse eterno filho é altamente devedora: Tchékhov,

Ibsen, Strindberg. Particularmente, Strindberg, de quem recebe o método da confissão

dramática. Nota Sarrazac: “Strindberg, cuja encenação conjugal, atravessada por uma

torturante nostalgia de fusão com a mulher – ou com a mãe –, serve de modelo

permanente às peças de O’Neill, funciona para o escritor americano de origem irlandesa

como tutor ou pai.”3

A presente dissertação vasculha a herança de que Eugene O’Neill tomou posse –

aquela porção que o legatário investiu na composição de um drama que, segundo o

parecer unânime da crítica, certifica a maioridade do dramaturgo: Desejo Sob os

1 Jean-Pierre Sarrazac, “Le Roman Dramatique Familial de Eugene O’Neill”, in Théâtres Intimes, Paris,

Actes Sud, 1989, p. 47. 2 Vide Jorge de Sena, “O Testamento de Eugene O’Neill”, in Do Teatro em Portugal, Lisboa, Edições 70,

1989, p. 383. 3 J.-P. Sarrazac, “Le Roman Dramatique Familial de Eugene O’Neill”, op. cit., p. 47.

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Ulmeiros.4 Este inventário crítico não visa o levantamento dos elementos da tradição

teatral mencionados por Jean-Pierre Sarrazac – a avaliação do legado strindberguiano é

exterior ao âmbito deste trabalho –, mas antes o estudo da apropriação, por parte de

O’Neill, de uma dupla e vasta herança: clássica e bíblica, grega e judaico-cristã.

Realizada, pois, no capítulo inicial, uma breve apreciação do argumento biográfico e

clínico na receção crítica da peça estreada em Novembro de 1924, detemo-nos mais

demoradamente, no segundo capítulo, sobre a ambição primeira do dramaturgo norte-

americano (“recriar o espírito grego foi a meta que fixou para si mesmo”,5 assinalou

Egil Törnqvist); o modo como tal aspiração se cumpre (ou não) em Desejo Sob os

Ulmeiros; as ressonâncias dos mitos de Édipo e Medeia contidas na peça; e, muito

especialmente, a homologia estrutural entre este American classic e o Hipólito de

Eurípides, “o mais trágico dos poetas trágicos”, na célebre definição de Aristóteles.6

Depois de considerada a raiz trágica de Desejo, debruçar-nos-emos, no terceiro

capítulo, sobre o rizoma bíblico7 que se propaga no seu enredo. Mobilizando a

simbólica e a imagística das Escrituras, bem como algumas das suas narrativas (em

particular, a de Jacob e Esaú), procurar-se-á expor o conflito e as personagens a uma

outra luz, não para acrescentar mais um item ao já copioso rol de fontes invocadas a

4 Desse consenso cite-se, a título de exemplo, o clássico Contour in Time (1972) de Travis Bogard, autor

desaparecido em 1997 que continua hoje a ser estimado como um dos mais consistentes investigadores da

obra de Eugene O’Neill: “[Desejo Sob os Ulmeiros] atinge uma perfeição de conteúdo e de forma que

nenhuma peça anterior do escritor tinha alcançado. É uma obra de arte criada por um dramaturgo que, ao

dominar o seu ofício e ao compreender cabalmente as implicações do tema, atinge finalmente a

maioridade.” Travis Bogard, Contour in Time, in eONeill.com: An Electronic Eugene O’Neill Archive

[em linha]. Disponível em www: <URL: http://www.eoneill.com/library/contour/triumvirate1/desire.

htm˃ [consult. 13-05-2012]. 5 Egil Törnqvist, “O’Neill’s philosophical and literary paragons”, in Michael Manheim (ed.), The

Cambridge Companion To Eugene O’Neill, Cambridge, Cambridge University Press, 1998, p. 19. 6 “Foi Aristóteles que, para descrever o teatro de Eurípides, dotou o adjetivo ‘trágico’ de uma forma do

superlativo absoluto sintético: tragicíssimo (tragikótatos). O mais trágico dos poetas trágicos”. Frederico

Lourenço, “Eurípides: Trágico no Superlativo”, in Grécia Revisitada: Ensaios sobre Cultura Grega,

Lisboa, Cotovia, 2004, p. 58. 7 Raiz e rizoma: conceitos epistemológicos tematizados por Guattari e Deleuze que explicitaremos no

decurso deste trabalho, bem como na nossa conclusão. Vide Gilles Deleuze/Felix Guattari, Mille

Plateaux, Paris, Les Éditions de Minuit, 1980.

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propósito de Desejo Sob os Ulmeiros, nem talvez para produzir mais significado, mas,

se nos for possível, para perceber melhor como é aquilo que é.8

Apesar de a estrutura do estudo ser praticamente simétrica na apreciação dos

dois espólios simbólicos e narrativos, tendemos a considerar o capítulo relativo aos

valores bíblicos como especialmente relevante e necessário: um tal parecer não decorre

da presunção dos méritos intrínsecos desse trabalho em particular, nem sequer do

pressuposto de que a quota-parte do legado proveniente das Sagradas Escrituras se

revela mais decisiva na compreensão da peça do que aquela que provém das tragédias

da Antiguidade. A razão é diversa: enquanto a matriz clássica de Desejo adquiriu, no

decurso dos anos, contornos de ‘evidência’ – críticos e investigadores não hesitam em

classificá-la como “a primeira tragédia de relevo a ser escrita na América”9 ou em tomá-

la como a “refutação do axioma de que a tragédia é uma proeza impossível para os

dramaturgos modernos”10 –, a simbólica bíblica manifesta-se de modo obscuro e difuso,

sendo geralmente objeto de referências breves ou de pontuais e dispersivos comentários.

Nisto, o próprio dramaturgo desempenhou o seu papel, pois as descrições que foi

fornecendo da peça, bem como a sua aspiração a ser lido como um tragediógrafo,

favoreceram a ênfase crítica sobre os arquétipos clássicos. Por seu turno, as citações e

alusões bíblicas disseminadas pela superfície do texto dramático acabam por

desencadear um efeito de despistagem, dando a ler-se como decorativas alusões que

viriam apenas introduzir um novo grau de verosimilhança numa peça inscrita na Nova

Inglaterra de 1850, profundamente marcada pelo puritanismo e a sua tradição político-

teológica. Como tentaremos demonstrar, a influência do Livro dos Livros transcende

largamente uma função ornamental ou o papel de adereço, infundindo na ficção teatral

de O’Neill uma fulgurante energia dramática. É nesse arsenal simbólico, teatro do

natural e do sobrenatural ou atlas do humano – the Great Code of Art, na famosa

8 O que aparenta ser um humilde desígnio pode revelar-se a maior das arrogâncias. No texto, aludimos a

um passo de “Contra a Interpretação”, ensaio de Susan Sontag que marcou uma época: “A função da

crítica devia ser mostrar como é o que é, ou mesmo que é o que é, em vez de mostrar o que significa.”

Susan Sontag, “Contra a Interpretação”, in Contra a Interpretação e Outros Ensaios, trad. José Lima,

Lisboa, Gótica, 2004, p. 32. 9 T. Bogard, Contour in Time, op. cit. 10 Margaret Loftus Ranald apud Stephen A. Black, Eugene O’Neill: Beyond Mourning and Tragedy, New

Haven/London, Yale University Press, 1999, p. 318.

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definição de William Blake11 – que se encontrará o sentido e o nexo de várias cenas

nucleares de Desejo Sob os Ulmeiros e de feições particulares das suas personagens em

carne viva.

Diremos, em suma, que este trabalho visa associar ao legado ático, no interior do

qual Eugene O’Neill programaticamente se move, uma outra herança, que vem

capitalizar decisivamente a empresa do dramaturgo americano. É nossa convicção que,

na composição de Desejo Sob os Ulmeiros, O’Neill é fortemente atraído por aquilo que

George Steiner chama “o magnetismo dual da Atenas pagã e da Jerusalém hebraica”.12

Como o autor de A Morte da Tragédia e de Depois de Babel, o dramaturgo também

poderia dizer: “Venho depois de Atenas e depois de Jerusalém. Todos nós vivemos no

interior desta dupla herança.”13 Se, de facto, como sugere Sarrazac, herdeiro é o epíteto

justo para descrever O’Neill, é também porque no seu labor dramatúrgico se apropria

desses atos de fala fundadores da nossa ‘civilização’, textos que, através dos séculos,

mantêm intacta toda a sua força germinativa. Escreve o triestino Claudio Magris:

“Heine dizia que houve dois povos na história do mundo, ou pelo menos do Ocidente,

os judeus e os gregos, que expressaram a essência da vida para todos e para sempre.

Com efeito, a Bíblia – Antigo e Novo Testamentos – e a tragédia e o mito gregos

continuam a fornecer-nos as chaves e as imagens para compreender quem e o que

somos, a culpa e a salvação, o exílio e o regresso”.14

Em relação a esta herança, Eugene O’Neill bem poderia argumentar nos termos

em que Eben se refere a Minnie: “Possuí-a. Pode ter sido dele… e vossa também… Mas

agora é minha!” [I Parte, Cena 3].

Poderíamos, talvez, ficar-nos por aqui. Sucede, porém, que todo o verdadeiro

texto dramático clama pela cena, pela teatralidade, e que, por outro lado, o

acontecimento teatral – a encenação, a representação, o jogo do ator – transcende uma

mera operação de transferência do papel para o palco. Patrice Pavis explica que a

11 Apud Northrop Frye, The Great Code: The Bible and Literature, New York, Harcourt Brace

Jovanovich Publishers, 1983, p. xvi. 12 George Steiner, A Ideia de Europa, trad. Maria de Fátima Aubyn, Lisboa, Gradiva, 2005, pp. 41-42. 13 George Steiner/Ramin Jahanbegloo, Quatro Entrevistas com George Steiner, trad. Miguel Serras

Pereira, Lisboa, Fenda, 2006, p. 105. 14 Claudio Magris, “El Alfabeto del Mundo”, in Alfabetos: Ensayos de Literatura, trad. Pilar González

Rodríguez, Barcelona, Anagrama, 2010, p. 24.

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encenação não corresponde à “redução ou transformação de um texto em espetáculo,

mas antes ao seu confronto”, ou seja, à aptidão de “pôr o texto sob uma tensão

dramática e cénica”.15 Por essa razão, num capítulo final, damos notícia das duas únicas

encenações profissionais de Desejo Sob os Ulmeiros realizadas, com vinte anos de

distância, em Portugal, por destacados criadores teatrais de diferentes gerações: João

Lourenço (n. 1944), do Novo Grupo/Teatro Aberto, e Nuno Cardoso (n. 1970), da

companhia Ao Cabo Teatro. Da primeira encenação, produzida em 1990, tomámos

conhecimento através de documentos da época (imprensa, fotografias, programa de

sala); da segunda, socorremo-nos do mesmo tipo de recursos, bem como de um registo

vídeo de plano fixo, mas beneficiamos sobretudo desse arquivo intempestivo que é a

nossa memória de espectadores.16 Invocando, pois, duas categorias tematizadas por

Patrice Pavis, diremos que, no primeiro caso, ensaiaremos um breve exercício de

reconstituição da representação a partir dos “resíduos do ato teatral”;17 no segundo,

fundamo-nos sobre a “experiência individual e única do espectador confrontado com o

acontecimento cénico”.18 No que diz respeito à encenação de Nuno Cardoso, para além

deste indispensável contacto direto com o espetáculo finalizado – nas palavras de Pavis,

a “regra de ouro” da análise da criação teatral –, foi-nos ainda dado assistir a ensaios,

em momentos distintos do processo de criação. Daí que a reflexão sobre esta segunda

encenação de Desejo Sob os Ulmeiros possa expandir-se significativamente para além

da simples nótula histórica. Digamos que, ao ponderarmos as diversas escolhas e

escolas em jogo nas duas produções, é nossa intenção bifurcar o itinerário das

interpretações e, mesmo que modestamente, evidenciar o homem de teatro que – desde

os primeiros dias nos Provincetown Players de Massachusetts até à colaboração final

com o nova-iorquino Theatre Guild – Eugene O’Neill também foi.

15 Patrice Pavis, “From Stage to Page: A Difficult Birth”, in Theatre at the Crossroads of Culture, trad.

Loren Kruger, London/New York, Routledge, 1992, pp. 26, 30. 16 Eugenio Barba advoga que a experiência teatral escapa aos media e diz sobretudo respeito à memória

do espectador: “Na época da memória eletrónica, do filme e da reprodutibilidade, o espetáculo teatral

dirige-se à memória viva, a qual não é um museu, mas metamorfose”. Apud Patrice Pavis, L’Analyse des

spectacles, Domont, Armand Colin, 2008, p. 43. 17 Idem, p. 21. 18 Idem, p. 22.

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1. Uma dramaturgia na primeira pessoa

Desculpem-me não ser simpático, mas acabo de chegar do Inferno.

BENJAMIN DE CASSERES, sobre o semblante de Eugene O’Neill19

Existências como a de Eugene O’Neill – marcadas pelo excesso e pelo ferrete do

trágico – tornam irresistível o exercício crítico que consiste em ler a obra à luz da vida,

em escandir toda uma literatura diversa ao ritmo dos mesmos factos de uma existência.

Apesar de, no princípio da década de 70, Louis Sheaffer ter empreendido, em dois

volumes galardoados com o Prémio Pulitzer, um trabalho biográfico de uma amplitude

e minúcia praticamente insuperáveis, no caso do dramaturgo norte-americano, o passado

é tão funestamente transbordante, que é seguro afirmar que cada biógrafo ou crítico terá

direito ao seu quinhão de conjeturas e correspondências. Objetar-se-á que uma tal

estratégia interpretativa se revela não apenas altamente sedutora, mas efetivamente

necessária, tendo em consideração que é da vida que toda a escrita de O’Neill

umbilicalmente se alimenta: que outro tópico é no seu teatro objeto de tão obsessivas

cogitações e ruminações quanto o familiar, nomeadamente o relacionamento entre pais e

filhos? À semelhança do Conrad de O Coração das Trevas, autor que prezava

imensamente, Eugene foi marinheiro e viajante experimentado, mas, de certo modo,

nunca chegou a sair de casa, a deixar pai e mãe. Também é verdade que nunca chegou a

ter uma casa, e esse tornou-se o problema nodal do seu teatro.20 Perguntamos de novo:

se o seu teatro testemunha a espetacularidade do íntimo, se participa de uma estética do

buraco de fechadura – como diria Nelson Rodrigues, “anjo pornográfico” que tanto

19 Apud Barrett H. Clark, Eugene O’Neill: The Man and His Plays, New York, Dover, 1947, p. 40. 20 A culpa que Mary imputa ao marido, James Tyrone, dá conta desse vazio ardente em torno do qual

volteiam os dramas o’neillianos: “[O teu pai] viveu demais em hotéis. E claro que nunca nos melhores.

Sempre em hotéis de segunda ordem. Não compreende o que é um lar. Nem se sente à vontade nele. E, no

entanto, anseia por um lar. Chega a ter orgulho neste buraco miserável.” Mais adiante, referindo-se às

criadas, censura de novo o marido: “Não é justo esperar que a Bridget ou a Cathleen se comportem como

se isto fosse uma casa de verdade. Sabem que o não é, tão bem como nós. Nunca foi e nunca o há-de ser.”

Especialmente eloquente é a declaração que Edmund (o avatar de Eugene em Longa Jornada) faz no ato

derradeiro: “Serei sempre um estranho que nunca se sente em sua casa, que realmente não quer, nem é

querido, que não pertence a isto, que tem de estar sempre um pouco de amores com a morte!” Eugene

O’Neill, Jornada para a Noite, trad. Jorge de Sena, Lisboa, Cotovia, 1992, pp. 78, 88, 170.

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admirava O’Neill21 –, recusar a chave biográfica ou íntima não constituirá um

contrassenso? Poder-se-á mesmo supor que, involuntariamente, o dramaturgo fomentou,

a título póstumo, uma semelhante voragem – poderíamos mesmo dizer, devassa –

biográfica, com uma peça como Longa Jornada para a Noite, cuja publicação O’Neill

remeteu expressamente para um momento ulterior à sua morte e que rapidamente se

revelou o seu maior feito literário. O receio de que, um dia, alguém viesse a “saber de

nós” e escrevesse “qualquer coisa vulgar e melodramática sobre o assunto” – ou, terror

dos terrores, “uma peça”! – levou o dramaturgo americano a antecipar-se, compondo

um drama-exorcismo, testamento dramático escrito com “lágrimas e sangue”, no qual

expõe o “inferno que cada membro da família suportou”.22 Medida profilática que

redundou, afinal, numa reação paradoxal, multiplicando toda a sorte de suposições e

bisbilhotices sobre a vida privada e o passado familiar de O’Neill. Dir-se-ia que, a partir

de Longa Jornada, todas as suas peças se tornaram retroativamente autobiográficas.

Desejo Sob os Ulmeiros, peça escrita em 1924 que consagrou O’Neill como um

dramaturgo de primeira água e lhe outorgou uma estatura internacional, não escapou à

compulsão biografista de cariz clínico: em 1957, três anos após a morte do dramaturgo,

um psiquiatra nova-iorquino de filiação freudiana, Philip Weissman, tratou de

estabelecer para a posteridade um conjunto de conexões entre as peças de O’Neill e

alguns traços marcantes da sua vida pessoal. Na omnisciência psicanalítica de

Weissman, Longa Jornada para a Noite constitui uma projeção “consciente” da história

familiar de O’Neill, enquanto Desejo Sob os Ulmeiros configura “um drama

autobiográfico inconsciente”.23 Uma tese que parecia ser ratificada pelo próprio autor

21 Ruy Castro alude a essa admiração num determinado passo da biografia O Anjo Pornográfico:

“[Nelson Rodrigues] tinha medo de que não entendessem que Vestido de Noiva podia ter sido escrito em

seis dias, mas tinha levado anos maturando em sua cabeça. Além disso, ouvira dizer que seu ídolo Eugene

O’Neill escrevia devagar e reescrevia mais devagar ainda. E ele, que nem reescrevia? Não tinha culpa se,

quando se sentava para trabalhar, já sabia o que iria fazer.” Mais adiante, o biógrafo do escritor brasileiro

assinala: “Senhora dos Afogados era inspirada em O Luto Assenta a Electra, de O’Neill […].” Ruy

Castro, O Anjo Pornográfico: A Vida de Nelson Rodrigues, São Paulo, Companhia das Letras, 1992, pp.

177-178, 252. 22 Apud Louis Sheaffer, O’Neill: Son and Artist: Volume II, New York, Cooper Square Press, 2002, p.

505. 23 Philip Weissman, “Conscious and Unconscious Autobiographical Dramas of Eugene O’Neill”, in

Journal of the American Psychoanalytic Association, V, July 1957, p. 432. Disponível em www: <URL:

http://apa.sagepub.com/content/5/3/432˃ [consult. 17-05-2012]. Não deixa de ser curioso assinalar que

- 15 -

numa carta datada de Fevereiro de 1925, na qual, apesar de desdenhar dos méritos de

Freud, aventava, talvez com uma irritação mal contida, a seguinte hipótese: “Se existe

qualquer freudismo no Desejo, o mais certo é que tenha entrado diretamente ‘através do

meu inconsciente’.”24 Mas trata-se apenas de uma hipótese, e bem vacilante, se dermos

crédito a uma confissão de O’Neill, feita em 1928, três décadas antes de o psiquiatra de

Nova Iorque formular a tese de uma autobiografia inconsciente: I have always loved

Ephraim so much! He’s so autobiographical!25 O conhecimento prévio de uma tão

desassombrada declaração de amor ao titã puritano que constitui um dos vértices –

também poderíamos dizer ‘vórtices’ – do infame triângulo de Desejo Sob os Ulmeiros

seria suficiente para perturbar a supina ingenuidade que subjaz à ideia de uma

involuntária e inapercebida projeção biográfica.26 Declaração, de resto, bastante

intrigante, pois parece ainda descompor os intérpretes que, como Weissman, se

mostram mais atreitos a identificar Eugene – eterno filho atormentado por obsessões

edipianas – com Eben do que com o septuagenário Ephraim, cujo temperamento e

avidez pela terra parecem refletir cristalinamente a personalidade do pai do dramaturgo,

em Desejo Sob os Ulmeiros se viu não só uma “autobiografia inconsciente” como também um “plágio

inconsciente”. É uma tese avançada por Louis Sheaffer, na esteira das impressões de Kenneth Macgowan,

amigo pessoal de Eugene O’Neill e um dos elementos do chamado “Triunvirato” (constituído pelo

dramaturgo, por Macgowan e pelo encenador, cenógrafo e figurinista Robert Edmond Jones) que dirigiu o

Greenwich Village Theater e a Provincetown Playhouse. Segundo o biógrafo, Desejo apropria-se da

estrutura narrativa de uma peça de Sidney Howard, They Knew What They Wanted, que Macgowan dera a

conhecer a Eugene pouco tempo antes. Vide L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., pp. 126-127. 24 A mencionada depreciação das virtudes da psicanálise freudiana ocorre no seguinte passo da mesma

carta: “A meu ver, Freud só nos dá conjeturas e explicações vacilantes sobre verdades do passado

emocional da humanidade que todos os autores dramáticos intuíram claramente desde o nascimento do

verdadeiro teatro. […] Eu tenho um enorme respeito pelo trabalho de Freud – mas não sou um adepto!”

Carta de 25 de Fevereiro de 1925, endereçada a Mr. Perlman. Travis Bogard/Jackson Bryer (ed.), Selected

Letters of Eugene O’Neill, New York, Limelight, 1994, p. 192. 25 Apud L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op.cit., p. 130. 26 Tanto assim é que, num artigo de 1958, Arthur Gelbs – autor de múltiplos ensaios sobre Eugene

O’Neill, coautor de uma biografia seminal do dramaturgo (O’Neill, 1962) e, à época, editor do The New

York Times – adianta que “um conjunto de amigos próximos de O’Neill estava a par, durante a escrita e a

montagem da peça, que os conflitos nela presentes ecoavam os problemas emocionais do próprio autor

com os seus pais e irmão”. Arthur Gelbs, “At the Roots of O’Neill’s Elms” (The New York Times, March

2, 1958), in eONeill.com: An Electronic Eugene O’Neill Archive [em linha]. Disponível em www: <URL:

http://www. eoneill.com/library/on/gelbs/times3.2.1958.htm> [consult. 09-04-2012].

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o ator James O’Neill.27 É como se o escritor, cuja fascinação pelas máscaras era, de

resto, bem conhecida,28 se entretivesse postumamente – a si e aos seus mais diligentes

leitores – com um pueril e perverso jogo de esconde-esconde: não, não, eu não estou aí,

onde me analisais, mas aqui, de onde vos observo, a rir .29

Em todo o caso, o facto é que, sob os auspícios de Philip Weissman, se deu

início à exploração do filão biográfico, tão pródigo e concorrido quanto o oitocentista

ouro da Califórnia de que se fala em Desejo Sob os Ulmeiros. Essa prospeção começa

nas leituras feitas por O’Neill no período que antecede a composição do drama – do

desbotado They Knew What They Wanted de Sidney Howard, de que o Desejo de cores

garridas seria um “plágio inconsciente”,30 ao Nascimento da Tragédia de Nietzsche31

27 Após enunciar as afinidades entre o velho Cabot e o pai O’Neill, Louis Sheaffer esclarece

inteligentemente em que medida encontramos em Ephraim uma projeção do dramaturgo: “No essencial, o

velho Cabot […] representa mais um dos vários autorretratos do dramaturgo. Ephraim despreza o que é

fácil, o que é obtido sem esforço; similarmente, ‘fácil’ era um dos adjetivos mais depreciativos do léxico

de O’Neill. Ephraim, assim como o seu criador, é um marido exigente e difícil, e um pai incompetente.

Por último, nada era mais verdadeiro para O’Neill que o facto de sofrer de um perpétuo sentimento de

isolamento, de não ser compreendido por aqueles que lhe eram mais próximos, outra característica

fundamental que partilha com o velho Cabot. Na cena em que Ephraim, ao tentar estabelecer contacto

com a nova esposa, procura explicar-se e justificar-se, o estribilho ‘E eu sempre solitário’ pontua o seu

discurso. ‘Alguma vez me conhecerás… ou a algum homem ou mulher?’, pergunta ele, desdenhosamente,

a Abbie. ‘Não, parece-me que nunca’.” (L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op.cit., p. 130.) Esse

sentimento de solidão é também uma realidade a que a mãe de Longa Jornada empresta voz no final do II

Ato: “Como isto é solitário! […] Mas porquê, Mãe do Céu, tanta solidão?” E. O’Neill, Jornada para a

Noite, op. cit., p. 111. 28 Essa fascinação revelou-se na composição de obras como The Great God Brown, a primeira peça de

O’Neill cuja representação decorre totalmente com máscaras, e Lazarus Laughed, em que centenas de

personagens usam máscara, à exceção do protagonista. Vide Margaret Loftus Ranald, “O’Neill, Eugene”,

in Mark Hawkins-Dady (ed.), Playwrights: International Dictionary of Theatre – 2, Detroit/London/

Washington DC, St. James Press, 1994, p. 724. 29 Adotamos um aviso de Foucault: “Não, não, eu não estou onde você me espreita, mas aqui de onde o

observo rindo”. Michel Foucault, A Arqueologia do Saber, trad. Luiz Felipe Baeta Neves, Rio de Janeiro,

Forense-Universitária, 1987, p. 20. 30 L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., p. 126. 31 No capítulo de Contour in Time que dedica ao Desejo Sob os Ulmeiros, Travis Bogard detém-se em

particular sobre o modo como O’Neill encontrou no pensamento de Friedrich Nietzsche um esquema

filosófico capaz de infundir fôlego aos seus interesses fundamentais como dramaturgo. O crítico ocupa-

se, por exemplo, com a centralidade da dialética entre forças dionisíacas e os princípios apolíneos. Mais

recentemente, também o politólogo John Patrick Diggins abordou a questão da influência de Nietzsche no

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(cujo exemplar o’neilliano estaria coberto de copiosas anotações),32 passando por uma

obra de Wilhem Stekel sobre aberrações sexuais, com especial destaque para o caso de

uma mãe que seduz o filho, levando-o à loucura.33 Mas das putativas ‘fontes’ às doídas

memórias familiares (a vivenda Monte Cristo comprada pelo pai em Nova Londres, os

acessos de choro de uma mãe que, viciada em morfina, erra pela casa como uma

sombra, etc.) ou às neuroses pessoais do autor vai um curto passo. A esta luz algo

impudica, agressiva como o foco de um interrogatório policial, têm-se formulado

hipóteses como aquela que identifica no ‘incesto’ que Eben comete com Abbie uma

sublimação das fantasias sexuais do irmão do dramaturgo, Jamie, com a mãe. Outro

eloquente exemplo: a propósito do infanticídio da peça, biógrafos como Stephen A.

Black ventilam a possibilidade de Eben e Abbie constituírem uma projeção do autor e

daquela que, à época, era sua mulher, um casal “cuja paixão excluía toda a gente,

incluindo os filhos, e de que por fim restavam as suas próprias cinzas”.34 Aplicando esta

lógica, Eben é Gene e Abbie é Aggie, bastando trocar o b pelo g para fazer tombar as

máscaras.

A biografia pode, contudo, revelar-se um escolho. E a estratégia biografista

acaba frequentemente por redundar num procedimento redutor, falho e potencialmente

vicioso: ao entrarmos tão depressa nessa noite escura, vemo-nos a dado momento

absorvidos na tarefa de procurar, com um escrúpulo de fiscal, as mínimas

correspondências entre homem e obra, deixando-se o texto, na sua irredutível

autonomia, intocado. Perante uma tal tirania interpretativa na receção da obra dramática

de Eugene O’Neill, sentimo-nos tentados a invocar a zaratustriana morte do autor

proclamada por Barthes, para quem, no ano de 1968, era tempo de superar a estafada

fórmula crítica que implicava ler a poesia de Baudelaire como a expressão do “fracasso

dramaturgo norte-americano. Vide John Patrick Diggins, Eugene O’Neill’s America: Desire Under

Democracy, Chicago/London, The University of Chicago Press, 2007, p. 100 e ss. 32 Vide Brenda Murphy, “Tragedy in the Modern American Theatre”, in Rebecca Bushnell (ed.), A

Companion to Tragedy, West Sussex, Wiley-Blackwell, 2009, p. 492. 33 Vide S.A. Black, Eugene O’Neill: Beyond Mourning and Tragedy, op. cit., p. 311. 34 Idem, ibidem. Um pouco mais adiante no seu livro, Stephen A. Black volta a ler e a associar o

infanticídio de Desejo Sob os Ulmeiros àquilo que chama “a relutância de O’Neill em se assumir como

pai e a ocasional ambivalência do escritor e de Agnes em relação à intrusão de Shane na intimidade do

casal”. Idem, p. 313.

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do homem Baudelaire”35 ou a pintura de Van Gogh como o resultado da sua insanidade.

Escorado nas experiências dos surrealistas e nas intuições de Mallarmé, de Valéry

(segundo o qual o recurso à interioridade do escritor no exercício de interpretação se

afigura uma “pura superstição”) ou mesmo de Proust, o semiólogo sepulta a categoria

totalitária e castradora do Autor sob uma conceção libertária de escrita, tomada como

lugar de aniquilação de toda a origem: “Dar um Autor a um texto é impor a esse texto

um mecanismo de segurança, é dotá-lo de um significado último, é fechar a escrita.”36

Para a nossa demanda, talvez mais importante do que o caráter destrutivo da renúncia a

essa privilegiada instância literária, a partir da qual a enunciação se esclareceria, se

afigure o poder criativo que é conferido à leitura e ao leitor, nos quais o texto encontra a

sua própria unidade:

Assim se revela o ser total da escrita: um texto é feito de escritas múltiplas, saídas de várias

culturas, que entram em diálogo entre si, em paródia, em contestação; mas há um lugar em que

essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor […], é o leitor.37

O ensaísta Jean-Pierre Sarrazac não participaria na implosão da figura do autor,

mas, ainda que não despreze a apreciação da dimensão pessoal ou biográfica na

hermenêutica textual, chama justamente a nossa atenção para a manifesta insuficiência

do procedimento biografista e identifica com precisão o ponto em que este deixa de ser

operativo. No ensaio em que se detém sobre a filiação strindbergueriana de O’Neill, o

dramaturgo francês faz notar:

A crítica destacou na obra de O’Neill a parte das memórias pessoais e o rastro da sua vida

familiar e conjugal, mas faz silêncio sobre o essencial, a saber: o processo existencial e estético

através do qual os elementos autobiográficos adquirem forma dramática. Não é negligenciável

assinalar que o jovem jornalista de The Straw e Longa Jornada para a Noite constitui um

autorretrato do dramaturgo e remete para um doloroso episódio da juventude, mas, por outro

lado, seria decisivo estabelecer de que forma e até que ponto essas peças e muitas outras definem

uma dramaturgia na primeira pessoa.38

35 Roland Barthes, “A Morte do Autor”, in O Rumor da Língua, trad. António Gonçalves, Lisboa, Edições

70, 1987, p. 50. 36 Idem, p. 52. 37 Idem, p. 53. 38 J.-P. Sarrazac, “Le Roman Dramatique Familial de Eugene O’Neill”, op. cit., p. 48.

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No caso específico de Eugene O’Neill, no qual a categoria fundamental da

‘vida’ parece adquirir um relevo muito particular, o luxuriante arquivo biográfico

ameaça, a dada altura, tornar-se um esquife que rasura outras possibilidades de vida

interpretativa e crítica. Assemelha-se àqueles túmulos de sociedades antigas nos quais,

juntamente com o defunto, se depunham roupas, vasos, armas, vinho, comida.

Condomínios fechados de luxo que não deixam, por isso, de ser tumbas. Evidentemente,

como adverte uma expressão proverbial alemã, convém não deitar fora o bebé com a

água do banho. Por um lado, o argumento clínico revela-se perverso, além de

imensamente frágil: se, como afirmava Sartre, “Paul Valéry é um intelectual pequeno-

burguês, mas nem todo o intelectual pequeno-burguês é Paul Valéry”,39 também Eugene

O’Neill pode padecer de um distúrbio edipiano, mas nem todo aquele que apresenta essa

particular perturbação de personalidade é Eugene O’Neill (de onde se infere que nem a

condição pequeno-burguesa explica a obra do filósofo francês nem as neuroses

edipianas dão conta das peças do dramaturgo norte-americano).40 Por outro lado,

devemos sentir-nos gratos por algumas abordagens de cariz biográfico não denotarem

esta debilidade determinista nem enfermarem de uma ostensiva propensão intrusiva. É o

caso de várias observações e relatos que Louis Sheaffer incluiu na sua biografia de

O’Neill. Manifestamente, há luzes que encandeiam, que impedem que se veja e, nessa

medida, obscurecem tudo (como sabia Heidegger),41 e há luzes, ainda que ténues ou

39 Jean-Paul Sartre, Questions de méthode, Paris, Gallimard, 1986, p. 55. 40 Seguimos aqui os termos da argumentação de António M. Feijó sobre a famigerada histero-neurastenia

de Fernando Pessoa: “Há uma teoria que afirma que a heteronomia é a fabricação de um histérico-

neurasténico, ou, em alternativa, de uma personalidade múltipla. Este argumento clínico – usado, aliás,

pelo próprio Pessoa a propósito de si mesmo – é débil, e facilmente desmontável. É o mesmo tipo de

argumento que críticos marxistas vulgares usavam para atacar um autor como Paul Valéry, classificando-

o como ‘pequeno-burguês’. Do mesmo modo que Pessoa é um histérico-neurasténico, Valéry é um

pequeno-burguês, e a pequena burguesia de Valéry determinaria o que escreve. Sartre arrumou esta tese

de modo expedito: ‘Valéry pode ser um pequeno-burguês, mas nem todo o pequeno-burguês é Valéry’.

Ser pequeno-burguês não me torna capaz de escrever como Valéry, do mesmo modo que ter

personalidade múltipla não torna ninguém capaz de escrever como Pessoa. Na maioria dos casos, aqueles

que sofrem de tais distúrbios padecem de um sofrimento atroz que os torna incapazes de criar. […] O

argumento clínico é, pois, perverso, como são genericamente os argumentos clínicos, porque inoculam

medo.” António M. Feijó, “Fernando Pessoa, Romance”, in Pedro Sobrado (ed.), Turismo Infinito:

Manual de Leitura, Porto, Teatro Nacional São João, 2014, p. 27. 41 “A luz do público obscurece tudo.” Martin Heidegger apud Hannah Arendt, Homens em Tempos

Sombrios, Lisboa, Relógio D’Água, 1991, p. 9.

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vacilantes, que esclarecem alguma coisa. Avançamos com um exemplo útil, que prepara

o caminho para a tematização, no terceiro capítulo, da nuclear irradiação simbólica das

pedras na mecânica dramática de Desejo Sob os Ulmeiros. O passo abaixo transcrito

remete-nos para a infância de O’Neill, quando passava os Verões na Monte Cristo

Cottage, numa altura em que, como o autor escreverá mais tarde no verso de uma

fotografia, “ainda não tinha a mania do teatro, mas era um incansável desenhador de

árvores e navios”.42

Além das grandes árvores, uma outra característica da propriedade dos O’Neill que contribuiria

para o tom e a imagística de Desejo Sob os Ulmeiros era um velho e maciço muro “seco” com

algumas centenas de metros de comprimento, construído com pedras e pedregulhos da região.

De facto, na época em que a família O’Neill aí se instalou, a zona era ainda muito pedregosa, e

uma velha fotografia de Eugene mostra-o sentado numa grande pedra nas proximidades da casa.

A profunda impressão que o muro e o terreno pedregoso causaram ao rapaz reemergiria anos

mais tarde, quando o dramaturgo comprou uma propriedade em Ridgefield, no Connecticut,

onde havia um muro semelhante ao do quintal traseiro da vivenda Monte Cristo. O’Neill

escreveu Desejo Sob os Ulmeiros em Ridgefield, e, por essa altura, os muros tinham passado a

simbolizar para ele a vida frugal e árdua dos agricultores da Nova Inglaterra. “Aqui… pedras

amontoadas no chão… pedras sobre pedras… a fazer muros de pedra”, diz um dos filhos em

Desejo Sob os Ulmeiros. E o velho Cabot exprime a mesma ideia quando afirma: “Pedras.

Apanhei-as, fiz com elas muros. Podes contar os anos da minha vida nesses muros, cada dia uma

pedra, monte abaixo e monte acima, a vedar os campos que eram meus…”43

42 Eugene O’Neill apud Louis Sheaffer, O’Neill: Son and Playwright: Volume I, New York, Cooper

Square Press, 2002, p. 61. 43 Idem, pp. 49-50. (Trad. Rui Pires Cabral.)

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2. Herança clássica

Limiar

Somos todos gregos.

PERCY BYSSHE SHELLEY

“A águia está sempre no futuro.” Este passo de Píndaro, tão amado por George

Steiner, aplica-se aos grandes textos que nos foram legados pelos antigos,

nomeadamente às tragédias clássicas, textos que contêm ainda a gramática do que

somos, obras cuja enérgeia se tem revelado, através dos séculos, assombrosamente

inextinguível. A máxima pindariana não afirma apenas o conteúdo de uma das

definições que Italo Calvino forneceu de clássico – “Um clássico é um livro que nunca

acaba de dizer o que tem a dizer”44 –, mas diz-nos que provavelmente nunca

chegaremos a saber o que tem para dizer. “Ninguém – afirma George Steiner, numa

entrevista em que faz o balanço de todo o seu percurso – compreendeu uma palavra de

Ésquilo, de Sófocles, de Eurípides.”45 A obra está sempre em excesso, vai

continuamente adiante de nós, abrindo caminho para o nosso devir. Os antigos são,

afinal, vindouros. Uma forma de captarmos o voo da águia, ou de lhe seguirmos, por um

instante, a trajetória, é estudar as transfigurações e metamorfoses com que assoma e nos

visita, segundo as ignotas leis de uma qualquer onda mnémica.46 George Steiner

empreendeu esse trabalho em Antígonas, obra monumental condenada a um

envelhecimento precoce, uma vez que a história das apropriações do arquétipo de

Antígona se assemelha a um novelo vivo, que não cessa de crescer e se adensar. Nesse

livro para sempre incompleto, tentou Steiner percecionar as formas em que a Antígona

de Sófocles se desdobra e progride, concluindo: “O mito da Antígona espia-nos e

segreda-nos que é o alfabeto da nossa nova experiência, que esta última será espontânea

44 Italo Calvino, Porquê Ler os Clássicos?, trad. José Colaço Barreiros, Lisboa, Teorema, 2009, p. 11. 45 G. Steiner/R. Jahanbegloo, Quatro Entrevistas com George Steiner, op. cit., p. 110. 46 O conceito pertence a Aby Warburg e encontramo-lo tematizado numa obra do ensaísta italiano

Roberto Calasso. Vide Roberto Calasso, A Literatura e os Deuses, trad. Clara Rowland, Lisboa, Gótica,

2003, pp. 29-48.

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e imediata e mais fácil de viver dada a presença da mitologia, presença latente, vaso de

prata onde se vazarão o pensamento e a vida.”47

Salvaguardadas, evidentemente, todas as distâncias, este nosso segundo capítulo

configura um muito parcelar e provisório ato de observação do voo de uma águia – o

Hipólito, de Eurípides – sobre um território inóspito: Desejo Sob os Ulmeiros, texto

dramático que se inscreve na paisagem da tradição mítico-religiosa do puritanismo, que,

do século XVII em diante, se enraizou nessa árida Jerusalém chamada Nova Inglaterra,

e cuja importância no estabelecimento da ideia americana não pode ser menosprezada,

como demonstrou Alexis de Tocqueville em A Democracia na América.48 Poucas

paisagens se nos afigurariam tão diversas do panorama ático quanto esta, no

Connecticut ou no Maine de Oitocentos… Em todo o caso, estamos em crer que, mais

do que de peças contemporâneas como They Knew What They Wanted de Sidney

Howard ou Birthright de T.C. Murray – textos em que alguns biógrafos e críticos

encontraram paralelos potencialmente incómodos49 –, é, em grande medida, do ancestral

arsenal grego – do Hipólito, mas também do mito de Édipo e da Medeia euripidiana –

que o dramaturgo norte-americano de 36 anos extrai a explosiva perigosidade que

atravessa Desejo Sob os Ulmeiros.

47 G. Steiner/R. Jahanbegloo, Quatro Entrevistas com George Steiner, op. cit., pp. 111-112. 48 Transcrevemos apenas um passo da obra de Tocqueville, embora toda a primeira parte do Livro I (Leis

e Costumes) se revista de interesse para compreender a história, a natureza e o alcance ideológico da

tradição puritana nos Estados Unidos da América, pano de fundo de Desejo Sob os Ulmeiros: “[Os

puritanos] furtavam-se às doçuras da pátria [Inglaterra] obedecendo a uma necessidade puramente

intelectual; expondo-se às misérias inevitáveis do exílio, queriam fazer triunfar uma ideia. Os emigrantes

ou, como eles mesmos se chamavam tão apropriadamente, os peregrinos (pilgrims), pertenciam àquela

seita de Inglaterra que a austeridade de princípios fizera receber o nome de puritana. O puritanismo não

era apenas uma doutrina religiosa; ele também se confundia em vários pontos com as teorias democráticas

e republicanas mais absolutas. Daí lhe vieram seus mais perigosos adversários. Perseguidos pelo governo

da mãe-pátria, feridos no rigor de seus princípios pelo andamento quotidiano da sociedade no seio da qual

viviam, os puritanos buscaram uma terra tão bárbara e tão abandonada pelo mundo para que nela ainda

pudessem viver à sua maneira e orar a Deus em liberdade.” Alexis de Tocqueville, A Democracia na

América: Leis e Costumes (Livro I), trad. Eduardo Brandão, São Paulo, Martins Fontes, 2005, p. 41. 49 Se Louis Sheaffer aventava a possibilidade de Desejo ser um “plágio inconsciente” de They Knew What

They Wanted, Travis Bogard define Birthright como uma obra de uma “centralidade formativa” na

composição da peça de O’Neill. L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., p. 126. T. Bogard, Contour

in Time, op. cit., disponível em www: <URL: http://www.eoneill.com/library/contour/triumvirate1/desire.

htm> [consult. 11-04-2012].

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Esta extorsão lembra-nos um poema em que Manuel António Pina se refere à

literatura como uma “arte escura de ladrões que roubam a ladrões”.50 Talvez O’Neill se

tenha revelado mais original quando menos o foi. Ou então é à palavra ‘original’ que

precisamos de devolver a sua aceção primeira: relativo às origens. Neste caso, origens

do teatro (mas também origens da América e do seu puritano ideário), porque Desejo

Sob os Ulmeiros – obra que “estabelece O’Neill como dramaturgo de verdadeiro génio e

representa o auge do seu primeiro período de composição”51 – é altamente devedor das

tragédias clássicas. Este capítulo visa o levantamento dessa dívida soberana – uma

dívida que, como se procurará demonstrar, tem em Hipólito, Fedra e Teseu os principais

credores.

2.1. Uma tragédia por escrever

Ao desejar possuir o mundo, a América perdeu a alma.

EUGENE O’NEILL

No final do segundo volume da biografia que nos ofereceu de Eugene O’Neill,

Louis Sheaffer introduz um pequeno episódio, aparentemente banal ou ocioso. Trata-se

de um daqueles fait-divers que, sob determinada luz, adquirem contornos de oráculo. O

dramaturgo fora, uma vez mais, assistir à representação de The Iceman Cometh [1946],

peça escrita no trágico ano de 1939, mas estreada apenas no pós-guerra, em Nova

Iorque, corria o ano de 1946. Foi considerada por Harold Bloom como uma das duas

obras-primas de O’Neill52 e, em Contour in Time, Travis Bogard classificou-a como

“provavelmente a mais ‘grega’ das suas peças, construída em torno de um coro

central”.53 Entre a assistência, encontrava-se um casal grego: a célebre atriz Katina

50 Manuel António Pina, “Emet”, in Poesia, Saudade da Prosa: Uma Antologia Pessoal, Lisboa, Assírio

& Alvim, 2011, p. 72. 51 Margaret Loftus Ranald, “From Trial to Triumph: The Early Plays”, in Michael Manheim (ed.), The

Cambridge Companion To Eugene O’Neill, Cambridge, Cambridge University Press, 1998, p. 65. 52 Na ótica, canónica, do crítico norte-americano, a segunda obra-prima de O’Neill é Longa Jornada para

a Noite. Vide Harold Bloom, “Introduction”, in Eugene O’Neill’s “Long Day’s Journey Into Night”,

Philadephia, Chelsea House Publishers, 1987, p. 2. 53 T. Bogard, Contour in Time, op. cit., disponível em www: < http://www.eoneill.com/library/contour/

mirror/iceman.htm> [consult. 19-04-2012].

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Paxinou54 e o seu marido, o encenador e também ator Alexis Minotis, recém-chegados

de Atenas. O biógrafo faz constar que, durante o serão, O’Neill não parou de se

contorcer no seu lugar, tartamudeando imprecações contra o encenador do espetáculo,

Eddie Dowling. No final, o casal grego soube granjear o apreço do dramaturgo,

solidarizando-se com O’Neill e somando ao desgosto deste o seu próprio lamento.

Escreve Sheaffer que, no estabelecimento de uma tal empatia, O’Neill contou que se

fizera dramaturgo ao devorar os clássicos gregos, após o que Katina Paxinou e Alexis

Minotis lembraram que, quando haviam tomado parte na montagem de Desejo Sob os

Ulmeiros, um crítico ateniense qualificara O’Neill como “o primeiro dramaturgo depois

de Sófocles a possuir o sentido clássico de tragédia”.55

Seja qual for o grau de acerto contido num tal encómio, pode imaginar-se o

efeito destas palavras no dramaturgo, mesmo tratando-se já de um autor consagrado por

inúmeros Pulitzer e pelo cobiçado Prémio Nobel (1936). O’Neill não acusava um défice

de reconhecimento ou aplauso, mas antes uma repetida falta de atenção da crítica em

relação ao que entendia ser o núcleo sensível de todo o seu projeto dramático. Em 1925,

escreve ao crítico e investigador Arthur Hobson Quinn:

Sou mais negligenciado precisamente no ponto em que mais me empenhei – como um poeta que

tem trabalhado sobre a oralidade para desenvolver ritmos de uma beleza original onde

aparentemente não há beleza […] e ver a nobreza transfiguradora da tragédia – tão próximo do

sentido grego quanto possível – naquelas que parecem ser as mais vis e ignóbeis existências.56

Nesta mesma carta, interessantemente, O’Neill expressa os termos da afinidade da sua

demanda poético-teatral com a tragédia, tal como foi consagrada por Ésquilo, Sófocles e

Eurípides, e com a peculiar Weltanschauung que a informa, nomeadamente a noção de

uma desesperada impotência humana face aos deuses.

Estou permanente e intensamente consciente da Força que está por detrás de tudo – o Destino,

Deus, o nosso passado biológico a engendrar o nosso presente, o que lhe quisermos chamar:

Mistério, certamente – e da eterna tragédia do Homem, que resulta do seu glorioso combate

54 Galardoada poucos anos antes com o Óscar de Melhor Atriz Secundária pela sua participação em Por

Quem os Sinos Dobram, de Sam Wood, Katina Paxinou integraria, em 1947, o elenco da adaptação

cinematográfica de O Luto vai bem com Electra, realizada por Dudley Nichols. 55 Apud L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., p. 591. 56 In T. Bogard/J. Bryer (ed.), Selected Letters of Eugene O’Neill, op. cit., p. 195.

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autodestrutivo para se fazer expressar na Força, em vez de, como um animal, ser um incidente

infinitesimal da Sua expressão.57

Esta confissão pessoal – ou declaração programática – foi escrita em Abril de

1925, escasso meio ano após a estreia de Desejo Sob os Ulmeiros, uma peça que Travis

Bogard não hesitou em qualificar como “a primeira tragédia de relevo a ser escrita na

América”.58 Note-se que este complemento circunstancial de lugar – “na América” – é

tão importante quanto o rótulo “tragédia”, tendo em conta que o desígnio de O’Neill não

passa apenas pela reabilitação da antiga forma trágica praticada na Atenas do século V

a.C., mas também pela expressão do conteúdo trágico americano. Já em 1922, reagira

intempestivamente ao ser confrontado com a objeção de que a tragédia era estranha à

índole americana:

Suponhamos que um dia, subitamente, seríamos capazes de ver com inteira clareza o verdadeiro

valor de todo o nosso triunfante e atroador materialismo; que seríamos capazes de ver os custos e

o resultado em termos de verdades eternas! Que tragédia colossal e absolutamente americana não

seria… A tragédia não é natural ao nosso país? Mas nós somos uma tragédia, a tragédia mais

pavorosa jamais escrita ou por escrever!59

Desejo Sob os Ulmeiros é o anúncio dessa “tragédia por escrever”. Inscrita no

cenário da Nova Inglaterra de 1850, e projetada no horizonte da febril corrida ao ouro

da Califórnia e dos seus sonhos de um veloz enriquecimento, a peça “prefigura – como

nos diz Margaret Loftus Ranald, uma das mais destacadas autoridades na obra de

Eugene O’Neill – O Luto vai bem com Electra [Mourning Becomes Electra, 1931] e a

57 Idem, ibidem. Dada a relevância deste passo, transcrevemos o original inglês: “I’m always acutely

conscious of the Force behind – Fate, God, our biological past creating our present, whatever one calls it:

Mystery, certainly – and of the one eternal tragedy of Man in his glorious, self-destructive struggle to

make the Force express him instead of being, as an animal is, an infinitesimal incident in its expression.” 58 T. Bogard, Contour in Time, op. cit. 59 L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., p. 441. Num ensaio em que se detém sobre os esforços de

Maxwell Anderson, Eugene O’Neill e Arthur Miller por reconstituir a tragédia no quadro do teatro

moderno norte-americano, Brenda Murphy chama a nossa atenção para uma ironia histórica: “É uma das

ironias da história do teatro americano que, não se considerando, de uma forma geral, a visão trágica

como característica da visão americana da vida, as peças mais significativas do repertório clássico

americano sejam trágicas na sua visão, mesmo quando não exemplificam todas as convenções associadas

ao género.” B. Murphy, “Tragedy in the Modern American Theatre”, op. cit., p. 503.

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totalidade da sua saga inacabada ‘A Tale of Possessors, Self-Dispossessed’,

demonstrando a natureza obstinada e ávida do Grande Mito Americano”.60 Desejo Sob

os Ulmeiros é isso mesmo: a história de gente voraz que acaba de mãos vazias. Ou,

como o próprio O’Neill registou numa carta, “uma tragédia de gente possessiva – o

patético desejo do homem de construir o seu paraíso na terra, satisfazendo o seu sentido

de poder mediante a posse de terra, gente, dinheiro.”61 Não por acaso, a obra de O’Neill

suscitou recentemente o interesse de um politólogo e historiador político: John Patrick

Diggins, autor de Eugene O’Neill’s America: Desire Under Democracy. No capítulo

que dedica especialmente à peça de 1924, Diggins discorre sobre a problemática da

propriedade privada e da democracia moderna, e correlaciona-a com a “luxúria da

posse” que define as personagens de O’Neill, concluindo: “O teatro torna-se o lugar da

perpétua questão americana: quem possui o quê, quando, como e porquê.”62

Curiosamente, ao revelar a face negra do moderno american dream, Eugene

O’Neill investiga e apropria-se das tragédias clássicas e dos velhos mitos que lhes

subjazem. Os seus mais devotos leitores nem sempre coincidem na perceção das

analogias e correspondências: Louis Sheaffer menciona o Hipólito de Eurípides, como

faz, aliás, Edgar F. Racey, um dos primeiros a abordar a estrutura trágica de Desejo Sob

os Ulmeiros;63 por seu turno, Stephen A. Black, numa abordagem vincadamente

psicanalítica, considera que “os temas edipianos não poderiam ser mais explícitos”,64

acrescentando ainda que o infanticídio produz um deslocamento do centro dramático e

simbólico da peça de O’Neill, fazendo emergir o obscuro arquétipo da Medeia;

Margaret Loftus Ranald descreve o relacionamento entre Eben e Abbie como “uma

união edipiana, com tonalidades fedrianas”;65 Brenda Murphy inverte os termos desta

correlação de forças, descrevendo Desejo como uma peça “primeiramente baseada no

mito de Hipólito e Fedra”, mas também alusiva aos arquétipos de Édipo e Medeia…66 A

nosso ver, um tal desencontro não implica que estejamos perante hipóteses mutuamente

60 M. L. Ranald, “From Trial to Triumph: The Early Plays”, op. cit., p. 66. 61 In T. Bogard/J. Bryer (ed.), Selected Letters of Eugene O’Neill, op. cit., p. 194. 62 J. P. Diggins, Eugene O’Neill’s America, op. cit., p. 97. 63 Vide Edgar F. Racey Jr., “Myth as Tragic Structure in Desire Under the Elms”, in John Gassner (ed.),

O’Neill: A Collection of Critical Essays, New Jersey, Prentice-Hall, 1964, pp. 57-61. 64 S. A. Black, Eugene O’Neill: Beyond Mourning and Tragedy, op. cit., p. 308. 65 M. L. Ranald, “From Trial to Triumph: The Early Plays”, op. cit., p. 67. 66 B. Murphy, “Tragedy in the Modern American Theatre”, op. cit., p. 496.

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exclusivas, mas que O’Neill adota na composição de Desejo Sob os Ulmeiros o método

do bricolage que, segundo Claude Levi-Strauss, define os próprios mitos,67 operando a

partir de sobras e fragmentos, e dando provas de uma intuitiva agilidade na gestão do

seu arquivo mítico. Uma destreza bem diversa do constrangimento que Travis Bogard

detetou na sintaxe simbólica da peça anterior, Bound East for Cardiff, e da trilogia

posterior O Luto vai bem com Electra.

Embora subscrevamos, com Bogard, a tese de que as magnéticas ressonâncias

trágicas contidas no enredo e nas personagens de Desejo não decorrem de uma

“imitação detalhada” e de que O’Neill não segue uma “receita”, tendemos, todavia, a

divergir no ponto em que afirma que “nem o Hipólito nem a Medeia são uma fonte

precisa da história de O’Neill”.68 Tudo dependerá efetivamente do que se entenda por

‘fonte’, mas, se a aproximação à Medeia se revela, em determinado ponto,

problemática, o parentesco com o Hipólito está longe de ser da ordem da referência

indireta ou da sugestão. Aquela que tem sido cotada como “a mais sofocliana das peças

de Eurípides”69 é uma fonte – nascente, origem, matriz –, e isso em nada diminui os

méritos de O’Neill. Como se tentará demonstrar, o Hipólito está não apenas fisicamente

presente na estrutura do enredo e, em parte, no desenho das personagens, mas também

espiritualmente, na secreta força propulsora que orienta o drama.

2.2. Núpcias de morte

NORMAN BATES: A boy’s best friend is his mother.

ALFRED HITCHCOCK, Psycho

Uma autoridade em psicanálise como Stephen A. Black menciona os longos

anos em que Eugene O’Neill pareceu “odiar o pai tanto quanto amá-lo”. Além disso,

informa-nos que “o acontecimento mais importante” da juventude de O’Neill foi um

golpe de contornos edipianos: a descoberta, por volta dos catorze anos, de que a mãe se

tornara viciada em morfina na sequência do seu parto:

67 Vide Claude Lévi-Strauss, O Pensamento Selvagem, Campinas SP, Papirus, 2005, pp. 32 e ss. 68 T. Bogard, Contour in Time, op. cit. 69 Edith Hall, Greek Tragedy: Suffering under the Sun, New York, Oxford University Press, 2010, p. 248.

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Foi uma descoberta semelhante à descoberta de um Édipo que é celebrado em duas peças de

Sófocles; numa delas, Sófocles imaginou o processo de descoberta, e na outra, as consequências

da descoberta. O jovem Eugene não descobriu que matou o pai e desposou e gerou filhos com a

mãe, mas ficou a saber que o nascimento do seu eu de quase cinco quilos provocou na sua mãe

sofrimento e depressão prolongados, em virtude dos quais lhe foi prescrita morfina.70

No que toca a Desejo Sob os Ulmeiros, gostaríamos de começar por apreciar a

perspetiva edipiana, mas diversamente do que fazem os praticantes da modalidade

psicanalítica, que a adotam para encastrar o próprio Eugene O’Neill no molde de Édipo.

Parece-nos ser chegada a hora de deixar para trás uma hermenêutica centrada no autor e

na sua experiência – o nosso propósito não consiste em entrar na mente de O’Neill e aí

nos instalarmos como se estivéssemos em casa –, privilegiando antes o texto dramático

na sua irrecusável imanência ou autonomia. Ora, no Desejo Sob os Ulmeiros, o padrão

edipiano insinua-se sub-repticiamente logo na primeira cena, quando Eben convoca os

irmãos para a ceia, fazendo soar ruidosamente uma sineta. De imediato ficamos a saber

que é ele quem se ocupa da cozinha, quem prepara as refeições aos dois irmãos, quem

os chama para a mesa. “A ceia está pronta”, “a ceia está a esfriar” [I Parte, Cena 1] –

chamamentos e advertências que, apesar de infetados pelo rancor, esboçam contornos

maternais, sobretudo no cenário oitocentista da Nova Inglaterra. A mãe morreu, e Eben

manifesta menos a intenção de ocupar o seu lugar, substituindo-a funcionalmente na

esfera doméstica, do que a vontade de com ela se identificar, ou melhor, o desejo de

nela se identificar a si mesmo – um anseio de fusão e, ipso facto, de recomposição da

mãe falecida. Assumir os seus afazeres, o seu espinhoso quotidiano, é uma forma de

Eben a conhecer – termo que, tanto no Português como no original inglês (to know),

possui uma aceção bíblica peculiar (ter relações sexuais com),71 ressonância que não

está, de modo algum, ausente de um contexto em que as personagens usam e abusam da

70 Stephen A. Black, “Celebrant of Loss: Eugene O’Neill 1888-1953”, in Michael Manheim (ed.), The

Cambridge Companion To Eugene O’Neill, Cambridge, Cambridge University Press, 1998, p. 6. 71 “Nas línguas semíticas (e nos LXX), o verbo ‘conhecer’ é usado em sentido especial, indicando união

sexual. Esse sentido, que não existe no grego profano, foi, sob influência da Bíblia, adotado por diversas

línguas indo-germânicas, sendo conservado até hoje em traduções modernas da Bíblia”. In A. Van Den

Born (org.), Dicionário Enciclopédico da Bíblia, Petrópolis, Vozes, 1992, p. 288.

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fraseologia sagrada (“Honra o teu pai”, “Vamos começar a viver como os lírios do

campo”, “E Deus ouviu Raquel”, etc.).72

EBEN: […] Cozinhar… fazer o trabalho dela… foi que me levou a conhecê-la, sofrer o que ela

tinha sofrido… Ela havia de voltar para me ajudar… voltar para descascar as batatas… voltar

para fritar o presunto… voltar para cozer o pão… voltar, cheia de dores, para atiçar o lume, tirar

a cinza, com os olhos cheios de lágrimas e raiados de sangue, por causa do fumo e das cinzas,

como os dela estavam sempre. E ainda volta… está ali ao pé do fogão, à noite… [I Parte, Cena 2,

itálico nosso]

A cena seguinte oferece-nos uma segunda oportunidade para reconhecer a

fisionomia edipiana de Eben, que se manifesta agora no interesse por Min, a “mulher

escarlate”, estafada prostituta da vila com quem já seu pai e seus irmãos se haviam

deitado. Quando traz a Simeon e Peter as novas do casamento do seu velho pai com

uma mulher de 35 anos, o jovem confessa, inflamado pelo orgulho: “Sim, senhor.

Possuía-a. Pode ter sido dele… e vossa também… Mas agora é minha!” Referindo-se

ainda a Minnie, um instante depois, Eben formula o seguinte enunciado

despudoradamente edipiano: “Que me ralo eu com ela? […] O que importa é que era

dele… e agora pertence-me!” [I Parte, Cena 3]. Quando Eben se prepara para sair de

cena, depois de desdenhar da “vaca a que o velhote se atrelou”, Simeon surpreende-o

com a seguinte provocação: “Talvez experimentes possuí-la, não?” Enojado com a

ideia, Eben cospe para o chão, mas nesse instante já O’Neill inoculou a hipótese na

mente dos espectadores.

Todos estes sinais constituem uma propedêutica para o que nos é dado assistir na

cena em que – na sala de visitas, aquela onde o corpo da mãe de Eben estivera em

câmara ardente – Abbie seduz o enteado e o torna seu amante. Aí, os contornos do

paradigma edipiano adquirem maior definição e uma eloquência simultaneamente

fascinante e repulsiva. Trata-se de uma cena habilmente urdida, na qual eros e thanatos

se mesclam e confundem, como que falando a uma voz. Ao dirigir-se para essa sala,

uma divisão que permanecera encerrada desde a morte da mãe, Eben intui um encontro

imediato com a progenitora defunta: a didascália que precede a cena, célebre pela sua

72 Evidentemente, não podemos comparar o Eben Cabot de Desire ao Norman Bates de Psycho, embora –

sublime ironia da sétima arte… – o mesmo ator, Anthony Perkins, tenha desempenhado, com apenas dois

anos de diferença, ambos os papéis no cinema. De resto, a celebérrima máxima de Bates (“O melhor

amigo de um rapaz é a sua mãe”) poderia sem surpresa sair da boca de Eben.

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lutuosa lascívia, informa-nos que a personagem “volta atrás e põe a camisa branca, o

colarinho, dá mecanicamente um vago nó de gravata, veste o casaco, pega no chapéu,

fica descalço a olhar em volta, desorientado, e murmura meditativamente: Mãe! Onde

estás tu?” [II Parte, Cena 2]. Nesse instante, Eben é simultaneamente o homem feito, o

noivo que se prepara para a cerimónia de casamento (colarinho branco, gravata, etc.), e

o menino de pés descalços, perdido, a chamar pela mãe… Intrigantemente, assim que

franqueia o limiar desse aposento, Abbie partilhará a noção de uma presença estranha,73

e a sua disposição excitadamente lúbrica dá lugar a uma nervosa delicadeza. No interior

dessa sala, a um tempo câmara mortuária e tálamo nupcial, Abbie desenvolve uma

poderosa simpatia em relação à mãe de Eben, reclamando para si a identidade desta e

assumindo em tudo a sua condição.

ABBIE: […] Fala-me da tua mãe, Eben.

EBEN: Não há muito de que falar. Era delicada. Era boa.

ABBIE: (Passando-lhe um braço pelos ombros, o que ele parece não notar, e apaixonadamente.)

Serei delicada e boa para ti!

EBEN: Às vezes costumava cantar para mim.

ABBIE: Eu cantarei para ti!

EBEN: Esta casa era dela. Esta herdade era dela.

ABBIE: Esta é a minha casa! Esta é a minha herdade!

EBEN: Ele casou com ela para lha roubar. Ela era terna e doce. Ele não soube apreciá-la.

ABBIE: Ele não sabe apreciar-me!

EBEN: Ele assassinou-a à força de dureza.

ABBIE: Ele assassina-me!

EBEN: Ela morreu. (Pausa.) Às vezes cantava só para mim. (Solta um soluço abrupto.)

ABBIE: (Abraçando-o numa louca paixão.) Hei-de cantar para ti! Hei-de morrer por ti! (Apesar

do abrasador desejo que tem dele, há nos seus modos e na sua voz um sincero amor maternal;

uma horrivelmente franca mistura de cio e de amor de mãe.) Não chores, Eben! Hei-de tomar o

lugar da tua mãe! Hei-de ser tudo o que ela era para ti! Deixa-me beijar-te, Eben! (Puxa-lhe a

cabeça. Ele tenta uma perplexa resistência. Ela transborda de ternura.) Não tenhas medo! É um

beijo puro, Eben… como se eu fosse tua mãe… e tu podes beijar-me como se fosses meu filho…

o meu menino a dar-me as boas-noites! Beija-me, Eben. [II Parte, Cena 3]

Este processo simultâneo de emulação e assimilação da mãe morta por parte de

Abbie, associado à perceção mística de Eben de que o espírito da Maw paira, em

73 Curiosamente, quando promete a Ephraim um filho, Abbie apresenta-se como uma espécie de vidente:

“Talvez eu tenha uma segunda vista. Sou profeta.” [II Parte, Cena 2]

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desassossego e como que clamando por uma reparação, naquele espaço funéreo (“Mãe!

Mãe! Que queres? Que me estás a dizer?”), desencadeará uma espécie de duplo incesto:

não se trata apenas de copular com a nova esposa do pai, mas de uma tal cópula ser

antecedida por uma espécie de reencarnação da mãe. Aquele lugar é uma câmara

ardente – no sentido fúnebre (compartimento no qual o defunto é velado) e no sentido

sexual (divisão em que a concupiscência carnal se cumpre). Aplicando uma outra

formulação, cunhada por Jean-Pierre Sarrazac ao referir-se a Welded [1924], peça que

precedeu Desejo Sob os Ulmeiros, podemos dizer que o que tem lugar no interior

daquele cenotáfio são umas “núpcias de morte com a figura invisível da mãe”.74 Em

Desejo, como em tantas outras peças desse Prometeu agrilhoado à condição filial que é

Eugene O’Neill, a mãe é o “Grande Ausente” – ausente na aceção precisa e

eminentemente teatral (pois que todo o teatro visa uma ausência) que lhe atribui o

ensaísta francês: “aquele que, a partir de um limiar de invisibilidade, orienta o drama”.75

Uma entidade que não aparece, mas transparece, no sentido etimológico da palavra –

aparece através de um véu. Mesmo naquelas peças em que a mãe não é (ou não começa

por ser) uma defunta, ainda assim, a sua condição é a de um espectro, uma morta-viva.

“[Na Longa Jornada para a Noite,] drogada e suicidária, acorrentada a um irreprimível

sentimento de culpa pela morte do pequeno Eugene (sic), um dos seus filhos, a mãe não

existe senão sob a forma de um fantasma.”76 De um determinado ponto de vista, afetivo,

está já morta – e ainda vai morrer.

Um pouco à semelhança da casa assombrada de Ibsen – não por acaso, uma das

referências cimeiras do dramaturgo norte-americano –, a casa o’neilliana é um viveiro

de espectros. “Está frio nesta casa. É desagradável. Há coisas que remexem no escuro…

pelos cantos”, diz Ephraim a Abbie antes de passar a noite no estábulo, junto das vacas

que o conhecem e entendem [II Parte, Cena 2]. Essa perceção da casa como realidade

fantasmática está, de resto, presente num dos passos mais citados e discutidos de toda a

peça, mas que raras vezes terá sido pronunciado no palco. Trata-se da tão amada quanto

odiada didascália de abertura,77 a qual nos fornece uma brumosa e, no entanto,

74 A expressão refere-se especificamente a Desejo Sob os Ulmeiros. J.-P. Sarrazac, “Le Roman

Dramatique Familial de Eugene O’Neill”, op. cit., p. 53. 75 Idem, p. 52. 76 Idem, p. 54. 77 Um crítico da importância de Travis Bogard não hesita em censurar o simbolismo “explícito e forçado”

do cenário aí descrito. A páginas tantas, grato por se tratar apenas de uma didascália, de um passo da obra

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esclarecedora descrição dos dois enormes ulmeiros que ladeiam a casa e cuja

importância simbólica é, desde logo, sinalizada pela sua inclusão no título:

Parecem proteger e ao mesmo tempo dominar. Há, no aspeto deles, uma maternidade sinistra,

uma absorção ciosa e esmagadora. Desenvolveram, no contacto íntimo com a vida humana na

casa, uma humanidade aterradora. Meditam opressivamente sobre a casa. São como mulheres

exaustas que pousam no telhado os seios pendentes, as mãos e os cabelos, e, quando chove, as

suas lágrimas escorrem monotonamente e apodrecem o telhado de madeira.

Assim descritos, à maneira de um romance do século XIX, os ulmeiros

afiguram-se a expressão de uma maldição que paira sobre a casa e, em especial, sobre

Eben – a maldição de uma mãe que nunca acaba de morrer e de um filho que, incapaz

de fazer o luto, vive da morte da progenitora e a alimenta. Mas a famosa didascália

cenográfica é complexa, e é necessário ver nela mais do que foi intuído por Philip

Weissman, que diagnosticou ao autor um luto incessante pela mãe, a endémica

dificuldade em enterrar e livrar-se dos seus mortos. To subdue, que Jorge de Sena

traduziu por “dominar” na versão portuguesa, deriva do latim seducere – seduzir. Trata-

se de uma maternidade funesta e opressiva, que exerce um efeito asfixiante e

putrefaciente sobre a casa, mas também uma maternidade sedutora, que atrai e cativa,

no duplo sentido do termo. Uma maternidade sexualmente predadora, noção que o

termo “cioso” (parente da palavra “cio”), com que Sena rende o original “jealous”,

inteligentemente inocula no corpo de Desejo Sob os Ulmeiros. Como pretende Stephen

A. Black, “a linguagem da descrição cenográfica contém o germe do processo da peça”.

Antropomórfica e animisticamente presente na herdade, a mãe defunta é, a nosso ver, o

objeto último do intenso desejo de posse por parte de Eben, e não apenas de Eben.

Conclui o investigador e psicanalista, reincidindo no topos clínico: “Os temas edipianos

não poderiam ser mais explícitos, e são inseparáveis dos temas da perda e do luto sem

fim. Tentar enfrentá-los em conjunto ao escrever Desejo Sob os Ulmeiros equivale a

tentar realizar todo o processo da psicoterapia na primeira sessão”.78

que não sobreviverá na passagem à cena, Bogard escreve: “Afortunadamente, a retórica novelística que

associa os ulmeiros à falecida mãe de Eben e a uma exangue força vital não tem qualquer expressão para

lá das páginas impressas. […] O seu significado é assimilado à medida que as personagens se vão

tornando conscientes da sua presença e que os ulmeiros, consequentemente, passam a integrar a ação.” T.

Bogard, Contour in Time, op. cit.. 78 S. A. Black, Eugene O’Neill: Beyond Mourning and Tragedy, op. cit., p. 308.

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Mas nem só de Édipo vive o Desejo. Parte considerável dos leitores mais

autorizados de Eugene O’Neill tem proposto o mito de Fedra, tal como cunhado por

Eurípides, como a principal chave de leitura trágica do enredo da peça, com o fatídico

triângulo constituído por Teseu, Fedra e Hipólito a servir de protótipo estrutural ao

relacionamento de Ephraim, Abbie e Eben. É a hipótese cujos fundamentos tentaremos

em seguida ponderar e detalhar, escorados no parecer não só de Louis Sheaffer,79 mas

também de Edgar F. Racey, aquele que primeiramente terá esclarecido, ainda que de

forma sumária, a homologia em relação à tragédia de Eurípides.80 Antes, porém, há uma

outra afinidade a equacionar sucintamente: contestando a prevalência que, desde a

década de 1960, investigadores vêm atribuindo ao Hipólito, Stephen A. Black advoga

que o assassínio da criança produz forçosamente um deslocamento do centro dramático

e simbólico da peça de O’Neill, pois, quando ocorre o infanticídio, os obscuros

contornos da Medeia euripidiana adquirem clareza. Se bem que tal deslocamento

tectónico no subsolo da herdade dos Cabot nos pareça incontestável (a sinistra sombra

de Medeia pairará sempre sobre o teatro quando nele se represente ou aluda ao nefando

crime), há que ter em consideração que um de “dois pontos essenciais da tragédia de

Eurípides” enunciados por Maria Helena da Rocha Pereira – “o filicídio e a motivação

do crime na infidelidade de Jasão”81 – não se encontra no Desejo o’neilliano, uma vez

que a ação de Abbie não coincide, no móbil e no propósito, com a démarche da

feiticeira da Cólquida. Matar o filho não corresponde, no caso do ‘melodrama’

americano, a um ato de vingança. Abbie não pretende, como sucede com a heroína de

Eurípides, punir Eben, mas premiá-lo, isto é, conceder-lhe a mais irrefutável

demonstração de um amor incondicional:

ABBIE: (Gritando-lhe com intensidade.) Hei-de provar-te! Hei-de provar-te que te amo mais…

(Ele entra, não parecendo ouvi-la. Ela fica de pé onde está, seguindo-o com o olhar, e conclui

então, desesperadamente) …mais do que a tudo no mundo! [III Parte, Cena 2]

ABBIE: (Histericamente.) Já está, Eben! Eu disse-te que era capaz! Provei que te amava mais que

tudo… para não duvidares mais de mim! [III Parte, Cena 3]

79 Vide L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., p. 127. 80 Vide Edgar F. Racey Jr., “Myth as Tragic Structure in Desire Under the Elms”, op. cit., pp. 57-61. 81 Maria Helena da Rocha Pereira, “Introdução”, in Eurípides, Medeia, trad. Maria Helena da Rocha

Pereira, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 12.

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Na nossa ótica, o que há de análogo em Abbie e Medeia é a cegueira dos

sentimentos e os seus devastadores efeitos: no caso da figura clássica, o infanticídio

resulta de um ódio indómito; no da personagem moderna, parece ser expressão de um

amor inabalável, cuja ação se revela, contudo, funesta. (Neste plano, aplicar-se-iam

cabalmente a esta as palavras daquela: “Que grande mal é o amor para os mortais!”)82

No tocante à sua impetuosa índole, Abbie estará porventura mais próxima de Medeia –

“carácter selvagem, temeroso, de um ânimo indomável” 83 – do que da pudica Fedra,

que, ainda que acometida por uma paixão avassaladora por Hipólito, não ousa dirigir-se

ao enteado, preferindo votar-se a si mesma à morte. Mas até este parentesco é de

problemática determinação, porque, no caso da personagem de O’Neill, a desorientação

e o desespero que a conduzem ao filicídio não são mediados pela maturação de um

propósito furioso, pela celebração consigo mesma de um pacto de sangue e morte que,

depois de deliberado, se torna inexorável. 84 É o que sucede no caso da protagonista de

Eurípides, cuja veemência de carácter se conjuga, de modo admirável e aterrador, com o

raciocínio e a lucidez: segundo Maria Helena da Rocha Pereira, “ela surge-nos como um

ser de razão e observação no primeiro episódio, e a mesma frieza calculista se

evidenciará na fala com Creonte, com Egeu, no segundo diálogo com Jasão”.85 É talvez

nesta peculiar combinatória de fogosidade temperamental e frieza cerebral que radica a

perigosidade de Medeia, contra a qual nos previne, logo na abertura da representação, a

Ama: “É que ela é terrível, e quem a desafiar como inimiga não alcançará facilmente

vitória.”86

Evidentemente, poderíamos alegar que Abbie traça uma tangente à figura da

feiticeira euripidiana quando se declara possuidora – como, a dado momento, chega a

aventar junto de Ephraim – de uma vidência particular, o que é, de algum modo,

atestado pela singular sensibilidade mediúnica que mostra em relação à presença do

espírito da mãe de Eben.87 Estaríamos também dispostos a sugerir um parentesco solar:

82 Eurípides, Medeia, op. cit., p. 50 [v. 330]. 83 Idem, p. 49 [vv. 103-104]. 84 Rapidamente, Abbie reconhece o desesperado desnorte em que caiu e o carácter imponderado da sua

ação: “Eu não queria. Eu odiei-me por ter feito o que fiz. Eu amava-o.” [III Parte, Cena 3] 85 M. H. R. Pereira, “Introdução”, in Medeia, op. cit., p. 21. 86 Eurípides, Medeia, op. cit., p. 46 [vv. 44-45]. 87 Esta conexão é débil porque a Medeia de Eurípides é menos senhora de artes mágicas do que o mito faz

supor e do que nos mostrarão apropriações dramáticas posteriores, como esclarece Maria Helena da

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se, na mitologia grega, Medeia descende do Sol, Abbie vem com a Primavera e parece

encontrar-se sob a influência direta do astro-rei – quando é violentamente acometida

pelo desejo88 ou na manhã que se segue à noite de núpcias com Eben, ao dar novamente

vida ao sarcófago da casa, abrindo-o aos raios solares… Todavia, estaríamos a

calcorrear ociosamente uma no man’s land, terreno fértil para o joio das suposições e

conjeturas. Se há uma afinidade que vincula Abbie e Medeia, ela manifesta-se na

descida ao Maelström que ambas experimentam, nesse vórtice de forças irracionais em

que as duas heroínas se vêem lançadas e enleadas. Sucede, porém, que esse indefinível

elemento de irracionalidade que imputamos a Medeia não sustenta uma filiação

exclusiva – também ele se descobre na fisionomia de Fedra, como assinala Frederico

Lourenço:

Medeia hesita […] e deixa bem claro que, racionalmente, não quer fazer mal aos filhos. Mas há

uma força irresistível que a arrasta, tal como acontece com Fedra que, por muito que não queira

estar apaixonada por Hipólito, não consegue fazer nada contra a paixão que a vai destruir. Eis

um bom exemplo da vertente do ‘irracional’ do teatro euripidiano.89

Rocha Pereira: “Mas, contrariamente ao que sucederá nas imitações desta tragédia, como a de Séneca e a

de Corneille, a magia ocupa uma parte mínima: apenas é utilizada nos venenos do peplos e da coroa, que

causarão a morte da filha de Creonte e de quem dela se aproximar, e no carro do Sol, no qual a Cólquida

abandona o palácio, qual deus ex machina.” Maria Helena da Rocha Pereira, Estudos de História da

Cultura Clássica, vol. I – Cultura Grega, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1970, p. 326. 88 O passo a que nos referimos é o seguinte: “Pois não está um sol quente, medonho? Sente-se ele a

penetrar na terra… a natureza… a fazer as coisas crescerem… tomarem-se maiores… maiores… ardendo

dentro de nós… fazendo a gente querer crescer… mudar-se noutra coisa… até nos fundirmos com ela… e

é nossa… mas somos dela também… que nos faz crescer mais… como uma árvore… como estes

ulmeiros…” [II Parte, Cena 1]. Esta associação parece-nos algo problemática porque o Sol é objeto de

atração e desejo por parte de todas as personagens: Simeon e Peter referem-se ao “Sol que vem connosco

para o Oeste Dourado”, Cabot queixa-se da solidão fria que é consubstancial à casa e anseia pelo calor

(mais das vacas do que do Sol, é certo) e Eben, a caminho da prisão, detém-se e aponta para o horizonte:

“O Sol a nascer. É lindo, não é?” [III Parte, Cena 4]. 89 Frederico Lourenço, “Eurípides, Medeia”, in Grécia Revisitada: Ensaios sobre Cultura Grega, op. cit.,

p. 298.

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2.3. Caracteres de uma primitiva escrita

Desejo Sob os Ulmeiros foi um escândalo – e adiante explicitaremos em que

sentido preciso ele é, em si mesmo, um escândalo (ponto 3.1). Mas, excetuando talvez

as situações em que os objetos artísticos assentam numa deliberada estratégia de

choque, num plano de perturbação da ordem emocional – e esse não é certamente o caso

da peça de Eugene O’Neill –, esta categoria não se revela grandemente útil se for nossa

intenção inquirir da natureza específica de um texto dramático ou de uma proposta

teatral. A reportagem da indignação tende a fixar-se na espuma das coisas, que

rapidamente se dissipa, condenando o assunto a um envelhecimento precoce e deixando

escapar o essencial.90 Todavia, se nos ativermos momentaneamente ao magma

incandescente de que Desejo é feito (incesto, filicídio, alcoolismo, luxúria, vingança,

todo um catálogo de paixões e delitos) e à reação que colheu nos EUA das primeiras

décadas do século XX (como regista ainda a Encyclopædia Britannica, “o primeiro

elenco de Los Angeles foi preso por representar uma obra obscena”),91 afigurar-se-á

inteiramente justificado que o dramaturgo norte-americano visite, neste seu teatro do

escândalo, a obra do tragediógrafo da Antiguidade clássica que, precisamente, como

informa Frederico Lourenço, “mais escandalizou os seus concidadãos com a ousadia

dos temas que tratou”.92

Referimo-nos a Eurípides, o ateniense que terá virado do avesso o ethos dos

heróis trágicos e feito “descambar”93 a própria tragédia enquanto género nobre. Dizê-lo

não corresponderá a um exagero retórico ou a uma liberdade estilística da nossa parte. A

90 Um exemplo tomado de empréstimo ao cinema: a onda de choque produzida por Je vous salue, Marie

impediu que se alcançasse uma evidência (como diz Nelson Rodrigues, “só os profetas enxergam o

óbvio”): o facto de o filme de Jean-Luc Godard estar imbuído de uma reverência de cariz religioso.

Sentimo-nos inclinados a subscrever a opinião do jornalista e escritor italiano Sergio Saviane, que, na

altura em que o filme se estreava em Roma, afirmou: “É um filme hiper-católico! Nunca esperaria isto de

Godard… Está cheio de amor e graciosidade infinita. Não há nele ponta de obscenidade ou blasfémia!”

Apud Maryel Locke, “A History of The Public Controversy”, in Charles Warren/Maryel Locke (ed.),

Jean-Luc Godard’s Hail Mary: Women and The Sacred in Film, Carbondale, Southern Illinois University

Press, 1993, p. 5. 91 In Encyclopædia Britannica [em linha]. Disponível em www: <URL: http://www.britannica.com/

EBchecked/topic/159216/Desire-Under-the-Elms> [consult. 09-04-2014]. 92 F. Lourenço, “Eurípides, Medeia”, in Grécia Revisitada, op. cit., p. 296. 93 F. Lourenço, “Eurípides: Trágico no Superlativo”, op. cit., p. 58.

- 37 -

descrição pertence ao escritor e helenista português, que, ao cotejar o teatro euripidiano

com o de Ésquilo e o de Sófocles, apresenta um esclarecedor ponto de situação:

A elevação moral esquiliana desapareceu. A nobreza de expressão e a sobriedade de efeitos de

Sófocles também. Em Eurípides, assistimos (passe a expressão) à desbunda total. O estilo é ao

mesmo tempo hiperbólico, simples, barroco, transparente, incompreensível, de mau gosto e

arrepiantemente lírico. Poesia em estado puro, poesia do quotidiano, poesia da desmesura, poesia

do gore, do sangue, da morte, da loucura: esta é a própria respiração da tragédia de Eurípides.94

Um diagnóstico que é confirmado por Maria de Fátima Sousa e Silva, num estudo em

que, respigando testemunhos em Aristófanes, analisa o drama de Fedra tal como este

nos surge no Hipólito de Eurípides – tragédia de que conhecemos apenas uma segunda

versão (Hipólito Portador da Coroa), supostamente expurgada de uma desassombrada

disposição viciosa constante da primeira (Hipólito Velado), dada como perdida.95 Nesse

ensaio, a classicista assinala o golpe que o criador de intrigas eróticas e “uniões

culpadas” (citando Aristófanes) desferiu à honorabilidade do teatro clássico: “A

acusação de imoralidade cai agora, com ecos de escândalo, sobre a tragédia.”96

Evidentemente, não terão sido a aura de escândalo nem a notícia do ultraje

público a desencadear o interesse de Eugene O’Neill por Eurípides e o seu Hipólito. A

nosso ver, a atenção do dramaturgo norte-americano – tal como se manifesta em Desejo

Sob os Ulmeiros – incide no conflito erótico que o poeta antigo não hesita em explorar

(ao invés dos seus predecessores, que dele guardam distância), na orientação realista

que confere ao teatro clássico e, invocando de novo o saber de Maria Helena da Rocha

94 Idem, ibidem. 95 Têm sido empreendidas diversas tentativas de reconstituição do primeiro Hipólito, cujo despudor terá

chocado a sensibilidade do público ateniense. Pela importância de que ainda se reveste o seu estudo,

mencione-se a de Spencer Barrett (vide W.S. Barrett, Euripides’ Hippolytus, Oxford, Claredon Press,

1964, pp. 15-22). Transcrevemos a versão mínima de um desses exercícios reconstitutivos: “A Ama de

Fedra terá tentado refrear a paixão da sua senhora, em vez de encorajar a sua manifestação. Depois de

Fedra apresentar a sua acusação ao marido Teseu, há uma confrontação entre ele e Hipólito, culminando,

como na versão que chegou até nós, na imprecação que Posídon executou, ao enviar um touro do mar

para matar Hipólito. A verdade é revelada, talvez através de uma confissão de Fedra, que depois suicida-

se.” Peter Burian, “Myth into muthos: the shaping of tragic plot”, in P. E. Easterling (ed.), The Cambridge

Companion to Greek Tragedy, New York, Cambridge University Companion, 1997, pp. 201-202. 96 Maria de Fátima Sousa e Silva, “A Fedra de Eurípides: Ecos de um escândalo”, in Ensaios Sobre

Eurípides, Lisboa, Cotovia, 2005, p. 168.

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Pereira, na “feição predominantemente psicológica do teatro do terceiro dos grandes

trágicos gregos”.97 Fedra avulta nessa galeria de heroínas euripidianas “cuja

feminilidade – assegura-nos Frederico Lourenço – é aproveitada com uma

verosimilhança psicológica que faz delas figuras muito mais reais do que as

inesquecíveis, mas comparativamente monolíticas, Cassandra e Antígona, de Ésquilo e

Sófocles, respetivamente”.98 Orientação realista, drama psicológico, lutas endógenas,

desejo sexual – como veremos, todas estas matérias orgânicas fertilizam o subsolo da

herdade dos Cabot…

Comecemos, contudo, pela evidência – por aquilo que, cartesianamente, se nos

afigura claro e distinto: a simpatia entre a ação dramática de Desejo Sob os Ulmeiros e o

Hipólito. Na tragédia estreada a 428 a.C., que valeu a Eurípides o primeiro prémio nas

Grandes Dionisíacas, Fedra é acometida por uma avassaladora paixão carnal pelo jovem

Hipólito, filho do seu marido, Teseu. Desprezada no seu amor, e não querendo trazer

desonra sobre si e os seus filhos, comete suicídio e vinga-se de Hipólito, ao deixar

escrita uma infundada acusação contra o enteado – a de que este a violara, poluindo a

cama do próprio pai. Confrontado com a denúncia, Teseu amaldiçoa o filho, nesse

mesmo dia despedaçado por um touro que, em resposta à paterna imprecação, irrompe

das águas do mar. Na nossa perspetiva, é este incandescente triângulo que se encontra,

distorcida ou retorcidamente, reproduzido em Desejo Sob os Ulmeiros: Abbie é essa

mulher sensual que, tendo casado com o septuagenário Ephraim, deseja, desde o

primeiro encontro, o corpo jovem e vigoroso do enteado; Eben é esse enteado que – não

representando o supino modelo de virtudes que Hipólito encarna – reage, todavia, com a

repugnância e altivez deste à expressão do desejo da mulher do pai; e Ephraim é esse

pai que deposita crédito na palavra da mulher ensandecida pelo desejo e não hesita em

amaldiçoar o filho. Mas o carácter intrincado, manifestamente não linear, deste jogo de

97 M. H. R. Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica, vol. I, op. cit., p. 325. Maria de Fátima

Sousa e Silva evoca todos estes elementos no seu estudo sobre a Fedra: “A orientação realista que

Eurípides procurou dar à tragédia influenciou, como é inevitável, a caracterização psicológica das

personagens. Humanas como são, as figuras que criou participam das fraquezas inerentes à sua própria

natureza. E Eurípides compraz-se em denunciar as lutas interiores que as dominam, como a qualquer

simples mortal, o que constitui um elemento novo dentro do teatro trágico. Pela primeira vez, a cena da

tragédia abria-se ao vasto domínio das relações sentimentais entre os dois sexos, que os seus antecessores

tinham evitado por considerarem indigno tal tipo de intrigas.” M. F. S. Silva, “A Fedra de Eurípides: Ecos

de um escândalo”, op. cit., p. 167. 98 F. Lourenço, “Eurípides, Medeia”, in Grécia Revisitada: Ensaios sobre Cultura Grega, op. cit., p. 297.

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semelhanças e correspondências lembra-nos o imperativo contido no velho oxímoro:

Festina lente.

Detenhamo-nos, pois, antes de mais, nos reflexos e refrações que Abbie

estabelece com a sua remota ascendente grega. Como Fedra, a personagem de O’Neill

começa por ocultar o desejo que sente e, a exemplo da filha de Pasífae, vinga-se do

ostensivo repúdio a que é votada, forjando a acusação de que Eben a tentara seduzir,

uma patranha que, na terceira e última parte da peça, conhecerá consequências

devastadoras. Ao invés de Fedra, contudo, Abbie confronta diretamente o enteado e

acaba mesmo por ser bem-sucedida nas suas investidas eróticas, fazendo de Eben seu

amante. Surgindo aos nossos olhos como uma criatura estruturalmente oportunista e

lasciva, talvez Abbie tenha mais em comum com a Fedra da infeliz (porque tão mal

acolhida) primeira versão do Hipólito. Nessa versão, dada como perdida, Fedra afigurar-

se-ia uma mulher amoral que ousava despudoradamente seduzir o enteado, descrição

que se ajustaria na perfeição à personagem o’neilliana. Sucede, porém, que a figura de

Abbie não é puramente negativa. Se, no Hipólito sobrevivente e definitivo, a esposa de

Teseu é uma figura de incontestável dignidade,99 a mulher de Ephraim Cabot é, de

algum modo, reabilitada ao longo da peça de O’Neill, descobrindo-se-lhe afinal uma

insuspeitada nobreza nos horrores de que é simultaneamente vítima e fautora.100 Nesse

ponto, assemelha-se mais à Fedra de Hipólito Portador da Coroa do que à de Hipólito

Velado, cujo suicídio seria afinal destituído de qualquer honra ou dignidade, afigurando-

se antes um cobarde ato de fuga. De resto, poderiam pertencer a uma Abbie rural

múltiplos passos das intervenções da heroína euripidiana, nomeadamente a seguinte

metáfora agrícola: “A minha alma já está completamente arada pelo desejo…” (v. 505)

99 Na introdução à sua tradução do Hipólito, Frederico Lourenço chama a nossa atenção para o facto de

tal dignidade ser reconhecida inclusive por Ártemis, deusa que teve em Hipólito o mais escrupuloso

devoto. Dirigindo-se a Teseu, diz: “Venho para te mostrar o espírito justo do teu filho, para que morra

honrado, e para te mostrar a paixão desvairada da tua mulher ou, de certo modo, a sua nobreza.” (vv.

1296-1301) Vide Frederico Lourenço, “Introdução”, in Eurípides, Hipólito, trad. Frederico Lourenço,

Lisboa, Colibri, 1996, p. 11. 100 Frederico Lourenço salienta uma estratégia tipicamente euripidiana: “Ao longo da peça, Eurípides leva

o espectador a rever de alto a baixo a sua perceção das duas personagens principais, a ponto de, no final,

ficarem completamente invertidos os papéis do ‘bom’ e do ‘mau’.” F. Lourenço, “Introdução”, op. cit., p.

12. Uma estratégia análoga é aplicada por O’Neill em Desejo Sob os Ulmeiros, obrigando-nos a “rever de

alto a baixo” a nossa perceção das personagens: se inicialmente a nossa simpatia está com Eben – uma

espécie de Hamlet chamado a vingar a mãe –, no final é o desesperado amor de Abbie que nos comove.

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Tal como a castamente lúbrica personagem de Eurípides, Abbie está refém do

impiedoso poder de eros e thanatos, que num caso redunda em suicídio e no outro em

infanticídio. Fedra e Abbie são, ambas, acometidas pelo mal da loucura: no Prólogo,

Afrodite alude à intensa perturbação psíquica da sua devota e, sobressaltada pelas

desconformes palavras de Fedra, a Ama confirmará, logo no primeiro episódio, o

prognóstico precoce enunciado pela deusa, obtendo o assentimento da sua senhora:

AMA: Mas que conversa disparatada é esta outra vez? Mesmo agora ias para a montanha,

desejosa de ir à caça. Agora é a paixão dos poldros nas praias sem ondas. Perceber qual dos

deuses te afasta do caminho e dá a volta à cabeça – isto, filha, só mediante poderes de divinação

muito especiais!

FEDRA: Pobre de mim, que terei eu feito? Para onde me afastei do bom senso? Enlouqueci… caí

devido a uma interferência divina. Ai, ai, pobre de mim! Ama, cobre-me outra vez a cabeça.

Tenho vergonha das coisas que disse. Cobre-me. As lágrimas correm-me dos olhos e só vejo

vergonha à minha frente. Pensar racionalmente dói, mas a loucura é uma desgraça terrível. (vv.

232-248)

No caso de Abbie, a loucura insinua-se sub-repticiamente na brusca mudança de humor

que ocorre quando irrompe pela sala de visitas onde o corpo da mãe de Eben estivera

em câmara ardente, para manifestar-se em toda essa cena, célebre pelo seu funéreo

erotismo [II Parte, Cena 2]. Nesse lugar – a peculiar câmara ardente a que acima nos

referimos –, Abbie assimila, perturbada e perturbantemente, a figura invisível da mãe

morta e consuma o ‘incesto’ com Eben. Nas didascálias, o recurso de O’Neill a

expressões como “louca paixão” ou “doidamente” não configuram propriamente

hipérboles ou meras forças de expressão. Após o infanticídio, quer Eben quer Ephraim

compreenderão que, como afirma Fedra, “a loucura é uma desgraça terrível”.

ABBIE: (Demasiado absorta nos seus próprios pensamentos para o ouvir e tentando convencê-

lo.) Não há agora razões para que vás… Não faz sentido… Está tudo como dantes… Não há

nada entre nós… depois do que eu fiz!

EBEN: (Algo na voz dela o intriga. Fita-a um tanto assustado.) Pareces louca, Abbie! Que

fizeste? [III Parte, Cena 3]

EPHRAIM: [O teu filho] está como eu esta manhã. Nunca dormi até tão tarde…

ABBIE: Está morto.

CABOT: (Fita-a, perplexo.) O quê?…

ABBIE: Matei-o.

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CABOT: (Recuando, lívido.) Estás bêbada… ou doida… ou…!

ABBIE: (Levanta de repente a cabeça, volta-se para ele, desvairada.) Matei-o, é o que te digo!

Abafei-o. Vai lá acima ver, se não me acreditas! [III Parte, Cena 4]

Numa apressada primeira leitura, é difícil identificar a simetria entre as

personagens de Eben e Hipólito: o jovem de Desejo Sob os Ulmeiros não apenas cede

aos libidinosos avanços de Abbie, como está longe de se pautar pelos elevados padrões

de castidade e autodomínio erguidos pelo nobre adorador de Ártemis. Nunca da boca da

personagem de O’Neill sairiam as seguintes palavras: “Não estou interessado em deuses

que se limitem a taumaturgias nocturnas” [v. 106]. Nem se poderia despedir dos seus

irmãos, Simeon e Peter, nos termos em que Hipólito diz adeus aos companheiros de

juventude: “Nunca vereis outro homem mais virtuoso” [v. 1100]. Na verdade, logo na

abertura de Desejo, é-nos dado a saber que Eben visita frequentemente Minnie, a

“mulher escarlate”, meretriz de aldeia com quem já seu pai e irmãos se haviam deitado.

Fá-lo inclusive no “dia do Senhor”, como afirma uma escandalizada – ou despeitada –

Abbie. Os irmãos acusam: “Luxúria… é o que cresce em ti!” [I Parte, Cena 2]; mais

adiante, o pai há-de corroborar: “A luxúria corrói-lhe o coração.” [II Parte, Cena 1]. No

entanto, a nosso ver, o vínculo entre o casto Hipólito e o devasso Eben subsiste, e

reconhecê-lo não requer uma especial subtileza de análise: ainda que com um carácter

diverso, a indignação e a repugnância com que o nobre herói de Eurípides reage às

imorais propostas da Ama são análogas às que Eben expressa face à lúbrica insinuação

de Abbie. Curiosamente, quando agarrados pelo braço, ambos se livram do repulsivo

contacto físico, eloquente demonstração de um asco que tem na ação de “cuspir” um

violento correlato.

HIPÓLITO: Não me posso calar, depois das coisas terríveis que ouvi.

AMA: (Agarra o braço de Hipólito.) Podes sim, pelo teu braço direito.

HIPÓLITO: (Com um espasmo de repugnância.) Importas-te de tirar a mão e de não me tocar na

roupa? [vv. 604-606]

ABBIE: (Pousando a mão no braço dele, sedutora.) Sejamos amigos, Eben.

EBEN: (Estupidificado, como que hipnotizado) Sim!… (Depois, sacudindo com fúria o braço

dela:) Não, velha bruxa! Tenho-te ódio! [I Parte, Cena 4]

AMA: O que vais fazer, filho? Dar cabo dos que te são próximos?

- 42 -

HIPÓLITO: Tenho nojo deles! [Literalmente: “Cuspi!”] Delinquentes a mim não me são

próximos! [vv. 613-614]

EBEN: (Cuspindo com nojo.) Essa… aqui… a dormir com ele… a roubar a herdade da minha

mãe! Mais valia amansar uma doninha malcheirosa ou beijar uma serpente! [I Parte, Cena 3]

À altivez e superioridade moral que definem a postura de Hipólito e Eben face a

Fedra e Abbie haverá que somar uma intrigante feição da fisionomia moral daquela

personagem grega, que reaparece, ainda que desfigurada, no seu longínquo descendente

norte-americano: a misógina recusa do casamento e a veneração de uma figura

transcendente, exterior ao universo dos mortais. No discurso que encerra a truculenta

altercação com a Ama, Hipólito fará inclusive do tópico um eminente objeto de

teorização.

HIPÓLITO: O mais fácil de aturar é a mulher que nem conta como gente; mas entronizar em casa

estupidamente uma mulher assim também não serve de nada. Detesto as que são inteligentes:

que nunca haja nenhuma em minha casa que pense mais do que deve uma mulher. É entre as

mulheres inteligentes que Cípris implanta a pouca-vergonha. A sua própria estupidez impede a

mulher limitada de enlouquecer. Era preciso que nenhuma criada se aproximasse da mulher e

que com elas só vivessem animais afónicos, amigos de morder, para que não fossem capazes de

falar nem, por sua vez, de lhes compreender a voz. Mas agora elas elaboram – as malvadas! –

estratagemas perversos, que depois as criadas vêm cá para fora divulgar. [vv. 635-651]

Apesar de não se escusar ao comércio íntimo, de bom grado Eben subscreveria, como

num abaixo-assinado, a feroz catilinária do seu ascendente ático. Se Abbie é

repetidamente tratada por “pega”, “ladra”, “mentirosa” e “bruxa”, Minnie – a mulher

cuja beleza e até honestidade são apregoadas nas contendas com os irmãos e com Abbie

– não chega, na verdade, a merecer-lhe qualquer genuíno apreço: “Que me ralo eu com

ela! Só me interessa que tem carne e da quente!” [I Parte, Cena 3]. Casar é algo que está

ausente do seu horizonte de expectativas e é estranho à sua índole, como se depreende

da seguinte troca de palavras entre pai e filho:

CABOT: Porque não vais para o baile? Estavam a perguntar por ti.

EBEN: Que perguntem!

CABOT: Há lá uma molhada de raparigas bonitas.

EBEN: Que vão para o diabo!

CABOT: Devias tratar de casar com uma delas.

- 43 -

EBEN: Não vou casar com nenhuma.

[III Parte, Cena 2]

Poderá certamente atribuir-se uma tal atitude à peculiar união de facto mantida

com Abbie, mas estamos convencidos de que a sua raiz e motivação são anteriores e se

prendem com a figura tutelar da mãe, cuja morte absorve a vida do filho, impondo-lhe

uma dedicação absoluta. De facto, nem o envolvimento sexual com Abbie chega a fazer

perigar esta influência, uma vez que a cópula é precedida por um fenómeno de

‘reencarnação’ da mãe na madrasta e é interpretada como um soberano gesto de

vingança da progenitora. A devoção de Eben à mãe reproduz, em boa medida, a

devoção de Hipólito à deusa Ártemis, de quem se diz “caçador” e “servidor”,

“cavaleiro” e “guarda” (v. 1397-1399). O jovem príncipe de Eurípides, como infere

Maria Helena da Rocha Pereira, é “um exemplo vivo de misticismo, no seu culto por

Ártemis, de tal modo exclusivo que se torna, por excesso, culpado de hybris para com

outra divindade não menos poderosa, Afrodite”.101 Analogamente, o convívio de Eben

com a mãe morta adquire contornos místicos e teofânicos. Quando se vê em apuros,

Eben recomenda-se à oração: “Hei-de rezar à minha mãe para que volte e venha ajudar-

me…”; quando rompe com Abbie, apela à ira divina: “Não vou contar nada ao pai.

Deixo a mãe vingar-se em ti”; e quando se confronta com o horror do infanticídio,

interroga a progenitora por si endeusada: “Mãe, onde estavas tu, porque a não

detiveste?”. Neste lutuoso e edipiano culto, não falta sequer altar ou templo: a sala de

visitas, que permanecera fechada desde que ali repousara o cadáver materno, possui

uma aura sagrada que a própria Abbie reconhecerá quando excitadamente franquear o

seu umbral. Aí busca o jovem o oráculo: “Mãe! Mãe! Que queres? Que me estás a

dizer?”. As cantantes palavras do filho de Teseu, relativas à sua exclusiva veneração a

Ártemis, poderiam transitar diretamente para a boca de Eben, esse Hipólito americano,

surpreendentemente dissoluto, mas igualmente devoto:

HIPÓLITO: […] Sou o único entre os homens que tem este privilégio: conviver e conversar

contigo, ouvindo o som da tua voz, sem olhar, porém, para o teu olhar. [vv. 84-86]

De Ephraim Cabot poderemos dizer que representa uma expressiva inflação

dramatúrgica e simbólica do arquétipo euripidiano, Teseu. Se, na tragédia grega, o pai

101 M. H. R. Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica, vol. I, op. cit., p. 328.

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de Hipólito não comparece a uma parte substancial da peça, assomando apenas no

terceiro episódio, na sequência do suicídio de Fedra, na peça de O’Neill, porém, o velho

Cabot assume uma incontestável centralidade, mesmo estando ausente de quase toda a I

Parte. Mas tudo o que é dito pelos três filhos – ora tolhidos pelo medo, ora a transbordar

de rancor – vem apenas adensar a expectativa do público em relação à sua personagem,

na qual Louis Sheaffer encontrou “uma das figuras mais ricas de toda a obra de

O’Neill”. 102 Personagem estranhamente compósita, o pai Cabot tem sido perspetivado

sob múltiplas formas, como se fosse um caleidoscópio nas mãos dos seus intérpretes:

profeta hebreu (nomeadamente Oseias), risível bufão, velho Karamazov, uma

personagem das telas de Grant Wood, titã puritano, uma grotesca variação de John

Bunyan… O próprio dramaturgo não escondeu a sua predileção por esta força da

natureza, a um tempo repelente e magnética: “Sempre adorei tanto Ephraim! Ele é tão

autobiográfico!”103 Sheaffer explica a afeição de O’Neill: “Com a sua devoção cristã e

os seus apetites carnais, o seu desdém pelos filhos e a estranha ternura que dedica à sua

manada de vacas, a sua dureza e a sua ligação à terra, simultaneamente mesquinha e

religiosa, as suas explosões de humor feroz e extravagante, Ephraim assume dimensões

épicas”.104 A esta estatura não é alheio o facto de neste homem “duro como o aço”

reaparecerem, como num palimpsesto, caracteres de uma primitiva escrita – a do

Hipólito, de Eurípides. Como Teseu, Ephraim Cabot apresenta-se-nos como um homem

de várias mulheres: na história do herói grego, contam-se três especialmente

emblemáticas – Helena, Ariadne e Fedra –, enquanto na narrativa de Ephraim sabemos

da existência da mãe de Simeon e Peter, da mãe de Eben e agora de Abbie, a “Rosa de

Sião” da sua velhice. A isto acresce que ambos são presas fáceis do logro das respetivas

mulheres: se Teseu não concede sequer o benefício da dúvida ao virtuoso Hipólito,

apesar da sólida argumentação filial, Ephraim considera Eben culpado da acusação de

se insinuar sexualmente à madrasta, mesmo conhecendo a sua aversão por ela e as

repetidas contendas entre ambos. Garante Abbie ao enteado feito amante: “Sei sempre

deitar-lhe poeira nos olhos” [II Parte, Cena 4]. Outro traço distintivo de Teseu ressurge

na invenção o’neilliana: a “fúria funesta” de que fala o Coro (v. 899) e a pronta

disposição imprecatória. As insistentes pragas que o velho Cabot roga aos filhos – em

102 L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op.cit., p. 128. 103 Apud idem, p. 130. 104 Idem, p. 128.

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especial, a Eben – são reminiscentes da fatídica maldição proferida por Teseu contra o

filho:

TESEU: […] Ó pai Posídon, as três imprecações que outrora me prometestes – com uma delas

aniquila o meu filho! Que ele não fuja a este dia, se são seguras as imprecações que me

concedestes. [vv. 886-890]

CABOT: (Erguendo os braços ao céu, numa fúria que já não domina.) Senhor Deus dos

Exércitos, esmaga esses filhos sem vergonha com a pior das Tuas maldições! [I Parte, Cena 4]

Finalmente, Teseu e Cabot conhecem o mesmo irremediável destino: a solidão. No caso

daquele que aniquilou o Minotauro, a mulher suicida-se e o filho, sob o poder letal das

suas palavras, é fatalmente dilacerado contra as pedras por um “monstruoso touro”; no

caso daquele que ama a companhia das vacas e chama ao ‘seu’ Hipólito “vitelo

desmamado”, mulher e filho abandonam a herdade sob custódia policial, tendo por

futuro certo o cadafalso. A partir de uma das derradeiras intervenções de Ephraim,

ocorre-nos efabular um breve colóquio entre o herói de Atenas e o patriarca da Nova

Inglaterra, síntese possível do dialogismo que estruturalmente aproxima as duas

personagens e as duas obras.

TESEU: Agora isto vai ser mais solitário do que alguma vez foi… E eu estou a ficar velho…

CABOT: Ora… que esperas? Deus é solitário, não é? Deus é duro e solitário!

2.4. The Force behind

FEDRA: Caí devido a uma interferência divina.

EURÍPIDES, Hipólito

ABBIE: É Deus que se vinga em todos nós!

EUGENE O’NEILL, Desejo Sob os Ulmeiros

As analogias e conexões que temos vindo a estabelecer entre as personagens da

tragédia grega de 428 a.C. e as do ‘melodrama’ americano de 1924 não visam, de modo

algum, sugerir que as criaturas (re)inventadas por Eugene O’Neill são antigos gregos –

ou heróis da mitologia ática – destituídos das suas togas de época e travestidos de

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pilgrim fathers ou de rudes yankees da oitocentista Nova Inglaterra. Essas afinidades

têm, antes, por assim dizer, um carácter propedêutico, funcionando como a antecâmara

de algo mais essencial que atravessa e marca decisivamente Desejo Sob os Ulmeiros.

Tendo em consideração o que atrás ficou exposto, estamos convencidos de que, no seu

The Secret Cause, Normand Berlin desvaloriza precipitadamente as eventuais

correspondências existentes entre as personagens de Eurípides e O’Neill –

negligenciando, a nosso ver, um precioso capital de análise –, mas inclinamo-nos a

concordar quando afirma que “a abordagem de O’Neill afigura-se mais grega não nas

similitudes particulares ou nas variações em relação à história convencional, mas na

atmosfera do determinismo”.105 A necessidade, de que a Razão e as Luzes teriam

expurgado a modernidade – “A necessidade é cega apenas enquanto não é

compreendida”, postulou Marx106 –, pairaria afinal sobre a herdade da Nova Inglaterra,

à semelhança do que, num remoto tempo mítico, acontecera no palácio real de Trezena.

Verifica-se a existência de uma espécie de homologia simbólica no Hipólito e no

Desejo Sob os Ulmeiros, um vínculo espiritual ilustrado pelo aparato cénico previsto

nos textos de Eurípides e de O’Neill. Na tragédia clássica, a intervenção inicial do

jovem príncipe atesta a existência de um altar com uma estátua dedicado a Ártemis,

deusa que há-de comparecer no teatro antes de a representação cessar; analogamente, o

colóquio mantido, instantes depois, entre Hipólito e o Servo, que paternalmente o

aconselha, denuncia a existência simétrica de um segundo altar e uma segunda estátua,

consagrados à deusa Afrodite, que abrira, em pessoa, o espaço-tempo da representação,

anunciando um plano já em curso.107 Este binómio cenográfico foi, aliás, deduzido do

texto euripidiano pelos seus tradutores e vertido numa preliminar rubrica de cena, que

decerto constaria da edição do Hippolytus que integrava a biblioteca pessoal de O’Neill

105 Normand Berlin, “Passion: Hyppolytus, Phaedra, Desire Under the Elms”, in The Secret Cause,

Amherst, The University Massachusetts Press, 1981, p. 54. 106 Apud George Steiner, The Death of Tragedy, New Haven/London, Yale University Press, 1996, p. 4. 107 A estátua de Ártemis é intuída na invocação inicial de Hipólito e dos seus Servos: “Nobilíssima

soberana, rebento de Zeus, salve, Ártemis, filha de Leto e Zeus!”; “Trago esta coroa entretecida para ti,

senhora…” [vv. 60 e ss.] A presença da estátua de Afrodite é evidenciada pela seguinte altercação entre

Hipólito e o Servo: “SERVO: Então por que motivo é que não te diriges a uma divindade altiva?//

HIPÓLITO: Qual? Pondera bem, não vá a tua boca escorregar!// SERVO: Esta que está às tuas portas,

Cípris.// HIPÓLITO: É ao longe que a saúdo, visto que sou puro.” [vv. 99-102]

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(muito provavelmente, a tradução publicada em 1902 por um insigne helenista de

Oxford, Gilbert Murray, versão que conheceu uma expressiva difusão).108

Na peça de O’Neill, nenhuma deusa toma, de início, a palavra (embora a

primeira intervenção seja o exclamativo God! de Eben), mas – no lugar das duas

estátuas – temos dois ulmeiros, cujo sentido nos é dado pela famigerada didascália de

abertura, que voltamos a invocar:

Há dois enormes ulmeiros de cada lado da casa. Parecem proteger e ao mesmo tempo dominar.

Há, no aspeto deles, uma maternidade sinistra, uma absorção ciosa e esmagadora.

Desenvolveram, no contacto íntimo com a vida humana na casa, uma humanidade aterradora.

Meditam opressivamente sobre a casa. São como mulheres exaustas que pousam no telhado os

seios pendentes, as mãos e os cabelos, e, quando chove, as suas lágrimas escorrem

monotonamente e apodrecem o telhado de madeira.

Conforme anteriormente mencionado, esta didascália terá sido pronunciada em palco

em raríssimas ocasiões, mas a importância dramática dos ulmeiros é decisiva e desde

logo sinalizada pelo título. Anota Normand Berlin: “Tudo o que acontece na peça,

desencadeado por múltiplas formas de desejo, acontece sob os ulmeiros – fisicamente

sob os ulmeiros, uma vez que eles pairam sobre a casa, e simbolicamente sob os

ulmeiros, uma vez que representam clara e convincentemente o predomínio da Mãe:

Mãe como princípio feminino, Mãe como apelo do passado, Mãe como espírito

vingativo, Mãe como amante.”109 Diríamos mesmo que representam o predomínio de

duas mães: uma, “esmagadora” e dominadora, que nunca morre; outra, “ciosa” e

sedutora, que cativa. Ambas, forças que, como enunciámos, adquirem contornos

místicos e teofânicos, correspondendo às divindades euripidianas. Curiosamente, estes

ulmeiros, que vêm ocupar o lugar dos dois altares do Hipólito, constam já do texto

trágico:110

108 Uma outra possibilidade seria a de Eugene O’Neill dispor da versão de Edward P. Coleridge,

publicada também no início do século XX. Mas ainda nesse caso se aplica a nossa suposição, uma vez

que a tradução de Coleridge inclui uma didascália similar. 109 N. Berlin, The Secret Cause, op. cit., p. 55. 110 Maiúscula e itálico nossos.

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FEDRA: Ai, ai! Se ao menos eu pudesse beber um golo de água pura de uma nascente de orvalho

e pudesse deitar-me a descansar, sob os ulmeiros, num prado viçoso e luxuriante!111 (vv. 208-

210)

Se Desejo Sob os Ulmeiros pode admitir a classificação de tragédia – rating que

Margaret Loftus Ranald lhe vem insistentemente atribuindo –, não será por mimetizar a

estrutura ou os tópicos de uma tragédia clássica (ou, como puerilmente por vezes se

supõe, porque acaba mal), mas por assentar na perceção de forças exógenas coercivas –

the Force behind de que falava O’Neill, um impenetrável reduto de mistério –, que

obscuramente presidem ao curso da vida humana e determinam a infelicidade como o

seu destino último. Resistir-lhes ou combatê-las equivale a esbracejar pateticamente no

vazio. No seu The Death of Tragedy, George Steiner assinala:

Os poetas trágicos gregos declaram que as forças que moldam ou destroem as nossas vidas

radicam no exterior do governo da razão ou da justiça. Pior ainda: em torno de nós há energias

daemónicas que se apoderam da alma, entregando-a à loucura, ou envenenam a nossa vontade de

tal modo que infligimos irreparáveis danos a nós próprios e aos que amamos.112

É no interior desta mundividência que encontramos o torturado autor de Longa

Jornada para a Noite, e é ela que pode inocular, em Desejo Sob os Ulmeiros, o “sentido

clássico de tragédia” de que falava o crítico citado pela atriz Katina Paxinou. Se, na

obra de Eurípides, Afrodite determina o curso da existência de Fedra, Hipólito e Teseu,

dando provas de um poder contra o qual nada podem e desencadeando, no caso da

primeira, um estado de perturbação psíquica que a coloca no limiar da loucura, the

Force behind que opera na peça de O’Neill é essa “maternidade sinistra”,

simultaneamente funesta e sedutora, objetivada pelos omnipresentes ulmeiros, geradora

não apenas de vida, mas também de insânia e morte. Em Eurípides, as deusas projetam a

sombra do inelutável sobre o palácio de Trezena; em O’Neill, os ulmeiros lançam a

mesma trágica sombra sobre a herdade dos Cabot. Ao invés de Afrodite e Ártemis, que

surgem no Prólogo e no Êxodo, respetivamente, para se dirigirem ao público e

interpelarem os homens, as duas árvores ditam silenciosamente a sua lei, acossando

todavia com idêntica eficácia os seus mortais. Apropriando-nos das palavras de um

111 Cometemos o atrevimento de, na tradução de Frederico Lourenço, substituir a expressão “debaixo dos

ulmeiros” pela formulação sinónima “sob os ulmeiros”. 112 G. Steiner, The Death of Tragedy, op. cit., pp. 6-7.

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Salmo hebraico, poderíamos dizer: “Sem linguagem, sem fala, ouvem-se as suas vozes.”

(Sl. 19.3) É a muda eloquência do passado – “o passado que gera o presente”, para

retomar a expressão de O’Neill113 –, do indeferível apelo do atavismo, da feroz

persuasão de “uma mãe morta que não acaba de morrer e retém o filho cativo”.114

Aplica-se à espectralidade de Desejo Sob os Ulmeiros o sombrio passo de Requiem por

uma Freira, de William Faulkner: “O passado nunca morre. Nem sequer é passado.”115

Ou poderíamos lembrar a réplica um tanto brutal que, em Longa Jornada para a Noite,

Mary dá ao apelo de Tyrone para que esqueça o passado: “O passado é o presente, não

é? E também o futuro. Todos tentamos ignorar isto, mas a vida não consente.”116

Já não nos encontramos no mesmo paradigma epistémico ou ontognoseológico,

é certo. O determinismo divino é, em Hipólito, uma evidência não apenas para o

público, a quem Afrodite dá a conhecer as suas intenções e o seu programa, mas

também para as personagens que protagonizam, ou sofrem, a ação trágica. Tanto Fedra

como a Ama revelam consciência e até uma compreensão racional da “doença” (v. 395)

que aflige a filha de Pasífae e do que está na sua origem: “Enlouqueci… caí devido a

uma interferência divina”, lamenta Fedra (v. 240); “Cípris, que me destruiu a mim, a ela

e a esta casa, não é uma deusa, mas algo mais poderoso ainda do que um deus”, pranteia

a Ama (vv. 359-361). Também Hipólito e Teseu acederão a esta evidência, quando

Ártemis fizer a sua aparição como deus ex machina: “Ai, já sei quem foi a divindade

que me destruiu”, (v. 1401) dirá o moribundo caçador que antes frequentava prados

113 In T. Bogard/J. Bryer (ed.), Selected Letters of Eugene O’Neill, op. cit., p. 195. 114 André Green apud J.-P. Sarrazac, “Le Roman Dramatique Familial de Eugene O’Neill”, op. cit., p. 55. 115 Embora autores como Normand Berlin advoguem que O’Neill substitui em Desejo a teogonia grega

pela doutrina freudiana, na verdade, esse passado insepulto que polui o presente dos Cabot também se

encontra, em surdina, no Hipólito. Esta é, pelo menos, a perspetiva de Edith Hall em Greek Tragedy:

Suffering under the Sun, onde se chama à colação o passado biológico e a herança genética: “Fedra é uma

princesa cretense, filha da lasciva Pasífae que gerou o Minotauro, e neta de Aérope, que adulterou ao

deitar-se com o irmão do próprio marido: as mulheres de Creta são, na tragédia, invulgarmente suscetíveis

a impulsos eróticos transgressivos. Hipólito herda da mãe a sua rejeição à maturidade sexual, o repúdio ao

casamento e a radical antipatia pelo sexo oposto. A mãe de Hipólito era a Rainha das Amazonas, tribo de

mulheres guerreiras que desprezavam relações conjugais ‘normais’ e percorriam bosques virgens.” (E.

Hall, Greek Tragedy: Suffering under the Sun, op. cit., p. 249.) É como se, à semelhança de Yahveh, o

Deus único da Bíblia hebraica, os deuses pagãos da Grécia visitassem “a iniquidade dos pais sobre os

filhos e sobre os filhos dos filhos até à terceira e quarta geração”. (Ex. 34.7) 116 E. O’Neill, Jornada para a Noite, op. cit., p. 103.

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virgens. Ora, a evidência desapareceu entre os unicórnios, como sentenciou o ensaísta

italiano Roberto Calasso.117 Mas, ainda que não possuindo contornos de coisa clara e

distinta, a presença real dessa força estranha é também, em Desejo Sob os Ulmeiros,

objeto de reconhecimento por parte das personagens, nomeadamente Eben, que intui a

“interferência divina” (aplicamos a formulação de Fedra) protagonizada pela mãe morta

na magnífica cena que tem lugar nesse sancta sanctorum que é a sala de visitas:

EBEN: (À presença que sente na sala.) Mãe! Mãe! Que queres? Que me estás a dizer?

ABBIE: Está a dizer-te que me ames. Sabe que eu te amo e que serei boa para ti. Não sentes? Não

sabes? Está a dizer-te que me ames, Eben!

EBEN: Sim… Sinto… talvez ela… mas… não consigo perceber… porque… quando roubaste o

lugar dela… aqui, na sua casa… na sala onde ela esteve…

ABBIE: (Com intensidade.) Ela sabe que eu te amo!

EBEN: (Com o rosto a iluminar-se subitamente de um imenso riso triunfante.) Estou a ver! Estou

a ver porquê! É que ela, assim, vinga-se dele… e pode repousar em paz na sepultura!

ABBIE: (Doidamente.) É Deus que se vinga em todos nós! E que nos importa? Eu amo-te, Eben!

Deus sabe que eu te amo! (Estica os braços para ele.) [II Parte, Cena 3]

Se a tragédia de Eurípides é, pois, a história da exemplar vingança de Afrodite sobre

Hipólito, cuja misógina castidade foi cobrada nos termos de uma imperdoável

blasfémia, e se essa punição tem de ser executada, mesmo implicando a destruição de

uma ‘filha’ (Fedra), Desejo Sob os Ulmeiros é, também a seu modo, uma revenge play:

a que a mãe defunta impõe ao pai vivo, a que o passado impõe ao presente, mesmo que

tal acarrete o sacrifício do filho, Eben. Não podemos, contudo, deixar de notar que o

próprio Ephraim é sensível à alteridade que informa o drama. Pertence-lhe inclusive um

dos mais perturbantes e misteriosos comentários de toda a peça, sobretudo tendo em

conta que ocorre durante essa celebração dionisíaca que é a festa do nascimento do

filho/neto. Aí, Ephraim dá voz à perceção de uma familiar estranheza, algo a que

aparentemente só a palavra alemã Unheimlich, teorizada por Freud num texto famoso de

1919, parece fazer justiça – um conceito que “pertence a dois conjuntos de

representações que, por serem opostas, são, pelo menos, mutuamente estranhas: o

familiar, confortável, e o escondido, dissimulado”.118

117 “Ontem, os filósofos costumavam partir da evidência, que agora desapareceu entre os unicórnios.”

Roberto Calasso, Os Quarenta e Nove Degraus, Lisboa, Cotovia, 1998, p. 27. 118 Sigmund Freud, L’inquiétante étrangeté et autres essais, Paris, Gallimard, 1985, p. 221.

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CABOT: […] Sinto isto, que tomba dos ulmeiros, que trepa pelo telhado, que se esgueira pela

chaminé abaixo e espreita dos cantos! Não há paz nas casas, não há repouso no meio de gente. E

sempre alguma coisa vive connosco. [III Parte, Cena 1]

A nosso ver, se etimologicamente protagonista significa ‘o primeiro a entrar na

luta’ ou ‘o que combate na primeira fila’, talvez os protagonistas do Hipólito e de

Desejo Sob os Ulmeiros não sejam Fedra ou Hipólito, nem Eben, Abbie ou Cabot, mas

essa força “mais poderosa ainda do que um deus”, insondável matriz do obscuro objeto

que é o desejo. Num caso, trata-se de Afrodite; no outro, trata-se de uma maternidade

difusa, presente tanto no opressivo espectro da mãe de Eben e em Abbie (“a nossa nova

mãe”, diz Simeon), como nos ulmeiros e nas vacas, junto das quais um Ephraim “a cair

da tripeça” espera satisfazer o seu enigmático desejo de calor e companhia. Normand

Berlin observa: “Parece que percorremos um longo caminho, indo do Teseu que

enfrenta um touro no labirinto até ao Ephraim Cabot com as suas vacas numa quinta da

Nova Inglaterra, mas as paixões e necessidades do homem permanecem obscuras e as

suas causas secretas e impenetráveis”.119 Não há progresso nessa coisa a que, por

comodidade, chamamos ‘condição humana’. Encontramo-nos, afinal, no mesmo ponto –

indeterminável – em que sempre estivemos. E permanecemos irremediavelmente

expostos a uma imprevisível força oculta,120 como um desabrigado animal num mundo

frio e hostil, como uma abelha na chuva. Escreve George Steiner: “Fora e dentro do

homem está l’autre, a alteridade do mundo. Podem chamar-lhe o que quiserem: um

Deus oculto e malévolo, o cego destino, as reivindicações do inferno ou a fúria bruta do

119 N. Berlin, The Secret Cause, op. cit., p. 61. 120 A perceção de uma força oculta e obscura é também veiculada no drama póstumo de O’Neill, Longa

Jornada para a Noite. Se em Desejo Sob os Ulmeiros, os ulmeiros que ensombram a herdade dos Cabot

são o correlato objetivo desse protagonista ausente que é Mãe (ou o Passado), algo análogo ocorre no

nevoeiro que se vai adensando em torno da casa dos Tyrone, como que montando um cerco à família.

Jean-Pierre Sarrazac refere-se ao nevoeiro de Longa Jornada como “o verdadeiro agente dramático da

peça”. (Jean-Pierre Sarrazac, Poétique du drame moderne: De Henrik Ibsen à Bernard-Marie Koltès,

Paris, Seuil, 2012, p. 117.) Sintomaticamente, é através da mãe, um espectro que vagueia pelo andar de

cima da casa, que o apelo e a coerção desse poder exógeno são evocados: “MARY: O nevoeiro esconde-

nos do mundo e esconde o mundo de nós. Sente-se que tudo mudou, nada é o que parecia ser. Ninguém

pode encontrar-nos ou tocar-nos sequer. […] A ronca é que eu detesto. Não nos deixa estar sós. Está

sempre a lembrar-nos, a avisar-nos, a chamar por nós.” E. O’Neill, Jornada para a Noite, op. cit., p. 115.

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nosso sangue animal. Espera por nós em encruzilhadas, prepara-nos emboscadas.

Escarnece de nós e aniquila-nos. Em algumas raras ocasiões, leva-nos para lá da

destruição, para algum incompreensível descanso.”121

Analisado o modo como Desejo Sob os Ulmeiros procura estar à altura da

categoria de tragédia, no sentido clássico, percebemos, assim, a razão pela qual a peça

tem sido vista pelos biógrafos e críticos de O’Neill, em termos quase teleológicos, como

“o cumprimento da promessa” contida na primeira fase da carreira do dramaturgo. Os

mais resolutos não hesitam em convocar a problemática – e talvez pouco proveitosa –

categoria crítica da genialidade, asseverando que “com esta peça, O’Neill afirma-se

como um dramaturgo de génio”.122 Ainda assim, somos obrigados a perguntar se Desejo

Sob os Ulmeiros pode ser categoricamente designada, como faz Travis Bogard, “a

primeira tragédia de relevo a ser escrita na América”.123 Não é o de relevo que suscita

legítimas reservas, mas a própria categoria tragédia. É verdade que O’Neill se

apresentou como tragediógrafo – “Escrevo tragédias”,124 afirma resolutamente numa das

cartas da época de Desejo – e, como vimos anteriormente, definiu a sua violenta e

apaixonada peça como “uma tragédia de gente possessiva”.125 Sucede que uma coisa é o

trágico; outra, diversa, a tragédia. Na ótica de George Steiner, o trágico é universal,

enquanto a tragédia pertence a um momento da história ocidental que se encontra

superado: as suas condições de possibilidade teriam expirado após Racine, no século

XVII, com a irresistível emergência de um paradigma de racionalidade tecnocientífica e

progressista.

A personagem trágica é despedaçada por forças que não podem ser compreendidas na sua

plenitude nem suplantadas pela prudência da razão. […] Onde as causas da desgraça são

temporais, onde o conflito é suscetível de ser resolvido através de meios técnicos ou sociais,

121 G. Steiner, The Death of Tragedy, op. cit., pp. 8-9. 122 Margaret Loftus Ranald apud S. A. Black, Eugene O’Neill: Beyond Mourning and Tragedy, op. cit., p.

318. No volume organizado por Harold Bloom sobre o moderno teatro norte-americano, Lionel Trilling

inicia assim o ensaio dedicado a Eugene O’Neill: “O que quer que haja de incerto em relação a Eugene

O’Neill, uma coisa é definitivamente certa: o seu génio.” Lionel Trilling, “Eugene O’Neill”, in Harold

Bloom (ed.), Modern American Drama, New York, Chelsea House, 2005, p. 13. 123 T. Bogard, Contour in Time, op. cit.. 124 Carta de 6 de Fevereiro de 1925, endereçada a Sister Mary Leo. In T. Bogard/J. Bryer (ed.), Selected

Letters of Eugene O’Neill, op. cit., p. 192. 125 Apud L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., pp. 441-442.

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podemos ter drama a sério, mas não tragédia. Leis de divórcio mais flexíveis não podem alterar o

destino de Agamémnon, e a psiquiatria social não é resposta para o Édipo. Mas relações

económicas mais salutares e mais justas podem resolver algumas das graves crises das peças de

Ibsen. Não se pode perder de vista este violento contraste. A tragédia é irreparável.126

Mesmo se nos alhearmos do aparato argumentativo de Steiner e nos detivermos

exclusivamente sobre a especificidade da poética o’neilliana, a classificação de tragédia

pode revelar-se problemática. Jean-Pierre Sarrazac não hesita em classificar como um

fiasco o projeto de O’Neill erguer uma forma trágica de matriz e inspiração ática.

Argumenta Sarrazac que o seu teatro enferma de uma anomalia genológica: “Se as

peças de Ibsen se escoram em romances não escritos de que são epílogos, as peças de

O’Neill desenrolam-se e projetam-se como romances”.127 Tudo na escrita dramática do

autor de Welded e Strange Interlude [1928] o parece indiciar: a organização não em

atos, mas em capítulos, que pautam as diferentes etapas de uma existência; a hipertrofia

das didascálias, que se assemelham a típicas descrições de um romance do século XIX e

dissecam, física e psicologicamente, as personagens (didascálias que, no caso de Desejo

Sob os Ulmeiros, representam uma décima parte do texto);128 os diálogos nos quais, em

várias peças, emerge uma espécie de monólogo interior;129 a estrutura temporal, que faz

126 G. Steiner, The Death of Tragedy, op. cit., p. 8. Infaustamente, o dramaturgo americano caiu na cilada

aqui denunciada por Steiner: a de pretender adaptar a tragédia a um moderno paradigma racionalista,

“substituindo a fatalidade grega por forças mais compreensíveis num tempo sem religião e sem

comprometimento com os deuses”. Eugene O’Neill apud M.L. Ranald, “O’Neill, Eugene”, op. cit., p.

724. 127 J.-P. Sarrazac, “Le Roman Dramatique Familial de Eugene O’Neill”, op. cit., p. 49. 128 Esta inflação didascálica atinge o seu expoente máximo em Longa Jornada para a Noite, cujas

indicações cénicas detalham a biblioteca da casa de férias dos Tyrone, minudenciam as madeiras do

mobiliário e descrevem fotograficamente a compleição e a fisionomia das personagens (altura, silhueta,

pele, nariz, boca, testa, sobrancelhas, pestanas, dedos das mãos, articulações, etc.). 129 Este procedimento o’neilliano, que Peter Szondi, Jean-Pierre Sarrazac e Joseph Danan identificam em

peças temporalmente próximas de Desejo Sob os Ulmeiros, como Welded e Strange Interlude, talvez se

encontre também presente na folk tragedy dos Cabot (por exemplo, no monólogo da Cena 2 da II Parte,

em que Ephraim exuma o seu passado). A propósito desse procedimento ou técnica transcrevemos um

comentário de Danan: “As personagens de O’Neill não conversam. Estão presas na tensão de um diálogo

de que não se conseguem evadir nem mesmo pelo entendimento dessa tensão. Os ‘monólogos interiores’

são os de personagens em situação que, como jogadores de xadrez, calculam a sequência dos lances (as

réplicas que se seguem).” Joseph Danan, Le Théâtre de la Pensée, Rouen, Médianes, 1995, p. 126. Vide

Peter Szondi, Teoria do Drama Moderno (1880-1950), São Paulo, Cosac & Naify, 2001, pp. 152-156.

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tudo vir à superfície, sejam dezenas de anos ou todo o curso de uma vida… Não que

Sarrazac partilhe da tese dos detratores de O’Neill, segundo a qual a opção do escritor

pelo teatro em detrimento do romance decorre de um erro de cálculo. Na ótica do

dramaturgo e ensaísta francês, os desvios e inflexões romanescas redundam num

robustecimento da intersubjetividade dialogada e visam aquela mutação da forma

dramática anteriormente patrocinada por Lessing e Schiller: “uma regeneradora

hibridação do drama pelo romance”.130 É sobretudo no plano de uma penetração do

dramático pelo épico, de um “transbordamento mútuo destes modos”,131 que se

manifesta a “pulsão rapsódica”132 de Eugene O’Neill. Estamos em crer que Matthias

Langhoff – encenador franco-alemão que desde sempre se interessou por essa segunda

linguagem dos textos dramáticos (as legendas brechtianas, as didascálias de Heiner

Müller, etc.) – subscreveria integralmente a tese de Sarrazac. Quando, em 1992, encena

Desejo Sob os Ulmeiros, Langhoff trata a peça de O’Neill não como uma tragédia

grega, mas, diz-nos Odette Aslan, “como um romance que tivesse partes dialogadas”:

numa terminologia brechtiana, “ele literariza a peça de teatro com um metatexto”.133

Concluímos assim que, por detrás de um eventual fracasso do projeto trágico de

O’Neill, se ocultará, afinal, um triunfo: o de um romance dramático familiar, que,

acrescenta Jean-Pierre Sarrazac, “a arte de O’Neill, plena de humor e sensibilidade,

converte em romance da América.”134

130 J.-P. Sarrazac, “Le Roman Dramatique Familial de Eugene O’Neill”, op. cit., p. 50. Sarrazac advoga

que a romancização do drama (de que já falara Mikhail Bakhtine) constitui o traço definidor do teatro de

O’Neill e que esta perversão genológica concorre, juntamente com outros desvios dramatúrgicos, para a

“emergência de uma dramaturgia do tempo – do tempo da vida”, ou seja, para um novo paradigma

dramático que depõe a conceção aristotélico-hegeliana do drama que vigorou no Ocidente, entre o

Renascimento e o final do século XIX: a esse novo paradigma chama Sarrazac “drama-da-vida”, por

oposição ao “drama-na-vida”. J.-P. Sarrazac, Poétique du drame moderne, op. cit., pp. 115, 66. 131 Idem, p. 304. 132 “A pulsão rapsódica – que não significa nem abolição nem neutralização do dramático […] – procede,

na verdade, por um jogo múltiplo de aposições e oposições… Dos modos: dramático, lírico, épico e

mesmo argumentativo. Dos tons ou daquilo a que chamamos ‘géneros’: farsesco e trágico, grotesco e

patético, etc. […] Também da escrita e da oralidade… e a enumeração não é exaustiva.” Jean-Pierre

Sarrazac, O Futuro do Drama, trad. Alexandra Moreira da Silva, Porto, Campo das Letras, 2002, p. 227. 133 Odette Aslan, “La Saga des Cabot: Désir sous les ormes”, in Odette Aslan (org.), Langhoff: La

poétique de Matthias Langhoff, Paris, CNRS Éditions, 1994, p. 368. 134 J.-P. Sarrazac, “Le Roman Dramatique Familial de Eugene O’Neill”, op. cit., p. 62.

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3. Herança bíblica

Limiar

A Escritura cresce com os que a lêem.

GREGÓRIO MAGNO

Em muitas casas é ainda possível encontrar, expostos na parede, retratos de

longínquos antepassados. Para os parentes vivos que os não conheceram ou que deles

conservam apenas uma memória difusa, essas imagens constituem uma realidade

simultaneamente familiar e estranha. Habituados a conviver com tais retratos ao ponto

de estes se tornarem virtualmente invisíveis, são talvez capazes de recordar o primeiro

nome, o grau de parentesco ou até o posicionamento dos ascendentes na árvore

genealógica, mas desconhecem a sua história, personalidade e influência: o modo como

as suas feições, físicas e espirituais, se reimprimiram e transmudaram nos que se lhes

seguiram.

Numa sociedade laicizada, que ignora as narrativas bíblicas, ou até que as relega

como uma velharia para o balde do lixo da História de que falava Trotsky, a Bíblia é

como um desses retratos – algo familiar que permanece estranho.135 Admitimos, de uma

forma genérica, a sua importância matricial na história da cultura judaico-cristã que

herdámos, mas ignoramos o seu carácter e autoridade. Não nos referimos,

evidentemente, à sua autoridade teológica, decorrente do estatuto dogmático de Dei

Verbum, mas à força gravitacional que a Bíblia historicamente exerceu – e exerce ainda

no presente, a despeito da secularização do Ocidente e da aparente falência de uma

prática religiosa formal – ao informar a imaginação e o pensamento, da filosofia ao

135 Foi esse sentimento que levou um autor como Northrop Frye a formular um curso sobre a Bíblia como

guia para o estudo da literatura inglesa e, posteriormente, a elaborar um livro como The Great Code: “O

meu interesse na matéria começou nos primeiros tempos da minha carreira como professor, quando me vi

a ensinar Milton e a escrever sobre Blake, dois autores excecionalmente bíblicos, mesmo para os

parâmetros da literatura inglesa. Rapidamente percebi que um estudante de literatura inglesa que não

conheça a Bíblia não compreende muito do que se passa naquilo que lê: o estudante mais escrupuloso

estará permanentemente a deturpar as implicações, até o significado.” N. Frye, The Great Code: The

Bible and Literature, op. cit., pp. xi-xii.

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direito, da ‘arte sacra’ à psicanálise, da poesia à teoria política. Num ensaio recente,

Claudio Magris definiu-a como “o alfabeto do mundo”,136 peça-chave da legibilidade do

real e do humano, parceiro inalienável de uma ‘comunicação global’. Outros viram no

texto bíblico um atlas iconográfico, um estaleiro simbólico, um reservatório de

narrativas, um laboratório de linguagens.137 Após anos de estudo, investigadores e

críticos literários como Robert Alter e Frank Kermode, a quem tomámos de empréstimo

a nossa analogia (a de que as Sagradas Escrituras equivaleriam às feições de um

antepassado), concluíram que “a linguagem [da Bíblia], bem como as mensagens que

ela veicula, simboliza para nós o passado, estranho e todavia familiar, o qual sentimos

que nos é necessário compreender, se querermos compreender-nos a nós próprios”.138

Sugere José Tolentino Mendonça que, ao pensarmos nas várias definições de

clássico propostas por Italo Calvino, não recusaremos às Sagradas Escrituras o estatuto,

um pouco grandiloquente, de “superclássico”.139 Retenhamos, por ora, uma dessas

definições: “Os clássicos são livros que exercem uma influência especial, tanto quanto

se impõem como inesquecíveis, como quando se ocultam nas pregas da memória,

mimetizando-se de inconsciente coletivo ou individual.”140 Tal caracterização permite-

nos aludir ao carácter multiforme da presença real do texto bíblico na atividade

simbólica e literária do Ocidente, sobretudo nas regiões em que a Reforma erigiu a

leitura das Escrituras e a sua tradução para as línguas vernáculas em imperativos

categóricos. Não dispomos sequer de uma forma cabal de enunciar essa força tentadora,

que vai da paráfrase direta à citação truncada, da paródia desabrida à mais delicada das

alusões. Qualquer levantamento documental, mesmo circunscrevendo-nos tão-somente

à literatura, revela-se um esforço vão, um exercício fastidioso, tendo de incluir tanto a

transposição amplificada dos topoi bíblicos promovida pelos mistérios medievais – de

que temos no vicentino Breve Sumário da História de Deus uma esplêndida versão

miniatural – como a referencialidade tangencial de Absalão, Absalão de Faulkner. Do

Paraíso Perdido de Milton a A hora em que não sabíamos uns dos outros de Peter

136 C. Magris, “El Alfabeto del Mundo”, op. cit., p. 23. 137 Vide José Tolentino Mendonça, A Leitura Infinita: Bíblia e Interpretação, Lisboa, Assírio & Alvim,

2008, p. 46. 138 Robert Alter/Frank Kermode (ed.), The Literary Guide to the Bible, Cambridge (Massachusetts),

Harvard University Press, 1990, p. 1. 139 J. T. Mendonça, A Leitura Infinita, op. cit., p. 47. 140 I. Calvino, Porquê Ler os Clássicos?, op. cit., p. 11.

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Handke, da Divina Comédia de Dante a À Espera de Godot de Beckett, de Anunciação

a Maria de Paul Claudel aos Prantos de Giovanni Testori, da Salomé de Wilde a Um

Auto para Jerusalém de Cesariny, das redondilhas camonianas ao “De Profundis” de

Nemésio – muitas e tão diversas são as aparições da simbólica bíblica na produção

literária e dramática ocidental. Num prefácio à Bíblia hebraica, George Steiner diz que,

no fundo, todos os livros e textos seriam como “centelhas, muitas vezes distantes,

espargidas pelo sopro incessante de um fogo central”.141

Recuperando a imagem inicial – a do retrato de um antepassado mais ou menos

remoto –, diremos que o propósito de todo este capítulo consiste na identificação de

traços da fisionomia bíblica no rosto de Desejo Sob os Ulmeiros, alguns dos quais não

denotam transparência, manifestando-se antes de forma problemática, ambígua ou

irrisória. Tal reconhecimento dos caracteres da escrita sagrada pretende exceder a mera

sinalização de ‘fontes’ e enunciar operações hermenêuticas e procedimentos estéticos

implicados na apropriação dramática que Eugene O’Neill faz da imagery bíblica. Trata-

se de compreender como o brilho do duplo gume das Escrituras ilumina figuras,

motivos ou cenas desta criação dramática. Talvez aqui encontremos alguma felicidade,

como desejariam Didi e Gogo, esses longínquos descendentes dos dois ladrões do

Evangelho segundo São Lucas.

VLADIMIR : Leste a Bíblia alguma vez?

ESTRAGON: A Bíblia… [Reflete.] Devo ter passado os olhos.

VLADIMIR : Lembras-te dos Evangelhos?

ESTRAGON: Lembro-me dos mapas da Terra Santa. Eram coloridos. Muito bonitos. O Mar Morto

era azul claro. Só o aspeto dele dava-me sede. É lá que havemos de ir, costumava eu dizer, é lá

que havemos de passar a lua-de-mel. Lá podemos nadar. Ser felizes.142

141 George Steiner, “Um Prefácio à Bíblia Hebraica”, in Paixão Intacta: Ensaios, trad. Margarida

Periquito e Victor Antunes, Lisboa, Relógio D’Água, 2003, p. 76. 142 Samuel Beckett, À Espera de Godot, tradução inédita de Francisco Luís Parreira. Sujeitos a um longo

martírio e a uma penosa espera, Didi e Gogo mimetizam os dois ladrões de que fala o Evangelho (Lc.

23.39-43) e que a tradição batizou como Dimas e Gestas (a semelhança fonética indicia o parentesco). A

narrativa bíblica é motivo de conversa entre as personagens e um quadro silencioso insinua o paralelismo:

uma didascália indica que Didi e Gogo “permanecem imóveis, os braços adormecidos, as cabeças

descaídas, os joelhos ligeiramente fletidos”, como dois crucificados. Adianta Francisco Luís Parreira, nas

notas à tradução: “O motivo cruciforme atravessa a relação entre os pares. Estragon e Vladimir colocam-

se por vezes de um e de outro lado da árvore, como os ladrões (o que faz da árvore a árvore da salvação) e

as próprias indicações de Beckett para que sobretudo Estragon estendesse os braços vão nesse sentido.”

- 58 -

3.1. Pedras de tropeço

E esta pedra, que eu erigi à maneira de monumento,

será para mim casa de Deus…

GÉNESIS 28.22

Quando estreou, a 11 de Novembro de 1924, no Greenwich Village de Nova

Iorque, Desejo Sob os Ulmeiros foi considerado um escândalo. Teve, é certo,

admiráveis índices de público – o que em nada contradiz o vaticínio, pelo contrário – e

o autor afirmou, confiadamente, tratar-se da sua “melhor peça”.143 As reações críticas

revelam, contudo, uma violenta crispação: o American denunciou a peça de Eugene

O’Neill como um “cancro” e as suas personagens como seres “hediondos”; mais

benigno talvez, o Post recusou-a com base na “sordidez quase irrecuperável” do seu

argumento, enquanto a revista Time pontificava: “É o tipo de coisa a que o espectador se

irá opor pela razão de que simplesmente a existência não pode ser tão brutal.” Houve

também quem afirmasse que a peça deveria ser vista por todos aqueles que tivessem

sério interesse pelo teatro, para logo acrescentar um edificante aviso: “Ninguém a

deverá ver precipitadamente – sem ter conhecimento de que é uma história na qual

luxúria e homicídio, incesto entre filho e madrasta e infanticídio, coisas ignóbeis e

pecaminosas e uma aterradora liberdade de expressão são amplamente ilustrados.”144 A

reação escandalizada não se confinou às páginas da imprensa: os fiscais da moral e dos

bons costumes consideraram a peça “demasiado nociva para ser purificada por um lápis

azul”.145 Em conformidade, o procurador público de Nova Iorque despendeu os

melhores esforços para encerrar a produção e, em Londres, o zeloso Lord Chamberlain

Office conseguiu proibir a apresentação da peça, anátema que só em 1941 seria

suspenso.146

143 É uma convicção afirmada repetidamente nas cartas do dramaturgo, tanto antes como depois da

estreia. Em Julho de 1924, escreve: “Tenho a certeza de que, até ao momento, é a minha melhor peça e a

mais acabada”. Já após a estreia da primeira montagem, em Fevereiro de 1925, pergunta a Michael Gold:

“A propósito, já viste o Desejo Sob os Ulmeiros? Considero-o como o meu melhor”. In T. Bogard/J.

Bryer (ed.), Selected Letters of Eugene O’Neill, op. cit., pp. 188, 193. 144 Fragmentos críticos citados por L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., p.158. 145 T. Bogard/J. Bryer (ed.), Selected Letters of Eugene O’Neill, op. cit., p. 194. 146 Vide S. A. Black, Eugene O’Neill: Beyond Mourning and Tragedy, op. cit., pp. 316-317.

- 59 -

A crónica deste escândalo encontra-se suficientemente explicada e, atualmente,

talvez não justifique mais do que uma nota de rodapé, a título de anedota ou curiosidade

histórica. Se, não obstante, a mencionámos é porque o conceito de escândalo se revela

surpreendentemente adequado para descrever Desejo Sob os Ulmeiros, não pelos

motivos acima aduzidos (o poder de choque da peça de O’Neill é hoje residual, e as

suas virtudes não são, manifestamente, as do chamado in-yer-face theatre), mas, porque

derivada do grego neotestamentário skándalon, a palavra significa literalmente pedra de

tropeço. Biblicamente, escandalizar é fazer cair, constituir(-se) motivo de tropeço e

queda para alguém. Trata-se de um conceito moral e religioso: escândalo é não só a

tentação que Satanás ou o homem lança a um inimigo ou irmão, mas também uma

provação divina, desencadeada para, por exemplo, aquilatar da perseverança ou

fidelidade de um servo.147 O próprio Cristo, que nos Evangelhos é designado como

“pedra angular” [Mt. 21.42; Act. 4.11; 1 Pe. 2.4-7], também se afigura skándalon –

pedra de tropeço, sinal de contradição. Dirigindo-se à igreja da Ásia Menor, São Paulo

adverte que a Cruz é um obstáculo a toda a lógica e sabedoria humana: “Nós pregamos

o Messias crucificado, que é escândalo para os judeus e loucura para os gentios” [I Cor.

1.23]. Ora, as personagens de Desejo Sob os Ulmeiros são não apenas “pedras vivas” [I

Pe. 2.5], para empregarmos uma formulação cunhada por São Pedro (ele próprio assim

chamado para transportar no nome a sua vocação eclesial), mas também pedras de

arestas vivas, pedras não lavradas, como as que a Lei de Moisés prescreve para a

edificação dos altares sacrificiais,148 e sobretudo pedras de tropeço. O modo como as

personagens de O’Neill se arremessam e acometem umas contra as outras, como se

atingem e ferem mutuamente, como se fazem tropeçar e cair, constitui não apenas um

caso de bellum omnia contra omnes, mas também uma espécie de intifada – guerra de

pedras.

A identidade pétrea a que aludimos é especialmente evidente em Ephraim, nome

bíblico que nos remete para o progenitor de uma das doze tribos de Israel e cuja

etimologia significa fecundo ou fértil (o que lança uma irónica luz sobre a personagem

do velho pai). Não é apenas o seu rosto que é duro, “como se tivesse sido esculpido num

seixo” [I Parte, Cena 4], ou a sua compleição física que é de uma notável robustez (“rijo

147 Vide Xavier Léon-Dufour (dir.), Vocabulaire de Théologie Biblique, Paris, Les Éditions du Cerf, 2009,

p. 1199. 148 “Se fizeres para mim um altar de pedras, não o construirás com pedras lavradas, porque ao vibrares o

teu cinzel sobre elas, profaná-la-ias.” [Ex. 24.25]

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como uma nogueira”, [II Parte, Cena 1]): toda a sua história, índole e vocação possuem

a natureza, a consistência e a severidade da pedra. Daí a sua total identificação com um

Deus “duro e solitário” [III Parte, Cena 4], imune à patologia moral da

condescendência, e a sua irreversível projeção na herdade de cujas pedras fez, pela sua

inabalável persistência, brotar o trigo.149

CABOT: […] Deus é duro, não é fácil! Deus está nas pedras! Fundo a minha igreja numa pedra…

em pedras, e estarei nelas. Era o que ele queria dizer a Pedro! (Suspira profundamente. Pausa.)

Pedras. Apanhei-as, fiz com elas muros. Podes contar os anos da minha vida nesses muros, cada

dia uma pedra, monte abaixo e monte acima, a vedar os campos que eram meus, que eu tinha

feito sair do nada… segundo a vontade de Deus, como um servo das Suas mãos. E não era fácil.

Era duro e, para tanto, Ele me endureceu. [II Parte, Cena 2]

Se bem que o patriarca Cabot não veja na sua descendência a matéria granítica

de que ele próprio é feito (“Vivi com os rapazes. Eles odiavam-me por eu ser duro. E eu

odiava-os por serem moles.”, [II Parte, Cena 2]), a verdade é que os filhos são, também

eles, pedras no xadrez bíblico de Desejo Sob os Ulmeiros. Eugene O’Neill veicula-o

subliminarmente, através de uma muito criteriosa escolha de nomes bíblicos para os

restantes varões da tribo. Peter deriva do grego pétros, palavra que nos alvores da era

cristã não era utilizada como nome próprio e que significa “pedra” ou “rocha”,

reenviando-nos para o ato de nomeação que Jesus faz de um dos seus discípulos, um

episódio dos Evangelhos a que Ephraim alude no passo supracitado: “Também Eu

[Jesus] te digo: Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do

abismo nada poderão contra ela.” [Mt. 16.18] Simeon, o filho mais velho, é

precisamente o nome pelo qual, até ao momento desse simbólico batismo, era

conhecido este apóstolo que a tradição católica consagrou como o primeiro Bispo de

Roma. De certo modo, Simeon e Peter são gémeos siameses ou, adotando a

terminologia bíblica, uma só carne: dormem juntos numa cama de casal, como nos

informa uma didascália de O’Neill [I Parte, Cena 3], e juntos partem rumo a essa Nova

Jerusalém que é a Califórnia, entoando a uma só voz a cançoneta dos pesquisadores de

ouro. Esta hipotética ligação simbiótica entre os dois irmãos torna-se, aliás, mais

149 Este aspeto adquire um caráter especialmente intrigante quando Ephraim formula o desejo de, na

impossibilidade de levar consigo a herdade que construiu com o seu sangue e suor, lhe deitar fogo na hora

da morte, ficando a vê-la arder – “a esta casa, a cada grão de trigo, a cada árvore, até à última folhinha de

feno!” [II Parte, Cena 1].

- 61 -

plausível a partir do momento em que consideramos o facto de os autores dos

Evangelhos se referirem frequentemente ao apóstolo como Simão Pedro, conjugando o

velho nome pré-cristão e o novo nome outorgado pelo Messias. Simbolicamente, não

deixa ser interessante notar que, no momento em que abandonam a cena para não mais

regressar, Simeon e Peter apanham pedras da estrada e lançam-nas contra as janelas da

sala que servira de câmara mortuária à mãe de Eben, uma divisão “cujas persianas estão

sempre fechadas”, partindo as vidraças e rasgando a cortina. Um episódio

aparentemente marginal, mas que possui o impacto de uma blasfémia proferida em voz

alta: trata-se de uma espécie de profanação do sanctum sanctorum, esse espaço sagrado

que se encontrava na zona mais interior e secreta do templo, uma espécie de sacrário,

lugar isolado por uma cortina de linho a que só o sumo-sacerdote, e com risco da

própria vida, poderia aceder uma vez ao ano.150

A atribuição do nome Eben ao terceiro filho da tribo de Ephraim – aquele que,

invocando uma outra expressão sagrada, poderíamos designar como a “pedra angular”

do drama de O’Neill – vem ratificar em termos definitivos a natureza escandalosa, ou

pelo menos pétrea, das criaturas que habitam e circulam por uma casa onde faz sempre

frio, mesmo em dias de intenso calor.151 É certo que se trata de um nome comum na

rural e puritana Nova Inglaterra de 1850, aspeto que um O’Neill obsessivo e

perfeccionista terá com certeza ponderado, mas sucede que, no hebraico de que deriva,

eben significa literalmente “pedra”. Trata-se, em alguns casos, de uma variação e,

noutros, da natural abreviatura de um nome de forte inspiração bíblica: Ebenezer (Even

Ha’Ezer), que significa “pedra de ajuda” ou “pedra de socorro” e remete para um

episódio emblemático da história sagrada, ocorrido ainda no tempo dos Juízes.

Enquanto os atemorizados israelitas pelejavam contra os filisteus, Samuel oferece um

holocausto a Yahveh e, pela vitória alcançada, o profeta lança uma pedra memorial no

campo de batalha, chamando àquele lugar Ebenezer: “Até aqui nos ajudou o Senhor.” [I

Sm. 7.12] O Eben de Desejo Sob os Ulmeiros é Ebenezer apenas ironicamente (ajuda o

pai a fecundar a madrasta, aplicando uma técnica primitiva de procriação assistida) ou

na medida em que presta auxílio na herdade – “Não corras com ele. Sê compreensivo.

Quem arranjas tu para te ajudar no campo?”, pergunta Abbie a Ephraim [II Parte, Cena

150 Vide X. Léon-Dufour (dir.), Vocabulaire de Théologie Biblique, op. cit., p. 1266-1271. 151 A dada altura, Cabot confessa a Abbie: “Há sempre uma solidão fria nesta casa… mesmo quando está

cá fora um sol de rachar. Não dás por isso?” [II Parte, Cena 1].

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1] –, mas a sua identidade é, antes, a de uma pedra de tropeço, um skándalon: uma

pedra de arestas vivas, perigosa, como a que, projetada pela ágil funda de David, fez

tombar o gigante filisteu.

Mesmo Abbie – cujo nome, como adiante veremos, nada tem que ver com os

étimos eben ou pétros e cuja ascendência bíblica não permite associações imediatas com

as virtudes das pedras – não está isenta de feições, tanto físicas como psíquicas e

morais, de pedra. Logo após nos descrever a vitalidade e o ar alegre da jovem mulher –

a “Rosa de Sião” com que Cabot pretende florir a velhice e a herdade –, uma das

romanescas didascálias de O’Neill exibe Abbie sob uma outra luz: “Há no queixo dela

força e obstinação, uma determinação dura nos olhos, e em toda a personalidade as

mesmas características desesperadas, irrequietas e indomáveis que tão aparentes são em

Eben.” [I Parte, Cena 3] Dir-se-á, pois, que o profuso imaginário bíblico ligado a pedras

e rochas – um imaginário que percorre as Escrituras como um todo, da pedra que serve

de travesseiro a Jacob e depois se constitui em memorial sagrado [Gn. 28] às

apocalípticas pedras preciosas com que a Nova Jerusalém será edificada [Ap. 21],

passando pelas tábuas de pedra em que Yahveh lavra o Decálogo [Ex. 24] ou pelas

imagens proféticas que celebram um Deus que é “rocha eterna” [Is. 26.4] – parece

fecundar o enredo da peça de Eugene O’Neill.152 Mal sobe o pano sobre a cena e já

152 Como assinalámos no final do capítulo 1, Louis Sheaffer avança, com admirável sobriedade, uma

outra explicação, de cariz biográfico, para a centralidade simbólica da pedra na composição de Desejo

Sob os Ulmeiros. Recuperamos aqui um outro passo da sua biografia (desta vez, no segundo volume),

onde fornece uma outra hipótese biográfica para a coexistência dos ulmeiros e das pedras na descrição

cenográfica da peça: “O modelo real para a casa dos Cabot era uma quinta localizada a curta distância de

Brook Farm [propriedade onde Eugene O’Neill se instalou com a família em 1922], visível da

autoestrada, que O’Neill terá certamente visto centenas de vezes. No quintal dianteiro da velha herdade

Smith, como era então chamada, havia dois imponentes ulmeiros que emolduravam e davam sombra à

casa. E este lugar, por seu turno, devia recordar a O’Neill a vivenda Monte Cristo em Nova Londres,

rodeada de árvores (incluindo ulmeiros) que, para desagrado da mãe, Ella, a tornavam sombria. Pela

descrição incluída em Desejo Sob os Ulmeiros, dir-se-ia que as árvores e os acessos de choro de Ella

quando sob a influência da morfina estavam estranhamente entrelaçados na imaginação do filho

dramaturgo […]. Um outro aspeto unia o passado ao presente do autor: a vivenda Monte Cristo tinha um

muro ‘seco’ no quintal das traseiras, assim como Brook Farm no quintal dianteiro, numa região onde este

tipo de estruturas era muito comum. Para O’Neill, estes muros de pedra solta, laboriosamente construídos

ao longo de várias gerações, tinham passado a simbolizar a existência rude e árdua da Nova Inglaterra de

outrora, como explicitado numa imagem chave da peça. ‘Pedras’, diz a certa altura o velho Ephraim.

‘Apanhei-as, fiz com elas muros. Podes contar os anos da minha vida nesses muros, cada dia uma pedra,

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Simeon e Peter fantasiam uma terra prometida – já não a Canaã que mana leite e mel,

mas a Califórnia das pepitas de ouro –, ao mesmo tempo que se confrontam com a

agreste realidade de uma petrificada existência.

SIMEON: (Excitado por sua vez.) Fortunas amontoadas no chão, ali, para que as apanhem! As

minas de Salomão, diz-se. (Por momentos continuam a fitar o céu; depois os olhos caem-lhes.)

PETER: (Com sardónica amargura.) Aqui… pedras amontoadas no chão… pedras sobre

pedras… ano sobre ano… ele e tu e eu e Eben… a fazer muros de pedra para ele nos muralhar à

volta! [I Parte, Cena 1]

Mesmo opondo-se aos irmãos, de quem em boa medida se constitui adversário,

Eben assenta mais uma pedra neste muro das lamentações, partilhando, na cena

seguinte, a amarga perceção de um devir-pedra que define toda a sua existência.

EBEN: (Explodindo de repente.) Porque nunca se meteram entre ele e a minha mãe, quando ele a

andava a matar aos poucos… em paga da bondade com que vos tratava? (Há uma longa pausa.

Eles fitam-no surpresos.)

SIMEON: Bom… Era preciso levar o gado a beber.

PETER: Ou havia lenha a cortar.

SIMEON: Ou havia que lavrar.

PETER: Ou que secar o feno.

SIMEON: Ou que estrumar.

PETER: Ou que sachar.

SIMEON: Ou que podar.

PETER: Ou que ordenhar.

EBEN: (Interrompendo asperamente.) Ou que fazer muros… pedra sobre pedra… muros e muros

até o coração ser uma pedra que se tira do caminho para uma pessoa se tornar uma pedra!

A cena soube extrair as devidas consequências desta bíblica recorrência. Daí que

um encenador como Matthias Langhoff tenha optado por figurar a herdade como um

pedregal, recusando em grande medida a cenografia de recorte naturalista prescrita pelo

dramaturgo norte-americano (nem a casa nem os ulmeiros são propriamente figurados).

“A enxada e a relha do arado são os utensílios com que [as personagens] esburacam

uma terra dura como rocha. Os corpos estão condenados a vergar-se para extrair pedras

monte abaixo e monte acima, a vedar os campos que eram meus.’” L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, p.

129. (Trad. Rui Pires Cabral.)

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do terreno.”153 Tendo em conta o carácter pedregoso da tão desejada e disputada

herdade, bem como o estribilho desse híbrido de profeta hebreu e velho Karamazov que

é Cabot – God is hard, not easy! –, deveríamos antes chamar-lhe hardade!154

3.2. Trinta moedas, e um prato de lentilhas

Terrível é este lugar.

GÉNESIS 28.17

Confrontado com o escândalo chamado Desejo Sob os Ulmeiros e as suas

indecorosas personagens, um crítico registou a seguinte observação, por ocasião da

estreia em Nova Iorque: “Estas pessoas – ao contrário daquelas que encontramos na

vida quotidiana! – são cruéis e gananciosas; discorrem livremente sobre assuntos

vergonhosos que só têm lugar na Bíblia.”155 A esta distância, um tão beatífico reparo –

segundo o qual a vida de todos os dias ignoraria criaturas duras como pedra – surge

como algo quase comovente. O que, todavia, há de notável neste cómico comentário

puritano é o facto de se revelar surpreendentemente certeiro. É claro que se trata de uma

pontaria involuntária, como a de um inábil atirador de fim-de-semana que, pretendendo

alvejar um boneco de feira, acertasse em cheio no sniper oculto por detrás de uma

barraca distante. O que sucede é que a peça que Eugene O’Neill escreve nos ‘loucos

anos vinte’ é não apenas devedora (e devoradora) da tragédia ática como também –

provavelmente, em grau superior, se bem que de forma difusa e equívoca – desse livro

(ou biblioteca portátil) que William Blake definiu como “o Grande Código da Arte”: a

Bíblia Sagrada.156 Está longe de ser um acaso que, como faz notar o biógrafo Stephen

A. Black, o dramaturgo americano se tenha embrenhado numa adaptação do Apocalipse

de São João imediatamente antes de se lançar na escrita de Desejo Sob os Ulmeiros.157

153 O. Aslan, “La Saga des Cabot: Désir sous les ormes”, op. cit., p. 364. 154 É uma recomendação do poeta Daniel Jonas, que viu no termo hard do original inglês “o adjetivo mais

determinante ao longo da peça”. Daniel Jonas, “2 textos sobre 2 ensaios e 1 ensaio sobre 1 texto”, in

Pedro Sobrado (ed.), Desejo Sob os Ulmeiros: Programa, Teatro Nacional São João, Porto, 2011, p. 6. 155 Apud L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., p. 126. 156 Apud N. Frye, The Great Code: The Bible and Literature, op. cit., p. xvi. 157 “O’Neill concluiu uma primeira versão da adaptação do Apocalipse e, no dia seguinte, 15 [de Janeiro

de 1924], começou a escrever o Desejo.” S. A. Black, Eugene O’Neill: Beyond Mourning and Tragedy,

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As visitações bíblicas de O’Neill não constituem sequer uma novidade, se bem sejam

amiúde negligenciadas no exame da crítica:158 antes e depois de compor a tragédia dos

Cabot, o dramaturgo foi frequentador habitual dessa caverna de Ali Babá e dela trouxe

para a luz do dia algumas pedras… preciosas. Já em 1918, relata Travis Bogard, O’Neill

escrevera The Rope, uma peça “conscientemente construída sobre a parábola do filho

pródigo do Evangelho de São Lucas”,159 contendo ainda uma remissão para a história de

Abraão e Isaac narrada pelo Génesis. E, uns escassos três anos depois de Desejo,

O’Neill voltará ao lugar do crime para escrever Lazarus Laughed [Lázaro Riu, 1928]

nas palavras do autor, a play for an imaginative theatre160 (uma classificação talvez

provocatória, em virtude de os seus 420 papéis a tornarem virtualmente irrepresentável).

Nessa peça onde tenta recriar um teatro altamente ritualizado, no qual apenas o

protagonista se apresenta sem máscara, imagina-se a condição de Lázaro, um amigo a

quem Jesus de Nazaré, segundo o Evangelho de São João, ressuscitou três dias após

aquele sucumbir.

Uma dessas incursões em território sagrado ocorre em 1920, quatro anos antes

de Desejo Sob os Ulmeiros. Trata-se de Beyond the Horizon [Além do Horizonte, 1920],

peça em que O’Neill revisita um célebre tópico do Antigo Testamento: a história de

Jacob e Esaú, os filhos gémeos nascidos a Isaac, por seu turno, filho unigénito que

Yahveh concedeu a um envelhecido Abraão, a quem jurara uma descendência tão

copiosa “como as estrelas do céu e como a areia que há nas praias do mar” [Gn. 22.17].

À primeira leitura, o arquétipo bíblico em Beyond the Horizon não é reconhecível senão

op. cit., p. 308. Louis Sheaffer corrobora esta informação, mencionando também este trabalho que nunca

chegou à cena e que é hoje dado como perdido. Vide L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., p. 148. 158 Esta era, pelo menos, nos anos 1980, a perceção de Shelly Regenbaum, autora de um ensaio intitulado

“O’Neill and the Hebraic Theme of Sacrifice”. No ver desta investigadora norte-americana, a razão

principal para o défice de atenção crítica à “utilização das histórias do Antigo Testamento” por parte de

O’Neill prende-se com um procedimento dramatúrgico do escritor: “o facto de que esses arquétipos

[bíblicos] nunca serem aberta e cabalmente dramatizados nas peças”. Prossegue Regenbaum: “E, no

entanto, os conceitos e as figuras do Antigo Testamento manifestam-se na obra de O’Neill e são usados

principalmente para exprimir conflitos familiares”. Shelly Regenbaum, “O’Neill and the Hebraic Theme

of Sacrifice”, in Frederick Wilkins (ed.), The Eugene O’Neill Newsletter, vol. V, n.º 3, Boston, Suffolk

University, 1981. In eONeill.com: An Electronic Eugene O’Neill Archive [em linha]. Disponível em

www: <URL: http://www.eoneill.com/library/newsletter/v_3/v-3a.htm˃ [consult. 08-07-2012]. 159 T. Bogard, Contour in Time, op. cit.. 160 Apud M. L. Ranald, “O’Neill”, op. cit., p. 724.

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a olhos adestrados. Uma investigadora norte-americana, Shelly Regenbaum, deteve-se

sobre os temas da história sagrada presentes na peça e concluiu: “[Beyond the Horizon]

não contém referências ou alusões diretas ao Antigo Testamento em geral, nem à

narrativa de Jacob e Esaú em particular. Além do mais, o enredo da peça, especialmente

o seu desfecho, diverge da narrativa bíblica. E, no entanto, a influência do Antigo

Testamento pode ser detetada em impressionantes correspondências temáticas.”161 Algo

análogo se pode dizer de Desejo Sob os Ulmeiros, se bem que aqui seja dado livre curso

ao imaginário bíblico: do pastiche do Cântico dos Cânticos, que O’Neill se diverte a pôr

na boca de Ephraim, à invocação do Decálogo (“Honra o teu pai”), passando pelas

menções a personagens veterotestamentárias, como Sansão ou Raquel, e pelas alusões

explícitas aos Evangelhos (“Vamos começar a viver como os lírios do campo”, graceja

Simeon),162 a influência da linguagem e da simbólica bíblicas em Desejo é de tal modo

evidente que não requer especial acuidade analítica. Mas, à semelhança do que acontece

em Beyond the Horizon, Desejo apropria-se da narrativa de Jacob e Esaú sub-

repticiamente, como se se tratasse de uma mercadoria de contrabando: uma narrativa

escandalosa, stumbling block para a apologética judaico-cristã e arma de arremesso à

disposição daqueles que vêm na Bíblia “um manual de maus costumes, um catálogo de

crueldade e do pior da natureza humana”.163 Os logros e o sagaz oportunismo de Jacob

têm absorvido as melhores energias de gerações de hermeneutas e apologetas: como

justificar que o herdeiro da promessa feita a Abraão e renovada a Isaac, o silencioso

161 Shelly Regenbaum, “Wrestling With God: Old Testament Themes in O’Neill’s Beyond the Horizon”,

in Frederick Wilkins (ed.), The Eugene O’Neill Newsletter, vol. VIII, n.º 3, Boston, Suffolk University,

1984. In eONeill.com: An Electronic Eugene O’Neill Archive [em linha]. Disponível em www: <URL:

http://www.eoneill.com/library/newsletter/viii_3/viii-3b.htm˃ [consult. 09-07-2012]. 162 Zombeteira alusão a um passo do Sermão da Montanha: “Atentai para os lírios do campo, como

crescem: nem trabalham, nem fiam. E digo-vos que nem ainda Salomão, em toda a sua glória, foi vestido

como um deles. Pois se Deus assim veste a erva do campo, que hoje é, e amanhã se lança no forno, não

vos vestirá muito mais a vós, homens de pouca fé?” [Mt. 6.28b-30]. 163 In Sérgio Costa Andrade, “Cronologia: Um percurso polémico”, Público (19 Jun. 2010), p. 4.

Recuperamos palavras do Prémio Nobel português, José Saramago. A este propósito, valerá a pena citar

Claudio Magris, autor de Danúbio, que lembrava a centralidade das Sagradas Escrituras numa obra como

a do insuspeito Bertolt Brecht: “Brecht encontrava na Bíblia um alfabeto para ler o mundo, a grandeza de

um texto que diz, brutalmente e sem dourar a pílula, a verdade nua sobre a vida e a morte, o eros e a

violência, o maravilhoso e o sabor a cinza, a altitude a que os homens podem chegar, elevando-se acima

de si mesmos até conceber um absoluto que os transcende, sustém ou anula, e a infame vileza em que

esses mesmos homens podem cair.” C. Magris, “El Alfabeto del Mundo”, op. cit., p. 23.

- 67 -

protagonista da akedah, seja um mentiroso e um falsário? Como explicar que Jacob

perpetre as suas patifarias sem um moralizante reparo da parte do escritor sagrado?

George Steiner reformula a questão nos seguintes termos: “Que ambiguidades e

mistérios, contidos nas intenções de Deus para com a humanidade, subjazem ao destino

escandaloso de Esaú e às frutíferas astúcias e velhacarias de Jacob, quase semelhantes

às de Ulisses?”164

Ora, em Eben e na sua história reconhecemos os traços desse patriarca que, certa

noite, teve por travesseiro uma pedra. De forma híbrida e impura, a narrativa sagrada

(mas moralmente pouco edificante) do contrato de promessa de compra e venda do

direito de primogenitura celebrado entre Esaú e Jacob [Gn. 25] reaparece na história de

Eben e os seus irmãos. A cena em que, já com o temível pai a assomar no horizonte,

Eben tira partido do desesperado desejo de fuga dos dois irmãos mais velhos,

convencendo-os a vender o seu direito à herança, é reminiscente do episódio bíblico em

que Jacob, inteligentemente, aproveita o desejo voraz de um Esaú esfaimado para lhe

comprar o direito de primogenitura, prerrogativa que lhe garantia dois terços da

herança.165 É certo que Eben faz uso de trinta moedas (o que o aproxima,

momentaneamente, de um Judas Iscariotes), enquanto Jacob recorre a uma eficaz receita

de lentilhas, mas isso em nada prejudica a simpatia tipológica à qual desejamos trazer

alguma luz, e apenas demonstra o procedimento ziguezagueante, imprevisível e

espantosamente ágil de O’Neill na gestão do seu arquivo simbólico.166 Mas note-se que,

se Eben não coloca diante dos irmãos o prato de lentilhas que desgraçadamente Esaú

devorou, é ele quem prepara as refeições para os irmãos, como fica desde logo

demonstrado na cena inicial. Na verdade, até certo ponto, a cozinha é o território natural

de Eben: Abbie deixá-lo-á fora de si com a seguinte provocação: “Esta herdade é

minha! É o meu lar! E esta é a minha cozinha!” [I Parte, Cena 4]. À semelhança de

164 G. Steiner, “Um Prefácio à Bíblia Hebraica”, op. cit., p. 76. 165 Trata-se de uma mera suposição, mas é possível que O’Neill, ao optar por dois irmãos mais velhos em

vez de um, tivesse em mente não apenas uma certa polifonia dramatúrgica, mas também este aspeto

ligado à posse da herança: tal como Jacob precisa de comprar a Esaú o direito de primogenitura que

outorgava ao filho mais velho dois terços da herança, analogamente, Eben precisa de adquirir a Simeon e

Peter as partes da herdade que, à morte do pai, lhes caberiam em sorte, de forma a garantir os dois terços

restantes da propriedade. 166 Margaret Loftus Ranald assinala precisamente que, ao fazer uso de trinta moedas, O’Neill introduz um

aspeto da traição de Judas Iscariotes nesta reinvenção da narrativa de Esaú e Jacob. Vide M. L. Ranald,

“From Trial to Triumph: The Early Plays”, op. cit., p. 66.

- 68 -

Esaú, Simeon e Peter são homens do campo, que tratam de animais; à semelhança de

Jacob, que o capítulo 25 do Génesis descreve como um homem caseiro, Eben

desconhece as lides do campo e move-se entre tachos e caçarolas: quando Simeon diz

“A ele [Eben], as vacas mal o conhecem”, Peter apressa-se a acrescentar: “E os cavalos,

e os porcos, e as galinhas. Mal o conhecem todos.” [I Parte, Cena 4].167

Uma outra afinidade, menos evidente, mas com implicações talvez mais

profundas, diz respeito à simbiótica ligação de Eben e de Jacob com as suas respetivas

mães. Uma das primeiras informações que nos são dadas sobre o patriarca hebreu diz

respeito à preferência que Rebeca fazia recair sobre ele, em evidente detrimento do seu

irmão Esaú. Talvez essa primazia afetiva esteja na origem do carácter eminentemente

doméstico de Jacob e do seu persuasivo talento culinário, uma hipótese a que as

próprias Sagradas Escrituras atribuem consistência, ao associar o espírito caseiro de

Jacob e o favoritismo maternal [Gn. 25.27-28]. No que diz respeito a Eben, dispomos de

uma confissão, em todos os aspetos esclarecedora:

EBEN: […] Cozinhar… fazer o trabalho dela… foi o que me levou a conhecê-la, sofrer o que ela

tinha sofrido… Ela havia de voltar para me ajudar… voltar para descascar as batatas… voltar

para fritar o presunto… voltar para cozer o pão… voltar, cheia de dores, para atiçar o lume, tirar

a cinza, com os olhos cheios de lágrimas e raiados de sangue, por causa do fumo e das cinzas,

como os dela estavam sempre. E ainda volta… está ali ao pé do fogão, à noite… não pode

habituar-se a dormir e a repousar em paz. Não é capaz de se sentir livre… nem mesmo na cova.

[I Parte, Cena 2]

O poderoso ascendente da figura da mãe é, muito provavelmente, o ponto

nuclear do parentesco estrutural e simbólico que une Eben e Jacob. Ambos se

encontram sob a forte influência de suffocating mothers,168 que determinam em grande

medida os seus gestos e decisões. Elie Wiesel, que lê a personagem de Jacob como um

167 A afinidade dos irmãos Cabot com Jacob e Esaú insinua-se logo na abertura da peça: se Jacob e Esaú

disputam entre si desde antes do nascimento – dizem as Sagradas Escrituras que os gémeos lutavam no

ventre de Rebeca e que Jacob dele saiu agarrado ao calcanhar de Esaú –, algo de similar sucede com Eben

e o par Simeon/Peter: o mal-estar e a rivalidade já estão plenamente instalados quando sobe o pano e

tornam-se cabalmente evidentes na segunda cena. 168 Usamos a expressão que Janet Adelman cunhou para falar das mães shakespearianas de Hamlet e King

Lear. Vide Janet Adelman, Suffocating Mothers: Fantasies of Maternal Origin in Shakespeare’s Plays,

Hamlet to The Tempest, New York/London, Routledged, 1992.

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ser “fraco, resignado e cobarde” até à decisiva luta com o Anjo que lhe alterará a

própria identidade – a “vitória” sobre a criatura celestial será classificada pelo escritor

judeu como “uma vitória sobre si mesmo” –, escreve: “Toda a gente o levou a fazer

coisas – e ele obedeceu… Incapaz de iniciativa, Jacob não podia tomar decisões pela

sua própria cabeça”.169 Reconheçamos que este everyone empregue por Wiesel é um

manifesto exagero retórico, um mero recurso de estilo: para além da mãe, apenas um

astucioso parente – o tio, Labão – submeteu Jacob aos seus ditames, mas, neste caso, de

forma provisória, pois o herdeiro/usurpador da promessa soube, em devido tempo,

inverter os termos da equação. Pelo contrário, a mãe aloja-se na vontade e na mente do

filho: quase poderíamos dizer, como no poema de Herberto Helder, que “seu corpo

move-se/ pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões/ e órgãos mergulhados”170 de Jacob.

Rebeca não apenas é cúmplice do embuste a que o filho mais novo irá sujeitar um pai

idoso e praticamente cego, como também urde o diabólico ardil para Isaac lhe conceder

a bênção patriarcal: Génesis 28 relata como a mãe industria meticulosamente Jacob a

fazer-se passar pelo irmão hirsuto, cobrindo-se de pêlos de cabritos e levando ao velho

pai um apurado guisado de caça, de forma a usurpar o que caberia ao primogénito. Por

instantes, o patriarca cego hesita – “És, na verdade, o meu filho Esaú?” –, mas a bênção

acaba por ser pronunciada e irreversivelmente outorgada a Jacob. Quando o choro e a

dor de um Esaú ultrajado se converterem em revolta e desejo de vingança, será de novo

a mãe a urdir um plano, ordenando a Jacob que se refugie em Haran, junto do seu irmão

Labão, até que ela o mande de novo chamar.

Uma análoga influência maternal manifesta-se em Eben, não se confinando

apenas à reivindicação filial de uma semelhança (“Saio à minha mãe, até à última gota

de sangue!”), contestada, aliás, pelos irmãos, que veem nele o pai “escrito e escarrado”

[I Parte, Cena 2]. Antes de falecer, a mãe espiara o patriarca Ephraim, vira-o esconder

os lucros (as bênçãos, poderemos talvez dizer) e instrui Eben como proceder, para que

deles o filho se possa apropriar no tempo devido. Mesmo depois de morta, é dela que

Eben espera toda a instrução: na cena célebre pelo seu lúgubre erotismo, o rapaz

interrompe o ardor sensual de Abbie para perguntar: “Mãe! Mãe! Que queres? Que me

estás a dizer?” [I Parte, Cena 3]; e, após o infanticídio cometido por Abbie, Eben

169 Elie Wiesel, “And Jacob Fought the Angel”, in Messengers of God: Biblical Portraits and Legends,

New York, Pocket Books, 1977, pp. 136, 138, 125. 170 Herberto Helder, “No sorriso louco das mães…”, in Poesia Toda, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996, p.

43.

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manifesta incompreensão face à passividade da progenitora morta: “Mãe, onde estavas

tu, porque a não detiveste?” [III Parte, Cena 3]. Curiosamente, tal como Rebeca sabe

iludir Isaac, após assumir uma vocação maternal sobre Eben (“Hei-de tomar o lugar da

tua mãe! Hei-de ser tudo o que ela era para ti!”), Abbie adquire uma especial

competência em ludibriar o velho Cabot: “Sei sempre deitar-lhe poeira nos olhos.” [II

Parte, Cena 4]. O vínculo à narrativa sagrada é, de resto, consolidado pela figura de

Ephraim, no qual encontramos uma das particularidades de Isaac: tal como o patriarca

hebreu, o velho Cabot sente-se, apesar da sua propalada robustez, a “cair da tripeça” [III

Parte, Cena 3] e a sua visão está altamente enfraquecida. O’Neill descreve-o numa

didascália, assim que a personagem entra em cena: “Os seus olhos são pequenos, muito

juntos, extremamente pitosgas, piscando continuamente no esforço de focar os objetos e

com um olhar que projeta uma tensão interior.” [I Parte, Cena 4] A sua débil visão é,

aliás, motivo de um gracejo irónico da parte de Eben, na manhã que se segue às suas

“núpcias” com Abbie:

EBEN: (Jovial.) Bom dia, pai. A ver as estrelas ao meio-dia?

CABOT: Lindo, não está?

EBEN: (Olhando em volta com ares de dono.) Isto aqui? Uma quinta que é um gosto.

CABOT: Eu falo do céu.

EBEN: (Sorrindo.) Como sabe? Esses seus olhos não vêem até lá. (Isto titila-lhe o humor; bate

nas ancas e ri.) Ah… ah! Essa é boa!

Deste jocoso remoque o septuagenário pai não é capaz de alcançar o verdadeiro sentido,

porque aquilo que ele não consegue ver não são as estrelas do céu, mas os factos que

todos veem (“O que aconteceu nesta casa é claro como água!”, dirá uma das mulheres

presentes na festa da III Parte), a saber: que Eben enganou o pai com a sua nova mãe. A

esta luz, Ephraim parece adquirir a fisionomia de Isaac, uma identidade que talvez já se

encontrasse nele inscrita desde o início, como uma espécie de negativo: à semelhança

do filho de Abraão, Cabot invoca o Altíssimo e Todo-Poderoso. Não para conferir

bênção, mas maldição.

CABOT: (Erguendo os braços ao céu, numa fúria que já não domina.) Senhor Deus dos

Exércitos, esmaga estes filhos sem vergonha com a pior das Tuas maldições!

EBEN: (Intrometendo-se com violência.) O senhor e o seu Deus! Sempre a amaldiçoar gente…

sempre a arreliá-la!

- 71 -

3.3. Máquina de emaranhar paisagens

Enquanto a cada dia me puder deter nem que seja sobre uma só linha

das Escrituras, não perderei o espanto de estar vivo.

ERRI DE LUCA, Caroço de Azeitona

Um dos nossos mais eruditos biblistas, José Tolentino Mendonça, anotou na sua

Leitura Infinita: “Sem a chave bíblica, o recheio pictórico da Capela Sistina,

diariamente frequentada por milhares de pessoas, seria mais intrigante e impenetrável

do que as misteriosas estátuas da Ilha da Páscoa.”171 Resultaria excessivo afirmar o

mesmo a propósito da peça que Eugene O’Neill escreveu em 1924: por um lado, Desejo

Sob os Ulmeiros não é o Paraíso Perdido (embora também o seja); por outro, a trágica

chave grega tem rodado com eficácia a fechadura, já para não falar nessa chave-mestra

– a biográfica e clínica – que parece abrir todas as portas (ou arrombá-las, tendo em

conta o seu carácter invasivo). Contudo, a verdade é que vários elementos da peça se

afiguram sem nexo ou razão, se não tivermos em conta esse imenso atlas ou armazém

simbólico que são as Sagradas Escrituras. E muitos outros adquirem uma insuspeitada

amplitude semântica, que desencadeia novas interrogações e desdobra os sentidos

conhecidos. Empenhando-se a fundo na tentativa de transcender o naturalismo naive do

teatro americano que tão manifestamente deplorava, O’Neill frequentou não apenas a

Grécia de Eurípides, mas também os topoi bíblicos – palácios e amplas praças, escuros

becos e baldios. Estes estão presentes nos temas e nas encruzilhadas do enredo como no

desenho das suas personagens – não esqueçamos que, diz Steiner, os escritos

veterotestamentários “se contam entre os textos-mestres de toda a psicologia

dramática”172 – e na cadência discursiva. Pensamos, em particular, no tom profético de

Ephraim Cabot e na sua corruptela do Cântico dos Cânticos:

CABOT: […] Tu és a minha Rosa de Sião! Atende, tu és bela; os teus olhos são como pombas; os

teus lábios são escarlates; os teus dois seios são como duas corças; o teu umbigo é como uma

redonda taça; o teu ventre é como um monte de trigo… [II Parte, Cena 1]

171 Itálico nosso. J. T. Mendonça, A Leitura Infinita, op. cit., p. 47. 172 G. Steiner, “Um Prefácio à Bíblia Hebraica”, op. cit., p. 80.

- 72 -

Erradamente, tomar-se-á essa multiforme presença, que vai da paráfrase

explícita à alusão paródica, por adornos ou elementos decorativos, muito apropriados a

uma ação dramática inscrita no pitoresco cenário protestante da Nova Inglaterra, como

se fossem adereços de que um encenador pudesse abrir mão por razões de ordem

estética (ou cosmética) cénica, quando na verdade dessa presença real advém uma

irrecusável e fulgurante energia dramática. A Bíblia ilumina, com o brilho tremeluzente

do seu duplo gume, a terra e o céu que as personagens de Desejo Sob os Ulmeiros tanto

contemplam, de mãos na anca ou punhos erguidos, apoiadas na enxada ou ao pé da

cancela, a ponto de não saberem já de que falam – ou o que desejam.

PETER: Há ouro no Oeste, sim.

SIMEON: (Ainda sob a influência do poente; vagamente.) No céu?

PETER: Bom… é uma maneira de dizer… Há a promessa. (Excitando-se.) Ouro no céu… no

Oeste… a Porta de Ouro… A Califórnia!… O Oeste Dourado!… Campos de ouro! [I Parte,

Cena 1]

CABOT: (Abbie conserva desviado o rosto. O dele gradualmente se amacia. Fita o céu.) Lindo,

não está?

ABBIE: (De mau humor.) Nada vejo de lindo.

CABOT: O céu. Parece um campo fértil, lá em cima.

ABBIE: (Sarcástica.) Estás a pensar em comprar também essa quinta? [II Parte, Cena 1]

EBEN: (Jovial.) Bom dia, pai. A ver as estrelas ao meio-dia?

CABOT: Lindo, não está?

EBEN: (Olhando em volta com ares de dono.) Isto aqui? Uma quinta que é um gosto.

CABOT: Eu falo do céu. [II Parte, Cena 4]

Se essa presença bíblica possui uma tal força gravitacional na estrutura e no enredo de

Desejo, como explicar o carácter pontual e assistemático das leituras que visam

explicitar onde e como e porquê essa presença se manifesta? A resposta não será fácil

nem unívoca, podendo incidir tanto sobre o carácter alegadamente ocioso de uma tal

cartografia como sobre a nietzschiana “síndrome Deus morreu” que, segundo Northrop

Frye, afetou muitas abordagens críticas contemporâneas.173 Mas podemos também

acrescentar uma hipótese endógena, intrínseca à própria obra de O’Neill e à sua escrita

173 N. Frye, The Great Code: The Bible and Literature, op. cit., p. xix.

- 73 -

dramática. Foi o que, de certo modo, fez, nos anos 80, Shelly Regenbaum, autora de um

ensaio intitulado “O’Neill and the Hebraic Theme of Sacrifice”, quando avançou uma

razão para o facto de a apropriação das histórias do Antigo Testamento por parte de

O’Neill “escapar frequentemente à atenção dos críticos”. Este “lapso” seria, por assim

dizer, desencadeado por um procedimento dramatúrgico do escritor: “o facto de esses

arquétipos nunca serem aberta e cabalmente dramatizados nas peças”.174 Um passo que

citámos no capítulo precedente pode também agora servir-nos de exemplo: no momento

em que Eben compra aos irmãos o direito à herança – cena que, como vimos, é

reminiscente do episódio bíblico em que Jacob adquire o direito à primogenitura de

Esaú –, O’Neill introduz uma inflexão ou variação, renunciando às lentilhas e

invocando as trinta moedas com que Judas Iscariotes foi remunerado pelo traiçoeiro

ósculo. Um paradigma assoma, mas como que se retrai no preciso instante em que o

julgamos reconhecer; dá então lugar a um outro, embora aquele venha a infiltrar-se de

novo, mais adiante, através de um gesto ou palavra. Se nos é permitido invocar um

produto da cultura pop, recordemos que encontramos um procedimento análogo numa

canção célebre (demasiado célebre, talvez, e assaz incompreendida) desse génio

talmúdico chamado Leonard Cohen: em seis versos de “Hallelujah”, o songwriter

sobrepõe, com surpreendente agilidade, as narrativas bíblicas de David/Betsabé e de

Sansão/Dalila, tornando-as, em apenas dois versos, virtualmente indiscerníveis. A

viragem brusca despista-nos, mas revela-se também avassaladora: que quantidade de

informação é processada em meia-dúzia de versos, que nos dizem tudo sobre a fé, o

desejo, o poder, a traição, a deceção?175

Evocando um dispositivo do poeta Herberto Helder, poderíamos, a propósito de

Desejo Sob os Ulmeiros, falar de uma máquina de emaranhar paisagens. Ou de um

palimpsesto, de um texto no qual reaparecem caracteres de primitivas escritas. É por

isto que os pequenos ensaios e artigos que têm, no decurso dos anos, relevado a

influência imaginativa da Bíblia na tessitura de Desejo Sob os Ulmeiros disparam em

sentidos tão diversos. Alguns exemplos:

174 Prossegue Regenbaum: “E, no entanto, os conceitos e as figuras do Antigo Testamento manifestam-se

na obra de O’Neill e são usados principalmente para exprimir conflitos familiares”. S. Regenbaum,

“O’Neill and the Hebraic Theme of Sacrifice”. 175 “Your faith was strong but you needed proof/ You saw her bathing on the roof/ Her beauty in the

moonlight overthrew you/ She tied you to a kitchen chair/ She broke your throne, and she cut your hair/

And from your lips she drew the Hallelujah”. Canção do álbum Various Positions (Columbia, 1984).

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i) ainda na década de 1960, Peter L. Hays estabelece uma analogia entre

Ephraim Cabot e Oseias, entre a história do casamento com Abbie e a história do

casamento do profeta hebreu com uma meretriz;176

ii) por seu turno, no final da década de 1970, Patrick Bowles identifica

“múltiplos paralelos” entre a narrativa bíblica da jovem Abisague e do velho Rei

David e a história de Abbie e do septuagenário Ephraim;177

iii) em meados da década de 1980, Arnold Gordenstein avança a tese de que em

Desejo os “mitos combinados não são o Hipólito grego e o Efraim bíblico, mas

as histórias do Édipo e do Éden”;178

iv) num ensaio publicado em 2009, Brenda Murphy assinala o reconhecimento

de uma imagem miltoniana de Adão e Eva na cena final da peça (“os dois [Eben

176 Este paralelismo é suportado não só pela sistemática associação de Ephraim à figura bíblica do profeta

– “E agora cá me vou para escutar a mensagem que Deus me manda na Primavera, como os profetas

faziam” [I Parte, Cena 2] –, mas também, e muito especialmente, pelo facto de Abbie ser recorrentemente

tratada por Eben como uma meretriz. Num desses momentos, o jovem amante grita-lhe: “Odeio-te! És

uma pega… uma pega reles!” [III Parte, Cena 2]. Vide Peter L. Hays, “Biblical Perversions in Desire

Under the Elms”, in Modern Drama, n.º 11 (February 1969), pp. 423-428. 177 Patrick Bowles explora a possibilidade de Abbie ser uma abreviatura não de Abigail (nome que, sob a

influência puritana, se tornou bastante comum na Nova Inglaterra e que em Desejo adquiriria um sentido

irónico, uma vez que este nome tem por significado “a alegria do pai”), mas de Abisague, figura marginal

do Antigo Testamento. Para além de alguns eruditos considerarem esta Abisague a protagonista do

Cântico dos Cânticos (canto nupcial amiúde citado por Ephraim), ambas as figuras masculinas têm em

comum a idade avançada, padecerem de um frio que aparentemente nada consegue erradicar e não

chegarem a conhecer (na aceção bíblica do termo) estas mulheres, lançando-se no seu concurso os filhos

(Adonias na história bíblica, Eben na peça de O’Neill). Vide Patrick Bowles, “Another Biblical Parallel in

Desire Under the Elms”, in Frederick Wilkins (ed.), The Eugene O’Neill Newsletter, vol. II, n.º 3. Boston,

Suffolk University, 1979, in eONeill.com: An Electronic Eugene O’Neill Archive [em linha]. Disponível

em www: <URL: http://www.eoneill.com/library/newsletter/ii_3/ii-3e.htm> [consult. 25-07-2012]. 178 Diz o antigo professor norte-americano da Universidade Federal de Santa Catarina que “Abbie e Eben

lembram, pela sua aura e nos seus gestos, Adão e Eva e o pecado original”. Arnold Gordenstein, “A Few

Thousand Battered Books: Eugene O’Neill’s Use of Myth in Desire Under the Elms and Mourning

Becomes Electra”, in Ilha do Desterro: A Journal of English Language, Literatures in English and

Cultural Studies, n.º 15/16, Florianópolis, Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 1986, in

Periódicos UFSC [em linha]. Disponível em www: <URL: http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/

desterro/issue/view/1115> [consult. 21-07-2012].

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e Abbie] saem de mãos dadas em direção ao nascer do sol, uma imagem que foi

identificada com a de Adão e Eva a abandonar o jardim no Paraíso Perdido”); 179

v) mais recentemente, em 2010, Jerry V. Stinnett parte da centralidade das

referências bíblicas na peça de O’Neill para argumentar que “a ação trágica

encontra a sua principal fonte nos mitos judaicos da criação”, descortinando na

mãe morta de Eben a figura de Lilith.180

Embora algumas destas hipóteses nos pareçam escassamente argumentadas,

nenhuma delas se afigura, em si mesma, despropositada. Ou melhor, não precisaremos

propriamente de optar por esta em detrimento daquela, ou de preferir uma e recusar as

restantes: sucede que a presença dos arquétipos bíblicos (e parabíblicos) no Desejo Sob

os Ulmeiros é da ordem do rizoma, e não da raiz. Evocamos momentaneamente os

conceitos botânicos tematizados pela dupla Deleuze/Guattari para afirmar que não há na

peça de O’Neill uma totalitária raiz bíblica que se ramifique cartesianamente na

estrutura dramática, mas uma fasciculação rizomática – múltipla, acentrada e dinâmica:

“[O rizoma] é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, invertível,

suscetível de receber modificações constantemente.” Já no final do seu ensaio, Deleuze

e Guattari vaticinam: “Um rizoma não começa e não acaba, está sempre no meio, entre

as coisas, inter-ser, intermezzo.”181 Mais modestamente talvez, descreveríamos a

dissimulada montagem bíblica de Desejo Sob os Ulmeiros como bricolage, um trabalho

feito a partir de sobras, restos, pedaços, um pouco como fez T.S. Eliot num ensaio que

dedicou a Blake, ao falar de um engenhoso método à Robinson Crusoe, através do qual

o poeta das Canções de Inocência e Experiência forjou um sistema de pensamento a

partir de retalhos das suas leituras.182 Com mais propriedade talvez invocar-se-ia a

noção de “pulsão rapsódica”183 proposta por Jean-Pierre Sarrazac, princípio ou força

que teria sido responsável pelo desenvolvimento, ao longo de todo o século XX, de uma

forma dramática aberta e heterogénea, em reinvenção permanente, que não cessa de

179 B. Murphy, “Tragedy in the Modern American Theatre”, op. cit., p. 496. 180 Jerry V. Stinnett, “A sinister maternity: Maw, Lilith, and Tragic Unity in Desire Under the Elms”, in

Zander Brietzke (ed.), The Eugene O’Neill Review, vol. 32. Boston, Suffolk University, 2010, p. 10. 181 Gilles Deleuze/Felix Guattari, Rizoma, trad. Rafael Godinho, Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, pp. 29,

61. 182 Vide N. Frye, The Great Code: The Bible and Literature, op. cit., p. xxi. 183 Vide J.-P. Sarrazac, Poétique du drame moderne, op. cit., p. 293 e ss.

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concertar materiais, modos e géneros. Reencontramos algo dessa poética da impureza e

da mestiçagem – que a figura do autor-rapsodo encarna – na combinação dinâmica de

elementos trágicos, melodramáticos e romanescos, na hábil conjugação de mitos

clássicos e de narrativas sagradas, que Eugene O’Neill promove em Desejo Sob os

Ulmeiros.

Em todo o caso, seja qual for o conceito ou a metáfora através dos quais

ambicionemos perspetivar esta presença real – rizoma, palimpsesto, bricolage,

rapsódia, patchwork –, o certo é que a linguagem e a simbólica bíblicas fecundaram o

imaginário de Desejo Sob os Ulmeiros. Assinalá-lo e compreendê-lo não corresponde

tanto a devolver a peça de Eugene O’Neill ao pano de fundo de que se destaca como a

ampliar o horizonte da sua própria legibilidade. Educado em escolas católicas até aos

treze anos de vida, o dramaturgo de ascendência irlandesa era já há muito um apóstata

quando escreveu a folk tragedy dos Cabot. Numa carta dirigida a uma freira

dominicana, três meses após a estreia pública da sua peça-escândalo, expõe: “Devo

confessar-lhe que, nos últimos vinte anos, tenho vivido sem Fé.”184 Isso, todavia, não o

impediu de descobrir a irrecusável inatualidade (no sentido que Nietzsche atribuía ao

termo) da Bíblia, esse livro perigoso. As seguintes palavras de Elias Canetti poderiam

ser suas: “É estranho! Diante do que hoje acontece, só a Bíblia me parece ter uma força

adequada. E é precisamente a sua terribilidade que nos consola.”185

184 Carta de 6 de Fevereiro de 1925, endereçada a Sister Mary Leo. In T. Bogard/J. Bryer (ed.), Selected

Letters of Eugene O’Neill, op. cit., p. 192. 185 Apud J. T. Mendonça, Leitura Infinita, op. cit., p. 54.

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4. Notícia de duas encenações em Portugal

4.1. Muito cuidado com o teatro

Em 2012, Três Dedos Abaixo do Joelho dava a escutar passos de Desejo Sob os

Ulmeiros, de Eugene O’Neill. O espetáculo do dramaturgo e encenador Tiago

Rodrigues – um exemplo português, talvez paradigmático, do que, na esteira de Hans-

Thies Lehmann, se vem designando por “teatro pós-dramático”186 – não punha em cena

o drama puritano dos Cabot, mas partia dos castos (ou castradores) relatórios da censura

do Estado Novo arquivados na Torre do Tombo, operando sobre aquilo a que um

crítico, Augusto M. Seabra, chamou “dramaturgias do interdito”.187 Para além da

sucessiva recusa dos serviços de censura em autorizar, na primeira metade da década de

1960, a apresentação de um texto como Andorra de Max Frisch, ou das rasuras

efetuadas sobre Menina Júlia de Strindberg, ficámos ainda a saber da proibição de se

representar Desejo Sob os Ulmeiros em palco,188 enquanto a sua adaptação

cinematográfica, realizada em 1958 por Delbert Mann, com Sophia Loren (Abbie) e

Anthony Perkins (Eben), mereceu validação, depois de submetida a cortes cirúrgicos.189

186 Por “teatro pós-dramático” entendemos um teatro que ignora ou até contesta a anterioridade ontológica

do texto face à cena ou que recusa para si próprio a função de mediação de um texto. Numa obra que

adquiriu já contornos de clássico, Lehmann fala de uma espécie de revolução coperniciana no mundo

teatral, correspondendo o primado do texto ao geocentrismo ptolemaico: “Ocorre que as relações

constitutivas do teatro se invertem […]: não mais está em primeiro plano a questão de saber se e como o

teatro ‘corresponde’ adequadamente ao texto que tudo irradia; antes, cabe aos textos responder se e como

podem ser um material apropriado para a realização de um projeto teatral”. Hans-Thies Lehmann, O

Teatro Pós-Dramático, trad. Pedro Süssekind, São Paulo, Cosac Naify, 2007, p. 91. 187 Augusto M. Seabra, “Reflexões teatrais (bis)”, Público: Ípsilon (8 Jun. 2012), p. 37. 188 Sobre as intervenções do lápis azul, vide Graça dos Santos, O Espectáculo Desvirtuado: O Teatro

Português Sob o Reinado de Salazar (1933-1968), Lisboa, Caminho, 2004. Aí se mencionam os

problemas que o próprio Teatro Nacional, sob a égide de Amélia Rey Colaço, enfrentou junto da censura

salazarista, bem como a insistência da histórica diretora do D. Maria II em levar à cena autores como

Bertolt Brecht e Eugene O’Neill. 189 Ao contrário do que poderíamos supor, esta dualidade de critérios em relação ao teatro e ao cinema

não decorre de uma pura arbitrariedade da censura: “O teatro tinha algo de incontrolável no seu aspeto

direto e vivo, o que não tem o cinema.” César Príncipe, Os Segredos da Censura, Lisboa, Caminho, 1979.

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“MUITO CUIDADO COM O TEATRO”, admoestavam, em justificada caixa alta, os

serviços do Secretariado Nacional de Informação.190

Tendo vasculhado nove mil documentos no Arquivo Nacional, Tiago Rodrigues

distinguiu uma feição predominantemente moral na censura que o salazarismo exerceu

sobre o teatro (feição, aliás, contida na advertência à indumentária feminina que o

artista adotou como título do espetáculo), nela detetando a razão pela qual um texto

como Desejo não poderia senão desassossegar os zeladores da moral e dos costumes:

É muito mais recorrente a questão moral [do que a política], tudo o que tenha a ver com

sensualidade, sexualidade, ou com a mulher com força ou vontade própria. Todo o realismo do

início do século XX, sobretudo o americano e inglês, não podia ter lugar. Depois de Strindberg,

passou a ser problemático. Antes, a posição das mulheres na dramaturgia era diferente, com

Tchékhov ou Ibsen. Mas depois, as mulheres do Tennessee Williams, do Eugene O’Neill, são

todas fortes, interessantíssimas. E isso era complicado. A posição da mulher era também a

posição da atriz, do que é que a mulher pode fazer em palco. Esse lado era muito feroz.191

Expurgado desta ferocidade, ou com ela anestesiada pela virtuosa injeção de um

lápis azul, Eugene O’Neill passou, malgré tout, pelo crivo fino dos censores: a primeira

encenação de um texto do dramaturgo norte-americano em Portugal ocorre em 1943,

quando a Companhia Rey Colaço/Robles Monteiro apresenta a trilogia Electra e os

Fantasmas, espetáculo que, a 21 de Fevereiro, assinalava a abertura oficial do Theatro

de D. Maria II após as obras de restauro ordenadas por Duarte Pacheco.192 Outro

momento-chave da receção de O’Neill no Portugal do ‘Antigo Regime’ ocorre nos

primeiros dias de 1958, quando esse dínamo do teatro português chamado António

Pedro encena Jornada para Noite, menos de dois anos depois de o “testamento

190 Diretiva grafada em maiúsculas num telegrama telefonado dos serviços de censura a um jornal diário.

Apud idem. 191 In Ana Dias Cordeiro, “Na cabeça dos censores”, Público: Ípsilon (25 Mai. 2012), p. 13. 192 Após dois meses de representação em Lisboa, entre Fevereiro e Abril, o espetáculo migra para o

Teatro Rivoli, no Porto, onde é apresentado entre 9 e 17 de Outubro. A versão integral do espetáculo tinha

a duração aproximada de seis horas, mas apenas terá sido representada nos dias 9 e 10 de Outubro, no

Teatro Rivoli, e a 20 e 28 de Novembro de 1943, no Teatro D. Maria II. Nestes dados da história do teatro

português (e noutros que adiante invocaremos), somos altamente devedores dos ativos desse banco bom

que é a CETbase – Teatro em Portugal, direção científica Maria Helena Serôdio [em linha]. Disponível

em www: <URL: http://ww3.fl.ul.pt/CETbase/˃.

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espiritual em forma dramática”193 de O’Neill (como, na época, o classificou Jorge de

Sena, seu tradutor) ter sido ‘desselado’ no lendário Dramaten de Estocolmo. Com Dalila

Rocha e João Guedes no elenco, o espetáculo do Teatro Experimental do Porto, fundado

poucos anos antes, estreou-se no Cine-Teatro Sá da Bandeira, sendo mais tarde exibido

na capital, no Teatro ABC.194 Dos escassíssimos exemplos disponíveis, citemos ainda a

encenação de O Imperador Jones [The Emperor Jones, 1920], onde encontramos a

combinatória de naturalismo e expressionismo que define várias peças de O’Neill:195 a

peça foi montada em 1970 pelo Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra

(TEUC), numa encenação do argentino Julio Castronuovo. De Desejo Sob os Ulmeiros,

todavia, não há nova no Estado Novo, a não ser a da sua vetusta omissão.196

A fortuna cénica de Eugene O’Neill em Portugal mudou após a Revolução de

1974, se bem que, por razões óbvias, não tenha conhecido a irresistível ascensão que

um dramaturgo como Bertolt Brecht teve nos nossos palcos: a avaliar pelos dados

disponíveis, foi, aliás, necessário aguardar pelas décadas de 1980 e 90 para que a obra

do “grande clássico do teatro americano”197 granjeasse uma atenção mais regular por

parte de criadores e programadores teatrais. Tal interesse crescente parece, de resto, não

se confinar a O’Neill, mas abranger os nomes cimeiros do teatro norte-americano do

193 J. de Sena, “O Testamento de Eugene O’Neill”, op. cit., p. 384. 194 Sobre a produção deste espetáculo vide Carlos Porto, O TEP e o Teatro em Portugal: Histórias e

Imagens, Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1997, pp. 84-86. 195 Jorge de Sena assinala precisamente que O’Neill participa “igualmente do realismo superior de um

Ibsen, pelo qual se reformara o teatro nos fins do século passado [séc. XIX], e da vaga de expressionismo

que varreu os palcos no primeiro quartel deste século [séc. XX].” J. de Sena, “O Testamento de Eugene

O’Neill”, op. cit., p. 384. 196 Apesar da CETbase não registar qualquer apresentação de Desejo Sob os Ulmeiros em Portugal antes

de 1990, e de se encontrarem disponíveis no Arquivo Nacional/Torre do Tombo documentos que atestam

a reprovação da peça por parte dos serviços de censura do Secretariado Nacional de Informação, há

contudo, no conjunto dos processos de censura a peças de teatro, o registo de um processo de 1962 que

concede à Empresa Vasco Morgado autorização para levar à cena a peça de O’Neill, ainda que submetida

a cortes. Parece-nos, todavia, altamente improvável que Desejo Sob os Ulmeiros tenha chegado a ser

produzida por essa empresa teatral, cujo histórico revela menos uma inclinação para o chamado ‘teatro de

repertório’ do que para o teatro popular, a opereta ou a ‘revista’. Tendo em conta a inexistência de

registos, será de supor que a dimensão dos cortes infligidos ao texto de O’Neill teria convidado os

proponentes à desistência? 197 Marie-Claire Pasquier, “Eugene O’Neill”, in Michel Corvin (dir.), Dictionnaire encyclopédique du

théâtre à travers le monde, Paris, Bordas, 2008, p. 1009.

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século XX (Tennessee Williams, Sam Shepard, etc.). Nas reflexões que dedicaram à

encenação de Desejo Sob os Ulmeiros realizada em 1990 por João Lourenço, dois

críticos de teatro, Carlos Porto e Eugénia Vasques, reconheciam precisamente a gradual

invasão dos palcos nacionais pelo teatro da América do Norte. Se, nas páginas do

Diário de Lisboa, Carlos Porto atribuía esse fenómeno à americanização do planeta (“se

os Estados Unidos dominam o mundo em termos militares e económicos, não poderiam

deixar de o dominar em termos culturais”),198 no Expresso, Eugénia Vasques tomava-o,

arejadamente, como o cumprimento de “mais uma etapa no derrubamento de fronteiras

e preconceitos culturais”, para o qual concorriam tanto o “esforço de atualização

desenvolvido por criadores de um teatro mais ou menos ‘alternativo’” como “o apelo a

produções ou nomes que, mais ou menos recentemente, tenham conhecido a divulgação

pelas vias do cinema e da televisão”.199

Não obstante, no que respeita a Eugene O’Neill, tudo indica que estes anos

transcorridos do século XXI tenham sido mais favoráveis do que todo o último quartel

do século XX.200 Alheando-nos da simbólica fronteira do século, e tomando os últimos

trinta anos como um continuum, rapidamente concluímos que alguns dos mais

destacados fazedores teatrais do chamado ‘Portugal democrático’ se ocuparam da

encenação das peças de O’Neill: Joaquim Benite, João Mota, Rogério de Carvalho e

João Lourenço, bem como, num outro núcleo geracional, Carlos J. Pessoa e Nuno

Cardoso.201 Haverá a relevar, em especial, a ênfase que a Companhia de Teatro de

Almada, sob a liderança de Joaquim Benite, atribuiu à dramaturgia o’neilliana,

produzindo cinco espetáculos – dois na década de oitenta e três em 2009 e 2010, altura

em que promoveu um ciclo dedicado ao escritor. É, aliás, sintomático que, no repertório

da companhia, onde se contam quase cem autores trabalhados, apenas um supere o

198 Carlos Porto, “Desejo e amor”, in Diário de Lisboa (9 Out. 1990). 199 Eugénia Vasques, “Pelo teatro fora”, in Expresso (5 Out. 1990). 200 Segundo os dados da CETbase, entre 1974 e 2000 foram produzidos oito espetáculos baseados em

textos de Eugene O’Neill (incluindo uma montagem de teatro universitário e uma produção da já mítica

companhia nova-iorquina The Wooster Group, protagonizada pelo ator Willem Dafoe e apresentada no

âmbito do Festival Mergulho no Futuro/Expo’98); entre 2001 e 2014, nove espetáculos (dois dos quais no

contexto do teatro amador). 201 A título de curiosidade, assinale-se que o cineasta João Canijo experimentou também a encenação de

um texto de O’Neill: Confissão ao Luar (1991) [A Moon for the Misbegotten, 1943].

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dramaturgo de Longa Jornada para a Noite, e que esse seja ‘tão-somente’, na canónica

formulação de Bloom, o inventor do humano:202 William Shakespeare.

Desejo Sob os Ulmeiros é classificada pelos historiadores do moderno teatro

americano como “uma das mais extraordinárias peças de O’Neill, tanto no seu potencial

de inquietação como no seu continuado sucesso de público”.203 Ronald Wainscott indica

que, desde os anos 1960, a peça tem sido montada e remontada por todo o país na maior

parte dos teatros regionais. Estranhamente, o histórico de encenações da ‘tragédia’ dos

Cabot em Portugal não confirma tão elevado rating. Dispomos apenas do registo de

duas montagens profissionais de Desejo, empreendidas com duas décadas de distância:

a primeira, já mencionada, em 1990, por João Lourenço e o Novo Grupo/Teatro Aberto;

a segunda, em 2011, por Nuno Cardoso, numa coprodução da companhia Ao Cabo

Teatro e da Academia Contemporânea do Espetáculo/Teatro do Bolhão. Se os dias do

mundo entram nesta contabilidade, talvez não seja impertinente lembrar que os dois

espetáculos acontecem em Portugal, mas é como se tivessem lugar em países diferentes:

em Setembro de 1990, encontrávamo-nos em plena euforia nacional, inspirada pelo

progresso económico e por uma ditosa ‘integração europeia’; em Junho de 2011, a

nação mergulhava num estado disfórico, assombrada pelo espectro da bancarrota e com

o termo ‘austeridade’ convertido em sinistra palavra-passe da nossa existência coletiva.

Talvez o país de 1990 se assemelhe mais à doce planície no Oeste que Ephraim chegou

a conhecer (“Era só lavrar e semear e uma pessoa sentar-se a fumar de cachimbo e a ver

o grão crescer”), enquanto o país de 2011 faça lembrar o destino da árida herdade dos

Cabot – um pasto para o fogo.

202 Vide Harold Bloom, Shakespeare: A Invenção do Humano. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. 203 Ronald Wainscott, “Notable American stage productions”, in The Cambridge Companion To Eugene

O’Neill, op. cit., p. 104. Ronald H. Wainscott é o autor de uma importante obra sobre experiências

seminais de encenação das peças de O’Neill – de Beyond the Horizon [1920] a Days Without End [1934]

– e sobre o extraordinário impacto que tiveram no teatro americano. Transcrevemos um passo em que

alude aos desafios e exigências que os textos dramáticos do “mais destacado dramaturgo do país”

acarretavam: “As peças de Eugene O’Neill produzidas entre 1920 e 1934 colocaram uma multiplicidade

de sérios problemas aos seus encenadores. Tratava-se de peças que não apenas propunham uma

caracterização complicada, um simbolismo denso, uma linguagem agreste, situações estranhas, mas que

também representavam novas e ousadas (e ocasionalmente pobres) experiências em termos de forma e de

teatralidade, como também […] jornadas pessoais e extravagantes de angústia psicológica.” Ronald H.

Wainscott, Staging O’Neill: The Experimental Years 1920-1934, Yale University, 1988, p. 1.

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4.2. Ecos do primeiro Desejo – a encenação de João Lourenço

“A Praça de Espanha transformou-se, há uma semana, no lugar donde e onde se

vê a América: uma América poética, inquietante, extremada nos seus conflitos mais

íntimos”,204 noticiava, nos primeiros dias de Outubro de 1990, um diário recém-

fundado: o jornal Público. Anabela Mendes, que na edição do dia assinava uma crítica

de teatro – e que assombrosa distância, maior do que a cronológica, parece separar a

dimensão consagrada na época aos textos críticos de teatro daquela, de uma exiguidade

quase telegráfica, que atualmente constrange o espaço crítico de teatro na imprensa

portuguesa205 –, chamava a atenção para um pequeno ciclo de teatro norte-americano

com que Novo Grupo/Teatro Aberto abria a sua temporada de 1990/91: Desejo Sob os

Ulmeiros, de Eugene O’Neill, e Loucos por Amor [Fool for love, 1983], de Sam

Shepard, ambos com encenação de João Lourenço.

Estreados no mesmo dia – a 29 de Setembro de 1990, um sábado –, os dois

espetáculos revezaram-se diariamente durante longas semanas no palco do antigo Teatro

Aberto (Loucos por Amor, às quartas, sextas-feiras e sábados; Desejo Sob os Ulmeiros,

às quintas-feiras, sábados e domingos). Anabela Mendes descrevia esta pequena mostra

como um par de janelas – uma virada a Oeste, que dava a ver uma América on the road,

de quartos de motel de beira de estrada; outra a Leste, com vista para a herdade dos

Cabot, na Nova Inglaterra. Da receção crítica inferir-se-á justamente que o gesto de

programação do Novo Grupo/Teatro Aberto foi entendido como uma empresa artística

única: não só Anabela Mendes, mas também críticos como Eugénia Vasques, Jorge

Listopad e Maria Helena Serôdio assinaram críticas conjuntas aos dois espetáculos,

identificando razões várias para a sua geminação. Dispomos, aliás, de um curioso

emblema desse cotejo entre o proclamado ‘pai’ da modernidade dramatúrgica dos

Estados Unidos e um dos seus (desavindos) filhos nas páginas do programa de sala que

o Novo Grupo editou, onde encontramos uma extensa conversa entre O’Neill e Shepard,

204 Anabela Mendes, “Duas janelas para a América”, Público (4 Out. 1990), p. 36. 205 O espaço crítico que as duas montagens nacionais mereceram na imprensa, em 1990 e 2011, poderia

eventualmente constituir uma pequeníssima amostra da violenta retração que a crítica teatral conheceu em

duas décadas, em Portugal: no caso da produção do Novo Grupo/Teatro Aberto, acedemos a um conjunto

de sete críticas; no caso da montagem do Ao Cabo Teatro/ACE Teatro do Bolhão, dispomos apenas de

uma crítica publicada.

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sabedoramente urdida por Vera San Payo de Lemos (dramaturgista dos dois

espetáculos) a partir de entrevistas, cartas e textos dos dois dramaturgos.206

Mas, como assinalamos, a própria crítica soube reconhecer e eventualmente

aprofundar os motivos do parentesco O’Neill/Shepard criado pela programação do

Teatro Aberto. Salvaguardando as “distâncias epocais e de qualidade poética” entre os

dois autores, Eugénia Vasques assinalava que, tanto na dramaturgia de O’Neill como na

de Shepard, “a tragédia manifesta é a de todos os americanos, dilacerados por uma

cultura puritana, por um apelo à errância pioneira em conflito com o desejo de

enraizamento”.207 A crítica do semanário Expresso evocava ainda os fantasmas privados

dos dois autores para destacar o modo como em ambos os textos dramáticos

encontramos o tópico familiar:

O que se narra […] é a história clássica do herói americano, despedaçado entre o amor à terra (e

à mãe) e a impossibilidade de permanecer em família, tão caros à saga americana expressa por

uma cinematografia da virilidade que, de John Wayne ao próprio Shepard, não cessa de dar rosto

à solidão do ‘Lone Ranger’ perdido na amplidão territorial do país-continente.208

Por seu turno, Jorge Listopad avaliava, nas páginas do Jornal de Letras, esta geminação

já não a partir da mitologia americana, dos temas tratados nas peças ou das pesadas

heranças familiares dos dois dramaturgos, mas a partir da própria cena, sugerindo que a

teatralidade dos espetáculos criava ou acentuava essa consanguinidade:

206 Vide Vera San Payo de Lemos, “Desejo Loucos Sob os Ulmeiros por Amor: Conversa entre Eugene

O’Neill e Sam Shepard”, in Desejo Sob os Ulmeiros/Loucos Por Amor: Programa, Lisboa, Teatro

Aberto, 1990. Na sua crítica assaz reticente ao Desejo Sob os Ulmeiros, Carlos Porto imprimia uma justa

“palavra de louvor” ao programa duplo dos espetáculos, que continha contribuições inéditas de Luiz

Francisco Rebello e Jorge Leitão Ramos, entre outros textos (C. Porto, “Desejo e amor”). A esse louvor

se juntou Maria Helena Serôdio, referindo-se igualmente ao artigo “de aparente didatismo, mas

inteligente e cativante” de Vera San Payo de Lemos. [Maria Helena Serôdio, “O amor como enunciação

trágica em O’Neill e Shepard”, O Jornal (2 Nov. 1990)]. Um aplauso que se poderia prolongar no tempo,

tendo em conta que o Novo Grupo/Teatro Aberto é uma das escassas companhias de teatro independente

que tem investido, de forma persistente e continuada, na edição de programas de sala que, para além da

tradução de textos relevantes sobre as dramaturgias postas em cena, contemplam textos inéditos que

permitem ao espectador prolongar e ampliar a experiência de fruição teatral. 207 E. Vasques, “Pelo teatro fora”. 208 Idem, ibidem.

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João Lourenço dá a ambas as peças, de mundivisão não oposta mas diferente, uma visão e uma

gramática comuns, isto é, o dinamismo da força, o grito, o mélo dilacerado, abolindo as

passagens naturais entre o simbólico e o naturalista em proveito de uma neurose geral,

colecionando os tiques para atestar a verosimilhança, a visão da paixão de vidas devoradas.209

Apesar desta sintaxe teatral comum, os espetáculos conheceram sorte diversa em

termos de avaliação crítica, com vantagem para a encenação que João Lourenço propôs

de Loucos por Amor. Um pouco como se se tratasse de um combate entre autores,

Eugénia Vasques garantia que “o realismo mais imediatista” da peça de Shepard “ganha

a batalha”.210 Numa nota crítica publicada no Diário de Notícias, Fernando Midões

secundava este parecer, falando de vários “desacertos” nesta montagem de Desejo Sob

os Ulmeiros: “Por tudo isto… antes Loucos por Amor”.211 Mesmo definindo a sua

intervenção como um exercício impressionista ou um diálogo com os fazedores do

espetáculo – “Crítica, isto? Fragmentos de uma linguagem que reage a outra” –, Jorge

Listopad considerava que, se as prestações interpretativas do elenco de Loucos por

Amor “souberam convidar o espectador para o vazio americano de um Paris, Texas”,

Desejo Sob os Ulmeiros trazia “mais problemas consigo”.212 Em que consistiam tais

desacertos ou problemas? Grosso modo, Carlos Porto reconhecia dificuldades de duas

ordens: uma exógena à produção do Novo Grupo, outra endógena. Para o crítico do

Diário de Lisboa, o texto de O’Neill “envelheceu mal, e foi vítima do tempo que levou

a chegar cá”.213 Tal envelhecimento prender-se-ia com a natureza denunciada tanto do

freudismo que caracteriza o relacionamento Eben/Abbie como da glosa da tragédia

clássica e do mito de Fedra. No ver de Carlos Porto, a encenação de João Lourenço não

fora capaz de superar esse “caráter do óbvio” no texto o’neilliano, acentuando inclusive

a sua fragilidade pela “inadequação dos intérpretes aos papéis que lhes foram destinados

(o caso mais flagrante é o de Irene Cruz)” e pela sua incapacidade em “exprimir os

valores que as personagens de O’Neill contêm”.214 Embora ressalve a prestação de

209 Jorge Listopad, “Ciclo de desejos luso-americanos”, JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias (16 Out.

1990), p. 28. 210 E. Vasques, “Pelo teatro fora”. 211 Fernando Midões, “Altos e baixos sob os ulmeiros”, Diário de Notícias (13 Out. 1990). 212 J. Listopad, “Ciclo de desejos luso-americanos”. Paris, Texas: filme de Wim Wenders (1984), de cujo

guião Sam Shepard é coautor. 213 C. Porto, “Desejo e amor”. 214 Idem, ibidem.

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Rogério Paulo (ator que fora cedido pelo Teatro Nacional D. Maria II), o crítico

identifica uma deficiência que não seria, de todo, exclusiva do elenco envolvido na

montagem em casa, mas que se revelaria transversal ao teatro português:

O teatro norte-americano, como o teatro inglês, exige um trabalho de ator muito forte e

sobretudo tendo em consideração processos de representação que exigem uma técnica

stanislavskiana que os nossos atores geralmente não dominam. Daí a insatisfação que este

espetáculo me causou.215

No contexto da nossa dissertação, onde se enfatizam os caracteres clássicos e

bíblicos que ressurgem na composição palimpséstica de Desejo Sob os Ulmeiros,

importará sobretudo realçar a argumentação de Eugénia Vasques, que identificava “a

necessidade, aparentemente sentida pelos criadores do Teatro Aberto, de negar

esteticamente as qualidades do texto de O’Neill que lhe outorgam o caráter de tragédia”.

Na ótica da crítica e investigadora teatral, teria sido essa recusa, consubstanciada no

“apagamento dos parâmetros de folk tragedy”, a transformar a peça num “melodrama

inverosímil”.216 (No vespertino A Capital, Tito Lívio confirmaria esta mesma noção, ao

classificar a substituição da tragédia pelo drama como “um dos erros”217 da encenação.)

A par da rasura das feições trágicas, Vasques diagnosticou ainda – questão não

tematizada por qualquer das restantes críticas publicadas – “a abolição de aspetos que

rondam a discussão teológica (o Velho Testamento, a culpa, a vontade, o livre

arbítrio)”, aspetos que exigiriam, ao nível da interpretação, “um desenho mais marcado

das contradições geradas pela violência intransigente dos valores fundamentalistas

personificados pelo velho Cabot”.218

Todavia, ao cotejarmos pareceres e opiniões, concluímos que aqueles que

expressaram o seu desacordo em relação ao espetáculo não se puseram propriamente de

acordo entre si. A avaliação da interpretação é, neste caso, paradigmática: se Carlos

Porto assinala que é Rogério Paulo, “apesar das dificuldades de ordem física, quem

consegue, graças a um técnica de ator aqui indispensável, tornar a sua personagem, pelo

215 Idem, ibidem. 216 E. Vasques, “Pelo teatro fora”. 217 Tito Lívio, “Conflito edipiano comanda relação de amantes”, A Capital (11 Out. 1990). 218 E. Vasques, “Pelo teatro fora”.

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menos, verosímil”,219 Eugénia Vasques expressava a opinião contrária, argumentando

que o ator emprestava a Ephraim Cabot uma “temperança e elegância que anulam a

verosimilhança dos conflitos”.220 (Uma divergência que nos permitiria colocar a

questão: a verosimilhança, tal como beleza, está no olho de quem vê?) Analogamente,

Vasques destacava “belos momentos de tensão emocional e sensual que [Irene Cruz]

estabelece com Fernando Luís”221 e um crítico como Tito Lívio punha em causa

precisamente essa tensão, informando que a atriz “não deixa transparecer a sensualidade

requerida na cena de sedução com Eben nem nos consegue transmitir […] o patetismo

da amante que, para conservar o objeto do seu amor, mata deliberadamente o filho de

ambos”.222 (Do triângulo incandescente de Desejo Sob os Ulmeiros apenas a

personagem de Eben, atribuída a Fernando Luís, terá colhido um elogioso consenso

crítico que, neste plano, se revela quase surpreendente.)

Todavia, se Jorge Listopad, Eugénia Vasques, Carlos Porto e Fernando Midões –

secundados, em parte, por Tito Lívio, que assegurava tratar-se de “um espetáculo apesar

de tudo digno de ser visto” 223 – emitiam juízos mais ou menos desfavoráveis à primeira

montagem nacional de Desejo Sob os Ulmeiros, Anabela Mendes e Maria Helena

Serôdio não deixaram de exprimir o seu aplauso, a começar, curiosamente, pelas

próprias interpretações:

Na peça de O’Neill é de salientar a força vibrátil e apaixonada de Fernando Luís a representar

Eben, a presença simultaneamente sedutora e dominadora de Irene Cruz no desempenho de

Abbie (que talvez no final exigisse um mais visível descontrolo passional), a rudeza e

agressividade que Francisco Pestana e Melim Teixeira colocam na composição dos seus papéis,

e a firmeza dura, quase obstinada, com que Rogério Paulo evoca a figura do pai, dela retirando

qualquer traço simpático que pudesse ter.224

219 C. Porto, “Desejo e amor”. 220 E. Vasques, “Pelo teatro fora”. 221 Idem, ibidem. 222 T. Lívio, “Conflito edipiano comanda relação de amantes”. 223 Idem, ibidem. 224 M. H. Serôdio, “O amor como enunciação trágica em O’Neill e Shepard”. Apesar do desencontro de

juízos, sobretudo no que diz respeito ao trabalho dos atores, regista-se, contudo, uma convergência de

opiniões no que toca à representação de Irene Cruz na última parte do espetáculo. Não só Maria Helena

Serôdio, mas também Eugénia Vasques e Jorge Listopad dão conta das suas reservas: “Dirigida,

tecnicamente admirável até ao último terço do jogo…” (J. Listopad, “Ciclo de desejos luso-americanos”);

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Anabela Mendes subscreveu, em boa medida, o teor da apreciação supracitada, mas, no

caso da crítica do jornal Público, dir-se-ia que a dimensão plástica e cenográfica

(mencionada de passagem ou simplesmente ausente de outros textos críticos) adquiriu

um carácter quase epifânico:

Vejo os ulmeiros gigantes. Maternais. Símbolos de proteção e afeto. Vigiam tudo e todos. Estou

presa e rendida ao cenário. De José Carlos Barros. Imagino agora amanheceres, o pôr-do-sol

fulminante. O horizonte é mágico. A imponência despojada do dispositivo cénico com a criação

de espaços amplos, em que jogam plataformas fixas e móveis, abre na minha cabeça outras

janelas.225

Sem mencionar os ulmeiros da cenografia nem tecer considerações esotéricas, o artigo

assinado por Maria Helena Serôdio fornece-nos, contudo, uma utilíssima descrição do

funcionamento cenográfico do espetáculo de João Lourenço. Se Loucos por Amor vivia

de uma reconstituição naturalista de um quarto de motel, a encenação do texto

o’neilliano envolveu o desenho de um espaço de feição psíquica e simbólica:

A opção foi pela abertura que o ciclorama permite, pelo despojamento cénico e pelo

funcionamento simbólico das ‘paredes’ de madeira que, de uma forma impressiva, estabelecem a

diferença de lugar, desvendam o interdito (quando, por exemplo, parece abrir-se o ‘coração’ da

casa em que Abbie e Eben se entregam à paixão que os domina), ou permitem uma solução

cénica muito feliz do baile, por exemplo.226

A partir dos “resíduos do ato teatral”227 que representam hoje os artigos

analisados e citados, deduzimos que, na primeira produção de Desejo Sob os Ulmeiros,

terá sido a matriz trágica da peça – se se preferir, a zona cinzenta em que tragédia e

melodrama se parecem cruzar e mesclar, o caráter quase indecidível do texto o’neilliano

– a oferecer especiais dificuldades à sua encenação. Da análise destes documentos da

época, inferimos também que, se a vinculação de Desejo à tragédia clássica e aos mitos

“um problema dos registos de voz de Irene Cruz […] afunda o pathos final num ‘miado’ desagradável,

que inviabiliza qualquer adesão emocional conseguida.” (E. Vasques, “Pelo teatro fora”.) 225 A. Mendes, “Duas janelas para a América”. 226 M. H. Serôdio, “O amor como enunciação trágica em O’Neill e Shepard”. 227 P. Pavis, L’Analyse des spectacles, op. cit., p. 21.

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de Fedra e Édipo é amplamente reconhecida, os tópicos bíblicos problematizados no

capítulo 3 são, de um modo geral, obliterados. Mencione-se, ainda, que é o problema da

interpretação, da direção de atores, da verosimilhança na representação que parece

constituir-se como a linha divisória para a crítica teatral, o elemento-chave da receção

do espetáculo.

4.3. O som e a fúria – a encenação de Nuno Cardoso

Algures no caminho, Eugene O’Neill tornou-se talvez uma inevitabilidade para

Nuno Cardoso. Não que a sua trajetória como encenador seja o resultado de um

programa preestabelecido – “vou fazendo projetos e, volta e meia, olho para trás e penso

que talvez tenha um programa”,228 afirmava numa entrevista a Alexandra Moreira da

Silva – ou que a obra do dramaturgo norte-americano galardoado com o Prémio Nobel

represente um ponto de chegada ou, empregando uma locução algo paroquial, o

corolário de uma carreira. Mas o próprio percurso de Cardoso, ainda que marcado por

inflexões ou desvios, parecia encaminhá-lo numa certa direção, pois, ao examinarmos o

seu curriculum artístico, encontramos – em alguns casos, repetidas vezes – os nomes

daqueles que formaram a constelação dos interesses dramáticos de O’Neill, os pontos

cardeais da rosa-dos-ventos do seu teatro: Tchékhov, Ibsen, Shakespeare,229 os antigos

poetas trágicos… Para a checklist ficar completa, bastaria apenas aditar o nome de

Strindberg, fautor do “teatro íntimo” e “pai espiritual”230 de O’Neill. Atente-se na

228 Alexandra Moreira da Silva, “O quarto ‘pê’: Entrevista com Nuno Cardoso”, in João Luís Pereira

(ed.), Platónov: Manual de Leitura, Porto, Teatro Nacional São João, 2008, p. 7. 229 Frequentemente, Shakespeare não figura na lista de autores referenciais de Eugene O’Neill, na qual

pontificam os dramaturgos Strindberg e Ibsen, o filósofo Nietzsche, o ficcionista Joseph Conrad, os

poetas Dante e Swinburne. Todavia, um livro de Normand Berlin veio colocar à luz as fortes relações

intertextuais que se estabelecem entre a obra de Shakespeare e a dramaturgia o’neilliana, levando-o a

afirmar: “Não tenho qualquer dúvida de que Eugene O’Neill, embora fosse um iconoclasta e um

experimentador de formas dramáticas, era conhecedor da tradição dramática, estava ao corrente da

história do teatro e se encontrava muito próximo – de formas até por ele ignoradas – do seu centro:

Shakespeare.” Normand Berlin, O’Neill’s Shakespeare, Michigan, University of Michigan Press, 1993, p.

6. 230 “É certo que os modelos de O’Neill são os maiores autores russos, mas também Strindberg

(considerado o seu ‘pai espiritual’), Ibsen, o teatro grego (para O’Neill, nada era mais nobre do que o

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adjacência tchekhoviana/o’neilliana que ocorre na cronologia teatral de Nuno Cardoso,

onde o dramaturgo nascido em Times Square e o médico-escritor dado à luz em

Taganrog convizinham: em 2010, escassos dois meses separam as estreias de A

Gaivota231 e de Jornada para a Noite;232 no ano seguinte, o mesmo sucede em relação a

As Três Irmãs233 e Desejo Sob os Ulmeiros. O período em que o encenador produz a sua

trilogia de Tchékhov, iniciada em 2008 com essa “explosão de alegria sem rumo”234 que

é Platónov,235 coincide também, aproximadamente, com o arco temporal em que faz

uma incursão desabridamente política no teatro shakespeariano – e entre o Ricardo II de

2007 e o Medida por Medida de 2012, situam-se as duas peças de O’Neill. Um teatro

que não versa já a esfera pública, a arbitrariedade do poder, o catálogo de manhas e

perversões da governação, mas que efetua, por assim dizer, uma retirada estratégica em

direção a essa fração íntima que é a casa, espaço suscetível, segundo Jean-Pierre

Sarrazac, de uma “dilatação infinita”.236 Este balanço entre o público e o privado, a

praça e a casa, o político e o íntimo, parece, aliás, pautar o trajeto de Nuno Cardoso –

ilustram-no as suas duas criações teatrais mais recentes: Coriolano, “a mal-amada de

entre as tragédias da maturidade de Shakespeare”,237 posta em movimento numa

recriação hiper-realista das escadarias da Assembleia da República (nos últimos anos,

palco de recorrentes tensões e confrontos em manifestações públicas), e Demónios,

onde Lars Norén – afinal, um herdeiro sueco de O’Neill na perceção da violência

‘sonho grego’) e o teatro isabelino – o teatro da crueldade avant la lettre.” M.-C. Pasquier, “Eugene

O’Neill”, op. cit., p. 1010. Na abertura do seu O’Neill: Son and Artist, Louis Sheaffer refere que O’Neill

teve em Strindberg “o seu modelo auto-consciente, o qual, voltando-se repetidamente para a sua própria

vida como material de trabalho, transmutou a história privada e a angústia secreta em arte.” L. Sheaffer,

O’Neill: Son and Artist, op. cit., p. ix. 231 Espetáculo estreado a 15 de Setembro de 2010, no Teatro Nacional São João. Coprodução Ao Cabo

Teatro, TNSJ, Centro Cultural Vila Flor, Teatro Aveirense, Teatro Maria Matos. 232 Espetáculo estreado a 20 de Novembro de 2010, no Auditório Municipal de Vila Nova de Gaia.

Produção Teatro Experimental do Porto. 233 Espetáculo estreado a 14 de Abril de 2011, no Teatro Nacional D. Maria II. Coprodução Ao Cabo

Teatro, TNDM II. 234 Peter Brook, “La Cerisaie, une immense vitalité”, Théâtre en Europe, n.º 2 (Avril 1984), p. 53. 235 Espetáculo estreado a 17 de Julho de 2008, no Teatro Nacional São João. Produção TNSJ. 236 J.-P. Sarrazac, Théâtres Intimes, op. cit., p. 9. 237 Fernando Villas-Boas, “Coriolano: Triunfos e Quedas”, in Coriolano: Programa, Lisboa, Teatro

Nacional D. Maria II, 2014, p. 24.

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psicológica e do espaço fechado – se compraz em exibir a esfera doméstica como ringue

de boxe ou jaula para feras esfaimadas.

Se um conjunto de outras experiências teatrais prepara ou rodeia o aparecimento

da dramaturgia o’neilliana no percurso de Nuno Cardoso, não é menos verdade que, em

grande medida, esta lhe sai ao caminho. (À semelhança do pintor, o encenador e ator

poderia dizer: “Não procuro, encontro.”) A encenação de Jornada para a Noite resulta

de um convite do Teatro Experimental do Porto, que, no âmbito das comemorações do

centenário do seu primeiro diretor artístico, António Pedro, delibera remontar a peça

que, em 1958, proporcionara à companhia um dos seus êxitos históricos. Por seu turno,

Desejo Sob os Ulmeiros decorre não só da vontade do encenador – e da companhia que

serve os seus desígnios artísticos, o Ao Cabo Teatro – como também do plano

programático da entidade coprodutora, a ACE/Teatro do Bolhão, que estabelecera a

realização de um ciclo de espetáculos construídos sobre “textos de forte pendor

realista”:238 depois de Edward Albee, Tennessee Williams e Lars Norén, teria chegado a

hora do founding father da moderna dramaturgia norte-americana.239 De onde talvez se

possa inferir a hipótese de a aparição de Eugene O’Neill na trajetória artística de Nuno

Cardoso resultar, afinal, de uma feliz concatenação de acasos e vontades.

Integrado na temporada 2010/2011 do Teatro Nacional São João, Desejo Sob os

Ulmeiros estreou-se no Teatro Carlos Alberto a 24 de Junho de 2011, permanecendo em

cena até 3 de Julho. No final do ano, o TNSJ promoveu uma reposição do espetáculo,

apresentando-o, sem qualquer alteração de elenco, entre 9 e 18 de Dezembro. Pela

vontade do encenador Nuno Cardoso, seguir-se-ia O Luto vai bem com Electra;240 pela

vontade do ator que também é, The Hairy Ape [1922], uma feroz experiência

expressionista de O’Neill, que nos lança na espiral depressiva de um fogueiro

condenado à condição de pária e filthy beast.

238 ACE/Teatro do Bolhão, [Nota introdutória ao espetáculo], in P. Sobrado (ed.), Desejo Sob os

Ulmeiros: Programa, op. cit., p. 5. 239 “Eugene Gladstone O’Neill é o maior dramaturgo dos Estados Unidos da América e o pai fundador da

moderna dramaturgia americana.” Robert M. Dowling, Critical Companion to Eugene O’Neill: A Literary

Reference to His Life and Work, New York, Facts on File, 2009, p. xi. 240 Vide Inês Nadais, “California dreaming, enquanto a tempestade se abate sobre uma casa que podia ser

nossa”, Público: P2 (24 Jun. 2011), p. 37.

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A encenação de Nuno Cardoso adota a tradução de Jorge de Sena, publicada em

1959 como o vigésimo título da belíssima coleção “Os Livros das Três Abelhas”

(Publicações Europa-América) fundada, dez anos antes, pelo arquiteto, fotógrafo e

designer Victor Palla e pelo escritor José Cardoso Pires.241 Cinquenta anos volvidos, se

analisada a partir da cena, a tradução envelheceu notoriamente, o que, pelo menos em

parte, terá levado João Lourenço e Vera San Payo de Lemos a realizar uma nova

tradução para o seu espetáculo.242 Cardoso recupera a tradução de Jorge de Sena, mas

submete-a a uma série de acertos, pequenas reformulações e elisões, de forma a, por um

lado, assegurar a verosimilhança requerida pelo chamado ‘teatro naturalista’ e, por

outro, renovar a força percussiva do texto, amolar as suas arestas. Alguns exemplos: o

desusado “havia montes de ouro à bica” passa a “havia ouro a dar com um pau”; “A

ceia está pronta” dá lugar a um grosseiro “O tacho está pronto”; o polido “É qualquer

coisa… que o impele… a impelir-nos” passa a “É qualquer coisa… que o empurra… a

empurrar-nos”; e o literário “o povo ia sempre dizendo que eu era duro, tão duro como

era pecado ser” foi substituído pelo coloquial “o povo ia sempre dizendo que eu era

duro, como se isso fosse pecado”.

Deixando de parte a questão de se saber se o prazo de validade da tradução de

Sena terá efetivamente expirado (o poeta e tradutor Daniel Jonas aludiu a essa

eventualidade),243 importa equacionar um aspeto que o original de Eugene O’Neill

coloca à consideração do seu tradutor e do seu encenador: um dos elementos centrais na

evocação do ambiente rural da Nova Inglaterra é a variante dialetal em que as

personagens de Desejo Sob os Ulmeiros se expressam. No texto original, não se trata de

um pitoresco adereço linguístico: o efeito desse arcaico inglês do nordeste americano no

público é complexo, pois não só participa coerentemente da agreste ruralidade da peça

como instaura uma distância em relação ao público culto (que não diz “purty” nem

“hoss”, mas “pretty” e “horse”), ao mesmo tempo que possui um particular vigor e uma

musicalidade quase encantatória.244 Tendo em conta a relevância deste aspeto na

241 A coleção foi originalmente concebida para a editora Gleba, tendo depois transitado para as

Publicações Europa-América. 242 Dizemos “em parte”, porque o Novo Grupo/Teatro Aberto privilegia a realização de novas traduções

para as suas produções. 243 Vide D. Jonas, “2 textos sobre 2 ensaios e 1 ensaio sobre 1 texto”, op. cit., p. 6. 244 “[O dialeto] mantém-nos permanentemente conscientes do pano de fundo rural da peça e do facto de

que as suas personagens são simples lavradores. Eles não são tão educados ou sofisticados quanto nós,

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estética dramatúrgica de Desejo, perguntamo-nos se cabe ao seu tradutor encontrar um

equivalente dialetal no idioma de chegada, em vez de sujeitar as rústicas personagens a

uma língua-padrão. Não se trata, note-se, de uma experiência inédita ou

necessariamente votada ao mais embaraçoso dos fiascos: recordemos a inventiva e

gostosa experiência com o falar de Caxinas no D. João de Molière, encenado por

Ricardo Pais em 2006, no Teatro Nacional São João. Fruto do labor do escritor José

Coutinhas e do foneticista João Veloso, o patois das primeiras quatro cenas do II Ato

dava aí lugar – sem perda de autenticidade, verosimilhança ou graça – ao

dialeto/socioleto das Caxinas, bairro piscatório de Vila do Conde.245

Trata-se, em todo o caso, de uma vexata quaestio que não temos a pretensão de

aqui resolver: no que diz respeito a Desejo Sob os Ulmeiros, objetar-se-ia, com

pertinência, que uma mera conversão dialetal redundaria num lastimável desastre, uma

vez que o que está em jogo no texto o’neilliano não se reduz a uma questão de acento –

todo um imaginário, nutrido pelo puritanismo norte-americano e imbuído de locuções

da popularizada King James Bible (cujo inglês era já arcaico no momento em que foi

publicada, no início do século XVII),246 teria igualmente de ser vertido, bem como o

pano de fundo da avidez pelo ouro californiano. Sem essa operação metamórfica,

perguntar-se-ia: que sentido faz um português de Miranda do Douro comportar-se e

discorrer como um yankee? Uma adaptação dessa envergadura foi, contudo, tentada por

João Canijo em 1991, quando encenou A Moon for the Misbegotten [1943]. O

espetáculo intitulava-se Confissão ao Luar e nele o realizador procedeu – como contava

então Eugénia Vasques nas páginas do Expresso – a “uma transplantação do sistema

referencial da peça de origem para a realidade social, mental e linguística portuguesa de

um possível e verosímil Alentejo contemporâneo”.247 Coadjuvado por António Feio

mas a sua linguagem possui um vigor e encanto que admiramos. Por conseguinte, parece refletir ou

corporizar a beleza natural do pano de fundo físico da peça […].” Michael Mikoś/David Mulroy,

“Reymont’s The Peasants: A Probable Influence on Desire Under the Elms”, in Frederick Wilkins (ed.),

The Eugene O’Neill Newsletter, vol. X, n.º 1, Boston, Suffolk University, 1986. In eONeill.com: An

Electronic Eugene O’Neill Archive [em linha]. Disponível em www: <URL: http://www.eoneill.com/

library/newsletter/x-1/x-1b.htm˃ [consult. 08-08-2014]. 245 Sobre esta experiência vide João Veloso, “La scène se passe à la campagne, au bord de la mer, non

loin de la ville”, in João Luís Pereira (ed.), D. João: Manual de Leitura, Porto, Teatro Nacional São João,

2006, pp. 6-7. 246 Vide R. Alter/F. Kermode (ed.), The Literary Guide to the Bible, op. cit., p. 1. 247 Eugénia Vasques, “Serenata alentejana”, Expresso: Cartaz (16 Mai. 1991), p. 9.

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(autor da tradução), e beneficiando da experiência de rodagem de uma série televisiva

no Alentejo,248 Canijo promoveu a transmutação de uma família de origem irlandesa e

da sua paisagem rural do Connecticut dos anos 1920 numa pequena herdade da planície

alentejana, com os seus cardos e piteiras. O que sustentava a arriscada transposição era,

por um lado, uma certa paridade dos elementos identitários das duas regiões (“terra

árida, sol escaldante, problemas de água, porcos e pocilgas, trabalho braçal,

patriarcado/matriarcado”) e, por outro, uma afinidade antropológica: as “tragédias de

solidão, isolamento e ensimesmamento existencial que nos permitem transitar do

universo mental de um transplantado catolicismo irlandês para o universo herético e

agnóstico daquelas terras portuguesas”.249 Todavia, uma adaptação deste alcance

acarreta perdas significativas: as réplicas atravessadas por ressonâncias bíblicas e o

característico praguejar irlandês perderam-se (bem como algumas das remissões

míticas), dando lugar a um linguajar mais rasteiro, repleto de grosserias. Não se trata de

um mero detalhe formal: como assinala Eugénia Vasques (que, na altura, não deixou de

emitir um parecer favorável à experiência), a narrativa teatral viu-se destituída do seu

carácter simbólico ou metafísico, prejuízo indemnizado por uma feição mais

sociológica. Na eventualidade de Desejo Sob os Ulmeiros ser submetida a uma

transcrição desta natureza, receamos que pouco restasse da peça escrita por O’Neill em

1924: em arte, não se opera sem dor uma disjunção forma/conteúdo. Tal operação

assemelha-se perigosamente a um transplante cardíaco, pois o organismo recetor pode

ser traído pelo próprio sistema imunológico, que, não reconhecendo o novo órgão vital,

ordena a sua implacável aniquilação.

Nuno Cardoso não só não transplantou a herdade dos Cabot para uma erma

povoação portuguesa, como também não abriu uma zona cinzenta – territorialmente

ambígua ou compósita – para a representação. Renunciou ainda a uma fuga para a

frente em relação às indicações espaciais do dramaturgo norte-americano, estratégia que

adotara, um ano antes, na encenação de Jornada para a Noite, ao despejar os Tyrone da

sua cottage no Connecticut para instalar toda a família numa roulotte, estacionada num

anónimo parque de campismo. (Um gesto cenográfico que, simultaneamente, observava

e subvertia o naturalismo do drama familiar o’neilliano.) Ao invés, em Desejo Sob os

248 Alentejo sem Lei, minissérie realizada por João Canijo para a RTP. 249 E. Vasques, “Serenata alentejana”, op. cit., p. 9.

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Ulmeiros, Cardoso optou por encenar o romance da América250 que, segundo Jean-

Pierre Sarrazac, o dramaturgo foi compondo na sua obra dramática, mesmo execrando

as congeniais mitologias do seu país natal.

Esta perceção de uma inscrição americana é-nos inequivocamente fornecida pelo

quadro de abertura do espetáculo: enquanto um lento fade in de luz desvenda o cenário

– o amanhecer do Novo Mundo –, escutamos uma gravação do clássico folk “Oh!

Susanna”, canção composta por Stephen Foster nos anos da primeira vaga do California

gold rush. Interessantemente, o tema não é de imediato reconhecível: tocado já não com

banjo e harmónica de boca, mas ao piano, como um velho hino protestante do século

XIX (parece saído de entre as partituras do The Puritan Hymn and Tune Book), denota

qualquer coisa fora do sítio, ou ligeiramente deslocada – notas erradas, uma anomalia

rítmica, acordes quase dissonantes? (Dir-se-ia que a canção foi submetida menos a um

arranjo do que a um desarranjo…) O tema musical – o único de todo o espetáculo,

complementado apenas por apontamentos de sonoplastia que recriam a paisagem sonora

do campo ou uma noite de trovoada – reveste-se de uma importância dupla: ao mesmo

tempo que pontua a estrutura dramática da peça (abre a representação e funciona como

leitmotiv, demarcando as três partes e as várias cenas que as constituem), inocula

inteligentemente uma problemática – entendida como nó de problemas251 – que

atravessa Desejo Sob os Ulmeiros: primeiro, esboça o pano de fundo histórico a que a

peça se reporta (meados do século XIX, época da corrida ao ouro da Califórnia, a que

Simeon e Peter aderem febrilmente); depois, sinaliza a avidez de que, sem exceção,

todas as personagens estão possuídas (inclusive o representante da lei, o Xerife, que

assobia a cançoneta e remata a representação com uma manifestação de cupidez: “É

uma quinta que é um gosto […]. Quem dera que fosse minha!”); por último, pelo

arranjo musical que lhe foi conferido (como se fosse necessário convertê-lo ao hinário

do divine service), introduz a questão religiosa, nuclear e irradiante em Desejo – não

apenas em virtude do ideário puritano da Nova Inglaterra ou dos signos bíblicos que o

texto vai constelando, mas também por força dessa estranha modalidade de culto

prestado à herdade (tantas vezes entendida numa perspetiva animística)252 e, no caso de

250 J.-P. Sarrazac, “Le Roman Dramatique Familial de Eugene O’Neill”, op. cit., p. 62. 251 “Uma problemática é fundamentalmente um nó de problemas”. Manuel Maria Carrilho, Jogos de

Racionalidade, Porto, Asa, 1994, p. 31. 252 Embora possamos encontrar a mesma perspetiva noutras personagens, Ephraim é aquele que, de uma

forma particular, lhe confere voz: “A herdade precisa de um filho. […] Às vezes tu és a herdade, e às

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Eben, à figura da mãe ausente. De algum modo, o solene mas desarranjado hino à

fortuna e à posse insinua, na estrutura do espetáculo, esse anel de Moebius que dinheiro

e religião formam na Weltanschauung americana. Uma mundividência admiravelmente

concentrada na profissão de fé inscrita nos seus copiosos dólares: In God We Trust.

De forma menos sub-reptícia e mais tangível, a cenografia de F. Ribeiro – um

dos companheiros de estrada de Nuno Cardoso, encenador que vem insistindo numa

lógica de equipa mais ou menos fixa, assente em sólidas afinidades estéticas – confirma

a inscrição da ação no espaço-tempo americano. A casa de recorte naturalista, com o

alpendre e as ripas de madeira pintadas a branco (mas bastante encardidas, como requer

a rubrica de cena inicial), evoca memórias cinematográficas (The Scarlett Letter de

Wim Wenders, por exemplo) e um panorama norte-americano que parece ainda hoje

comover os autores do Velho Continente, do Jean Baudrillard de América, com o seu

fascínio por uma metafísica da paisagem, ao Peter Handke de Breve carta para um

longo adeus. Ao nosso olhar, a figuração da casa dos Cabot reporta-nos sobretudo à

pintura de Grant Wood, cujo icónico American Gothic [1930] concentra (apesar das

paródicas apropriações de que tem sido alvo) uma ambígua fusão de reverência e sátira

à América rural e à austeridade repressiva do seu puritanismo. Poderíamos ainda evocar

a pintura cinematográfica de Edward Hopper,253 célebre pelas visões melancólicas de

uma América urbana e nocturna, mas que, na década de 1920, fixava em telas luminosas

– e não menos melancólicas – as casas de Gloucester,254 localidade costeira de

vezes a herdade és tu. É por isso que me agarro a ti na minha solidão. […] Eu e a herdade temos de gerar

um filho!” [I Parte, Cena 4]. 253 Se as telas de Edward Hooper possuem uma feição cinematográfica, o contrário também é verdade, ou

seja: que algum cinema desenvolveu uma qualidade hopperiana, como, de resto, assinala Julian Bell: “O

cinema retribuiria o elogio, citando as suas composições em muitos cenários.” Julian Bell, Espelho do

Mundo: Uma Nova História de Arte, trad. Luís Leitão e Cláudia Brito, Lisboa, Orfeu Negro, 2007, p.

394. 254 Em 2012, a fotógrafa Gail Albert Halaban percorreu Cape Ann em busca das casas que Edward

Hopper pintou nos anos 1920. As fotografias deram origem a uma exposição em Nova Iorque (Edwynn

Houk Gallery, Novembro de 2012) e o jornal The New York Times publicou uma galeria de imagens que

associa algumas das fotos de Halaban às telas de Hopper, permitindo um interessante cotejo. In The New

York Times [em linha]. Disponível em www: <URL: http://www.nytimes.com/interactive/2012/07/22/

magazine/hopper-houses.html> [consult. 02-09-2014]. Com interesse pode também ser consultada, no

website da fotógrafa, uma sequência mais generosa de fotografias. In Gail Albert Halaban [em linha].

Disponível em www: <URL: http://www.gailalberthalaban.com/ART/HOPPER-REDUX/1/> [consult.

02-09-2014].

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Massachusetts, Nova Inglaterra. Nesses anos, e não longe dali (pelo menos pelos

padrões americanos de distância), O’Neill compunha Desejo Sob os Ulmeiros, tendo ele

próprio apresentado esboços para a cenografia que Robert Edmond Jones – um dos

elementos do ‘Triunvirato’ que reconfigurou os Provincetown Players no Experimental

Theatre255 – desenvolveu para o espetáculo de estreia, em 1924.

A sombria little house on the prairie concebida para a encenação de Nuno

Cardoso participa do paradigma mimético instituído pelo texto o’neilliano, bem como

pela produção original, que o dramaturgo supervisionou. Trata-se de um gesto

cenográfico que, do ponto de vista conceptual, não é propriamente arquetípico da

estética cénico-teatral de Nuno Cardoso. A avaliar pelas cenografias mais emblemáticas

que F. Ribeiro vem desenhando para espetáculos seus – o campo de futebol de Ricardo

II , os carris de comboio de Platónov, a autoestrada de Medida por Medida –, o

encenador parece privilegiar espaços simbólicos, cenários que comportem metáforas

cénicas: por vezes, óbvias, quase ostensivas no seu apelo à atualidade, como sucedia

com a escadaria da Assembleia da República de Coriolano (os tempos não estão para

subtilezas?); outras vezes, enigmáticas, como era o caso da “folha de papel

amarrotada”256 de Woyzeck, uma espécie de gigantesca lomba de cimento para skaters,

escultura cénica onde a escritora Regina Guimarães reconheceu a exteriorização dos

“fortíssimos movimentos tectónicos” que operam no subsolo do drama de Büchner e a

que o pobre-diabo soldado é estranhamente sensível.257 A uma solução diversa, na

aparência mais convencional, terão encenador e cenógrafo sido conduzidos ou pelo

naturalismo do texto de O’Neill ou pela vontade própria de experimentar uma

teatralidade que, segundo Cardoso, se confunde sistematicamente com “as práticas do

255 Companhia off-Broadway criada e preparada para produzir qualquer texto dramático que O’Neill

pudesse propor, o que veio a conceder livre curso à imaginação do dramaturgo, que compôs

excentricidades como Marco Millions e Lazarus Laughed [1928]. Vide James A. Robinson, “The Middle

Plays”, in Harold Bloom (ed.), Eugene O’Neill, New York, Infobase Publishing, 2007, p. 101. 256 Declaração de Nuno Cardoso, in Regina Guimarães, “Ainda não é a noite de todos os dias: Uma

conversa com Nuno Cardoso”, in João Luís Pereira (ed.), Woyzeck: Manual de Leitura, Porto, Teatro

Nacional São João, 2005, p. 7. 257 “Não posso deixar de repensar nos gestos e palavras de Woyzeck que exprimem a ideia de que ele

ouve o som da terra a tremer e se julga capaz de comunicar com ela (‘é como se o mundo falasse’),

‘esgotando-se’, como lhe diz o Capitão, nesse seu estado de semi-transe e nesse seu rudimentar

pensamento alegórico.” Regina Guimarães, “Ensaios, Diários”, in Woyzeck: Manual de Leitura, op. cit.,

p. 9.

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audiovisual”.258 Mas se o espaço cénico cumpre, de um modo geral, as prescrições do

dramaturgo americano e não diverge, na sua tipologia, daquele que Robert Edmond

Jones construíra quase cem anos antes, há neles apreciáveis diferenças (não apenas ao

nível do desenho arquitetónico ou no plano dos materiais usados) e a distância entre os

dois permite-nos avaliar aspetos importantes da encenação de Nuno Cardoso.

Conta-nos Ronald Wainscott que, uma vez que a ação de Desejo Sob os

Ulmeiros envolvia espaços interiores e exteriores numa mesma unidade cenográfica, a

produção dos Provincetown Players adotara paredes removíveis, de forma a que a

fachada da granja dominasse o palco sempre que os interiores não fossem necessários.

A vantagem, explica o historiador, consistia em “manter a misteriosa e fantasmagórica

sala de visitas oculta até ser necessária à cena de sedução de Eben por Abbie”.259 (Por

outro lado, esta opção comportava desvantagens, nomeadamente o retardamento

imposto à representação pela remoção e recolocação das paredes do cenário.) Não

reencontramos este dispositivo na casa parda da encenação de Nuno Cardoso: se bem

que tenha implicado a deslocação de múltiplas cenas para o exterior – para o alpendre

(como sucede na ceia que tem lugar na segunda cena da I Parte) ou para a área

retangular de terra escura em frente (é o caso do baile que abre a III Parte) –, a casa é

fechada e, no que toca à ação que decorre no seu interior, acedemos apenas ao que as

janelas nos permitem entrever, o que estabelece uma nova relação entre interior e

exterior, entre visível e invisível, entre o que é mostrado e ocultado ao espectador. Para

além de aniquilar um princípio de transparência absoluta que as didascálias do texto

o’neilliano previam (“o interior da cozinha é agora visível” [I Parte, Cena 2]; “vê-se o

interior dos dois quartos de cama, no andar de cima” [II Parte, Cena 2]; “vê-se o interior

da sala de visitas” [II Parte, Cena 3], etc.), este jogo de exposição/ocultação tem

consequências dramatúrgicas e de poética cénica, como facilmente se depreende de uma

cena nodal de Desejo: se o texto dramático pressupõe a representação efetiva do

infanticídio – a didascália que Eugene O’Neill antepõe à terceira cena da III Parte

descreve a silenciosa consumação do crime –, a encenação de Nuno Cardoso deixa

apenas pressentir (e sobretudo imaginar) o nefando ato de Abbie: vemos a personagem a

acercar-se de um berço quase invisível e a tomar a criança nos braços, deitando-a de

258 Nuno Cardoso, [Nota introdutória ao espetáculo], in P. Sobrado (ed.), Desejo Sob os Ulmeiros:

Programa, op. cit., p. 4. 259 R. Wainscott, “Notable American stage productions”, op. cit., p. 104.

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novo – mas nada mais. Figurado nestes termos, o acontecimento aproxima Desejo da

tragédia grega não apenas tematicamente, mas também formalmente, uma vez que a

antiga forma trágica isentava a representação teatral à exibição do crime, remetendo

para o interior de um reduto inacessível a sua execução. Invoquemos um caso afim: o

duplo filicídio cometido pela Medeia euripidiana não ocorre à vista do público, mas no

interior da casa, com as portas trancadas.

Merece ainda menção a caracterização cenográfica da sala de visitas,

significativamente diversa daquela que recebe o resto da casa: sem parede exterior,

envolvida apenas por um cortinado branco translúcido, é simultaneamente um féretro e

um tálamo nupcial. Também um templo, uma espécie de Débir (Santo dos Santos ou

Santíssimo Lugar),260 sala interior do Templo de Salomão que se encontrava isolada por

uma cortina de linho e a que apenas o sumo-sacerdote acedia uma vez por ano, no Dia

da Expiação. Uma caracterização que está em plena conformidade com a noção,

veiculada por Eben, de se tratar de um lugar sagrado – ali estivera, em câmara ardente, o

corpo daquela a quem ele se devota religiosamente – e com a intuição, manifestada

também por Abbie, de que ali uma oculta força exógena se abrigou.

Um aspeto, contudo, da cenografia de Desejo Sob os Ulmeiros oferece-nos

reservas: a figuração das duas árvores do título, feita através de eucaliptos ‘importados’

de um espetáculo tchekhoviano de Nuno Cardoso, onde ‘interpretavam’ o papel de

tílias. Evidentemente, não é a transferência cenográfica que gera incompreensão (pelo

contrário, pois, em si mesma, possui uma feição meta-teatral que tantas vezes se revela

intrigante).261 Os dois ulmeiros – por sinal, a árvore oficial do Estado de

Massachusetts262 – já não ladeiam a casa, como sentinelas ou como os altares a Ártemis

e Cípris no Hipólito, mas encontram-se ao fundo da cena, nas traseiras da residência,

260 Vide A. V. D. Born, Dicionário Enciclopédico da Bíblia, op. cit., p. 1393. 261 Nas páginas do programa de um dos primeiros espetáculos do São João enquanto Teatro Nacional (O

Grande Teatro do Mundo, de Calderón de la Barca, enc. Nuno Carinhas), Ricardo Pais expressava essa

feição nos seguintes termos: “Quando, num ensaio do Grande Teatro, vi a enxada de Dom Duardos ser

entregue ao Lavrador pelo Mundo, ocorreu-me que passar de um projeto a outro é passar as ferramentas

deste duro ofício de palco como quem passa um testemunho. Cada espetáculo é um repto que se faz a

outro, cada experiência um desafio à que a antecede e assim sucessivamente.” Ricardo Pais, “Em

Setembro de 1996”, in Rodrigo Affreixo (ed.), O Grande Teatro do Mundo: Programa, Porto, Teatro

Nacional São João, 1996, p. 5. 262 In States Symbols USA [em linha]. Disponível em www: <URL: http://www.statesymbolsusa.org/

Massachusetts/tree_american_elm.html > [consult. 15-09-2014].

- 99 -

sendo apenas em parte visíveis: não têm porte de ulmeiros, não possuem o carácter

vigilante e opressivo que o texto o’neilliano lhes atribui, nada revelam da “maternidade

sinistra” e da “absorção ciosa e esmagadora” que a didascália inaugural anuncia.

Assemelham-se, por assim dizer, a protagonistas despromovidos à condição de

figurantes. Em sua defesa, oferece-nos dizer que parecem não ter princípio nem fim,

afinal como o próprio desejo do título: não lhes vemos as raízes, não alcançamos a

folhagem, apenas o lenho está diante de nós… Ainda assim, perguntar-se-á se não teria

sido preferível renunciar à figuração dos ulmeiros do que ficar, digamos, por uma

figuração mutilada, incompleta. Foi o que fez, por exemplo, José Quintero, fundador do

Circle in the Square Theatre (Nova Iorque) e um dos mais destacados encenadores da

obra de Eugene O’Neill nos EUA, cuja histórica encenação de 1963 provocou uma

clivagem na crítica, pois de uma assentada abdicava da casa e dos ulmeiros, embora

estes fossem, a dada altura, percecionados através da projeção da sua abundante

folhagem.263 Encontramos uma reflexão afim no livro que Georges Banu dedicou a O

Cerejal de Tchékhov, onde, entre tantas outras coisas, avalia a necessidade de

representar cenograficamente as cerejeiras, um problema que não releva apenas do

gosto pessoal dos criadores do espetáculo, mas que transporta a marca de combates

estéticos (naturalismo, simbolismo, etc.). Conta o ensaísta que houve quem figurasse

cabalmente o cerejal, quem discretamente o evocasse em pontas de ramos e flores

(como fez Stanislavski) e quem rasurasse por completo a sua presença, tornando-o cosa

mentale. No que respeita aos ulmeiros de O’Neill, tendemos a adotar a tomada de

posição de Banu sobre as cerejeiras de Tchékhov: “Figurar ou não o cerejal? De

maneira nenhuma ou completamente. Toda a solução intermédia dececiona, transige

com esse supremo desafio, o desafio do invisível completado pelo visível. O imaginário

extremo ou o físico supremo.”264

Em todo o caso, afigura-se árdua a tarefa de encontrar, entre as encenações de

Nuno Cardoso, produções que pequem pela incúria cenográfica ou pela indigência

plástica (podemos censurar o oportunismo da escadaria da Assembleia da República em

Coriolano, mas de modo algum o seu impressivo grafismo cénico ou a qualidade da sua

execução técnica). No caso de Desejo Sob os Ulmeiros, os chamados production values

são irrepreensíveis: favorecida pelo desenho de luz de Pedro Vieira de Carvalho, a

263 R. Wainscott, “Notable American stage productions”, op. cit., p. 105. 264 Georges Banu, Notre Théâtre, La Cerisaie: Cahier de Spectateur, Arles, Actes Sud, 1999, p. 32.

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cenografia de F. Ribeiro pactua com os figurinos de Cristina Costa, os quais parecem

cumprir os critérios que Roland Barthes fixou na sua minima moralia do figurino de

teatro: materialidade bastante para significar e transparência suficiente para não

constituir os seus signos em parasitas.265 Poderíamos formular o elogio em termos

negativos – não estorvam, não enchem, não distraem –, mas seria dizer pouco de

figurinos que, nas formas, cores e materiais, assumem também como seu o argumento

do espetáculo, participando de uma semântica franca e austera que, sem escrúpulos

epocais ou pormenores decorativos, evoca uma ruralidade puritana.

Em Desejo Sob os Ulmeiros, reencontramos outra marca distintiva da fisionomia

teatral de Nuno Cardoso: a vitalidade percussiva da interpretação, aspeto que requer dos

atores uma particular disponibilidade física, ou mesmo um poder de choque. Se bem

que algumas cenas a imponham (o baile da III Parte, o confronto físico entre Ephraim e

Eben, etc.), essa corporalidade veemente do teatro de Cardoso manifesta-se

transversalmente, produzindo inclusive inflexões na orientação do texto o’neilliano,

com consequências ao nível da perceção das personagens ou da situação dramática. É o

que sucede, por exemplo, na entrada em cena de Simeon e Peter: onde o texto descrevia

dois homens exaustos, que regressam do trabalho de ombros curvados e arrastando os

pés (prisioneiros cujas grilhetas são invisíveis), a encenação dá-nos a ver dois estoura-

vergas que voltam a casa numa corrida desenfreada, arremessando a sachola com

violência, digladiando-se fisicamente, rindo como hienas.266 O que se afigura uma

inusitada explosão cinética decorre, contudo, de uma dramaturgia do corpo que Nuno

Cardoso promove em cada trabalho de encenação: digamos que a hermenêutica que o

encenador empreende sobre o texto dramático é sobretudo uma hermenêutica corporal,

uma exegese que tem no corpo do ator uma ferramenta privilegiada de análise

dramática. (Daí que o encenador privilegie, em muitos processos criativos, o método da

improvisação, que o próprio define como “uma operação de hermenêutica, um

265 “Em suma, o bom trajo de cena deve ser bastante material para significar e bastante transparente para

não constituir os seus signos em parasitas.” Roland Barthes, “As doenças do trajo de cena”, in Ensaios

Críticos, Lisboa, Edições 70, 2009, p. 72. 266 Algo análogo ocorre quando Eben se prepara para visitar “a mulher escarlate”: a altercação que o opõe

aos dois irmãos mais velhos degenera numa pequena batalha campal não prevista por O’Neill.

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estudo”.)267 Em Desejo, essa dramaturgia do corpo estaria ao serviço da intifada

(‘guerra das pedras’) que as personagens – anteriormente definidas, à luz das conexões

bíblicas, como “pedras vivas” e “pedras de tropeço” – corporizam. Mas também da

bestialidade que atravessa todo o texto de O’Neill: Eben é um touro, um galo de

capoeira, um cão; Ephraim, uma cobra; os dois irmãos são bois e porcos; Abbie, uma

vaca e, a dado momento, “arqueja como um animal”; os convidados são porcos,

galinhas, asnos… (Razão pela qual a pequena disputa territorial se tornou um dos

tópicos mais valorizados pela encenação.) Digamos que o espetáculo generaliza a

natureza que uma didascália imputa a Eben, tratando as personagens de Desejo como

“animais selvagens” para os quais “cada dia é uma jaula”.

Curiosamente, ao contrário do que parece impor esta dramaturgia musculada, e

do que habitualmente sucede nos seus projetos de encenação (onde rapidamente

divisamos um núcleo de atores reincidentes), Nuno Cardoso dirigiu pela primeira vez,

em Desejo Sob os Ulmeiros, intérpretes que não haviam antes figurado nos seus elencos

– entre eles, o ator António Capelo, cofundador da Academia Contemporânea do

Espetáculo –, alguns dos quais se tornaram, nos anos que se seguiram, presença mais ou

menos regular nas produções do encenador: Catarina Lacerda, Afonso Santos e, muito

especialmente, Pedro Frias. Por razões que, em alguma medida, terão origem em

constrangimentos de produção, os últimos dois assumiam não apenas a interpretação

dos dois irmãos siameses (que se eclipsam, rumo à Califórnia, no final da I Parte), mas

também o papel dos dois lavradores que participam no baile da II Parte, e mais tarde do

Xerife e do seu ajudante, que vêm pôr termo à representação. (Bem longínquo se afigura

o início da década de 1990, que permitira ao Novo Grupo/Teatro Aberto encenar Desejo

Sob Ulmeiros com treze atores e um músico.) Deste elenco, a cuja diversidade (ou

disparidade) de escolas de interpretação Daniel Jonas se referiu, ao mencionar “um

elenco […] tão variado como uma tábua de queijos”, sentimo-nos inclinados a sinalizar

o desempenho de Catarina Lacerda, na qual se assiste ao progresso de uma Abbie

demencial, ao mesmo tempo que a relativa unidimensionalidade que Capelo confere a

Ephraim – no qual Louis Sheaffer descobriu “uma das figuras mais ricas de toda a obra

de O’Neill”268 – fá-lo regredir à condição de um bufão puritano (o que a personagem

267 “Uma improvisação aplicada a um texto de repertório é uma operação hermenêutica, é um estudo.” In

A. M. Silva, “O quarto ‘pê’: Entrevista com Nuno Cardoso”, op. cit., p. 8. 268 L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op.cit., p. 128.

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em parte requer), rasurando os distorcidos traços de profeta ou patriarca bíblico que a

nossa leitura lhe imputa. Nas páginas do jornal Público, o crítico e dramaturgo Jorge

Louraço Figueira não destrinçou prestações, emitindo um parecer amplamente favorável

ao elenco de Desejo: “Os atores interpretam o texto com impulsividade, a capacidade de

escuta e o caráter lúdico que são indispensáveis a um elenco feito de talento e

experiência como este.”269

Alguns achados da encenação de Nuno Cardoso merecem também a nossa

ponderação. Um deles diz respeito ao quadro de abertura, não previsto pelo texto

o’neilliano: enquanto escutamos a canção do gold rush numa versão litúrgica, e todo o

cenário se vai gradualmente iluminando, vemos Eben no interior da sala de visitas – sob

uma luz ténue, embala-se a si próprio numa cadeira de baloiço. Com uma sagaz

economia expressiva, esta cena apócrifa conta-nos muito sobre Eben e a sua vinculação

umbilical à mãe morta, bem como sobre essa misteriosa divisão da casa, onde o corpo

da mãe estivera em câmara ardente e que, desde então, permanecera encerrada e de

persianas corridas. Como vimos nos capítulos precedentes, a peça de O’Neill dá-nos a

ver essa sala da casa dos Cabot como um mausoléu – “sala desgraciosa e pesada como

um sepulcro em que a família tivesse sido enterrada viva” [II Parte, Cena 3] – e

simultaneamente como uma alcova nupcial, pois no seu interior se consuma uma ilícita

noite de núpcias. Mas, quer como túmulo quer como tálamo, trata-se de uma câmara

materna, pois Eben e Abbie praticam aí um coito incestuoso: ela não só é a sua madrasta

como, nesse reduto habitado por estranhas forças, emula e incorpora a mãe morta. Tudo

isto está já contido na peça de O’Neill. Interessantemente, a encenação de Nuno

Cardoso antecipa-o (ou prepara-o) com o seu quadro de abertura: ao mostrar-nos Eben

no interior do aposento maternal, embalando-se na cadeira de baloiço, é como se o

víssemos no seu berço – ou no útero materno. Nesse compartimento, envolvido por um

tule diáfano, ele está na sua placenta, efetuando trocas nutritivas com a progenitora.

Quando finalmente o palco se ilumina por completo (sentimo-nos tentados a dizer:

quando a representação dá à luz), vemo-lo a abandonar a matriz, atravessando a cozinha

rumo ao exterior: vem como uma criança estremunhada, e traz vestido um figurino não

previsto por O’Neill: o avental da mãe. Instantes depois, reivindicará: “Saio à minha

mãe, até à última gota de sangue!” [I Parte, Cena 2].

269 Jorge Louraço Figueira, “Desejo e meio”, Público: P2 (21 Dez. 2012), p. 53.

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Outra inventiva subversão proposta pela encenação tem lugar nas Cenas 2 e 3 da

II Parte, que representam o turning point da ação dramática: é a noite em que Ephraim

conta a ‘sua’ história a Abbie – o dia em que ali chegou, há cinquenta anos; o casamento

com a mãe de Eben; a disputa pela herdade em tribunal; a vida com os filhos; o

chamamento divino para que procurasse uma “Rosa de Sião” para o seu deserto –, mas

também em que Abbie e Eben se acometem fisicamente, ora cobrindo-se de beijos, ora

repelindo-se com violência, e que culmina na ‘violação’ de um aposento selado desde a

morte da mãe – a mística sala de visitas onde ocorre a cópula incestuosa. É uma noite

que a didascália da Cena 2 descreve como invulgarmente quente e que a encenação

converte numa noite sufocante que produz uma tempestade elétrica sobre a herdade

(com relâmpagos e trovões que a sonoplastia e o desenho de luz mimeticamente

engendram). O que há de incisivo na intuição meteorológica de uma descarga elétrica é

o facto de, precisamente nas duas cenas em causa, se manifestar poderosamente uma

força exógena, tão coerciva e inelutável quanto a de um fenómeno eletromagnético.

Toda essa noite ressuma não só carnalidade, como também um excitante ocultismo: é a

convicção de que “há coisas que remexem no escuro” e que levam Cabot a acoitar-se

junto das vacas; é o seu pungente rogo, reminiscente dos Salmos (“Deus Todo-

Poderoso, das trevas clamo!”); é o cruzamento do olhar entre Abbie e Eben através da

parede, como fossem dotados de uma perceção extrassensorial; é a assunção de Abbie

como “profeta” e, pouco depois, a perceção mediúnica da ação de “qualquer coisa”; é a

invocação mediúnica da mãe por parte de Eben e a lasciva incorporação da progenitora

morta por parte de Abbie… Ao desencadear uma tempestade elétrica que prepara e

acompanha esta sucessão cumulativa de pequenos prodígios do oculto, a encenação

evoca the Force behind que sempre ocupou O’Neill: algo maior do que o homem, que o

excede e obscuramente preside ao seu destino.270

Apesar destas pontuais invenções (ou atendendo à sua natureza), temos em

Desejo Sob os Ulmeiros uma encenação respeitosa, isto é, uma encenação que respeita a

natureza do texto de Eugene O’Neill e se esforça por jogar segundo as regras que ele

institui. Talvez por isso, na nota que assina na abertura do programa de sala, Nuno

Cardoso afirme pretender, com o espetáculo, “fazer um teatro digno e honesto”.271 O

que significa isto? A nosso ver, que o encenador não teve a ambição ou a pretensão de

270 In T. Bogard/J. Bryer (ed.), Selected Letters of Eugene O’Neill, op. cit., p. 195. 271 N. Cardoso, [Nota introdutória ao espetáculo], op. cit., p. 4.

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subverter o texto, de se lhe impor ou de construir sobre ele um ponto de vista ‘original’,

mas de o servir ou, se se preferir, acionar: “Resta o desejo de levar à cena os textos de

O’Neill pela excelência das histórias contadas, pela acuidade dos seus diálogos e pela

força das suas personagens”.272 À atitude não impositiva por parte de um encenador

chamou o ensaísta e dramaturgista António M. Feijó “agnosticismo”,273 talvez porque,

com ela, o encenador não se toma por criador – leia-se, demiurgo – ou simplesmente

porque não assume já a sua visão pessoal como um absoluto.274 Numa conversa sobre a

sua encenação de O Tio Vânia de Tchékhov, Nuno Carinhas reclamava para si uma

atitude afim, embora enunciando-a em termos diversos: “Enquanto encenador de

repertório, não escrevo ao lado do texto do autor. Sou reverente.”275 Analogamente, em

Desejo Sob os Ulmeiros, Nuno Cardoso não sobrepõe à escrita de O’Neill uma outra

escrita; não fala por cima da voz do autor, mas empenha-se em aclará-la, torná-la

audível. É pouco? Seria uma ingenuidade tomar esta honestidade, agnosticismo ou

reverência – or what you will – como expressão de uma neutralidade artística que

redundaria fatalmente num teatro linfático, inócuo. O que parece um gesto de renúncia

ou humildade pode constituir, afinal, uma temeridade. No caso de Desejo Sob os

Ulmeiros, estamos perante um texto que, aspirando à tragédia, adquiriu feições de

melodrama276 – género árduo que implica a recusa do cinismo e a superação do medo

272 Idem, ibidem. Itálico nosso. 273 António M. Feijó/Ricardo Pais, “Universos absolutamente plurais: De La Castro à Castro”, in João

Luís Pereira (ed.), Castro: Manual de Leitura, Porto, Teatro Nacional São João, 2003, p. 8. 274 Aludimos a uma questão complexa, que, no limite, nos levaria a perguntar se “o progresso de um

artista é um contínuo autossacrifício, uma contínua extinção da personalidade”, como convictamente

defendeu Eliot. T.S. Eliot, “Tradition and the individual talent”, in Selected Essays, London, Faber and

Faber, 1957, p. 17. 275 Nuno Carinhas et al., “Vânia na Rua das Oliveiras”, in João Luís Pereira (ed.), O Tio Vânia: Cadernos

Tchékhov Vol. 1, Porto, Teatro Nacional São João, 2005, p. 38. 276 Tocamos de novo numa questão complexa, que exigiria ponderação. Note-se, por ora, que melodrama

e tragédia possuem um parentesco que um autor como Patrice Pavis não deixou de assinalar: “O

melodrama é a finalização, a forma paródica, sem o saber, da tragédia clássica, cujo lado heróico,

sentimental e trágico teria sido sublinhado ao máximo, ao multiplicar os golpes de teatro, os

reconhecimentos e comentários trágicos dos heróis.” (Patrice Pavis, Dicionário de Teatro, trad. J.

Guinsburg/Maria Lúcia Pereira, São Paulo, Editora Perspectiva, 1999, p. 238.) Por outro lado, refira-se

que o melodrama o’neilliano difere significativamente daqueles que caracterizaram o teatro norte-

americano do século XIX e que tem em O Conde de Monte Cristo (que o pai do dramaturgo protagonizou

durante décadas) um caso exemplar. No entanto, vários críticos identificaram melodramas em peças como

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do ridículo (essa coisa mortífera). Um melodrama requer a coragem de caminhar sobre

o arame: é preciso que haja verdade, não havendo verosimilhança; que seja crível, não

sendo plausível.277 Se, como notava Jorge Louraço Figueira, “na hora da verdade,

quando a personagem feminina revela, primeiro, que matou o filho, e depois, como

matou o filho, a sala riu às gargalhadas”,278 não foi porque a encenação promovesse a

irrisão do seu próprio objeto, ou porque se distanciasse ironicamente do magma

melodramático da III Parte de Desejo Sob os Ulmeiros. Pelo contrário, a encenação

depositou crédito no enredo dramático e levou a sério o som e a fúria das personagens.

Teria alguma modalização interpretativa da sua cobiça e escárnio, da sua ira e paixão

produzido uma diferença na receção? Por que motivo, como enuncia Louraço Figueira,

“o melodrama, neste início de século, já foge para a farsa”?279 Terá Desejo Sob os

Ulmeiros envelhecido? Teria razão Jorge Listopad quando, em 1990, afirmou que a

peça de O’Neill é hoje “mais interessante para discutir do que para ver”?280 Terá a razão

cínica que, segundo Peter Sloterdijk,281 preside ao nosso tempo instaurado um

paradigma epistémico, fenomenológico ou afetivo incompatível com o melodrama? Nos

Beyond the Horizon e Desejo Sob os Ulmeiros, embora a complexidade psicológica das personagens e o

grau de elaboração dos temas de O’Neill elevem a sua obra acima dos estafados melodramas de matiné do

final do século XIX. Vide R. M. Dowling, Critical Companion to Eugene O’Neill, op. cit., pp. 651-652.

Sobre a influência do melodrama do século XIX na obra de O’Neill vide Matthew H. Wikander, “O’Neill

and the cult of sincerity”, in The Cambridge Companion To Eugene O’Neill, op. cit., p. 217-235. 277 Num excurso sobre Douglas Sirk e R.W. Fassbinder (príncipes do melodrama, ambos homens de

teatro), Edmundo Cordeiro dá conta da dificuldade de definir o melodrama, enunciando várias tentativas

que, apesar de considerar insatisfatórias, nos aproximam da sua especificidade: o género pode ser

caracterizado por “certas figuras, como a linha do destino – a sina, a queda; o mau encontro; o auxílio

involuntário; a obstinação; a recompensa, o remédio, a redenção; e, finalmente, o happy end”; atribuem-

se-lhe também traços como “o exagero e o excesso (o melodrama trabalha com emoções fortes e

extremas), o moralismo (o restabelecimento, a vitória do justo, são motivos muitas vezes determinantes) e

mesmo a pedagogia”; podemos ainda invocar “o excesso emocional, as emoções primárias, o espetáculo”.

(Edmundo Cordeiro, “Sirk e Fassbinder: O que é o melodrama?”, Livro de Actas – 4.º SOPCOM,

Universidade de Aveiro, 2005, pp. 1135-1136.) De algum modo, muitos destes signos melodramáticos

são reconhecíveis em Desejo Sob os Ulmeiros. 278 J. L. Figueira, “Desejo e meio”, op. cit., p. 53. 279 Idem, ibidem. 280 J. Listopad, “Ciclo de desejos luso-americanos”, op. cit., p. 28. 281 Peter Sloterdijk propõe uma análise da sociedade contemporânea a partir do que considera ser uma

nova configuração epocal: o nosso tempo – esta é a sua tese – é caracterizado pelo triunfo do cinismo.

Vide Peter Sloterdijk, Crítica da Razão Cínica, trad. Manuel Resende, Lisboa, Relógio D’Água, 2011.

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Fragmentos de um Discurso Amoroso, Barthes conta que, no filme A Marquesa d’O de

Eric Rohmer, as personagens choram e os espectadores riem, o que talvez seja indício

de que qualquer coisa mudou impercetivelmente.282 Que mutação genética se terá

operado na nossa sensibilidade? Ter-se-á sofisticado, ou embotado? Será que não foi o

texto que envelheceu, mas o espectador que envileceu? Será que, à semelhança do seu

longínquo e nobre parente – a tragédia –, o melodrama viu esgotadas as suas condições

de possibilidade? Ter-se-á abrigado no reduto de algum cinema – o de Sirk, Fassbinder,

talvez Almodóvar? Questões que Desejo Sob os Ulmeiros coloca hoje – em tom de

desafio – à encenação e à reflexão teatral.

282 Vide Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso, Lisboa, Edições 70, 1995, p. 73.

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Conclusão

CABOT: Torna a orar… para compreenderes.

EUGENE O’NEILL, Desejo Sob os Ulmeiros

“Dis-cursos é, originariamente, a ação de correr para aqui e para ali, são as idas

e vindas, as ‘tarefas’, as ‘intrigas’.”283 É deste passo dos Fragmentos de um Discurso

Amoroso que nos lembramos, agora que somos chegados ao termo do nosso vaivém, da

nossa correria, repleta de pequenas tarefas e intrigas, em volta de Desejo Sob os

Ulmeiros. Talvez pudéssemos falar de uma viagem de circum-navegação, pois fomos

conduzidos da Nova Inglaterra dos Cabot (e dos O’Neill) à Atenas dos poetas trágicos, à

Jerusalém dos patriarcas hebreus e apóstolos cristãos e, por fim, ao palco do teatro

português contemporâneo. A metáfora marítima harmoniza-se com o imaginário

conradiano de Eugene O’Neill – ele que, em criança, desenhava navios; que, antes de

ser proclamado o maior dramaturgo americano,284 foi marinheiro de um navio

norueguês chamado Racine;285 que nas primeiras peças (ou em toda a sua obra

dramática?) escreveu sobre náufragos…286

Todavia, além de imodesta, a formulação é impertinente, pois o que aqui se

expôs configura menos um descobrimento do que um argumento – na sedutora

etimologia barthesiana, “exposição, relato, sumário, pequeno drama, história

inventada”.287 No fundo, dramatizámos (no sentido originário de pôr em ação) a

influência que a tragédia clássica e as Escrituras exercem sobre Desejo Sob os Ulmeiros

e que, desde há muito, vem sendo reconhecida, de formas e em graus diversos, por

críticos literários, comentadores, biógrafos e investigadores teatrais. Estamos

convencidos de que, para além de um certa sistematização, inflacionámos, em alguns

283 Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso, Lisboa, Edições 70, 1995, p. 11. 284 Brooks Atkinson, o mais influente crítico de teatro norte-americano de meados do século XX, escrevia

no obituário de O’Neill: “Um gigante deixou a terra; um grande espírito e nosso maior dramaturgo

deixou-nos e o nosso mundo teatral é agora mais pequeno.” (The New York Times, 13 de Dezembro de

1953.) Apud Frederic I. Carpenter, Eugene O’Neill, Rio de Janeiro, Lidador, 1966, p. 19. 285 Vide L. Sheaffer, O’Neill: Son and Playwright, op. cit., pp. 160-161 e R. M. Dowling, Critical

Companion to Eugene O’Neill, op. cit., pp. 549-551. 286 Referimo-nos a Thirst, Fog e Warnings [1914]. 287 R. Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso, op. cit., p. 13.

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pontos, a dívida soberana que a peça de O’Neill contraiu junto desses dois erários

narrativos, míticos e simbólicos (arriscando-nos, com isso, a tornar-nos seus

fiadores…), ao considerarmos aspetos que têm ficado de fora dessa contabilidade

analítica: se, no caso da filiação à tragédia clássica, julgamos ter aclarado os contornos

da simpatia estrutural da ação dramática de Desejo face ao Hipólito de Eurípides,

minudenciando os reflexos e refrações que as respetivas figuras entre si estabelecem e

produzem, no caso do vínculo às Sagradas Escrituras, estamos certos de ter ido mais

longe num território como a natureza biblicamente escandalosa (skándalon, pedra de

tropeço) das personagens o’neillianas, que vem conjugar-se poderosamente com o pano

de fundo de uma herdade árida em que é necessário fazer “nascer trigo das pedras”

(imagem reminiscente de uma das tentações de Jesus no deserto da Judeia [Lc. 4.2-3])

ou com a homilética granítica de Ephraim Cabot (“Deus está nas pedras!”).

Mas, apesar de calcularmos esta dívida, o nosso estudo não constitui um

exercício de fiscalidade literária: na verdade, mais do que a contabilidade exaustiva de

paralelismos, citações ou ressonâncias – demanda infindável (e talvez ociosa), porque é

sempre possível aventar, através de um levantamento indicial, que Eugene O’Neill

evoca isto ou aquilo da tragédia clássica ou das Escrituras –, procurámos sobretudo

compreender como os arquétipos clássicos e as imagens bíblicas identificados operam

no interior do texto dramático e com que consequências, em termos de expressividade e

sentido. Usando uma formulação de Nietzsche, o filósofo de eleição de Eugene

O’Neill,288 digamos que nos interessou não apenas saber o que é, mas também perceber

288 Recuperamos dois breves passos de um dos volumes de Louis Sheaffer: “Em contraste com as

declaradas reservas em relação a Freud […], O’Neill sempre admirou Nietzsche, que lera pela primeira

vez quando foi para Princeton; em Campsea, leu de novo com prazer a Gaia Ciência do filósofo

(‘material admirável’) e O Nascimento da Tragédia (‘o mais estimulante livro sobre teatro alguma vez

escrito!’). Lia com absoluta concentração; uma visita frequente dos O’Neill notou que, quando ‘imergia

na leitura de um livro, era necessário algum tempo até que fosse possível trazê-lo de novo ao presente’.”

(L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., p. 174.) “Assim Falou Zaratustra, afirmou O’Neill,

‘influenciou-me mais do que qualquer outro livro que eu tenha lido’.” Idem, p. 256. Uma admiração que

ficou fixada em Longa Jornada para a Noite: “JAMIE : A tua poesia não é muito alegre. Nem o é o que lês

e dizes admirar. Por exemplo, o teu bem-amado, o que tem um nome que nem se pode pronunciar!//

EDMUND: Nietzsche. Não sabes de que estás a falar. Nunca o leste.” E. O’Neill, Jornada para a Noite, op.

cit., p. 93.

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como chega a ser o que é.289 Poderíamos ainda dizer que o que nos ocupou não foi

‘descobrir’ o que O’Neill usa em Desejo Sob os Ulmeiros (o que está, em boa medida,

contabilizado, sobretudo no que à herança clássica diz respeito), mas o que faz e

acontece com aquilo que usa. Daí que, como acima afirmámos, a nossa dissertação se

afigure menos um descobrimento do que um argumento. Sem pretender prolongar ou

adensar esta explicação, digamos que, ao mobilizar o mito de Édipo, as tragédias

Medeia e Hipólito, a simbólica bíblica ou a narrativa veterotestamentária de Jacob,

pretendemos avaliar o que se passa (o que se experiencia) naquilo que se passa (naquilo

que ocorre) em Desejo Sob os Ulmeiros.

Da realização deste estudo parece-nos ainda possível inferir uma distinção de

natureza nas conexões intertextuais que a peça de Eugene O’Neill estabelece com os

arquivos clássico e bíblico. Ainda que um enunciado deste tipo deva ser lido

prudentemente e em termos aproximativos, podemos perspetivar a apropriação que o

dramaturgo norte-americano realiza das duas heranças através das noções botânicas de

raiz e rizoma, conceitos tematizados por Felix Guattari e Gilles Deleuze e por nós

invocados no ponto 3.3.290 Tendo em consideração o caráter cartesiano e relativamente

linear da projeção da tragédia de Eurípides no drama o’neilliano (o que julgamos ter

ficado suficientemente demonstrado nos pontos 2.3 e 2.4), inclinamo-nos a designar o

Hipólito como a raiz dessa árvore que é Desejo Sob os Ulmeiros – “o fundamento-raiz,

Grund, roots e foundations”.291 Em alguma medida, o texto clássico constitui o modelo

ou o eixo da nossa peça; estabelece com ela, por assim dizer, uma relação hierárquica; é,

pelo menos, o seu primeiro ponto de ramificação. (A nosso ver, para além do programa

trágico que O’Neill estabeleceu para si mesmo reforçar esta hipótese, o facto de a

própria formulação “sob os ulmeiros” corresponder a um extrato do Hipólito parece

caucionar os termos desta associação arborescente.) Ao invés, a presença das Escrituras

no enredo de Desejo manifesta-se rizomaticamente: é acentrada, plural, dinâmica. A

aparição de figuras ou imagens bíblicas não apresenta a mesma consistência radical que

289 Parafraseamos o subtítulo do livro póstumo de Friedrich Nietzsche: Ecce Homo – Como se chega a ser

o que se é. 290 Vide Sousa Dias, Lógica do Acontecimento: Introdução à Filosofia de Deleuze, Lisboa, Documenta,

2012, pp. 115-119. 291 G. Deleuze/F. Guattari, Mille Plateaux, op. cit., pp. 27-28.

- 110 -

a tragédia clássica – é, antes, multiforme e multidimensional, o que a torna tão difícil de

fixar: essas manifestações são “memórias curtas”, “linhas de fuga”.292

Diferentemente das árvores ou das suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro

ponto qualquer e cada uma das suas características não aponta necessariamente para

características da mesma natureza, põe em jogo regimes de signos muito diferentes […]. O

rizoma não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções movediças.293

Em alternativa ao aparato conceptual de Deleuze/Guattari, ou

complementarmente, poderíamos talvez expressar esta diferença entre a herança clássica

e a herança bíblica em Desejo Sob os Ulmeiros recorrendo à identidade de Eben, ele

próprio resultado de um problemático cruzamento de duas heranças genéticas: os irmãos

Simeon e Peter garantem que ele é “tal e qual o pai – escrito e escarrado”; Ephraim

emite a opinião contrária, e o próprio jovem assevera sair à mãe “até à última gota de

sangue”. Analogamente, a tragédia grega é o pai de Desejo, pois a semelhança

fisionómica é por demais evidente; a Bíblia é a mãe, pois a afinidade é menos imediata

e, para ser esclarecida, exige o conhecimento da interioridade do filho. A revelação

destes ascendentes na constituição dramática de Desejo Sob Ulmeiros parece,

curiosamente, reconduzir-nos à absoluta convicção que paira sobre toda a obra de

Eugene O’Neill e à qual, de forma pungente, Mary Tyrone dá voz: “O passado é o

presente, não é? E também o futuro.”294

Estamos conscientes de que, ao fixar a nossa atenção nos arquivos ático e

bíblico, incorremos no risco de malbaratar outras associações possíveis (Strindberg,

Nietzsche, Shakespeare, etc.): assim que adotamos um ângulo de análise, um ponto de

vista, imediatamente renunciamos a outros. Há sempre a tendência para levar demasiado

longe a demonstração de uma ‘tese’, um pouco à semelhança do que, segundo Barthes,

acontece no discurso amoroso, que se adianta e deixa para trás o objeto do amor – “é o

meu desejo que eu desejo…”295 Afinal, estamos ansiosos por detetar certas

correspondências, por escutar determinadas ressonâncias. Também neste campo se

aplica o preceito evangélico: crer para ver. A consciência que possuímos deste perigo

292 G. Deleuze/F. Guattari, Rizoma, op. cit., p. 52. 293 Idem, p. 51. 294 E. O’Neill, Jornada para a Noite, op. cit., p. 103. 295 R. Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso, op. cit., p. 40.

- 111 -

talvez nos tenha mantido afastados de conjeturas precipitadas, ou infundadas. Ainda

assim, não teremos usado suficientemente a palavra ‘talvez’ – ao que parece, a “palavra-

chave”296 das peças de Beckett. Por outro lado, e considerando o facto de termos

desejado que o nosso estudo excedesse o estatuto de índice ou inventário, teremos

deixado de fora certas conexões que mereceriam, sem dúvida, ponderação: no caso da

herança clássica, ao equacionarmos as correspondências Teseu/Ephraim e

Hipólito/Eben, deixámos na sombra a incerta (mas talvez surpreendente) convergência

entre Ephraim e Hipólito, pois o velho Cabot invoca recorrentemente o “Deus Todo-

Poderoso” e prefere a companhia dos animais, assim como a personagem euripidiana

invoca Ártemis e privilegia as caçadas ao comércio com os humanos, especialmente as

mulheres. No caso da herança bíblica, relegámos a simetria entre Eben/Abbie e

Adão/Eva, por exemplo, que a própria assonância, em língua inglesa, entre Eben e Eden

parecia insinuar. Em favor de uma hipótese como esta, poderíamos aventar que o

abandono da herdade – território edénico que Eben e Abbie tanto desejaram para si

próprios e no qual os ulmeiros são uma espécie de ‘árvore do bem e do mal’ – lembra a

expulsão do Paraíso: não por acaso, o casal sai em direção a leste (como na narrativa do

Génesis) e o Xerife e seus ajudantes surgem-nos como uma variação dos querubins que

executam esse despejo. A solidão de Ephraim numa “quinta que é um gosto” [III Parte,

Cena 4] é, de resto, análoga à solidão edénica de um Deus traído pelas suas criaturas e

da sua companhia privado.

Quanto à avaliação da posteridade cénica de Desejo Sob os Ulmeiros em

Portugal, dir-se-á que foi amplamente comprometida pela censura moral que o Estado

Novo impôs não apenas aos textos com perigosas ressonâncias políticas – é o caso

paradigmático da obra dramática de um Bertolt Brecht –, mas também àqueles que

maculavam uma determinada (e acanhada) paisagem moral. Quando finalmente a peça

de O’Neill se estreou em Portugal, em 1990, houve quem, à parte os méritos da

encenação de João Lourenço, a considerasse “envelhecida”.297 A questão a que a nossa

296 “A palavra-chave das minhas peças é ‘talvez’.” Samuel Beckett apud Michael Worton, “Waiting for

Godot and Endgame: theatre as text”, in John Pilling (ed.), The Cambridge Companion to Beckett,

Cambridge, Cambridge University Press, 1994, p. 67. 297 J. Listopad, “Ciclo de desejos luso-americanos”, op. cit., p. 28. Carlos Porto subscreveu esta opinião,

deduzida da encenação do 1990: “A julgar pelo espetáculo do Novo Grupo, o texto de Eugene O’Neill

envelheceu mal e foi, para nós, vítima do tempo que levou a chegar cá.” C. Porto, “Desejo e amor”, op.

cit.

- 112 -

argumentação conduz obriga a uma deslocação de perspetiva: terá sido antes o

espectador que envileceu, subjugado pelo triunfo da razão cínica? Em todo o caso, a

análise demorada a que nos foi possível submeter a montagem de 2011, assinada por

Nuno Cardoso, permitiu-nos pôr em tensão noções exploradas nos capítulos 2 e 3, bem

como avaliar os árduos desafios que Desejo Sob os Ulmeiros parece colocar à sua

tradução, encenação e representação: ao seu tradutor, em virtude da variante dialetal que

a peça é escrita (algo que foi tido em conta, por exemplo, por Matthias Langhoff, numa

encenação de 1992, no Théâtre National de Bretagne); ao seu encenador, por causa das

exigências naturalistas do texto o’neilliano; ao ator, porque lida com personagens

ambivalentes e com um magma melodramático que é necessário assumir com verdade.

Disse o pintor George Braque que “as provas cansam a verdade”.298 As nossas

explicações, argumentos, conjeturas deixam o ‘objeto de estudo’ num estado de

exaustão – ou, como se diz num Português do Brasil, cansam a sua beleza. A uma

personagem de Robert Walser, escritor assaz enigmático, chega a ser pedido, em

sonhos: “Ah, pára de interpretar.”299 Como restaurar a beleza, a verdade, o mistério de

um texto depois de o termos sobrecarregado com o fardo da nossa interpretação?

Através da linguagem indireta, íntima, frugal de um poema? Talvez. Encerramos o

excurso que dedicamos a Desejo Sob os Ulmeiros com versos de Louise Glück, poeta

norte-americana, convencidos de que neles se entrevê – de relance, apenas – o fundo da

tragédia, melodrama e/ou romance dramático de Eugene O’Neill. Disse outro pintor,

Willem de Kooning, que o sentido é “um encontro, como um relâmpago”…300

ULMEIROS

Todo o dia tentei distinguir

necessidade e desejo. Agora, no escuro,

sinto apenas uma amarga tristeza por nós,

os carpinteiros, os que aplainamos a madeira,

porque tenho estado a observar

pacientemente estes ulmeiros

298 Apud George Steiner, Presenças Reais: As Artes do Sentido, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa,

Editorial Presença, 1993, p. 9. 299 Robert Walser, Jakob von Gunten, trad. Isabel Castro Silva, Lisboa, Relógio D’Água, p. 158. 300 Apud S. Sontag, Contra a Interpretação e Outros Ensaios, op. cit., p. 17.

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e vi que o processo que cria

a contorcida, estacionária árvore

é o tormento, e compreendi

que não dará outras formas senão tortuosas formas.301

301 “All day I tried to distinguish/ need from desire. Now, in the dark,/ I feel only bitter sadness for us,/

the builders, the planers of wood,/ because I have been looking/ steadily at these elms/ and seen the

process that creates/ the writhing, stationary tree/ is torment, and have understood/ it will make no forms

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Programa, Porto, Teatro Nacional São João, 1996.

SILVA , Alexandra Moreira da, “O quarto ‘pê’: Entrevista com Nuno Cardoso”, in João Luís Pereira (ed.),

Platónov: Manual de Leitura, Porto, Teatro Nacional São João, 2008.

VELOSO, João, “La scène se passe à la campagne, au bord de la mer, non loin de la ville”, in João Luís

Pereira (ed.), D. João: Manual de Leitura, Porto, Teatro Nacional São João, 2006.

V ILLAS-BOAS, Fernando, “Coriolano: Triunfos e Quedas”, in Coriolano: Programa, Lisboa, Teatro

Nacional D. Maria II, 2014.

ARTIGOS EM PERIÓDICOS

ANDRADE, Sérgio Costa, “Cronologia: Um percurso polémico”, Público (19 Jun. 2010).

CORDEIRO, Ana Dias, “Na cabeça dos censores”, Público: Ípsilon (25 Mai. 2012).

FIGUEIRA, Jorge Louraço, “Desejo e meio”, Público: P2 (21 Dez. 2012).

LISTOPAD, Jorge, “Ciclo de desejos luso-americanos”, JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias (16 Out.

1990).

LÍVIO , Tito, “Conflito edipiano comanda relação de amantes”, A Capital (11 Out. 1990).

MENDES, Anabela, “Duas janelas para a América”, Público (4 Out. 1990).

M IDÕES, Fernando, “Altos e baixos sob os ulmeiros”, Diário de Notícias (13 Out. 1990).

NADAIS, Inês, “California dreaming, enquanto a tempestade se abate sobre uma casa que podia ser

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PORTO, Carlos, “Desejo e amor”, in Diário de Lisboa (9 Out. 1990).

SEABRA, Augusto M., “Reflexões teatrais (bis)”, Público: Ípsilon (8 Jun. 2012).

SERÔDIO, Maria Helena, “O amor como enunciação trágica em O’Neill e Shepard”, O Jornal (2 Nov.

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VASQUES, Eugénia, “Pelo teatro fora”, in Expresso (5 Out. 1990).

VASQUES, Eugénia, “Serenata alentejana”, Expresso: Cartaz (16 Mai. 1991).

- 120 -

Anexo I

[Ficha artística Desejo Sob os Ulmeiros, enc. João Lourenço, 1990]

Desejo Sob os Ulmeiros

de Eugene O’Neill

versão João Lourenço, Vera San Payo de Lemos

dramaturgia Vera San Payo de Lemos

encenação João Lourenço

música Eduardo Paes Mamede

cenário José Carlos Barros

figurinos António Filipe

luz João Lourenço, Melim Teixeira

interpretação Irene Cruz Abbie Putnam; Rogério Paulo Ephraim Cabot; Fernando

Luís Eben; Francisco Pestana Peter, Convidado; Melim Teixeira Simeon, Convidado;

António Filipe Xerife; Joaquim Monchique Ajudante; Alexandra Sedas Convidada;

Arnaldo Silva Convidado; Cristina Carvalhal Convidada; Élio Correia Convidado;

Luísa Salgueiro Convidada; Zita Esteves Convidada; Alfredo Nunes Violinista

produção Novo Grupo/Teatro Aberto

estreia 29 Setembro 1990 | Teatro Aberto [antigo] (Lisboa)

classificação etária M/12 anos

- 121 -

Anexo II

[Fotografia do elenco principal Desejo Sob os Ulmeiros, enc. João Lourenço, 1990]

Na foto: Francisco Pestana, Rogério Paulo, Irene Cruz, Francisco Luís e Melim Teixeira

© Novo Grupo de Teatro

- 122 -

Anexo III

[Fotografias de cena Desejo Sob os Ulmeiros, enc. João Lourenço, 1990]

Na foto: Francisco Luís e Irene Cruz.

Na foto: Melim Teixeira e Francisco Pestana.

© Novo Grupo de Teatro

- 123 -

Na foto: Francisco Luís, Irene Cruz e António Filipe.

Na foto: Francisco Luís e Irene Cruz.

© Novo Grupo de Teatro

- 124 -

Anexo IV

[Programa de sala Desejo Sob os Ulmeiros, enc. João Lourenço, 1990]

[Capa do Programa de sala (imagem do cartaz António Inverno). Edição Novo Grupo/Teatro Aberto.]

[Interior do Programa de Sala. Edição Novo Grupo/Teatro Aberto.]

- 125 -

Anexo V

[Ficha artística Desejo Sob os Ulmeiros, enc. Nuno Cardoso, 2011]

Desejo Sob os Ulmeiros

de Eugene O’Neill

tradução Jorge de Sena

encenação Nuno Cardoso

cenografia F. Ribeiro

figurinos Cristina Costa

desenho de luz Pedro Vieira de Carvalho

sonoplastia Luís Aly

assistência de encenação Victor Hugo Pontes

interpretação

Afonso Santos Peter; Lavrador 2; Ajudante de Xerife

António Capelo Ephraim Cabot

Catarina Lacerda Abbie Putnam

Cláudio Silva Eben

Pedro Frias Simeon; Lavrador 1; Xerife

co-produção Ao Cabo Teatro, ACE/Teatro do Bolhão

estreia 24 Junho 2011 | Teatro Carlos Alberto (Porto)

classificação etária M/16 anos

- 126 -

Anexo VI

[Fotografias de cena Desejo Sob os Ulmeiros, enc. Nuno Cardoso, 2011]

Na foto: Pedro Frias e Afonso Santos.

Na foto: António Capelo, Catarina Lacerda e Cláudio Silva.

© João Tuna

- 127 -

Na foto: Catarina Lacerda e Cláudio Silva.

Na foto: António Capelo e Catarina Lacerda.

© João Tuna

- 128 -

Na foto: Cláudio Silva e Catarina Lacerda.

Na foto: Cláudio Silva e Catarina Lacerda.

© João Tuna

- 129 -

Na foto: António Capelo e Cláudio Silva.

Na foto: António Capelo, Cláudio Silva e Catarina Lacerda.

© João Tuna

- 130 -

Anexo VII

[Programa de sala Desejo Sob os Ulmeiros, enc. Nuno Cardoso, 2011]

[Exemplares do Programa de sala. Design gráfico Joana Monteiro.

Edição Teatro Nacional São João.]