UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIEcircNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA
NALFRAN MODESTO BENVINDA
ALASDAIR MACINTYRE E TOMAacuteS DE AQUINO
a questatildeo da ldquoEacutetica das Virtudesrdquo e sua interpretaccedilatildeo pelo
pensamento cristatildeo
Recife
2017
NALFRAN MODESTO BENVINDA
ALASDAIR MACINTYRE E TOMAacuteS DE AQUINO
a questatildeo da ldquoEacutetica das Virtudesrdquo e sua interpretaccedilatildeo pelo
pensamento cristatildeo
Tese de Doutorado apresentada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da UFPB-UFPE-UFRN
Linha de Pesquisa Filosofia Praacutetica
Orientador Prof Dr Marcos Roberto Nunes Costa
Recife 2017
Catalogaccedilatildeo na fonte
Bibliotecaacuteria Maria do Carmo de Paiva CRB4-1291
B478a Benvinda Nalfran Modesto
Alasdair Macintyre e Tomaacutes de Aquino a questatildeo da ldquoEacutetica das Virtudesrdquo e
sua interpretaccedilatildeo pelo pensamento cristatildeo Nalfran Modesto Benvinda ndash 2017
129 f 30 cm
Orientador Prof Dr Marcos Roberto Nunes Costa
Tese (doutorado) - Universidade Federal de Pernambuco CFCH
Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da UFPB-UFPE-UFRN Recife
2017
Inclui referecircncias
1 Filosofia 2 Eacutetica 3 Virtudes 4 Macintyre Aladair C 1929- 5 Tomaacutes de
Aquino Santo 1225-1274 I Costa Marcos Roberto Nunes (Orientador) II
Tiacutetulo
100 CDD (22 ed) UFPE (BCFCH2019-067)
NALFRAN MODESTO BENVINDA
ALASDAIR MACINTYRE E TOMAacuteS DE AQUINO
a questatildeo da ldquoEacutetica das Virtudesrdquo e sua interpretaccedilatildeo pelo
pensamento cristatildeo
Tese de Doutorado aprovada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da UFPB-UFPE-UFRN
Aacuterea de pesquisa Filosofia Praacutetica
Aprovada em 16 08 2017
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________ Prof Dr Marcos Roberto Nunes Costa (Orientador)
Universidade Federal de Pernambuco
_________________________________________________ Prof Dr Joseacute Francisco Preto Meirinhos (1ordm Examinador)
Universidade do Porto
_______________________________________________ Prof Dr Claudio Pedrosa Nunes (2ordm Examinador)
Universidade Federal de Campina Grande
________________________________________________ Prof Dr Edmilson Alves de Azevedo (3ordm Examinador)
Universidade Federal da Paraiacuteba
________________________________________________________ Prof Dr Gilfranco Lucena dos Santos (4ordm Examinador)
Universidade Federal da Paraiacuteba
A Ana Luiacutesa Rafael Joseacute e Adriana
AGRADECIMENTOS
Do fundo do meu coraccedilatildeo agradeccedilo
A Deus pelo dom da feacute da existecircncia e da capacidade de pensar
A Adriana Rafael Joseacute e Ana Luiacutesa que suportaram com muito amor o
processo doloroso e fecundo de construccedilatildeo desta pesquisa
Aos meus pais Francisco e Nataacutelia a quem sou grato pelo dom da vida e pela
educaccedilatildeo que recebi Aos meus irmatildeos Junior e Kaline por serem quem satildeo
Cunhados Marques Alessandra Luciana e Paulinho Meus sobrinhos Ceciacutelia
Viniacutecios Ana Caroline Ana Beatriz e Paulinho
Agrave minha sogra Dona Carminha meu sogro Modestino de Arruda Fontes (in
memoriam) e agrave famiacutelia Fenelon
Ao meu orientador Marcos Roberto Nunes Costa pela confianccedila disposiccedilatildeo
incentivo em fazer-me crescer na difiacutecil tarefa do pensar e do produzir em Filosofia
Agrave Profa Patriacutecia Lira revisora do texto e dos erros que meus olhos jaacute natildeo
enxergavam
Aos membros da banca professores Edmilson Azevedo Claacuteudio Pedrosa
Nunes Joseacute Francisco Preto Meirinhos Gilfranco Lucena e Marcos Costa
A todo o corpo docente do Programa de Doutorado Integrado em Filosofia das
Universidades Federal de Pernambuco Federal da Paraiacuteba e Federal do Rio Grande
do Norte na pessoa do seu coordenador Geral Prof Dr Alfredo Moraes
Ao povo brasileiro que atraveacutes da CAPES financiou esta pesquisa por 2 anos
A Miguel Antocircnio ex-coordenador Geral do Programa pelas contribuiccedilotildees que
pudemos Aos discentes do Programa pela confianccedila que me concederam em
representar-lhes
Aos amigos de minha turma de Doutorado Gleidmar Graciele Coutinho Marta
Fernandes e Faacutebio ldquoque nos tornamos amigos ao calor dos estudosrdquo
A meu amigo irmatildeo pessoa por quem tenho grande amor e admiraccedilatildeo
Gilfranco Lucena
Agrave gestatildeo professores e funcionaacuterios e alunos da Faculdade Satildeo Miguel
especialmente do Curso de Licenciatura em Letras onde na docecircncia aprofundei o
meu conhecimento na docecircncia da liacutengua latina
Aos colegas de trabalho alunos e alunas da UNEAL - Universidade Estadual
de Alagoas minha nova casa
A Faacutetima Costa Marcela George e Mauriacutecio da Faculdade Filosofia Ciecircncias
e Letras de Caruaru ndash FAFICA
Aos amigos Peacutericles Gena Mazurk Ricardo Carvalho Tambeacutem a Harlen
Ricardo e Diego Marques A todos os amigos e amigas da FACOL
A todos os que a mim estiveram unidos para que eu pudesse concluir esse
trabalho
Meus sinceros agradecimentos
ldquo [] Homo habet naturaliter rationem et manus quae sunt organa organorum
quia per eas homo postest sibi praeparare instrumenta infinitorum modorum et ad
infinitus effectusrdquo
ldquo [] O homem possui por natureza a razatildeo e as matildeos que satildeo os oacutergatildeos dos
oacutergatildeos porque por elas pode preparar para si uma variedade infinita de instrumentos
para infinitos efeitosrdquo (ARISTOacuteTELES apud TOMAacuteS DE AQUINO STh I q76 a5)
RESUMO
A Eacutetica das Virtudes e sua fundamentaccedilatildeo satildeo o objeto de estudo desta
pesquisa Partindo do pensamento de Alasdair Macintyre autor de Depois da Virtude
o trabalho apresenta o esforccedilo do pensamento contemporacircneo em reabilitar esta
proposta eacutetica Seguindo a orientaccedilatildeo do proacuteprio Macintyre de que seria necessaacuterio
investigar a reconciliaccedilatildeo que Tomaacutes de Aquino operou entre a tradiccedilatildeo biacuteblica e o
pensamento aristoteacutelico o texto responde agrave seguinte pergunta a Eacutetica das Virtudes
de raiz aristoteacutelica pode receber contribuiccedilotildees do pensamento cristatildeo especialmente
de natureza tomista A tese que brota como tentativa de resposta a esta questatildeo eacute a
de que o pensamento cristatildeo via Tomaacutes de Aquino oferece significativas
contribuiccedilotildees agrave fundamentaccedilatildeo desta corrente do pensamento eacutetico A pesquisa
bibliograacutefica de natureza indutiva percorre um caminho de anaacutelise e interpretaccedilatildeo
dos textos fundamentais do Macintyre Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino Na busca de
atingir sua finalidade satildeo aprofundados os temas acerca do ldquoanti-iluminismo eacuteticordquo e
a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes ao pensamento contemporacircneo Nesta parte
abordam-se as principais criacuteticas agrave ldquoeacutetica do deverrdquo e a ldquoeacutetica utilitaristardquo ou
ldquoconsequencialistardquo em seguida apresenta-se a criacutetica de Macintyre ao projeto
moderno de fundamentaccedilatildeo da eacutetica como tambeacutem a sua teoria moral fundamentada
numa Eacutetica das Virtudes por fim a partir da proacutepria indicaccedilatildeo do Macintyre de que
sua leitura do pensamento tomista foi insuficiente o texto analisa fundamentos da
Eacutetica das Virtudes em Aristoacuteteles e apresenta os conceitos do pensamento tomista
que aqui entende-se como o contributo a esta eacutetica
Palavras-chave Eacutetica Virtudes Pensamento cristatildeo
ABSTRACT
The Virtue Ethics and its fundamentals are the object of this research Starting
from Alasdair Macintyrersquos thought author of After Virtue the work presents the effort
of the contemporary thought on rehabilitating this ethical purpose According to
Macintyre own orientation that it would be necessary to investigate the reconciliation
which Thomas Aquinas operated between the biblical tradition and the aristotelian
thought the text responds to the following question can The Virtue Ethics of
aristotelian roots receive contributions from the Christian thought specially of
thomistic nature The thesis which buds as an attempt to answer this question is the
one that the Christian thought via Thomas Aquinas offers meaningful contributions to
the fundamentals of this current of ethical thoughts The bibliographical research of
inductive nature goes through a path of analysis and interpretation of Macintyrersquos
Aristotlersquos and Thomas Aquinasrsquos fundamental texts In the search for reaching its goal
themes about ldquoethical anti-enlightenmentrdquo and the relocation of Virtue Ethics to the
contemporary thought are deepened In this part the main criticisms to ldquothe ethics of
dutyrdquo and ldquothe utilitarianistrdquo or ldquoconsequentialist ethicsrdquo are approached in the following
part it is presented a critic by Macintyre to the modern fundamentals of ethics as well
as his theory of moral based on an Virtue Ethics finally from Macintyrersquos own
indication that his reading of the thomistic thought was insufficient the text analyses
the fundamentals of the Virtue Ethics in Aristotle and presents the concepts of the
thomistic thought that here is understood as a contribution to this ethics
Keywords Ethics Virtues Christian thought
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO 13
2 O ANTIILUMINISMO EacuteTICO E A EacuteTICA DAS VIRTUDES 16
21 SOBRE A RE-COLOCACcedilAtildeO DA VIRTUE ETHICS 16
211 Sobre a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica 20
212 A incoerecircncia do dever moral 25
213 Criacutetica ao utilitarismo 29
214 A diacutevida filosoacutefica de MacIntyre ao pensamento de
Gertrude Anscombe 32
3 A CRIacuteTICA DE MACINTYRE AO PROJETO MODERNO
DE FUNDAMENTACcedilAtildeO DA MORALIDADE 35
31 A ALEGORIA INICIAL DE DEPOIS DA VIRTUDE 35
32 AS TESES MODERNAS SOBRE A FUNDAMENTACcedilAtildeO
DA ORALIDADE 37
33 O FRACASSO DO PROJETO ILUMINISTA 40
331 O passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana 41
332 A incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a
noccedilatildeo de natureza humana na moral moderna 42
3321 O passado cristatildeo e o novo conceito de razatildeo 43
3322 A ciecircncia e a filosofia do seacuteculo XVII 45
3323 A incoerecircncia entre o posicionamento pela lsquofalecircnciarsquo da razatildeo
e a decisatildeo pela noccedilatildeo de natureza humana 45
3324 Sobre a mudanccedila do significado dos juiacutezos morais 47
4 O PROJETO DE DEPOIS DA VIRTUDE E A TEORIA
MORAL DE MACINTYRE 49
41 O ANTES DE DEPOIS DA VIRTUDE 49
411 Vida social e conceitos morais 50
412 Fundamentaccedilatildeo das proposiccedilotildees normativas 51
413 O emotivismo 52
42 A OBRA DEPOIS DA VIRTUDE 54
421 A natureza das virtudes tese central de Depois da Virtude 55
422 O conceito de praacuteticas 57
423 Ordem narrativa de uma vida humana singular 60
423 Tradiccedilatildeo 64
5 RECONCILIACcedilAtildeO ENTRE O PENSAMENTO CRISTAtildeO
E O ARISTOTELISMO 67
51 AS VIRTUDES E A TEORIA ARISTOTEacuteLICA DOS ATOS ndash EN III 1-8 69
511 Do voluntaacuterio e do involuntaacuterio 70
512 A escolha deliberada 72
513 A definiccedilatildeo do objeto do querer 73
52 A SIacuteNTESE TOMISTA ATOS HUMANOS E FILOSOFIA MORAL 77
521 Os atos humanos em Santo Tomaacutes de Aquino 78
522 Sindeacuterese e consciecircncia 79
523 O conceito de vontade 80
524 A relaccedilatildeo entre inteligecircncia e vontade 84
525 A liberdade do ato voluntaacuterio e a distinccedilatildeo entre liberdade e livre-
arbiacutetrio 86
526 A intenccedilatildeo 91
53 TOMISMO E EacuteTICA DAS VIRTUDES 93
531 Vida feliz e virtudes antes da siacutentese tomista 94
5311 A construccedilatildeo de uma parte moral na teologia 97
5312 A fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista 99
532 O lugar das virtudes na teologia e sua explicitaccedilatildeo 100
5321 A beatitude e o lugar das virtudes na siacutentese teoloacutegica tomista 100
5312 A concepccedilatildeo tomista de homem e as virtudes 101
5313 A explicitaccedilatildeo do conceito de virtude e a releitura tomista
da teoria das virtudes 105
53131 A perfeiccedilatildeo da potecircncia e habito operativo 105
53132 As virtudes teologais 107
53133 A virtude da justiccedila 107
53134 A unidade das virtudes e conexatildeo entre as virtudes 108
53135 O habitus e vontade livre 111
53136 As virtudes eacuteticas e a razatildeo 113
53137 A relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo tomista de pessoa 114
532 A eacutetica antiga assunccedilatildeo compatibilizaccedilatildeo e superaccedilatildeo 115
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 119
REFEREcircNCIAS 127
13
1 INTRODUCcedilAtildeO
A histoacuteria do homem em seus desdobramentos de sentidos tem sido a luta para
definir o certo e o errado enquanto conjunto de valores que orienta as accedilotildees e
possibilita o homem como singularidade e comunidade Em relaccedilatildeo a Filosofia a
preocupaccedilatildeo com a experiecircncia eacutetica eacute uma das questotildees centrais da atitude criacutetico-
reflexiva e definiu o encaminhamento dos pensadores desde os preacute-socraacuteticos ateacute a
contemporaneidade Em todos os momentos de sua histoacuteria o homem tenta
compreender as accedilotildees como decorrecircncia de valores que orientam o seu agir O
homem eacute a um soacute tempo norma e desejo de quebraacute-la Isto longe de ser uma
deficiecircncia da condiccedilatildeo humana constitui precisamente seu salto maior Salto sobre
o reino da necessidade e que possibilita o advento do reino da liberdade
O pensamento eacutetico ocidental eacute profundamente marcado pelas figuras de
Aristoacuteteles Tomaacutes de Aquino dentre outros Aristoacuteteles trabalha com a ideia de que
o estudo dos atos humanos da virtude e do bem para o homem considerado
individualmente pertence a eacutetica Esta ciecircncia enquanto ciecircncia praacutetica conduz agrave
compreensatildeo do que seja o bem supremo para o ser humano e quais atitudes o
conduzem mais adequadamente a esse fim Tomaacutes de Aquino enquanto
representante da eacutetica cristatilde assume a estrutura da eacutetica de Aristoacuteteles
estabelecendo uma reinterpretaccedilatildeo dessa moral agrave luz da moral cristatilde Assim o que
em Tomaacutes de Aquino se menciona como felicidade possui um conteuacutedo distinto
daquilo que Aristoacuteteles compreendia por este termo
O pensamento moderno promove uma virada no esquema claacutessico da eacutetica
Kant eacute por assim dizer o exemplar que traduz os anseios do pensamento moderno
em relaccedilatildeo agrave Filosofia Praacutetica O ideal de autonomia e a constituiccedilatildeo de uma moral do
dever marcam profundamente este momento da histoacuteria do pensamento Nas palavras
de Otfried Houmlffe deve-se a Kant a radicalizaccedilatildeo de uma filosofia moral que reivindica
a pretensatildeo de uma validade objetiva A origem da moralidade pode ser encontrada
no caraacuteter autolegislador do sujeito Ateacute mesmo as outras expressotildees do pensamento
eacutetico moderno corroboram com a ideia de que o fundamento das accedilotildees humanas
encontra sua fonte no sujeito
14
Como eacute comum ao pensamento contemporacircneo este eacute marcado pela criacutetica
ao pensamento moderno Desde Nietzsche ateacute Wittgenstein Habermas Hans Jonas
MacIntyre todos eles trazem consigo ressalvas ao pensamento moderno o que vai
causar grandes siacutenteses principalmente do diagnoacutestico das fragilidades do discurso
moral moderno Por outro lado parece natildeo ser mais possiacutevel encontrar uma grande
siacutentese do pensamento eacutetico De qualquer maneira seja para negar ou para propor
a eacutetica permanece como uma das questotildees filosoacuteficas mais relevantes do pensamento
contemporacircneo
Alasdair MacIntyre se insere na filosofia moral contemporacircnea Esta pesquisa
considera que a grandeza de seu pensamento reside no esforccedilo que ele fez para
efetivar uma teoria moral agrave contemporaneidade ao modo de uma eacutetica das virtudes
MacIntyre encontra sua inspiraccedilatildeo filosoacutefica no movimento moral inglecircs denomina
Virtue Ethics Gertrude Anscombe eacute uma das figuras inspiradores deste movimento e
deixa como heranccedila dois elementos fundamentais ao pensamento de MacIntyre a
saber sua criacutetica agrave moral moderna e sua opccedilatildeo pela Eacutetica das Virtudes Embora
tributaacuterio de Gertrude Anscombe a proximidade de MacIntyre com o marxismo e com
as ciecircncias sociais proporciona a ele um itineraacuterio filosoacutefico peculiar
O objetivo deste trabalho eacute tomar o pensamento de MacIntyre e sua criacutetica
efetivada agrave modernidade criacutetica esta que o leva a retomar a Eacutetica das Virtudes a partir
de Aristoacuteteles propondo para a contemporaneidade um modelo de filosofia praacutetica
centrado natildeo nas accedilotildees mas no agente No entanto conforme seu proacuteprio
testemunho a relaccedilatildeo entre o aristotelismo e o pensamento cristatildeo natildeo foi
apresentada adequadamente (cf MACINTYRE 2001) No iniacutecio de Justiccedila de Quem e
Qual racionalidade (cf MACINTYRE 2001) MacIntyre reconhece a precariedade de
sua interpretaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino em relaccedilatildeo agrave Eacutetica das Virtudes Essa
precariedade consiste em natildeo haver pensado com suficiente radicalidade a
reconciliaccedilatildeo que Tomaacutes de Aquino operou entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica
Este trabalho parte deste ponto seu objetivo eacute dar continuidade ao que MacIntyre
deixou inacabado no que se refere ao tratamento que Tomaacutes de Aquino efetivou entre
o aristotelismo e o pensamento cristatildeo Assim onde termina o pensamento do
MacIntyre de Depois da Virtude eacute o ponto de iniacutecio desta pesquisa
O desenvolvimento do objetivo acima proposto exige uma exposiccedilatildeo do que
significa a Eacutetica das Virtudes e sua forma histoacuteria de retorno bem como de sua relaccedilatildeo
15
com Aristoacuteteles Requer tambeacutem a tematizaccedilatildeo do modo como o pensamento cristatildeo
retomou e reelaborou esta eacutetica O posicionamento deste trabalho se fundamenta na
tese de que uma Eacutetica das Virtudes que pretenda recorrer a Aristoacuteteles natildeo pode se
apresentar como alternativa agrave contemporaneidade sem considerar a contribuiccedilatildeo do
pensamento cristatildeo visto que o universo cultural e semacircntico dos conceitos morais
da contemporaneidade eacute perpassado pela influecircncia deste pensamento
Os autores que orientam esta pesquisa satildeo principalmente Alasdair MacIntyre
Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino atraveacutes das obras que se referem agrave Filosofia Moral
Com relaccedilatildeo ao pensamento de MacIntyre seraacute realizado um corte epistemoloacutegico
que parte da obra Depois da Virtude e manteacutem seu foco na tarefa que esta obra deixou
em aberto Os possiacuteveis desdobramentos do pensamento de MacIntyre natildeo se
constituem como empecilho ao desenvolvimento desta pesquisa
Para a realizaccedilatildeo do objetivo proposto faz-se necessaacuterio organizar a estrutura
do trabalho do seguinte modo no primeiro capiacutetulo O Antiiluminismo Eacutetico e a Eacutetica
das Virtudes seraacute feita uma exposiccedilatildeo geral sobre os fundamentos da eacutetica das
virtudes e como esta retorna ao cenaacuterio da filosofia moral contemporacircnea o segundo
A Criacutetica de MacIntyre ao Projeto Moderno de Fundamentaccedilatildeo da Moralidade trata
da primeira tarefa de Depois da Virtude ou seja de como a moral contemporacircnea
resulta segundo MacIntyre do desacordo das teses modernas de fundamentaccedilatildeo da
moralidade e de suas incoerecircncias denominadas por ele lsquofalecircnciarsquo do projeto
iluminista O terceiro capiacutetulo O Projeto de Depois da Virtude expotildee a teoria moral
de MacIntyre retomando os conceitos anteriores a obra mas que determinaram e se
mantiveram presentes nela a quarta parte da tese Tradiccedilatildeo Biacuteblica e Aristotelismo
aborda a Reconciliaccedilatildeo Tomista do Aristotelismo e da Tradiccedilatildeo Biacuteblica na Filosofia
Moral
16
2 O ANTIILUMINISMO EacuteTICO E A EacuteTICA DAS VIRTUDES
O pensamento de MacIntyre se insere numa corrente da Filosofia Moral Inglesa
do seacuteculo XX denominada Eacutetica das Virtudes Este movimento teraacute grande influecircncia
em seu pensamento especialmente na criacutetica que eacute apresentada agrave Moral Moderna
como tambeacutem no esforccedilo de promover uma releitura da Eacutetica de Aristoacuteteles e de
compatibilizaacute-la agraves exigecircncias do pensamento contemporacircneo Esta seccedilatildeo apresenta
esse movimento e seu questionamento dos fundamentos da moral moderna como
tambeacutem apresenta as principais teses daacute Eacutetica das Virtudes por meio dos
pensamentos de Rosalind Hursthouse e de Gertrude Anscombe
A Filosofia Moral Inglesa da segunda deacutecada do seacuteculo XX foi denominada
Virtue Ethics porque propocircs a recolocaccedilatildeo da problemaacutetica das accedilotildees agrave luz da eacutetica
das virtudes Tem como foco o questionamento da moral moderna e o renascimento
da eacutetica aristoteacutelica A intenccedilatildeo era constituir a Eacutetica das Virtudes como uma terceira
via entre a Filosofia Deontoloacutegica kantiana e o utilitarismo eacutetico tatildeo fortemente
instituiacutedo no Ocidente Qual eacute a necessidade de uma terceira via para a filosofia
moral Quais satildeo as insuficiecircncias das eacuteticas deontoloacutegicas e utilitaristas que
justificam esta empreitada Estas satildeo questotildees que orientam a construccedilatildeo teoacuterica
deste capiacutetulo
Serviratildeo de apoio epistemoloacutegico aleacutem do MacIntyre a obra Sobre a Eacutetica das
Virtudes (cf HURSTHOUSE 2001)1 de Rosalind Hursthouse e o texto A filosofia
moral moderna de Gertrude Anscombe pensadora que com grande relevacircncia
influenciou o itineraacuterio filosoacutefico Alasdair MacIntyre
21 SOBRE A RE-COLOCACcedilAtildeO DA VIRTUE ETHICS
Segundo Rosalind Hursthouse (cf HURSTHOUSE 2001) Virtue Ethics eacute um
termo teacutecnico que inicialmente diferenciava uma eacutetica normativa com o foco nas
virtudes e no caraacuteter das abordagens eacuteticas que enfatizavam os direitos ou regras
denominadas deontologias e das que destacavam as consequecircncias das accedilotildees
1 Rosalin Hursthouse eacute professora de Filosofia da Universidade de Auckland na Nova Zelacircndia No
Doutorado foi orientanda de Elizabeth Anscombe e Philippa Ruth Foot
17
denominadas de consequencialismo ou utilitarismo (cf HURSTHOUSE 2001 p1)
Para ilustrar a definiccedilatildeo a autora propotildee o seguinte exemplo
Imagine um caso em que eacute oacutebvio que eu deveria por exemplo ajudar algueacutem em necessidade Um utilitarista iria destacar o fato de que o resultado de minha accedilatildeo contribuiria com o bem estar do necessitado Um deontologista diria que minha accedilatildeo estaacute de acordo com a maacutexima fazer aos outros aquilo que eu gostaria que fosse feito comigo e finalmente um filoacutesofo das virtudes diria que o fato de ajudar a quem precisa seria sinal de benevolecircncia ou caridade (HURSTHOUSE 2001 p1)
A posiccedilatildeo do utilitarista considera que ajudar a um necessitado deve ser visto
em virtude do resultado da accedilatildeo jaacute o deontologista compreende a accedilatildeo pela
perspectiva da universalizaccedilatildeo do ato de ajudar algueacutem finalmente para o filoacutesofo
das virtudes a accedilatildeo eacute boa porque eacute expressatildeo de um agente bom
A Eacutetica das Virtudes eacute uma abordagem ao mesmo tempo antiga e nova para
a Filosofia Praacutetica Antiga porque remonta a Platatildeo e Aristoacuteteles e nova se se
considera sua recolocaccedilatildeo como alternativa ao pensamento moral contemporacircneo
Rosalind Hursthouse enfatiza que apenas dois tipos de abordagem dominaram a eacutetica
normativa nos uacuteltimos 30 anos2 a deontoloacutegica inspirada primordialmente em Kant
e a utilitarista tendo como representantes mais importantes Jeremy Bentham e John
Stuart Mill Ainda segundo a supracitada Filoacutesofa lsquoentre os muitos livros e artigos
publicados sobre a eacutetica normativa discutia-se ampliava-se corrigia-se apenas as
duas abordagens jaacute mencionadas entretanto natildeo figurava entre elas nenhum texto
que fizesse referecircncia a uma terceira possibilidadersquo (cf HURSTHOUSE 2001 p 2)
permanecendo impensada uma terceira possibilidade para a Filosofia Moral de entatildeo
Rosalind Hursthouse ainda acrescenta que em alguns manuais de graduaccedilatildeo
sobre eacutetica normativa vaacuterios artigos criacuteticos da ortodoxia dominante pleitearam um
reconhecimento da eacutetica das virtudes Em alguns paraacutegrafos dizia-se lsquoo que um
filoacutesofo da virtude3 diria nesse casorsquo Para a referida Autora as menccedilotildees agrave moral das
virtudes o mais das vezes tendiam a ser curtas e com desprezo Rigorosamente
falando a Eacutetica das Virtudes natildeo era considerada como uma uma alternativa viaacutevel
uma vez que suas interferecircncias se referiam apenas a aspectos interessantes sobre
os motivos e o caraacuteter do agente moral que podiam ser inseridos como informaccedilotildees
complementares a essas abordagens A Eacutetica das Virtudes era ateacute entatildeo
2 A Autora estaacute escrevendo em 1998 Assim sendo deve-se entender lsquonos uacuteltimos 40 anosrsquo 3 Esta eacute uma traduccedilatildeo proposta para a expressatildeo virtue ethicist
18
considerada como um lsquogarotorsquo mais novo entre os rapazes podia entrar no lsquojogorsquo
mas natildeo era contado efetivamente como um lsquojogadorrsquo Somente em pouco mais de 40
anos a Eacutetica das Virtudes adquiriu o status completo ocupando a qualidade de
terceira das abordagens morais rivalizando com deontologistas e ou utilitaristas
A respeito de um retorno da Eacutetica das Virtudes Rosalind Hursthouse apresenta
as seguintes questotildees por que a Filosofia Moderna4 (ou contemporacircnea) revive a
antiga abordagem da Eacutetica das Virtudes Por que o pensamento contemporacircneo ou
um movimento de pensadores sentiu a necessidade de promover um retorno ao
pensamento antigo especialmente a Aristoacuteteles Sabe-se que existe uma grande
distacircncia temporal entre a contemporaneidade seus escritos e sua organizaccedilatildeo
social Aleacutem disso muitos dos pontos de vista desses autores como por exemplo a
escravidatildeo o lugar da mulher na sociedade satildeo na realidade insustentaacuteveis No
entanto Rosalind Hursthouse enfatiza que nenhum dos filoacutesofos da virtude estaacute
comprometido com os detalhes lsquoparoquiaisrsquo de Aristoacuteteles assim como nenhum dos
deontologistas estaacute comprometido com as opiniotildees de Kant sobre os animais por
exemplo (cf HURSTHOUSE 2001 p 2)5 Para Rosalind Hursthouse a questatildeo
fundamental eacute que ao lado desses motivos haacute muitos outros que se empotildee para o
renascimento ou recolocaccedilatildeo das moral das virtudes a saber a sabedoria praacutetica a
amizade e o relacionamento familiar o aprofundamento do conceito de felicidade o
papel das emoccedilotildees na vida moral dos indiviacuteduos Esses temas afirma a autora
praticamente desapareceram do vocabulaacuterio filosoacutefico do pensamento moral dos
seacuteculos XVIII e XIX Dessa maneira o renascimento da Eacutetica das Virtudes natildeo eacute uma
simples coincidecircncia Ele coincide com a redescoberta desses temas fundamentais
em virtude do proacuteprio apelo que eles impotildeem agrave existecircncia humana Esses temas natildeo
satildeo devidamente considerados pelos pensadores modernos e na opiniatildeo de Rosalind
Hursthouse aos olhos de algueacutem mais atento satildeo reconhecidos como as temaacuteticas
sempre pertinentes agrave Filosofia Moral (cf HURSTHOUSE 2001 p 3)
Atraveacutes da recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes Rosalind Hursthouse salienta
que a redescoberta da Eacutetica das Virtudes proporcionou revisotildees e releituras por parte
demuitos defensores da eacutetica do dever ou entre os utilitaristas Atraveacutes dessas
4 Esta eacute a terminologia utilizada por Rosalind Hursthouse A julgar a distacircncia temporal pequena mas
significante seraacute utilizada a expressatildeo Contemporacircnea 5 Aqui a autora faz referecircncia agrave posiccedilatildeo kantiana de que os animais satildeo coisas e que o maior defensor
da liberaccedilatildeo dos animais Tom Regam seja um deontologista
19
revisotildees eacute que foram propostas temaacuteticas como a Doutrina kantiana da virtude Outros
pensadores como McDowell promoveram aproximaccedilotildees entre Aristoacuteteles e Kant
enquanto autores como Herman e Korsgaard trouxeram Kant mais perto de Aristoacuteteles
(cf HURSTHOUSE 2001 p 4)
A reconsideraccedilatildeo de noccedilotildees e de temas da Eacutetica das Virtudes gerou um
problema acerca dos limites entre as abordagens eacuteticas Esses limites se referem ao
fato de que a especificidade de cada abordagem natildeo parece bem determinada
Rosalind Hursthouse afirma que jaacute natildeo eacute mais tatildeo simples afirmar genericamente que
a eacutetica das virtudes eacute uma corrente que enfatiza as virtudes Do mesmo modo a
deontologia e o utilitarismo tambeacutem natildeo podem ser resolvidos apenas pela descriccedilatildeo
que um e outro enfatizam regras ou consequecircncias em contraste com o caraacuteter do
agente
O fim da problematizaccedilatildeo entre as especificidades das abordagens eacuteticas para
Rosalind Hursthouse aponta natildeo para uma separaccedilatildeo ldquobarristardquo entre as abordagens
Eu suspeito que a persistecircncia da crenccedila da eacutetica da virtude natildeo eacute como afirmei acima lsquouma rival para abordagens deontoloacutegicas e utilitaristas mas se apresenta como interessante e desafiadora entre elas
a abordagem ainda eacute nova o suficiente para ser distinta e o objetivo deste livro eacute explorar o que pode ser adquirido como insights para a filosofia moral sendo escrito de uma forma muito detalhada e compreensiva Se os utilitaristas e deontologistas estiverem em desacordo com o que eu digo que eacute claro que eu quero eacute discutir com eles e talvez alguns dos nossos pontos de atrito sejam apenas sobre teses particulares que tipicamente embora natildeo universalmente eles defendem e rejeitam na eacutetica das virtudes ou vice-versa Eu natildeo deveria estar inclinada para argumentar em tudo Eu deveria estar feliz por todos noacutes pois isto significa parar de se preocupar sobre como distinguimos noacutes mesmos e acolher os nossos acordos (HURSTHOUSE 2001p 7)
A partir da afirmaccedilatildeo de Rosalind Hursthouse sente-se a necessidade de se
promover muito mais do que uma concorrecircncia entre as aborgadens eacuteticas um
reavivamento da moral das virtudes cuja expressividade ficou de certo modo
lsquomarginalizadarsquo na Tradiccedilatildeo Filosoacutefica dos seacuteculos XVIII e XIX A abertura para esta
abordagem conduz pois agrave compreensatildeo de que uma moral do dever ou uma eacutetica
centrada nos resultados natildeo foram suficientes para responder agraves demandas do agir
humano como tambeacutem sinaliza o reavivamento de uma eacutetica que valoriza accedilatildeo
20
apenas na medida em que ela for um desdobramento das condiccedilotildees e do
aprimoramento do agente moral atraveacutes das virtudes
A Eacutetica das Virtudes teve seu retorno a partir de algumas obras inspiradoras
particularmente o ensaio de Gertrude Anscombe Modern Moral Philosophy de 1958
Segundo Kevin Flannery o artigo Modern Moral Philosophy ao lado da obra Intention
consagrou Gertrude Anscombe como filoacutesofa Gertrude Anscombe foi interlocutora e
amiga particular de Wittgenstein Apoacutes a morte dele Gertrude Anscombe realizou uma
das melhores traduccedilotildees das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas para os leitores de liacutengua
inglesaque praticamente nunca foram contestadas em virtude de seu rigor e
fidelidade agrave obra do autor (cf FLANNERY 2009)
211 Sobre a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica
No texto A Filosofia Moral Moderna Gertrude Anscombe sugere algumas teses
A primeira eacute a de que ldquonatildeo eacute proveitoso fazer filosofia moral no tempo presente ateacute
que se tenha uma filosofia adequada da psicologiardquo (ANSCOMBE 2010 p 19) isto eacute
uma Psicologia Filosoacutefica Mas por que no tempo presente natildeo eacute proveitoso fazer
uma filosofia moral sem antes encontrar uma Psicologia Filosoacutefica E porque esta
Psicologia Filosoacutefica abre os horizontes para se fazer uma filosofia moral
contemporaneamente Essas satildeo as questotildees que orientam a construccedilatildeo desta
seccedilatildeo
Desde a Criacutetica da Razatildeo Pura a tarefa de construir uma Psicologia Filosoacutefica
tornou-se por demais complicada As conclusotildees de Kant expressas na Dialeacutetica
Transcendental mostraram a lsquofalecircnciarsquo que esta ciecircncia da Metafiacutesica Claacutessica
encontrou em seu intento de assegurar a imortalidade da alma
Ora na verdade natildeo haacute ningueacutem que possa extrair de princiacutepios especulativos a miacutenima base para semelhante afirmaccedilatildeo nem mesmo demonstrar-lhe a possibilidade soacute eacute possiacutevel supocirc-la mas tatildeo-pouco pode algueacutem opor-lhe qualquer objeccedilatildeo dogmaacutetica vaacutelida Pois ningueacutem sabe mais do que eu ou de que outro qualquer sobre a causa absoluta e intriacutenseca dos fenocircmenos exteriores e corporais Tambeacutem ningueacutem pode pretender saber com fundamento sobre que repousa no estado atual (na vida) a realidade dos fenocircmenos externos e por consequecircncia tambeacutem natildeo pode afirmar que a condiccedilatildeo de toda a intuiccedilatildeo externa ou tambeacutem o proacuteprio sujeito pensante deva cessar depois deste estado (na morte) (KANT 2001)
21
As conclusotildees de Kant na Criacutetica da Razatildeo Pura inviabilizaram a Psicologia
Racional na tarefa de demonstrar a imortalidade da alma Contudo a finalidade com
que Gertrude Anscombe sugere uma Psicologia Filosoacutefica tem agora um objetivo
distinto da antiga Psichologya Rationalis A Psicologia Filosoacutefica conforme Gertrude
Anscombe sugere serviraacute para apresentar o modo como os atos humanos satildeo
capazes de se relacionar com as virtudes Com efeito se as virtudes satildeo tipos de atos
realizados em favor do bem do homem um estudo sobre estes atos humanos
proporciona uma maior compreensatildeo sobre as virtudes e suas possibilidades no agir
do ser humano
A afirmaccedilatildeo de Gertrude Anscombe que sugere o abandono da moral pode ateacute
soar de maneira estranha vindo de uma moralista Entretanto o sentido desta
afirmaccedilatildeo eacute resgatado quando se entende o que a autora compreende como
aplicaccedilatildeo de uma psicologia filosoacutefica agrave moral Segundo Kevin Flannety esta recusa
se refere pelo menos inderetamente agrave maneira como uma psicologia proscede ao
estudar os fenocircmenos ou dados que existem necessariamente e exclusivamente na
mente isto eacute na interioridade do indiviacuteduo (cf FLANNERY 2009 p 44) Eacute em virtude
desta interioridade que Gertrude Anscombe compreende que a prioridade de uma
psicologia filosoacutefica para a filosofia moral se justifica porque as accedilotildees humanas se
fundamentam em processos internos da psiqueacute especialmente na chamada
intencionalidade Deste modo uma psicologia filosoacutefica como saber preliminar agrave
filosofia moral natildeo pode entre outras coisas prescindir do estudo da intencionalidade
Gertrude Anscombe entende a dificuldade de propor uma Psicologia Filosoacutefica
sem no entanto recorrer a experiecircncias e relatos de casos assim como acontece
com a psicologia empiacuterica Entretanto a autora natildeo parece se contentar com o que a
psicologia empiacuterica fez ao fenocircmemo da intencionalidade Com efeito esta ciecircncia
passou a considerar a intencionalidade um sentimento que os indiviacuteduos
supostamente tecircm quando fazem algo intencional A intencionalidade passou a ser
tematizada como um outro sentimento ou estado psicoloacutegico assim como a empatia
ou animosidade sentidas pelos outros (cf FLANNERY 2009 p 44)
O resultado deste modus operandi da psicologia empiacuterica enfatiza Kevin
Flannery eacute ignorar a funccedilatildeo das intenccedilotildees nos atos humanos e reduzir a psicologia
ao estudo dos pensamentos acrescidos dos sentimentos na forma de estados
psicoloacutegicos (cf FLANNERY 2009 p 45) A intencionalidade e a moralidade assim
22
pensadas podem ser consideradas apenas como um niacutevel de sentimentalismo
acrescentado agraves accedilotildees Kevin Flannery aponta consequecircncias desse modo de
entender a moral
O resultado da aplicaccedilatildeo de uma tal abordagem da moralidade eacute que a moralidade se torna uma espeacutecie de camada de sentimentalismo acrescentada agrave accedilatildeo humana de tal forma que uma accedilatildeo em si pode ser absolutamente vergonhosa mas pode ser declarada moralmente correta de acordo com o argumento de que no final natildeo tem nada a ver com o que a pessoa realmente faz Pense por exemplo no discurso do padre que apresenta o raciociacutenio da Igreja em relaccedilatildeo agrave contracepccedilatildeo ou a fertilizaccedilatildeo in vitro como vaacutelido e sadio e ao mesmo tempo diz para os seus paroquianos que em relaccedilatildeo agraves suas obrigaccedilotildees morais eles devem seguir suas consciecircncias
(FLANNERY 2009 p 45)
Conforme a afirmaccedilatildeo de Kevin Flannery pensar a intencionalidade apenas
como um estado psicoloacutegico engendra uma incoerecircncia tiacutepica e recorrente na
contemporaneidade a ideia de que a maneira como se age eacute independente da
maneira como se pensa Tomando o exemplo acima tem-se a ideia de que os
ensinamentos da Igreja de certo modo satildeo apenas da ordem do conhecimento isto
eacute natildeo existe contradiccedilatildeo entre o saber de uma moral e a modo como algueacutem vive sua
vida particularmente A criacutetica se refere precisamente ao fato de se transformar a
intenccedilatildeo num simples sentimento A confusatildeo entre sentimento e intencionalidade eacute
o cenaacuterio atraveacutes do qual Gertrude Anscombe afirma a necessidade de uma
Psicologia Filosoacutefica Eacute importante salientar que a atitude naturalista da psicologia
empiacuterica diante do fenocircmeno da intenccedilatildeo eacute tambeacutem criticada por autores como
Edmund Husserl e Heidegger6
A relaccedilatildeo entre Psicologia Filosoacutefica e moralidade jaacute havia sido expressa na
Tradiccedilatildeo Filosoacutefica e Gertrude Anscombe natildeo acha viaacutevel ignoraacute-la Kevin Flannery
salienta que a noccedilatildeo de que a Tradiccedilatildeo podia ser ignorada no sentido de iniciar do
lsquozerorsquo foi um dos elementos que causou a crise da Teoria Moderna da Moralidade (cf
FLANNERY 2009 p 47) Em seu retorno agrave moral aristoteacutelica Gertrude Anscombe
entende a necessidade de se refletir acerca dos atos tarefa realizada especialmente
por uma Psicologia Filosoacutefica
6 Para um maior esclarecimento sobre a criacutetica de Heidegger ao conceito de intencionalidade como
fenocircmeno psiacutequico feita nos Prolegocircmenos agrave Histoacuteria do Conceito de Tempo cf HEIDEGGER Tertio Ed sect4 p13-18GA 20 1994 e HUSSERL 1989 p 42 Aqui Husserl fala a simplificaccedilatildeo do fenocircmeno do conhecimento como factum psicoloacutegico Esta eacute uma caracteriacutestica da atitude naturalista que extensivamente acontece com o exemplo do fenocircmeno da intenccedilatildeo
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Qual eacute pois o sentido de se trabalhar agraves intenccedilotildees na abordagem sobre a
moralidade No livro III da Eacutetica a Nicocircmacos Aristoacuteteles afirma
Como a virtude diz respeito a emoccedilotildees e accedilotildees e como os atos voluntaacuterios satildeo censurados e louvados ao passo que os involuntaacuterios satildeo objeto de perdatildeo e por vezes tambeacutem de piedade eacute presumivelmente necessaacuterio aos estudiosos da virtude definir o voluntaacuterio e o involuntaacuterio bem como eacute uacutetil aos legisladores tanto para a distribuiccedilatildeo das honrarias quanto para a aplicaccedilatildeo de puniccedilotildees (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea III 1109 b30 2010 p 59)
Aparentemente a referecircncia a Aristoacuteteles natildeo esclaresceu a pergunta
Entretetanto eacute a respeito dos atos voluntaacuterios e involuntaacuterios que a intenccedilatildeo diz
respeito Ela natildeo eacute compreendida apenas como um acaso em relaccedilatildeo agraves accedilotildees mas
como elemento que estaacute presente em todos os atos Aristoacuteteles natildeo desenvolve
explicitamente um estudo sobre as intenccedilotildees mas elas estatildeo latentes quando ele
fundamenta a teoria dos atos no livro III da EN Compreender o que faz de um ato
voluntaacuterio ou natildeo eacute ir buscar uma melhor compreensatildeo das intenccedilotildees e esta por sua
vez apresenta-se como fundamental agrave compreensatildeo dos atos voluntaacuterios e
involuntaacuterios
Aqui se esboccedila um problema a dificuldade de se tratar acerca das decisotildees
morais e das intenccedilotildees pois ldquoquando pensamos ter finalmente compreendido um
objeto de estudo podemos transformaacute-lo um pouco e vecirc-lo de forma bastante
diferenterdquo (FLANNERY 2009 p 47) Kevin Flannery acrescenta que a dificuldade no
tratamento da questatildeo conduz agrave tendecircncia de desistir do empreendimento e optar por
um criteacuterio mais lsquogerenciaacutevel da moralrsquo tornando a compreensatildeo sobre a moralidade
mais acessiacutevel Sua criacutetica chama a atenccedilatildeo para o fato de que o mais lsquogerenciaacutevelrsquo
se torna entretanto ineficaz ao rompimento da compreensatildeo da moral como um
estado psicoloacutegico
Ateacute entatildeo foram apresentados os limites da filosofia moral quando natildeo se
considera uma Psicologia Filosoacutefica Este eacute um aspecto negativo da resoluccedilatildeo da
questatildeo fundamental desta seccedilatildeo que eacute compreender a partir da afirmaccedilatildeo de
Gertrude Anscombe o porquecirc de natildeo ser proveitoso fazer filosofia moral no presente
e porque eacute necessaacuteria uma Psicologia Filosoacutefica
O aspecto positivo da necessidade de uma Psicologia Filosoacutefica retirado do
pensamento de Gertrude Anscombe eacute tambeacutem a caracteriacutestica que diferencia a
Autora entre os moralistas da virtude Para Gertrude Anscombe assim como as
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virtudes e os atos particulares do agente moral estatildeo associados associados tambeacutem
estatildeo os atos agrave psicologia da pessoa Para ela a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes
natildeo se inicia pelas virtudes mesmas mas por uma Psicologia Filosoacutefica que tem por
funccedilatildeo explicar a relaccedilatildeo entre a psicologia da pessoa os atos e as virtudes
Para Anscombe o ponto de partida natildeo eacute as virtudes mas a filosofia da psicologia que eacute nosso uacutenico caminho para uma boa compreensatildeo das virtudes Se haacute uma ligaccedilatildeo estreita entre os atos particulares e as virtudes deve haver estreita conexatildeo entre os atos e a psicologia de uma pessoa seu comportamento e reaccedilotildees caracteriacutesticas (FLANNERY 2009 p 52)
A afirmaccedilatildeo acima aponta para uma dependecircncia do estudo das virtudes em
relaccedilatildeo a um estudo sobre os atos e humanos Este estudo sobre os atos humanos
se constitui como outra tarefa da Psicologia Filosoacutefica De acordo com o que foi
apresentado a Psicologia Empiacuterica mostrou-se insuficiente no tratamento dos atos
humanos especialmente no que se refere ao fenocircmeno da intencionalidade O
aprofundamento dos atos humanos atraveacutes de uma psicologia filosoacutefica pode
oferecer maior consistecircncia agrave Moral das Virtudes O fato eacute que as virtudes e tambeacutem
os viacutecios satildeo consolidados pelos atos concretos
Na relaccedilatildeo entre atos e virtudes o mais importante natildeo eacute necessariamente
desvendar as complexas relaccedilotildees que existem entre a psicologia de uma pessoa o
modo como os acontecimentos particulares sua vida vatildeo influenciar o
desenvolvimento futuro de sua histoacuteria O que estes argumentos natildeo podem
obscurecer nem invalidar a existecircncia de uma relaccedilatildeo estreita entre atos e virtudes
Neste sentido expotildee Kevin Flannery
Natildeo eacute ilegiacutetimo perguntar por exemplo como o envolvimento na morte de inocentes mesmo em parte por pessoas perfeitamente boas tem uma influecircncia sobre a vida familiar ou em qualquer outro aspecto do comportamento relacional Natildeo eacute ilegiacutetimo por exemplo questionar como um ato sexual com um menor em seu passado pode ter uma influecircncia sobre a vida pastoral de um possiacutevel padre no futuro Mas para entender como se relacionam virtudes viacutecios e atos particulares noacutes devemos tambeacutem compreender que atos satildeo genuinamente intencionais e em que medida o satildeo (FLANNERY 2009 p 53)
Embora o estudo sobre a intencionalidade e seu lugar numa Psicologia
Filosoacutefica natildeo seja o foco desta pesquisa sua menccedilatildeo eacute pertinente a este trabalho O
direcionamento se refere agrave compreensatildeo e exposiccedilatildeo do modo como no pensamento
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contemporacircneo a moralidade moderna e seus desdobramentos foram questionados
proporcionando a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes
212 A incoerecircncia do dever moral
Tendo apresentado a relaccedilatildeo de precedecircncia de uma teoria dos atos como um
propedecircutica ao estudo das virtudes Filosofia Moral Moderna apresenta um
questionamento acerca da noccedilatildeo de dever moral Para a Gertrude Anscombe a moral
moderna toma por base a noccedilatildeo de lsquodever moralrsquo Esta noccedilatildeo proveacutem de uma filosofia
praacutetica de caraacuteter legalista como eacute o caso da moral cristatilde A ideia baacutesica eacute que as
tentativas modernas de constituiccedilatildeo de uma filosofia praacutetica natildeo tiveram ecircxito porque
pensaram ser possiacutevel desenvolver uma eacutetica como lei moral tomando por
fundamento primordial o sujeito moral
Embora o termo moral seja herdado do pensamento aristoteacutelico Gertrude
Anscombe enfatiza que o que se entende por moral contemporaneamente possui um
conteuacutedo semacircntico distinto do que o termo possui nos contextos do pensamento de
Aristoacuteteles Ademais a moral parece estar relacionada agravequilo que eacute lsquoreprovaacutevelrsquo de
modo que falhas natildeo apenas da praacutexis mereccedilam receber igualmente o termo
reprovaacutevel (cf ANSCOMBE 2010 p 30) O que eacute explicitado pela autora eacute que
expressotildees do tipo lsquotem dersquo ou lsquodeversquo satildeo utilizadas em contextos natildeo apenas morais
como compreendia Aristoacuteteles mas em contextos que ele denominaria de
lsquointelectuaisrsquo
A Autora encontra na cristandade a razatildeo da modificaccedilatildeo semacircntica do termo
moral ldquoA resposta pertence agrave Histoacuteria entre Aristoacuteteles e noacutes encontra-se a
Cristandade com sua concepccedilatildeo legalista de eacutetica visto que a Cristandade deriva
suas noccedilotildees morais da Toraacuterdquo (ANSCOMBE 2010 p 24) Para ela a Cristandade opera
uma releitura na eacutetica aristoteacutelica
Os termos comuns (e indispensaacuteveis) [grifo da autora] ldquotem derdquo ldquoprecisa derdquo ldquodeverdquo ldquotem a obrigaccedilatildeo derdquo adquiriram esse sentido especial ao serem equacionados nos contextos relevantes com ldquoestaacute obrigadordquo ldquoassumiu o encargo derdquo e eacute ldquoexigido derdquo no sentido que se
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pode estar obrigado ou se pode assumir um encargo por lei ou de que algo pode ser exigido por lei (ANSCOMBE 2001 p 383)7
O predomiacutenio da Cristandade trouxe para a linguagem moral do Ocidente uma
grande modificaccedilatildeo no sentido daquilo que Aristoacuteteles entendia por moral e mesmo
que a Cristandade e sua compreensatildeo de mundo tenham sido abandonadas as
noccedilotildees de dever e obrigaccedilatildeo permaneceram sendo empregadas a partir das
influecircncias recebidas
Numa segunda justificativa aleacutem da tese da origem religiosa do conceito de
dever moral Gertrude Anscombe propotildee uma distinccedilatildeo entre accedilotildees maacutes por si
mesmas e accedilotildees maacutes sob determinadas circunstacircncias A condenaccedilatildeo de um
inocente conhecendo-se sua inocecircncia eacute um exemplo de accedilatildeo maacute em si mesma
enquanto que a violaccedilatildeo do direito de propriedade figura entre as accedilotildees maacutes sob
determinadas circunstacircncias No caso da condenaccedilatildeo de um inocente a accedilatildeo eacute maacute
diretamente em virtude da consciecircncia que se tem da inocecircncia e da violaccedilatildeo
deliberada do direito do inocente jaacute no caso do direito de propriedade a accedilatildeo natildeo
pode ser maacute em si mesma por causa das circunstacircncias Ora algueacutem pode invadir a
propriedade de outrem por que eventualmente estaacute a fugir da morte iminente
Esta distinccedilatildeo eacute relevante pois apresenta o modo como um pensamento moral
pode se constituir como uma teoria centrada nas accedilotildees de um agente ou como uma
teoria que prioriza as accedilotildees de um agente centrado Esta uacuteltima eacute por assim dizer
um tipo de filosofia praacutetica que visa o bem natildeo apenas das accedilotildees mas tambeacutem do
agente eacutetico A acusaccedilatildeo de Gertrude Anscombe em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de dever e
obrigaccedilatildeo se refere ao fato de que nestes casos haacute uma estrutura normativa que
privilegia a accedilatildeo em detrimento do agente No caso da Eacutetica das Virtudes haacute uma
tentativa de priorizar natildeo a accedilatildeo em seus efeitos externos ao agente mas o que ela
provoca em seu caraacuteter A noccedilatildeo de caraacuteter necessita de um aprofundamento
No contexto de uma Moral das Virtudes as accedilotildees satildeo convenientes na medida
em que contribuem com o fim do homem O caraacuteter significa aqui a capacidade de
agir virtuosamente com fundamento na condiccedilatildeo do agente que em por causa do
haacutebito adquiriu a capacidade de agir harmonizando o querer o poder e dever O mais
importante aqui natildeo reside numa accedilatildeo modelo na qual o agente deva se conformar
7ldquoThe ordinary (and quite indispensable) terms ldquoshouldrdquo ldquoneedsrdquo ldquooughtrdquo ldquomustrdquo acquired this special
sense by being equated in the relevant contexts with ldquois obligedrdquo or ldquois boundrdquo or ldquois required tordquo in the sense in which one can be obligaded or bound by law or something can be required by lawrdquo
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independente de seus processos internos sejam os desejos seja a razatildeo Neste
sentido pode-se afirmar a Eacutetica das Virtudes como uma eacutetica que manteacutem a
centralidade no agente
As eacuteticas deontoloacutegicas e utilitaristas centralizam sua atenccedilatildeo na idoneidade
das accedilotildees Este posicionamento faz com que a virtude seja dependente das accedilotildees
Opostamente a Eacutetica das Virtudes propotildee que as accedilotildees devem ser pensadas agrave luz
do caraacuteter de quem as pratica Na obra O bem viver em comunidade a vida boa
segundo Platatildeo e Aristoacuteteles (cf RICKEN 2008 p 181-182) o professor Friedo Ricken
relaciona trecircs teses sobre o agir a tese epistemoloacutegica a tese ontoloacutegica ou axioloacutegica
e a tese do chamado reducionismo conceitual
A tese epistemoloacutegica defende que as accedilotildees corretas satildeo fundamentadas por
conceitos de virtude uma accedilatildeo eacute considerada correta quando traduz aquilo que uma
pessoa virtuosa faria sob determinadas circunstacircncias Neste sentido as accedilotildees satildeo
julgadas em relaccedilatildeo agraves virtudes A tese ontoloacutegica ou axioloacutegica propotildee que o valor
moral da accedilatildeo se fundamenta no valor moral do caraacuteter ou seja as boas accedilotildees
decorrem do caraacuteter bom de uma pessoa entretanto natildeo vale a formulaccedilatildeo inversa
o caraacuteter como decorrente das accedilotildees Finalmente o reducionismo conceitual defende
que os assim chamados deveres podem ser retirados de predicados de virtude
Segundo Friedo Ricken a tese de Gertrude Anscombe parece alinhada ao
reducionismo conceitual pois para ela a eacutetica da virtude eacute contraposta com a eacutetica
do dever ou da lei como alternativa excludente os predicados ldquomoralmente corretordquo e
ldquomoralmente erradordquo conforme a exigecircncia poderiam ser substituiacutedos por predicados
de virtude ou seja pelo predicado lsquojustorsquo (cf RICKEN 2008 p 183)
Ainda segundo Gertrude Anscombe contemporaneamente o Ocidente
internalizou uma noccedilatildeo de dever que era tanto estranha agrave moral aristoteacutelica quanto agrave
moral hebraico-cristatilde Mais grave ainda eacute a defesa da noccedilatildeo de dever tentando
prescindir da cultura que a forjou Gertrude Anscombe esclarece que a eacutetica hebraico-
cristatilde tem como caracteriacutestica fundamental ldquoensinar que haacute coisas proibidas quaisquer
que sejam as consequecircncias no horizonterdquo (ANSCOMBE 2010 p 30) A autora expotildee
em seguida que a proibiccedilatildeo de certas accedilotildees simplesmente em virtude de sua
descriccedilatildeo como tais e tais tipos identificaacuteveis de accedilatildeo natildeo importando quais as
consequecircncias ulteriores vem a se constituir como a mais notaacutevel caracteriacutestica da
eacutetica hebraico-cristatilde
28
A eacutetica legalista do Ocidente entatildeo mencionada foi forjada no seio da cultura
hebraico-cristatilde e eacute dela que provecircm as noccedilotildees de dever de obrigaccedilatildeo Estas noccedilotildees
se relacionam com a figura do legislador divino pois as leis satildeo por ele formuladas
A criacutetica de Gertrude Anscombe se dirige agraves deontologias modernas e ao utilitarismo
justamente porque eles defendem a noccedilatildeo de dever e obrigaccedilatildeo querendo no
entanto lsquoescaparrsquo agrave figura de um legislador divino Para a autora a noccedilatildeo de lei possui
um sentido muito forte de interdito Este interdito que possui forccedila de lei e dever natildeo
seria adequadamente se fosse realizado ou imputado apelando apenas para forccedilas
do indiviacuteduo
Gertrude Anscombe considera que a sobrevivecircncia da noccedilatildeo de dever moral
se deu muito mais pela forccedila psicoloacutegica da expressatildeo do que pelo seu conteuacutedo (cf
ANSCOMBE 2010 p 28) Para a autora teria sido de grande valia se em vez de
lsquomoralmente erradorsquo fossem sempre invocados termos como lsquoinveriacutedicorsquo lsquoimpudicorsquo
lsquoinjustorsquo Deste modo natildeo se discutiria mais acerca da accedilatildeo se ela foi ou natildeo errada
mas se discutiria se foi justa ou injusta A questatildeo central aqui estaacute no fato de que
apresentar as accedilotildees em termos de moralmente certa ou errada natildeo traria implicaccedilotildees
sobre a bondade ou natildeo do agente pois certas ou erradas satildeo as accedilotildees Por outro
lado questionar como justas ou injustas qualifica de certo modo o agente como bom
ou natildeo Isto significa que a centralidade do julgamento natildeo iria residir nas accedilotildees mas
no agente
As palavras de Kant apresentando a modernidade como o tempo em que o
sujeito caminha com seus proacuteprios peacutes proporcionou a ideia de que a eacutetica moderna
se sustentaria com uma autolegislaccedilatildeo do sujeito de modo a ocupar o papel que
antes desenvolvido pelo Deus da Eacutetica Cristatilde
Duas coisas enchem o acircnimo de admiraccedilatildeo e veneraccedilatildeo sempre nova e crescente quanto mais frequente e persistentemente agrave reflexatildeo ocupa-se com elas o ceacuteu estrelado acima de mim e a lei moral em mim (KANT 2008 p 255)
Gertrude Anscombe critica a ideia de que o sujeito seja legislador de si proacuteprio
ldquorejeito como absurdo que se possa legislar lsquopara si mesmorsquo O que quer que vocecirc
faccedila lsquopara si mesmorsquo pode ser admiraacutevel mas natildeo legislaccedilatildeordquo (ANSCOMBE 2010 p
34) Para autora a questatildeo fundamental eacute se questionar acerca da real capacidade
de um sujeito empiacuterico acessar uma maacutexima universal e conformar sua accedilatildeo particular
a ela prescindindo de suas inclinaccedilotildees
29
Uma deduccedilatildeo necessaacuteria do pensamento de Gertrude Anscombe eacute que no
horizonte de uma eacutetica assegurada pela lei divina o lsquoiliacutecitorsquo ou lsquoo que eacute obrigatoacuterio natildeo
fazerrsquo termos que satildeo ancestrais do conceito lsquomoralmente erradorsquo ganham um
sentido pois satildeo o que a lei divina obriga Assim sendo a noccedilatildeo de lsquodeverrsquo ou
lsquomoralmente erradorsquo soacute satildeo adequadamente contextualizados se relacionados com a
Lei Divina
Aparentemente a autora estaacute defendendo uma lsquoparceriarsquo entre a moral
moderna e a eacutetica hebraico-cristatilde Se se retornar ao iniacutecio de seu texto ver-se-aacute que
a questatildeo central natildeo eacute a proposiccedilatildeo de uma lsquoparceriarsquo mas a indicaccedilatildeo de que os
conceitos de obrigaccedilatildeo e dever tatildeo fundamentais agrave moral moderna pelo fato de
serem remanescentes da eacutetica hebraico-cristatilde que jaacute natildeo existe mas dos ganhos
trariam danos agrave filosofia moral moderna (cf ANSCOMBE 2010 p 19)
213 Criacutetica ao utilitarismo
A criacutetica de Gertrude Anscombe ao utilitarismo aparece em sua apresentaccedilatildeo
do pensamento de Sidgwick O ponto de partida da filoacutesofa eacute a noccedilatildeo de intenccedilatildeo
utilizada por este autor Para Gertrude Anscombe o conceito intenccedilatildeo se refere agrave
possibilidade de prever as consequecircncias de uma accedilatildeo voluntaacuteria (cf ANSCOMBE
2010 p 31) A partir deste noccedilatildeo de intenccedilatildeo esboccedila-se a tese utilitarista do autor ldquoa
tese que natildeo ter sentido desejo algum por algo antevisto quer seja um fim ou um meio
para um fim eacute indiferente no que diz respeito agrave responsabilidade por esse algordquo
(ANSCOMBE 2010 p 31) A siacutentese da tese utilitarista ou consequencialista eacute a
compreensatildeo de que um indiviacuteduo pode ser responsabilizado pelo resultado de uma
accedilatildeo mesmo que esta determinada consequecircncia natildeo tenha sido desejada ou
intencionada previamente A autora ainda propotildee outra formulaccedilatildeo para tese de
Sidgwick ldquonatildeo ter a intenccedilatildeo de uma accedilatildeo eacute indiferente no que diz respeito agrave
responsabilidade por esse algordquo (ANSCOMBE 2010 p 31)8 Para melhor esclarecer a
autora propotildee um exemplo
Suponhamos que um homem seja responsaacutevel pelo sustento de uma crianccedila Por conseguinte deliberadamente deixar de lhe dar o sustento seria algo ruim a fazer de sua parte Seria ruim deixar de lhe dar o sustento porque ao deixar de fazecirc-lo estaria digamos
8 Cf tambeacutem ANSCOMBE 2001 p 387 ldquoit does not make any difference to a manrsquos responsibility for
something that he foresaw that he felt no desire for it either as an end or as a means to an endrdquo
30
compelindo outro a fazer algo (Pode-se conceder neste argumento que compelir esse outro a fazer algo digno de admiraccedilatildeo) [grifo da autora] Agora poreacutem ele tem de escolher entre fazer algo ignoacutebil e ir preso se for preso segue-se que deixaraacute de dar o sustento agrave crianccedila (ANSCOMBE 2010 p 387)9
A interpretaccedilatildeo que Gertrude Anscombe faz da tese de Sidgwick eacute a seguinte
do ponto de vista da responsabilidade natildeo existe diferenccedila entre deixar de dar o
sustento por deliberaccedilatildeo e deixar de daacute-lo como consequecircncia da prisatildeo mesmo que
este resultado natildeo tenha sido computado como consequecircncia possiacutevel antes de vir a
cometer o ato indesejaacutevel Ora se natildeo haacute distinccedilatildeo entre uma accedilatildeo e outra em virtude
de a consequecircncia ser a mesma o agente pode ateacute concluir que deixar-se ir preso
seja menos mau do que deixar de dar o sustento agrave crianccedila por escolha Com efeito
deixar de o sustento passa a ser consequecircncia de ter sido preso minorando assim
a responsabilidade pelo ato
Gertrude Anscombe conclui que este tipo de eacutetica impulsiona o agente a
antever as consequecircncias natildeo haacute uma reflexatildeo sobre a maldade desta ou daquela
accedilatildeo apenas um caacutelculo dos possiacuteveis resultados Acontece que considerando
apenas as consequecircncias possiacuteveis pode ser que consequecircncias inesperadas se
apresentem como resultado Entretanto diante de resultados que natildeo foram
antevistos o agente natildeo pode a rigor ser culpado por um resultado desastroso
desde que argumente que um determinado resultado natildeo foi antevisto
A criacutetica da autora aponta para a ldquocomodidaderdquo do consequencialismo o agente
soacute eacute responsaacutevel na medida em que o resultado de suas accedilotildees for adequadamente
previsto Ao contraacuterio ela defende que ldquouma pessoa eacute responsaacutevel pelas maacutes
consequecircncias de suas maacutes accedilotildees mas natildeo recebe o creacutedito pelas boas
consequecircncias destasrdquo (ANSCOMBE 2010 p 32) Deste modo esta moralidade natildeo
se apresenta como propositiva no sentido de sugerir o que deve ser feito mas se
preocupa primordialmente com o que homem natildeo deveria fazer com que
acontecesse
9ldquoLet us suppose that a man has a responsibility for the maintenance of some child Therefore
deliberately to withdraw support from it is a bad sort of thing for him to do It would be bad for him to withdraw its maintenance because he didnrsquot want to maintain it any longer and also bad for him to withdraw it because by doing so he would let us say compel someone else to do something (we may suppose for the sake of argument that compelling that person to do that thing is in ifself quite admirable) but now he has to choose between doing something disgraceful and going to prison if he goes to prison it will follow that he withdraws support from de childrdquo
31
A partir da ldquocrenccedilardquo na superficialidade da proposta consequencialista a autora
expotildee a ela seu questionamento Um aristoteacutelico por exemplo questiona-se sobre
se fazer tal coisa em tal circunstacircncia eacute ou natildeo injusta e a partir daiacute julga o que deve
ser feito ou natildeo Jaacute um consequencialista natildeo tem base para dizer que determinada
accedilatildeo natildeo seria permitida ldquoo maacuteximo que ele pode dizer eacute que um homem natildeo deve
fazer com que aconteccedila isto ou aquilordquo (ANSCOMBE 2010 p 33) O que permite ao um
consequencialista o que natildeo deveria acontecer Ao refletir sobre qual o resultado natildeo
desejaacutevel como consequecircncia de uma accedilatildeo este pensador tem diante de si um caso
limite o que exige sua atenccedilatildeo aos padrotildees sociais
O consequencialista de modo a estar de fato imaginando um caso-limite tem de assumir algum tipo de lei ou padratildeo segundo o qual esse eacute um caso-limite De onde obteacutem esse padratildeo Na praacutetica a resposta invariavelmente eacute dos padrotildees correntes em sua sociedade ou ciacuterculo (ANSCOMBE 2010 p34)
A fundamentaccedilatildeo dos casos limites partindo dos exemplares sociais permite
uma associaccedilatildeo entre consequencialismo e convencionalismo moral Com efeito se
o ponto de partida da fundamentaccedilatildeo moral satildeo os padrotildees correntes numa
determinada sociedade qual a chance de uma proposiccedilatildeo consequencialista
contradizer algum modelo convencional A autora ainda explica que aleacutem do
convencionalismo eacutetico a moral consequencialista cria a possibilidade de um
determinado agente consentindo maacutes accedilotildees
[] o ponto de considerar situaccedilotildees hipoteacuteticas por vezes bastante improvaacuteveis parece ser o de produzir em vocecirc ou em algueacutem a decisatildeo hipoteacutetica de fazer algo ruim Natildeo duvido que isso tenha o efeito de predispor as pessoas que jamais se veratildeo nas situaccedilotildees para as quais fazem as escolhas hipoteacuteticas a dar consentimento a maacutes accedilotildees similares ou a enaltecer e lisonjear quem as pratique desde que a sua malta10 a faccedila tambeacutem quando as terriacuteveis circunstacircncias imaginadas natildeo se datildeo (ANSCOMBE 2010 p 33)
O fato de natildeo conseguir prever a consequecircncia de uma determinada accedilatildeo
utilizando-se de hipoacuteteses sobre as consequecircncias o que natildeo eacute difiacutecil de acontecer
dadas as inuacutemeras possibilidades de resultados de seu agir incita o agente a dar
assentimento a uma maacute accedilatildeo uma vez que a anaacutelise se refere ao que natildeo deve ser
feito
10Melhor traduzir por expectadores pois o texto original diz crowd
32
A conclusatildeo das criacuteticas de Gertrude Anscombe sobre o consequencialismo eacute
de certo modo controversa pois talvez natildeo seja uma consequecircncia necessaacuteria que o
fato de analisar uma accedilatildeo que natildeo deve ser realizada predisponha o agente a fazecirc-
la Entretanto dizer que esta anaacutelise em nada influencia o agente eacute igualmente
controverso
214 A diacutevida filosoacutefica de MacIntyre ao pensamento de Gertrude Anscombe
A repercussatildeo do pensamento de Gertrude Anscombe no itineraacuterio filosoacutefico de
MacIntyre eacute bem relevante O desenvolvimento da criacutetica deste uacuteltimo ao projeto
moderno de fundamentaccedilatildeo da moralidade segue uma linha de pensamento que
encontra ressonacircncias com os argumentos de Filosofia Moral Moderna Contudo a
vinculaccedilatildeo de MacIntyre com o pensamento marxista e com as ciecircncias sociais
proporcionaram aprofundamento e amadurecimento ao seu pensamento conforme
afirma Jorge Garcia
A criacutetica de MacIntyre da filosofia moral moderna mesmo com todas as semelhanccedilas natildeo apenas eacute um simples recapitular de Anscombe Sua criacutetica eacute mais detalhada e profundamente influenciada por seus viacutenculos com o marxismo e sua leitura das ciecircncias sociais (Cf GARCIA 2003 p 95 )11
O ponto de convergecircncia entre a Gertrude Anscombe e MacIntyre reside pois
no questionamento e na rejeiccedilatildeo agrave moral moderna Conforme Ernst Tugendhat
(2007)12 satildeoantiiluministas eacuteticos os autores que assumem este posicionamento
Outra aproximaccedilatildeo entre os dois autores eacute o realce na distinccedilatildeo entre o modus
operandi da eacutetica antiga e moderna e a opccedilatildeo pela moral das virtudes Talbot Brewer
salienta que tanto Gertrude Anscombe quanto MacIntyre enfatizam ldquouma estranheza
fundamental aos lsquoouvidosrsquo modernos dos conceitos baacutesicos atraveacutes dos quais
Aristoacuteteles e outros antigos medievais cercaram sua investigaccedilatildeo sobre a virtude o a
felicidade humanardquo (BREWER 2009 p 2 )13 Em siacutentese eacute possiacutevel afirmar que o
11ldquoMacIntyres critique of modernist moral philosophy for all these similarities does not at all simply
recapitulate Anscombes His criticism is more detailed deeply informed by his ties to Marxism and his reading the social sciencesrdquo
12Sobre o antiiluminismo eacutetico conferir a deacutecima liccedilatildeo intitulada o antiiluminismo eacutetico Hegel e a escola de Ritter cf Aftervirtue Third edition Notre Dame Notre Dame Press 2007 p 197-224
13ldquoThe two texts that are most widely cited as the starting points and the inspiration for the movement are Elizabeth Anscombes Modern Moral Philosophy and Alasdair MacIntyres After Virtue Both Anscombe and MacIntyre emphasize the fundamental strangeness to modern ears of the basic
33
antiiluminismo eacutetico e a opccedilatildeo pelas virtudes satildeo elementos dos quais MacIntyre eacute
herdeiro de Gertrude Anscombe
O fato de ser devedor de um pensamento natildeo implica numa simples repeticcedilatildeo
Jaacute foi mencionado que a anaacutelise de MacIntyre eacute enriquecida por sua proximidade com
o marxismo e com as ciecircncias sociais O elemento antropoloacutegico eacute a segunda
distinccedilatildeo relevante entre os autores Segundo David Carr e Jan Steutel (cf 1999 p
162-163) Gertrude Anscombe acreditava ser possiacutevel tomar como ponto de partida
uma concepccedilatildeo de homem ao modo de Aristoacuteteles na forma de uma psicologia
filosoacutefica que permitisse estabelecer relaccedilatildeo entre atos virtudes e fim do homem Por
seu turno em Depois da Virtude MacIntyre procura evitar o que chama de biologia
metafiacutesica de Aristoacuteteles ldquoAristoacuteteles escreve como se os baacuterbaros e os gregos
tivessem natureza fixa e ao encaraacute-los assim ele nos traz de volta o caraacuteter natildeo
histoacuterico de sua compreensatildeo de natureza humanardquo (MACINTYRE 2001b p 270)
MacIntyre parece natildeo adotar esse modelo antropoloacutegico porque esta seria uma
forma a-histoacuterica e a-cultural de considerar o homem o que natildeo poderia ser
sustentado do ponto de vista das ciecircncias sociais e aleacutem disso destoaria da
perspectiva metodoloacutegica de Depois da Virtude Esse talvez seja o motivo pelo qual
Depois da Virtude careccedila de uma teoria dos atos humanos Este fato abre espaccedilo agrave
criacutetica de que MacIntyre daacute pouca importacircncia agrave relaccedilatildeo entre atos e virtudes O que
seria de certo modo fundamental agrave moral as virtudes Posteriormente o proacuteprio
MacIntyre refaz sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave biologia metafiacutesica de Aristoacuteteles
Em Depois da virtude tentei dar conta do lugar das virtudes entendidas como Aristoacuteteles as entendeu dentro de praacuteticas sociais das vidas de indiviacuteduos e das vidas das comunidades fazendo com que tal abordagem fosse independente do que chamei de ldquobiologia metafiacutesicardquo de Aristoacuteteles Embora haja de fato boas razotildees para repudiar elementos importantes da biologia de Aristoacuteteles creio agora que estava errado ao supor que fosse possiacutevel haver uma eacutetica independente da biologia mdash e estou grato agravequeles criacuteticos que me objetaram quanto a isso [] (MACINTYRE 1999 Preface X )14
concepts through which Aristotle and other Ancient Medieval thinkers framed their inquires into virtues and the human goodrdquo
14ldquoIn After Virtue I had attempted to give an account of the place of the virtues understood as Aristotle understood them within social practices the lives of individuals and the lives of communities while making that account independent of what I called Aristotlersquos ldquometaphysical biologyrdquo Although there is indeed good reason to repudiate important elements in Aristotlersquos biology I now judge that I was in error in sopposing an ethics independent of biology to be possible ndash and I am grateful to those critics who distintct [hellip]rdquo
34
Finalmente fazem-se necessaacuterias algumas consideraccedilotildees ao final deste
capiacutetulo A partir da siacutentese de Rosalind Hursthouse vecirc-se que a recolocaccedilatildeo Eacutetica
das Virtudes se impotildee dadas as questotildees morais que natildeo se encontram contempladas
pelas morais deontoloacutegicas ou utilitaristas a siacutentese de Gertrude Anscombe daacute iniacutecio
ao movimento de retorno agrave Eacutetica das Virtudes e estabelece relevante influecircncia na
ulterior criacutetica de MacIntyre agrave filosofia moral moderna como tambeacutem na assunccedilatildeo da
Moral das Virtudes o movimento denominado Virtue Ethics manteacutem vivo o debate
eacutetico na contemporaneidade e abriu a possibilidade de pensar a Moral das Virtudes
como mais uma via pensamento na filosofia moral de liacutengua inglesa e na filosofia moral
como um todo
A seguir deve-se apresentar como o pensamento de MacIntyre se insere na
tradiccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes Primeiramente em seus questionamentos agrave Filosofia
Moral Moderna e secundariamente como teoacuterico de uma Eacutetica das Virtudes agrave
contemporaneidade
35
3 A CRIacuteTICA DE MACINTYRE AO PROJETO MODERNO DE FUNDAMENTACcedilAtildeO
DA MORALIDADE
A apresentaccedilatildeo das teses modernas sobre a moralidade eacute uma das temaacuteticas
centrais do pensamento de Alasdair MacIntyre Ela se constitui como momento
preparatoacuterio ao desenvolvimento de sua teoria moral Com efeito MacIntyre crecirc que
a exposiccedilatildeo destas teses se faz necessaacuteria porque o fato de existirem na
modernidade diferentes fundamentos agrave moralidade comprovaria em sua opiniatildeo o
chamado desacordo moral Esse desacordo seria pois a heranccedila deixada pelos
modernos agrave contemporaneidade e o ponto de partida da tese central de MacIntyre
Este capiacutetulo tem como tarefa apresentar a interpretaccedilatildeo manintyreana das principais
teses modernas sobre a fundamentaccedilatildeo da moralidade e os principais episoacutedios da
histoacuteria social que representaram o ldquoterrenordquo desde onde estas teses brotaram
A referecircncia baacutesica para a realizaccedilatildeo do objetivo deste capiacutetulo eacute a quarta
seccedilatildeo de Depois da Virtude intitulada A cultura predecessora e o projeto iluminista de
justificar a moralidade Para uma melhor compreensatildeo do fio condutor da
argumentaccedilatildeo do autor faz-se necessaacuteria uma exposiccedilatildeo da alegoria inicial de Depois
da Virtude no cap I Com efeito eacute a partir da alegoria inicial de Depois da Virtude que
MacIntyre daacute prosseguimento agrave primeira tarefa de Depois da Virtude a apresentaccedilatildeo
dos fundamentos do discurso moral contemporacircneo e a fragmentaccedilatildeo desse mesmo
discurso
31 A ALEGORIA INICIAL DE DEPOIS DA VIRTUDE
A alegoria inicial de Depois da Virtude se apresenta com um bastante
apocaliacuteptico A exposiccedilatildeo desta alegoria seguiraacute a apresentaccedilatildeo de MacIntyre O
iniacutecio do texto daacute conta das consequecircncias de uma cataacutestrofe hipoteacutetica nas ciecircncias
naturais A esta cataacutestrofe a opiniatildeo puacuteblica culpa os cientistas e em consequecircncia
inuacutemeros laboratoacuterios satildeo incendiados cientistas satildeo linchados livros e instrumentos
satildeo destruiacutedos Com a tomada de poder por um movimento poliacutetico intitulado ldquoNenhum
saberrdquo o ensino das ciecircncias nas escolas e nas universidades eacute eliminado enquanto
o restante dos cientistas eacute eliminado Posteriormente contra este movimento aparece
uma reaccedilatildeo e pessoas esclarecidas tentam ressuscitar a ciecircncia mesmo tendo se
36
esquecido em grande parte o que ela tinha sido Soacute possuem fragmentos
conhecimento dos experimentos isolados do contexto teoacuterico que lhes dava
significado partes de teorias desvinculadas seja de outros fragmentos de teoria que
possuem seja de experimentos instrumentos cujo uso foi esquecido capiacutetulos de
livros pela metade paacuteginas soltas de artigos nem sempre legiacuteveis porque estatildeo
rasgadas e chamuscadas Como se natildeo bastasse todos esses fragmentos satildeo
reunidos num conjunto de praacuteticas que recebem os nomes restaurados de fiacutesica
quiacutemica e biologia Os adultos discutem entre si os meacuteritos das teorias da relatividade
da evoluccedilatildeo e do flogismo embora seus conhecimentos sobre cada uma delas sejam
apenas rudimentares As crianccedilas decoram partes que restaram da tabela perioacutedica e
recitam alguns teoremas de Euclides como se fossem encantamentos Ningueacutem ou
quase ningueacutem percebe que o que estatildeo fazendo natildeo eacute ciecircncia natural em nenhum
sentido adequado pois tudo o que dizem e fazem obedece a certas leis da
compatibilidade e da coerecircncia e os contextos que seriam necessaacuterios para dar
sentido agravequilo que eles estatildeo fazendo foram perdidos talvez irrecuperaacuteveis (cf
MACINTYRE 2001 p 14)
A descriccedilatildeo de abertura de Depois da Virtude exemplifica diversos momentos
da primeira parte da obra da obra de MacIntyre Seu posicionamento eacute o de que a
filosofia moral moderna e sua tentativa de fundamentaccedilatildeo da moral satildeo anaacutelogas a
historinha entatildeo apresentada Assim como na historinha a reconstruccedilatildeo da ciecircncia
natural se mostrou impossiacutevel de ser remontada dada a fragmentaccedilatildeo a que o
material disponiacutevel estava acometido a filosofia moral moderna e sua tentativa de
fundamentaccedilatildeo natildeo teve condiccedilatildeo de impor-se coerentemente porque alguns de seus
fundamentos satildeo vestiacutegios fragmentados de um esquema moral que embora tribute
agrave modernidade alguns de seus elementos jaacute natildeo existe e os elementos disponiacuteveis
natildeo possuem sentido se separados dos seus contextos de origem
Pretensatildeo ou natildeo este eacute o ponto de partida de Depois da Virtude e a reflexatildeo
que MacIntyre faz sobre o projeto moderno de fundamentaccedilatildeo da moralidade recebe
suas motivaccedilotildees filosoacuteficas a partir desta alegoria Assim como na alegoria o que
sobraram das teorias cientiacuteficas eram fragmentos desconexos assim tambeacutem a
linguagem moral contemporacircnea eacute o resultado fragmentado de vaacuterias tentativas de
fundamentaccedilatildeo do discurso moral Entretanto esta desordem natildeo pode ser percebida
37
por todos assim como na alegoria pois existe de certo modo uma aparecircncia de
linguagem ordenada
O autor vai entatildeo expor a desmistificaccedilatildeo desta aparente linguagem
ordenada atraveacutes da apresentaccedilatildeo dos motivos que conduziram o pensamento moral
moderno ao fracasso intitulado por MacIntyre como o fracasso do projeto iluminista
32 AS TESES MODERNAS SOBRE A FUNDAMENTACcedilAtildeO DA MORALIDADE
O homem moderno se orgulha de ldquocaminhar com os seus proacuteprios peacutesrdquo de
tomar suas proacuteprias decisotildees de escolher os seus caminhos sua religiatildeo seus
governantes Este orgulho se deve ao marco divisoacuterio entre a moral claacutessica e a
moralidade moderna Este marco divisoacuterio foi propriamente a passagem da moral
claacutessica influenciada especialmente na eacutetica teleoloacutegica de Aristoacuteteles para a moral
moderna marcada profundamente pela ideia de autonomia o sujeito dando leis a si
proacuteprio Henrique de Lima Vaz afirmar que a Filosofia Moral Moderna eacute profundamente
marcada ldquopela tentativa kantiana de instauraccedilatildeo de uma Eacutetica da razatildeo pura praacutetica
termo da evoluccedilatildeo anterior e iniacutecio de um novo ciclo na histoacuteria da Eacutetica ocidentalrdquo
(VAZ 1999 p 257)
Sabe-se que a moral moderna embora tendo como aacutepice a moral kantiana natildeo
eacute constituiacuteda apenas pela moral da razatildeo pura praacutetica Em sua exposiccedilatildeo de teses
modernas de fundamentaccedilatildeo da moral MacIntyre expotildee outras manifestaccedilotildees que
propotildeem outros fundamentos para a moral diferentes da razatildeo pura praacutetica
Neste capiacutetulo a partir do pensamento de MacIntyre seratildeo explicitadas as trecircs
grandes tentativas de fundamentaccedilatildeo da moral moderna nomeadamente a moral
kantiana a moral humeana e a moral kiekegaardiana Para MacIntyre a colocaccedilatildeo de
Kierkegaard natildeo significa que o filoacutesofo eacute um pensador moderno em sentido proacuteprio
Para MacIntyre o pensamento de Kierkegaard traduz ldquoa perspectiva distintivamente
moderna em forma amadurecidardquo (MACINTYRE 2007 p 39 )15 isto eacute o pensamento
de Kierkegaard serve como elemento tipoloacutegico de uma das tendecircncias modernas de
fundamentaccedilatildeo da moral
15ldquobeginning from that point at which for the first time the distinctively modern standpoint appears in
something like fully-fledged formrdquo
38
Ainda segundo MacIntyre as teses de fundamentaccedilatildeo da moral aludem agraves trecircs
grandes dimensotildees fundamentais do sujeito a razatildeo os sentimentos ou paixotildees e a
escolha Estas dimensotildees correspondem respectivamente agrave fundamentaccedilatildeo da moral
a partir da razatildeo a partir das paixotildees e a fundamentaccedilatildeo da moralidade fundada na
escolha O autor entende que as diferentes fontes de fundamentaccedilatildeo satildeo a evidecircncia
do desacordo e da fragmentaccedilatildeo que de certo modo conduziram o projeto iluminista
de fundamentaccedilatildeo da moralidade agrave falecircncia Este caminho eacute exatamente o caminho
proposto por MacIntyre em Depois da Virtude e serve como base de sua criacutetica agrave moral
contemporacircnea
David Hume considera que os juiacutezos morais particulares satildeo expressatildeo do
gosto e dos sentimentos isto eacute das paixotildees Em Resumo de Um Tratado da Natureza
Humana o autor afirma
A uacutenica finalidade da loacutegica eacute explicar os princiacutepios e operaccedilotildees de nossa faculdade de raciociacutenio e a natureza de nossas ideias a moral e a criacutetica dizem respeito aos nossos gostos e sentimentos e a poliacutetica considera os homens enquanto unidos na sociedade e dependentes uns dos outros (HUME 1995 p 40 )16
Para Hume os juiacutezos morais satildeo expressatildeo de utilidade para os fins que foram
postos pelas paixotildees isto eacute estes fins estatildeo a serviccedilo dos sentimentos Hume afirma
ldquoa accedilatildeo pode causar um juiacutezo ou pode ser obliquamente causada por um juiacutezo quando
este coincide com uma paixatildeordquo (HUME 2009 p 499) A declaraccedilatildeo de Hume enfatiza
a condiccedilatildeo que uma accedilatildeo possui em relaccedilatildeo agrave paixatildeo pois eacute na coincidecircncia com
uma paixatildeo que uma accedilatildeo eacute causada ou causadora de um juiacutezo As accedilotildees satildeo pois
realizadas em virtude das paixotildees
A natureza do homem segundo Kant natildeo eacute mais que sua capacidade de viver
conforme seus instintos Em seu texto Sobre a Pedagogia uma coletacircnea de liccedilotildees
proferidas na Universidade de Koumlnigsberg e reunidas por um de seus disciacutepulos Kant
afirma que a disciplina uma das partes da educaccedilatildeo converte a animalidade em
humanidade (cf KANT 2002) Ora natildeo eacute difiacutecil compreender o porquecirc de Kant
acreditar que as paixotildees interesses ou inclinaccedilotildees natildeo podem ser fundamento da
accedilatildeo moral Na Fundamentaccedilatildeo da Metafiacutesica dos Costumes ele assinala que uma
accedilatildeo moralmente boa natildeo pode conter nada que possa remeter agraves inclinaccedilotildees Haacute
16ldquoThe sole end of logic is to explain the principies and operation of our reasoning faculty and the nature
of our ideas morals and criticism regard our tastes and sentiments and politics consider men as united in society and dependent on each otherrdquo
39
vaacuterias maneiras de agir em relaccedilatildeo ao dever mas a accedilatildeo puramente moral eacute aquela
praticada apenas por dever sem interesse (cf KANT 1999) Isto significa que a accedilatildeo
puramente moral eacute aquela que se orienta exclusivamente pela razatildeo ou seja a
moralidade natildeo pode se apoiar nem nos desejos nem em algo que se apresente como
uma heteronomia por exemplo a religiatildeo
A descriccedilatildeo da tentativa de fundamentaccedilatildeo por parte de Kierkegaard seguiraacute a
indicaccedilatildeo que MacIntyre realiza em Depois da Virtude (cf MACINTYRE 2001b p 73)
A obra de Kierkegaard que serve de apoio agrave exposiccedilatildeo eacute Ou Ou Segundo MacIntyre
Kierkegaard apresenta dois modos de vida o esteacutetico e o eacutetico O primeiro tem como
paradigma o amante romacircntico que estaacute imerso na proacutepria paixatildeo e simboliza uma
face do eu que eacute capaz de se entregar agrave imediaticidade da experiecircncia presente (cf
MACINTYRE 2001b p 80) jaacute o estado eacutetico eacute simbolizado pelo modelo do casamento
e alude agrave situaccedilatildeo do compromisso e da obrigaccedilatildeo eternos na qual o presente estaacute
preso ao passado e ao futuro (cf MACINTYRE 2001b) Segundo Teofilo Urdanoz os
estados da existecircncia em Kierkegaard ou etapas no caminho de uma vida ldquosatildeo as
determinantes existenciais os modos de vida gerais que servem como esquema ou
princiacutepios antagocircnicos com os quais o indiviacuteduo concreto enfrenta na busca de uma
posse de si proacutepriordquo (URDANOZ 1975 vol V p 453)
Segundo MacIntyre esses modos de vida estatildeo fundamentados em conceitos
diferentes e ateacute mesmo rivais a escolha de um eacute a negaccedilatildeo do outro A questatildeo
fundamental na reflexatildeo que MacIntyre sugere a partir da leitura de Ou Ou eacute a de
que os princiacutepios que conduzem agrave adoccedilatildeo de algum dos modelos eacute totalmente
independente de motivos satildeo opccedilotildees feitas a partir de razatildeo nenhuma Esta opccedilatildeo
se refere apenas agrave escolha do que seja uma razatildeo para um determinado sujeito
Uma siacutentese das supracitadas teses pode ser realizado pela seguinte citaccedilatildeo
de MacIntyre
Assim como Hume procura fundamentar a moralidade nas paixotildees porque seus argumentos excluiacuteram a possibilidade de fundamentaacute-los nas paixotildees Kant fundamenta na razatildeo porque seus argumentos excluiacuteram a possibilidade de fundamentaacute-los nas paixotildees e Kierkegaard a fundamenta na escolha fundamental sem criteacuterios devido ao que acredita ser a natureza inapelaacutevel das ponderaccedilotildees que excluem tanto a razatildeo quanto as paixotildees (MACINTYRE 2001b p 95)
A siacutentese de MacIntyre de certo modo deixa clara a multiplicidade de apoios
para a sustentaccedilatildeo de discurso moral O pensamento moral moderno se mostra
40
marcado pela carecircncia de um ponto de apoio para a moralidade conforme conclui
MacIntyre A multiplicidade de pontos de apoio sinaliza a dificuldade em definir um
deles e o consequente desacordo Assim como na alegoria inicial de Depois da
Virtude em que aqueles que achavam que faziam ciecircncia apenas por repeticcedilatildeo dos
fragmentos de teoria e natildeo tinham ciecircncia de que natildeo estavam fazendo ciecircncia
alguma tambeacutem natildeo houve por parte dos modernos uma inconsciecircncia desse
desacordo
A ideia baacutesica de MacIntyre eacute a de que em relaccedilatildeo aos antigos e medievais
existe na modernidade uma perda da unidade fundamental no discurso moral Esta
perda da unidade eacute evidenciada pela multiplicidade de fundamentos Como jaacute natildeo
existe uma unidade do discurso moral tem-se na modernidade uma progressiva
passagem de uma Moral das Virtudes para uma moral que sobre valoriza a norma
uma deontologia A questatildeo que vai preocupar os filoacutesofos modernos no campo da
moralidade eacute o que fundamenta a norma E a pergunta em torno do fundamento da
norma tornar-se-aacute uma das questotildees mais relevantes da Eacutetica Moderna
33 O FRACASSO DO PROJETO ILUMINISTA
A questatildeo do fracasso do projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade
natildeo se deu exclusivamente em virtude da diversidade de opiniotildees sobre qual seria
afinal o fundamento primeiro da moralidade se nas paixotildees na razatildeo ou na escolha
A opiniatildeo de MacIntyre eacute que os modernos representados aqui por Hume Kant e
Kierkegaard foram herdeiros de um esquema especiacutefico e particular de crenccedilas
morais e foi este mesmo esquema que com uma incoerecircncia interna conduziu ao
fracasso do projeto filosoacutefico em comum desde o iniacutecio (cf MACINTYRE 2001b p 97)
Em consonacircncia com a tese do MacIntyre cabe explicitar em que consiste esta
incoerecircncia que conduziu ao fracasso do projeto iluminista de justificaccedilatildeo da
moralidade Essa eacute a tarefa desta segunda parte deste capiacutetulo
41
331 O passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana
O meacutetodo seguido por MacIntyre parte da anaacutelise das crenccedilas comuns dos
pensadores que contribuiacuteram para a construccedilatildeo do projeto iluminista de justificaccedilatildeo
da moralidade Ele exemplifica que ldquoo casamento e a famiacutelia satildeo no fundo tatildeo
incontroversos para o philosophe racionalista de Diderot quanto para o juiz Guilherme
de Kierkegaard o cumprimento de promessas e a justiccedila satildeo tatildeo inviolaacuteveis para
Hume quanto para Kantrdquo (MACINTYRE 2001b p 98) Ao final MacIntyre indaga sobre
de onde provecircm essas convicccedilotildees em comum mesmo vindas de pensadores que
defenderam teses distintas Duas caracteriacutesticas relevantes satildeo compartilhadas por
estes pensadores a saber o passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana
O segundo ponto de convergecircncia que eacute a crenccedila da existecircncia de uma
natureza humana universal seria ponto de apoio agrave construccedilatildeo de uma filosofia moral
A posiccedilatildeo comum eacute que as normas da moralidade se justificariam na natureza
humana isto eacute elas seriam explicadas e justificadas como desenvolvimento
necessaacuterio do que essa tal natureza humana aceitaria No exemplo de Hume e
Diderot o que haacute de peculiar na natureza humana satildeo as caracteriacutesticas das paixotildees
para Kant a caracteriacutestica importante da subjetividade eacute o caraacuteter universal e
categoacuterico de certas normas acessiacuteveis agrave razatildeo17 no caso de Kierkegaard embora
ela natildeo pretenda estritamente justificar a moralidade sua argumentaccedilatildeo segue a
mesma estrutura das anteriores enquanto Hume e Kant apelam para as
caracteriacutesticas das paixotildees e da razatildeo respectivamente Kierkegaard apela para a
escolha como caracteriacutestica fundamental da natureza humana MacIntyre finaliza
esclarecendo que ldquotodos esses escritores tecircm em comum o projeto de construir
argumentos vaacutelidos que passem das premissas relativas agrave natureza humana
conforme a entendem agraves conclusotildees sobre a autoridade das normas e dos preceitos
moraisrdquo (MACINTYRE 2001b p 99 )18
Haacute um questionamento que merece ser aqui considerado A argumentaccedilatildeo de
MacIntyre vinha sendo desenvolvida defendendo a tese de um desacordo no discurso
17A questatildeo sobre a noccedilatildeo de natureza humana em Kant natildeo eacute tatildeo simples de ser resolvida MacIntyre
acredita que em Kant a natureza humana se refere ao aspecto fisioloacutegico do homem e este aspecto por sua vez eacute distinto da racionalidade do sujeito Corrobora com a opiniatildeo de MacIntyre Otfried Houmlffe Segundo ele ldquode modo geral a razatildeo significa a faculdade de ultrapassar o acircmbito dos sentidos da natureza A ultrapassagem dos sentidos pelo conhecimento eacute o uso teoacuterico na accedilatildeo eacute o uso praacutetico da razatildeo Cf HOumlFFE 2005 p 188
18 O texto que a seguir acompanha passo a passo a argumentaccedilatildeo de MacIntyre
42
moral proveniente dos distintos pontos de apoio que cada pensador havia tomado A
pergunta eacute por que se falar em pontos de convergecircncia se o argumento principal do
autor se referia ao desacordo Para responder a questatildeo eacute necessaacuterio voltar a
alegoria inicial de Depois da Virtude Na alegria as pessoas se apropriavam de
pedaccedilos de teorias foacutermulas cientiacuteficas que no entanto natildeo possuiacuteam sentido algum
Em nada os ajuda uma vez que os fragmentos das teorias natildeo estavam inseridos em
seus contextos originais haviam perdido sua rede de significados No exemplo dos
exemplares filosoacuteficos apresentados por MacIntyre acontece a mesma coisa Eles
tecircm em comum a noccedilatildeo de natureza humana entretanto esta noccedilatildeo pertence a outro
esquema moral Desse modo MacIntyre conclui que a noccedilatildeo de natureza humana
sem sua rede de significados original natildeo pode ajudar na construccedilatildeo de um discurso
moral A questatildeo sobre a noccedilatildeo de natureza humana e sua relaccedilatildeo com as normas e
preceitos seraacute melhor desenvolvida a seguir
332 A incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a noccedilatildeo
de natureza humana na moral moderna
O cerne do processo que causou o fracasso do projeto iluminista estaacute ligado
segundo MacIntyre agrave incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a
noccedilatildeo de natureza humana A tarefa do pensador consiste agora em contar a histoacuteria
desses dois conceitos mostrar como eles satildeo incompatiacuteveis e estabelecer uma
relaccedilatildeo entre esta incompatibilidade e o fracasso
MacIntyre expotildee que existe uma forma geral do esquema moral que foi
ancestral dos conceitos em questatildeo Este esquema moral foi predominante na Idade
Meacutedia desde o seacuteculo XII e era composto de elementos da moral aristoteacutelica e de
caracteriacutesticas cristatildes da moral tomista A estrutura baacutesica deste esquema eacute a que
Aristoacuteteles apresentou na Eacutetica a Nicocircmacos O esquema aristoteacutelico distingue ldquoo
homem como ele eacuterdquo e o ldquohomem como poderia ser se realizasse sua natureza
essencialrdquo A proacutepria tarefa da eacutetica estaacute aiacute delimitada ela eacute o saber que habilita o
homem a compreender como se daacute a passagem de um estado para outro Potecircncia e
Ato essecircncia do homem e telos satildeo conceitos pressupostos para compreender este
esquema Os preceitos que recomendam tais virtudes e vetam determinados viacutecios
43
satildeo aqueles que proporcionam a passagem da verdadeira natureza para alcanccedilar o
verdadeiro fim
Existe pois uma co-relaccedilatildeo necessaacuteria entre ldquonatureza humana como eacuterdquo
preceitos e ldquonatureza humana como pode ser se realizar seu telosrdquo Cada um desses
trecircs elementos necessita dos outros dois isto eacute ldquoos nossos desejos e emoccedilotildees devem
ser organizados e educados pelo uso de tais preceitos e pelo cultivo de haacutebitos de
accedilatildeo que a eacutetica prescreve a razatildeo nos instrui quanto ao nosso verdadeiro fim e
quanto a como atingi-lordquo (MACINTYRE 2001b p100) Estas noccedilotildees natildeo podem pois
ser adequadamente compreendidas senatildeo segundo esta relaccedilatildeo de
interdependecircncia Separadas elas perdem sua inteligibilidade
O pensamento medieval assume esse esquema com o diferencial de
acrescentar que os preceitos da eacutetica aleacutem de mandados teleoloacutegicos satildeo tambeacutem
expressotildees de uma lei divinamente decretada MacIntyre endossa que ldquoeacute preciso
retificar e ampliar a tabela das virtudes e viacutecios acrescentando-se o conceito de
pecado ao conceito aristoteacutelico de erro A lei de Deus exige um novo tipo de temor e
respeitordquo (MACINTYRE 2001b p100) Este mundo natildeo eacute mais o lugar da efetivaccedilatildeo
do fim do homem como era a polis grega no sentido que Aristoacuteteles pensou Grande
parte dos filoacutesofos medievais concordava que esse esquema tanto pertencia agrave
revelaccedilatildeo quanto podia ser sustentada racionalmente Com o advento do
protestantismo e do catolicismo jansenista este consenso eacute paulatinamente desfeito
dando lugar a um novo conceito de razatildeo
3321 O passado cristatildeo e o novo conceito de razatildeo
Uma ideia fundamental ao novo conceito de Razatildeo forjado no seio do
protestantismo e do catolicismo jansenista consiste na convicccedilatildeo de que a razatildeo natildeo
eacute capaz de compreender qual seja o verdadeiro fim do homem
O finito se aniquila na presenccedila do infinito e torna-se um puro nada Assim nosso espiacuterito em face de Deus assim nossa justiccedila em face da justiccedila divina Natildeo haacute uma desproporccedilatildeo tatildeo grande entre a nossa justiccedila e a de Deus como entre a unidade e o infinito (apud BRANDAtildeO 1961)
Essa atitude consiste num certo ceticismo em relaccedilatildeo agrave capacidade de a razatildeo
alcanccedilar a certeza de que a constituiccedilatildeo do homem comporta alguma finalidade
44
MacIntyre afirma que o pensamento moderno de tradiccedilatildeo protestante lecirc as escrituras
entendendo que o episoacutedio da queda do homem significou a marca de debilidade da
razatildeo humana sendo ela destituiacuteda do poder de compreensatildeo do fim do homem A
criacutetica dos empiristas ratifica essa compreensatildeo Atraveacutes do empirismo moderno
tambeacutem se pode vislumbrar o ponto de vista de que nos limites da natureza acessiacutevel
ao homem natildeo se pode garantir o conhecimento de nenhum telos isto eacute aquilo que
a razatildeo estabelece como telos eacute fruto apenas de um costume ou haacutebito um ato
psicoloacutegico sem fundamento na experiecircncia Conforme Hume
O costume eacute pois o grande guia da vida humana Eacute o uacutenico princiacutepio que torna uacutetil nossa experiecircncia e nos faz esperar no futuro uma seacuterie de eventos semelhantes agravequeles que apareceram no passado Sem a influecircncia do costume ignorariacuteamos completamente toda questatildeo de fato que estaacute fora do alcance dos dados imediatos da memoacuteria e dos sentidos Nunca poderiacuteamos saber como ajustar os meios em funccedilatildeo dos fins nem como empregar nossas faculdades naturais para a produccedilatildeo de um efeito (HUME 1999 seccedilatildeo V p 63)
A partir da afirmaccedilatildeo de Hume pode-se afirmar que natildeo estaacute no domiacutenio da
razatildeo humana o conhecimento de nenhum telos Como desenrolar das ideias de
Hume compreende-se que uma possiacutevel idealizaccedilatildeo de um fim para a vida humana
seria apenas um estabelecimento habitual daquilo que se crecirc como fim O resultado
destas ideias eacute conforme MacIntyre uma rejeiccedilatildeo a qualquer noccedilatildeo teleoloacutegica da
natureza humana e a qualquer ideia do homem como ser que possui uma essecircncia
que defina seu verdadeiro fim ldquosegundo essas novas teologias protestantes e a
catoacutelico jansenista a razatildeo natildeo fornece nenhuma compreensatildeo genuiacutena do verdadeiro
fim do homemrdquo (MACINTYRE 2001b p 101) Assim sendo o ambiente social e cultural
dos modernos jaacute natildeo comporta a noccedilatildeo de Telos no plano moral
Mais uma vez mostra-se aqui a fragmentaccedilatildeo dos elementos fundamentais do
discurso moral anterior a modernidade Os pensadores em questatildeo conforme foi
apresentado assumiram a noccedilatildeo de natureza humana prescindindo poreacutem da
noccedilatildeo de Telos Eacute neste sentido que MacIntyre entende a fragmentaccedilatildeo que
provocaraacute o ulterior desacordo moral
3322 A ciecircncia e a filosofia do seacuteculo XVII
ldquoCiecircncia e poder do homem coincidem uma vez que sendo a causa ignorada
frustra-se o efeitordquo (BACON 1999 p 33 sect III) As palavras de Bacon ao iniciar o Novum
45
Organum traduzem bem o abandono que a modernidade procedeu em relaccedilatildeo agrave
terminologia da escolaacutestica e do aristotelismo em relaccedilatildeo agrave ciecircncia O homem que
natildeo conhece a causa natildeo pode ter pretensotildees de determinar efeitos O pensamento
sozinho natildeo eacute capaz de determinar os fins ou o telos mesmo partindo da observaccedilatildeo
das coisas A ciecircncia experimental fundamentada em Bacon afasta-se do aparato
conceitual da metafiacutesica claacutessica natildeo se fala mais sobre essecircncias e
consequentemente sobre efeitos Efeito eacute aqui compreendido como resultado das
possibilidades contidas na essecircncia de uma coisa Neste sentido determinar um efeito
eacute anaacutelogo a determinar um fim Conforme MacIntyre
A razatildeo natildeo compreende essecircncias ou transiccedilotildees da potecircncia ao ato esses conceitos pertencem ao desprezado esquema conceitual da escolaacutestica Aleacutem disso a ciecircncia anti-aristoteacutelica impotildee limites riacutegidos aos poderes da razatildeo A razatildeo eacute calculadora sabe avaliar verdades de fato e relaccedilotildees matemaacuteticas poreacutem nada mais No campo da praacutetica portanto soacute sabe falar de meios Precisa calar-se no tocante aos fins (MACINTYRE 2001b p 102)
MacIntyre completa afirmando que em relaccedilatildeo agraves teologias catoacutelica e
protestante em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave proacutepria Filosofia haacute um progressivo abandono
da crenccedila de que a razatildeo eacute capaz de determinar alguma finalidade
Kant por exemplo natildeo estabelece finalidade para o homem porque para ele
qualquer finalidade diferente do homem em si mesmo representa uma heteronomia
E por conseguinte natildeo serve como fundamento de um discurso aprioriacutestico pois a
felicidade eacute extriacutenseca e algo que traz consigo elementos sensiacuteveis Nos esquemas
claacutessicos de fundamentaccedilatildeo da moralidade a felicidade eacute o fim a que naturalmente
todo homem tende e eacute a partir dela que seratildeo definidos os caminhos pelos quais o
homem deve percorrer para alcanccedilaacute-la Assim sendo a perspectiva kantiana
representa o que tradicionalmente se define como uma moral deontoloacutegica porque
na impossibilidade de um discurso que inclua a felicidade soacute se pode falar em dever
3323 A incoerecircncia entre o posicionamento pela lsquofalecircnciarsquo da razatildeo e a decisatildeo
pela noccedilatildeo de natureza humana
MacIntyre tem consciecircncia de que haacute uma profunda incoerecircncia nas tentativas
de os modernos constituiacuterem uma filosofia moral fundamentados na noccedilatildeo de
natureza humana Para ele essa noccedilatildeo soacute podia ser adequadamente compreendida
46
e utilizada se inserida no esquema de uma moralidade teleoloacutegica Qual a utilidade
pois da noccedilatildeo de natureza humana para uma fundamentaccedilatildeo da moral se os
modernos haviam rejeitado agrave razatildeo a possibilidade de definir o fim do homem E mais
ainda de que serve a noccedilatildeo de natureza humana se a razatildeo natildeo consegue
compreender as possibilidades desta natureza MacIntyre vecirc neste posicionamento
uma contradiccedilatildeo Esta contradiccedilatildeo levou MacIntyre a defender que o projeto moderno
de justificaccedilatildeo da moralidade jaacute nasceu fracassado pois se constituiu a partir de um
esquema ldquoestilhaccediladordquo
Herdaram fragmentos incoerentes de um esquema de pensamentos e accedilotildees que um dia foi coerente e jaacute que natildeo reconheceram sua proacutepria situaccedilatildeo histoacuterica e cultural natildeo podiam reconhecer o caraacuteter impossiacutevel e quixotesco da tarefa que se auto-atribuiacuteram (MACINTYRE 2001b p 104 )19
A noccedilatildeo de natureza humana possuiacutea adequado na Eacutetica Teleoloacutegica Nela os
preceitos morais se ligam ao esquema teleoloacutegico geral de modo que no conjunto do
esquema eles satildeo necessaacuterios poreacutem secundaacuterios Jaacute num esquema de
justificaccedilatildeo que natildeo reconhece aos preceitos a funccedilatildeo de aprimoramento do homem
a fim de que ele passe de uma natureza humana dada para uma natureza humana
vislumbrada como telos isto eacute o homem como pode ser se realizar sua finalidade
soacute pode sobrevalorizar os preceitos seraacute pois uma moral deontoloacutegica No primeiro
tipo de moralidade os preceitos valem como condutores do homem agrave vida feliz Na
uacuteltima os preceitos valem em si mesmos traduzem as accedilotildees conforme e por dever
MacIntyre acrescenta agrave sua consideraccedilatildeo sobre o fracasso do projeto moderno
um argumento referente agrave funcionalidade dos conceitos particularmente ao conceito
de homem Para ele os argumentos morais da tradiccedilatildeo aristoteacutelica claacutessica e
medieval envolvem pelo menos um conceito funcional central que eacute o de homem
enquanto ser que tem uma natureza essencial e uma finalidade ou funccedilatildeo essencial
Assim sendo quando se fala em homem natildeo se pode perder as referecircncias de que o
conceito natildeo estaacute separado das funccedilotildees que o homem realiza como membro de uma
famiacutelia como cidadatildeo soldado filoacutesofo servo de Deus A funccedilatildeo se relaciona com o
fim para o qual algo eacute feito MacIntyre conclui que homem se tornaraacute apenas um
conceito loacutegico a partir do momento em que passa a ser compreendido como
19Esta passagem remete claramente agrave metaacutefora inicial de Depois da Virtude no capiacutetulo Uma ideia
inquietante
47
indiviacuteduo antes e fora de todos os papeacuteis o que impossibilita a retirada de conclusotildees
valorativas e normativas a partir de premissas factuais Para o autor isto se deve agrave
falta de conexatildeo entre os preceitos morais e a noccedilatildeo de natureza humana aprimorada
O ponto de partida de Aristoacuteteles eacute relacionar homem e viver bem de modo que o
segundo estaacute implicado na razatildeo do primeiro
Na modernidade a tese de que natildeo satildeo vaacutelidos os argumentos que partem de
juiacutezos de fato para juiacutezos de valor isto eacute de um lsquoeacutersquo para um lsquodeversquo refere-se agrave perda
da compreensatildeo primordial que o conceito de homem tinha antes de ser arrancado
de sua rede de significados conforme exposto no paraacutegrafo anterior MacIntyre
conclui que esse posicionamento ganha forccedila em virtude da compreensatildeo insuficiente
e parcial que os modernos tinham do conceito de homem Ele denominou como ldquofalta
de consciecircncia histoacutericardquo que eacute comum desde a modernidade ateacute os tempos atuais
3324 Sobre a mudanccedila do significado dos juiacutezos morais
Dizer que algo eacute bom na Tradiccedilatildeo Aristoteacutelica significa dizer que este algo
realiza todas as funccedilotildees para as quais se destina ou seja realiza perfeitamente sua
finalidade ou funccedilatildeo especiacutefica Para MacIntyre dizer que algo eacute bom natildeo eacute apenas
expressatildeo de um juiacutezo de valor simplesmente emotivista mas significa a partir da
compreensatildeo de funccedilatildeo e de realizaccedilatildeo desta um juiacutezo de fato ldquoDizer que algo eacute
bom portanto tambeacutem eacute fazer uma declaraccedilatildeo factual Dizer que determinado ato eacute
justo ou certo eacute dizer que ele eacute o que um homem bom faria em tal situaccedilatildeo por
conseguinte esse tipo de declaraccedilatildeo tambeacutem eacute factualrdquo (MACINTYRE 2001b p 111)
Assim a partir desta tradiccedilatildeo pode-se falar em juiacutezos morais verdadeiros ou falsos
A questatildeo dos juiacutezos de valor a partir de juiacutezos de fato e sua impossibilidade
de se constituir deste modo tornou-se implausiacutevel quando na modernidade
lsquodesaparece da moralidade a ideia de funccedilotildees ou finalidades humanas essenciaisrsquo
Consequentemente abre-se um espaccedilo para a pertinecircncia das teses em torno da
invalidade de argumentos morais que partem de um lsquoeacutersquo para um lsquodeversquo Aleacutem disso
acrescenta Macintyre a laicizaccedilatildeo da moralidade operada pelo iluminismo pocircs em
questatildeo a veracidade dos juiacutezos morais como expressotildees da voluntas divinitatis
Mesmo em Kant que pensa os juiacutezos morais como expressatildeo de uma lei universal
48
natildeo haacute possibilidade de questionar os juiacutezos em termos de verdade ou falsidade eles
satildeo categoacutericos
As teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade segundo MacIntyre
proporcionaram um desacordo moral
Esta desordem proveacutem do proacuteprio poder cultural predominante de um jargatildeo no qual os fragmentos conceituais incompatiacuteveis de vaacuterias partes do nosso passado satildeo aplicados juntos em debates puacuteblicos e privados que satildeo notaacuteveis pelo caraacuteter insoluacutevel das controveacutersias neles envolvidas e pela clara arbitrariedade de cada participante do debate (MACINTYRE 2001b p 429)
Assim as reflexotildees operadas pelo autor conduzem a algumas proposiccedilotildees A
primeira delas eacute que o desacordo dos modernos sobre o lsquoalicercersquo desde onde
fundamentar a moral proporcionou um desacordo contemporacircneo e uma
fragmentaccedilatildeo do discurso sobre as accedilotildees Esta situaccedilatildeo original foi proporcionada por
um lsquoesquecimento histoacutericorsquo e pela histoacuteria social que formaram o ambiente filosoacutefico
de onde brotaram as principais teses de justificaccedilatildeo da moralidade O fracasso do
projeto deveu-se em grande parte a incompatibilidade entre a noccedilatildeo de natureza
humana e a de preceitos Acrescente-se a isto a nova compreensatildeo de racionalidade
e a perda do sentido de funcionalidade dos conceitos
Cumpre agora desenvolver o empreendimento de apresentar a teoria
macintyreana da moral O intuito de MacIntyre eacute oferecer atraveacutes de sua teoria um
pensamento eacutetico que devolva a inteligibilidade ao discurso moral a partir do conceito
de virtude enriquecido pelas noccedilotildees de Praacuteticas Unidade narrativa de uma vida
humana individual e o conceito de tradiccedilatildeo
49
4 O PROJETO DE DEPOIS DA VIRTUDE E A TEORIA MORAL DE MACINTYRE
A exposiccedilatildeo dos elementos fundamentos que orientam o estabelecimento da
Eacutetica das Virtudes mostrou-se necessaacuteria agrave compreensatildeo do cenaacuterio que compotildee a
Filosofia Moral Contemporacircnea Aleacutem disso pode-se ver a orientaccedilatildeo filosoacutefica que
marcou o pensamento de MacIntyre isto eacute os limites dos fundamentos que forjaram
a moral contemporacircnea e o modo como a Eacutetica das Virtudes se apresenta como uma
alternativa viaacutevel de inteligibilidade das accedilotildees
A obra Depois da Virtude foi publicada em 1981 e passou a fazer parte da
terceira via da filosofia moral de liacutengua inglesa Autores como Gertrude Anscombe
conforme apresentado no Cap I deste trabalho proporcionaram ao pensamento
contemporacircneo um renascimento ou recolocaccedilatildeo do pensamento moral de
Aristoacuteteles A proposta da obra de MacIntyre se alinha ao movimento de afirmaccedilatildeo do
pensamento aristoteacutelico como uma opccedilatildeo viaacutevel agrave moralidade contemporacircnea
A criacutetica de MacIntyre agraves teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade e
o modo como o pensamento contemporacircneo eacute herdeiro da incoerecircncia e do
lsquoesquecimentorsquo deste momento da filosofia moral se constituiu como preparaccedilatildeo agrave
apresentaccedilatildeo de sua proposta moral agrave filosofia moral contemporacircnea Aleacutem da ampla
criacutetica aos males percebidos da modernidade MacIntyre apresenta sugestotildees que
aleacutem de reforccedilarem a reabilitaccedilatildeo de uma Moral das Virtudes mostram como alguns
dos males podem ser corrigidos Esses dois elementos se constituem pois na tarefa
desta seccedilatildeo do trabalho
41 O ANTES DE DEPOIS DA VIRTUDE
Antes da publicaccedilatildeo de Depois da Virtude jaacute eacute possiacutevel encontrar em
MacIntyre sinais dos fundamentos que hatildeo de orientar seus principais
posicionamentos O texto Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica de 1966 apresenta sinais
do movimento de criacutetica agrave Filosofia Moral Moderna Naturalmente a partir do ano de
publicaccedilatildeo desta obra vecirc-se que ela eacute imediatamente posterior ao Modern Moral
Philosophy de Gertrude de 1958 cujas teses fundamentais jaacute foram expostas no
primeiro capiacutetulo deste trabalho
50
Algumas das teses presentes em Depois da Virtude jaacute encontram sua forma
embrionaacuteria em Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica a saber o anseio de refutar a tese
de que natildeo se podem retirar proposiccedilotildees normativas de proposiccedilotildees factuais isto eacute
o dever ser do ser uma desarticulaccedilatildeo no discurso moral a crenccedila de que os
conceitos morais natildeo deveriam ser formulados na crenccedila de sua intemporalidade
desarticulados das sociedades que os proporcionaram e o potencial lsquodestrutivorsquo do
emotivismo
411 Vida social e conceitos morais
O primeiro capiacutetulo intitulado A importacircncia filosoacutefica da histoacuteria da eacutetica
chama a atenccedilatildeo para o costume recorrente de dar uma importacircncia secundaacuteria agrave
histoacuteria da eacutetica Esta pouca importacircncia ao tema decorre de uma crenccedila comum de
que o aparato conceitual da eacutetica pode ser compreendido prescindindo de sua
histoacuteria Contudo agrave medida que a vida social muda mudam tambeacutem os conceitos Os
conceitos morais segundo MacIntyre ganham sua inteligibilidade quando as regras
que governam o seu uso satildeo apreendidas Sua apreensatildeo se daacute a partir das distintas
formas de vida social e estas proporcionam os diferentes papeis para que sejam
representados por estes conceitos
Os conceitos morais na realidade mudam agrave medida que muda a vida social Deliberadamente natildeo digo lsquoporque muda a vida socialrsquo jaacute que isto poderia sugerir que a vida social eacute uma coisa e a moralidade eacute outra e que existe meramente uma relaccedilatildeo de causa externa e contingente entre elas Evidentemente que isto eacute falso Os conceitos morais satildeo encarnados em (e satildeo parcialmente constituiacutedos de) nas
formas de vida social (MACINTYRE 1988 p 11)20
MacIntyre percebe que a partir dos conceitos morais eacute possiacutevel compreender
as diferentes manifestaccedilotildees da vida social Seu entendimento eacute o de que os conceitos
morais estatildeo situados natildeo satildeo atemporais Vida social e conceitos morais natildeo podem
ser pensados separadamente John Horton e Susan Mendus em seu artigo Alasdair
MacIntyre After Virtue and After acrescentam que
20ldquoIn fact of course moral concepts change as social life changes I deliberately do not write ldquobecause
social life changesrdquo for this might suggest that social life is one thing morality another and that there is merely an external contingent causal relationship between them This is obviously false Moral concepts are embodied in and are partially constitutive of forms of social liferdquo Cf tambeacutem MACINTYRE 2005 p 01
51
entre as grandes contribuiccedilotildees de Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica MacIntyre rejeitou explicitamente a crenccedila comum nos ciacuterculos filosoacuteficos da eacutepoca que os conceitos morais seriam uma intemporal limitada imutaacutevel determinada espeacutecie de conceitos que poderiam ser analisados e compreendidos aleacutem da sua histoacuteria (HORTON MENDUS 1994 p 2)21
Os conceitos morais soacute seratildeo adequadamente compreendidos se forem
estudados historicamente e contextualmente uma vez que satildeo incorporados como
partes constitutivas da vida social A importacircncia da histoacuteria e do contexto social para
a filosofia moral seraacute uma temaacutetica recorrente em toda a obra de MacIntyre
412 Fundamentaccedilatildeo das proposiccedilotildees normativas
O texto de Gertrude Anscombe jaacute traz uma referecircncia agrave criacutetica de Hume que
aponta a problemaacutetica de se retirarem proposiccedilotildees normativas do tipo deve a partir
de proposiccedilotildees factuais do tipo eacute ou seja a ideia eacute que o deve ser natildeo pode estar
fundamentado no ser Os autores desta tese natildeo vecircem como se construir uma eacutetica
de uma ontologia
As proposiccedilotildees deste tipo refletem em torno do significado das proposiccedilotildees
morais Na filosofia anglosaxocircnica a tentativa de formular proposiccedilotildees deontoloacutegicas
de proposiccedilotildees factuais ficou intitulada como falaacutecia naturalista MacIntyre aponta que
esta qualificaccedilatildeo foi dada pelos escritos de George Moore (cf MACINTYRE 2001b p
243) Em seu Principia Ethica George Moore explica o sentido do que ele chama de
falaacutecia naturalista Esta se refere agrave tentativa de identificar o bem ou bom como se
fosse o nome de uma de uma coisa natural O problema estaacute no fato de que quem
afirma que bom eacute uma propriedade simples e natildeo analisaacutevel tem diante de si o
incocircmodo de encontrar expressotildees que aplicam o termo bom sob acepccedilotildees muito
distintas como por exemplo este eacute um bom amigo ou este eacute um bom reloacutegio Com
efeito apenas o predicado bom da primeira sentenccedila eacute o que traz algum significado
moral
A questatildeo em torno do bom se relaciona agrave necessidade de compreender o
modo como o bem e as accedilotildees se relacionam Encontrar a conexatildeo entre um e outro
21ldquoMacIntyre explicity rejected the belief common in philosophical circles at the time that lsquomoral
concepts were timeless limited unchanging determinate species of concept (that) can be examined and understood apart from their historyrdquo
52
seria uma abertura para responder agraves duas perguntas dos Principia Ethica a saber
que tipo de coisas deve existir em virtude de si mesmas Que tipo de accedilotildees devemos
realizar (cf MOORE 2005 p 17) Isto de certo modo justificaria a relaccedilatildeo entre bem
e dever Mas como justificar esta relaccedilatildeo diante do caraacuteter enigmaacutetico da noccedilatildeo de
bem MacIntyre citando George Moore questiona
O bom entatildeo eacute um nome de uma propriedade simples e natildeo analisaacutevel Haacute pelo menos duas objeccedilotildees decisivas contra a doutrina que responde afirmativamente A primeira eacute que soacute podemos empregar inteligivelmente o nome de uma propriedade simples quando conhecemos um modelo exemplar dele por referecircncia ao qual podemos dar-nos conta se estaacute presente ou ausente em outros casos (MACINTYRE 2005 p 161 )22
O caraacuteter enigmaacutetico da noccedilatildeo bem assinalado por George Moore o faz propor
que para aplicaccedilatildeo da noccedilatildeo de bem ou o que eacute intrinsecamente bom o agente
simplesmente o reconhece O resumo da questatildeo eacute que natildeo eacute possiacutevel se ter o bem
como uma propriedade simples aplicaacutevel e que sirva de criteacuterio para verificar sua
presenccedila ou ausecircncia e em que medida esta noccedilatildeo foi aplicada Assim quando o
indiviacuteduo agente ele natildeo se faz uma relaccedilatildeo direta entre bem e dever simplesmente
age segundo seus proacuteprios sentimentos Esta afirmaccedilatildeo abre espaccedilo ao emotivismo
que se torna objeto de criacutetica em Depois da Virtude
413 O emotivismo
O MacIntyre de Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica ainda natildeo faz associaccedilatildeo entre
o emotivismo e o desacordo moral Segundo ele o emotivismo teria seu germe nas
reaccedilotildees contra o pensamento de George Moore Ora se natildeo eacute possiacutevel definir o bem
como uma propriedade simples legiacutetima as accedilotildees satildeo entatildeo expressotildees dos
proacuteprios sentimentos dos agentes Contudo aqui aparece um problema do qual o
proacuteprio George Moore vai ser o primeiro a apontar pois ldquoos juiacutezos morais natildeo podem
ser simples informaccedilotildees sobre os nossos sentimentos porque neste caso dois
homens que expressam juiacutezos aparentemente contraditoacuterios sobre uma questatildeo
moral natildeo estariam de fato em desacordordquo (MACINTYRE 1988 p247)
22ldquoIs good then the name of a simple unanalyzable property To the doctrine that it is there are at
least two conclusive objections The first is that we can only use the name of a simple property by reference to which we are acquainted with some standard example of the property by reference to which we are to recognize whether it is present or absent in other casesrdquo
53
Entre os representantes do emotivismo encontra-se Charles Leslie Stevenson
Sua obra O Significado Emotivo dos Termos Eacuteticos defende a ideia de que a funccedilatildeo
primaacuteria das expressotildees morais eacute dar uma nova direccedilatildeo agraves atitudes dos outros com o
objetivo de provocar a adesatildeo o que seria segundo Stevenson uma funccedilatildeo dinacircmica
dessas expressotildees As expressotildees morais possuem esta funccedilatildeo dinacircmica porque
satildeo emotivas O seu significado corresponde agrave tendecircncia desta palavra construiacuteda
atraveacutes da histoacuteria de seu modo de uso a produzir respostas afetivas nas pessoas (cf
MACINTYRE 1988 p 248)
Em relaccedilatildeo ao significado dos termos morais Charles Stevenson propotildee dois
modelos nos quais ambos enfatizam o caraacuteter emotivo desses termos No primeiro
modelo o autor defende que proposiccedilotildees do tipo isto eacute bom satildeo equivalentes a Eu
gosto disto entatildeo faz o mesmo Jaacute o segundo modelo se ocupa de expressotildees que
encarnam o que Stevenson denomina de expressotildees persuasivas que possuem um
significado descritivo e associam a este um significado emotivo Assim sendo duas
pessoas podem associar agrave noccedilatildeo de Justiccedila diferentes significados descritivos em
virtude do elemento emotivo presente na experiecircncia individual com esta palavra
Alguns desdobramentos da tese de Charles Stevenson podem ser expressos
aqui o primeiro eacute que termos valorativos natildeo podem receber descriccedilatildeo completa pela
multiplicidade de significados Assim os fatos se apresentam como separados dos
valores em seguida o caraacuteter emotivo das expressotildees morais impossibilita de
construir uma teoria na qual os diversos agentes se sintam implicados porque
quaisquer proposiccedilotildees satildeo vaacutelidas Neste sentido conclui MacIntyre a Filosofia nos
assuntos ligados agrave moral seria neutra como tambeacutem a proacutepria teoria de Stevenson
uma vez que se podem utilizar palavras emotivas para lsquoabenccediloarrsquo quaisquer accedilotildees (cf
MACINTYRE 1988 p 248)
Aqui se encontra a razatildeo do desacordo valorativo uma vez que ldquonatildeo haacute limite
para as possibilidades de desacordo e conforme delineado acima nem
procedimentos que possam resolvecirc-losrdquo (MACINTYRE 1988 p 249) As razotildees que se
podem mencionar para fundamentar um juiacutezo moral natildeo possuem nenhuma relaccedilatildeo
loacutegica com a conclusatildeo que se pode derivar dela Os juiacutezos satildeo por assim dizer
apenas apoios psicoloacutegicos No discurso moral os termos lsquoporquersquo e lsquoportantorsquo perdem
sua conveniecircncia
54
Embora MacIntyre jaacute na Pequena Historia da Eacutetica apresente argumentos
contra o emotivismo interessa apresentar aqui como o emotivismo quase quinze
anos antes de Depois da Virtude jaacute se constitui numa das preocupaccedilotildees mais
relevantes do autor
Nas obras anteriores a Depois da Virtude se apresentava um certo ceticismo
sobre alguns aspectos do pensamento moral moderno entretanto eacute soacute com Depois
da Virtude que MacIntyre revela um profundo desencantamento com a filosofia moral
moderna Este desencantamento eacute tatildeo marcante que chega ateacute a obscurecer a
proposta moral de MacIntyre e objetivo fundamental da obra que eacute a proposiccedilatildeo da
Eacutetica das Virtudes via pensamento Aristoteacutelico a fim de resgatar a inteligibilidade do
discurso moral ultrapassando assim uma moralidade emotivista
42 A OBRA DEPOIS DA VIRTUDE
A apresentaccedilatildeo da fragmentaccedilatildeo do discurso moral contemporacircneo com a
falecircncia do projeto moderno de sua justificaccedilatildeo e a tentativa de restauraccedilatildeo da
racionalidade do discurso moral constituem as duas tarefas de Depois da Virtude Em
relaccedilatildeo ao projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade MacIntyre defende que o
seu fracasso se deu em virtude de as tentativas de fundamentaccedilatildeo da moralidade
partirem de uma concepccedilatildeo de racionalidade independente da histoacuteria e contexto
social Aleacutem disso todas as teses apesar de tomarem por base uma certa noccedilatildeo de
natureza humana natildeo a articularam no esquema moral da qual esta noccedilatildeo fazia parte
A desordem do discurso moral que o mundo contemporacircneo experimenta eacute a
consequecircncia natildeo soacute da falecircncia do projeto moderno mas tambeacutem dos proacuteprios
caminhos que a modernidade trilhou Um aspecto problemaacutetico de Depois da Virtude
e que eacute objeto de criacuteticas das mais contundentes eacute que a teoria moral de MacIntyre
natildeo se apresenta com o mesmo vigor de sua criacutetica agrave modernidade O diagnoacutestico eacute
bom mas o remeacutedio natildeo parece tatildeo eficaz
A afirmaccedilatildeo proferida ilustra bem a grande dificuldade que o proacuteprio
pensamento contemporacircneo enfrenta Em geral os pensadores contemporacircneos
tomam a Tradiccedilatildeo com bastante propriedade isto eacute fazem um bom diagnoacutestico dos
principais problemas da Tradiccedilatildeo entretanto natildeo parecem assim tatildeo propositivos ou
suas soluccedilotildees natildeo se impotildee com a mesma forccedila de sua criacutetica
55
As criacuteticas ao projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade e os
encaminhamentos que proporcionaram a sua crise jaacute foram adequadamente
esclarecidos no Capiacutetulo II deste trabalho A proacutexima tarefa eacute justamente apresentar
a teoria de MacIntyre em Depois da Virtude e com isso resgatar a inteligibilidade do
discurso moral que se constitui como grande tarefa afirmativa desta obra de
MacIntyre
421 A natureza das virtudes tese central de Depois da Virtude
Os capiacutetulos XIV A natureza das virtudes e o XV As virtudes a unidade da
vida humana e o conceito de tradiccedilatildeo apresentam os elementos chave da tentativa de
MacIntyre em constituir uma teoria da moralidade No desenvolvimento de sua teoria
MacIntyre enfrenta a problemaacutetica das diferentes listas e concepccedilotildees de virtude Haacute
enorme diferenccedilas entre a concepccedilatildeo homeacuterica a aristoteacutelica e a neotestamentaacuteria
Eles nos oferecem listas diferentes e incompatiacuteveis das virtudes classificam em hierarquias diferentes e incompatiacuteveis Se incluiacutessemos autores ocidentais mais recentes a lista das diferenccedilas aumentaria ainda mais e se estendermos nossa pesquisa agrave cultura japonesa ou digamos ameriacutendia as diferenccedilas aumentariam ainda mais Seria faacutecil demais concluir que existem inuacutemeras concepccedilotildees rivais e alternativas das virtudes poreacutem mesmo dentro da tradiccedilatildeo que tracei natildeo existe uma concepccedilatildeo nuclear uacutenica (MACINTYRE 2007 p 181)23
Sem duacutevida haacute um nuacutemero surpreendente de diferenccedilas e incompatibilidades
entre as vaacuterias listas das vaacuterias tradiccedilotildees Somem-se a isso virtudes que eram
completamente desconhecidas como eacute o caso das virtudes da feacute esperanccedila e
caridade Elas eram completamente estranhas a Aristoacuteteles Contudo MacIntyre
percebe que mesmo havendo uma enorme diferenccedila entre a lista de virtudes do Novo
Testamento e de Aristoacuteteles elas possuem a mesma estrutura conceitual
Virtude eacute assim como para Aristoacuteteles uma qualidade cujo exerciacutecio leva agrave conquista do telos humano O bem para o homem eacute naturalmente um bem sobrenatural [no cristianismo]24 e natildeo soacute um
23ldquoThey offer us different and incompatible lists of the virtues they give a different rank order of
importance to different of the virtues and they have different and incompatible theory of the virtues If we extended our enquiry to Japanese say or American Indian cultures the differences would become greater still It would be all too easy to conclude that there are a number of rival and alternative conceptions of the virtues but even within the tradition which I have been delineating no single core conceptionrdquo
24Destaque nosso
56
bem natural pois o sobrenatural redime e completa a natureza (MACINTYRE 2007 p 184 )25
Uma segunda similaridade se daacute na relaccedilatildeo das virtudes como sendo um
meio para um fim que eacute a entrada do homem no Reino dos ceacuteus num futuro vindouro
Essa passagem se daacute na interioridade do homem assim como em Aristoacuteteles
MacIntyre salienta que este paralelismo entre o aristotelismo e o Novo Testamento eacute
realizado por Tomaacutes de Aquino e ldquouma caracteriacutestica fundamental desse paralelismo
eacute o modo como o conceito de vida boa para o homem antecede ao conceito de virtuderdquo
(MACINTYRE 2007 p 184) O autor ainda salienta que tanto em Aristoacuteteles quanto em
Tomaacutes o conceito de virtude eacute um conceito secundaacuterio
Haacute algo de cartesiano na atitude de MacIntyre ele potildee em duacutevida a
possibilidade de alcanccedilar um conceito central ou em suas palavras nuclear de
virtude o que possa proporcionar uma unidade conceitual agrave tradiccedilatildeo moral
fundamentada na Eacutetica das Virtudes Contudo foi analisando atentamente qual a
distinccedilatildeo entre as tradiccedilotildees e os diversos conceitos de virtudes que o autor visualizou
que o conceito de virtude era secundaacuterio O fato de ser secundaacuterio eacute um nuacutecleo
comum entre as tradiccedilotildees e isto o faz responder agrave pergunta o que pode tornar
inteligiacutevel o conceito de virtude
Eacute na resposta a esta pergunta que se torna claro o caraacuteter complexo histoacuterico e multifacetado do conceito central de virtude pois natildeo haacute menos de trecircs estaacutegios no desenvolvimento loacutegico do conceito que precisam ser identificados na ordem correta para que se possa entender o conceito principal de virtude e cada um desses estaacutegios tem seu proacuteprio contexto conceitual O primeiro estaacutegio requer uma explicaccedilatildeo contextualizadora do que chamei praacutetica o segundo uma explicaccedilatildeo do que jaacute caracterizei como ordem narrativa de uma vida humana singular e o terceiro uma explicaccedilatildeo muito mais completa do que a que elaborei ateacute agora do que constitui uma tradiccedilatildeo moral (MACINTYRE 2007 p 314-315 )26
Praacutetica Narrativa de uma Vida Humana Singular e Tradiccedilatildeo satildeo os elementos
da teoria moral macintyreana Esses estaacutegios obedecem a uma ordem temporal pois
25ldquoA virtue is as with Aristotle a quality the exercise of which leads to the achievement of the human
telos The good for man is of course a supernatural and not only a natural good bus supernature redeems and completes naturerdquo
26ldquoIt is in answering this question that the complex historical multi-layered character of the core concept of virtue becomes clear For there are no less than three stages in the logical development of the concept which have to be identified in order if the core conception virtue is to be understood and each of these stages has its own conceptual background The first stage requires a background account of what I have already characterized as the narrative order of a single human life and the third an account a good deal fuller than I have given up to now of what constitutes a moral traditionrdquo
57
o posterior pressupotildee o anterior mas natildeo o contraacuterio Assim como cada estaacutegio eacute
reinterpretado pelo posterior e oferece elementos essenciais agrave sua compreensatildeo
Deve-se pois passar a uma anaacutelise de cada um desses estaacutegios
422 O conceito de praacuteticas
Costumeiramente Aristoacuteteles fala da excelecircncia na atividade humana
referindo-se a algum tipo de praacutetica humana bem definida tocar flauta guerrear
pensar geometricamente Essas praacuteticas proporcionam a oportunidade de expressatildeo
das virtudes satildeo o campo onde elas se desenvolvem MacIntyre salienta que praacuteticas
natildeo tecircm o sentido usual nem tambeacutem satildeo a uacutenica base atraveacutes da qual as virtudes
satildeo exibidas Qual eacute pois o sentido de Praacutetica
Praacutetica eacute qualquer forma coerente e complexa de atividade humana cooperativa socialmente estabelecida por meio da qual os bens internos a essa forma de atividade satildeo realizados durante a tentativa de alcanccedilar os padrotildees de excelecircncia apropriados para tal forma de atividade e parcialmente dela definidores tendo como consequecircncia a ampliaccedilatildeo sistemaacutetica dos poderes humanos para alcanccedilar tal excelecircncia e dos conceitos humanos dos fins e dos bens envolvidos (MACINTYRE 2007 p 187)27
Parece natildeo haver escrito de eacutetica que natildeo traga exemplo Assim MacIntyre
apresenta o exemplo de uma crianccedila de sete anos que ele gostaria de ensinar xadrez
mas que ela natildeo estaacute imediatamente interessada no aprendizado do jogo Como toda
crianccedila gosta de doce ele o oferece a ela desde que ela jogue xadrez uma vez por
semana pois aiacute ela receberaacute 50 centavos em doces e se ela vencer vai receber mais
50 centavos em doces Desse modo a crianccedila estaacute motivada e joga para ganhar
Apenas os doces motivam proporcionam agrave crianccedila um bom motivo para jogar xadrez
Ela natildeo tem razatildeo para trapacear e estaacute cheia de motivos para trapacear contanto
que consiga fazecirc-lo com ecircxito Entretanto haveraacute um momento em que a crianccedila vai
encontrar nos bens especiacuteficos do xadrez na aquisiccedilatildeo de certa capacidade
especialiacutessima imaginaccedilatildeo estrateacutegica e intensidade competitiva Este seraacute um novo
conjunto de razotildees e razotildees agora existem natildeo apenas para vencer em determinada
27ldquoBy a lsquopraticersquo I am going to mean any coherent and complex form of socially established cooperative
human activity through which goods internal to that form form of activity are realized in the course of trying to achieve those standards of excellence which are appropriate to and partially definitive of that form of activity with the result that human powers to achieve excellence and human conceptions of the ends and goods involved are systematically extendedrdquo
58
ocasiatildeo mas para tentar destacar-se de todos os modos que o jogo de xadrez exigir
Caso a crianccedila trapaceie natildeo estaraacute derrotando o oponente mas a si mesma (cf
MACINTYRE 2007 p 188)
Os bens internos ligados a essa atividade satildeo realizados durante a tentativa
de alcanccedilar os padrotildees de excelecircncia apropriados a tal forma de atividade O sentido
de bem interno pode ser explicitado de duas maneiras haacute certa capacidade que
apenas o exerciacutecio dessa atividade pode proporcionar no caso do jogo de xadrez ou
de qualquer outro da mesma natureza eacute a capacidade especialiacutessima de jogaacute-lo a
outra maneira se refere ao fato de que esses bens soacute podem ser identificados e
reconhecidos pela experiecircncia em participar da atividade
Bens externos e internos ainda trazem outra caracteriacutestica relevante que
proporciona uma maior compreensatildeo e distinccedilatildeo Bens externos quando
conquistados satildeo sempre posse de algueacutem Aleacutem disso sua posse eacute limitada de
modo que eles natildeo estatildeo disponiacuteveis para todos sendo portanto objeto de disputa e
concorrecircncia Por outro lado bens internos embora sejam objeto de competiccedilatildeo sua
conquista se torna disponiacutevel a toda a comunidade envolvida na praacutetica Como pois
a noccedilatildeo de bens internos se relaciona com a noccedilatildeo de virtude A resposta a esta
questatildeo se apresenta na primeira definiccedilatildeo provisoacuteria de virtude que Macintyre
oferece ldquoa virtude eacute uma qualidade humana adquirida cuja posse e exerciacutecio costuma
nos capacitar a alcanccedilar aqueles bens internos agraves praacuteticas e cuja ausecircncia nos
impede para todos os efeitos de alcanccedilar tais bensrdquo (MACINTYRE 2007 p 191)28
A definiccedilatildeo provisoacuteria de virtude elucida sua funccedilatildeo na vida humana seu papel
eacute proporcionar ao ser humano o acesso aos bens internos agraves praacuteticas Sua ausecircncia
significa de certo modo a negaccedilatildeo do acesso a esses bens
Ao conceito macintyreano de praacuteticas sejam elas jogos artes ciecircncias
atitudes tambeacutem pertence o pressuposto de que os bens internos a essas praacuteticas soacute
podem ser adquiridos por meio da proacutepria subordinaccedilatildeo dentro da praacutetica no
relacionamento com outros praticantes Toda praacutetica neste caso requer certo tipo de
relacionamento entre os seus integrantes A funccedilatildeo das virtudes eacute apresentar-se como
uma referecircncia para definir o modo de relaccedilatildeo entre os integrantes da praacutetica Eacute
necessaacuteria a aceitaccedilatildeo dos componentes necessaacuterios que a praacutetica foi aos poucos
28ldquoA virtue is an acquired human quality the possession and exercise of which tends to enable us to
achieve those goods which are internal to practices and the lack of which effectively prevents us from achieving any such goodrdquo
59
estabelecendo como padratildeo interno de excelecircncia Diga-se isso principalmente da
justiccedila coragem e da sinceridade A natildeo aceitaccedilatildeo desses padrotildees eacute anaacuteloga a estar
disposto a trapacear assim como a crianccedila do exemplo acima Assim faz-se
necessaacuteria uma constante valorizaccedilatildeo das virtudes e de seu papel na aquisiccedilatildeo dos
bens internos
A relevacircncia da sinceridade da justiccedila e da coragem eacute realccedilada por MacIntyre
dado que essas virtudes definem o relacionamento entre os integrantes de uma
praacutetica
Acredito entatildeo que do ponto de vista desses tipos de relaccedilotildees sem os quais as praacuteticas natildeo se mantecircm a sinceridade a justiccedila e a coragem e talvez algumas outras satildeo excelecircncias genuiacutenas satildeo virtudes agrave luz das quais precisamos caracterizar a noacutes mesmos e aos outros seja qual for nossa perspectiva moral ou os coacutedigos especiacuteficos da nossa sociedade Esse reconhecimento de natildeo podermos escapar agrave definiccedilatildeo dos nossos relacionamentos segundo tais bens eacute perfeitamente compatiacutevel com o reconhecimento de que cada sociedade tem e tem tido coacutedigos diferentes de sinceridade justiccedila e coragem (MACINTYRE 2007 p 192)29
Embora os coacutedigos se apresentem como muito distintos eles apenas o satildeo
sob certos aspectos distintos das virtudes particularmente o que natildeo acontece
poreacutem eacute o florescimento das virtudes em comunidades que natildeo as valorizem As
virtudes satildeo fundamentais porque elas consolidam as praacuteticas e a aquisiccedilatildeo dos bens
relativos a elas
As praacuteticas no entanto natildeo devem ser confundidas com um conjunto de
capacidades teacutecnicas O que distingue o modo como os conceitos dos devidos bens
e fins aos quais as capacidades teacutecnicas servem eacute a aptidatildeo que uma capacidade
teacutecnica proporciona agrave transformaccedilatildeo e ao enriquecimento dos poderes humanos e da
consideraccedilatildeo por seus proacuteprios bens internos Estes por sua vez tambeacutem vatildeo definir
parcialmente cada praacutetica ou tipo de praacutetica
MacIntyre acrescenta que ldquoas praacuteticas nunca tecircm uma meta ou metas fixas
definitivamente ndash a pintura [por exemplo] natildeo tem tal meta nem a Fiacutesica ndash mas as
29ldquoI take it then that from the standpoint of those types of relationship without practices cannot be
sustained truthfulness justice and courage ndash and perhaps some others ndash are genuine excellences are virtues in the light of which we have to characterize ourselves and others whatever our private moral standpoint or our societyrsquos particular codes may be For this recognition that we cannot escape the definition of our relationshipsin terms of such goods is perfectly compatible with the acknowledgment that different societies have and have had different codes of truthfulness justice and couragerdquo
60
proacuteprias metas se transmutam ao longo da histoacuteriardquo (MACINTYRE 2007 p 193 )30 Eacute
pois em virtude da transmutaccedilatildeo das metas que as praacuteticas se modificam e
consequentemente cada praacutetica seraacute portadora de uma histoacuteria peculiar diferente da
histoacuteria do aprimoramento de uma determinada capacidade teacutecnica Esta eacute pois uma
dimensatildeo histoacuteria fundamental na relaccedilatildeo entre praacuteticas e virtudes
Praacuteticas virtudes bens internos e externos se relacionam pois da seguinte
maneira numa sociedade que natildeo valoriza as virtudes soacute poderia haver um
reconhecimento dos bens externos e em hipoacutetese alguma dos bens internos no
contexto das praacuteticas MacIntyre acrescenta ldquoque em qualquer sociedade que
reconhecesse somente os bens externos a concorrecircncia seria a caracteriacutestica
predominante e ateacute exclusivardquo (MACINTYRE 1988 p 196)31
Neste sentido eacute possiacutevel delinear uma relaccedilatildeo distinta entre as virtudes e os
bens externos e internos A posse das virtudes eacute necessaacuteria para se alcanccedilar os bens
internos entretanto esta mesma posse pode dificultar o acesso a bens externos pois
o cultivo de determinadas virtudes como a justiccedila a sinceridade e a coragem pode
muitas vezes impossibilitar o acesso agraves riquezas ao prestiacutegio ao status Nesse
sentido talvez seja possiacutevel pensar que na verdade a riqueza o prestiacutegio e o status
sejam incompatiacuteveis com uma vida virtuosa
Desse modo no sentido empregado por MacIntyre as virtudes mesmo
proporcionando os bens internos agraves praacuteticas justificam-se independentes de seus
resultados pois embora elas sejam necessaacuterias agraves praacuteticas o acesso aos bens natildeo
se daacute de maneira uniacutevoca
423 Ordem narrativa de uma vida humana singular
O desenvolvimento da noccedilatildeo de ordem narrativa de uma vida humana singular
eacute uma resposta agrave questatildeo formulada no fim do capiacutetulo XIV de Depois da Virtude
Este elemento fundamental da teoria moral macintyreana aprofunda e enriquece o seu
conceito provisoacuterio de virtude explicitado no toacutepico acima A pergunta se esboccedila da
seguinte maneira
30ldquoPratices never have a goal or goals fixed for all time ndash painting has no such goal nor has physics ndash
but the goals themselves are transmuted by the history of the activityrdquo 31ldquoAnd in any society which recognized only external goods competitiveness would be the dominant and
even exclusive featurerdquo
61
seraacute racionalmente justificaacutevel conceber cada vida humana como uma unidade de modo que possamos tentar especificar cada uma dessas vidas como tendo o seu bem de modo que possamos entender as virtudes como tendo a funccedilatildeo de capacitar o indiviacuteduo a fazer de sua vida uma determinada espeacutecie de unidade e natildeo de outra (MACINTYRE 2007 p 203)32
O objetivo de MacIntyre neste ponto eacute oferecer uma compreensatildeo de cada
vida humana como um todo como uma unidade na qual o caraacuteter desta unidade
ofereccedila agraves virtudes um telos apropriado O primeiro passo que eacute o iniacutecio do Cap XV
de Depois da virtude eacute ultrapassar obstaacuteculos que contrariam a ideia de unidade da
vida humana o primeiro de natureza socioloacutegica e o segundo de natureza filosoacutefica
ou ainda da teoria socioloacutegica
O obstaacuteculo social agrave ideia de unidade da vida humana singular proveacutem da
maneira como a sociedade moderna passou a conceber a vida do indiviacuteduo sua vida
eacute pensada na forma de segmentos cada um com seu proacuteprio modus operandi nos
quais ldquoo trabalho eacute pensado separado de lazer a vida privada eacute afastada da vida
puacuteblica a vida empresarial eacute separada da vida pessoalrdquo (MACINTYRE 1988 p 204)33
Estas separaccedilotildees estatildeo articuladas de modo tal que a ideia de unidade da vida do
indiviacuteduo lhe eacute completamente estranha
Os obstaacuteculos filosoacuteficos se referem agrave ideia de que a vida humana eacute articulada
como uma sequecircncia de atos e episoacutedios individuais Numa concepccedilatildeo existencialista
por exemplo a vida humana se torna natildeo visualizaacutevel dado que indiviacuteduo estaacute
constantemente a desempenhar papeis que natildeo dizem respeito a ele imediatamente
MacIntyre toma o Sartre da Naacuteusea a fim de apresentar a seguinte tese
a narrativa eacute bem diferente da vida e que apresentar a vida humana em forma de narrativa eacute sempre deturpaacute-la De acordo com este pensamento conclui MacIntyre natildeo existiriam narrativas verdadeiras e a vida humana consistiria em accedilotildees que natildeo conduzem a lugar nenhum (MACINTYRE 2001b p 360)
Esta concepccedilatildeo existencialista de um eu separado de seus papeis
impossibilitaria o espaccedilo social de desenvolvimento das virtudes A criacutetica de
MacIntyre a tese de Sartre eacute a de para afirmar que nenhuma narrativa eacute possiacutevel
Sartre se utiliza de uma narrativa aleacutem disso MacIntyre afirma tambeacutem se poderia
32ldquois it rationally justifiable to conceive of each human life as a unity so that we may try to specify each
such life as having their function in enabling an individual to make of his or her life one kind of unity rather than anotherrdquo
33 ldquowork is divided from leisure private life from public the corporate from the personalrdquo
62
questionar a Sartre como seriam os atos humanos destituiacutedos de qualquer narrativa
mesmo que deturpadora A resposta agrave pergunta eacute o silecircncio completa o autor
Para o desenvolvimento das virtudes eacute fundamental compreender a vida
humana individual como uma unidade Aleacutem disso ldquoa unidade de virtude na vida de
algueacutem soacute se torna inteligiacutevel como caracteriacutestica de uma vida unitaacuteria uma vida que
se possa compreender e se avaliar na iacutentegrardquo (MACINTYRE 2007 p 205 )34 Como as
abordagens anteriores que representam uma antiacutetese agrave noccedilatildeo da vida humana
individual como uma unidade satildeo heranccedila da proacutepria concepccedilatildeo moderna sobre
homem e o seu ser-no-mundo faz-se necessaacuteria a exposiccedilatildeo do ldquoconceito de um eu
cuja unidade reside na unidade de uma narrativa que une o nascimento agrave vida e agrave
morte em forma de uma narrativa com comeccedilo meio e fimrdquo (MACINTYRE 2007 p
205)35
O conceito de eu como uma unidade narrativa vai dar a Macintyre a
oportunidade de passar para o segundo momento do seu conceito virtude que natildeo se
limita exclusivamente agraves praacuteticas O Prof Helder de Carvalho comenta sobre a
problemaacutetica de limitar o conceito de virtude ao conceito de praacuteticas
Se restringirmos a definiccedilatildeo do conceito de virtude ao acircmbito das praacuteticas fatalmente chegaremos a uma situaccedilatildeo em que a possibilidade do conflito traacutegico se efetiva uma situaccedilatildeo em que as pretensotildees de uma praacutetica podem ser incompatiacuteveis com as de outras ambas apontando para direccedilotildees diferentes de tal forma que podemos nos ver oscilando de um modo arbitraacuterio entre uma posiccedilatildeo e outra sem conseguirmos constituir propriamente uma escolha racional (CARVALHO 2001 p 14)
A superaccedilatildeo do elemento arbitraacuterio da vida moral e a consistecircncia do
conceito de virtude satildeo proporcionadas pelo conceito de unidade narrativa de uma
vida humana individual pensada integralmente A accedilatildeo humana deve pois ser
articulada por um tipo de narrativa histoacuterica que seja ldquoo gecircnero fundamental e
essencial para a caracterizaccedilatildeo das accedilotildees humanasrdquo (MACINTYRE 2007 p 208 )36 A
perspectiva narrativa garante que os diversos episoacutedios da vida de uma pessoa
ganhem lugar e sentido por que natildeo dizer inteligibilidade Com efeito essa unidade
34ldquoAnd the unity of a virtue in someonersquos life is intelligible only as a characteristc of a unitary life a life
that can be conceived and evaluated as a wholerdquo 35ldquoa concept of a self whose unity resides in the unity of a narrative which links birth to life to death as
narrative beginning to middle to endrdquo 36ldquonarrative history of a certain kind turns out to be basic and essential genre for the characterization of
human actionsrdquo
63
somente eacute possiacutevel porque segundo MacIntyre as accedilotildees estatildeo articuladas atraveacutes
de uma perspectiva histoacuterica Uma vida humana singular pode ser compreendida na
forma de uma narrativa e consequentemente a ela tambeacutem proporciona a
compreensatildeo da vida e da accedilatildeo dos outros
Eacute porque todos vivenciamos narrativas nas nossas vidas e porque entendemos nossa proacutepria vida nos termos das narrativas que vivenciamos que a forma de narrativa eacute adequada para se entender os atos de outras pessoas (MACINTYRE 1988 p 212)37
A Narrativa natildeo deve tambeacutem ser pensada exclusivamente de modo singular
pois as diversas narrativas se intercomunicam estatildeo relacionadas umas agraves outras
Prof Helder de Carvalho salienta que a ldquovida individual para MacIntyre consiste na
unidade de uma narrativa encarnada numa vida singular que na forma de atos e
palavras tenta responder sistematicamente agraves questotildees acerca do que eacute bom para o
indiviacuteduo e do que eacute bom para o homemrdquo (CARVALHO 2001 p 15) Com a resposta a
essas duas questotildees a saber o que eacute bom para o indiviacuteduo e para o homem se tem
a unidade da vida moral tanto individualmente quanto para um grupo Aleacutem disso
enfatiza MacIntyre ldquoa formulaccedilatildeo sistemaacutetica dessas duas questotildees e a tentativa de
respondecirc-las tanto em atos quanto em palavras que proporcionam unidade agrave vida
moralrdquo (MACINTYRE 2007 p 218)38
A unidade da vida moral deve ser pensada como uma unidade de busca
narrativa Esse conceito medieval possui duas caracteriacutesticas fundamentais
primeiramente a busca soacute pode se iniciar se houver ao menos uma noccedilatildeo de telos
isto eacute deve-se ter ao menos uma noccedilatildeo do seja o bem para o homem Esta primeira
caracteriacutestica eacute alcanccedilada atraveacutes da resposta agravequelas questotildees ora mencionadas
A segunda eacute a noccedilatildeo de que a busca natildeo se refere a algo jaacute adequadamente
caracterizado pois eacute no decorrer da busca e somente no enfrentamento de inuacutemeras
vicissitudes que se pode intuir meta da busca A busca tem pois um caraacuteter
pedagoacutegico no aprendizado moral e no processo de conhecimento de si
A relaccedilatildeo entre unidade narrativa da vida e a noccedilatildeo de busca aperfeiccediloam a
noccedilatildeo macintyreana de virtude
37ldquoIt is because we all live out narratives in our lives and because we understand our own lives in terms
of the narratives that we live out that the form of narrative is appropriate for understanding the actions of othersrdquo
38ldquoit is the systematic asking of these two questions and the attempt to answer them in deed as well as in word which provide the moral life with its unityrdquo
64
As virtudes portanto devem ser compreendidas como as disposiccedilotildees que aleacutem de nos sustentar e capacitar para alcanccedilar os bens internos agraves praacuteticas tambeacutem nos sustentam no devido tipo de busca pelo bem capacitando-nos a superar os males os riscos as tentaccedilotildees e as tensotildees com que nos deparamos e que nos forneceratildeo um autoconhecimento cada vez maior (MACINTYRE 2007 p 219)39
O conjunto das virtudes iraacute dar conta natildeo apenas dos elementos comunitaacuterios
nos quais a busca pelo bem eacute dada em conjunto mas inclui agora virtudes
necessaacuterias agrave investigaccedilatildeo acerca do caraacuteter do bem que se almeja MacIntyre
conclui afirmando que chegou a uma conclusatildeo provisoacuteria sobre a vida virtuosa para
o homem ldquoa vida virtuosa para o homem eacute a vida passada na procura da vida boa
para o homemrdquo (MACINTYRE 2007 p 219)40 Com efeito as virtudes que satildeo
necessaacuterias satildeo aquelas que mais proporcionarem esse entendimento Ademais elas
esclarecem em relaccedilatildeo aos bens natildeo apenas em relaccedilatildeo agraves praacuteticas mas tambeacutem agrave
vida individual proporcionada por uma unidade narrativa que rompe com a noccedilatildeo de
vida e tempo segmentados
424 Tradiccedilatildeo
O conceito de tradiccedilatildeo apresenta sua relevacircncia a partir da consciecircncia de
uma identidade individual que natildeo pode ser concebida arrancada da rede de
significados e dos contextos na histoacuteria das comunidades que forjaram esta mesma
identidade Deve-se pois pensar que eacute necessaacuteria ao indiviacuteduo a posse de uma
identidade histoacuterica Busca-se a identidade moral no interior da famiacutelia do bairro da
cidade sem natildeo entanto se estar obrigados a assumir o que Macintyre intitula de
limitaccedilotildees morais dessas particulares formas histoacutericas de comunidade O ponto de
partida da busca pela identidade histoacuterica eacute justamente as particularidades Iniciando
pelas particularidades busca-se o bem o universal
A identidade eacute em parte resultado daquilo que o indiviacuteduo herdou daqueles
que o precederam O presente de uma pessoa natildeo possui sentido independente das
39ldquoThe virtues therefore are to be understood as those dispositions which will not only sustain practices
and enable us to achieve the goods internal to practices but which will also sustain us in the relevant kind of quest for the good by enabling us to overcome the harms dangers temptations and distractions which we encounter and which will furnish us with increasing self-knowledge and increasing knowledge of the goodrdquo
40ldquothe good life for man is the life seeking are those which will enable us to understand what more and what else the good life for man isrdquo
65
marcas e influecircncia de um passado que natildeo eacute simplesmente aquilo que jaacute natildeo eacute
mas que manteacutem com o presente uma relaccedilatildeo na forma de um vigor de ter sido
Assim a pessoa se descobre como partiacutecipe de uma tradiccedilatildeo quer goste ou natildeo quer
reconheccedila ou natildeo Ao desenvolver o conceito de Praacuteticas MacIntyre afirmou que elas
sempre tecircm histoacuterias e o que elas satildeo dependem do modo como cada geraccedilatildeo a
compreende e a transmite
Neste sentido as virtudes sustentam relacionamentos necessaacuterios agraves praacuteticas
como tambeacutem sustentam a relaccedilatildeo com o passado pensado a partir do conceito de
tradiccedilatildeo Qual eacute pois o conceito macintyreano de tradiccedilatildeo Segundo MacIntyre ldquouma
tradiccedilatildeo viva eacute entatildeo uma argumentaccedilatildeo que se estende na histoacuteria e eacute socialmente
incorporada e eacute uma argumentaccedilatildeo em parte exatamente sobre os bens que
constituem tal tradiccedilatildeordquo (MACINTYRE 2007 p 222)41 A procura pelos bens no interior
de uma tradiccedilatildeo atravessa muitas vezes geraccedilotildees inteiras Assim sendo a procura
do bem individual natildeo acontece separada da tradiccedilatildeo mas eacute realizada sob as
circunstacircncias definidas pela tradiccedilatildeo da qual um indiviacuteduo eacute partiacutecipe Essa procura
se daacute em relaccedilatildeo aos bens internos agraves praacuteticas e tambeacutem aos bens de uma uacutenica
vida Isto significa que ldquohistoacuteria de uma praacutetica na nossa eacutepoca estaacute em geral e
caracteristicamente inserida na histoacuteria mais longa e ampla da tradiccedilatildeo e por meio
da qual a praacutetica se torna inteligiacutevel e chega assim agrave forma atual que nos foi
transmitidardquo (MACINTYRE 2007 p 222)42 A inteligibilidade da histoacuteria de cada pessoa
ganha seu sentido no interior da histoacuteria de cada tradiccedilatildeo
A sustentaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo sua conservaccedilatildeo e seu decliacutenio dependem do
exerciacutecio das virtudes que lhe satildeo correspondentes ou agrave falta dele Neste sentido as
virtudes tambeacutem servem como sustentaacuteculo para as tradiccedilotildees ou seja a permanecircncia
ou a extinccedilatildeo delas mantecircm relaccedilatildeo com o exerciacutecio das virtudes
A convicccedilatildeo de MacIntyre eacute a de que a falta de justiccedila sinceridade coragem
e de outras virtudes intelectuais correspondentes corrompem tradiccedilotildees mas tambeacutem
as praacuteticas que foram forjadas na proacutepria tradiccedilatildeo da qual elas (as praacuteticas) satildeo reflexo
(Cf MACINTYRE 2007 p 223) Haacute aqui a necessidade de se reconhecer a importacircncia
41ldquoA living tradition then is an historically extended socially embodied argument and an argument
precisely in part about the goods which constitute that traditionrdquo 42ldquothe history of a practice in our time is generally and characteristically embedded in and made
intelligible in terms of the larger and longer history of the tradition through which the practice in its present form was conveyed to usrdquo
66
das tradiccedilotildees das quais se faz parte no entendimento de suas possibilidades futuras
que o passado tornou disponiacutevel no presente
O uacuteltimo conceito da teoria moral de MacIntyre atraveacutes da noccedilatildeo de tradiccedilatildeo
complementa sua compreensatildeo do conceito de virtude A busca pelo bem do homem
natildeo tem sentido sem se considerar a tradiccedilatildeo que alimentou de experiecircncias
conceitos opiniotildees a identidade de uma pessoa Assim o autor compreende a moral
como uma relaccedilatildeo entre o eu o contexto social e a histoacuteria
Esta seccedilatildeo do trabalho explicitou o projeto de Depois da Virtude atraveacutes da
exposiccedilatildeo da segunda tarefa da obra que eacute formular uma teoria moral capaz de
resgatar a inteligibilidade do discurso moral Embora esta segunda tarefa aparente ter
sido ofuscada pelo grande descontentamento do autor em relaccedilatildeo agrave Filosofia Moral
Moderna o autor oferece uma alternativa agrave moral do dever ou uma moral utilitarista
Praacuteticas Unidade narrativa de uma vida humana individual e o conceito de Tradiccedilatildeo
compotildeem o conceito macintyreano de virtude e se constituem no nuacutecleo de sua teoria
moral
O proacuteximo passo eacute empreender uma anaacutelise agraves principais criacuteticas ao seu
pensamento e verificar um modo de como eacute possiacutevel defender a pertinecircncia de uma
Eacutetica das Virtudes dando continuidade a uma tarefa que o proacuteprio MacIntyre indicou
em sua obra apresentar como Tomaacutes de Aquino empreende uma reconciliaccedilatildeo entre
o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica como tambeacutem verificar de que modo o feito de
Tomaacutes ajuda a compreender a moral contemporacircnea
67
5 RECONCILIACcedilAtildeO ENTRE O PENSAMENTO CRISTAtildeO E O ARISTOTELISMO
A grandeza do pensamento de MacIntyre reside no esforccedilo que ele teve em
tentar estabelecer uma teoria moral ao modo de uma Eacutetica das Virtudes Entretanto
atraveacutes de seu proacuteprio testemunho vecirc-se que a suas consideraccedilotildees acerca do
pensamento de Tomaacutes de Aquino foram insuficientes ldquoPenso agora por exemplo que
a minha criacutetica anterior agraves teses de Santo Tomaacutes sobre a unidade das virtudes estava
simplesmente errada devido em parte a uma leitura equivocada do Aquinaterdquo
(MACINTYRE 2001a p 8) Assim sendo a segunda parte deste trabalho assume como
objetivo principal a apresentaccedilatildeo da Reconciliaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo Biacuteblica e o
Aristotelismo
A presente pesquisa jaacute sinalizou que embora MacIntyre seja devedor do
pensamento de Gertrude Anscombe eles possuem posicionamentos diferentes
acerca da antropologia Anscombe sugere que o ponto de partida estaacute numa
psicologia filosoacutefica enquanto que MacIntyre abre matildeo desta antropologia por
consideraacute-la uma lsquobiologia metafiacutesicarsquo cujo conceito de homem seria lsquoahistoacutericorsquo e
lsquoaculturalrsquo distanciando-se assim do meacutetodo histoacuterico por ele utilizado
Posteriormente MacIntyre volta atraacutes e assume a biologia aristoteacutelica no conceito de
homem Esta pesquisa compartilha com Anscombe a consciecircncia da necessidade de
uma psicologia filosoacutefica e segundo esta perspectiva daraacute continuidade agrave tarefa
indicada por MacIntyre
A ideia de uma reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo cristatilde inclui a
necessidade de uma retomada do pensamento de Aristoacuteteles Na dinacircmica entre atos
e virtudes Aristoacuteteles considera que as accedilotildees possuem certa precedecircncia sobre as
disposiccedilotildees Ele afirma na EN II 1-2 que ldquoeacute a partir dos atos repetidos em uma certa
direccedilatildeo que adquirimos as disposiccedilotildees correspondentesrdquo Os atos tambeacutem
prevalecem sobre a disposiccedilatildeo por maior que seja o haacutebito de um agente ele sempre
pode em relaccedilatildeo a cada accedilatildeo particularmente agir diferentemente Dessa maneira
sendo as virtudes um modo de disposiccedilatildeo da alma elas natildeo podem prescindir de uma
reflexatildeo sobre a teoria dos atos
Entre as objeccedilotildees que podem ser feitas agrave proposta moral de MacIntyre eacute que o
autor de certo modo potildee o conceito de virtude como conceito primordial
68
prescindindo assim de uma elaboraccedilatildeo teoacuterica que eacute anterior e condicionante ao
conceito de virtude que eacute uma teoria das accedilotildees A consideraccedilatildeo das virtudes a partir
de uma teoria das accedilotildees ao contraacuterio do que se poderia pensar natildeo representa um
retorno agrave centralidade das accedilotildees em detrimento da centralidade do agente o que seria
uma contradiccedilatildeo agrave criacutetica da moral deontoloacutegica
Embora o caraacuteter do agente seja crucial para Aristoacuteteles a sua relevacircncia para
o julgamento de uma accedilatildeo proveacutem do fato de que uma accedilatildeo eacute entendida de tal maneira
que inviabiliza um procedimento fundado em regras previamente estipuladas Essa
compreensatildeo segundo Marco Zingano eacute o que favorece a busca por um agente
moralmente bom quando devemos descobrir qual eacute a coisa certa para ser feita (cf
ZINGANO 2010 p 32) A questatildeo fundamental estaacute natildeo em afirmar que um ato
moralmente bom eacute o que deve ser feito por um agente que eacute igualmente bom mas
em reconhecer que um ato eacute bom porque corresponde agraves propriedades de evitar o
viacutecio seja na falta ou no excesso Tornar-se bom eacute a qualidade do agente que
frequentemente agiu desse modo Neste sentido eacute possiacutevel afirmar que o lugar
relevante das virtudes deve-se pois agrave certa teoria das accedilotildees
Afirmar que a centralidade das virtudes depende das accedilotildees natildeo desfaz a
importacircncia das virtudes mas agraves coloca numa posiccedilatildeo secundaacuteria em relaccedilatildeo agraves
accedilotildees Uma vez que elas derivam das accedilotildees eacute compreensiacutevel vecirc-las como efeito de
boas accedilotildees Desse modo eacute importante compreender que a eacutetica de Aristoacuteteles eacute uma
Eacutetica das Virtudes natildeo porque as virtudes sejam fundamento do bem agir mas porque
as virtudes estatildeo fundamentadas em accedilotildees das quais as virtudes sinalizam que satildeo
moralmente boas Assim sendo faz-se necessaacuteria uma exposiccedilatildeo da teoria
aristoteacutelica dos atos
A teoria dos atos exposta na EN proporciona a compreensatildeo dos
fundamentos de filosofia moral de Aristoacuteteles Segundo Henrique de Lima Vaz essa
filosofia traz consigo elementos cosmocecircntricos Por sua vez alguns desses
elementos seratildeo retomados por Tomaacutes de Aquino o qual realizaraacute um processo que
se denomina aqui de reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo e a filosofia de
Aristoacuteteles A exposiccedilatildeo dos pontos fundamentais desta reconciliaccedilatildeo se constitui na
tarefa mais fundamental deste trabalho O alcance deste objetivo se constitui
conforme se compreende aqui na continuidade da tarefa deixada em aberto por
MacIntyre em Depois da Virtude Esta tarefa eacute necessaacuteria uma vez que se pode
69
afirmar que muitos dos conceitos morais contemporacircneos possuem um conteuacutedo
semacircntico influenciado pelo pensamento cristatildeo Os conceitos a que esta pesquisa se
refere satildeo o de intenccedilatildeo consciecircncia obrigaccedilatildeo liberdade livre-arbiacutetrio e felicidade
Muitos destes conceitos ou natildeo foram aprofundados pelos gregos ou foram ateacute
desconhecidos deles
O posicionamento fundamental deste trabalho eacute o de que a exposiccedilatildeo do modo
como Tomaacutes de Aquino promove a retomada do pensamento aristoteacutelico na filosofia
moral compatibilizando-o com o pensamento cristatildeo garante de certa maneira uma
consciecircncia de que conceitos importantes da filosofia moral natildeo satildeo os mesmos se
essa leitura cristatilde natildeo for considerada
O elemento central desta compatibilizaccedilatildeo se encontra na siacutentese entre o
horizontalismo da moral aristoteacutelica e o verticalismo da Teologia Cristatilde Embora estes
dois conceitos ainda mereccedilam um melhor esclarecimento esta siacutentese se constitui
como princiacutepio que guia o problema tomista da Beatitude e do Fim uacuteltimo do homem
Aristoacuteteles seguindo a articulaccedilatildeo da Eacutetica Antiga tem a Eudaimonia como ideia
central da vida moral Tomando esta ideia sob a acepccedilatildeo de Beatitude Tomaacutes de
Aquino ultrapassa a ideia aristoteacutelica primitiva de Eudaimonia rompendo assim com
os cosmocentrismo da Eacutetica Antiga na qual a moral aristoteacutelica tambeacutem estava
inserida
O desenvolvimento deste capiacutetulo cumpre a seguinte orientaccedilatildeo
primeiramente analisar a teoria aristoteacutelica dos atos como tambeacutem a retomada e o
desenvolvimento tomista dos conceitos necessaacuterios agraves accedilotildees Em seguida discutir de
que maneira os elementos da teoria aristoteacutelica dos atos satildeo retomados e que
encaminhamentos eles tecircm com o pensamento cristatildeo Finalmente deve-se
desenvolver o modo como Tomaacutes de Aquino ultrapassa o cosmocentrismo da eacutetica
de Aristoacuteteles
51 AS VIRTUDES E A TEORIA ARISTOTEacuteLICA DOS ATOS ndash EN III 1-8
Foi afirmado que Aristoacuteteles assumia uma posiccedilatildeo de precedecircncia dos atos em
relaccedilatildeo agraves virtudes Para essa finalidade preferir-se-aacute o texto da EN em virtude de
seu peso na Tradiccedilatildeo pelo modo como a obra estaacute articulada e pela significaccedilatildeo que
70
a obra conquistou na histoacuteria da filosofia moral Esta seccedilatildeo se dedica a mostrar como
o estagirita desenvolve sua teoria dos atos cuja seccedilatildeo se situa no livro III 1-8
Aristoacuteteles inicia a seccedilatildeo da EN esclarecendo que a virtude diz respeito a
emoccedilotildees e accedilotildees e de que maneira os atos voluntaacuterios satildeo louvados ou censurados
ao passo que os involuntaacuterios satildeo objeto de perdatildeo e por vezes de piedade Em
seguida ele assinala a importacircncia de os estudiosos da virtude e os legisladores
definirem o voluntaacuterio e o involuntaacuterio (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III
1 1109 b30)
511 Do voluntaacuterio e do involuntaacuterio
A primeira questatildeo relevante acerca das accedilotildees eacute a compreensatildeo dos atos
voluntaacuterios e involuntaacuterios Existe uma voluntariedade em relaccedilatildeo a coisas exteriores
na forma de causas motoras quando estas de apresentam na forma de bem
Contrariamente o involuntaacuterio diz respeito aos moacutebeis externos quando estes se
apresentam de modo forccediloso ou por ignoracircncia ldquoParecem ser involuntaacuterias as accedilotildees
praticadas por forccedila ou por ignoracircncia Eacute forccediloso o ato cujo princiacutepio eacute exterior ao
agente princiacutepio para o qual o agente ou paciente em nada contribuirdquo (ARISTOacuteTELES
Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a1)43
Existem accedilotildees que se desenvolvem de uma maneira mista Aristoacuteteles chama
a atenccedilatildeo para accedilotildees realizadas por meio de males maiores e estas mesmo
indesejadas satildeo assumidas em virtude das circunstacircncias Assim ele diz dos
navegantes que para evitar o naufraacutegio se livram da carga Embora forccediladas estas
accedilotildees se assemelham agraves accedilotildees voluntaacuterias pois ldquosatildeo escolhidas no momento em que
satildeo praticadas e o fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeo Voluntaacuterio e involuntaacuterio
entatildeo devem ser ditos com referecircncia ao momento em que se pratica a accedilatildeordquo
(ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a10)44
Haacute um elemento curioso nesta uacuteltima afirmaccedilatildeo de Aristoacuteteles quando este diz
que o fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeo Corriqueiramente se diz que a finalidade
natildeo pertence agrave deliberaccedilatildeo do agente Talvez seja possiacutevel afirmar que existe uma
classe de fins que sejam abertos agrave eleiccedilatildeo do agente ou ainda que o fim de uma
43 ldquoβίαιον δὲ οὗ ἡ ἀρχὴ ἔξωθεν τοιαύτη οὖσα ἐν ᾗ μηδὲν συμβάλλεται ὁ πράττων ἢ ὁ πάσχωrdquo 44 ldquoκαὶ τὸ ἑκούσιον δὴ καὶ τὸ ἀκούσιον ὅτε πράττει (15) λεκτέονrdquo
71
accedilatildeo tenha certa dinamicidade pois ldquoo fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeordquo
(ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a10)45 Este foi o caso por
exemplo dos navegantes que antes tinham o objetivo de levar a carga mas diante
da tempestade livraram-se da carga a fim de salvar suas vidas Intimamente os
navegantes natildeo gostariam de se livrar da carga entretanto voluntariamente a
jogaram no mar
Deve-se afirmar tambeacutem que para ser involuntaacuteria natildeo eacute o bastante um ato
ser forccedilado mas se deve acrescentar que aleacutem de ser forccedilado um ato natildeo deve
possuir nenhuma contribuiccedilatildeo do agente como princiacutepio da accedilatildeo e mais ainda
provocarem dor e arrependimento (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1
1110 b20)46 Do involuntaacuterio forccedilado conclui-se que deve ser externo forccedilado e
penoso ao agente
Da accedilatildeo por ignoracircncia Aristoacuteteles estabelece distinccedilotildees na forma de natildeo-
voluntaacuterio e involuntaacuterio Todo ato feito por ignoracircncia eacute natildeo voluntaacuterio (cf
ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 2 1110 b20)47 mas somente merece o
nome de involuntaacuterio aquele ato que realizado por ignoracircncia causou o
arrependimento O agente que por ignoracircncia realizou uma accedilatildeo mas natildeo se
arrependeu merece que sua accedilatildeo seja chamada apenas de natildeo voluntaacuteria
Aristoacuteteles tambeacutem distingue o agir por ignoracircncia e o agir em estado de
ignoracircncia (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 2 1110 b25)48 O agir em
estado de ignoracircncia se refere ao caso de algueacutem que por alguma causa qualquer
que lhe tire da ciecircncia do ato a exemplo de um becircbado ou de um homem
encolerizado tornou-se ignorante do que estava a fazer Haacute tambeacutem exemplos de
homens que deliberadamente ignoram o que deveriam fazer Esse eacute o caso do
homem perverso que por ignorar o que deveria fazer merece ser chamado de injusto
ou de mau Eacute involuntaacuterio tambeacutem o ato de algueacutem que ignora natildeo deliberadamente
alguma das circunstacircncias particulares nas quais uma accedilatildeo se desenvolve Entre os
criteacuterios para que uma accedilatildeo por causa da ignoracircncia seja involuntaacuteria deve-se
acrescentar o sofrimento do agente e o seu arrependimento
45 ldquoτὸ δὲ τέλος τῆς πράξεως κατὰ τὸν καιρόν ἐστινrdquo 46 ldquoτοῦ δὴ κατὰ τὴν τοιαύτην ἄγνοιαν ἀκουσίου λεγομένου (20) ἔτι δεῖ τὴν πρᾶξιν λυπηρὰν εἶναι καὶ ἐν
μεταμελείᾳrdquo 47 ldquoτὸ δὲ δι᾽ ἄγνοιαν οὐχ ἑκούσιον μὲν ἅπαν ἐστίνrdquo 48 ldquoἕτερον δ᾽ (25) ἔοικε καὶ τὸ δι᾽ ἄγνοιαν πράττειν τοῦ ἀγνοοῦνταrdquo
72
Os atos forccedilados assim como os atos por ignoracircncia comportam igualmente
a caracteriacutestica de serem penosos ao agente contudo o ser penoso dos atos forccedilados
natildeo parece se identificar com o penoso dos atos por ignoracircncia Com efeito o penoso
dos atos forccedilados eacute um sofrimento infringido pela circunstacircncia enquanto o dos atos
por ignoracircncia eacute um sofrimento infringido pelo proacuteprio agente em virtude de seu
arrependimento Os atos voluntaacuterios satildeo aqueles cujo princiacutepio reside no agente que
conhece as circunstacircncias particulares nas quais ocorre a accedilatildeo (Cf ARISTOacuteTELES
Ethica Nicomachea 2010 III 3 1111 a25)49
512 A escolha deliberada
Mais apropriada agrave virtude e a discriminar o caraacuteter do que as accedilotildees Aristoacuteteles
entende que a escolha deliberada eacute por um lado voluntaacuteria e por outro involuntaacuteria
(Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 4 1111 b5)50 A ideia geral eacute a de que
a escolha deliberada eacute um modo mais especiacutefico do voluntaacuterio sendo este mais
abrangente do que ela O exemplo geral eacute o das crianccedilas que apesar de terem atos
voluntaacuterios natildeo possuem ainda escolha deliberada
A escolha deliberada diz respeito aos atos que estatildeo ao alcance do agente e
que concernem agravequilo que conduz ao fim O exemplo eacute o do desejo da sauacutede no qual
a escolha deliberada proporciona as coisas necessaacuterias agrave sauacutede (cf ARISTOacuteTELES
Ethica Nicomachea 2010 III 4 1111 b25 51 Assim esta escolha se refere agrave obtenccedilatildeo
do que se deve obter e agrave fuga do que se deve evitar Escolhe-se deliberadamente
quando se sabe que uma coisa eacute boa Deste modo ldquoa escolha deliberada eacute
acompanhada de pensamento e de reflexatildeordquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010
III 4 1112 a15)52
No paraacutegrafo V do livro III a conclusatildeo eacute a de que o objeto da escolha
deliberada eacute o objeto do desejo deliberado daquilo que estaacute em poder do agente A
escolha deliberada eacute o desejo deliberativo pois julgando em funccedilatildeo de ter deliberado
49 ldquoτὸ ἑκούσιον δόξειεν ἂν εἶναι οὗ ἡ ἀρχὴ ἐν αὐτῷ εἰδότι τὰ καθ᾽ ἕκαστα ἐν οἷς ἡ πρᾶξιςrdquo 50 ldquoἡ προαίρεσις δὴ ἑκούσιον μὲν φαίνεται οὐ ταὐτὸν δέ ἀλλ᾽ ἐπὶ πλέον τὸ ἑκούσιον τοῦ μὲν γὰρ
ἑκουσίου καὶ παῖδες καὶ τἆλλα ζῷα κοινωνεῖ προαιρέσεως δ᾽ οὔ καὶ τὰ ἐξαίφνης (10) ἑκούσια μὲν λέγομεν κατὰ προαίρεσιν δ᾽rdquo
51 ldquoἔτι δ᾽ ἡ μὲν βούλησις τοῦ τέλους ἐστὶ μᾶλλον ἡ δὲ προαίρεσις τῶν πρὸς τὸ τέλος οἷον ὑγιαίνειν βουλόμεθα προαιρούμεθα δὲ δι᾽ ὧν ὑγιανοῦμεν καὶ εὐδαιμονεῖν βουλόμεθα μὲν καὶ φαμέν προαιρούμεθα δὲ λέγειν οὐχ ἁρμόζει ὅλως (30) γὰρ ἔοικεν ἡ προαίρεσις περὶ τὰ ἐφ᾽ ἡμῖν εἶναιrdquo
52 ldquoἡ γὰρ προαίρεσις μετὰλόγου καὶ διανοίαςrdquo
73
deseja-se conforme o deliberado A deliberaccedilatildeo poreacutem refere-se apenas aos meios
que conduzem a um fim (Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 5 1112 b30)53
513 A definiccedilatildeo do objeto do querer
A reflexatildeo aristoteacutelica em torno do querer ou do desejo racional eacute um debate
latente entre as teses platocircnicas e sofistas que seraacute exposta a seguir Aleacutem disso
muito mais do que uma simples siacutentese entre esses dois posicionamentos Aristoacuteteles
inaugura uma perspectiva nova em torno da teoria das accedilotildees a saber a compreensatildeo
de que o bem aparente eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria ao bem embora natildeo lhe seja
suficiente (Cf ZINGANO 2010 p 193) A tese geral de Aristoacuteteles eacute a de que para uma
coisa ser tomada como fim deve ser tomada como tal pelo agente isto eacute no processo
de direcionamento em busca do bem a questatildeo fundamental eacute como o agente
percebe um determinado objeto O texto aristoteacutelico abre a discussatildeo em torno de se
o querer diz respeito ao fim
Foi dito que o querer concerne ao fim mas a uns parece concernir ao bem a outros ao bem aparente Aos que dizem que o objeto do querer eacute o bem decorre que natildeo eacute objeto do querer o que quer aquele que natildeo escolhe corretamente (pois se for objeto do querer seraacute entatildeo um bem era no entanto no caso um mal) por sua vez aos que dizem que o bem aparente eacute objeto do querer decorre que natildeo existe objeto do querer por natureza mas eacute objeto do querer o que parece bom a cada um (a pessoas diferentes coisas diferentes parecem boas mesmo no caso coisas contraacuterias) (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113 a15 )54
A referecircncia agrave filosofia platocircnica pode ser reconhecida pela proposiccedilatildeo de que
o bem eacute objeto do querer e que apenas este o bem poderia ser o seu objeto Note-
se que o termo original para fim eacute τέλους e que o querer βούλησις se direciona a este
fim porque ele eacute um bem enquanto tal τἀγαθοῦ O inconveniente desta tese para
Aristoacuteteles eacute o fato de que se apenas o bem eacute objeto do querer implica dizer que a
escolha errada tambeacutem seria um bem uma vez que de certo modo tambeacutem ela eacute
querida Assim sendo o fato de os agentes escolherem errado permite concluir que
53 ldquoοὐ γὰρ ἂν εἴη βουλευτὸν τὸ τέλος ἀλλὰ τὰ πρὸς τὰ τέλη οὐδὲ δὴ τὰ καθ᾽ ἕκασταrdquo 54 ldquoἡ δὲ βούλησις ὅτι μὲν τοῦ τέλους ἐστὶν εἴρηται δοκεῖ δὲ τοῖς μὲν τἀγαθοῦ εἶναι τοῖς δὲ τοῦ φαινομένου
ἀγαθοῦ [] συμβαίνει δὲ τοῖς μὲν [τὸ] βουλητὸν τἀγαθὸν λέγουσι μὴ εἶναι βουλητὸν ὃ βούλεται ὁ μὴ ὀρθῶς αἱρούμενος (εἰ γὰρ ἔσται βουλητόν καὶ ἀγαθόν ἦν δ᾽ εἰ οὕτως ἔτυχε κακόν) (20) τοῖς δ᾽ αὖ τὸ φαινόμενον ἀγαθὸν βουλητὸν λέγουσι μὴ εἶναι φύσει βουλητόν ἀλλ᾽ ἑκάστῳ τὸ δοκοῦν ἄλλο δ᾽ ἄλλῳ φαίνεται καὶ εἰ οὕτως ἔτυχε τἀναντίαrdquo
74
o τἀγαθοῦ unicamente natildeo pode ser o uacutenico objeto do querer a menos que se queira
considerar a escolha errada tambeacutem um bem
Jaacute a referecircncia agrave posiccedilatildeo sofista daacute-se em virtude da tese de que o bem eacute um
modo particular de sentir-se atraiacutedo por um objeto que dependendo da disposiccedilatildeo do
agente apresenta-se como bem O φαινομένου ἀγαθοῦ tambeacutem seria um moacutebil do
querer
Apoacutes as objeccedilotildees agraves teses tradicionais Aristoacuteteles comeccedila a expor sua tese
na forma de pergunta ldquose entatildeo estas posiccedilotildees natildeo satildeo satisfatoacuterias natildeo se deve
dizer que eacute objeto do querer sem mais e segundo a verdade o bem enquanto o que
aparece a cada um eacute o bem aparenterdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6
1113 a20)55 Aristoacuteteles entende que primeiramente tanto o homem virtuoso quanto
o de pouco valor desejam um objeto que lhes parece bom entretanto apenas o
virtuoso eacute capaz de querer um objeto verdadeiramente bom Sendo a virtude
consolidada pelo haacutebito o homem virtuoso eacute aquele que aprendeu em termos praacuteticos
a querer o bem Este bem eacute de maior relevacircncia do que um bem aparente φαινομένου
ἀγαθοῦ porque por causa do exerciacutecio das virtudes o homem virtuoso aprendeu a
distinguir o bem e o que apenas tem aparecircncia de bem Entretanto Aristoacuteteles daacute a
entender que o φαινομένου ἀγαθοῦ eacute primeiro a todos os homens na ordem do querer
ldquomas eacute o objeto do querer o que parece bom a cada umrdquo (ARISTOacuteTELES Ethica
Nicomachea 2010 III 6 1113 a20)56
Esta parece ser uma tese central de Aristoacuteteles certamente eacute bom o bem
enquanto tal entretanto eacute necessaacuterio que independente de ser um bem real uma
coisa apareccedila como um bem isto eacute seja tomada como tal pelo agente Esta eacute a
conclusatildeo do prof Marco Zingano sobre esta seccedilatildeo
Parecer um bem ou seja ser um φαινομένου ἀγαθοῦ natildeo eacute meramente uma aparecircncia de caraacuteter enganador como que o platonismo mas eacute principalmente a condiccedilatildeo loacutegica do bem humano isto eacute sua intencionalidade que pode secundariamente se revelar como uma crenccedila falsa um bem aparente no sentido platocircnico do termo (Cf ZINGANO 2010 p 193)
A questatildeo fundamental neste caso natildeo estaacute num caraacuteter pejorativo de uma
aparecircncia de bem que apetece ao querer mas no modo como o ser humano vai se
55 ldquoεἰ δὲ δὴ ταῦτα μὴ ἀρέσκει ἆρα φατέον ἁπλῶς μὲν καὶ κατ᾽ ἀλήθειαν βουλητὸν εἶναι τἀγαθόν ἑκάστῳ
δὲ τὸ φαινόμενονrdquo 56 ldquoτοῖς δ᾽ αὖ τὸ φαινόμενον ἀγαθὸν βουλητὸν λέγουσι μὴ εἶναι φύσει βουλητόνrdquo
75
relacionar com essa representaccedilatildeo Aristoacuteteles tem claro que sem a aparecircncia de
bem natildeo existe a apetecircncia pelo objeto mas ela natildeo dispensa o julgamento do ser
humano ldquoO homem virtuoso julga corretamente (κρίνειὀρθῶς) cada coisa e em cada
uma a verdade se manifesta a elerdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113
a30)57 Pelo julgamento correto κρίνειὀρθῶς o homem chega agrave visatildeo do verdadeiro
em cada coisa O homem virtuoso eacute pois natildeo apenas aquele que age frequentemente
bem mas o que toma posse das razotildees pelas quais age e as tem diante de si e isto
faz dele um homem prudente Se pela phroacutenesis a virtude intelectual eacute posta em
relevo no homem virtuoso suas disposiccedilotildees satildeo moralmente boas
O papel da phroacutenesisna restringe apenas agraves virtudes intelectuais Existe uma
relaccedilatildeo entre a phroacutenesise as virtudes morais assim como existe relaccedilatildeo entre a
phroacutenesise a empeiria Marcelo Perine esclarece este caraacuteter paradigmaacutetico da
phroacutenesis
Aristoacuteteles vai mostrar que phroacutenesis eacute um estado habitual cognitivo isto eacute racional e por isso eacute uma virtude intelectual que contudo pressupotildee seja um estado desiderativo portanto natildeo-racional seja um estado cognitivo natildeo-racional que eacute justamente a experiecircncia (PERINE 2006 p 28)
O objetivo da phroacutenesis satildeo bens humanos e estes satildeo alcanccedilados a medida
que podem estar em consonacircncia com a phroacutenesis Natildeo eacute a toa que o debate entre o
ato voluntaacuterio e o involuntaacuterio envolva aquilo que aparece como bem e o que necessita
de um posterior discernimento Assim nesse processo de desvelamento natildeo se
deixar de lado a importacircncia das intenccedilotildees
Aristoacuteteles natildeo parece citar o termo intencionalidade nas questotildees praacuteticas
mas ela parece estar latente nesta questatildeo da aparecircncia de bem Aristoacuteteles tem claro
que sem a aparecircncia de bem natildeo existe a apetecircncia pelo objeto mas ela natildeo
dispensa o julgamento do ser humano Pelo julgamento correto κρίνειὀρθῶς o
homem chega agrave visatildeo do verdadeiro em cada coisa
A aparecircncia de bem muito mais do que uma aparecircncia enganadora constitui-
se como modus cognoscendi preparatoacuterio e necessaacuterio ao julgamento correto e agrave
visatildeo da realidade da coisa em niacutevel praacutetico Assim ateacute mesmo as coisas que
posteriormente satildeo constatadas como boas tambeacutem requerem uma aparecircncia de
bem e no caso destas um bem real Assim o homem virtuoso eacute pois natildeo apenas
57 ldquoἕκαστα κρίνει ὀρθῶς καὶ ἐν ἑκάστοις τἀληθὲς αὐτῷ φαίνεταιrdquo
76
aquele que age frequentemente bem mas o que toma posse das razotildees pelas quais
age e as tem diante de si e isto faz dele um homem prudente Marco Zingano
acrescenta que
enquanto no homem prudente φρόνιμοςeacute ressaltado o papel da virtude intelectual que opera no interior das virtudes morais no homem virtuoso σπουδαίoς o que eacute posto em relevo eacute o fato de suas disposiccedilotildees serem virtuosas ou moralmente boas (ZINGANO 2010 p 197)
Neste sentido o domiacutenio da virtude pode ser delineado natildeo apenas pelo
homem prudente enquanto capaz de ponderar o que seria a virtude num determinado
caso mas tambeacutem pelo homem virtuoso que eacute capaz e age segundo esta virtude A
relaccedilatildeo entre bem e verdade para Aristoacuteteles inclui agora certo ordenamento
primeiramente aquilo que aparece como bem natildeo eacute necessariamente bom e por isto
mesmo necessita passar pelo julgamento do homem prudente φρόνιμος para em
seguida revelar-se como verdadeiramente boa ou natildeo
A partir do esclarecimento aristoteacutelico entre escolha deliberada e querer
esclarece-se qual o domiacutenio de cada um destes atos e consequentemente qual sua
relaccedilatildeo com as virtudes pertence ao querer ter o fim por objeto enquanto os meios
para alcanccedilaacute-lo dizem respeito agrave escolha deliberada Neste sentido compreende-se
que o fim eacute apenas reconhecido isto eacute natildeo se constitui como objeto de escolha O
acircmbito das escolhas satildeo os meios isto eacute as accedilotildees que dizem respeito a elas satildeo por
escolha delibera e voluntaacuterias Aristoacuteteles completa dizendo que ldquoas atividades das
virtudes envolvem estas coisasrdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 7 1113
b5) A conclusatildeo de Aristoacuteteles eacute a de que escolha deliberada relaciona-se diretamente
agraves virtudes uma vez que elas satildeo meio e sobre elas se pode deliberar Assim sendo
um entendimento adequado das virtudes requer a distinccedilatildeo entre a escolha deliberada
e os diversos outros atos humanos
Ao final do tratado dos atos Aristoacuteteles se posiciona acerca do que vem a ser
o engano no julgamento em relaccedilatildeo agraves accedilotildees ldquoagrave turba do engano parece engendrar-
se devido ao prazer pois natildeo sendo de fato um bem parece serrdquo (ARISTOacuteTELES
Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113 b1) Com isso talvez seja possiacutevel afirmar que
para Aristoacuteteles o prazer de certo modo natildeo contribui com o voluntaacuterio
Tomaacutes de Aquino adota uma postura distinta de Aristoacuteteles neste ponto preciso
Segundo ele o desejo sensiacutevel caminhando no mesmo sentido da vontade para um
77
certo bem contribui para aumentar o caraacuteter voluntaacuterio das accedilotildees ou seja a
sensibilidade formada pela virtude pode por vezes participar de uma accedilatildeo boa
Assim a conclusatildeo que Tomaacutes de Aquino propotildee eacute dizer que a causa do involuntaacuterio
natildeo estaacute necessariamente no desejo sensiacutevel embora ele possa eventualmente
obscurecer o juiacutezo
52 A SIacuteNTESE TOMISTA ATOS HUMANOS E FILOSOFIA MORAL
A tarefa a ser desenvolvida agora se refere agrave necessidade de desenvolver os
conceitos relevantes da teoria tomista dos atos e a partir deles aprofundar em que
medida Tomaacutes de Aquino opera uma siacutentese entre o pensamento grego e a Tradiccedilatildeo
Cristatilde Eacute impressionante como a alguns dos conceitos de Tomaacutes de Aquino encontram
traduzem bem o que Aristoacuteteles tratou em sua teoria dos atos
A distinccedilatildeo tomista entre o irasciacutevel e o concupisciacutevel corresponde a esta
observaccedilatildeo aristoteacutelica sobre o voluntaacuterio e o involuntaacuterio Pode-se afirmar que o
concupisciacutevel estaacute como moacutebil externo em relaccedilatildeo ao voluntaacuterio enquanto o irasciacutevel
estaacute como moacutebil externo em relaccedilatildeo ao involuntaacuterio Neste sentido eacute possiacutevel afirmar
que Tomaacutes de Aquino aprofunda o conceito aristoteacutelico de voluntaacuterio e involuntaacuterio
Qual o aprofundamento que Tomaacutes de Aquino promove Primeiramente uma
coisa apeteciacutevel nem sempre eacute da ordem da razatildeo como objeto proacuteprio pois eacute
possiacutevel haver um moacutebil apenas do apetite sensitivo ou concupisciacutevel Outro elemento
fundamental eacute que Tomaacutes compreende que o voluntaacuterio natildeo significa
necessariamente o livre pois a vontade pode natildeo seguir necessariamente agrave
iluminaccedilatildeo da inteligecircncia Neste caso a adesatildeo eacute fruto da eleiccedilatildeo do livre-arbiacutetrio
mas natildeo eacute necessariamente expressatildeo da liberdade enquanto tal
Tomaacutes tambeacutem aprofunda a ideia de intencionalidade que apenas de modo
latente podia-se encontrar na Eacutetica a Nicocircmacos Com efeito Tomaacutes de Aquino vai
retomar o problema da intencionalidade expressamente com este termo O autor
assume a posiccedilatildeo de que o bem que eacute objeto do querer ou da vontade natildeo precisa
necessariamente ser um bem na coisa mesma mas um bem apreendido Deste
modo o querer se move em direccedilatildeo a uma coisa que foi apreendida como um bem
Pode-se concluir portanto que o bem aparente seja uma condiccedilatildeo necessaacuteria
embora natildeo suficiente para se saber se alguma coisa eacute realmente boa A teoria tomista
78
dos atos segue aprofundando ou forjando novos conceitos que doravante faratildeo parte
da Eacutetica Ocidental Eacute em virtude desta influecircncia que a exposiccedilatildeo da teoria tomista
dos atos se justifica
521 Os atos humanos em Santo Tomaacutes de Aquino
O proacutelogo da Prima Secundae da Suma Teoloacutegica inicia com a afirmaccedilatildeo
de que eacute pelo livre-arbiacutetrio que o homem eacute imagem de Deus Eacute em virtude da posse
de seu agir isto eacute do poder agir por si mesmo que o homem se assemelha a Deus
O tema biacuteblico da semelhanccedila entre Deus e o homem eacute que vai orientar o estudo dos
atos humanos em Tomaacutes de Aquino O homem vai unir-se ao seu exemplar divino na
bem-aventuranccedila prometida E sendo esta o fim do homem o tema biacuteblico da
semelhanccedila pelo livre-arbiacutetrio e a noccedilatildeo de fim do homem promove atraveacutes de
Tomaacutes uma siacutentese entre o pensamento grego e o pensamento cristatildeo
O estudo dos atos humanos em Tomaacutes de Aquino engloba o tratado das
paixotildees com o objetivo de aprofundar de que maneira a sensibilidade pode contribuir
aos atos voluntaacuterios de modo que este estudo pode ser apresentado como um dos
mais profundos acerca do agir humano no plano moral Faz-se necessaacuterio pois uma
apresentaccedilatildeo do plano conjunto do trabalho de Tomaacutes de Aquino para
posteriormente refletir acerca das particularidades em relaccedilatildeo agrave temaacutetica da
reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica
A beatitude eacute a condiccedilatildeo mais almejada pelo cristatildeo Ela se constitui na visatildeo
amante de Deus eacute a bem-aventuranccedila A teoria dos atos humanos se encontra em
consonacircncia com a beatitude pois ela eacute o fim uacuteltimo do homem Neste sentido pode-
se afirmar que a eacutetica de Santo Tomaacutes eacute uma eacutetica da felicidade o que se encontra
profundamente em sintonia com a mensagem das bem-aventuranccedilas mas tambeacutem
se harmoniza com a moral aristoteacutelica enquanto uma eacutetica dos fins
O ser humano se encaminha agrave felicidade de modo particular A felicidade eacute
pois fruto das accedilotildees particulares auxiliadas pela graccedila de Deus Desse modo as
accedilotildees humanas devem ser compreendidas em seus aspectos fundamentais a saber
uma dimensatildeo voluntaacuteria obra de uma vontade livre que o estudo sobre os atos
humanos contempla e uma dimensatildeo ligada agrave sensibilidade contemplada no estudo
sobre as paixotildees da alma
79
522 Sindeacuterese e consciecircncia
Segundo Tomaacutes de Aquino a sindeacuterese eacute um habitus (cf AQUINO Tomaacutes
de S Th I 79 a12)58 Uma compreensatildeo adequada da Sindeacuterese exige um
aprofundamento acerca do modus operandi do raciociacutenio humano O intelecto em
virtude de seu objeto quando raciocina acerca de coisas inteligiacuteveis diz-se que se
ldquomoverdquo como um intelecto especulativo e quando raciocina sobre coisas da accedilatildeo se
move como uma razatildeo praacutetica Assim como haacute princiacutepios de ordem especulativa os
princiacutepios praacuteticos se relacionam agrave sindeacuterese como um habito natural especial Sua
funccedilatildeo eacute incitar o bem e condenar o mal Ela funciona como uma intuiccedilatildeo dos
primeiros princiacutepios da lei moral Eacute curioso o fato de Tomaacutes de Aquino definir a
Sindeacuterese como um habitus mas de natureza inata A Sindeacuterese natildeo se confunde
com a consciecircncia Ela eacute uma intuiccedilatildeo dos primeiros princiacutepios da moral enquanto
que a consciecircncia eacute o ato pelo qual se julga um ato que se realizou ou que seraacute
realizado Em seu ato a consciecircncia supotildee natildeo apenas a Sindeacuterese mas todo o
conhecimento moral que se apoacuteia sobre ela
A noccedilatildeo tomista da consciecircncia eacute a de que ela eacute um ato A funccedilatildeo da
consciecircncia eacute atestar obrigar e incitar e ainda acusar reprovar ou repreender (cf
AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)59 Estas funccedilotildees da consciecircncia se efetivam a
medida em o agente tem conhecimento ou ciecircncia do que se faz Tomaacutes de Aquino
esclarece que este conhecimento se daacute de trecircs maneiras quando se reconhece o que
se faz ou o que natildeo foi feito afirma-se que a consciecircncia atesta (Cf AQUINO Tomaacutes
de S Th I 79 a13)60 quando se julga que eacute preciso fazer ou natildeo uma accedilatildeo diz-se
que a consciecircncia incita ou obriga (Cf AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13 )61 e quando
se julga o meacuterito do que foi feito diz-se que a consciecircncia escusa62 acusa ou reprova
(cf AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)63
58 ldquoSynderesis non est potentia sed habitusrdquo 59 ldquoDicitur enim conscientia testificari ligare vel intigare et etiam accusare vel remordere sive
reprehendererdquo 60 ldquoQuod recognoscimus aliquid nos fecisse vel non fecisse [] conscientia dicitur testificarirdquo 61 ldquoQuod per nonstram conscientiam iudicamos aliquid esse faciendum vel non faciendum et secundum
hoc dicitur conscientia instigare vel ligarerdquo 62A escusa eacute uma razatildeo ou um pretexto invocado para eximir de uma obrigaccedilatildeo 63 ldquoQuod per conscientiam iudicamus quod aliquid quod est factum sit bene factum vel non bene factum
et secundum hoc conscientia dicitur excusare vel accusare seu remordererdquo
80
Tomaacutes de Aquino acrescenta que para desenvolver estas funccedilotildees faz-se
necessaacuteria ldquouma aplicaccedilatildeo atual de nosso conhecimento agrave nossa accedilatildeordquo (AQUINO
Tomaacutes de S Th I 79 a13)64 Esta informaccedilatildeo eacute relevante uma vez que a partir dela
entende-se que o autor natildeo estaacute a considerar o exerciacutecio da consciecircncia moral como
um funcionamento constante Isto eacute a consciecircncia passa a atuar efetivamente quando
os objetos relativos agraves accedilotildees assim a solicitam De certo modo esta compreensatildeo da
consciecircncia mitiga um entendimento contemporacircneo de que a concepccedilatildeo cristatilde de
homem da qual o pensamento moderno eacute devedor acreditaria que o homem pensado
como animal racional implicaria num actus ratiocinandi ad infinitum65
Ao final das consideraccedilotildees sobre a consciecircncia Tomaacutes de Aquino esclarece
como consciecircncia e sindeacuterese se relacionam Embora a consciecircncia seja um ato ela
natildeo eacute atualizada o tempo inteiro mas sempre que objetos relativos agrave sua accedilatildeo Desse
modo a consciecircncia necessita de um habitus que a faccedila atualizar-se A sindeacuterese
que conteacutem os primeiros princiacutepios da moral eacute quem naturalmente coopera na
atualizaccedilatildeo da consciecircncia
Deve-se dizer que o ato se permanece sempre em si mesmo permanence entretanto sempre em sua causa a potecircncia ou o habitus Os habitus pelos quais a consciecircncia eacute informada ainda que sejam muitos todos recebem a sua eficaacutecia de um primeiro a saber do habitus dos primeiros princiacutepios que se chama sindeacuterese Por isso e de modo especial esse habitus eacute por vezes chamado consciecircncia (AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)66
A relevacircncia desta afirmaccedilatildeo diz algo a mais sobre a concepccedilatildeo tomista de
homem Em relaccedilatildeo agraves questotildees da accedilatildeo pode-se afirmar que a consciecircncia moral eacute
o proacuteprio pensamento praacutetico que eacute posto em movimento por um habitus natural Uma
vez que este habitus natildeo eacute a razatildeo mesma em funcionamento talvez seja possiacutevel
defender que em Tomaacutes de Aquino haacute algo anaacutelogo ao lebenswelt russeliano um
mundo da vida ou uma instacircncia que de certo modo eacute anterior ao ato de raciocinar
523 O conceito de vontade
64 ldquoPatet autem quod omnia haec consequuntur actualem applicationem scientiae ad ea quae agimusrdquo 65 Para um melhor entendimento desta tese conferir o prefaacutecio de Ser e Tempo de Martim Heidegger 66 ldquoDicendum quod actus etsi non semper maneat in se semper tamen Manet in sua causa quae est
potentia et habitus Habitus autem ex quibus conscientia informatur etsi multi sint omnes tamen efficaciam habent ab uno primo scilicet ab habitu primorum principiorum qui dicitur synderesis Unde specialiter hic habitus interdum conscientia nominaturrdquo
81
Segundo Tomaacutes de Aquino o conceito de vontade se alinha agrave noccedilatildeo de
necessidade e estes se relacionam agrave noccedilatildeo de telos entendido aqui como a felicidade
que eacute um bem desejado por todos Tomaacutes de Aquino distingue diferentes noccedilotildees de
necessidade necessitas naturalis et absoluta necessitas finis e necessitas coactionis
A necessitas naturalis se apresenta quando a uma coisa algo se apresenta
em virtude de seus princiacutepios intriacutensecos sejam materiais ou formais Materialmente
eacute naturalmente necessaacuterio que o composto de contraacuterios se corrompa Formalmente
eacute naturalmente necessaacuterio que os acircngulos internos de um triacircngulo sejam iguais a
dois acircngulos retos Existem tambeacutem princiacutepios extriacutensecos que garantem este tipo de
necessidade diga-se por exemplo a morte como causa final ou a geraccedilatildeo como
causa eficiente (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)67
A necessitas finis se potildee quando algueacutem natildeo pode atingir seu fim ou atingi-lo
convenientemente sem esse princiacutepio Tomaacutes de Aquino cita o exemplo da
alimentaccedilatildeo para atingir uma vida saudaacutevel ou o cavalo para se chegar ao destino
pretendido (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1 )68 Finalmente quando um ente
eacute constrangido de tal modo que natildeo pode fazer o contraacuterio a necessidade eacute pensada
como necessitas coactionis (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)69
Deve-se perceber que a necessitas coactionis eacute contraacuteria agrave vontade pois se
constitui como uma violecircncia agrave inclinaccedilatildeo de ser humano Natildeo eacute difiacutecil chegar a uma
compreensatildeo da liberdade em Tomaacutes de Aquino atraveacutes das elucidaccedilotildees acerca do
conceito de vontade Pode-se afirmar primeiramente que a liberdade se refere a uma
ausecircncia de constrangimento externo Este se constitui como um niacutevel baacutesico da
noccedilatildeo de liberdade Aleacutem disso eacute importante salientar que seraacute possiacutevel estabelecer
uma distinccedilatildeo entre a liberdade como ausecircncia de constrangimento interno e a
liberdade como uma orientaccedilatildeo racional ao fim e inclusive como independecircncia em
relaccedilatildeo aos ditames de livre-arbiacutetrio que eacute a fonte mais primordial de exerciacutecio da
vontade mas que ainda natildeo pode ser considerada liberdade no sentido pleno
Uma vez que o conceito de vontade (ou voluntaacuterio) oferece ldquoluzesrdquo ao conceito
de liberdade eacute tambeacutem possiacutevel chegar ao conceito de involuntaacuterio e este relaciona-
67 ldquoSobre a necessitas naturalis et absoluta Tomaacutes de Aquino afirma Quod quid convenit alicui uno
modo ex principio intriacutenseco sive materiali [] sive formali [] Alio modo convenit alicui quod non possit non esse ex aliquo extriacutenseco vel fine vel agenterdquo
68 ldquoFine quidem aut bene consequi finem aliquem ut cibus dicitur necessaries ad vitam et equus ad iter Et haec vocatur necessitas finis quae interdum etiam utilitas diciturrdquo
69 ldquoEx agente autem hoc alicui convenit sicut cum aliquis cogitur ab aliquo agente it quod non possit contrarium agere Et haec vocatur necesssitas coactionisrdquo
82
se ao conceito de necessitas coactionis Um agente constrangido a fazer o que natildeo
deseja eacute algueacutem que age involuntariamente Mas a liberdade estaacute para aleacutem do agir
pois eacute ateacute possiacutevel obrigar que algueacutem faccedila alguma coisa mas natildeo eacute possiacutevel obrigaacute-
lo a querer fazer
Assim pois Tomaacutes de Aquino entende que o movimento da vontade eacute uma
certa inclinaccedilatildeo para algo Desse modo ldquoassim como se chama natural o que eacute
segundo a inclinaccedilatildeo da natureza chama-se de voluntaacuterio o que eacute segundo a
inclinaccedilatildeo da vontaderdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1) Entretanto este apetite
denominado de vontade eacute de natureza racional Para entender esta afirmaccedilatildeo deve-
se estabelecer em relaccedilatildeo agrave vontade agrave distinccedilatildeo entre irasciacutevel e o concupisciacutevel
A alma possui potecircncias sensitivas e intelectivas estas uacuteltimas satildeo tambeacutem
chamadas de potecircncias espirituais O apetite sensitivo se diversifica em concupisciacutevel
quando se refere agrave razatildeo de bem no sentido daquilo que agrada aos sentidos e em
irasciacutevel quando se refere agrave razatildeo de bem enquanto se busca evitar aquilo que eacute
prejudicial (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a5)70 Estes apetites satildeo ambos da
ordem da sensibilidade A vontade poreacutem diz respeito agrave razatildeo faz parte dela
voluntas in ratione est A vontade eacute proacuteprio apetite intelectivo e por isso mesmo o
bem a que a vontade apetece eacute o bem sob razatildeo universal
Este conceito aprofunda a noccedilatildeo de voluntaacuterio e involuntaacuterio e eacute entendido
como um movente das accedilotildees tanto naturalmente como teleologicamente Natildeo haacute
segundo Tomaacutes de Aquino uma oposiccedilatildeo entre a necessidade de um fim e a ideia de
vontade ldquoA necessidade de fim natildeo repugna agrave vontade quando ela natildeo pode atingir
esse fim senatildeo por um soacute meio por exemplo quando se tem a vontade de atravessar
o mar eacute necessaacuterio a vontade que queira um naviordquo (AQUINO Tomas de S Th I q
82 a1)71 Resulta claramente que natildeo haacute oposiccedilatildeo entre a liberdade e teleologia em
Tomaacutes de Aquino
Desse modo Tomaacutes de Aquino compatibiliza a ideia de liberdade com a ideia
de fim Analogicamente assim como o intelecto adere aos primeiros princiacutepios a
vontade deve pois aderir ao fim uacuteltimo que eacute a bem-aventuranccedila uma vez que a
70ldquoAppetitus autem sensitivus non respicit comunem rationem boni quia nec sensus apprehendit
universal Et ideo secundum diversas rationes particularium bonorum diversiticantur partes appetites sensitive nam concupiscibilis respicit propriam rationem boni inquantum est delectabile secundum sensum et conveniens naturae irascibilis autem respicit rationem boni secundum quod est repulsivum et impugnativum eius quod infet nocumentumrdquo
71 ldquoNecessitas autem finis non repugnat valuntati quando ad finem non potest perveniri nisi uno modo sicut ex voluntate transeundi mare fit necessitas in voluntate ut velit navemrdquo
83
bem-aventuranccedila ou a felicidade eacute almejada por todos Assim sendo compreende-
se que o fato de haver uma vontade natural natildeo implica uma contradiccedilatildeo com uma
vontade livre
Um esclarecimento deve ser feito nestas teses de Tomaacutes de Aquino Ele retira
a felicidade como sendo o fim uacuteltimo do homem pelo fato de todos os seres humanos
serem dotados de vontade e este desejo eacute universal pois decorre da natureza humana
o fato de todos desejarem ser felizes Poucas pessoas parecem duvidar desta tese
entretanto eacute possiacutevel concluir que o problema natildeo estaacute no fato de todos desejarem a
felicidade mas no itineraacuterio que cada pessoa particularmente percorre para atingi-la
Tomaacutes de Aquino salienta que a escolha natildeo versa sobre o fim ela versa sobre
os meios para o fim (Cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)72 Isto implica em dizer
que o fato de a felicidade ser o fim uacuteltimo do homem natildeo tem nada aver com sua
escolha uma vez que este eacute o fim natural a que todos tendem o destino potencial de
todo homem Por que o destino potencial Naturalmente este ldquodestinordquo natildeo implica
um fim inexoraacutevel mas o horizonte que daacute sentido agraves accedilotildees praticadas Elas devem
ser orientadas de modo a tornar mais acessiacutevel o alcance desse fim Na eacutetica de
Tomaacutes de Aquino assim como na eacutetica de Aristoacuteteles as accedilotildees satildeo apropriadas em
virtude do bem que elas proporcionam e natildeo porque o valor das accedilotildees se encerra
nelas proacuteprias A eacutetica de Tomaacutes de Aquino seguindo a moral aristoteacutelica vai propor
o exerciacutecio das accedilotildees virtuosas como o meio para se atingir essa felicidade
O ato de buscar a felicidade atraveacutes das virtudes aleacutem de ser a maneira mais
adequada a essa busca apresenta indiretamente a forccedila que a ideia de liberdade
possui na eacutetica cristatilde Henrique de Lima Vaz lendo Hegel afirma que ldquoa ideia de
liberdade pertence agrave esfera da manifestaccedilatildeo mais alta do Espiacuterito da sua
manifestaccedilatildeo como razatildeordquo e complementa ldquopara Hegel o momento decisivo em que
na cultura do Ocidente a razatildeo se manifesta como liberdade tem lugar com o advento
do Cristianismordquo (VAZ 2002 p 14) No esquema geral da Suma Teoloacutegica eacute por livre
vontade que homem opera um caminho de retorno a Deus Assim a ideia de liberdade
pode ser apontada como elemento distinto na reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e o
pensamento cristatildeo
72 ldquoElectio autem non est de fine sed de his quae sunt ad finemrdquo
84
524 A relaccedilatildeo entre inteligecircncia e vontade
A Inteligecircncia e a vontade satildeo duas potecircncias espirituais e ambas fazem parte
da capacidade racional das substacircncias intelectuais Tomaacutes de Aquino investiga a
relaccedilatildeo de superioridade de uma potecircncia em relaccedilatildeo a outra a partir da noccedilatildeo de
superioridade em termos absolutos e em termos relativos Tomaacutes de Aquino explica o
sentido de absoluto e relativo
A superioridade de uma coisa sobre outra pode ser considerada de dois modos quer absolutamente quer relativamente Uma coisa eacute tal absolutamente quando ela eacute isso em si mesma e eacute tal relativamente quando o eacute em relaccedilatildeo a outra (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a3)73
Absolutamente o intelecto eacute superior agrave vontade uma vez que a razatildeo do bem
desejaacutevel eacute apreendida pelo intelecto e este bem eacute objeto da vontade Nesse sentido
a superioridade daquele em relaccedilatildeo a esta se daacute porque eacute em virtude da accedilatildeo do
intelecto que a vontade se apropria de seu objeto Sem a accedilatildeo do intelecto entende-
se que a vontade natildeo teria o seu objeto mais proacuteprio Nesse caso o intelecto
considerado em si mesmo e absolutamente eacute uma potecircncia superior agrave vontade
Tomaacutes de Aquino esclarece
O objeto do intelecto eacute mais simples e absoluto que o da vontade Com efeito o objeto do intelecto eacute a proacutepria razatildeo do bem desejaacutevel e o bem desejaacutevel cuja razatildeo estaacute no intelecto eacute objeto da vontade Ora quanto mais uma coisa eacute simples e abstrata tanto mais eacute em si mesma mais nobre e superior Portanto o objeto do intelecto eacute superior ao objeto da vontade (AQUINO Tomas de S Th I q 82
a3)74
A partir desta afirmaccedilatildeo compreendem-se as duas grandes linhas da eacutetica
cristatilde que influenciaram por demais o desenvolvimento da filosofia moral no
Ocidente De um lado haacute os que defendem uma precedecircncia do intelecto sobre a
vontade assim como Tomaacutes de Aquino e estes satildeo chamados de intelectualistas
73 ldquoquod eminentia alicuius ad alterum potest attendi dupliciter uno modo simpliciter alio modo
sedundum quid Consideratur autem aliquid tale simpliciter prout est secundum seipsum tale secundum quid autem prout dicitur tale secundum respectum ad alterumrdquo
74 ldquoObiectum enim intellectus est simplicius et magis absolutum quam obiectum voluntatis nam obiectum intellectus est ipsa ratio boni appetibilis bonum autem appetibile cuius ratio est in intellectu est obiectum voluntatis Quanto autem aliquid est simplicius et abstractius tanto secundum se est nobilius et altius Et ideo obiectum intellectus est alius quam obietum voluntatis Cum ergo proacutepria ratio potentiae sit secundum ordinem ad obiectum sequitur quod secundum se et simpliciter intellectus sit altior et nobilior voluntaterdquo
85
Por outro lado os pensadores que defendem que intelecto e vontade tecircm o mesmo
status sendo a vontade igualmente autocircnoma independente do intelecto no seu
operar satildeo chamados de voluntaristas
Em termos relativos eacute possiacutevel considerar que a vontade seja superior ao
intelecto pois o objeto da vontade eacute superior ao do intelecto se se considerar que eacute
melhor amar a Deus do que conhececirc-lo Desse modo e relativamente ldquoquando a coisa
na qual estaacute o bem eacute mais nobre que a proacutepria alma em que se encontra a razatildeo desta
coisa a vontade eacute superior ao intelectordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a3 )75 O
bem eacute objeto de inclinaccedilatildeo da vontade O intelecto conhece o fim uacuteltimo e o
proporciona agrave vontade que por sua vez move todas as outras potecircncias em busca
desse bem que eacute a felicidade perfeita
Eacute possiacutevel notar uma pequena distinccedilatildeo entre Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino
No livro X da Eacutetica a Nicocircmacos Aristoacuteteles defende que a felicidade perfeita consiste
na vida contemplativa isto eacute na accedilatildeo do intelecto
Mas se a felicidade consiste na atividade conforme agrave excelecircncia eacute razoaacutevel que ela seja uma atividade conforme a mais alta de todas as formas de excelecircncia e esta seraacute a excelecircncia da melhor parte de cada um de noacutes Se esta parte melhor eacute o intelecto ou qualquer outra parte considerada naturalmente dominante em noacutes e que nos dirige e tem o conhecimento das coisas nobilitantes e divinas se ela mesma eacute divina ou somente a parte mais divina existente em noacutes entatildeo sua atividade conforme agrave espeacutecie de excelecircncia que lhe eacute pertinente seraacute a felicidade perfeita Jaacute dissemos que esta atividade eacute contemplativa (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco 1176b4 2001 p 201)
Por outro lado a posiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino se dirige primeiramente a
considerar a felicidade como estado no qual o amor como accedilatildeo da vontade atuaria
mais primordialmente que o intelecto Aquilo que possui uma existecircncia espiritual seja
Deus outra pessoa a proacutepria verdade ou ainda a beleza eacute superior ao ato de
pensar Tomaacutes de Aquino conserva a tese aristoteacutelica de superioridade do intelecto
entretanto ao inserir a distinccedilatildeo entre superioridade absoluta e superioridade relativa
coloca a felicidade em relaccedilatildeo ao amor e natildeo ao conhecimento
O ponto de equiliacutebrio entre as teses desses dois autores estaacute no lugar onde a
felicidade deve ser efetivada Aristoacuteteles pensava a felicidade circunscrita agrave Cidade
75 ldquoQuando igitur res in qua est bonum est nobilior ipsa anima in qua est ratio intellect per
comparationem ad talem rem voluntas est altior intellecturdquo
86
mas de certo modo desapegada como uma atividade autocircnoma isto eacute auto-
suficiente Aristoacuteteles acrescenta
Somente esta atividade parece ser estimada por sua proacutepria causa pois nada decorre dela aleacutem da proacutepria atividade de contemplar enquanto com as atividades de ordem praacutetica obtemos algumas vantagens maiores ou menores aleacutem da proacutepria accedilatildeo (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco 1176b4 2001 1177b p 202)
A vida feliz ou beatitude para Tomaacutes de Aquino soacute pode ser encontrada na
totalidade do bem na realizaccedilatildeo concreta e efetiva do Bem universal o que implica
num processo de retorno a Deus pois esta vida natildeo comporta a realizaccedilatildeo da
felicidade enquanto tal Esta concepccedilatildeo de Beatitude promove uma profunda
revoluccedilatildeo em relaccedilatildeo ao pensamento grego e o pensamento cristatildeo A
eudaimoniapara Aristoacuteteles encontra seu sentido no cosmocentrismo grego Por outro
lado a ideia de Beatitude ultrapassa os limites do cosmos grego De modo que Tomaacutes
de Aquino assume a ideia de Felicidade como fim uacuteltimo do ser humano mas ela eacute
realizada num niacutevel que estaacute para aleacutem do cosmocentrismo grego A superaccedilatildeo do
cosmocentrismo grego pelo teocentrismo cristatildeo seraacute elucidado mais adequadamente
adiante Antes poreacutem deve ser aprofundada a questatildeo da liberdade do ato voluntaacuterio
525 A liberdade do ato voluntaacuterio e a distinccedilatildeo entre liberdade e livre-
arbiacutetrio
A teoria tomista do livre-arbiacutetrio eacute de certo modo uma busca por compreender
o que diz respeito ao intelecto e agrave vontade num ato livre Dito de outra maneira o
empreendimento de Tomaacutes de Aquino pode ser traduzido pela seguinte pergunta
existe num ato livre a atuaccedilatildeo de alguma outra potecircncia aleacutem da inteligecircncia e da
vontade Seu aprofundamento acerca dessa temaacutetica traz distinccedilotildees fundamentais
que aleacutem de se fundamentarem no questionamento aristoteacutelico acerca do voluntaacuterio
e do involuntaacuterio promovem distinccedilotildees que seratildeo essenciais agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica
posterior
O desenvolvimento da questatildeo do livre-arbiacutetrio estaacute na questatildeo 83 da primeira
parte da Suma Teoloacutegica A questatildeo eacute dividida em quatro artigos e defende a tese
geral de que a liberdade eacute uma propriedade do ato voluntaacuterio na condiccedilatildeo de que
87
este seja exprimido em um juiacutezo que incida sobre a conveniecircncia ou natildeo do objeto do
querer A liberdade do homem consiste pois num ato de julgar que natildeo eacute
condicionado
O significado dos preceitos conselhos exortaccedilotildees assim como das
proibiccedilotildees recompensas e penas soacute estaacute garantido graccedilas ao livre-arbiacutetrio Tomaacutes
de Aquino estabelece uma distinccedilatildeo entre coisas que agem sem julgamento outras
que agem com julgamento e mesmo assim natildeo satildeo livres e outras que agem com o
julgamento livre
Deve-se considerar que certas coisas agem sem julgamento Por exemplo a pedra que se move para baixo e igualmente todas as coisas que natildeo tecircm conhecimento Outras coisas agem com julgamento mas esse natildeo eacute livre como os animais Por exemplo a ovelha vendo o lobo julga que eacute preciso fugir eacute um julgamento natural mas natildeo livre pois natildeo julga por comparaccedilatildeo mas por instinto natural [] o homem poreacutem age com julgamento porque por sua potecircncia cognoscitiva julga que se deve fugir de alguma coisa ou procuraacute-la Mas como esse julgamento natildeo eacute efeito de um instinto natural aplicado a uma accedilatildeo particular mas de uma certa comparaccedilatildeo da razatildeo por isso o homem age com julgamento livre podendo se orientar para diversos objetos (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1 )76
A liberdade tem a ver com o libero iudicium O julgamento livre eacute a expressatildeo
mais perfeita da liberdade do ser humano Aqui Tomaacutes de Aquino estabelece uma
distinccedilatildeo importante a saber a distinccedilatildeo entre o julgamento natural ou instintivo e o
julgamento racional Embora ambos sejam julgamentos lsquopraacuteticosrsquo apenas o ente que
possui o livre-arbiacutetrio isto eacute possui julgamento racional eacute senhor desse julgamento
Ambos os juiacutezos satildeo mandados pois prescrevem que o agente deve fazer algo mas
somente o ente que possui livre-arbiacutetrio atraveacutes da potecircncia cognoscitiva o intelecto
pode apresentar a si um julgamento que conduza ao bem Portanto eacute pela
racionalidade que o homem eacute dotado de livre-arbiacutetrio
Aqui se apresenta um questionamento importante por que muitas vezes
deseja-se contrariamente ao que o intelecto indica E como pode um ente que tem
seu ser criado ser livre As respostas podem ser encaminhadas da seguinte forma
76 ldquoConsiderandum est quod quaedam agunt absque iudicio sicut laacutepis movetur deorsum et similiter
omnia cognitione carentia Quaedam autem agunt iudicio sed non libero sicut animalia bruta Iudicat enim ovis videns lupum eum esse fugiendum naturali iudicio et non libero quia non ex collatione sed ex naturali instinctu hoc iudicat [] Sed homo agit iudicio quia per vim cognoscitivam iudicat aliquid iudicium istud non est ex naturali instinctu in particulari operabili sed ex collatione quadam rationis ideo agit libero iudicio potens in diversa ferrirdquo
88
em relaccedilatildeo agrave primeira pergunta diz-se que o fato de haver uma escolha da razatildeo natildeo
impede o desejo do apetite sensiacutevel mas pode impedir a sua realizaccedilatildeo Neste
sentido pode-se entender que a liberdade natildeo eacute necessariamente natildeo ter um
determinado desejo mas de certo modo consiste em estar acima das proacuteprias
inclinaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave segunda questatildeo o proacuteprio Tomaacutes de Aquino afirma que
ldquonatildeo eacute necessaacuterio agrave liberdade que o que eacute livre seja a causa primeira de si mesmordquo
(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1 )77 Assim mesmo que o homem tenha seu ser
por outro seja um ensab alio em relaccedilatildeo aos seus julgamentos ele permanece livre
e conta com o respeito de Deus em relaccedilatildeo agrave sua liberdade pois ldquoDeus opera em
cada um segundo a natureza que lhe eacute proacutepriardquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83
a1)78
Note-se que Tomaacutes de Aquino natildeo fala em accedilotildees livres mas em julgamentos
livres Ora eacute ateacute possiacutevel entender que alguma forccedila externa possa obrigar algueacutem a
agir de determinada maneira de modo que este seja obrigado a fazer algo que na
verdade natildeo deseje Embora ele possa fazer isto natildeo implica que ele queira fazer
Assim sendo mesmo que natildeo se mencione a palavra intenccedilatildeo ela estaacute latente neste
artigo da Suma Com isto eacute possiacutevel compreender a radicalidade com que Tomaacutes de
Aquino concebe a liberdade humana a ponto de considerar que ldquonada haacute que repugne
a liberdade do livre-arbiacutetriordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1)79
Todas as deliberaccedilotildees e accedilotildees do ser humano passam pela faculdade racional
ateacute mesmo as inclinaccedilotildees do apetite sensiacutevel devem passar pelo assentimento ou natildeo
da razatildeo A razatildeo por ateacute obedecer a um destes apetites ditos inferiores (cf AQUINO
Tomaacutes de S Th I q 83 a1)80 E aqui eacute possiacutevel aprofundar a noccedilatildeo tomista de
liberdade Com efeito a liberdade do ser humano eacute tamanha que mesmo o
assentimento do homem a algum apetite sensitivo eacute ainda ato de uma razatildeo sem
constrangimento mas que natildeo eacute livre enquanto tal pois a liberdade mesma eacute aquela
na qual o ser humano escolhe em favor do que eacute melhor isto eacute em favor do bem O
livre-arbiacutetrio eacute pois uma potecircncia que eacute sujeito da graccedila e com o seu auxiacutelio escolhe
o bem (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a2)81
77 ldquoNon tamen hoc est de necessitate libertatis quod sit prima causa sui id quod liberum estrdquo 78 ldquoOperatur enim in unoquoque secundum eius proprietatemrdquo 79 ldquoEt sic nihil est quod libertati arbitrii repugnetrdquo 80 ldquoSed istae inclinationes subiacent iudicio rationis cui obedit inferior appetitus ut dictum estrdquo 81 ldquoSed liberum arbitrium est subiectum gratiae qua sibi assistente bonum eligit Ergo liberum arbitrium
est potentiardquo
89
Natildeo eacute de se admirar que a graccedila seja auxiliar do livre-arbiacutetrio O seu auxiacutelio natildeo
implica uma negaccedilatildeo da liberdade do homem uma vez que este por si mesmo pode
negar o este auxiacutelio Contudo natildeo dirigir as escolhas em favor do bem eacute abrir matildeo
de ser realmente livre Esta eacute uma relaccedilatildeo curiosa pois sem o livre-arbiacutetrio natildeo se
pode ser livre mas com a sua atuaccedilatildeo se pode ateacute escolher mas natildeo ser livre
propriamente Tomaacutes afirma que ldquoo livre-arbiacutetrio eacute indiferente a escolher bem ou malrdquo
(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a2)82 Assim sendo sem o livre-arbiacutetrio natildeo eacute
possiacutevel algueacutem ser livre mas com ele a liberdade ainda natildeo estaacute garantida Ser livre
eacute estar livre de todas as formas de submissatildeo inclusive a do livre-arbiacutetrio quando este
escolhe o mal
Esta distinccedilatildeo eacute por demais relevante e natildeo eacute agrave toa que autores como Kant
seratildeo influenciados por esta distinccedilatildeo entre liberdade e livre-arbiacutetrio Kant utiliza uma
terminologia diferente mas que ao final pressupotildee a distinccedilatildeo ora apresentada A
terminologia kantiana eacute a do arbiacutetrium brutum e o livre-arbiacutetrio sendo o primeiro o
sentido de livre-arbiacutetrio e o segundo a liberdade ldquodaacute-se o nome de livre arbiacutetrio agrave
escolha que pode ser determinada pela razatildeo pura a que pode ser determinada
somente pela inclinaccedilatildeo (impulso sensiacutevel estiacutemulo) seria o arbiacutetrio animal (arbitrium
brutum) (cf KANT 2003 p 63)
A questatildeo 83 da Suma conclui precisando a relaccedilatildeo entre vontade e livre-
arbiacutetrio Em relaccedilatildeo agrave potecircncia da qual fazem parte pode-se afirmar que vontade e
livre-arbiacutetrio satildeo uma e mesma coisa porque ambos dizem respeito agrave eleiccedilatildeo
Contudo em relaccedilatildeo ao modus operandi cada uma opera de modo distinto a saber
o livre-arbiacutetrio opera na deliberaccedilatildeo a vontade na accedilatildeo
A proposiccedilatildeo de uma teoleologia na moralidade implica uma negaccedilatildeo da
autonomia Cabe esclarecer que esta oposiccedilatildeo entre teleologia e autonomia natildeo eacute
uma oposiccedilatildeo real as duas natildeo satildeo diretamente opostas Filosoficamente Tomaacutes de
Aquino por exemplo soube compatibilizar telos e liberdade
O modo como Tomaacutes de Aquino compreende a constituiccedilatildeo do homem na
Suma Teoloacutegica natildeo encontra dificuldades entre afirmar o livre arbiacutetrio ao homem e
ao mesmo tempo afirmar que por sua natureza o homem eacute capaz de agir em virtude
de um fim Faz-se necessaacuteria pois uma exposiccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio e de
82 ldquoLiberum autem arbitrium indifferenter se habet ad bene eligendum vel malerdquo
90
telos em Tomaacutes de Aquino a fim de mostrar como o autor compatibiliza telos e
autonomia
Deve-se esclarecer primeiramente que a exposiccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-
arbiacutetrio e a noccedilatildeo de finalidade como telos das accedilotildees se encontram em momentos
distintos da Suma Teoloacutegica A noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio estaacute na seccedilatildeo em que Tomaacutes
de Aquino dedica agrave criaccedilatildeo e ao Governo Divino Esta seccedilatildeo se insere na 1ordf parte da
Suma Teoloacutegica como o momento da accedilatildeo de Deus A 1ordf parte discorre sobre Deus
quem ele eacute como conhececirc-lo e sobre a Trindade (S Th I 1-43) o segundo momento
ainda da 1ordf parte apresenta a accedilatildeo de Deus que eacute a sua criaccedilatildeo (S Th I 44-119)
Justamente aqui situa-se a apresentaccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio
Jaacute a noccedilatildeo de Telos ou como diz Tomaacutes de Aquino fim do homem
encontra-se na primeira seccedilatildeo da 2ordf parte da Suma Teoloacutegica que vai das questotildees
1-48 (S Th I - IIae 1-48) Esta parte da Suma apresenta o retorno da criaccedilatildeo a Deus
particularmente com a busca livre do homem para Deus que eacute o conceito cristatildeo de
beatitude
A resposta eacute natildeo A proposiccedilatildeo de uma teleologia aqui tem a funccedilatildeo de ser o
resultado das accedilotildees virtuosas isto eacute numa eacutetica teleoloacutegica o valor de uma accedilatildeo natildeo
reside na accedilatildeo em si mesma
A verdade e o bem se incluem mutuamente Pois a verdade eacute um bem sem o que natildeo seria inteligiacutevel Do mesmo modo portanto que o objeto do apetite pode ser uma coisa verdadeira enquanto tem a razatildeo de bem por exemplo quando se deseja conhecer a verdade do mesmo modo o objeto do intelecto praacutetico eacute o bem que pode ser ordenado agrave accedilatildeo sob a razatildeo de verdadeiro O intelecto praacutetico com efeito conhece a verdade como o intelecto especulativo mas ordena agrave accedilatildeo essa verdade conhecida (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 79 a11)83
Para Tomaacutes de Aquino o valor de uma accedilatildeo seraacute relativo agrave finalidade que ela
atingiraacute Talvez a oposiccedilatildeo mais apropriada seria entre Destino e Autonomia ao inveacutes
de se pensar em termos de teleologia e autonomia
83 ldquoDicendum quo verum et bonum se invicem includunt nam verum est quoddam bonum alioquin non
esset appetibile et bonum est quoddam verum alioquin non esset intelligibile Sicut igitur obiectum appetites potest esse verum inquantum habet rationem boni sicut cum aliquis appetit veritatem cognoscere ita objectum intellectus practici est bonum ordinabile ad opus sub ratione veri Intellectus enim practicus veritatem cognoscit sicut et speculativus sed veritatem cognitam ordinat ad opusrdquo
91
526 A intenccedilatildeo
A definiccedilatildeo claacutessica de intenccedilatildeo se deve a Tomaacutes de Aquino No acircmbito da
filosofia moral a ideia eacute a de que a intenccedilatildeo eacute uma vontade que faz a accedilatildeo em uma
meta ao mesmo tempo proacutexima e longiacutenqua precisa e vasta indo ateacute o fim uacuteltimo A
intenccedilatildeo envolve pois a potecircncia da vontade para engendrar uma accedilatildeo e para mover-
se em busca do fim O desenvolvimento do conceito de intenccedilatildeo estaacute expresso na
questatildeo 12 da Primeira parte da Segunda Parte da Suma Teoloacutegica Nos quatro
artigos que compotildeem a questatildeo Tomaacutes de Aquino apresenta a intenccedilatildeo e o seu
objeto (a 1-2) e explicita o ato da intenccedilatildeo (a 3-4)
Tomando a definiccedilatildeo de Agostinho a intenccedilatildeo propriamente dita se refere
agravequilo que move uma coisa a seu fim (cf AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a1)84
Neste sentido como eacute a vontade que move todas as potecircncias a um fim a intenccedilatildeo
se constitui como ato da vontade ldquoOra a vontade move todas as outras potecircncias da
alma para o fim como foi estabelecido acima Eacute manifesto portanto que a intenccedilatildeo eacute
propriamente ato da vontaderdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a1)85
Existe ainda relaccedilatildeo entre Vontade razatildeo e intenccedilatildeo Agrave vontade cabe tender
ao fim enquanto cabe agrave razatildeo ordenar O papel da intenccedilatildeo consiste em ser o
movimento da vontade actus voluntatis em busca do fim uacuteltimo conforme
ordenamento da racionalidade Aleacutem disso a intenccedilatildeo embora se refira
primeiramente ao fim uacuteltimo natildeo exclui a relaccedilatildeo com os fins intermediaacuterios desde
que estes estejam relacionados ao fim uacuteltimo ldquonem sempre eacute necessaacuterio que [a
intenccedilatildeo] seja do fim uacuteltimordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a2 )
Qual o alcance desta reflexatildeo de Tomaacutes de Aquino A intencionalidade
promove uma unidade nos atos voluntaacuterios pois cada accedilatildeo se encontra concatenada
na busca do homem pela felicidade Assim eacute possiacutevel se falar a partir de Tomaacutes de
Aquino de uma unidade da vida moral Esta unidade da vida moral atraveacutes da
intencionalidade garante uma ligaccedilatildeo interna de todos os fins intermediaacuterios
alcanccedilados pelo homem na busca do fim uacuteltimo
84 ldquoUnde intentio primo et principaliter pertinent ad id quod movet ad finemrdquo 85 ldquoVoluntas autem movet omnes alias vires animae ad finem ut supra habitum est Unde manifestum
est quod intentio proprie est actus voluntatisrdquo
92
Natildeo eacute de admirar que a intenccedilatildeo possa se referir a vaacuterias coisas
simultaneamente Tomas de Aquino afirma
A arte imita a natureza Mas a natureza por um soacute instrumento busca duas utilidades ldquocomo a liacutengua que se ordena para o gosto e para falarrdquo diz o livro II da Alma Logo pela mesma razatildeo a arte e a razatildeo podem simultacircneas ordenar para dois fins uma soacute coisa Assim sendo algueacutem pode ter a intenccedilatildeo de muitas coisas simultaneamente (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a3)86
Tomaacutes de Aquino indica que aleacutem da razatildeo a arte tambeacutem pode proporcionar
finalidades e como conclusatildeo a intenccedilatildeo pode se referir a vaacuterias coisas Nesse
sentido compreende-se que ela pode combinar diversos planos nos quais os fins
podem ser dados Este reconhecimento da multiplicidade de coisas as quais a
intenccedilatildeo pode se referir explica de certo modo porque frequentemente os homens
se perdem em suas buscas Natildeo eacute a toa que Tomaacutes sugere uma cooperaccedilatildeo entre a
razatildeo a vontade e a intenccedilatildeo
Tambeacutem eacute relevante o fato de a intenccedilatildeo ser cooperadora da razatildeo na
descoberta de fins Se a arte eacute uma instacircncia distinta da razatildeo e se a intenccedilatildeo tambeacutem
pode se referir a ela pode-se afirmar que aleacutem do fim ordenado pela razatildeo natildeo haacute
um impedimento da participaccedilatildeo da intenccedilatildeo na construccedilatildeo do agir humano o que
implica uma abertura agrave liberdade da intenccedilatildeo nesta construccedilatildeo Pode-se concluir que
os juiacutezos praacuteticos e a escolha livre resultam da interaccedilatildeo entre a racionalidade e a
intenccedilatildeo voluntaacuteria
Existe finalmente uma conexatildeo entre intenccedilatildeo e vontade Tomaacutes de Aquino
afirma que ldquonas as coisas voluntaacuterias um soacute movimento eacute a intenccedilatildeo do fim e a
vontade do que eacute para o fimrdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a3)87 Embora agrave
vontade se relacione com aquilo eacute que para o fim uma vez que ela elege os meios
para atingi-lo sua relaccedilatildeo com a intenccedilatildeo que eacute o seu proacuteprio movimento eacute
constituiacuteda como um movimento uacutenico Pode-se entatildeo afirmar que a conexatildeo entre
intenccedilatildeo e vontade eacute de tal modo que natildeo se pode afirmar uma sem a outra
O estudo da intenccedilatildeo em Tomaacutes de Aquino aprofunda uma questatildeo que estava
em Aristoacuteteles apenas de modo latente Natildeo se pode afirmar que em Aristoacuteteles natildeo
havia uma preocupaccedilatildeo com a intenccedilatildeo poreacutem o seu detalhamento se deve ao
86 ldquoArs imitatur naturam Sed natura ex uno instrument intendit duas utilitates sicut lingua ordinatur et
ad gustum et ad locutionem dicitur in II de Anima Ergo pari ration ears vel ratio potest simul aliquid unum ad duos fines ordinare Et ipsa aliquis simul plura intendererdquo
87 ldquoIn rebus voluntariis idem motus est intentio finis et voluntas eius quod est ad finemrdquo
93
Aquinate A intenccedilatildeo eacute de tal modo necessaacuteria que estaacute presente em cada um dos
atos concernentes aos meios e a escolha eacute ativa em todo desenvolvimento das accedilotildees
53 TOMISMO E EacuteTICA DAS VIRTUDES
Alguns elementos da Psicologia Filosoacutefica de Santo Tomaacutes foram expostos de
modo que foram elucidados como elementos que ou eram desconhecidos ao
pensamento moral aristoteacutelico ou foram insuficientemente aprofundados Cabe entatildeo
verificar quais satildeo os elementos distintivos em relaccedilatildeo agraves proacuteprias virtudes Para isto
aleacutem do proacuteprio Santo Tomaacutes investigou-se o pensamento de Giuseppe Abbaacute
Juvenal Savian Filho Henrique de Lima Vaz Joseph Pieper entre outros que
contribuiacuteram significativamente nesta parte da pesquisa
Em geral natildeo se tem duacutevida de que Tomaacutes de Aquino operou uma releitura do
cristianismo por meio do pensamento aristoteacutelico Cabe pois aleacutem de demonstrar que
mudanccedilas essa releitura provocou explicitar de que modo elas ecoaram no
pensamento moral contemporacircneo Com a realizaccedilatildeo desta tarefa espera-se fazer
entender um dos principais objetivos desta pesquisa mostrar que um retorno
contemporacircneo a Eacutetica das Virtudes deve considerar a influecircncia do pensamento
cristatildeo pelo vieacutes de uma leitura tomasiana Um dos pontos de importacircncia capital para
a pesquisa eacute defender que algumas distinccedilotildees entre o conceito aristoteacutelico e o
conceito tomista de virtude a saber a relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo
de liberdade constituem-se como contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino agrave Eacutetica das
Virtudes e agrave histoacuteria da eacutetica ocidental em geral
Esta seccedilatildeo da pesquisa cumpre a tarefa de mostrar como Tomaacutes de Aquino
opera mudanccedilas significativas no acircmbito da Eacutetica das Virtudes Ele apresenta por um
lado acreacutescimos relevantes agrave moral de Aristoacuteteles e por outro permite afirmar que
muitos desses aspectos se incorporam agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica posterior A partir desta
compreensatildeo pretende-se concluir que propor uma Eacutetica das Virtudes ao
pensamento contemporacircneo negligenciando estes aspectos produz certa fragilidade
agrave proposta Por fim esta seccedilatildeo faraacute consideraccedilotildees sobre a proposta moral do
MacIntyre de Depois da Virtude agrave luz do estudo realizado
94
531 Vida feliz e virtudes antes da siacutentese tomista
Eacute a partir de Santo Agostinho que se tem no pensamento cristatildeo um primeiro
aprofundamento dos temas morais e eacute este aprofundamento que contribui para uma
ulterior moral teoloacutegica Entretanto este primeiro esforccedilo de Agostinho natildeo resulta na
inserccedilatildeo de uma seccedilatildeo moral como componente necessaacuteria da ciecircncia teoloacutegica As
reflexotildees morais embora relevantes encontram-se dispersas entre outras temaacuteticas
da teologia Este pensamento seraacute retomado por Tomaacutes como mote de reflexatildeo agrave luz
do pensamento aristoteacutelico Pode-se afirma que Tomas de Aquino tributa ao
pensamento cristatildeo a doutrina moral que doravante se constitui como parte
integrante da ciecircncia teoloacutegica e seraacute referecircncia para toda a filosofia moral
Pode-se afirmar que a vida feliz desde Aristoacuteteles foi a grande motora do
pensamento eacutetico Com Santo Agostinho ela passa a ser definida como a uniatildeo da
mente a Deus no conhecimento no amor e no gaacuteudio da verdade e do bem divino
Assim Agostinho afirma no De Beata Vita
Certo impulso interior que nos convida a lembrar-nos de Deus a buscaacute-lo a sentir sede dele sem nenhum fastio jorra em noacutes dessa mesma fonte da Verdade Eacute luz que esse misterioso sol irradia em nossos olhos interiores E eacute dele que procede tudo o que proferimos de verdadeiro ainda que temamos volver para ele nossos olhos ainda doentios ou receacutem-abertos e de o fixarmos face a face Esse sol revela-se a noacutes como sendo o proacuteprio Deus ser perfeito sem nenhuma imperfeiccedilatildeo a diminuiacute-lo Pois nele se encontra toda a perfeiccedilatildeo completa e iacutentegra visto que ele eacute ao mesmo tempo o Deus todo-poderoso (AGOSTINHO Santo A vida feliz 1998 p 156 PL 32 4 35)88
Agostinho acredita que naturalmente existe um impulso do homem para Deus
Em outras passagens ele tambeacutem jaacute havia demonstrado esta compreensatildeo ldquotu nos
criastes para voacutes e incansaacutevel estaacute o nosso coraccedilatildeo enquanto natildeo repousa em voacutesrdquo
(agostinho Santo Confissotildees I 1998 p 7) Eacute atraveacutes da inteligecircncia ou ldquoos olhos
interioresrdquo que o homem compreende este desejo de busca de Deus assim como a
proacutepria inteligecircncia atesta que a verdade do que se profere depende dele A perfeiccedilatildeo
de Deus eacute certificada pelo fato de Deus se mostrar ao pensamento humano no interior
de cada homem Eacute este Deus que eacute a proacutepria vida feliz
88 ldquoHoc interioribus luminibus nostris iubar sol ille secretus infundit Huius est verum omne quod
loquimur etiam quando adhuc vel minus sanis vel repente apertis oculis audacter converti et totum intueri trepidamus nihilque aliud etiam hoc apparet esse quam Deum nulla degeneratione impediente perfectum Nam ibi totum atque omne perfectum est simulque est omnipotentissimus Deusrdquo
95
Eacute possiacutevel compreender a partir de Agostinho que pela perfeiccedilatildeo de Deus a
vida feliz diz respeito a um domiacutenio que estaacute para aleacutem da vida efecircmera do homem
no mundo Embora se tenha assim como em Aristoacuteteles que o fim do homem eacute a
felicidade esta acontece em dimensotildees extremamente distintas Eacute em virtude desta
nova concepccedilatildeo de vida feliz que se requer uma reformulaccedilatildeo na taacutebua das virtudes
de modo que entre as virtudes jaacute existentes a caridade possa figurar entre as
principais O modelo da caridade eacute aquela que Deus tem para o homem e tendo Deus
por exemplar o homem a viveraacute em relaccedilatildeo aos seus
Segundo Giuseppe Abbaacute (cf 2008 p 24) para alcanccedilar esta nova vida feliz ou
vida beata era preciso um conhecimento apropriado o conhecimento que Deus
mesmo tem de si mesmo e da ordem das criaturas Este conhecimento presente em
Deus ao modo de uma lei eterna eacute comunicado por via de iluminaccedilatildeo a cada mente
humana no modo de um conhecimento inato das razotildees eternas segundo os quais
satildeo regulados os atos da vontade Deve-se acrescentar que a lei eterna tambeacutem pode
ser conhecida por via de revelaccedilatildeo na lei escrita do Antigo e do Novo Testamento
Ainda segundo Giuseppe Abbaacute a accedilatildeo de Deus para conduzir o homem agrave vida
beata natildeo se limita agrave comunicaccedilatildeo da lei Deus interveacutem tambeacutem mediante uma
gratuita ajuda interior para converter a vontade humana da aversatildeo contra Deus ao
amor por Deus e a sustentar continuamente a retidatildeo da vontade nas obras virtuosas
A teologia moral seraacute assim uma investigaccedilatildeo em torno da lei divina eterna e de
como devem agir aqueles que nela inspiram-se
As concepccedilotildees agostinianas de vida feliz virtudes e lei eterna permanecem
praticamente as mesmas ateacute a chegada dos Sententiarum Libri de Pedro Lombardo
A partir do sec XII e iniacutecio do seacuteculo XIII as Sentenccedilas e as Sumas passam a fazer
uma apresentaccedilatildeo da doutrina cristatilde O elemento relevante deste dado eacute o fato de as
Sentenccedilas e Sumas serem agora obrigatoacuterias como textos baacutesicos de leitura nas
escolas teoloacutegicas Eacute ainda relevante o fato de estes textos natildeo reservarem um
espaccedilo especiacutefico para a filosofia moral assim tambeacutem como aconteceu com a
concepccedilatildeo agostiniana conforme o comentaacuterio de Giuseppe Abbaacute (cf 2008 p 24)
Os temas morais eram apresentados difusamente de modo que eles soacute aparecem
como temaacuteticas assessoacuterias Pedro Lombardo por exemplo tratava sobre a liberdade
e sobre o pecado no livro segundo que explicitava a questatildeo da queda do homem No
96
livro trecircs a propoacutesito do verbo encarnado Lombardo fala sobre as virtudes quando
responde agrave questatildeo de se Cristo teve virtudes
Traduzida para o latim por Roberto Grossatesta em 1246-47 a Eacutetica a
Nicocircmacos natildeo foi capaz de modificar o rumo do pensamento moral cristatildeo-catoacutelico
fortemente marcado pelo agostinismo ao menos ateacute Santo Tomaacutes Eacute atraveacutes dele que
se datildeo dois acontecimentos de particular relevacircncia a construccedilatildeo de uma parte
especificamente moral na teologia e a sua fundamentaccedilatildeo tendo a eacutetica aristoteacutelica
como fonte inspiradora Naturalmente a realizaccedilatildeo dessas duas tarefas natildeo se deu
de modo paciacutefico pois pensamentos jaacute instituiacutedos natildeo cedem facilmente agraves novas
ideias Quais foram pois as articulaccedilotildees filosoacuteficas que Tomaacutes de Aquino se utilizou
para a realizaccedilatildeo desses dois empreendimentos
97
5311 A construccedilatildeo de uma parte moral na teologia
Sobre a criaccedilatildeo de uma parte moral na Teologia Tomaacutes de Aquino enfrenta a
seguinte dificuldade como eacute possiacutevel a tematizaccedilatildeo sobre as virtudes se a teologia
tem Deus por assunto principal Deus natildeo necessita de virtudes uma vez que estas
satildeo haacutebitos que aperfeiccediloam o agente Assim faz-se necessaacuterio expor o modo como
Tomaacutes de Aquino responde a este problema
No desenvolvimento desta seccedilatildeo ver-se-aacute que primeira soluccedilatildeo de Tomaacutes ao
problema da uma inclusatildeo de uma parte moral na teologia daacute-se ainda sob o esquema
agostiniano partindo da lei divina agrave finitude do homem Nesta primeira soluccedilatildeo Tomaacutes
coloca hierarquicamente a lei em primeiro lugar e as virtudes em segundo abrindo um
espaccedilo para se tratar da moral na teologia Qual o problema desta primeira soluccedilatildeo
Ora sendo a lei divina o elemento primordial a eacutetica tomista perderia um de seus
viacutenculos mais relevantes com a eacutetica aristoteacutelica a saber uma eacutetica centrada no
agente A eacutetica aristoteacutelica privilegia por excelecircncia o agente enquanto que em
Agostinho o que brilha eacute a eacutetica fundamentada na lei divina A segunda soluccedilatildeo de
Tomaacutes de Aquino agrave questatildeo se daacute pela via indireta do discurso sobre Deus Com
efeito se pelo modus cognocendio homem conhece a Deus pela ciecircncia moral o
homem conhece a Lei Divina Com esta soluccedilatildeo pode-se afirmar que Tomaacutes de
Aquino garante um lugar agrave moral na Teologia sem no entanto abdicar da uma moral
centrada no agente
Seguindo a primeira soluccedilatildeo Tomaacutes introduz a noccedilatildeo de haacutebitos virtuosos
como formas impressas na alma ldquoas quais a reparam a retificam na medida em que
a fazem partiacutecipe das divinas sabedoria e retidatildeordquo (ABBAacute 2008 p 27) Segundo
Giuseppe Abbaacute existe da parte de Tomaacutes de Aquino uma profunda coerecircncia entre
sua antropologia e esses haacutebitos que informam a alma (cf ABBAacute 2008 p 27) A
explicaccedilatildeo dessa coerecircncia eacute possiacutevel ser mostrada a partir do De Ente et Essentia
a essecircncia se encontra concretizada nas substacircncias criadas intelectuais nas quais o ser ou existecircncia difere da essecircncia embora a essecircncia nelas exista sem a mateacuteria Daiacute que o ser dessas substacircncias natildeo eacute absoluto mas recebido e por conseguinte limitado e finito conforme a capacidade da natureza recipiente embora a natureza ou quididade delas seja absoluta e carente de mateacuteria (AQUINO Tomaacutes de De ente et essentia 2009)
98
Na compreensatildeo desta obra do jovem Tomaacutes de Aquino a alma humana que
se une ao corpo como forma de uma mateacuteria individuante natildeo atua nele comunicando
toda a sua perfeiccedilatildeo em razatildeo composiccedilatildeo das substacircncias O indiviacuteduo soacute se
atualiza no sentido da perfeiccedilatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de formas acidentais
suplementares Estas formas satildeo haacutebitos denominados virtudes Desse modo eacute
possiacutevel afirmar que a inclusatildeo de uma parte moral na teologia por parte de Tomaacutes
de Aquino natildeo eacute uma simples inclusatildeo arbitraacuteria mas um desenvolvimento necessaacuterio
de seu pensamento ontoloacutegico
Deve-se notar ainda que no Scriptum super Sententiis Tomaacutes de Aquino
adota a posiccedilatildeo de que os haacutebitos ou as virtudes necessitam ser dirigidos nos seus
atos pela lei divina pois ldquoa lei ensina a agir demonstra os atos retos as virtudes nos
conduzem ao bem agirrdquo (AQUINO Tomaacutes de Scriptum super sententiis III 37 ad 40
2011) Conforme este posicionamento o enfoque primordial permanece na lei divina
o que permite a Tomaacutes dar continuidade ao esquema da Teologia agostiniana poreacutem
a obediecircncia agrave lei divina daacute-se sob o auxiacutelio das virtudes Obedecendo a esta
hierarquia a lei divina tem precedecircncia sob as virtudes e estas em seu papel
secundaacuterio ganham ldquoabrigordquo na teologia agora com um tratado especiacutefico
Na segunda soluccedilatildeo que se como justificaccedilatildeo definitiva da constituiccedilatildeo de uma
parte moral na teologia Tomaacutes se utiliza da ideia de que uma vez que eacute impossiacutevel
tratar de Deus a partir de sua essecircncia pois este eacute inacessiacutevel ao conhecimento
sensitivo eacute possiacutevel tratar de Deus a partir de seus efeitos ldquose a existecircncia de Deus
natildeo eacute evidente para noacutes pode ser demonstrada pelos efeitos por noacutes conhecidosrdquo
(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 2 a2)89 O homem na qualidade de criatura racional
constitui-se como uma das obras (efeitos) especiais de Deus pois eacute ldquocriado agrave imagem
de Deus enquanto o termo imagem significa o que eacute dotado de intelecto de livre-
arbiacutetrio e revestido por si de poderrdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II prologus)90 Ora eacute
justamente atraveacutes do conhecimento praacutetico que homem tem de suas obras que o
permite construir uma ciecircncia moral Esta ciecircncia se fundamenta na razatildeo com a qual
Deus governa as criaturas particularmente o homem em seu agir Pela ciecircncia moral
conhece-se a lei divina
89ldquoUnde Deum esse secundum quod non est per se notum quoad nos demonstrabile est per effectus
nobis notusrdquo 90 ldquoHomo factus ad imaginem Dei dicitur secundum quod per imaginem significatur intellectuale et
arbiacutetrio liberum et per se potestativumrdquo
99
A ciecircncia sagrada eacute mais especulativa do que praacutetica porque se refere mais agraves coisas divinas do que aos atos humanos Ela considera estes uacuteltimos enquanto por eles o homem eacute ordenado ao pleno conhecimento de Deus no qual consiste a bem-aventuranccedila eterna (AQUINO Tomaacutes de S Th I q1 a4)91
A partir da afirmaccedilatildeo de Tomaacutes a ciecircncia praacutetica trata dos atos humanos e
estes satildeo considerados na medida em que contribuem ao conhecimento de Deus
Esta eacute a via que faz com que a ciecircncia moral tenha lugar na Teologia Desse modo
torna-se possiacutevel fazer uma ciecircncia moral sobre o homem autor de seus proacuteprios
atos em uma teologia que tem Deus por sujeito Assim segue justificada a inclusatildeo
de uma parte moral na Teologia
5312 A fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista
Foi apresentado ateacute o modo como Tomaacutes de Aquino tornou possiacutevel a
construccedilatildeo de uma parte moral na teologia Frequentemente a eacutetica tomista ainda eacute
vista de certo modo como uma filosofia em que domina o conceito de lei seja a lei
eterna seja a lei natural constituiacuteda segundo os preceitos da lei divina Segundo
Giuseppe Abbaacute a ideia comum eacute que ldquoa lei constituiria a regra moral obrigatoacuteria agrave qual
deve se ater ao sujeito humano livre nas suas accedilotildees voluntaacuterias Os haacutebitos virtuosos
interviriam para tornar faacutecil estaacutevel e agradaacutevel o exerciacutecio dos atos livresrdquo (ABBAacute
2008 p 26) Entretanto vista deste modo a eacutetica tomista seria centrada muito mais
na norma do que no agente Com efeito viu-se que a eacutetica de Tomaacutes se vincula
fortemente agrave moral aristoteacutelica porque focaliza primordialmente o agente Este viacutenculo
eacute um meio de se justificar a fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista segundo
ponto a ser aqui explicitado
O primeiro contato de Tomaacutes de Aquino com o texto da Eacutetica a Nicocircmacos foi
nos anos de 1248-52 logo apoacutes completar 20 anos Atraveacutes do primeiro curso sobre
esta nova traduccedilatildeo Tomaacutes de Aquino recebe do mestre Alberto Magno as primeiras
liccedilotildees sobre a Eacutetica do Estagirita Conforme Giuseppe Abbaacute Tomaacutes de Aquino teve
bastante tempo para amadurecer as ideias em torno deste texto e somente 17 anos
depois o Aquinate levou a cabo a tarefa de introduzir na teologia uma eacutetica de
91 ldquoMagis tamen est speculativa quam practica quia principalius agit de rebus divinis quam de actibus
humanis de quibus agit secundum quod per eos ordinatur homo ad perfectam Dei cognitionem in qua aeterna beatitudo consistirdquo
100
inspiraccedilatildeo aristoteacutelica justamente quando compotildee a segunda parte da Suma de
Teologia periacuteodo em que se encontra em Paris de 1269-72 Embora Tomaacutes de
Aquino jaacute ensaie a introduccedilatildeo do estudo sobre as virtudes em obras anteriores como
eacute o caso do Scriptum super Sententiis seu aprofundamento se consolida por ocasiatildeo
da construccedilatildeo da segunda parte da Suma Ainda segundo Giuseppe Abbaacute o
desenvolvimento do pensamento do moral de Tomaacutes de Aquino ldquoeacute a primeira soacutelida
tentativa de utilizar em Teologia a doutrina aristoteacutelica das virtudesrdquo (ABBAacute 2008 p
27) Deve-se agora apresentar qual a perspectiva tomista do conceito de virtude
532 O lugar das virtudes na teologia e sua explicitaccedilatildeo
5321 A beatitude e o lugar das virtudes na siacutentese teoloacutegica tomista
A apresentaccedilatildeo do modo como Tomaacutes de Aquino constituiu uma parte moral
na Teologia a partir da moral aristoteacutelica exige uma reformulaccedilatildeo de vaacuterios conceitos
de sua filosofia moral do estagirita Entre eles encontra-se o conceito de virtude que
possui particular relevacircncia nesta pesquisa Considerando como foi afirmado que a
ciecircncia praacutetica de inspiraccedilatildeo aristoteacutelico-tomista tem o enfoque no agente a filosofia
moral tomista se inicia com uma investigaccedilatildeo acerca fim mais apropriado agraves accedilotildees
humanas Assim ele inicia a Prima Secundae
Eacute de se considerar em primeiro lugar o fim uacuteltimo da vida humana Em seguida aqueles meios que poderatildeo levar o homem a este fim ou desviaacute-lo dele pois eacute do fim que aquelas coisas que a ele concernem recebem as razotildees Como o fim uacuteltimo da vida humana eacute a bem-aventuranccedila deve-se considerar primeiramente o fim uacuteltimo em comum e em seguida a bem-aventuranccedila (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q1 proecircmio )92
A bem-aventuranccedila que eacute o fim uacuteltimo aqui tratado Tomaacutes a apresenta desta
maneira porque sendo Deus a proacutepria beatitude conserva-se por meio dela uma
unidade temaacutetica dentro da Ciecircncia Teoloacutegica isto eacute a felicidade e os meios para
adquiri-la satildeo temas necessaacuterios agrave Teologia O que ocorre eacute que obedecendo agrave
ordem teoloacutegica trata-se inicialmente de Deus e de sua obra depois se deve tratar
92ldquoUbi primo considerandum occurit de ultimo fine humanae vitae et deinde de his per quae homo ad
hunc fine pervenire potest vela ab eo deviare ex fine enim oportet accipere rationes eorum quae ordinantur ad finem Et quia ultimus finis humanae vitae ponitur esse beatitudo oportet primo considerare de ultimo fine in communi deinde de beatitudinerdquo
101
do modo como as criaturas realizam um caminho de retorno a ele sobretudo o
homem que demonstra sua semelhanccedila com Deus na capacidade de conhecer e de
poder ser princiacutepio e senhor de seu agir Com efeito Tomaacutes de Aquino entende que
o homem retorna a Deus de uma maneira muito peculiar este retorno natildeo eacute uma
imposiccedilatildeo de Deus ao homem mas um ato de confianccedila na vontade livre do homem
de procedecirc-lo sem dispensar o auxiacutelio da graccedila (Cf BRUGUEgraveS 2003 Tomo III nota
ldquobrdquo p 29)
A elaboraccedilatildeo de uma Moral das Virtudes encontra pois seu lugar na teologia
agrave medida que por meio do exerciacutecio das virtudes o homem encontra um caminho
mais adequado de alcanccedilar a beatitude com maior propriedade Acrescente-se a isto
o fato de Tomaacutes de Aquino dedicar na Suma uma parte ao estudo daqueles haacutebitos
que distanciam o homem de seu fim Esses haacutebitos denominados viacutecios merecem
uma menccedilatildeo devida dado que o itineraacuterio do homem agrave felicidade comporta tanto os
atos afirmativos das virtudes quanto os atos negativos dos viacutecios O que significa um
ato afirmativo e outro negativo A ideia central eacute a de que o saber sobre as virtudes e
os viacutecios sejam ambos uacuteteis para o encaminhamento do ser humano agrave felicidade seja
exercitando as virtudes (atos afirmativos) seja evitando os viacutecios (atos negativos)
O estudo sobre as virtudes passa a ser desenvolvido no interior do proacuteprio
pensamento de Santo Tomaacutes antes das consideraccedilotildees sobre o modo como Deus
governa as criaturas ao seu fim e governa especialmente os indiviacuteduos humanos agrave
vida beata mediante a lei e a graccedila (cf ABBAacute 2008 p 34) pois entre a vida beata e o
governo divino estatildeo os atos dos quais o indiviacuteduo eacute autor e pelos quais ele realiza
a sua beatitude E como as virtudes se referem ao modo como o homem realiza o
processo de retorno a Deus deve-se aprofundar o modo como as virtudes estatildeo
relacionadas ao ser do homem
5312 A concepccedilatildeo tomista de homem e as virtudes
A partir da Tradiccedilatildeo Biacuteblica a relaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo de homem e as
virtudes se articulam com aquilo que Joseph Pieper denominou de imagem cristatilde do
homem (cf PIEPER 2010 p 9) Esta imagem toma por indicaccedilatildeo a afirmaccedilatildeo que
diz ldquosede perfeitos como o vosso Pai do ceacuteu eacute perfeitordquo Ora na condiccedilatildeo de criaturas
a perfeiccedilatildeo eacute fruto de um aprendizado continuo que inclui a vivecircncia constante dos
102
habitus que vatildeo conduzir o ser humano a expor o que haacute de melhor em si Esse melhor
diz respeito agraves virtudes que aperfeiccediloam o agente e tornam mais acessiacutevel o caminho
agrave beatitude
A partir da antropologia tomista o homem eacute compreendido como uma unidade
substancial de corpo e alma Tomaacutes entende que o ser da mateacuteria corpoacuterea estaacute como
recipiente e sujeito para ser algo superior Neste caso eacute a alma humana que estaacute
como princiacutepio formal pela sua proacutepria natureza Por isso a alma humana eacute forma do
corpo tornando esse composto num ser uno ldquopois eacute atraveacutes da forma pela qual as
coisas tecircm o ser que tambeacutem o composto corpo e alma recebe sua unidaderdquo
(AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles II c 58 )93
A unidade do homem eacute assegurada pela composiccedilatildeo de corpo e alma de modo
que em sua constituiccedilatildeo o homem goza da daacutediva de pela alma fazer parte do reino
espiritual e pelo corpo fazer parte do reino corporal Assim segundo Tomaacutes de
Aquino o homem encontra-se na fronteira do espiritual e do corporal
Deve-se pois admitir algo supremo no gecircnero dos corpos a saber o corpo humano possuidor de temperamento uniforme que atinja o iacutentimo do gecircnero superior isto eacute a alma humana que ocupa o uacuteltimo grau das substacircncias intelectuais como se pode verificar pelo seu modo inteligente de conhecer e por isso se diz que a alma intelectual eacute como o horizonte e a fronteira entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo enquanto substacircncia incorpoacuterea e no entanto como forma do corpo (AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles II 68 )94
Eacute de especial relevacircncia o fato de o homem por sua condiccedilatildeo estar habilitado
a buscar a felicidade pois possui um modo inteligente de conhecer o que o
assemelha a Deus A semelhanccedila com Deus tambeacutem se daacute considerando que o
homem possui domiacutenio de seus atos Neste sentido pode-se afirmar que entre as
criaturas sensiacuteveis o homem eacute aquele que possui uma capacidade natural de buscar
o seu fim Natural poreacutem eacute o seu despreparo dada a constante falibilidade de sua
vontade livre Segundo a antropologia tomista sabe-se que pelo princiacutepio corporal o
homem eacute portador das paixotildees e estas consideradas isoladamente natildeo possuem
nenhuma conotaccedilatildeo no sentido de boas ou maacutes Elas satildeo potecircncias neutras
93ldquoCum igitur a forma unaquaeque res habeat esse a forma etiam habebit unitatemrdquo 94ldquoEst igitur accipere aliquid supremum in genere corporum scilicet corpus humanum aequaliter
complexionatum quod attingit ad infimum seperioris generis scilicet ad animam humanam quae tenet ultimum gradum in genere intellectualium substantiarium ut ex modo intelligendi percipi potest b) Et inde est quod anima intellectualis dicitur esse quase quidam horizon et confinium corporeorum et incorporeorum inquantum est substantia incorporea corporis tamen formardquo
103
moralmente mas que podem condicionar as decisotildees do homem em virtude de seu
forte apelo agrave sensibilidade Eacute justamente aiacute que as virtudes ganham o seu sentido As
potecircncias do homem tanto as da alma quanto as do corpo necessitam de um habitus
que as atualizem em virtude do melhor Assim as virtudes iratildeo pois preparar o
homem positivamente na busca de seu fim uacuteltimo da vida feliz
Deve-se dizer que o irasciacutevel e o concupisciacutevel em si mesmos considerados enquanto partes do apetite sensitivo satildeo comuns a noacutes e aos animais irracionais Mas enquanto racionais por participaccedilatildeo obedientes agrave razatildeo satildeo potecircncias proacuteprias do homem e desse modo poreacutem ser sujeitos da virtude humana (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 56 a4 )95
As virtudes satildeo organizadas para atender as necessidades do homem
considerado em sua integralidade Desse modo as virtudes iratildeo aperfeiccediloar tanto as
potecircncias espirituais isto eacute a inteligecircncia e a vontade que pertencem ao acircmbito da
razatildeo do homem quanto as potecircncias sensitivas que satildeo a concupiscecircncia e a
irascibilidade fontes das paixotildees ambas ligadas ao corpo Eacute em virtude desta
totalidade que eacute o homem que um tratado sobre as virtudes natildeo deveria negligenciar
um estudo sobre as paixotildees e os viacutecios caso contraacuterio um tratado desta natureza
poderia ateacute visar um bem das accedilotildees particularmente mas natildeo o bem do agente
pensado em sua totalidade Acerca disto Tomaacutes de Aquino afirma
O nuacutemero de determinadas coisas pode ser estabelecido ou pelos princiacutepios formais ou pelos sujeitos Em ambos os casos temos quatro virtudes cardeais porque o princiacutepio formal da virtude aqui considerada eacute o bem da razatildeo que pode ser considerado sob o duplo aspecto ou enquanto consiste na proacutepria consideraccedilatildeo da razatildeo e se teraacute entatildeo uma virtude principal que se chama prudecircncia ndash ou enquanto se afirma a ordem da razatildeo em relaccedilatildeo a alguma coisa E isso seraacute ou quanto as accedilotildees e se teraacute entatildeo a justiccedila ou quanto agraves paixotildees e nesse caso eacute preciso que haja virtudes pois para afirmar a ordem da razatildeo nas paixotildees eacute necessaacuterio levar em conta a oposiccedilatildeo delas agrave razatildeo Essa oposiccedilatildeo pode se dar de duas formas primeiro quanto a paixatildeo impele a algo contraacuterio agrave razatildeo e aiacute eacute preciso que a paixatildeo seja controlada o que chamamos temperanccedila segundo quando a paixatildeo nos afasta das normas da razatildeo como o temor do perigo ou do sofrimento e nesse caso devemos nos firmar
95 ldquoErgo dicendum quod irascibilis et concupiscibilis secundum se consideratae prout sunt partes
appetitus sensitivi communes sunt nobis et brutis Sed secundum quod sunt rationales per participationem ut obedientes rationi sic sunt propriae hominis Et hoc modo possunt esse subiectum virtutis humanaerdquo
104
inarredavelmente no que eacute racional e a isso se daacute o nome de fortaleza (AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles I-II q 61 a2 )96
Tomaacutes de Aquino entende que o nuacutemero das virtudes eacute determinado e esta
determinaccedilatildeo eacute dada de duas maneiras ou segundo os princiacutepios formais ou
conforme os princiacutepios subjetivos na qualidade de sujeitos97 Tanto numa quanto
noutra maneira o nuacutemero das virtudes pode ser resumido em quatro Com efeito esse
nuacutemero de quatro virtudes cardeais eacute exatamente o numero suficiente para dar conta
de todas as dimensotildees do homem pensado em sua constituiccedilatildeo Conforme os
princiacutepios formais a virtude seraacute pois o bem da razatildeo (prudecircncia) ou daquilo que a
ela se refere a saber agrave vontade (justiccedila) como segunda potecircncia espiritual e agrave
concupiscecircncia (temperanccedila) e a irascibilidade (fortaleza) como potecircncias ligadas ao
corpo
Em relaccedilatildeo aos princiacutepios subjetivos o nuacutemero das virtudes principais tambeacutem
seraacute quatro pois segundo Tomaacutes de Aquino os sujeitos satildeo quatro o racional por
essecircncia e dele a prudecircncia e o racional por participaccedilatildeo a vontade sujeito da
justiccedila o apetite concupisciacutevel sujeito da temperanccedila e o irasciacutevel sujeito da
fortaleza
Com isso entende-se que as virtudes visam natildeo apenas a perfeiccedilatildeo das
potecircncias tomadas particular ou aleatoriamente mas visam agrave perfeiccedilatildeo do agente
compreendido em sua totalidade Segundo Albert Pleacute a virtude moral humana e
humanizante levada agrave perfeiccedilatildeo habilita o homem a agir com todo o seu ser em
conformidade com sua natureza racional Eacute dessa forma que ele assegura de uma
vez soacute tanto o bem da obra cumprida (bonum operis) quanto o do sujeito que age
(bonum operantis) (Cf PLEacute 2005 vol IV nota ldquobrdquo p 162)
A relaccedilatildeo entre as virtudes e a constituiccedilatildeo do homem leva a compreender que
eacute em virtude de o homem ser pensado a partir de uma unidade substancial que se
96 ldquodicendum quod numerous aliquorum accipi potest aut secundum principia formalia aut secundum
subiecta et utroque modo inveniuntur quatuor cardinales virtutes Principium enim formale virtutis de qua nunc loquimur est rationis bonum Quod quidem dupliciter potest considerari Uno modo secundum quod in ipsa consideratione rationis consistit Et sic erit uma virtus principalis quae dicitur prudentia ndash Alio modo secundo quod circa aliquid ponitur rationis ordo Et hoc vel circa operationes et sic est iusticia vel circa passiones considerata repugnantia ipsarum ad rationem Quae quidem potest esse dupliciter Uno modo secundum quod passio impellit ad aliquid contrarium rationi et sic necesse est quod passio reprimatur et ab hoc denominatur temperantia Alio modo secundum quod passio retrahit ab eo quod ratio dictat sicut timor periculorum vel laborum et sic necesse est quod homo firmetur in eo quod est rationis ne recedat et ab hoc denominatur fortitudordquo
97 A noccedilatildeo de sujeito tem aqui um sentido preciso Sujeito significa o substrato que suportaraacute a efetivaccedilatildeo de uma coisa
105
pode pleitear uma unidade das virtudes Com efeito esta unidade decorre por um
lado da exigecircncia ou da necessidade que cada potecircncia do homem tem de ser
adequadamente aperfeiccediloada e por outro da inter-relaccedilatildeo existe entre as proacuteprias
virtudes conforme se veraacute adiante quando se tematizar sobre a conexatildeo entre as
virtudes
5313 A explicitaccedilatildeo do conceito de virtude e a releitura tomista da teoria das
virtudes
53131 A perfeiccedilatildeo da potecircncia e habito operativo
Apoacutes ter apontado qual o lugar filosoacutefico das virtudes na Suma Teoloacutegica e o
modo como elas se estruturam em favor do homem e de sua da bem-aventuranccedila
faz-se necessaacuterio expor como Tomaacutes de Aquino assumiu e modificou a noccedilatildeo
aristoteacutelica de virtude Deve-se esclarecer que Tomaacutes se utiliza de duas concepccedilotildees
de virtudes a saber virtude enquanto excelecircncia dos atos humanos e virtude
enquanto habitus operativo que aperfeiccediloa e prepara as potecircncias para emitirem os
atos excelentes requeridos pela vida beata
Primeiramente deve-se afirmar que as virtudes satildeo habitus Segundo Albert
Pleacute habitus eacute uma disposiccedilatildeo uma capacidade da natureza humana a qual se
enraiacuteza em sua natureza especiacutefica e individual finalizada pelo agir (cf PLEacute 2005
tomo IV p 35) Muito mais que uma simples disposiccedilatildeo o habitus qualifica as outras
disposiccedilotildees de modo que estas se realizam da melhor maneira nas accedilotildees especiacuteficas
A partir desta compreensatildeo chega-se ao primeiro conceito de virtude como perfeiccedilatildeo
da potecircncia isto eacute como excelecircncia dos atos humanos
Em que consiste esta excelecircncia Segundo Giuseppe Abbaacute ldquoesta excelecircncia
consiste no fato de que nos atos voluntaacuterios a vontade e os apetites passionais satildeo
regulados segundo especiacuteficos modos de regulaccedilatildeo que satildeo requeridos para a vida
felizrdquo (ABBAacute 2008 p 35) Estes modos especiacuteficos de regulaccedilatildeo satildeo proporcionados
pela razatildeo atraveacutes do que Tomaacutes denominou ordo rationis Eacute pela ordem da razatildeo
ou reta razatildeo que o agente regula as proacuteprias escolhas subordinando-as aos fins
virtuosos Deste modo pela ordo rationis o indiviacuteduo manteacutem uma retidatildeo na busca
da vida feliz Sobre isto Tomaacutes de Aquino afirma ldquoa virtude designa certa perfeiccedilatildeo
106
da potecircncia Mas a perfeiccedilatildeo de uma coisa eacute considerada principalmente em ordem
ao seu fim Ora o fim da potecircncia eacute o ato Portanto a potecircncia seraacute perfeita na medida
em que eacute determinada por seu atordquo (AQUINO Tomaacutes deS Th I-II q55 a1)98 O
primeiro sentido aplicado por Tomaacutes de Aquino jaacute era conhecido e tematizado por
Aristoacuteteles
A virtude designa certa perfeiccedilatildeo da potecircncia pois ela eacute considerada desta
maneira uma vez que ordena as potecircncias em funccedilatildeo do fim do homem Entretanto
as virtudes satildeo a perfeiccedilatildeo apenas das potecircncias que corroboram com o fim do
homem Estas potecircncias as potecircncias racionais necessitam das virtudes porque elas
natildeo se determinam a um uacutenico objeto Tomaacutes de Aquino afirma que ldquoas potecircncias
racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se
prestam indeterminadamente a muitas coisasrdquo Nesta hipoacutetese as virtudes teriam a
funccedilatildeo de aperfeiccediloar e de preparar as potecircncias para emitirem os atos excelentes
que satildeo exigidos agrave vida feliz Aleacutem disso a vontade livre do homem de certo modo
nunca teria dispensada sua atuaccedilatildeo
Em segundo lugar virtude eacute tomada segundo a compreensatildeo de haacutebito
operativo isto eacute enquanto habito operativo ela valoriza as capacidades naturais do
ser humano como forma de tambeacutem corrigir o despreparo natural do homem em
buscar a vida beata dada a constituiccedilatildeo do homem na qual o seu existir natildeo atualiza
naturalmente todas as potencialidades presentes na sua essecircncia Este conceito de
habitus operativus eacute uma particularidade e um acreacutescimo de Tomaacutes de Aquino ao
conceito primitivo de virtude Por isto mesmo Tomaacutes de Aquino conclui que ldquoa virtude
humana natildeo eacute apenas perfeiccedilatildeo mas tambeacutem aquilo que o aperfeiccediloardquo
Eacute possiacutevel afirmar que o duplo conceito de virtude como perfeiccedilatildeo das
potecircncias e como habitus operativus se dirige por um lado agrave construccedilatildeo de um haacutebito
bom (bocircnus habitus) e por outro como produtor de bem (boni operativus) Constitui-
se como um fato novo a concepccedilatildeo de virtude como um habitus que contem a funccedilatildeo
de aperfeiccediloamento e preparaccedilatildeo agrave felicidade Segundo Tomaacutes de Aquino ldquoa virtude
humana natildeo implica em uma ordenaccedilatildeo para o existir mas antes para a accedilatildeo Assim
eacute da razatildeo da virtude humana ser haacutebito operativordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q55
98 ldquovirtus nominat quandam potentiae perfectionem Uniuscuiusque autem perfectio praecipue
consideratur in ordine ad suum finem Finis autem potentiae actus est Unde potentia dicitur esse perfecta secundum quod determinatur ad suum actumrdquo
107
a1)99 Esta concepccedilatildeo supera de certo modo a concepccedilatildeo aristoteacutelica de virtude Com
efeito a partir da abordagem tomista a virtude natildeo diz respeito apenas agrave excelecircncia
dos atos humanos mas ao habitus operativus que aperfeiccediloa e repara os atos
humanos na ldquojornadardquo do homem de retorno a Deus
53132 As virtudes teologais
As virtudes teologais correspondem ao contributo de Deus ao homem na busca
de uma vida perfeitamente feliz As virtudes cardeais satildeo resultado das capacidades
naturais do homem por isso mesmo como ldquopor sua forccedila ningueacutem pode se salvarrdquo
as virtudes teologais acrescentam agrave natureza humana a capacidade de se dirigirem a
Deus com um forccedila sobrenatural isto eacute com uma forccedila que sozinha a natureza
humana natildeo seria capaz de proporcionar
A ideia de Tomaacutes eacute que a razatildeo humana eacute capaz de ordenar os apetites
volitivos e passionais em funccedilatildeo de seu proacuteprio fim
Uma das grandes inovaccedilotildees do pensamento de Santo Tomaacutes estaacute na
articulaccedilatildeo das virtudes teologais tanto na teologia quanto no cataacutelogo das proacuteprias
virtudes Com efeito a esperanccedila passa a ser considerada componente das virtudes
de tal modo que ateacute autores de inspiraccedilatildeo marxista como Ernst Bloch a tem em grande
conta
Embora as virtudes teologais tenham sido infundidas por Deus no ser humano
segundo a opiniatildeo se Tomaacutes de Aquino elas tambeacutem participam no aperfeiccediloamento
do intelecto e do apetite Esta ideia do Aquinate abre espaccedilo agrave noccedilatildeo de conexatildeo
entre as virtudes Eacute por meio desta conexatildeo entre as virtudes que se estrutura no
agente a unidade de seu caraacuteter E eacute justamente pela virtude da Prudecircncia que se daacute
a unidade da pessoa uma vez que a prudecircncia desenvolve uma harmonizaccedilatildeo
dinacircmica entre a razatildeo e o apetite
53133 A virtude da Justiccedila
99 ldquoEt ideo de ratione virtutis humanae est quo sit habitus operativusrdquo
108
Eacute digno de nota que a Beatitude cristatilde natildeo eacute um achado exclusivamente
individual e nem deve ser pensada desapegada do caraacuteter social Mesmo que o aacutepice
da Beatitude seja a visio beatifica pensada num plano para aleacutem histoacuteria conforme a
revelaccedilatildeo cristatilde haacute que se pensar nas condiccedilotildees sensiacuteveis favoraacuteveis ao alcance
dela Estas condiccedilotildees satildeo certamente proporcionadas num niacutevel individual atraveacutes da
maior parte das virtudes e num niacutevel comunitaacuterio atraveacutes da virtude da justiccedila
A justiccedila jaacute desde o Aristoacuteteles carrega a marca de ser a maior de todas as
virtudes pois eacute a uacutenica que diz a respeito a relaccedilatildeo do agente com outros O livro V
da Eacutetica a Nicocircmacos eacute dedicado agrave Justiccedila suas acepccedilotildees divisotildees e gradualidades
Tomaacutes de Aquino ldquobeberdquo dos princiacutepios aristoteacutelicos da justiccedila e dedica a questatildeo 58
da IIa IIae da Suma Teoloacutegica agrave anaacutelise e aprofundamento desta virtude
Na anaacutelise tomista sobre a Justiccedila as dimensotildees pessoais e sociais da vida
moral satildeo postas em relaccedilatildeo especialmente no que diz respeito agrave vida cristatilde
Pertence agrave justiccedila a funccedilatildeo de qualificar e retificar as accedilotildees da pessoa Esta funccedilatildeo
tambeacutem se estende agraves relaccedilotildees e instituiccedilotildees da vida social
Do ponto de vista pessoal considerando a antropologia tomista a potecircncia
espiritual da vontade se relaciona agrave capacidade de agir O bem agir enquanto melhor
atualizaccedilatildeo da potecircncia da vontade se traduz na forma de Justiccedila Do ponto de vista
pessoal a justiccedila eacute a virtude conexa agrave vontade ao passo que do ponto de vista social
Justiccedila de refletiraacute ou seraacute atualizada como Direito O Direito eacute assim o objeto da
justiccedila Nesse sentido a virtude da justiccedila faz parte de um elo que inclui homem
vontade virtude e Direito Segundo Claacuteudio Pedrosa ldquoO Direito como objeto da
Justiccedila eacute erigido segundo entendemos como qualificativo eacutetico-juriacutedico da
conceituaccedilatildeo de Justiccedila em Santo Tomaacutesrdquo (NUNES 2011 p 590)
53134 A unidade das virtudes e conexatildeo entre as virtudes
A unidade das virtudes em Tomaacutes de Aquino pode ser encontrada naquilo que
ele intitula a conexatildeo entre as virtudes Com efeito estaacute ideia de interdependecircncia
entre as virtudes ateacute entatildeo pouco tematizada no acircmbito da Eacutetica das Virtudes eacute o
que daacute inteligibilidade a uma consolidaccedilatildeo da unidade do caraacuteter moral de um agente
Andreacute Comte-Sponville critica a ideia de em um estudo sobre a moral se
tematizar sobre as paixotildees e os viacutecios ldquoe o que eacute mais digno de interesse na moral
109
que as virtudes Assim como Spinoza natildeo creio haver utilidade em denunciar os
viacutecios o mal o pecado Eacute a moral dos tristes e uma triste moralrdquo (COMTE-SPONVILLE
1995 p 7) Contrariamente a afirmaccedilatildeo do autor eacute relevante compreender que a
consideraccedilatildeo sobre as paixotildees muito mais do que uma fuga que realmente importa
contrariamente ao que diz Andreacute Comte-Sponville constitui-se como um
reconhecimento do modo como a razatildeo se relaciona com os apetites Tomaacutes de
Aquino sabe e afirma que em relaccedilatildeo aos apetites a razatildeo natildeo pode agir na forma
de um ldquopoder despoacuteticordquo mas age na forma de um ldquopoder poliacuteticordquo no qual as
decisotildees satildeo tomadas como resultado de um longo e contiacutenuo diaacutelogo entre forccedilas
contraacuterias
A parte apetitiva obedece agrave razatildeo natildeo ao menor aceno mas com certa resistecircncia Razatildeo porque o Filoacutesofo diz que lsquoa razatildeo rege a potecircncia apetitiva com poder poliacuteticorsquo tal qual se governam as pessoas livres que tecircm certos direitos de oposiccedilatildeo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 58 a2)100
A necessidade de se conhecer as paixotildees e os viacutecios se impotildee porque mesmo
podendo conduzir o ser humano agrave vida boa a vontade humana permanece faliacutevel
sendo assim deve-se saber sobre as virtudes e sobre o seu oposto porque estas satildeo
de certo modo realidades quotidianas ao indiviacuteduo Com efeito pelas paixotildees eacute
possiacutevel condicionar o exerciacutecio da vontade livre caso estas potecircncias sejam
atualizadas na forma de viacutecios
Outro dado relevante eacute que a compreensatildeo acerca das paixotildees ainda
proporciona a consciecircncia da relaccedilatildeo entre as paixotildees e suas virtudes
correspondentes Isto eacute cada paixatildeo suscita o exerciacutecio de uma virtude que lhe eacute
apropriada Dessa afirmaccedilatildeo podem-se concluir duas coisas a primeira eacute a de que a
diversidade das paixotildees causa a diversidade das virtudes morais e a segunda eacute a de
que o cataacutelogo das virtudes eacute fundamentado nas necessidades concretas do ser
humano Assim contra ao que Andreacute Comte-Sponville coloca o estudo sobre as
paixotildees muito mais do que uma moral dos tristes constitui-se num reconhecimento
desta unidade que eacute o homem e de como as virtudes natildeo se ligam a ele acidental
Uma decorrecircncia necessaacuteria unidade das virtudes eacute a ideia de que as virtudes
estatildeo conectadas umas agraves outras A ideia de Tomaacutes eacute fazer entender que se pelas
100 ldquoPars enim appetitiva obedit rationi nom omnimo ad notum sed cum aliqua contradictione unde
Philosophus dicit in I Polit quod ratio imperat appetitivae principatu poliacutetico quod scilicet aliquis praeest liberis qui habent ius in aliquo contradicendirdquo
110
virtudes consideradas separadamente o homem possui a perfeiccedilatildeo de suas
potecircncias a praacutetica das virtudes mostraraacute que umas natildeo seratildeo possiacuteveis sem as
outras Ora se na arquitetura da antropologia tomista todas as virtudes recebem uma
iluminaccedilatildeo pela virtude intelectual da prudecircncia de modo que ao final todo o agir do
homem virtuoso estaacute relacionado agrave reta razatildeo deve-se aceitar tambeacutem que todas as
virtudes estatildeo relacionadas e conectadas
A conexatildeo das virtudes a partir do Comentaacuterio a Eacutetica a Nicocircmacos mostra
como a parte racional do homem atua relacionada agrave vontade e como existe uma
relaccedilatildeo de interdependecircncia entre as virtudes
Duas coisas satildeo asseguradas na obra da virtude Uma eacute que o homem tenha uma intenccedilatildeo correta para o fim o que a virtude moral providencia inclinando a faculdade apetitiva para um fim proacuteprio A outra eacute dada pela prudecircncia a qual daacute bons conselhos julga e ordena os meios para o fim (DrsquoAQUIN Thomas Commentary on Aristotles
Nicomachean Ethics VI 10 1269 1993)101
Essas duas potecircncias satildeo partes essenciais das accedilotildees virtuosas a prudecircncia
aperfeiccediloando a parte racional e a virtude moral a parte apetitiva A prudecircncia natildeo
pode existir sem virtude moral bem como a virtude moral natildeo pode existir sem a
prudecircncia Joatildeo Hobuss acrescenta que ldquoo mesmo se daacute com as virtudes morais pois
enquanto a prudecircncia garante a bondade dos meios as virtudes morais garantem a
retidatildeo do fim isto eacute a obra da virtude eacute assegurada por ambas tanto a prudecircncia
quanto as virtudes moraisrdquo (HOBUSS 2011) Desse modo entende-se que uma accedilatildeo
virtuosa necessita da conexatildeo entre as virtudes
Possui particular relevacircncia a posiccedilatildeo tomista de que todas as virtudes
dependam da caridade Sua tese proveacutem do posicionamento fundamental da Tradiccedilatildeo
Biacuteblica que defende que entre as virtudes teologais a caridade eacute a virtude mais
importante Tomaacutes de Aquino afirma que ldquoas virtudes morais infusas estatildeo ligadas
entre si natildeo soacute por causa da prudecircncia mas tambeacutem da caridade e quem perde a
caridade pelo pecado mortal perde todas as virtudes morais infusasrdquo (AQUINO Tomaacutes
S Th I-II q65 a3)102 A afirmaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino leva a concluir uma coisa a
101 ldquoTwo things are needed in a work of virtue One is that a man have a right intention for the end which
moral virtue provides in inclining the appetitive faculty to a proprer end The other is to be well disposed towards the means This is done by prudence which gives good advice judges and orders the means to the endrdquo
102 ldquoQuod virtutes morales infusae non solum habent connexionem propter prudentiam sed etiam propter caritatem Et quod qui amittit caritatem per peccatum mortale amittit caritatem per peccatum mortele amittit omnes virtutes Morales infusasrdquo
111
unidade e a conexatildeo entre as virtudes natildeo eacute um feito exclusivo da racionalidade mas
eacute uma condiccedilatildeo proporcionada pelo ato de amor que eacute a caridade
A organizaccedilatildeo da conexatildeo entre as virtudes a partir de Tomaacutes de
Aquino obedece a seguinte ordem primeiramente haacute conexatildeo das virtudes
intelectuais entre si por meio dos primeiros princiacutepios (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I-
II q 65 a3) Jaacute a conexatildeo entre as virtudes intelectuais e as virtudes morais se daacute por
meio da prudecircncia Com efeito eacute justamente por meio da relaccedilatildeo existente entre a
prudecircncia e as virtudes morais que se daacute a harmonizaccedilatildeo entre razatildeo e o apetite
denominado de desejo refletido Por fim a conexatildeo entre as virtudes morais e as
teologais se daacute por meio da caridade e por obra de sua atuaccedilatildeo as virtudes humanas
se tornam mais perfeitas Cabe afirmar que esta uacuteltima conexatildeo entre as virtudes
teologais e as virtudes morais eacute resultado da siacutentese tomista entre a tradiccedilatildeo biacuteblica e
o aristotelismo Cabe verificar ainda outras relaccedilotildees entre estas duas tradiccedilotildees
53135 O habitus e vontade livre
Aleacutem do conceito de virtude Tomaacutes de Aquino traz outras inovaccedilotildees agrave
concepccedilatildeo aristoteacutelica de virtudes Uma dessas inovaccedilotildees consiste na relaccedilatildeo que se
estabelece entre habitus e vontade livre Segundo Giuseppe Abbaacute
uma vez que a Aristoacuteteles faltava o conceito de livre vontade as virtudes eacuteticas introduziam uma determinaccedilatildeo inelutaacutevel nos apetites Para Tomaacutes poreacutem introduzem uma determinaccedilatildeo que estaacute continuamente agrave disposiccedilatildeo da vontade que pode usar delas quando quiser mas tais determinaccedilotildees natildeo passam ao ato sem o livre consenso da vontade As virtudes permanecem sendo determinaccedilotildees uniacutevocas e infaliacuteveis mas a livre vontade humana permanece faliacutevel (ABBAacute 2008 p 36)
A relaccedilatildeo entre habitus e vontade livre explica por exemplo como algueacutem
mesmo sendo virtuoso sempre estaacute na iminecircncia de natildeo secirc-lo Assim esta relaccedilatildeo
contribui com a ideia de que soacute existe virtude onde o homem pode libertar-se do
determinismo da natureza animal Isto soacute eacute possiacutevel ao homem pela accedilatildeo de suas
capacidades inteligentes E porque as potecircncias racionais se prestam de maneira
indeterminadas a muitas coisas eacute que satildeo necessaacuterios os habitus virtuosos
Existem poreacutem potecircncias que satildeo determinadas em si mesmas para os seus atos como as potecircncias naturais ativas e por isso elas proacuteprias se chamam virtudes Jaacute as potecircncias racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se prestam
112
indeterminadamente a muitas coisas (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q55 a 1)
Se se considera a realidade indeterminada das potecircncias racionais torna-se
possiacutevel chegar ao fato de Eacutetica Tomista estar profundamente ligada agrave ideia de
liberdade Com efeito pelas virtudes se podem aperfeiccediloar as potecircncias para o
melhor entretanto o exerciacutecio das virtudes fundamenta-se numa adesatildeo consciente
da pessoa mostrando como estatildeo inter-relacionados virtudes pessoa e liberdade103
Na verdade natildeo eacute necessaacuterio apresentar separadamente a noccedilatildeo de pessoa e a de
liberdade pois o conceito de pessoa jaacute inclui a ideia de liberdade por se referir a uma
substacircncia individual de natureza racional Ora como se sabe a livre vontade em
Tomaacutes de Aquino decorre da condiccedilatildeo racional do homem
Considerando a condiccedilatildeo do homem se as virtudes possuem uma funccedilatildeo
aperfeiccediloadora e reparadora das potecircncias humanas se vecirc que existe uma relaccedilatildeo
iacutentima entre virtude e livre-arbiacutetrio em Tomaacutes de Aquino Ora se o livre-arbiacutetrio eacute a
capacidade de se fazer o que se quer sua relaccedilatildeo com as virtudes haacute de dirigir os
atos especificamente humanos de modo que o proacuteprio homem seja plenamente livre
Plenamente livre se refere pois ao intento de que o homem que natildeo seja escravo
nem mesmo das determinaccedilotildees do livre-arbiacutetrio que com sua natureza
indeterminada pode liberar o ser humano agrave maldade
A afirmaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino ratifica ldquoque a virtude eacute o bom uso do livre
arbiacutetrio a saber porque a virtude se ordena a isso como o ao seu proacuteprio ato proacuteprio
pois o ato virtuoso nada mais eacute que o bom uso do livre-arbiacutetriordquo (AQUINO Tomaacutes de
S Th I-II q 55 a 1)104 Como se viu em outra seccedilatildeo desta pesquisa livre-arbiacutetrio natildeo
significa necessariamente a liberdade Daiacute a afirmaccedilatildeo de Tomaacutes ao relacionar virtude
a um ldquobom usordquo do livre arbiacutetrio A partir da afirmaccedilatildeo do autor pode-se afirmar por
um lado que as virtudes satildeo haacutebitos que auxiliam a vivecircncia pessoal da liberdade
por outro o aprofundamento da ideia de que a eacutetica tomista natildeo eacute uma simples
reduccedilatildeo das accedilotildees agrave racionalidade pura ou exclusivamente na vontade Esta
conclusatildeo tambeacutem eacute ratificada por Juvenal Savian Filho quando afirma que
103Sobre a fundamentaccedilatildeo da eacutetica tomista na noccedilatildeo de liberdade conferir o artigo de SAVIAN FILHO
2008 p 177-184 104 ldquoDicendum quod bonus usus liberi arbitrii dicitur esse virtus secundum eandem rationem scilicet est
id ad quod ordinatur virtus sicut ad proprium actum Nihil est enim aliud actus virtutis quam bonus usus liberi arbitriirdquo
113
Uma accedilatildeo [segundo o pensamento tomista] nunca eacute fundada num mero raciociacutenio nem num mero desejo Razatildeo e vontade mostram-se entrelaccediladas na accedilatildeo moral e Tomaacutes ainda que decirc prerrogativa agrave razatildeo prefere apontar para tal entrelaccedilamento ou enovelamento como dissemos acima (SAVIAN FILHO 2008 p 181)
A partir da afirmaccedilatildeo de Juvenal Savian Filho compreende-se que o
posicionamento de Santo Tomaacutes em relaccedilatildeo agraves accedilotildees natildeo negligencia o modo como
o ser humano eacute constituiacutedo A constituiccedilatildeo corporal e aniacutemica do homem deixa patente
que seria um reducionismo negligenciar da relaccedilatildeo interna que a razatildeo e a vontade
possuem Esta relaccedilatildeo seraacute pensada a seguir
53136 As virtudes eacuteticas e a razatildeo
Segundo Giuseppe Abbaacute a outra inovaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino em relaccedilatildeo ao
conceito aristoteacutelico de virtude refere-se a relaccedilatildeo entre as virtudes eacuteticas e a razatildeo
Para ele Aristoacuteteles e Tomaacutes reconhecem que as virtudes recebem da razatildeo
enquanto ato prudencial a determinaccedilatildeo do justo meio entretanto Tomaacutes de Aquino
acrescenta que tanto a prudecircncia quanto as outras virtudes eacuteticas recebem da razatildeo
a concepccedilatildeo e a prescriccedilatildeo dos fins virtuosos gerais da vida boa e certos tipos de
accedilotildees absolutamente requeridas ou excluiacutedas por tais fins
Ora ao fim devido o homem se dispotildee convenientemente pela virtude que aperfeiccediloa a parte apetitiva da alma cujo objeto eacute o fim Quanto aos meios adequados ao fim importa que o homem esteja diretamente disposto pelo haacutebito da razatildeo porque aconselhar e escolher que satildeo accedilotildees relacionadas como os meios satildeo atos da razatildeo (ABBAacute 2008)
A partir da afirmaccedilatildeo apresentada eacute possiacutevel perguntar de onde a razatildeo retira
os meios adequados ao fim Ora se o fim uacuteltimo da vida humana eacute Deus nele
tambeacutem deve estar a razatildeo e o fundamento da lei eterna que dispotildee os meios mais
adequados ao fim E eacute dessa lei eterna que proveacutem a ideia de que a razatildeo humana
nela participa e como tal eacute atraveacutes das virtudes e natildeo dos preceitos da lei que a lei
eterna alcanccedila os atos individuais e os torna perfeitos
Segundo Eacutetienne Gilson o caraacuteter propriamente humano eacute garantido pela
razatildeo assim a virtude e o bem moral como que se harmonizam agrave nossa natureza
Contrariamente o mal moral o pecado e o viacutecio de que o pecado decorre soacute podem
ser concebidos como faltas de racionalidade no ato ou no costume (cf GILSON 2006
p 398)
114
53137 A relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo tomista de pessoa
Existe uma relaccedilatildeo entre as virtudes e a individualidade Embora as virtudes se
encontrem no ser humano em seu germe a natureza humana comporta natildeo apenas
as virtualidades especiacuteficas e comuns a todos os homens Com efeito as virtudes soacute
existem individualizadas num ente concreto e singular Esta convicccedilatildeo de Santo
Tomaacutes eacute o que fundamenta a ideia de que cada pessoa possui uma aptidatildeo especiacutefica
e toda particular tanto para o saber quanto para as virtudes
Seja de um modo ou de outro a virtude eacute natural no homem incoativamente Segundo a natureza especiacutefica enquanto na razatildeo do homem estatildeo presentes naturalmente certos princiacutepios naturalmente conhecidos tanto na ordem do saber quanto na ordem da accedilatildeo princiacutepios que satildeo sementes das virtudes intelectuais e das virtudes morais e enquanto estaacute presente na vontade um apetite natural do bem conforme a razatildeo Por outro lado segundo a natureza individual enquanto uns satildeo pela disposiccedilatildeo de seu corpo mais ou menos dispostos a algumas virtudes e isso porque certas potecircncias sensitivas satildeo atos de algumas partes do corpo e a disposiccedilatildeo deles favorece ou dificulta os atos dessas potecircncias e por consequecircncia as potecircncias racionais as quais as faculdades sensitivas obedecem Assim eacute que uma pessoa tem aptidatildeo natural para a ciecircncia outra para a fortaleza e outra para a temperanccedila E dessa forma tanto as virtudes intelectuais quanto as morais existem em noacutes naturalmente como que num iniacutecio de aptidatildeo Natildeo pois de maneira consumada porque a natureza estaacute determinada a uma soacute coisa e a consumaccedilatildeo dessas virtudes natildeo se realiza por um soacute tipo de accedilatildeo mas segundo formas diversas segundo as vaacuterias mateacuterias sobre que versam as virtudes e segundo as diferenccedilas circunstanciais (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 63 a2)105
Tomaacutes de Aquino compreende que os princiacutepios do conhecimento e da accedilatildeo
estatildeo presentes no homem na forma de semente Ou seja como partiacutecipe de uma
105 ldquoUtroque autem modo virtus est homini naturalis secundum quandam inchoationem Secundum
quidem naturam speciei inquantum in ratione hominis insunt naturaliter quaedam principia naturaliter coacutegnita tam scibilium quam agendorum quae sunt quaedam seminalia intellectualium virtutum et moralium et inquantum in voluntate inest quidam naturalis appetitus boni quod est secundum rationem Secundum vero naturam individui inquantum ex corporis dispositione aliqui sunt dispositi vel melius vel peius ad quasdam virtutes prout scilicet vires quaedam sensitivae actus sunt quarundam partium corporis ex quarum dispositione adiuvantur vel impediuntur huismodi vires in suis actibus et per consequens vires deserviunt Et secundum hoc unus homo habet naturalem aptitudinem ad scientiam alius ad fotitudinem alius ad temperantiam Et his modis tam virtutes intellectuales quam morales secundum quandam aptitudinis inchoationem sunt in nobis a natura ndash Non autem consummatio earum Quia natura determinatur ad unum consummatio autem huiusmodi vitutum non est secundum unum modum actionis sed diversimode sedundum diversas mateacuterias in quibus virtutes operantur et sedundum diversas circumstantiasrdquo
115
essecircncia que garante esta aptidatildeo pode-se afirmar que o ser humano consolida sua
vida de saber e de agir no interior de sua personalidade atraveacutes da vida virtuosa e na
exterioridade da vida poliacutetica entendida aqui como expressatildeo da vivecircncia social do
ser humano
Se como foi dito os princiacutepios do conhecimento e do agir estatildeo presentes no
homem na forma de sementes eacute por meio da natureza individual que os seres
humanos atualizam essas potecircncias e por conseguinte distinguem-se no
aprendizado e no exerciacutecio efetivo das virtudes Assim eacute possiacutevel afirmar que embora
as virtudes se relacionem entre si o modo como cada indiviacuteduo atualiza suas
potecircncias eacute muito particular Daiacute porque Tomaacutes de Aquino afirmar que uma pessoa
tem aptidatildeo natural para a ciecircncia outra para a fortaleza e outra para a temperanccedila
(cf AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 63 a2)
Tomaacutes de Aquino ainda revela uma profunda consciecircncia acerca da
consumaccedilatildeo das virtudes Ao afirmar que as virtudes intelectuais e morais estatildeo no
homem como aptidatildeo e que a sua consumaccedilatildeo natildeo se realiza por um soacute tipo de accedilatildeo
e sob diversas circunstacircncias o autor sinaliza que diversas formas de vivecircncia ou de
praacuteticas satildeo capazes de atualizar as mesmas virtudes Assim natildeo se precisa acentuar
a necessidade de as pessoas viverem da mesma maneira para serem portadoras das
mesmas virtudes Eacute possiacutevel pois afirmar que pertence a Tomaacutes de Aquino o meacuterito
de compreender que em sua consumaccedilatildeo ou atualizaccedilatildeo as virtudes se aplicam de
maneiras diferentes em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que as praticam Estatildeo na base dessas
suas compreensotildees tanto o aprofundamento que Tomaacutes realizou da noccedilatildeo de
indiviacuteduo quanto o da noccedilatildeo de pessoa Como se sabe pela evoluccedilatildeo histoacuterica do
conceito de pessoa natildeo esteve entre as preocupaccedilotildees mais relevantes de Aristoacuteteles
o problema da individuaccedilatildeo aleacutem disso somente com Boeacutecio pessoa passa a
significar este mais particular no gecircnero humano Assim Tomaacutes de Aquino conclui
que ldquoas condiccedilotildees individuais de cada pessoa tambeacutem proporciona maior ou menos
proximidade agrave virtude entendida como meiordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q66 a1)
532 A eacutetica antiga assunccedilatildeo compatibilizaccedilatildeo e superaccedilatildeo
A ideia de liberdade em Tomaacutes de Aquino se constitui como princiacutepio que guia
o problema tomista da Beatitude e do Fim uacuteltimo do homem Aristoacuteteles seguindo a
116
articulaccedilatildeo da Eacutetica Antiga tem a Eudaimonia como ideia central da vida moral
Tomando esta ideia sob a acepccedilatildeo de Beatitude Tomaacutes de Aquino ultrapassa a ideia
aristoteacutelica primitiva de Eudaimonia rompendo assim com o cosmocentrismo da
Eacutetica Antiga assentado na moral aristoteacutelica e no neoplatonismo
Tomaacutes de Aquino empreende em relaccedilatildeo agrave Eacutetica das Virtudes um esforccedilo de
integraccedilatildeo da moral antiga ao personalismo cristatildeo Santo Tomaacutes busca manter um
equiliacutebrio entre a consistecircncia de uma natureza humana essencial da eacutetica antiga e
o homem histoacuterico peregrino do teocentrismo cristatildeo Eacute possiacutevel afirmar que a
questatildeo da liberdade humana estaacute situada entre a posiccedilatildeo teocecircntrica e a beatitude
A ideia cristatilde de que a beatitude soacute se realiza em sua plenitude com a visatildeo beatiacutefica
da divina essecircncia eacute mais um contributo singular agrave Eacutetica das Virtudes
O cosmocentrismo da eacutetica de Aristoacuteteles repousa sobre uma noccedilatildeo de
natureza que compreende que a tendecircncia para a Eudaimonia eacute fruto de ldquoum princiacutepio
interno de movimento dos seres que lhes confere sua consistecircncia proacutepria num
universo ordenado segundo os ciacuterculos ascendentes das naturezas ou essecircnciasrdquo
(LIMA VAZ 2002 p 39) Por sua vez do cosmocentrismo de origem neoplatocircnica o
pensamento cristatildeo importou a ideia de processatildeo e retorno dos seres com relaccedilatildeo
ao seu princiacutepio Esta ideia tornou-se posteriormente o esquema mais baacutesico da
ciecircncia teoloacutegica que compreende tudo como vindo de Deus e a ele retornando Deus
eacute portanto o ldquoArdquo enquanto tudo dele procede e o ldquoΩrdquo enquanto tudo para ele
retorna
A Eudaimonia eacute sem duacutevida de valor fundamental na eacutetica aristoteacutelica Ela estaacute
em consonacircncia um esquema cosmocecircntrico presente no pensamento de Aristoacuteteles
Na Poliacutetica por exemplo ser escravo ou ser livre eacute obra da natureza O recorte tomista
da Eudaimonia apresentado como Beatitude eacute justamente uma transgressatildeo da
ordem da coacutesmica possui um caraacuteter espiritual A visatildeo beatiacutefica transcende a ordem
da natureza seja no homem seja porque a proacutepria visatildeo eacute compreendida enquanto
uniatildeo agravequele que eacute o princiacutepio e termo da ordem natural embora natildeo fazendo parte
dela
Segundo Lima Vaz um dos motivos de o cosmocentrismo antigo se
compatibilizar ao pensamento cristatildeo deve-se ao caraacuteter teoloacutegico
Eacute preciso no entanto acentuar que o cosmocentrismo antigo eacute de natureza teoloacutegica e foi como tal que entrou em confronto com o
117
teocentrismo cristatildeo Com efeito o cosmos como totalidade perfeita tem como predicado fundamental a divindade Eacute o theion por excelecircncia Sendo assim sua contemplaccedilatildeo assume necessariamente a forma de uma teologia De resto a teologia cristatilde constitui-se em grande parte utilizando as estruturas conceptuais (sic) dessa teologia coacutesmica embora criticando-a nas suas expressotildees panteiacutestas (LIMA VAZ 2002 p 42)
No estudo do Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio Carlos Arthur
mostra como Tomaacutes de Aquino aponta exatamente a similitude entre o objeto da
Teologia e o objeto da Filosofia Primeira ou seja tanto a Teologia quando a
Metafiacutesica ou Filosofia Primeira compartilham um objeto semelhante106 Esta seria
pois a natureza teoloacutegica do cosmocentrismo antigo Ora a eacutetica teleoloacutegica que
aponta para o fim uacuteltimo do homem assume uma perspectiva finalista ao modo de
uma causa final a medida em que a eudaimonia se constitui na contemplaccedilatildeo do
cosmos divino e no conhecimento do seu princiacutepio ordenador
Seguindo a ideia da Reconciliaccedilatildeo entre o Pensamento Cristatildeo e o
Aristotelismo ver-se-aacute que aleacutem de assumir a influecircncia aristoteacutelica acerca do fim
uacuteltimo do homem Tomaacutes de Aquino faz do alcance ao fim uacuteltimo natildeo apenas uma
condiccedilatildeo de um movimento interno natural mas tambeacutem um ato acessiacutevel ao homem
atraveacutes de um ato da inteligecircncia O alcance e a compreensatildeo do fim uacuteltimo pelo
homem eacute assim o elemento de assunccedilatildeo e superaccedilatildeo do esquema aristoteacutelico da
Eacutetica das Virtudes por Santo Tomaacutes natildeo porque a espiritualidade da inteligecircncia seja
o diferencial mas pelo objeto alcanccedilado por ela Deus eacute o alcanccedilado na beatitude
cristatilde e como tal ele estaacute para aleacutem da ordem natural
Eacute possiacutevel afirmar que a eacutetica de Aristoacuteteles como tambeacutem a sua poliacutetica
constituiu-se como forma de manter uma coerecircncia entre a ordem do cosmos e os
atos humanos Especificamente a teoria aristoteacutelica das accedilotildees tenta compatibilizar o
desafio de desenvolver uma teoria causal das accedilotildees que compatibilizem a ordem da
natureza e a responsabilidade do agente Sobre a causalidade das accedilotildees em
Aristoacuteteles Carlo Natali afirma ldquoa causalidade aristoteacutelica individua uma conexatildeo real
existente no mundordquo (NATALI 2010 p 319)
106 NASCIMENTO Carlos Arthur R do Introduccedilatildeo ao Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio
questotildees 5 e 6 In TOMAS DE AQUINO Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio questotildees 5 e 6 Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Editora da UNESP 1999 p 17
118
A existecircncia de uma conexatildeo real no mundo significa que a teoria aristoteacutelica
dos atos e por conseguinte a eacutetica aristoteacutelica possuem um caraacuteter natural ou
cosmocecircntrico Qual a insistecircncia na distinccedilatildeo entre o caraacuteter cosmocecircntrico da eacutetica
aristoteacutelica e a eacutetica cristatilde ldquoancoradardquo na ideia de liberdade A credibilidade da ideia
de liberdade mesmo com os questionamentos posteriores dada pelos filoacutesofos
modernos ratifica a sequecircncia de contribuiccedilotildees oferecidas pelo pensamento cristatildeo agrave
Eacutetica das Virtudes e agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica
Henrique de Lima Vaz afirma que ldquoeacute um fato que a concepccedilatildeo da liberdade e
da beatitude como fim uacuteltimo do homem em Santo Tomaacutes edificada com materiais
aristoteacutelicos e neoplatocircnicos natildeo pretende atenuar mas ao contraacuterio acentuar o rigor
do teocentrismo cristatildeordquo (VAZ 2002 p 36) Aquilo que se entende aqui por superaccedilatildeo
do cosmocentrismo aristoteacutelico natildeo comporta elementos valorativos no sentido de
entender superaccedilatildeo como melhor ou pior A partir de algumas seccedilotildees anteriores pode-
se mostrar como Tomaacutes de Aquino conduziu esta tarefa
Tomaacutes de Aquino descentrou a teoria aristoteacutelica das accedilotildees quando encontrou
um modo de inserir uma parte moral na teologia sem no entanto perder o
foco da centralidade de Deus como sujeito (tema) fundamental da ciecircncia teoloacutegica
Segundo verificou-se como a moral tomista se encontrou profundamente
harmonizada com a ideia de liberdade distinguindo-a inclusive do livre-arbiacutetrio em sua
teoria dos atos humanos A ideia de liberdade foi no pensamento cristatildeo uma das
conquistas mais paradigmaacuteticas e problemaacuteticas deixadas para a Tradiccedilatildeo Filosoacutefica
Pode-se afirmar ainda que o problema da liberdade em Tomaacutes de Aquino se
encontra centralizado entre sua posiccedilatildeo teocecircntrica jaacute exposta no modo como o autor
encontrou um lugar para a moral sem ferir a unidade da ciecircncia teoloacutegica e a noccedilatildeo
de Beatitude A partir do pensamento de Tomaacutes de Aquino sobre esta questatildeo
compreende-se que para ele natildeo eacute possiacutevel ser feliz sem ser livre assim como natildeo
eacute livre aquele cuja felicidade se resume a uma perspectiva transitoacuteria do mundo das
criaturas sensiacuteveis
119
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A questatildeo da fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes se constituiu como objeto
de estudo desta pesquisa O problema que orientou as leituras e reflexotildees entatildeo
desenvolvidas foi de que maneira o pensamento cristatildeo tomista pode deixar uma
heranccedila na fundamentaccedilatildeo de desenvolvimento desta proposta eacutetica A tese aqui
desenvolvida como resposta agrave problemaacutetica foi a de que uma eacutetica das virtudes
proposta ao pensamento contemporacircneo natildeo deveria prescindir dos elementos
forjados no seio da interpretaccedilatildeo cristatilde tomista desta eacutetica
O desenvolvimento desta tarefa foi realizado atraveacutes da terminologia
denominada Reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e o pensamento cristatildeo tomista Esta
expressatildeo e o intento de mostrar como seria possiacutevel pensaacute-la filosoficamente
constituiu-se na tarefa que comprovou a tese de que o pensamento cristatildeo tem
contribuiccedilotildees relevantes agrave fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes A motivaccedilatildeo pelo
desenvolvimento do tema surgiu do pensamento de MacIntyre a partir de sua
indicaccedilatildeo presente no texto Justiccedila de Quem Qual Racionalidade em que o autor
afirma ter errado em sua interpretaccedilatildeo do pensamento de Santo Tomaacutes sobre a
unidade das virtudes e que seria necessaacuterio investigar o modo como Tomaacutes de Aquino
realizou o que o proacuteprio MacIntyre intitulou de Reconciliaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo Biacuteblica
e o Aristotelismo
Preferiu-se utilizar a expressatildeo Reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo
tomista e o aristotelismo A tradiccedilatildeo biacuteblica e suas diversas correntes de interpretaccedilatildeo
satildeo muito vastas Por isto a especificaccedilatildeo pensamento cristatildeo tomista traduziu de
modo delimitado os limites deste trabalho Jaacute o aristotelismo foi a outra ldquofonterdquo que
incitou e influenciou o pensamento de Tomaacutes de Aquino a se constituir como
pensamento epocal nas palavras de Hegel
A expressatildeo vinda de MacIntyre natildeo resultou numa tentativa de preenchimento
de uma lacuna em seu pensamento Esta pesquisa natildeo teve a ilusatildeo de ser a
continuadora da tarefa que MacIntyre reconheceu como erro de suas anaacutelises
Entretanto o diagnoacutestico feito acerca da fragmentaccedilatildeo do discurso moral
contemporacircneo a explicaccedilatildeo da origem da fragmentaccedilatildeo nas teses modernas sobre
120
a moralidade e a indicaccedilatildeo de que o pensamento cristatildeo tomista e o aristotelismo
poderiam ser relacionados foram o suficiente para motivar o seguimento de um
caminho singular de leitura e desenvolvimento das ideias de Tomaacutes de Aquino em
relaccedilatildeo aos fundamentos da Eacutetica das Virtudes
No itineraacuterio da pesquisa tomou-se o seguinte caminho na primeira parte o
modo como esta corrente do pensamento eacutetico retorna ao debate contemporacircneo e
quais dos seus fundamentos se pode compreender atraveacutes das ideias de Rosalind
Hursthouse e Gertrude Anscombe Expocircs-se tambeacutem os elementos de criacutetica agraves
morais deontoloacutegica e utilitarista Ao final se atingiu o horizonte filosoacutefico do qual o
pensamento de MacIntyre eacute devedor
A segunda parte apresentou o pensamento do MacIntyre em Depois da Virtude
com a exposiccedilatildeo do que ele chamou desacordo do discurso contemporacircneo sobre a
moralidade sua anaacutelise sobre a teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade e
o modo como elas influenciaram o desacordo contemporacircneo e o desenvolvimento de
sua teoria moral apresentada na terceira parte desta pesquisa
A quarta parte foi o desenvolvimento do pensamento de Tomaacutes de Aquino
intitulada Reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo tomista e o aristotelismo Nesta
parte tomou-se o pensamento de Aristoacuteteles sobre a teoria dos atos chegando a
compreensatildeo de que esta teoria eacute anterior e necessaacuteria a uma Eacutetica das Virtudes Em
seguida passou-se agrave anaacutelise reflexatildeo e aprofundamento das ideias relativas agrave
psicologia filosoacutefica tomista e os temas fundamentais ligados a Eacutetica das Virtudes
Da investigaccedilatildeo realizada cabe agora apresentar perspectivas de alcance
filosoacutefico e hermenecircutico acerca da Eacutetica das Virtudes dos autores aqui estudados e
da contribuiccedilatildeo do pensamento cristatildeo tomista em torno deste objeto
A Eacutetica das Virtudes eacute uma via possiacutevel de experiecircncia eacutetica agrave
contemporaneidade entre as morais deontoloacutegica e utilitarista A eacutetica do dever
pressupotildee o desenvolvimento de uma racionalidade madura para ser legisladora de
si e que seja imparcial para conter as inclinaccedilotildees e acima delas conformar as accedilotildees
agrave norma O utilitarismo se vale da moral da maximizaccedilatildeo do bem-estar de algueacutem e a
uma valoraccedilatildeo das accedilotildees em virtude das consequecircncias O produto das duas
expressotildees eacuteticas dominantes da contemporaneidade eacute uma certa convicccedilatildeo de que
por um lado estas propostas mantecircm sua atenccedilatildeo primordialmente na norma e por
outro as reflexotildees em torno do agente que pratica a norma ficaram negligenciadas
121
Assim como a Eacutetica das Virtudes tem sua atenccedilatildeo primordial agravequele que age eacute
possiacutevel garanti-la agrave qualidade de uma via possiacutevel dentro do debate eacutetico
contemporacircneo
Uma consequecircncia possiacutevel decorrente da coexistecircncia das trecircs correntes
eacuteticas supracitadas eacute a de que tem se firmado a impossibilidade de uma determinaccedilatildeo
da accedilatildeo de forma monista conforme uma corrente eacutetica em particular Este eacute um
achado problemaacutetico agraves teorias uma vez que cada uma delas ao se desenvolver
justifica-se como necessaacuteria Firma-se aos poucos a consolidaccedilatildeo de um certo
emotivismo Este emotivismo delineado por MacIntyre em Depois da Virtude tem por
tese fundante a ideia de que as accedilotildees satildeo expressotildees dos proacuteprios sentimentos dos
agentes Ou seja natildeo se determina a accedilatildeo de modo uniacutevoco
Foi possiacutevel compreender influecircncias filosoacuteficas ao pensamento do MacIntyre
na exposiccedilatildeo dos fundamentos da Eacutetica das Virtudes e na apresentaccedilatildeo das criacuteticas
agrave deontologia e ao utilitarismo atraveacutes dos pensamentos de Rosalind Hursthouse e
Gertrude Anscombe Em A filosofia moral moderna de Gertrude Anscombe
explicitou-se a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica no tratamento das questotildees
relativas agrave virtude O alcance desta pertinecircncia levou agrave compreensatildeo de que uma
psicologia filosoacutefica eacute necessaacuteria e anterior a uma teoria das virtudes Esta afirmaccedilatildeo
serviu entatildeo de fio condutor a anaacutelise da teoria dos atos em Aristoacuteteles e
nos conceitos de fundamentaccedilatildeo da Eacutetica de Tomaacutes de Aquino
Foi possiacutevel compreender o movimento interno de Depois das Virtudes Em
primeiro lugar MacIntyre apresenta elementos que comprovariam a existecircncia de um
desacordo moral em seguida o autor mostra como o desacordo resulta dos
empreendimentos realizados pela filosofia moral moderna mencionando as principais
posiccedilotildees de Kant Hume e Kierkegaard com a exposiccedilatildeo das divergecircncias entre as
teses MacIntyre mostra como o discurso moral perdeu a sua inteligibilidade e aiacute
propotildee uma teoria moral que seria capaz de garantir o retorno agrave unidade de um
discurso moral
Como MacIntyre postula um retorno de uma eacutetica das virtudes e como a
fundamentaccedilatildeo deste discurso estaacute primitivamente em Aristoacuteteles a pesquisa
adentrou num primeiro momento agrave teoria aristoteacutelica dos atos uma vez que as
virtudes dependem dela como anterior No segundo momento a investigaccedilatildeo seguiu
na anaacutelise dos conceitos tomistas que eram tomados de Aristoacuteteles e que foram se
122
compatibilizando agraves exigecircncias das circunstacircncias histoacuterico-cultural-filosoacuteficas de
Tomaacutes de Aquino Esta anaacutelise explicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do pensamento de Tomaacutes
de Aquino foram traduzidas aqui com o que se denominou Reconciliaccedilatildeo entre
pensamento cristatildeo e o aristotelismo Mostrar a tomada do pensamento eacutetico de
Aristoacuteteles e as contribuiccedilotildees do pensamento tomista foram tarefas fundamentais
desta pesquisa
Encontrou-se a compreensatildeo de que a eacutetica de Aristoacuteteles e de Santo Tomaacutes
tem mais a ver com o que faz a vida ser vivida do que com a obediecircncia agrave lei moral
O fato de ldquoter mais a verrdquo com a vida do agente natildeo implica num ldquonatildeo tem nada a verrdquo
com a norma Implica que a norma tem valor enquanto for capaz te ter sentido a um
agente que frequentemente a pratica e que tende a fazecirc-lo mais naturalmente A
questatildeo do desenvolvimento das virtudes brota de condiccedilotildees fundamentais do proacuteprio
ser do homem e por isso a virtude eacute a expressatildeo melhor do proacuteprio homem
e contribui na sua realizaccedilatildeo
Pela teoria dos atos e a consolidaccedilatildeo das virtudes pelos haacutebitos alcanccedila-se a
ideia de que a accedilatildeo virtuosa natildeo resulta exclusivamente da capacidade intelectual ela
necessita de uma praacutetica habitual constante Esta caracteriacutestica parece mais coerente
em relaccedilatildeo agrave constituiccedilatildeo aristoteacutelico-tomista do homem o ser uno em cuja existecircncia
conta com a sua dimensatildeo corpoacuterea e o modo como por vezes ela determina o seu
agir A praacutetica das virtudes respeita por assim dizer a estrutura da uniatildeo corpo e alma
do ser humano
Num contexto de Eacutetica das Virtudes a norma natildeo eacute exclusivamente um
conjunto de regras exteriores aos quais se deve obedecer mas modos de accedilatildeo que
internalizados pelo haacutebito proporcionam o desenvolvimento das virtudes uma
estabilidade nas vivecircncias cotidianas para conviver com as dores inevitaacuteveis da vida
pessoal e em comum Ao mesmo tempo as virtudes potildeem os seres humanos numa
corrente de interdependecircncia na qual o bem de um exige a contrapartida do bem dos
outros Isto se pode confirmar com a referecircncia ao conceito de justiccedila
O conceito de justiccedila corresponde agrave compreensatildeo de que natildeo haacute beatitude
sem a ideia de que sua busca eacute de caraacuteter comunitaacuterio A justiccedila tanto em Aristoacuteteles
quando em Tomaacutes de Aquino eacute a maior das virtudes porque se refere agrave relaccedilatildeo do
homem com os outros Eacute aceitaacutevel uma compreensatildeo bilateral da justiccedila pois o bem
que se quer para si deve-se tambeacutem se querer acessiacutevel aos outros
123
O aprofundamento dos elementos da psicologia filosoacutefica de Santo Tomaacutes se
constituiu numa tarefa imprescindiacutevel Os conceitos de sindeacuterese consciecircncia
vontade e intenccedilatildeo puderam ser apresentados como um contributo bem especiacutefico agrave
fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes
A sindeacuterese enquanto haacutebito natural especial relaciona-se aos princiacutepios
praacuteticos da accedilatildeo de modo a incitar o bem e condenar o mal Intuiccedilatildeo dos primeiros
princiacutepios da moral Jaacute a consciecircncia se encarrega de estabelecer o julgamento
acerca dos atos realizados pressupondo natildeo apenas a sindeacuterese mas todo o
conhecimento moral que se apoia sobre ela Tomaacutes de Aquino acrescenta que para
desenvolver estas funccedilotildees faz-se necessaacuteria ldquouma aplicaccedilatildeo atual de nosso
conhecimento agrave nossa accedilatildeordquo
A consciecircncia segundo Santo Tomaacutes natildeo eacute pensada como um funcionamento
constante Ela atua efetivamente quando os objetos relativos agraves accedilotildees assim a
solicitam Tal compreensatildeo do papel da consciecircncia desfaz o mito de que a concepccedilatildeo
do homem como animal racional implicaria necessariamente num
funcionamento constante da consciecircncia
As consideraccedilotildees sobre a vontade fundamentam a ideia de liberdade num
sentido mais baacutesico poreacutem necessaacuterio que eacute o conceito de livre arbiacutetrio e na
independecircncia de qualquer forma de determinaccedilatildeo inclusive as determinaccedilotildees do
proacuteprio livre arbiacutetrio O livre-arbiacutetrio eacute a fonte mais primordial de exerciacutecio da vontade
mas natildeo pode ser considerada a liberdade mesma Jaacute a liberdade eacute uma orientaccedilatildeo
racional ao fim No conceito da liberdade compreende-se porque natildeo eacute escravo
aquele que foi obrigado a fazer pois ser obrigado a fazer natildeo implica que houve o
movimento interno do querer fazer
Santo Tomaacutes aprofunda o conceito de vontade que seja naturalmente seja em
vista de fim ela permanece atuante A necessidade de fim natildeo repugna agrave vontade
nesse sentido compreende-se o salto posterior na relaccedilatildeo entre liberdade e Beatitude
promovido pelo filoacutesofo enquanto a eudaimonia aristoteacutelica eacute a contemplaccedilatildeo do
divino natural em Tomaacutes de Aquino Visio beatifica eacute fruto de um rompimento com a
concepccedilatildeo cosmocecircntrica da Eacutetica Antiga Desse modo Tomaacutes de Aquino
compatibiliza a ideia de liberdade com a ideia de fim Analogicamente assim como o
intelecto adere aos primeiros princiacutepios a vontade deve pois aderir ao fim uacuteltimo que
eacute a bem-aventuranccedila uma vez que a bem-aventuranccedila ou a felicidade eacute almejada
124
por todos Assim sendo compreende-se que o fato de haver uma vontade natural natildeo
implica uma contradiccedilatildeo com uma vontade livre
Instigar a vontade a agir e mover-se em busca de um fim eacute funccedilatildeo da intenccedilatildeo
Ela move natildeo somente a vontade mas todas as potecircncias do ser humano em busca
de um fim Tomaacutes de Aquino desenvolve o conceito intenccedilatildeo num duplo sentido
designa por um lado a intenccedilatildeo voluntaacuteria e por outro intenccedilatildeo aplicada agrave definiccedilatildeo
enquanto se exprime a intenccedilatildeo da verdade a intenccedilatildeo de bem Ela eacute o actus
voluntatis em busca dos fins quer transitoacuterios quer do uacuteltimo do homem Nesse
sentido pode-se afirmar que pela intenccedilatildeo os atos voluntaacuterios tornam-se unos o que
implica posteriormente em uma unidade da vida moral
No desenvolvimento que Aristoacuteteles faz sobre os atos voluntaacuterios estaacute
presente de forma latente a ideia de intenccedilatildeo Tomaacutes de Aquino aprofunda de modo
consideraacutevel este conceito Se a intenccedilatildeo se relaciona com os fins intermediaacuterios e
em relaccedilatildeo ao fim uacuteltimo pode-se firmar a ideia que ela atua em cada um dos atos
concernentes aos meios e a escolha Ou seja a intenccedilatildeo eacute ativa em todo
desenvolvimento das accedilotildees
O aprofundamento dos conceitos da psicologia filosoacutefica tomista e o estado em
que o autor deixou estes conceitos se firmaram com muita forccedila no seio da Tradiccedilatildeo
filosoacutefica Pelo conceito de arbiacutetrio bruto e livre arbiacutetrio o Kant da Metafiacutesica dos
Costumes assume quase que com a mesma nomenclatura o formato tomista dos
termos no mesmo texto os conceitos kantianos de sentimento moral e consciecircncia
moral satildeo por demais semelhantes aos conceitos de sindeacuterese e de consciecircncia Na
proacutepria contemporaneidade o conceito de intencionalidade perpassou tanto a eacutetica
quanto a fenomenologia Estas influecircncias filosoacuteficas asseguram ao pensamento
cristatildeo lugar na Tradiccedilatildeo Jaacute os conceitos da psicologia filosoacutefica comprovam a ideia
inicial que a teoria de uma Eacutetica das virtudes sugerida ao pensamento
contemporacircneo necessita considerar os achados do pensamento cristatildeo em seu
processo de fundamentaccedilatildeo
A partir das consideraccedilotildees elencadas eacute possiacutevel confirmar uma das ideias
iniciais desta pesquisa Um breve olhar sobre o vocabulaacuterio moral contemporacircneo
permite perceber que nele haacute muito do conteuacutedo semacircntico de conceitos que foram
forjados no seio do pensamento cristatildeo
125
Cabe ainda explicitar alguns achados no pensamento de Santo Tomaacutes
passiacuteveis de serem relacionados ao pensamento de MacIntyre Esta tarefa natildeo eacute
como se afirmou acima uma listagem de erros do autor mas possibilidades de
encontro dos dois filoacutesofos
Em Depois da Virtude MacIntyre desenvolveu um novo conceito de virtude que
de certo modo reabilitasse o discurso moral Antes de falar dos elementos que
compotildee a sua teoria moral eacute possiacutevel encontrar um inconveniente a sua teoria moral
e seu conceito de virtude natildeo levam em conta uma Psicologia Filosoacutefica Eacute bem
verdade que ele afirmou os ldquoriscosrdquo da biologia metafiacutesica de Aristoacuteteles entretanto
uma das coisas que foram encontradas nesta pesquisa foi a relaccedilatildeo estreita que
existe entre as virtudes e a compreensatildeo de homem A articulaccedilatildeo do cataacutelogo das
virtudes estaacute em consonacircncia com a constituiccedilatildeo do homem e com as potecircncias que
ele necessita desenvolver em busca de seu melhor Saliente-se que MacIntyre
posteriormente em Dependent rational animals reconheceu a importacircncia de uma
psicologia filosoacutefica
O conceito macintyreano de praacuteticas se alinha ao seu meacutetodo e consiste em
encontrar manifestaccedilotildees histoacutericas que sirvam de apoio agraves suas investigaccedilotildees Seu
conceito de Praacuteticas se refere agraves formas coerentes e complexas da atividade humana
que satildeo socialmente estabelecidas e como tais ampliadores dos poderes humanos
na forma de excelecircncia e transmissores dos bens internos inerentes a essas Praacuteticas
Eacute possiacutevel em Tomaacutes de Aquino conforme demonstrado que a vivecircncia das virtudes
como atualizaccedilatildeo das potecircncias do homem se daacute sob accedilotildees diversas e sob diversas
circunstacircncias da histoacuteria Assim parece a esta pesquisa que o desenvolvimento
histoacuterico das virtudes manteacutem uma certa similitude ao conceito de praacuteticas
Na questatildeo da unidade das virtudes que foi uma questatildeo apontada pelo proacuteprio
MacIntyre como contendo um erro de sua anaacutelise viu-se que segundo Tomaacutes de
Aquino haacute uma ideia de interdependecircncia entre as virtudes A articulaccedilatildeo interna
entre as potecircncias do homem proporciona tambeacutem uma articulaccedilatildeo e tambeacutem uma
hierarquizaccedilatildeo entre as virtudes A unidade das virtudes proporciona ainda uma
consolidaccedilatildeo da unidade do caraacuteter moral de um agente Ora o conceito de unidade
das virtudes contribuiria por demais com a componente a ordem narrativa de uma
vida humana singular Eacute claro que a unidade das virtudes diz pouco ou quase nada agrave
noccedilatildeo de narrativa Entretanto o conceito de unidade das virtudes atinge um objetivo
126
similar ao conceito macintyreano a saber considerar cada vida humana como uma
unidade singular Tambeacutem foi verificado que natildeo apenas o conceito de unidade das
virtudes mas tambeacutem o conceito de intencionalidade no estudo dos atos humanos
foi capaz de preencher este requisito e mais ainda lanccedilou luzes agrave ideia de
consciecircncia aprofundada com propriedade pelo pensamento cristatildeo e assumido pelo
pensamento moderno praticamente na forma como os medievais deixaram
127
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NALFRAN MODESTO BENVINDA
ALASDAIR MACINTYRE E TOMAacuteS DE AQUINO
a questatildeo da ldquoEacutetica das Virtudesrdquo e sua interpretaccedilatildeo pelo
pensamento cristatildeo
Tese de Doutorado apresentada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da UFPB-UFPE-UFRN
Linha de Pesquisa Filosofia Praacutetica
Orientador Prof Dr Marcos Roberto Nunes Costa
Recife 2017
Catalogaccedilatildeo na fonte
Bibliotecaacuteria Maria do Carmo de Paiva CRB4-1291
B478a Benvinda Nalfran Modesto
Alasdair Macintyre e Tomaacutes de Aquino a questatildeo da ldquoEacutetica das Virtudesrdquo e
sua interpretaccedilatildeo pelo pensamento cristatildeo Nalfran Modesto Benvinda ndash 2017
129 f 30 cm
Orientador Prof Dr Marcos Roberto Nunes Costa
Tese (doutorado) - Universidade Federal de Pernambuco CFCH
Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da UFPB-UFPE-UFRN Recife
2017
Inclui referecircncias
1 Filosofia 2 Eacutetica 3 Virtudes 4 Macintyre Aladair C 1929- 5 Tomaacutes de
Aquino Santo 1225-1274 I Costa Marcos Roberto Nunes (Orientador) II
Tiacutetulo
100 CDD (22 ed) UFPE (BCFCH2019-067)
NALFRAN MODESTO BENVINDA
ALASDAIR MACINTYRE E TOMAacuteS DE AQUINO
a questatildeo da ldquoEacutetica das Virtudesrdquo e sua interpretaccedilatildeo pelo
pensamento cristatildeo
Tese de Doutorado aprovada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da UFPB-UFPE-UFRN
Aacuterea de pesquisa Filosofia Praacutetica
Aprovada em 16 08 2017
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________ Prof Dr Marcos Roberto Nunes Costa (Orientador)
Universidade Federal de Pernambuco
_________________________________________________ Prof Dr Joseacute Francisco Preto Meirinhos (1ordm Examinador)
Universidade do Porto
_______________________________________________ Prof Dr Claudio Pedrosa Nunes (2ordm Examinador)
Universidade Federal de Campina Grande
________________________________________________ Prof Dr Edmilson Alves de Azevedo (3ordm Examinador)
Universidade Federal da Paraiacuteba
________________________________________________________ Prof Dr Gilfranco Lucena dos Santos (4ordm Examinador)
Universidade Federal da Paraiacuteba
A Ana Luiacutesa Rafael Joseacute e Adriana
AGRADECIMENTOS
Do fundo do meu coraccedilatildeo agradeccedilo
A Deus pelo dom da feacute da existecircncia e da capacidade de pensar
A Adriana Rafael Joseacute e Ana Luiacutesa que suportaram com muito amor o
processo doloroso e fecundo de construccedilatildeo desta pesquisa
Aos meus pais Francisco e Nataacutelia a quem sou grato pelo dom da vida e pela
educaccedilatildeo que recebi Aos meus irmatildeos Junior e Kaline por serem quem satildeo
Cunhados Marques Alessandra Luciana e Paulinho Meus sobrinhos Ceciacutelia
Viniacutecios Ana Caroline Ana Beatriz e Paulinho
Agrave minha sogra Dona Carminha meu sogro Modestino de Arruda Fontes (in
memoriam) e agrave famiacutelia Fenelon
Ao meu orientador Marcos Roberto Nunes Costa pela confianccedila disposiccedilatildeo
incentivo em fazer-me crescer na difiacutecil tarefa do pensar e do produzir em Filosofia
Agrave Profa Patriacutecia Lira revisora do texto e dos erros que meus olhos jaacute natildeo
enxergavam
Aos membros da banca professores Edmilson Azevedo Claacuteudio Pedrosa
Nunes Joseacute Francisco Preto Meirinhos Gilfranco Lucena e Marcos Costa
A todo o corpo docente do Programa de Doutorado Integrado em Filosofia das
Universidades Federal de Pernambuco Federal da Paraiacuteba e Federal do Rio Grande
do Norte na pessoa do seu coordenador Geral Prof Dr Alfredo Moraes
Ao povo brasileiro que atraveacutes da CAPES financiou esta pesquisa por 2 anos
A Miguel Antocircnio ex-coordenador Geral do Programa pelas contribuiccedilotildees que
pudemos Aos discentes do Programa pela confianccedila que me concederam em
representar-lhes
Aos amigos de minha turma de Doutorado Gleidmar Graciele Coutinho Marta
Fernandes e Faacutebio ldquoque nos tornamos amigos ao calor dos estudosrdquo
A meu amigo irmatildeo pessoa por quem tenho grande amor e admiraccedilatildeo
Gilfranco Lucena
Agrave gestatildeo professores e funcionaacuterios e alunos da Faculdade Satildeo Miguel
especialmente do Curso de Licenciatura em Letras onde na docecircncia aprofundei o
meu conhecimento na docecircncia da liacutengua latina
Aos colegas de trabalho alunos e alunas da UNEAL - Universidade Estadual
de Alagoas minha nova casa
A Faacutetima Costa Marcela George e Mauriacutecio da Faculdade Filosofia Ciecircncias
e Letras de Caruaru ndash FAFICA
Aos amigos Peacutericles Gena Mazurk Ricardo Carvalho Tambeacutem a Harlen
Ricardo e Diego Marques A todos os amigos e amigas da FACOL
A todos os que a mim estiveram unidos para que eu pudesse concluir esse
trabalho
Meus sinceros agradecimentos
ldquo [] Homo habet naturaliter rationem et manus quae sunt organa organorum
quia per eas homo postest sibi praeparare instrumenta infinitorum modorum et ad
infinitus effectusrdquo
ldquo [] O homem possui por natureza a razatildeo e as matildeos que satildeo os oacutergatildeos dos
oacutergatildeos porque por elas pode preparar para si uma variedade infinita de instrumentos
para infinitos efeitosrdquo (ARISTOacuteTELES apud TOMAacuteS DE AQUINO STh I q76 a5)
RESUMO
A Eacutetica das Virtudes e sua fundamentaccedilatildeo satildeo o objeto de estudo desta
pesquisa Partindo do pensamento de Alasdair Macintyre autor de Depois da Virtude
o trabalho apresenta o esforccedilo do pensamento contemporacircneo em reabilitar esta
proposta eacutetica Seguindo a orientaccedilatildeo do proacuteprio Macintyre de que seria necessaacuterio
investigar a reconciliaccedilatildeo que Tomaacutes de Aquino operou entre a tradiccedilatildeo biacuteblica e o
pensamento aristoteacutelico o texto responde agrave seguinte pergunta a Eacutetica das Virtudes
de raiz aristoteacutelica pode receber contribuiccedilotildees do pensamento cristatildeo especialmente
de natureza tomista A tese que brota como tentativa de resposta a esta questatildeo eacute a
de que o pensamento cristatildeo via Tomaacutes de Aquino oferece significativas
contribuiccedilotildees agrave fundamentaccedilatildeo desta corrente do pensamento eacutetico A pesquisa
bibliograacutefica de natureza indutiva percorre um caminho de anaacutelise e interpretaccedilatildeo
dos textos fundamentais do Macintyre Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino Na busca de
atingir sua finalidade satildeo aprofundados os temas acerca do ldquoanti-iluminismo eacuteticordquo e
a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes ao pensamento contemporacircneo Nesta parte
abordam-se as principais criacuteticas agrave ldquoeacutetica do deverrdquo e a ldquoeacutetica utilitaristardquo ou
ldquoconsequencialistardquo em seguida apresenta-se a criacutetica de Macintyre ao projeto
moderno de fundamentaccedilatildeo da eacutetica como tambeacutem a sua teoria moral fundamentada
numa Eacutetica das Virtudes por fim a partir da proacutepria indicaccedilatildeo do Macintyre de que
sua leitura do pensamento tomista foi insuficiente o texto analisa fundamentos da
Eacutetica das Virtudes em Aristoacuteteles e apresenta os conceitos do pensamento tomista
que aqui entende-se como o contributo a esta eacutetica
Palavras-chave Eacutetica Virtudes Pensamento cristatildeo
ABSTRACT
The Virtue Ethics and its fundamentals are the object of this research Starting
from Alasdair Macintyrersquos thought author of After Virtue the work presents the effort
of the contemporary thought on rehabilitating this ethical purpose According to
Macintyre own orientation that it would be necessary to investigate the reconciliation
which Thomas Aquinas operated between the biblical tradition and the aristotelian
thought the text responds to the following question can The Virtue Ethics of
aristotelian roots receive contributions from the Christian thought specially of
thomistic nature The thesis which buds as an attempt to answer this question is the
one that the Christian thought via Thomas Aquinas offers meaningful contributions to
the fundamentals of this current of ethical thoughts The bibliographical research of
inductive nature goes through a path of analysis and interpretation of Macintyrersquos
Aristotlersquos and Thomas Aquinasrsquos fundamental texts In the search for reaching its goal
themes about ldquoethical anti-enlightenmentrdquo and the relocation of Virtue Ethics to the
contemporary thought are deepened In this part the main criticisms to ldquothe ethics of
dutyrdquo and ldquothe utilitarianistrdquo or ldquoconsequentialist ethicsrdquo are approached in the following
part it is presented a critic by Macintyre to the modern fundamentals of ethics as well
as his theory of moral based on an Virtue Ethics finally from Macintyrersquos own
indication that his reading of the thomistic thought was insufficient the text analyses
the fundamentals of the Virtue Ethics in Aristotle and presents the concepts of the
thomistic thought that here is understood as a contribution to this ethics
Keywords Ethics Virtues Christian thought
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO 13
2 O ANTIILUMINISMO EacuteTICO E A EacuteTICA DAS VIRTUDES 16
21 SOBRE A RE-COLOCACcedilAtildeO DA VIRTUE ETHICS 16
211 Sobre a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica 20
212 A incoerecircncia do dever moral 25
213 Criacutetica ao utilitarismo 29
214 A diacutevida filosoacutefica de MacIntyre ao pensamento de
Gertrude Anscombe 32
3 A CRIacuteTICA DE MACINTYRE AO PROJETO MODERNO
DE FUNDAMENTACcedilAtildeO DA MORALIDADE 35
31 A ALEGORIA INICIAL DE DEPOIS DA VIRTUDE 35
32 AS TESES MODERNAS SOBRE A FUNDAMENTACcedilAtildeO
DA ORALIDADE 37
33 O FRACASSO DO PROJETO ILUMINISTA 40
331 O passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana 41
332 A incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a
noccedilatildeo de natureza humana na moral moderna 42
3321 O passado cristatildeo e o novo conceito de razatildeo 43
3322 A ciecircncia e a filosofia do seacuteculo XVII 45
3323 A incoerecircncia entre o posicionamento pela lsquofalecircnciarsquo da razatildeo
e a decisatildeo pela noccedilatildeo de natureza humana 45
3324 Sobre a mudanccedila do significado dos juiacutezos morais 47
4 O PROJETO DE DEPOIS DA VIRTUDE E A TEORIA
MORAL DE MACINTYRE 49
41 O ANTES DE DEPOIS DA VIRTUDE 49
411 Vida social e conceitos morais 50
412 Fundamentaccedilatildeo das proposiccedilotildees normativas 51
413 O emotivismo 52
42 A OBRA DEPOIS DA VIRTUDE 54
421 A natureza das virtudes tese central de Depois da Virtude 55
422 O conceito de praacuteticas 57
423 Ordem narrativa de uma vida humana singular 60
423 Tradiccedilatildeo 64
5 RECONCILIACcedilAtildeO ENTRE O PENSAMENTO CRISTAtildeO
E O ARISTOTELISMO 67
51 AS VIRTUDES E A TEORIA ARISTOTEacuteLICA DOS ATOS ndash EN III 1-8 69
511 Do voluntaacuterio e do involuntaacuterio 70
512 A escolha deliberada 72
513 A definiccedilatildeo do objeto do querer 73
52 A SIacuteNTESE TOMISTA ATOS HUMANOS E FILOSOFIA MORAL 77
521 Os atos humanos em Santo Tomaacutes de Aquino 78
522 Sindeacuterese e consciecircncia 79
523 O conceito de vontade 80
524 A relaccedilatildeo entre inteligecircncia e vontade 84
525 A liberdade do ato voluntaacuterio e a distinccedilatildeo entre liberdade e livre-
arbiacutetrio 86
526 A intenccedilatildeo 91
53 TOMISMO E EacuteTICA DAS VIRTUDES 93
531 Vida feliz e virtudes antes da siacutentese tomista 94
5311 A construccedilatildeo de uma parte moral na teologia 97
5312 A fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista 99
532 O lugar das virtudes na teologia e sua explicitaccedilatildeo 100
5321 A beatitude e o lugar das virtudes na siacutentese teoloacutegica tomista 100
5312 A concepccedilatildeo tomista de homem e as virtudes 101
5313 A explicitaccedilatildeo do conceito de virtude e a releitura tomista
da teoria das virtudes 105
53131 A perfeiccedilatildeo da potecircncia e habito operativo 105
53132 As virtudes teologais 107
53133 A virtude da justiccedila 107
53134 A unidade das virtudes e conexatildeo entre as virtudes 108
53135 O habitus e vontade livre 111
53136 As virtudes eacuteticas e a razatildeo 113
53137 A relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo tomista de pessoa 114
532 A eacutetica antiga assunccedilatildeo compatibilizaccedilatildeo e superaccedilatildeo 115
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 119
REFEREcircNCIAS 127
13
1 INTRODUCcedilAtildeO
A histoacuteria do homem em seus desdobramentos de sentidos tem sido a luta para
definir o certo e o errado enquanto conjunto de valores que orienta as accedilotildees e
possibilita o homem como singularidade e comunidade Em relaccedilatildeo a Filosofia a
preocupaccedilatildeo com a experiecircncia eacutetica eacute uma das questotildees centrais da atitude criacutetico-
reflexiva e definiu o encaminhamento dos pensadores desde os preacute-socraacuteticos ateacute a
contemporaneidade Em todos os momentos de sua histoacuteria o homem tenta
compreender as accedilotildees como decorrecircncia de valores que orientam o seu agir O
homem eacute a um soacute tempo norma e desejo de quebraacute-la Isto longe de ser uma
deficiecircncia da condiccedilatildeo humana constitui precisamente seu salto maior Salto sobre
o reino da necessidade e que possibilita o advento do reino da liberdade
O pensamento eacutetico ocidental eacute profundamente marcado pelas figuras de
Aristoacuteteles Tomaacutes de Aquino dentre outros Aristoacuteteles trabalha com a ideia de que
o estudo dos atos humanos da virtude e do bem para o homem considerado
individualmente pertence a eacutetica Esta ciecircncia enquanto ciecircncia praacutetica conduz agrave
compreensatildeo do que seja o bem supremo para o ser humano e quais atitudes o
conduzem mais adequadamente a esse fim Tomaacutes de Aquino enquanto
representante da eacutetica cristatilde assume a estrutura da eacutetica de Aristoacuteteles
estabelecendo uma reinterpretaccedilatildeo dessa moral agrave luz da moral cristatilde Assim o que
em Tomaacutes de Aquino se menciona como felicidade possui um conteuacutedo distinto
daquilo que Aristoacuteteles compreendia por este termo
O pensamento moderno promove uma virada no esquema claacutessico da eacutetica
Kant eacute por assim dizer o exemplar que traduz os anseios do pensamento moderno
em relaccedilatildeo agrave Filosofia Praacutetica O ideal de autonomia e a constituiccedilatildeo de uma moral do
dever marcam profundamente este momento da histoacuteria do pensamento Nas palavras
de Otfried Houmlffe deve-se a Kant a radicalizaccedilatildeo de uma filosofia moral que reivindica
a pretensatildeo de uma validade objetiva A origem da moralidade pode ser encontrada
no caraacuteter autolegislador do sujeito Ateacute mesmo as outras expressotildees do pensamento
eacutetico moderno corroboram com a ideia de que o fundamento das accedilotildees humanas
encontra sua fonte no sujeito
14
Como eacute comum ao pensamento contemporacircneo este eacute marcado pela criacutetica
ao pensamento moderno Desde Nietzsche ateacute Wittgenstein Habermas Hans Jonas
MacIntyre todos eles trazem consigo ressalvas ao pensamento moderno o que vai
causar grandes siacutenteses principalmente do diagnoacutestico das fragilidades do discurso
moral moderno Por outro lado parece natildeo ser mais possiacutevel encontrar uma grande
siacutentese do pensamento eacutetico De qualquer maneira seja para negar ou para propor
a eacutetica permanece como uma das questotildees filosoacuteficas mais relevantes do pensamento
contemporacircneo
Alasdair MacIntyre se insere na filosofia moral contemporacircnea Esta pesquisa
considera que a grandeza de seu pensamento reside no esforccedilo que ele fez para
efetivar uma teoria moral agrave contemporaneidade ao modo de uma eacutetica das virtudes
MacIntyre encontra sua inspiraccedilatildeo filosoacutefica no movimento moral inglecircs denomina
Virtue Ethics Gertrude Anscombe eacute uma das figuras inspiradores deste movimento e
deixa como heranccedila dois elementos fundamentais ao pensamento de MacIntyre a
saber sua criacutetica agrave moral moderna e sua opccedilatildeo pela Eacutetica das Virtudes Embora
tributaacuterio de Gertrude Anscombe a proximidade de MacIntyre com o marxismo e com
as ciecircncias sociais proporciona a ele um itineraacuterio filosoacutefico peculiar
O objetivo deste trabalho eacute tomar o pensamento de MacIntyre e sua criacutetica
efetivada agrave modernidade criacutetica esta que o leva a retomar a Eacutetica das Virtudes a partir
de Aristoacuteteles propondo para a contemporaneidade um modelo de filosofia praacutetica
centrado natildeo nas accedilotildees mas no agente No entanto conforme seu proacuteprio
testemunho a relaccedilatildeo entre o aristotelismo e o pensamento cristatildeo natildeo foi
apresentada adequadamente (cf MACINTYRE 2001) No iniacutecio de Justiccedila de Quem e
Qual racionalidade (cf MACINTYRE 2001) MacIntyre reconhece a precariedade de
sua interpretaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino em relaccedilatildeo agrave Eacutetica das Virtudes Essa
precariedade consiste em natildeo haver pensado com suficiente radicalidade a
reconciliaccedilatildeo que Tomaacutes de Aquino operou entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica
Este trabalho parte deste ponto seu objetivo eacute dar continuidade ao que MacIntyre
deixou inacabado no que se refere ao tratamento que Tomaacutes de Aquino efetivou entre
o aristotelismo e o pensamento cristatildeo Assim onde termina o pensamento do
MacIntyre de Depois da Virtude eacute o ponto de iniacutecio desta pesquisa
O desenvolvimento do objetivo acima proposto exige uma exposiccedilatildeo do que
significa a Eacutetica das Virtudes e sua forma histoacuteria de retorno bem como de sua relaccedilatildeo
15
com Aristoacuteteles Requer tambeacutem a tematizaccedilatildeo do modo como o pensamento cristatildeo
retomou e reelaborou esta eacutetica O posicionamento deste trabalho se fundamenta na
tese de que uma Eacutetica das Virtudes que pretenda recorrer a Aristoacuteteles natildeo pode se
apresentar como alternativa agrave contemporaneidade sem considerar a contribuiccedilatildeo do
pensamento cristatildeo visto que o universo cultural e semacircntico dos conceitos morais
da contemporaneidade eacute perpassado pela influecircncia deste pensamento
Os autores que orientam esta pesquisa satildeo principalmente Alasdair MacIntyre
Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino atraveacutes das obras que se referem agrave Filosofia Moral
Com relaccedilatildeo ao pensamento de MacIntyre seraacute realizado um corte epistemoloacutegico
que parte da obra Depois da Virtude e manteacutem seu foco na tarefa que esta obra deixou
em aberto Os possiacuteveis desdobramentos do pensamento de MacIntyre natildeo se
constituem como empecilho ao desenvolvimento desta pesquisa
Para a realizaccedilatildeo do objetivo proposto faz-se necessaacuterio organizar a estrutura
do trabalho do seguinte modo no primeiro capiacutetulo O Antiiluminismo Eacutetico e a Eacutetica
das Virtudes seraacute feita uma exposiccedilatildeo geral sobre os fundamentos da eacutetica das
virtudes e como esta retorna ao cenaacuterio da filosofia moral contemporacircnea o segundo
A Criacutetica de MacIntyre ao Projeto Moderno de Fundamentaccedilatildeo da Moralidade trata
da primeira tarefa de Depois da Virtude ou seja de como a moral contemporacircnea
resulta segundo MacIntyre do desacordo das teses modernas de fundamentaccedilatildeo da
moralidade e de suas incoerecircncias denominadas por ele lsquofalecircnciarsquo do projeto
iluminista O terceiro capiacutetulo O Projeto de Depois da Virtude expotildee a teoria moral
de MacIntyre retomando os conceitos anteriores a obra mas que determinaram e se
mantiveram presentes nela a quarta parte da tese Tradiccedilatildeo Biacuteblica e Aristotelismo
aborda a Reconciliaccedilatildeo Tomista do Aristotelismo e da Tradiccedilatildeo Biacuteblica na Filosofia
Moral
16
2 O ANTIILUMINISMO EacuteTICO E A EacuteTICA DAS VIRTUDES
O pensamento de MacIntyre se insere numa corrente da Filosofia Moral Inglesa
do seacuteculo XX denominada Eacutetica das Virtudes Este movimento teraacute grande influecircncia
em seu pensamento especialmente na criacutetica que eacute apresentada agrave Moral Moderna
como tambeacutem no esforccedilo de promover uma releitura da Eacutetica de Aristoacuteteles e de
compatibilizaacute-la agraves exigecircncias do pensamento contemporacircneo Esta seccedilatildeo apresenta
esse movimento e seu questionamento dos fundamentos da moral moderna como
tambeacutem apresenta as principais teses daacute Eacutetica das Virtudes por meio dos
pensamentos de Rosalind Hursthouse e de Gertrude Anscombe
A Filosofia Moral Inglesa da segunda deacutecada do seacuteculo XX foi denominada
Virtue Ethics porque propocircs a recolocaccedilatildeo da problemaacutetica das accedilotildees agrave luz da eacutetica
das virtudes Tem como foco o questionamento da moral moderna e o renascimento
da eacutetica aristoteacutelica A intenccedilatildeo era constituir a Eacutetica das Virtudes como uma terceira
via entre a Filosofia Deontoloacutegica kantiana e o utilitarismo eacutetico tatildeo fortemente
instituiacutedo no Ocidente Qual eacute a necessidade de uma terceira via para a filosofia
moral Quais satildeo as insuficiecircncias das eacuteticas deontoloacutegicas e utilitaristas que
justificam esta empreitada Estas satildeo questotildees que orientam a construccedilatildeo teoacuterica
deste capiacutetulo
Serviratildeo de apoio epistemoloacutegico aleacutem do MacIntyre a obra Sobre a Eacutetica das
Virtudes (cf HURSTHOUSE 2001)1 de Rosalind Hursthouse e o texto A filosofia
moral moderna de Gertrude Anscombe pensadora que com grande relevacircncia
influenciou o itineraacuterio filosoacutefico Alasdair MacIntyre
21 SOBRE A RE-COLOCACcedilAtildeO DA VIRTUE ETHICS
Segundo Rosalind Hursthouse (cf HURSTHOUSE 2001) Virtue Ethics eacute um
termo teacutecnico que inicialmente diferenciava uma eacutetica normativa com o foco nas
virtudes e no caraacuteter das abordagens eacuteticas que enfatizavam os direitos ou regras
denominadas deontologias e das que destacavam as consequecircncias das accedilotildees
1 Rosalin Hursthouse eacute professora de Filosofia da Universidade de Auckland na Nova Zelacircndia No
Doutorado foi orientanda de Elizabeth Anscombe e Philippa Ruth Foot
17
denominadas de consequencialismo ou utilitarismo (cf HURSTHOUSE 2001 p1)
Para ilustrar a definiccedilatildeo a autora propotildee o seguinte exemplo
Imagine um caso em que eacute oacutebvio que eu deveria por exemplo ajudar algueacutem em necessidade Um utilitarista iria destacar o fato de que o resultado de minha accedilatildeo contribuiria com o bem estar do necessitado Um deontologista diria que minha accedilatildeo estaacute de acordo com a maacutexima fazer aos outros aquilo que eu gostaria que fosse feito comigo e finalmente um filoacutesofo das virtudes diria que o fato de ajudar a quem precisa seria sinal de benevolecircncia ou caridade (HURSTHOUSE 2001 p1)
A posiccedilatildeo do utilitarista considera que ajudar a um necessitado deve ser visto
em virtude do resultado da accedilatildeo jaacute o deontologista compreende a accedilatildeo pela
perspectiva da universalizaccedilatildeo do ato de ajudar algueacutem finalmente para o filoacutesofo
das virtudes a accedilatildeo eacute boa porque eacute expressatildeo de um agente bom
A Eacutetica das Virtudes eacute uma abordagem ao mesmo tempo antiga e nova para
a Filosofia Praacutetica Antiga porque remonta a Platatildeo e Aristoacuteteles e nova se se
considera sua recolocaccedilatildeo como alternativa ao pensamento moral contemporacircneo
Rosalind Hursthouse enfatiza que apenas dois tipos de abordagem dominaram a eacutetica
normativa nos uacuteltimos 30 anos2 a deontoloacutegica inspirada primordialmente em Kant
e a utilitarista tendo como representantes mais importantes Jeremy Bentham e John
Stuart Mill Ainda segundo a supracitada Filoacutesofa lsquoentre os muitos livros e artigos
publicados sobre a eacutetica normativa discutia-se ampliava-se corrigia-se apenas as
duas abordagens jaacute mencionadas entretanto natildeo figurava entre elas nenhum texto
que fizesse referecircncia a uma terceira possibilidadersquo (cf HURSTHOUSE 2001 p 2)
permanecendo impensada uma terceira possibilidade para a Filosofia Moral de entatildeo
Rosalind Hursthouse ainda acrescenta que em alguns manuais de graduaccedilatildeo
sobre eacutetica normativa vaacuterios artigos criacuteticos da ortodoxia dominante pleitearam um
reconhecimento da eacutetica das virtudes Em alguns paraacutegrafos dizia-se lsquoo que um
filoacutesofo da virtude3 diria nesse casorsquo Para a referida Autora as menccedilotildees agrave moral das
virtudes o mais das vezes tendiam a ser curtas e com desprezo Rigorosamente
falando a Eacutetica das Virtudes natildeo era considerada como uma uma alternativa viaacutevel
uma vez que suas interferecircncias se referiam apenas a aspectos interessantes sobre
os motivos e o caraacuteter do agente moral que podiam ser inseridos como informaccedilotildees
complementares a essas abordagens A Eacutetica das Virtudes era ateacute entatildeo
2 A Autora estaacute escrevendo em 1998 Assim sendo deve-se entender lsquonos uacuteltimos 40 anosrsquo 3 Esta eacute uma traduccedilatildeo proposta para a expressatildeo virtue ethicist
18
considerada como um lsquogarotorsquo mais novo entre os rapazes podia entrar no lsquojogorsquo
mas natildeo era contado efetivamente como um lsquojogadorrsquo Somente em pouco mais de 40
anos a Eacutetica das Virtudes adquiriu o status completo ocupando a qualidade de
terceira das abordagens morais rivalizando com deontologistas e ou utilitaristas
A respeito de um retorno da Eacutetica das Virtudes Rosalind Hursthouse apresenta
as seguintes questotildees por que a Filosofia Moderna4 (ou contemporacircnea) revive a
antiga abordagem da Eacutetica das Virtudes Por que o pensamento contemporacircneo ou
um movimento de pensadores sentiu a necessidade de promover um retorno ao
pensamento antigo especialmente a Aristoacuteteles Sabe-se que existe uma grande
distacircncia temporal entre a contemporaneidade seus escritos e sua organizaccedilatildeo
social Aleacutem disso muitos dos pontos de vista desses autores como por exemplo a
escravidatildeo o lugar da mulher na sociedade satildeo na realidade insustentaacuteveis No
entanto Rosalind Hursthouse enfatiza que nenhum dos filoacutesofos da virtude estaacute
comprometido com os detalhes lsquoparoquiaisrsquo de Aristoacuteteles assim como nenhum dos
deontologistas estaacute comprometido com as opiniotildees de Kant sobre os animais por
exemplo (cf HURSTHOUSE 2001 p 2)5 Para Rosalind Hursthouse a questatildeo
fundamental eacute que ao lado desses motivos haacute muitos outros que se empotildee para o
renascimento ou recolocaccedilatildeo das moral das virtudes a saber a sabedoria praacutetica a
amizade e o relacionamento familiar o aprofundamento do conceito de felicidade o
papel das emoccedilotildees na vida moral dos indiviacuteduos Esses temas afirma a autora
praticamente desapareceram do vocabulaacuterio filosoacutefico do pensamento moral dos
seacuteculos XVIII e XIX Dessa maneira o renascimento da Eacutetica das Virtudes natildeo eacute uma
simples coincidecircncia Ele coincide com a redescoberta desses temas fundamentais
em virtude do proacuteprio apelo que eles impotildeem agrave existecircncia humana Esses temas natildeo
satildeo devidamente considerados pelos pensadores modernos e na opiniatildeo de Rosalind
Hursthouse aos olhos de algueacutem mais atento satildeo reconhecidos como as temaacuteticas
sempre pertinentes agrave Filosofia Moral (cf HURSTHOUSE 2001 p 3)
Atraveacutes da recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes Rosalind Hursthouse salienta
que a redescoberta da Eacutetica das Virtudes proporcionou revisotildees e releituras por parte
demuitos defensores da eacutetica do dever ou entre os utilitaristas Atraveacutes dessas
4 Esta eacute a terminologia utilizada por Rosalind Hursthouse A julgar a distacircncia temporal pequena mas
significante seraacute utilizada a expressatildeo Contemporacircnea 5 Aqui a autora faz referecircncia agrave posiccedilatildeo kantiana de que os animais satildeo coisas e que o maior defensor
da liberaccedilatildeo dos animais Tom Regam seja um deontologista
19
revisotildees eacute que foram propostas temaacuteticas como a Doutrina kantiana da virtude Outros
pensadores como McDowell promoveram aproximaccedilotildees entre Aristoacuteteles e Kant
enquanto autores como Herman e Korsgaard trouxeram Kant mais perto de Aristoacuteteles
(cf HURSTHOUSE 2001 p 4)
A reconsideraccedilatildeo de noccedilotildees e de temas da Eacutetica das Virtudes gerou um
problema acerca dos limites entre as abordagens eacuteticas Esses limites se referem ao
fato de que a especificidade de cada abordagem natildeo parece bem determinada
Rosalind Hursthouse afirma que jaacute natildeo eacute mais tatildeo simples afirmar genericamente que
a eacutetica das virtudes eacute uma corrente que enfatiza as virtudes Do mesmo modo a
deontologia e o utilitarismo tambeacutem natildeo podem ser resolvidos apenas pela descriccedilatildeo
que um e outro enfatizam regras ou consequecircncias em contraste com o caraacuteter do
agente
O fim da problematizaccedilatildeo entre as especificidades das abordagens eacuteticas para
Rosalind Hursthouse aponta natildeo para uma separaccedilatildeo ldquobarristardquo entre as abordagens
Eu suspeito que a persistecircncia da crenccedila da eacutetica da virtude natildeo eacute como afirmei acima lsquouma rival para abordagens deontoloacutegicas e utilitaristas mas se apresenta como interessante e desafiadora entre elas
a abordagem ainda eacute nova o suficiente para ser distinta e o objetivo deste livro eacute explorar o que pode ser adquirido como insights para a filosofia moral sendo escrito de uma forma muito detalhada e compreensiva Se os utilitaristas e deontologistas estiverem em desacordo com o que eu digo que eacute claro que eu quero eacute discutir com eles e talvez alguns dos nossos pontos de atrito sejam apenas sobre teses particulares que tipicamente embora natildeo universalmente eles defendem e rejeitam na eacutetica das virtudes ou vice-versa Eu natildeo deveria estar inclinada para argumentar em tudo Eu deveria estar feliz por todos noacutes pois isto significa parar de se preocupar sobre como distinguimos noacutes mesmos e acolher os nossos acordos (HURSTHOUSE 2001p 7)
A partir da afirmaccedilatildeo de Rosalind Hursthouse sente-se a necessidade de se
promover muito mais do que uma concorrecircncia entre as aborgadens eacuteticas um
reavivamento da moral das virtudes cuja expressividade ficou de certo modo
lsquomarginalizadarsquo na Tradiccedilatildeo Filosoacutefica dos seacuteculos XVIII e XIX A abertura para esta
abordagem conduz pois agrave compreensatildeo de que uma moral do dever ou uma eacutetica
centrada nos resultados natildeo foram suficientes para responder agraves demandas do agir
humano como tambeacutem sinaliza o reavivamento de uma eacutetica que valoriza accedilatildeo
20
apenas na medida em que ela for um desdobramento das condiccedilotildees e do
aprimoramento do agente moral atraveacutes das virtudes
A Eacutetica das Virtudes teve seu retorno a partir de algumas obras inspiradoras
particularmente o ensaio de Gertrude Anscombe Modern Moral Philosophy de 1958
Segundo Kevin Flannery o artigo Modern Moral Philosophy ao lado da obra Intention
consagrou Gertrude Anscombe como filoacutesofa Gertrude Anscombe foi interlocutora e
amiga particular de Wittgenstein Apoacutes a morte dele Gertrude Anscombe realizou uma
das melhores traduccedilotildees das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas para os leitores de liacutengua
inglesaque praticamente nunca foram contestadas em virtude de seu rigor e
fidelidade agrave obra do autor (cf FLANNERY 2009)
211 Sobre a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica
No texto A Filosofia Moral Moderna Gertrude Anscombe sugere algumas teses
A primeira eacute a de que ldquonatildeo eacute proveitoso fazer filosofia moral no tempo presente ateacute
que se tenha uma filosofia adequada da psicologiardquo (ANSCOMBE 2010 p 19) isto eacute
uma Psicologia Filosoacutefica Mas por que no tempo presente natildeo eacute proveitoso fazer
uma filosofia moral sem antes encontrar uma Psicologia Filosoacutefica E porque esta
Psicologia Filosoacutefica abre os horizontes para se fazer uma filosofia moral
contemporaneamente Essas satildeo as questotildees que orientam a construccedilatildeo desta
seccedilatildeo
Desde a Criacutetica da Razatildeo Pura a tarefa de construir uma Psicologia Filosoacutefica
tornou-se por demais complicada As conclusotildees de Kant expressas na Dialeacutetica
Transcendental mostraram a lsquofalecircnciarsquo que esta ciecircncia da Metafiacutesica Claacutessica
encontrou em seu intento de assegurar a imortalidade da alma
Ora na verdade natildeo haacute ningueacutem que possa extrair de princiacutepios especulativos a miacutenima base para semelhante afirmaccedilatildeo nem mesmo demonstrar-lhe a possibilidade soacute eacute possiacutevel supocirc-la mas tatildeo-pouco pode algueacutem opor-lhe qualquer objeccedilatildeo dogmaacutetica vaacutelida Pois ningueacutem sabe mais do que eu ou de que outro qualquer sobre a causa absoluta e intriacutenseca dos fenocircmenos exteriores e corporais Tambeacutem ningueacutem pode pretender saber com fundamento sobre que repousa no estado atual (na vida) a realidade dos fenocircmenos externos e por consequecircncia tambeacutem natildeo pode afirmar que a condiccedilatildeo de toda a intuiccedilatildeo externa ou tambeacutem o proacuteprio sujeito pensante deva cessar depois deste estado (na morte) (KANT 2001)
21
As conclusotildees de Kant na Criacutetica da Razatildeo Pura inviabilizaram a Psicologia
Racional na tarefa de demonstrar a imortalidade da alma Contudo a finalidade com
que Gertrude Anscombe sugere uma Psicologia Filosoacutefica tem agora um objetivo
distinto da antiga Psichologya Rationalis A Psicologia Filosoacutefica conforme Gertrude
Anscombe sugere serviraacute para apresentar o modo como os atos humanos satildeo
capazes de se relacionar com as virtudes Com efeito se as virtudes satildeo tipos de atos
realizados em favor do bem do homem um estudo sobre estes atos humanos
proporciona uma maior compreensatildeo sobre as virtudes e suas possibilidades no agir
do ser humano
A afirmaccedilatildeo de Gertrude Anscombe que sugere o abandono da moral pode ateacute
soar de maneira estranha vindo de uma moralista Entretanto o sentido desta
afirmaccedilatildeo eacute resgatado quando se entende o que a autora compreende como
aplicaccedilatildeo de uma psicologia filosoacutefica agrave moral Segundo Kevin Flannety esta recusa
se refere pelo menos inderetamente agrave maneira como uma psicologia proscede ao
estudar os fenocircmenos ou dados que existem necessariamente e exclusivamente na
mente isto eacute na interioridade do indiviacuteduo (cf FLANNERY 2009 p 44) Eacute em virtude
desta interioridade que Gertrude Anscombe compreende que a prioridade de uma
psicologia filosoacutefica para a filosofia moral se justifica porque as accedilotildees humanas se
fundamentam em processos internos da psiqueacute especialmente na chamada
intencionalidade Deste modo uma psicologia filosoacutefica como saber preliminar agrave
filosofia moral natildeo pode entre outras coisas prescindir do estudo da intencionalidade
Gertrude Anscombe entende a dificuldade de propor uma Psicologia Filosoacutefica
sem no entanto recorrer a experiecircncias e relatos de casos assim como acontece
com a psicologia empiacuterica Entretanto a autora natildeo parece se contentar com o que a
psicologia empiacuterica fez ao fenocircmemo da intencionalidade Com efeito esta ciecircncia
passou a considerar a intencionalidade um sentimento que os indiviacuteduos
supostamente tecircm quando fazem algo intencional A intencionalidade passou a ser
tematizada como um outro sentimento ou estado psicoloacutegico assim como a empatia
ou animosidade sentidas pelos outros (cf FLANNERY 2009 p 44)
O resultado deste modus operandi da psicologia empiacuterica enfatiza Kevin
Flannery eacute ignorar a funccedilatildeo das intenccedilotildees nos atos humanos e reduzir a psicologia
ao estudo dos pensamentos acrescidos dos sentimentos na forma de estados
psicoloacutegicos (cf FLANNERY 2009 p 45) A intencionalidade e a moralidade assim
22
pensadas podem ser consideradas apenas como um niacutevel de sentimentalismo
acrescentado agraves accedilotildees Kevin Flannery aponta consequecircncias desse modo de
entender a moral
O resultado da aplicaccedilatildeo de uma tal abordagem da moralidade eacute que a moralidade se torna uma espeacutecie de camada de sentimentalismo acrescentada agrave accedilatildeo humana de tal forma que uma accedilatildeo em si pode ser absolutamente vergonhosa mas pode ser declarada moralmente correta de acordo com o argumento de que no final natildeo tem nada a ver com o que a pessoa realmente faz Pense por exemplo no discurso do padre que apresenta o raciociacutenio da Igreja em relaccedilatildeo agrave contracepccedilatildeo ou a fertilizaccedilatildeo in vitro como vaacutelido e sadio e ao mesmo tempo diz para os seus paroquianos que em relaccedilatildeo agraves suas obrigaccedilotildees morais eles devem seguir suas consciecircncias
(FLANNERY 2009 p 45)
Conforme a afirmaccedilatildeo de Kevin Flannery pensar a intencionalidade apenas
como um estado psicoloacutegico engendra uma incoerecircncia tiacutepica e recorrente na
contemporaneidade a ideia de que a maneira como se age eacute independente da
maneira como se pensa Tomando o exemplo acima tem-se a ideia de que os
ensinamentos da Igreja de certo modo satildeo apenas da ordem do conhecimento isto
eacute natildeo existe contradiccedilatildeo entre o saber de uma moral e a modo como algueacutem vive sua
vida particularmente A criacutetica se refere precisamente ao fato de se transformar a
intenccedilatildeo num simples sentimento A confusatildeo entre sentimento e intencionalidade eacute
o cenaacuterio atraveacutes do qual Gertrude Anscombe afirma a necessidade de uma
Psicologia Filosoacutefica Eacute importante salientar que a atitude naturalista da psicologia
empiacuterica diante do fenocircmeno da intenccedilatildeo eacute tambeacutem criticada por autores como
Edmund Husserl e Heidegger6
A relaccedilatildeo entre Psicologia Filosoacutefica e moralidade jaacute havia sido expressa na
Tradiccedilatildeo Filosoacutefica e Gertrude Anscombe natildeo acha viaacutevel ignoraacute-la Kevin Flannery
salienta que a noccedilatildeo de que a Tradiccedilatildeo podia ser ignorada no sentido de iniciar do
lsquozerorsquo foi um dos elementos que causou a crise da Teoria Moderna da Moralidade (cf
FLANNERY 2009 p 47) Em seu retorno agrave moral aristoteacutelica Gertrude Anscombe
entende a necessidade de se refletir acerca dos atos tarefa realizada especialmente
por uma Psicologia Filosoacutefica
6 Para um maior esclarecimento sobre a criacutetica de Heidegger ao conceito de intencionalidade como
fenocircmeno psiacutequico feita nos Prolegocircmenos agrave Histoacuteria do Conceito de Tempo cf HEIDEGGER Tertio Ed sect4 p13-18GA 20 1994 e HUSSERL 1989 p 42 Aqui Husserl fala a simplificaccedilatildeo do fenocircmeno do conhecimento como factum psicoloacutegico Esta eacute uma caracteriacutestica da atitude naturalista que extensivamente acontece com o exemplo do fenocircmeno da intenccedilatildeo
23
Qual eacute pois o sentido de se trabalhar agraves intenccedilotildees na abordagem sobre a
moralidade No livro III da Eacutetica a Nicocircmacos Aristoacuteteles afirma
Como a virtude diz respeito a emoccedilotildees e accedilotildees e como os atos voluntaacuterios satildeo censurados e louvados ao passo que os involuntaacuterios satildeo objeto de perdatildeo e por vezes tambeacutem de piedade eacute presumivelmente necessaacuterio aos estudiosos da virtude definir o voluntaacuterio e o involuntaacuterio bem como eacute uacutetil aos legisladores tanto para a distribuiccedilatildeo das honrarias quanto para a aplicaccedilatildeo de puniccedilotildees (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea III 1109 b30 2010 p 59)
Aparentemente a referecircncia a Aristoacuteteles natildeo esclaresceu a pergunta
Entretetanto eacute a respeito dos atos voluntaacuterios e involuntaacuterios que a intenccedilatildeo diz
respeito Ela natildeo eacute compreendida apenas como um acaso em relaccedilatildeo agraves accedilotildees mas
como elemento que estaacute presente em todos os atos Aristoacuteteles natildeo desenvolve
explicitamente um estudo sobre as intenccedilotildees mas elas estatildeo latentes quando ele
fundamenta a teoria dos atos no livro III da EN Compreender o que faz de um ato
voluntaacuterio ou natildeo eacute ir buscar uma melhor compreensatildeo das intenccedilotildees e esta por sua
vez apresenta-se como fundamental agrave compreensatildeo dos atos voluntaacuterios e
involuntaacuterios
Aqui se esboccedila um problema a dificuldade de se tratar acerca das decisotildees
morais e das intenccedilotildees pois ldquoquando pensamos ter finalmente compreendido um
objeto de estudo podemos transformaacute-lo um pouco e vecirc-lo de forma bastante
diferenterdquo (FLANNERY 2009 p 47) Kevin Flannery acrescenta que a dificuldade no
tratamento da questatildeo conduz agrave tendecircncia de desistir do empreendimento e optar por
um criteacuterio mais lsquogerenciaacutevel da moralrsquo tornando a compreensatildeo sobre a moralidade
mais acessiacutevel Sua criacutetica chama a atenccedilatildeo para o fato de que o mais lsquogerenciaacutevelrsquo
se torna entretanto ineficaz ao rompimento da compreensatildeo da moral como um
estado psicoloacutegico
Ateacute entatildeo foram apresentados os limites da filosofia moral quando natildeo se
considera uma Psicologia Filosoacutefica Este eacute um aspecto negativo da resoluccedilatildeo da
questatildeo fundamental desta seccedilatildeo que eacute compreender a partir da afirmaccedilatildeo de
Gertrude Anscombe o porquecirc de natildeo ser proveitoso fazer filosofia moral no presente
e porque eacute necessaacuteria uma Psicologia Filosoacutefica
O aspecto positivo da necessidade de uma Psicologia Filosoacutefica retirado do
pensamento de Gertrude Anscombe eacute tambeacutem a caracteriacutestica que diferencia a
Autora entre os moralistas da virtude Para Gertrude Anscombe assim como as
24
virtudes e os atos particulares do agente moral estatildeo associados associados tambeacutem
estatildeo os atos agrave psicologia da pessoa Para ela a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes
natildeo se inicia pelas virtudes mesmas mas por uma Psicologia Filosoacutefica que tem por
funccedilatildeo explicar a relaccedilatildeo entre a psicologia da pessoa os atos e as virtudes
Para Anscombe o ponto de partida natildeo eacute as virtudes mas a filosofia da psicologia que eacute nosso uacutenico caminho para uma boa compreensatildeo das virtudes Se haacute uma ligaccedilatildeo estreita entre os atos particulares e as virtudes deve haver estreita conexatildeo entre os atos e a psicologia de uma pessoa seu comportamento e reaccedilotildees caracteriacutesticas (FLANNERY 2009 p 52)
A afirmaccedilatildeo acima aponta para uma dependecircncia do estudo das virtudes em
relaccedilatildeo a um estudo sobre os atos e humanos Este estudo sobre os atos humanos
se constitui como outra tarefa da Psicologia Filosoacutefica De acordo com o que foi
apresentado a Psicologia Empiacuterica mostrou-se insuficiente no tratamento dos atos
humanos especialmente no que se refere ao fenocircmeno da intencionalidade O
aprofundamento dos atos humanos atraveacutes de uma psicologia filosoacutefica pode
oferecer maior consistecircncia agrave Moral das Virtudes O fato eacute que as virtudes e tambeacutem
os viacutecios satildeo consolidados pelos atos concretos
Na relaccedilatildeo entre atos e virtudes o mais importante natildeo eacute necessariamente
desvendar as complexas relaccedilotildees que existem entre a psicologia de uma pessoa o
modo como os acontecimentos particulares sua vida vatildeo influenciar o
desenvolvimento futuro de sua histoacuteria O que estes argumentos natildeo podem
obscurecer nem invalidar a existecircncia de uma relaccedilatildeo estreita entre atos e virtudes
Neste sentido expotildee Kevin Flannery
Natildeo eacute ilegiacutetimo perguntar por exemplo como o envolvimento na morte de inocentes mesmo em parte por pessoas perfeitamente boas tem uma influecircncia sobre a vida familiar ou em qualquer outro aspecto do comportamento relacional Natildeo eacute ilegiacutetimo por exemplo questionar como um ato sexual com um menor em seu passado pode ter uma influecircncia sobre a vida pastoral de um possiacutevel padre no futuro Mas para entender como se relacionam virtudes viacutecios e atos particulares noacutes devemos tambeacutem compreender que atos satildeo genuinamente intencionais e em que medida o satildeo (FLANNERY 2009 p 53)
Embora o estudo sobre a intencionalidade e seu lugar numa Psicologia
Filosoacutefica natildeo seja o foco desta pesquisa sua menccedilatildeo eacute pertinente a este trabalho O
direcionamento se refere agrave compreensatildeo e exposiccedilatildeo do modo como no pensamento
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contemporacircneo a moralidade moderna e seus desdobramentos foram questionados
proporcionando a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes
212 A incoerecircncia do dever moral
Tendo apresentado a relaccedilatildeo de precedecircncia de uma teoria dos atos como um
propedecircutica ao estudo das virtudes Filosofia Moral Moderna apresenta um
questionamento acerca da noccedilatildeo de dever moral Para a Gertrude Anscombe a moral
moderna toma por base a noccedilatildeo de lsquodever moralrsquo Esta noccedilatildeo proveacutem de uma filosofia
praacutetica de caraacuteter legalista como eacute o caso da moral cristatilde A ideia baacutesica eacute que as
tentativas modernas de constituiccedilatildeo de uma filosofia praacutetica natildeo tiveram ecircxito porque
pensaram ser possiacutevel desenvolver uma eacutetica como lei moral tomando por
fundamento primordial o sujeito moral
Embora o termo moral seja herdado do pensamento aristoteacutelico Gertrude
Anscombe enfatiza que o que se entende por moral contemporaneamente possui um
conteuacutedo semacircntico distinto do que o termo possui nos contextos do pensamento de
Aristoacuteteles Ademais a moral parece estar relacionada agravequilo que eacute lsquoreprovaacutevelrsquo de
modo que falhas natildeo apenas da praacutexis mereccedilam receber igualmente o termo
reprovaacutevel (cf ANSCOMBE 2010 p 30) O que eacute explicitado pela autora eacute que
expressotildees do tipo lsquotem dersquo ou lsquodeversquo satildeo utilizadas em contextos natildeo apenas morais
como compreendia Aristoacuteteles mas em contextos que ele denominaria de
lsquointelectuaisrsquo
A Autora encontra na cristandade a razatildeo da modificaccedilatildeo semacircntica do termo
moral ldquoA resposta pertence agrave Histoacuteria entre Aristoacuteteles e noacutes encontra-se a
Cristandade com sua concepccedilatildeo legalista de eacutetica visto que a Cristandade deriva
suas noccedilotildees morais da Toraacuterdquo (ANSCOMBE 2010 p 24) Para ela a Cristandade opera
uma releitura na eacutetica aristoteacutelica
Os termos comuns (e indispensaacuteveis) [grifo da autora] ldquotem derdquo ldquoprecisa derdquo ldquodeverdquo ldquotem a obrigaccedilatildeo derdquo adquiriram esse sentido especial ao serem equacionados nos contextos relevantes com ldquoestaacute obrigadordquo ldquoassumiu o encargo derdquo e eacute ldquoexigido derdquo no sentido que se
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pode estar obrigado ou se pode assumir um encargo por lei ou de que algo pode ser exigido por lei (ANSCOMBE 2001 p 383)7
O predomiacutenio da Cristandade trouxe para a linguagem moral do Ocidente uma
grande modificaccedilatildeo no sentido daquilo que Aristoacuteteles entendia por moral e mesmo
que a Cristandade e sua compreensatildeo de mundo tenham sido abandonadas as
noccedilotildees de dever e obrigaccedilatildeo permaneceram sendo empregadas a partir das
influecircncias recebidas
Numa segunda justificativa aleacutem da tese da origem religiosa do conceito de
dever moral Gertrude Anscombe propotildee uma distinccedilatildeo entre accedilotildees maacutes por si
mesmas e accedilotildees maacutes sob determinadas circunstacircncias A condenaccedilatildeo de um
inocente conhecendo-se sua inocecircncia eacute um exemplo de accedilatildeo maacute em si mesma
enquanto que a violaccedilatildeo do direito de propriedade figura entre as accedilotildees maacutes sob
determinadas circunstacircncias No caso da condenaccedilatildeo de um inocente a accedilatildeo eacute maacute
diretamente em virtude da consciecircncia que se tem da inocecircncia e da violaccedilatildeo
deliberada do direito do inocente jaacute no caso do direito de propriedade a accedilatildeo natildeo
pode ser maacute em si mesma por causa das circunstacircncias Ora algueacutem pode invadir a
propriedade de outrem por que eventualmente estaacute a fugir da morte iminente
Esta distinccedilatildeo eacute relevante pois apresenta o modo como um pensamento moral
pode se constituir como uma teoria centrada nas accedilotildees de um agente ou como uma
teoria que prioriza as accedilotildees de um agente centrado Esta uacuteltima eacute por assim dizer
um tipo de filosofia praacutetica que visa o bem natildeo apenas das accedilotildees mas tambeacutem do
agente eacutetico A acusaccedilatildeo de Gertrude Anscombe em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de dever e
obrigaccedilatildeo se refere ao fato de que nestes casos haacute uma estrutura normativa que
privilegia a accedilatildeo em detrimento do agente No caso da Eacutetica das Virtudes haacute uma
tentativa de priorizar natildeo a accedilatildeo em seus efeitos externos ao agente mas o que ela
provoca em seu caraacuteter A noccedilatildeo de caraacuteter necessita de um aprofundamento
No contexto de uma Moral das Virtudes as accedilotildees satildeo convenientes na medida
em que contribuem com o fim do homem O caraacuteter significa aqui a capacidade de
agir virtuosamente com fundamento na condiccedilatildeo do agente que em por causa do
haacutebito adquiriu a capacidade de agir harmonizando o querer o poder e dever O mais
importante aqui natildeo reside numa accedilatildeo modelo na qual o agente deva se conformar
7ldquoThe ordinary (and quite indispensable) terms ldquoshouldrdquo ldquoneedsrdquo ldquooughtrdquo ldquomustrdquo acquired this special
sense by being equated in the relevant contexts with ldquois obligedrdquo or ldquois boundrdquo or ldquois required tordquo in the sense in which one can be obligaded or bound by law or something can be required by lawrdquo
27
independente de seus processos internos sejam os desejos seja a razatildeo Neste
sentido pode-se afirmar a Eacutetica das Virtudes como uma eacutetica que manteacutem a
centralidade no agente
As eacuteticas deontoloacutegicas e utilitaristas centralizam sua atenccedilatildeo na idoneidade
das accedilotildees Este posicionamento faz com que a virtude seja dependente das accedilotildees
Opostamente a Eacutetica das Virtudes propotildee que as accedilotildees devem ser pensadas agrave luz
do caraacuteter de quem as pratica Na obra O bem viver em comunidade a vida boa
segundo Platatildeo e Aristoacuteteles (cf RICKEN 2008 p 181-182) o professor Friedo Ricken
relaciona trecircs teses sobre o agir a tese epistemoloacutegica a tese ontoloacutegica ou axioloacutegica
e a tese do chamado reducionismo conceitual
A tese epistemoloacutegica defende que as accedilotildees corretas satildeo fundamentadas por
conceitos de virtude uma accedilatildeo eacute considerada correta quando traduz aquilo que uma
pessoa virtuosa faria sob determinadas circunstacircncias Neste sentido as accedilotildees satildeo
julgadas em relaccedilatildeo agraves virtudes A tese ontoloacutegica ou axioloacutegica propotildee que o valor
moral da accedilatildeo se fundamenta no valor moral do caraacuteter ou seja as boas accedilotildees
decorrem do caraacuteter bom de uma pessoa entretanto natildeo vale a formulaccedilatildeo inversa
o caraacuteter como decorrente das accedilotildees Finalmente o reducionismo conceitual defende
que os assim chamados deveres podem ser retirados de predicados de virtude
Segundo Friedo Ricken a tese de Gertrude Anscombe parece alinhada ao
reducionismo conceitual pois para ela a eacutetica da virtude eacute contraposta com a eacutetica
do dever ou da lei como alternativa excludente os predicados ldquomoralmente corretordquo e
ldquomoralmente erradordquo conforme a exigecircncia poderiam ser substituiacutedos por predicados
de virtude ou seja pelo predicado lsquojustorsquo (cf RICKEN 2008 p 183)
Ainda segundo Gertrude Anscombe contemporaneamente o Ocidente
internalizou uma noccedilatildeo de dever que era tanto estranha agrave moral aristoteacutelica quanto agrave
moral hebraico-cristatilde Mais grave ainda eacute a defesa da noccedilatildeo de dever tentando
prescindir da cultura que a forjou Gertrude Anscombe esclarece que a eacutetica hebraico-
cristatilde tem como caracteriacutestica fundamental ldquoensinar que haacute coisas proibidas quaisquer
que sejam as consequecircncias no horizonterdquo (ANSCOMBE 2010 p 30) A autora expotildee
em seguida que a proibiccedilatildeo de certas accedilotildees simplesmente em virtude de sua
descriccedilatildeo como tais e tais tipos identificaacuteveis de accedilatildeo natildeo importando quais as
consequecircncias ulteriores vem a se constituir como a mais notaacutevel caracteriacutestica da
eacutetica hebraico-cristatilde
28
A eacutetica legalista do Ocidente entatildeo mencionada foi forjada no seio da cultura
hebraico-cristatilde e eacute dela que provecircm as noccedilotildees de dever de obrigaccedilatildeo Estas noccedilotildees
se relacionam com a figura do legislador divino pois as leis satildeo por ele formuladas
A criacutetica de Gertrude Anscombe se dirige agraves deontologias modernas e ao utilitarismo
justamente porque eles defendem a noccedilatildeo de dever e obrigaccedilatildeo querendo no
entanto lsquoescaparrsquo agrave figura de um legislador divino Para a autora a noccedilatildeo de lei possui
um sentido muito forte de interdito Este interdito que possui forccedila de lei e dever natildeo
seria adequadamente se fosse realizado ou imputado apelando apenas para forccedilas
do indiviacuteduo
Gertrude Anscombe considera que a sobrevivecircncia da noccedilatildeo de dever moral
se deu muito mais pela forccedila psicoloacutegica da expressatildeo do que pelo seu conteuacutedo (cf
ANSCOMBE 2010 p 28) Para a autora teria sido de grande valia se em vez de
lsquomoralmente erradorsquo fossem sempre invocados termos como lsquoinveriacutedicorsquo lsquoimpudicorsquo
lsquoinjustorsquo Deste modo natildeo se discutiria mais acerca da accedilatildeo se ela foi ou natildeo errada
mas se discutiria se foi justa ou injusta A questatildeo central aqui estaacute no fato de que
apresentar as accedilotildees em termos de moralmente certa ou errada natildeo traria implicaccedilotildees
sobre a bondade ou natildeo do agente pois certas ou erradas satildeo as accedilotildees Por outro
lado questionar como justas ou injustas qualifica de certo modo o agente como bom
ou natildeo Isto significa que a centralidade do julgamento natildeo iria residir nas accedilotildees mas
no agente
As palavras de Kant apresentando a modernidade como o tempo em que o
sujeito caminha com seus proacuteprios peacutes proporcionou a ideia de que a eacutetica moderna
se sustentaria com uma autolegislaccedilatildeo do sujeito de modo a ocupar o papel que
antes desenvolvido pelo Deus da Eacutetica Cristatilde
Duas coisas enchem o acircnimo de admiraccedilatildeo e veneraccedilatildeo sempre nova e crescente quanto mais frequente e persistentemente agrave reflexatildeo ocupa-se com elas o ceacuteu estrelado acima de mim e a lei moral em mim (KANT 2008 p 255)
Gertrude Anscombe critica a ideia de que o sujeito seja legislador de si proacuteprio
ldquorejeito como absurdo que se possa legislar lsquopara si mesmorsquo O que quer que vocecirc
faccedila lsquopara si mesmorsquo pode ser admiraacutevel mas natildeo legislaccedilatildeordquo (ANSCOMBE 2010 p
34) Para autora a questatildeo fundamental eacute se questionar acerca da real capacidade
de um sujeito empiacuterico acessar uma maacutexima universal e conformar sua accedilatildeo particular
a ela prescindindo de suas inclinaccedilotildees
29
Uma deduccedilatildeo necessaacuteria do pensamento de Gertrude Anscombe eacute que no
horizonte de uma eacutetica assegurada pela lei divina o lsquoiliacutecitorsquo ou lsquoo que eacute obrigatoacuterio natildeo
fazerrsquo termos que satildeo ancestrais do conceito lsquomoralmente erradorsquo ganham um
sentido pois satildeo o que a lei divina obriga Assim sendo a noccedilatildeo de lsquodeverrsquo ou
lsquomoralmente erradorsquo soacute satildeo adequadamente contextualizados se relacionados com a
Lei Divina
Aparentemente a autora estaacute defendendo uma lsquoparceriarsquo entre a moral
moderna e a eacutetica hebraico-cristatilde Se se retornar ao iniacutecio de seu texto ver-se-aacute que
a questatildeo central natildeo eacute a proposiccedilatildeo de uma lsquoparceriarsquo mas a indicaccedilatildeo de que os
conceitos de obrigaccedilatildeo e dever tatildeo fundamentais agrave moral moderna pelo fato de
serem remanescentes da eacutetica hebraico-cristatilde que jaacute natildeo existe mas dos ganhos
trariam danos agrave filosofia moral moderna (cf ANSCOMBE 2010 p 19)
213 Criacutetica ao utilitarismo
A criacutetica de Gertrude Anscombe ao utilitarismo aparece em sua apresentaccedilatildeo
do pensamento de Sidgwick O ponto de partida da filoacutesofa eacute a noccedilatildeo de intenccedilatildeo
utilizada por este autor Para Gertrude Anscombe o conceito intenccedilatildeo se refere agrave
possibilidade de prever as consequecircncias de uma accedilatildeo voluntaacuteria (cf ANSCOMBE
2010 p 31) A partir deste noccedilatildeo de intenccedilatildeo esboccedila-se a tese utilitarista do autor ldquoa
tese que natildeo ter sentido desejo algum por algo antevisto quer seja um fim ou um meio
para um fim eacute indiferente no que diz respeito agrave responsabilidade por esse algordquo
(ANSCOMBE 2010 p 31) A siacutentese da tese utilitarista ou consequencialista eacute a
compreensatildeo de que um indiviacuteduo pode ser responsabilizado pelo resultado de uma
accedilatildeo mesmo que esta determinada consequecircncia natildeo tenha sido desejada ou
intencionada previamente A autora ainda propotildee outra formulaccedilatildeo para tese de
Sidgwick ldquonatildeo ter a intenccedilatildeo de uma accedilatildeo eacute indiferente no que diz respeito agrave
responsabilidade por esse algordquo (ANSCOMBE 2010 p 31)8 Para melhor esclarecer a
autora propotildee um exemplo
Suponhamos que um homem seja responsaacutevel pelo sustento de uma crianccedila Por conseguinte deliberadamente deixar de lhe dar o sustento seria algo ruim a fazer de sua parte Seria ruim deixar de lhe dar o sustento porque ao deixar de fazecirc-lo estaria digamos
8 Cf tambeacutem ANSCOMBE 2001 p 387 ldquoit does not make any difference to a manrsquos responsibility for
something that he foresaw that he felt no desire for it either as an end or as a means to an endrdquo
30
compelindo outro a fazer algo (Pode-se conceder neste argumento que compelir esse outro a fazer algo digno de admiraccedilatildeo) [grifo da autora] Agora poreacutem ele tem de escolher entre fazer algo ignoacutebil e ir preso se for preso segue-se que deixaraacute de dar o sustento agrave crianccedila (ANSCOMBE 2010 p 387)9
A interpretaccedilatildeo que Gertrude Anscombe faz da tese de Sidgwick eacute a seguinte
do ponto de vista da responsabilidade natildeo existe diferenccedila entre deixar de dar o
sustento por deliberaccedilatildeo e deixar de daacute-lo como consequecircncia da prisatildeo mesmo que
este resultado natildeo tenha sido computado como consequecircncia possiacutevel antes de vir a
cometer o ato indesejaacutevel Ora se natildeo haacute distinccedilatildeo entre uma accedilatildeo e outra em virtude
de a consequecircncia ser a mesma o agente pode ateacute concluir que deixar-se ir preso
seja menos mau do que deixar de dar o sustento agrave crianccedila por escolha Com efeito
deixar de o sustento passa a ser consequecircncia de ter sido preso minorando assim
a responsabilidade pelo ato
Gertrude Anscombe conclui que este tipo de eacutetica impulsiona o agente a
antever as consequecircncias natildeo haacute uma reflexatildeo sobre a maldade desta ou daquela
accedilatildeo apenas um caacutelculo dos possiacuteveis resultados Acontece que considerando
apenas as consequecircncias possiacuteveis pode ser que consequecircncias inesperadas se
apresentem como resultado Entretanto diante de resultados que natildeo foram
antevistos o agente natildeo pode a rigor ser culpado por um resultado desastroso
desde que argumente que um determinado resultado natildeo foi antevisto
A criacutetica da autora aponta para a ldquocomodidaderdquo do consequencialismo o agente
soacute eacute responsaacutevel na medida em que o resultado de suas accedilotildees for adequadamente
previsto Ao contraacuterio ela defende que ldquouma pessoa eacute responsaacutevel pelas maacutes
consequecircncias de suas maacutes accedilotildees mas natildeo recebe o creacutedito pelas boas
consequecircncias destasrdquo (ANSCOMBE 2010 p 32) Deste modo esta moralidade natildeo
se apresenta como propositiva no sentido de sugerir o que deve ser feito mas se
preocupa primordialmente com o que homem natildeo deveria fazer com que
acontecesse
9ldquoLet us suppose that a man has a responsibility for the maintenance of some child Therefore
deliberately to withdraw support from it is a bad sort of thing for him to do It would be bad for him to withdraw its maintenance because he didnrsquot want to maintain it any longer and also bad for him to withdraw it because by doing so he would let us say compel someone else to do something (we may suppose for the sake of argument that compelling that person to do that thing is in ifself quite admirable) but now he has to choose between doing something disgraceful and going to prison if he goes to prison it will follow that he withdraws support from de childrdquo
31
A partir da ldquocrenccedilardquo na superficialidade da proposta consequencialista a autora
expotildee a ela seu questionamento Um aristoteacutelico por exemplo questiona-se sobre
se fazer tal coisa em tal circunstacircncia eacute ou natildeo injusta e a partir daiacute julga o que deve
ser feito ou natildeo Jaacute um consequencialista natildeo tem base para dizer que determinada
accedilatildeo natildeo seria permitida ldquoo maacuteximo que ele pode dizer eacute que um homem natildeo deve
fazer com que aconteccedila isto ou aquilordquo (ANSCOMBE 2010 p 33) O que permite ao um
consequencialista o que natildeo deveria acontecer Ao refletir sobre qual o resultado natildeo
desejaacutevel como consequecircncia de uma accedilatildeo este pensador tem diante de si um caso
limite o que exige sua atenccedilatildeo aos padrotildees sociais
O consequencialista de modo a estar de fato imaginando um caso-limite tem de assumir algum tipo de lei ou padratildeo segundo o qual esse eacute um caso-limite De onde obteacutem esse padratildeo Na praacutetica a resposta invariavelmente eacute dos padrotildees correntes em sua sociedade ou ciacuterculo (ANSCOMBE 2010 p34)
A fundamentaccedilatildeo dos casos limites partindo dos exemplares sociais permite
uma associaccedilatildeo entre consequencialismo e convencionalismo moral Com efeito se
o ponto de partida da fundamentaccedilatildeo moral satildeo os padrotildees correntes numa
determinada sociedade qual a chance de uma proposiccedilatildeo consequencialista
contradizer algum modelo convencional A autora ainda explica que aleacutem do
convencionalismo eacutetico a moral consequencialista cria a possibilidade de um
determinado agente consentindo maacutes accedilotildees
[] o ponto de considerar situaccedilotildees hipoteacuteticas por vezes bastante improvaacuteveis parece ser o de produzir em vocecirc ou em algueacutem a decisatildeo hipoteacutetica de fazer algo ruim Natildeo duvido que isso tenha o efeito de predispor as pessoas que jamais se veratildeo nas situaccedilotildees para as quais fazem as escolhas hipoteacuteticas a dar consentimento a maacutes accedilotildees similares ou a enaltecer e lisonjear quem as pratique desde que a sua malta10 a faccedila tambeacutem quando as terriacuteveis circunstacircncias imaginadas natildeo se datildeo (ANSCOMBE 2010 p 33)
O fato de natildeo conseguir prever a consequecircncia de uma determinada accedilatildeo
utilizando-se de hipoacuteteses sobre as consequecircncias o que natildeo eacute difiacutecil de acontecer
dadas as inuacutemeras possibilidades de resultados de seu agir incita o agente a dar
assentimento a uma maacute accedilatildeo uma vez que a anaacutelise se refere ao que natildeo deve ser
feito
10Melhor traduzir por expectadores pois o texto original diz crowd
32
A conclusatildeo das criacuteticas de Gertrude Anscombe sobre o consequencialismo eacute
de certo modo controversa pois talvez natildeo seja uma consequecircncia necessaacuteria que o
fato de analisar uma accedilatildeo que natildeo deve ser realizada predisponha o agente a fazecirc-
la Entretanto dizer que esta anaacutelise em nada influencia o agente eacute igualmente
controverso
214 A diacutevida filosoacutefica de MacIntyre ao pensamento de Gertrude Anscombe
A repercussatildeo do pensamento de Gertrude Anscombe no itineraacuterio filosoacutefico de
MacIntyre eacute bem relevante O desenvolvimento da criacutetica deste uacuteltimo ao projeto
moderno de fundamentaccedilatildeo da moralidade segue uma linha de pensamento que
encontra ressonacircncias com os argumentos de Filosofia Moral Moderna Contudo a
vinculaccedilatildeo de MacIntyre com o pensamento marxista e com as ciecircncias sociais
proporcionaram aprofundamento e amadurecimento ao seu pensamento conforme
afirma Jorge Garcia
A criacutetica de MacIntyre da filosofia moral moderna mesmo com todas as semelhanccedilas natildeo apenas eacute um simples recapitular de Anscombe Sua criacutetica eacute mais detalhada e profundamente influenciada por seus viacutenculos com o marxismo e sua leitura das ciecircncias sociais (Cf GARCIA 2003 p 95 )11
O ponto de convergecircncia entre a Gertrude Anscombe e MacIntyre reside pois
no questionamento e na rejeiccedilatildeo agrave moral moderna Conforme Ernst Tugendhat
(2007)12 satildeoantiiluministas eacuteticos os autores que assumem este posicionamento
Outra aproximaccedilatildeo entre os dois autores eacute o realce na distinccedilatildeo entre o modus
operandi da eacutetica antiga e moderna e a opccedilatildeo pela moral das virtudes Talbot Brewer
salienta que tanto Gertrude Anscombe quanto MacIntyre enfatizam ldquouma estranheza
fundamental aos lsquoouvidosrsquo modernos dos conceitos baacutesicos atraveacutes dos quais
Aristoacuteteles e outros antigos medievais cercaram sua investigaccedilatildeo sobre a virtude o a
felicidade humanardquo (BREWER 2009 p 2 )13 Em siacutentese eacute possiacutevel afirmar que o
11ldquoMacIntyres critique of modernist moral philosophy for all these similarities does not at all simply
recapitulate Anscombes His criticism is more detailed deeply informed by his ties to Marxism and his reading the social sciencesrdquo
12Sobre o antiiluminismo eacutetico conferir a deacutecima liccedilatildeo intitulada o antiiluminismo eacutetico Hegel e a escola de Ritter cf Aftervirtue Third edition Notre Dame Notre Dame Press 2007 p 197-224
13ldquoThe two texts that are most widely cited as the starting points and the inspiration for the movement are Elizabeth Anscombes Modern Moral Philosophy and Alasdair MacIntyres After Virtue Both Anscombe and MacIntyre emphasize the fundamental strangeness to modern ears of the basic
33
antiiluminismo eacutetico e a opccedilatildeo pelas virtudes satildeo elementos dos quais MacIntyre eacute
herdeiro de Gertrude Anscombe
O fato de ser devedor de um pensamento natildeo implica numa simples repeticcedilatildeo
Jaacute foi mencionado que a anaacutelise de MacIntyre eacute enriquecida por sua proximidade com
o marxismo e com as ciecircncias sociais O elemento antropoloacutegico eacute a segunda
distinccedilatildeo relevante entre os autores Segundo David Carr e Jan Steutel (cf 1999 p
162-163) Gertrude Anscombe acreditava ser possiacutevel tomar como ponto de partida
uma concepccedilatildeo de homem ao modo de Aristoacuteteles na forma de uma psicologia
filosoacutefica que permitisse estabelecer relaccedilatildeo entre atos virtudes e fim do homem Por
seu turno em Depois da Virtude MacIntyre procura evitar o que chama de biologia
metafiacutesica de Aristoacuteteles ldquoAristoacuteteles escreve como se os baacuterbaros e os gregos
tivessem natureza fixa e ao encaraacute-los assim ele nos traz de volta o caraacuteter natildeo
histoacuterico de sua compreensatildeo de natureza humanardquo (MACINTYRE 2001b p 270)
MacIntyre parece natildeo adotar esse modelo antropoloacutegico porque esta seria uma
forma a-histoacuterica e a-cultural de considerar o homem o que natildeo poderia ser
sustentado do ponto de vista das ciecircncias sociais e aleacutem disso destoaria da
perspectiva metodoloacutegica de Depois da Virtude Esse talvez seja o motivo pelo qual
Depois da Virtude careccedila de uma teoria dos atos humanos Este fato abre espaccedilo agrave
criacutetica de que MacIntyre daacute pouca importacircncia agrave relaccedilatildeo entre atos e virtudes O que
seria de certo modo fundamental agrave moral as virtudes Posteriormente o proacuteprio
MacIntyre refaz sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave biologia metafiacutesica de Aristoacuteteles
Em Depois da virtude tentei dar conta do lugar das virtudes entendidas como Aristoacuteteles as entendeu dentro de praacuteticas sociais das vidas de indiviacuteduos e das vidas das comunidades fazendo com que tal abordagem fosse independente do que chamei de ldquobiologia metafiacutesicardquo de Aristoacuteteles Embora haja de fato boas razotildees para repudiar elementos importantes da biologia de Aristoacuteteles creio agora que estava errado ao supor que fosse possiacutevel haver uma eacutetica independente da biologia mdash e estou grato agravequeles criacuteticos que me objetaram quanto a isso [] (MACINTYRE 1999 Preface X )14
concepts through which Aristotle and other Ancient Medieval thinkers framed their inquires into virtues and the human goodrdquo
14ldquoIn After Virtue I had attempted to give an account of the place of the virtues understood as Aristotle understood them within social practices the lives of individuals and the lives of communities while making that account independent of what I called Aristotlersquos ldquometaphysical biologyrdquo Although there is indeed good reason to repudiate important elements in Aristotlersquos biology I now judge that I was in error in sopposing an ethics independent of biology to be possible ndash and I am grateful to those critics who distintct [hellip]rdquo
34
Finalmente fazem-se necessaacuterias algumas consideraccedilotildees ao final deste
capiacutetulo A partir da siacutentese de Rosalind Hursthouse vecirc-se que a recolocaccedilatildeo Eacutetica
das Virtudes se impotildee dadas as questotildees morais que natildeo se encontram contempladas
pelas morais deontoloacutegicas ou utilitaristas a siacutentese de Gertrude Anscombe daacute iniacutecio
ao movimento de retorno agrave Eacutetica das Virtudes e estabelece relevante influecircncia na
ulterior criacutetica de MacIntyre agrave filosofia moral moderna como tambeacutem na assunccedilatildeo da
Moral das Virtudes o movimento denominado Virtue Ethics manteacutem vivo o debate
eacutetico na contemporaneidade e abriu a possibilidade de pensar a Moral das Virtudes
como mais uma via pensamento na filosofia moral de liacutengua inglesa e na filosofia moral
como um todo
A seguir deve-se apresentar como o pensamento de MacIntyre se insere na
tradiccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes Primeiramente em seus questionamentos agrave Filosofia
Moral Moderna e secundariamente como teoacuterico de uma Eacutetica das Virtudes agrave
contemporaneidade
35
3 A CRIacuteTICA DE MACINTYRE AO PROJETO MODERNO DE FUNDAMENTACcedilAtildeO
DA MORALIDADE
A apresentaccedilatildeo das teses modernas sobre a moralidade eacute uma das temaacuteticas
centrais do pensamento de Alasdair MacIntyre Ela se constitui como momento
preparatoacuterio ao desenvolvimento de sua teoria moral Com efeito MacIntyre crecirc que
a exposiccedilatildeo destas teses se faz necessaacuteria porque o fato de existirem na
modernidade diferentes fundamentos agrave moralidade comprovaria em sua opiniatildeo o
chamado desacordo moral Esse desacordo seria pois a heranccedila deixada pelos
modernos agrave contemporaneidade e o ponto de partida da tese central de MacIntyre
Este capiacutetulo tem como tarefa apresentar a interpretaccedilatildeo manintyreana das principais
teses modernas sobre a fundamentaccedilatildeo da moralidade e os principais episoacutedios da
histoacuteria social que representaram o ldquoterrenordquo desde onde estas teses brotaram
A referecircncia baacutesica para a realizaccedilatildeo do objetivo deste capiacutetulo eacute a quarta
seccedilatildeo de Depois da Virtude intitulada A cultura predecessora e o projeto iluminista de
justificar a moralidade Para uma melhor compreensatildeo do fio condutor da
argumentaccedilatildeo do autor faz-se necessaacuteria uma exposiccedilatildeo da alegoria inicial de Depois
da Virtude no cap I Com efeito eacute a partir da alegoria inicial de Depois da Virtude que
MacIntyre daacute prosseguimento agrave primeira tarefa de Depois da Virtude a apresentaccedilatildeo
dos fundamentos do discurso moral contemporacircneo e a fragmentaccedilatildeo desse mesmo
discurso
31 A ALEGORIA INICIAL DE DEPOIS DA VIRTUDE
A alegoria inicial de Depois da Virtude se apresenta com um bastante
apocaliacuteptico A exposiccedilatildeo desta alegoria seguiraacute a apresentaccedilatildeo de MacIntyre O
iniacutecio do texto daacute conta das consequecircncias de uma cataacutestrofe hipoteacutetica nas ciecircncias
naturais A esta cataacutestrofe a opiniatildeo puacuteblica culpa os cientistas e em consequecircncia
inuacutemeros laboratoacuterios satildeo incendiados cientistas satildeo linchados livros e instrumentos
satildeo destruiacutedos Com a tomada de poder por um movimento poliacutetico intitulado ldquoNenhum
saberrdquo o ensino das ciecircncias nas escolas e nas universidades eacute eliminado enquanto
o restante dos cientistas eacute eliminado Posteriormente contra este movimento aparece
uma reaccedilatildeo e pessoas esclarecidas tentam ressuscitar a ciecircncia mesmo tendo se
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esquecido em grande parte o que ela tinha sido Soacute possuem fragmentos
conhecimento dos experimentos isolados do contexto teoacuterico que lhes dava
significado partes de teorias desvinculadas seja de outros fragmentos de teoria que
possuem seja de experimentos instrumentos cujo uso foi esquecido capiacutetulos de
livros pela metade paacuteginas soltas de artigos nem sempre legiacuteveis porque estatildeo
rasgadas e chamuscadas Como se natildeo bastasse todos esses fragmentos satildeo
reunidos num conjunto de praacuteticas que recebem os nomes restaurados de fiacutesica
quiacutemica e biologia Os adultos discutem entre si os meacuteritos das teorias da relatividade
da evoluccedilatildeo e do flogismo embora seus conhecimentos sobre cada uma delas sejam
apenas rudimentares As crianccedilas decoram partes que restaram da tabela perioacutedica e
recitam alguns teoremas de Euclides como se fossem encantamentos Ningueacutem ou
quase ningueacutem percebe que o que estatildeo fazendo natildeo eacute ciecircncia natural em nenhum
sentido adequado pois tudo o que dizem e fazem obedece a certas leis da
compatibilidade e da coerecircncia e os contextos que seriam necessaacuterios para dar
sentido agravequilo que eles estatildeo fazendo foram perdidos talvez irrecuperaacuteveis (cf
MACINTYRE 2001 p 14)
A descriccedilatildeo de abertura de Depois da Virtude exemplifica diversos momentos
da primeira parte da obra da obra de MacIntyre Seu posicionamento eacute o de que a
filosofia moral moderna e sua tentativa de fundamentaccedilatildeo da moral satildeo anaacutelogas a
historinha entatildeo apresentada Assim como na historinha a reconstruccedilatildeo da ciecircncia
natural se mostrou impossiacutevel de ser remontada dada a fragmentaccedilatildeo a que o
material disponiacutevel estava acometido a filosofia moral moderna e sua tentativa de
fundamentaccedilatildeo natildeo teve condiccedilatildeo de impor-se coerentemente porque alguns de seus
fundamentos satildeo vestiacutegios fragmentados de um esquema moral que embora tribute
agrave modernidade alguns de seus elementos jaacute natildeo existe e os elementos disponiacuteveis
natildeo possuem sentido se separados dos seus contextos de origem
Pretensatildeo ou natildeo este eacute o ponto de partida de Depois da Virtude e a reflexatildeo
que MacIntyre faz sobre o projeto moderno de fundamentaccedilatildeo da moralidade recebe
suas motivaccedilotildees filosoacuteficas a partir desta alegoria Assim como na alegoria o que
sobraram das teorias cientiacuteficas eram fragmentos desconexos assim tambeacutem a
linguagem moral contemporacircnea eacute o resultado fragmentado de vaacuterias tentativas de
fundamentaccedilatildeo do discurso moral Entretanto esta desordem natildeo pode ser percebida
37
por todos assim como na alegoria pois existe de certo modo uma aparecircncia de
linguagem ordenada
O autor vai entatildeo expor a desmistificaccedilatildeo desta aparente linguagem
ordenada atraveacutes da apresentaccedilatildeo dos motivos que conduziram o pensamento moral
moderno ao fracasso intitulado por MacIntyre como o fracasso do projeto iluminista
32 AS TESES MODERNAS SOBRE A FUNDAMENTACcedilAtildeO DA MORALIDADE
O homem moderno se orgulha de ldquocaminhar com os seus proacuteprios peacutesrdquo de
tomar suas proacuteprias decisotildees de escolher os seus caminhos sua religiatildeo seus
governantes Este orgulho se deve ao marco divisoacuterio entre a moral claacutessica e a
moralidade moderna Este marco divisoacuterio foi propriamente a passagem da moral
claacutessica influenciada especialmente na eacutetica teleoloacutegica de Aristoacuteteles para a moral
moderna marcada profundamente pela ideia de autonomia o sujeito dando leis a si
proacuteprio Henrique de Lima Vaz afirmar que a Filosofia Moral Moderna eacute profundamente
marcada ldquopela tentativa kantiana de instauraccedilatildeo de uma Eacutetica da razatildeo pura praacutetica
termo da evoluccedilatildeo anterior e iniacutecio de um novo ciclo na histoacuteria da Eacutetica ocidentalrdquo
(VAZ 1999 p 257)
Sabe-se que a moral moderna embora tendo como aacutepice a moral kantiana natildeo
eacute constituiacuteda apenas pela moral da razatildeo pura praacutetica Em sua exposiccedilatildeo de teses
modernas de fundamentaccedilatildeo da moral MacIntyre expotildee outras manifestaccedilotildees que
propotildeem outros fundamentos para a moral diferentes da razatildeo pura praacutetica
Neste capiacutetulo a partir do pensamento de MacIntyre seratildeo explicitadas as trecircs
grandes tentativas de fundamentaccedilatildeo da moral moderna nomeadamente a moral
kantiana a moral humeana e a moral kiekegaardiana Para MacIntyre a colocaccedilatildeo de
Kierkegaard natildeo significa que o filoacutesofo eacute um pensador moderno em sentido proacuteprio
Para MacIntyre o pensamento de Kierkegaard traduz ldquoa perspectiva distintivamente
moderna em forma amadurecidardquo (MACINTYRE 2007 p 39 )15 isto eacute o pensamento
de Kierkegaard serve como elemento tipoloacutegico de uma das tendecircncias modernas de
fundamentaccedilatildeo da moral
15ldquobeginning from that point at which for the first time the distinctively modern standpoint appears in
something like fully-fledged formrdquo
38
Ainda segundo MacIntyre as teses de fundamentaccedilatildeo da moral aludem agraves trecircs
grandes dimensotildees fundamentais do sujeito a razatildeo os sentimentos ou paixotildees e a
escolha Estas dimensotildees correspondem respectivamente agrave fundamentaccedilatildeo da moral
a partir da razatildeo a partir das paixotildees e a fundamentaccedilatildeo da moralidade fundada na
escolha O autor entende que as diferentes fontes de fundamentaccedilatildeo satildeo a evidecircncia
do desacordo e da fragmentaccedilatildeo que de certo modo conduziram o projeto iluminista
de fundamentaccedilatildeo da moralidade agrave falecircncia Este caminho eacute exatamente o caminho
proposto por MacIntyre em Depois da Virtude e serve como base de sua criacutetica agrave moral
contemporacircnea
David Hume considera que os juiacutezos morais particulares satildeo expressatildeo do
gosto e dos sentimentos isto eacute das paixotildees Em Resumo de Um Tratado da Natureza
Humana o autor afirma
A uacutenica finalidade da loacutegica eacute explicar os princiacutepios e operaccedilotildees de nossa faculdade de raciociacutenio e a natureza de nossas ideias a moral e a criacutetica dizem respeito aos nossos gostos e sentimentos e a poliacutetica considera os homens enquanto unidos na sociedade e dependentes uns dos outros (HUME 1995 p 40 )16
Para Hume os juiacutezos morais satildeo expressatildeo de utilidade para os fins que foram
postos pelas paixotildees isto eacute estes fins estatildeo a serviccedilo dos sentimentos Hume afirma
ldquoa accedilatildeo pode causar um juiacutezo ou pode ser obliquamente causada por um juiacutezo quando
este coincide com uma paixatildeordquo (HUME 2009 p 499) A declaraccedilatildeo de Hume enfatiza
a condiccedilatildeo que uma accedilatildeo possui em relaccedilatildeo agrave paixatildeo pois eacute na coincidecircncia com
uma paixatildeo que uma accedilatildeo eacute causada ou causadora de um juiacutezo As accedilotildees satildeo pois
realizadas em virtude das paixotildees
A natureza do homem segundo Kant natildeo eacute mais que sua capacidade de viver
conforme seus instintos Em seu texto Sobre a Pedagogia uma coletacircnea de liccedilotildees
proferidas na Universidade de Koumlnigsberg e reunidas por um de seus disciacutepulos Kant
afirma que a disciplina uma das partes da educaccedilatildeo converte a animalidade em
humanidade (cf KANT 2002) Ora natildeo eacute difiacutecil compreender o porquecirc de Kant
acreditar que as paixotildees interesses ou inclinaccedilotildees natildeo podem ser fundamento da
accedilatildeo moral Na Fundamentaccedilatildeo da Metafiacutesica dos Costumes ele assinala que uma
accedilatildeo moralmente boa natildeo pode conter nada que possa remeter agraves inclinaccedilotildees Haacute
16ldquoThe sole end of logic is to explain the principies and operation of our reasoning faculty and the nature
of our ideas morals and criticism regard our tastes and sentiments and politics consider men as united in society and dependent on each otherrdquo
39
vaacuterias maneiras de agir em relaccedilatildeo ao dever mas a accedilatildeo puramente moral eacute aquela
praticada apenas por dever sem interesse (cf KANT 1999) Isto significa que a accedilatildeo
puramente moral eacute aquela que se orienta exclusivamente pela razatildeo ou seja a
moralidade natildeo pode se apoiar nem nos desejos nem em algo que se apresente como
uma heteronomia por exemplo a religiatildeo
A descriccedilatildeo da tentativa de fundamentaccedilatildeo por parte de Kierkegaard seguiraacute a
indicaccedilatildeo que MacIntyre realiza em Depois da Virtude (cf MACINTYRE 2001b p 73)
A obra de Kierkegaard que serve de apoio agrave exposiccedilatildeo eacute Ou Ou Segundo MacIntyre
Kierkegaard apresenta dois modos de vida o esteacutetico e o eacutetico O primeiro tem como
paradigma o amante romacircntico que estaacute imerso na proacutepria paixatildeo e simboliza uma
face do eu que eacute capaz de se entregar agrave imediaticidade da experiecircncia presente (cf
MACINTYRE 2001b p 80) jaacute o estado eacutetico eacute simbolizado pelo modelo do casamento
e alude agrave situaccedilatildeo do compromisso e da obrigaccedilatildeo eternos na qual o presente estaacute
preso ao passado e ao futuro (cf MACINTYRE 2001b) Segundo Teofilo Urdanoz os
estados da existecircncia em Kierkegaard ou etapas no caminho de uma vida ldquosatildeo as
determinantes existenciais os modos de vida gerais que servem como esquema ou
princiacutepios antagocircnicos com os quais o indiviacuteduo concreto enfrenta na busca de uma
posse de si proacutepriordquo (URDANOZ 1975 vol V p 453)
Segundo MacIntyre esses modos de vida estatildeo fundamentados em conceitos
diferentes e ateacute mesmo rivais a escolha de um eacute a negaccedilatildeo do outro A questatildeo
fundamental na reflexatildeo que MacIntyre sugere a partir da leitura de Ou Ou eacute a de
que os princiacutepios que conduzem agrave adoccedilatildeo de algum dos modelos eacute totalmente
independente de motivos satildeo opccedilotildees feitas a partir de razatildeo nenhuma Esta opccedilatildeo
se refere apenas agrave escolha do que seja uma razatildeo para um determinado sujeito
Uma siacutentese das supracitadas teses pode ser realizado pela seguinte citaccedilatildeo
de MacIntyre
Assim como Hume procura fundamentar a moralidade nas paixotildees porque seus argumentos excluiacuteram a possibilidade de fundamentaacute-los nas paixotildees Kant fundamenta na razatildeo porque seus argumentos excluiacuteram a possibilidade de fundamentaacute-los nas paixotildees e Kierkegaard a fundamenta na escolha fundamental sem criteacuterios devido ao que acredita ser a natureza inapelaacutevel das ponderaccedilotildees que excluem tanto a razatildeo quanto as paixotildees (MACINTYRE 2001b p 95)
A siacutentese de MacIntyre de certo modo deixa clara a multiplicidade de apoios
para a sustentaccedilatildeo de discurso moral O pensamento moral moderno se mostra
40
marcado pela carecircncia de um ponto de apoio para a moralidade conforme conclui
MacIntyre A multiplicidade de pontos de apoio sinaliza a dificuldade em definir um
deles e o consequente desacordo Assim como na alegoria inicial de Depois da
Virtude em que aqueles que achavam que faziam ciecircncia apenas por repeticcedilatildeo dos
fragmentos de teoria e natildeo tinham ciecircncia de que natildeo estavam fazendo ciecircncia
alguma tambeacutem natildeo houve por parte dos modernos uma inconsciecircncia desse
desacordo
A ideia baacutesica de MacIntyre eacute a de que em relaccedilatildeo aos antigos e medievais
existe na modernidade uma perda da unidade fundamental no discurso moral Esta
perda da unidade eacute evidenciada pela multiplicidade de fundamentos Como jaacute natildeo
existe uma unidade do discurso moral tem-se na modernidade uma progressiva
passagem de uma Moral das Virtudes para uma moral que sobre valoriza a norma
uma deontologia A questatildeo que vai preocupar os filoacutesofos modernos no campo da
moralidade eacute o que fundamenta a norma E a pergunta em torno do fundamento da
norma tornar-se-aacute uma das questotildees mais relevantes da Eacutetica Moderna
33 O FRACASSO DO PROJETO ILUMINISTA
A questatildeo do fracasso do projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade
natildeo se deu exclusivamente em virtude da diversidade de opiniotildees sobre qual seria
afinal o fundamento primeiro da moralidade se nas paixotildees na razatildeo ou na escolha
A opiniatildeo de MacIntyre eacute que os modernos representados aqui por Hume Kant e
Kierkegaard foram herdeiros de um esquema especiacutefico e particular de crenccedilas
morais e foi este mesmo esquema que com uma incoerecircncia interna conduziu ao
fracasso do projeto filosoacutefico em comum desde o iniacutecio (cf MACINTYRE 2001b p 97)
Em consonacircncia com a tese do MacIntyre cabe explicitar em que consiste esta
incoerecircncia que conduziu ao fracasso do projeto iluminista de justificaccedilatildeo da
moralidade Essa eacute a tarefa desta segunda parte deste capiacutetulo
41
331 O passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana
O meacutetodo seguido por MacIntyre parte da anaacutelise das crenccedilas comuns dos
pensadores que contribuiacuteram para a construccedilatildeo do projeto iluminista de justificaccedilatildeo
da moralidade Ele exemplifica que ldquoo casamento e a famiacutelia satildeo no fundo tatildeo
incontroversos para o philosophe racionalista de Diderot quanto para o juiz Guilherme
de Kierkegaard o cumprimento de promessas e a justiccedila satildeo tatildeo inviolaacuteveis para
Hume quanto para Kantrdquo (MACINTYRE 2001b p 98) Ao final MacIntyre indaga sobre
de onde provecircm essas convicccedilotildees em comum mesmo vindas de pensadores que
defenderam teses distintas Duas caracteriacutesticas relevantes satildeo compartilhadas por
estes pensadores a saber o passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana
O segundo ponto de convergecircncia que eacute a crenccedila da existecircncia de uma
natureza humana universal seria ponto de apoio agrave construccedilatildeo de uma filosofia moral
A posiccedilatildeo comum eacute que as normas da moralidade se justificariam na natureza
humana isto eacute elas seriam explicadas e justificadas como desenvolvimento
necessaacuterio do que essa tal natureza humana aceitaria No exemplo de Hume e
Diderot o que haacute de peculiar na natureza humana satildeo as caracteriacutesticas das paixotildees
para Kant a caracteriacutestica importante da subjetividade eacute o caraacuteter universal e
categoacuterico de certas normas acessiacuteveis agrave razatildeo17 no caso de Kierkegaard embora
ela natildeo pretenda estritamente justificar a moralidade sua argumentaccedilatildeo segue a
mesma estrutura das anteriores enquanto Hume e Kant apelam para as
caracteriacutesticas das paixotildees e da razatildeo respectivamente Kierkegaard apela para a
escolha como caracteriacutestica fundamental da natureza humana MacIntyre finaliza
esclarecendo que ldquotodos esses escritores tecircm em comum o projeto de construir
argumentos vaacutelidos que passem das premissas relativas agrave natureza humana
conforme a entendem agraves conclusotildees sobre a autoridade das normas e dos preceitos
moraisrdquo (MACINTYRE 2001b p 99 )18
Haacute um questionamento que merece ser aqui considerado A argumentaccedilatildeo de
MacIntyre vinha sendo desenvolvida defendendo a tese de um desacordo no discurso
17A questatildeo sobre a noccedilatildeo de natureza humana em Kant natildeo eacute tatildeo simples de ser resolvida MacIntyre
acredita que em Kant a natureza humana se refere ao aspecto fisioloacutegico do homem e este aspecto por sua vez eacute distinto da racionalidade do sujeito Corrobora com a opiniatildeo de MacIntyre Otfried Houmlffe Segundo ele ldquode modo geral a razatildeo significa a faculdade de ultrapassar o acircmbito dos sentidos da natureza A ultrapassagem dos sentidos pelo conhecimento eacute o uso teoacuterico na accedilatildeo eacute o uso praacutetico da razatildeo Cf HOumlFFE 2005 p 188
18 O texto que a seguir acompanha passo a passo a argumentaccedilatildeo de MacIntyre
42
moral proveniente dos distintos pontos de apoio que cada pensador havia tomado A
pergunta eacute por que se falar em pontos de convergecircncia se o argumento principal do
autor se referia ao desacordo Para responder a questatildeo eacute necessaacuterio voltar a
alegoria inicial de Depois da Virtude Na alegria as pessoas se apropriavam de
pedaccedilos de teorias foacutermulas cientiacuteficas que no entanto natildeo possuiacuteam sentido algum
Em nada os ajuda uma vez que os fragmentos das teorias natildeo estavam inseridos em
seus contextos originais haviam perdido sua rede de significados No exemplo dos
exemplares filosoacuteficos apresentados por MacIntyre acontece a mesma coisa Eles
tecircm em comum a noccedilatildeo de natureza humana entretanto esta noccedilatildeo pertence a outro
esquema moral Desse modo MacIntyre conclui que a noccedilatildeo de natureza humana
sem sua rede de significados original natildeo pode ajudar na construccedilatildeo de um discurso
moral A questatildeo sobre a noccedilatildeo de natureza humana e sua relaccedilatildeo com as normas e
preceitos seraacute melhor desenvolvida a seguir
332 A incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a noccedilatildeo
de natureza humana na moral moderna
O cerne do processo que causou o fracasso do projeto iluminista estaacute ligado
segundo MacIntyre agrave incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a
noccedilatildeo de natureza humana A tarefa do pensador consiste agora em contar a histoacuteria
desses dois conceitos mostrar como eles satildeo incompatiacuteveis e estabelecer uma
relaccedilatildeo entre esta incompatibilidade e o fracasso
MacIntyre expotildee que existe uma forma geral do esquema moral que foi
ancestral dos conceitos em questatildeo Este esquema moral foi predominante na Idade
Meacutedia desde o seacuteculo XII e era composto de elementos da moral aristoteacutelica e de
caracteriacutesticas cristatildes da moral tomista A estrutura baacutesica deste esquema eacute a que
Aristoacuteteles apresentou na Eacutetica a Nicocircmacos O esquema aristoteacutelico distingue ldquoo
homem como ele eacuterdquo e o ldquohomem como poderia ser se realizasse sua natureza
essencialrdquo A proacutepria tarefa da eacutetica estaacute aiacute delimitada ela eacute o saber que habilita o
homem a compreender como se daacute a passagem de um estado para outro Potecircncia e
Ato essecircncia do homem e telos satildeo conceitos pressupostos para compreender este
esquema Os preceitos que recomendam tais virtudes e vetam determinados viacutecios
43
satildeo aqueles que proporcionam a passagem da verdadeira natureza para alcanccedilar o
verdadeiro fim
Existe pois uma co-relaccedilatildeo necessaacuteria entre ldquonatureza humana como eacuterdquo
preceitos e ldquonatureza humana como pode ser se realizar seu telosrdquo Cada um desses
trecircs elementos necessita dos outros dois isto eacute ldquoos nossos desejos e emoccedilotildees devem
ser organizados e educados pelo uso de tais preceitos e pelo cultivo de haacutebitos de
accedilatildeo que a eacutetica prescreve a razatildeo nos instrui quanto ao nosso verdadeiro fim e
quanto a como atingi-lordquo (MACINTYRE 2001b p100) Estas noccedilotildees natildeo podem pois
ser adequadamente compreendidas senatildeo segundo esta relaccedilatildeo de
interdependecircncia Separadas elas perdem sua inteligibilidade
O pensamento medieval assume esse esquema com o diferencial de
acrescentar que os preceitos da eacutetica aleacutem de mandados teleoloacutegicos satildeo tambeacutem
expressotildees de uma lei divinamente decretada MacIntyre endossa que ldquoeacute preciso
retificar e ampliar a tabela das virtudes e viacutecios acrescentando-se o conceito de
pecado ao conceito aristoteacutelico de erro A lei de Deus exige um novo tipo de temor e
respeitordquo (MACINTYRE 2001b p100) Este mundo natildeo eacute mais o lugar da efetivaccedilatildeo
do fim do homem como era a polis grega no sentido que Aristoacuteteles pensou Grande
parte dos filoacutesofos medievais concordava que esse esquema tanto pertencia agrave
revelaccedilatildeo quanto podia ser sustentada racionalmente Com o advento do
protestantismo e do catolicismo jansenista este consenso eacute paulatinamente desfeito
dando lugar a um novo conceito de razatildeo
3321 O passado cristatildeo e o novo conceito de razatildeo
Uma ideia fundamental ao novo conceito de Razatildeo forjado no seio do
protestantismo e do catolicismo jansenista consiste na convicccedilatildeo de que a razatildeo natildeo
eacute capaz de compreender qual seja o verdadeiro fim do homem
O finito se aniquila na presenccedila do infinito e torna-se um puro nada Assim nosso espiacuterito em face de Deus assim nossa justiccedila em face da justiccedila divina Natildeo haacute uma desproporccedilatildeo tatildeo grande entre a nossa justiccedila e a de Deus como entre a unidade e o infinito (apud BRANDAtildeO 1961)
Essa atitude consiste num certo ceticismo em relaccedilatildeo agrave capacidade de a razatildeo
alcanccedilar a certeza de que a constituiccedilatildeo do homem comporta alguma finalidade
44
MacIntyre afirma que o pensamento moderno de tradiccedilatildeo protestante lecirc as escrituras
entendendo que o episoacutedio da queda do homem significou a marca de debilidade da
razatildeo humana sendo ela destituiacuteda do poder de compreensatildeo do fim do homem A
criacutetica dos empiristas ratifica essa compreensatildeo Atraveacutes do empirismo moderno
tambeacutem se pode vislumbrar o ponto de vista de que nos limites da natureza acessiacutevel
ao homem natildeo se pode garantir o conhecimento de nenhum telos isto eacute aquilo que
a razatildeo estabelece como telos eacute fruto apenas de um costume ou haacutebito um ato
psicoloacutegico sem fundamento na experiecircncia Conforme Hume
O costume eacute pois o grande guia da vida humana Eacute o uacutenico princiacutepio que torna uacutetil nossa experiecircncia e nos faz esperar no futuro uma seacuterie de eventos semelhantes agravequeles que apareceram no passado Sem a influecircncia do costume ignorariacuteamos completamente toda questatildeo de fato que estaacute fora do alcance dos dados imediatos da memoacuteria e dos sentidos Nunca poderiacuteamos saber como ajustar os meios em funccedilatildeo dos fins nem como empregar nossas faculdades naturais para a produccedilatildeo de um efeito (HUME 1999 seccedilatildeo V p 63)
A partir da afirmaccedilatildeo de Hume pode-se afirmar que natildeo estaacute no domiacutenio da
razatildeo humana o conhecimento de nenhum telos Como desenrolar das ideias de
Hume compreende-se que uma possiacutevel idealizaccedilatildeo de um fim para a vida humana
seria apenas um estabelecimento habitual daquilo que se crecirc como fim O resultado
destas ideias eacute conforme MacIntyre uma rejeiccedilatildeo a qualquer noccedilatildeo teleoloacutegica da
natureza humana e a qualquer ideia do homem como ser que possui uma essecircncia
que defina seu verdadeiro fim ldquosegundo essas novas teologias protestantes e a
catoacutelico jansenista a razatildeo natildeo fornece nenhuma compreensatildeo genuiacutena do verdadeiro
fim do homemrdquo (MACINTYRE 2001b p 101) Assim sendo o ambiente social e cultural
dos modernos jaacute natildeo comporta a noccedilatildeo de Telos no plano moral
Mais uma vez mostra-se aqui a fragmentaccedilatildeo dos elementos fundamentais do
discurso moral anterior a modernidade Os pensadores em questatildeo conforme foi
apresentado assumiram a noccedilatildeo de natureza humana prescindindo poreacutem da
noccedilatildeo de Telos Eacute neste sentido que MacIntyre entende a fragmentaccedilatildeo que
provocaraacute o ulterior desacordo moral
3322 A ciecircncia e a filosofia do seacuteculo XVII
ldquoCiecircncia e poder do homem coincidem uma vez que sendo a causa ignorada
frustra-se o efeitordquo (BACON 1999 p 33 sect III) As palavras de Bacon ao iniciar o Novum
45
Organum traduzem bem o abandono que a modernidade procedeu em relaccedilatildeo agrave
terminologia da escolaacutestica e do aristotelismo em relaccedilatildeo agrave ciecircncia O homem que
natildeo conhece a causa natildeo pode ter pretensotildees de determinar efeitos O pensamento
sozinho natildeo eacute capaz de determinar os fins ou o telos mesmo partindo da observaccedilatildeo
das coisas A ciecircncia experimental fundamentada em Bacon afasta-se do aparato
conceitual da metafiacutesica claacutessica natildeo se fala mais sobre essecircncias e
consequentemente sobre efeitos Efeito eacute aqui compreendido como resultado das
possibilidades contidas na essecircncia de uma coisa Neste sentido determinar um efeito
eacute anaacutelogo a determinar um fim Conforme MacIntyre
A razatildeo natildeo compreende essecircncias ou transiccedilotildees da potecircncia ao ato esses conceitos pertencem ao desprezado esquema conceitual da escolaacutestica Aleacutem disso a ciecircncia anti-aristoteacutelica impotildee limites riacutegidos aos poderes da razatildeo A razatildeo eacute calculadora sabe avaliar verdades de fato e relaccedilotildees matemaacuteticas poreacutem nada mais No campo da praacutetica portanto soacute sabe falar de meios Precisa calar-se no tocante aos fins (MACINTYRE 2001b p 102)
MacIntyre completa afirmando que em relaccedilatildeo agraves teologias catoacutelica e
protestante em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave proacutepria Filosofia haacute um progressivo abandono
da crenccedila de que a razatildeo eacute capaz de determinar alguma finalidade
Kant por exemplo natildeo estabelece finalidade para o homem porque para ele
qualquer finalidade diferente do homem em si mesmo representa uma heteronomia
E por conseguinte natildeo serve como fundamento de um discurso aprioriacutestico pois a
felicidade eacute extriacutenseca e algo que traz consigo elementos sensiacuteveis Nos esquemas
claacutessicos de fundamentaccedilatildeo da moralidade a felicidade eacute o fim a que naturalmente
todo homem tende e eacute a partir dela que seratildeo definidos os caminhos pelos quais o
homem deve percorrer para alcanccedilaacute-la Assim sendo a perspectiva kantiana
representa o que tradicionalmente se define como uma moral deontoloacutegica porque
na impossibilidade de um discurso que inclua a felicidade soacute se pode falar em dever
3323 A incoerecircncia entre o posicionamento pela lsquofalecircnciarsquo da razatildeo e a decisatildeo
pela noccedilatildeo de natureza humana
MacIntyre tem consciecircncia de que haacute uma profunda incoerecircncia nas tentativas
de os modernos constituiacuterem uma filosofia moral fundamentados na noccedilatildeo de
natureza humana Para ele essa noccedilatildeo soacute podia ser adequadamente compreendida
46
e utilizada se inserida no esquema de uma moralidade teleoloacutegica Qual a utilidade
pois da noccedilatildeo de natureza humana para uma fundamentaccedilatildeo da moral se os
modernos haviam rejeitado agrave razatildeo a possibilidade de definir o fim do homem E mais
ainda de que serve a noccedilatildeo de natureza humana se a razatildeo natildeo consegue
compreender as possibilidades desta natureza MacIntyre vecirc neste posicionamento
uma contradiccedilatildeo Esta contradiccedilatildeo levou MacIntyre a defender que o projeto moderno
de justificaccedilatildeo da moralidade jaacute nasceu fracassado pois se constituiu a partir de um
esquema ldquoestilhaccediladordquo
Herdaram fragmentos incoerentes de um esquema de pensamentos e accedilotildees que um dia foi coerente e jaacute que natildeo reconheceram sua proacutepria situaccedilatildeo histoacuterica e cultural natildeo podiam reconhecer o caraacuteter impossiacutevel e quixotesco da tarefa que se auto-atribuiacuteram (MACINTYRE 2001b p 104 )19
A noccedilatildeo de natureza humana possuiacutea adequado na Eacutetica Teleoloacutegica Nela os
preceitos morais se ligam ao esquema teleoloacutegico geral de modo que no conjunto do
esquema eles satildeo necessaacuterios poreacutem secundaacuterios Jaacute num esquema de
justificaccedilatildeo que natildeo reconhece aos preceitos a funccedilatildeo de aprimoramento do homem
a fim de que ele passe de uma natureza humana dada para uma natureza humana
vislumbrada como telos isto eacute o homem como pode ser se realizar sua finalidade
soacute pode sobrevalorizar os preceitos seraacute pois uma moral deontoloacutegica No primeiro
tipo de moralidade os preceitos valem como condutores do homem agrave vida feliz Na
uacuteltima os preceitos valem em si mesmos traduzem as accedilotildees conforme e por dever
MacIntyre acrescenta agrave sua consideraccedilatildeo sobre o fracasso do projeto moderno
um argumento referente agrave funcionalidade dos conceitos particularmente ao conceito
de homem Para ele os argumentos morais da tradiccedilatildeo aristoteacutelica claacutessica e
medieval envolvem pelo menos um conceito funcional central que eacute o de homem
enquanto ser que tem uma natureza essencial e uma finalidade ou funccedilatildeo essencial
Assim sendo quando se fala em homem natildeo se pode perder as referecircncias de que o
conceito natildeo estaacute separado das funccedilotildees que o homem realiza como membro de uma
famiacutelia como cidadatildeo soldado filoacutesofo servo de Deus A funccedilatildeo se relaciona com o
fim para o qual algo eacute feito MacIntyre conclui que homem se tornaraacute apenas um
conceito loacutegico a partir do momento em que passa a ser compreendido como
19Esta passagem remete claramente agrave metaacutefora inicial de Depois da Virtude no capiacutetulo Uma ideia
inquietante
47
indiviacuteduo antes e fora de todos os papeacuteis o que impossibilita a retirada de conclusotildees
valorativas e normativas a partir de premissas factuais Para o autor isto se deve agrave
falta de conexatildeo entre os preceitos morais e a noccedilatildeo de natureza humana aprimorada
O ponto de partida de Aristoacuteteles eacute relacionar homem e viver bem de modo que o
segundo estaacute implicado na razatildeo do primeiro
Na modernidade a tese de que natildeo satildeo vaacutelidos os argumentos que partem de
juiacutezos de fato para juiacutezos de valor isto eacute de um lsquoeacutersquo para um lsquodeversquo refere-se agrave perda
da compreensatildeo primordial que o conceito de homem tinha antes de ser arrancado
de sua rede de significados conforme exposto no paraacutegrafo anterior MacIntyre
conclui que esse posicionamento ganha forccedila em virtude da compreensatildeo insuficiente
e parcial que os modernos tinham do conceito de homem Ele denominou como ldquofalta
de consciecircncia histoacutericardquo que eacute comum desde a modernidade ateacute os tempos atuais
3324 Sobre a mudanccedila do significado dos juiacutezos morais
Dizer que algo eacute bom na Tradiccedilatildeo Aristoteacutelica significa dizer que este algo
realiza todas as funccedilotildees para as quais se destina ou seja realiza perfeitamente sua
finalidade ou funccedilatildeo especiacutefica Para MacIntyre dizer que algo eacute bom natildeo eacute apenas
expressatildeo de um juiacutezo de valor simplesmente emotivista mas significa a partir da
compreensatildeo de funccedilatildeo e de realizaccedilatildeo desta um juiacutezo de fato ldquoDizer que algo eacute
bom portanto tambeacutem eacute fazer uma declaraccedilatildeo factual Dizer que determinado ato eacute
justo ou certo eacute dizer que ele eacute o que um homem bom faria em tal situaccedilatildeo por
conseguinte esse tipo de declaraccedilatildeo tambeacutem eacute factualrdquo (MACINTYRE 2001b p 111)
Assim a partir desta tradiccedilatildeo pode-se falar em juiacutezos morais verdadeiros ou falsos
A questatildeo dos juiacutezos de valor a partir de juiacutezos de fato e sua impossibilidade
de se constituir deste modo tornou-se implausiacutevel quando na modernidade
lsquodesaparece da moralidade a ideia de funccedilotildees ou finalidades humanas essenciaisrsquo
Consequentemente abre-se um espaccedilo para a pertinecircncia das teses em torno da
invalidade de argumentos morais que partem de um lsquoeacutersquo para um lsquodeversquo Aleacutem disso
acrescenta Macintyre a laicizaccedilatildeo da moralidade operada pelo iluminismo pocircs em
questatildeo a veracidade dos juiacutezos morais como expressotildees da voluntas divinitatis
Mesmo em Kant que pensa os juiacutezos morais como expressatildeo de uma lei universal
48
natildeo haacute possibilidade de questionar os juiacutezos em termos de verdade ou falsidade eles
satildeo categoacutericos
As teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade segundo MacIntyre
proporcionaram um desacordo moral
Esta desordem proveacutem do proacuteprio poder cultural predominante de um jargatildeo no qual os fragmentos conceituais incompatiacuteveis de vaacuterias partes do nosso passado satildeo aplicados juntos em debates puacuteblicos e privados que satildeo notaacuteveis pelo caraacuteter insoluacutevel das controveacutersias neles envolvidas e pela clara arbitrariedade de cada participante do debate (MACINTYRE 2001b p 429)
Assim as reflexotildees operadas pelo autor conduzem a algumas proposiccedilotildees A
primeira delas eacute que o desacordo dos modernos sobre o lsquoalicercersquo desde onde
fundamentar a moral proporcionou um desacordo contemporacircneo e uma
fragmentaccedilatildeo do discurso sobre as accedilotildees Esta situaccedilatildeo original foi proporcionada por
um lsquoesquecimento histoacutericorsquo e pela histoacuteria social que formaram o ambiente filosoacutefico
de onde brotaram as principais teses de justificaccedilatildeo da moralidade O fracasso do
projeto deveu-se em grande parte a incompatibilidade entre a noccedilatildeo de natureza
humana e a de preceitos Acrescente-se a isto a nova compreensatildeo de racionalidade
e a perda do sentido de funcionalidade dos conceitos
Cumpre agora desenvolver o empreendimento de apresentar a teoria
macintyreana da moral O intuito de MacIntyre eacute oferecer atraveacutes de sua teoria um
pensamento eacutetico que devolva a inteligibilidade ao discurso moral a partir do conceito
de virtude enriquecido pelas noccedilotildees de Praacuteticas Unidade narrativa de uma vida
humana individual e o conceito de tradiccedilatildeo
49
4 O PROJETO DE DEPOIS DA VIRTUDE E A TEORIA MORAL DE MACINTYRE
A exposiccedilatildeo dos elementos fundamentos que orientam o estabelecimento da
Eacutetica das Virtudes mostrou-se necessaacuteria agrave compreensatildeo do cenaacuterio que compotildee a
Filosofia Moral Contemporacircnea Aleacutem disso pode-se ver a orientaccedilatildeo filosoacutefica que
marcou o pensamento de MacIntyre isto eacute os limites dos fundamentos que forjaram
a moral contemporacircnea e o modo como a Eacutetica das Virtudes se apresenta como uma
alternativa viaacutevel de inteligibilidade das accedilotildees
A obra Depois da Virtude foi publicada em 1981 e passou a fazer parte da
terceira via da filosofia moral de liacutengua inglesa Autores como Gertrude Anscombe
conforme apresentado no Cap I deste trabalho proporcionaram ao pensamento
contemporacircneo um renascimento ou recolocaccedilatildeo do pensamento moral de
Aristoacuteteles A proposta da obra de MacIntyre se alinha ao movimento de afirmaccedilatildeo do
pensamento aristoteacutelico como uma opccedilatildeo viaacutevel agrave moralidade contemporacircnea
A criacutetica de MacIntyre agraves teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade e
o modo como o pensamento contemporacircneo eacute herdeiro da incoerecircncia e do
lsquoesquecimentorsquo deste momento da filosofia moral se constituiu como preparaccedilatildeo agrave
apresentaccedilatildeo de sua proposta moral agrave filosofia moral contemporacircnea Aleacutem da ampla
criacutetica aos males percebidos da modernidade MacIntyre apresenta sugestotildees que
aleacutem de reforccedilarem a reabilitaccedilatildeo de uma Moral das Virtudes mostram como alguns
dos males podem ser corrigidos Esses dois elementos se constituem pois na tarefa
desta seccedilatildeo do trabalho
41 O ANTES DE DEPOIS DA VIRTUDE
Antes da publicaccedilatildeo de Depois da Virtude jaacute eacute possiacutevel encontrar em
MacIntyre sinais dos fundamentos que hatildeo de orientar seus principais
posicionamentos O texto Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica de 1966 apresenta sinais
do movimento de criacutetica agrave Filosofia Moral Moderna Naturalmente a partir do ano de
publicaccedilatildeo desta obra vecirc-se que ela eacute imediatamente posterior ao Modern Moral
Philosophy de Gertrude de 1958 cujas teses fundamentais jaacute foram expostas no
primeiro capiacutetulo deste trabalho
50
Algumas das teses presentes em Depois da Virtude jaacute encontram sua forma
embrionaacuteria em Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica a saber o anseio de refutar a tese
de que natildeo se podem retirar proposiccedilotildees normativas de proposiccedilotildees factuais isto eacute
o dever ser do ser uma desarticulaccedilatildeo no discurso moral a crenccedila de que os
conceitos morais natildeo deveriam ser formulados na crenccedila de sua intemporalidade
desarticulados das sociedades que os proporcionaram e o potencial lsquodestrutivorsquo do
emotivismo
411 Vida social e conceitos morais
O primeiro capiacutetulo intitulado A importacircncia filosoacutefica da histoacuteria da eacutetica
chama a atenccedilatildeo para o costume recorrente de dar uma importacircncia secundaacuteria agrave
histoacuteria da eacutetica Esta pouca importacircncia ao tema decorre de uma crenccedila comum de
que o aparato conceitual da eacutetica pode ser compreendido prescindindo de sua
histoacuteria Contudo agrave medida que a vida social muda mudam tambeacutem os conceitos Os
conceitos morais segundo MacIntyre ganham sua inteligibilidade quando as regras
que governam o seu uso satildeo apreendidas Sua apreensatildeo se daacute a partir das distintas
formas de vida social e estas proporcionam os diferentes papeis para que sejam
representados por estes conceitos
Os conceitos morais na realidade mudam agrave medida que muda a vida social Deliberadamente natildeo digo lsquoporque muda a vida socialrsquo jaacute que isto poderia sugerir que a vida social eacute uma coisa e a moralidade eacute outra e que existe meramente uma relaccedilatildeo de causa externa e contingente entre elas Evidentemente que isto eacute falso Os conceitos morais satildeo encarnados em (e satildeo parcialmente constituiacutedos de) nas
formas de vida social (MACINTYRE 1988 p 11)20
MacIntyre percebe que a partir dos conceitos morais eacute possiacutevel compreender
as diferentes manifestaccedilotildees da vida social Seu entendimento eacute o de que os conceitos
morais estatildeo situados natildeo satildeo atemporais Vida social e conceitos morais natildeo podem
ser pensados separadamente John Horton e Susan Mendus em seu artigo Alasdair
MacIntyre After Virtue and After acrescentam que
20ldquoIn fact of course moral concepts change as social life changes I deliberately do not write ldquobecause
social life changesrdquo for this might suggest that social life is one thing morality another and that there is merely an external contingent causal relationship between them This is obviously false Moral concepts are embodied in and are partially constitutive of forms of social liferdquo Cf tambeacutem MACINTYRE 2005 p 01
51
entre as grandes contribuiccedilotildees de Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica MacIntyre rejeitou explicitamente a crenccedila comum nos ciacuterculos filosoacuteficos da eacutepoca que os conceitos morais seriam uma intemporal limitada imutaacutevel determinada espeacutecie de conceitos que poderiam ser analisados e compreendidos aleacutem da sua histoacuteria (HORTON MENDUS 1994 p 2)21
Os conceitos morais soacute seratildeo adequadamente compreendidos se forem
estudados historicamente e contextualmente uma vez que satildeo incorporados como
partes constitutivas da vida social A importacircncia da histoacuteria e do contexto social para
a filosofia moral seraacute uma temaacutetica recorrente em toda a obra de MacIntyre
412 Fundamentaccedilatildeo das proposiccedilotildees normativas
O texto de Gertrude Anscombe jaacute traz uma referecircncia agrave criacutetica de Hume que
aponta a problemaacutetica de se retirarem proposiccedilotildees normativas do tipo deve a partir
de proposiccedilotildees factuais do tipo eacute ou seja a ideia eacute que o deve ser natildeo pode estar
fundamentado no ser Os autores desta tese natildeo vecircem como se construir uma eacutetica
de uma ontologia
As proposiccedilotildees deste tipo refletem em torno do significado das proposiccedilotildees
morais Na filosofia anglosaxocircnica a tentativa de formular proposiccedilotildees deontoloacutegicas
de proposiccedilotildees factuais ficou intitulada como falaacutecia naturalista MacIntyre aponta que
esta qualificaccedilatildeo foi dada pelos escritos de George Moore (cf MACINTYRE 2001b p
243) Em seu Principia Ethica George Moore explica o sentido do que ele chama de
falaacutecia naturalista Esta se refere agrave tentativa de identificar o bem ou bom como se
fosse o nome de uma de uma coisa natural O problema estaacute no fato de que quem
afirma que bom eacute uma propriedade simples e natildeo analisaacutevel tem diante de si o
incocircmodo de encontrar expressotildees que aplicam o termo bom sob acepccedilotildees muito
distintas como por exemplo este eacute um bom amigo ou este eacute um bom reloacutegio Com
efeito apenas o predicado bom da primeira sentenccedila eacute o que traz algum significado
moral
A questatildeo em torno do bom se relaciona agrave necessidade de compreender o
modo como o bem e as accedilotildees se relacionam Encontrar a conexatildeo entre um e outro
21ldquoMacIntyre explicity rejected the belief common in philosophical circles at the time that lsquomoral
concepts were timeless limited unchanging determinate species of concept (that) can be examined and understood apart from their historyrdquo
52
seria uma abertura para responder agraves duas perguntas dos Principia Ethica a saber
que tipo de coisas deve existir em virtude de si mesmas Que tipo de accedilotildees devemos
realizar (cf MOORE 2005 p 17) Isto de certo modo justificaria a relaccedilatildeo entre bem
e dever Mas como justificar esta relaccedilatildeo diante do caraacuteter enigmaacutetico da noccedilatildeo de
bem MacIntyre citando George Moore questiona
O bom entatildeo eacute um nome de uma propriedade simples e natildeo analisaacutevel Haacute pelo menos duas objeccedilotildees decisivas contra a doutrina que responde afirmativamente A primeira eacute que soacute podemos empregar inteligivelmente o nome de uma propriedade simples quando conhecemos um modelo exemplar dele por referecircncia ao qual podemos dar-nos conta se estaacute presente ou ausente em outros casos (MACINTYRE 2005 p 161 )22
O caraacuteter enigmaacutetico da noccedilatildeo bem assinalado por George Moore o faz propor
que para aplicaccedilatildeo da noccedilatildeo de bem ou o que eacute intrinsecamente bom o agente
simplesmente o reconhece O resumo da questatildeo eacute que natildeo eacute possiacutevel se ter o bem
como uma propriedade simples aplicaacutevel e que sirva de criteacuterio para verificar sua
presenccedila ou ausecircncia e em que medida esta noccedilatildeo foi aplicada Assim quando o
indiviacuteduo agente ele natildeo se faz uma relaccedilatildeo direta entre bem e dever simplesmente
age segundo seus proacuteprios sentimentos Esta afirmaccedilatildeo abre espaccedilo ao emotivismo
que se torna objeto de criacutetica em Depois da Virtude
413 O emotivismo
O MacIntyre de Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica ainda natildeo faz associaccedilatildeo entre
o emotivismo e o desacordo moral Segundo ele o emotivismo teria seu germe nas
reaccedilotildees contra o pensamento de George Moore Ora se natildeo eacute possiacutevel definir o bem
como uma propriedade simples legiacutetima as accedilotildees satildeo entatildeo expressotildees dos
proacuteprios sentimentos dos agentes Contudo aqui aparece um problema do qual o
proacuteprio George Moore vai ser o primeiro a apontar pois ldquoos juiacutezos morais natildeo podem
ser simples informaccedilotildees sobre os nossos sentimentos porque neste caso dois
homens que expressam juiacutezos aparentemente contraditoacuterios sobre uma questatildeo
moral natildeo estariam de fato em desacordordquo (MACINTYRE 1988 p247)
22ldquoIs good then the name of a simple unanalyzable property To the doctrine that it is there are at
least two conclusive objections The first is that we can only use the name of a simple property by reference to which we are acquainted with some standard example of the property by reference to which we are to recognize whether it is present or absent in other casesrdquo
53
Entre os representantes do emotivismo encontra-se Charles Leslie Stevenson
Sua obra O Significado Emotivo dos Termos Eacuteticos defende a ideia de que a funccedilatildeo
primaacuteria das expressotildees morais eacute dar uma nova direccedilatildeo agraves atitudes dos outros com o
objetivo de provocar a adesatildeo o que seria segundo Stevenson uma funccedilatildeo dinacircmica
dessas expressotildees As expressotildees morais possuem esta funccedilatildeo dinacircmica porque
satildeo emotivas O seu significado corresponde agrave tendecircncia desta palavra construiacuteda
atraveacutes da histoacuteria de seu modo de uso a produzir respostas afetivas nas pessoas (cf
MACINTYRE 1988 p 248)
Em relaccedilatildeo ao significado dos termos morais Charles Stevenson propotildee dois
modelos nos quais ambos enfatizam o caraacuteter emotivo desses termos No primeiro
modelo o autor defende que proposiccedilotildees do tipo isto eacute bom satildeo equivalentes a Eu
gosto disto entatildeo faz o mesmo Jaacute o segundo modelo se ocupa de expressotildees que
encarnam o que Stevenson denomina de expressotildees persuasivas que possuem um
significado descritivo e associam a este um significado emotivo Assim sendo duas
pessoas podem associar agrave noccedilatildeo de Justiccedila diferentes significados descritivos em
virtude do elemento emotivo presente na experiecircncia individual com esta palavra
Alguns desdobramentos da tese de Charles Stevenson podem ser expressos
aqui o primeiro eacute que termos valorativos natildeo podem receber descriccedilatildeo completa pela
multiplicidade de significados Assim os fatos se apresentam como separados dos
valores em seguida o caraacuteter emotivo das expressotildees morais impossibilita de
construir uma teoria na qual os diversos agentes se sintam implicados porque
quaisquer proposiccedilotildees satildeo vaacutelidas Neste sentido conclui MacIntyre a Filosofia nos
assuntos ligados agrave moral seria neutra como tambeacutem a proacutepria teoria de Stevenson
uma vez que se podem utilizar palavras emotivas para lsquoabenccediloarrsquo quaisquer accedilotildees (cf
MACINTYRE 1988 p 248)
Aqui se encontra a razatildeo do desacordo valorativo uma vez que ldquonatildeo haacute limite
para as possibilidades de desacordo e conforme delineado acima nem
procedimentos que possam resolvecirc-losrdquo (MACINTYRE 1988 p 249) As razotildees que se
podem mencionar para fundamentar um juiacutezo moral natildeo possuem nenhuma relaccedilatildeo
loacutegica com a conclusatildeo que se pode derivar dela Os juiacutezos satildeo por assim dizer
apenas apoios psicoloacutegicos No discurso moral os termos lsquoporquersquo e lsquoportantorsquo perdem
sua conveniecircncia
54
Embora MacIntyre jaacute na Pequena Historia da Eacutetica apresente argumentos
contra o emotivismo interessa apresentar aqui como o emotivismo quase quinze
anos antes de Depois da Virtude jaacute se constitui numa das preocupaccedilotildees mais
relevantes do autor
Nas obras anteriores a Depois da Virtude se apresentava um certo ceticismo
sobre alguns aspectos do pensamento moral moderno entretanto eacute soacute com Depois
da Virtude que MacIntyre revela um profundo desencantamento com a filosofia moral
moderna Este desencantamento eacute tatildeo marcante que chega ateacute a obscurecer a
proposta moral de MacIntyre e objetivo fundamental da obra que eacute a proposiccedilatildeo da
Eacutetica das Virtudes via pensamento Aristoteacutelico a fim de resgatar a inteligibilidade do
discurso moral ultrapassando assim uma moralidade emotivista
42 A OBRA DEPOIS DA VIRTUDE
A apresentaccedilatildeo da fragmentaccedilatildeo do discurso moral contemporacircneo com a
falecircncia do projeto moderno de sua justificaccedilatildeo e a tentativa de restauraccedilatildeo da
racionalidade do discurso moral constituem as duas tarefas de Depois da Virtude Em
relaccedilatildeo ao projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade MacIntyre defende que o
seu fracasso se deu em virtude de as tentativas de fundamentaccedilatildeo da moralidade
partirem de uma concepccedilatildeo de racionalidade independente da histoacuteria e contexto
social Aleacutem disso todas as teses apesar de tomarem por base uma certa noccedilatildeo de
natureza humana natildeo a articularam no esquema moral da qual esta noccedilatildeo fazia parte
A desordem do discurso moral que o mundo contemporacircneo experimenta eacute a
consequecircncia natildeo soacute da falecircncia do projeto moderno mas tambeacutem dos proacuteprios
caminhos que a modernidade trilhou Um aspecto problemaacutetico de Depois da Virtude
e que eacute objeto de criacuteticas das mais contundentes eacute que a teoria moral de MacIntyre
natildeo se apresenta com o mesmo vigor de sua criacutetica agrave modernidade O diagnoacutestico eacute
bom mas o remeacutedio natildeo parece tatildeo eficaz
A afirmaccedilatildeo proferida ilustra bem a grande dificuldade que o proacuteprio
pensamento contemporacircneo enfrenta Em geral os pensadores contemporacircneos
tomam a Tradiccedilatildeo com bastante propriedade isto eacute fazem um bom diagnoacutestico dos
principais problemas da Tradiccedilatildeo entretanto natildeo parecem assim tatildeo propositivos ou
suas soluccedilotildees natildeo se impotildee com a mesma forccedila de sua criacutetica
55
As criacuteticas ao projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade e os
encaminhamentos que proporcionaram a sua crise jaacute foram adequadamente
esclarecidos no Capiacutetulo II deste trabalho A proacutexima tarefa eacute justamente apresentar
a teoria de MacIntyre em Depois da Virtude e com isso resgatar a inteligibilidade do
discurso moral que se constitui como grande tarefa afirmativa desta obra de
MacIntyre
421 A natureza das virtudes tese central de Depois da Virtude
Os capiacutetulos XIV A natureza das virtudes e o XV As virtudes a unidade da
vida humana e o conceito de tradiccedilatildeo apresentam os elementos chave da tentativa de
MacIntyre em constituir uma teoria da moralidade No desenvolvimento de sua teoria
MacIntyre enfrenta a problemaacutetica das diferentes listas e concepccedilotildees de virtude Haacute
enorme diferenccedilas entre a concepccedilatildeo homeacuterica a aristoteacutelica e a neotestamentaacuteria
Eles nos oferecem listas diferentes e incompatiacuteveis das virtudes classificam em hierarquias diferentes e incompatiacuteveis Se incluiacutessemos autores ocidentais mais recentes a lista das diferenccedilas aumentaria ainda mais e se estendermos nossa pesquisa agrave cultura japonesa ou digamos ameriacutendia as diferenccedilas aumentariam ainda mais Seria faacutecil demais concluir que existem inuacutemeras concepccedilotildees rivais e alternativas das virtudes poreacutem mesmo dentro da tradiccedilatildeo que tracei natildeo existe uma concepccedilatildeo nuclear uacutenica (MACINTYRE 2007 p 181)23
Sem duacutevida haacute um nuacutemero surpreendente de diferenccedilas e incompatibilidades
entre as vaacuterias listas das vaacuterias tradiccedilotildees Somem-se a isso virtudes que eram
completamente desconhecidas como eacute o caso das virtudes da feacute esperanccedila e
caridade Elas eram completamente estranhas a Aristoacuteteles Contudo MacIntyre
percebe que mesmo havendo uma enorme diferenccedila entre a lista de virtudes do Novo
Testamento e de Aristoacuteteles elas possuem a mesma estrutura conceitual
Virtude eacute assim como para Aristoacuteteles uma qualidade cujo exerciacutecio leva agrave conquista do telos humano O bem para o homem eacute naturalmente um bem sobrenatural [no cristianismo]24 e natildeo soacute um
23ldquoThey offer us different and incompatible lists of the virtues they give a different rank order of
importance to different of the virtues and they have different and incompatible theory of the virtues If we extended our enquiry to Japanese say or American Indian cultures the differences would become greater still It would be all too easy to conclude that there are a number of rival and alternative conceptions of the virtues but even within the tradition which I have been delineating no single core conceptionrdquo
24Destaque nosso
56
bem natural pois o sobrenatural redime e completa a natureza (MACINTYRE 2007 p 184 )25
Uma segunda similaridade se daacute na relaccedilatildeo das virtudes como sendo um
meio para um fim que eacute a entrada do homem no Reino dos ceacuteus num futuro vindouro
Essa passagem se daacute na interioridade do homem assim como em Aristoacuteteles
MacIntyre salienta que este paralelismo entre o aristotelismo e o Novo Testamento eacute
realizado por Tomaacutes de Aquino e ldquouma caracteriacutestica fundamental desse paralelismo
eacute o modo como o conceito de vida boa para o homem antecede ao conceito de virtuderdquo
(MACINTYRE 2007 p 184) O autor ainda salienta que tanto em Aristoacuteteles quanto em
Tomaacutes o conceito de virtude eacute um conceito secundaacuterio
Haacute algo de cartesiano na atitude de MacIntyre ele potildee em duacutevida a
possibilidade de alcanccedilar um conceito central ou em suas palavras nuclear de
virtude o que possa proporcionar uma unidade conceitual agrave tradiccedilatildeo moral
fundamentada na Eacutetica das Virtudes Contudo foi analisando atentamente qual a
distinccedilatildeo entre as tradiccedilotildees e os diversos conceitos de virtudes que o autor visualizou
que o conceito de virtude era secundaacuterio O fato de ser secundaacuterio eacute um nuacutecleo
comum entre as tradiccedilotildees e isto o faz responder agrave pergunta o que pode tornar
inteligiacutevel o conceito de virtude
Eacute na resposta a esta pergunta que se torna claro o caraacuteter complexo histoacuterico e multifacetado do conceito central de virtude pois natildeo haacute menos de trecircs estaacutegios no desenvolvimento loacutegico do conceito que precisam ser identificados na ordem correta para que se possa entender o conceito principal de virtude e cada um desses estaacutegios tem seu proacuteprio contexto conceitual O primeiro estaacutegio requer uma explicaccedilatildeo contextualizadora do que chamei praacutetica o segundo uma explicaccedilatildeo do que jaacute caracterizei como ordem narrativa de uma vida humana singular e o terceiro uma explicaccedilatildeo muito mais completa do que a que elaborei ateacute agora do que constitui uma tradiccedilatildeo moral (MACINTYRE 2007 p 314-315 )26
Praacutetica Narrativa de uma Vida Humana Singular e Tradiccedilatildeo satildeo os elementos
da teoria moral macintyreana Esses estaacutegios obedecem a uma ordem temporal pois
25ldquoA virtue is as with Aristotle a quality the exercise of which leads to the achievement of the human
telos The good for man is of course a supernatural and not only a natural good bus supernature redeems and completes naturerdquo
26ldquoIt is in answering this question that the complex historical multi-layered character of the core concept of virtue becomes clear For there are no less than three stages in the logical development of the concept which have to be identified in order if the core conception virtue is to be understood and each of these stages has its own conceptual background The first stage requires a background account of what I have already characterized as the narrative order of a single human life and the third an account a good deal fuller than I have given up to now of what constitutes a moral traditionrdquo
57
o posterior pressupotildee o anterior mas natildeo o contraacuterio Assim como cada estaacutegio eacute
reinterpretado pelo posterior e oferece elementos essenciais agrave sua compreensatildeo
Deve-se pois passar a uma anaacutelise de cada um desses estaacutegios
422 O conceito de praacuteticas
Costumeiramente Aristoacuteteles fala da excelecircncia na atividade humana
referindo-se a algum tipo de praacutetica humana bem definida tocar flauta guerrear
pensar geometricamente Essas praacuteticas proporcionam a oportunidade de expressatildeo
das virtudes satildeo o campo onde elas se desenvolvem MacIntyre salienta que praacuteticas
natildeo tecircm o sentido usual nem tambeacutem satildeo a uacutenica base atraveacutes da qual as virtudes
satildeo exibidas Qual eacute pois o sentido de Praacutetica
Praacutetica eacute qualquer forma coerente e complexa de atividade humana cooperativa socialmente estabelecida por meio da qual os bens internos a essa forma de atividade satildeo realizados durante a tentativa de alcanccedilar os padrotildees de excelecircncia apropriados para tal forma de atividade e parcialmente dela definidores tendo como consequecircncia a ampliaccedilatildeo sistemaacutetica dos poderes humanos para alcanccedilar tal excelecircncia e dos conceitos humanos dos fins e dos bens envolvidos (MACINTYRE 2007 p 187)27
Parece natildeo haver escrito de eacutetica que natildeo traga exemplo Assim MacIntyre
apresenta o exemplo de uma crianccedila de sete anos que ele gostaria de ensinar xadrez
mas que ela natildeo estaacute imediatamente interessada no aprendizado do jogo Como toda
crianccedila gosta de doce ele o oferece a ela desde que ela jogue xadrez uma vez por
semana pois aiacute ela receberaacute 50 centavos em doces e se ela vencer vai receber mais
50 centavos em doces Desse modo a crianccedila estaacute motivada e joga para ganhar
Apenas os doces motivam proporcionam agrave crianccedila um bom motivo para jogar xadrez
Ela natildeo tem razatildeo para trapacear e estaacute cheia de motivos para trapacear contanto
que consiga fazecirc-lo com ecircxito Entretanto haveraacute um momento em que a crianccedila vai
encontrar nos bens especiacuteficos do xadrez na aquisiccedilatildeo de certa capacidade
especialiacutessima imaginaccedilatildeo estrateacutegica e intensidade competitiva Este seraacute um novo
conjunto de razotildees e razotildees agora existem natildeo apenas para vencer em determinada
27ldquoBy a lsquopraticersquo I am going to mean any coherent and complex form of socially established cooperative
human activity through which goods internal to that form form of activity are realized in the course of trying to achieve those standards of excellence which are appropriate to and partially definitive of that form of activity with the result that human powers to achieve excellence and human conceptions of the ends and goods involved are systematically extendedrdquo
58
ocasiatildeo mas para tentar destacar-se de todos os modos que o jogo de xadrez exigir
Caso a crianccedila trapaceie natildeo estaraacute derrotando o oponente mas a si mesma (cf
MACINTYRE 2007 p 188)
Os bens internos ligados a essa atividade satildeo realizados durante a tentativa
de alcanccedilar os padrotildees de excelecircncia apropriados a tal forma de atividade O sentido
de bem interno pode ser explicitado de duas maneiras haacute certa capacidade que
apenas o exerciacutecio dessa atividade pode proporcionar no caso do jogo de xadrez ou
de qualquer outro da mesma natureza eacute a capacidade especialiacutessima de jogaacute-lo a
outra maneira se refere ao fato de que esses bens soacute podem ser identificados e
reconhecidos pela experiecircncia em participar da atividade
Bens externos e internos ainda trazem outra caracteriacutestica relevante que
proporciona uma maior compreensatildeo e distinccedilatildeo Bens externos quando
conquistados satildeo sempre posse de algueacutem Aleacutem disso sua posse eacute limitada de
modo que eles natildeo estatildeo disponiacuteveis para todos sendo portanto objeto de disputa e
concorrecircncia Por outro lado bens internos embora sejam objeto de competiccedilatildeo sua
conquista se torna disponiacutevel a toda a comunidade envolvida na praacutetica Como pois
a noccedilatildeo de bens internos se relaciona com a noccedilatildeo de virtude A resposta a esta
questatildeo se apresenta na primeira definiccedilatildeo provisoacuteria de virtude que Macintyre
oferece ldquoa virtude eacute uma qualidade humana adquirida cuja posse e exerciacutecio costuma
nos capacitar a alcanccedilar aqueles bens internos agraves praacuteticas e cuja ausecircncia nos
impede para todos os efeitos de alcanccedilar tais bensrdquo (MACINTYRE 2007 p 191)28
A definiccedilatildeo provisoacuteria de virtude elucida sua funccedilatildeo na vida humana seu papel
eacute proporcionar ao ser humano o acesso aos bens internos agraves praacuteticas Sua ausecircncia
significa de certo modo a negaccedilatildeo do acesso a esses bens
Ao conceito macintyreano de praacuteticas sejam elas jogos artes ciecircncias
atitudes tambeacutem pertence o pressuposto de que os bens internos a essas praacuteticas soacute
podem ser adquiridos por meio da proacutepria subordinaccedilatildeo dentro da praacutetica no
relacionamento com outros praticantes Toda praacutetica neste caso requer certo tipo de
relacionamento entre os seus integrantes A funccedilatildeo das virtudes eacute apresentar-se como
uma referecircncia para definir o modo de relaccedilatildeo entre os integrantes da praacutetica Eacute
necessaacuteria a aceitaccedilatildeo dos componentes necessaacuterios que a praacutetica foi aos poucos
28ldquoA virtue is an acquired human quality the possession and exercise of which tends to enable us to
achieve those goods which are internal to practices and the lack of which effectively prevents us from achieving any such goodrdquo
59
estabelecendo como padratildeo interno de excelecircncia Diga-se isso principalmente da
justiccedila coragem e da sinceridade A natildeo aceitaccedilatildeo desses padrotildees eacute anaacuteloga a estar
disposto a trapacear assim como a crianccedila do exemplo acima Assim faz-se
necessaacuteria uma constante valorizaccedilatildeo das virtudes e de seu papel na aquisiccedilatildeo dos
bens internos
A relevacircncia da sinceridade da justiccedila e da coragem eacute realccedilada por MacIntyre
dado que essas virtudes definem o relacionamento entre os integrantes de uma
praacutetica
Acredito entatildeo que do ponto de vista desses tipos de relaccedilotildees sem os quais as praacuteticas natildeo se mantecircm a sinceridade a justiccedila e a coragem e talvez algumas outras satildeo excelecircncias genuiacutenas satildeo virtudes agrave luz das quais precisamos caracterizar a noacutes mesmos e aos outros seja qual for nossa perspectiva moral ou os coacutedigos especiacuteficos da nossa sociedade Esse reconhecimento de natildeo podermos escapar agrave definiccedilatildeo dos nossos relacionamentos segundo tais bens eacute perfeitamente compatiacutevel com o reconhecimento de que cada sociedade tem e tem tido coacutedigos diferentes de sinceridade justiccedila e coragem (MACINTYRE 2007 p 192)29
Embora os coacutedigos se apresentem como muito distintos eles apenas o satildeo
sob certos aspectos distintos das virtudes particularmente o que natildeo acontece
poreacutem eacute o florescimento das virtudes em comunidades que natildeo as valorizem As
virtudes satildeo fundamentais porque elas consolidam as praacuteticas e a aquisiccedilatildeo dos bens
relativos a elas
As praacuteticas no entanto natildeo devem ser confundidas com um conjunto de
capacidades teacutecnicas O que distingue o modo como os conceitos dos devidos bens
e fins aos quais as capacidades teacutecnicas servem eacute a aptidatildeo que uma capacidade
teacutecnica proporciona agrave transformaccedilatildeo e ao enriquecimento dos poderes humanos e da
consideraccedilatildeo por seus proacuteprios bens internos Estes por sua vez tambeacutem vatildeo definir
parcialmente cada praacutetica ou tipo de praacutetica
MacIntyre acrescenta que ldquoas praacuteticas nunca tecircm uma meta ou metas fixas
definitivamente ndash a pintura [por exemplo] natildeo tem tal meta nem a Fiacutesica ndash mas as
29ldquoI take it then that from the standpoint of those types of relationship without practices cannot be
sustained truthfulness justice and courage ndash and perhaps some others ndash are genuine excellences are virtues in the light of which we have to characterize ourselves and others whatever our private moral standpoint or our societyrsquos particular codes may be For this recognition that we cannot escape the definition of our relationshipsin terms of such goods is perfectly compatible with the acknowledgment that different societies have and have had different codes of truthfulness justice and couragerdquo
60
proacuteprias metas se transmutam ao longo da histoacuteriardquo (MACINTYRE 2007 p 193 )30 Eacute
pois em virtude da transmutaccedilatildeo das metas que as praacuteticas se modificam e
consequentemente cada praacutetica seraacute portadora de uma histoacuteria peculiar diferente da
histoacuteria do aprimoramento de uma determinada capacidade teacutecnica Esta eacute pois uma
dimensatildeo histoacuteria fundamental na relaccedilatildeo entre praacuteticas e virtudes
Praacuteticas virtudes bens internos e externos se relacionam pois da seguinte
maneira numa sociedade que natildeo valoriza as virtudes soacute poderia haver um
reconhecimento dos bens externos e em hipoacutetese alguma dos bens internos no
contexto das praacuteticas MacIntyre acrescenta ldquoque em qualquer sociedade que
reconhecesse somente os bens externos a concorrecircncia seria a caracteriacutestica
predominante e ateacute exclusivardquo (MACINTYRE 1988 p 196)31
Neste sentido eacute possiacutevel delinear uma relaccedilatildeo distinta entre as virtudes e os
bens externos e internos A posse das virtudes eacute necessaacuteria para se alcanccedilar os bens
internos entretanto esta mesma posse pode dificultar o acesso a bens externos pois
o cultivo de determinadas virtudes como a justiccedila a sinceridade e a coragem pode
muitas vezes impossibilitar o acesso agraves riquezas ao prestiacutegio ao status Nesse
sentido talvez seja possiacutevel pensar que na verdade a riqueza o prestiacutegio e o status
sejam incompatiacuteveis com uma vida virtuosa
Desse modo no sentido empregado por MacIntyre as virtudes mesmo
proporcionando os bens internos agraves praacuteticas justificam-se independentes de seus
resultados pois embora elas sejam necessaacuterias agraves praacuteticas o acesso aos bens natildeo
se daacute de maneira uniacutevoca
423 Ordem narrativa de uma vida humana singular
O desenvolvimento da noccedilatildeo de ordem narrativa de uma vida humana singular
eacute uma resposta agrave questatildeo formulada no fim do capiacutetulo XIV de Depois da Virtude
Este elemento fundamental da teoria moral macintyreana aprofunda e enriquece o seu
conceito provisoacuterio de virtude explicitado no toacutepico acima A pergunta se esboccedila da
seguinte maneira
30ldquoPratices never have a goal or goals fixed for all time ndash painting has no such goal nor has physics ndash
but the goals themselves are transmuted by the history of the activityrdquo 31ldquoAnd in any society which recognized only external goods competitiveness would be the dominant and
even exclusive featurerdquo
61
seraacute racionalmente justificaacutevel conceber cada vida humana como uma unidade de modo que possamos tentar especificar cada uma dessas vidas como tendo o seu bem de modo que possamos entender as virtudes como tendo a funccedilatildeo de capacitar o indiviacuteduo a fazer de sua vida uma determinada espeacutecie de unidade e natildeo de outra (MACINTYRE 2007 p 203)32
O objetivo de MacIntyre neste ponto eacute oferecer uma compreensatildeo de cada
vida humana como um todo como uma unidade na qual o caraacuteter desta unidade
ofereccedila agraves virtudes um telos apropriado O primeiro passo que eacute o iniacutecio do Cap XV
de Depois da virtude eacute ultrapassar obstaacuteculos que contrariam a ideia de unidade da
vida humana o primeiro de natureza socioloacutegica e o segundo de natureza filosoacutefica
ou ainda da teoria socioloacutegica
O obstaacuteculo social agrave ideia de unidade da vida humana singular proveacutem da
maneira como a sociedade moderna passou a conceber a vida do indiviacuteduo sua vida
eacute pensada na forma de segmentos cada um com seu proacuteprio modus operandi nos
quais ldquoo trabalho eacute pensado separado de lazer a vida privada eacute afastada da vida
puacuteblica a vida empresarial eacute separada da vida pessoalrdquo (MACINTYRE 1988 p 204)33
Estas separaccedilotildees estatildeo articuladas de modo tal que a ideia de unidade da vida do
indiviacuteduo lhe eacute completamente estranha
Os obstaacuteculos filosoacuteficos se referem agrave ideia de que a vida humana eacute articulada
como uma sequecircncia de atos e episoacutedios individuais Numa concepccedilatildeo existencialista
por exemplo a vida humana se torna natildeo visualizaacutevel dado que indiviacuteduo estaacute
constantemente a desempenhar papeis que natildeo dizem respeito a ele imediatamente
MacIntyre toma o Sartre da Naacuteusea a fim de apresentar a seguinte tese
a narrativa eacute bem diferente da vida e que apresentar a vida humana em forma de narrativa eacute sempre deturpaacute-la De acordo com este pensamento conclui MacIntyre natildeo existiriam narrativas verdadeiras e a vida humana consistiria em accedilotildees que natildeo conduzem a lugar nenhum (MACINTYRE 2001b p 360)
Esta concepccedilatildeo existencialista de um eu separado de seus papeis
impossibilitaria o espaccedilo social de desenvolvimento das virtudes A criacutetica de
MacIntyre a tese de Sartre eacute a de para afirmar que nenhuma narrativa eacute possiacutevel
Sartre se utiliza de uma narrativa aleacutem disso MacIntyre afirma tambeacutem se poderia
32ldquois it rationally justifiable to conceive of each human life as a unity so that we may try to specify each
such life as having their function in enabling an individual to make of his or her life one kind of unity rather than anotherrdquo
33 ldquowork is divided from leisure private life from public the corporate from the personalrdquo
62
questionar a Sartre como seriam os atos humanos destituiacutedos de qualquer narrativa
mesmo que deturpadora A resposta agrave pergunta eacute o silecircncio completa o autor
Para o desenvolvimento das virtudes eacute fundamental compreender a vida
humana individual como uma unidade Aleacutem disso ldquoa unidade de virtude na vida de
algueacutem soacute se torna inteligiacutevel como caracteriacutestica de uma vida unitaacuteria uma vida que
se possa compreender e se avaliar na iacutentegrardquo (MACINTYRE 2007 p 205 )34 Como as
abordagens anteriores que representam uma antiacutetese agrave noccedilatildeo da vida humana
individual como uma unidade satildeo heranccedila da proacutepria concepccedilatildeo moderna sobre
homem e o seu ser-no-mundo faz-se necessaacuteria a exposiccedilatildeo do ldquoconceito de um eu
cuja unidade reside na unidade de uma narrativa que une o nascimento agrave vida e agrave
morte em forma de uma narrativa com comeccedilo meio e fimrdquo (MACINTYRE 2007 p
205)35
O conceito de eu como uma unidade narrativa vai dar a Macintyre a
oportunidade de passar para o segundo momento do seu conceito virtude que natildeo se
limita exclusivamente agraves praacuteticas O Prof Helder de Carvalho comenta sobre a
problemaacutetica de limitar o conceito de virtude ao conceito de praacuteticas
Se restringirmos a definiccedilatildeo do conceito de virtude ao acircmbito das praacuteticas fatalmente chegaremos a uma situaccedilatildeo em que a possibilidade do conflito traacutegico se efetiva uma situaccedilatildeo em que as pretensotildees de uma praacutetica podem ser incompatiacuteveis com as de outras ambas apontando para direccedilotildees diferentes de tal forma que podemos nos ver oscilando de um modo arbitraacuterio entre uma posiccedilatildeo e outra sem conseguirmos constituir propriamente uma escolha racional (CARVALHO 2001 p 14)
A superaccedilatildeo do elemento arbitraacuterio da vida moral e a consistecircncia do
conceito de virtude satildeo proporcionadas pelo conceito de unidade narrativa de uma
vida humana individual pensada integralmente A accedilatildeo humana deve pois ser
articulada por um tipo de narrativa histoacuterica que seja ldquoo gecircnero fundamental e
essencial para a caracterizaccedilatildeo das accedilotildees humanasrdquo (MACINTYRE 2007 p 208 )36 A
perspectiva narrativa garante que os diversos episoacutedios da vida de uma pessoa
ganhem lugar e sentido por que natildeo dizer inteligibilidade Com efeito essa unidade
34ldquoAnd the unity of a virtue in someonersquos life is intelligible only as a characteristc of a unitary life a life
that can be conceived and evaluated as a wholerdquo 35ldquoa concept of a self whose unity resides in the unity of a narrative which links birth to life to death as
narrative beginning to middle to endrdquo 36ldquonarrative history of a certain kind turns out to be basic and essential genre for the characterization of
human actionsrdquo
63
somente eacute possiacutevel porque segundo MacIntyre as accedilotildees estatildeo articuladas atraveacutes
de uma perspectiva histoacuterica Uma vida humana singular pode ser compreendida na
forma de uma narrativa e consequentemente a ela tambeacutem proporciona a
compreensatildeo da vida e da accedilatildeo dos outros
Eacute porque todos vivenciamos narrativas nas nossas vidas e porque entendemos nossa proacutepria vida nos termos das narrativas que vivenciamos que a forma de narrativa eacute adequada para se entender os atos de outras pessoas (MACINTYRE 1988 p 212)37
A Narrativa natildeo deve tambeacutem ser pensada exclusivamente de modo singular
pois as diversas narrativas se intercomunicam estatildeo relacionadas umas agraves outras
Prof Helder de Carvalho salienta que a ldquovida individual para MacIntyre consiste na
unidade de uma narrativa encarnada numa vida singular que na forma de atos e
palavras tenta responder sistematicamente agraves questotildees acerca do que eacute bom para o
indiviacuteduo e do que eacute bom para o homemrdquo (CARVALHO 2001 p 15) Com a resposta a
essas duas questotildees a saber o que eacute bom para o indiviacuteduo e para o homem se tem
a unidade da vida moral tanto individualmente quanto para um grupo Aleacutem disso
enfatiza MacIntyre ldquoa formulaccedilatildeo sistemaacutetica dessas duas questotildees e a tentativa de
respondecirc-las tanto em atos quanto em palavras que proporcionam unidade agrave vida
moralrdquo (MACINTYRE 2007 p 218)38
A unidade da vida moral deve ser pensada como uma unidade de busca
narrativa Esse conceito medieval possui duas caracteriacutesticas fundamentais
primeiramente a busca soacute pode se iniciar se houver ao menos uma noccedilatildeo de telos
isto eacute deve-se ter ao menos uma noccedilatildeo do seja o bem para o homem Esta primeira
caracteriacutestica eacute alcanccedilada atraveacutes da resposta agravequelas questotildees ora mencionadas
A segunda eacute a noccedilatildeo de que a busca natildeo se refere a algo jaacute adequadamente
caracterizado pois eacute no decorrer da busca e somente no enfrentamento de inuacutemeras
vicissitudes que se pode intuir meta da busca A busca tem pois um caraacuteter
pedagoacutegico no aprendizado moral e no processo de conhecimento de si
A relaccedilatildeo entre unidade narrativa da vida e a noccedilatildeo de busca aperfeiccediloam a
noccedilatildeo macintyreana de virtude
37ldquoIt is because we all live out narratives in our lives and because we understand our own lives in terms
of the narratives that we live out that the form of narrative is appropriate for understanding the actions of othersrdquo
38ldquoit is the systematic asking of these two questions and the attempt to answer them in deed as well as in word which provide the moral life with its unityrdquo
64
As virtudes portanto devem ser compreendidas como as disposiccedilotildees que aleacutem de nos sustentar e capacitar para alcanccedilar os bens internos agraves praacuteticas tambeacutem nos sustentam no devido tipo de busca pelo bem capacitando-nos a superar os males os riscos as tentaccedilotildees e as tensotildees com que nos deparamos e que nos forneceratildeo um autoconhecimento cada vez maior (MACINTYRE 2007 p 219)39
O conjunto das virtudes iraacute dar conta natildeo apenas dos elementos comunitaacuterios
nos quais a busca pelo bem eacute dada em conjunto mas inclui agora virtudes
necessaacuterias agrave investigaccedilatildeo acerca do caraacuteter do bem que se almeja MacIntyre
conclui afirmando que chegou a uma conclusatildeo provisoacuteria sobre a vida virtuosa para
o homem ldquoa vida virtuosa para o homem eacute a vida passada na procura da vida boa
para o homemrdquo (MACINTYRE 2007 p 219)40 Com efeito as virtudes que satildeo
necessaacuterias satildeo aquelas que mais proporcionarem esse entendimento Ademais elas
esclarecem em relaccedilatildeo aos bens natildeo apenas em relaccedilatildeo agraves praacuteticas mas tambeacutem agrave
vida individual proporcionada por uma unidade narrativa que rompe com a noccedilatildeo de
vida e tempo segmentados
424 Tradiccedilatildeo
O conceito de tradiccedilatildeo apresenta sua relevacircncia a partir da consciecircncia de
uma identidade individual que natildeo pode ser concebida arrancada da rede de
significados e dos contextos na histoacuteria das comunidades que forjaram esta mesma
identidade Deve-se pois pensar que eacute necessaacuteria ao indiviacuteduo a posse de uma
identidade histoacuterica Busca-se a identidade moral no interior da famiacutelia do bairro da
cidade sem natildeo entanto se estar obrigados a assumir o que Macintyre intitula de
limitaccedilotildees morais dessas particulares formas histoacutericas de comunidade O ponto de
partida da busca pela identidade histoacuterica eacute justamente as particularidades Iniciando
pelas particularidades busca-se o bem o universal
A identidade eacute em parte resultado daquilo que o indiviacuteduo herdou daqueles
que o precederam O presente de uma pessoa natildeo possui sentido independente das
39ldquoThe virtues therefore are to be understood as those dispositions which will not only sustain practices
and enable us to achieve the goods internal to practices but which will also sustain us in the relevant kind of quest for the good by enabling us to overcome the harms dangers temptations and distractions which we encounter and which will furnish us with increasing self-knowledge and increasing knowledge of the goodrdquo
40ldquothe good life for man is the life seeking are those which will enable us to understand what more and what else the good life for man isrdquo
65
marcas e influecircncia de um passado que natildeo eacute simplesmente aquilo que jaacute natildeo eacute
mas que manteacutem com o presente uma relaccedilatildeo na forma de um vigor de ter sido
Assim a pessoa se descobre como partiacutecipe de uma tradiccedilatildeo quer goste ou natildeo quer
reconheccedila ou natildeo Ao desenvolver o conceito de Praacuteticas MacIntyre afirmou que elas
sempre tecircm histoacuterias e o que elas satildeo dependem do modo como cada geraccedilatildeo a
compreende e a transmite
Neste sentido as virtudes sustentam relacionamentos necessaacuterios agraves praacuteticas
como tambeacutem sustentam a relaccedilatildeo com o passado pensado a partir do conceito de
tradiccedilatildeo Qual eacute pois o conceito macintyreano de tradiccedilatildeo Segundo MacIntyre ldquouma
tradiccedilatildeo viva eacute entatildeo uma argumentaccedilatildeo que se estende na histoacuteria e eacute socialmente
incorporada e eacute uma argumentaccedilatildeo em parte exatamente sobre os bens que
constituem tal tradiccedilatildeordquo (MACINTYRE 2007 p 222)41 A procura pelos bens no interior
de uma tradiccedilatildeo atravessa muitas vezes geraccedilotildees inteiras Assim sendo a procura
do bem individual natildeo acontece separada da tradiccedilatildeo mas eacute realizada sob as
circunstacircncias definidas pela tradiccedilatildeo da qual um indiviacuteduo eacute partiacutecipe Essa procura
se daacute em relaccedilatildeo aos bens internos agraves praacuteticas e tambeacutem aos bens de uma uacutenica
vida Isto significa que ldquohistoacuteria de uma praacutetica na nossa eacutepoca estaacute em geral e
caracteristicamente inserida na histoacuteria mais longa e ampla da tradiccedilatildeo e por meio
da qual a praacutetica se torna inteligiacutevel e chega assim agrave forma atual que nos foi
transmitidardquo (MACINTYRE 2007 p 222)42 A inteligibilidade da histoacuteria de cada pessoa
ganha seu sentido no interior da histoacuteria de cada tradiccedilatildeo
A sustentaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo sua conservaccedilatildeo e seu decliacutenio dependem do
exerciacutecio das virtudes que lhe satildeo correspondentes ou agrave falta dele Neste sentido as
virtudes tambeacutem servem como sustentaacuteculo para as tradiccedilotildees ou seja a permanecircncia
ou a extinccedilatildeo delas mantecircm relaccedilatildeo com o exerciacutecio das virtudes
A convicccedilatildeo de MacIntyre eacute a de que a falta de justiccedila sinceridade coragem
e de outras virtudes intelectuais correspondentes corrompem tradiccedilotildees mas tambeacutem
as praacuteticas que foram forjadas na proacutepria tradiccedilatildeo da qual elas (as praacuteticas) satildeo reflexo
(Cf MACINTYRE 2007 p 223) Haacute aqui a necessidade de se reconhecer a importacircncia
41ldquoA living tradition then is an historically extended socially embodied argument and an argument
precisely in part about the goods which constitute that traditionrdquo 42ldquothe history of a practice in our time is generally and characteristically embedded in and made
intelligible in terms of the larger and longer history of the tradition through which the practice in its present form was conveyed to usrdquo
66
das tradiccedilotildees das quais se faz parte no entendimento de suas possibilidades futuras
que o passado tornou disponiacutevel no presente
O uacuteltimo conceito da teoria moral de MacIntyre atraveacutes da noccedilatildeo de tradiccedilatildeo
complementa sua compreensatildeo do conceito de virtude A busca pelo bem do homem
natildeo tem sentido sem se considerar a tradiccedilatildeo que alimentou de experiecircncias
conceitos opiniotildees a identidade de uma pessoa Assim o autor compreende a moral
como uma relaccedilatildeo entre o eu o contexto social e a histoacuteria
Esta seccedilatildeo do trabalho explicitou o projeto de Depois da Virtude atraveacutes da
exposiccedilatildeo da segunda tarefa da obra que eacute formular uma teoria moral capaz de
resgatar a inteligibilidade do discurso moral Embora esta segunda tarefa aparente ter
sido ofuscada pelo grande descontentamento do autor em relaccedilatildeo agrave Filosofia Moral
Moderna o autor oferece uma alternativa agrave moral do dever ou uma moral utilitarista
Praacuteticas Unidade narrativa de uma vida humana individual e o conceito de Tradiccedilatildeo
compotildeem o conceito macintyreano de virtude e se constituem no nuacutecleo de sua teoria
moral
O proacuteximo passo eacute empreender uma anaacutelise agraves principais criacuteticas ao seu
pensamento e verificar um modo de como eacute possiacutevel defender a pertinecircncia de uma
Eacutetica das Virtudes dando continuidade a uma tarefa que o proacuteprio MacIntyre indicou
em sua obra apresentar como Tomaacutes de Aquino empreende uma reconciliaccedilatildeo entre
o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica como tambeacutem verificar de que modo o feito de
Tomaacutes ajuda a compreender a moral contemporacircnea
67
5 RECONCILIACcedilAtildeO ENTRE O PENSAMENTO CRISTAtildeO E O ARISTOTELISMO
A grandeza do pensamento de MacIntyre reside no esforccedilo que ele teve em
tentar estabelecer uma teoria moral ao modo de uma Eacutetica das Virtudes Entretanto
atraveacutes de seu proacuteprio testemunho vecirc-se que a suas consideraccedilotildees acerca do
pensamento de Tomaacutes de Aquino foram insuficientes ldquoPenso agora por exemplo que
a minha criacutetica anterior agraves teses de Santo Tomaacutes sobre a unidade das virtudes estava
simplesmente errada devido em parte a uma leitura equivocada do Aquinaterdquo
(MACINTYRE 2001a p 8) Assim sendo a segunda parte deste trabalho assume como
objetivo principal a apresentaccedilatildeo da Reconciliaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo Biacuteblica e o
Aristotelismo
A presente pesquisa jaacute sinalizou que embora MacIntyre seja devedor do
pensamento de Gertrude Anscombe eles possuem posicionamentos diferentes
acerca da antropologia Anscombe sugere que o ponto de partida estaacute numa
psicologia filosoacutefica enquanto que MacIntyre abre matildeo desta antropologia por
consideraacute-la uma lsquobiologia metafiacutesicarsquo cujo conceito de homem seria lsquoahistoacutericorsquo e
lsquoaculturalrsquo distanciando-se assim do meacutetodo histoacuterico por ele utilizado
Posteriormente MacIntyre volta atraacutes e assume a biologia aristoteacutelica no conceito de
homem Esta pesquisa compartilha com Anscombe a consciecircncia da necessidade de
uma psicologia filosoacutefica e segundo esta perspectiva daraacute continuidade agrave tarefa
indicada por MacIntyre
A ideia de uma reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo cristatilde inclui a
necessidade de uma retomada do pensamento de Aristoacuteteles Na dinacircmica entre atos
e virtudes Aristoacuteteles considera que as accedilotildees possuem certa precedecircncia sobre as
disposiccedilotildees Ele afirma na EN II 1-2 que ldquoeacute a partir dos atos repetidos em uma certa
direccedilatildeo que adquirimos as disposiccedilotildees correspondentesrdquo Os atos tambeacutem
prevalecem sobre a disposiccedilatildeo por maior que seja o haacutebito de um agente ele sempre
pode em relaccedilatildeo a cada accedilatildeo particularmente agir diferentemente Dessa maneira
sendo as virtudes um modo de disposiccedilatildeo da alma elas natildeo podem prescindir de uma
reflexatildeo sobre a teoria dos atos
Entre as objeccedilotildees que podem ser feitas agrave proposta moral de MacIntyre eacute que o
autor de certo modo potildee o conceito de virtude como conceito primordial
68
prescindindo assim de uma elaboraccedilatildeo teoacuterica que eacute anterior e condicionante ao
conceito de virtude que eacute uma teoria das accedilotildees A consideraccedilatildeo das virtudes a partir
de uma teoria das accedilotildees ao contraacuterio do que se poderia pensar natildeo representa um
retorno agrave centralidade das accedilotildees em detrimento da centralidade do agente o que seria
uma contradiccedilatildeo agrave criacutetica da moral deontoloacutegica
Embora o caraacuteter do agente seja crucial para Aristoacuteteles a sua relevacircncia para
o julgamento de uma accedilatildeo proveacutem do fato de que uma accedilatildeo eacute entendida de tal maneira
que inviabiliza um procedimento fundado em regras previamente estipuladas Essa
compreensatildeo segundo Marco Zingano eacute o que favorece a busca por um agente
moralmente bom quando devemos descobrir qual eacute a coisa certa para ser feita (cf
ZINGANO 2010 p 32) A questatildeo fundamental estaacute natildeo em afirmar que um ato
moralmente bom eacute o que deve ser feito por um agente que eacute igualmente bom mas
em reconhecer que um ato eacute bom porque corresponde agraves propriedades de evitar o
viacutecio seja na falta ou no excesso Tornar-se bom eacute a qualidade do agente que
frequentemente agiu desse modo Neste sentido eacute possiacutevel afirmar que o lugar
relevante das virtudes deve-se pois agrave certa teoria das accedilotildees
Afirmar que a centralidade das virtudes depende das accedilotildees natildeo desfaz a
importacircncia das virtudes mas agraves coloca numa posiccedilatildeo secundaacuteria em relaccedilatildeo agraves
accedilotildees Uma vez que elas derivam das accedilotildees eacute compreensiacutevel vecirc-las como efeito de
boas accedilotildees Desse modo eacute importante compreender que a eacutetica de Aristoacuteteles eacute uma
Eacutetica das Virtudes natildeo porque as virtudes sejam fundamento do bem agir mas porque
as virtudes estatildeo fundamentadas em accedilotildees das quais as virtudes sinalizam que satildeo
moralmente boas Assim sendo faz-se necessaacuteria uma exposiccedilatildeo da teoria
aristoteacutelica dos atos
A teoria dos atos exposta na EN proporciona a compreensatildeo dos
fundamentos de filosofia moral de Aristoacuteteles Segundo Henrique de Lima Vaz essa
filosofia traz consigo elementos cosmocecircntricos Por sua vez alguns desses
elementos seratildeo retomados por Tomaacutes de Aquino o qual realizaraacute um processo que
se denomina aqui de reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo e a filosofia de
Aristoacuteteles A exposiccedilatildeo dos pontos fundamentais desta reconciliaccedilatildeo se constitui na
tarefa mais fundamental deste trabalho O alcance deste objetivo se constitui
conforme se compreende aqui na continuidade da tarefa deixada em aberto por
MacIntyre em Depois da Virtude Esta tarefa eacute necessaacuteria uma vez que se pode
69
afirmar que muitos dos conceitos morais contemporacircneos possuem um conteuacutedo
semacircntico influenciado pelo pensamento cristatildeo Os conceitos a que esta pesquisa se
refere satildeo o de intenccedilatildeo consciecircncia obrigaccedilatildeo liberdade livre-arbiacutetrio e felicidade
Muitos destes conceitos ou natildeo foram aprofundados pelos gregos ou foram ateacute
desconhecidos deles
O posicionamento fundamental deste trabalho eacute o de que a exposiccedilatildeo do modo
como Tomaacutes de Aquino promove a retomada do pensamento aristoteacutelico na filosofia
moral compatibilizando-o com o pensamento cristatildeo garante de certa maneira uma
consciecircncia de que conceitos importantes da filosofia moral natildeo satildeo os mesmos se
essa leitura cristatilde natildeo for considerada
O elemento central desta compatibilizaccedilatildeo se encontra na siacutentese entre o
horizontalismo da moral aristoteacutelica e o verticalismo da Teologia Cristatilde Embora estes
dois conceitos ainda mereccedilam um melhor esclarecimento esta siacutentese se constitui
como princiacutepio que guia o problema tomista da Beatitude e do Fim uacuteltimo do homem
Aristoacuteteles seguindo a articulaccedilatildeo da Eacutetica Antiga tem a Eudaimonia como ideia
central da vida moral Tomando esta ideia sob a acepccedilatildeo de Beatitude Tomaacutes de
Aquino ultrapassa a ideia aristoteacutelica primitiva de Eudaimonia rompendo assim com
os cosmocentrismo da Eacutetica Antiga na qual a moral aristoteacutelica tambeacutem estava
inserida
O desenvolvimento deste capiacutetulo cumpre a seguinte orientaccedilatildeo
primeiramente analisar a teoria aristoteacutelica dos atos como tambeacutem a retomada e o
desenvolvimento tomista dos conceitos necessaacuterios agraves accedilotildees Em seguida discutir de
que maneira os elementos da teoria aristoteacutelica dos atos satildeo retomados e que
encaminhamentos eles tecircm com o pensamento cristatildeo Finalmente deve-se
desenvolver o modo como Tomaacutes de Aquino ultrapassa o cosmocentrismo da eacutetica
de Aristoacuteteles
51 AS VIRTUDES E A TEORIA ARISTOTEacuteLICA DOS ATOS ndash EN III 1-8
Foi afirmado que Aristoacuteteles assumia uma posiccedilatildeo de precedecircncia dos atos em
relaccedilatildeo agraves virtudes Para essa finalidade preferir-se-aacute o texto da EN em virtude de
seu peso na Tradiccedilatildeo pelo modo como a obra estaacute articulada e pela significaccedilatildeo que
70
a obra conquistou na histoacuteria da filosofia moral Esta seccedilatildeo se dedica a mostrar como
o estagirita desenvolve sua teoria dos atos cuja seccedilatildeo se situa no livro III 1-8
Aristoacuteteles inicia a seccedilatildeo da EN esclarecendo que a virtude diz respeito a
emoccedilotildees e accedilotildees e de que maneira os atos voluntaacuterios satildeo louvados ou censurados
ao passo que os involuntaacuterios satildeo objeto de perdatildeo e por vezes de piedade Em
seguida ele assinala a importacircncia de os estudiosos da virtude e os legisladores
definirem o voluntaacuterio e o involuntaacuterio (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III
1 1109 b30)
511 Do voluntaacuterio e do involuntaacuterio
A primeira questatildeo relevante acerca das accedilotildees eacute a compreensatildeo dos atos
voluntaacuterios e involuntaacuterios Existe uma voluntariedade em relaccedilatildeo a coisas exteriores
na forma de causas motoras quando estas de apresentam na forma de bem
Contrariamente o involuntaacuterio diz respeito aos moacutebeis externos quando estes se
apresentam de modo forccediloso ou por ignoracircncia ldquoParecem ser involuntaacuterias as accedilotildees
praticadas por forccedila ou por ignoracircncia Eacute forccediloso o ato cujo princiacutepio eacute exterior ao
agente princiacutepio para o qual o agente ou paciente em nada contribuirdquo (ARISTOacuteTELES
Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a1)43
Existem accedilotildees que se desenvolvem de uma maneira mista Aristoacuteteles chama
a atenccedilatildeo para accedilotildees realizadas por meio de males maiores e estas mesmo
indesejadas satildeo assumidas em virtude das circunstacircncias Assim ele diz dos
navegantes que para evitar o naufraacutegio se livram da carga Embora forccediladas estas
accedilotildees se assemelham agraves accedilotildees voluntaacuterias pois ldquosatildeo escolhidas no momento em que
satildeo praticadas e o fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeo Voluntaacuterio e involuntaacuterio
entatildeo devem ser ditos com referecircncia ao momento em que se pratica a accedilatildeordquo
(ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a10)44
Haacute um elemento curioso nesta uacuteltima afirmaccedilatildeo de Aristoacuteteles quando este diz
que o fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeo Corriqueiramente se diz que a finalidade
natildeo pertence agrave deliberaccedilatildeo do agente Talvez seja possiacutevel afirmar que existe uma
classe de fins que sejam abertos agrave eleiccedilatildeo do agente ou ainda que o fim de uma
43 ldquoβίαιον δὲ οὗ ἡ ἀρχὴ ἔξωθεν τοιαύτη οὖσα ἐν ᾗ μηδὲν συμβάλλεται ὁ πράττων ἢ ὁ πάσχωrdquo 44 ldquoκαὶ τὸ ἑκούσιον δὴ καὶ τὸ ἀκούσιον ὅτε πράττει (15) λεκτέονrdquo
71
accedilatildeo tenha certa dinamicidade pois ldquoo fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeordquo
(ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a10)45 Este foi o caso por
exemplo dos navegantes que antes tinham o objetivo de levar a carga mas diante
da tempestade livraram-se da carga a fim de salvar suas vidas Intimamente os
navegantes natildeo gostariam de se livrar da carga entretanto voluntariamente a
jogaram no mar
Deve-se afirmar tambeacutem que para ser involuntaacuteria natildeo eacute o bastante um ato
ser forccedilado mas se deve acrescentar que aleacutem de ser forccedilado um ato natildeo deve
possuir nenhuma contribuiccedilatildeo do agente como princiacutepio da accedilatildeo e mais ainda
provocarem dor e arrependimento (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1
1110 b20)46 Do involuntaacuterio forccedilado conclui-se que deve ser externo forccedilado e
penoso ao agente
Da accedilatildeo por ignoracircncia Aristoacuteteles estabelece distinccedilotildees na forma de natildeo-
voluntaacuterio e involuntaacuterio Todo ato feito por ignoracircncia eacute natildeo voluntaacuterio (cf
ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 2 1110 b20)47 mas somente merece o
nome de involuntaacuterio aquele ato que realizado por ignoracircncia causou o
arrependimento O agente que por ignoracircncia realizou uma accedilatildeo mas natildeo se
arrependeu merece que sua accedilatildeo seja chamada apenas de natildeo voluntaacuteria
Aristoacuteteles tambeacutem distingue o agir por ignoracircncia e o agir em estado de
ignoracircncia (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 2 1110 b25)48 O agir em
estado de ignoracircncia se refere ao caso de algueacutem que por alguma causa qualquer
que lhe tire da ciecircncia do ato a exemplo de um becircbado ou de um homem
encolerizado tornou-se ignorante do que estava a fazer Haacute tambeacutem exemplos de
homens que deliberadamente ignoram o que deveriam fazer Esse eacute o caso do
homem perverso que por ignorar o que deveria fazer merece ser chamado de injusto
ou de mau Eacute involuntaacuterio tambeacutem o ato de algueacutem que ignora natildeo deliberadamente
alguma das circunstacircncias particulares nas quais uma accedilatildeo se desenvolve Entre os
criteacuterios para que uma accedilatildeo por causa da ignoracircncia seja involuntaacuteria deve-se
acrescentar o sofrimento do agente e o seu arrependimento
45 ldquoτὸ δὲ τέλος τῆς πράξεως κατὰ τὸν καιρόν ἐστινrdquo 46 ldquoτοῦ δὴ κατὰ τὴν τοιαύτην ἄγνοιαν ἀκουσίου λεγομένου (20) ἔτι δεῖ τὴν πρᾶξιν λυπηρὰν εἶναι καὶ ἐν
μεταμελείᾳrdquo 47 ldquoτὸ δὲ δι᾽ ἄγνοιαν οὐχ ἑκούσιον μὲν ἅπαν ἐστίνrdquo 48 ldquoἕτερον δ᾽ (25) ἔοικε καὶ τὸ δι᾽ ἄγνοιαν πράττειν τοῦ ἀγνοοῦνταrdquo
72
Os atos forccedilados assim como os atos por ignoracircncia comportam igualmente
a caracteriacutestica de serem penosos ao agente contudo o ser penoso dos atos forccedilados
natildeo parece se identificar com o penoso dos atos por ignoracircncia Com efeito o penoso
dos atos forccedilados eacute um sofrimento infringido pela circunstacircncia enquanto o dos atos
por ignoracircncia eacute um sofrimento infringido pelo proacuteprio agente em virtude de seu
arrependimento Os atos voluntaacuterios satildeo aqueles cujo princiacutepio reside no agente que
conhece as circunstacircncias particulares nas quais ocorre a accedilatildeo (Cf ARISTOacuteTELES
Ethica Nicomachea 2010 III 3 1111 a25)49
512 A escolha deliberada
Mais apropriada agrave virtude e a discriminar o caraacuteter do que as accedilotildees Aristoacuteteles
entende que a escolha deliberada eacute por um lado voluntaacuteria e por outro involuntaacuteria
(Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 4 1111 b5)50 A ideia geral eacute a de que
a escolha deliberada eacute um modo mais especiacutefico do voluntaacuterio sendo este mais
abrangente do que ela O exemplo geral eacute o das crianccedilas que apesar de terem atos
voluntaacuterios natildeo possuem ainda escolha deliberada
A escolha deliberada diz respeito aos atos que estatildeo ao alcance do agente e
que concernem agravequilo que conduz ao fim O exemplo eacute o do desejo da sauacutede no qual
a escolha deliberada proporciona as coisas necessaacuterias agrave sauacutede (cf ARISTOacuteTELES
Ethica Nicomachea 2010 III 4 1111 b25 51 Assim esta escolha se refere agrave obtenccedilatildeo
do que se deve obter e agrave fuga do que se deve evitar Escolhe-se deliberadamente
quando se sabe que uma coisa eacute boa Deste modo ldquoa escolha deliberada eacute
acompanhada de pensamento e de reflexatildeordquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010
III 4 1112 a15)52
No paraacutegrafo V do livro III a conclusatildeo eacute a de que o objeto da escolha
deliberada eacute o objeto do desejo deliberado daquilo que estaacute em poder do agente A
escolha deliberada eacute o desejo deliberativo pois julgando em funccedilatildeo de ter deliberado
49 ldquoτὸ ἑκούσιον δόξειεν ἂν εἶναι οὗ ἡ ἀρχὴ ἐν αὐτῷ εἰδότι τὰ καθ᾽ ἕκαστα ἐν οἷς ἡ πρᾶξιςrdquo 50 ldquoἡ προαίρεσις δὴ ἑκούσιον μὲν φαίνεται οὐ ταὐτὸν δέ ἀλλ᾽ ἐπὶ πλέον τὸ ἑκούσιον τοῦ μὲν γὰρ
ἑκουσίου καὶ παῖδες καὶ τἆλλα ζῷα κοινωνεῖ προαιρέσεως δ᾽ οὔ καὶ τὰ ἐξαίφνης (10) ἑκούσια μὲν λέγομεν κατὰ προαίρεσιν δ᾽rdquo
51 ldquoἔτι δ᾽ ἡ μὲν βούλησις τοῦ τέλους ἐστὶ μᾶλλον ἡ δὲ προαίρεσις τῶν πρὸς τὸ τέλος οἷον ὑγιαίνειν βουλόμεθα προαιρούμεθα δὲ δι᾽ ὧν ὑγιανοῦμεν καὶ εὐδαιμονεῖν βουλόμεθα μὲν καὶ φαμέν προαιρούμεθα δὲ λέγειν οὐχ ἁρμόζει ὅλως (30) γὰρ ἔοικεν ἡ προαίρεσις περὶ τὰ ἐφ᾽ ἡμῖν εἶναιrdquo
52 ldquoἡ γὰρ προαίρεσις μετὰλόγου καὶ διανοίαςrdquo
73
deseja-se conforme o deliberado A deliberaccedilatildeo poreacutem refere-se apenas aos meios
que conduzem a um fim (Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 5 1112 b30)53
513 A definiccedilatildeo do objeto do querer
A reflexatildeo aristoteacutelica em torno do querer ou do desejo racional eacute um debate
latente entre as teses platocircnicas e sofistas que seraacute exposta a seguir Aleacutem disso
muito mais do que uma simples siacutentese entre esses dois posicionamentos Aristoacuteteles
inaugura uma perspectiva nova em torno da teoria das accedilotildees a saber a compreensatildeo
de que o bem aparente eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria ao bem embora natildeo lhe seja
suficiente (Cf ZINGANO 2010 p 193) A tese geral de Aristoacuteteles eacute a de que para uma
coisa ser tomada como fim deve ser tomada como tal pelo agente isto eacute no processo
de direcionamento em busca do bem a questatildeo fundamental eacute como o agente
percebe um determinado objeto O texto aristoteacutelico abre a discussatildeo em torno de se
o querer diz respeito ao fim
Foi dito que o querer concerne ao fim mas a uns parece concernir ao bem a outros ao bem aparente Aos que dizem que o objeto do querer eacute o bem decorre que natildeo eacute objeto do querer o que quer aquele que natildeo escolhe corretamente (pois se for objeto do querer seraacute entatildeo um bem era no entanto no caso um mal) por sua vez aos que dizem que o bem aparente eacute objeto do querer decorre que natildeo existe objeto do querer por natureza mas eacute objeto do querer o que parece bom a cada um (a pessoas diferentes coisas diferentes parecem boas mesmo no caso coisas contraacuterias) (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113 a15 )54
A referecircncia agrave filosofia platocircnica pode ser reconhecida pela proposiccedilatildeo de que
o bem eacute objeto do querer e que apenas este o bem poderia ser o seu objeto Note-
se que o termo original para fim eacute τέλους e que o querer βούλησις se direciona a este
fim porque ele eacute um bem enquanto tal τἀγαθοῦ O inconveniente desta tese para
Aristoacuteteles eacute o fato de que se apenas o bem eacute objeto do querer implica dizer que a
escolha errada tambeacutem seria um bem uma vez que de certo modo tambeacutem ela eacute
querida Assim sendo o fato de os agentes escolherem errado permite concluir que
53 ldquoοὐ γὰρ ἂν εἴη βουλευτὸν τὸ τέλος ἀλλὰ τὰ πρὸς τὰ τέλη οὐδὲ δὴ τὰ καθ᾽ ἕκασταrdquo 54 ldquoἡ δὲ βούλησις ὅτι μὲν τοῦ τέλους ἐστὶν εἴρηται δοκεῖ δὲ τοῖς μὲν τἀγαθοῦ εἶναι τοῖς δὲ τοῦ φαινομένου
ἀγαθοῦ [] συμβαίνει δὲ τοῖς μὲν [τὸ] βουλητὸν τἀγαθὸν λέγουσι μὴ εἶναι βουλητὸν ὃ βούλεται ὁ μὴ ὀρθῶς αἱρούμενος (εἰ γὰρ ἔσται βουλητόν καὶ ἀγαθόν ἦν δ᾽ εἰ οὕτως ἔτυχε κακόν) (20) τοῖς δ᾽ αὖ τὸ φαινόμενον ἀγαθὸν βουλητὸν λέγουσι μὴ εἶναι φύσει βουλητόν ἀλλ᾽ ἑκάστῳ τὸ δοκοῦν ἄλλο δ᾽ ἄλλῳ φαίνεται καὶ εἰ οὕτως ἔτυχε τἀναντίαrdquo
74
o τἀγαθοῦ unicamente natildeo pode ser o uacutenico objeto do querer a menos que se queira
considerar a escolha errada tambeacutem um bem
Jaacute a referecircncia agrave posiccedilatildeo sofista daacute-se em virtude da tese de que o bem eacute um
modo particular de sentir-se atraiacutedo por um objeto que dependendo da disposiccedilatildeo do
agente apresenta-se como bem O φαινομένου ἀγαθοῦ tambeacutem seria um moacutebil do
querer
Apoacutes as objeccedilotildees agraves teses tradicionais Aristoacuteteles comeccedila a expor sua tese
na forma de pergunta ldquose entatildeo estas posiccedilotildees natildeo satildeo satisfatoacuterias natildeo se deve
dizer que eacute objeto do querer sem mais e segundo a verdade o bem enquanto o que
aparece a cada um eacute o bem aparenterdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6
1113 a20)55 Aristoacuteteles entende que primeiramente tanto o homem virtuoso quanto
o de pouco valor desejam um objeto que lhes parece bom entretanto apenas o
virtuoso eacute capaz de querer um objeto verdadeiramente bom Sendo a virtude
consolidada pelo haacutebito o homem virtuoso eacute aquele que aprendeu em termos praacuteticos
a querer o bem Este bem eacute de maior relevacircncia do que um bem aparente φαινομένου
ἀγαθοῦ porque por causa do exerciacutecio das virtudes o homem virtuoso aprendeu a
distinguir o bem e o que apenas tem aparecircncia de bem Entretanto Aristoacuteteles daacute a
entender que o φαινομένου ἀγαθοῦ eacute primeiro a todos os homens na ordem do querer
ldquomas eacute o objeto do querer o que parece bom a cada umrdquo (ARISTOacuteTELES Ethica
Nicomachea 2010 III 6 1113 a20)56
Esta parece ser uma tese central de Aristoacuteteles certamente eacute bom o bem
enquanto tal entretanto eacute necessaacuterio que independente de ser um bem real uma
coisa apareccedila como um bem isto eacute seja tomada como tal pelo agente Esta eacute a
conclusatildeo do prof Marco Zingano sobre esta seccedilatildeo
Parecer um bem ou seja ser um φαινομένου ἀγαθοῦ natildeo eacute meramente uma aparecircncia de caraacuteter enganador como que o platonismo mas eacute principalmente a condiccedilatildeo loacutegica do bem humano isto eacute sua intencionalidade que pode secundariamente se revelar como uma crenccedila falsa um bem aparente no sentido platocircnico do termo (Cf ZINGANO 2010 p 193)
A questatildeo fundamental neste caso natildeo estaacute num caraacuteter pejorativo de uma
aparecircncia de bem que apetece ao querer mas no modo como o ser humano vai se
55 ldquoεἰ δὲ δὴ ταῦτα μὴ ἀρέσκει ἆρα φατέον ἁπλῶς μὲν καὶ κατ᾽ ἀλήθειαν βουλητὸν εἶναι τἀγαθόν ἑκάστῳ
δὲ τὸ φαινόμενονrdquo 56 ldquoτοῖς δ᾽ αὖ τὸ φαινόμενον ἀγαθὸν βουλητὸν λέγουσι μὴ εἶναι φύσει βουλητόνrdquo
75
relacionar com essa representaccedilatildeo Aristoacuteteles tem claro que sem a aparecircncia de
bem natildeo existe a apetecircncia pelo objeto mas ela natildeo dispensa o julgamento do ser
humano ldquoO homem virtuoso julga corretamente (κρίνειὀρθῶς) cada coisa e em cada
uma a verdade se manifesta a elerdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113
a30)57 Pelo julgamento correto κρίνειὀρθῶς o homem chega agrave visatildeo do verdadeiro
em cada coisa O homem virtuoso eacute pois natildeo apenas aquele que age frequentemente
bem mas o que toma posse das razotildees pelas quais age e as tem diante de si e isto
faz dele um homem prudente Se pela phroacutenesis a virtude intelectual eacute posta em
relevo no homem virtuoso suas disposiccedilotildees satildeo moralmente boas
O papel da phroacutenesisna restringe apenas agraves virtudes intelectuais Existe uma
relaccedilatildeo entre a phroacutenesise as virtudes morais assim como existe relaccedilatildeo entre a
phroacutenesise a empeiria Marcelo Perine esclarece este caraacuteter paradigmaacutetico da
phroacutenesis
Aristoacuteteles vai mostrar que phroacutenesis eacute um estado habitual cognitivo isto eacute racional e por isso eacute uma virtude intelectual que contudo pressupotildee seja um estado desiderativo portanto natildeo-racional seja um estado cognitivo natildeo-racional que eacute justamente a experiecircncia (PERINE 2006 p 28)
O objetivo da phroacutenesis satildeo bens humanos e estes satildeo alcanccedilados a medida
que podem estar em consonacircncia com a phroacutenesis Natildeo eacute a toa que o debate entre o
ato voluntaacuterio e o involuntaacuterio envolva aquilo que aparece como bem e o que necessita
de um posterior discernimento Assim nesse processo de desvelamento natildeo se
deixar de lado a importacircncia das intenccedilotildees
Aristoacuteteles natildeo parece citar o termo intencionalidade nas questotildees praacuteticas
mas ela parece estar latente nesta questatildeo da aparecircncia de bem Aristoacuteteles tem claro
que sem a aparecircncia de bem natildeo existe a apetecircncia pelo objeto mas ela natildeo
dispensa o julgamento do ser humano Pelo julgamento correto κρίνειὀρθῶς o
homem chega agrave visatildeo do verdadeiro em cada coisa
A aparecircncia de bem muito mais do que uma aparecircncia enganadora constitui-
se como modus cognoscendi preparatoacuterio e necessaacuterio ao julgamento correto e agrave
visatildeo da realidade da coisa em niacutevel praacutetico Assim ateacute mesmo as coisas que
posteriormente satildeo constatadas como boas tambeacutem requerem uma aparecircncia de
bem e no caso destas um bem real Assim o homem virtuoso eacute pois natildeo apenas
57 ldquoἕκαστα κρίνει ὀρθῶς καὶ ἐν ἑκάστοις τἀληθὲς αὐτῷ φαίνεταιrdquo
76
aquele que age frequentemente bem mas o que toma posse das razotildees pelas quais
age e as tem diante de si e isto faz dele um homem prudente Marco Zingano
acrescenta que
enquanto no homem prudente φρόνιμοςeacute ressaltado o papel da virtude intelectual que opera no interior das virtudes morais no homem virtuoso σπουδαίoς o que eacute posto em relevo eacute o fato de suas disposiccedilotildees serem virtuosas ou moralmente boas (ZINGANO 2010 p 197)
Neste sentido o domiacutenio da virtude pode ser delineado natildeo apenas pelo
homem prudente enquanto capaz de ponderar o que seria a virtude num determinado
caso mas tambeacutem pelo homem virtuoso que eacute capaz e age segundo esta virtude A
relaccedilatildeo entre bem e verdade para Aristoacuteteles inclui agora certo ordenamento
primeiramente aquilo que aparece como bem natildeo eacute necessariamente bom e por isto
mesmo necessita passar pelo julgamento do homem prudente φρόνιμος para em
seguida revelar-se como verdadeiramente boa ou natildeo
A partir do esclarecimento aristoteacutelico entre escolha deliberada e querer
esclarece-se qual o domiacutenio de cada um destes atos e consequentemente qual sua
relaccedilatildeo com as virtudes pertence ao querer ter o fim por objeto enquanto os meios
para alcanccedilaacute-lo dizem respeito agrave escolha deliberada Neste sentido compreende-se
que o fim eacute apenas reconhecido isto eacute natildeo se constitui como objeto de escolha O
acircmbito das escolhas satildeo os meios isto eacute as accedilotildees que dizem respeito a elas satildeo por
escolha delibera e voluntaacuterias Aristoacuteteles completa dizendo que ldquoas atividades das
virtudes envolvem estas coisasrdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 7 1113
b5) A conclusatildeo de Aristoacuteteles eacute a de que escolha deliberada relaciona-se diretamente
agraves virtudes uma vez que elas satildeo meio e sobre elas se pode deliberar Assim sendo
um entendimento adequado das virtudes requer a distinccedilatildeo entre a escolha deliberada
e os diversos outros atos humanos
Ao final do tratado dos atos Aristoacuteteles se posiciona acerca do que vem a ser
o engano no julgamento em relaccedilatildeo agraves accedilotildees ldquoagrave turba do engano parece engendrar-
se devido ao prazer pois natildeo sendo de fato um bem parece serrdquo (ARISTOacuteTELES
Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113 b1) Com isso talvez seja possiacutevel afirmar que
para Aristoacuteteles o prazer de certo modo natildeo contribui com o voluntaacuterio
Tomaacutes de Aquino adota uma postura distinta de Aristoacuteteles neste ponto preciso
Segundo ele o desejo sensiacutevel caminhando no mesmo sentido da vontade para um
77
certo bem contribui para aumentar o caraacuteter voluntaacuterio das accedilotildees ou seja a
sensibilidade formada pela virtude pode por vezes participar de uma accedilatildeo boa
Assim a conclusatildeo que Tomaacutes de Aquino propotildee eacute dizer que a causa do involuntaacuterio
natildeo estaacute necessariamente no desejo sensiacutevel embora ele possa eventualmente
obscurecer o juiacutezo
52 A SIacuteNTESE TOMISTA ATOS HUMANOS E FILOSOFIA MORAL
A tarefa a ser desenvolvida agora se refere agrave necessidade de desenvolver os
conceitos relevantes da teoria tomista dos atos e a partir deles aprofundar em que
medida Tomaacutes de Aquino opera uma siacutentese entre o pensamento grego e a Tradiccedilatildeo
Cristatilde Eacute impressionante como a alguns dos conceitos de Tomaacutes de Aquino encontram
traduzem bem o que Aristoacuteteles tratou em sua teoria dos atos
A distinccedilatildeo tomista entre o irasciacutevel e o concupisciacutevel corresponde a esta
observaccedilatildeo aristoteacutelica sobre o voluntaacuterio e o involuntaacuterio Pode-se afirmar que o
concupisciacutevel estaacute como moacutebil externo em relaccedilatildeo ao voluntaacuterio enquanto o irasciacutevel
estaacute como moacutebil externo em relaccedilatildeo ao involuntaacuterio Neste sentido eacute possiacutevel afirmar
que Tomaacutes de Aquino aprofunda o conceito aristoteacutelico de voluntaacuterio e involuntaacuterio
Qual o aprofundamento que Tomaacutes de Aquino promove Primeiramente uma
coisa apeteciacutevel nem sempre eacute da ordem da razatildeo como objeto proacuteprio pois eacute
possiacutevel haver um moacutebil apenas do apetite sensitivo ou concupisciacutevel Outro elemento
fundamental eacute que Tomaacutes compreende que o voluntaacuterio natildeo significa
necessariamente o livre pois a vontade pode natildeo seguir necessariamente agrave
iluminaccedilatildeo da inteligecircncia Neste caso a adesatildeo eacute fruto da eleiccedilatildeo do livre-arbiacutetrio
mas natildeo eacute necessariamente expressatildeo da liberdade enquanto tal
Tomaacutes tambeacutem aprofunda a ideia de intencionalidade que apenas de modo
latente podia-se encontrar na Eacutetica a Nicocircmacos Com efeito Tomaacutes de Aquino vai
retomar o problema da intencionalidade expressamente com este termo O autor
assume a posiccedilatildeo de que o bem que eacute objeto do querer ou da vontade natildeo precisa
necessariamente ser um bem na coisa mesma mas um bem apreendido Deste
modo o querer se move em direccedilatildeo a uma coisa que foi apreendida como um bem
Pode-se concluir portanto que o bem aparente seja uma condiccedilatildeo necessaacuteria
embora natildeo suficiente para se saber se alguma coisa eacute realmente boa A teoria tomista
78
dos atos segue aprofundando ou forjando novos conceitos que doravante faratildeo parte
da Eacutetica Ocidental Eacute em virtude desta influecircncia que a exposiccedilatildeo da teoria tomista
dos atos se justifica
521 Os atos humanos em Santo Tomaacutes de Aquino
O proacutelogo da Prima Secundae da Suma Teoloacutegica inicia com a afirmaccedilatildeo
de que eacute pelo livre-arbiacutetrio que o homem eacute imagem de Deus Eacute em virtude da posse
de seu agir isto eacute do poder agir por si mesmo que o homem se assemelha a Deus
O tema biacuteblico da semelhanccedila entre Deus e o homem eacute que vai orientar o estudo dos
atos humanos em Tomaacutes de Aquino O homem vai unir-se ao seu exemplar divino na
bem-aventuranccedila prometida E sendo esta o fim do homem o tema biacuteblico da
semelhanccedila pelo livre-arbiacutetrio e a noccedilatildeo de fim do homem promove atraveacutes de
Tomaacutes uma siacutentese entre o pensamento grego e o pensamento cristatildeo
O estudo dos atos humanos em Tomaacutes de Aquino engloba o tratado das
paixotildees com o objetivo de aprofundar de que maneira a sensibilidade pode contribuir
aos atos voluntaacuterios de modo que este estudo pode ser apresentado como um dos
mais profundos acerca do agir humano no plano moral Faz-se necessaacuterio pois uma
apresentaccedilatildeo do plano conjunto do trabalho de Tomaacutes de Aquino para
posteriormente refletir acerca das particularidades em relaccedilatildeo agrave temaacutetica da
reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica
A beatitude eacute a condiccedilatildeo mais almejada pelo cristatildeo Ela se constitui na visatildeo
amante de Deus eacute a bem-aventuranccedila A teoria dos atos humanos se encontra em
consonacircncia com a beatitude pois ela eacute o fim uacuteltimo do homem Neste sentido pode-
se afirmar que a eacutetica de Santo Tomaacutes eacute uma eacutetica da felicidade o que se encontra
profundamente em sintonia com a mensagem das bem-aventuranccedilas mas tambeacutem
se harmoniza com a moral aristoteacutelica enquanto uma eacutetica dos fins
O ser humano se encaminha agrave felicidade de modo particular A felicidade eacute
pois fruto das accedilotildees particulares auxiliadas pela graccedila de Deus Desse modo as
accedilotildees humanas devem ser compreendidas em seus aspectos fundamentais a saber
uma dimensatildeo voluntaacuteria obra de uma vontade livre que o estudo sobre os atos
humanos contempla e uma dimensatildeo ligada agrave sensibilidade contemplada no estudo
sobre as paixotildees da alma
79
522 Sindeacuterese e consciecircncia
Segundo Tomaacutes de Aquino a sindeacuterese eacute um habitus (cf AQUINO Tomaacutes
de S Th I 79 a12)58 Uma compreensatildeo adequada da Sindeacuterese exige um
aprofundamento acerca do modus operandi do raciociacutenio humano O intelecto em
virtude de seu objeto quando raciocina acerca de coisas inteligiacuteveis diz-se que se
ldquomoverdquo como um intelecto especulativo e quando raciocina sobre coisas da accedilatildeo se
move como uma razatildeo praacutetica Assim como haacute princiacutepios de ordem especulativa os
princiacutepios praacuteticos se relacionam agrave sindeacuterese como um habito natural especial Sua
funccedilatildeo eacute incitar o bem e condenar o mal Ela funciona como uma intuiccedilatildeo dos
primeiros princiacutepios da lei moral Eacute curioso o fato de Tomaacutes de Aquino definir a
Sindeacuterese como um habitus mas de natureza inata A Sindeacuterese natildeo se confunde
com a consciecircncia Ela eacute uma intuiccedilatildeo dos primeiros princiacutepios da moral enquanto
que a consciecircncia eacute o ato pelo qual se julga um ato que se realizou ou que seraacute
realizado Em seu ato a consciecircncia supotildee natildeo apenas a Sindeacuterese mas todo o
conhecimento moral que se apoacuteia sobre ela
A noccedilatildeo tomista da consciecircncia eacute a de que ela eacute um ato A funccedilatildeo da
consciecircncia eacute atestar obrigar e incitar e ainda acusar reprovar ou repreender (cf
AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)59 Estas funccedilotildees da consciecircncia se efetivam a
medida em o agente tem conhecimento ou ciecircncia do que se faz Tomaacutes de Aquino
esclarece que este conhecimento se daacute de trecircs maneiras quando se reconhece o que
se faz ou o que natildeo foi feito afirma-se que a consciecircncia atesta (Cf AQUINO Tomaacutes
de S Th I 79 a13)60 quando se julga que eacute preciso fazer ou natildeo uma accedilatildeo diz-se
que a consciecircncia incita ou obriga (Cf AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13 )61 e quando
se julga o meacuterito do que foi feito diz-se que a consciecircncia escusa62 acusa ou reprova
(cf AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)63
58 ldquoSynderesis non est potentia sed habitusrdquo 59 ldquoDicitur enim conscientia testificari ligare vel intigare et etiam accusare vel remordere sive
reprehendererdquo 60 ldquoQuod recognoscimus aliquid nos fecisse vel non fecisse [] conscientia dicitur testificarirdquo 61 ldquoQuod per nonstram conscientiam iudicamos aliquid esse faciendum vel non faciendum et secundum
hoc dicitur conscientia instigare vel ligarerdquo 62A escusa eacute uma razatildeo ou um pretexto invocado para eximir de uma obrigaccedilatildeo 63 ldquoQuod per conscientiam iudicamus quod aliquid quod est factum sit bene factum vel non bene factum
et secundum hoc conscientia dicitur excusare vel accusare seu remordererdquo
80
Tomaacutes de Aquino acrescenta que para desenvolver estas funccedilotildees faz-se
necessaacuteria ldquouma aplicaccedilatildeo atual de nosso conhecimento agrave nossa accedilatildeordquo (AQUINO
Tomaacutes de S Th I 79 a13)64 Esta informaccedilatildeo eacute relevante uma vez que a partir dela
entende-se que o autor natildeo estaacute a considerar o exerciacutecio da consciecircncia moral como
um funcionamento constante Isto eacute a consciecircncia passa a atuar efetivamente quando
os objetos relativos agraves accedilotildees assim a solicitam De certo modo esta compreensatildeo da
consciecircncia mitiga um entendimento contemporacircneo de que a concepccedilatildeo cristatilde de
homem da qual o pensamento moderno eacute devedor acreditaria que o homem pensado
como animal racional implicaria num actus ratiocinandi ad infinitum65
Ao final das consideraccedilotildees sobre a consciecircncia Tomaacutes de Aquino esclarece
como consciecircncia e sindeacuterese se relacionam Embora a consciecircncia seja um ato ela
natildeo eacute atualizada o tempo inteiro mas sempre que objetos relativos agrave sua accedilatildeo Desse
modo a consciecircncia necessita de um habitus que a faccedila atualizar-se A sindeacuterese
que conteacutem os primeiros princiacutepios da moral eacute quem naturalmente coopera na
atualizaccedilatildeo da consciecircncia
Deve-se dizer que o ato se permanece sempre em si mesmo permanence entretanto sempre em sua causa a potecircncia ou o habitus Os habitus pelos quais a consciecircncia eacute informada ainda que sejam muitos todos recebem a sua eficaacutecia de um primeiro a saber do habitus dos primeiros princiacutepios que se chama sindeacuterese Por isso e de modo especial esse habitus eacute por vezes chamado consciecircncia (AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)66
A relevacircncia desta afirmaccedilatildeo diz algo a mais sobre a concepccedilatildeo tomista de
homem Em relaccedilatildeo agraves questotildees da accedilatildeo pode-se afirmar que a consciecircncia moral eacute
o proacuteprio pensamento praacutetico que eacute posto em movimento por um habitus natural Uma
vez que este habitus natildeo eacute a razatildeo mesma em funcionamento talvez seja possiacutevel
defender que em Tomaacutes de Aquino haacute algo anaacutelogo ao lebenswelt russeliano um
mundo da vida ou uma instacircncia que de certo modo eacute anterior ao ato de raciocinar
523 O conceito de vontade
64 ldquoPatet autem quod omnia haec consequuntur actualem applicationem scientiae ad ea quae agimusrdquo 65 Para um melhor entendimento desta tese conferir o prefaacutecio de Ser e Tempo de Martim Heidegger 66 ldquoDicendum quod actus etsi non semper maneat in se semper tamen Manet in sua causa quae est
potentia et habitus Habitus autem ex quibus conscientia informatur etsi multi sint omnes tamen efficaciam habent ab uno primo scilicet ab habitu primorum principiorum qui dicitur synderesis Unde specialiter hic habitus interdum conscientia nominaturrdquo
81
Segundo Tomaacutes de Aquino o conceito de vontade se alinha agrave noccedilatildeo de
necessidade e estes se relacionam agrave noccedilatildeo de telos entendido aqui como a felicidade
que eacute um bem desejado por todos Tomaacutes de Aquino distingue diferentes noccedilotildees de
necessidade necessitas naturalis et absoluta necessitas finis e necessitas coactionis
A necessitas naturalis se apresenta quando a uma coisa algo se apresenta
em virtude de seus princiacutepios intriacutensecos sejam materiais ou formais Materialmente
eacute naturalmente necessaacuterio que o composto de contraacuterios se corrompa Formalmente
eacute naturalmente necessaacuterio que os acircngulos internos de um triacircngulo sejam iguais a
dois acircngulos retos Existem tambeacutem princiacutepios extriacutensecos que garantem este tipo de
necessidade diga-se por exemplo a morte como causa final ou a geraccedilatildeo como
causa eficiente (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)67
A necessitas finis se potildee quando algueacutem natildeo pode atingir seu fim ou atingi-lo
convenientemente sem esse princiacutepio Tomaacutes de Aquino cita o exemplo da
alimentaccedilatildeo para atingir uma vida saudaacutevel ou o cavalo para se chegar ao destino
pretendido (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1 )68 Finalmente quando um ente
eacute constrangido de tal modo que natildeo pode fazer o contraacuterio a necessidade eacute pensada
como necessitas coactionis (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)69
Deve-se perceber que a necessitas coactionis eacute contraacuteria agrave vontade pois se
constitui como uma violecircncia agrave inclinaccedilatildeo de ser humano Natildeo eacute difiacutecil chegar a uma
compreensatildeo da liberdade em Tomaacutes de Aquino atraveacutes das elucidaccedilotildees acerca do
conceito de vontade Pode-se afirmar primeiramente que a liberdade se refere a uma
ausecircncia de constrangimento externo Este se constitui como um niacutevel baacutesico da
noccedilatildeo de liberdade Aleacutem disso eacute importante salientar que seraacute possiacutevel estabelecer
uma distinccedilatildeo entre a liberdade como ausecircncia de constrangimento interno e a
liberdade como uma orientaccedilatildeo racional ao fim e inclusive como independecircncia em
relaccedilatildeo aos ditames de livre-arbiacutetrio que eacute a fonte mais primordial de exerciacutecio da
vontade mas que ainda natildeo pode ser considerada liberdade no sentido pleno
Uma vez que o conceito de vontade (ou voluntaacuterio) oferece ldquoluzesrdquo ao conceito
de liberdade eacute tambeacutem possiacutevel chegar ao conceito de involuntaacuterio e este relaciona-
67 ldquoSobre a necessitas naturalis et absoluta Tomaacutes de Aquino afirma Quod quid convenit alicui uno
modo ex principio intriacutenseco sive materiali [] sive formali [] Alio modo convenit alicui quod non possit non esse ex aliquo extriacutenseco vel fine vel agenterdquo
68 ldquoFine quidem aut bene consequi finem aliquem ut cibus dicitur necessaries ad vitam et equus ad iter Et haec vocatur necessitas finis quae interdum etiam utilitas diciturrdquo
69 ldquoEx agente autem hoc alicui convenit sicut cum aliquis cogitur ab aliquo agente it quod non possit contrarium agere Et haec vocatur necesssitas coactionisrdquo
82
se ao conceito de necessitas coactionis Um agente constrangido a fazer o que natildeo
deseja eacute algueacutem que age involuntariamente Mas a liberdade estaacute para aleacutem do agir
pois eacute ateacute possiacutevel obrigar que algueacutem faccedila alguma coisa mas natildeo eacute possiacutevel obrigaacute-
lo a querer fazer
Assim pois Tomaacutes de Aquino entende que o movimento da vontade eacute uma
certa inclinaccedilatildeo para algo Desse modo ldquoassim como se chama natural o que eacute
segundo a inclinaccedilatildeo da natureza chama-se de voluntaacuterio o que eacute segundo a
inclinaccedilatildeo da vontaderdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1) Entretanto este apetite
denominado de vontade eacute de natureza racional Para entender esta afirmaccedilatildeo deve-
se estabelecer em relaccedilatildeo agrave vontade agrave distinccedilatildeo entre irasciacutevel e o concupisciacutevel
A alma possui potecircncias sensitivas e intelectivas estas uacuteltimas satildeo tambeacutem
chamadas de potecircncias espirituais O apetite sensitivo se diversifica em concupisciacutevel
quando se refere agrave razatildeo de bem no sentido daquilo que agrada aos sentidos e em
irasciacutevel quando se refere agrave razatildeo de bem enquanto se busca evitar aquilo que eacute
prejudicial (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a5)70 Estes apetites satildeo ambos da
ordem da sensibilidade A vontade poreacutem diz respeito agrave razatildeo faz parte dela
voluntas in ratione est A vontade eacute proacuteprio apetite intelectivo e por isso mesmo o
bem a que a vontade apetece eacute o bem sob razatildeo universal
Este conceito aprofunda a noccedilatildeo de voluntaacuterio e involuntaacuterio e eacute entendido
como um movente das accedilotildees tanto naturalmente como teleologicamente Natildeo haacute
segundo Tomaacutes de Aquino uma oposiccedilatildeo entre a necessidade de um fim e a ideia de
vontade ldquoA necessidade de fim natildeo repugna agrave vontade quando ela natildeo pode atingir
esse fim senatildeo por um soacute meio por exemplo quando se tem a vontade de atravessar
o mar eacute necessaacuterio a vontade que queira um naviordquo (AQUINO Tomas de S Th I q
82 a1)71 Resulta claramente que natildeo haacute oposiccedilatildeo entre a liberdade e teleologia em
Tomaacutes de Aquino
Desse modo Tomaacutes de Aquino compatibiliza a ideia de liberdade com a ideia
de fim Analogicamente assim como o intelecto adere aos primeiros princiacutepios a
vontade deve pois aderir ao fim uacuteltimo que eacute a bem-aventuranccedila uma vez que a
70ldquoAppetitus autem sensitivus non respicit comunem rationem boni quia nec sensus apprehendit
universal Et ideo secundum diversas rationes particularium bonorum diversiticantur partes appetites sensitive nam concupiscibilis respicit propriam rationem boni inquantum est delectabile secundum sensum et conveniens naturae irascibilis autem respicit rationem boni secundum quod est repulsivum et impugnativum eius quod infet nocumentumrdquo
71 ldquoNecessitas autem finis non repugnat valuntati quando ad finem non potest perveniri nisi uno modo sicut ex voluntate transeundi mare fit necessitas in voluntate ut velit navemrdquo
83
bem-aventuranccedila ou a felicidade eacute almejada por todos Assim sendo compreende-
se que o fato de haver uma vontade natural natildeo implica uma contradiccedilatildeo com uma
vontade livre
Um esclarecimento deve ser feito nestas teses de Tomaacutes de Aquino Ele retira
a felicidade como sendo o fim uacuteltimo do homem pelo fato de todos os seres humanos
serem dotados de vontade e este desejo eacute universal pois decorre da natureza humana
o fato de todos desejarem ser felizes Poucas pessoas parecem duvidar desta tese
entretanto eacute possiacutevel concluir que o problema natildeo estaacute no fato de todos desejarem a
felicidade mas no itineraacuterio que cada pessoa particularmente percorre para atingi-la
Tomaacutes de Aquino salienta que a escolha natildeo versa sobre o fim ela versa sobre
os meios para o fim (Cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)72 Isto implica em dizer
que o fato de a felicidade ser o fim uacuteltimo do homem natildeo tem nada aver com sua
escolha uma vez que este eacute o fim natural a que todos tendem o destino potencial de
todo homem Por que o destino potencial Naturalmente este ldquodestinordquo natildeo implica
um fim inexoraacutevel mas o horizonte que daacute sentido agraves accedilotildees praticadas Elas devem
ser orientadas de modo a tornar mais acessiacutevel o alcance desse fim Na eacutetica de
Tomaacutes de Aquino assim como na eacutetica de Aristoacuteteles as accedilotildees satildeo apropriadas em
virtude do bem que elas proporcionam e natildeo porque o valor das accedilotildees se encerra
nelas proacuteprias A eacutetica de Tomaacutes de Aquino seguindo a moral aristoteacutelica vai propor
o exerciacutecio das accedilotildees virtuosas como o meio para se atingir essa felicidade
O ato de buscar a felicidade atraveacutes das virtudes aleacutem de ser a maneira mais
adequada a essa busca apresenta indiretamente a forccedila que a ideia de liberdade
possui na eacutetica cristatilde Henrique de Lima Vaz lendo Hegel afirma que ldquoa ideia de
liberdade pertence agrave esfera da manifestaccedilatildeo mais alta do Espiacuterito da sua
manifestaccedilatildeo como razatildeordquo e complementa ldquopara Hegel o momento decisivo em que
na cultura do Ocidente a razatildeo se manifesta como liberdade tem lugar com o advento
do Cristianismordquo (VAZ 2002 p 14) No esquema geral da Suma Teoloacutegica eacute por livre
vontade que homem opera um caminho de retorno a Deus Assim a ideia de liberdade
pode ser apontada como elemento distinto na reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e o
pensamento cristatildeo
72 ldquoElectio autem non est de fine sed de his quae sunt ad finemrdquo
84
524 A relaccedilatildeo entre inteligecircncia e vontade
A Inteligecircncia e a vontade satildeo duas potecircncias espirituais e ambas fazem parte
da capacidade racional das substacircncias intelectuais Tomaacutes de Aquino investiga a
relaccedilatildeo de superioridade de uma potecircncia em relaccedilatildeo a outra a partir da noccedilatildeo de
superioridade em termos absolutos e em termos relativos Tomaacutes de Aquino explica o
sentido de absoluto e relativo
A superioridade de uma coisa sobre outra pode ser considerada de dois modos quer absolutamente quer relativamente Uma coisa eacute tal absolutamente quando ela eacute isso em si mesma e eacute tal relativamente quando o eacute em relaccedilatildeo a outra (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a3)73
Absolutamente o intelecto eacute superior agrave vontade uma vez que a razatildeo do bem
desejaacutevel eacute apreendida pelo intelecto e este bem eacute objeto da vontade Nesse sentido
a superioridade daquele em relaccedilatildeo a esta se daacute porque eacute em virtude da accedilatildeo do
intelecto que a vontade se apropria de seu objeto Sem a accedilatildeo do intelecto entende-
se que a vontade natildeo teria o seu objeto mais proacuteprio Nesse caso o intelecto
considerado em si mesmo e absolutamente eacute uma potecircncia superior agrave vontade
Tomaacutes de Aquino esclarece
O objeto do intelecto eacute mais simples e absoluto que o da vontade Com efeito o objeto do intelecto eacute a proacutepria razatildeo do bem desejaacutevel e o bem desejaacutevel cuja razatildeo estaacute no intelecto eacute objeto da vontade Ora quanto mais uma coisa eacute simples e abstrata tanto mais eacute em si mesma mais nobre e superior Portanto o objeto do intelecto eacute superior ao objeto da vontade (AQUINO Tomas de S Th I q 82
a3)74
A partir desta afirmaccedilatildeo compreendem-se as duas grandes linhas da eacutetica
cristatilde que influenciaram por demais o desenvolvimento da filosofia moral no
Ocidente De um lado haacute os que defendem uma precedecircncia do intelecto sobre a
vontade assim como Tomaacutes de Aquino e estes satildeo chamados de intelectualistas
73 ldquoquod eminentia alicuius ad alterum potest attendi dupliciter uno modo simpliciter alio modo
sedundum quid Consideratur autem aliquid tale simpliciter prout est secundum seipsum tale secundum quid autem prout dicitur tale secundum respectum ad alterumrdquo
74 ldquoObiectum enim intellectus est simplicius et magis absolutum quam obiectum voluntatis nam obiectum intellectus est ipsa ratio boni appetibilis bonum autem appetibile cuius ratio est in intellectu est obiectum voluntatis Quanto autem aliquid est simplicius et abstractius tanto secundum se est nobilius et altius Et ideo obiectum intellectus est alius quam obietum voluntatis Cum ergo proacutepria ratio potentiae sit secundum ordinem ad obiectum sequitur quod secundum se et simpliciter intellectus sit altior et nobilior voluntaterdquo
85
Por outro lado os pensadores que defendem que intelecto e vontade tecircm o mesmo
status sendo a vontade igualmente autocircnoma independente do intelecto no seu
operar satildeo chamados de voluntaristas
Em termos relativos eacute possiacutevel considerar que a vontade seja superior ao
intelecto pois o objeto da vontade eacute superior ao do intelecto se se considerar que eacute
melhor amar a Deus do que conhececirc-lo Desse modo e relativamente ldquoquando a coisa
na qual estaacute o bem eacute mais nobre que a proacutepria alma em que se encontra a razatildeo desta
coisa a vontade eacute superior ao intelectordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a3 )75 O
bem eacute objeto de inclinaccedilatildeo da vontade O intelecto conhece o fim uacuteltimo e o
proporciona agrave vontade que por sua vez move todas as outras potecircncias em busca
desse bem que eacute a felicidade perfeita
Eacute possiacutevel notar uma pequena distinccedilatildeo entre Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino
No livro X da Eacutetica a Nicocircmacos Aristoacuteteles defende que a felicidade perfeita consiste
na vida contemplativa isto eacute na accedilatildeo do intelecto
Mas se a felicidade consiste na atividade conforme agrave excelecircncia eacute razoaacutevel que ela seja uma atividade conforme a mais alta de todas as formas de excelecircncia e esta seraacute a excelecircncia da melhor parte de cada um de noacutes Se esta parte melhor eacute o intelecto ou qualquer outra parte considerada naturalmente dominante em noacutes e que nos dirige e tem o conhecimento das coisas nobilitantes e divinas se ela mesma eacute divina ou somente a parte mais divina existente em noacutes entatildeo sua atividade conforme agrave espeacutecie de excelecircncia que lhe eacute pertinente seraacute a felicidade perfeita Jaacute dissemos que esta atividade eacute contemplativa (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco 1176b4 2001 p 201)
Por outro lado a posiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino se dirige primeiramente a
considerar a felicidade como estado no qual o amor como accedilatildeo da vontade atuaria
mais primordialmente que o intelecto Aquilo que possui uma existecircncia espiritual seja
Deus outra pessoa a proacutepria verdade ou ainda a beleza eacute superior ao ato de
pensar Tomaacutes de Aquino conserva a tese aristoteacutelica de superioridade do intelecto
entretanto ao inserir a distinccedilatildeo entre superioridade absoluta e superioridade relativa
coloca a felicidade em relaccedilatildeo ao amor e natildeo ao conhecimento
O ponto de equiliacutebrio entre as teses desses dois autores estaacute no lugar onde a
felicidade deve ser efetivada Aristoacuteteles pensava a felicidade circunscrita agrave Cidade
75 ldquoQuando igitur res in qua est bonum est nobilior ipsa anima in qua est ratio intellect per
comparationem ad talem rem voluntas est altior intellecturdquo
86
mas de certo modo desapegada como uma atividade autocircnoma isto eacute auto-
suficiente Aristoacuteteles acrescenta
Somente esta atividade parece ser estimada por sua proacutepria causa pois nada decorre dela aleacutem da proacutepria atividade de contemplar enquanto com as atividades de ordem praacutetica obtemos algumas vantagens maiores ou menores aleacutem da proacutepria accedilatildeo (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco 1176b4 2001 1177b p 202)
A vida feliz ou beatitude para Tomaacutes de Aquino soacute pode ser encontrada na
totalidade do bem na realizaccedilatildeo concreta e efetiva do Bem universal o que implica
num processo de retorno a Deus pois esta vida natildeo comporta a realizaccedilatildeo da
felicidade enquanto tal Esta concepccedilatildeo de Beatitude promove uma profunda
revoluccedilatildeo em relaccedilatildeo ao pensamento grego e o pensamento cristatildeo A
eudaimoniapara Aristoacuteteles encontra seu sentido no cosmocentrismo grego Por outro
lado a ideia de Beatitude ultrapassa os limites do cosmos grego De modo que Tomaacutes
de Aquino assume a ideia de Felicidade como fim uacuteltimo do ser humano mas ela eacute
realizada num niacutevel que estaacute para aleacutem do cosmocentrismo grego A superaccedilatildeo do
cosmocentrismo grego pelo teocentrismo cristatildeo seraacute elucidado mais adequadamente
adiante Antes poreacutem deve ser aprofundada a questatildeo da liberdade do ato voluntaacuterio
525 A liberdade do ato voluntaacuterio e a distinccedilatildeo entre liberdade e livre-
arbiacutetrio
A teoria tomista do livre-arbiacutetrio eacute de certo modo uma busca por compreender
o que diz respeito ao intelecto e agrave vontade num ato livre Dito de outra maneira o
empreendimento de Tomaacutes de Aquino pode ser traduzido pela seguinte pergunta
existe num ato livre a atuaccedilatildeo de alguma outra potecircncia aleacutem da inteligecircncia e da
vontade Seu aprofundamento acerca dessa temaacutetica traz distinccedilotildees fundamentais
que aleacutem de se fundamentarem no questionamento aristoteacutelico acerca do voluntaacuterio
e do involuntaacuterio promovem distinccedilotildees que seratildeo essenciais agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica
posterior
O desenvolvimento da questatildeo do livre-arbiacutetrio estaacute na questatildeo 83 da primeira
parte da Suma Teoloacutegica A questatildeo eacute dividida em quatro artigos e defende a tese
geral de que a liberdade eacute uma propriedade do ato voluntaacuterio na condiccedilatildeo de que
87
este seja exprimido em um juiacutezo que incida sobre a conveniecircncia ou natildeo do objeto do
querer A liberdade do homem consiste pois num ato de julgar que natildeo eacute
condicionado
O significado dos preceitos conselhos exortaccedilotildees assim como das
proibiccedilotildees recompensas e penas soacute estaacute garantido graccedilas ao livre-arbiacutetrio Tomaacutes
de Aquino estabelece uma distinccedilatildeo entre coisas que agem sem julgamento outras
que agem com julgamento e mesmo assim natildeo satildeo livres e outras que agem com o
julgamento livre
Deve-se considerar que certas coisas agem sem julgamento Por exemplo a pedra que se move para baixo e igualmente todas as coisas que natildeo tecircm conhecimento Outras coisas agem com julgamento mas esse natildeo eacute livre como os animais Por exemplo a ovelha vendo o lobo julga que eacute preciso fugir eacute um julgamento natural mas natildeo livre pois natildeo julga por comparaccedilatildeo mas por instinto natural [] o homem poreacutem age com julgamento porque por sua potecircncia cognoscitiva julga que se deve fugir de alguma coisa ou procuraacute-la Mas como esse julgamento natildeo eacute efeito de um instinto natural aplicado a uma accedilatildeo particular mas de uma certa comparaccedilatildeo da razatildeo por isso o homem age com julgamento livre podendo se orientar para diversos objetos (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1 )76
A liberdade tem a ver com o libero iudicium O julgamento livre eacute a expressatildeo
mais perfeita da liberdade do ser humano Aqui Tomaacutes de Aquino estabelece uma
distinccedilatildeo importante a saber a distinccedilatildeo entre o julgamento natural ou instintivo e o
julgamento racional Embora ambos sejam julgamentos lsquopraacuteticosrsquo apenas o ente que
possui o livre-arbiacutetrio isto eacute possui julgamento racional eacute senhor desse julgamento
Ambos os juiacutezos satildeo mandados pois prescrevem que o agente deve fazer algo mas
somente o ente que possui livre-arbiacutetrio atraveacutes da potecircncia cognoscitiva o intelecto
pode apresentar a si um julgamento que conduza ao bem Portanto eacute pela
racionalidade que o homem eacute dotado de livre-arbiacutetrio
Aqui se apresenta um questionamento importante por que muitas vezes
deseja-se contrariamente ao que o intelecto indica E como pode um ente que tem
seu ser criado ser livre As respostas podem ser encaminhadas da seguinte forma
76 ldquoConsiderandum est quod quaedam agunt absque iudicio sicut laacutepis movetur deorsum et similiter
omnia cognitione carentia Quaedam autem agunt iudicio sed non libero sicut animalia bruta Iudicat enim ovis videns lupum eum esse fugiendum naturali iudicio et non libero quia non ex collatione sed ex naturali instinctu hoc iudicat [] Sed homo agit iudicio quia per vim cognoscitivam iudicat aliquid iudicium istud non est ex naturali instinctu in particulari operabili sed ex collatione quadam rationis ideo agit libero iudicio potens in diversa ferrirdquo
88
em relaccedilatildeo agrave primeira pergunta diz-se que o fato de haver uma escolha da razatildeo natildeo
impede o desejo do apetite sensiacutevel mas pode impedir a sua realizaccedilatildeo Neste
sentido pode-se entender que a liberdade natildeo eacute necessariamente natildeo ter um
determinado desejo mas de certo modo consiste em estar acima das proacuteprias
inclinaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave segunda questatildeo o proacuteprio Tomaacutes de Aquino afirma que
ldquonatildeo eacute necessaacuterio agrave liberdade que o que eacute livre seja a causa primeira de si mesmordquo
(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1 )77 Assim mesmo que o homem tenha seu ser
por outro seja um ensab alio em relaccedilatildeo aos seus julgamentos ele permanece livre
e conta com o respeito de Deus em relaccedilatildeo agrave sua liberdade pois ldquoDeus opera em
cada um segundo a natureza que lhe eacute proacutepriardquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83
a1)78
Note-se que Tomaacutes de Aquino natildeo fala em accedilotildees livres mas em julgamentos
livres Ora eacute ateacute possiacutevel entender que alguma forccedila externa possa obrigar algueacutem a
agir de determinada maneira de modo que este seja obrigado a fazer algo que na
verdade natildeo deseje Embora ele possa fazer isto natildeo implica que ele queira fazer
Assim sendo mesmo que natildeo se mencione a palavra intenccedilatildeo ela estaacute latente neste
artigo da Suma Com isto eacute possiacutevel compreender a radicalidade com que Tomaacutes de
Aquino concebe a liberdade humana a ponto de considerar que ldquonada haacute que repugne
a liberdade do livre-arbiacutetriordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1)79
Todas as deliberaccedilotildees e accedilotildees do ser humano passam pela faculdade racional
ateacute mesmo as inclinaccedilotildees do apetite sensiacutevel devem passar pelo assentimento ou natildeo
da razatildeo A razatildeo por ateacute obedecer a um destes apetites ditos inferiores (cf AQUINO
Tomaacutes de S Th I q 83 a1)80 E aqui eacute possiacutevel aprofundar a noccedilatildeo tomista de
liberdade Com efeito a liberdade do ser humano eacute tamanha que mesmo o
assentimento do homem a algum apetite sensitivo eacute ainda ato de uma razatildeo sem
constrangimento mas que natildeo eacute livre enquanto tal pois a liberdade mesma eacute aquela
na qual o ser humano escolhe em favor do que eacute melhor isto eacute em favor do bem O
livre-arbiacutetrio eacute pois uma potecircncia que eacute sujeito da graccedila e com o seu auxiacutelio escolhe
o bem (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a2)81
77 ldquoNon tamen hoc est de necessitate libertatis quod sit prima causa sui id quod liberum estrdquo 78 ldquoOperatur enim in unoquoque secundum eius proprietatemrdquo 79 ldquoEt sic nihil est quod libertati arbitrii repugnetrdquo 80 ldquoSed istae inclinationes subiacent iudicio rationis cui obedit inferior appetitus ut dictum estrdquo 81 ldquoSed liberum arbitrium est subiectum gratiae qua sibi assistente bonum eligit Ergo liberum arbitrium
est potentiardquo
89
Natildeo eacute de se admirar que a graccedila seja auxiliar do livre-arbiacutetrio O seu auxiacutelio natildeo
implica uma negaccedilatildeo da liberdade do homem uma vez que este por si mesmo pode
negar o este auxiacutelio Contudo natildeo dirigir as escolhas em favor do bem eacute abrir matildeo
de ser realmente livre Esta eacute uma relaccedilatildeo curiosa pois sem o livre-arbiacutetrio natildeo se
pode ser livre mas com a sua atuaccedilatildeo se pode ateacute escolher mas natildeo ser livre
propriamente Tomaacutes afirma que ldquoo livre-arbiacutetrio eacute indiferente a escolher bem ou malrdquo
(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a2)82 Assim sendo sem o livre-arbiacutetrio natildeo eacute
possiacutevel algueacutem ser livre mas com ele a liberdade ainda natildeo estaacute garantida Ser livre
eacute estar livre de todas as formas de submissatildeo inclusive a do livre-arbiacutetrio quando este
escolhe o mal
Esta distinccedilatildeo eacute por demais relevante e natildeo eacute agrave toa que autores como Kant
seratildeo influenciados por esta distinccedilatildeo entre liberdade e livre-arbiacutetrio Kant utiliza uma
terminologia diferente mas que ao final pressupotildee a distinccedilatildeo ora apresentada A
terminologia kantiana eacute a do arbiacutetrium brutum e o livre-arbiacutetrio sendo o primeiro o
sentido de livre-arbiacutetrio e o segundo a liberdade ldquodaacute-se o nome de livre arbiacutetrio agrave
escolha que pode ser determinada pela razatildeo pura a que pode ser determinada
somente pela inclinaccedilatildeo (impulso sensiacutevel estiacutemulo) seria o arbiacutetrio animal (arbitrium
brutum) (cf KANT 2003 p 63)
A questatildeo 83 da Suma conclui precisando a relaccedilatildeo entre vontade e livre-
arbiacutetrio Em relaccedilatildeo agrave potecircncia da qual fazem parte pode-se afirmar que vontade e
livre-arbiacutetrio satildeo uma e mesma coisa porque ambos dizem respeito agrave eleiccedilatildeo
Contudo em relaccedilatildeo ao modus operandi cada uma opera de modo distinto a saber
o livre-arbiacutetrio opera na deliberaccedilatildeo a vontade na accedilatildeo
A proposiccedilatildeo de uma teoleologia na moralidade implica uma negaccedilatildeo da
autonomia Cabe esclarecer que esta oposiccedilatildeo entre teleologia e autonomia natildeo eacute
uma oposiccedilatildeo real as duas natildeo satildeo diretamente opostas Filosoficamente Tomaacutes de
Aquino por exemplo soube compatibilizar telos e liberdade
O modo como Tomaacutes de Aquino compreende a constituiccedilatildeo do homem na
Suma Teoloacutegica natildeo encontra dificuldades entre afirmar o livre arbiacutetrio ao homem e
ao mesmo tempo afirmar que por sua natureza o homem eacute capaz de agir em virtude
de um fim Faz-se necessaacuteria pois uma exposiccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio e de
82 ldquoLiberum autem arbitrium indifferenter se habet ad bene eligendum vel malerdquo
90
telos em Tomaacutes de Aquino a fim de mostrar como o autor compatibiliza telos e
autonomia
Deve-se esclarecer primeiramente que a exposiccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-
arbiacutetrio e a noccedilatildeo de finalidade como telos das accedilotildees se encontram em momentos
distintos da Suma Teoloacutegica A noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio estaacute na seccedilatildeo em que Tomaacutes
de Aquino dedica agrave criaccedilatildeo e ao Governo Divino Esta seccedilatildeo se insere na 1ordf parte da
Suma Teoloacutegica como o momento da accedilatildeo de Deus A 1ordf parte discorre sobre Deus
quem ele eacute como conhececirc-lo e sobre a Trindade (S Th I 1-43) o segundo momento
ainda da 1ordf parte apresenta a accedilatildeo de Deus que eacute a sua criaccedilatildeo (S Th I 44-119)
Justamente aqui situa-se a apresentaccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio
Jaacute a noccedilatildeo de Telos ou como diz Tomaacutes de Aquino fim do homem
encontra-se na primeira seccedilatildeo da 2ordf parte da Suma Teoloacutegica que vai das questotildees
1-48 (S Th I - IIae 1-48) Esta parte da Suma apresenta o retorno da criaccedilatildeo a Deus
particularmente com a busca livre do homem para Deus que eacute o conceito cristatildeo de
beatitude
A resposta eacute natildeo A proposiccedilatildeo de uma teleologia aqui tem a funccedilatildeo de ser o
resultado das accedilotildees virtuosas isto eacute numa eacutetica teleoloacutegica o valor de uma accedilatildeo natildeo
reside na accedilatildeo em si mesma
A verdade e o bem se incluem mutuamente Pois a verdade eacute um bem sem o que natildeo seria inteligiacutevel Do mesmo modo portanto que o objeto do apetite pode ser uma coisa verdadeira enquanto tem a razatildeo de bem por exemplo quando se deseja conhecer a verdade do mesmo modo o objeto do intelecto praacutetico eacute o bem que pode ser ordenado agrave accedilatildeo sob a razatildeo de verdadeiro O intelecto praacutetico com efeito conhece a verdade como o intelecto especulativo mas ordena agrave accedilatildeo essa verdade conhecida (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 79 a11)83
Para Tomaacutes de Aquino o valor de uma accedilatildeo seraacute relativo agrave finalidade que ela
atingiraacute Talvez a oposiccedilatildeo mais apropriada seria entre Destino e Autonomia ao inveacutes
de se pensar em termos de teleologia e autonomia
83 ldquoDicendum quo verum et bonum se invicem includunt nam verum est quoddam bonum alioquin non
esset appetibile et bonum est quoddam verum alioquin non esset intelligibile Sicut igitur obiectum appetites potest esse verum inquantum habet rationem boni sicut cum aliquis appetit veritatem cognoscere ita objectum intellectus practici est bonum ordinabile ad opus sub ratione veri Intellectus enim practicus veritatem cognoscit sicut et speculativus sed veritatem cognitam ordinat ad opusrdquo
91
526 A intenccedilatildeo
A definiccedilatildeo claacutessica de intenccedilatildeo se deve a Tomaacutes de Aquino No acircmbito da
filosofia moral a ideia eacute a de que a intenccedilatildeo eacute uma vontade que faz a accedilatildeo em uma
meta ao mesmo tempo proacutexima e longiacutenqua precisa e vasta indo ateacute o fim uacuteltimo A
intenccedilatildeo envolve pois a potecircncia da vontade para engendrar uma accedilatildeo e para mover-
se em busca do fim O desenvolvimento do conceito de intenccedilatildeo estaacute expresso na
questatildeo 12 da Primeira parte da Segunda Parte da Suma Teoloacutegica Nos quatro
artigos que compotildeem a questatildeo Tomaacutes de Aquino apresenta a intenccedilatildeo e o seu
objeto (a 1-2) e explicita o ato da intenccedilatildeo (a 3-4)
Tomando a definiccedilatildeo de Agostinho a intenccedilatildeo propriamente dita se refere
agravequilo que move uma coisa a seu fim (cf AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a1)84
Neste sentido como eacute a vontade que move todas as potecircncias a um fim a intenccedilatildeo
se constitui como ato da vontade ldquoOra a vontade move todas as outras potecircncias da
alma para o fim como foi estabelecido acima Eacute manifesto portanto que a intenccedilatildeo eacute
propriamente ato da vontaderdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a1)85
Existe ainda relaccedilatildeo entre Vontade razatildeo e intenccedilatildeo Agrave vontade cabe tender
ao fim enquanto cabe agrave razatildeo ordenar O papel da intenccedilatildeo consiste em ser o
movimento da vontade actus voluntatis em busca do fim uacuteltimo conforme
ordenamento da racionalidade Aleacutem disso a intenccedilatildeo embora se refira
primeiramente ao fim uacuteltimo natildeo exclui a relaccedilatildeo com os fins intermediaacuterios desde
que estes estejam relacionados ao fim uacuteltimo ldquonem sempre eacute necessaacuterio que [a
intenccedilatildeo] seja do fim uacuteltimordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a2 )
Qual o alcance desta reflexatildeo de Tomaacutes de Aquino A intencionalidade
promove uma unidade nos atos voluntaacuterios pois cada accedilatildeo se encontra concatenada
na busca do homem pela felicidade Assim eacute possiacutevel se falar a partir de Tomaacutes de
Aquino de uma unidade da vida moral Esta unidade da vida moral atraveacutes da
intencionalidade garante uma ligaccedilatildeo interna de todos os fins intermediaacuterios
alcanccedilados pelo homem na busca do fim uacuteltimo
84 ldquoUnde intentio primo et principaliter pertinent ad id quod movet ad finemrdquo 85 ldquoVoluntas autem movet omnes alias vires animae ad finem ut supra habitum est Unde manifestum
est quod intentio proprie est actus voluntatisrdquo
92
Natildeo eacute de admirar que a intenccedilatildeo possa se referir a vaacuterias coisas
simultaneamente Tomas de Aquino afirma
A arte imita a natureza Mas a natureza por um soacute instrumento busca duas utilidades ldquocomo a liacutengua que se ordena para o gosto e para falarrdquo diz o livro II da Alma Logo pela mesma razatildeo a arte e a razatildeo podem simultacircneas ordenar para dois fins uma soacute coisa Assim sendo algueacutem pode ter a intenccedilatildeo de muitas coisas simultaneamente (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a3)86
Tomaacutes de Aquino indica que aleacutem da razatildeo a arte tambeacutem pode proporcionar
finalidades e como conclusatildeo a intenccedilatildeo pode se referir a vaacuterias coisas Nesse
sentido compreende-se que ela pode combinar diversos planos nos quais os fins
podem ser dados Este reconhecimento da multiplicidade de coisas as quais a
intenccedilatildeo pode se referir explica de certo modo porque frequentemente os homens
se perdem em suas buscas Natildeo eacute a toa que Tomaacutes sugere uma cooperaccedilatildeo entre a
razatildeo a vontade e a intenccedilatildeo
Tambeacutem eacute relevante o fato de a intenccedilatildeo ser cooperadora da razatildeo na
descoberta de fins Se a arte eacute uma instacircncia distinta da razatildeo e se a intenccedilatildeo tambeacutem
pode se referir a ela pode-se afirmar que aleacutem do fim ordenado pela razatildeo natildeo haacute
um impedimento da participaccedilatildeo da intenccedilatildeo na construccedilatildeo do agir humano o que
implica uma abertura agrave liberdade da intenccedilatildeo nesta construccedilatildeo Pode-se concluir que
os juiacutezos praacuteticos e a escolha livre resultam da interaccedilatildeo entre a racionalidade e a
intenccedilatildeo voluntaacuteria
Existe finalmente uma conexatildeo entre intenccedilatildeo e vontade Tomaacutes de Aquino
afirma que ldquonas as coisas voluntaacuterias um soacute movimento eacute a intenccedilatildeo do fim e a
vontade do que eacute para o fimrdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a3)87 Embora agrave
vontade se relacione com aquilo eacute que para o fim uma vez que ela elege os meios
para atingi-lo sua relaccedilatildeo com a intenccedilatildeo que eacute o seu proacuteprio movimento eacute
constituiacuteda como um movimento uacutenico Pode-se entatildeo afirmar que a conexatildeo entre
intenccedilatildeo e vontade eacute de tal modo que natildeo se pode afirmar uma sem a outra
O estudo da intenccedilatildeo em Tomaacutes de Aquino aprofunda uma questatildeo que estava
em Aristoacuteteles apenas de modo latente Natildeo se pode afirmar que em Aristoacuteteles natildeo
havia uma preocupaccedilatildeo com a intenccedilatildeo poreacutem o seu detalhamento se deve ao
86 ldquoArs imitatur naturam Sed natura ex uno instrument intendit duas utilitates sicut lingua ordinatur et
ad gustum et ad locutionem dicitur in II de Anima Ergo pari ration ears vel ratio potest simul aliquid unum ad duos fines ordinare Et ipsa aliquis simul plura intendererdquo
87 ldquoIn rebus voluntariis idem motus est intentio finis et voluntas eius quod est ad finemrdquo
93
Aquinate A intenccedilatildeo eacute de tal modo necessaacuteria que estaacute presente em cada um dos
atos concernentes aos meios e a escolha eacute ativa em todo desenvolvimento das accedilotildees
53 TOMISMO E EacuteTICA DAS VIRTUDES
Alguns elementos da Psicologia Filosoacutefica de Santo Tomaacutes foram expostos de
modo que foram elucidados como elementos que ou eram desconhecidos ao
pensamento moral aristoteacutelico ou foram insuficientemente aprofundados Cabe entatildeo
verificar quais satildeo os elementos distintivos em relaccedilatildeo agraves proacuteprias virtudes Para isto
aleacutem do proacuteprio Santo Tomaacutes investigou-se o pensamento de Giuseppe Abbaacute
Juvenal Savian Filho Henrique de Lima Vaz Joseph Pieper entre outros que
contribuiacuteram significativamente nesta parte da pesquisa
Em geral natildeo se tem duacutevida de que Tomaacutes de Aquino operou uma releitura do
cristianismo por meio do pensamento aristoteacutelico Cabe pois aleacutem de demonstrar que
mudanccedilas essa releitura provocou explicitar de que modo elas ecoaram no
pensamento moral contemporacircneo Com a realizaccedilatildeo desta tarefa espera-se fazer
entender um dos principais objetivos desta pesquisa mostrar que um retorno
contemporacircneo a Eacutetica das Virtudes deve considerar a influecircncia do pensamento
cristatildeo pelo vieacutes de uma leitura tomasiana Um dos pontos de importacircncia capital para
a pesquisa eacute defender que algumas distinccedilotildees entre o conceito aristoteacutelico e o
conceito tomista de virtude a saber a relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo
de liberdade constituem-se como contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino agrave Eacutetica das
Virtudes e agrave histoacuteria da eacutetica ocidental em geral
Esta seccedilatildeo da pesquisa cumpre a tarefa de mostrar como Tomaacutes de Aquino
opera mudanccedilas significativas no acircmbito da Eacutetica das Virtudes Ele apresenta por um
lado acreacutescimos relevantes agrave moral de Aristoacuteteles e por outro permite afirmar que
muitos desses aspectos se incorporam agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica posterior A partir desta
compreensatildeo pretende-se concluir que propor uma Eacutetica das Virtudes ao
pensamento contemporacircneo negligenciando estes aspectos produz certa fragilidade
agrave proposta Por fim esta seccedilatildeo faraacute consideraccedilotildees sobre a proposta moral do
MacIntyre de Depois da Virtude agrave luz do estudo realizado
94
531 Vida feliz e virtudes antes da siacutentese tomista
Eacute a partir de Santo Agostinho que se tem no pensamento cristatildeo um primeiro
aprofundamento dos temas morais e eacute este aprofundamento que contribui para uma
ulterior moral teoloacutegica Entretanto este primeiro esforccedilo de Agostinho natildeo resulta na
inserccedilatildeo de uma seccedilatildeo moral como componente necessaacuteria da ciecircncia teoloacutegica As
reflexotildees morais embora relevantes encontram-se dispersas entre outras temaacuteticas
da teologia Este pensamento seraacute retomado por Tomaacutes como mote de reflexatildeo agrave luz
do pensamento aristoteacutelico Pode-se afirma que Tomas de Aquino tributa ao
pensamento cristatildeo a doutrina moral que doravante se constitui como parte
integrante da ciecircncia teoloacutegica e seraacute referecircncia para toda a filosofia moral
Pode-se afirmar que a vida feliz desde Aristoacuteteles foi a grande motora do
pensamento eacutetico Com Santo Agostinho ela passa a ser definida como a uniatildeo da
mente a Deus no conhecimento no amor e no gaacuteudio da verdade e do bem divino
Assim Agostinho afirma no De Beata Vita
Certo impulso interior que nos convida a lembrar-nos de Deus a buscaacute-lo a sentir sede dele sem nenhum fastio jorra em noacutes dessa mesma fonte da Verdade Eacute luz que esse misterioso sol irradia em nossos olhos interiores E eacute dele que procede tudo o que proferimos de verdadeiro ainda que temamos volver para ele nossos olhos ainda doentios ou receacutem-abertos e de o fixarmos face a face Esse sol revela-se a noacutes como sendo o proacuteprio Deus ser perfeito sem nenhuma imperfeiccedilatildeo a diminuiacute-lo Pois nele se encontra toda a perfeiccedilatildeo completa e iacutentegra visto que ele eacute ao mesmo tempo o Deus todo-poderoso (AGOSTINHO Santo A vida feliz 1998 p 156 PL 32 4 35)88
Agostinho acredita que naturalmente existe um impulso do homem para Deus
Em outras passagens ele tambeacutem jaacute havia demonstrado esta compreensatildeo ldquotu nos
criastes para voacutes e incansaacutevel estaacute o nosso coraccedilatildeo enquanto natildeo repousa em voacutesrdquo
(agostinho Santo Confissotildees I 1998 p 7) Eacute atraveacutes da inteligecircncia ou ldquoos olhos
interioresrdquo que o homem compreende este desejo de busca de Deus assim como a
proacutepria inteligecircncia atesta que a verdade do que se profere depende dele A perfeiccedilatildeo
de Deus eacute certificada pelo fato de Deus se mostrar ao pensamento humano no interior
de cada homem Eacute este Deus que eacute a proacutepria vida feliz
88 ldquoHoc interioribus luminibus nostris iubar sol ille secretus infundit Huius est verum omne quod
loquimur etiam quando adhuc vel minus sanis vel repente apertis oculis audacter converti et totum intueri trepidamus nihilque aliud etiam hoc apparet esse quam Deum nulla degeneratione impediente perfectum Nam ibi totum atque omne perfectum est simulque est omnipotentissimus Deusrdquo
95
Eacute possiacutevel compreender a partir de Agostinho que pela perfeiccedilatildeo de Deus a
vida feliz diz respeito a um domiacutenio que estaacute para aleacutem da vida efecircmera do homem
no mundo Embora se tenha assim como em Aristoacuteteles que o fim do homem eacute a
felicidade esta acontece em dimensotildees extremamente distintas Eacute em virtude desta
nova concepccedilatildeo de vida feliz que se requer uma reformulaccedilatildeo na taacutebua das virtudes
de modo que entre as virtudes jaacute existentes a caridade possa figurar entre as
principais O modelo da caridade eacute aquela que Deus tem para o homem e tendo Deus
por exemplar o homem a viveraacute em relaccedilatildeo aos seus
Segundo Giuseppe Abbaacute (cf 2008 p 24) para alcanccedilar esta nova vida feliz ou
vida beata era preciso um conhecimento apropriado o conhecimento que Deus
mesmo tem de si mesmo e da ordem das criaturas Este conhecimento presente em
Deus ao modo de uma lei eterna eacute comunicado por via de iluminaccedilatildeo a cada mente
humana no modo de um conhecimento inato das razotildees eternas segundo os quais
satildeo regulados os atos da vontade Deve-se acrescentar que a lei eterna tambeacutem pode
ser conhecida por via de revelaccedilatildeo na lei escrita do Antigo e do Novo Testamento
Ainda segundo Giuseppe Abbaacute a accedilatildeo de Deus para conduzir o homem agrave vida
beata natildeo se limita agrave comunicaccedilatildeo da lei Deus interveacutem tambeacutem mediante uma
gratuita ajuda interior para converter a vontade humana da aversatildeo contra Deus ao
amor por Deus e a sustentar continuamente a retidatildeo da vontade nas obras virtuosas
A teologia moral seraacute assim uma investigaccedilatildeo em torno da lei divina eterna e de
como devem agir aqueles que nela inspiram-se
As concepccedilotildees agostinianas de vida feliz virtudes e lei eterna permanecem
praticamente as mesmas ateacute a chegada dos Sententiarum Libri de Pedro Lombardo
A partir do sec XII e iniacutecio do seacuteculo XIII as Sentenccedilas e as Sumas passam a fazer
uma apresentaccedilatildeo da doutrina cristatilde O elemento relevante deste dado eacute o fato de as
Sentenccedilas e Sumas serem agora obrigatoacuterias como textos baacutesicos de leitura nas
escolas teoloacutegicas Eacute ainda relevante o fato de estes textos natildeo reservarem um
espaccedilo especiacutefico para a filosofia moral assim tambeacutem como aconteceu com a
concepccedilatildeo agostiniana conforme o comentaacuterio de Giuseppe Abbaacute (cf 2008 p 24)
Os temas morais eram apresentados difusamente de modo que eles soacute aparecem
como temaacuteticas assessoacuterias Pedro Lombardo por exemplo tratava sobre a liberdade
e sobre o pecado no livro segundo que explicitava a questatildeo da queda do homem No
96
livro trecircs a propoacutesito do verbo encarnado Lombardo fala sobre as virtudes quando
responde agrave questatildeo de se Cristo teve virtudes
Traduzida para o latim por Roberto Grossatesta em 1246-47 a Eacutetica a
Nicocircmacos natildeo foi capaz de modificar o rumo do pensamento moral cristatildeo-catoacutelico
fortemente marcado pelo agostinismo ao menos ateacute Santo Tomaacutes Eacute atraveacutes dele que
se datildeo dois acontecimentos de particular relevacircncia a construccedilatildeo de uma parte
especificamente moral na teologia e a sua fundamentaccedilatildeo tendo a eacutetica aristoteacutelica
como fonte inspiradora Naturalmente a realizaccedilatildeo dessas duas tarefas natildeo se deu
de modo paciacutefico pois pensamentos jaacute instituiacutedos natildeo cedem facilmente agraves novas
ideias Quais foram pois as articulaccedilotildees filosoacuteficas que Tomaacutes de Aquino se utilizou
para a realizaccedilatildeo desses dois empreendimentos
97
5311 A construccedilatildeo de uma parte moral na teologia
Sobre a criaccedilatildeo de uma parte moral na Teologia Tomaacutes de Aquino enfrenta a
seguinte dificuldade como eacute possiacutevel a tematizaccedilatildeo sobre as virtudes se a teologia
tem Deus por assunto principal Deus natildeo necessita de virtudes uma vez que estas
satildeo haacutebitos que aperfeiccediloam o agente Assim faz-se necessaacuterio expor o modo como
Tomaacutes de Aquino responde a este problema
No desenvolvimento desta seccedilatildeo ver-se-aacute que primeira soluccedilatildeo de Tomaacutes ao
problema da uma inclusatildeo de uma parte moral na teologia daacute-se ainda sob o esquema
agostiniano partindo da lei divina agrave finitude do homem Nesta primeira soluccedilatildeo Tomaacutes
coloca hierarquicamente a lei em primeiro lugar e as virtudes em segundo abrindo um
espaccedilo para se tratar da moral na teologia Qual o problema desta primeira soluccedilatildeo
Ora sendo a lei divina o elemento primordial a eacutetica tomista perderia um de seus
viacutenculos mais relevantes com a eacutetica aristoteacutelica a saber uma eacutetica centrada no
agente A eacutetica aristoteacutelica privilegia por excelecircncia o agente enquanto que em
Agostinho o que brilha eacute a eacutetica fundamentada na lei divina A segunda soluccedilatildeo de
Tomaacutes de Aquino agrave questatildeo se daacute pela via indireta do discurso sobre Deus Com
efeito se pelo modus cognocendio homem conhece a Deus pela ciecircncia moral o
homem conhece a Lei Divina Com esta soluccedilatildeo pode-se afirmar que Tomaacutes de
Aquino garante um lugar agrave moral na Teologia sem no entanto abdicar da uma moral
centrada no agente
Seguindo a primeira soluccedilatildeo Tomaacutes introduz a noccedilatildeo de haacutebitos virtuosos
como formas impressas na alma ldquoas quais a reparam a retificam na medida em que
a fazem partiacutecipe das divinas sabedoria e retidatildeordquo (ABBAacute 2008 p 27) Segundo
Giuseppe Abbaacute existe da parte de Tomaacutes de Aquino uma profunda coerecircncia entre
sua antropologia e esses haacutebitos que informam a alma (cf ABBAacute 2008 p 27) A
explicaccedilatildeo dessa coerecircncia eacute possiacutevel ser mostrada a partir do De Ente et Essentia
a essecircncia se encontra concretizada nas substacircncias criadas intelectuais nas quais o ser ou existecircncia difere da essecircncia embora a essecircncia nelas exista sem a mateacuteria Daiacute que o ser dessas substacircncias natildeo eacute absoluto mas recebido e por conseguinte limitado e finito conforme a capacidade da natureza recipiente embora a natureza ou quididade delas seja absoluta e carente de mateacuteria (AQUINO Tomaacutes de De ente et essentia 2009)
98
Na compreensatildeo desta obra do jovem Tomaacutes de Aquino a alma humana que
se une ao corpo como forma de uma mateacuteria individuante natildeo atua nele comunicando
toda a sua perfeiccedilatildeo em razatildeo composiccedilatildeo das substacircncias O indiviacuteduo soacute se
atualiza no sentido da perfeiccedilatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de formas acidentais
suplementares Estas formas satildeo haacutebitos denominados virtudes Desse modo eacute
possiacutevel afirmar que a inclusatildeo de uma parte moral na teologia por parte de Tomaacutes
de Aquino natildeo eacute uma simples inclusatildeo arbitraacuteria mas um desenvolvimento necessaacuterio
de seu pensamento ontoloacutegico
Deve-se notar ainda que no Scriptum super Sententiis Tomaacutes de Aquino
adota a posiccedilatildeo de que os haacutebitos ou as virtudes necessitam ser dirigidos nos seus
atos pela lei divina pois ldquoa lei ensina a agir demonstra os atos retos as virtudes nos
conduzem ao bem agirrdquo (AQUINO Tomaacutes de Scriptum super sententiis III 37 ad 40
2011) Conforme este posicionamento o enfoque primordial permanece na lei divina
o que permite a Tomaacutes dar continuidade ao esquema da Teologia agostiniana poreacutem
a obediecircncia agrave lei divina daacute-se sob o auxiacutelio das virtudes Obedecendo a esta
hierarquia a lei divina tem precedecircncia sob as virtudes e estas em seu papel
secundaacuterio ganham ldquoabrigordquo na teologia agora com um tratado especiacutefico
Na segunda soluccedilatildeo que se como justificaccedilatildeo definitiva da constituiccedilatildeo de uma
parte moral na teologia Tomaacutes se utiliza da ideia de que uma vez que eacute impossiacutevel
tratar de Deus a partir de sua essecircncia pois este eacute inacessiacutevel ao conhecimento
sensitivo eacute possiacutevel tratar de Deus a partir de seus efeitos ldquose a existecircncia de Deus
natildeo eacute evidente para noacutes pode ser demonstrada pelos efeitos por noacutes conhecidosrdquo
(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 2 a2)89 O homem na qualidade de criatura racional
constitui-se como uma das obras (efeitos) especiais de Deus pois eacute ldquocriado agrave imagem
de Deus enquanto o termo imagem significa o que eacute dotado de intelecto de livre-
arbiacutetrio e revestido por si de poderrdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II prologus)90 Ora eacute
justamente atraveacutes do conhecimento praacutetico que homem tem de suas obras que o
permite construir uma ciecircncia moral Esta ciecircncia se fundamenta na razatildeo com a qual
Deus governa as criaturas particularmente o homem em seu agir Pela ciecircncia moral
conhece-se a lei divina
89ldquoUnde Deum esse secundum quod non est per se notum quoad nos demonstrabile est per effectus
nobis notusrdquo 90 ldquoHomo factus ad imaginem Dei dicitur secundum quod per imaginem significatur intellectuale et
arbiacutetrio liberum et per se potestativumrdquo
99
A ciecircncia sagrada eacute mais especulativa do que praacutetica porque se refere mais agraves coisas divinas do que aos atos humanos Ela considera estes uacuteltimos enquanto por eles o homem eacute ordenado ao pleno conhecimento de Deus no qual consiste a bem-aventuranccedila eterna (AQUINO Tomaacutes de S Th I q1 a4)91
A partir da afirmaccedilatildeo de Tomaacutes a ciecircncia praacutetica trata dos atos humanos e
estes satildeo considerados na medida em que contribuem ao conhecimento de Deus
Esta eacute a via que faz com que a ciecircncia moral tenha lugar na Teologia Desse modo
torna-se possiacutevel fazer uma ciecircncia moral sobre o homem autor de seus proacuteprios
atos em uma teologia que tem Deus por sujeito Assim segue justificada a inclusatildeo
de uma parte moral na Teologia
5312 A fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista
Foi apresentado ateacute o modo como Tomaacutes de Aquino tornou possiacutevel a
construccedilatildeo de uma parte moral na teologia Frequentemente a eacutetica tomista ainda eacute
vista de certo modo como uma filosofia em que domina o conceito de lei seja a lei
eterna seja a lei natural constituiacuteda segundo os preceitos da lei divina Segundo
Giuseppe Abbaacute a ideia comum eacute que ldquoa lei constituiria a regra moral obrigatoacuteria agrave qual
deve se ater ao sujeito humano livre nas suas accedilotildees voluntaacuterias Os haacutebitos virtuosos
interviriam para tornar faacutecil estaacutevel e agradaacutevel o exerciacutecio dos atos livresrdquo (ABBAacute
2008 p 26) Entretanto vista deste modo a eacutetica tomista seria centrada muito mais
na norma do que no agente Com efeito viu-se que a eacutetica de Tomaacutes se vincula
fortemente agrave moral aristoteacutelica porque focaliza primordialmente o agente Este viacutenculo
eacute um meio de se justificar a fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista segundo
ponto a ser aqui explicitado
O primeiro contato de Tomaacutes de Aquino com o texto da Eacutetica a Nicocircmacos foi
nos anos de 1248-52 logo apoacutes completar 20 anos Atraveacutes do primeiro curso sobre
esta nova traduccedilatildeo Tomaacutes de Aquino recebe do mestre Alberto Magno as primeiras
liccedilotildees sobre a Eacutetica do Estagirita Conforme Giuseppe Abbaacute Tomaacutes de Aquino teve
bastante tempo para amadurecer as ideias em torno deste texto e somente 17 anos
depois o Aquinate levou a cabo a tarefa de introduzir na teologia uma eacutetica de
91 ldquoMagis tamen est speculativa quam practica quia principalius agit de rebus divinis quam de actibus
humanis de quibus agit secundum quod per eos ordinatur homo ad perfectam Dei cognitionem in qua aeterna beatitudo consistirdquo
100
inspiraccedilatildeo aristoteacutelica justamente quando compotildee a segunda parte da Suma de
Teologia periacuteodo em que se encontra em Paris de 1269-72 Embora Tomaacutes de
Aquino jaacute ensaie a introduccedilatildeo do estudo sobre as virtudes em obras anteriores como
eacute o caso do Scriptum super Sententiis seu aprofundamento se consolida por ocasiatildeo
da construccedilatildeo da segunda parte da Suma Ainda segundo Giuseppe Abbaacute o
desenvolvimento do pensamento do moral de Tomaacutes de Aquino ldquoeacute a primeira soacutelida
tentativa de utilizar em Teologia a doutrina aristoteacutelica das virtudesrdquo (ABBAacute 2008 p
27) Deve-se agora apresentar qual a perspectiva tomista do conceito de virtude
532 O lugar das virtudes na teologia e sua explicitaccedilatildeo
5321 A beatitude e o lugar das virtudes na siacutentese teoloacutegica tomista
A apresentaccedilatildeo do modo como Tomaacutes de Aquino constituiu uma parte moral
na Teologia a partir da moral aristoteacutelica exige uma reformulaccedilatildeo de vaacuterios conceitos
de sua filosofia moral do estagirita Entre eles encontra-se o conceito de virtude que
possui particular relevacircncia nesta pesquisa Considerando como foi afirmado que a
ciecircncia praacutetica de inspiraccedilatildeo aristoteacutelico-tomista tem o enfoque no agente a filosofia
moral tomista se inicia com uma investigaccedilatildeo acerca fim mais apropriado agraves accedilotildees
humanas Assim ele inicia a Prima Secundae
Eacute de se considerar em primeiro lugar o fim uacuteltimo da vida humana Em seguida aqueles meios que poderatildeo levar o homem a este fim ou desviaacute-lo dele pois eacute do fim que aquelas coisas que a ele concernem recebem as razotildees Como o fim uacuteltimo da vida humana eacute a bem-aventuranccedila deve-se considerar primeiramente o fim uacuteltimo em comum e em seguida a bem-aventuranccedila (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q1 proecircmio )92
A bem-aventuranccedila que eacute o fim uacuteltimo aqui tratado Tomaacutes a apresenta desta
maneira porque sendo Deus a proacutepria beatitude conserva-se por meio dela uma
unidade temaacutetica dentro da Ciecircncia Teoloacutegica isto eacute a felicidade e os meios para
adquiri-la satildeo temas necessaacuterios agrave Teologia O que ocorre eacute que obedecendo agrave
ordem teoloacutegica trata-se inicialmente de Deus e de sua obra depois se deve tratar
92ldquoUbi primo considerandum occurit de ultimo fine humanae vitae et deinde de his per quae homo ad
hunc fine pervenire potest vela ab eo deviare ex fine enim oportet accipere rationes eorum quae ordinantur ad finem Et quia ultimus finis humanae vitae ponitur esse beatitudo oportet primo considerare de ultimo fine in communi deinde de beatitudinerdquo
101
do modo como as criaturas realizam um caminho de retorno a ele sobretudo o
homem que demonstra sua semelhanccedila com Deus na capacidade de conhecer e de
poder ser princiacutepio e senhor de seu agir Com efeito Tomaacutes de Aquino entende que
o homem retorna a Deus de uma maneira muito peculiar este retorno natildeo eacute uma
imposiccedilatildeo de Deus ao homem mas um ato de confianccedila na vontade livre do homem
de procedecirc-lo sem dispensar o auxiacutelio da graccedila (Cf BRUGUEgraveS 2003 Tomo III nota
ldquobrdquo p 29)
A elaboraccedilatildeo de uma Moral das Virtudes encontra pois seu lugar na teologia
agrave medida que por meio do exerciacutecio das virtudes o homem encontra um caminho
mais adequado de alcanccedilar a beatitude com maior propriedade Acrescente-se a isto
o fato de Tomaacutes de Aquino dedicar na Suma uma parte ao estudo daqueles haacutebitos
que distanciam o homem de seu fim Esses haacutebitos denominados viacutecios merecem
uma menccedilatildeo devida dado que o itineraacuterio do homem agrave felicidade comporta tanto os
atos afirmativos das virtudes quanto os atos negativos dos viacutecios O que significa um
ato afirmativo e outro negativo A ideia central eacute a de que o saber sobre as virtudes e
os viacutecios sejam ambos uacuteteis para o encaminhamento do ser humano agrave felicidade seja
exercitando as virtudes (atos afirmativos) seja evitando os viacutecios (atos negativos)
O estudo sobre as virtudes passa a ser desenvolvido no interior do proacuteprio
pensamento de Santo Tomaacutes antes das consideraccedilotildees sobre o modo como Deus
governa as criaturas ao seu fim e governa especialmente os indiviacuteduos humanos agrave
vida beata mediante a lei e a graccedila (cf ABBAacute 2008 p 34) pois entre a vida beata e o
governo divino estatildeo os atos dos quais o indiviacuteduo eacute autor e pelos quais ele realiza
a sua beatitude E como as virtudes se referem ao modo como o homem realiza o
processo de retorno a Deus deve-se aprofundar o modo como as virtudes estatildeo
relacionadas ao ser do homem
5312 A concepccedilatildeo tomista de homem e as virtudes
A partir da Tradiccedilatildeo Biacuteblica a relaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo de homem e as
virtudes se articulam com aquilo que Joseph Pieper denominou de imagem cristatilde do
homem (cf PIEPER 2010 p 9) Esta imagem toma por indicaccedilatildeo a afirmaccedilatildeo que
diz ldquosede perfeitos como o vosso Pai do ceacuteu eacute perfeitordquo Ora na condiccedilatildeo de criaturas
a perfeiccedilatildeo eacute fruto de um aprendizado continuo que inclui a vivecircncia constante dos
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habitus que vatildeo conduzir o ser humano a expor o que haacute de melhor em si Esse melhor
diz respeito agraves virtudes que aperfeiccediloam o agente e tornam mais acessiacutevel o caminho
agrave beatitude
A partir da antropologia tomista o homem eacute compreendido como uma unidade
substancial de corpo e alma Tomaacutes entende que o ser da mateacuteria corpoacuterea estaacute como
recipiente e sujeito para ser algo superior Neste caso eacute a alma humana que estaacute
como princiacutepio formal pela sua proacutepria natureza Por isso a alma humana eacute forma do
corpo tornando esse composto num ser uno ldquopois eacute atraveacutes da forma pela qual as
coisas tecircm o ser que tambeacutem o composto corpo e alma recebe sua unidaderdquo
(AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles II c 58 )93
A unidade do homem eacute assegurada pela composiccedilatildeo de corpo e alma de modo
que em sua constituiccedilatildeo o homem goza da daacutediva de pela alma fazer parte do reino
espiritual e pelo corpo fazer parte do reino corporal Assim segundo Tomaacutes de
Aquino o homem encontra-se na fronteira do espiritual e do corporal
Deve-se pois admitir algo supremo no gecircnero dos corpos a saber o corpo humano possuidor de temperamento uniforme que atinja o iacutentimo do gecircnero superior isto eacute a alma humana que ocupa o uacuteltimo grau das substacircncias intelectuais como se pode verificar pelo seu modo inteligente de conhecer e por isso se diz que a alma intelectual eacute como o horizonte e a fronteira entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo enquanto substacircncia incorpoacuterea e no entanto como forma do corpo (AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles II 68 )94
Eacute de especial relevacircncia o fato de o homem por sua condiccedilatildeo estar habilitado
a buscar a felicidade pois possui um modo inteligente de conhecer o que o
assemelha a Deus A semelhanccedila com Deus tambeacutem se daacute considerando que o
homem possui domiacutenio de seus atos Neste sentido pode-se afirmar que entre as
criaturas sensiacuteveis o homem eacute aquele que possui uma capacidade natural de buscar
o seu fim Natural poreacutem eacute o seu despreparo dada a constante falibilidade de sua
vontade livre Segundo a antropologia tomista sabe-se que pelo princiacutepio corporal o
homem eacute portador das paixotildees e estas consideradas isoladamente natildeo possuem
nenhuma conotaccedilatildeo no sentido de boas ou maacutes Elas satildeo potecircncias neutras
93ldquoCum igitur a forma unaquaeque res habeat esse a forma etiam habebit unitatemrdquo 94ldquoEst igitur accipere aliquid supremum in genere corporum scilicet corpus humanum aequaliter
complexionatum quod attingit ad infimum seperioris generis scilicet ad animam humanam quae tenet ultimum gradum in genere intellectualium substantiarium ut ex modo intelligendi percipi potest b) Et inde est quod anima intellectualis dicitur esse quase quidam horizon et confinium corporeorum et incorporeorum inquantum est substantia incorporea corporis tamen formardquo
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moralmente mas que podem condicionar as decisotildees do homem em virtude de seu
forte apelo agrave sensibilidade Eacute justamente aiacute que as virtudes ganham o seu sentido As
potecircncias do homem tanto as da alma quanto as do corpo necessitam de um habitus
que as atualizem em virtude do melhor Assim as virtudes iratildeo pois preparar o
homem positivamente na busca de seu fim uacuteltimo da vida feliz
Deve-se dizer que o irasciacutevel e o concupisciacutevel em si mesmos considerados enquanto partes do apetite sensitivo satildeo comuns a noacutes e aos animais irracionais Mas enquanto racionais por participaccedilatildeo obedientes agrave razatildeo satildeo potecircncias proacuteprias do homem e desse modo poreacutem ser sujeitos da virtude humana (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 56 a4 )95
As virtudes satildeo organizadas para atender as necessidades do homem
considerado em sua integralidade Desse modo as virtudes iratildeo aperfeiccediloar tanto as
potecircncias espirituais isto eacute a inteligecircncia e a vontade que pertencem ao acircmbito da
razatildeo do homem quanto as potecircncias sensitivas que satildeo a concupiscecircncia e a
irascibilidade fontes das paixotildees ambas ligadas ao corpo Eacute em virtude desta
totalidade que eacute o homem que um tratado sobre as virtudes natildeo deveria negligenciar
um estudo sobre as paixotildees e os viacutecios caso contraacuterio um tratado desta natureza
poderia ateacute visar um bem das accedilotildees particularmente mas natildeo o bem do agente
pensado em sua totalidade Acerca disto Tomaacutes de Aquino afirma
O nuacutemero de determinadas coisas pode ser estabelecido ou pelos princiacutepios formais ou pelos sujeitos Em ambos os casos temos quatro virtudes cardeais porque o princiacutepio formal da virtude aqui considerada eacute o bem da razatildeo que pode ser considerado sob o duplo aspecto ou enquanto consiste na proacutepria consideraccedilatildeo da razatildeo e se teraacute entatildeo uma virtude principal que se chama prudecircncia ndash ou enquanto se afirma a ordem da razatildeo em relaccedilatildeo a alguma coisa E isso seraacute ou quanto as accedilotildees e se teraacute entatildeo a justiccedila ou quanto agraves paixotildees e nesse caso eacute preciso que haja virtudes pois para afirmar a ordem da razatildeo nas paixotildees eacute necessaacuterio levar em conta a oposiccedilatildeo delas agrave razatildeo Essa oposiccedilatildeo pode se dar de duas formas primeiro quanto a paixatildeo impele a algo contraacuterio agrave razatildeo e aiacute eacute preciso que a paixatildeo seja controlada o que chamamos temperanccedila segundo quando a paixatildeo nos afasta das normas da razatildeo como o temor do perigo ou do sofrimento e nesse caso devemos nos firmar
95 ldquoErgo dicendum quod irascibilis et concupiscibilis secundum se consideratae prout sunt partes
appetitus sensitivi communes sunt nobis et brutis Sed secundum quod sunt rationales per participationem ut obedientes rationi sic sunt propriae hominis Et hoc modo possunt esse subiectum virtutis humanaerdquo
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inarredavelmente no que eacute racional e a isso se daacute o nome de fortaleza (AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles I-II q 61 a2 )96
Tomaacutes de Aquino entende que o nuacutemero das virtudes eacute determinado e esta
determinaccedilatildeo eacute dada de duas maneiras ou segundo os princiacutepios formais ou
conforme os princiacutepios subjetivos na qualidade de sujeitos97 Tanto numa quanto
noutra maneira o nuacutemero das virtudes pode ser resumido em quatro Com efeito esse
nuacutemero de quatro virtudes cardeais eacute exatamente o numero suficiente para dar conta
de todas as dimensotildees do homem pensado em sua constituiccedilatildeo Conforme os
princiacutepios formais a virtude seraacute pois o bem da razatildeo (prudecircncia) ou daquilo que a
ela se refere a saber agrave vontade (justiccedila) como segunda potecircncia espiritual e agrave
concupiscecircncia (temperanccedila) e a irascibilidade (fortaleza) como potecircncias ligadas ao
corpo
Em relaccedilatildeo aos princiacutepios subjetivos o nuacutemero das virtudes principais tambeacutem
seraacute quatro pois segundo Tomaacutes de Aquino os sujeitos satildeo quatro o racional por
essecircncia e dele a prudecircncia e o racional por participaccedilatildeo a vontade sujeito da
justiccedila o apetite concupisciacutevel sujeito da temperanccedila e o irasciacutevel sujeito da
fortaleza
Com isso entende-se que as virtudes visam natildeo apenas a perfeiccedilatildeo das
potecircncias tomadas particular ou aleatoriamente mas visam agrave perfeiccedilatildeo do agente
compreendido em sua totalidade Segundo Albert Pleacute a virtude moral humana e
humanizante levada agrave perfeiccedilatildeo habilita o homem a agir com todo o seu ser em
conformidade com sua natureza racional Eacute dessa forma que ele assegura de uma
vez soacute tanto o bem da obra cumprida (bonum operis) quanto o do sujeito que age
(bonum operantis) (Cf PLEacute 2005 vol IV nota ldquobrdquo p 162)
A relaccedilatildeo entre as virtudes e a constituiccedilatildeo do homem leva a compreender que
eacute em virtude de o homem ser pensado a partir de uma unidade substancial que se
96 ldquodicendum quod numerous aliquorum accipi potest aut secundum principia formalia aut secundum
subiecta et utroque modo inveniuntur quatuor cardinales virtutes Principium enim formale virtutis de qua nunc loquimur est rationis bonum Quod quidem dupliciter potest considerari Uno modo secundum quod in ipsa consideratione rationis consistit Et sic erit uma virtus principalis quae dicitur prudentia ndash Alio modo secundo quod circa aliquid ponitur rationis ordo Et hoc vel circa operationes et sic est iusticia vel circa passiones considerata repugnantia ipsarum ad rationem Quae quidem potest esse dupliciter Uno modo secundum quod passio impellit ad aliquid contrarium rationi et sic necesse est quod passio reprimatur et ab hoc denominatur temperantia Alio modo secundum quod passio retrahit ab eo quod ratio dictat sicut timor periculorum vel laborum et sic necesse est quod homo firmetur in eo quod est rationis ne recedat et ab hoc denominatur fortitudordquo
97 A noccedilatildeo de sujeito tem aqui um sentido preciso Sujeito significa o substrato que suportaraacute a efetivaccedilatildeo de uma coisa
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pode pleitear uma unidade das virtudes Com efeito esta unidade decorre por um
lado da exigecircncia ou da necessidade que cada potecircncia do homem tem de ser
adequadamente aperfeiccediloada e por outro da inter-relaccedilatildeo existe entre as proacuteprias
virtudes conforme se veraacute adiante quando se tematizar sobre a conexatildeo entre as
virtudes
5313 A explicitaccedilatildeo do conceito de virtude e a releitura tomista da teoria das
virtudes
53131 A perfeiccedilatildeo da potecircncia e habito operativo
Apoacutes ter apontado qual o lugar filosoacutefico das virtudes na Suma Teoloacutegica e o
modo como elas se estruturam em favor do homem e de sua da bem-aventuranccedila
faz-se necessaacuterio expor como Tomaacutes de Aquino assumiu e modificou a noccedilatildeo
aristoteacutelica de virtude Deve-se esclarecer que Tomaacutes se utiliza de duas concepccedilotildees
de virtudes a saber virtude enquanto excelecircncia dos atos humanos e virtude
enquanto habitus operativo que aperfeiccediloa e prepara as potecircncias para emitirem os
atos excelentes requeridos pela vida beata
Primeiramente deve-se afirmar que as virtudes satildeo habitus Segundo Albert
Pleacute habitus eacute uma disposiccedilatildeo uma capacidade da natureza humana a qual se
enraiacuteza em sua natureza especiacutefica e individual finalizada pelo agir (cf PLEacute 2005
tomo IV p 35) Muito mais que uma simples disposiccedilatildeo o habitus qualifica as outras
disposiccedilotildees de modo que estas se realizam da melhor maneira nas accedilotildees especiacuteficas
A partir desta compreensatildeo chega-se ao primeiro conceito de virtude como perfeiccedilatildeo
da potecircncia isto eacute como excelecircncia dos atos humanos
Em que consiste esta excelecircncia Segundo Giuseppe Abbaacute ldquoesta excelecircncia
consiste no fato de que nos atos voluntaacuterios a vontade e os apetites passionais satildeo
regulados segundo especiacuteficos modos de regulaccedilatildeo que satildeo requeridos para a vida
felizrdquo (ABBAacute 2008 p 35) Estes modos especiacuteficos de regulaccedilatildeo satildeo proporcionados
pela razatildeo atraveacutes do que Tomaacutes denominou ordo rationis Eacute pela ordem da razatildeo
ou reta razatildeo que o agente regula as proacuteprias escolhas subordinando-as aos fins
virtuosos Deste modo pela ordo rationis o indiviacuteduo manteacutem uma retidatildeo na busca
da vida feliz Sobre isto Tomaacutes de Aquino afirma ldquoa virtude designa certa perfeiccedilatildeo
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da potecircncia Mas a perfeiccedilatildeo de uma coisa eacute considerada principalmente em ordem
ao seu fim Ora o fim da potecircncia eacute o ato Portanto a potecircncia seraacute perfeita na medida
em que eacute determinada por seu atordquo (AQUINO Tomaacutes deS Th I-II q55 a1)98 O
primeiro sentido aplicado por Tomaacutes de Aquino jaacute era conhecido e tematizado por
Aristoacuteteles
A virtude designa certa perfeiccedilatildeo da potecircncia pois ela eacute considerada desta
maneira uma vez que ordena as potecircncias em funccedilatildeo do fim do homem Entretanto
as virtudes satildeo a perfeiccedilatildeo apenas das potecircncias que corroboram com o fim do
homem Estas potecircncias as potecircncias racionais necessitam das virtudes porque elas
natildeo se determinam a um uacutenico objeto Tomaacutes de Aquino afirma que ldquoas potecircncias
racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se
prestam indeterminadamente a muitas coisasrdquo Nesta hipoacutetese as virtudes teriam a
funccedilatildeo de aperfeiccediloar e de preparar as potecircncias para emitirem os atos excelentes
que satildeo exigidos agrave vida feliz Aleacutem disso a vontade livre do homem de certo modo
nunca teria dispensada sua atuaccedilatildeo
Em segundo lugar virtude eacute tomada segundo a compreensatildeo de haacutebito
operativo isto eacute enquanto habito operativo ela valoriza as capacidades naturais do
ser humano como forma de tambeacutem corrigir o despreparo natural do homem em
buscar a vida beata dada a constituiccedilatildeo do homem na qual o seu existir natildeo atualiza
naturalmente todas as potencialidades presentes na sua essecircncia Este conceito de
habitus operativus eacute uma particularidade e um acreacutescimo de Tomaacutes de Aquino ao
conceito primitivo de virtude Por isto mesmo Tomaacutes de Aquino conclui que ldquoa virtude
humana natildeo eacute apenas perfeiccedilatildeo mas tambeacutem aquilo que o aperfeiccediloardquo
Eacute possiacutevel afirmar que o duplo conceito de virtude como perfeiccedilatildeo das
potecircncias e como habitus operativus se dirige por um lado agrave construccedilatildeo de um haacutebito
bom (bocircnus habitus) e por outro como produtor de bem (boni operativus) Constitui-
se como um fato novo a concepccedilatildeo de virtude como um habitus que contem a funccedilatildeo
de aperfeiccediloamento e preparaccedilatildeo agrave felicidade Segundo Tomaacutes de Aquino ldquoa virtude
humana natildeo implica em uma ordenaccedilatildeo para o existir mas antes para a accedilatildeo Assim
eacute da razatildeo da virtude humana ser haacutebito operativordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q55
98 ldquovirtus nominat quandam potentiae perfectionem Uniuscuiusque autem perfectio praecipue
consideratur in ordine ad suum finem Finis autem potentiae actus est Unde potentia dicitur esse perfecta secundum quod determinatur ad suum actumrdquo
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a1)99 Esta concepccedilatildeo supera de certo modo a concepccedilatildeo aristoteacutelica de virtude Com
efeito a partir da abordagem tomista a virtude natildeo diz respeito apenas agrave excelecircncia
dos atos humanos mas ao habitus operativus que aperfeiccediloa e repara os atos
humanos na ldquojornadardquo do homem de retorno a Deus
53132 As virtudes teologais
As virtudes teologais correspondem ao contributo de Deus ao homem na busca
de uma vida perfeitamente feliz As virtudes cardeais satildeo resultado das capacidades
naturais do homem por isso mesmo como ldquopor sua forccedila ningueacutem pode se salvarrdquo
as virtudes teologais acrescentam agrave natureza humana a capacidade de se dirigirem a
Deus com um forccedila sobrenatural isto eacute com uma forccedila que sozinha a natureza
humana natildeo seria capaz de proporcionar
A ideia de Tomaacutes eacute que a razatildeo humana eacute capaz de ordenar os apetites
volitivos e passionais em funccedilatildeo de seu proacuteprio fim
Uma das grandes inovaccedilotildees do pensamento de Santo Tomaacutes estaacute na
articulaccedilatildeo das virtudes teologais tanto na teologia quanto no cataacutelogo das proacuteprias
virtudes Com efeito a esperanccedila passa a ser considerada componente das virtudes
de tal modo que ateacute autores de inspiraccedilatildeo marxista como Ernst Bloch a tem em grande
conta
Embora as virtudes teologais tenham sido infundidas por Deus no ser humano
segundo a opiniatildeo se Tomaacutes de Aquino elas tambeacutem participam no aperfeiccediloamento
do intelecto e do apetite Esta ideia do Aquinate abre espaccedilo agrave noccedilatildeo de conexatildeo
entre as virtudes Eacute por meio desta conexatildeo entre as virtudes que se estrutura no
agente a unidade de seu caraacuteter E eacute justamente pela virtude da Prudecircncia que se daacute
a unidade da pessoa uma vez que a prudecircncia desenvolve uma harmonizaccedilatildeo
dinacircmica entre a razatildeo e o apetite
53133 A virtude da Justiccedila
99 ldquoEt ideo de ratione virtutis humanae est quo sit habitus operativusrdquo
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Eacute digno de nota que a Beatitude cristatilde natildeo eacute um achado exclusivamente
individual e nem deve ser pensada desapegada do caraacuteter social Mesmo que o aacutepice
da Beatitude seja a visio beatifica pensada num plano para aleacutem histoacuteria conforme a
revelaccedilatildeo cristatilde haacute que se pensar nas condiccedilotildees sensiacuteveis favoraacuteveis ao alcance
dela Estas condiccedilotildees satildeo certamente proporcionadas num niacutevel individual atraveacutes da
maior parte das virtudes e num niacutevel comunitaacuterio atraveacutes da virtude da justiccedila
A justiccedila jaacute desde o Aristoacuteteles carrega a marca de ser a maior de todas as
virtudes pois eacute a uacutenica que diz a respeito a relaccedilatildeo do agente com outros O livro V
da Eacutetica a Nicocircmacos eacute dedicado agrave Justiccedila suas acepccedilotildees divisotildees e gradualidades
Tomaacutes de Aquino ldquobeberdquo dos princiacutepios aristoteacutelicos da justiccedila e dedica a questatildeo 58
da IIa IIae da Suma Teoloacutegica agrave anaacutelise e aprofundamento desta virtude
Na anaacutelise tomista sobre a Justiccedila as dimensotildees pessoais e sociais da vida
moral satildeo postas em relaccedilatildeo especialmente no que diz respeito agrave vida cristatilde
Pertence agrave justiccedila a funccedilatildeo de qualificar e retificar as accedilotildees da pessoa Esta funccedilatildeo
tambeacutem se estende agraves relaccedilotildees e instituiccedilotildees da vida social
Do ponto de vista pessoal considerando a antropologia tomista a potecircncia
espiritual da vontade se relaciona agrave capacidade de agir O bem agir enquanto melhor
atualizaccedilatildeo da potecircncia da vontade se traduz na forma de Justiccedila Do ponto de vista
pessoal a justiccedila eacute a virtude conexa agrave vontade ao passo que do ponto de vista social
Justiccedila de refletiraacute ou seraacute atualizada como Direito O Direito eacute assim o objeto da
justiccedila Nesse sentido a virtude da justiccedila faz parte de um elo que inclui homem
vontade virtude e Direito Segundo Claacuteudio Pedrosa ldquoO Direito como objeto da
Justiccedila eacute erigido segundo entendemos como qualificativo eacutetico-juriacutedico da
conceituaccedilatildeo de Justiccedila em Santo Tomaacutesrdquo (NUNES 2011 p 590)
53134 A unidade das virtudes e conexatildeo entre as virtudes
A unidade das virtudes em Tomaacutes de Aquino pode ser encontrada naquilo que
ele intitula a conexatildeo entre as virtudes Com efeito estaacute ideia de interdependecircncia
entre as virtudes ateacute entatildeo pouco tematizada no acircmbito da Eacutetica das Virtudes eacute o
que daacute inteligibilidade a uma consolidaccedilatildeo da unidade do caraacuteter moral de um agente
Andreacute Comte-Sponville critica a ideia de em um estudo sobre a moral se
tematizar sobre as paixotildees e os viacutecios ldquoe o que eacute mais digno de interesse na moral
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que as virtudes Assim como Spinoza natildeo creio haver utilidade em denunciar os
viacutecios o mal o pecado Eacute a moral dos tristes e uma triste moralrdquo (COMTE-SPONVILLE
1995 p 7) Contrariamente a afirmaccedilatildeo do autor eacute relevante compreender que a
consideraccedilatildeo sobre as paixotildees muito mais do que uma fuga que realmente importa
contrariamente ao que diz Andreacute Comte-Sponville constitui-se como um
reconhecimento do modo como a razatildeo se relaciona com os apetites Tomaacutes de
Aquino sabe e afirma que em relaccedilatildeo aos apetites a razatildeo natildeo pode agir na forma
de um ldquopoder despoacuteticordquo mas age na forma de um ldquopoder poliacuteticordquo no qual as
decisotildees satildeo tomadas como resultado de um longo e contiacutenuo diaacutelogo entre forccedilas
contraacuterias
A parte apetitiva obedece agrave razatildeo natildeo ao menor aceno mas com certa resistecircncia Razatildeo porque o Filoacutesofo diz que lsquoa razatildeo rege a potecircncia apetitiva com poder poliacuteticorsquo tal qual se governam as pessoas livres que tecircm certos direitos de oposiccedilatildeo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 58 a2)100
A necessidade de se conhecer as paixotildees e os viacutecios se impotildee porque mesmo
podendo conduzir o ser humano agrave vida boa a vontade humana permanece faliacutevel
sendo assim deve-se saber sobre as virtudes e sobre o seu oposto porque estas satildeo
de certo modo realidades quotidianas ao indiviacuteduo Com efeito pelas paixotildees eacute
possiacutevel condicionar o exerciacutecio da vontade livre caso estas potecircncias sejam
atualizadas na forma de viacutecios
Outro dado relevante eacute que a compreensatildeo acerca das paixotildees ainda
proporciona a consciecircncia da relaccedilatildeo entre as paixotildees e suas virtudes
correspondentes Isto eacute cada paixatildeo suscita o exerciacutecio de uma virtude que lhe eacute
apropriada Dessa afirmaccedilatildeo podem-se concluir duas coisas a primeira eacute a de que a
diversidade das paixotildees causa a diversidade das virtudes morais e a segunda eacute a de
que o cataacutelogo das virtudes eacute fundamentado nas necessidades concretas do ser
humano Assim contra ao que Andreacute Comte-Sponville coloca o estudo sobre as
paixotildees muito mais do que uma moral dos tristes constitui-se num reconhecimento
desta unidade que eacute o homem e de como as virtudes natildeo se ligam a ele acidental
Uma decorrecircncia necessaacuteria unidade das virtudes eacute a ideia de que as virtudes
estatildeo conectadas umas agraves outras A ideia de Tomaacutes eacute fazer entender que se pelas
100 ldquoPars enim appetitiva obedit rationi nom omnimo ad notum sed cum aliqua contradictione unde
Philosophus dicit in I Polit quod ratio imperat appetitivae principatu poliacutetico quod scilicet aliquis praeest liberis qui habent ius in aliquo contradicendirdquo
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virtudes consideradas separadamente o homem possui a perfeiccedilatildeo de suas
potecircncias a praacutetica das virtudes mostraraacute que umas natildeo seratildeo possiacuteveis sem as
outras Ora se na arquitetura da antropologia tomista todas as virtudes recebem uma
iluminaccedilatildeo pela virtude intelectual da prudecircncia de modo que ao final todo o agir do
homem virtuoso estaacute relacionado agrave reta razatildeo deve-se aceitar tambeacutem que todas as
virtudes estatildeo relacionadas e conectadas
A conexatildeo das virtudes a partir do Comentaacuterio a Eacutetica a Nicocircmacos mostra
como a parte racional do homem atua relacionada agrave vontade e como existe uma
relaccedilatildeo de interdependecircncia entre as virtudes
Duas coisas satildeo asseguradas na obra da virtude Uma eacute que o homem tenha uma intenccedilatildeo correta para o fim o que a virtude moral providencia inclinando a faculdade apetitiva para um fim proacuteprio A outra eacute dada pela prudecircncia a qual daacute bons conselhos julga e ordena os meios para o fim (DrsquoAQUIN Thomas Commentary on Aristotles
Nicomachean Ethics VI 10 1269 1993)101
Essas duas potecircncias satildeo partes essenciais das accedilotildees virtuosas a prudecircncia
aperfeiccediloando a parte racional e a virtude moral a parte apetitiva A prudecircncia natildeo
pode existir sem virtude moral bem como a virtude moral natildeo pode existir sem a
prudecircncia Joatildeo Hobuss acrescenta que ldquoo mesmo se daacute com as virtudes morais pois
enquanto a prudecircncia garante a bondade dos meios as virtudes morais garantem a
retidatildeo do fim isto eacute a obra da virtude eacute assegurada por ambas tanto a prudecircncia
quanto as virtudes moraisrdquo (HOBUSS 2011) Desse modo entende-se que uma accedilatildeo
virtuosa necessita da conexatildeo entre as virtudes
Possui particular relevacircncia a posiccedilatildeo tomista de que todas as virtudes
dependam da caridade Sua tese proveacutem do posicionamento fundamental da Tradiccedilatildeo
Biacuteblica que defende que entre as virtudes teologais a caridade eacute a virtude mais
importante Tomaacutes de Aquino afirma que ldquoas virtudes morais infusas estatildeo ligadas
entre si natildeo soacute por causa da prudecircncia mas tambeacutem da caridade e quem perde a
caridade pelo pecado mortal perde todas as virtudes morais infusasrdquo (AQUINO Tomaacutes
S Th I-II q65 a3)102 A afirmaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino leva a concluir uma coisa a
101 ldquoTwo things are needed in a work of virtue One is that a man have a right intention for the end which
moral virtue provides in inclining the appetitive faculty to a proprer end The other is to be well disposed towards the means This is done by prudence which gives good advice judges and orders the means to the endrdquo
102 ldquoQuod virtutes morales infusae non solum habent connexionem propter prudentiam sed etiam propter caritatem Et quod qui amittit caritatem per peccatum mortale amittit caritatem per peccatum mortele amittit omnes virtutes Morales infusasrdquo
111
unidade e a conexatildeo entre as virtudes natildeo eacute um feito exclusivo da racionalidade mas
eacute uma condiccedilatildeo proporcionada pelo ato de amor que eacute a caridade
A organizaccedilatildeo da conexatildeo entre as virtudes a partir de Tomaacutes de
Aquino obedece a seguinte ordem primeiramente haacute conexatildeo das virtudes
intelectuais entre si por meio dos primeiros princiacutepios (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I-
II q 65 a3) Jaacute a conexatildeo entre as virtudes intelectuais e as virtudes morais se daacute por
meio da prudecircncia Com efeito eacute justamente por meio da relaccedilatildeo existente entre a
prudecircncia e as virtudes morais que se daacute a harmonizaccedilatildeo entre razatildeo e o apetite
denominado de desejo refletido Por fim a conexatildeo entre as virtudes morais e as
teologais se daacute por meio da caridade e por obra de sua atuaccedilatildeo as virtudes humanas
se tornam mais perfeitas Cabe afirmar que esta uacuteltima conexatildeo entre as virtudes
teologais e as virtudes morais eacute resultado da siacutentese tomista entre a tradiccedilatildeo biacuteblica e
o aristotelismo Cabe verificar ainda outras relaccedilotildees entre estas duas tradiccedilotildees
53135 O habitus e vontade livre
Aleacutem do conceito de virtude Tomaacutes de Aquino traz outras inovaccedilotildees agrave
concepccedilatildeo aristoteacutelica de virtudes Uma dessas inovaccedilotildees consiste na relaccedilatildeo que se
estabelece entre habitus e vontade livre Segundo Giuseppe Abbaacute
uma vez que a Aristoacuteteles faltava o conceito de livre vontade as virtudes eacuteticas introduziam uma determinaccedilatildeo inelutaacutevel nos apetites Para Tomaacutes poreacutem introduzem uma determinaccedilatildeo que estaacute continuamente agrave disposiccedilatildeo da vontade que pode usar delas quando quiser mas tais determinaccedilotildees natildeo passam ao ato sem o livre consenso da vontade As virtudes permanecem sendo determinaccedilotildees uniacutevocas e infaliacuteveis mas a livre vontade humana permanece faliacutevel (ABBAacute 2008 p 36)
A relaccedilatildeo entre habitus e vontade livre explica por exemplo como algueacutem
mesmo sendo virtuoso sempre estaacute na iminecircncia de natildeo secirc-lo Assim esta relaccedilatildeo
contribui com a ideia de que soacute existe virtude onde o homem pode libertar-se do
determinismo da natureza animal Isto soacute eacute possiacutevel ao homem pela accedilatildeo de suas
capacidades inteligentes E porque as potecircncias racionais se prestam de maneira
indeterminadas a muitas coisas eacute que satildeo necessaacuterios os habitus virtuosos
Existem poreacutem potecircncias que satildeo determinadas em si mesmas para os seus atos como as potecircncias naturais ativas e por isso elas proacuteprias se chamam virtudes Jaacute as potecircncias racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se prestam
112
indeterminadamente a muitas coisas (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q55 a 1)
Se se considera a realidade indeterminada das potecircncias racionais torna-se
possiacutevel chegar ao fato de Eacutetica Tomista estar profundamente ligada agrave ideia de
liberdade Com efeito pelas virtudes se podem aperfeiccediloar as potecircncias para o
melhor entretanto o exerciacutecio das virtudes fundamenta-se numa adesatildeo consciente
da pessoa mostrando como estatildeo inter-relacionados virtudes pessoa e liberdade103
Na verdade natildeo eacute necessaacuterio apresentar separadamente a noccedilatildeo de pessoa e a de
liberdade pois o conceito de pessoa jaacute inclui a ideia de liberdade por se referir a uma
substacircncia individual de natureza racional Ora como se sabe a livre vontade em
Tomaacutes de Aquino decorre da condiccedilatildeo racional do homem
Considerando a condiccedilatildeo do homem se as virtudes possuem uma funccedilatildeo
aperfeiccediloadora e reparadora das potecircncias humanas se vecirc que existe uma relaccedilatildeo
iacutentima entre virtude e livre-arbiacutetrio em Tomaacutes de Aquino Ora se o livre-arbiacutetrio eacute a
capacidade de se fazer o que se quer sua relaccedilatildeo com as virtudes haacute de dirigir os
atos especificamente humanos de modo que o proacuteprio homem seja plenamente livre
Plenamente livre se refere pois ao intento de que o homem que natildeo seja escravo
nem mesmo das determinaccedilotildees do livre-arbiacutetrio que com sua natureza
indeterminada pode liberar o ser humano agrave maldade
A afirmaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino ratifica ldquoque a virtude eacute o bom uso do livre
arbiacutetrio a saber porque a virtude se ordena a isso como o ao seu proacuteprio ato proacuteprio
pois o ato virtuoso nada mais eacute que o bom uso do livre-arbiacutetriordquo (AQUINO Tomaacutes de
S Th I-II q 55 a 1)104 Como se viu em outra seccedilatildeo desta pesquisa livre-arbiacutetrio natildeo
significa necessariamente a liberdade Daiacute a afirmaccedilatildeo de Tomaacutes ao relacionar virtude
a um ldquobom usordquo do livre arbiacutetrio A partir da afirmaccedilatildeo do autor pode-se afirmar por
um lado que as virtudes satildeo haacutebitos que auxiliam a vivecircncia pessoal da liberdade
por outro o aprofundamento da ideia de que a eacutetica tomista natildeo eacute uma simples
reduccedilatildeo das accedilotildees agrave racionalidade pura ou exclusivamente na vontade Esta
conclusatildeo tambeacutem eacute ratificada por Juvenal Savian Filho quando afirma que
103Sobre a fundamentaccedilatildeo da eacutetica tomista na noccedilatildeo de liberdade conferir o artigo de SAVIAN FILHO
2008 p 177-184 104 ldquoDicendum quod bonus usus liberi arbitrii dicitur esse virtus secundum eandem rationem scilicet est
id ad quod ordinatur virtus sicut ad proprium actum Nihil est enim aliud actus virtutis quam bonus usus liberi arbitriirdquo
113
Uma accedilatildeo [segundo o pensamento tomista] nunca eacute fundada num mero raciociacutenio nem num mero desejo Razatildeo e vontade mostram-se entrelaccediladas na accedilatildeo moral e Tomaacutes ainda que decirc prerrogativa agrave razatildeo prefere apontar para tal entrelaccedilamento ou enovelamento como dissemos acima (SAVIAN FILHO 2008 p 181)
A partir da afirmaccedilatildeo de Juvenal Savian Filho compreende-se que o
posicionamento de Santo Tomaacutes em relaccedilatildeo agraves accedilotildees natildeo negligencia o modo como
o ser humano eacute constituiacutedo A constituiccedilatildeo corporal e aniacutemica do homem deixa patente
que seria um reducionismo negligenciar da relaccedilatildeo interna que a razatildeo e a vontade
possuem Esta relaccedilatildeo seraacute pensada a seguir
53136 As virtudes eacuteticas e a razatildeo
Segundo Giuseppe Abbaacute a outra inovaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino em relaccedilatildeo ao
conceito aristoteacutelico de virtude refere-se a relaccedilatildeo entre as virtudes eacuteticas e a razatildeo
Para ele Aristoacuteteles e Tomaacutes reconhecem que as virtudes recebem da razatildeo
enquanto ato prudencial a determinaccedilatildeo do justo meio entretanto Tomaacutes de Aquino
acrescenta que tanto a prudecircncia quanto as outras virtudes eacuteticas recebem da razatildeo
a concepccedilatildeo e a prescriccedilatildeo dos fins virtuosos gerais da vida boa e certos tipos de
accedilotildees absolutamente requeridas ou excluiacutedas por tais fins
Ora ao fim devido o homem se dispotildee convenientemente pela virtude que aperfeiccediloa a parte apetitiva da alma cujo objeto eacute o fim Quanto aos meios adequados ao fim importa que o homem esteja diretamente disposto pelo haacutebito da razatildeo porque aconselhar e escolher que satildeo accedilotildees relacionadas como os meios satildeo atos da razatildeo (ABBAacute 2008)
A partir da afirmaccedilatildeo apresentada eacute possiacutevel perguntar de onde a razatildeo retira
os meios adequados ao fim Ora se o fim uacuteltimo da vida humana eacute Deus nele
tambeacutem deve estar a razatildeo e o fundamento da lei eterna que dispotildee os meios mais
adequados ao fim E eacute dessa lei eterna que proveacutem a ideia de que a razatildeo humana
nela participa e como tal eacute atraveacutes das virtudes e natildeo dos preceitos da lei que a lei
eterna alcanccedila os atos individuais e os torna perfeitos
Segundo Eacutetienne Gilson o caraacuteter propriamente humano eacute garantido pela
razatildeo assim a virtude e o bem moral como que se harmonizam agrave nossa natureza
Contrariamente o mal moral o pecado e o viacutecio de que o pecado decorre soacute podem
ser concebidos como faltas de racionalidade no ato ou no costume (cf GILSON 2006
p 398)
114
53137 A relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo tomista de pessoa
Existe uma relaccedilatildeo entre as virtudes e a individualidade Embora as virtudes se
encontrem no ser humano em seu germe a natureza humana comporta natildeo apenas
as virtualidades especiacuteficas e comuns a todos os homens Com efeito as virtudes soacute
existem individualizadas num ente concreto e singular Esta convicccedilatildeo de Santo
Tomaacutes eacute o que fundamenta a ideia de que cada pessoa possui uma aptidatildeo especiacutefica
e toda particular tanto para o saber quanto para as virtudes
Seja de um modo ou de outro a virtude eacute natural no homem incoativamente Segundo a natureza especiacutefica enquanto na razatildeo do homem estatildeo presentes naturalmente certos princiacutepios naturalmente conhecidos tanto na ordem do saber quanto na ordem da accedilatildeo princiacutepios que satildeo sementes das virtudes intelectuais e das virtudes morais e enquanto estaacute presente na vontade um apetite natural do bem conforme a razatildeo Por outro lado segundo a natureza individual enquanto uns satildeo pela disposiccedilatildeo de seu corpo mais ou menos dispostos a algumas virtudes e isso porque certas potecircncias sensitivas satildeo atos de algumas partes do corpo e a disposiccedilatildeo deles favorece ou dificulta os atos dessas potecircncias e por consequecircncia as potecircncias racionais as quais as faculdades sensitivas obedecem Assim eacute que uma pessoa tem aptidatildeo natural para a ciecircncia outra para a fortaleza e outra para a temperanccedila E dessa forma tanto as virtudes intelectuais quanto as morais existem em noacutes naturalmente como que num iniacutecio de aptidatildeo Natildeo pois de maneira consumada porque a natureza estaacute determinada a uma soacute coisa e a consumaccedilatildeo dessas virtudes natildeo se realiza por um soacute tipo de accedilatildeo mas segundo formas diversas segundo as vaacuterias mateacuterias sobre que versam as virtudes e segundo as diferenccedilas circunstanciais (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 63 a2)105
Tomaacutes de Aquino compreende que os princiacutepios do conhecimento e da accedilatildeo
estatildeo presentes no homem na forma de semente Ou seja como partiacutecipe de uma
105 ldquoUtroque autem modo virtus est homini naturalis secundum quandam inchoationem Secundum
quidem naturam speciei inquantum in ratione hominis insunt naturaliter quaedam principia naturaliter coacutegnita tam scibilium quam agendorum quae sunt quaedam seminalia intellectualium virtutum et moralium et inquantum in voluntate inest quidam naturalis appetitus boni quod est secundum rationem Secundum vero naturam individui inquantum ex corporis dispositione aliqui sunt dispositi vel melius vel peius ad quasdam virtutes prout scilicet vires quaedam sensitivae actus sunt quarundam partium corporis ex quarum dispositione adiuvantur vel impediuntur huismodi vires in suis actibus et per consequens vires deserviunt Et secundum hoc unus homo habet naturalem aptitudinem ad scientiam alius ad fotitudinem alius ad temperantiam Et his modis tam virtutes intellectuales quam morales secundum quandam aptitudinis inchoationem sunt in nobis a natura ndash Non autem consummatio earum Quia natura determinatur ad unum consummatio autem huiusmodi vitutum non est secundum unum modum actionis sed diversimode sedundum diversas mateacuterias in quibus virtutes operantur et sedundum diversas circumstantiasrdquo
115
essecircncia que garante esta aptidatildeo pode-se afirmar que o ser humano consolida sua
vida de saber e de agir no interior de sua personalidade atraveacutes da vida virtuosa e na
exterioridade da vida poliacutetica entendida aqui como expressatildeo da vivecircncia social do
ser humano
Se como foi dito os princiacutepios do conhecimento e do agir estatildeo presentes no
homem na forma de sementes eacute por meio da natureza individual que os seres
humanos atualizam essas potecircncias e por conseguinte distinguem-se no
aprendizado e no exerciacutecio efetivo das virtudes Assim eacute possiacutevel afirmar que embora
as virtudes se relacionem entre si o modo como cada indiviacuteduo atualiza suas
potecircncias eacute muito particular Daiacute porque Tomaacutes de Aquino afirmar que uma pessoa
tem aptidatildeo natural para a ciecircncia outra para a fortaleza e outra para a temperanccedila
(cf AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 63 a2)
Tomaacutes de Aquino ainda revela uma profunda consciecircncia acerca da
consumaccedilatildeo das virtudes Ao afirmar que as virtudes intelectuais e morais estatildeo no
homem como aptidatildeo e que a sua consumaccedilatildeo natildeo se realiza por um soacute tipo de accedilatildeo
e sob diversas circunstacircncias o autor sinaliza que diversas formas de vivecircncia ou de
praacuteticas satildeo capazes de atualizar as mesmas virtudes Assim natildeo se precisa acentuar
a necessidade de as pessoas viverem da mesma maneira para serem portadoras das
mesmas virtudes Eacute possiacutevel pois afirmar que pertence a Tomaacutes de Aquino o meacuterito
de compreender que em sua consumaccedilatildeo ou atualizaccedilatildeo as virtudes se aplicam de
maneiras diferentes em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que as praticam Estatildeo na base dessas
suas compreensotildees tanto o aprofundamento que Tomaacutes realizou da noccedilatildeo de
indiviacuteduo quanto o da noccedilatildeo de pessoa Como se sabe pela evoluccedilatildeo histoacuterica do
conceito de pessoa natildeo esteve entre as preocupaccedilotildees mais relevantes de Aristoacuteteles
o problema da individuaccedilatildeo aleacutem disso somente com Boeacutecio pessoa passa a
significar este mais particular no gecircnero humano Assim Tomaacutes de Aquino conclui
que ldquoas condiccedilotildees individuais de cada pessoa tambeacutem proporciona maior ou menos
proximidade agrave virtude entendida como meiordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q66 a1)
532 A eacutetica antiga assunccedilatildeo compatibilizaccedilatildeo e superaccedilatildeo
A ideia de liberdade em Tomaacutes de Aquino se constitui como princiacutepio que guia
o problema tomista da Beatitude e do Fim uacuteltimo do homem Aristoacuteteles seguindo a
116
articulaccedilatildeo da Eacutetica Antiga tem a Eudaimonia como ideia central da vida moral
Tomando esta ideia sob a acepccedilatildeo de Beatitude Tomaacutes de Aquino ultrapassa a ideia
aristoteacutelica primitiva de Eudaimonia rompendo assim com o cosmocentrismo da
Eacutetica Antiga assentado na moral aristoteacutelica e no neoplatonismo
Tomaacutes de Aquino empreende em relaccedilatildeo agrave Eacutetica das Virtudes um esforccedilo de
integraccedilatildeo da moral antiga ao personalismo cristatildeo Santo Tomaacutes busca manter um
equiliacutebrio entre a consistecircncia de uma natureza humana essencial da eacutetica antiga e
o homem histoacuterico peregrino do teocentrismo cristatildeo Eacute possiacutevel afirmar que a
questatildeo da liberdade humana estaacute situada entre a posiccedilatildeo teocecircntrica e a beatitude
A ideia cristatilde de que a beatitude soacute se realiza em sua plenitude com a visatildeo beatiacutefica
da divina essecircncia eacute mais um contributo singular agrave Eacutetica das Virtudes
O cosmocentrismo da eacutetica de Aristoacuteteles repousa sobre uma noccedilatildeo de
natureza que compreende que a tendecircncia para a Eudaimonia eacute fruto de ldquoum princiacutepio
interno de movimento dos seres que lhes confere sua consistecircncia proacutepria num
universo ordenado segundo os ciacuterculos ascendentes das naturezas ou essecircnciasrdquo
(LIMA VAZ 2002 p 39) Por sua vez do cosmocentrismo de origem neoplatocircnica o
pensamento cristatildeo importou a ideia de processatildeo e retorno dos seres com relaccedilatildeo
ao seu princiacutepio Esta ideia tornou-se posteriormente o esquema mais baacutesico da
ciecircncia teoloacutegica que compreende tudo como vindo de Deus e a ele retornando Deus
eacute portanto o ldquoArdquo enquanto tudo dele procede e o ldquoΩrdquo enquanto tudo para ele
retorna
A Eudaimonia eacute sem duacutevida de valor fundamental na eacutetica aristoteacutelica Ela estaacute
em consonacircncia um esquema cosmocecircntrico presente no pensamento de Aristoacuteteles
Na Poliacutetica por exemplo ser escravo ou ser livre eacute obra da natureza O recorte tomista
da Eudaimonia apresentado como Beatitude eacute justamente uma transgressatildeo da
ordem da coacutesmica possui um caraacuteter espiritual A visatildeo beatiacutefica transcende a ordem
da natureza seja no homem seja porque a proacutepria visatildeo eacute compreendida enquanto
uniatildeo agravequele que eacute o princiacutepio e termo da ordem natural embora natildeo fazendo parte
dela
Segundo Lima Vaz um dos motivos de o cosmocentrismo antigo se
compatibilizar ao pensamento cristatildeo deve-se ao caraacuteter teoloacutegico
Eacute preciso no entanto acentuar que o cosmocentrismo antigo eacute de natureza teoloacutegica e foi como tal que entrou em confronto com o
117
teocentrismo cristatildeo Com efeito o cosmos como totalidade perfeita tem como predicado fundamental a divindade Eacute o theion por excelecircncia Sendo assim sua contemplaccedilatildeo assume necessariamente a forma de uma teologia De resto a teologia cristatilde constitui-se em grande parte utilizando as estruturas conceptuais (sic) dessa teologia coacutesmica embora criticando-a nas suas expressotildees panteiacutestas (LIMA VAZ 2002 p 42)
No estudo do Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio Carlos Arthur
mostra como Tomaacutes de Aquino aponta exatamente a similitude entre o objeto da
Teologia e o objeto da Filosofia Primeira ou seja tanto a Teologia quando a
Metafiacutesica ou Filosofia Primeira compartilham um objeto semelhante106 Esta seria
pois a natureza teoloacutegica do cosmocentrismo antigo Ora a eacutetica teleoloacutegica que
aponta para o fim uacuteltimo do homem assume uma perspectiva finalista ao modo de
uma causa final a medida em que a eudaimonia se constitui na contemplaccedilatildeo do
cosmos divino e no conhecimento do seu princiacutepio ordenador
Seguindo a ideia da Reconciliaccedilatildeo entre o Pensamento Cristatildeo e o
Aristotelismo ver-se-aacute que aleacutem de assumir a influecircncia aristoteacutelica acerca do fim
uacuteltimo do homem Tomaacutes de Aquino faz do alcance ao fim uacuteltimo natildeo apenas uma
condiccedilatildeo de um movimento interno natural mas tambeacutem um ato acessiacutevel ao homem
atraveacutes de um ato da inteligecircncia O alcance e a compreensatildeo do fim uacuteltimo pelo
homem eacute assim o elemento de assunccedilatildeo e superaccedilatildeo do esquema aristoteacutelico da
Eacutetica das Virtudes por Santo Tomaacutes natildeo porque a espiritualidade da inteligecircncia seja
o diferencial mas pelo objeto alcanccedilado por ela Deus eacute o alcanccedilado na beatitude
cristatilde e como tal ele estaacute para aleacutem da ordem natural
Eacute possiacutevel afirmar que a eacutetica de Aristoacuteteles como tambeacutem a sua poliacutetica
constituiu-se como forma de manter uma coerecircncia entre a ordem do cosmos e os
atos humanos Especificamente a teoria aristoteacutelica das accedilotildees tenta compatibilizar o
desafio de desenvolver uma teoria causal das accedilotildees que compatibilizem a ordem da
natureza e a responsabilidade do agente Sobre a causalidade das accedilotildees em
Aristoacuteteles Carlo Natali afirma ldquoa causalidade aristoteacutelica individua uma conexatildeo real
existente no mundordquo (NATALI 2010 p 319)
106 NASCIMENTO Carlos Arthur R do Introduccedilatildeo ao Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio
questotildees 5 e 6 In TOMAS DE AQUINO Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio questotildees 5 e 6 Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Editora da UNESP 1999 p 17
118
A existecircncia de uma conexatildeo real no mundo significa que a teoria aristoteacutelica
dos atos e por conseguinte a eacutetica aristoteacutelica possuem um caraacuteter natural ou
cosmocecircntrico Qual a insistecircncia na distinccedilatildeo entre o caraacuteter cosmocecircntrico da eacutetica
aristoteacutelica e a eacutetica cristatilde ldquoancoradardquo na ideia de liberdade A credibilidade da ideia
de liberdade mesmo com os questionamentos posteriores dada pelos filoacutesofos
modernos ratifica a sequecircncia de contribuiccedilotildees oferecidas pelo pensamento cristatildeo agrave
Eacutetica das Virtudes e agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica
Henrique de Lima Vaz afirma que ldquoeacute um fato que a concepccedilatildeo da liberdade e
da beatitude como fim uacuteltimo do homem em Santo Tomaacutes edificada com materiais
aristoteacutelicos e neoplatocircnicos natildeo pretende atenuar mas ao contraacuterio acentuar o rigor
do teocentrismo cristatildeordquo (VAZ 2002 p 36) Aquilo que se entende aqui por superaccedilatildeo
do cosmocentrismo aristoteacutelico natildeo comporta elementos valorativos no sentido de
entender superaccedilatildeo como melhor ou pior A partir de algumas seccedilotildees anteriores pode-
se mostrar como Tomaacutes de Aquino conduziu esta tarefa
Tomaacutes de Aquino descentrou a teoria aristoteacutelica das accedilotildees quando encontrou
um modo de inserir uma parte moral na teologia sem no entanto perder o
foco da centralidade de Deus como sujeito (tema) fundamental da ciecircncia teoloacutegica
Segundo verificou-se como a moral tomista se encontrou profundamente
harmonizada com a ideia de liberdade distinguindo-a inclusive do livre-arbiacutetrio em sua
teoria dos atos humanos A ideia de liberdade foi no pensamento cristatildeo uma das
conquistas mais paradigmaacuteticas e problemaacuteticas deixadas para a Tradiccedilatildeo Filosoacutefica
Pode-se afirmar ainda que o problema da liberdade em Tomaacutes de Aquino se
encontra centralizado entre sua posiccedilatildeo teocecircntrica jaacute exposta no modo como o autor
encontrou um lugar para a moral sem ferir a unidade da ciecircncia teoloacutegica e a noccedilatildeo
de Beatitude A partir do pensamento de Tomaacutes de Aquino sobre esta questatildeo
compreende-se que para ele natildeo eacute possiacutevel ser feliz sem ser livre assim como natildeo
eacute livre aquele cuja felicidade se resume a uma perspectiva transitoacuteria do mundo das
criaturas sensiacuteveis
119
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A questatildeo da fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes se constituiu como objeto
de estudo desta pesquisa O problema que orientou as leituras e reflexotildees entatildeo
desenvolvidas foi de que maneira o pensamento cristatildeo tomista pode deixar uma
heranccedila na fundamentaccedilatildeo de desenvolvimento desta proposta eacutetica A tese aqui
desenvolvida como resposta agrave problemaacutetica foi a de que uma eacutetica das virtudes
proposta ao pensamento contemporacircneo natildeo deveria prescindir dos elementos
forjados no seio da interpretaccedilatildeo cristatilde tomista desta eacutetica
O desenvolvimento desta tarefa foi realizado atraveacutes da terminologia
denominada Reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e o pensamento cristatildeo tomista Esta
expressatildeo e o intento de mostrar como seria possiacutevel pensaacute-la filosoficamente
constituiu-se na tarefa que comprovou a tese de que o pensamento cristatildeo tem
contribuiccedilotildees relevantes agrave fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes A motivaccedilatildeo pelo
desenvolvimento do tema surgiu do pensamento de MacIntyre a partir de sua
indicaccedilatildeo presente no texto Justiccedila de Quem Qual Racionalidade em que o autor
afirma ter errado em sua interpretaccedilatildeo do pensamento de Santo Tomaacutes sobre a
unidade das virtudes e que seria necessaacuterio investigar o modo como Tomaacutes de Aquino
realizou o que o proacuteprio MacIntyre intitulou de Reconciliaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo Biacuteblica
e o Aristotelismo
Preferiu-se utilizar a expressatildeo Reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo
tomista e o aristotelismo A tradiccedilatildeo biacuteblica e suas diversas correntes de interpretaccedilatildeo
satildeo muito vastas Por isto a especificaccedilatildeo pensamento cristatildeo tomista traduziu de
modo delimitado os limites deste trabalho Jaacute o aristotelismo foi a outra ldquofonterdquo que
incitou e influenciou o pensamento de Tomaacutes de Aquino a se constituir como
pensamento epocal nas palavras de Hegel
A expressatildeo vinda de MacIntyre natildeo resultou numa tentativa de preenchimento
de uma lacuna em seu pensamento Esta pesquisa natildeo teve a ilusatildeo de ser a
continuadora da tarefa que MacIntyre reconheceu como erro de suas anaacutelises
Entretanto o diagnoacutestico feito acerca da fragmentaccedilatildeo do discurso moral
contemporacircneo a explicaccedilatildeo da origem da fragmentaccedilatildeo nas teses modernas sobre
120
a moralidade e a indicaccedilatildeo de que o pensamento cristatildeo tomista e o aristotelismo
poderiam ser relacionados foram o suficiente para motivar o seguimento de um
caminho singular de leitura e desenvolvimento das ideias de Tomaacutes de Aquino em
relaccedilatildeo aos fundamentos da Eacutetica das Virtudes
No itineraacuterio da pesquisa tomou-se o seguinte caminho na primeira parte o
modo como esta corrente do pensamento eacutetico retorna ao debate contemporacircneo e
quais dos seus fundamentos se pode compreender atraveacutes das ideias de Rosalind
Hursthouse e Gertrude Anscombe Expocircs-se tambeacutem os elementos de criacutetica agraves
morais deontoloacutegica e utilitarista Ao final se atingiu o horizonte filosoacutefico do qual o
pensamento de MacIntyre eacute devedor
A segunda parte apresentou o pensamento do MacIntyre em Depois da Virtude
com a exposiccedilatildeo do que ele chamou desacordo do discurso contemporacircneo sobre a
moralidade sua anaacutelise sobre a teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade e
o modo como elas influenciaram o desacordo contemporacircneo e o desenvolvimento de
sua teoria moral apresentada na terceira parte desta pesquisa
A quarta parte foi o desenvolvimento do pensamento de Tomaacutes de Aquino
intitulada Reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo tomista e o aristotelismo Nesta
parte tomou-se o pensamento de Aristoacuteteles sobre a teoria dos atos chegando a
compreensatildeo de que esta teoria eacute anterior e necessaacuteria a uma Eacutetica das Virtudes Em
seguida passou-se agrave anaacutelise reflexatildeo e aprofundamento das ideias relativas agrave
psicologia filosoacutefica tomista e os temas fundamentais ligados a Eacutetica das Virtudes
Da investigaccedilatildeo realizada cabe agora apresentar perspectivas de alcance
filosoacutefico e hermenecircutico acerca da Eacutetica das Virtudes dos autores aqui estudados e
da contribuiccedilatildeo do pensamento cristatildeo tomista em torno deste objeto
A Eacutetica das Virtudes eacute uma via possiacutevel de experiecircncia eacutetica agrave
contemporaneidade entre as morais deontoloacutegica e utilitarista A eacutetica do dever
pressupotildee o desenvolvimento de uma racionalidade madura para ser legisladora de
si e que seja imparcial para conter as inclinaccedilotildees e acima delas conformar as accedilotildees
agrave norma O utilitarismo se vale da moral da maximizaccedilatildeo do bem-estar de algueacutem e a
uma valoraccedilatildeo das accedilotildees em virtude das consequecircncias O produto das duas
expressotildees eacuteticas dominantes da contemporaneidade eacute uma certa convicccedilatildeo de que
por um lado estas propostas mantecircm sua atenccedilatildeo primordialmente na norma e por
outro as reflexotildees em torno do agente que pratica a norma ficaram negligenciadas
121
Assim como a Eacutetica das Virtudes tem sua atenccedilatildeo primordial agravequele que age eacute
possiacutevel garanti-la agrave qualidade de uma via possiacutevel dentro do debate eacutetico
contemporacircneo
Uma consequecircncia possiacutevel decorrente da coexistecircncia das trecircs correntes
eacuteticas supracitadas eacute a de que tem se firmado a impossibilidade de uma determinaccedilatildeo
da accedilatildeo de forma monista conforme uma corrente eacutetica em particular Este eacute um
achado problemaacutetico agraves teorias uma vez que cada uma delas ao se desenvolver
justifica-se como necessaacuteria Firma-se aos poucos a consolidaccedilatildeo de um certo
emotivismo Este emotivismo delineado por MacIntyre em Depois da Virtude tem por
tese fundante a ideia de que as accedilotildees satildeo expressotildees dos proacuteprios sentimentos dos
agentes Ou seja natildeo se determina a accedilatildeo de modo uniacutevoco
Foi possiacutevel compreender influecircncias filosoacuteficas ao pensamento do MacIntyre
na exposiccedilatildeo dos fundamentos da Eacutetica das Virtudes e na apresentaccedilatildeo das criacuteticas
agrave deontologia e ao utilitarismo atraveacutes dos pensamentos de Rosalind Hursthouse e
Gertrude Anscombe Em A filosofia moral moderna de Gertrude Anscombe
explicitou-se a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica no tratamento das questotildees
relativas agrave virtude O alcance desta pertinecircncia levou agrave compreensatildeo de que uma
psicologia filosoacutefica eacute necessaacuteria e anterior a uma teoria das virtudes Esta afirmaccedilatildeo
serviu entatildeo de fio condutor a anaacutelise da teoria dos atos em Aristoacuteteles e
nos conceitos de fundamentaccedilatildeo da Eacutetica de Tomaacutes de Aquino
Foi possiacutevel compreender o movimento interno de Depois das Virtudes Em
primeiro lugar MacIntyre apresenta elementos que comprovariam a existecircncia de um
desacordo moral em seguida o autor mostra como o desacordo resulta dos
empreendimentos realizados pela filosofia moral moderna mencionando as principais
posiccedilotildees de Kant Hume e Kierkegaard com a exposiccedilatildeo das divergecircncias entre as
teses MacIntyre mostra como o discurso moral perdeu a sua inteligibilidade e aiacute
propotildee uma teoria moral que seria capaz de garantir o retorno agrave unidade de um
discurso moral
Como MacIntyre postula um retorno de uma eacutetica das virtudes e como a
fundamentaccedilatildeo deste discurso estaacute primitivamente em Aristoacuteteles a pesquisa
adentrou num primeiro momento agrave teoria aristoteacutelica dos atos uma vez que as
virtudes dependem dela como anterior No segundo momento a investigaccedilatildeo seguiu
na anaacutelise dos conceitos tomistas que eram tomados de Aristoacuteteles e que foram se
122
compatibilizando agraves exigecircncias das circunstacircncias histoacuterico-cultural-filosoacuteficas de
Tomaacutes de Aquino Esta anaacutelise explicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do pensamento de Tomaacutes
de Aquino foram traduzidas aqui com o que se denominou Reconciliaccedilatildeo entre
pensamento cristatildeo e o aristotelismo Mostrar a tomada do pensamento eacutetico de
Aristoacuteteles e as contribuiccedilotildees do pensamento tomista foram tarefas fundamentais
desta pesquisa
Encontrou-se a compreensatildeo de que a eacutetica de Aristoacuteteles e de Santo Tomaacutes
tem mais a ver com o que faz a vida ser vivida do que com a obediecircncia agrave lei moral
O fato de ldquoter mais a verrdquo com a vida do agente natildeo implica num ldquonatildeo tem nada a verrdquo
com a norma Implica que a norma tem valor enquanto for capaz te ter sentido a um
agente que frequentemente a pratica e que tende a fazecirc-lo mais naturalmente A
questatildeo do desenvolvimento das virtudes brota de condiccedilotildees fundamentais do proacuteprio
ser do homem e por isso a virtude eacute a expressatildeo melhor do proacuteprio homem
e contribui na sua realizaccedilatildeo
Pela teoria dos atos e a consolidaccedilatildeo das virtudes pelos haacutebitos alcanccedila-se a
ideia de que a accedilatildeo virtuosa natildeo resulta exclusivamente da capacidade intelectual ela
necessita de uma praacutetica habitual constante Esta caracteriacutestica parece mais coerente
em relaccedilatildeo agrave constituiccedilatildeo aristoteacutelico-tomista do homem o ser uno em cuja existecircncia
conta com a sua dimensatildeo corpoacuterea e o modo como por vezes ela determina o seu
agir A praacutetica das virtudes respeita por assim dizer a estrutura da uniatildeo corpo e alma
do ser humano
Num contexto de Eacutetica das Virtudes a norma natildeo eacute exclusivamente um
conjunto de regras exteriores aos quais se deve obedecer mas modos de accedilatildeo que
internalizados pelo haacutebito proporcionam o desenvolvimento das virtudes uma
estabilidade nas vivecircncias cotidianas para conviver com as dores inevitaacuteveis da vida
pessoal e em comum Ao mesmo tempo as virtudes potildeem os seres humanos numa
corrente de interdependecircncia na qual o bem de um exige a contrapartida do bem dos
outros Isto se pode confirmar com a referecircncia ao conceito de justiccedila
O conceito de justiccedila corresponde agrave compreensatildeo de que natildeo haacute beatitude
sem a ideia de que sua busca eacute de caraacuteter comunitaacuterio A justiccedila tanto em Aristoacuteteles
quando em Tomaacutes de Aquino eacute a maior das virtudes porque se refere agrave relaccedilatildeo do
homem com os outros Eacute aceitaacutevel uma compreensatildeo bilateral da justiccedila pois o bem
que se quer para si deve-se tambeacutem se querer acessiacutevel aos outros
123
O aprofundamento dos elementos da psicologia filosoacutefica de Santo Tomaacutes se
constituiu numa tarefa imprescindiacutevel Os conceitos de sindeacuterese consciecircncia
vontade e intenccedilatildeo puderam ser apresentados como um contributo bem especiacutefico agrave
fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes
A sindeacuterese enquanto haacutebito natural especial relaciona-se aos princiacutepios
praacuteticos da accedilatildeo de modo a incitar o bem e condenar o mal Intuiccedilatildeo dos primeiros
princiacutepios da moral Jaacute a consciecircncia se encarrega de estabelecer o julgamento
acerca dos atos realizados pressupondo natildeo apenas a sindeacuterese mas todo o
conhecimento moral que se apoia sobre ela Tomaacutes de Aquino acrescenta que para
desenvolver estas funccedilotildees faz-se necessaacuteria ldquouma aplicaccedilatildeo atual de nosso
conhecimento agrave nossa accedilatildeordquo
A consciecircncia segundo Santo Tomaacutes natildeo eacute pensada como um funcionamento
constante Ela atua efetivamente quando os objetos relativos agraves accedilotildees assim a
solicitam Tal compreensatildeo do papel da consciecircncia desfaz o mito de que a concepccedilatildeo
do homem como animal racional implicaria necessariamente num
funcionamento constante da consciecircncia
As consideraccedilotildees sobre a vontade fundamentam a ideia de liberdade num
sentido mais baacutesico poreacutem necessaacuterio que eacute o conceito de livre arbiacutetrio e na
independecircncia de qualquer forma de determinaccedilatildeo inclusive as determinaccedilotildees do
proacuteprio livre arbiacutetrio O livre-arbiacutetrio eacute a fonte mais primordial de exerciacutecio da vontade
mas natildeo pode ser considerada a liberdade mesma Jaacute a liberdade eacute uma orientaccedilatildeo
racional ao fim No conceito da liberdade compreende-se porque natildeo eacute escravo
aquele que foi obrigado a fazer pois ser obrigado a fazer natildeo implica que houve o
movimento interno do querer fazer
Santo Tomaacutes aprofunda o conceito de vontade que seja naturalmente seja em
vista de fim ela permanece atuante A necessidade de fim natildeo repugna agrave vontade
nesse sentido compreende-se o salto posterior na relaccedilatildeo entre liberdade e Beatitude
promovido pelo filoacutesofo enquanto a eudaimonia aristoteacutelica eacute a contemplaccedilatildeo do
divino natural em Tomaacutes de Aquino Visio beatifica eacute fruto de um rompimento com a
concepccedilatildeo cosmocecircntrica da Eacutetica Antiga Desse modo Tomaacutes de Aquino
compatibiliza a ideia de liberdade com a ideia de fim Analogicamente assim como o
intelecto adere aos primeiros princiacutepios a vontade deve pois aderir ao fim uacuteltimo que
eacute a bem-aventuranccedila uma vez que a bem-aventuranccedila ou a felicidade eacute almejada
124
por todos Assim sendo compreende-se que o fato de haver uma vontade natural natildeo
implica uma contradiccedilatildeo com uma vontade livre
Instigar a vontade a agir e mover-se em busca de um fim eacute funccedilatildeo da intenccedilatildeo
Ela move natildeo somente a vontade mas todas as potecircncias do ser humano em busca
de um fim Tomaacutes de Aquino desenvolve o conceito intenccedilatildeo num duplo sentido
designa por um lado a intenccedilatildeo voluntaacuteria e por outro intenccedilatildeo aplicada agrave definiccedilatildeo
enquanto se exprime a intenccedilatildeo da verdade a intenccedilatildeo de bem Ela eacute o actus
voluntatis em busca dos fins quer transitoacuterios quer do uacuteltimo do homem Nesse
sentido pode-se afirmar que pela intenccedilatildeo os atos voluntaacuterios tornam-se unos o que
implica posteriormente em uma unidade da vida moral
No desenvolvimento que Aristoacuteteles faz sobre os atos voluntaacuterios estaacute
presente de forma latente a ideia de intenccedilatildeo Tomaacutes de Aquino aprofunda de modo
consideraacutevel este conceito Se a intenccedilatildeo se relaciona com os fins intermediaacuterios e
em relaccedilatildeo ao fim uacuteltimo pode-se firmar a ideia que ela atua em cada um dos atos
concernentes aos meios e a escolha Ou seja a intenccedilatildeo eacute ativa em todo
desenvolvimento das accedilotildees
O aprofundamento dos conceitos da psicologia filosoacutefica tomista e o estado em
que o autor deixou estes conceitos se firmaram com muita forccedila no seio da Tradiccedilatildeo
filosoacutefica Pelo conceito de arbiacutetrio bruto e livre arbiacutetrio o Kant da Metafiacutesica dos
Costumes assume quase que com a mesma nomenclatura o formato tomista dos
termos no mesmo texto os conceitos kantianos de sentimento moral e consciecircncia
moral satildeo por demais semelhantes aos conceitos de sindeacuterese e de consciecircncia Na
proacutepria contemporaneidade o conceito de intencionalidade perpassou tanto a eacutetica
quanto a fenomenologia Estas influecircncias filosoacuteficas asseguram ao pensamento
cristatildeo lugar na Tradiccedilatildeo Jaacute os conceitos da psicologia filosoacutefica comprovam a ideia
inicial que a teoria de uma Eacutetica das virtudes sugerida ao pensamento
contemporacircneo necessita considerar os achados do pensamento cristatildeo em seu
processo de fundamentaccedilatildeo
A partir das consideraccedilotildees elencadas eacute possiacutevel confirmar uma das ideias
iniciais desta pesquisa Um breve olhar sobre o vocabulaacuterio moral contemporacircneo
permite perceber que nele haacute muito do conteuacutedo semacircntico de conceitos que foram
forjados no seio do pensamento cristatildeo
125
Cabe ainda explicitar alguns achados no pensamento de Santo Tomaacutes
passiacuteveis de serem relacionados ao pensamento de MacIntyre Esta tarefa natildeo eacute
como se afirmou acima uma listagem de erros do autor mas possibilidades de
encontro dos dois filoacutesofos
Em Depois da Virtude MacIntyre desenvolveu um novo conceito de virtude que
de certo modo reabilitasse o discurso moral Antes de falar dos elementos que
compotildee a sua teoria moral eacute possiacutevel encontrar um inconveniente a sua teoria moral
e seu conceito de virtude natildeo levam em conta uma Psicologia Filosoacutefica Eacute bem
verdade que ele afirmou os ldquoriscosrdquo da biologia metafiacutesica de Aristoacuteteles entretanto
uma das coisas que foram encontradas nesta pesquisa foi a relaccedilatildeo estreita que
existe entre as virtudes e a compreensatildeo de homem A articulaccedilatildeo do cataacutelogo das
virtudes estaacute em consonacircncia com a constituiccedilatildeo do homem e com as potecircncias que
ele necessita desenvolver em busca de seu melhor Saliente-se que MacIntyre
posteriormente em Dependent rational animals reconheceu a importacircncia de uma
psicologia filosoacutefica
O conceito macintyreano de praacuteticas se alinha ao seu meacutetodo e consiste em
encontrar manifestaccedilotildees histoacutericas que sirvam de apoio agraves suas investigaccedilotildees Seu
conceito de Praacuteticas se refere agraves formas coerentes e complexas da atividade humana
que satildeo socialmente estabelecidas e como tais ampliadores dos poderes humanos
na forma de excelecircncia e transmissores dos bens internos inerentes a essas Praacuteticas
Eacute possiacutevel em Tomaacutes de Aquino conforme demonstrado que a vivecircncia das virtudes
como atualizaccedilatildeo das potecircncias do homem se daacute sob accedilotildees diversas e sob diversas
circunstacircncias da histoacuteria Assim parece a esta pesquisa que o desenvolvimento
histoacuterico das virtudes manteacutem uma certa similitude ao conceito de praacuteticas
Na questatildeo da unidade das virtudes que foi uma questatildeo apontada pelo proacuteprio
MacIntyre como contendo um erro de sua anaacutelise viu-se que segundo Tomaacutes de
Aquino haacute uma ideia de interdependecircncia entre as virtudes A articulaccedilatildeo interna
entre as potecircncias do homem proporciona tambeacutem uma articulaccedilatildeo e tambeacutem uma
hierarquizaccedilatildeo entre as virtudes A unidade das virtudes proporciona ainda uma
consolidaccedilatildeo da unidade do caraacuteter moral de um agente Ora o conceito de unidade
das virtudes contribuiria por demais com a componente a ordem narrativa de uma
vida humana singular Eacute claro que a unidade das virtudes diz pouco ou quase nada agrave
noccedilatildeo de narrativa Entretanto o conceito de unidade das virtudes atinge um objetivo
126
similar ao conceito macintyreano a saber considerar cada vida humana como uma
unidade singular Tambeacutem foi verificado que natildeo apenas o conceito de unidade das
virtudes mas tambeacutem o conceito de intencionalidade no estudo dos atos humanos
foi capaz de preencher este requisito e mais ainda lanccedilou luzes agrave ideia de
consciecircncia aprofundada com propriedade pelo pensamento cristatildeo e assumido pelo
pensamento moderno praticamente na forma como os medievais deixaram
127
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Catalogaccedilatildeo na fonte
Bibliotecaacuteria Maria do Carmo de Paiva CRB4-1291
B478a Benvinda Nalfran Modesto
Alasdair Macintyre e Tomaacutes de Aquino a questatildeo da ldquoEacutetica das Virtudesrdquo e
sua interpretaccedilatildeo pelo pensamento cristatildeo Nalfran Modesto Benvinda ndash 2017
129 f 30 cm
Orientador Prof Dr Marcos Roberto Nunes Costa
Tese (doutorado) - Universidade Federal de Pernambuco CFCH
Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da UFPB-UFPE-UFRN Recife
2017
Inclui referecircncias
1 Filosofia 2 Eacutetica 3 Virtudes 4 Macintyre Aladair C 1929- 5 Tomaacutes de
Aquino Santo 1225-1274 I Costa Marcos Roberto Nunes (Orientador) II
Tiacutetulo
100 CDD (22 ed) UFPE (BCFCH2019-067)
NALFRAN MODESTO BENVINDA
ALASDAIR MACINTYRE E TOMAacuteS DE AQUINO
a questatildeo da ldquoEacutetica das Virtudesrdquo e sua interpretaccedilatildeo pelo
pensamento cristatildeo
Tese de Doutorado aprovada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da UFPB-UFPE-UFRN
Aacuterea de pesquisa Filosofia Praacutetica
Aprovada em 16 08 2017
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________ Prof Dr Marcos Roberto Nunes Costa (Orientador)
Universidade Federal de Pernambuco
_________________________________________________ Prof Dr Joseacute Francisco Preto Meirinhos (1ordm Examinador)
Universidade do Porto
_______________________________________________ Prof Dr Claudio Pedrosa Nunes (2ordm Examinador)
Universidade Federal de Campina Grande
________________________________________________ Prof Dr Edmilson Alves de Azevedo (3ordm Examinador)
Universidade Federal da Paraiacuteba
________________________________________________________ Prof Dr Gilfranco Lucena dos Santos (4ordm Examinador)
Universidade Federal da Paraiacuteba
A Ana Luiacutesa Rafael Joseacute e Adriana
AGRADECIMENTOS
Do fundo do meu coraccedilatildeo agradeccedilo
A Deus pelo dom da feacute da existecircncia e da capacidade de pensar
A Adriana Rafael Joseacute e Ana Luiacutesa que suportaram com muito amor o
processo doloroso e fecundo de construccedilatildeo desta pesquisa
Aos meus pais Francisco e Nataacutelia a quem sou grato pelo dom da vida e pela
educaccedilatildeo que recebi Aos meus irmatildeos Junior e Kaline por serem quem satildeo
Cunhados Marques Alessandra Luciana e Paulinho Meus sobrinhos Ceciacutelia
Viniacutecios Ana Caroline Ana Beatriz e Paulinho
Agrave minha sogra Dona Carminha meu sogro Modestino de Arruda Fontes (in
memoriam) e agrave famiacutelia Fenelon
Ao meu orientador Marcos Roberto Nunes Costa pela confianccedila disposiccedilatildeo
incentivo em fazer-me crescer na difiacutecil tarefa do pensar e do produzir em Filosofia
Agrave Profa Patriacutecia Lira revisora do texto e dos erros que meus olhos jaacute natildeo
enxergavam
Aos membros da banca professores Edmilson Azevedo Claacuteudio Pedrosa
Nunes Joseacute Francisco Preto Meirinhos Gilfranco Lucena e Marcos Costa
A todo o corpo docente do Programa de Doutorado Integrado em Filosofia das
Universidades Federal de Pernambuco Federal da Paraiacuteba e Federal do Rio Grande
do Norte na pessoa do seu coordenador Geral Prof Dr Alfredo Moraes
Ao povo brasileiro que atraveacutes da CAPES financiou esta pesquisa por 2 anos
A Miguel Antocircnio ex-coordenador Geral do Programa pelas contribuiccedilotildees que
pudemos Aos discentes do Programa pela confianccedila que me concederam em
representar-lhes
Aos amigos de minha turma de Doutorado Gleidmar Graciele Coutinho Marta
Fernandes e Faacutebio ldquoque nos tornamos amigos ao calor dos estudosrdquo
A meu amigo irmatildeo pessoa por quem tenho grande amor e admiraccedilatildeo
Gilfranco Lucena
Agrave gestatildeo professores e funcionaacuterios e alunos da Faculdade Satildeo Miguel
especialmente do Curso de Licenciatura em Letras onde na docecircncia aprofundei o
meu conhecimento na docecircncia da liacutengua latina
Aos colegas de trabalho alunos e alunas da UNEAL - Universidade Estadual
de Alagoas minha nova casa
A Faacutetima Costa Marcela George e Mauriacutecio da Faculdade Filosofia Ciecircncias
e Letras de Caruaru ndash FAFICA
Aos amigos Peacutericles Gena Mazurk Ricardo Carvalho Tambeacutem a Harlen
Ricardo e Diego Marques A todos os amigos e amigas da FACOL
A todos os que a mim estiveram unidos para que eu pudesse concluir esse
trabalho
Meus sinceros agradecimentos
ldquo [] Homo habet naturaliter rationem et manus quae sunt organa organorum
quia per eas homo postest sibi praeparare instrumenta infinitorum modorum et ad
infinitus effectusrdquo
ldquo [] O homem possui por natureza a razatildeo e as matildeos que satildeo os oacutergatildeos dos
oacutergatildeos porque por elas pode preparar para si uma variedade infinita de instrumentos
para infinitos efeitosrdquo (ARISTOacuteTELES apud TOMAacuteS DE AQUINO STh I q76 a5)
RESUMO
A Eacutetica das Virtudes e sua fundamentaccedilatildeo satildeo o objeto de estudo desta
pesquisa Partindo do pensamento de Alasdair Macintyre autor de Depois da Virtude
o trabalho apresenta o esforccedilo do pensamento contemporacircneo em reabilitar esta
proposta eacutetica Seguindo a orientaccedilatildeo do proacuteprio Macintyre de que seria necessaacuterio
investigar a reconciliaccedilatildeo que Tomaacutes de Aquino operou entre a tradiccedilatildeo biacuteblica e o
pensamento aristoteacutelico o texto responde agrave seguinte pergunta a Eacutetica das Virtudes
de raiz aristoteacutelica pode receber contribuiccedilotildees do pensamento cristatildeo especialmente
de natureza tomista A tese que brota como tentativa de resposta a esta questatildeo eacute a
de que o pensamento cristatildeo via Tomaacutes de Aquino oferece significativas
contribuiccedilotildees agrave fundamentaccedilatildeo desta corrente do pensamento eacutetico A pesquisa
bibliograacutefica de natureza indutiva percorre um caminho de anaacutelise e interpretaccedilatildeo
dos textos fundamentais do Macintyre Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino Na busca de
atingir sua finalidade satildeo aprofundados os temas acerca do ldquoanti-iluminismo eacuteticordquo e
a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes ao pensamento contemporacircneo Nesta parte
abordam-se as principais criacuteticas agrave ldquoeacutetica do deverrdquo e a ldquoeacutetica utilitaristardquo ou
ldquoconsequencialistardquo em seguida apresenta-se a criacutetica de Macintyre ao projeto
moderno de fundamentaccedilatildeo da eacutetica como tambeacutem a sua teoria moral fundamentada
numa Eacutetica das Virtudes por fim a partir da proacutepria indicaccedilatildeo do Macintyre de que
sua leitura do pensamento tomista foi insuficiente o texto analisa fundamentos da
Eacutetica das Virtudes em Aristoacuteteles e apresenta os conceitos do pensamento tomista
que aqui entende-se como o contributo a esta eacutetica
Palavras-chave Eacutetica Virtudes Pensamento cristatildeo
ABSTRACT
The Virtue Ethics and its fundamentals are the object of this research Starting
from Alasdair Macintyrersquos thought author of After Virtue the work presents the effort
of the contemporary thought on rehabilitating this ethical purpose According to
Macintyre own orientation that it would be necessary to investigate the reconciliation
which Thomas Aquinas operated between the biblical tradition and the aristotelian
thought the text responds to the following question can The Virtue Ethics of
aristotelian roots receive contributions from the Christian thought specially of
thomistic nature The thesis which buds as an attempt to answer this question is the
one that the Christian thought via Thomas Aquinas offers meaningful contributions to
the fundamentals of this current of ethical thoughts The bibliographical research of
inductive nature goes through a path of analysis and interpretation of Macintyrersquos
Aristotlersquos and Thomas Aquinasrsquos fundamental texts In the search for reaching its goal
themes about ldquoethical anti-enlightenmentrdquo and the relocation of Virtue Ethics to the
contemporary thought are deepened In this part the main criticisms to ldquothe ethics of
dutyrdquo and ldquothe utilitarianistrdquo or ldquoconsequentialist ethicsrdquo are approached in the following
part it is presented a critic by Macintyre to the modern fundamentals of ethics as well
as his theory of moral based on an Virtue Ethics finally from Macintyrersquos own
indication that his reading of the thomistic thought was insufficient the text analyses
the fundamentals of the Virtue Ethics in Aristotle and presents the concepts of the
thomistic thought that here is understood as a contribution to this ethics
Keywords Ethics Virtues Christian thought
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO 13
2 O ANTIILUMINISMO EacuteTICO E A EacuteTICA DAS VIRTUDES 16
21 SOBRE A RE-COLOCACcedilAtildeO DA VIRTUE ETHICS 16
211 Sobre a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica 20
212 A incoerecircncia do dever moral 25
213 Criacutetica ao utilitarismo 29
214 A diacutevida filosoacutefica de MacIntyre ao pensamento de
Gertrude Anscombe 32
3 A CRIacuteTICA DE MACINTYRE AO PROJETO MODERNO
DE FUNDAMENTACcedilAtildeO DA MORALIDADE 35
31 A ALEGORIA INICIAL DE DEPOIS DA VIRTUDE 35
32 AS TESES MODERNAS SOBRE A FUNDAMENTACcedilAtildeO
DA ORALIDADE 37
33 O FRACASSO DO PROJETO ILUMINISTA 40
331 O passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana 41
332 A incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a
noccedilatildeo de natureza humana na moral moderna 42
3321 O passado cristatildeo e o novo conceito de razatildeo 43
3322 A ciecircncia e a filosofia do seacuteculo XVII 45
3323 A incoerecircncia entre o posicionamento pela lsquofalecircnciarsquo da razatildeo
e a decisatildeo pela noccedilatildeo de natureza humana 45
3324 Sobre a mudanccedila do significado dos juiacutezos morais 47
4 O PROJETO DE DEPOIS DA VIRTUDE E A TEORIA
MORAL DE MACINTYRE 49
41 O ANTES DE DEPOIS DA VIRTUDE 49
411 Vida social e conceitos morais 50
412 Fundamentaccedilatildeo das proposiccedilotildees normativas 51
413 O emotivismo 52
42 A OBRA DEPOIS DA VIRTUDE 54
421 A natureza das virtudes tese central de Depois da Virtude 55
422 O conceito de praacuteticas 57
423 Ordem narrativa de uma vida humana singular 60
423 Tradiccedilatildeo 64
5 RECONCILIACcedilAtildeO ENTRE O PENSAMENTO CRISTAtildeO
E O ARISTOTELISMO 67
51 AS VIRTUDES E A TEORIA ARISTOTEacuteLICA DOS ATOS ndash EN III 1-8 69
511 Do voluntaacuterio e do involuntaacuterio 70
512 A escolha deliberada 72
513 A definiccedilatildeo do objeto do querer 73
52 A SIacuteNTESE TOMISTA ATOS HUMANOS E FILOSOFIA MORAL 77
521 Os atos humanos em Santo Tomaacutes de Aquino 78
522 Sindeacuterese e consciecircncia 79
523 O conceito de vontade 80
524 A relaccedilatildeo entre inteligecircncia e vontade 84
525 A liberdade do ato voluntaacuterio e a distinccedilatildeo entre liberdade e livre-
arbiacutetrio 86
526 A intenccedilatildeo 91
53 TOMISMO E EacuteTICA DAS VIRTUDES 93
531 Vida feliz e virtudes antes da siacutentese tomista 94
5311 A construccedilatildeo de uma parte moral na teologia 97
5312 A fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista 99
532 O lugar das virtudes na teologia e sua explicitaccedilatildeo 100
5321 A beatitude e o lugar das virtudes na siacutentese teoloacutegica tomista 100
5312 A concepccedilatildeo tomista de homem e as virtudes 101
5313 A explicitaccedilatildeo do conceito de virtude e a releitura tomista
da teoria das virtudes 105
53131 A perfeiccedilatildeo da potecircncia e habito operativo 105
53132 As virtudes teologais 107
53133 A virtude da justiccedila 107
53134 A unidade das virtudes e conexatildeo entre as virtudes 108
53135 O habitus e vontade livre 111
53136 As virtudes eacuteticas e a razatildeo 113
53137 A relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo tomista de pessoa 114
532 A eacutetica antiga assunccedilatildeo compatibilizaccedilatildeo e superaccedilatildeo 115
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 119
REFEREcircNCIAS 127
13
1 INTRODUCcedilAtildeO
A histoacuteria do homem em seus desdobramentos de sentidos tem sido a luta para
definir o certo e o errado enquanto conjunto de valores que orienta as accedilotildees e
possibilita o homem como singularidade e comunidade Em relaccedilatildeo a Filosofia a
preocupaccedilatildeo com a experiecircncia eacutetica eacute uma das questotildees centrais da atitude criacutetico-
reflexiva e definiu o encaminhamento dos pensadores desde os preacute-socraacuteticos ateacute a
contemporaneidade Em todos os momentos de sua histoacuteria o homem tenta
compreender as accedilotildees como decorrecircncia de valores que orientam o seu agir O
homem eacute a um soacute tempo norma e desejo de quebraacute-la Isto longe de ser uma
deficiecircncia da condiccedilatildeo humana constitui precisamente seu salto maior Salto sobre
o reino da necessidade e que possibilita o advento do reino da liberdade
O pensamento eacutetico ocidental eacute profundamente marcado pelas figuras de
Aristoacuteteles Tomaacutes de Aquino dentre outros Aristoacuteteles trabalha com a ideia de que
o estudo dos atos humanos da virtude e do bem para o homem considerado
individualmente pertence a eacutetica Esta ciecircncia enquanto ciecircncia praacutetica conduz agrave
compreensatildeo do que seja o bem supremo para o ser humano e quais atitudes o
conduzem mais adequadamente a esse fim Tomaacutes de Aquino enquanto
representante da eacutetica cristatilde assume a estrutura da eacutetica de Aristoacuteteles
estabelecendo uma reinterpretaccedilatildeo dessa moral agrave luz da moral cristatilde Assim o que
em Tomaacutes de Aquino se menciona como felicidade possui um conteuacutedo distinto
daquilo que Aristoacuteteles compreendia por este termo
O pensamento moderno promove uma virada no esquema claacutessico da eacutetica
Kant eacute por assim dizer o exemplar que traduz os anseios do pensamento moderno
em relaccedilatildeo agrave Filosofia Praacutetica O ideal de autonomia e a constituiccedilatildeo de uma moral do
dever marcam profundamente este momento da histoacuteria do pensamento Nas palavras
de Otfried Houmlffe deve-se a Kant a radicalizaccedilatildeo de uma filosofia moral que reivindica
a pretensatildeo de uma validade objetiva A origem da moralidade pode ser encontrada
no caraacuteter autolegislador do sujeito Ateacute mesmo as outras expressotildees do pensamento
eacutetico moderno corroboram com a ideia de que o fundamento das accedilotildees humanas
encontra sua fonte no sujeito
14
Como eacute comum ao pensamento contemporacircneo este eacute marcado pela criacutetica
ao pensamento moderno Desde Nietzsche ateacute Wittgenstein Habermas Hans Jonas
MacIntyre todos eles trazem consigo ressalvas ao pensamento moderno o que vai
causar grandes siacutenteses principalmente do diagnoacutestico das fragilidades do discurso
moral moderno Por outro lado parece natildeo ser mais possiacutevel encontrar uma grande
siacutentese do pensamento eacutetico De qualquer maneira seja para negar ou para propor
a eacutetica permanece como uma das questotildees filosoacuteficas mais relevantes do pensamento
contemporacircneo
Alasdair MacIntyre se insere na filosofia moral contemporacircnea Esta pesquisa
considera que a grandeza de seu pensamento reside no esforccedilo que ele fez para
efetivar uma teoria moral agrave contemporaneidade ao modo de uma eacutetica das virtudes
MacIntyre encontra sua inspiraccedilatildeo filosoacutefica no movimento moral inglecircs denomina
Virtue Ethics Gertrude Anscombe eacute uma das figuras inspiradores deste movimento e
deixa como heranccedila dois elementos fundamentais ao pensamento de MacIntyre a
saber sua criacutetica agrave moral moderna e sua opccedilatildeo pela Eacutetica das Virtudes Embora
tributaacuterio de Gertrude Anscombe a proximidade de MacIntyre com o marxismo e com
as ciecircncias sociais proporciona a ele um itineraacuterio filosoacutefico peculiar
O objetivo deste trabalho eacute tomar o pensamento de MacIntyre e sua criacutetica
efetivada agrave modernidade criacutetica esta que o leva a retomar a Eacutetica das Virtudes a partir
de Aristoacuteteles propondo para a contemporaneidade um modelo de filosofia praacutetica
centrado natildeo nas accedilotildees mas no agente No entanto conforme seu proacuteprio
testemunho a relaccedilatildeo entre o aristotelismo e o pensamento cristatildeo natildeo foi
apresentada adequadamente (cf MACINTYRE 2001) No iniacutecio de Justiccedila de Quem e
Qual racionalidade (cf MACINTYRE 2001) MacIntyre reconhece a precariedade de
sua interpretaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino em relaccedilatildeo agrave Eacutetica das Virtudes Essa
precariedade consiste em natildeo haver pensado com suficiente radicalidade a
reconciliaccedilatildeo que Tomaacutes de Aquino operou entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica
Este trabalho parte deste ponto seu objetivo eacute dar continuidade ao que MacIntyre
deixou inacabado no que se refere ao tratamento que Tomaacutes de Aquino efetivou entre
o aristotelismo e o pensamento cristatildeo Assim onde termina o pensamento do
MacIntyre de Depois da Virtude eacute o ponto de iniacutecio desta pesquisa
O desenvolvimento do objetivo acima proposto exige uma exposiccedilatildeo do que
significa a Eacutetica das Virtudes e sua forma histoacuteria de retorno bem como de sua relaccedilatildeo
15
com Aristoacuteteles Requer tambeacutem a tematizaccedilatildeo do modo como o pensamento cristatildeo
retomou e reelaborou esta eacutetica O posicionamento deste trabalho se fundamenta na
tese de que uma Eacutetica das Virtudes que pretenda recorrer a Aristoacuteteles natildeo pode se
apresentar como alternativa agrave contemporaneidade sem considerar a contribuiccedilatildeo do
pensamento cristatildeo visto que o universo cultural e semacircntico dos conceitos morais
da contemporaneidade eacute perpassado pela influecircncia deste pensamento
Os autores que orientam esta pesquisa satildeo principalmente Alasdair MacIntyre
Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino atraveacutes das obras que se referem agrave Filosofia Moral
Com relaccedilatildeo ao pensamento de MacIntyre seraacute realizado um corte epistemoloacutegico
que parte da obra Depois da Virtude e manteacutem seu foco na tarefa que esta obra deixou
em aberto Os possiacuteveis desdobramentos do pensamento de MacIntyre natildeo se
constituem como empecilho ao desenvolvimento desta pesquisa
Para a realizaccedilatildeo do objetivo proposto faz-se necessaacuterio organizar a estrutura
do trabalho do seguinte modo no primeiro capiacutetulo O Antiiluminismo Eacutetico e a Eacutetica
das Virtudes seraacute feita uma exposiccedilatildeo geral sobre os fundamentos da eacutetica das
virtudes e como esta retorna ao cenaacuterio da filosofia moral contemporacircnea o segundo
A Criacutetica de MacIntyre ao Projeto Moderno de Fundamentaccedilatildeo da Moralidade trata
da primeira tarefa de Depois da Virtude ou seja de como a moral contemporacircnea
resulta segundo MacIntyre do desacordo das teses modernas de fundamentaccedilatildeo da
moralidade e de suas incoerecircncias denominadas por ele lsquofalecircnciarsquo do projeto
iluminista O terceiro capiacutetulo O Projeto de Depois da Virtude expotildee a teoria moral
de MacIntyre retomando os conceitos anteriores a obra mas que determinaram e se
mantiveram presentes nela a quarta parte da tese Tradiccedilatildeo Biacuteblica e Aristotelismo
aborda a Reconciliaccedilatildeo Tomista do Aristotelismo e da Tradiccedilatildeo Biacuteblica na Filosofia
Moral
16
2 O ANTIILUMINISMO EacuteTICO E A EacuteTICA DAS VIRTUDES
O pensamento de MacIntyre se insere numa corrente da Filosofia Moral Inglesa
do seacuteculo XX denominada Eacutetica das Virtudes Este movimento teraacute grande influecircncia
em seu pensamento especialmente na criacutetica que eacute apresentada agrave Moral Moderna
como tambeacutem no esforccedilo de promover uma releitura da Eacutetica de Aristoacuteteles e de
compatibilizaacute-la agraves exigecircncias do pensamento contemporacircneo Esta seccedilatildeo apresenta
esse movimento e seu questionamento dos fundamentos da moral moderna como
tambeacutem apresenta as principais teses daacute Eacutetica das Virtudes por meio dos
pensamentos de Rosalind Hursthouse e de Gertrude Anscombe
A Filosofia Moral Inglesa da segunda deacutecada do seacuteculo XX foi denominada
Virtue Ethics porque propocircs a recolocaccedilatildeo da problemaacutetica das accedilotildees agrave luz da eacutetica
das virtudes Tem como foco o questionamento da moral moderna e o renascimento
da eacutetica aristoteacutelica A intenccedilatildeo era constituir a Eacutetica das Virtudes como uma terceira
via entre a Filosofia Deontoloacutegica kantiana e o utilitarismo eacutetico tatildeo fortemente
instituiacutedo no Ocidente Qual eacute a necessidade de uma terceira via para a filosofia
moral Quais satildeo as insuficiecircncias das eacuteticas deontoloacutegicas e utilitaristas que
justificam esta empreitada Estas satildeo questotildees que orientam a construccedilatildeo teoacuterica
deste capiacutetulo
Serviratildeo de apoio epistemoloacutegico aleacutem do MacIntyre a obra Sobre a Eacutetica das
Virtudes (cf HURSTHOUSE 2001)1 de Rosalind Hursthouse e o texto A filosofia
moral moderna de Gertrude Anscombe pensadora que com grande relevacircncia
influenciou o itineraacuterio filosoacutefico Alasdair MacIntyre
21 SOBRE A RE-COLOCACcedilAtildeO DA VIRTUE ETHICS
Segundo Rosalind Hursthouse (cf HURSTHOUSE 2001) Virtue Ethics eacute um
termo teacutecnico que inicialmente diferenciava uma eacutetica normativa com o foco nas
virtudes e no caraacuteter das abordagens eacuteticas que enfatizavam os direitos ou regras
denominadas deontologias e das que destacavam as consequecircncias das accedilotildees
1 Rosalin Hursthouse eacute professora de Filosofia da Universidade de Auckland na Nova Zelacircndia No
Doutorado foi orientanda de Elizabeth Anscombe e Philippa Ruth Foot
17
denominadas de consequencialismo ou utilitarismo (cf HURSTHOUSE 2001 p1)
Para ilustrar a definiccedilatildeo a autora propotildee o seguinte exemplo
Imagine um caso em que eacute oacutebvio que eu deveria por exemplo ajudar algueacutem em necessidade Um utilitarista iria destacar o fato de que o resultado de minha accedilatildeo contribuiria com o bem estar do necessitado Um deontologista diria que minha accedilatildeo estaacute de acordo com a maacutexima fazer aos outros aquilo que eu gostaria que fosse feito comigo e finalmente um filoacutesofo das virtudes diria que o fato de ajudar a quem precisa seria sinal de benevolecircncia ou caridade (HURSTHOUSE 2001 p1)
A posiccedilatildeo do utilitarista considera que ajudar a um necessitado deve ser visto
em virtude do resultado da accedilatildeo jaacute o deontologista compreende a accedilatildeo pela
perspectiva da universalizaccedilatildeo do ato de ajudar algueacutem finalmente para o filoacutesofo
das virtudes a accedilatildeo eacute boa porque eacute expressatildeo de um agente bom
A Eacutetica das Virtudes eacute uma abordagem ao mesmo tempo antiga e nova para
a Filosofia Praacutetica Antiga porque remonta a Platatildeo e Aristoacuteteles e nova se se
considera sua recolocaccedilatildeo como alternativa ao pensamento moral contemporacircneo
Rosalind Hursthouse enfatiza que apenas dois tipos de abordagem dominaram a eacutetica
normativa nos uacuteltimos 30 anos2 a deontoloacutegica inspirada primordialmente em Kant
e a utilitarista tendo como representantes mais importantes Jeremy Bentham e John
Stuart Mill Ainda segundo a supracitada Filoacutesofa lsquoentre os muitos livros e artigos
publicados sobre a eacutetica normativa discutia-se ampliava-se corrigia-se apenas as
duas abordagens jaacute mencionadas entretanto natildeo figurava entre elas nenhum texto
que fizesse referecircncia a uma terceira possibilidadersquo (cf HURSTHOUSE 2001 p 2)
permanecendo impensada uma terceira possibilidade para a Filosofia Moral de entatildeo
Rosalind Hursthouse ainda acrescenta que em alguns manuais de graduaccedilatildeo
sobre eacutetica normativa vaacuterios artigos criacuteticos da ortodoxia dominante pleitearam um
reconhecimento da eacutetica das virtudes Em alguns paraacutegrafos dizia-se lsquoo que um
filoacutesofo da virtude3 diria nesse casorsquo Para a referida Autora as menccedilotildees agrave moral das
virtudes o mais das vezes tendiam a ser curtas e com desprezo Rigorosamente
falando a Eacutetica das Virtudes natildeo era considerada como uma uma alternativa viaacutevel
uma vez que suas interferecircncias se referiam apenas a aspectos interessantes sobre
os motivos e o caraacuteter do agente moral que podiam ser inseridos como informaccedilotildees
complementares a essas abordagens A Eacutetica das Virtudes era ateacute entatildeo
2 A Autora estaacute escrevendo em 1998 Assim sendo deve-se entender lsquonos uacuteltimos 40 anosrsquo 3 Esta eacute uma traduccedilatildeo proposta para a expressatildeo virtue ethicist
18
considerada como um lsquogarotorsquo mais novo entre os rapazes podia entrar no lsquojogorsquo
mas natildeo era contado efetivamente como um lsquojogadorrsquo Somente em pouco mais de 40
anos a Eacutetica das Virtudes adquiriu o status completo ocupando a qualidade de
terceira das abordagens morais rivalizando com deontologistas e ou utilitaristas
A respeito de um retorno da Eacutetica das Virtudes Rosalind Hursthouse apresenta
as seguintes questotildees por que a Filosofia Moderna4 (ou contemporacircnea) revive a
antiga abordagem da Eacutetica das Virtudes Por que o pensamento contemporacircneo ou
um movimento de pensadores sentiu a necessidade de promover um retorno ao
pensamento antigo especialmente a Aristoacuteteles Sabe-se que existe uma grande
distacircncia temporal entre a contemporaneidade seus escritos e sua organizaccedilatildeo
social Aleacutem disso muitos dos pontos de vista desses autores como por exemplo a
escravidatildeo o lugar da mulher na sociedade satildeo na realidade insustentaacuteveis No
entanto Rosalind Hursthouse enfatiza que nenhum dos filoacutesofos da virtude estaacute
comprometido com os detalhes lsquoparoquiaisrsquo de Aristoacuteteles assim como nenhum dos
deontologistas estaacute comprometido com as opiniotildees de Kant sobre os animais por
exemplo (cf HURSTHOUSE 2001 p 2)5 Para Rosalind Hursthouse a questatildeo
fundamental eacute que ao lado desses motivos haacute muitos outros que se empotildee para o
renascimento ou recolocaccedilatildeo das moral das virtudes a saber a sabedoria praacutetica a
amizade e o relacionamento familiar o aprofundamento do conceito de felicidade o
papel das emoccedilotildees na vida moral dos indiviacuteduos Esses temas afirma a autora
praticamente desapareceram do vocabulaacuterio filosoacutefico do pensamento moral dos
seacuteculos XVIII e XIX Dessa maneira o renascimento da Eacutetica das Virtudes natildeo eacute uma
simples coincidecircncia Ele coincide com a redescoberta desses temas fundamentais
em virtude do proacuteprio apelo que eles impotildeem agrave existecircncia humana Esses temas natildeo
satildeo devidamente considerados pelos pensadores modernos e na opiniatildeo de Rosalind
Hursthouse aos olhos de algueacutem mais atento satildeo reconhecidos como as temaacuteticas
sempre pertinentes agrave Filosofia Moral (cf HURSTHOUSE 2001 p 3)
Atraveacutes da recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes Rosalind Hursthouse salienta
que a redescoberta da Eacutetica das Virtudes proporcionou revisotildees e releituras por parte
demuitos defensores da eacutetica do dever ou entre os utilitaristas Atraveacutes dessas
4 Esta eacute a terminologia utilizada por Rosalind Hursthouse A julgar a distacircncia temporal pequena mas
significante seraacute utilizada a expressatildeo Contemporacircnea 5 Aqui a autora faz referecircncia agrave posiccedilatildeo kantiana de que os animais satildeo coisas e que o maior defensor
da liberaccedilatildeo dos animais Tom Regam seja um deontologista
19
revisotildees eacute que foram propostas temaacuteticas como a Doutrina kantiana da virtude Outros
pensadores como McDowell promoveram aproximaccedilotildees entre Aristoacuteteles e Kant
enquanto autores como Herman e Korsgaard trouxeram Kant mais perto de Aristoacuteteles
(cf HURSTHOUSE 2001 p 4)
A reconsideraccedilatildeo de noccedilotildees e de temas da Eacutetica das Virtudes gerou um
problema acerca dos limites entre as abordagens eacuteticas Esses limites se referem ao
fato de que a especificidade de cada abordagem natildeo parece bem determinada
Rosalind Hursthouse afirma que jaacute natildeo eacute mais tatildeo simples afirmar genericamente que
a eacutetica das virtudes eacute uma corrente que enfatiza as virtudes Do mesmo modo a
deontologia e o utilitarismo tambeacutem natildeo podem ser resolvidos apenas pela descriccedilatildeo
que um e outro enfatizam regras ou consequecircncias em contraste com o caraacuteter do
agente
O fim da problematizaccedilatildeo entre as especificidades das abordagens eacuteticas para
Rosalind Hursthouse aponta natildeo para uma separaccedilatildeo ldquobarristardquo entre as abordagens
Eu suspeito que a persistecircncia da crenccedila da eacutetica da virtude natildeo eacute como afirmei acima lsquouma rival para abordagens deontoloacutegicas e utilitaristas mas se apresenta como interessante e desafiadora entre elas
a abordagem ainda eacute nova o suficiente para ser distinta e o objetivo deste livro eacute explorar o que pode ser adquirido como insights para a filosofia moral sendo escrito de uma forma muito detalhada e compreensiva Se os utilitaristas e deontologistas estiverem em desacordo com o que eu digo que eacute claro que eu quero eacute discutir com eles e talvez alguns dos nossos pontos de atrito sejam apenas sobre teses particulares que tipicamente embora natildeo universalmente eles defendem e rejeitam na eacutetica das virtudes ou vice-versa Eu natildeo deveria estar inclinada para argumentar em tudo Eu deveria estar feliz por todos noacutes pois isto significa parar de se preocupar sobre como distinguimos noacutes mesmos e acolher os nossos acordos (HURSTHOUSE 2001p 7)
A partir da afirmaccedilatildeo de Rosalind Hursthouse sente-se a necessidade de se
promover muito mais do que uma concorrecircncia entre as aborgadens eacuteticas um
reavivamento da moral das virtudes cuja expressividade ficou de certo modo
lsquomarginalizadarsquo na Tradiccedilatildeo Filosoacutefica dos seacuteculos XVIII e XIX A abertura para esta
abordagem conduz pois agrave compreensatildeo de que uma moral do dever ou uma eacutetica
centrada nos resultados natildeo foram suficientes para responder agraves demandas do agir
humano como tambeacutem sinaliza o reavivamento de uma eacutetica que valoriza accedilatildeo
20
apenas na medida em que ela for um desdobramento das condiccedilotildees e do
aprimoramento do agente moral atraveacutes das virtudes
A Eacutetica das Virtudes teve seu retorno a partir de algumas obras inspiradoras
particularmente o ensaio de Gertrude Anscombe Modern Moral Philosophy de 1958
Segundo Kevin Flannery o artigo Modern Moral Philosophy ao lado da obra Intention
consagrou Gertrude Anscombe como filoacutesofa Gertrude Anscombe foi interlocutora e
amiga particular de Wittgenstein Apoacutes a morte dele Gertrude Anscombe realizou uma
das melhores traduccedilotildees das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas para os leitores de liacutengua
inglesaque praticamente nunca foram contestadas em virtude de seu rigor e
fidelidade agrave obra do autor (cf FLANNERY 2009)
211 Sobre a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica
No texto A Filosofia Moral Moderna Gertrude Anscombe sugere algumas teses
A primeira eacute a de que ldquonatildeo eacute proveitoso fazer filosofia moral no tempo presente ateacute
que se tenha uma filosofia adequada da psicologiardquo (ANSCOMBE 2010 p 19) isto eacute
uma Psicologia Filosoacutefica Mas por que no tempo presente natildeo eacute proveitoso fazer
uma filosofia moral sem antes encontrar uma Psicologia Filosoacutefica E porque esta
Psicologia Filosoacutefica abre os horizontes para se fazer uma filosofia moral
contemporaneamente Essas satildeo as questotildees que orientam a construccedilatildeo desta
seccedilatildeo
Desde a Criacutetica da Razatildeo Pura a tarefa de construir uma Psicologia Filosoacutefica
tornou-se por demais complicada As conclusotildees de Kant expressas na Dialeacutetica
Transcendental mostraram a lsquofalecircnciarsquo que esta ciecircncia da Metafiacutesica Claacutessica
encontrou em seu intento de assegurar a imortalidade da alma
Ora na verdade natildeo haacute ningueacutem que possa extrair de princiacutepios especulativos a miacutenima base para semelhante afirmaccedilatildeo nem mesmo demonstrar-lhe a possibilidade soacute eacute possiacutevel supocirc-la mas tatildeo-pouco pode algueacutem opor-lhe qualquer objeccedilatildeo dogmaacutetica vaacutelida Pois ningueacutem sabe mais do que eu ou de que outro qualquer sobre a causa absoluta e intriacutenseca dos fenocircmenos exteriores e corporais Tambeacutem ningueacutem pode pretender saber com fundamento sobre que repousa no estado atual (na vida) a realidade dos fenocircmenos externos e por consequecircncia tambeacutem natildeo pode afirmar que a condiccedilatildeo de toda a intuiccedilatildeo externa ou tambeacutem o proacuteprio sujeito pensante deva cessar depois deste estado (na morte) (KANT 2001)
21
As conclusotildees de Kant na Criacutetica da Razatildeo Pura inviabilizaram a Psicologia
Racional na tarefa de demonstrar a imortalidade da alma Contudo a finalidade com
que Gertrude Anscombe sugere uma Psicologia Filosoacutefica tem agora um objetivo
distinto da antiga Psichologya Rationalis A Psicologia Filosoacutefica conforme Gertrude
Anscombe sugere serviraacute para apresentar o modo como os atos humanos satildeo
capazes de se relacionar com as virtudes Com efeito se as virtudes satildeo tipos de atos
realizados em favor do bem do homem um estudo sobre estes atos humanos
proporciona uma maior compreensatildeo sobre as virtudes e suas possibilidades no agir
do ser humano
A afirmaccedilatildeo de Gertrude Anscombe que sugere o abandono da moral pode ateacute
soar de maneira estranha vindo de uma moralista Entretanto o sentido desta
afirmaccedilatildeo eacute resgatado quando se entende o que a autora compreende como
aplicaccedilatildeo de uma psicologia filosoacutefica agrave moral Segundo Kevin Flannety esta recusa
se refere pelo menos inderetamente agrave maneira como uma psicologia proscede ao
estudar os fenocircmenos ou dados que existem necessariamente e exclusivamente na
mente isto eacute na interioridade do indiviacuteduo (cf FLANNERY 2009 p 44) Eacute em virtude
desta interioridade que Gertrude Anscombe compreende que a prioridade de uma
psicologia filosoacutefica para a filosofia moral se justifica porque as accedilotildees humanas se
fundamentam em processos internos da psiqueacute especialmente na chamada
intencionalidade Deste modo uma psicologia filosoacutefica como saber preliminar agrave
filosofia moral natildeo pode entre outras coisas prescindir do estudo da intencionalidade
Gertrude Anscombe entende a dificuldade de propor uma Psicologia Filosoacutefica
sem no entanto recorrer a experiecircncias e relatos de casos assim como acontece
com a psicologia empiacuterica Entretanto a autora natildeo parece se contentar com o que a
psicologia empiacuterica fez ao fenocircmemo da intencionalidade Com efeito esta ciecircncia
passou a considerar a intencionalidade um sentimento que os indiviacuteduos
supostamente tecircm quando fazem algo intencional A intencionalidade passou a ser
tematizada como um outro sentimento ou estado psicoloacutegico assim como a empatia
ou animosidade sentidas pelos outros (cf FLANNERY 2009 p 44)
O resultado deste modus operandi da psicologia empiacuterica enfatiza Kevin
Flannery eacute ignorar a funccedilatildeo das intenccedilotildees nos atos humanos e reduzir a psicologia
ao estudo dos pensamentos acrescidos dos sentimentos na forma de estados
psicoloacutegicos (cf FLANNERY 2009 p 45) A intencionalidade e a moralidade assim
22
pensadas podem ser consideradas apenas como um niacutevel de sentimentalismo
acrescentado agraves accedilotildees Kevin Flannery aponta consequecircncias desse modo de
entender a moral
O resultado da aplicaccedilatildeo de uma tal abordagem da moralidade eacute que a moralidade se torna uma espeacutecie de camada de sentimentalismo acrescentada agrave accedilatildeo humana de tal forma que uma accedilatildeo em si pode ser absolutamente vergonhosa mas pode ser declarada moralmente correta de acordo com o argumento de que no final natildeo tem nada a ver com o que a pessoa realmente faz Pense por exemplo no discurso do padre que apresenta o raciociacutenio da Igreja em relaccedilatildeo agrave contracepccedilatildeo ou a fertilizaccedilatildeo in vitro como vaacutelido e sadio e ao mesmo tempo diz para os seus paroquianos que em relaccedilatildeo agraves suas obrigaccedilotildees morais eles devem seguir suas consciecircncias
(FLANNERY 2009 p 45)
Conforme a afirmaccedilatildeo de Kevin Flannery pensar a intencionalidade apenas
como um estado psicoloacutegico engendra uma incoerecircncia tiacutepica e recorrente na
contemporaneidade a ideia de que a maneira como se age eacute independente da
maneira como se pensa Tomando o exemplo acima tem-se a ideia de que os
ensinamentos da Igreja de certo modo satildeo apenas da ordem do conhecimento isto
eacute natildeo existe contradiccedilatildeo entre o saber de uma moral e a modo como algueacutem vive sua
vida particularmente A criacutetica se refere precisamente ao fato de se transformar a
intenccedilatildeo num simples sentimento A confusatildeo entre sentimento e intencionalidade eacute
o cenaacuterio atraveacutes do qual Gertrude Anscombe afirma a necessidade de uma
Psicologia Filosoacutefica Eacute importante salientar que a atitude naturalista da psicologia
empiacuterica diante do fenocircmeno da intenccedilatildeo eacute tambeacutem criticada por autores como
Edmund Husserl e Heidegger6
A relaccedilatildeo entre Psicologia Filosoacutefica e moralidade jaacute havia sido expressa na
Tradiccedilatildeo Filosoacutefica e Gertrude Anscombe natildeo acha viaacutevel ignoraacute-la Kevin Flannery
salienta que a noccedilatildeo de que a Tradiccedilatildeo podia ser ignorada no sentido de iniciar do
lsquozerorsquo foi um dos elementos que causou a crise da Teoria Moderna da Moralidade (cf
FLANNERY 2009 p 47) Em seu retorno agrave moral aristoteacutelica Gertrude Anscombe
entende a necessidade de se refletir acerca dos atos tarefa realizada especialmente
por uma Psicologia Filosoacutefica
6 Para um maior esclarecimento sobre a criacutetica de Heidegger ao conceito de intencionalidade como
fenocircmeno psiacutequico feita nos Prolegocircmenos agrave Histoacuteria do Conceito de Tempo cf HEIDEGGER Tertio Ed sect4 p13-18GA 20 1994 e HUSSERL 1989 p 42 Aqui Husserl fala a simplificaccedilatildeo do fenocircmeno do conhecimento como factum psicoloacutegico Esta eacute uma caracteriacutestica da atitude naturalista que extensivamente acontece com o exemplo do fenocircmeno da intenccedilatildeo
23
Qual eacute pois o sentido de se trabalhar agraves intenccedilotildees na abordagem sobre a
moralidade No livro III da Eacutetica a Nicocircmacos Aristoacuteteles afirma
Como a virtude diz respeito a emoccedilotildees e accedilotildees e como os atos voluntaacuterios satildeo censurados e louvados ao passo que os involuntaacuterios satildeo objeto de perdatildeo e por vezes tambeacutem de piedade eacute presumivelmente necessaacuterio aos estudiosos da virtude definir o voluntaacuterio e o involuntaacuterio bem como eacute uacutetil aos legisladores tanto para a distribuiccedilatildeo das honrarias quanto para a aplicaccedilatildeo de puniccedilotildees (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea III 1109 b30 2010 p 59)
Aparentemente a referecircncia a Aristoacuteteles natildeo esclaresceu a pergunta
Entretetanto eacute a respeito dos atos voluntaacuterios e involuntaacuterios que a intenccedilatildeo diz
respeito Ela natildeo eacute compreendida apenas como um acaso em relaccedilatildeo agraves accedilotildees mas
como elemento que estaacute presente em todos os atos Aristoacuteteles natildeo desenvolve
explicitamente um estudo sobre as intenccedilotildees mas elas estatildeo latentes quando ele
fundamenta a teoria dos atos no livro III da EN Compreender o que faz de um ato
voluntaacuterio ou natildeo eacute ir buscar uma melhor compreensatildeo das intenccedilotildees e esta por sua
vez apresenta-se como fundamental agrave compreensatildeo dos atos voluntaacuterios e
involuntaacuterios
Aqui se esboccedila um problema a dificuldade de se tratar acerca das decisotildees
morais e das intenccedilotildees pois ldquoquando pensamos ter finalmente compreendido um
objeto de estudo podemos transformaacute-lo um pouco e vecirc-lo de forma bastante
diferenterdquo (FLANNERY 2009 p 47) Kevin Flannery acrescenta que a dificuldade no
tratamento da questatildeo conduz agrave tendecircncia de desistir do empreendimento e optar por
um criteacuterio mais lsquogerenciaacutevel da moralrsquo tornando a compreensatildeo sobre a moralidade
mais acessiacutevel Sua criacutetica chama a atenccedilatildeo para o fato de que o mais lsquogerenciaacutevelrsquo
se torna entretanto ineficaz ao rompimento da compreensatildeo da moral como um
estado psicoloacutegico
Ateacute entatildeo foram apresentados os limites da filosofia moral quando natildeo se
considera uma Psicologia Filosoacutefica Este eacute um aspecto negativo da resoluccedilatildeo da
questatildeo fundamental desta seccedilatildeo que eacute compreender a partir da afirmaccedilatildeo de
Gertrude Anscombe o porquecirc de natildeo ser proveitoso fazer filosofia moral no presente
e porque eacute necessaacuteria uma Psicologia Filosoacutefica
O aspecto positivo da necessidade de uma Psicologia Filosoacutefica retirado do
pensamento de Gertrude Anscombe eacute tambeacutem a caracteriacutestica que diferencia a
Autora entre os moralistas da virtude Para Gertrude Anscombe assim como as
24
virtudes e os atos particulares do agente moral estatildeo associados associados tambeacutem
estatildeo os atos agrave psicologia da pessoa Para ela a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes
natildeo se inicia pelas virtudes mesmas mas por uma Psicologia Filosoacutefica que tem por
funccedilatildeo explicar a relaccedilatildeo entre a psicologia da pessoa os atos e as virtudes
Para Anscombe o ponto de partida natildeo eacute as virtudes mas a filosofia da psicologia que eacute nosso uacutenico caminho para uma boa compreensatildeo das virtudes Se haacute uma ligaccedilatildeo estreita entre os atos particulares e as virtudes deve haver estreita conexatildeo entre os atos e a psicologia de uma pessoa seu comportamento e reaccedilotildees caracteriacutesticas (FLANNERY 2009 p 52)
A afirmaccedilatildeo acima aponta para uma dependecircncia do estudo das virtudes em
relaccedilatildeo a um estudo sobre os atos e humanos Este estudo sobre os atos humanos
se constitui como outra tarefa da Psicologia Filosoacutefica De acordo com o que foi
apresentado a Psicologia Empiacuterica mostrou-se insuficiente no tratamento dos atos
humanos especialmente no que se refere ao fenocircmeno da intencionalidade O
aprofundamento dos atos humanos atraveacutes de uma psicologia filosoacutefica pode
oferecer maior consistecircncia agrave Moral das Virtudes O fato eacute que as virtudes e tambeacutem
os viacutecios satildeo consolidados pelos atos concretos
Na relaccedilatildeo entre atos e virtudes o mais importante natildeo eacute necessariamente
desvendar as complexas relaccedilotildees que existem entre a psicologia de uma pessoa o
modo como os acontecimentos particulares sua vida vatildeo influenciar o
desenvolvimento futuro de sua histoacuteria O que estes argumentos natildeo podem
obscurecer nem invalidar a existecircncia de uma relaccedilatildeo estreita entre atos e virtudes
Neste sentido expotildee Kevin Flannery
Natildeo eacute ilegiacutetimo perguntar por exemplo como o envolvimento na morte de inocentes mesmo em parte por pessoas perfeitamente boas tem uma influecircncia sobre a vida familiar ou em qualquer outro aspecto do comportamento relacional Natildeo eacute ilegiacutetimo por exemplo questionar como um ato sexual com um menor em seu passado pode ter uma influecircncia sobre a vida pastoral de um possiacutevel padre no futuro Mas para entender como se relacionam virtudes viacutecios e atos particulares noacutes devemos tambeacutem compreender que atos satildeo genuinamente intencionais e em que medida o satildeo (FLANNERY 2009 p 53)
Embora o estudo sobre a intencionalidade e seu lugar numa Psicologia
Filosoacutefica natildeo seja o foco desta pesquisa sua menccedilatildeo eacute pertinente a este trabalho O
direcionamento se refere agrave compreensatildeo e exposiccedilatildeo do modo como no pensamento
25
contemporacircneo a moralidade moderna e seus desdobramentos foram questionados
proporcionando a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes
212 A incoerecircncia do dever moral
Tendo apresentado a relaccedilatildeo de precedecircncia de uma teoria dos atos como um
propedecircutica ao estudo das virtudes Filosofia Moral Moderna apresenta um
questionamento acerca da noccedilatildeo de dever moral Para a Gertrude Anscombe a moral
moderna toma por base a noccedilatildeo de lsquodever moralrsquo Esta noccedilatildeo proveacutem de uma filosofia
praacutetica de caraacuteter legalista como eacute o caso da moral cristatilde A ideia baacutesica eacute que as
tentativas modernas de constituiccedilatildeo de uma filosofia praacutetica natildeo tiveram ecircxito porque
pensaram ser possiacutevel desenvolver uma eacutetica como lei moral tomando por
fundamento primordial o sujeito moral
Embora o termo moral seja herdado do pensamento aristoteacutelico Gertrude
Anscombe enfatiza que o que se entende por moral contemporaneamente possui um
conteuacutedo semacircntico distinto do que o termo possui nos contextos do pensamento de
Aristoacuteteles Ademais a moral parece estar relacionada agravequilo que eacute lsquoreprovaacutevelrsquo de
modo que falhas natildeo apenas da praacutexis mereccedilam receber igualmente o termo
reprovaacutevel (cf ANSCOMBE 2010 p 30) O que eacute explicitado pela autora eacute que
expressotildees do tipo lsquotem dersquo ou lsquodeversquo satildeo utilizadas em contextos natildeo apenas morais
como compreendia Aristoacuteteles mas em contextos que ele denominaria de
lsquointelectuaisrsquo
A Autora encontra na cristandade a razatildeo da modificaccedilatildeo semacircntica do termo
moral ldquoA resposta pertence agrave Histoacuteria entre Aristoacuteteles e noacutes encontra-se a
Cristandade com sua concepccedilatildeo legalista de eacutetica visto que a Cristandade deriva
suas noccedilotildees morais da Toraacuterdquo (ANSCOMBE 2010 p 24) Para ela a Cristandade opera
uma releitura na eacutetica aristoteacutelica
Os termos comuns (e indispensaacuteveis) [grifo da autora] ldquotem derdquo ldquoprecisa derdquo ldquodeverdquo ldquotem a obrigaccedilatildeo derdquo adquiriram esse sentido especial ao serem equacionados nos contextos relevantes com ldquoestaacute obrigadordquo ldquoassumiu o encargo derdquo e eacute ldquoexigido derdquo no sentido que se
26
pode estar obrigado ou se pode assumir um encargo por lei ou de que algo pode ser exigido por lei (ANSCOMBE 2001 p 383)7
O predomiacutenio da Cristandade trouxe para a linguagem moral do Ocidente uma
grande modificaccedilatildeo no sentido daquilo que Aristoacuteteles entendia por moral e mesmo
que a Cristandade e sua compreensatildeo de mundo tenham sido abandonadas as
noccedilotildees de dever e obrigaccedilatildeo permaneceram sendo empregadas a partir das
influecircncias recebidas
Numa segunda justificativa aleacutem da tese da origem religiosa do conceito de
dever moral Gertrude Anscombe propotildee uma distinccedilatildeo entre accedilotildees maacutes por si
mesmas e accedilotildees maacutes sob determinadas circunstacircncias A condenaccedilatildeo de um
inocente conhecendo-se sua inocecircncia eacute um exemplo de accedilatildeo maacute em si mesma
enquanto que a violaccedilatildeo do direito de propriedade figura entre as accedilotildees maacutes sob
determinadas circunstacircncias No caso da condenaccedilatildeo de um inocente a accedilatildeo eacute maacute
diretamente em virtude da consciecircncia que se tem da inocecircncia e da violaccedilatildeo
deliberada do direito do inocente jaacute no caso do direito de propriedade a accedilatildeo natildeo
pode ser maacute em si mesma por causa das circunstacircncias Ora algueacutem pode invadir a
propriedade de outrem por que eventualmente estaacute a fugir da morte iminente
Esta distinccedilatildeo eacute relevante pois apresenta o modo como um pensamento moral
pode se constituir como uma teoria centrada nas accedilotildees de um agente ou como uma
teoria que prioriza as accedilotildees de um agente centrado Esta uacuteltima eacute por assim dizer
um tipo de filosofia praacutetica que visa o bem natildeo apenas das accedilotildees mas tambeacutem do
agente eacutetico A acusaccedilatildeo de Gertrude Anscombe em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de dever e
obrigaccedilatildeo se refere ao fato de que nestes casos haacute uma estrutura normativa que
privilegia a accedilatildeo em detrimento do agente No caso da Eacutetica das Virtudes haacute uma
tentativa de priorizar natildeo a accedilatildeo em seus efeitos externos ao agente mas o que ela
provoca em seu caraacuteter A noccedilatildeo de caraacuteter necessita de um aprofundamento
No contexto de uma Moral das Virtudes as accedilotildees satildeo convenientes na medida
em que contribuem com o fim do homem O caraacuteter significa aqui a capacidade de
agir virtuosamente com fundamento na condiccedilatildeo do agente que em por causa do
haacutebito adquiriu a capacidade de agir harmonizando o querer o poder e dever O mais
importante aqui natildeo reside numa accedilatildeo modelo na qual o agente deva se conformar
7ldquoThe ordinary (and quite indispensable) terms ldquoshouldrdquo ldquoneedsrdquo ldquooughtrdquo ldquomustrdquo acquired this special
sense by being equated in the relevant contexts with ldquois obligedrdquo or ldquois boundrdquo or ldquois required tordquo in the sense in which one can be obligaded or bound by law or something can be required by lawrdquo
27
independente de seus processos internos sejam os desejos seja a razatildeo Neste
sentido pode-se afirmar a Eacutetica das Virtudes como uma eacutetica que manteacutem a
centralidade no agente
As eacuteticas deontoloacutegicas e utilitaristas centralizam sua atenccedilatildeo na idoneidade
das accedilotildees Este posicionamento faz com que a virtude seja dependente das accedilotildees
Opostamente a Eacutetica das Virtudes propotildee que as accedilotildees devem ser pensadas agrave luz
do caraacuteter de quem as pratica Na obra O bem viver em comunidade a vida boa
segundo Platatildeo e Aristoacuteteles (cf RICKEN 2008 p 181-182) o professor Friedo Ricken
relaciona trecircs teses sobre o agir a tese epistemoloacutegica a tese ontoloacutegica ou axioloacutegica
e a tese do chamado reducionismo conceitual
A tese epistemoloacutegica defende que as accedilotildees corretas satildeo fundamentadas por
conceitos de virtude uma accedilatildeo eacute considerada correta quando traduz aquilo que uma
pessoa virtuosa faria sob determinadas circunstacircncias Neste sentido as accedilotildees satildeo
julgadas em relaccedilatildeo agraves virtudes A tese ontoloacutegica ou axioloacutegica propotildee que o valor
moral da accedilatildeo se fundamenta no valor moral do caraacuteter ou seja as boas accedilotildees
decorrem do caraacuteter bom de uma pessoa entretanto natildeo vale a formulaccedilatildeo inversa
o caraacuteter como decorrente das accedilotildees Finalmente o reducionismo conceitual defende
que os assim chamados deveres podem ser retirados de predicados de virtude
Segundo Friedo Ricken a tese de Gertrude Anscombe parece alinhada ao
reducionismo conceitual pois para ela a eacutetica da virtude eacute contraposta com a eacutetica
do dever ou da lei como alternativa excludente os predicados ldquomoralmente corretordquo e
ldquomoralmente erradordquo conforme a exigecircncia poderiam ser substituiacutedos por predicados
de virtude ou seja pelo predicado lsquojustorsquo (cf RICKEN 2008 p 183)
Ainda segundo Gertrude Anscombe contemporaneamente o Ocidente
internalizou uma noccedilatildeo de dever que era tanto estranha agrave moral aristoteacutelica quanto agrave
moral hebraico-cristatilde Mais grave ainda eacute a defesa da noccedilatildeo de dever tentando
prescindir da cultura que a forjou Gertrude Anscombe esclarece que a eacutetica hebraico-
cristatilde tem como caracteriacutestica fundamental ldquoensinar que haacute coisas proibidas quaisquer
que sejam as consequecircncias no horizonterdquo (ANSCOMBE 2010 p 30) A autora expotildee
em seguida que a proibiccedilatildeo de certas accedilotildees simplesmente em virtude de sua
descriccedilatildeo como tais e tais tipos identificaacuteveis de accedilatildeo natildeo importando quais as
consequecircncias ulteriores vem a se constituir como a mais notaacutevel caracteriacutestica da
eacutetica hebraico-cristatilde
28
A eacutetica legalista do Ocidente entatildeo mencionada foi forjada no seio da cultura
hebraico-cristatilde e eacute dela que provecircm as noccedilotildees de dever de obrigaccedilatildeo Estas noccedilotildees
se relacionam com a figura do legislador divino pois as leis satildeo por ele formuladas
A criacutetica de Gertrude Anscombe se dirige agraves deontologias modernas e ao utilitarismo
justamente porque eles defendem a noccedilatildeo de dever e obrigaccedilatildeo querendo no
entanto lsquoescaparrsquo agrave figura de um legislador divino Para a autora a noccedilatildeo de lei possui
um sentido muito forte de interdito Este interdito que possui forccedila de lei e dever natildeo
seria adequadamente se fosse realizado ou imputado apelando apenas para forccedilas
do indiviacuteduo
Gertrude Anscombe considera que a sobrevivecircncia da noccedilatildeo de dever moral
se deu muito mais pela forccedila psicoloacutegica da expressatildeo do que pelo seu conteuacutedo (cf
ANSCOMBE 2010 p 28) Para a autora teria sido de grande valia se em vez de
lsquomoralmente erradorsquo fossem sempre invocados termos como lsquoinveriacutedicorsquo lsquoimpudicorsquo
lsquoinjustorsquo Deste modo natildeo se discutiria mais acerca da accedilatildeo se ela foi ou natildeo errada
mas se discutiria se foi justa ou injusta A questatildeo central aqui estaacute no fato de que
apresentar as accedilotildees em termos de moralmente certa ou errada natildeo traria implicaccedilotildees
sobre a bondade ou natildeo do agente pois certas ou erradas satildeo as accedilotildees Por outro
lado questionar como justas ou injustas qualifica de certo modo o agente como bom
ou natildeo Isto significa que a centralidade do julgamento natildeo iria residir nas accedilotildees mas
no agente
As palavras de Kant apresentando a modernidade como o tempo em que o
sujeito caminha com seus proacuteprios peacutes proporcionou a ideia de que a eacutetica moderna
se sustentaria com uma autolegislaccedilatildeo do sujeito de modo a ocupar o papel que
antes desenvolvido pelo Deus da Eacutetica Cristatilde
Duas coisas enchem o acircnimo de admiraccedilatildeo e veneraccedilatildeo sempre nova e crescente quanto mais frequente e persistentemente agrave reflexatildeo ocupa-se com elas o ceacuteu estrelado acima de mim e a lei moral em mim (KANT 2008 p 255)
Gertrude Anscombe critica a ideia de que o sujeito seja legislador de si proacuteprio
ldquorejeito como absurdo que se possa legislar lsquopara si mesmorsquo O que quer que vocecirc
faccedila lsquopara si mesmorsquo pode ser admiraacutevel mas natildeo legislaccedilatildeordquo (ANSCOMBE 2010 p
34) Para autora a questatildeo fundamental eacute se questionar acerca da real capacidade
de um sujeito empiacuterico acessar uma maacutexima universal e conformar sua accedilatildeo particular
a ela prescindindo de suas inclinaccedilotildees
29
Uma deduccedilatildeo necessaacuteria do pensamento de Gertrude Anscombe eacute que no
horizonte de uma eacutetica assegurada pela lei divina o lsquoiliacutecitorsquo ou lsquoo que eacute obrigatoacuterio natildeo
fazerrsquo termos que satildeo ancestrais do conceito lsquomoralmente erradorsquo ganham um
sentido pois satildeo o que a lei divina obriga Assim sendo a noccedilatildeo de lsquodeverrsquo ou
lsquomoralmente erradorsquo soacute satildeo adequadamente contextualizados se relacionados com a
Lei Divina
Aparentemente a autora estaacute defendendo uma lsquoparceriarsquo entre a moral
moderna e a eacutetica hebraico-cristatilde Se se retornar ao iniacutecio de seu texto ver-se-aacute que
a questatildeo central natildeo eacute a proposiccedilatildeo de uma lsquoparceriarsquo mas a indicaccedilatildeo de que os
conceitos de obrigaccedilatildeo e dever tatildeo fundamentais agrave moral moderna pelo fato de
serem remanescentes da eacutetica hebraico-cristatilde que jaacute natildeo existe mas dos ganhos
trariam danos agrave filosofia moral moderna (cf ANSCOMBE 2010 p 19)
213 Criacutetica ao utilitarismo
A criacutetica de Gertrude Anscombe ao utilitarismo aparece em sua apresentaccedilatildeo
do pensamento de Sidgwick O ponto de partida da filoacutesofa eacute a noccedilatildeo de intenccedilatildeo
utilizada por este autor Para Gertrude Anscombe o conceito intenccedilatildeo se refere agrave
possibilidade de prever as consequecircncias de uma accedilatildeo voluntaacuteria (cf ANSCOMBE
2010 p 31) A partir deste noccedilatildeo de intenccedilatildeo esboccedila-se a tese utilitarista do autor ldquoa
tese que natildeo ter sentido desejo algum por algo antevisto quer seja um fim ou um meio
para um fim eacute indiferente no que diz respeito agrave responsabilidade por esse algordquo
(ANSCOMBE 2010 p 31) A siacutentese da tese utilitarista ou consequencialista eacute a
compreensatildeo de que um indiviacuteduo pode ser responsabilizado pelo resultado de uma
accedilatildeo mesmo que esta determinada consequecircncia natildeo tenha sido desejada ou
intencionada previamente A autora ainda propotildee outra formulaccedilatildeo para tese de
Sidgwick ldquonatildeo ter a intenccedilatildeo de uma accedilatildeo eacute indiferente no que diz respeito agrave
responsabilidade por esse algordquo (ANSCOMBE 2010 p 31)8 Para melhor esclarecer a
autora propotildee um exemplo
Suponhamos que um homem seja responsaacutevel pelo sustento de uma crianccedila Por conseguinte deliberadamente deixar de lhe dar o sustento seria algo ruim a fazer de sua parte Seria ruim deixar de lhe dar o sustento porque ao deixar de fazecirc-lo estaria digamos
8 Cf tambeacutem ANSCOMBE 2001 p 387 ldquoit does not make any difference to a manrsquos responsibility for
something that he foresaw that he felt no desire for it either as an end or as a means to an endrdquo
30
compelindo outro a fazer algo (Pode-se conceder neste argumento que compelir esse outro a fazer algo digno de admiraccedilatildeo) [grifo da autora] Agora poreacutem ele tem de escolher entre fazer algo ignoacutebil e ir preso se for preso segue-se que deixaraacute de dar o sustento agrave crianccedila (ANSCOMBE 2010 p 387)9
A interpretaccedilatildeo que Gertrude Anscombe faz da tese de Sidgwick eacute a seguinte
do ponto de vista da responsabilidade natildeo existe diferenccedila entre deixar de dar o
sustento por deliberaccedilatildeo e deixar de daacute-lo como consequecircncia da prisatildeo mesmo que
este resultado natildeo tenha sido computado como consequecircncia possiacutevel antes de vir a
cometer o ato indesejaacutevel Ora se natildeo haacute distinccedilatildeo entre uma accedilatildeo e outra em virtude
de a consequecircncia ser a mesma o agente pode ateacute concluir que deixar-se ir preso
seja menos mau do que deixar de dar o sustento agrave crianccedila por escolha Com efeito
deixar de o sustento passa a ser consequecircncia de ter sido preso minorando assim
a responsabilidade pelo ato
Gertrude Anscombe conclui que este tipo de eacutetica impulsiona o agente a
antever as consequecircncias natildeo haacute uma reflexatildeo sobre a maldade desta ou daquela
accedilatildeo apenas um caacutelculo dos possiacuteveis resultados Acontece que considerando
apenas as consequecircncias possiacuteveis pode ser que consequecircncias inesperadas se
apresentem como resultado Entretanto diante de resultados que natildeo foram
antevistos o agente natildeo pode a rigor ser culpado por um resultado desastroso
desde que argumente que um determinado resultado natildeo foi antevisto
A criacutetica da autora aponta para a ldquocomodidaderdquo do consequencialismo o agente
soacute eacute responsaacutevel na medida em que o resultado de suas accedilotildees for adequadamente
previsto Ao contraacuterio ela defende que ldquouma pessoa eacute responsaacutevel pelas maacutes
consequecircncias de suas maacutes accedilotildees mas natildeo recebe o creacutedito pelas boas
consequecircncias destasrdquo (ANSCOMBE 2010 p 32) Deste modo esta moralidade natildeo
se apresenta como propositiva no sentido de sugerir o que deve ser feito mas se
preocupa primordialmente com o que homem natildeo deveria fazer com que
acontecesse
9ldquoLet us suppose that a man has a responsibility for the maintenance of some child Therefore
deliberately to withdraw support from it is a bad sort of thing for him to do It would be bad for him to withdraw its maintenance because he didnrsquot want to maintain it any longer and also bad for him to withdraw it because by doing so he would let us say compel someone else to do something (we may suppose for the sake of argument that compelling that person to do that thing is in ifself quite admirable) but now he has to choose between doing something disgraceful and going to prison if he goes to prison it will follow that he withdraws support from de childrdquo
31
A partir da ldquocrenccedilardquo na superficialidade da proposta consequencialista a autora
expotildee a ela seu questionamento Um aristoteacutelico por exemplo questiona-se sobre
se fazer tal coisa em tal circunstacircncia eacute ou natildeo injusta e a partir daiacute julga o que deve
ser feito ou natildeo Jaacute um consequencialista natildeo tem base para dizer que determinada
accedilatildeo natildeo seria permitida ldquoo maacuteximo que ele pode dizer eacute que um homem natildeo deve
fazer com que aconteccedila isto ou aquilordquo (ANSCOMBE 2010 p 33) O que permite ao um
consequencialista o que natildeo deveria acontecer Ao refletir sobre qual o resultado natildeo
desejaacutevel como consequecircncia de uma accedilatildeo este pensador tem diante de si um caso
limite o que exige sua atenccedilatildeo aos padrotildees sociais
O consequencialista de modo a estar de fato imaginando um caso-limite tem de assumir algum tipo de lei ou padratildeo segundo o qual esse eacute um caso-limite De onde obteacutem esse padratildeo Na praacutetica a resposta invariavelmente eacute dos padrotildees correntes em sua sociedade ou ciacuterculo (ANSCOMBE 2010 p34)
A fundamentaccedilatildeo dos casos limites partindo dos exemplares sociais permite
uma associaccedilatildeo entre consequencialismo e convencionalismo moral Com efeito se
o ponto de partida da fundamentaccedilatildeo moral satildeo os padrotildees correntes numa
determinada sociedade qual a chance de uma proposiccedilatildeo consequencialista
contradizer algum modelo convencional A autora ainda explica que aleacutem do
convencionalismo eacutetico a moral consequencialista cria a possibilidade de um
determinado agente consentindo maacutes accedilotildees
[] o ponto de considerar situaccedilotildees hipoteacuteticas por vezes bastante improvaacuteveis parece ser o de produzir em vocecirc ou em algueacutem a decisatildeo hipoteacutetica de fazer algo ruim Natildeo duvido que isso tenha o efeito de predispor as pessoas que jamais se veratildeo nas situaccedilotildees para as quais fazem as escolhas hipoteacuteticas a dar consentimento a maacutes accedilotildees similares ou a enaltecer e lisonjear quem as pratique desde que a sua malta10 a faccedila tambeacutem quando as terriacuteveis circunstacircncias imaginadas natildeo se datildeo (ANSCOMBE 2010 p 33)
O fato de natildeo conseguir prever a consequecircncia de uma determinada accedilatildeo
utilizando-se de hipoacuteteses sobre as consequecircncias o que natildeo eacute difiacutecil de acontecer
dadas as inuacutemeras possibilidades de resultados de seu agir incita o agente a dar
assentimento a uma maacute accedilatildeo uma vez que a anaacutelise se refere ao que natildeo deve ser
feito
10Melhor traduzir por expectadores pois o texto original diz crowd
32
A conclusatildeo das criacuteticas de Gertrude Anscombe sobre o consequencialismo eacute
de certo modo controversa pois talvez natildeo seja uma consequecircncia necessaacuteria que o
fato de analisar uma accedilatildeo que natildeo deve ser realizada predisponha o agente a fazecirc-
la Entretanto dizer que esta anaacutelise em nada influencia o agente eacute igualmente
controverso
214 A diacutevida filosoacutefica de MacIntyre ao pensamento de Gertrude Anscombe
A repercussatildeo do pensamento de Gertrude Anscombe no itineraacuterio filosoacutefico de
MacIntyre eacute bem relevante O desenvolvimento da criacutetica deste uacuteltimo ao projeto
moderno de fundamentaccedilatildeo da moralidade segue uma linha de pensamento que
encontra ressonacircncias com os argumentos de Filosofia Moral Moderna Contudo a
vinculaccedilatildeo de MacIntyre com o pensamento marxista e com as ciecircncias sociais
proporcionaram aprofundamento e amadurecimento ao seu pensamento conforme
afirma Jorge Garcia
A criacutetica de MacIntyre da filosofia moral moderna mesmo com todas as semelhanccedilas natildeo apenas eacute um simples recapitular de Anscombe Sua criacutetica eacute mais detalhada e profundamente influenciada por seus viacutenculos com o marxismo e sua leitura das ciecircncias sociais (Cf GARCIA 2003 p 95 )11
O ponto de convergecircncia entre a Gertrude Anscombe e MacIntyre reside pois
no questionamento e na rejeiccedilatildeo agrave moral moderna Conforme Ernst Tugendhat
(2007)12 satildeoantiiluministas eacuteticos os autores que assumem este posicionamento
Outra aproximaccedilatildeo entre os dois autores eacute o realce na distinccedilatildeo entre o modus
operandi da eacutetica antiga e moderna e a opccedilatildeo pela moral das virtudes Talbot Brewer
salienta que tanto Gertrude Anscombe quanto MacIntyre enfatizam ldquouma estranheza
fundamental aos lsquoouvidosrsquo modernos dos conceitos baacutesicos atraveacutes dos quais
Aristoacuteteles e outros antigos medievais cercaram sua investigaccedilatildeo sobre a virtude o a
felicidade humanardquo (BREWER 2009 p 2 )13 Em siacutentese eacute possiacutevel afirmar que o
11ldquoMacIntyres critique of modernist moral philosophy for all these similarities does not at all simply
recapitulate Anscombes His criticism is more detailed deeply informed by his ties to Marxism and his reading the social sciencesrdquo
12Sobre o antiiluminismo eacutetico conferir a deacutecima liccedilatildeo intitulada o antiiluminismo eacutetico Hegel e a escola de Ritter cf Aftervirtue Third edition Notre Dame Notre Dame Press 2007 p 197-224
13ldquoThe two texts that are most widely cited as the starting points and the inspiration for the movement are Elizabeth Anscombes Modern Moral Philosophy and Alasdair MacIntyres After Virtue Both Anscombe and MacIntyre emphasize the fundamental strangeness to modern ears of the basic
33
antiiluminismo eacutetico e a opccedilatildeo pelas virtudes satildeo elementos dos quais MacIntyre eacute
herdeiro de Gertrude Anscombe
O fato de ser devedor de um pensamento natildeo implica numa simples repeticcedilatildeo
Jaacute foi mencionado que a anaacutelise de MacIntyre eacute enriquecida por sua proximidade com
o marxismo e com as ciecircncias sociais O elemento antropoloacutegico eacute a segunda
distinccedilatildeo relevante entre os autores Segundo David Carr e Jan Steutel (cf 1999 p
162-163) Gertrude Anscombe acreditava ser possiacutevel tomar como ponto de partida
uma concepccedilatildeo de homem ao modo de Aristoacuteteles na forma de uma psicologia
filosoacutefica que permitisse estabelecer relaccedilatildeo entre atos virtudes e fim do homem Por
seu turno em Depois da Virtude MacIntyre procura evitar o que chama de biologia
metafiacutesica de Aristoacuteteles ldquoAristoacuteteles escreve como se os baacuterbaros e os gregos
tivessem natureza fixa e ao encaraacute-los assim ele nos traz de volta o caraacuteter natildeo
histoacuterico de sua compreensatildeo de natureza humanardquo (MACINTYRE 2001b p 270)
MacIntyre parece natildeo adotar esse modelo antropoloacutegico porque esta seria uma
forma a-histoacuterica e a-cultural de considerar o homem o que natildeo poderia ser
sustentado do ponto de vista das ciecircncias sociais e aleacutem disso destoaria da
perspectiva metodoloacutegica de Depois da Virtude Esse talvez seja o motivo pelo qual
Depois da Virtude careccedila de uma teoria dos atos humanos Este fato abre espaccedilo agrave
criacutetica de que MacIntyre daacute pouca importacircncia agrave relaccedilatildeo entre atos e virtudes O que
seria de certo modo fundamental agrave moral as virtudes Posteriormente o proacuteprio
MacIntyre refaz sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave biologia metafiacutesica de Aristoacuteteles
Em Depois da virtude tentei dar conta do lugar das virtudes entendidas como Aristoacuteteles as entendeu dentro de praacuteticas sociais das vidas de indiviacuteduos e das vidas das comunidades fazendo com que tal abordagem fosse independente do que chamei de ldquobiologia metafiacutesicardquo de Aristoacuteteles Embora haja de fato boas razotildees para repudiar elementos importantes da biologia de Aristoacuteteles creio agora que estava errado ao supor que fosse possiacutevel haver uma eacutetica independente da biologia mdash e estou grato agravequeles criacuteticos que me objetaram quanto a isso [] (MACINTYRE 1999 Preface X )14
concepts through which Aristotle and other Ancient Medieval thinkers framed their inquires into virtues and the human goodrdquo
14ldquoIn After Virtue I had attempted to give an account of the place of the virtues understood as Aristotle understood them within social practices the lives of individuals and the lives of communities while making that account independent of what I called Aristotlersquos ldquometaphysical biologyrdquo Although there is indeed good reason to repudiate important elements in Aristotlersquos biology I now judge that I was in error in sopposing an ethics independent of biology to be possible ndash and I am grateful to those critics who distintct [hellip]rdquo
34
Finalmente fazem-se necessaacuterias algumas consideraccedilotildees ao final deste
capiacutetulo A partir da siacutentese de Rosalind Hursthouse vecirc-se que a recolocaccedilatildeo Eacutetica
das Virtudes se impotildee dadas as questotildees morais que natildeo se encontram contempladas
pelas morais deontoloacutegicas ou utilitaristas a siacutentese de Gertrude Anscombe daacute iniacutecio
ao movimento de retorno agrave Eacutetica das Virtudes e estabelece relevante influecircncia na
ulterior criacutetica de MacIntyre agrave filosofia moral moderna como tambeacutem na assunccedilatildeo da
Moral das Virtudes o movimento denominado Virtue Ethics manteacutem vivo o debate
eacutetico na contemporaneidade e abriu a possibilidade de pensar a Moral das Virtudes
como mais uma via pensamento na filosofia moral de liacutengua inglesa e na filosofia moral
como um todo
A seguir deve-se apresentar como o pensamento de MacIntyre se insere na
tradiccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes Primeiramente em seus questionamentos agrave Filosofia
Moral Moderna e secundariamente como teoacuterico de uma Eacutetica das Virtudes agrave
contemporaneidade
35
3 A CRIacuteTICA DE MACINTYRE AO PROJETO MODERNO DE FUNDAMENTACcedilAtildeO
DA MORALIDADE
A apresentaccedilatildeo das teses modernas sobre a moralidade eacute uma das temaacuteticas
centrais do pensamento de Alasdair MacIntyre Ela se constitui como momento
preparatoacuterio ao desenvolvimento de sua teoria moral Com efeito MacIntyre crecirc que
a exposiccedilatildeo destas teses se faz necessaacuteria porque o fato de existirem na
modernidade diferentes fundamentos agrave moralidade comprovaria em sua opiniatildeo o
chamado desacordo moral Esse desacordo seria pois a heranccedila deixada pelos
modernos agrave contemporaneidade e o ponto de partida da tese central de MacIntyre
Este capiacutetulo tem como tarefa apresentar a interpretaccedilatildeo manintyreana das principais
teses modernas sobre a fundamentaccedilatildeo da moralidade e os principais episoacutedios da
histoacuteria social que representaram o ldquoterrenordquo desde onde estas teses brotaram
A referecircncia baacutesica para a realizaccedilatildeo do objetivo deste capiacutetulo eacute a quarta
seccedilatildeo de Depois da Virtude intitulada A cultura predecessora e o projeto iluminista de
justificar a moralidade Para uma melhor compreensatildeo do fio condutor da
argumentaccedilatildeo do autor faz-se necessaacuteria uma exposiccedilatildeo da alegoria inicial de Depois
da Virtude no cap I Com efeito eacute a partir da alegoria inicial de Depois da Virtude que
MacIntyre daacute prosseguimento agrave primeira tarefa de Depois da Virtude a apresentaccedilatildeo
dos fundamentos do discurso moral contemporacircneo e a fragmentaccedilatildeo desse mesmo
discurso
31 A ALEGORIA INICIAL DE DEPOIS DA VIRTUDE
A alegoria inicial de Depois da Virtude se apresenta com um bastante
apocaliacuteptico A exposiccedilatildeo desta alegoria seguiraacute a apresentaccedilatildeo de MacIntyre O
iniacutecio do texto daacute conta das consequecircncias de uma cataacutestrofe hipoteacutetica nas ciecircncias
naturais A esta cataacutestrofe a opiniatildeo puacuteblica culpa os cientistas e em consequecircncia
inuacutemeros laboratoacuterios satildeo incendiados cientistas satildeo linchados livros e instrumentos
satildeo destruiacutedos Com a tomada de poder por um movimento poliacutetico intitulado ldquoNenhum
saberrdquo o ensino das ciecircncias nas escolas e nas universidades eacute eliminado enquanto
o restante dos cientistas eacute eliminado Posteriormente contra este movimento aparece
uma reaccedilatildeo e pessoas esclarecidas tentam ressuscitar a ciecircncia mesmo tendo se
36
esquecido em grande parte o que ela tinha sido Soacute possuem fragmentos
conhecimento dos experimentos isolados do contexto teoacuterico que lhes dava
significado partes de teorias desvinculadas seja de outros fragmentos de teoria que
possuem seja de experimentos instrumentos cujo uso foi esquecido capiacutetulos de
livros pela metade paacuteginas soltas de artigos nem sempre legiacuteveis porque estatildeo
rasgadas e chamuscadas Como se natildeo bastasse todos esses fragmentos satildeo
reunidos num conjunto de praacuteticas que recebem os nomes restaurados de fiacutesica
quiacutemica e biologia Os adultos discutem entre si os meacuteritos das teorias da relatividade
da evoluccedilatildeo e do flogismo embora seus conhecimentos sobre cada uma delas sejam
apenas rudimentares As crianccedilas decoram partes que restaram da tabela perioacutedica e
recitam alguns teoremas de Euclides como se fossem encantamentos Ningueacutem ou
quase ningueacutem percebe que o que estatildeo fazendo natildeo eacute ciecircncia natural em nenhum
sentido adequado pois tudo o que dizem e fazem obedece a certas leis da
compatibilidade e da coerecircncia e os contextos que seriam necessaacuterios para dar
sentido agravequilo que eles estatildeo fazendo foram perdidos talvez irrecuperaacuteveis (cf
MACINTYRE 2001 p 14)
A descriccedilatildeo de abertura de Depois da Virtude exemplifica diversos momentos
da primeira parte da obra da obra de MacIntyre Seu posicionamento eacute o de que a
filosofia moral moderna e sua tentativa de fundamentaccedilatildeo da moral satildeo anaacutelogas a
historinha entatildeo apresentada Assim como na historinha a reconstruccedilatildeo da ciecircncia
natural se mostrou impossiacutevel de ser remontada dada a fragmentaccedilatildeo a que o
material disponiacutevel estava acometido a filosofia moral moderna e sua tentativa de
fundamentaccedilatildeo natildeo teve condiccedilatildeo de impor-se coerentemente porque alguns de seus
fundamentos satildeo vestiacutegios fragmentados de um esquema moral que embora tribute
agrave modernidade alguns de seus elementos jaacute natildeo existe e os elementos disponiacuteveis
natildeo possuem sentido se separados dos seus contextos de origem
Pretensatildeo ou natildeo este eacute o ponto de partida de Depois da Virtude e a reflexatildeo
que MacIntyre faz sobre o projeto moderno de fundamentaccedilatildeo da moralidade recebe
suas motivaccedilotildees filosoacuteficas a partir desta alegoria Assim como na alegoria o que
sobraram das teorias cientiacuteficas eram fragmentos desconexos assim tambeacutem a
linguagem moral contemporacircnea eacute o resultado fragmentado de vaacuterias tentativas de
fundamentaccedilatildeo do discurso moral Entretanto esta desordem natildeo pode ser percebida
37
por todos assim como na alegoria pois existe de certo modo uma aparecircncia de
linguagem ordenada
O autor vai entatildeo expor a desmistificaccedilatildeo desta aparente linguagem
ordenada atraveacutes da apresentaccedilatildeo dos motivos que conduziram o pensamento moral
moderno ao fracasso intitulado por MacIntyre como o fracasso do projeto iluminista
32 AS TESES MODERNAS SOBRE A FUNDAMENTACcedilAtildeO DA MORALIDADE
O homem moderno se orgulha de ldquocaminhar com os seus proacuteprios peacutesrdquo de
tomar suas proacuteprias decisotildees de escolher os seus caminhos sua religiatildeo seus
governantes Este orgulho se deve ao marco divisoacuterio entre a moral claacutessica e a
moralidade moderna Este marco divisoacuterio foi propriamente a passagem da moral
claacutessica influenciada especialmente na eacutetica teleoloacutegica de Aristoacuteteles para a moral
moderna marcada profundamente pela ideia de autonomia o sujeito dando leis a si
proacuteprio Henrique de Lima Vaz afirmar que a Filosofia Moral Moderna eacute profundamente
marcada ldquopela tentativa kantiana de instauraccedilatildeo de uma Eacutetica da razatildeo pura praacutetica
termo da evoluccedilatildeo anterior e iniacutecio de um novo ciclo na histoacuteria da Eacutetica ocidentalrdquo
(VAZ 1999 p 257)
Sabe-se que a moral moderna embora tendo como aacutepice a moral kantiana natildeo
eacute constituiacuteda apenas pela moral da razatildeo pura praacutetica Em sua exposiccedilatildeo de teses
modernas de fundamentaccedilatildeo da moral MacIntyre expotildee outras manifestaccedilotildees que
propotildeem outros fundamentos para a moral diferentes da razatildeo pura praacutetica
Neste capiacutetulo a partir do pensamento de MacIntyre seratildeo explicitadas as trecircs
grandes tentativas de fundamentaccedilatildeo da moral moderna nomeadamente a moral
kantiana a moral humeana e a moral kiekegaardiana Para MacIntyre a colocaccedilatildeo de
Kierkegaard natildeo significa que o filoacutesofo eacute um pensador moderno em sentido proacuteprio
Para MacIntyre o pensamento de Kierkegaard traduz ldquoa perspectiva distintivamente
moderna em forma amadurecidardquo (MACINTYRE 2007 p 39 )15 isto eacute o pensamento
de Kierkegaard serve como elemento tipoloacutegico de uma das tendecircncias modernas de
fundamentaccedilatildeo da moral
15ldquobeginning from that point at which for the first time the distinctively modern standpoint appears in
something like fully-fledged formrdquo
38
Ainda segundo MacIntyre as teses de fundamentaccedilatildeo da moral aludem agraves trecircs
grandes dimensotildees fundamentais do sujeito a razatildeo os sentimentos ou paixotildees e a
escolha Estas dimensotildees correspondem respectivamente agrave fundamentaccedilatildeo da moral
a partir da razatildeo a partir das paixotildees e a fundamentaccedilatildeo da moralidade fundada na
escolha O autor entende que as diferentes fontes de fundamentaccedilatildeo satildeo a evidecircncia
do desacordo e da fragmentaccedilatildeo que de certo modo conduziram o projeto iluminista
de fundamentaccedilatildeo da moralidade agrave falecircncia Este caminho eacute exatamente o caminho
proposto por MacIntyre em Depois da Virtude e serve como base de sua criacutetica agrave moral
contemporacircnea
David Hume considera que os juiacutezos morais particulares satildeo expressatildeo do
gosto e dos sentimentos isto eacute das paixotildees Em Resumo de Um Tratado da Natureza
Humana o autor afirma
A uacutenica finalidade da loacutegica eacute explicar os princiacutepios e operaccedilotildees de nossa faculdade de raciociacutenio e a natureza de nossas ideias a moral e a criacutetica dizem respeito aos nossos gostos e sentimentos e a poliacutetica considera os homens enquanto unidos na sociedade e dependentes uns dos outros (HUME 1995 p 40 )16
Para Hume os juiacutezos morais satildeo expressatildeo de utilidade para os fins que foram
postos pelas paixotildees isto eacute estes fins estatildeo a serviccedilo dos sentimentos Hume afirma
ldquoa accedilatildeo pode causar um juiacutezo ou pode ser obliquamente causada por um juiacutezo quando
este coincide com uma paixatildeordquo (HUME 2009 p 499) A declaraccedilatildeo de Hume enfatiza
a condiccedilatildeo que uma accedilatildeo possui em relaccedilatildeo agrave paixatildeo pois eacute na coincidecircncia com
uma paixatildeo que uma accedilatildeo eacute causada ou causadora de um juiacutezo As accedilotildees satildeo pois
realizadas em virtude das paixotildees
A natureza do homem segundo Kant natildeo eacute mais que sua capacidade de viver
conforme seus instintos Em seu texto Sobre a Pedagogia uma coletacircnea de liccedilotildees
proferidas na Universidade de Koumlnigsberg e reunidas por um de seus disciacutepulos Kant
afirma que a disciplina uma das partes da educaccedilatildeo converte a animalidade em
humanidade (cf KANT 2002) Ora natildeo eacute difiacutecil compreender o porquecirc de Kant
acreditar que as paixotildees interesses ou inclinaccedilotildees natildeo podem ser fundamento da
accedilatildeo moral Na Fundamentaccedilatildeo da Metafiacutesica dos Costumes ele assinala que uma
accedilatildeo moralmente boa natildeo pode conter nada que possa remeter agraves inclinaccedilotildees Haacute
16ldquoThe sole end of logic is to explain the principies and operation of our reasoning faculty and the nature
of our ideas morals and criticism regard our tastes and sentiments and politics consider men as united in society and dependent on each otherrdquo
39
vaacuterias maneiras de agir em relaccedilatildeo ao dever mas a accedilatildeo puramente moral eacute aquela
praticada apenas por dever sem interesse (cf KANT 1999) Isto significa que a accedilatildeo
puramente moral eacute aquela que se orienta exclusivamente pela razatildeo ou seja a
moralidade natildeo pode se apoiar nem nos desejos nem em algo que se apresente como
uma heteronomia por exemplo a religiatildeo
A descriccedilatildeo da tentativa de fundamentaccedilatildeo por parte de Kierkegaard seguiraacute a
indicaccedilatildeo que MacIntyre realiza em Depois da Virtude (cf MACINTYRE 2001b p 73)
A obra de Kierkegaard que serve de apoio agrave exposiccedilatildeo eacute Ou Ou Segundo MacIntyre
Kierkegaard apresenta dois modos de vida o esteacutetico e o eacutetico O primeiro tem como
paradigma o amante romacircntico que estaacute imerso na proacutepria paixatildeo e simboliza uma
face do eu que eacute capaz de se entregar agrave imediaticidade da experiecircncia presente (cf
MACINTYRE 2001b p 80) jaacute o estado eacutetico eacute simbolizado pelo modelo do casamento
e alude agrave situaccedilatildeo do compromisso e da obrigaccedilatildeo eternos na qual o presente estaacute
preso ao passado e ao futuro (cf MACINTYRE 2001b) Segundo Teofilo Urdanoz os
estados da existecircncia em Kierkegaard ou etapas no caminho de uma vida ldquosatildeo as
determinantes existenciais os modos de vida gerais que servem como esquema ou
princiacutepios antagocircnicos com os quais o indiviacuteduo concreto enfrenta na busca de uma
posse de si proacutepriordquo (URDANOZ 1975 vol V p 453)
Segundo MacIntyre esses modos de vida estatildeo fundamentados em conceitos
diferentes e ateacute mesmo rivais a escolha de um eacute a negaccedilatildeo do outro A questatildeo
fundamental na reflexatildeo que MacIntyre sugere a partir da leitura de Ou Ou eacute a de
que os princiacutepios que conduzem agrave adoccedilatildeo de algum dos modelos eacute totalmente
independente de motivos satildeo opccedilotildees feitas a partir de razatildeo nenhuma Esta opccedilatildeo
se refere apenas agrave escolha do que seja uma razatildeo para um determinado sujeito
Uma siacutentese das supracitadas teses pode ser realizado pela seguinte citaccedilatildeo
de MacIntyre
Assim como Hume procura fundamentar a moralidade nas paixotildees porque seus argumentos excluiacuteram a possibilidade de fundamentaacute-los nas paixotildees Kant fundamenta na razatildeo porque seus argumentos excluiacuteram a possibilidade de fundamentaacute-los nas paixotildees e Kierkegaard a fundamenta na escolha fundamental sem criteacuterios devido ao que acredita ser a natureza inapelaacutevel das ponderaccedilotildees que excluem tanto a razatildeo quanto as paixotildees (MACINTYRE 2001b p 95)
A siacutentese de MacIntyre de certo modo deixa clara a multiplicidade de apoios
para a sustentaccedilatildeo de discurso moral O pensamento moral moderno se mostra
40
marcado pela carecircncia de um ponto de apoio para a moralidade conforme conclui
MacIntyre A multiplicidade de pontos de apoio sinaliza a dificuldade em definir um
deles e o consequente desacordo Assim como na alegoria inicial de Depois da
Virtude em que aqueles que achavam que faziam ciecircncia apenas por repeticcedilatildeo dos
fragmentos de teoria e natildeo tinham ciecircncia de que natildeo estavam fazendo ciecircncia
alguma tambeacutem natildeo houve por parte dos modernos uma inconsciecircncia desse
desacordo
A ideia baacutesica de MacIntyre eacute a de que em relaccedilatildeo aos antigos e medievais
existe na modernidade uma perda da unidade fundamental no discurso moral Esta
perda da unidade eacute evidenciada pela multiplicidade de fundamentos Como jaacute natildeo
existe uma unidade do discurso moral tem-se na modernidade uma progressiva
passagem de uma Moral das Virtudes para uma moral que sobre valoriza a norma
uma deontologia A questatildeo que vai preocupar os filoacutesofos modernos no campo da
moralidade eacute o que fundamenta a norma E a pergunta em torno do fundamento da
norma tornar-se-aacute uma das questotildees mais relevantes da Eacutetica Moderna
33 O FRACASSO DO PROJETO ILUMINISTA
A questatildeo do fracasso do projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade
natildeo se deu exclusivamente em virtude da diversidade de opiniotildees sobre qual seria
afinal o fundamento primeiro da moralidade se nas paixotildees na razatildeo ou na escolha
A opiniatildeo de MacIntyre eacute que os modernos representados aqui por Hume Kant e
Kierkegaard foram herdeiros de um esquema especiacutefico e particular de crenccedilas
morais e foi este mesmo esquema que com uma incoerecircncia interna conduziu ao
fracasso do projeto filosoacutefico em comum desde o iniacutecio (cf MACINTYRE 2001b p 97)
Em consonacircncia com a tese do MacIntyre cabe explicitar em que consiste esta
incoerecircncia que conduziu ao fracasso do projeto iluminista de justificaccedilatildeo da
moralidade Essa eacute a tarefa desta segunda parte deste capiacutetulo
41
331 O passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana
O meacutetodo seguido por MacIntyre parte da anaacutelise das crenccedilas comuns dos
pensadores que contribuiacuteram para a construccedilatildeo do projeto iluminista de justificaccedilatildeo
da moralidade Ele exemplifica que ldquoo casamento e a famiacutelia satildeo no fundo tatildeo
incontroversos para o philosophe racionalista de Diderot quanto para o juiz Guilherme
de Kierkegaard o cumprimento de promessas e a justiccedila satildeo tatildeo inviolaacuteveis para
Hume quanto para Kantrdquo (MACINTYRE 2001b p 98) Ao final MacIntyre indaga sobre
de onde provecircm essas convicccedilotildees em comum mesmo vindas de pensadores que
defenderam teses distintas Duas caracteriacutesticas relevantes satildeo compartilhadas por
estes pensadores a saber o passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana
O segundo ponto de convergecircncia que eacute a crenccedila da existecircncia de uma
natureza humana universal seria ponto de apoio agrave construccedilatildeo de uma filosofia moral
A posiccedilatildeo comum eacute que as normas da moralidade se justificariam na natureza
humana isto eacute elas seriam explicadas e justificadas como desenvolvimento
necessaacuterio do que essa tal natureza humana aceitaria No exemplo de Hume e
Diderot o que haacute de peculiar na natureza humana satildeo as caracteriacutesticas das paixotildees
para Kant a caracteriacutestica importante da subjetividade eacute o caraacuteter universal e
categoacuterico de certas normas acessiacuteveis agrave razatildeo17 no caso de Kierkegaard embora
ela natildeo pretenda estritamente justificar a moralidade sua argumentaccedilatildeo segue a
mesma estrutura das anteriores enquanto Hume e Kant apelam para as
caracteriacutesticas das paixotildees e da razatildeo respectivamente Kierkegaard apela para a
escolha como caracteriacutestica fundamental da natureza humana MacIntyre finaliza
esclarecendo que ldquotodos esses escritores tecircm em comum o projeto de construir
argumentos vaacutelidos que passem das premissas relativas agrave natureza humana
conforme a entendem agraves conclusotildees sobre a autoridade das normas e dos preceitos
moraisrdquo (MACINTYRE 2001b p 99 )18
Haacute um questionamento que merece ser aqui considerado A argumentaccedilatildeo de
MacIntyre vinha sendo desenvolvida defendendo a tese de um desacordo no discurso
17A questatildeo sobre a noccedilatildeo de natureza humana em Kant natildeo eacute tatildeo simples de ser resolvida MacIntyre
acredita que em Kant a natureza humana se refere ao aspecto fisioloacutegico do homem e este aspecto por sua vez eacute distinto da racionalidade do sujeito Corrobora com a opiniatildeo de MacIntyre Otfried Houmlffe Segundo ele ldquode modo geral a razatildeo significa a faculdade de ultrapassar o acircmbito dos sentidos da natureza A ultrapassagem dos sentidos pelo conhecimento eacute o uso teoacuterico na accedilatildeo eacute o uso praacutetico da razatildeo Cf HOumlFFE 2005 p 188
18 O texto que a seguir acompanha passo a passo a argumentaccedilatildeo de MacIntyre
42
moral proveniente dos distintos pontos de apoio que cada pensador havia tomado A
pergunta eacute por que se falar em pontos de convergecircncia se o argumento principal do
autor se referia ao desacordo Para responder a questatildeo eacute necessaacuterio voltar a
alegoria inicial de Depois da Virtude Na alegria as pessoas se apropriavam de
pedaccedilos de teorias foacutermulas cientiacuteficas que no entanto natildeo possuiacuteam sentido algum
Em nada os ajuda uma vez que os fragmentos das teorias natildeo estavam inseridos em
seus contextos originais haviam perdido sua rede de significados No exemplo dos
exemplares filosoacuteficos apresentados por MacIntyre acontece a mesma coisa Eles
tecircm em comum a noccedilatildeo de natureza humana entretanto esta noccedilatildeo pertence a outro
esquema moral Desse modo MacIntyre conclui que a noccedilatildeo de natureza humana
sem sua rede de significados original natildeo pode ajudar na construccedilatildeo de um discurso
moral A questatildeo sobre a noccedilatildeo de natureza humana e sua relaccedilatildeo com as normas e
preceitos seraacute melhor desenvolvida a seguir
332 A incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a noccedilatildeo
de natureza humana na moral moderna
O cerne do processo que causou o fracasso do projeto iluminista estaacute ligado
segundo MacIntyre agrave incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a
noccedilatildeo de natureza humana A tarefa do pensador consiste agora em contar a histoacuteria
desses dois conceitos mostrar como eles satildeo incompatiacuteveis e estabelecer uma
relaccedilatildeo entre esta incompatibilidade e o fracasso
MacIntyre expotildee que existe uma forma geral do esquema moral que foi
ancestral dos conceitos em questatildeo Este esquema moral foi predominante na Idade
Meacutedia desde o seacuteculo XII e era composto de elementos da moral aristoteacutelica e de
caracteriacutesticas cristatildes da moral tomista A estrutura baacutesica deste esquema eacute a que
Aristoacuteteles apresentou na Eacutetica a Nicocircmacos O esquema aristoteacutelico distingue ldquoo
homem como ele eacuterdquo e o ldquohomem como poderia ser se realizasse sua natureza
essencialrdquo A proacutepria tarefa da eacutetica estaacute aiacute delimitada ela eacute o saber que habilita o
homem a compreender como se daacute a passagem de um estado para outro Potecircncia e
Ato essecircncia do homem e telos satildeo conceitos pressupostos para compreender este
esquema Os preceitos que recomendam tais virtudes e vetam determinados viacutecios
43
satildeo aqueles que proporcionam a passagem da verdadeira natureza para alcanccedilar o
verdadeiro fim
Existe pois uma co-relaccedilatildeo necessaacuteria entre ldquonatureza humana como eacuterdquo
preceitos e ldquonatureza humana como pode ser se realizar seu telosrdquo Cada um desses
trecircs elementos necessita dos outros dois isto eacute ldquoos nossos desejos e emoccedilotildees devem
ser organizados e educados pelo uso de tais preceitos e pelo cultivo de haacutebitos de
accedilatildeo que a eacutetica prescreve a razatildeo nos instrui quanto ao nosso verdadeiro fim e
quanto a como atingi-lordquo (MACINTYRE 2001b p100) Estas noccedilotildees natildeo podem pois
ser adequadamente compreendidas senatildeo segundo esta relaccedilatildeo de
interdependecircncia Separadas elas perdem sua inteligibilidade
O pensamento medieval assume esse esquema com o diferencial de
acrescentar que os preceitos da eacutetica aleacutem de mandados teleoloacutegicos satildeo tambeacutem
expressotildees de uma lei divinamente decretada MacIntyre endossa que ldquoeacute preciso
retificar e ampliar a tabela das virtudes e viacutecios acrescentando-se o conceito de
pecado ao conceito aristoteacutelico de erro A lei de Deus exige um novo tipo de temor e
respeitordquo (MACINTYRE 2001b p100) Este mundo natildeo eacute mais o lugar da efetivaccedilatildeo
do fim do homem como era a polis grega no sentido que Aristoacuteteles pensou Grande
parte dos filoacutesofos medievais concordava que esse esquema tanto pertencia agrave
revelaccedilatildeo quanto podia ser sustentada racionalmente Com o advento do
protestantismo e do catolicismo jansenista este consenso eacute paulatinamente desfeito
dando lugar a um novo conceito de razatildeo
3321 O passado cristatildeo e o novo conceito de razatildeo
Uma ideia fundamental ao novo conceito de Razatildeo forjado no seio do
protestantismo e do catolicismo jansenista consiste na convicccedilatildeo de que a razatildeo natildeo
eacute capaz de compreender qual seja o verdadeiro fim do homem
O finito se aniquila na presenccedila do infinito e torna-se um puro nada Assim nosso espiacuterito em face de Deus assim nossa justiccedila em face da justiccedila divina Natildeo haacute uma desproporccedilatildeo tatildeo grande entre a nossa justiccedila e a de Deus como entre a unidade e o infinito (apud BRANDAtildeO 1961)
Essa atitude consiste num certo ceticismo em relaccedilatildeo agrave capacidade de a razatildeo
alcanccedilar a certeza de que a constituiccedilatildeo do homem comporta alguma finalidade
44
MacIntyre afirma que o pensamento moderno de tradiccedilatildeo protestante lecirc as escrituras
entendendo que o episoacutedio da queda do homem significou a marca de debilidade da
razatildeo humana sendo ela destituiacuteda do poder de compreensatildeo do fim do homem A
criacutetica dos empiristas ratifica essa compreensatildeo Atraveacutes do empirismo moderno
tambeacutem se pode vislumbrar o ponto de vista de que nos limites da natureza acessiacutevel
ao homem natildeo se pode garantir o conhecimento de nenhum telos isto eacute aquilo que
a razatildeo estabelece como telos eacute fruto apenas de um costume ou haacutebito um ato
psicoloacutegico sem fundamento na experiecircncia Conforme Hume
O costume eacute pois o grande guia da vida humana Eacute o uacutenico princiacutepio que torna uacutetil nossa experiecircncia e nos faz esperar no futuro uma seacuterie de eventos semelhantes agravequeles que apareceram no passado Sem a influecircncia do costume ignorariacuteamos completamente toda questatildeo de fato que estaacute fora do alcance dos dados imediatos da memoacuteria e dos sentidos Nunca poderiacuteamos saber como ajustar os meios em funccedilatildeo dos fins nem como empregar nossas faculdades naturais para a produccedilatildeo de um efeito (HUME 1999 seccedilatildeo V p 63)
A partir da afirmaccedilatildeo de Hume pode-se afirmar que natildeo estaacute no domiacutenio da
razatildeo humana o conhecimento de nenhum telos Como desenrolar das ideias de
Hume compreende-se que uma possiacutevel idealizaccedilatildeo de um fim para a vida humana
seria apenas um estabelecimento habitual daquilo que se crecirc como fim O resultado
destas ideias eacute conforme MacIntyre uma rejeiccedilatildeo a qualquer noccedilatildeo teleoloacutegica da
natureza humana e a qualquer ideia do homem como ser que possui uma essecircncia
que defina seu verdadeiro fim ldquosegundo essas novas teologias protestantes e a
catoacutelico jansenista a razatildeo natildeo fornece nenhuma compreensatildeo genuiacutena do verdadeiro
fim do homemrdquo (MACINTYRE 2001b p 101) Assim sendo o ambiente social e cultural
dos modernos jaacute natildeo comporta a noccedilatildeo de Telos no plano moral
Mais uma vez mostra-se aqui a fragmentaccedilatildeo dos elementos fundamentais do
discurso moral anterior a modernidade Os pensadores em questatildeo conforme foi
apresentado assumiram a noccedilatildeo de natureza humana prescindindo poreacutem da
noccedilatildeo de Telos Eacute neste sentido que MacIntyre entende a fragmentaccedilatildeo que
provocaraacute o ulterior desacordo moral
3322 A ciecircncia e a filosofia do seacuteculo XVII
ldquoCiecircncia e poder do homem coincidem uma vez que sendo a causa ignorada
frustra-se o efeitordquo (BACON 1999 p 33 sect III) As palavras de Bacon ao iniciar o Novum
45
Organum traduzem bem o abandono que a modernidade procedeu em relaccedilatildeo agrave
terminologia da escolaacutestica e do aristotelismo em relaccedilatildeo agrave ciecircncia O homem que
natildeo conhece a causa natildeo pode ter pretensotildees de determinar efeitos O pensamento
sozinho natildeo eacute capaz de determinar os fins ou o telos mesmo partindo da observaccedilatildeo
das coisas A ciecircncia experimental fundamentada em Bacon afasta-se do aparato
conceitual da metafiacutesica claacutessica natildeo se fala mais sobre essecircncias e
consequentemente sobre efeitos Efeito eacute aqui compreendido como resultado das
possibilidades contidas na essecircncia de uma coisa Neste sentido determinar um efeito
eacute anaacutelogo a determinar um fim Conforme MacIntyre
A razatildeo natildeo compreende essecircncias ou transiccedilotildees da potecircncia ao ato esses conceitos pertencem ao desprezado esquema conceitual da escolaacutestica Aleacutem disso a ciecircncia anti-aristoteacutelica impotildee limites riacutegidos aos poderes da razatildeo A razatildeo eacute calculadora sabe avaliar verdades de fato e relaccedilotildees matemaacuteticas poreacutem nada mais No campo da praacutetica portanto soacute sabe falar de meios Precisa calar-se no tocante aos fins (MACINTYRE 2001b p 102)
MacIntyre completa afirmando que em relaccedilatildeo agraves teologias catoacutelica e
protestante em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave proacutepria Filosofia haacute um progressivo abandono
da crenccedila de que a razatildeo eacute capaz de determinar alguma finalidade
Kant por exemplo natildeo estabelece finalidade para o homem porque para ele
qualquer finalidade diferente do homem em si mesmo representa uma heteronomia
E por conseguinte natildeo serve como fundamento de um discurso aprioriacutestico pois a
felicidade eacute extriacutenseca e algo que traz consigo elementos sensiacuteveis Nos esquemas
claacutessicos de fundamentaccedilatildeo da moralidade a felicidade eacute o fim a que naturalmente
todo homem tende e eacute a partir dela que seratildeo definidos os caminhos pelos quais o
homem deve percorrer para alcanccedilaacute-la Assim sendo a perspectiva kantiana
representa o que tradicionalmente se define como uma moral deontoloacutegica porque
na impossibilidade de um discurso que inclua a felicidade soacute se pode falar em dever
3323 A incoerecircncia entre o posicionamento pela lsquofalecircnciarsquo da razatildeo e a decisatildeo
pela noccedilatildeo de natureza humana
MacIntyre tem consciecircncia de que haacute uma profunda incoerecircncia nas tentativas
de os modernos constituiacuterem uma filosofia moral fundamentados na noccedilatildeo de
natureza humana Para ele essa noccedilatildeo soacute podia ser adequadamente compreendida
46
e utilizada se inserida no esquema de uma moralidade teleoloacutegica Qual a utilidade
pois da noccedilatildeo de natureza humana para uma fundamentaccedilatildeo da moral se os
modernos haviam rejeitado agrave razatildeo a possibilidade de definir o fim do homem E mais
ainda de que serve a noccedilatildeo de natureza humana se a razatildeo natildeo consegue
compreender as possibilidades desta natureza MacIntyre vecirc neste posicionamento
uma contradiccedilatildeo Esta contradiccedilatildeo levou MacIntyre a defender que o projeto moderno
de justificaccedilatildeo da moralidade jaacute nasceu fracassado pois se constituiu a partir de um
esquema ldquoestilhaccediladordquo
Herdaram fragmentos incoerentes de um esquema de pensamentos e accedilotildees que um dia foi coerente e jaacute que natildeo reconheceram sua proacutepria situaccedilatildeo histoacuterica e cultural natildeo podiam reconhecer o caraacuteter impossiacutevel e quixotesco da tarefa que se auto-atribuiacuteram (MACINTYRE 2001b p 104 )19
A noccedilatildeo de natureza humana possuiacutea adequado na Eacutetica Teleoloacutegica Nela os
preceitos morais se ligam ao esquema teleoloacutegico geral de modo que no conjunto do
esquema eles satildeo necessaacuterios poreacutem secundaacuterios Jaacute num esquema de
justificaccedilatildeo que natildeo reconhece aos preceitos a funccedilatildeo de aprimoramento do homem
a fim de que ele passe de uma natureza humana dada para uma natureza humana
vislumbrada como telos isto eacute o homem como pode ser se realizar sua finalidade
soacute pode sobrevalorizar os preceitos seraacute pois uma moral deontoloacutegica No primeiro
tipo de moralidade os preceitos valem como condutores do homem agrave vida feliz Na
uacuteltima os preceitos valem em si mesmos traduzem as accedilotildees conforme e por dever
MacIntyre acrescenta agrave sua consideraccedilatildeo sobre o fracasso do projeto moderno
um argumento referente agrave funcionalidade dos conceitos particularmente ao conceito
de homem Para ele os argumentos morais da tradiccedilatildeo aristoteacutelica claacutessica e
medieval envolvem pelo menos um conceito funcional central que eacute o de homem
enquanto ser que tem uma natureza essencial e uma finalidade ou funccedilatildeo essencial
Assim sendo quando se fala em homem natildeo se pode perder as referecircncias de que o
conceito natildeo estaacute separado das funccedilotildees que o homem realiza como membro de uma
famiacutelia como cidadatildeo soldado filoacutesofo servo de Deus A funccedilatildeo se relaciona com o
fim para o qual algo eacute feito MacIntyre conclui que homem se tornaraacute apenas um
conceito loacutegico a partir do momento em que passa a ser compreendido como
19Esta passagem remete claramente agrave metaacutefora inicial de Depois da Virtude no capiacutetulo Uma ideia
inquietante
47
indiviacuteduo antes e fora de todos os papeacuteis o que impossibilita a retirada de conclusotildees
valorativas e normativas a partir de premissas factuais Para o autor isto se deve agrave
falta de conexatildeo entre os preceitos morais e a noccedilatildeo de natureza humana aprimorada
O ponto de partida de Aristoacuteteles eacute relacionar homem e viver bem de modo que o
segundo estaacute implicado na razatildeo do primeiro
Na modernidade a tese de que natildeo satildeo vaacutelidos os argumentos que partem de
juiacutezos de fato para juiacutezos de valor isto eacute de um lsquoeacutersquo para um lsquodeversquo refere-se agrave perda
da compreensatildeo primordial que o conceito de homem tinha antes de ser arrancado
de sua rede de significados conforme exposto no paraacutegrafo anterior MacIntyre
conclui que esse posicionamento ganha forccedila em virtude da compreensatildeo insuficiente
e parcial que os modernos tinham do conceito de homem Ele denominou como ldquofalta
de consciecircncia histoacutericardquo que eacute comum desde a modernidade ateacute os tempos atuais
3324 Sobre a mudanccedila do significado dos juiacutezos morais
Dizer que algo eacute bom na Tradiccedilatildeo Aristoteacutelica significa dizer que este algo
realiza todas as funccedilotildees para as quais se destina ou seja realiza perfeitamente sua
finalidade ou funccedilatildeo especiacutefica Para MacIntyre dizer que algo eacute bom natildeo eacute apenas
expressatildeo de um juiacutezo de valor simplesmente emotivista mas significa a partir da
compreensatildeo de funccedilatildeo e de realizaccedilatildeo desta um juiacutezo de fato ldquoDizer que algo eacute
bom portanto tambeacutem eacute fazer uma declaraccedilatildeo factual Dizer que determinado ato eacute
justo ou certo eacute dizer que ele eacute o que um homem bom faria em tal situaccedilatildeo por
conseguinte esse tipo de declaraccedilatildeo tambeacutem eacute factualrdquo (MACINTYRE 2001b p 111)
Assim a partir desta tradiccedilatildeo pode-se falar em juiacutezos morais verdadeiros ou falsos
A questatildeo dos juiacutezos de valor a partir de juiacutezos de fato e sua impossibilidade
de se constituir deste modo tornou-se implausiacutevel quando na modernidade
lsquodesaparece da moralidade a ideia de funccedilotildees ou finalidades humanas essenciaisrsquo
Consequentemente abre-se um espaccedilo para a pertinecircncia das teses em torno da
invalidade de argumentos morais que partem de um lsquoeacutersquo para um lsquodeversquo Aleacutem disso
acrescenta Macintyre a laicizaccedilatildeo da moralidade operada pelo iluminismo pocircs em
questatildeo a veracidade dos juiacutezos morais como expressotildees da voluntas divinitatis
Mesmo em Kant que pensa os juiacutezos morais como expressatildeo de uma lei universal
48
natildeo haacute possibilidade de questionar os juiacutezos em termos de verdade ou falsidade eles
satildeo categoacutericos
As teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade segundo MacIntyre
proporcionaram um desacordo moral
Esta desordem proveacutem do proacuteprio poder cultural predominante de um jargatildeo no qual os fragmentos conceituais incompatiacuteveis de vaacuterias partes do nosso passado satildeo aplicados juntos em debates puacuteblicos e privados que satildeo notaacuteveis pelo caraacuteter insoluacutevel das controveacutersias neles envolvidas e pela clara arbitrariedade de cada participante do debate (MACINTYRE 2001b p 429)
Assim as reflexotildees operadas pelo autor conduzem a algumas proposiccedilotildees A
primeira delas eacute que o desacordo dos modernos sobre o lsquoalicercersquo desde onde
fundamentar a moral proporcionou um desacordo contemporacircneo e uma
fragmentaccedilatildeo do discurso sobre as accedilotildees Esta situaccedilatildeo original foi proporcionada por
um lsquoesquecimento histoacutericorsquo e pela histoacuteria social que formaram o ambiente filosoacutefico
de onde brotaram as principais teses de justificaccedilatildeo da moralidade O fracasso do
projeto deveu-se em grande parte a incompatibilidade entre a noccedilatildeo de natureza
humana e a de preceitos Acrescente-se a isto a nova compreensatildeo de racionalidade
e a perda do sentido de funcionalidade dos conceitos
Cumpre agora desenvolver o empreendimento de apresentar a teoria
macintyreana da moral O intuito de MacIntyre eacute oferecer atraveacutes de sua teoria um
pensamento eacutetico que devolva a inteligibilidade ao discurso moral a partir do conceito
de virtude enriquecido pelas noccedilotildees de Praacuteticas Unidade narrativa de uma vida
humana individual e o conceito de tradiccedilatildeo
49
4 O PROJETO DE DEPOIS DA VIRTUDE E A TEORIA MORAL DE MACINTYRE
A exposiccedilatildeo dos elementos fundamentos que orientam o estabelecimento da
Eacutetica das Virtudes mostrou-se necessaacuteria agrave compreensatildeo do cenaacuterio que compotildee a
Filosofia Moral Contemporacircnea Aleacutem disso pode-se ver a orientaccedilatildeo filosoacutefica que
marcou o pensamento de MacIntyre isto eacute os limites dos fundamentos que forjaram
a moral contemporacircnea e o modo como a Eacutetica das Virtudes se apresenta como uma
alternativa viaacutevel de inteligibilidade das accedilotildees
A obra Depois da Virtude foi publicada em 1981 e passou a fazer parte da
terceira via da filosofia moral de liacutengua inglesa Autores como Gertrude Anscombe
conforme apresentado no Cap I deste trabalho proporcionaram ao pensamento
contemporacircneo um renascimento ou recolocaccedilatildeo do pensamento moral de
Aristoacuteteles A proposta da obra de MacIntyre se alinha ao movimento de afirmaccedilatildeo do
pensamento aristoteacutelico como uma opccedilatildeo viaacutevel agrave moralidade contemporacircnea
A criacutetica de MacIntyre agraves teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade e
o modo como o pensamento contemporacircneo eacute herdeiro da incoerecircncia e do
lsquoesquecimentorsquo deste momento da filosofia moral se constituiu como preparaccedilatildeo agrave
apresentaccedilatildeo de sua proposta moral agrave filosofia moral contemporacircnea Aleacutem da ampla
criacutetica aos males percebidos da modernidade MacIntyre apresenta sugestotildees que
aleacutem de reforccedilarem a reabilitaccedilatildeo de uma Moral das Virtudes mostram como alguns
dos males podem ser corrigidos Esses dois elementos se constituem pois na tarefa
desta seccedilatildeo do trabalho
41 O ANTES DE DEPOIS DA VIRTUDE
Antes da publicaccedilatildeo de Depois da Virtude jaacute eacute possiacutevel encontrar em
MacIntyre sinais dos fundamentos que hatildeo de orientar seus principais
posicionamentos O texto Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica de 1966 apresenta sinais
do movimento de criacutetica agrave Filosofia Moral Moderna Naturalmente a partir do ano de
publicaccedilatildeo desta obra vecirc-se que ela eacute imediatamente posterior ao Modern Moral
Philosophy de Gertrude de 1958 cujas teses fundamentais jaacute foram expostas no
primeiro capiacutetulo deste trabalho
50
Algumas das teses presentes em Depois da Virtude jaacute encontram sua forma
embrionaacuteria em Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica a saber o anseio de refutar a tese
de que natildeo se podem retirar proposiccedilotildees normativas de proposiccedilotildees factuais isto eacute
o dever ser do ser uma desarticulaccedilatildeo no discurso moral a crenccedila de que os
conceitos morais natildeo deveriam ser formulados na crenccedila de sua intemporalidade
desarticulados das sociedades que os proporcionaram e o potencial lsquodestrutivorsquo do
emotivismo
411 Vida social e conceitos morais
O primeiro capiacutetulo intitulado A importacircncia filosoacutefica da histoacuteria da eacutetica
chama a atenccedilatildeo para o costume recorrente de dar uma importacircncia secundaacuteria agrave
histoacuteria da eacutetica Esta pouca importacircncia ao tema decorre de uma crenccedila comum de
que o aparato conceitual da eacutetica pode ser compreendido prescindindo de sua
histoacuteria Contudo agrave medida que a vida social muda mudam tambeacutem os conceitos Os
conceitos morais segundo MacIntyre ganham sua inteligibilidade quando as regras
que governam o seu uso satildeo apreendidas Sua apreensatildeo se daacute a partir das distintas
formas de vida social e estas proporcionam os diferentes papeis para que sejam
representados por estes conceitos
Os conceitos morais na realidade mudam agrave medida que muda a vida social Deliberadamente natildeo digo lsquoporque muda a vida socialrsquo jaacute que isto poderia sugerir que a vida social eacute uma coisa e a moralidade eacute outra e que existe meramente uma relaccedilatildeo de causa externa e contingente entre elas Evidentemente que isto eacute falso Os conceitos morais satildeo encarnados em (e satildeo parcialmente constituiacutedos de) nas
formas de vida social (MACINTYRE 1988 p 11)20
MacIntyre percebe que a partir dos conceitos morais eacute possiacutevel compreender
as diferentes manifestaccedilotildees da vida social Seu entendimento eacute o de que os conceitos
morais estatildeo situados natildeo satildeo atemporais Vida social e conceitos morais natildeo podem
ser pensados separadamente John Horton e Susan Mendus em seu artigo Alasdair
MacIntyre After Virtue and After acrescentam que
20ldquoIn fact of course moral concepts change as social life changes I deliberately do not write ldquobecause
social life changesrdquo for this might suggest that social life is one thing morality another and that there is merely an external contingent causal relationship between them This is obviously false Moral concepts are embodied in and are partially constitutive of forms of social liferdquo Cf tambeacutem MACINTYRE 2005 p 01
51
entre as grandes contribuiccedilotildees de Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica MacIntyre rejeitou explicitamente a crenccedila comum nos ciacuterculos filosoacuteficos da eacutepoca que os conceitos morais seriam uma intemporal limitada imutaacutevel determinada espeacutecie de conceitos que poderiam ser analisados e compreendidos aleacutem da sua histoacuteria (HORTON MENDUS 1994 p 2)21
Os conceitos morais soacute seratildeo adequadamente compreendidos se forem
estudados historicamente e contextualmente uma vez que satildeo incorporados como
partes constitutivas da vida social A importacircncia da histoacuteria e do contexto social para
a filosofia moral seraacute uma temaacutetica recorrente em toda a obra de MacIntyre
412 Fundamentaccedilatildeo das proposiccedilotildees normativas
O texto de Gertrude Anscombe jaacute traz uma referecircncia agrave criacutetica de Hume que
aponta a problemaacutetica de se retirarem proposiccedilotildees normativas do tipo deve a partir
de proposiccedilotildees factuais do tipo eacute ou seja a ideia eacute que o deve ser natildeo pode estar
fundamentado no ser Os autores desta tese natildeo vecircem como se construir uma eacutetica
de uma ontologia
As proposiccedilotildees deste tipo refletem em torno do significado das proposiccedilotildees
morais Na filosofia anglosaxocircnica a tentativa de formular proposiccedilotildees deontoloacutegicas
de proposiccedilotildees factuais ficou intitulada como falaacutecia naturalista MacIntyre aponta que
esta qualificaccedilatildeo foi dada pelos escritos de George Moore (cf MACINTYRE 2001b p
243) Em seu Principia Ethica George Moore explica o sentido do que ele chama de
falaacutecia naturalista Esta se refere agrave tentativa de identificar o bem ou bom como se
fosse o nome de uma de uma coisa natural O problema estaacute no fato de que quem
afirma que bom eacute uma propriedade simples e natildeo analisaacutevel tem diante de si o
incocircmodo de encontrar expressotildees que aplicam o termo bom sob acepccedilotildees muito
distintas como por exemplo este eacute um bom amigo ou este eacute um bom reloacutegio Com
efeito apenas o predicado bom da primeira sentenccedila eacute o que traz algum significado
moral
A questatildeo em torno do bom se relaciona agrave necessidade de compreender o
modo como o bem e as accedilotildees se relacionam Encontrar a conexatildeo entre um e outro
21ldquoMacIntyre explicity rejected the belief common in philosophical circles at the time that lsquomoral
concepts were timeless limited unchanging determinate species of concept (that) can be examined and understood apart from their historyrdquo
52
seria uma abertura para responder agraves duas perguntas dos Principia Ethica a saber
que tipo de coisas deve existir em virtude de si mesmas Que tipo de accedilotildees devemos
realizar (cf MOORE 2005 p 17) Isto de certo modo justificaria a relaccedilatildeo entre bem
e dever Mas como justificar esta relaccedilatildeo diante do caraacuteter enigmaacutetico da noccedilatildeo de
bem MacIntyre citando George Moore questiona
O bom entatildeo eacute um nome de uma propriedade simples e natildeo analisaacutevel Haacute pelo menos duas objeccedilotildees decisivas contra a doutrina que responde afirmativamente A primeira eacute que soacute podemos empregar inteligivelmente o nome de uma propriedade simples quando conhecemos um modelo exemplar dele por referecircncia ao qual podemos dar-nos conta se estaacute presente ou ausente em outros casos (MACINTYRE 2005 p 161 )22
O caraacuteter enigmaacutetico da noccedilatildeo bem assinalado por George Moore o faz propor
que para aplicaccedilatildeo da noccedilatildeo de bem ou o que eacute intrinsecamente bom o agente
simplesmente o reconhece O resumo da questatildeo eacute que natildeo eacute possiacutevel se ter o bem
como uma propriedade simples aplicaacutevel e que sirva de criteacuterio para verificar sua
presenccedila ou ausecircncia e em que medida esta noccedilatildeo foi aplicada Assim quando o
indiviacuteduo agente ele natildeo se faz uma relaccedilatildeo direta entre bem e dever simplesmente
age segundo seus proacuteprios sentimentos Esta afirmaccedilatildeo abre espaccedilo ao emotivismo
que se torna objeto de criacutetica em Depois da Virtude
413 O emotivismo
O MacIntyre de Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica ainda natildeo faz associaccedilatildeo entre
o emotivismo e o desacordo moral Segundo ele o emotivismo teria seu germe nas
reaccedilotildees contra o pensamento de George Moore Ora se natildeo eacute possiacutevel definir o bem
como uma propriedade simples legiacutetima as accedilotildees satildeo entatildeo expressotildees dos
proacuteprios sentimentos dos agentes Contudo aqui aparece um problema do qual o
proacuteprio George Moore vai ser o primeiro a apontar pois ldquoos juiacutezos morais natildeo podem
ser simples informaccedilotildees sobre os nossos sentimentos porque neste caso dois
homens que expressam juiacutezos aparentemente contraditoacuterios sobre uma questatildeo
moral natildeo estariam de fato em desacordordquo (MACINTYRE 1988 p247)
22ldquoIs good then the name of a simple unanalyzable property To the doctrine that it is there are at
least two conclusive objections The first is that we can only use the name of a simple property by reference to which we are acquainted with some standard example of the property by reference to which we are to recognize whether it is present or absent in other casesrdquo
53
Entre os representantes do emotivismo encontra-se Charles Leslie Stevenson
Sua obra O Significado Emotivo dos Termos Eacuteticos defende a ideia de que a funccedilatildeo
primaacuteria das expressotildees morais eacute dar uma nova direccedilatildeo agraves atitudes dos outros com o
objetivo de provocar a adesatildeo o que seria segundo Stevenson uma funccedilatildeo dinacircmica
dessas expressotildees As expressotildees morais possuem esta funccedilatildeo dinacircmica porque
satildeo emotivas O seu significado corresponde agrave tendecircncia desta palavra construiacuteda
atraveacutes da histoacuteria de seu modo de uso a produzir respostas afetivas nas pessoas (cf
MACINTYRE 1988 p 248)
Em relaccedilatildeo ao significado dos termos morais Charles Stevenson propotildee dois
modelos nos quais ambos enfatizam o caraacuteter emotivo desses termos No primeiro
modelo o autor defende que proposiccedilotildees do tipo isto eacute bom satildeo equivalentes a Eu
gosto disto entatildeo faz o mesmo Jaacute o segundo modelo se ocupa de expressotildees que
encarnam o que Stevenson denomina de expressotildees persuasivas que possuem um
significado descritivo e associam a este um significado emotivo Assim sendo duas
pessoas podem associar agrave noccedilatildeo de Justiccedila diferentes significados descritivos em
virtude do elemento emotivo presente na experiecircncia individual com esta palavra
Alguns desdobramentos da tese de Charles Stevenson podem ser expressos
aqui o primeiro eacute que termos valorativos natildeo podem receber descriccedilatildeo completa pela
multiplicidade de significados Assim os fatos se apresentam como separados dos
valores em seguida o caraacuteter emotivo das expressotildees morais impossibilita de
construir uma teoria na qual os diversos agentes se sintam implicados porque
quaisquer proposiccedilotildees satildeo vaacutelidas Neste sentido conclui MacIntyre a Filosofia nos
assuntos ligados agrave moral seria neutra como tambeacutem a proacutepria teoria de Stevenson
uma vez que se podem utilizar palavras emotivas para lsquoabenccediloarrsquo quaisquer accedilotildees (cf
MACINTYRE 1988 p 248)
Aqui se encontra a razatildeo do desacordo valorativo uma vez que ldquonatildeo haacute limite
para as possibilidades de desacordo e conforme delineado acima nem
procedimentos que possam resolvecirc-losrdquo (MACINTYRE 1988 p 249) As razotildees que se
podem mencionar para fundamentar um juiacutezo moral natildeo possuem nenhuma relaccedilatildeo
loacutegica com a conclusatildeo que se pode derivar dela Os juiacutezos satildeo por assim dizer
apenas apoios psicoloacutegicos No discurso moral os termos lsquoporquersquo e lsquoportantorsquo perdem
sua conveniecircncia
54
Embora MacIntyre jaacute na Pequena Historia da Eacutetica apresente argumentos
contra o emotivismo interessa apresentar aqui como o emotivismo quase quinze
anos antes de Depois da Virtude jaacute se constitui numa das preocupaccedilotildees mais
relevantes do autor
Nas obras anteriores a Depois da Virtude se apresentava um certo ceticismo
sobre alguns aspectos do pensamento moral moderno entretanto eacute soacute com Depois
da Virtude que MacIntyre revela um profundo desencantamento com a filosofia moral
moderna Este desencantamento eacute tatildeo marcante que chega ateacute a obscurecer a
proposta moral de MacIntyre e objetivo fundamental da obra que eacute a proposiccedilatildeo da
Eacutetica das Virtudes via pensamento Aristoteacutelico a fim de resgatar a inteligibilidade do
discurso moral ultrapassando assim uma moralidade emotivista
42 A OBRA DEPOIS DA VIRTUDE
A apresentaccedilatildeo da fragmentaccedilatildeo do discurso moral contemporacircneo com a
falecircncia do projeto moderno de sua justificaccedilatildeo e a tentativa de restauraccedilatildeo da
racionalidade do discurso moral constituem as duas tarefas de Depois da Virtude Em
relaccedilatildeo ao projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade MacIntyre defende que o
seu fracasso se deu em virtude de as tentativas de fundamentaccedilatildeo da moralidade
partirem de uma concepccedilatildeo de racionalidade independente da histoacuteria e contexto
social Aleacutem disso todas as teses apesar de tomarem por base uma certa noccedilatildeo de
natureza humana natildeo a articularam no esquema moral da qual esta noccedilatildeo fazia parte
A desordem do discurso moral que o mundo contemporacircneo experimenta eacute a
consequecircncia natildeo soacute da falecircncia do projeto moderno mas tambeacutem dos proacuteprios
caminhos que a modernidade trilhou Um aspecto problemaacutetico de Depois da Virtude
e que eacute objeto de criacuteticas das mais contundentes eacute que a teoria moral de MacIntyre
natildeo se apresenta com o mesmo vigor de sua criacutetica agrave modernidade O diagnoacutestico eacute
bom mas o remeacutedio natildeo parece tatildeo eficaz
A afirmaccedilatildeo proferida ilustra bem a grande dificuldade que o proacuteprio
pensamento contemporacircneo enfrenta Em geral os pensadores contemporacircneos
tomam a Tradiccedilatildeo com bastante propriedade isto eacute fazem um bom diagnoacutestico dos
principais problemas da Tradiccedilatildeo entretanto natildeo parecem assim tatildeo propositivos ou
suas soluccedilotildees natildeo se impotildee com a mesma forccedila de sua criacutetica
55
As criacuteticas ao projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade e os
encaminhamentos que proporcionaram a sua crise jaacute foram adequadamente
esclarecidos no Capiacutetulo II deste trabalho A proacutexima tarefa eacute justamente apresentar
a teoria de MacIntyre em Depois da Virtude e com isso resgatar a inteligibilidade do
discurso moral que se constitui como grande tarefa afirmativa desta obra de
MacIntyre
421 A natureza das virtudes tese central de Depois da Virtude
Os capiacutetulos XIV A natureza das virtudes e o XV As virtudes a unidade da
vida humana e o conceito de tradiccedilatildeo apresentam os elementos chave da tentativa de
MacIntyre em constituir uma teoria da moralidade No desenvolvimento de sua teoria
MacIntyre enfrenta a problemaacutetica das diferentes listas e concepccedilotildees de virtude Haacute
enorme diferenccedilas entre a concepccedilatildeo homeacuterica a aristoteacutelica e a neotestamentaacuteria
Eles nos oferecem listas diferentes e incompatiacuteveis das virtudes classificam em hierarquias diferentes e incompatiacuteveis Se incluiacutessemos autores ocidentais mais recentes a lista das diferenccedilas aumentaria ainda mais e se estendermos nossa pesquisa agrave cultura japonesa ou digamos ameriacutendia as diferenccedilas aumentariam ainda mais Seria faacutecil demais concluir que existem inuacutemeras concepccedilotildees rivais e alternativas das virtudes poreacutem mesmo dentro da tradiccedilatildeo que tracei natildeo existe uma concepccedilatildeo nuclear uacutenica (MACINTYRE 2007 p 181)23
Sem duacutevida haacute um nuacutemero surpreendente de diferenccedilas e incompatibilidades
entre as vaacuterias listas das vaacuterias tradiccedilotildees Somem-se a isso virtudes que eram
completamente desconhecidas como eacute o caso das virtudes da feacute esperanccedila e
caridade Elas eram completamente estranhas a Aristoacuteteles Contudo MacIntyre
percebe que mesmo havendo uma enorme diferenccedila entre a lista de virtudes do Novo
Testamento e de Aristoacuteteles elas possuem a mesma estrutura conceitual
Virtude eacute assim como para Aristoacuteteles uma qualidade cujo exerciacutecio leva agrave conquista do telos humano O bem para o homem eacute naturalmente um bem sobrenatural [no cristianismo]24 e natildeo soacute um
23ldquoThey offer us different and incompatible lists of the virtues they give a different rank order of
importance to different of the virtues and they have different and incompatible theory of the virtues If we extended our enquiry to Japanese say or American Indian cultures the differences would become greater still It would be all too easy to conclude that there are a number of rival and alternative conceptions of the virtues but even within the tradition which I have been delineating no single core conceptionrdquo
24Destaque nosso
56
bem natural pois o sobrenatural redime e completa a natureza (MACINTYRE 2007 p 184 )25
Uma segunda similaridade se daacute na relaccedilatildeo das virtudes como sendo um
meio para um fim que eacute a entrada do homem no Reino dos ceacuteus num futuro vindouro
Essa passagem se daacute na interioridade do homem assim como em Aristoacuteteles
MacIntyre salienta que este paralelismo entre o aristotelismo e o Novo Testamento eacute
realizado por Tomaacutes de Aquino e ldquouma caracteriacutestica fundamental desse paralelismo
eacute o modo como o conceito de vida boa para o homem antecede ao conceito de virtuderdquo
(MACINTYRE 2007 p 184) O autor ainda salienta que tanto em Aristoacuteteles quanto em
Tomaacutes o conceito de virtude eacute um conceito secundaacuterio
Haacute algo de cartesiano na atitude de MacIntyre ele potildee em duacutevida a
possibilidade de alcanccedilar um conceito central ou em suas palavras nuclear de
virtude o que possa proporcionar uma unidade conceitual agrave tradiccedilatildeo moral
fundamentada na Eacutetica das Virtudes Contudo foi analisando atentamente qual a
distinccedilatildeo entre as tradiccedilotildees e os diversos conceitos de virtudes que o autor visualizou
que o conceito de virtude era secundaacuterio O fato de ser secundaacuterio eacute um nuacutecleo
comum entre as tradiccedilotildees e isto o faz responder agrave pergunta o que pode tornar
inteligiacutevel o conceito de virtude
Eacute na resposta a esta pergunta que se torna claro o caraacuteter complexo histoacuterico e multifacetado do conceito central de virtude pois natildeo haacute menos de trecircs estaacutegios no desenvolvimento loacutegico do conceito que precisam ser identificados na ordem correta para que se possa entender o conceito principal de virtude e cada um desses estaacutegios tem seu proacuteprio contexto conceitual O primeiro estaacutegio requer uma explicaccedilatildeo contextualizadora do que chamei praacutetica o segundo uma explicaccedilatildeo do que jaacute caracterizei como ordem narrativa de uma vida humana singular e o terceiro uma explicaccedilatildeo muito mais completa do que a que elaborei ateacute agora do que constitui uma tradiccedilatildeo moral (MACINTYRE 2007 p 314-315 )26
Praacutetica Narrativa de uma Vida Humana Singular e Tradiccedilatildeo satildeo os elementos
da teoria moral macintyreana Esses estaacutegios obedecem a uma ordem temporal pois
25ldquoA virtue is as with Aristotle a quality the exercise of which leads to the achievement of the human
telos The good for man is of course a supernatural and not only a natural good bus supernature redeems and completes naturerdquo
26ldquoIt is in answering this question that the complex historical multi-layered character of the core concept of virtue becomes clear For there are no less than three stages in the logical development of the concept which have to be identified in order if the core conception virtue is to be understood and each of these stages has its own conceptual background The first stage requires a background account of what I have already characterized as the narrative order of a single human life and the third an account a good deal fuller than I have given up to now of what constitutes a moral traditionrdquo
57
o posterior pressupotildee o anterior mas natildeo o contraacuterio Assim como cada estaacutegio eacute
reinterpretado pelo posterior e oferece elementos essenciais agrave sua compreensatildeo
Deve-se pois passar a uma anaacutelise de cada um desses estaacutegios
422 O conceito de praacuteticas
Costumeiramente Aristoacuteteles fala da excelecircncia na atividade humana
referindo-se a algum tipo de praacutetica humana bem definida tocar flauta guerrear
pensar geometricamente Essas praacuteticas proporcionam a oportunidade de expressatildeo
das virtudes satildeo o campo onde elas se desenvolvem MacIntyre salienta que praacuteticas
natildeo tecircm o sentido usual nem tambeacutem satildeo a uacutenica base atraveacutes da qual as virtudes
satildeo exibidas Qual eacute pois o sentido de Praacutetica
Praacutetica eacute qualquer forma coerente e complexa de atividade humana cooperativa socialmente estabelecida por meio da qual os bens internos a essa forma de atividade satildeo realizados durante a tentativa de alcanccedilar os padrotildees de excelecircncia apropriados para tal forma de atividade e parcialmente dela definidores tendo como consequecircncia a ampliaccedilatildeo sistemaacutetica dos poderes humanos para alcanccedilar tal excelecircncia e dos conceitos humanos dos fins e dos bens envolvidos (MACINTYRE 2007 p 187)27
Parece natildeo haver escrito de eacutetica que natildeo traga exemplo Assim MacIntyre
apresenta o exemplo de uma crianccedila de sete anos que ele gostaria de ensinar xadrez
mas que ela natildeo estaacute imediatamente interessada no aprendizado do jogo Como toda
crianccedila gosta de doce ele o oferece a ela desde que ela jogue xadrez uma vez por
semana pois aiacute ela receberaacute 50 centavos em doces e se ela vencer vai receber mais
50 centavos em doces Desse modo a crianccedila estaacute motivada e joga para ganhar
Apenas os doces motivam proporcionam agrave crianccedila um bom motivo para jogar xadrez
Ela natildeo tem razatildeo para trapacear e estaacute cheia de motivos para trapacear contanto
que consiga fazecirc-lo com ecircxito Entretanto haveraacute um momento em que a crianccedila vai
encontrar nos bens especiacuteficos do xadrez na aquisiccedilatildeo de certa capacidade
especialiacutessima imaginaccedilatildeo estrateacutegica e intensidade competitiva Este seraacute um novo
conjunto de razotildees e razotildees agora existem natildeo apenas para vencer em determinada
27ldquoBy a lsquopraticersquo I am going to mean any coherent and complex form of socially established cooperative
human activity through which goods internal to that form form of activity are realized in the course of trying to achieve those standards of excellence which are appropriate to and partially definitive of that form of activity with the result that human powers to achieve excellence and human conceptions of the ends and goods involved are systematically extendedrdquo
58
ocasiatildeo mas para tentar destacar-se de todos os modos que o jogo de xadrez exigir
Caso a crianccedila trapaceie natildeo estaraacute derrotando o oponente mas a si mesma (cf
MACINTYRE 2007 p 188)
Os bens internos ligados a essa atividade satildeo realizados durante a tentativa
de alcanccedilar os padrotildees de excelecircncia apropriados a tal forma de atividade O sentido
de bem interno pode ser explicitado de duas maneiras haacute certa capacidade que
apenas o exerciacutecio dessa atividade pode proporcionar no caso do jogo de xadrez ou
de qualquer outro da mesma natureza eacute a capacidade especialiacutessima de jogaacute-lo a
outra maneira se refere ao fato de que esses bens soacute podem ser identificados e
reconhecidos pela experiecircncia em participar da atividade
Bens externos e internos ainda trazem outra caracteriacutestica relevante que
proporciona uma maior compreensatildeo e distinccedilatildeo Bens externos quando
conquistados satildeo sempre posse de algueacutem Aleacutem disso sua posse eacute limitada de
modo que eles natildeo estatildeo disponiacuteveis para todos sendo portanto objeto de disputa e
concorrecircncia Por outro lado bens internos embora sejam objeto de competiccedilatildeo sua
conquista se torna disponiacutevel a toda a comunidade envolvida na praacutetica Como pois
a noccedilatildeo de bens internos se relaciona com a noccedilatildeo de virtude A resposta a esta
questatildeo se apresenta na primeira definiccedilatildeo provisoacuteria de virtude que Macintyre
oferece ldquoa virtude eacute uma qualidade humana adquirida cuja posse e exerciacutecio costuma
nos capacitar a alcanccedilar aqueles bens internos agraves praacuteticas e cuja ausecircncia nos
impede para todos os efeitos de alcanccedilar tais bensrdquo (MACINTYRE 2007 p 191)28
A definiccedilatildeo provisoacuteria de virtude elucida sua funccedilatildeo na vida humana seu papel
eacute proporcionar ao ser humano o acesso aos bens internos agraves praacuteticas Sua ausecircncia
significa de certo modo a negaccedilatildeo do acesso a esses bens
Ao conceito macintyreano de praacuteticas sejam elas jogos artes ciecircncias
atitudes tambeacutem pertence o pressuposto de que os bens internos a essas praacuteticas soacute
podem ser adquiridos por meio da proacutepria subordinaccedilatildeo dentro da praacutetica no
relacionamento com outros praticantes Toda praacutetica neste caso requer certo tipo de
relacionamento entre os seus integrantes A funccedilatildeo das virtudes eacute apresentar-se como
uma referecircncia para definir o modo de relaccedilatildeo entre os integrantes da praacutetica Eacute
necessaacuteria a aceitaccedilatildeo dos componentes necessaacuterios que a praacutetica foi aos poucos
28ldquoA virtue is an acquired human quality the possession and exercise of which tends to enable us to
achieve those goods which are internal to practices and the lack of which effectively prevents us from achieving any such goodrdquo
59
estabelecendo como padratildeo interno de excelecircncia Diga-se isso principalmente da
justiccedila coragem e da sinceridade A natildeo aceitaccedilatildeo desses padrotildees eacute anaacuteloga a estar
disposto a trapacear assim como a crianccedila do exemplo acima Assim faz-se
necessaacuteria uma constante valorizaccedilatildeo das virtudes e de seu papel na aquisiccedilatildeo dos
bens internos
A relevacircncia da sinceridade da justiccedila e da coragem eacute realccedilada por MacIntyre
dado que essas virtudes definem o relacionamento entre os integrantes de uma
praacutetica
Acredito entatildeo que do ponto de vista desses tipos de relaccedilotildees sem os quais as praacuteticas natildeo se mantecircm a sinceridade a justiccedila e a coragem e talvez algumas outras satildeo excelecircncias genuiacutenas satildeo virtudes agrave luz das quais precisamos caracterizar a noacutes mesmos e aos outros seja qual for nossa perspectiva moral ou os coacutedigos especiacuteficos da nossa sociedade Esse reconhecimento de natildeo podermos escapar agrave definiccedilatildeo dos nossos relacionamentos segundo tais bens eacute perfeitamente compatiacutevel com o reconhecimento de que cada sociedade tem e tem tido coacutedigos diferentes de sinceridade justiccedila e coragem (MACINTYRE 2007 p 192)29
Embora os coacutedigos se apresentem como muito distintos eles apenas o satildeo
sob certos aspectos distintos das virtudes particularmente o que natildeo acontece
poreacutem eacute o florescimento das virtudes em comunidades que natildeo as valorizem As
virtudes satildeo fundamentais porque elas consolidam as praacuteticas e a aquisiccedilatildeo dos bens
relativos a elas
As praacuteticas no entanto natildeo devem ser confundidas com um conjunto de
capacidades teacutecnicas O que distingue o modo como os conceitos dos devidos bens
e fins aos quais as capacidades teacutecnicas servem eacute a aptidatildeo que uma capacidade
teacutecnica proporciona agrave transformaccedilatildeo e ao enriquecimento dos poderes humanos e da
consideraccedilatildeo por seus proacuteprios bens internos Estes por sua vez tambeacutem vatildeo definir
parcialmente cada praacutetica ou tipo de praacutetica
MacIntyre acrescenta que ldquoas praacuteticas nunca tecircm uma meta ou metas fixas
definitivamente ndash a pintura [por exemplo] natildeo tem tal meta nem a Fiacutesica ndash mas as
29ldquoI take it then that from the standpoint of those types of relationship without practices cannot be
sustained truthfulness justice and courage ndash and perhaps some others ndash are genuine excellences are virtues in the light of which we have to characterize ourselves and others whatever our private moral standpoint or our societyrsquos particular codes may be For this recognition that we cannot escape the definition of our relationshipsin terms of such goods is perfectly compatible with the acknowledgment that different societies have and have had different codes of truthfulness justice and couragerdquo
60
proacuteprias metas se transmutam ao longo da histoacuteriardquo (MACINTYRE 2007 p 193 )30 Eacute
pois em virtude da transmutaccedilatildeo das metas que as praacuteticas se modificam e
consequentemente cada praacutetica seraacute portadora de uma histoacuteria peculiar diferente da
histoacuteria do aprimoramento de uma determinada capacidade teacutecnica Esta eacute pois uma
dimensatildeo histoacuteria fundamental na relaccedilatildeo entre praacuteticas e virtudes
Praacuteticas virtudes bens internos e externos se relacionam pois da seguinte
maneira numa sociedade que natildeo valoriza as virtudes soacute poderia haver um
reconhecimento dos bens externos e em hipoacutetese alguma dos bens internos no
contexto das praacuteticas MacIntyre acrescenta ldquoque em qualquer sociedade que
reconhecesse somente os bens externos a concorrecircncia seria a caracteriacutestica
predominante e ateacute exclusivardquo (MACINTYRE 1988 p 196)31
Neste sentido eacute possiacutevel delinear uma relaccedilatildeo distinta entre as virtudes e os
bens externos e internos A posse das virtudes eacute necessaacuteria para se alcanccedilar os bens
internos entretanto esta mesma posse pode dificultar o acesso a bens externos pois
o cultivo de determinadas virtudes como a justiccedila a sinceridade e a coragem pode
muitas vezes impossibilitar o acesso agraves riquezas ao prestiacutegio ao status Nesse
sentido talvez seja possiacutevel pensar que na verdade a riqueza o prestiacutegio e o status
sejam incompatiacuteveis com uma vida virtuosa
Desse modo no sentido empregado por MacIntyre as virtudes mesmo
proporcionando os bens internos agraves praacuteticas justificam-se independentes de seus
resultados pois embora elas sejam necessaacuterias agraves praacuteticas o acesso aos bens natildeo
se daacute de maneira uniacutevoca
423 Ordem narrativa de uma vida humana singular
O desenvolvimento da noccedilatildeo de ordem narrativa de uma vida humana singular
eacute uma resposta agrave questatildeo formulada no fim do capiacutetulo XIV de Depois da Virtude
Este elemento fundamental da teoria moral macintyreana aprofunda e enriquece o seu
conceito provisoacuterio de virtude explicitado no toacutepico acima A pergunta se esboccedila da
seguinte maneira
30ldquoPratices never have a goal or goals fixed for all time ndash painting has no such goal nor has physics ndash
but the goals themselves are transmuted by the history of the activityrdquo 31ldquoAnd in any society which recognized only external goods competitiveness would be the dominant and
even exclusive featurerdquo
61
seraacute racionalmente justificaacutevel conceber cada vida humana como uma unidade de modo que possamos tentar especificar cada uma dessas vidas como tendo o seu bem de modo que possamos entender as virtudes como tendo a funccedilatildeo de capacitar o indiviacuteduo a fazer de sua vida uma determinada espeacutecie de unidade e natildeo de outra (MACINTYRE 2007 p 203)32
O objetivo de MacIntyre neste ponto eacute oferecer uma compreensatildeo de cada
vida humana como um todo como uma unidade na qual o caraacuteter desta unidade
ofereccedila agraves virtudes um telos apropriado O primeiro passo que eacute o iniacutecio do Cap XV
de Depois da virtude eacute ultrapassar obstaacuteculos que contrariam a ideia de unidade da
vida humana o primeiro de natureza socioloacutegica e o segundo de natureza filosoacutefica
ou ainda da teoria socioloacutegica
O obstaacuteculo social agrave ideia de unidade da vida humana singular proveacutem da
maneira como a sociedade moderna passou a conceber a vida do indiviacuteduo sua vida
eacute pensada na forma de segmentos cada um com seu proacuteprio modus operandi nos
quais ldquoo trabalho eacute pensado separado de lazer a vida privada eacute afastada da vida
puacuteblica a vida empresarial eacute separada da vida pessoalrdquo (MACINTYRE 1988 p 204)33
Estas separaccedilotildees estatildeo articuladas de modo tal que a ideia de unidade da vida do
indiviacuteduo lhe eacute completamente estranha
Os obstaacuteculos filosoacuteficos se referem agrave ideia de que a vida humana eacute articulada
como uma sequecircncia de atos e episoacutedios individuais Numa concepccedilatildeo existencialista
por exemplo a vida humana se torna natildeo visualizaacutevel dado que indiviacuteduo estaacute
constantemente a desempenhar papeis que natildeo dizem respeito a ele imediatamente
MacIntyre toma o Sartre da Naacuteusea a fim de apresentar a seguinte tese
a narrativa eacute bem diferente da vida e que apresentar a vida humana em forma de narrativa eacute sempre deturpaacute-la De acordo com este pensamento conclui MacIntyre natildeo existiriam narrativas verdadeiras e a vida humana consistiria em accedilotildees que natildeo conduzem a lugar nenhum (MACINTYRE 2001b p 360)
Esta concepccedilatildeo existencialista de um eu separado de seus papeis
impossibilitaria o espaccedilo social de desenvolvimento das virtudes A criacutetica de
MacIntyre a tese de Sartre eacute a de para afirmar que nenhuma narrativa eacute possiacutevel
Sartre se utiliza de uma narrativa aleacutem disso MacIntyre afirma tambeacutem se poderia
32ldquois it rationally justifiable to conceive of each human life as a unity so that we may try to specify each
such life as having their function in enabling an individual to make of his or her life one kind of unity rather than anotherrdquo
33 ldquowork is divided from leisure private life from public the corporate from the personalrdquo
62
questionar a Sartre como seriam os atos humanos destituiacutedos de qualquer narrativa
mesmo que deturpadora A resposta agrave pergunta eacute o silecircncio completa o autor
Para o desenvolvimento das virtudes eacute fundamental compreender a vida
humana individual como uma unidade Aleacutem disso ldquoa unidade de virtude na vida de
algueacutem soacute se torna inteligiacutevel como caracteriacutestica de uma vida unitaacuteria uma vida que
se possa compreender e se avaliar na iacutentegrardquo (MACINTYRE 2007 p 205 )34 Como as
abordagens anteriores que representam uma antiacutetese agrave noccedilatildeo da vida humana
individual como uma unidade satildeo heranccedila da proacutepria concepccedilatildeo moderna sobre
homem e o seu ser-no-mundo faz-se necessaacuteria a exposiccedilatildeo do ldquoconceito de um eu
cuja unidade reside na unidade de uma narrativa que une o nascimento agrave vida e agrave
morte em forma de uma narrativa com comeccedilo meio e fimrdquo (MACINTYRE 2007 p
205)35
O conceito de eu como uma unidade narrativa vai dar a Macintyre a
oportunidade de passar para o segundo momento do seu conceito virtude que natildeo se
limita exclusivamente agraves praacuteticas O Prof Helder de Carvalho comenta sobre a
problemaacutetica de limitar o conceito de virtude ao conceito de praacuteticas
Se restringirmos a definiccedilatildeo do conceito de virtude ao acircmbito das praacuteticas fatalmente chegaremos a uma situaccedilatildeo em que a possibilidade do conflito traacutegico se efetiva uma situaccedilatildeo em que as pretensotildees de uma praacutetica podem ser incompatiacuteveis com as de outras ambas apontando para direccedilotildees diferentes de tal forma que podemos nos ver oscilando de um modo arbitraacuterio entre uma posiccedilatildeo e outra sem conseguirmos constituir propriamente uma escolha racional (CARVALHO 2001 p 14)
A superaccedilatildeo do elemento arbitraacuterio da vida moral e a consistecircncia do
conceito de virtude satildeo proporcionadas pelo conceito de unidade narrativa de uma
vida humana individual pensada integralmente A accedilatildeo humana deve pois ser
articulada por um tipo de narrativa histoacuterica que seja ldquoo gecircnero fundamental e
essencial para a caracterizaccedilatildeo das accedilotildees humanasrdquo (MACINTYRE 2007 p 208 )36 A
perspectiva narrativa garante que os diversos episoacutedios da vida de uma pessoa
ganhem lugar e sentido por que natildeo dizer inteligibilidade Com efeito essa unidade
34ldquoAnd the unity of a virtue in someonersquos life is intelligible only as a characteristc of a unitary life a life
that can be conceived and evaluated as a wholerdquo 35ldquoa concept of a self whose unity resides in the unity of a narrative which links birth to life to death as
narrative beginning to middle to endrdquo 36ldquonarrative history of a certain kind turns out to be basic and essential genre for the characterization of
human actionsrdquo
63
somente eacute possiacutevel porque segundo MacIntyre as accedilotildees estatildeo articuladas atraveacutes
de uma perspectiva histoacuterica Uma vida humana singular pode ser compreendida na
forma de uma narrativa e consequentemente a ela tambeacutem proporciona a
compreensatildeo da vida e da accedilatildeo dos outros
Eacute porque todos vivenciamos narrativas nas nossas vidas e porque entendemos nossa proacutepria vida nos termos das narrativas que vivenciamos que a forma de narrativa eacute adequada para se entender os atos de outras pessoas (MACINTYRE 1988 p 212)37
A Narrativa natildeo deve tambeacutem ser pensada exclusivamente de modo singular
pois as diversas narrativas se intercomunicam estatildeo relacionadas umas agraves outras
Prof Helder de Carvalho salienta que a ldquovida individual para MacIntyre consiste na
unidade de uma narrativa encarnada numa vida singular que na forma de atos e
palavras tenta responder sistematicamente agraves questotildees acerca do que eacute bom para o
indiviacuteduo e do que eacute bom para o homemrdquo (CARVALHO 2001 p 15) Com a resposta a
essas duas questotildees a saber o que eacute bom para o indiviacuteduo e para o homem se tem
a unidade da vida moral tanto individualmente quanto para um grupo Aleacutem disso
enfatiza MacIntyre ldquoa formulaccedilatildeo sistemaacutetica dessas duas questotildees e a tentativa de
respondecirc-las tanto em atos quanto em palavras que proporcionam unidade agrave vida
moralrdquo (MACINTYRE 2007 p 218)38
A unidade da vida moral deve ser pensada como uma unidade de busca
narrativa Esse conceito medieval possui duas caracteriacutesticas fundamentais
primeiramente a busca soacute pode se iniciar se houver ao menos uma noccedilatildeo de telos
isto eacute deve-se ter ao menos uma noccedilatildeo do seja o bem para o homem Esta primeira
caracteriacutestica eacute alcanccedilada atraveacutes da resposta agravequelas questotildees ora mencionadas
A segunda eacute a noccedilatildeo de que a busca natildeo se refere a algo jaacute adequadamente
caracterizado pois eacute no decorrer da busca e somente no enfrentamento de inuacutemeras
vicissitudes que se pode intuir meta da busca A busca tem pois um caraacuteter
pedagoacutegico no aprendizado moral e no processo de conhecimento de si
A relaccedilatildeo entre unidade narrativa da vida e a noccedilatildeo de busca aperfeiccediloam a
noccedilatildeo macintyreana de virtude
37ldquoIt is because we all live out narratives in our lives and because we understand our own lives in terms
of the narratives that we live out that the form of narrative is appropriate for understanding the actions of othersrdquo
38ldquoit is the systematic asking of these two questions and the attempt to answer them in deed as well as in word which provide the moral life with its unityrdquo
64
As virtudes portanto devem ser compreendidas como as disposiccedilotildees que aleacutem de nos sustentar e capacitar para alcanccedilar os bens internos agraves praacuteticas tambeacutem nos sustentam no devido tipo de busca pelo bem capacitando-nos a superar os males os riscos as tentaccedilotildees e as tensotildees com que nos deparamos e que nos forneceratildeo um autoconhecimento cada vez maior (MACINTYRE 2007 p 219)39
O conjunto das virtudes iraacute dar conta natildeo apenas dos elementos comunitaacuterios
nos quais a busca pelo bem eacute dada em conjunto mas inclui agora virtudes
necessaacuterias agrave investigaccedilatildeo acerca do caraacuteter do bem que se almeja MacIntyre
conclui afirmando que chegou a uma conclusatildeo provisoacuteria sobre a vida virtuosa para
o homem ldquoa vida virtuosa para o homem eacute a vida passada na procura da vida boa
para o homemrdquo (MACINTYRE 2007 p 219)40 Com efeito as virtudes que satildeo
necessaacuterias satildeo aquelas que mais proporcionarem esse entendimento Ademais elas
esclarecem em relaccedilatildeo aos bens natildeo apenas em relaccedilatildeo agraves praacuteticas mas tambeacutem agrave
vida individual proporcionada por uma unidade narrativa que rompe com a noccedilatildeo de
vida e tempo segmentados
424 Tradiccedilatildeo
O conceito de tradiccedilatildeo apresenta sua relevacircncia a partir da consciecircncia de
uma identidade individual que natildeo pode ser concebida arrancada da rede de
significados e dos contextos na histoacuteria das comunidades que forjaram esta mesma
identidade Deve-se pois pensar que eacute necessaacuteria ao indiviacuteduo a posse de uma
identidade histoacuterica Busca-se a identidade moral no interior da famiacutelia do bairro da
cidade sem natildeo entanto se estar obrigados a assumir o que Macintyre intitula de
limitaccedilotildees morais dessas particulares formas histoacutericas de comunidade O ponto de
partida da busca pela identidade histoacuterica eacute justamente as particularidades Iniciando
pelas particularidades busca-se o bem o universal
A identidade eacute em parte resultado daquilo que o indiviacuteduo herdou daqueles
que o precederam O presente de uma pessoa natildeo possui sentido independente das
39ldquoThe virtues therefore are to be understood as those dispositions which will not only sustain practices
and enable us to achieve the goods internal to practices but which will also sustain us in the relevant kind of quest for the good by enabling us to overcome the harms dangers temptations and distractions which we encounter and which will furnish us with increasing self-knowledge and increasing knowledge of the goodrdquo
40ldquothe good life for man is the life seeking are those which will enable us to understand what more and what else the good life for man isrdquo
65
marcas e influecircncia de um passado que natildeo eacute simplesmente aquilo que jaacute natildeo eacute
mas que manteacutem com o presente uma relaccedilatildeo na forma de um vigor de ter sido
Assim a pessoa se descobre como partiacutecipe de uma tradiccedilatildeo quer goste ou natildeo quer
reconheccedila ou natildeo Ao desenvolver o conceito de Praacuteticas MacIntyre afirmou que elas
sempre tecircm histoacuterias e o que elas satildeo dependem do modo como cada geraccedilatildeo a
compreende e a transmite
Neste sentido as virtudes sustentam relacionamentos necessaacuterios agraves praacuteticas
como tambeacutem sustentam a relaccedilatildeo com o passado pensado a partir do conceito de
tradiccedilatildeo Qual eacute pois o conceito macintyreano de tradiccedilatildeo Segundo MacIntyre ldquouma
tradiccedilatildeo viva eacute entatildeo uma argumentaccedilatildeo que se estende na histoacuteria e eacute socialmente
incorporada e eacute uma argumentaccedilatildeo em parte exatamente sobre os bens que
constituem tal tradiccedilatildeordquo (MACINTYRE 2007 p 222)41 A procura pelos bens no interior
de uma tradiccedilatildeo atravessa muitas vezes geraccedilotildees inteiras Assim sendo a procura
do bem individual natildeo acontece separada da tradiccedilatildeo mas eacute realizada sob as
circunstacircncias definidas pela tradiccedilatildeo da qual um indiviacuteduo eacute partiacutecipe Essa procura
se daacute em relaccedilatildeo aos bens internos agraves praacuteticas e tambeacutem aos bens de uma uacutenica
vida Isto significa que ldquohistoacuteria de uma praacutetica na nossa eacutepoca estaacute em geral e
caracteristicamente inserida na histoacuteria mais longa e ampla da tradiccedilatildeo e por meio
da qual a praacutetica se torna inteligiacutevel e chega assim agrave forma atual que nos foi
transmitidardquo (MACINTYRE 2007 p 222)42 A inteligibilidade da histoacuteria de cada pessoa
ganha seu sentido no interior da histoacuteria de cada tradiccedilatildeo
A sustentaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo sua conservaccedilatildeo e seu decliacutenio dependem do
exerciacutecio das virtudes que lhe satildeo correspondentes ou agrave falta dele Neste sentido as
virtudes tambeacutem servem como sustentaacuteculo para as tradiccedilotildees ou seja a permanecircncia
ou a extinccedilatildeo delas mantecircm relaccedilatildeo com o exerciacutecio das virtudes
A convicccedilatildeo de MacIntyre eacute a de que a falta de justiccedila sinceridade coragem
e de outras virtudes intelectuais correspondentes corrompem tradiccedilotildees mas tambeacutem
as praacuteticas que foram forjadas na proacutepria tradiccedilatildeo da qual elas (as praacuteticas) satildeo reflexo
(Cf MACINTYRE 2007 p 223) Haacute aqui a necessidade de se reconhecer a importacircncia
41ldquoA living tradition then is an historically extended socially embodied argument and an argument
precisely in part about the goods which constitute that traditionrdquo 42ldquothe history of a practice in our time is generally and characteristically embedded in and made
intelligible in terms of the larger and longer history of the tradition through which the practice in its present form was conveyed to usrdquo
66
das tradiccedilotildees das quais se faz parte no entendimento de suas possibilidades futuras
que o passado tornou disponiacutevel no presente
O uacuteltimo conceito da teoria moral de MacIntyre atraveacutes da noccedilatildeo de tradiccedilatildeo
complementa sua compreensatildeo do conceito de virtude A busca pelo bem do homem
natildeo tem sentido sem se considerar a tradiccedilatildeo que alimentou de experiecircncias
conceitos opiniotildees a identidade de uma pessoa Assim o autor compreende a moral
como uma relaccedilatildeo entre o eu o contexto social e a histoacuteria
Esta seccedilatildeo do trabalho explicitou o projeto de Depois da Virtude atraveacutes da
exposiccedilatildeo da segunda tarefa da obra que eacute formular uma teoria moral capaz de
resgatar a inteligibilidade do discurso moral Embora esta segunda tarefa aparente ter
sido ofuscada pelo grande descontentamento do autor em relaccedilatildeo agrave Filosofia Moral
Moderna o autor oferece uma alternativa agrave moral do dever ou uma moral utilitarista
Praacuteticas Unidade narrativa de uma vida humana individual e o conceito de Tradiccedilatildeo
compotildeem o conceito macintyreano de virtude e se constituem no nuacutecleo de sua teoria
moral
O proacuteximo passo eacute empreender uma anaacutelise agraves principais criacuteticas ao seu
pensamento e verificar um modo de como eacute possiacutevel defender a pertinecircncia de uma
Eacutetica das Virtudes dando continuidade a uma tarefa que o proacuteprio MacIntyre indicou
em sua obra apresentar como Tomaacutes de Aquino empreende uma reconciliaccedilatildeo entre
o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica como tambeacutem verificar de que modo o feito de
Tomaacutes ajuda a compreender a moral contemporacircnea
67
5 RECONCILIACcedilAtildeO ENTRE O PENSAMENTO CRISTAtildeO E O ARISTOTELISMO
A grandeza do pensamento de MacIntyre reside no esforccedilo que ele teve em
tentar estabelecer uma teoria moral ao modo de uma Eacutetica das Virtudes Entretanto
atraveacutes de seu proacuteprio testemunho vecirc-se que a suas consideraccedilotildees acerca do
pensamento de Tomaacutes de Aquino foram insuficientes ldquoPenso agora por exemplo que
a minha criacutetica anterior agraves teses de Santo Tomaacutes sobre a unidade das virtudes estava
simplesmente errada devido em parte a uma leitura equivocada do Aquinaterdquo
(MACINTYRE 2001a p 8) Assim sendo a segunda parte deste trabalho assume como
objetivo principal a apresentaccedilatildeo da Reconciliaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo Biacuteblica e o
Aristotelismo
A presente pesquisa jaacute sinalizou que embora MacIntyre seja devedor do
pensamento de Gertrude Anscombe eles possuem posicionamentos diferentes
acerca da antropologia Anscombe sugere que o ponto de partida estaacute numa
psicologia filosoacutefica enquanto que MacIntyre abre matildeo desta antropologia por
consideraacute-la uma lsquobiologia metafiacutesicarsquo cujo conceito de homem seria lsquoahistoacutericorsquo e
lsquoaculturalrsquo distanciando-se assim do meacutetodo histoacuterico por ele utilizado
Posteriormente MacIntyre volta atraacutes e assume a biologia aristoteacutelica no conceito de
homem Esta pesquisa compartilha com Anscombe a consciecircncia da necessidade de
uma psicologia filosoacutefica e segundo esta perspectiva daraacute continuidade agrave tarefa
indicada por MacIntyre
A ideia de uma reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo cristatilde inclui a
necessidade de uma retomada do pensamento de Aristoacuteteles Na dinacircmica entre atos
e virtudes Aristoacuteteles considera que as accedilotildees possuem certa precedecircncia sobre as
disposiccedilotildees Ele afirma na EN II 1-2 que ldquoeacute a partir dos atos repetidos em uma certa
direccedilatildeo que adquirimos as disposiccedilotildees correspondentesrdquo Os atos tambeacutem
prevalecem sobre a disposiccedilatildeo por maior que seja o haacutebito de um agente ele sempre
pode em relaccedilatildeo a cada accedilatildeo particularmente agir diferentemente Dessa maneira
sendo as virtudes um modo de disposiccedilatildeo da alma elas natildeo podem prescindir de uma
reflexatildeo sobre a teoria dos atos
Entre as objeccedilotildees que podem ser feitas agrave proposta moral de MacIntyre eacute que o
autor de certo modo potildee o conceito de virtude como conceito primordial
68
prescindindo assim de uma elaboraccedilatildeo teoacuterica que eacute anterior e condicionante ao
conceito de virtude que eacute uma teoria das accedilotildees A consideraccedilatildeo das virtudes a partir
de uma teoria das accedilotildees ao contraacuterio do que se poderia pensar natildeo representa um
retorno agrave centralidade das accedilotildees em detrimento da centralidade do agente o que seria
uma contradiccedilatildeo agrave criacutetica da moral deontoloacutegica
Embora o caraacuteter do agente seja crucial para Aristoacuteteles a sua relevacircncia para
o julgamento de uma accedilatildeo proveacutem do fato de que uma accedilatildeo eacute entendida de tal maneira
que inviabiliza um procedimento fundado em regras previamente estipuladas Essa
compreensatildeo segundo Marco Zingano eacute o que favorece a busca por um agente
moralmente bom quando devemos descobrir qual eacute a coisa certa para ser feita (cf
ZINGANO 2010 p 32) A questatildeo fundamental estaacute natildeo em afirmar que um ato
moralmente bom eacute o que deve ser feito por um agente que eacute igualmente bom mas
em reconhecer que um ato eacute bom porque corresponde agraves propriedades de evitar o
viacutecio seja na falta ou no excesso Tornar-se bom eacute a qualidade do agente que
frequentemente agiu desse modo Neste sentido eacute possiacutevel afirmar que o lugar
relevante das virtudes deve-se pois agrave certa teoria das accedilotildees
Afirmar que a centralidade das virtudes depende das accedilotildees natildeo desfaz a
importacircncia das virtudes mas agraves coloca numa posiccedilatildeo secundaacuteria em relaccedilatildeo agraves
accedilotildees Uma vez que elas derivam das accedilotildees eacute compreensiacutevel vecirc-las como efeito de
boas accedilotildees Desse modo eacute importante compreender que a eacutetica de Aristoacuteteles eacute uma
Eacutetica das Virtudes natildeo porque as virtudes sejam fundamento do bem agir mas porque
as virtudes estatildeo fundamentadas em accedilotildees das quais as virtudes sinalizam que satildeo
moralmente boas Assim sendo faz-se necessaacuteria uma exposiccedilatildeo da teoria
aristoteacutelica dos atos
A teoria dos atos exposta na EN proporciona a compreensatildeo dos
fundamentos de filosofia moral de Aristoacuteteles Segundo Henrique de Lima Vaz essa
filosofia traz consigo elementos cosmocecircntricos Por sua vez alguns desses
elementos seratildeo retomados por Tomaacutes de Aquino o qual realizaraacute um processo que
se denomina aqui de reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo e a filosofia de
Aristoacuteteles A exposiccedilatildeo dos pontos fundamentais desta reconciliaccedilatildeo se constitui na
tarefa mais fundamental deste trabalho O alcance deste objetivo se constitui
conforme se compreende aqui na continuidade da tarefa deixada em aberto por
MacIntyre em Depois da Virtude Esta tarefa eacute necessaacuteria uma vez que se pode
69
afirmar que muitos dos conceitos morais contemporacircneos possuem um conteuacutedo
semacircntico influenciado pelo pensamento cristatildeo Os conceitos a que esta pesquisa se
refere satildeo o de intenccedilatildeo consciecircncia obrigaccedilatildeo liberdade livre-arbiacutetrio e felicidade
Muitos destes conceitos ou natildeo foram aprofundados pelos gregos ou foram ateacute
desconhecidos deles
O posicionamento fundamental deste trabalho eacute o de que a exposiccedilatildeo do modo
como Tomaacutes de Aquino promove a retomada do pensamento aristoteacutelico na filosofia
moral compatibilizando-o com o pensamento cristatildeo garante de certa maneira uma
consciecircncia de que conceitos importantes da filosofia moral natildeo satildeo os mesmos se
essa leitura cristatilde natildeo for considerada
O elemento central desta compatibilizaccedilatildeo se encontra na siacutentese entre o
horizontalismo da moral aristoteacutelica e o verticalismo da Teologia Cristatilde Embora estes
dois conceitos ainda mereccedilam um melhor esclarecimento esta siacutentese se constitui
como princiacutepio que guia o problema tomista da Beatitude e do Fim uacuteltimo do homem
Aristoacuteteles seguindo a articulaccedilatildeo da Eacutetica Antiga tem a Eudaimonia como ideia
central da vida moral Tomando esta ideia sob a acepccedilatildeo de Beatitude Tomaacutes de
Aquino ultrapassa a ideia aristoteacutelica primitiva de Eudaimonia rompendo assim com
os cosmocentrismo da Eacutetica Antiga na qual a moral aristoteacutelica tambeacutem estava
inserida
O desenvolvimento deste capiacutetulo cumpre a seguinte orientaccedilatildeo
primeiramente analisar a teoria aristoteacutelica dos atos como tambeacutem a retomada e o
desenvolvimento tomista dos conceitos necessaacuterios agraves accedilotildees Em seguida discutir de
que maneira os elementos da teoria aristoteacutelica dos atos satildeo retomados e que
encaminhamentos eles tecircm com o pensamento cristatildeo Finalmente deve-se
desenvolver o modo como Tomaacutes de Aquino ultrapassa o cosmocentrismo da eacutetica
de Aristoacuteteles
51 AS VIRTUDES E A TEORIA ARISTOTEacuteLICA DOS ATOS ndash EN III 1-8
Foi afirmado que Aristoacuteteles assumia uma posiccedilatildeo de precedecircncia dos atos em
relaccedilatildeo agraves virtudes Para essa finalidade preferir-se-aacute o texto da EN em virtude de
seu peso na Tradiccedilatildeo pelo modo como a obra estaacute articulada e pela significaccedilatildeo que
70
a obra conquistou na histoacuteria da filosofia moral Esta seccedilatildeo se dedica a mostrar como
o estagirita desenvolve sua teoria dos atos cuja seccedilatildeo se situa no livro III 1-8
Aristoacuteteles inicia a seccedilatildeo da EN esclarecendo que a virtude diz respeito a
emoccedilotildees e accedilotildees e de que maneira os atos voluntaacuterios satildeo louvados ou censurados
ao passo que os involuntaacuterios satildeo objeto de perdatildeo e por vezes de piedade Em
seguida ele assinala a importacircncia de os estudiosos da virtude e os legisladores
definirem o voluntaacuterio e o involuntaacuterio (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III
1 1109 b30)
511 Do voluntaacuterio e do involuntaacuterio
A primeira questatildeo relevante acerca das accedilotildees eacute a compreensatildeo dos atos
voluntaacuterios e involuntaacuterios Existe uma voluntariedade em relaccedilatildeo a coisas exteriores
na forma de causas motoras quando estas de apresentam na forma de bem
Contrariamente o involuntaacuterio diz respeito aos moacutebeis externos quando estes se
apresentam de modo forccediloso ou por ignoracircncia ldquoParecem ser involuntaacuterias as accedilotildees
praticadas por forccedila ou por ignoracircncia Eacute forccediloso o ato cujo princiacutepio eacute exterior ao
agente princiacutepio para o qual o agente ou paciente em nada contribuirdquo (ARISTOacuteTELES
Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a1)43
Existem accedilotildees que se desenvolvem de uma maneira mista Aristoacuteteles chama
a atenccedilatildeo para accedilotildees realizadas por meio de males maiores e estas mesmo
indesejadas satildeo assumidas em virtude das circunstacircncias Assim ele diz dos
navegantes que para evitar o naufraacutegio se livram da carga Embora forccediladas estas
accedilotildees se assemelham agraves accedilotildees voluntaacuterias pois ldquosatildeo escolhidas no momento em que
satildeo praticadas e o fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeo Voluntaacuterio e involuntaacuterio
entatildeo devem ser ditos com referecircncia ao momento em que se pratica a accedilatildeordquo
(ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a10)44
Haacute um elemento curioso nesta uacuteltima afirmaccedilatildeo de Aristoacuteteles quando este diz
que o fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeo Corriqueiramente se diz que a finalidade
natildeo pertence agrave deliberaccedilatildeo do agente Talvez seja possiacutevel afirmar que existe uma
classe de fins que sejam abertos agrave eleiccedilatildeo do agente ou ainda que o fim de uma
43 ldquoβίαιον δὲ οὗ ἡ ἀρχὴ ἔξωθεν τοιαύτη οὖσα ἐν ᾗ μηδὲν συμβάλλεται ὁ πράττων ἢ ὁ πάσχωrdquo 44 ldquoκαὶ τὸ ἑκούσιον δὴ καὶ τὸ ἀκούσιον ὅτε πράττει (15) λεκτέονrdquo
71
accedilatildeo tenha certa dinamicidade pois ldquoo fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeordquo
(ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a10)45 Este foi o caso por
exemplo dos navegantes que antes tinham o objetivo de levar a carga mas diante
da tempestade livraram-se da carga a fim de salvar suas vidas Intimamente os
navegantes natildeo gostariam de se livrar da carga entretanto voluntariamente a
jogaram no mar
Deve-se afirmar tambeacutem que para ser involuntaacuteria natildeo eacute o bastante um ato
ser forccedilado mas se deve acrescentar que aleacutem de ser forccedilado um ato natildeo deve
possuir nenhuma contribuiccedilatildeo do agente como princiacutepio da accedilatildeo e mais ainda
provocarem dor e arrependimento (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1
1110 b20)46 Do involuntaacuterio forccedilado conclui-se que deve ser externo forccedilado e
penoso ao agente
Da accedilatildeo por ignoracircncia Aristoacuteteles estabelece distinccedilotildees na forma de natildeo-
voluntaacuterio e involuntaacuterio Todo ato feito por ignoracircncia eacute natildeo voluntaacuterio (cf
ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 2 1110 b20)47 mas somente merece o
nome de involuntaacuterio aquele ato que realizado por ignoracircncia causou o
arrependimento O agente que por ignoracircncia realizou uma accedilatildeo mas natildeo se
arrependeu merece que sua accedilatildeo seja chamada apenas de natildeo voluntaacuteria
Aristoacuteteles tambeacutem distingue o agir por ignoracircncia e o agir em estado de
ignoracircncia (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 2 1110 b25)48 O agir em
estado de ignoracircncia se refere ao caso de algueacutem que por alguma causa qualquer
que lhe tire da ciecircncia do ato a exemplo de um becircbado ou de um homem
encolerizado tornou-se ignorante do que estava a fazer Haacute tambeacutem exemplos de
homens que deliberadamente ignoram o que deveriam fazer Esse eacute o caso do
homem perverso que por ignorar o que deveria fazer merece ser chamado de injusto
ou de mau Eacute involuntaacuterio tambeacutem o ato de algueacutem que ignora natildeo deliberadamente
alguma das circunstacircncias particulares nas quais uma accedilatildeo se desenvolve Entre os
criteacuterios para que uma accedilatildeo por causa da ignoracircncia seja involuntaacuteria deve-se
acrescentar o sofrimento do agente e o seu arrependimento
45 ldquoτὸ δὲ τέλος τῆς πράξεως κατὰ τὸν καιρόν ἐστινrdquo 46 ldquoτοῦ δὴ κατὰ τὴν τοιαύτην ἄγνοιαν ἀκουσίου λεγομένου (20) ἔτι δεῖ τὴν πρᾶξιν λυπηρὰν εἶναι καὶ ἐν
μεταμελείᾳrdquo 47 ldquoτὸ δὲ δι᾽ ἄγνοιαν οὐχ ἑκούσιον μὲν ἅπαν ἐστίνrdquo 48 ldquoἕτερον δ᾽ (25) ἔοικε καὶ τὸ δι᾽ ἄγνοιαν πράττειν τοῦ ἀγνοοῦνταrdquo
72
Os atos forccedilados assim como os atos por ignoracircncia comportam igualmente
a caracteriacutestica de serem penosos ao agente contudo o ser penoso dos atos forccedilados
natildeo parece se identificar com o penoso dos atos por ignoracircncia Com efeito o penoso
dos atos forccedilados eacute um sofrimento infringido pela circunstacircncia enquanto o dos atos
por ignoracircncia eacute um sofrimento infringido pelo proacuteprio agente em virtude de seu
arrependimento Os atos voluntaacuterios satildeo aqueles cujo princiacutepio reside no agente que
conhece as circunstacircncias particulares nas quais ocorre a accedilatildeo (Cf ARISTOacuteTELES
Ethica Nicomachea 2010 III 3 1111 a25)49
512 A escolha deliberada
Mais apropriada agrave virtude e a discriminar o caraacuteter do que as accedilotildees Aristoacuteteles
entende que a escolha deliberada eacute por um lado voluntaacuteria e por outro involuntaacuteria
(Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 4 1111 b5)50 A ideia geral eacute a de que
a escolha deliberada eacute um modo mais especiacutefico do voluntaacuterio sendo este mais
abrangente do que ela O exemplo geral eacute o das crianccedilas que apesar de terem atos
voluntaacuterios natildeo possuem ainda escolha deliberada
A escolha deliberada diz respeito aos atos que estatildeo ao alcance do agente e
que concernem agravequilo que conduz ao fim O exemplo eacute o do desejo da sauacutede no qual
a escolha deliberada proporciona as coisas necessaacuterias agrave sauacutede (cf ARISTOacuteTELES
Ethica Nicomachea 2010 III 4 1111 b25 51 Assim esta escolha se refere agrave obtenccedilatildeo
do que se deve obter e agrave fuga do que se deve evitar Escolhe-se deliberadamente
quando se sabe que uma coisa eacute boa Deste modo ldquoa escolha deliberada eacute
acompanhada de pensamento e de reflexatildeordquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010
III 4 1112 a15)52
No paraacutegrafo V do livro III a conclusatildeo eacute a de que o objeto da escolha
deliberada eacute o objeto do desejo deliberado daquilo que estaacute em poder do agente A
escolha deliberada eacute o desejo deliberativo pois julgando em funccedilatildeo de ter deliberado
49 ldquoτὸ ἑκούσιον δόξειεν ἂν εἶναι οὗ ἡ ἀρχὴ ἐν αὐτῷ εἰδότι τὰ καθ᾽ ἕκαστα ἐν οἷς ἡ πρᾶξιςrdquo 50 ldquoἡ προαίρεσις δὴ ἑκούσιον μὲν φαίνεται οὐ ταὐτὸν δέ ἀλλ᾽ ἐπὶ πλέον τὸ ἑκούσιον τοῦ μὲν γὰρ
ἑκουσίου καὶ παῖδες καὶ τἆλλα ζῷα κοινωνεῖ προαιρέσεως δ᾽ οὔ καὶ τὰ ἐξαίφνης (10) ἑκούσια μὲν λέγομεν κατὰ προαίρεσιν δ᾽rdquo
51 ldquoἔτι δ᾽ ἡ μὲν βούλησις τοῦ τέλους ἐστὶ μᾶλλον ἡ δὲ προαίρεσις τῶν πρὸς τὸ τέλος οἷον ὑγιαίνειν βουλόμεθα προαιρούμεθα δὲ δι᾽ ὧν ὑγιανοῦμεν καὶ εὐδαιμονεῖν βουλόμεθα μὲν καὶ φαμέν προαιρούμεθα δὲ λέγειν οὐχ ἁρμόζει ὅλως (30) γὰρ ἔοικεν ἡ προαίρεσις περὶ τὰ ἐφ᾽ ἡμῖν εἶναιrdquo
52 ldquoἡ γὰρ προαίρεσις μετὰλόγου καὶ διανοίαςrdquo
73
deseja-se conforme o deliberado A deliberaccedilatildeo poreacutem refere-se apenas aos meios
que conduzem a um fim (Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 5 1112 b30)53
513 A definiccedilatildeo do objeto do querer
A reflexatildeo aristoteacutelica em torno do querer ou do desejo racional eacute um debate
latente entre as teses platocircnicas e sofistas que seraacute exposta a seguir Aleacutem disso
muito mais do que uma simples siacutentese entre esses dois posicionamentos Aristoacuteteles
inaugura uma perspectiva nova em torno da teoria das accedilotildees a saber a compreensatildeo
de que o bem aparente eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria ao bem embora natildeo lhe seja
suficiente (Cf ZINGANO 2010 p 193) A tese geral de Aristoacuteteles eacute a de que para uma
coisa ser tomada como fim deve ser tomada como tal pelo agente isto eacute no processo
de direcionamento em busca do bem a questatildeo fundamental eacute como o agente
percebe um determinado objeto O texto aristoteacutelico abre a discussatildeo em torno de se
o querer diz respeito ao fim
Foi dito que o querer concerne ao fim mas a uns parece concernir ao bem a outros ao bem aparente Aos que dizem que o objeto do querer eacute o bem decorre que natildeo eacute objeto do querer o que quer aquele que natildeo escolhe corretamente (pois se for objeto do querer seraacute entatildeo um bem era no entanto no caso um mal) por sua vez aos que dizem que o bem aparente eacute objeto do querer decorre que natildeo existe objeto do querer por natureza mas eacute objeto do querer o que parece bom a cada um (a pessoas diferentes coisas diferentes parecem boas mesmo no caso coisas contraacuterias) (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113 a15 )54
A referecircncia agrave filosofia platocircnica pode ser reconhecida pela proposiccedilatildeo de que
o bem eacute objeto do querer e que apenas este o bem poderia ser o seu objeto Note-
se que o termo original para fim eacute τέλους e que o querer βούλησις se direciona a este
fim porque ele eacute um bem enquanto tal τἀγαθοῦ O inconveniente desta tese para
Aristoacuteteles eacute o fato de que se apenas o bem eacute objeto do querer implica dizer que a
escolha errada tambeacutem seria um bem uma vez que de certo modo tambeacutem ela eacute
querida Assim sendo o fato de os agentes escolherem errado permite concluir que
53 ldquoοὐ γὰρ ἂν εἴη βουλευτὸν τὸ τέλος ἀλλὰ τὰ πρὸς τὰ τέλη οὐδὲ δὴ τὰ καθ᾽ ἕκασταrdquo 54 ldquoἡ δὲ βούλησις ὅτι μὲν τοῦ τέλους ἐστὶν εἴρηται δοκεῖ δὲ τοῖς μὲν τἀγαθοῦ εἶναι τοῖς δὲ τοῦ φαινομένου
ἀγαθοῦ [] συμβαίνει δὲ τοῖς μὲν [τὸ] βουλητὸν τἀγαθὸν λέγουσι μὴ εἶναι βουλητὸν ὃ βούλεται ὁ μὴ ὀρθῶς αἱρούμενος (εἰ γὰρ ἔσται βουλητόν καὶ ἀγαθόν ἦν δ᾽ εἰ οὕτως ἔτυχε κακόν) (20) τοῖς δ᾽ αὖ τὸ φαινόμενον ἀγαθὸν βουλητὸν λέγουσι μὴ εἶναι φύσει βουλητόν ἀλλ᾽ ἑκάστῳ τὸ δοκοῦν ἄλλο δ᾽ ἄλλῳ φαίνεται καὶ εἰ οὕτως ἔτυχε τἀναντίαrdquo
74
o τἀγαθοῦ unicamente natildeo pode ser o uacutenico objeto do querer a menos que se queira
considerar a escolha errada tambeacutem um bem
Jaacute a referecircncia agrave posiccedilatildeo sofista daacute-se em virtude da tese de que o bem eacute um
modo particular de sentir-se atraiacutedo por um objeto que dependendo da disposiccedilatildeo do
agente apresenta-se como bem O φαινομένου ἀγαθοῦ tambeacutem seria um moacutebil do
querer
Apoacutes as objeccedilotildees agraves teses tradicionais Aristoacuteteles comeccedila a expor sua tese
na forma de pergunta ldquose entatildeo estas posiccedilotildees natildeo satildeo satisfatoacuterias natildeo se deve
dizer que eacute objeto do querer sem mais e segundo a verdade o bem enquanto o que
aparece a cada um eacute o bem aparenterdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6
1113 a20)55 Aristoacuteteles entende que primeiramente tanto o homem virtuoso quanto
o de pouco valor desejam um objeto que lhes parece bom entretanto apenas o
virtuoso eacute capaz de querer um objeto verdadeiramente bom Sendo a virtude
consolidada pelo haacutebito o homem virtuoso eacute aquele que aprendeu em termos praacuteticos
a querer o bem Este bem eacute de maior relevacircncia do que um bem aparente φαινομένου
ἀγαθοῦ porque por causa do exerciacutecio das virtudes o homem virtuoso aprendeu a
distinguir o bem e o que apenas tem aparecircncia de bem Entretanto Aristoacuteteles daacute a
entender que o φαινομένου ἀγαθοῦ eacute primeiro a todos os homens na ordem do querer
ldquomas eacute o objeto do querer o que parece bom a cada umrdquo (ARISTOacuteTELES Ethica
Nicomachea 2010 III 6 1113 a20)56
Esta parece ser uma tese central de Aristoacuteteles certamente eacute bom o bem
enquanto tal entretanto eacute necessaacuterio que independente de ser um bem real uma
coisa apareccedila como um bem isto eacute seja tomada como tal pelo agente Esta eacute a
conclusatildeo do prof Marco Zingano sobre esta seccedilatildeo
Parecer um bem ou seja ser um φαινομένου ἀγαθοῦ natildeo eacute meramente uma aparecircncia de caraacuteter enganador como que o platonismo mas eacute principalmente a condiccedilatildeo loacutegica do bem humano isto eacute sua intencionalidade que pode secundariamente se revelar como uma crenccedila falsa um bem aparente no sentido platocircnico do termo (Cf ZINGANO 2010 p 193)
A questatildeo fundamental neste caso natildeo estaacute num caraacuteter pejorativo de uma
aparecircncia de bem que apetece ao querer mas no modo como o ser humano vai se
55 ldquoεἰ δὲ δὴ ταῦτα μὴ ἀρέσκει ἆρα φατέον ἁπλῶς μὲν καὶ κατ᾽ ἀλήθειαν βουλητὸν εἶναι τἀγαθόν ἑκάστῳ
δὲ τὸ φαινόμενονrdquo 56 ldquoτοῖς δ᾽ αὖ τὸ φαινόμενον ἀγαθὸν βουλητὸν λέγουσι μὴ εἶναι φύσει βουλητόνrdquo
75
relacionar com essa representaccedilatildeo Aristoacuteteles tem claro que sem a aparecircncia de
bem natildeo existe a apetecircncia pelo objeto mas ela natildeo dispensa o julgamento do ser
humano ldquoO homem virtuoso julga corretamente (κρίνειὀρθῶς) cada coisa e em cada
uma a verdade se manifesta a elerdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113
a30)57 Pelo julgamento correto κρίνειὀρθῶς o homem chega agrave visatildeo do verdadeiro
em cada coisa O homem virtuoso eacute pois natildeo apenas aquele que age frequentemente
bem mas o que toma posse das razotildees pelas quais age e as tem diante de si e isto
faz dele um homem prudente Se pela phroacutenesis a virtude intelectual eacute posta em
relevo no homem virtuoso suas disposiccedilotildees satildeo moralmente boas
O papel da phroacutenesisna restringe apenas agraves virtudes intelectuais Existe uma
relaccedilatildeo entre a phroacutenesise as virtudes morais assim como existe relaccedilatildeo entre a
phroacutenesise a empeiria Marcelo Perine esclarece este caraacuteter paradigmaacutetico da
phroacutenesis
Aristoacuteteles vai mostrar que phroacutenesis eacute um estado habitual cognitivo isto eacute racional e por isso eacute uma virtude intelectual que contudo pressupotildee seja um estado desiderativo portanto natildeo-racional seja um estado cognitivo natildeo-racional que eacute justamente a experiecircncia (PERINE 2006 p 28)
O objetivo da phroacutenesis satildeo bens humanos e estes satildeo alcanccedilados a medida
que podem estar em consonacircncia com a phroacutenesis Natildeo eacute a toa que o debate entre o
ato voluntaacuterio e o involuntaacuterio envolva aquilo que aparece como bem e o que necessita
de um posterior discernimento Assim nesse processo de desvelamento natildeo se
deixar de lado a importacircncia das intenccedilotildees
Aristoacuteteles natildeo parece citar o termo intencionalidade nas questotildees praacuteticas
mas ela parece estar latente nesta questatildeo da aparecircncia de bem Aristoacuteteles tem claro
que sem a aparecircncia de bem natildeo existe a apetecircncia pelo objeto mas ela natildeo
dispensa o julgamento do ser humano Pelo julgamento correto κρίνειὀρθῶς o
homem chega agrave visatildeo do verdadeiro em cada coisa
A aparecircncia de bem muito mais do que uma aparecircncia enganadora constitui-
se como modus cognoscendi preparatoacuterio e necessaacuterio ao julgamento correto e agrave
visatildeo da realidade da coisa em niacutevel praacutetico Assim ateacute mesmo as coisas que
posteriormente satildeo constatadas como boas tambeacutem requerem uma aparecircncia de
bem e no caso destas um bem real Assim o homem virtuoso eacute pois natildeo apenas
57 ldquoἕκαστα κρίνει ὀρθῶς καὶ ἐν ἑκάστοις τἀληθὲς αὐτῷ φαίνεταιrdquo
76
aquele que age frequentemente bem mas o que toma posse das razotildees pelas quais
age e as tem diante de si e isto faz dele um homem prudente Marco Zingano
acrescenta que
enquanto no homem prudente φρόνιμοςeacute ressaltado o papel da virtude intelectual que opera no interior das virtudes morais no homem virtuoso σπουδαίoς o que eacute posto em relevo eacute o fato de suas disposiccedilotildees serem virtuosas ou moralmente boas (ZINGANO 2010 p 197)
Neste sentido o domiacutenio da virtude pode ser delineado natildeo apenas pelo
homem prudente enquanto capaz de ponderar o que seria a virtude num determinado
caso mas tambeacutem pelo homem virtuoso que eacute capaz e age segundo esta virtude A
relaccedilatildeo entre bem e verdade para Aristoacuteteles inclui agora certo ordenamento
primeiramente aquilo que aparece como bem natildeo eacute necessariamente bom e por isto
mesmo necessita passar pelo julgamento do homem prudente φρόνιμος para em
seguida revelar-se como verdadeiramente boa ou natildeo
A partir do esclarecimento aristoteacutelico entre escolha deliberada e querer
esclarece-se qual o domiacutenio de cada um destes atos e consequentemente qual sua
relaccedilatildeo com as virtudes pertence ao querer ter o fim por objeto enquanto os meios
para alcanccedilaacute-lo dizem respeito agrave escolha deliberada Neste sentido compreende-se
que o fim eacute apenas reconhecido isto eacute natildeo se constitui como objeto de escolha O
acircmbito das escolhas satildeo os meios isto eacute as accedilotildees que dizem respeito a elas satildeo por
escolha delibera e voluntaacuterias Aristoacuteteles completa dizendo que ldquoas atividades das
virtudes envolvem estas coisasrdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 7 1113
b5) A conclusatildeo de Aristoacuteteles eacute a de que escolha deliberada relaciona-se diretamente
agraves virtudes uma vez que elas satildeo meio e sobre elas se pode deliberar Assim sendo
um entendimento adequado das virtudes requer a distinccedilatildeo entre a escolha deliberada
e os diversos outros atos humanos
Ao final do tratado dos atos Aristoacuteteles se posiciona acerca do que vem a ser
o engano no julgamento em relaccedilatildeo agraves accedilotildees ldquoagrave turba do engano parece engendrar-
se devido ao prazer pois natildeo sendo de fato um bem parece serrdquo (ARISTOacuteTELES
Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113 b1) Com isso talvez seja possiacutevel afirmar que
para Aristoacuteteles o prazer de certo modo natildeo contribui com o voluntaacuterio
Tomaacutes de Aquino adota uma postura distinta de Aristoacuteteles neste ponto preciso
Segundo ele o desejo sensiacutevel caminhando no mesmo sentido da vontade para um
77
certo bem contribui para aumentar o caraacuteter voluntaacuterio das accedilotildees ou seja a
sensibilidade formada pela virtude pode por vezes participar de uma accedilatildeo boa
Assim a conclusatildeo que Tomaacutes de Aquino propotildee eacute dizer que a causa do involuntaacuterio
natildeo estaacute necessariamente no desejo sensiacutevel embora ele possa eventualmente
obscurecer o juiacutezo
52 A SIacuteNTESE TOMISTA ATOS HUMANOS E FILOSOFIA MORAL
A tarefa a ser desenvolvida agora se refere agrave necessidade de desenvolver os
conceitos relevantes da teoria tomista dos atos e a partir deles aprofundar em que
medida Tomaacutes de Aquino opera uma siacutentese entre o pensamento grego e a Tradiccedilatildeo
Cristatilde Eacute impressionante como a alguns dos conceitos de Tomaacutes de Aquino encontram
traduzem bem o que Aristoacuteteles tratou em sua teoria dos atos
A distinccedilatildeo tomista entre o irasciacutevel e o concupisciacutevel corresponde a esta
observaccedilatildeo aristoteacutelica sobre o voluntaacuterio e o involuntaacuterio Pode-se afirmar que o
concupisciacutevel estaacute como moacutebil externo em relaccedilatildeo ao voluntaacuterio enquanto o irasciacutevel
estaacute como moacutebil externo em relaccedilatildeo ao involuntaacuterio Neste sentido eacute possiacutevel afirmar
que Tomaacutes de Aquino aprofunda o conceito aristoteacutelico de voluntaacuterio e involuntaacuterio
Qual o aprofundamento que Tomaacutes de Aquino promove Primeiramente uma
coisa apeteciacutevel nem sempre eacute da ordem da razatildeo como objeto proacuteprio pois eacute
possiacutevel haver um moacutebil apenas do apetite sensitivo ou concupisciacutevel Outro elemento
fundamental eacute que Tomaacutes compreende que o voluntaacuterio natildeo significa
necessariamente o livre pois a vontade pode natildeo seguir necessariamente agrave
iluminaccedilatildeo da inteligecircncia Neste caso a adesatildeo eacute fruto da eleiccedilatildeo do livre-arbiacutetrio
mas natildeo eacute necessariamente expressatildeo da liberdade enquanto tal
Tomaacutes tambeacutem aprofunda a ideia de intencionalidade que apenas de modo
latente podia-se encontrar na Eacutetica a Nicocircmacos Com efeito Tomaacutes de Aquino vai
retomar o problema da intencionalidade expressamente com este termo O autor
assume a posiccedilatildeo de que o bem que eacute objeto do querer ou da vontade natildeo precisa
necessariamente ser um bem na coisa mesma mas um bem apreendido Deste
modo o querer se move em direccedilatildeo a uma coisa que foi apreendida como um bem
Pode-se concluir portanto que o bem aparente seja uma condiccedilatildeo necessaacuteria
embora natildeo suficiente para se saber se alguma coisa eacute realmente boa A teoria tomista
78
dos atos segue aprofundando ou forjando novos conceitos que doravante faratildeo parte
da Eacutetica Ocidental Eacute em virtude desta influecircncia que a exposiccedilatildeo da teoria tomista
dos atos se justifica
521 Os atos humanos em Santo Tomaacutes de Aquino
O proacutelogo da Prima Secundae da Suma Teoloacutegica inicia com a afirmaccedilatildeo
de que eacute pelo livre-arbiacutetrio que o homem eacute imagem de Deus Eacute em virtude da posse
de seu agir isto eacute do poder agir por si mesmo que o homem se assemelha a Deus
O tema biacuteblico da semelhanccedila entre Deus e o homem eacute que vai orientar o estudo dos
atos humanos em Tomaacutes de Aquino O homem vai unir-se ao seu exemplar divino na
bem-aventuranccedila prometida E sendo esta o fim do homem o tema biacuteblico da
semelhanccedila pelo livre-arbiacutetrio e a noccedilatildeo de fim do homem promove atraveacutes de
Tomaacutes uma siacutentese entre o pensamento grego e o pensamento cristatildeo
O estudo dos atos humanos em Tomaacutes de Aquino engloba o tratado das
paixotildees com o objetivo de aprofundar de que maneira a sensibilidade pode contribuir
aos atos voluntaacuterios de modo que este estudo pode ser apresentado como um dos
mais profundos acerca do agir humano no plano moral Faz-se necessaacuterio pois uma
apresentaccedilatildeo do plano conjunto do trabalho de Tomaacutes de Aquino para
posteriormente refletir acerca das particularidades em relaccedilatildeo agrave temaacutetica da
reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica
A beatitude eacute a condiccedilatildeo mais almejada pelo cristatildeo Ela se constitui na visatildeo
amante de Deus eacute a bem-aventuranccedila A teoria dos atos humanos se encontra em
consonacircncia com a beatitude pois ela eacute o fim uacuteltimo do homem Neste sentido pode-
se afirmar que a eacutetica de Santo Tomaacutes eacute uma eacutetica da felicidade o que se encontra
profundamente em sintonia com a mensagem das bem-aventuranccedilas mas tambeacutem
se harmoniza com a moral aristoteacutelica enquanto uma eacutetica dos fins
O ser humano se encaminha agrave felicidade de modo particular A felicidade eacute
pois fruto das accedilotildees particulares auxiliadas pela graccedila de Deus Desse modo as
accedilotildees humanas devem ser compreendidas em seus aspectos fundamentais a saber
uma dimensatildeo voluntaacuteria obra de uma vontade livre que o estudo sobre os atos
humanos contempla e uma dimensatildeo ligada agrave sensibilidade contemplada no estudo
sobre as paixotildees da alma
79
522 Sindeacuterese e consciecircncia
Segundo Tomaacutes de Aquino a sindeacuterese eacute um habitus (cf AQUINO Tomaacutes
de S Th I 79 a12)58 Uma compreensatildeo adequada da Sindeacuterese exige um
aprofundamento acerca do modus operandi do raciociacutenio humano O intelecto em
virtude de seu objeto quando raciocina acerca de coisas inteligiacuteveis diz-se que se
ldquomoverdquo como um intelecto especulativo e quando raciocina sobre coisas da accedilatildeo se
move como uma razatildeo praacutetica Assim como haacute princiacutepios de ordem especulativa os
princiacutepios praacuteticos se relacionam agrave sindeacuterese como um habito natural especial Sua
funccedilatildeo eacute incitar o bem e condenar o mal Ela funciona como uma intuiccedilatildeo dos
primeiros princiacutepios da lei moral Eacute curioso o fato de Tomaacutes de Aquino definir a
Sindeacuterese como um habitus mas de natureza inata A Sindeacuterese natildeo se confunde
com a consciecircncia Ela eacute uma intuiccedilatildeo dos primeiros princiacutepios da moral enquanto
que a consciecircncia eacute o ato pelo qual se julga um ato que se realizou ou que seraacute
realizado Em seu ato a consciecircncia supotildee natildeo apenas a Sindeacuterese mas todo o
conhecimento moral que se apoacuteia sobre ela
A noccedilatildeo tomista da consciecircncia eacute a de que ela eacute um ato A funccedilatildeo da
consciecircncia eacute atestar obrigar e incitar e ainda acusar reprovar ou repreender (cf
AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)59 Estas funccedilotildees da consciecircncia se efetivam a
medida em o agente tem conhecimento ou ciecircncia do que se faz Tomaacutes de Aquino
esclarece que este conhecimento se daacute de trecircs maneiras quando se reconhece o que
se faz ou o que natildeo foi feito afirma-se que a consciecircncia atesta (Cf AQUINO Tomaacutes
de S Th I 79 a13)60 quando se julga que eacute preciso fazer ou natildeo uma accedilatildeo diz-se
que a consciecircncia incita ou obriga (Cf AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13 )61 e quando
se julga o meacuterito do que foi feito diz-se que a consciecircncia escusa62 acusa ou reprova
(cf AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)63
58 ldquoSynderesis non est potentia sed habitusrdquo 59 ldquoDicitur enim conscientia testificari ligare vel intigare et etiam accusare vel remordere sive
reprehendererdquo 60 ldquoQuod recognoscimus aliquid nos fecisse vel non fecisse [] conscientia dicitur testificarirdquo 61 ldquoQuod per nonstram conscientiam iudicamos aliquid esse faciendum vel non faciendum et secundum
hoc dicitur conscientia instigare vel ligarerdquo 62A escusa eacute uma razatildeo ou um pretexto invocado para eximir de uma obrigaccedilatildeo 63 ldquoQuod per conscientiam iudicamus quod aliquid quod est factum sit bene factum vel non bene factum
et secundum hoc conscientia dicitur excusare vel accusare seu remordererdquo
80
Tomaacutes de Aquino acrescenta que para desenvolver estas funccedilotildees faz-se
necessaacuteria ldquouma aplicaccedilatildeo atual de nosso conhecimento agrave nossa accedilatildeordquo (AQUINO
Tomaacutes de S Th I 79 a13)64 Esta informaccedilatildeo eacute relevante uma vez que a partir dela
entende-se que o autor natildeo estaacute a considerar o exerciacutecio da consciecircncia moral como
um funcionamento constante Isto eacute a consciecircncia passa a atuar efetivamente quando
os objetos relativos agraves accedilotildees assim a solicitam De certo modo esta compreensatildeo da
consciecircncia mitiga um entendimento contemporacircneo de que a concepccedilatildeo cristatilde de
homem da qual o pensamento moderno eacute devedor acreditaria que o homem pensado
como animal racional implicaria num actus ratiocinandi ad infinitum65
Ao final das consideraccedilotildees sobre a consciecircncia Tomaacutes de Aquino esclarece
como consciecircncia e sindeacuterese se relacionam Embora a consciecircncia seja um ato ela
natildeo eacute atualizada o tempo inteiro mas sempre que objetos relativos agrave sua accedilatildeo Desse
modo a consciecircncia necessita de um habitus que a faccedila atualizar-se A sindeacuterese
que conteacutem os primeiros princiacutepios da moral eacute quem naturalmente coopera na
atualizaccedilatildeo da consciecircncia
Deve-se dizer que o ato se permanece sempre em si mesmo permanence entretanto sempre em sua causa a potecircncia ou o habitus Os habitus pelos quais a consciecircncia eacute informada ainda que sejam muitos todos recebem a sua eficaacutecia de um primeiro a saber do habitus dos primeiros princiacutepios que se chama sindeacuterese Por isso e de modo especial esse habitus eacute por vezes chamado consciecircncia (AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)66
A relevacircncia desta afirmaccedilatildeo diz algo a mais sobre a concepccedilatildeo tomista de
homem Em relaccedilatildeo agraves questotildees da accedilatildeo pode-se afirmar que a consciecircncia moral eacute
o proacuteprio pensamento praacutetico que eacute posto em movimento por um habitus natural Uma
vez que este habitus natildeo eacute a razatildeo mesma em funcionamento talvez seja possiacutevel
defender que em Tomaacutes de Aquino haacute algo anaacutelogo ao lebenswelt russeliano um
mundo da vida ou uma instacircncia que de certo modo eacute anterior ao ato de raciocinar
523 O conceito de vontade
64 ldquoPatet autem quod omnia haec consequuntur actualem applicationem scientiae ad ea quae agimusrdquo 65 Para um melhor entendimento desta tese conferir o prefaacutecio de Ser e Tempo de Martim Heidegger 66 ldquoDicendum quod actus etsi non semper maneat in se semper tamen Manet in sua causa quae est
potentia et habitus Habitus autem ex quibus conscientia informatur etsi multi sint omnes tamen efficaciam habent ab uno primo scilicet ab habitu primorum principiorum qui dicitur synderesis Unde specialiter hic habitus interdum conscientia nominaturrdquo
81
Segundo Tomaacutes de Aquino o conceito de vontade se alinha agrave noccedilatildeo de
necessidade e estes se relacionam agrave noccedilatildeo de telos entendido aqui como a felicidade
que eacute um bem desejado por todos Tomaacutes de Aquino distingue diferentes noccedilotildees de
necessidade necessitas naturalis et absoluta necessitas finis e necessitas coactionis
A necessitas naturalis se apresenta quando a uma coisa algo se apresenta
em virtude de seus princiacutepios intriacutensecos sejam materiais ou formais Materialmente
eacute naturalmente necessaacuterio que o composto de contraacuterios se corrompa Formalmente
eacute naturalmente necessaacuterio que os acircngulos internos de um triacircngulo sejam iguais a
dois acircngulos retos Existem tambeacutem princiacutepios extriacutensecos que garantem este tipo de
necessidade diga-se por exemplo a morte como causa final ou a geraccedilatildeo como
causa eficiente (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)67
A necessitas finis se potildee quando algueacutem natildeo pode atingir seu fim ou atingi-lo
convenientemente sem esse princiacutepio Tomaacutes de Aquino cita o exemplo da
alimentaccedilatildeo para atingir uma vida saudaacutevel ou o cavalo para se chegar ao destino
pretendido (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1 )68 Finalmente quando um ente
eacute constrangido de tal modo que natildeo pode fazer o contraacuterio a necessidade eacute pensada
como necessitas coactionis (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)69
Deve-se perceber que a necessitas coactionis eacute contraacuteria agrave vontade pois se
constitui como uma violecircncia agrave inclinaccedilatildeo de ser humano Natildeo eacute difiacutecil chegar a uma
compreensatildeo da liberdade em Tomaacutes de Aquino atraveacutes das elucidaccedilotildees acerca do
conceito de vontade Pode-se afirmar primeiramente que a liberdade se refere a uma
ausecircncia de constrangimento externo Este se constitui como um niacutevel baacutesico da
noccedilatildeo de liberdade Aleacutem disso eacute importante salientar que seraacute possiacutevel estabelecer
uma distinccedilatildeo entre a liberdade como ausecircncia de constrangimento interno e a
liberdade como uma orientaccedilatildeo racional ao fim e inclusive como independecircncia em
relaccedilatildeo aos ditames de livre-arbiacutetrio que eacute a fonte mais primordial de exerciacutecio da
vontade mas que ainda natildeo pode ser considerada liberdade no sentido pleno
Uma vez que o conceito de vontade (ou voluntaacuterio) oferece ldquoluzesrdquo ao conceito
de liberdade eacute tambeacutem possiacutevel chegar ao conceito de involuntaacuterio e este relaciona-
67 ldquoSobre a necessitas naturalis et absoluta Tomaacutes de Aquino afirma Quod quid convenit alicui uno
modo ex principio intriacutenseco sive materiali [] sive formali [] Alio modo convenit alicui quod non possit non esse ex aliquo extriacutenseco vel fine vel agenterdquo
68 ldquoFine quidem aut bene consequi finem aliquem ut cibus dicitur necessaries ad vitam et equus ad iter Et haec vocatur necessitas finis quae interdum etiam utilitas diciturrdquo
69 ldquoEx agente autem hoc alicui convenit sicut cum aliquis cogitur ab aliquo agente it quod non possit contrarium agere Et haec vocatur necesssitas coactionisrdquo
82
se ao conceito de necessitas coactionis Um agente constrangido a fazer o que natildeo
deseja eacute algueacutem que age involuntariamente Mas a liberdade estaacute para aleacutem do agir
pois eacute ateacute possiacutevel obrigar que algueacutem faccedila alguma coisa mas natildeo eacute possiacutevel obrigaacute-
lo a querer fazer
Assim pois Tomaacutes de Aquino entende que o movimento da vontade eacute uma
certa inclinaccedilatildeo para algo Desse modo ldquoassim como se chama natural o que eacute
segundo a inclinaccedilatildeo da natureza chama-se de voluntaacuterio o que eacute segundo a
inclinaccedilatildeo da vontaderdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1) Entretanto este apetite
denominado de vontade eacute de natureza racional Para entender esta afirmaccedilatildeo deve-
se estabelecer em relaccedilatildeo agrave vontade agrave distinccedilatildeo entre irasciacutevel e o concupisciacutevel
A alma possui potecircncias sensitivas e intelectivas estas uacuteltimas satildeo tambeacutem
chamadas de potecircncias espirituais O apetite sensitivo se diversifica em concupisciacutevel
quando se refere agrave razatildeo de bem no sentido daquilo que agrada aos sentidos e em
irasciacutevel quando se refere agrave razatildeo de bem enquanto se busca evitar aquilo que eacute
prejudicial (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a5)70 Estes apetites satildeo ambos da
ordem da sensibilidade A vontade poreacutem diz respeito agrave razatildeo faz parte dela
voluntas in ratione est A vontade eacute proacuteprio apetite intelectivo e por isso mesmo o
bem a que a vontade apetece eacute o bem sob razatildeo universal
Este conceito aprofunda a noccedilatildeo de voluntaacuterio e involuntaacuterio e eacute entendido
como um movente das accedilotildees tanto naturalmente como teleologicamente Natildeo haacute
segundo Tomaacutes de Aquino uma oposiccedilatildeo entre a necessidade de um fim e a ideia de
vontade ldquoA necessidade de fim natildeo repugna agrave vontade quando ela natildeo pode atingir
esse fim senatildeo por um soacute meio por exemplo quando se tem a vontade de atravessar
o mar eacute necessaacuterio a vontade que queira um naviordquo (AQUINO Tomas de S Th I q
82 a1)71 Resulta claramente que natildeo haacute oposiccedilatildeo entre a liberdade e teleologia em
Tomaacutes de Aquino
Desse modo Tomaacutes de Aquino compatibiliza a ideia de liberdade com a ideia
de fim Analogicamente assim como o intelecto adere aos primeiros princiacutepios a
vontade deve pois aderir ao fim uacuteltimo que eacute a bem-aventuranccedila uma vez que a
70ldquoAppetitus autem sensitivus non respicit comunem rationem boni quia nec sensus apprehendit
universal Et ideo secundum diversas rationes particularium bonorum diversiticantur partes appetites sensitive nam concupiscibilis respicit propriam rationem boni inquantum est delectabile secundum sensum et conveniens naturae irascibilis autem respicit rationem boni secundum quod est repulsivum et impugnativum eius quod infet nocumentumrdquo
71 ldquoNecessitas autem finis non repugnat valuntati quando ad finem non potest perveniri nisi uno modo sicut ex voluntate transeundi mare fit necessitas in voluntate ut velit navemrdquo
83
bem-aventuranccedila ou a felicidade eacute almejada por todos Assim sendo compreende-
se que o fato de haver uma vontade natural natildeo implica uma contradiccedilatildeo com uma
vontade livre
Um esclarecimento deve ser feito nestas teses de Tomaacutes de Aquino Ele retira
a felicidade como sendo o fim uacuteltimo do homem pelo fato de todos os seres humanos
serem dotados de vontade e este desejo eacute universal pois decorre da natureza humana
o fato de todos desejarem ser felizes Poucas pessoas parecem duvidar desta tese
entretanto eacute possiacutevel concluir que o problema natildeo estaacute no fato de todos desejarem a
felicidade mas no itineraacuterio que cada pessoa particularmente percorre para atingi-la
Tomaacutes de Aquino salienta que a escolha natildeo versa sobre o fim ela versa sobre
os meios para o fim (Cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)72 Isto implica em dizer
que o fato de a felicidade ser o fim uacuteltimo do homem natildeo tem nada aver com sua
escolha uma vez que este eacute o fim natural a que todos tendem o destino potencial de
todo homem Por que o destino potencial Naturalmente este ldquodestinordquo natildeo implica
um fim inexoraacutevel mas o horizonte que daacute sentido agraves accedilotildees praticadas Elas devem
ser orientadas de modo a tornar mais acessiacutevel o alcance desse fim Na eacutetica de
Tomaacutes de Aquino assim como na eacutetica de Aristoacuteteles as accedilotildees satildeo apropriadas em
virtude do bem que elas proporcionam e natildeo porque o valor das accedilotildees se encerra
nelas proacuteprias A eacutetica de Tomaacutes de Aquino seguindo a moral aristoteacutelica vai propor
o exerciacutecio das accedilotildees virtuosas como o meio para se atingir essa felicidade
O ato de buscar a felicidade atraveacutes das virtudes aleacutem de ser a maneira mais
adequada a essa busca apresenta indiretamente a forccedila que a ideia de liberdade
possui na eacutetica cristatilde Henrique de Lima Vaz lendo Hegel afirma que ldquoa ideia de
liberdade pertence agrave esfera da manifestaccedilatildeo mais alta do Espiacuterito da sua
manifestaccedilatildeo como razatildeordquo e complementa ldquopara Hegel o momento decisivo em que
na cultura do Ocidente a razatildeo se manifesta como liberdade tem lugar com o advento
do Cristianismordquo (VAZ 2002 p 14) No esquema geral da Suma Teoloacutegica eacute por livre
vontade que homem opera um caminho de retorno a Deus Assim a ideia de liberdade
pode ser apontada como elemento distinto na reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e o
pensamento cristatildeo
72 ldquoElectio autem non est de fine sed de his quae sunt ad finemrdquo
84
524 A relaccedilatildeo entre inteligecircncia e vontade
A Inteligecircncia e a vontade satildeo duas potecircncias espirituais e ambas fazem parte
da capacidade racional das substacircncias intelectuais Tomaacutes de Aquino investiga a
relaccedilatildeo de superioridade de uma potecircncia em relaccedilatildeo a outra a partir da noccedilatildeo de
superioridade em termos absolutos e em termos relativos Tomaacutes de Aquino explica o
sentido de absoluto e relativo
A superioridade de uma coisa sobre outra pode ser considerada de dois modos quer absolutamente quer relativamente Uma coisa eacute tal absolutamente quando ela eacute isso em si mesma e eacute tal relativamente quando o eacute em relaccedilatildeo a outra (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a3)73
Absolutamente o intelecto eacute superior agrave vontade uma vez que a razatildeo do bem
desejaacutevel eacute apreendida pelo intelecto e este bem eacute objeto da vontade Nesse sentido
a superioridade daquele em relaccedilatildeo a esta se daacute porque eacute em virtude da accedilatildeo do
intelecto que a vontade se apropria de seu objeto Sem a accedilatildeo do intelecto entende-
se que a vontade natildeo teria o seu objeto mais proacuteprio Nesse caso o intelecto
considerado em si mesmo e absolutamente eacute uma potecircncia superior agrave vontade
Tomaacutes de Aquino esclarece
O objeto do intelecto eacute mais simples e absoluto que o da vontade Com efeito o objeto do intelecto eacute a proacutepria razatildeo do bem desejaacutevel e o bem desejaacutevel cuja razatildeo estaacute no intelecto eacute objeto da vontade Ora quanto mais uma coisa eacute simples e abstrata tanto mais eacute em si mesma mais nobre e superior Portanto o objeto do intelecto eacute superior ao objeto da vontade (AQUINO Tomas de S Th I q 82
a3)74
A partir desta afirmaccedilatildeo compreendem-se as duas grandes linhas da eacutetica
cristatilde que influenciaram por demais o desenvolvimento da filosofia moral no
Ocidente De um lado haacute os que defendem uma precedecircncia do intelecto sobre a
vontade assim como Tomaacutes de Aquino e estes satildeo chamados de intelectualistas
73 ldquoquod eminentia alicuius ad alterum potest attendi dupliciter uno modo simpliciter alio modo
sedundum quid Consideratur autem aliquid tale simpliciter prout est secundum seipsum tale secundum quid autem prout dicitur tale secundum respectum ad alterumrdquo
74 ldquoObiectum enim intellectus est simplicius et magis absolutum quam obiectum voluntatis nam obiectum intellectus est ipsa ratio boni appetibilis bonum autem appetibile cuius ratio est in intellectu est obiectum voluntatis Quanto autem aliquid est simplicius et abstractius tanto secundum se est nobilius et altius Et ideo obiectum intellectus est alius quam obietum voluntatis Cum ergo proacutepria ratio potentiae sit secundum ordinem ad obiectum sequitur quod secundum se et simpliciter intellectus sit altior et nobilior voluntaterdquo
85
Por outro lado os pensadores que defendem que intelecto e vontade tecircm o mesmo
status sendo a vontade igualmente autocircnoma independente do intelecto no seu
operar satildeo chamados de voluntaristas
Em termos relativos eacute possiacutevel considerar que a vontade seja superior ao
intelecto pois o objeto da vontade eacute superior ao do intelecto se se considerar que eacute
melhor amar a Deus do que conhececirc-lo Desse modo e relativamente ldquoquando a coisa
na qual estaacute o bem eacute mais nobre que a proacutepria alma em que se encontra a razatildeo desta
coisa a vontade eacute superior ao intelectordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a3 )75 O
bem eacute objeto de inclinaccedilatildeo da vontade O intelecto conhece o fim uacuteltimo e o
proporciona agrave vontade que por sua vez move todas as outras potecircncias em busca
desse bem que eacute a felicidade perfeita
Eacute possiacutevel notar uma pequena distinccedilatildeo entre Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino
No livro X da Eacutetica a Nicocircmacos Aristoacuteteles defende que a felicidade perfeita consiste
na vida contemplativa isto eacute na accedilatildeo do intelecto
Mas se a felicidade consiste na atividade conforme agrave excelecircncia eacute razoaacutevel que ela seja uma atividade conforme a mais alta de todas as formas de excelecircncia e esta seraacute a excelecircncia da melhor parte de cada um de noacutes Se esta parte melhor eacute o intelecto ou qualquer outra parte considerada naturalmente dominante em noacutes e que nos dirige e tem o conhecimento das coisas nobilitantes e divinas se ela mesma eacute divina ou somente a parte mais divina existente em noacutes entatildeo sua atividade conforme agrave espeacutecie de excelecircncia que lhe eacute pertinente seraacute a felicidade perfeita Jaacute dissemos que esta atividade eacute contemplativa (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco 1176b4 2001 p 201)
Por outro lado a posiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino se dirige primeiramente a
considerar a felicidade como estado no qual o amor como accedilatildeo da vontade atuaria
mais primordialmente que o intelecto Aquilo que possui uma existecircncia espiritual seja
Deus outra pessoa a proacutepria verdade ou ainda a beleza eacute superior ao ato de
pensar Tomaacutes de Aquino conserva a tese aristoteacutelica de superioridade do intelecto
entretanto ao inserir a distinccedilatildeo entre superioridade absoluta e superioridade relativa
coloca a felicidade em relaccedilatildeo ao amor e natildeo ao conhecimento
O ponto de equiliacutebrio entre as teses desses dois autores estaacute no lugar onde a
felicidade deve ser efetivada Aristoacuteteles pensava a felicidade circunscrita agrave Cidade
75 ldquoQuando igitur res in qua est bonum est nobilior ipsa anima in qua est ratio intellect per
comparationem ad talem rem voluntas est altior intellecturdquo
86
mas de certo modo desapegada como uma atividade autocircnoma isto eacute auto-
suficiente Aristoacuteteles acrescenta
Somente esta atividade parece ser estimada por sua proacutepria causa pois nada decorre dela aleacutem da proacutepria atividade de contemplar enquanto com as atividades de ordem praacutetica obtemos algumas vantagens maiores ou menores aleacutem da proacutepria accedilatildeo (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco 1176b4 2001 1177b p 202)
A vida feliz ou beatitude para Tomaacutes de Aquino soacute pode ser encontrada na
totalidade do bem na realizaccedilatildeo concreta e efetiva do Bem universal o que implica
num processo de retorno a Deus pois esta vida natildeo comporta a realizaccedilatildeo da
felicidade enquanto tal Esta concepccedilatildeo de Beatitude promove uma profunda
revoluccedilatildeo em relaccedilatildeo ao pensamento grego e o pensamento cristatildeo A
eudaimoniapara Aristoacuteteles encontra seu sentido no cosmocentrismo grego Por outro
lado a ideia de Beatitude ultrapassa os limites do cosmos grego De modo que Tomaacutes
de Aquino assume a ideia de Felicidade como fim uacuteltimo do ser humano mas ela eacute
realizada num niacutevel que estaacute para aleacutem do cosmocentrismo grego A superaccedilatildeo do
cosmocentrismo grego pelo teocentrismo cristatildeo seraacute elucidado mais adequadamente
adiante Antes poreacutem deve ser aprofundada a questatildeo da liberdade do ato voluntaacuterio
525 A liberdade do ato voluntaacuterio e a distinccedilatildeo entre liberdade e livre-
arbiacutetrio
A teoria tomista do livre-arbiacutetrio eacute de certo modo uma busca por compreender
o que diz respeito ao intelecto e agrave vontade num ato livre Dito de outra maneira o
empreendimento de Tomaacutes de Aquino pode ser traduzido pela seguinte pergunta
existe num ato livre a atuaccedilatildeo de alguma outra potecircncia aleacutem da inteligecircncia e da
vontade Seu aprofundamento acerca dessa temaacutetica traz distinccedilotildees fundamentais
que aleacutem de se fundamentarem no questionamento aristoteacutelico acerca do voluntaacuterio
e do involuntaacuterio promovem distinccedilotildees que seratildeo essenciais agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica
posterior
O desenvolvimento da questatildeo do livre-arbiacutetrio estaacute na questatildeo 83 da primeira
parte da Suma Teoloacutegica A questatildeo eacute dividida em quatro artigos e defende a tese
geral de que a liberdade eacute uma propriedade do ato voluntaacuterio na condiccedilatildeo de que
87
este seja exprimido em um juiacutezo que incida sobre a conveniecircncia ou natildeo do objeto do
querer A liberdade do homem consiste pois num ato de julgar que natildeo eacute
condicionado
O significado dos preceitos conselhos exortaccedilotildees assim como das
proibiccedilotildees recompensas e penas soacute estaacute garantido graccedilas ao livre-arbiacutetrio Tomaacutes
de Aquino estabelece uma distinccedilatildeo entre coisas que agem sem julgamento outras
que agem com julgamento e mesmo assim natildeo satildeo livres e outras que agem com o
julgamento livre
Deve-se considerar que certas coisas agem sem julgamento Por exemplo a pedra que se move para baixo e igualmente todas as coisas que natildeo tecircm conhecimento Outras coisas agem com julgamento mas esse natildeo eacute livre como os animais Por exemplo a ovelha vendo o lobo julga que eacute preciso fugir eacute um julgamento natural mas natildeo livre pois natildeo julga por comparaccedilatildeo mas por instinto natural [] o homem poreacutem age com julgamento porque por sua potecircncia cognoscitiva julga que se deve fugir de alguma coisa ou procuraacute-la Mas como esse julgamento natildeo eacute efeito de um instinto natural aplicado a uma accedilatildeo particular mas de uma certa comparaccedilatildeo da razatildeo por isso o homem age com julgamento livre podendo se orientar para diversos objetos (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1 )76
A liberdade tem a ver com o libero iudicium O julgamento livre eacute a expressatildeo
mais perfeita da liberdade do ser humano Aqui Tomaacutes de Aquino estabelece uma
distinccedilatildeo importante a saber a distinccedilatildeo entre o julgamento natural ou instintivo e o
julgamento racional Embora ambos sejam julgamentos lsquopraacuteticosrsquo apenas o ente que
possui o livre-arbiacutetrio isto eacute possui julgamento racional eacute senhor desse julgamento
Ambos os juiacutezos satildeo mandados pois prescrevem que o agente deve fazer algo mas
somente o ente que possui livre-arbiacutetrio atraveacutes da potecircncia cognoscitiva o intelecto
pode apresentar a si um julgamento que conduza ao bem Portanto eacute pela
racionalidade que o homem eacute dotado de livre-arbiacutetrio
Aqui se apresenta um questionamento importante por que muitas vezes
deseja-se contrariamente ao que o intelecto indica E como pode um ente que tem
seu ser criado ser livre As respostas podem ser encaminhadas da seguinte forma
76 ldquoConsiderandum est quod quaedam agunt absque iudicio sicut laacutepis movetur deorsum et similiter
omnia cognitione carentia Quaedam autem agunt iudicio sed non libero sicut animalia bruta Iudicat enim ovis videns lupum eum esse fugiendum naturali iudicio et non libero quia non ex collatione sed ex naturali instinctu hoc iudicat [] Sed homo agit iudicio quia per vim cognoscitivam iudicat aliquid iudicium istud non est ex naturali instinctu in particulari operabili sed ex collatione quadam rationis ideo agit libero iudicio potens in diversa ferrirdquo
88
em relaccedilatildeo agrave primeira pergunta diz-se que o fato de haver uma escolha da razatildeo natildeo
impede o desejo do apetite sensiacutevel mas pode impedir a sua realizaccedilatildeo Neste
sentido pode-se entender que a liberdade natildeo eacute necessariamente natildeo ter um
determinado desejo mas de certo modo consiste em estar acima das proacuteprias
inclinaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave segunda questatildeo o proacuteprio Tomaacutes de Aquino afirma que
ldquonatildeo eacute necessaacuterio agrave liberdade que o que eacute livre seja a causa primeira de si mesmordquo
(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1 )77 Assim mesmo que o homem tenha seu ser
por outro seja um ensab alio em relaccedilatildeo aos seus julgamentos ele permanece livre
e conta com o respeito de Deus em relaccedilatildeo agrave sua liberdade pois ldquoDeus opera em
cada um segundo a natureza que lhe eacute proacutepriardquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83
a1)78
Note-se que Tomaacutes de Aquino natildeo fala em accedilotildees livres mas em julgamentos
livres Ora eacute ateacute possiacutevel entender que alguma forccedila externa possa obrigar algueacutem a
agir de determinada maneira de modo que este seja obrigado a fazer algo que na
verdade natildeo deseje Embora ele possa fazer isto natildeo implica que ele queira fazer
Assim sendo mesmo que natildeo se mencione a palavra intenccedilatildeo ela estaacute latente neste
artigo da Suma Com isto eacute possiacutevel compreender a radicalidade com que Tomaacutes de
Aquino concebe a liberdade humana a ponto de considerar que ldquonada haacute que repugne
a liberdade do livre-arbiacutetriordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1)79
Todas as deliberaccedilotildees e accedilotildees do ser humano passam pela faculdade racional
ateacute mesmo as inclinaccedilotildees do apetite sensiacutevel devem passar pelo assentimento ou natildeo
da razatildeo A razatildeo por ateacute obedecer a um destes apetites ditos inferiores (cf AQUINO
Tomaacutes de S Th I q 83 a1)80 E aqui eacute possiacutevel aprofundar a noccedilatildeo tomista de
liberdade Com efeito a liberdade do ser humano eacute tamanha que mesmo o
assentimento do homem a algum apetite sensitivo eacute ainda ato de uma razatildeo sem
constrangimento mas que natildeo eacute livre enquanto tal pois a liberdade mesma eacute aquela
na qual o ser humano escolhe em favor do que eacute melhor isto eacute em favor do bem O
livre-arbiacutetrio eacute pois uma potecircncia que eacute sujeito da graccedila e com o seu auxiacutelio escolhe
o bem (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a2)81
77 ldquoNon tamen hoc est de necessitate libertatis quod sit prima causa sui id quod liberum estrdquo 78 ldquoOperatur enim in unoquoque secundum eius proprietatemrdquo 79 ldquoEt sic nihil est quod libertati arbitrii repugnetrdquo 80 ldquoSed istae inclinationes subiacent iudicio rationis cui obedit inferior appetitus ut dictum estrdquo 81 ldquoSed liberum arbitrium est subiectum gratiae qua sibi assistente bonum eligit Ergo liberum arbitrium
est potentiardquo
89
Natildeo eacute de se admirar que a graccedila seja auxiliar do livre-arbiacutetrio O seu auxiacutelio natildeo
implica uma negaccedilatildeo da liberdade do homem uma vez que este por si mesmo pode
negar o este auxiacutelio Contudo natildeo dirigir as escolhas em favor do bem eacute abrir matildeo
de ser realmente livre Esta eacute uma relaccedilatildeo curiosa pois sem o livre-arbiacutetrio natildeo se
pode ser livre mas com a sua atuaccedilatildeo se pode ateacute escolher mas natildeo ser livre
propriamente Tomaacutes afirma que ldquoo livre-arbiacutetrio eacute indiferente a escolher bem ou malrdquo
(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a2)82 Assim sendo sem o livre-arbiacutetrio natildeo eacute
possiacutevel algueacutem ser livre mas com ele a liberdade ainda natildeo estaacute garantida Ser livre
eacute estar livre de todas as formas de submissatildeo inclusive a do livre-arbiacutetrio quando este
escolhe o mal
Esta distinccedilatildeo eacute por demais relevante e natildeo eacute agrave toa que autores como Kant
seratildeo influenciados por esta distinccedilatildeo entre liberdade e livre-arbiacutetrio Kant utiliza uma
terminologia diferente mas que ao final pressupotildee a distinccedilatildeo ora apresentada A
terminologia kantiana eacute a do arbiacutetrium brutum e o livre-arbiacutetrio sendo o primeiro o
sentido de livre-arbiacutetrio e o segundo a liberdade ldquodaacute-se o nome de livre arbiacutetrio agrave
escolha que pode ser determinada pela razatildeo pura a que pode ser determinada
somente pela inclinaccedilatildeo (impulso sensiacutevel estiacutemulo) seria o arbiacutetrio animal (arbitrium
brutum) (cf KANT 2003 p 63)
A questatildeo 83 da Suma conclui precisando a relaccedilatildeo entre vontade e livre-
arbiacutetrio Em relaccedilatildeo agrave potecircncia da qual fazem parte pode-se afirmar que vontade e
livre-arbiacutetrio satildeo uma e mesma coisa porque ambos dizem respeito agrave eleiccedilatildeo
Contudo em relaccedilatildeo ao modus operandi cada uma opera de modo distinto a saber
o livre-arbiacutetrio opera na deliberaccedilatildeo a vontade na accedilatildeo
A proposiccedilatildeo de uma teoleologia na moralidade implica uma negaccedilatildeo da
autonomia Cabe esclarecer que esta oposiccedilatildeo entre teleologia e autonomia natildeo eacute
uma oposiccedilatildeo real as duas natildeo satildeo diretamente opostas Filosoficamente Tomaacutes de
Aquino por exemplo soube compatibilizar telos e liberdade
O modo como Tomaacutes de Aquino compreende a constituiccedilatildeo do homem na
Suma Teoloacutegica natildeo encontra dificuldades entre afirmar o livre arbiacutetrio ao homem e
ao mesmo tempo afirmar que por sua natureza o homem eacute capaz de agir em virtude
de um fim Faz-se necessaacuteria pois uma exposiccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio e de
82 ldquoLiberum autem arbitrium indifferenter se habet ad bene eligendum vel malerdquo
90
telos em Tomaacutes de Aquino a fim de mostrar como o autor compatibiliza telos e
autonomia
Deve-se esclarecer primeiramente que a exposiccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-
arbiacutetrio e a noccedilatildeo de finalidade como telos das accedilotildees se encontram em momentos
distintos da Suma Teoloacutegica A noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio estaacute na seccedilatildeo em que Tomaacutes
de Aquino dedica agrave criaccedilatildeo e ao Governo Divino Esta seccedilatildeo se insere na 1ordf parte da
Suma Teoloacutegica como o momento da accedilatildeo de Deus A 1ordf parte discorre sobre Deus
quem ele eacute como conhececirc-lo e sobre a Trindade (S Th I 1-43) o segundo momento
ainda da 1ordf parte apresenta a accedilatildeo de Deus que eacute a sua criaccedilatildeo (S Th I 44-119)
Justamente aqui situa-se a apresentaccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio
Jaacute a noccedilatildeo de Telos ou como diz Tomaacutes de Aquino fim do homem
encontra-se na primeira seccedilatildeo da 2ordf parte da Suma Teoloacutegica que vai das questotildees
1-48 (S Th I - IIae 1-48) Esta parte da Suma apresenta o retorno da criaccedilatildeo a Deus
particularmente com a busca livre do homem para Deus que eacute o conceito cristatildeo de
beatitude
A resposta eacute natildeo A proposiccedilatildeo de uma teleologia aqui tem a funccedilatildeo de ser o
resultado das accedilotildees virtuosas isto eacute numa eacutetica teleoloacutegica o valor de uma accedilatildeo natildeo
reside na accedilatildeo em si mesma
A verdade e o bem se incluem mutuamente Pois a verdade eacute um bem sem o que natildeo seria inteligiacutevel Do mesmo modo portanto que o objeto do apetite pode ser uma coisa verdadeira enquanto tem a razatildeo de bem por exemplo quando se deseja conhecer a verdade do mesmo modo o objeto do intelecto praacutetico eacute o bem que pode ser ordenado agrave accedilatildeo sob a razatildeo de verdadeiro O intelecto praacutetico com efeito conhece a verdade como o intelecto especulativo mas ordena agrave accedilatildeo essa verdade conhecida (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 79 a11)83
Para Tomaacutes de Aquino o valor de uma accedilatildeo seraacute relativo agrave finalidade que ela
atingiraacute Talvez a oposiccedilatildeo mais apropriada seria entre Destino e Autonomia ao inveacutes
de se pensar em termos de teleologia e autonomia
83 ldquoDicendum quo verum et bonum se invicem includunt nam verum est quoddam bonum alioquin non
esset appetibile et bonum est quoddam verum alioquin non esset intelligibile Sicut igitur obiectum appetites potest esse verum inquantum habet rationem boni sicut cum aliquis appetit veritatem cognoscere ita objectum intellectus practici est bonum ordinabile ad opus sub ratione veri Intellectus enim practicus veritatem cognoscit sicut et speculativus sed veritatem cognitam ordinat ad opusrdquo
91
526 A intenccedilatildeo
A definiccedilatildeo claacutessica de intenccedilatildeo se deve a Tomaacutes de Aquino No acircmbito da
filosofia moral a ideia eacute a de que a intenccedilatildeo eacute uma vontade que faz a accedilatildeo em uma
meta ao mesmo tempo proacutexima e longiacutenqua precisa e vasta indo ateacute o fim uacuteltimo A
intenccedilatildeo envolve pois a potecircncia da vontade para engendrar uma accedilatildeo e para mover-
se em busca do fim O desenvolvimento do conceito de intenccedilatildeo estaacute expresso na
questatildeo 12 da Primeira parte da Segunda Parte da Suma Teoloacutegica Nos quatro
artigos que compotildeem a questatildeo Tomaacutes de Aquino apresenta a intenccedilatildeo e o seu
objeto (a 1-2) e explicita o ato da intenccedilatildeo (a 3-4)
Tomando a definiccedilatildeo de Agostinho a intenccedilatildeo propriamente dita se refere
agravequilo que move uma coisa a seu fim (cf AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a1)84
Neste sentido como eacute a vontade que move todas as potecircncias a um fim a intenccedilatildeo
se constitui como ato da vontade ldquoOra a vontade move todas as outras potecircncias da
alma para o fim como foi estabelecido acima Eacute manifesto portanto que a intenccedilatildeo eacute
propriamente ato da vontaderdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a1)85
Existe ainda relaccedilatildeo entre Vontade razatildeo e intenccedilatildeo Agrave vontade cabe tender
ao fim enquanto cabe agrave razatildeo ordenar O papel da intenccedilatildeo consiste em ser o
movimento da vontade actus voluntatis em busca do fim uacuteltimo conforme
ordenamento da racionalidade Aleacutem disso a intenccedilatildeo embora se refira
primeiramente ao fim uacuteltimo natildeo exclui a relaccedilatildeo com os fins intermediaacuterios desde
que estes estejam relacionados ao fim uacuteltimo ldquonem sempre eacute necessaacuterio que [a
intenccedilatildeo] seja do fim uacuteltimordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a2 )
Qual o alcance desta reflexatildeo de Tomaacutes de Aquino A intencionalidade
promove uma unidade nos atos voluntaacuterios pois cada accedilatildeo se encontra concatenada
na busca do homem pela felicidade Assim eacute possiacutevel se falar a partir de Tomaacutes de
Aquino de uma unidade da vida moral Esta unidade da vida moral atraveacutes da
intencionalidade garante uma ligaccedilatildeo interna de todos os fins intermediaacuterios
alcanccedilados pelo homem na busca do fim uacuteltimo
84 ldquoUnde intentio primo et principaliter pertinent ad id quod movet ad finemrdquo 85 ldquoVoluntas autem movet omnes alias vires animae ad finem ut supra habitum est Unde manifestum
est quod intentio proprie est actus voluntatisrdquo
92
Natildeo eacute de admirar que a intenccedilatildeo possa se referir a vaacuterias coisas
simultaneamente Tomas de Aquino afirma
A arte imita a natureza Mas a natureza por um soacute instrumento busca duas utilidades ldquocomo a liacutengua que se ordena para o gosto e para falarrdquo diz o livro II da Alma Logo pela mesma razatildeo a arte e a razatildeo podem simultacircneas ordenar para dois fins uma soacute coisa Assim sendo algueacutem pode ter a intenccedilatildeo de muitas coisas simultaneamente (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a3)86
Tomaacutes de Aquino indica que aleacutem da razatildeo a arte tambeacutem pode proporcionar
finalidades e como conclusatildeo a intenccedilatildeo pode se referir a vaacuterias coisas Nesse
sentido compreende-se que ela pode combinar diversos planos nos quais os fins
podem ser dados Este reconhecimento da multiplicidade de coisas as quais a
intenccedilatildeo pode se referir explica de certo modo porque frequentemente os homens
se perdem em suas buscas Natildeo eacute a toa que Tomaacutes sugere uma cooperaccedilatildeo entre a
razatildeo a vontade e a intenccedilatildeo
Tambeacutem eacute relevante o fato de a intenccedilatildeo ser cooperadora da razatildeo na
descoberta de fins Se a arte eacute uma instacircncia distinta da razatildeo e se a intenccedilatildeo tambeacutem
pode se referir a ela pode-se afirmar que aleacutem do fim ordenado pela razatildeo natildeo haacute
um impedimento da participaccedilatildeo da intenccedilatildeo na construccedilatildeo do agir humano o que
implica uma abertura agrave liberdade da intenccedilatildeo nesta construccedilatildeo Pode-se concluir que
os juiacutezos praacuteticos e a escolha livre resultam da interaccedilatildeo entre a racionalidade e a
intenccedilatildeo voluntaacuteria
Existe finalmente uma conexatildeo entre intenccedilatildeo e vontade Tomaacutes de Aquino
afirma que ldquonas as coisas voluntaacuterias um soacute movimento eacute a intenccedilatildeo do fim e a
vontade do que eacute para o fimrdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a3)87 Embora agrave
vontade se relacione com aquilo eacute que para o fim uma vez que ela elege os meios
para atingi-lo sua relaccedilatildeo com a intenccedilatildeo que eacute o seu proacuteprio movimento eacute
constituiacuteda como um movimento uacutenico Pode-se entatildeo afirmar que a conexatildeo entre
intenccedilatildeo e vontade eacute de tal modo que natildeo se pode afirmar uma sem a outra
O estudo da intenccedilatildeo em Tomaacutes de Aquino aprofunda uma questatildeo que estava
em Aristoacuteteles apenas de modo latente Natildeo se pode afirmar que em Aristoacuteteles natildeo
havia uma preocupaccedilatildeo com a intenccedilatildeo poreacutem o seu detalhamento se deve ao
86 ldquoArs imitatur naturam Sed natura ex uno instrument intendit duas utilitates sicut lingua ordinatur et
ad gustum et ad locutionem dicitur in II de Anima Ergo pari ration ears vel ratio potest simul aliquid unum ad duos fines ordinare Et ipsa aliquis simul plura intendererdquo
87 ldquoIn rebus voluntariis idem motus est intentio finis et voluntas eius quod est ad finemrdquo
93
Aquinate A intenccedilatildeo eacute de tal modo necessaacuteria que estaacute presente em cada um dos
atos concernentes aos meios e a escolha eacute ativa em todo desenvolvimento das accedilotildees
53 TOMISMO E EacuteTICA DAS VIRTUDES
Alguns elementos da Psicologia Filosoacutefica de Santo Tomaacutes foram expostos de
modo que foram elucidados como elementos que ou eram desconhecidos ao
pensamento moral aristoteacutelico ou foram insuficientemente aprofundados Cabe entatildeo
verificar quais satildeo os elementos distintivos em relaccedilatildeo agraves proacuteprias virtudes Para isto
aleacutem do proacuteprio Santo Tomaacutes investigou-se o pensamento de Giuseppe Abbaacute
Juvenal Savian Filho Henrique de Lima Vaz Joseph Pieper entre outros que
contribuiacuteram significativamente nesta parte da pesquisa
Em geral natildeo se tem duacutevida de que Tomaacutes de Aquino operou uma releitura do
cristianismo por meio do pensamento aristoteacutelico Cabe pois aleacutem de demonstrar que
mudanccedilas essa releitura provocou explicitar de que modo elas ecoaram no
pensamento moral contemporacircneo Com a realizaccedilatildeo desta tarefa espera-se fazer
entender um dos principais objetivos desta pesquisa mostrar que um retorno
contemporacircneo a Eacutetica das Virtudes deve considerar a influecircncia do pensamento
cristatildeo pelo vieacutes de uma leitura tomasiana Um dos pontos de importacircncia capital para
a pesquisa eacute defender que algumas distinccedilotildees entre o conceito aristoteacutelico e o
conceito tomista de virtude a saber a relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo
de liberdade constituem-se como contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino agrave Eacutetica das
Virtudes e agrave histoacuteria da eacutetica ocidental em geral
Esta seccedilatildeo da pesquisa cumpre a tarefa de mostrar como Tomaacutes de Aquino
opera mudanccedilas significativas no acircmbito da Eacutetica das Virtudes Ele apresenta por um
lado acreacutescimos relevantes agrave moral de Aristoacuteteles e por outro permite afirmar que
muitos desses aspectos se incorporam agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica posterior A partir desta
compreensatildeo pretende-se concluir que propor uma Eacutetica das Virtudes ao
pensamento contemporacircneo negligenciando estes aspectos produz certa fragilidade
agrave proposta Por fim esta seccedilatildeo faraacute consideraccedilotildees sobre a proposta moral do
MacIntyre de Depois da Virtude agrave luz do estudo realizado
94
531 Vida feliz e virtudes antes da siacutentese tomista
Eacute a partir de Santo Agostinho que se tem no pensamento cristatildeo um primeiro
aprofundamento dos temas morais e eacute este aprofundamento que contribui para uma
ulterior moral teoloacutegica Entretanto este primeiro esforccedilo de Agostinho natildeo resulta na
inserccedilatildeo de uma seccedilatildeo moral como componente necessaacuteria da ciecircncia teoloacutegica As
reflexotildees morais embora relevantes encontram-se dispersas entre outras temaacuteticas
da teologia Este pensamento seraacute retomado por Tomaacutes como mote de reflexatildeo agrave luz
do pensamento aristoteacutelico Pode-se afirma que Tomas de Aquino tributa ao
pensamento cristatildeo a doutrina moral que doravante se constitui como parte
integrante da ciecircncia teoloacutegica e seraacute referecircncia para toda a filosofia moral
Pode-se afirmar que a vida feliz desde Aristoacuteteles foi a grande motora do
pensamento eacutetico Com Santo Agostinho ela passa a ser definida como a uniatildeo da
mente a Deus no conhecimento no amor e no gaacuteudio da verdade e do bem divino
Assim Agostinho afirma no De Beata Vita
Certo impulso interior que nos convida a lembrar-nos de Deus a buscaacute-lo a sentir sede dele sem nenhum fastio jorra em noacutes dessa mesma fonte da Verdade Eacute luz que esse misterioso sol irradia em nossos olhos interiores E eacute dele que procede tudo o que proferimos de verdadeiro ainda que temamos volver para ele nossos olhos ainda doentios ou receacutem-abertos e de o fixarmos face a face Esse sol revela-se a noacutes como sendo o proacuteprio Deus ser perfeito sem nenhuma imperfeiccedilatildeo a diminuiacute-lo Pois nele se encontra toda a perfeiccedilatildeo completa e iacutentegra visto que ele eacute ao mesmo tempo o Deus todo-poderoso (AGOSTINHO Santo A vida feliz 1998 p 156 PL 32 4 35)88
Agostinho acredita que naturalmente existe um impulso do homem para Deus
Em outras passagens ele tambeacutem jaacute havia demonstrado esta compreensatildeo ldquotu nos
criastes para voacutes e incansaacutevel estaacute o nosso coraccedilatildeo enquanto natildeo repousa em voacutesrdquo
(agostinho Santo Confissotildees I 1998 p 7) Eacute atraveacutes da inteligecircncia ou ldquoos olhos
interioresrdquo que o homem compreende este desejo de busca de Deus assim como a
proacutepria inteligecircncia atesta que a verdade do que se profere depende dele A perfeiccedilatildeo
de Deus eacute certificada pelo fato de Deus se mostrar ao pensamento humano no interior
de cada homem Eacute este Deus que eacute a proacutepria vida feliz
88 ldquoHoc interioribus luminibus nostris iubar sol ille secretus infundit Huius est verum omne quod
loquimur etiam quando adhuc vel minus sanis vel repente apertis oculis audacter converti et totum intueri trepidamus nihilque aliud etiam hoc apparet esse quam Deum nulla degeneratione impediente perfectum Nam ibi totum atque omne perfectum est simulque est omnipotentissimus Deusrdquo
95
Eacute possiacutevel compreender a partir de Agostinho que pela perfeiccedilatildeo de Deus a
vida feliz diz respeito a um domiacutenio que estaacute para aleacutem da vida efecircmera do homem
no mundo Embora se tenha assim como em Aristoacuteteles que o fim do homem eacute a
felicidade esta acontece em dimensotildees extremamente distintas Eacute em virtude desta
nova concepccedilatildeo de vida feliz que se requer uma reformulaccedilatildeo na taacutebua das virtudes
de modo que entre as virtudes jaacute existentes a caridade possa figurar entre as
principais O modelo da caridade eacute aquela que Deus tem para o homem e tendo Deus
por exemplar o homem a viveraacute em relaccedilatildeo aos seus
Segundo Giuseppe Abbaacute (cf 2008 p 24) para alcanccedilar esta nova vida feliz ou
vida beata era preciso um conhecimento apropriado o conhecimento que Deus
mesmo tem de si mesmo e da ordem das criaturas Este conhecimento presente em
Deus ao modo de uma lei eterna eacute comunicado por via de iluminaccedilatildeo a cada mente
humana no modo de um conhecimento inato das razotildees eternas segundo os quais
satildeo regulados os atos da vontade Deve-se acrescentar que a lei eterna tambeacutem pode
ser conhecida por via de revelaccedilatildeo na lei escrita do Antigo e do Novo Testamento
Ainda segundo Giuseppe Abbaacute a accedilatildeo de Deus para conduzir o homem agrave vida
beata natildeo se limita agrave comunicaccedilatildeo da lei Deus interveacutem tambeacutem mediante uma
gratuita ajuda interior para converter a vontade humana da aversatildeo contra Deus ao
amor por Deus e a sustentar continuamente a retidatildeo da vontade nas obras virtuosas
A teologia moral seraacute assim uma investigaccedilatildeo em torno da lei divina eterna e de
como devem agir aqueles que nela inspiram-se
As concepccedilotildees agostinianas de vida feliz virtudes e lei eterna permanecem
praticamente as mesmas ateacute a chegada dos Sententiarum Libri de Pedro Lombardo
A partir do sec XII e iniacutecio do seacuteculo XIII as Sentenccedilas e as Sumas passam a fazer
uma apresentaccedilatildeo da doutrina cristatilde O elemento relevante deste dado eacute o fato de as
Sentenccedilas e Sumas serem agora obrigatoacuterias como textos baacutesicos de leitura nas
escolas teoloacutegicas Eacute ainda relevante o fato de estes textos natildeo reservarem um
espaccedilo especiacutefico para a filosofia moral assim tambeacutem como aconteceu com a
concepccedilatildeo agostiniana conforme o comentaacuterio de Giuseppe Abbaacute (cf 2008 p 24)
Os temas morais eram apresentados difusamente de modo que eles soacute aparecem
como temaacuteticas assessoacuterias Pedro Lombardo por exemplo tratava sobre a liberdade
e sobre o pecado no livro segundo que explicitava a questatildeo da queda do homem No
96
livro trecircs a propoacutesito do verbo encarnado Lombardo fala sobre as virtudes quando
responde agrave questatildeo de se Cristo teve virtudes
Traduzida para o latim por Roberto Grossatesta em 1246-47 a Eacutetica a
Nicocircmacos natildeo foi capaz de modificar o rumo do pensamento moral cristatildeo-catoacutelico
fortemente marcado pelo agostinismo ao menos ateacute Santo Tomaacutes Eacute atraveacutes dele que
se datildeo dois acontecimentos de particular relevacircncia a construccedilatildeo de uma parte
especificamente moral na teologia e a sua fundamentaccedilatildeo tendo a eacutetica aristoteacutelica
como fonte inspiradora Naturalmente a realizaccedilatildeo dessas duas tarefas natildeo se deu
de modo paciacutefico pois pensamentos jaacute instituiacutedos natildeo cedem facilmente agraves novas
ideias Quais foram pois as articulaccedilotildees filosoacuteficas que Tomaacutes de Aquino se utilizou
para a realizaccedilatildeo desses dois empreendimentos
97
5311 A construccedilatildeo de uma parte moral na teologia
Sobre a criaccedilatildeo de uma parte moral na Teologia Tomaacutes de Aquino enfrenta a
seguinte dificuldade como eacute possiacutevel a tematizaccedilatildeo sobre as virtudes se a teologia
tem Deus por assunto principal Deus natildeo necessita de virtudes uma vez que estas
satildeo haacutebitos que aperfeiccediloam o agente Assim faz-se necessaacuterio expor o modo como
Tomaacutes de Aquino responde a este problema
No desenvolvimento desta seccedilatildeo ver-se-aacute que primeira soluccedilatildeo de Tomaacutes ao
problema da uma inclusatildeo de uma parte moral na teologia daacute-se ainda sob o esquema
agostiniano partindo da lei divina agrave finitude do homem Nesta primeira soluccedilatildeo Tomaacutes
coloca hierarquicamente a lei em primeiro lugar e as virtudes em segundo abrindo um
espaccedilo para se tratar da moral na teologia Qual o problema desta primeira soluccedilatildeo
Ora sendo a lei divina o elemento primordial a eacutetica tomista perderia um de seus
viacutenculos mais relevantes com a eacutetica aristoteacutelica a saber uma eacutetica centrada no
agente A eacutetica aristoteacutelica privilegia por excelecircncia o agente enquanto que em
Agostinho o que brilha eacute a eacutetica fundamentada na lei divina A segunda soluccedilatildeo de
Tomaacutes de Aquino agrave questatildeo se daacute pela via indireta do discurso sobre Deus Com
efeito se pelo modus cognocendio homem conhece a Deus pela ciecircncia moral o
homem conhece a Lei Divina Com esta soluccedilatildeo pode-se afirmar que Tomaacutes de
Aquino garante um lugar agrave moral na Teologia sem no entanto abdicar da uma moral
centrada no agente
Seguindo a primeira soluccedilatildeo Tomaacutes introduz a noccedilatildeo de haacutebitos virtuosos
como formas impressas na alma ldquoas quais a reparam a retificam na medida em que
a fazem partiacutecipe das divinas sabedoria e retidatildeordquo (ABBAacute 2008 p 27) Segundo
Giuseppe Abbaacute existe da parte de Tomaacutes de Aquino uma profunda coerecircncia entre
sua antropologia e esses haacutebitos que informam a alma (cf ABBAacute 2008 p 27) A
explicaccedilatildeo dessa coerecircncia eacute possiacutevel ser mostrada a partir do De Ente et Essentia
a essecircncia se encontra concretizada nas substacircncias criadas intelectuais nas quais o ser ou existecircncia difere da essecircncia embora a essecircncia nelas exista sem a mateacuteria Daiacute que o ser dessas substacircncias natildeo eacute absoluto mas recebido e por conseguinte limitado e finito conforme a capacidade da natureza recipiente embora a natureza ou quididade delas seja absoluta e carente de mateacuteria (AQUINO Tomaacutes de De ente et essentia 2009)
98
Na compreensatildeo desta obra do jovem Tomaacutes de Aquino a alma humana que
se une ao corpo como forma de uma mateacuteria individuante natildeo atua nele comunicando
toda a sua perfeiccedilatildeo em razatildeo composiccedilatildeo das substacircncias O indiviacuteduo soacute se
atualiza no sentido da perfeiccedilatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de formas acidentais
suplementares Estas formas satildeo haacutebitos denominados virtudes Desse modo eacute
possiacutevel afirmar que a inclusatildeo de uma parte moral na teologia por parte de Tomaacutes
de Aquino natildeo eacute uma simples inclusatildeo arbitraacuteria mas um desenvolvimento necessaacuterio
de seu pensamento ontoloacutegico
Deve-se notar ainda que no Scriptum super Sententiis Tomaacutes de Aquino
adota a posiccedilatildeo de que os haacutebitos ou as virtudes necessitam ser dirigidos nos seus
atos pela lei divina pois ldquoa lei ensina a agir demonstra os atos retos as virtudes nos
conduzem ao bem agirrdquo (AQUINO Tomaacutes de Scriptum super sententiis III 37 ad 40
2011) Conforme este posicionamento o enfoque primordial permanece na lei divina
o que permite a Tomaacutes dar continuidade ao esquema da Teologia agostiniana poreacutem
a obediecircncia agrave lei divina daacute-se sob o auxiacutelio das virtudes Obedecendo a esta
hierarquia a lei divina tem precedecircncia sob as virtudes e estas em seu papel
secundaacuterio ganham ldquoabrigordquo na teologia agora com um tratado especiacutefico
Na segunda soluccedilatildeo que se como justificaccedilatildeo definitiva da constituiccedilatildeo de uma
parte moral na teologia Tomaacutes se utiliza da ideia de que uma vez que eacute impossiacutevel
tratar de Deus a partir de sua essecircncia pois este eacute inacessiacutevel ao conhecimento
sensitivo eacute possiacutevel tratar de Deus a partir de seus efeitos ldquose a existecircncia de Deus
natildeo eacute evidente para noacutes pode ser demonstrada pelos efeitos por noacutes conhecidosrdquo
(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 2 a2)89 O homem na qualidade de criatura racional
constitui-se como uma das obras (efeitos) especiais de Deus pois eacute ldquocriado agrave imagem
de Deus enquanto o termo imagem significa o que eacute dotado de intelecto de livre-
arbiacutetrio e revestido por si de poderrdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II prologus)90 Ora eacute
justamente atraveacutes do conhecimento praacutetico que homem tem de suas obras que o
permite construir uma ciecircncia moral Esta ciecircncia se fundamenta na razatildeo com a qual
Deus governa as criaturas particularmente o homem em seu agir Pela ciecircncia moral
conhece-se a lei divina
89ldquoUnde Deum esse secundum quod non est per se notum quoad nos demonstrabile est per effectus
nobis notusrdquo 90 ldquoHomo factus ad imaginem Dei dicitur secundum quod per imaginem significatur intellectuale et
arbiacutetrio liberum et per se potestativumrdquo
99
A ciecircncia sagrada eacute mais especulativa do que praacutetica porque se refere mais agraves coisas divinas do que aos atos humanos Ela considera estes uacuteltimos enquanto por eles o homem eacute ordenado ao pleno conhecimento de Deus no qual consiste a bem-aventuranccedila eterna (AQUINO Tomaacutes de S Th I q1 a4)91
A partir da afirmaccedilatildeo de Tomaacutes a ciecircncia praacutetica trata dos atos humanos e
estes satildeo considerados na medida em que contribuem ao conhecimento de Deus
Esta eacute a via que faz com que a ciecircncia moral tenha lugar na Teologia Desse modo
torna-se possiacutevel fazer uma ciecircncia moral sobre o homem autor de seus proacuteprios
atos em uma teologia que tem Deus por sujeito Assim segue justificada a inclusatildeo
de uma parte moral na Teologia
5312 A fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista
Foi apresentado ateacute o modo como Tomaacutes de Aquino tornou possiacutevel a
construccedilatildeo de uma parte moral na teologia Frequentemente a eacutetica tomista ainda eacute
vista de certo modo como uma filosofia em que domina o conceito de lei seja a lei
eterna seja a lei natural constituiacuteda segundo os preceitos da lei divina Segundo
Giuseppe Abbaacute a ideia comum eacute que ldquoa lei constituiria a regra moral obrigatoacuteria agrave qual
deve se ater ao sujeito humano livre nas suas accedilotildees voluntaacuterias Os haacutebitos virtuosos
interviriam para tornar faacutecil estaacutevel e agradaacutevel o exerciacutecio dos atos livresrdquo (ABBAacute
2008 p 26) Entretanto vista deste modo a eacutetica tomista seria centrada muito mais
na norma do que no agente Com efeito viu-se que a eacutetica de Tomaacutes se vincula
fortemente agrave moral aristoteacutelica porque focaliza primordialmente o agente Este viacutenculo
eacute um meio de se justificar a fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista segundo
ponto a ser aqui explicitado
O primeiro contato de Tomaacutes de Aquino com o texto da Eacutetica a Nicocircmacos foi
nos anos de 1248-52 logo apoacutes completar 20 anos Atraveacutes do primeiro curso sobre
esta nova traduccedilatildeo Tomaacutes de Aquino recebe do mestre Alberto Magno as primeiras
liccedilotildees sobre a Eacutetica do Estagirita Conforme Giuseppe Abbaacute Tomaacutes de Aquino teve
bastante tempo para amadurecer as ideias em torno deste texto e somente 17 anos
depois o Aquinate levou a cabo a tarefa de introduzir na teologia uma eacutetica de
91 ldquoMagis tamen est speculativa quam practica quia principalius agit de rebus divinis quam de actibus
humanis de quibus agit secundum quod per eos ordinatur homo ad perfectam Dei cognitionem in qua aeterna beatitudo consistirdquo
100
inspiraccedilatildeo aristoteacutelica justamente quando compotildee a segunda parte da Suma de
Teologia periacuteodo em que se encontra em Paris de 1269-72 Embora Tomaacutes de
Aquino jaacute ensaie a introduccedilatildeo do estudo sobre as virtudes em obras anteriores como
eacute o caso do Scriptum super Sententiis seu aprofundamento se consolida por ocasiatildeo
da construccedilatildeo da segunda parte da Suma Ainda segundo Giuseppe Abbaacute o
desenvolvimento do pensamento do moral de Tomaacutes de Aquino ldquoeacute a primeira soacutelida
tentativa de utilizar em Teologia a doutrina aristoteacutelica das virtudesrdquo (ABBAacute 2008 p
27) Deve-se agora apresentar qual a perspectiva tomista do conceito de virtude
532 O lugar das virtudes na teologia e sua explicitaccedilatildeo
5321 A beatitude e o lugar das virtudes na siacutentese teoloacutegica tomista
A apresentaccedilatildeo do modo como Tomaacutes de Aquino constituiu uma parte moral
na Teologia a partir da moral aristoteacutelica exige uma reformulaccedilatildeo de vaacuterios conceitos
de sua filosofia moral do estagirita Entre eles encontra-se o conceito de virtude que
possui particular relevacircncia nesta pesquisa Considerando como foi afirmado que a
ciecircncia praacutetica de inspiraccedilatildeo aristoteacutelico-tomista tem o enfoque no agente a filosofia
moral tomista se inicia com uma investigaccedilatildeo acerca fim mais apropriado agraves accedilotildees
humanas Assim ele inicia a Prima Secundae
Eacute de se considerar em primeiro lugar o fim uacuteltimo da vida humana Em seguida aqueles meios que poderatildeo levar o homem a este fim ou desviaacute-lo dele pois eacute do fim que aquelas coisas que a ele concernem recebem as razotildees Como o fim uacuteltimo da vida humana eacute a bem-aventuranccedila deve-se considerar primeiramente o fim uacuteltimo em comum e em seguida a bem-aventuranccedila (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q1 proecircmio )92
A bem-aventuranccedila que eacute o fim uacuteltimo aqui tratado Tomaacutes a apresenta desta
maneira porque sendo Deus a proacutepria beatitude conserva-se por meio dela uma
unidade temaacutetica dentro da Ciecircncia Teoloacutegica isto eacute a felicidade e os meios para
adquiri-la satildeo temas necessaacuterios agrave Teologia O que ocorre eacute que obedecendo agrave
ordem teoloacutegica trata-se inicialmente de Deus e de sua obra depois se deve tratar
92ldquoUbi primo considerandum occurit de ultimo fine humanae vitae et deinde de his per quae homo ad
hunc fine pervenire potest vela ab eo deviare ex fine enim oportet accipere rationes eorum quae ordinantur ad finem Et quia ultimus finis humanae vitae ponitur esse beatitudo oportet primo considerare de ultimo fine in communi deinde de beatitudinerdquo
101
do modo como as criaturas realizam um caminho de retorno a ele sobretudo o
homem que demonstra sua semelhanccedila com Deus na capacidade de conhecer e de
poder ser princiacutepio e senhor de seu agir Com efeito Tomaacutes de Aquino entende que
o homem retorna a Deus de uma maneira muito peculiar este retorno natildeo eacute uma
imposiccedilatildeo de Deus ao homem mas um ato de confianccedila na vontade livre do homem
de procedecirc-lo sem dispensar o auxiacutelio da graccedila (Cf BRUGUEgraveS 2003 Tomo III nota
ldquobrdquo p 29)
A elaboraccedilatildeo de uma Moral das Virtudes encontra pois seu lugar na teologia
agrave medida que por meio do exerciacutecio das virtudes o homem encontra um caminho
mais adequado de alcanccedilar a beatitude com maior propriedade Acrescente-se a isto
o fato de Tomaacutes de Aquino dedicar na Suma uma parte ao estudo daqueles haacutebitos
que distanciam o homem de seu fim Esses haacutebitos denominados viacutecios merecem
uma menccedilatildeo devida dado que o itineraacuterio do homem agrave felicidade comporta tanto os
atos afirmativos das virtudes quanto os atos negativos dos viacutecios O que significa um
ato afirmativo e outro negativo A ideia central eacute a de que o saber sobre as virtudes e
os viacutecios sejam ambos uacuteteis para o encaminhamento do ser humano agrave felicidade seja
exercitando as virtudes (atos afirmativos) seja evitando os viacutecios (atos negativos)
O estudo sobre as virtudes passa a ser desenvolvido no interior do proacuteprio
pensamento de Santo Tomaacutes antes das consideraccedilotildees sobre o modo como Deus
governa as criaturas ao seu fim e governa especialmente os indiviacuteduos humanos agrave
vida beata mediante a lei e a graccedila (cf ABBAacute 2008 p 34) pois entre a vida beata e o
governo divino estatildeo os atos dos quais o indiviacuteduo eacute autor e pelos quais ele realiza
a sua beatitude E como as virtudes se referem ao modo como o homem realiza o
processo de retorno a Deus deve-se aprofundar o modo como as virtudes estatildeo
relacionadas ao ser do homem
5312 A concepccedilatildeo tomista de homem e as virtudes
A partir da Tradiccedilatildeo Biacuteblica a relaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo de homem e as
virtudes se articulam com aquilo que Joseph Pieper denominou de imagem cristatilde do
homem (cf PIEPER 2010 p 9) Esta imagem toma por indicaccedilatildeo a afirmaccedilatildeo que
diz ldquosede perfeitos como o vosso Pai do ceacuteu eacute perfeitordquo Ora na condiccedilatildeo de criaturas
a perfeiccedilatildeo eacute fruto de um aprendizado continuo que inclui a vivecircncia constante dos
102
habitus que vatildeo conduzir o ser humano a expor o que haacute de melhor em si Esse melhor
diz respeito agraves virtudes que aperfeiccediloam o agente e tornam mais acessiacutevel o caminho
agrave beatitude
A partir da antropologia tomista o homem eacute compreendido como uma unidade
substancial de corpo e alma Tomaacutes entende que o ser da mateacuteria corpoacuterea estaacute como
recipiente e sujeito para ser algo superior Neste caso eacute a alma humana que estaacute
como princiacutepio formal pela sua proacutepria natureza Por isso a alma humana eacute forma do
corpo tornando esse composto num ser uno ldquopois eacute atraveacutes da forma pela qual as
coisas tecircm o ser que tambeacutem o composto corpo e alma recebe sua unidaderdquo
(AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles II c 58 )93
A unidade do homem eacute assegurada pela composiccedilatildeo de corpo e alma de modo
que em sua constituiccedilatildeo o homem goza da daacutediva de pela alma fazer parte do reino
espiritual e pelo corpo fazer parte do reino corporal Assim segundo Tomaacutes de
Aquino o homem encontra-se na fronteira do espiritual e do corporal
Deve-se pois admitir algo supremo no gecircnero dos corpos a saber o corpo humano possuidor de temperamento uniforme que atinja o iacutentimo do gecircnero superior isto eacute a alma humana que ocupa o uacuteltimo grau das substacircncias intelectuais como se pode verificar pelo seu modo inteligente de conhecer e por isso se diz que a alma intelectual eacute como o horizonte e a fronteira entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo enquanto substacircncia incorpoacuterea e no entanto como forma do corpo (AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles II 68 )94
Eacute de especial relevacircncia o fato de o homem por sua condiccedilatildeo estar habilitado
a buscar a felicidade pois possui um modo inteligente de conhecer o que o
assemelha a Deus A semelhanccedila com Deus tambeacutem se daacute considerando que o
homem possui domiacutenio de seus atos Neste sentido pode-se afirmar que entre as
criaturas sensiacuteveis o homem eacute aquele que possui uma capacidade natural de buscar
o seu fim Natural poreacutem eacute o seu despreparo dada a constante falibilidade de sua
vontade livre Segundo a antropologia tomista sabe-se que pelo princiacutepio corporal o
homem eacute portador das paixotildees e estas consideradas isoladamente natildeo possuem
nenhuma conotaccedilatildeo no sentido de boas ou maacutes Elas satildeo potecircncias neutras
93ldquoCum igitur a forma unaquaeque res habeat esse a forma etiam habebit unitatemrdquo 94ldquoEst igitur accipere aliquid supremum in genere corporum scilicet corpus humanum aequaliter
complexionatum quod attingit ad infimum seperioris generis scilicet ad animam humanam quae tenet ultimum gradum in genere intellectualium substantiarium ut ex modo intelligendi percipi potest b) Et inde est quod anima intellectualis dicitur esse quase quidam horizon et confinium corporeorum et incorporeorum inquantum est substantia incorporea corporis tamen formardquo
103
moralmente mas que podem condicionar as decisotildees do homem em virtude de seu
forte apelo agrave sensibilidade Eacute justamente aiacute que as virtudes ganham o seu sentido As
potecircncias do homem tanto as da alma quanto as do corpo necessitam de um habitus
que as atualizem em virtude do melhor Assim as virtudes iratildeo pois preparar o
homem positivamente na busca de seu fim uacuteltimo da vida feliz
Deve-se dizer que o irasciacutevel e o concupisciacutevel em si mesmos considerados enquanto partes do apetite sensitivo satildeo comuns a noacutes e aos animais irracionais Mas enquanto racionais por participaccedilatildeo obedientes agrave razatildeo satildeo potecircncias proacuteprias do homem e desse modo poreacutem ser sujeitos da virtude humana (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 56 a4 )95
As virtudes satildeo organizadas para atender as necessidades do homem
considerado em sua integralidade Desse modo as virtudes iratildeo aperfeiccediloar tanto as
potecircncias espirituais isto eacute a inteligecircncia e a vontade que pertencem ao acircmbito da
razatildeo do homem quanto as potecircncias sensitivas que satildeo a concupiscecircncia e a
irascibilidade fontes das paixotildees ambas ligadas ao corpo Eacute em virtude desta
totalidade que eacute o homem que um tratado sobre as virtudes natildeo deveria negligenciar
um estudo sobre as paixotildees e os viacutecios caso contraacuterio um tratado desta natureza
poderia ateacute visar um bem das accedilotildees particularmente mas natildeo o bem do agente
pensado em sua totalidade Acerca disto Tomaacutes de Aquino afirma
O nuacutemero de determinadas coisas pode ser estabelecido ou pelos princiacutepios formais ou pelos sujeitos Em ambos os casos temos quatro virtudes cardeais porque o princiacutepio formal da virtude aqui considerada eacute o bem da razatildeo que pode ser considerado sob o duplo aspecto ou enquanto consiste na proacutepria consideraccedilatildeo da razatildeo e se teraacute entatildeo uma virtude principal que se chama prudecircncia ndash ou enquanto se afirma a ordem da razatildeo em relaccedilatildeo a alguma coisa E isso seraacute ou quanto as accedilotildees e se teraacute entatildeo a justiccedila ou quanto agraves paixotildees e nesse caso eacute preciso que haja virtudes pois para afirmar a ordem da razatildeo nas paixotildees eacute necessaacuterio levar em conta a oposiccedilatildeo delas agrave razatildeo Essa oposiccedilatildeo pode se dar de duas formas primeiro quanto a paixatildeo impele a algo contraacuterio agrave razatildeo e aiacute eacute preciso que a paixatildeo seja controlada o que chamamos temperanccedila segundo quando a paixatildeo nos afasta das normas da razatildeo como o temor do perigo ou do sofrimento e nesse caso devemos nos firmar
95 ldquoErgo dicendum quod irascibilis et concupiscibilis secundum se consideratae prout sunt partes
appetitus sensitivi communes sunt nobis et brutis Sed secundum quod sunt rationales per participationem ut obedientes rationi sic sunt propriae hominis Et hoc modo possunt esse subiectum virtutis humanaerdquo
104
inarredavelmente no que eacute racional e a isso se daacute o nome de fortaleza (AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles I-II q 61 a2 )96
Tomaacutes de Aquino entende que o nuacutemero das virtudes eacute determinado e esta
determinaccedilatildeo eacute dada de duas maneiras ou segundo os princiacutepios formais ou
conforme os princiacutepios subjetivos na qualidade de sujeitos97 Tanto numa quanto
noutra maneira o nuacutemero das virtudes pode ser resumido em quatro Com efeito esse
nuacutemero de quatro virtudes cardeais eacute exatamente o numero suficiente para dar conta
de todas as dimensotildees do homem pensado em sua constituiccedilatildeo Conforme os
princiacutepios formais a virtude seraacute pois o bem da razatildeo (prudecircncia) ou daquilo que a
ela se refere a saber agrave vontade (justiccedila) como segunda potecircncia espiritual e agrave
concupiscecircncia (temperanccedila) e a irascibilidade (fortaleza) como potecircncias ligadas ao
corpo
Em relaccedilatildeo aos princiacutepios subjetivos o nuacutemero das virtudes principais tambeacutem
seraacute quatro pois segundo Tomaacutes de Aquino os sujeitos satildeo quatro o racional por
essecircncia e dele a prudecircncia e o racional por participaccedilatildeo a vontade sujeito da
justiccedila o apetite concupisciacutevel sujeito da temperanccedila e o irasciacutevel sujeito da
fortaleza
Com isso entende-se que as virtudes visam natildeo apenas a perfeiccedilatildeo das
potecircncias tomadas particular ou aleatoriamente mas visam agrave perfeiccedilatildeo do agente
compreendido em sua totalidade Segundo Albert Pleacute a virtude moral humana e
humanizante levada agrave perfeiccedilatildeo habilita o homem a agir com todo o seu ser em
conformidade com sua natureza racional Eacute dessa forma que ele assegura de uma
vez soacute tanto o bem da obra cumprida (bonum operis) quanto o do sujeito que age
(bonum operantis) (Cf PLEacute 2005 vol IV nota ldquobrdquo p 162)
A relaccedilatildeo entre as virtudes e a constituiccedilatildeo do homem leva a compreender que
eacute em virtude de o homem ser pensado a partir de uma unidade substancial que se
96 ldquodicendum quod numerous aliquorum accipi potest aut secundum principia formalia aut secundum
subiecta et utroque modo inveniuntur quatuor cardinales virtutes Principium enim formale virtutis de qua nunc loquimur est rationis bonum Quod quidem dupliciter potest considerari Uno modo secundum quod in ipsa consideratione rationis consistit Et sic erit uma virtus principalis quae dicitur prudentia ndash Alio modo secundo quod circa aliquid ponitur rationis ordo Et hoc vel circa operationes et sic est iusticia vel circa passiones considerata repugnantia ipsarum ad rationem Quae quidem potest esse dupliciter Uno modo secundum quod passio impellit ad aliquid contrarium rationi et sic necesse est quod passio reprimatur et ab hoc denominatur temperantia Alio modo secundum quod passio retrahit ab eo quod ratio dictat sicut timor periculorum vel laborum et sic necesse est quod homo firmetur in eo quod est rationis ne recedat et ab hoc denominatur fortitudordquo
97 A noccedilatildeo de sujeito tem aqui um sentido preciso Sujeito significa o substrato que suportaraacute a efetivaccedilatildeo de uma coisa
105
pode pleitear uma unidade das virtudes Com efeito esta unidade decorre por um
lado da exigecircncia ou da necessidade que cada potecircncia do homem tem de ser
adequadamente aperfeiccediloada e por outro da inter-relaccedilatildeo existe entre as proacuteprias
virtudes conforme se veraacute adiante quando se tematizar sobre a conexatildeo entre as
virtudes
5313 A explicitaccedilatildeo do conceito de virtude e a releitura tomista da teoria das
virtudes
53131 A perfeiccedilatildeo da potecircncia e habito operativo
Apoacutes ter apontado qual o lugar filosoacutefico das virtudes na Suma Teoloacutegica e o
modo como elas se estruturam em favor do homem e de sua da bem-aventuranccedila
faz-se necessaacuterio expor como Tomaacutes de Aquino assumiu e modificou a noccedilatildeo
aristoteacutelica de virtude Deve-se esclarecer que Tomaacutes se utiliza de duas concepccedilotildees
de virtudes a saber virtude enquanto excelecircncia dos atos humanos e virtude
enquanto habitus operativo que aperfeiccediloa e prepara as potecircncias para emitirem os
atos excelentes requeridos pela vida beata
Primeiramente deve-se afirmar que as virtudes satildeo habitus Segundo Albert
Pleacute habitus eacute uma disposiccedilatildeo uma capacidade da natureza humana a qual se
enraiacuteza em sua natureza especiacutefica e individual finalizada pelo agir (cf PLEacute 2005
tomo IV p 35) Muito mais que uma simples disposiccedilatildeo o habitus qualifica as outras
disposiccedilotildees de modo que estas se realizam da melhor maneira nas accedilotildees especiacuteficas
A partir desta compreensatildeo chega-se ao primeiro conceito de virtude como perfeiccedilatildeo
da potecircncia isto eacute como excelecircncia dos atos humanos
Em que consiste esta excelecircncia Segundo Giuseppe Abbaacute ldquoesta excelecircncia
consiste no fato de que nos atos voluntaacuterios a vontade e os apetites passionais satildeo
regulados segundo especiacuteficos modos de regulaccedilatildeo que satildeo requeridos para a vida
felizrdquo (ABBAacute 2008 p 35) Estes modos especiacuteficos de regulaccedilatildeo satildeo proporcionados
pela razatildeo atraveacutes do que Tomaacutes denominou ordo rationis Eacute pela ordem da razatildeo
ou reta razatildeo que o agente regula as proacuteprias escolhas subordinando-as aos fins
virtuosos Deste modo pela ordo rationis o indiviacuteduo manteacutem uma retidatildeo na busca
da vida feliz Sobre isto Tomaacutes de Aquino afirma ldquoa virtude designa certa perfeiccedilatildeo
106
da potecircncia Mas a perfeiccedilatildeo de uma coisa eacute considerada principalmente em ordem
ao seu fim Ora o fim da potecircncia eacute o ato Portanto a potecircncia seraacute perfeita na medida
em que eacute determinada por seu atordquo (AQUINO Tomaacutes deS Th I-II q55 a1)98 O
primeiro sentido aplicado por Tomaacutes de Aquino jaacute era conhecido e tematizado por
Aristoacuteteles
A virtude designa certa perfeiccedilatildeo da potecircncia pois ela eacute considerada desta
maneira uma vez que ordena as potecircncias em funccedilatildeo do fim do homem Entretanto
as virtudes satildeo a perfeiccedilatildeo apenas das potecircncias que corroboram com o fim do
homem Estas potecircncias as potecircncias racionais necessitam das virtudes porque elas
natildeo se determinam a um uacutenico objeto Tomaacutes de Aquino afirma que ldquoas potecircncias
racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se
prestam indeterminadamente a muitas coisasrdquo Nesta hipoacutetese as virtudes teriam a
funccedilatildeo de aperfeiccediloar e de preparar as potecircncias para emitirem os atos excelentes
que satildeo exigidos agrave vida feliz Aleacutem disso a vontade livre do homem de certo modo
nunca teria dispensada sua atuaccedilatildeo
Em segundo lugar virtude eacute tomada segundo a compreensatildeo de haacutebito
operativo isto eacute enquanto habito operativo ela valoriza as capacidades naturais do
ser humano como forma de tambeacutem corrigir o despreparo natural do homem em
buscar a vida beata dada a constituiccedilatildeo do homem na qual o seu existir natildeo atualiza
naturalmente todas as potencialidades presentes na sua essecircncia Este conceito de
habitus operativus eacute uma particularidade e um acreacutescimo de Tomaacutes de Aquino ao
conceito primitivo de virtude Por isto mesmo Tomaacutes de Aquino conclui que ldquoa virtude
humana natildeo eacute apenas perfeiccedilatildeo mas tambeacutem aquilo que o aperfeiccediloardquo
Eacute possiacutevel afirmar que o duplo conceito de virtude como perfeiccedilatildeo das
potecircncias e como habitus operativus se dirige por um lado agrave construccedilatildeo de um haacutebito
bom (bocircnus habitus) e por outro como produtor de bem (boni operativus) Constitui-
se como um fato novo a concepccedilatildeo de virtude como um habitus que contem a funccedilatildeo
de aperfeiccediloamento e preparaccedilatildeo agrave felicidade Segundo Tomaacutes de Aquino ldquoa virtude
humana natildeo implica em uma ordenaccedilatildeo para o existir mas antes para a accedilatildeo Assim
eacute da razatildeo da virtude humana ser haacutebito operativordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q55
98 ldquovirtus nominat quandam potentiae perfectionem Uniuscuiusque autem perfectio praecipue
consideratur in ordine ad suum finem Finis autem potentiae actus est Unde potentia dicitur esse perfecta secundum quod determinatur ad suum actumrdquo
107
a1)99 Esta concepccedilatildeo supera de certo modo a concepccedilatildeo aristoteacutelica de virtude Com
efeito a partir da abordagem tomista a virtude natildeo diz respeito apenas agrave excelecircncia
dos atos humanos mas ao habitus operativus que aperfeiccediloa e repara os atos
humanos na ldquojornadardquo do homem de retorno a Deus
53132 As virtudes teologais
As virtudes teologais correspondem ao contributo de Deus ao homem na busca
de uma vida perfeitamente feliz As virtudes cardeais satildeo resultado das capacidades
naturais do homem por isso mesmo como ldquopor sua forccedila ningueacutem pode se salvarrdquo
as virtudes teologais acrescentam agrave natureza humana a capacidade de se dirigirem a
Deus com um forccedila sobrenatural isto eacute com uma forccedila que sozinha a natureza
humana natildeo seria capaz de proporcionar
A ideia de Tomaacutes eacute que a razatildeo humana eacute capaz de ordenar os apetites
volitivos e passionais em funccedilatildeo de seu proacuteprio fim
Uma das grandes inovaccedilotildees do pensamento de Santo Tomaacutes estaacute na
articulaccedilatildeo das virtudes teologais tanto na teologia quanto no cataacutelogo das proacuteprias
virtudes Com efeito a esperanccedila passa a ser considerada componente das virtudes
de tal modo que ateacute autores de inspiraccedilatildeo marxista como Ernst Bloch a tem em grande
conta
Embora as virtudes teologais tenham sido infundidas por Deus no ser humano
segundo a opiniatildeo se Tomaacutes de Aquino elas tambeacutem participam no aperfeiccediloamento
do intelecto e do apetite Esta ideia do Aquinate abre espaccedilo agrave noccedilatildeo de conexatildeo
entre as virtudes Eacute por meio desta conexatildeo entre as virtudes que se estrutura no
agente a unidade de seu caraacuteter E eacute justamente pela virtude da Prudecircncia que se daacute
a unidade da pessoa uma vez que a prudecircncia desenvolve uma harmonizaccedilatildeo
dinacircmica entre a razatildeo e o apetite
53133 A virtude da Justiccedila
99 ldquoEt ideo de ratione virtutis humanae est quo sit habitus operativusrdquo
108
Eacute digno de nota que a Beatitude cristatilde natildeo eacute um achado exclusivamente
individual e nem deve ser pensada desapegada do caraacuteter social Mesmo que o aacutepice
da Beatitude seja a visio beatifica pensada num plano para aleacutem histoacuteria conforme a
revelaccedilatildeo cristatilde haacute que se pensar nas condiccedilotildees sensiacuteveis favoraacuteveis ao alcance
dela Estas condiccedilotildees satildeo certamente proporcionadas num niacutevel individual atraveacutes da
maior parte das virtudes e num niacutevel comunitaacuterio atraveacutes da virtude da justiccedila
A justiccedila jaacute desde o Aristoacuteteles carrega a marca de ser a maior de todas as
virtudes pois eacute a uacutenica que diz a respeito a relaccedilatildeo do agente com outros O livro V
da Eacutetica a Nicocircmacos eacute dedicado agrave Justiccedila suas acepccedilotildees divisotildees e gradualidades
Tomaacutes de Aquino ldquobeberdquo dos princiacutepios aristoteacutelicos da justiccedila e dedica a questatildeo 58
da IIa IIae da Suma Teoloacutegica agrave anaacutelise e aprofundamento desta virtude
Na anaacutelise tomista sobre a Justiccedila as dimensotildees pessoais e sociais da vida
moral satildeo postas em relaccedilatildeo especialmente no que diz respeito agrave vida cristatilde
Pertence agrave justiccedila a funccedilatildeo de qualificar e retificar as accedilotildees da pessoa Esta funccedilatildeo
tambeacutem se estende agraves relaccedilotildees e instituiccedilotildees da vida social
Do ponto de vista pessoal considerando a antropologia tomista a potecircncia
espiritual da vontade se relaciona agrave capacidade de agir O bem agir enquanto melhor
atualizaccedilatildeo da potecircncia da vontade se traduz na forma de Justiccedila Do ponto de vista
pessoal a justiccedila eacute a virtude conexa agrave vontade ao passo que do ponto de vista social
Justiccedila de refletiraacute ou seraacute atualizada como Direito O Direito eacute assim o objeto da
justiccedila Nesse sentido a virtude da justiccedila faz parte de um elo que inclui homem
vontade virtude e Direito Segundo Claacuteudio Pedrosa ldquoO Direito como objeto da
Justiccedila eacute erigido segundo entendemos como qualificativo eacutetico-juriacutedico da
conceituaccedilatildeo de Justiccedila em Santo Tomaacutesrdquo (NUNES 2011 p 590)
53134 A unidade das virtudes e conexatildeo entre as virtudes
A unidade das virtudes em Tomaacutes de Aquino pode ser encontrada naquilo que
ele intitula a conexatildeo entre as virtudes Com efeito estaacute ideia de interdependecircncia
entre as virtudes ateacute entatildeo pouco tematizada no acircmbito da Eacutetica das Virtudes eacute o
que daacute inteligibilidade a uma consolidaccedilatildeo da unidade do caraacuteter moral de um agente
Andreacute Comte-Sponville critica a ideia de em um estudo sobre a moral se
tematizar sobre as paixotildees e os viacutecios ldquoe o que eacute mais digno de interesse na moral
109
que as virtudes Assim como Spinoza natildeo creio haver utilidade em denunciar os
viacutecios o mal o pecado Eacute a moral dos tristes e uma triste moralrdquo (COMTE-SPONVILLE
1995 p 7) Contrariamente a afirmaccedilatildeo do autor eacute relevante compreender que a
consideraccedilatildeo sobre as paixotildees muito mais do que uma fuga que realmente importa
contrariamente ao que diz Andreacute Comte-Sponville constitui-se como um
reconhecimento do modo como a razatildeo se relaciona com os apetites Tomaacutes de
Aquino sabe e afirma que em relaccedilatildeo aos apetites a razatildeo natildeo pode agir na forma
de um ldquopoder despoacuteticordquo mas age na forma de um ldquopoder poliacuteticordquo no qual as
decisotildees satildeo tomadas como resultado de um longo e contiacutenuo diaacutelogo entre forccedilas
contraacuterias
A parte apetitiva obedece agrave razatildeo natildeo ao menor aceno mas com certa resistecircncia Razatildeo porque o Filoacutesofo diz que lsquoa razatildeo rege a potecircncia apetitiva com poder poliacuteticorsquo tal qual se governam as pessoas livres que tecircm certos direitos de oposiccedilatildeo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 58 a2)100
A necessidade de se conhecer as paixotildees e os viacutecios se impotildee porque mesmo
podendo conduzir o ser humano agrave vida boa a vontade humana permanece faliacutevel
sendo assim deve-se saber sobre as virtudes e sobre o seu oposto porque estas satildeo
de certo modo realidades quotidianas ao indiviacuteduo Com efeito pelas paixotildees eacute
possiacutevel condicionar o exerciacutecio da vontade livre caso estas potecircncias sejam
atualizadas na forma de viacutecios
Outro dado relevante eacute que a compreensatildeo acerca das paixotildees ainda
proporciona a consciecircncia da relaccedilatildeo entre as paixotildees e suas virtudes
correspondentes Isto eacute cada paixatildeo suscita o exerciacutecio de uma virtude que lhe eacute
apropriada Dessa afirmaccedilatildeo podem-se concluir duas coisas a primeira eacute a de que a
diversidade das paixotildees causa a diversidade das virtudes morais e a segunda eacute a de
que o cataacutelogo das virtudes eacute fundamentado nas necessidades concretas do ser
humano Assim contra ao que Andreacute Comte-Sponville coloca o estudo sobre as
paixotildees muito mais do que uma moral dos tristes constitui-se num reconhecimento
desta unidade que eacute o homem e de como as virtudes natildeo se ligam a ele acidental
Uma decorrecircncia necessaacuteria unidade das virtudes eacute a ideia de que as virtudes
estatildeo conectadas umas agraves outras A ideia de Tomaacutes eacute fazer entender que se pelas
100 ldquoPars enim appetitiva obedit rationi nom omnimo ad notum sed cum aliqua contradictione unde
Philosophus dicit in I Polit quod ratio imperat appetitivae principatu poliacutetico quod scilicet aliquis praeest liberis qui habent ius in aliquo contradicendirdquo
110
virtudes consideradas separadamente o homem possui a perfeiccedilatildeo de suas
potecircncias a praacutetica das virtudes mostraraacute que umas natildeo seratildeo possiacuteveis sem as
outras Ora se na arquitetura da antropologia tomista todas as virtudes recebem uma
iluminaccedilatildeo pela virtude intelectual da prudecircncia de modo que ao final todo o agir do
homem virtuoso estaacute relacionado agrave reta razatildeo deve-se aceitar tambeacutem que todas as
virtudes estatildeo relacionadas e conectadas
A conexatildeo das virtudes a partir do Comentaacuterio a Eacutetica a Nicocircmacos mostra
como a parte racional do homem atua relacionada agrave vontade e como existe uma
relaccedilatildeo de interdependecircncia entre as virtudes
Duas coisas satildeo asseguradas na obra da virtude Uma eacute que o homem tenha uma intenccedilatildeo correta para o fim o que a virtude moral providencia inclinando a faculdade apetitiva para um fim proacuteprio A outra eacute dada pela prudecircncia a qual daacute bons conselhos julga e ordena os meios para o fim (DrsquoAQUIN Thomas Commentary on Aristotles
Nicomachean Ethics VI 10 1269 1993)101
Essas duas potecircncias satildeo partes essenciais das accedilotildees virtuosas a prudecircncia
aperfeiccediloando a parte racional e a virtude moral a parte apetitiva A prudecircncia natildeo
pode existir sem virtude moral bem como a virtude moral natildeo pode existir sem a
prudecircncia Joatildeo Hobuss acrescenta que ldquoo mesmo se daacute com as virtudes morais pois
enquanto a prudecircncia garante a bondade dos meios as virtudes morais garantem a
retidatildeo do fim isto eacute a obra da virtude eacute assegurada por ambas tanto a prudecircncia
quanto as virtudes moraisrdquo (HOBUSS 2011) Desse modo entende-se que uma accedilatildeo
virtuosa necessita da conexatildeo entre as virtudes
Possui particular relevacircncia a posiccedilatildeo tomista de que todas as virtudes
dependam da caridade Sua tese proveacutem do posicionamento fundamental da Tradiccedilatildeo
Biacuteblica que defende que entre as virtudes teologais a caridade eacute a virtude mais
importante Tomaacutes de Aquino afirma que ldquoas virtudes morais infusas estatildeo ligadas
entre si natildeo soacute por causa da prudecircncia mas tambeacutem da caridade e quem perde a
caridade pelo pecado mortal perde todas as virtudes morais infusasrdquo (AQUINO Tomaacutes
S Th I-II q65 a3)102 A afirmaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino leva a concluir uma coisa a
101 ldquoTwo things are needed in a work of virtue One is that a man have a right intention for the end which
moral virtue provides in inclining the appetitive faculty to a proprer end The other is to be well disposed towards the means This is done by prudence which gives good advice judges and orders the means to the endrdquo
102 ldquoQuod virtutes morales infusae non solum habent connexionem propter prudentiam sed etiam propter caritatem Et quod qui amittit caritatem per peccatum mortale amittit caritatem per peccatum mortele amittit omnes virtutes Morales infusasrdquo
111
unidade e a conexatildeo entre as virtudes natildeo eacute um feito exclusivo da racionalidade mas
eacute uma condiccedilatildeo proporcionada pelo ato de amor que eacute a caridade
A organizaccedilatildeo da conexatildeo entre as virtudes a partir de Tomaacutes de
Aquino obedece a seguinte ordem primeiramente haacute conexatildeo das virtudes
intelectuais entre si por meio dos primeiros princiacutepios (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I-
II q 65 a3) Jaacute a conexatildeo entre as virtudes intelectuais e as virtudes morais se daacute por
meio da prudecircncia Com efeito eacute justamente por meio da relaccedilatildeo existente entre a
prudecircncia e as virtudes morais que se daacute a harmonizaccedilatildeo entre razatildeo e o apetite
denominado de desejo refletido Por fim a conexatildeo entre as virtudes morais e as
teologais se daacute por meio da caridade e por obra de sua atuaccedilatildeo as virtudes humanas
se tornam mais perfeitas Cabe afirmar que esta uacuteltima conexatildeo entre as virtudes
teologais e as virtudes morais eacute resultado da siacutentese tomista entre a tradiccedilatildeo biacuteblica e
o aristotelismo Cabe verificar ainda outras relaccedilotildees entre estas duas tradiccedilotildees
53135 O habitus e vontade livre
Aleacutem do conceito de virtude Tomaacutes de Aquino traz outras inovaccedilotildees agrave
concepccedilatildeo aristoteacutelica de virtudes Uma dessas inovaccedilotildees consiste na relaccedilatildeo que se
estabelece entre habitus e vontade livre Segundo Giuseppe Abbaacute
uma vez que a Aristoacuteteles faltava o conceito de livre vontade as virtudes eacuteticas introduziam uma determinaccedilatildeo inelutaacutevel nos apetites Para Tomaacutes poreacutem introduzem uma determinaccedilatildeo que estaacute continuamente agrave disposiccedilatildeo da vontade que pode usar delas quando quiser mas tais determinaccedilotildees natildeo passam ao ato sem o livre consenso da vontade As virtudes permanecem sendo determinaccedilotildees uniacutevocas e infaliacuteveis mas a livre vontade humana permanece faliacutevel (ABBAacute 2008 p 36)
A relaccedilatildeo entre habitus e vontade livre explica por exemplo como algueacutem
mesmo sendo virtuoso sempre estaacute na iminecircncia de natildeo secirc-lo Assim esta relaccedilatildeo
contribui com a ideia de que soacute existe virtude onde o homem pode libertar-se do
determinismo da natureza animal Isto soacute eacute possiacutevel ao homem pela accedilatildeo de suas
capacidades inteligentes E porque as potecircncias racionais se prestam de maneira
indeterminadas a muitas coisas eacute que satildeo necessaacuterios os habitus virtuosos
Existem poreacutem potecircncias que satildeo determinadas em si mesmas para os seus atos como as potecircncias naturais ativas e por isso elas proacuteprias se chamam virtudes Jaacute as potecircncias racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se prestam
112
indeterminadamente a muitas coisas (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q55 a 1)
Se se considera a realidade indeterminada das potecircncias racionais torna-se
possiacutevel chegar ao fato de Eacutetica Tomista estar profundamente ligada agrave ideia de
liberdade Com efeito pelas virtudes se podem aperfeiccediloar as potecircncias para o
melhor entretanto o exerciacutecio das virtudes fundamenta-se numa adesatildeo consciente
da pessoa mostrando como estatildeo inter-relacionados virtudes pessoa e liberdade103
Na verdade natildeo eacute necessaacuterio apresentar separadamente a noccedilatildeo de pessoa e a de
liberdade pois o conceito de pessoa jaacute inclui a ideia de liberdade por se referir a uma
substacircncia individual de natureza racional Ora como se sabe a livre vontade em
Tomaacutes de Aquino decorre da condiccedilatildeo racional do homem
Considerando a condiccedilatildeo do homem se as virtudes possuem uma funccedilatildeo
aperfeiccediloadora e reparadora das potecircncias humanas se vecirc que existe uma relaccedilatildeo
iacutentima entre virtude e livre-arbiacutetrio em Tomaacutes de Aquino Ora se o livre-arbiacutetrio eacute a
capacidade de se fazer o que se quer sua relaccedilatildeo com as virtudes haacute de dirigir os
atos especificamente humanos de modo que o proacuteprio homem seja plenamente livre
Plenamente livre se refere pois ao intento de que o homem que natildeo seja escravo
nem mesmo das determinaccedilotildees do livre-arbiacutetrio que com sua natureza
indeterminada pode liberar o ser humano agrave maldade
A afirmaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino ratifica ldquoque a virtude eacute o bom uso do livre
arbiacutetrio a saber porque a virtude se ordena a isso como o ao seu proacuteprio ato proacuteprio
pois o ato virtuoso nada mais eacute que o bom uso do livre-arbiacutetriordquo (AQUINO Tomaacutes de
S Th I-II q 55 a 1)104 Como se viu em outra seccedilatildeo desta pesquisa livre-arbiacutetrio natildeo
significa necessariamente a liberdade Daiacute a afirmaccedilatildeo de Tomaacutes ao relacionar virtude
a um ldquobom usordquo do livre arbiacutetrio A partir da afirmaccedilatildeo do autor pode-se afirmar por
um lado que as virtudes satildeo haacutebitos que auxiliam a vivecircncia pessoal da liberdade
por outro o aprofundamento da ideia de que a eacutetica tomista natildeo eacute uma simples
reduccedilatildeo das accedilotildees agrave racionalidade pura ou exclusivamente na vontade Esta
conclusatildeo tambeacutem eacute ratificada por Juvenal Savian Filho quando afirma que
103Sobre a fundamentaccedilatildeo da eacutetica tomista na noccedilatildeo de liberdade conferir o artigo de SAVIAN FILHO
2008 p 177-184 104 ldquoDicendum quod bonus usus liberi arbitrii dicitur esse virtus secundum eandem rationem scilicet est
id ad quod ordinatur virtus sicut ad proprium actum Nihil est enim aliud actus virtutis quam bonus usus liberi arbitriirdquo
113
Uma accedilatildeo [segundo o pensamento tomista] nunca eacute fundada num mero raciociacutenio nem num mero desejo Razatildeo e vontade mostram-se entrelaccediladas na accedilatildeo moral e Tomaacutes ainda que decirc prerrogativa agrave razatildeo prefere apontar para tal entrelaccedilamento ou enovelamento como dissemos acima (SAVIAN FILHO 2008 p 181)
A partir da afirmaccedilatildeo de Juvenal Savian Filho compreende-se que o
posicionamento de Santo Tomaacutes em relaccedilatildeo agraves accedilotildees natildeo negligencia o modo como
o ser humano eacute constituiacutedo A constituiccedilatildeo corporal e aniacutemica do homem deixa patente
que seria um reducionismo negligenciar da relaccedilatildeo interna que a razatildeo e a vontade
possuem Esta relaccedilatildeo seraacute pensada a seguir
53136 As virtudes eacuteticas e a razatildeo
Segundo Giuseppe Abbaacute a outra inovaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino em relaccedilatildeo ao
conceito aristoteacutelico de virtude refere-se a relaccedilatildeo entre as virtudes eacuteticas e a razatildeo
Para ele Aristoacuteteles e Tomaacutes reconhecem que as virtudes recebem da razatildeo
enquanto ato prudencial a determinaccedilatildeo do justo meio entretanto Tomaacutes de Aquino
acrescenta que tanto a prudecircncia quanto as outras virtudes eacuteticas recebem da razatildeo
a concepccedilatildeo e a prescriccedilatildeo dos fins virtuosos gerais da vida boa e certos tipos de
accedilotildees absolutamente requeridas ou excluiacutedas por tais fins
Ora ao fim devido o homem se dispotildee convenientemente pela virtude que aperfeiccediloa a parte apetitiva da alma cujo objeto eacute o fim Quanto aos meios adequados ao fim importa que o homem esteja diretamente disposto pelo haacutebito da razatildeo porque aconselhar e escolher que satildeo accedilotildees relacionadas como os meios satildeo atos da razatildeo (ABBAacute 2008)
A partir da afirmaccedilatildeo apresentada eacute possiacutevel perguntar de onde a razatildeo retira
os meios adequados ao fim Ora se o fim uacuteltimo da vida humana eacute Deus nele
tambeacutem deve estar a razatildeo e o fundamento da lei eterna que dispotildee os meios mais
adequados ao fim E eacute dessa lei eterna que proveacutem a ideia de que a razatildeo humana
nela participa e como tal eacute atraveacutes das virtudes e natildeo dos preceitos da lei que a lei
eterna alcanccedila os atos individuais e os torna perfeitos
Segundo Eacutetienne Gilson o caraacuteter propriamente humano eacute garantido pela
razatildeo assim a virtude e o bem moral como que se harmonizam agrave nossa natureza
Contrariamente o mal moral o pecado e o viacutecio de que o pecado decorre soacute podem
ser concebidos como faltas de racionalidade no ato ou no costume (cf GILSON 2006
p 398)
114
53137 A relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo tomista de pessoa
Existe uma relaccedilatildeo entre as virtudes e a individualidade Embora as virtudes se
encontrem no ser humano em seu germe a natureza humana comporta natildeo apenas
as virtualidades especiacuteficas e comuns a todos os homens Com efeito as virtudes soacute
existem individualizadas num ente concreto e singular Esta convicccedilatildeo de Santo
Tomaacutes eacute o que fundamenta a ideia de que cada pessoa possui uma aptidatildeo especiacutefica
e toda particular tanto para o saber quanto para as virtudes
Seja de um modo ou de outro a virtude eacute natural no homem incoativamente Segundo a natureza especiacutefica enquanto na razatildeo do homem estatildeo presentes naturalmente certos princiacutepios naturalmente conhecidos tanto na ordem do saber quanto na ordem da accedilatildeo princiacutepios que satildeo sementes das virtudes intelectuais e das virtudes morais e enquanto estaacute presente na vontade um apetite natural do bem conforme a razatildeo Por outro lado segundo a natureza individual enquanto uns satildeo pela disposiccedilatildeo de seu corpo mais ou menos dispostos a algumas virtudes e isso porque certas potecircncias sensitivas satildeo atos de algumas partes do corpo e a disposiccedilatildeo deles favorece ou dificulta os atos dessas potecircncias e por consequecircncia as potecircncias racionais as quais as faculdades sensitivas obedecem Assim eacute que uma pessoa tem aptidatildeo natural para a ciecircncia outra para a fortaleza e outra para a temperanccedila E dessa forma tanto as virtudes intelectuais quanto as morais existem em noacutes naturalmente como que num iniacutecio de aptidatildeo Natildeo pois de maneira consumada porque a natureza estaacute determinada a uma soacute coisa e a consumaccedilatildeo dessas virtudes natildeo se realiza por um soacute tipo de accedilatildeo mas segundo formas diversas segundo as vaacuterias mateacuterias sobre que versam as virtudes e segundo as diferenccedilas circunstanciais (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 63 a2)105
Tomaacutes de Aquino compreende que os princiacutepios do conhecimento e da accedilatildeo
estatildeo presentes no homem na forma de semente Ou seja como partiacutecipe de uma
105 ldquoUtroque autem modo virtus est homini naturalis secundum quandam inchoationem Secundum
quidem naturam speciei inquantum in ratione hominis insunt naturaliter quaedam principia naturaliter coacutegnita tam scibilium quam agendorum quae sunt quaedam seminalia intellectualium virtutum et moralium et inquantum in voluntate inest quidam naturalis appetitus boni quod est secundum rationem Secundum vero naturam individui inquantum ex corporis dispositione aliqui sunt dispositi vel melius vel peius ad quasdam virtutes prout scilicet vires quaedam sensitivae actus sunt quarundam partium corporis ex quarum dispositione adiuvantur vel impediuntur huismodi vires in suis actibus et per consequens vires deserviunt Et secundum hoc unus homo habet naturalem aptitudinem ad scientiam alius ad fotitudinem alius ad temperantiam Et his modis tam virtutes intellectuales quam morales secundum quandam aptitudinis inchoationem sunt in nobis a natura ndash Non autem consummatio earum Quia natura determinatur ad unum consummatio autem huiusmodi vitutum non est secundum unum modum actionis sed diversimode sedundum diversas mateacuterias in quibus virtutes operantur et sedundum diversas circumstantiasrdquo
115
essecircncia que garante esta aptidatildeo pode-se afirmar que o ser humano consolida sua
vida de saber e de agir no interior de sua personalidade atraveacutes da vida virtuosa e na
exterioridade da vida poliacutetica entendida aqui como expressatildeo da vivecircncia social do
ser humano
Se como foi dito os princiacutepios do conhecimento e do agir estatildeo presentes no
homem na forma de sementes eacute por meio da natureza individual que os seres
humanos atualizam essas potecircncias e por conseguinte distinguem-se no
aprendizado e no exerciacutecio efetivo das virtudes Assim eacute possiacutevel afirmar que embora
as virtudes se relacionem entre si o modo como cada indiviacuteduo atualiza suas
potecircncias eacute muito particular Daiacute porque Tomaacutes de Aquino afirmar que uma pessoa
tem aptidatildeo natural para a ciecircncia outra para a fortaleza e outra para a temperanccedila
(cf AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 63 a2)
Tomaacutes de Aquino ainda revela uma profunda consciecircncia acerca da
consumaccedilatildeo das virtudes Ao afirmar que as virtudes intelectuais e morais estatildeo no
homem como aptidatildeo e que a sua consumaccedilatildeo natildeo se realiza por um soacute tipo de accedilatildeo
e sob diversas circunstacircncias o autor sinaliza que diversas formas de vivecircncia ou de
praacuteticas satildeo capazes de atualizar as mesmas virtudes Assim natildeo se precisa acentuar
a necessidade de as pessoas viverem da mesma maneira para serem portadoras das
mesmas virtudes Eacute possiacutevel pois afirmar que pertence a Tomaacutes de Aquino o meacuterito
de compreender que em sua consumaccedilatildeo ou atualizaccedilatildeo as virtudes se aplicam de
maneiras diferentes em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que as praticam Estatildeo na base dessas
suas compreensotildees tanto o aprofundamento que Tomaacutes realizou da noccedilatildeo de
indiviacuteduo quanto o da noccedilatildeo de pessoa Como se sabe pela evoluccedilatildeo histoacuterica do
conceito de pessoa natildeo esteve entre as preocupaccedilotildees mais relevantes de Aristoacuteteles
o problema da individuaccedilatildeo aleacutem disso somente com Boeacutecio pessoa passa a
significar este mais particular no gecircnero humano Assim Tomaacutes de Aquino conclui
que ldquoas condiccedilotildees individuais de cada pessoa tambeacutem proporciona maior ou menos
proximidade agrave virtude entendida como meiordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q66 a1)
532 A eacutetica antiga assunccedilatildeo compatibilizaccedilatildeo e superaccedilatildeo
A ideia de liberdade em Tomaacutes de Aquino se constitui como princiacutepio que guia
o problema tomista da Beatitude e do Fim uacuteltimo do homem Aristoacuteteles seguindo a
116
articulaccedilatildeo da Eacutetica Antiga tem a Eudaimonia como ideia central da vida moral
Tomando esta ideia sob a acepccedilatildeo de Beatitude Tomaacutes de Aquino ultrapassa a ideia
aristoteacutelica primitiva de Eudaimonia rompendo assim com o cosmocentrismo da
Eacutetica Antiga assentado na moral aristoteacutelica e no neoplatonismo
Tomaacutes de Aquino empreende em relaccedilatildeo agrave Eacutetica das Virtudes um esforccedilo de
integraccedilatildeo da moral antiga ao personalismo cristatildeo Santo Tomaacutes busca manter um
equiliacutebrio entre a consistecircncia de uma natureza humana essencial da eacutetica antiga e
o homem histoacuterico peregrino do teocentrismo cristatildeo Eacute possiacutevel afirmar que a
questatildeo da liberdade humana estaacute situada entre a posiccedilatildeo teocecircntrica e a beatitude
A ideia cristatilde de que a beatitude soacute se realiza em sua plenitude com a visatildeo beatiacutefica
da divina essecircncia eacute mais um contributo singular agrave Eacutetica das Virtudes
O cosmocentrismo da eacutetica de Aristoacuteteles repousa sobre uma noccedilatildeo de
natureza que compreende que a tendecircncia para a Eudaimonia eacute fruto de ldquoum princiacutepio
interno de movimento dos seres que lhes confere sua consistecircncia proacutepria num
universo ordenado segundo os ciacuterculos ascendentes das naturezas ou essecircnciasrdquo
(LIMA VAZ 2002 p 39) Por sua vez do cosmocentrismo de origem neoplatocircnica o
pensamento cristatildeo importou a ideia de processatildeo e retorno dos seres com relaccedilatildeo
ao seu princiacutepio Esta ideia tornou-se posteriormente o esquema mais baacutesico da
ciecircncia teoloacutegica que compreende tudo como vindo de Deus e a ele retornando Deus
eacute portanto o ldquoArdquo enquanto tudo dele procede e o ldquoΩrdquo enquanto tudo para ele
retorna
A Eudaimonia eacute sem duacutevida de valor fundamental na eacutetica aristoteacutelica Ela estaacute
em consonacircncia um esquema cosmocecircntrico presente no pensamento de Aristoacuteteles
Na Poliacutetica por exemplo ser escravo ou ser livre eacute obra da natureza O recorte tomista
da Eudaimonia apresentado como Beatitude eacute justamente uma transgressatildeo da
ordem da coacutesmica possui um caraacuteter espiritual A visatildeo beatiacutefica transcende a ordem
da natureza seja no homem seja porque a proacutepria visatildeo eacute compreendida enquanto
uniatildeo agravequele que eacute o princiacutepio e termo da ordem natural embora natildeo fazendo parte
dela
Segundo Lima Vaz um dos motivos de o cosmocentrismo antigo se
compatibilizar ao pensamento cristatildeo deve-se ao caraacuteter teoloacutegico
Eacute preciso no entanto acentuar que o cosmocentrismo antigo eacute de natureza teoloacutegica e foi como tal que entrou em confronto com o
117
teocentrismo cristatildeo Com efeito o cosmos como totalidade perfeita tem como predicado fundamental a divindade Eacute o theion por excelecircncia Sendo assim sua contemplaccedilatildeo assume necessariamente a forma de uma teologia De resto a teologia cristatilde constitui-se em grande parte utilizando as estruturas conceptuais (sic) dessa teologia coacutesmica embora criticando-a nas suas expressotildees panteiacutestas (LIMA VAZ 2002 p 42)
No estudo do Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio Carlos Arthur
mostra como Tomaacutes de Aquino aponta exatamente a similitude entre o objeto da
Teologia e o objeto da Filosofia Primeira ou seja tanto a Teologia quando a
Metafiacutesica ou Filosofia Primeira compartilham um objeto semelhante106 Esta seria
pois a natureza teoloacutegica do cosmocentrismo antigo Ora a eacutetica teleoloacutegica que
aponta para o fim uacuteltimo do homem assume uma perspectiva finalista ao modo de
uma causa final a medida em que a eudaimonia se constitui na contemplaccedilatildeo do
cosmos divino e no conhecimento do seu princiacutepio ordenador
Seguindo a ideia da Reconciliaccedilatildeo entre o Pensamento Cristatildeo e o
Aristotelismo ver-se-aacute que aleacutem de assumir a influecircncia aristoteacutelica acerca do fim
uacuteltimo do homem Tomaacutes de Aquino faz do alcance ao fim uacuteltimo natildeo apenas uma
condiccedilatildeo de um movimento interno natural mas tambeacutem um ato acessiacutevel ao homem
atraveacutes de um ato da inteligecircncia O alcance e a compreensatildeo do fim uacuteltimo pelo
homem eacute assim o elemento de assunccedilatildeo e superaccedilatildeo do esquema aristoteacutelico da
Eacutetica das Virtudes por Santo Tomaacutes natildeo porque a espiritualidade da inteligecircncia seja
o diferencial mas pelo objeto alcanccedilado por ela Deus eacute o alcanccedilado na beatitude
cristatilde e como tal ele estaacute para aleacutem da ordem natural
Eacute possiacutevel afirmar que a eacutetica de Aristoacuteteles como tambeacutem a sua poliacutetica
constituiu-se como forma de manter uma coerecircncia entre a ordem do cosmos e os
atos humanos Especificamente a teoria aristoteacutelica das accedilotildees tenta compatibilizar o
desafio de desenvolver uma teoria causal das accedilotildees que compatibilizem a ordem da
natureza e a responsabilidade do agente Sobre a causalidade das accedilotildees em
Aristoacuteteles Carlo Natali afirma ldquoa causalidade aristoteacutelica individua uma conexatildeo real
existente no mundordquo (NATALI 2010 p 319)
106 NASCIMENTO Carlos Arthur R do Introduccedilatildeo ao Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio
questotildees 5 e 6 In TOMAS DE AQUINO Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio questotildees 5 e 6 Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Editora da UNESP 1999 p 17
118
A existecircncia de uma conexatildeo real no mundo significa que a teoria aristoteacutelica
dos atos e por conseguinte a eacutetica aristoteacutelica possuem um caraacuteter natural ou
cosmocecircntrico Qual a insistecircncia na distinccedilatildeo entre o caraacuteter cosmocecircntrico da eacutetica
aristoteacutelica e a eacutetica cristatilde ldquoancoradardquo na ideia de liberdade A credibilidade da ideia
de liberdade mesmo com os questionamentos posteriores dada pelos filoacutesofos
modernos ratifica a sequecircncia de contribuiccedilotildees oferecidas pelo pensamento cristatildeo agrave
Eacutetica das Virtudes e agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica
Henrique de Lima Vaz afirma que ldquoeacute um fato que a concepccedilatildeo da liberdade e
da beatitude como fim uacuteltimo do homem em Santo Tomaacutes edificada com materiais
aristoteacutelicos e neoplatocircnicos natildeo pretende atenuar mas ao contraacuterio acentuar o rigor
do teocentrismo cristatildeordquo (VAZ 2002 p 36) Aquilo que se entende aqui por superaccedilatildeo
do cosmocentrismo aristoteacutelico natildeo comporta elementos valorativos no sentido de
entender superaccedilatildeo como melhor ou pior A partir de algumas seccedilotildees anteriores pode-
se mostrar como Tomaacutes de Aquino conduziu esta tarefa
Tomaacutes de Aquino descentrou a teoria aristoteacutelica das accedilotildees quando encontrou
um modo de inserir uma parte moral na teologia sem no entanto perder o
foco da centralidade de Deus como sujeito (tema) fundamental da ciecircncia teoloacutegica
Segundo verificou-se como a moral tomista se encontrou profundamente
harmonizada com a ideia de liberdade distinguindo-a inclusive do livre-arbiacutetrio em sua
teoria dos atos humanos A ideia de liberdade foi no pensamento cristatildeo uma das
conquistas mais paradigmaacuteticas e problemaacuteticas deixadas para a Tradiccedilatildeo Filosoacutefica
Pode-se afirmar ainda que o problema da liberdade em Tomaacutes de Aquino se
encontra centralizado entre sua posiccedilatildeo teocecircntrica jaacute exposta no modo como o autor
encontrou um lugar para a moral sem ferir a unidade da ciecircncia teoloacutegica e a noccedilatildeo
de Beatitude A partir do pensamento de Tomaacutes de Aquino sobre esta questatildeo
compreende-se que para ele natildeo eacute possiacutevel ser feliz sem ser livre assim como natildeo
eacute livre aquele cuja felicidade se resume a uma perspectiva transitoacuteria do mundo das
criaturas sensiacuteveis
119
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A questatildeo da fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes se constituiu como objeto
de estudo desta pesquisa O problema que orientou as leituras e reflexotildees entatildeo
desenvolvidas foi de que maneira o pensamento cristatildeo tomista pode deixar uma
heranccedila na fundamentaccedilatildeo de desenvolvimento desta proposta eacutetica A tese aqui
desenvolvida como resposta agrave problemaacutetica foi a de que uma eacutetica das virtudes
proposta ao pensamento contemporacircneo natildeo deveria prescindir dos elementos
forjados no seio da interpretaccedilatildeo cristatilde tomista desta eacutetica
O desenvolvimento desta tarefa foi realizado atraveacutes da terminologia
denominada Reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e o pensamento cristatildeo tomista Esta
expressatildeo e o intento de mostrar como seria possiacutevel pensaacute-la filosoficamente
constituiu-se na tarefa que comprovou a tese de que o pensamento cristatildeo tem
contribuiccedilotildees relevantes agrave fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes A motivaccedilatildeo pelo
desenvolvimento do tema surgiu do pensamento de MacIntyre a partir de sua
indicaccedilatildeo presente no texto Justiccedila de Quem Qual Racionalidade em que o autor
afirma ter errado em sua interpretaccedilatildeo do pensamento de Santo Tomaacutes sobre a
unidade das virtudes e que seria necessaacuterio investigar o modo como Tomaacutes de Aquino
realizou o que o proacuteprio MacIntyre intitulou de Reconciliaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo Biacuteblica
e o Aristotelismo
Preferiu-se utilizar a expressatildeo Reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo
tomista e o aristotelismo A tradiccedilatildeo biacuteblica e suas diversas correntes de interpretaccedilatildeo
satildeo muito vastas Por isto a especificaccedilatildeo pensamento cristatildeo tomista traduziu de
modo delimitado os limites deste trabalho Jaacute o aristotelismo foi a outra ldquofonterdquo que
incitou e influenciou o pensamento de Tomaacutes de Aquino a se constituir como
pensamento epocal nas palavras de Hegel
A expressatildeo vinda de MacIntyre natildeo resultou numa tentativa de preenchimento
de uma lacuna em seu pensamento Esta pesquisa natildeo teve a ilusatildeo de ser a
continuadora da tarefa que MacIntyre reconheceu como erro de suas anaacutelises
Entretanto o diagnoacutestico feito acerca da fragmentaccedilatildeo do discurso moral
contemporacircneo a explicaccedilatildeo da origem da fragmentaccedilatildeo nas teses modernas sobre
120
a moralidade e a indicaccedilatildeo de que o pensamento cristatildeo tomista e o aristotelismo
poderiam ser relacionados foram o suficiente para motivar o seguimento de um
caminho singular de leitura e desenvolvimento das ideias de Tomaacutes de Aquino em
relaccedilatildeo aos fundamentos da Eacutetica das Virtudes
No itineraacuterio da pesquisa tomou-se o seguinte caminho na primeira parte o
modo como esta corrente do pensamento eacutetico retorna ao debate contemporacircneo e
quais dos seus fundamentos se pode compreender atraveacutes das ideias de Rosalind
Hursthouse e Gertrude Anscombe Expocircs-se tambeacutem os elementos de criacutetica agraves
morais deontoloacutegica e utilitarista Ao final se atingiu o horizonte filosoacutefico do qual o
pensamento de MacIntyre eacute devedor
A segunda parte apresentou o pensamento do MacIntyre em Depois da Virtude
com a exposiccedilatildeo do que ele chamou desacordo do discurso contemporacircneo sobre a
moralidade sua anaacutelise sobre a teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade e
o modo como elas influenciaram o desacordo contemporacircneo e o desenvolvimento de
sua teoria moral apresentada na terceira parte desta pesquisa
A quarta parte foi o desenvolvimento do pensamento de Tomaacutes de Aquino
intitulada Reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo tomista e o aristotelismo Nesta
parte tomou-se o pensamento de Aristoacuteteles sobre a teoria dos atos chegando a
compreensatildeo de que esta teoria eacute anterior e necessaacuteria a uma Eacutetica das Virtudes Em
seguida passou-se agrave anaacutelise reflexatildeo e aprofundamento das ideias relativas agrave
psicologia filosoacutefica tomista e os temas fundamentais ligados a Eacutetica das Virtudes
Da investigaccedilatildeo realizada cabe agora apresentar perspectivas de alcance
filosoacutefico e hermenecircutico acerca da Eacutetica das Virtudes dos autores aqui estudados e
da contribuiccedilatildeo do pensamento cristatildeo tomista em torno deste objeto
A Eacutetica das Virtudes eacute uma via possiacutevel de experiecircncia eacutetica agrave
contemporaneidade entre as morais deontoloacutegica e utilitarista A eacutetica do dever
pressupotildee o desenvolvimento de uma racionalidade madura para ser legisladora de
si e que seja imparcial para conter as inclinaccedilotildees e acima delas conformar as accedilotildees
agrave norma O utilitarismo se vale da moral da maximizaccedilatildeo do bem-estar de algueacutem e a
uma valoraccedilatildeo das accedilotildees em virtude das consequecircncias O produto das duas
expressotildees eacuteticas dominantes da contemporaneidade eacute uma certa convicccedilatildeo de que
por um lado estas propostas mantecircm sua atenccedilatildeo primordialmente na norma e por
outro as reflexotildees em torno do agente que pratica a norma ficaram negligenciadas
121
Assim como a Eacutetica das Virtudes tem sua atenccedilatildeo primordial agravequele que age eacute
possiacutevel garanti-la agrave qualidade de uma via possiacutevel dentro do debate eacutetico
contemporacircneo
Uma consequecircncia possiacutevel decorrente da coexistecircncia das trecircs correntes
eacuteticas supracitadas eacute a de que tem se firmado a impossibilidade de uma determinaccedilatildeo
da accedilatildeo de forma monista conforme uma corrente eacutetica em particular Este eacute um
achado problemaacutetico agraves teorias uma vez que cada uma delas ao se desenvolver
justifica-se como necessaacuteria Firma-se aos poucos a consolidaccedilatildeo de um certo
emotivismo Este emotivismo delineado por MacIntyre em Depois da Virtude tem por
tese fundante a ideia de que as accedilotildees satildeo expressotildees dos proacuteprios sentimentos dos
agentes Ou seja natildeo se determina a accedilatildeo de modo uniacutevoco
Foi possiacutevel compreender influecircncias filosoacuteficas ao pensamento do MacIntyre
na exposiccedilatildeo dos fundamentos da Eacutetica das Virtudes e na apresentaccedilatildeo das criacuteticas
agrave deontologia e ao utilitarismo atraveacutes dos pensamentos de Rosalind Hursthouse e
Gertrude Anscombe Em A filosofia moral moderna de Gertrude Anscombe
explicitou-se a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica no tratamento das questotildees
relativas agrave virtude O alcance desta pertinecircncia levou agrave compreensatildeo de que uma
psicologia filosoacutefica eacute necessaacuteria e anterior a uma teoria das virtudes Esta afirmaccedilatildeo
serviu entatildeo de fio condutor a anaacutelise da teoria dos atos em Aristoacuteteles e
nos conceitos de fundamentaccedilatildeo da Eacutetica de Tomaacutes de Aquino
Foi possiacutevel compreender o movimento interno de Depois das Virtudes Em
primeiro lugar MacIntyre apresenta elementos que comprovariam a existecircncia de um
desacordo moral em seguida o autor mostra como o desacordo resulta dos
empreendimentos realizados pela filosofia moral moderna mencionando as principais
posiccedilotildees de Kant Hume e Kierkegaard com a exposiccedilatildeo das divergecircncias entre as
teses MacIntyre mostra como o discurso moral perdeu a sua inteligibilidade e aiacute
propotildee uma teoria moral que seria capaz de garantir o retorno agrave unidade de um
discurso moral
Como MacIntyre postula um retorno de uma eacutetica das virtudes e como a
fundamentaccedilatildeo deste discurso estaacute primitivamente em Aristoacuteteles a pesquisa
adentrou num primeiro momento agrave teoria aristoteacutelica dos atos uma vez que as
virtudes dependem dela como anterior No segundo momento a investigaccedilatildeo seguiu
na anaacutelise dos conceitos tomistas que eram tomados de Aristoacuteteles e que foram se
122
compatibilizando agraves exigecircncias das circunstacircncias histoacuterico-cultural-filosoacuteficas de
Tomaacutes de Aquino Esta anaacutelise explicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do pensamento de Tomaacutes
de Aquino foram traduzidas aqui com o que se denominou Reconciliaccedilatildeo entre
pensamento cristatildeo e o aristotelismo Mostrar a tomada do pensamento eacutetico de
Aristoacuteteles e as contribuiccedilotildees do pensamento tomista foram tarefas fundamentais
desta pesquisa
Encontrou-se a compreensatildeo de que a eacutetica de Aristoacuteteles e de Santo Tomaacutes
tem mais a ver com o que faz a vida ser vivida do que com a obediecircncia agrave lei moral
O fato de ldquoter mais a verrdquo com a vida do agente natildeo implica num ldquonatildeo tem nada a verrdquo
com a norma Implica que a norma tem valor enquanto for capaz te ter sentido a um
agente que frequentemente a pratica e que tende a fazecirc-lo mais naturalmente A
questatildeo do desenvolvimento das virtudes brota de condiccedilotildees fundamentais do proacuteprio
ser do homem e por isso a virtude eacute a expressatildeo melhor do proacuteprio homem
e contribui na sua realizaccedilatildeo
Pela teoria dos atos e a consolidaccedilatildeo das virtudes pelos haacutebitos alcanccedila-se a
ideia de que a accedilatildeo virtuosa natildeo resulta exclusivamente da capacidade intelectual ela
necessita de uma praacutetica habitual constante Esta caracteriacutestica parece mais coerente
em relaccedilatildeo agrave constituiccedilatildeo aristoteacutelico-tomista do homem o ser uno em cuja existecircncia
conta com a sua dimensatildeo corpoacuterea e o modo como por vezes ela determina o seu
agir A praacutetica das virtudes respeita por assim dizer a estrutura da uniatildeo corpo e alma
do ser humano
Num contexto de Eacutetica das Virtudes a norma natildeo eacute exclusivamente um
conjunto de regras exteriores aos quais se deve obedecer mas modos de accedilatildeo que
internalizados pelo haacutebito proporcionam o desenvolvimento das virtudes uma
estabilidade nas vivecircncias cotidianas para conviver com as dores inevitaacuteveis da vida
pessoal e em comum Ao mesmo tempo as virtudes potildeem os seres humanos numa
corrente de interdependecircncia na qual o bem de um exige a contrapartida do bem dos
outros Isto se pode confirmar com a referecircncia ao conceito de justiccedila
O conceito de justiccedila corresponde agrave compreensatildeo de que natildeo haacute beatitude
sem a ideia de que sua busca eacute de caraacuteter comunitaacuterio A justiccedila tanto em Aristoacuteteles
quando em Tomaacutes de Aquino eacute a maior das virtudes porque se refere agrave relaccedilatildeo do
homem com os outros Eacute aceitaacutevel uma compreensatildeo bilateral da justiccedila pois o bem
que se quer para si deve-se tambeacutem se querer acessiacutevel aos outros
123
O aprofundamento dos elementos da psicologia filosoacutefica de Santo Tomaacutes se
constituiu numa tarefa imprescindiacutevel Os conceitos de sindeacuterese consciecircncia
vontade e intenccedilatildeo puderam ser apresentados como um contributo bem especiacutefico agrave
fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes
A sindeacuterese enquanto haacutebito natural especial relaciona-se aos princiacutepios
praacuteticos da accedilatildeo de modo a incitar o bem e condenar o mal Intuiccedilatildeo dos primeiros
princiacutepios da moral Jaacute a consciecircncia se encarrega de estabelecer o julgamento
acerca dos atos realizados pressupondo natildeo apenas a sindeacuterese mas todo o
conhecimento moral que se apoia sobre ela Tomaacutes de Aquino acrescenta que para
desenvolver estas funccedilotildees faz-se necessaacuteria ldquouma aplicaccedilatildeo atual de nosso
conhecimento agrave nossa accedilatildeordquo
A consciecircncia segundo Santo Tomaacutes natildeo eacute pensada como um funcionamento
constante Ela atua efetivamente quando os objetos relativos agraves accedilotildees assim a
solicitam Tal compreensatildeo do papel da consciecircncia desfaz o mito de que a concepccedilatildeo
do homem como animal racional implicaria necessariamente num
funcionamento constante da consciecircncia
As consideraccedilotildees sobre a vontade fundamentam a ideia de liberdade num
sentido mais baacutesico poreacutem necessaacuterio que eacute o conceito de livre arbiacutetrio e na
independecircncia de qualquer forma de determinaccedilatildeo inclusive as determinaccedilotildees do
proacuteprio livre arbiacutetrio O livre-arbiacutetrio eacute a fonte mais primordial de exerciacutecio da vontade
mas natildeo pode ser considerada a liberdade mesma Jaacute a liberdade eacute uma orientaccedilatildeo
racional ao fim No conceito da liberdade compreende-se porque natildeo eacute escravo
aquele que foi obrigado a fazer pois ser obrigado a fazer natildeo implica que houve o
movimento interno do querer fazer
Santo Tomaacutes aprofunda o conceito de vontade que seja naturalmente seja em
vista de fim ela permanece atuante A necessidade de fim natildeo repugna agrave vontade
nesse sentido compreende-se o salto posterior na relaccedilatildeo entre liberdade e Beatitude
promovido pelo filoacutesofo enquanto a eudaimonia aristoteacutelica eacute a contemplaccedilatildeo do
divino natural em Tomaacutes de Aquino Visio beatifica eacute fruto de um rompimento com a
concepccedilatildeo cosmocecircntrica da Eacutetica Antiga Desse modo Tomaacutes de Aquino
compatibiliza a ideia de liberdade com a ideia de fim Analogicamente assim como o
intelecto adere aos primeiros princiacutepios a vontade deve pois aderir ao fim uacuteltimo que
eacute a bem-aventuranccedila uma vez que a bem-aventuranccedila ou a felicidade eacute almejada
124
por todos Assim sendo compreende-se que o fato de haver uma vontade natural natildeo
implica uma contradiccedilatildeo com uma vontade livre
Instigar a vontade a agir e mover-se em busca de um fim eacute funccedilatildeo da intenccedilatildeo
Ela move natildeo somente a vontade mas todas as potecircncias do ser humano em busca
de um fim Tomaacutes de Aquino desenvolve o conceito intenccedilatildeo num duplo sentido
designa por um lado a intenccedilatildeo voluntaacuteria e por outro intenccedilatildeo aplicada agrave definiccedilatildeo
enquanto se exprime a intenccedilatildeo da verdade a intenccedilatildeo de bem Ela eacute o actus
voluntatis em busca dos fins quer transitoacuterios quer do uacuteltimo do homem Nesse
sentido pode-se afirmar que pela intenccedilatildeo os atos voluntaacuterios tornam-se unos o que
implica posteriormente em uma unidade da vida moral
No desenvolvimento que Aristoacuteteles faz sobre os atos voluntaacuterios estaacute
presente de forma latente a ideia de intenccedilatildeo Tomaacutes de Aquino aprofunda de modo
consideraacutevel este conceito Se a intenccedilatildeo se relaciona com os fins intermediaacuterios e
em relaccedilatildeo ao fim uacuteltimo pode-se firmar a ideia que ela atua em cada um dos atos
concernentes aos meios e a escolha Ou seja a intenccedilatildeo eacute ativa em todo
desenvolvimento das accedilotildees
O aprofundamento dos conceitos da psicologia filosoacutefica tomista e o estado em
que o autor deixou estes conceitos se firmaram com muita forccedila no seio da Tradiccedilatildeo
filosoacutefica Pelo conceito de arbiacutetrio bruto e livre arbiacutetrio o Kant da Metafiacutesica dos
Costumes assume quase que com a mesma nomenclatura o formato tomista dos
termos no mesmo texto os conceitos kantianos de sentimento moral e consciecircncia
moral satildeo por demais semelhantes aos conceitos de sindeacuterese e de consciecircncia Na
proacutepria contemporaneidade o conceito de intencionalidade perpassou tanto a eacutetica
quanto a fenomenologia Estas influecircncias filosoacuteficas asseguram ao pensamento
cristatildeo lugar na Tradiccedilatildeo Jaacute os conceitos da psicologia filosoacutefica comprovam a ideia
inicial que a teoria de uma Eacutetica das virtudes sugerida ao pensamento
contemporacircneo necessita considerar os achados do pensamento cristatildeo em seu
processo de fundamentaccedilatildeo
A partir das consideraccedilotildees elencadas eacute possiacutevel confirmar uma das ideias
iniciais desta pesquisa Um breve olhar sobre o vocabulaacuterio moral contemporacircneo
permite perceber que nele haacute muito do conteuacutedo semacircntico de conceitos que foram
forjados no seio do pensamento cristatildeo
125
Cabe ainda explicitar alguns achados no pensamento de Santo Tomaacutes
passiacuteveis de serem relacionados ao pensamento de MacIntyre Esta tarefa natildeo eacute
como se afirmou acima uma listagem de erros do autor mas possibilidades de
encontro dos dois filoacutesofos
Em Depois da Virtude MacIntyre desenvolveu um novo conceito de virtude que
de certo modo reabilitasse o discurso moral Antes de falar dos elementos que
compotildee a sua teoria moral eacute possiacutevel encontrar um inconveniente a sua teoria moral
e seu conceito de virtude natildeo levam em conta uma Psicologia Filosoacutefica Eacute bem
verdade que ele afirmou os ldquoriscosrdquo da biologia metafiacutesica de Aristoacuteteles entretanto
uma das coisas que foram encontradas nesta pesquisa foi a relaccedilatildeo estreita que
existe entre as virtudes e a compreensatildeo de homem A articulaccedilatildeo do cataacutelogo das
virtudes estaacute em consonacircncia com a constituiccedilatildeo do homem e com as potecircncias que
ele necessita desenvolver em busca de seu melhor Saliente-se que MacIntyre
posteriormente em Dependent rational animals reconheceu a importacircncia de uma
psicologia filosoacutefica
O conceito macintyreano de praacuteticas se alinha ao seu meacutetodo e consiste em
encontrar manifestaccedilotildees histoacutericas que sirvam de apoio agraves suas investigaccedilotildees Seu
conceito de Praacuteticas se refere agraves formas coerentes e complexas da atividade humana
que satildeo socialmente estabelecidas e como tais ampliadores dos poderes humanos
na forma de excelecircncia e transmissores dos bens internos inerentes a essas Praacuteticas
Eacute possiacutevel em Tomaacutes de Aquino conforme demonstrado que a vivecircncia das virtudes
como atualizaccedilatildeo das potecircncias do homem se daacute sob accedilotildees diversas e sob diversas
circunstacircncias da histoacuteria Assim parece a esta pesquisa que o desenvolvimento
histoacuterico das virtudes manteacutem uma certa similitude ao conceito de praacuteticas
Na questatildeo da unidade das virtudes que foi uma questatildeo apontada pelo proacuteprio
MacIntyre como contendo um erro de sua anaacutelise viu-se que segundo Tomaacutes de
Aquino haacute uma ideia de interdependecircncia entre as virtudes A articulaccedilatildeo interna
entre as potecircncias do homem proporciona tambeacutem uma articulaccedilatildeo e tambeacutem uma
hierarquizaccedilatildeo entre as virtudes A unidade das virtudes proporciona ainda uma
consolidaccedilatildeo da unidade do caraacuteter moral de um agente Ora o conceito de unidade
das virtudes contribuiria por demais com a componente a ordem narrativa de uma
vida humana singular Eacute claro que a unidade das virtudes diz pouco ou quase nada agrave
noccedilatildeo de narrativa Entretanto o conceito de unidade das virtudes atinge um objetivo
126
similar ao conceito macintyreano a saber considerar cada vida humana como uma
unidade singular Tambeacutem foi verificado que natildeo apenas o conceito de unidade das
virtudes mas tambeacutem o conceito de intencionalidade no estudo dos atos humanos
foi capaz de preencher este requisito e mais ainda lanccedilou luzes agrave ideia de
consciecircncia aprofundada com propriedade pelo pensamento cristatildeo e assumido pelo
pensamento moderno praticamente na forma como os medievais deixaram
127
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ZINGANO Marco (org) Sobre a Eacutetica Nicomaqueia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Odysseus Editora 2010
NALFRAN MODESTO BENVINDA
ALASDAIR MACINTYRE E TOMAacuteS DE AQUINO
a questatildeo da ldquoEacutetica das Virtudesrdquo e sua interpretaccedilatildeo pelo
pensamento cristatildeo
Tese de Doutorado aprovada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da UFPB-UFPE-UFRN
Aacuterea de pesquisa Filosofia Praacutetica
Aprovada em 16 08 2017
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________ Prof Dr Marcos Roberto Nunes Costa (Orientador)
Universidade Federal de Pernambuco
_________________________________________________ Prof Dr Joseacute Francisco Preto Meirinhos (1ordm Examinador)
Universidade do Porto
_______________________________________________ Prof Dr Claudio Pedrosa Nunes (2ordm Examinador)
Universidade Federal de Campina Grande
________________________________________________ Prof Dr Edmilson Alves de Azevedo (3ordm Examinador)
Universidade Federal da Paraiacuteba
________________________________________________________ Prof Dr Gilfranco Lucena dos Santos (4ordm Examinador)
Universidade Federal da Paraiacuteba
A Ana Luiacutesa Rafael Joseacute e Adriana
AGRADECIMENTOS
Do fundo do meu coraccedilatildeo agradeccedilo
A Deus pelo dom da feacute da existecircncia e da capacidade de pensar
A Adriana Rafael Joseacute e Ana Luiacutesa que suportaram com muito amor o
processo doloroso e fecundo de construccedilatildeo desta pesquisa
Aos meus pais Francisco e Nataacutelia a quem sou grato pelo dom da vida e pela
educaccedilatildeo que recebi Aos meus irmatildeos Junior e Kaline por serem quem satildeo
Cunhados Marques Alessandra Luciana e Paulinho Meus sobrinhos Ceciacutelia
Viniacutecios Ana Caroline Ana Beatriz e Paulinho
Agrave minha sogra Dona Carminha meu sogro Modestino de Arruda Fontes (in
memoriam) e agrave famiacutelia Fenelon
Ao meu orientador Marcos Roberto Nunes Costa pela confianccedila disposiccedilatildeo
incentivo em fazer-me crescer na difiacutecil tarefa do pensar e do produzir em Filosofia
Agrave Profa Patriacutecia Lira revisora do texto e dos erros que meus olhos jaacute natildeo
enxergavam
Aos membros da banca professores Edmilson Azevedo Claacuteudio Pedrosa
Nunes Joseacute Francisco Preto Meirinhos Gilfranco Lucena e Marcos Costa
A todo o corpo docente do Programa de Doutorado Integrado em Filosofia das
Universidades Federal de Pernambuco Federal da Paraiacuteba e Federal do Rio Grande
do Norte na pessoa do seu coordenador Geral Prof Dr Alfredo Moraes
Ao povo brasileiro que atraveacutes da CAPES financiou esta pesquisa por 2 anos
A Miguel Antocircnio ex-coordenador Geral do Programa pelas contribuiccedilotildees que
pudemos Aos discentes do Programa pela confianccedila que me concederam em
representar-lhes
Aos amigos de minha turma de Doutorado Gleidmar Graciele Coutinho Marta
Fernandes e Faacutebio ldquoque nos tornamos amigos ao calor dos estudosrdquo
A meu amigo irmatildeo pessoa por quem tenho grande amor e admiraccedilatildeo
Gilfranco Lucena
Agrave gestatildeo professores e funcionaacuterios e alunos da Faculdade Satildeo Miguel
especialmente do Curso de Licenciatura em Letras onde na docecircncia aprofundei o
meu conhecimento na docecircncia da liacutengua latina
Aos colegas de trabalho alunos e alunas da UNEAL - Universidade Estadual
de Alagoas minha nova casa
A Faacutetima Costa Marcela George e Mauriacutecio da Faculdade Filosofia Ciecircncias
e Letras de Caruaru ndash FAFICA
Aos amigos Peacutericles Gena Mazurk Ricardo Carvalho Tambeacutem a Harlen
Ricardo e Diego Marques A todos os amigos e amigas da FACOL
A todos os que a mim estiveram unidos para que eu pudesse concluir esse
trabalho
Meus sinceros agradecimentos
ldquo [] Homo habet naturaliter rationem et manus quae sunt organa organorum
quia per eas homo postest sibi praeparare instrumenta infinitorum modorum et ad
infinitus effectusrdquo
ldquo [] O homem possui por natureza a razatildeo e as matildeos que satildeo os oacutergatildeos dos
oacutergatildeos porque por elas pode preparar para si uma variedade infinita de instrumentos
para infinitos efeitosrdquo (ARISTOacuteTELES apud TOMAacuteS DE AQUINO STh I q76 a5)
RESUMO
A Eacutetica das Virtudes e sua fundamentaccedilatildeo satildeo o objeto de estudo desta
pesquisa Partindo do pensamento de Alasdair Macintyre autor de Depois da Virtude
o trabalho apresenta o esforccedilo do pensamento contemporacircneo em reabilitar esta
proposta eacutetica Seguindo a orientaccedilatildeo do proacuteprio Macintyre de que seria necessaacuterio
investigar a reconciliaccedilatildeo que Tomaacutes de Aquino operou entre a tradiccedilatildeo biacuteblica e o
pensamento aristoteacutelico o texto responde agrave seguinte pergunta a Eacutetica das Virtudes
de raiz aristoteacutelica pode receber contribuiccedilotildees do pensamento cristatildeo especialmente
de natureza tomista A tese que brota como tentativa de resposta a esta questatildeo eacute a
de que o pensamento cristatildeo via Tomaacutes de Aquino oferece significativas
contribuiccedilotildees agrave fundamentaccedilatildeo desta corrente do pensamento eacutetico A pesquisa
bibliograacutefica de natureza indutiva percorre um caminho de anaacutelise e interpretaccedilatildeo
dos textos fundamentais do Macintyre Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino Na busca de
atingir sua finalidade satildeo aprofundados os temas acerca do ldquoanti-iluminismo eacuteticordquo e
a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes ao pensamento contemporacircneo Nesta parte
abordam-se as principais criacuteticas agrave ldquoeacutetica do deverrdquo e a ldquoeacutetica utilitaristardquo ou
ldquoconsequencialistardquo em seguida apresenta-se a criacutetica de Macintyre ao projeto
moderno de fundamentaccedilatildeo da eacutetica como tambeacutem a sua teoria moral fundamentada
numa Eacutetica das Virtudes por fim a partir da proacutepria indicaccedilatildeo do Macintyre de que
sua leitura do pensamento tomista foi insuficiente o texto analisa fundamentos da
Eacutetica das Virtudes em Aristoacuteteles e apresenta os conceitos do pensamento tomista
que aqui entende-se como o contributo a esta eacutetica
Palavras-chave Eacutetica Virtudes Pensamento cristatildeo
ABSTRACT
The Virtue Ethics and its fundamentals are the object of this research Starting
from Alasdair Macintyrersquos thought author of After Virtue the work presents the effort
of the contemporary thought on rehabilitating this ethical purpose According to
Macintyre own orientation that it would be necessary to investigate the reconciliation
which Thomas Aquinas operated between the biblical tradition and the aristotelian
thought the text responds to the following question can The Virtue Ethics of
aristotelian roots receive contributions from the Christian thought specially of
thomistic nature The thesis which buds as an attempt to answer this question is the
one that the Christian thought via Thomas Aquinas offers meaningful contributions to
the fundamentals of this current of ethical thoughts The bibliographical research of
inductive nature goes through a path of analysis and interpretation of Macintyrersquos
Aristotlersquos and Thomas Aquinasrsquos fundamental texts In the search for reaching its goal
themes about ldquoethical anti-enlightenmentrdquo and the relocation of Virtue Ethics to the
contemporary thought are deepened In this part the main criticisms to ldquothe ethics of
dutyrdquo and ldquothe utilitarianistrdquo or ldquoconsequentialist ethicsrdquo are approached in the following
part it is presented a critic by Macintyre to the modern fundamentals of ethics as well
as his theory of moral based on an Virtue Ethics finally from Macintyrersquos own
indication that his reading of the thomistic thought was insufficient the text analyses
the fundamentals of the Virtue Ethics in Aristotle and presents the concepts of the
thomistic thought that here is understood as a contribution to this ethics
Keywords Ethics Virtues Christian thought
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO 13
2 O ANTIILUMINISMO EacuteTICO E A EacuteTICA DAS VIRTUDES 16
21 SOBRE A RE-COLOCACcedilAtildeO DA VIRTUE ETHICS 16
211 Sobre a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica 20
212 A incoerecircncia do dever moral 25
213 Criacutetica ao utilitarismo 29
214 A diacutevida filosoacutefica de MacIntyre ao pensamento de
Gertrude Anscombe 32
3 A CRIacuteTICA DE MACINTYRE AO PROJETO MODERNO
DE FUNDAMENTACcedilAtildeO DA MORALIDADE 35
31 A ALEGORIA INICIAL DE DEPOIS DA VIRTUDE 35
32 AS TESES MODERNAS SOBRE A FUNDAMENTACcedilAtildeO
DA ORALIDADE 37
33 O FRACASSO DO PROJETO ILUMINISTA 40
331 O passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana 41
332 A incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a
noccedilatildeo de natureza humana na moral moderna 42
3321 O passado cristatildeo e o novo conceito de razatildeo 43
3322 A ciecircncia e a filosofia do seacuteculo XVII 45
3323 A incoerecircncia entre o posicionamento pela lsquofalecircnciarsquo da razatildeo
e a decisatildeo pela noccedilatildeo de natureza humana 45
3324 Sobre a mudanccedila do significado dos juiacutezos morais 47
4 O PROJETO DE DEPOIS DA VIRTUDE E A TEORIA
MORAL DE MACINTYRE 49
41 O ANTES DE DEPOIS DA VIRTUDE 49
411 Vida social e conceitos morais 50
412 Fundamentaccedilatildeo das proposiccedilotildees normativas 51
413 O emotivismo 52
42 A OBRA DEPOIS DA VIRTUDE 54
421 A natureza das virtudes tese central de Depois da Virtude 55
422 O conceito de praacuteticas 57
423 Ordem narrativa de uma vida humana singular 60
423 Tradiccedilatildeo 64
5 RECONCILIACcedilAtildeO ENTRE O PENSAMENTO CRISTAtildeO
E O ARISTOTELISMO 67
51 AS VIRTUDES E A TEORIA ARISTOTEacuteLICA DOS ATOS ndash EN III 1-8 69
511 Do voluntaacuterio e do involuntaacuterio 70
512 A escolha deliberada 72
513 A definiccedilatildeo do objeto do querer 73
52 A SIacuteNTESE TOMISTA ATOS HUMANOS E FILOSOFIA MORAL 77
521 Os atos humanos em Santo Tomaacutes de Aquino 78
522 Sindeacuterese e consciecircncia 79
523 O conceito de vontade 80
524 A relaccedilatildeo entre inteligecircncia e vontade 84
525 A liberdade do ato voluntaacuterio e a distinccedilatildeo entre liberdade e livre-
arbiacutetrio 86
526 A intenccedilatildeo 91
53 TOMISMO E EacuteTICA DAS VIRTUDES 93
531 Vida feliz e virtudes antes da siacutentese tomista 94
5311 A construccedilatildeo de uma parte moral na teologia 97
5312 A fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista 99
532 O lugar das virtudes na teologia e sua explicitaccedilatildeo 100
5321 A beatitude e o lugar das virtudes na siacutentese teoloacutegica tomista 100
5312 A concepccedilatildeo tomista de homem e as virtudes 101
5313 A explicitaccedilatildeo do conceito de virtude e a releitura tomista
da teoria das virtudes 105
53131 A perfeiccedilatildeo da potecircncia e habito operativo 105
53132 As virtudes teologais 107
53133 A virtude da justiccedila 107
53134 A unidade das virtudes e conexatildeo entre as virtudes 108
53135 O habitus e vontade livre 111
53136 As virtudes eacuteticas e a razatildeo 113
53137 A relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo tomista de pessoa 114
532 A eacutetica antiga assunccedilatildeo compatibilizaccedilatildeo e superaccedilatildeo 115
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 119
REFEREcircNCIAS 127
13
1 INTRODUCcedilAtildeO
A histoacuteria do homem em seus desdobramentos de sentidos tem sido a luta para
definir o certo e o errado enquanto conjunto de valores que orienta as accedilotildees e
possibilita o homem como singularidade e comunidade Em relaccedilatildeo a Filosofia a
preocupaccedilatildeo com a experiecircncia eacutetica eacute uma das questotildees centrais da atitude criacutetico-
reflexiva e definiu o encaminhamento dos pensadores desde os preacute-socraacuteticos ateacute a
contemporaneidade Em todos os momentos de sua histoacuteria o homem tenta
compreender as accedilotildees como decorrecircncia de valores que orientam o seu agir O
homem eacute a um soacute tempo norma e desejo de quebraacute-la Isto longe de ser uma
deficiecircncia da condiccedilatildeo humana constitui precisamente seu salto maior Salto sobre
o reino da necessidade e que possibilita o advento do reino da liberdade
O pensamento eacutetico ocidental eacute profundamente marcado pelas figuras de
Aristoacuteteles Tomaacutes de Aquino dentre outros Aristoacuteteles trabalha com a ideia de que
o estudo dos atos humanos da virtude e do bem para o homem considerado
individualmente pertence a eacutetica Esta ciecircncia enquanto ciecircncia praacutetica conduz agrave
compreensatildeo do que seja o bem supremo para o ser humano e quais atitudes o
conduzem mais adequadamente a esse fim Tomaacutes de Aquino enquanto
representante da eacutetica cristatilde assume a estrutura da eacutetica de Aristoacuteteles
estabelecendo uma reinterpretaccedilatildeo dessa moral agrave luz da moral cristatilde Assim o que
em Tomaacutes de Aquino se menciona como felicidade possui um conteuacutedo distinto
daquilo que Aristoacuteteles compreendia por este termo
O pensamento moderno promove uma virada no esquema claacutessico da eacutetica
Kant eacute por assim dizer o exemplar que traduz os anseios do pensamento moderno
em relaccedilatildeo agrave Filosofia Praacutetica O ideal de autonomia e a constituiccedilatildeo de uma moral do
dever marcam profundamente este momento da histoacuteria do pensamento Nas palavras
de Otfried Houmlffe deve-se a Kant a radicalizaccedilatildeo de uma filosofia moral que reivindica
a pretensatildeo de uma validade objetiva A origem da moralidade pode ser encontrada
no caraacuteter autolegislador do sujeito Ateacute mesmo as outras expressotildees do pensamento
eacutetico moderno corroboram com a ideia de que o fundamento das accedilotildees humanas
encontra sua fonte no sujeito
14
Como eacute comum ao pensamento contemporacircneo este eacute marcado pela criacutetica
ao pensamento moderno Desde Nietzsche ateacute Wittgenstein Habermas Hans Jonas
MacIntyre todos eles trazem consigo ressalvas ao pensamento moderno o que vai
causar grandes siacutenteses principalmente do diagnoacutestico das fragilidades do discurso
moral moderno Por outro lado parece natildeo ser mais possiacutevel encontrar uma grande
siacutentese do pensamento eacutetico De qualquer maneira seja para negar ou para propor
a eacutetica permanece como uma das questotildees filosoacuteficas mais relevantes do pensamento
contemporacircneo
Alasdair MacIntyre se insere na filosofia moral contemporacircnea Esta pesquisa
considera que a grandeza de seu pensamento reside no esforccedilo que ele fez para
efetivar uma teoria moral agrave contemporaneidade ao modo de uma eacutetica das virtudes
MacIntyre encontra sua inspiraccedilatildeo filosoacutefica no movimento moral inglecircs denomina
Virtue Ethics Gertrude Anscombe eacute uma das figuras inspiradores deste movimento e
deixa como heranccedila dois elementos fundamentais ao pensamento de MacIntyre a
saber sua criacutetica agrave moral moderna e sua opccedilatildeo pela Eacutetica das Virtudes Embora
tributaacuterio de Gertrude Anscombe a proximidade de MacIntyre com o marxismo e com
as ciecircncias sociais proporciona a ele um itineraacuterio filosoacutefico peculiar
O objetivo deste trabalho eacute tomar o pensamento de MacIntyre e sua criacutetica
efetivada agrave modernidade criacutetica esta que o leva a retomar a Eacutetica das Virtudes a partir
de Aristoacuteteles propondo para a contemporaneidade um modelo de filosofia praacutetica
centrado natildeo nas accedilotildees mas no agente No entanto conforme seu proacuteprio
testemunho a relaccedilatildeo entre o aristotelismo e o pensamento cristatildeo natildeo foi
apresentada adequadamente (cf MACINTYRE 2001) No iniacutecio de Justiccedila de Quem e
Qual racionalidade (cf MACINTYRE 2001) MacIntyre reconhece a precariedade de
sua interpretaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino em relaccedilatildeo agrave Eacutetica das Virtudes Essa
precariedade consiste em natildeo haver pensado com suficiente radicalidade a
reconciliaccedilatildeo que Tomaacutes de Aquino operou entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica
Este trabalho parte deste ponto seu objetivo eacute dar continuidade ao que MacIntyre
deixou inacabado no que se refere ao tratamento que Tomaacutes de Aquino efetivou entre
o aristotelismo e o pensamento cristatildeo Assim onde termina o pensamento do
MacIntyre de Depois da Virtude eacute o ponto de iniacutecio desta pesquisa
O desenvolvimento do objetivo acima proposto exige uma exposiccedilatildeo do que
significa a Eacutetica das Virtudes e sua forma histoacuteria de retorno bem como de sua relaccedilatildeo
15
com Aristoacuteteles Requer tambeacutem a tematizaccedilatildeo do modo como o pensamento cristatildeo
retomou e reelaborou esta eacutetica O posicionamento deste trabalho se fundamenta na
tese de que uma Eacutetica das Virtudes que pretenda recorrer a Aristoacuteteles natildeo pode se
apresentar como alternativa agrave contemporaneidade sem considerar a contribuiccedilatildeo do
pensamento cristatildeo visto que o universo cultural e semacircntico dos conceitos morais
da contemporaneidade eacute perpassado pela influecircncia deste pensamento
Os autores que orientam esta pesquisa satildeo principalmente Alasdair MacIntyre
Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino atraveacutes das obras que se referem agrave Filosofia Moral
Com relaccedilatildeo ao pensamento de MacIntyre seraacute realizado um corte epistemoloacutegico
que parte da obra Depois da Virtude e manteacutem seu foco na tarefa que esta obra deixou
em aberto Os possiacuteveis desdobramentos do pensamento de MacIntyre natildeo se
constituem como empecilho ao desenvolvimento desta pesquisa
Para a realizaccedilatildeo do objetivo proposto faz-se necessaacuterio organizar a estrutura
do trabalho do seguinte modo no primeiro capiacutetulo O Antiiluminismo Eacutetico e a Eacutetica
das Virtudes seraacute feita uma exposiccedilatildeo geral sobre os fundamentos da eacutetica das
virtudes e como esta retorna ao cenaacuterio da filosofia moral contemporacircnea o segundo
A Criacutetica de MacIntyre ao Projeto Moderno de Fundamentaccedilatildeo da Moralidade trata
da primeira tarefa de Depois da Virtude ou seja de como a moral contemporacircnea
resulta segundo MacIntyre do desacordo das teses modernas de fundamentaccedilatildeo da
moralidade e de suas incoerecircncias denominadas por ele lsquofalecircnciarsquo do projeto
iluminista O terceiro capiacutetulo O Projeto de Depois da Virtude expotildee a teoria moral
de MacIntyre retomando os conceitos anteriores a obra mas que determinaram e se
mantiveram presentes nela a quarta parte da tese Tradiccedilatildeo Biacuteblica e Aristotelismo
aborda a Reconciliaccedilatildeo Tomista do Aristotelismo e da Tradiccedilatildeo Biacuteblica na Filosofia
Moral
16
2 O ANTIILUMINISMO EacuteTICO E A EacuteTICA DAS VIRTUDES
O pensamento de MacIntyre se insere numa corrente da Filosofia Moral Inglesa
do seacuteculo XX denominada Eacutetica das Virtudes Este movimento teraacute grande influecircncia
em seu pensamento especialmente na criacutetica que eacute apresentada agrave Moral Moderna
como tambeacutem no esforccedilo de promover uma releitura da Eacutetica de Aristoacuteteles e de
compatibilizaacute-la agraves exigecircncias do pensamento contemporacircneo Esta seccedilatildeo apresenta
esse movimento e seu questionamento dos fundamentos da moral moderna como
tambeacutem apresenta as principais teses daacute Eacutetica das Virtudes por meio dos
pensamentos de Rosalind Hursthouse e de Gertrude Anscombe
A Filosofia Moral Inglesa da segunda deacutecada do seacuteculo XX foi denominada
Virtue Ethics porque propocircs a recolocaccedilatildeo da problemaacutetica das accedilotildees agrave luz da eacutetica
das virtudes Tem como foco o questionamento da moral moderna e o renascimento
da eacutetica aristoteacutelica A intenccedilatildeo era constituir a Eacutetica das Virtudes como uma terceira
via entre a Filosofia Deontoloacutegica kantiana e o utilitarismo eacutetico tatildeo fortemente
instituiacutedo no Ocidente Qual eacute a necessidade de uma terceira via para a filosofia
moral Quais satildeo as insuficiecircncias das eacuteticas deontoloacutegicas e utilitaristas que
justificam esta empreitada Estas satildeo questotildees que orientam a construccedilatildeo teoacuterica
deste capiacutetulo
Serviratildeo de apoio epistemoloacutegico aleacutem do MacIntyre a obra Sobre a Eacutetica das
Virtudes (cf HURSTHOUSE 2001)1 de Rosalind Hursthouse e o texto A filosofia
moral moderna de Gertrude Anscombe pensadora que com grande relevacircncia
influenciou o itineraacuterio filosoacutefico Alasdair MacIntyre
21 SOBRE A RE-COLOCACcedilAtildeO DA VIRTUE ETHICS
Segundo Rosalind Hursthouse (cf HURSTHOUSE 2001) Virtue Ethics eacute um
termo teacutecnico que inicialmente diferenciava uma eacutetica normativa com o foco nas
virtudes e no caraacuteter das abordagens eacuteticas que enfatizavam os direitos ou regras
denominadas deontologias e das que destacavam as consequecircncias das accedilotildees
1 Rosalin Hursthouse eacute professora de Filosofia da Universidade de Auckland na Nova Zelacircndia No
Doutorado foi orientanda de Elizabeth Anscombe e Philippa Ruth Foot
17
denominadas de consequencialismo ou utilitarismo (cf HURSTHOUSE 2001 p1)
Para ilustrar a definiccedilatildeo a autora propotildee o seguinte exemplo
Imagine um caso em que eacute oacutebvio que eu deveria por exemplo ajudar algueacutem em necessidade Um utilitarista iria destacar o fato de que o resultado de minha accedilatildeo contribuiria com o bem estar do necessitado Um deontologista diria que minha accedilatildeo estaacute de acordo com a maacutexima fazer aos outros aquilo que eu gostaria que fosse feito comigo e finalmente um filoacutesofo das virtudes diria que o fato de ajudar a quem precisa seria sinal de benevolecircncia ou caridade (HURSTHOUSE 2001 p1)
A posiccedilatildeo do utilitarista considera que ajudar a um necessitado deve ser visto
em virtude do resultado da accedilatildeo jaacute o deontologista compreende a accedilatildeo pela
perspectiva da universalizaccedilatildeo do ato de ajudar algueacutem finalmente para o filoacutesofo
das virtudes a accedilatildeo eacute boa porque eacute expressatildeo de um agente bom
A Eacutetica das Virtudes eacute uma abordagem ao mesmo tempo antiga e nova para
a Filosofia Praacutetica Antiga porque remonta a Platatildeo e Aristoacuteteles e nova se se
considera sua recolocaccedilatildeo como alternativa ao pensamento moral contemporacircneo
Rosalind Hursthouse enfatiza que apenas dois tipos de abordagem dominaram a eacutetica
normativa nos uacuteltimos 30 anos2 a deontoloacutegica inspirada primordialmente em Kant
e a utilitarista tendo como representantes mais importantes Jeremy Bentham e John
Stuart Mill Ainda segundo a supracitada Filoacutesofa lsquoentre os muitos livros e artigos
publicados sobre a eacutetica normativa discutia-se ampliava-se corrigia-se apenas as
duas abordagens jaacute mencionadas entretanto natildeo figurava entre elas nenhum texto
que fizesse referecircncia a uma terceira possibilidadersquo (cf HURSTHOUSE 2001 p 2)
permanecendo impensada uma terceira possibilidade para a Filosofia Moral de entatildeo
Rosalind Hursthouse ainda acrescenta que em alguns manuais de graduaccedilatildeo
sobre eacutetica normativa vaacuterios artigos criacuteticos da ortodoxia dominante pleitearam um
reconhecimento da eacutetica das virtudes Em alguns paraacutegrafos dizia-se lsquoo que um
filoacutesofo da virtude3 diria nesse casorsquo Para a referida Autora as menccedilotildees agrave moral das
virtudes o mais das vezes tendiam a ser curtas e com desprezo Rigorosamente
falando a Eacutetica das Virtudes natildeo era considerada como uma uma alternativa viaacutevel
uma vez que suas interferecircncias se referiam apenas a aspectos interessantes sobre
os motivos e o caraacuteter do agente moral que podiam ser inseridos como informaccedilotildees
complementares a essas abordagens A Eacutetica das Virtudes era ateacute entatildeo
2 A Autora estaacute escrevendo em 1998 Assim sendo deve-se entender lsquonos uacuteltimos 40 anosrsquo 3 Esta eacute uma traduccedilatildeo proposta para a expressatildeo virtue ethicist
18
considerada como um lsquogarotorsquo mais novo entre os rapazes podia entrar no lsquojogorsquo
mas natildeo era contado efetivamente como um lsquojogadorrsquo Somente em pouco mais de 40
anos a Eacutetica das Virtudes adquiriu o status completo ocupando a qualidade de
terceira das abordagens morais rivalizando com deontologistas e ou utilitaristas
A respeito de um retorno da Eacutetica das Virtudes Rosalind Hursthouse apresenta
as seguintes questotildees por que a Filosofia Moderna4 (ou contemporacircnea) revive a
antiga abordagem da Eacutetica das Virtudes Por que o pensamento contemporacircneo ou
um movimento de pensadores sentiu a necessidade de promover um retorno ao
pensamento antigo especialmente a Aristoacuteteles Sabe-se que existe uma grande
distacircncia temporal entre a contemporaneidade seus escritos e sua organizaccedilatildeo
social Aleacutem disso muitos dos pontos de vista desses autores como por exemplo a
escravidatildeo o lugar da mulher na sociedade satildeo na realidade insustentaacuteveis No
entanto Rosalind Hursthouse enfatiza que nenhum dos filoacutesofos da virtude estaacute
comprometido com os detalhes lsquoparoquiaisrsquo de Aristoacuteteles assim como nenhum dos
deontologistas estaacute comprometido com as opiniotildees de Kant sobre os animais por
exemplo (cf HURSTHOUSE 2001 p 2)5 Para Rosalind Hursthouse a questatildeo
fundamental eacute que ao lado desses motivos haacute muitos outros que se empotildee para o
renascimento ou recolocaccedilatildeo das moral das virtudes a saber a sabedoria praacutetica a
amizade e o relacionamento familiar o aprofundamento do conceito de felicidade o
papel das emoccedilotildees na vida moral dos indiviacuteduos Esses temas afirma a autora
praticamente desapareceram do vocabulaacuterio filosoacutefico do pensamento moral dos
seacuteculos XVIII e XIX Dessa maneira o renascimento da Eacutetica das Virtudes natildeo eacute uma
simples coincidecircncia Ele coincide com a redescoberta desses temas fundamentais
em virtude do proacuteprio apelo que eles impotildeem agrave existecircncia humana Esses temas natildeo
satildeo devidamente considerados pelos pensadores modernos e na opiniatildeo de Rosalind
Hursthouse aos olhos de algueacutem mais atento satildeo reconhecidos como as temaacuteticas
sempre pertinentes agrave Filosofia Moral (cf HURSTHOUSE 2001 p 3)
Atraveacutes da recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes Rosalind Hursthouse salienta
que a redescoberta da Eacutetica das Virtudes proporcionou revisotildees e releituras por parte
demuitos defensores da eacutetica do dever ou entre os utilitaristas Atraveacutes dessas
4 Esta eacute a terminologia utilizada por Rosalind Hursthouse A julgar a distacircncia temporal pequena mas
significante seraacute utilizada a expressatildeo Contemporacircnea 5 Aqui a autora faz referecircncia agrave posiccedilatildeo kantiana de que os animais satildeo coisas e que o maior defensor
da liberaccedilatildeo dos animais Tom Regam seja um deontologista
19
revisotildees eacute que foram propostas temaacuteticas como a Doutrina kantiana da virtude Outros
pensadores como McDowell promoveram aproximaccedilotildees entre Aristoacuteteles e Kant
enquanto autores como Herman e Korsgaard trouxeram Kant mais perto de Aristoacuteteles
(cf HURSTHOUSE 2001 p 4)
A reconsideraccedilatildeo de noccedilotildees e de temas da Eacutetica das Virtudes gerou um
problema acerca dos limites entre as abordagens eacuteticas Esses limites se referem ao
fato de que a especificidade de cada abordagem natildeo parece bem determinada
Rosalind Hursthouse afirma que jaacute natildeo eacute mais tatildeo simples afirmar genericamente que
a eacutetica das virtudes eacute uma corrente que enfatiza as virtudes Do mesmo modo a
deontologia e o utilitarismo tambeacutem natildeo podem ser resolvidos apenas pela descriccedilatildeo
que um e outro enfatizam regras ou consequecircncias em contraste com o caraacuteter do
agente
O fim da problematizaccedilatildeo entre as especificidades das abordagens eacuteticas para
Rosalind Hursthouse aponta natildeo para uma separaccedilatildeo ldquobarristardquo entre as abordagens
Eu suspeito que a persistecircncia da crenccedila da eacutetica da virtude natildeo eacute como afirmei acima lsquouma rival para abordagens deontoloacutegicas e utilitaristas mas se apresenta como interessante e desafiadora entre elas
a abordagem ainda eacute nova o suficiente para ser distinta e o objetivo deste livro eacute explorar o que pode ser adquirido como insights para a filosofia moral sendo escrito de uma forma muito detalhada e compreensiva Se os utilitaristas e deontologistas estiverem em desacordo com o que eu digo que eacute claro que eu quero eacute discutir com eles e talvez alguns dos nossos pontos de atrito sejam apenas sobre teses particulares que tipicamente embora natildeo universalmente eles defendem e rejeitam na eacutetica das virtudes ou vice-versa Eu natildeo deveria estar inclinada para argumentar em tudo Eu deveria estar feliz por todos noacutes pois isto significa parar de se preocupar sobre como distinguimos noacutes mesmos e acolher os nossos acordos (HURSTHOUSE 2001p 7)
A partir da afirmaccedilatildeo de Rosalind Hursthouse sente-se a necessidade de se
promover muito mais do que uma concorrecircncia entre as aborgadens eacuteticas um
reavivamento da moral das virtudes cuja expressividade ficou de certo modo
lsquomarginalizadarsquo na Tradiccedilatildeo Filosoacutefica dos seacuteculos XVIII e XIX A abertura para esta
abordagem conduz pois agrave compreensatildeo de que uma moral do dever ou uma eacutetica
centrada nos resultados natildeo foram suficientes para responder agraves demandas do agir
humano como tambeacutem sinaliza o reavivamento de uma eacutetica que valoriza accedilatildeo
20
apenas na medida em que ela for um desdobramento das condiccedilotildees e do
aprimoramento do agente moral atraveacutes das virtudes
A Eacutetica das Virtudes teve seu retorno a partir de algumas obras inspiradoras
particularmente o ensaio de Gertrude Anscombe Modern Moral Philosophy de 1958
Segundo Kevin Flannery o artigo Modern Moral Philosophy ao lado da obra Intention
consagrou Gertrude Anscombe como filoacutesofa Gertrude Anscombe foi interlocutora e
amiga particular de Wittgenstein Apoacutes a morte dele Gertrude Anscombe realizou uma
das melhores traduccedilotildees das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas para os leitores de liacutengua
inglesaque praticamente nunca foram contestadas em virtude de seu rigor e
fidelidade agrave obra do autor (cf FLANNERY 2009)
211 Sobre a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica
No texto A Filosofia Moral Moderna Gertrude Anscombe sugere algumas teses
A primeira eacute a de que ldquonatildeo eacute proveitoso fazer filosofia moral no tempo presente ateacute
que se tenha uma filosofia adequada da psicologiardquo (ANSCOMBE 2010 p 19) isto eacute
uma Psicologia Filosoacutefica Mas por que no tempo presente natildeo eacute proveitoso fazer
uma filosofia moral sem antes encontrar uma Psicologia Filosoacutefica E porque esta
Psicologia Filosoacutefica abre os horizontes para se fazer uma filosofia moral
contemporaneamente Essas satildeo as questotildees que orientam a construccedilatildeo desta
seccedilatildeo
Desde a Criacutetica da Razatildeo Pura a tarefa de construir uma Psicologia Filosoacutefica
tornou-se por demais complicada As conclusotildees de Kant expressas na Dialeacutetica
Transcendental mostraram a lsquofalecircnciarsquo que esta ciecircncia da Metafiacutesica Claacutessica
encontrou em seu intento de assegurar a imortalidade da alma
Ora na verdade natildeo haacute ningueacutem que possa extrair de princiacutepios especulativos a miacutenima base para semelhante afirmaccedilatildeo nem mesmo demonstrar-lhe a possibilidade soacute eacute possiacutevel supocirc-la mas tatildeo-pouco pode algueacutem opor-lhe qualquer objeccedilatildeo dogmaacutetica vaacutelida Pois ningueacutem sabe mais do que eu ou de que outro qualquer sobre a causa absoluta e intriacutenseca dos fenocircmenos exteriores e corporais Tambeacutem ningueacutem pode pretender saber com fundamento sobre que repousa no estado atual (na vida) a realidade dos fenocircmenos externos e por consequecircncia tambeacutem natildeo pode afirmar que a condiccedilatildeo de toda a intuiccedilatildeo externa ou tambeacutem o proacuteprio sujeito pensante deva cessar depois deste estado (na morte) (KANT 2001)
21
As conclusotildees de Kant na Criacutetica da Razatildeo Pura inviabilizaram a Psicologia
Racional na tarefa de demonstrar a imortalidade da alma Contudo a finalidade com
que Gertrude Anscombe sugere uma Psicologia Filosoacutefica tem agora um objetivo
distinto da antiga Psichologya Rationalis A Psicologia Filosoacutefica conforme Gertrude
Anscombe sugere serviraacute para apresentar o modo como os atos humanos satildeo
capazes de se relacionar com as virtudes Com efeito se as virtudes satildeo tipos de atos
realizados em favor do bem do homem um estudo sobre estes atos humanos
proporciona uma maior compreensatildeo sobre as virtudes e suas possibilidades no agir
do ser humano
A afirmaccedilatildeo de Gertrude Anscombe que sugere o abandono da moral pode ateacute
soar de maneira estranha vindo de uma moralista Entretanto o sentido desta
afirmaccedilatildeo eacute resgatado quando se entende o que a autora compreende como
aplicaccedilatildeo de uma psicologia filosoacutefica agrave moral Segundo Kevin Flannety esta recusa
se refere pelo menos inderetamente agrave maneira como uma psicologia proscede ao
estudar os fenocircmenos ou dados que existem necessariamente e exclusivamente na
mente isto eacute na interioridade do indiviacuteduo (cf FLANNERY 2009 p 44) Eacute em virtude
desta interioridade que Gertrude Anscombe compreende que a prioridade de uma
psicologia filosoacutefica para a filosofia moral se justifica porque as accedilotildees humanas se
fundamentam em processos internos da psiqueacute especialmente na chamada
intencionalidade Deste modo uma psicologia filosoacutefica como saber preliminar agrave
filosofia moral natildeo pode entre outras coisas prescindir do estudo da intencionalidade
Gertrude Anscombe entende a dificuldade de propor uma Psicologia Filosoacutefica
sem no entanto recorrer a experiecircncias e relatos de casos assim como acontece
com a psicologia empiacuterica Entretanto a autora natildeo parece se contentar com o que a
psicologia empiacuterica fez ao fenocircmemo da intencionalidade Com efeito esta ciecircncia
passou a considerar a intencionalidade um sentimento que os indiviacuteduos
supostamente tecircm quando fazem algo intencional A intencionalidade passou a ser
tematizada como um outro sentimento ou estado psicoloacutegico assim como a empatia
ou animosidade sentidas pelos outros (cf FLANNERY 2009 p 44)
O resultado deste modus operandi da psicologia empiacuterica enfatiza Kevin
Flannery eacute ignorar a funccedilatildeo das intenccedilotildees nos atos humanos e reduzir a psicologia
ao estudo dos pensamentos acrescidos dos sentimentos na forma de estados
psicoloacutegicos (cf FLANNERY 2009 p 45) A intencionalidade e a moralidade assim
22
pensadas podem ser consideradas apenas como um niacutevel de sentimentalismo
acrescentado agraves accedilotildees Kevin Flannery aponta consequecircncias desse modo de
entender a moral
O resultado da aplicaccedilatildeo de uma tal abordagem da moralidade eacute que a moralidade se torna uma espeacutecie de camada de sentimentalismo acrescentada agrave accedilatildeo humana de tal forma que uma accedilatildeo em si pode ser absolutamente vergonhosa mas pode ser declarada moralmente correta de acordo com o argumento de que no final natildeo tem nada a ver com o que a pessoa realmente faz Pense por exemplo no discurso do padre que apresenta o raciociacutenio da Igreja em relaccedilatildeo agrave contracepccedilatildeo ou a fertilizaccedilatildeo in vitro como vaacutelido e sadio e ao mesmo tempo diz para os seus paroquianos que em relaccedilatildeo agraves suas obrigaccedilotildees morais eles devem seguir suas consciecircncias
(FLANNERY 2009 p 45)
Conforme a afirmaccedilatildeo de Kevin Flannery pensar a intencionalidade apenas
como um estado psicoloacutegico engendra uma incoerecircncia tiacutepica e recorrente na
contemporaneidade a ideia de que a maneira como se age eacute independente da
maneira como se pensa Tomando o exemplo acima tem-se a ideia de que os
ensinamentos da Igreja de certo modo satildeo apenas da ordem do conhecimento isto
eacute natildeo existe contradiccedilatildeo entre o saber de uma moral e a modo como algueacutem vive sua
vida particularmente A criacutetica se refere precisamente ao fato de se transformar a
intenccedilatildeo num simples sentimento A confusatildeo entre sentimento e intencionalidade eacute
o cenaacuterio atraveacutes do qual Gertrude Anscombe afirma a necessidade de uma
Psicologia Filosoacutefica Eacute importante salientar que a atitude naturalista da psicologia
empiacuterica diante do fenocircmeno da intenccedilatildeo eacute tambeacutem criticada por autores como
Edmund Husserl e Heidegger6
A relaccedilatildeo entre Psicologia Filosoacutefica e moralidade jaacute havia sido expressa na
Tradiccedilatildeo Filosoacutefica e Gertrude Anscombe natildeo acha viaacutevel ignoraacute-la Kevin Flannery
salienta que a noccedilatildeo de que a Tradiccedilatildeo podia ser ignorada no sentido de iniciar do
lsquozerorsquo foi um dos elementos que causou a crise da Teoria Moderna da Moralidade (cf
FLANNERY 2009 p 47) Em seu retorno agrave moral aristoteacutelica Gertrude Anscombe
entende a necessidade de se refletir acerca dos atos tarefa realizada especialmente
por uma Psicologia Filosoacutefica
6 Para um maior esclarecimento sobre a criacutetica de Heidegger ao conceito de intencionalidade como
fenocircmeno psiacutequico feita nos Prolegocircmenos agrave Histoacuteria do Conceito de Tempo cf HEIDEGGER Tertio Ed sect4 p13-18GA 20 1994 e HUSSERL 1989 p 42 Aqui Husserl fala a simplificaccedilatildeo do fenocircmeno do conhecimento como factum psicoloacutegico Esta eacute uma caracteriacutestica da atitude naturalista que extensivamente acontece com o exemplo do fenocircmeno da intenccedilatildeo
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Qual eacute pois o sentido de se trabalhar agraves intenccedilotildees na abordagem sobre a
moralidade No livro III da Eacutetica a Nicocircmacos Aristoacuteteles afirma
Como a virtude diz respeito a emoccedilotildees e accedilotildees e como os atos voluntaacuterios satildeo censurados e louvados ao passo que os involuntaacuterios satildeo objeto de perdatildeo e por vezes tambeacutem de piedade eacute presumivelmente necessaacuterio aos estudiosos da virtude definir o voluntaacuterio e o involuntaacuterio bem como eacute uacutetil aos legisladores tanto para a distribuiccedilatildeo das honrarias quanto para a aplicaccedilatildeo de puniccedilotildees (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea III 1109 b30 2010 p 59)
Aparentemente a referecircncia a Aristoacuteteles natildeo esclaresceu a pergunta
Entretetanto eacute a respeito dos atos voluntaacuterios e involuntaacuterios que a intenccedilatildeo diz
respeito Ela natildeo eacute compreendida apenas como um acaso em relaccedilatildeo agraves accedilotildees mas
como elemento que estaacute presente em todos os atos Aristoacuteteles natildeo desenvolve
explicitamente um estudo sobre as intenccedilotildees mas elas estatildeo latentes quando ele
fundamenta a teoria dos atos no livro III da EN Compreender o que faz de um ato
voluntaacuterio ou natildeo eacute ir buscar uma melhor compreensatildeo das intenccedilotildees e esta por sua
vez apresenta-se como fundamental agrave compreensatildeo dos atos voluntaacuterios e
involuntaacuterios
Aqui se esboccedila um problema a dificuldade de se tratar acerca das decisotildees
morais e das intenccedilotildees pois ldquoquando pensamos ter finalmente compreendido um
objeto de estudo podemos transformaacute-lo um pouco e vecirc-lo de forma bastante
diferenterdquo (FLANNERY 2009 p 47) Kevin Flannery acrescenta que a dificuldade no
tratamento da questatildeo conduz agrave tendecircncia de desistir do empreendimento e optar por
um criteacuterio mais lsquogerenciaacutevel da moralrsquo tornando a compreensatildeo sobre a moralidade
mais acessiacutevel Sua criacutetica chama a atenccedilatildeo para o fato de que o mais lsquogerenciaacutevelrsquo
se torna entretanto ineficaz ao rompimento da compreensatildeo da moral como um
estado psicoloacutegico
Ateacute entatildeo foram apresentados os limites da filosofia moral quando natildeo se
considera uma Psicologia Filosoacutefica Este eacute um aspecto negativo da resoluccedilatildeo da
questatildeo fundamental desta seccedilatildeo que eacute compreender a partir da afirmaccedilatildeo de
Gertrude Anscombe o porquecirc de natildeo ser proveitoso fazer filosofia moral no presente
e porque eacute necessaacuteria uma Psicologia Filosoacutefica
O aspecto positivo da necessidade de uma Psicologia Filosoacutefica retirado do
pensamento de Gertrude Anscombe eacute tambeacutem a caracteriacutestica que diferencia a
Autora entre os moralistas da virtude Para Gertrude Anscombe assim como as
24
virtudes e os atos particulares do agente moral estatildeo associados associados tambeacutem
estatildeo os atos agrave psicologia da pessoa Para ela a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes
natildeo se inicia pelas virtudes mesmas mas por uma Psicologia Filosoacutefica que tem por
funccedilatildeo explicar a relaccedilatildeo entre a psicologia da pessoa os atos e as virtudes
Para Anscombe o ponto de partida natildeo eacute as virtudes mas a filosofia da psicologia que eacute nosso uacutenico caminho para uma boa compreensatildeo das virtudes Se haacute uma ligaccedilatildeo estreita entre os atos particulares e as virtudes deve haver estreita conexatildeo entre os atos e a psicologia de uma pessoa seu comportamento e reaccedilotildees caracteriacutesticas (FLANNERY 2009 p 52)
A afirmaccedilatildeo acima aponta para uma dependecircncia do estudo das virtudes em
relaccedilatildeo a um estudo sobre os atos e humanos Este estudo sobre os atos humanos
se constitui como outra tarefa da Psicologia Filosoacutefica De acordo com o que foi
apresentado a Psicologia Empiacuterica mostrou-se insuficiente no tratamento dos atos
humanos especialmente no que se refere ao fenocircmeno da intencionalidade O
aprofundamento dos atos humanos atraveacutes de uma psicologia filosoacutefica pode
oferecer maior consistecircncia agrave Moral das Virtudes O fato eacute que as virtudes e tambeacutem
os viacutecios satildeo consolidados pelos atos concretos
Na relaccedilatildeo entre atos e virtudes o mais importante natildeo eacute necessariamente
desvendar as complexas relaccedilotildees que existem entre a psicologia de uma pessoa o
modo como os acontecimentos particulares sua vida vatildeo influenciar o
desenvolvimento futuro de sua histoacuteria O que estes argumentos natildeo podem
obscurecer nem invalidar a existecircncia de uma relaccedilatildeo estreita entre atos e virtudes
Neste sentido expotildee Kevin Flannery
Natildeo eacute ilegiacutetimo perguntar por exemplo como o envolvimento na morte de inocentes mesmo em parte por pessoas perfeitamente boas tem uma influecircncia sobre a vida familiar ou em qualquer outro aspecto do comportamento relacional Natildeo eacute ilegiacutetimo por exemplo questionar como um ato sexual com um menor em seu passado pode ter uma influecircncia sobre a vida pastoral de um possiacutevel padre no futuro Mas para entender como se relacionam virtudes viacutecios e atos particulares noacutes devemos tambeacutem compreender que atos satildeo genuinamente intencionais e em que medida o satildeo (FLANNERY 2009 p 53)
Embora o estudo sobre a intencionalidade e seu lugar numa Psicologia
Filosoacutefica natildeo seja o foco desta pesquisa sua menccedilatildeo eacute pertinente a este trabalho O
direcionamento se refere agrave compreensatildeo e exposiccedilatildeo do modo como no pensamento
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contemporacircneo a moralidade moderna e seus desdobramentos foram questionados
proporcionando a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes
212 A incoerecircncia do dever moral
Tendo apresentado a relaccedilatildeo de precedecircncia de uma teoria dos atos como um
propedecircutica ao estudo das virtudes Filosofia Moral Moderna apresenta um
questionamento acerca da noccedilatildeo de dever moral Para a Gertrude Anscombe a moral
moderna toma por base a noccedilatildeo de lsquodever moralrsquo Esta noccedilatildeo proveacutem de uma filosofia
praacutetica de caraacuteter legalista como eacute o caso da moral cristatilde A ideia baacutesica eacute que as
tentativas modernas de constituiccedilatildeo de uma filosofia praacutetica natildeo tiveram ecircxito porque
pensaram ser possiacutevel desenvolver uma eacutetica como lei moral tomando por
fundamento primordial o sujeito moral
Embora o termo moral seja herdado do pensamento aristoteacutelico Gertrude
Anscombe enfatiza que o que se entende por moral contemporaneamente possui um
conteuacutedo semacircntico distinto do que o termo possui nos contextos do pensamento de
Aristoacuteteles Ademais a moral parece estar relacionada agravequilo que eacute lsquoreprovaacutevelrsquo de
modo que falhas natildeo apenas da praacutexis mereccedilam receber igualmente o termo
reprovaacutevel (cf ANSCOMBE 2010 p 30) O que eacute explicitado pela autora eacute que
expressotildees do tipo lsquotem dersquo ou lsquodeversquo satildeo utilizadas em contextos natildeo apenas morais
como compreendia Aristoacuteteles mas em contextos que ele denominaria de
lsquointelectuaisrsquo
A Autora encontra na cristandade a razatildeo da modificaccedilatildeo semacircntica do termo
moral ldquoA resposta pertence agrave Histoacuteria entre Aristoacuteteles e noacutes encontra-se a
Cristandade com sua concepccedilatildeo legalista de eacutetica visto que a Cristandade deriva
suas noccedilotildees morais da Toraacuterdquo (ANSCOMBE 2010 p 24) Para ela a Cristandade opera
uma releitura na eacutetica aristoteacutelica
Os termos comuns (e indispensaacuteveis) [grifo da autora] ldquotem derdquo ldquoprecisa derdquo ldquodeverdquo ldquotem a obrigaccedilatildeo derdquo adquiriram esse sentido especial ao serem equacionados nos contextos relevantes com ldquoestaacute obrigadordquo ldquoassumiu o encargo derdquo e eacute ldquoexigido derdquo no sentido que se
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pode estar obrigado ou se pode assumir um encargo por lei ou de que algo pode ser exigido por lei (ANSCOMBE 2001 p 383)7
O predomiacutenio da Cristandade trouxe para a linguagem moral do Ocidente uma
grande modificaccedilatildeo no sentido daquilo que Aristoacuteteles entendia por moral e mesmo
que a Cristandade e sua compreensatildeo de mundo tenham sido abandonadas as
noccedilotildees de dever e obrigaccedilatildeo permaneceram sendo empregadas a partir das
influecircncias recebidas
Numa segunda justificativa aleacutem da tese da origem religiosa do conceito de
dever moral Gertrude Anscombe propotildee uma distinccedilatildeo entre accedilotildees maacutes por si
mesmas e accedilotildees maacutes sob determinadas circunstacircncias A condenaccedilatildeo de um
inocente conhecendo-se sua inocecircncia eacute um exemplo de accedilatildeo maacute em si mesma
enquanto que a violaccedilatildeo do direito de propriedade figura entre as accedilotildees maacutes sob
determinadas circunstacircncias No caso da condenaccedilatildeo de um inocente a accedilatildeo eacute maacute
diretamente em virtude da consciecircncia que se tem da inocecircncia e da violaccedilatildeo
deliberada do direito do inocente jaacute no caso do direito de propriedade a accedilatildeo natildeo
pode ser maacute em si mesma por causa das circunstacircncias Ora algueacutem pode invadir a
propriedade de outrem por que eventualmente estaacute a fugir da morte iminente
Esta distinccedilatildeo eacute relevante pois apresenta o modo como um pensamento moral
pode se constituir como uma teoria centrada nas accedilotildees de um agente ou como uma
teoria que prioriza as accedilotildees de um agente centrado Esta uacuteltima eacute por assim dizer
um tipo de filosofia praacutetica que visa o bem natildeo apenas das accedilotildees mas tambeacutem do
agente eacutetico A acusaccedilatildeo de Gertrude Anscombe em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de dever e
obrigaccedilatildeo se refere ao fato de que nestes casos haacute uma estrutura normativa que
privilegia a accedilatildeo em detrimento do agente No caso da Eacutetica das Virtudes haacute uma
tentativa de priorizar natildeo a accedilatildeo em seus efeitos externos ao agente mas o que ela
provoca em seu caraacuteter A noccedilatildeo de caraacuteter necessita de um aprofundamento
No contexto de uma Moral das Virtudes as accedilotildees satildeo convenientes na medida
em que contribuem com o fim do homem O caraacuteter significa aqui a capacidade de
agir virtuosamente com fundamento na condiccedilatildeo do agente que em por causa do
haacutebito adquiriu a capacidade de agir harmonizando o querer o poder e dever O mais
importante aqui natildeo reside numa accedilatildeo modelo na qual o agente deva se conformar
7ldquoThe ordinary (and quite indispensable) terms ldquoshouldrdquo ldquoneedsrdquo ldquooughtrdquo ldquomustrdquo acquired this special
sense by being equated in the relevant contexts with ldquois obligedrdquo or ldquois boundrdquo or ldquois required tordquo in the sense in which one can be obligaded or bound by law or something can be required by lawrdquo
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independente de seus processos internos sejam os desejos seja a razatildeo Neste
sentido pode-se afirmar a Eacutetica das Virtudes como uma eacutetica que manteacutem a
centralidade no agente
As eacuteticas deontoloacutegicas e utilitaristas centralizam sua atenccedilatildeo na idoneidade
das accedilotildees Este posicionamento faz com que a virtude seja dependente das accedilotildees
Opostamente a Eacutetica das Virtudes propotildee que as accedilotildees devem ser pensadas agrave luz
do caraacuteter de quem as pratica Na obra O bem viver em comunidade a vida boa
segundo Platatildeo e Aristoacuteteles (cf RICKEN 2008 p 181-182) o professor Friedo Ricken
relaciona trecircs teses sobre o agir a tese epistemoloacutegica a tese ontoloacutegica ou axioloacutegica
e a tese do chamado reducionismo conceitual
A tese epistemoloacutegica defende que as accedilotildees corretas satildeo fundamentadas por
conceitos de virtude uma accedilatildeo eacute considerada correta quando traduz aquilo que uma
pessoa virtuosa faria sob determinadas circunstacircncias Neste sentido as accedilotildees satildeo
julgadas em relaccedilatildeo agraves virtudes A tese ontoloacutegica ou axioloacutegica propotildee que o valor
moral da accedilatildeo se fundamenta no valor moral do caraacuteter ou seja as boas accedilotildees
decorrem do caraacuteter bom de uma pessoa entretanto natildeo vale a formulaccedilatildeo inversa
o caraacuteter como decorrente das accedilotildees Finalmente o reducionismo conceitual defende
que os assim chamados deveres podem ser retirados de predicados de virtude
Segundo Friedo Ricken a tese de Gertrude Anscombe parece alinhada ao
reducionismo conceitual pois para ela a eacutetica da virtude eacute contraposta com a eacutetica
do dever ou da lei como alternativa excludente os predicados ldquomoralmente corretordquo e
ldquomoralmente erradordquo conforme a exigecircncia poderiam ser substituiacutedos por predicados
de virtude ou seja pelo predicado lsquojustorsquo (cf RICKEN 2008 p 183)
Ainda segundo Gertrude Anscombe contemporaneamente o Ocidente
internalizou uma noccedilatildeo de dever que era tanto estranha agrave moral aristoteacutelica quanto agrave
moral hebraico-cristatilde Mais grave ainda eacute a defesa da noccedilatildeo de dever tentando
prescindir da cultura que a forjou Gertrude Anscombe esclarece que a eacutetica hebraico-
cristatilde tem como caracteriacutestica fundamental ldquoensinar que haacute coisas proibidas quaisquer
que sejam as consequecircncias no horizonterdquo (ANSCOMBE 2010 p 30) A autora expotildee
em seguida que a proibiccedilatildeo de certas accedilotildees simplesmente em virtude de sua
descriccedilatildeo como tais e tais tipos identificaacuteveis de accedilatildeo natildeo importando quais as
consequecircncias ulteriores vem a se constituir como a mais notaacutevel caracteriacutestica da
eacutetica hebraico-cristatilde
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A eacutetica legalista do Ocidente entatildeo mencionada foi forjada no seio da cultura
hebraico-cristatilde e eacute dela que provecircm as noccedilotildees de dever de obrigaccedilatildeo Estas noccedilotildees
se relacionam com a figura do legislador divino pois as leis satildeo por ele formuladas
A criacutetica de Gertrude Anscombe se dirige agraves deontologias modernas e ao utilitarismo
justamente porque eles defendem a noccedilatildeo de dever e obrigaccedilatildeo querendo no
entanto lsquoescaparrsquo agrave figura de um legislador divino Para a autora a noccedilatildeo de lei possui
um sentido muito forte de interdito Este interdito que possui forccedila de lei e dever natildeo
seria adequadamente se fosse realizado ou imputado apelando apenas para forccedilas
do indiviacuteduo
Gertrude Anscombe considera que a sobrevivecircncia da noccedilatildeo de dever moral
se deu muito mais pela forccedila psicoloacutegica da expressatildeo do que pelo seu conteuacutedo (cf
ANSCOMBE 2010 p 28) Para a autora teria sido de grande valia se em vez de
lsquomoralmente erradorsquo fossem sempre invocados termos como lsquoinveriacutedicorsquo lsquoimpudicorsquo
lsquoinjustorsquo Deste modo natildeo se discutiria mais acerca da accedilatildeo se ela foi ou natildeo errada
mas se discutiria se foi justa ou injusta A questatildeo central aqui estaacute no fato de que
apresentar as accedilotildees em termos de moralmente certa ou errada natildeo traria implicaccedilotildees
sobre a bondade ou natildeo do agente pois certas ou erradas satildeo as accedilotildees Por outro
lado questionar como justas ou injustas qualifica de certo modo o agente como bom
ou natildeo Isto significa que a centralidade do julgamento natildeo iria residir nas accedilotildees mas
no agente
As palavras de Kant apresentando a modernidade como o tempo em que o
sujeito caminha com seus proacuteprios peacutes proporcionou a ideia de que a eacutetica moderna
se sustentaria com uma autolegislaccedilatildeo do sujeito de modo a ocupar o papel que
antes desenvolvido pelo Deus da Eacutetica Cristatilde
Duas coisas enchem o acircnimo de admiraccedilatildeo e veneraccedilatildeo sempre nova e crescente quanto mais frequente e persistentemente agrave reflexatildeo ocupa-se com elas o ceacuteu estrelado acima de mim e a lei moral em mim (KANT 2008 p 255)
Gertrude Anscombe critica a ideia de que o sujeito seja legislador de si proacuteprio
ldquorejeito como absurdo que se possa legislar lsquopara si mesmorsquo O que quer que vocecirc
faccedila lsquopara si mesmorsquo pode ser admiraacutevel mas natildeo legislaccedilatildeordquo (ANSCOMBE 2010 p
34) Para autora a questatildeo fundamental eacute se questionar acerca da real capacidade
de um sujeito empiacuterico acessar uma maacutexima universal e conformar sua accedilatildeo particular
a ela prescindindo de suas inclinaccedilotildees
29
Uma deduccedilatildeo necessaacuteria do pensamento de Gertrude Anscombe eacute que no
horizonte de uma eacutetica assegurada pela lei divina o lsquoiliacutecitorsquo ou lsquoo que eacute obrigatoacuterio natildeo
fazerrsquo termos que satildeo ancestrais do conceito lsquomoralmente erradorsquo ganham um
sentido pois satildeo o que a lei divina obriga Assim sendo a noccedilatildeo de lsquodeverrsquo ou
lsquomoralmente erradorsquo soacute satildeo adequadamente contextualizados se relacionados com a
Lei Divina
Aparentemente a autora estaacute defendendo uma lsquoparceriarsquo entre a moral
moderna e a eacutetica hebraico-cristatilde Se se retornar ao iniacutecio de seu texto ver-se-aacute que
a questatildeo central natildeo eacute a proposiccedilatildeo de uma lsquoparceriarsquo mas a indicaccedilatildeo de que os
conceitos de obrigaccedilatildeo e dever tatildeo fundamentais agrave moral moderna pelo fato de
serem remanescentes da eacutetica hebraico-cristatilde que jaacute natildeo existe mas dos ganhos
trariam danos agrave filosofia moral moderna (cf ANSCOMBE 2010 p 19)
213 Criacutetica ao utilitarismo
A criacutetica de Gertrude Anscombe ao utilitarismo aparece em sua apresentaccedilatildeo
do pensamento de Sidgwick O ponto de partida da filoacutesofa eacute a noccedilatildeo de intenccedilatildeo
utilizada por este autor Para Gertrude Anscombe o conceito intenccedilatildeo se refere agrave
possibilidade de prever as consequecircncias de uma accedilatildeo voluntaacuteria (cf ANSCOMBE
2010 p 31) A partir deste noccedilatildeo de intenccedilatildeo esboccedila-se a tese utilitarista do autor ldquoa
tese que natildeo ter sentido desejo algum por algo antevisto quer seja um fim ou um meio
para um fim eacute indiferente no que diz respeito agrave responsabilidade por esse algordquo
(ANSCOMBE 2010 p 31) A siacutentese da tese utilitarista ou consequencialista eacute a
compreensatildeo de que um indiviacuteduo pode ser responsabilizado pelo resultado de uma
accedilatildeo mesmo que esta determinada consequecircncia natildeo tenha sido desejada ou
intencionada previamente A autora ainda propotildee outra formulaccedilatildeo para tese de
Sidgwick ldquonatildeo ter a intenccedilatildeo de uma accedilatildeo eacute indiferente no que diz respeito agrave
responsabilidade por esse algordquo (ANSCOMBE 2010 p 31)8 Para melhor esclarecer a
autora propotildee um exemplo
Suponhamos que um homem seja responsaacutevel pelo sustento de uma crianccedila Por conseguinte deliberadamente deixar de lhe dar o sustento seria algo ruim a fazer de sua parte Seria ruim deixar de lhe dar o sustento porque ao deixar de fazecirc-lo estaria digamos
8 Cf tambeacutem ANSCOMBE 2001 p 387 ldquoit does not make any difference to a manrsquos responsibility for
something that he foresaw that he felt no desire for it either as an end or as a means to an endrdquo
30
compelindo outro a fazer algo (Pode-se conceder neste argumento que compelir esse outro a fazer algo digno de admiraccedilatildeo) [grifo da autora] Agora poreacutem ele tem de escolher entre fazer algo ignoacutebil e ir preso se for preso segue-se que deixaraacute de dar o sustento agrave crianccedila (ANSCOMBE 2010 p 387)9
A interpretaccedilatildeo que Gertrude Anscombe faz da tese de Sidgwick eacute a seguinte
do ponto de vista da responsabilidade natildeo existe diferenccedila entre deixar de dar o
sustento por deliberaccedilatildeo e deixar de daacute-lo como consequecircncia da prisatildeo mesmo que
este resultado natildeo tenha sido computado como consequecircncia possiacutevel antes de vir a
cometer o ato indesejaacutevel Ora se natildeo haacute distinccedilatildeo entre uma accedilatildeo e outra em virtude
de a consequecircncia ser a mesma o agente pode ateacute concluir que deixar-se ir preso
seja menos mau do que deixar de dar o sustento agrave crianccedila por escolha Com efeito
deixar de o sustento passa a ser consequecircncia de ter sido preso minorando assim
a responsabilidade pelo ato
Gertrude Anscombe conclui que este tipo de eacutetica impulsiona o agente a
antever as consequecircncias natildeo haacute uma reflexatildeo sobre a maldade desta ou daquela
accedilatildeo apenas um caacutelculo dos possiacuteveis resultados Acontece que considerando
apenas as consequecircncias possiacuteveis pode ser que consequecircncias inesperadas se
apresentem como resultado Entretanto diante de resultados que natildeo foram
antevistos o agente natildeo pode a rigor ser culpado por um resultado desastroso
desde que argumente que um determinado resultado natildeo foi antevisto
A criacutetica da autora aponta para a ldquocomodidaderdquo do consequencialismo o agente
soacute eacute responsaacutevel na medida em que o resultado de suas accedilotildees for adequadamente
previsto Ao contraacuterio ela defende que ldquouma pessoa eacute responsaacutevel pelas maacutes
consequecircncias de suas maacutes accedilotildees mas natildeo recebe o creacutedito pelas boas
consequecircncias destasrdquo (ANSCOMBE 2010 p 32) Deste modo esta moralidade natildeo
se apresenta como propositiva no sentido de sugerir o que deve ser feito mas se
preocupa primordialmente com o que homem natildeo deveria fazer com que
acontecesse
9ldquoLet us suppose that a man has a responsibility for the maintenance of some child Therefore
deliberately to withdraw support from it is a bad sort of thing for him to do It would be bad for him to withdraw its maintenance because he didnrsquot want to maintain it any longer and also bad for him to withdraw it because by doing so he would let us say compel someone else to do something (we may suppose for the sake of argument that compelling that person to do that thing is in ifself quite admirable) but now he has to choose between doing something disgraceful and going to prison if he goes to prison it will follow that he withdraws support from de childrdquo
31
A partir da ldquocrenccedilardquo na superficialidade da proposta consequencialista a autora
expotildee a ela seu questionamento Um aristoteacutelico por exemplo questiona-se sobre
se fazer tal coisa em tal circunstacircncia eacute ou natildeo injusta e a partir daiacute julga o que deve
ser feito ou natildeo Jaacute um consequencialista natildeo tem base para dizer que determinada
accedilatildeo natildeo seria permitida ldquoo maacuteximo que ele pode dizer eacute que um homem natildeo deve
fazer com que aconteccedila isto ou aquilordquo (ANSCOMBE 2010 p 33) O que permite ao um
consequencialista o que natildeo deveria acontecer Ao refletir sobre qual o resultado natildeo
desejaacutevel como consequecircncia de uma accedilatildeo este pensador tem diante de si um caso
limite o que exige sua atenccedilatildeo aos padrotildees sociais
O consequencialista de modo a estar de fato imaginando um caso-limite tem de assumir algum tipo de lei ou padratildeo segundo o qual esse eacute um caso-limite De onde obteacutem esse padratildeo Na praacutetica a resposta invariavelmente eacute dos padrotildees correntes em sua sociedade ou ciacuterculo (ANSCOMBE 2010 p34)
A fundamentaccedilatildeo dos casos limites partindo dos exemplares sociais permite
uma associaccedilatildeo entre consequencialismo e convencionalismo moral Com efeito se
o ponto de partida da fundamentaccedilatildeo moral satildeo os padrotildees correntes numa
determinada sociedade qual a chance de uma proposiccedilatildeo consequencialista
contradizer algum modelo convencional A autora ainda explica que aleacutem do
convencionalismo eacutetico a moral consequencialista cria a possibilidade de um
determinado agente consentindo maacutes accedilotildees
[] o ponto de considerar situaccedilotildees hipoteacuteticas por vezes bastante improvaacuteveis parece ser o de produzir em vocecirc ou em algueacutem a decisatildeo hipoteacutetica de fazer algo ruim Natildeo duvido que isso tenha o efeito de predispor as pessoas que jamais se veratildeo nas situaccedilotildees para as quais fazem as escolhas hipoteacuteticas a dar consentimento a maacutes accedilotildees similares ou a enaltecer e lisonjear quem as pratique desde que a sua malta10 a faccedila tambeacutem quando as terriacuteveis circunstacircncias imaginadas natildeo se datildeo (ANSCOMBE 2010 p 33)
O fato de natildeo conseguir prever a consequecircncia de uma determinada accedilatildeo
utilizando-se de hipoacuteteses sobre as consequecircncias o que natildeo eacute difiacutecil de acontecer
dadas as inuacutemeras possibilidades de resultados de seu agir incita o agente a dar
assentimento a uma maacute accedilatildeo uma vez que a anaacutelise se refere ao que natildeo deve ser
feito
10Melhor traduzir por expectadores pois o texto original diz crowd
32
A conclusatildeo das criacuteticas de Gertrude Anscombe sobre o consequencialismo eacute
de certo modo controversa pois talvez natildeo seja uma consequecircncia necessaacuteria que o
fato de analisar uma accedilatildeo que natildeo deve ser realizada predisponha o agente a fazecirc-
la Entretanto dizer que esta anaacutelise em nada influencia o agente eacute igualmente
controverso
214 A diacutevida filosoacutefica de MacIntyre ao pensamento de Gertrude Anscombe
A repercussatildeo do pensamento de Gertrude Anscombe no itineraacuterio filosoacutefico de
MacIntyre eacute bem relevante O desenvolvimento da criacutetica deste uacuteltimo ao projeto
moderno de fundamentaccedilatildeo da moralidade segue uma linha de pensamento que
encontra ressonacircncias com os argumentos de Filosofia Moral Moderna Contudo a
vinculaccedilatildeo de MacIntyre com o pensamento marxista e com as ciecircncias sociais
proporcionaram aprofundamento e amadurecimento ao seu pensamento conforme
afirma Jorge Garcia
A criacutetica de MacIntyre da filosofia moral moderna mesmo com todas as semelhanccedilas natildeo apenas eacute um simples recapitular de Anscombe Sua criacutetica eacute mais detalhada e profundamente influenciada por seus viacutenculos com o marxismo e sua leitura das ciecircncias sociais (Cf GARCIA 2003 p 95 )11
O ponto de convergecircncia entre a Gertrude Anscombe e MacIntyre reside pois
no questionamento e na rejeiccedilatildeo agrave moral moderna Conforme Ernst Tugendhat
(2007)12 satildeoantiiluministas eacuteticos os autores que assumem este posicionamento
Outra aproximaccedilatildeo entre os dois autores eacute o realce na distinccedilatildeo entre o modus
operandi da eacutetica antiga e moderna e a opccedilatildeo pela moral das virtudes Talbot Brewer
salienta que tanto Gertrude Anscombe quanto MacIntyre enfatizam ldquouma estranheza
fundamental aos lsquoouvidosrsquo modernos dos conceitos baacutesicos atraveacutes dos quais
Aristoacuteteles e outros antigos medievais cercaram sua investigaccedilatildeo sobre a virtude o a
felicidade humanardquo (BREWER 2009 p 2 )13 Em siacutentese eacute possiacutevel afirmar que o
11ldquoMacIntyres critique of modernist moral philosophy for all these similarities does not at all simply
recapitulate Anscombes His criticism is more detailed deeply informed by his ties to Marxism and his reading the social sciencesrdquo
12Sobre o antiiluminismo eacutetico conferir a deacutecima liccedilatildeo intitulada o antiiluminismo eacutetico Hegel e a escola de Ritter cf Aftervirtue Third edition Notre Dame Notre Dame Press 2007 p 197-224
13ldquoThe two texts that are most widely cited as the starting points and the inspiration for the movement are Elizabeth Anscombes Modern Moral Philosophy and Alasdair MacIntyres After Virtue Both Anscombe and MacIntyre emphasize the fundamental strangeness to modern ears of the basic
33
antiiluminismo eacutetico e a opccedilatildeo pelas virtudes satildeo elementos dos quais MacIntyre eacute
herdeiro de Gertrude Anscombe
O fato de ser devedor de um pensamento natildeo implica numa simples repeticcedilatildeo
Jaacute foi mencionado que a anaacutelise de MacIntyre eacute enriquecida por sua proximidade com
o marxismo e com as ciecircncias sociais O elemento antropoloacutegico eacute a segunda
distinccedilatildeo relevante entre os autores Segundo David Carr e Jan Steutel (cf 1999 p
162-163) Gertrude Anscombe acreditava ser possiacutevel tomar como ponto de partida
uma concepccedilatildeo de homem ao modo de Aristoacuteteles na forma de uma psicologia
filosoacutefica que permitisse estabelecer relaccedilatildeo entre atos virtudes e fim do homem Por
seu turno em Depois da Virtude MacIntyre procura evitar o que chama de biologia
metafiacutesica de Aristoacuteteles ldquoAristoacuteteles escreve como se os baacuterbaros e os gregos
tivessem natureza fixa e ao encaraacute-los assim ele nos traz de volta o caraacuteter natildeo
histoacuterico de sua compreensatildeo de natureza humanardquo (MACINTYRE 2001b p 270)
MacIntyre parece natildeo adotar esse modelo antropoloacutegico porque esta seria uma
forma a-histoacuterica e a-cultural de considerar o homem o que natildeo poderia ser
sustentado do ponto de vista das ciecircncias sociais e aleacutem disso destoaria da
perspectiva metodoloacutegica de Depois da Virtude Esse talvez seja o motivo pelo qual
Depois da Virtude careccedila de uma teoria dos atos humanos Este fato abre espaccedilo agrave
criacutetica de que MacIntyre daacute pouca importacircncia agrave relaccedilatildeo entre atos e virtudes O que
seria de certo modo fundamental agrave moral as virtudes Posteriormente o proacuteprio
MacIntyre refaz sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave biologia metafiacutesica de Aristoacuteteles
Em Depois da virtude tentei dar conta do lugar das virtudes entendidas como Aristoacuteteles as entendeu dentro de praacuteticas sociais das vidas de indiviacuteduos e das vidas das comunidades fazendo com que tal abordagem fosse independente do que chamei de ldquobiologia metafiacutesicardquo de Aristoacuteteles Embora haja de fato boas razotildees para repudiar elementos importantes da biologia de Aristoacuteteles creio agora que estava errado ao supor que fosse possiacutevel haver uma eacutetica independente da biologia mdash e estou grato agravequeles criacuteticos que me objetaram quanto a isso [] (MACINTYRE 1999 Preface X )14
concepts through which Aristotle and other Ancient Medieval thinkers framed their inquires into virtues and the human goodrdquo
14ldquoIn After Virtue I had attempted to give an account of the place of the virtues understood as Aristotle understood them within social practices the lives of individuals and the lives of communities while making that account independent of what I called Aristotlersquos ldquometaphysical biologyrdquo Although there is indeed good reason to repudiate important elements in Aristotlersquos biology I now judge that I was in error in sopposing an ethics independent of biology to be possible ndash and I am grateful to those critics who distintct [hellip]rdquo
34
Finalmente fazem-se necessaacuterias algumas consideraccedilotildees ao final deste
capiacutetulo A partir da siacutentese de Rosalind Hursthouse vecirc-se que a recolocaccedilatildeo Eacutetica
das Virtudes se impotildee dadas as questotildees morais que natildeo se encontram contempladas
pelas morais deontoloacutegicas ou utilitaristas a siacutentese de Gertrude Anscombe daacute iniacutecio
ao movimento de retorno agrave Eacutetica das Virtudes e estabelece relevante influecircncia na
ulterior criacutetica de MacIntyre agrave filosofia moral moderna como tambeacutem na assunccedilatildeo da
Moral das Virtudes o movimento denominado Virtue Ethics manteacutem vivo o debate
eacutetico na contemporaneidade e abriu a possibilidade de pensar a Moral das Virtudes
como mais uma via pensamento na filosofia moral de liacutengua inglesa e na filosofia moral
como um todo
A seguir deve-se apresentar como o pensamento de MacIntyre se insere na
tradiccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes Primeiramente em seus questionamentos agrave Filosofia
Moral Moderna e secundariamente como teoacuterico de uma Eacutetica das Virtudes agrave
contemporaneidade
35
3 A CRIacuteTICA DE MACINTYRE AO PROJETO MODERNO DE FUNDAMENTACcedilAtildeO
DA MORALIDADE
A apresentaccedilatildeo das teses modernas sobre a moralidade eacute uma das temaacuteticas
centrais do pensamento de Alasdair MacIntyre Ela se constitui como momento
preparatoacuterio ao desenvolvimento de sua teoria moral Com efeito MacIntyre crecirc que
a exposiccedilatildeo destas teses se faz necessaacuteria porque o fato de existirem na
modernidade diferentes fundamentos agrave moralidade comprovaria em sua opiniatildeo o
chamado desacordo moral Esse desacordo seria pois a heranccedila deixada pelos
modernos agrave contemporaneidade e o ponto de partida da tese central de MacIntyre
Este capiacutetulo tem como tarefa apresentar a interpretaccedilatildeo manintyreana das principais
teses modernas sobre a fundamentaccedilatildeo da moralidade e os principais episoacutedios da
histoacuteria social que representaram o ldquoterrenordquo desde onde estas teses brotaram
A referecircncia baacutesica para a realizaccedilatildeo do objetivo deste capiacutetulo eacute a quarta
seccedilatildeo de Depois da Virtude intitulada A cultura predecessora e o projeto iluminista de
justificar a moralidade Para uma melhor compreensatildeo do fio condutor da
argumentaccedilatildeo do autor faz-se necessaacuteria uma exposiccedilatildeo da alegoria inicial de Depois
da Virtude no cap I Com efeito eacute a partir da alegoria inicial de Depois da Virtude que
MacIntyre daacute prosseguimento agrave primeira tarefa de Depois da Virtude a apresentaccedilatildeo
dos fundamentos do discurso moral contemporacircneo e a fragmentaccedilatildeo desse mesmo
discurso
31 A ALEGORIA INICIAL DE DEPOIS DA VIRTUDE
A alegoria inicial de Depois da Virtude se apresenta com um bastante
apocaliacuteptico A exposiccedilatildeo desta alegoria seguiraacute a apresentaccedilatildeo de MacIntyre O
iniacutecio do texto daacute conta das consequecircncias de uma cataacutestrofe hipoteacutetica nas ciecircncias
naturais A esta cataacutestrofe a opiniatildeo puacuteblica culpa os cientistas e em consequecircncia
inuacutemeros laboratoacuterios satildeo incendiados cientistas satildeo linchados livros e instrumentos
satildeo destruiacutedos Com a tomada de poder por um movimento poliacutetico intitulado ldquoNenhum
saberrdquo o ensino das ciecircncias nas escolas e nas universidades eacute eliminado enquanto
o restante dos cientistas eacute eliminado Posteriormente contra este movimento aparece
uma reaccedilatildeo e pessoas esclarecidas tentam ressuscitar a ciecircncia mesmo tendo se
36
esquecido em grande parte o que ela tinha sido Soacute possuem fragmentos
conhecimento dos experimentos isolados do contexto teoacuterico que lhes dava
significado partes de teorias desvinculadas seja de outros fragmentos de teoria que
possuem seja de experimentos instrumentos cujo uso foi esquecido capiacutetulos de
livros pela metade paacuteginas soltas de artigos nem sempre legiacuteveis porque estatildeo
rasgadas e chamuscadas Como se natildeo bastasse todos esses fragmentos satildeo
reunidos num conjunto de praacuteticas que recebem os nomes restaurados de fiacutesica
quiacutemica e biologia Os adultos discutem entre si os meacuteritos das teorias da relatividade
da evoluccedilatildeo e do flogismo embora seus conhecimentos sobre cada uma delas sejam
apenas rudimentares As crianccedilas decoram partes que restaram da tabela perioacutedica e
recitam alguns teoremas de Euclides como se fossem encantamentos Ningueacutem ou
quase ningueacutem percebe que o que estatildeo fazendo natildeo eacute ciecircncia natural em nenhum
sentido adequado pois tudo o que dizem e fazem obedece a certas leis da
compatibilidade e da coerecircncia e os contextos que seriam necessaacuterios para dar
sentido agravequilo que eles estatildeo fazendo foram perdidos talvez irrecuperaacuteveis (cf
MACINTYRE 2001 p 14)
A descriccedilatildeo de abertura de Depois da Virtude exemplifica diversos momentos
da primeira parte da obra da obra de MacIntyre Seu posicionamento eacute o de que a
filosofia moral moderna e sua tentativa de fundamentaccedilatildeo da moral satildeo anaacutelogas a
historinha entatildeo apresentada Assim como na historinha a reconstruccedilatildeo da ciecircncia
natural se mostrou impossiacutevel de ser remontada dada a fragmentaccedilatildeo a que o
material disponiacutevel estava acometido a filosofia moral moderna e sua tentativa de
fundamentaccedilatildeo natildeo teve condiccedilatildeo de impor-se coerentemente porque alguns de seus
fundamentos satildeo vestiacutegios fragmentados de um esquema moral que embora tribute
agrave modernidade alguns de seus elementos jaacute natildeo existe e os elementos disponiacuteveis
natildeo possuem sentido se separados dos seus contextos de origem
Pretensatildeo ou natildeo este eacute o ponto de partida de Depois da Virtude e a reflexatildeo
que MacIntyre faz sobre o projeto moderno de fundamentaccedilatildeo da moralidade recebe
suas motivaccedilotildees filosoacuteficas a partir desta alegoria Assim como na alegoria o que
sobraram das teorias cientiacuteficas eram fragmentos desconexos assim tambeacutem a
linguagem moral contemporacircnea eacute o resultado fragmentado de vaacuterias tentativas de
fundamentaccedilatildeo do discurso moral Entretanto esta desordem natildeo pode ser percebida
37
por todos assim como na alegoria pois existe de certo modo uma aparecircncia de
linguagem ordenada
O autor vai entatildeo expor a desmistificaccedilatildeo desta aparente linguagem
ordenada atraveacutes da apresentaccedilatildeo dos motivos que conduziram o pensamento moral
moderno ao fracasso intitulado por MacIntyre como o fracasso do projeto iluminista
32 AS TESES MODERNAS SOBRE A FUNDAMENTACcedilAtildeO DA MORALIDADE
O homem moderno se orgulha de ldquocaminhar com os seus proacuteprios peacutesrdquo de
tomar suas proacuteprias decisotildees de escolher os seus caminhos sua religiatildeo seus
governantes Este orgulho se deve ao marco divisoacuterio entre a moral claacutessica e a
moralidade moderna Este marco divisoacuterio foi propriamente a passagem da moral
claacutessica influenciada especialmente na eacutetica teleoloacutegica de Aristoacuteteles para a moral
moderna marcada profundamente pela ideia de autonomia o sujeito dando leis a si
proacuteprio Henrique de Lima Vaz afirmar que a Filosofia Moral Moderna eacute profundamente
marcada ldquopela tentativa kantiana de instauraccedilatildeo de uma Eacutetica da razatildeo pura praacutetica
termo da evoluccedilatildeo anterior e iniacutecio de um novo ciclo na histoacuteria da Eacutetica ocidentalrdquo
(VAZ 1999 p 257)
Sabe-se que a moral moderna embora tendo como aacutepice a moral kantiana natildeo
eacute constituiacuteda apenas pela moral da razatildeo pura praacutetica Em sua exposiccedilatildeo de teses
modernas de fundamentaccedilatildeo da moral MacIntyre expotildee outras manifestaccedilotildees que
propotildeem outros fundamentos para a moral diferentes da razatildeo pura praacutetica
Neste capiacutetulo a partir do pensamento de MacIntyre seratildeo explicitadas as trecircs
grandes tentativas de fundamentaccedilatildeo da moral moderna nomeadamente a moral
kantiana a moral humeana e a moral kiekegaardiana Para MacIntyre a colocaccedilatildeo de
Kierkegaard natildeo significa que o filoacutesofo eacute um pensador moderno em sentido proacuteprio
Para MacIntyre o pensamento de Kierkegaard traduz ldquoa perspectiva distintivamente
moderna em forma amadurecidardquo (MACINTYRE 2007 p 39 )15 isto eacute o pensamento
de Kierkegaard serve como elemento tipoloacutegico de uma das tendecircncias modernas de
fundamentaccedilatildeo da moral
15ldquobeginning from that point at which for the first time the distinctively modern standpoint appears in
something like fully-fledged formrdquo
38
Ainda segundo MacIntyre as teses de fundamentaccedilatildeo da moral aludem agraves trecircs
grandes dimensotildees fundamentais do sujeito a razatildeo os sentimentos ou paixotildees e a
escolha Estas dimensotildees correspondem respectivamente agrave fundamentaccedilatildeo da moral
a partir da razatildeo a partir das paixotildees e a fundamentaccedilatildeo da moralidade fundada na
escolha O autor entende que as diferentes fontes de fundamentaccedilatildeo satildeo a evidecircncia
do desacordo e da fragmentaccedilatildeo que de certo modo conduziram o projeto iluminista
de fundamentaccedilatildeo da moralidade agrave falecircncia Este caminho eacute exatamente o caminho
proposto por MacIntyre em Depois da Virtude e serve como base de sua criacutetica agrave moral
contemporacircnea
David Hume considera que os juiacutezos morais particulares satildeo expressatildeo do
gosto e dos sentimentos isto eacute das paixotildees Em Resumo de Um Tratado da Natureza
Humana o autor afirma
A uacutenica finalidade da loacutegica eacute explicar os princiacutepios e operaccedilotildees de nossa faculdade de raciociacutenio e a natureza de nossas ideias a moral e a criacutetica dizem respeito aos nossos gostos e sentimentos e a poliacutetica considera os homens enquanto unidos na sociedade e dependentes uns dos outros (HUME 1995 p 40 )16
Para Hume os juiacutezos morais satildeo expressatildeo de utilidade para os fins que foram
postos pelas paixotildees isto eacute estes fins estatildeo a serviccedilo dos sentimentos Hume afirma
ldquoa accedilatildeo pode causar um juiacutezo ou pode ser obliquamente causada por um juiacutezo quando
este coincide com uma paixatildeordquo (HUME 2009 p 499) A declaraccedilatildeo de Hume enfatiza
a condiccedilatildeo que uma accedilatildeo possui em relaccedilatildeo agrave paixatildeo pois eacute na coincidecircncia com
uma paixatildeo que uma accedilatildeo eacute causada ou causadora de um juiacutezo As accedilotildees satildeo pois
realizadas em virtude das paixotildees
A natureza do homem segundo Kant natildeo eacute mais que sua capacidade de viver
conforme seus instintos Em seu texto Sobre a Pedagogia uma coletacircnea de liccedilotildees
proferidas na Universidade de Koumlnigsberg e reunidas por um de seus disciacutepulos Kant
afirma que a disciplina uma das partes da educaccedilatildeo converte a animalidade em
humanidade (cf KANT 2002) Ora natildeo eacute difiacutecil compreender o porquecirc de Kant
acreditar que as paixotildees interesses ou inclinaccedilotildees natildeo podem ser fundamento da
accedilatildeo moral Na Fundamentaccedilatildeo da Metafiacutesica dos Costumes ele assinala que uma
accedilatildeo moralmente boa natildeo pode conter nada que possa remeter agraves inclinaccedilotildees Haacute
16ldquoThe sole end of logic is to explain the principies and operation of our reasoning faculty and the nature
of our ideas morals and criticism regard our tastes and sentiments and politics consider men as united in society and dependent on each otherrdquo
39
vaacuterias maneiras de agir em relaccedilatildeo ao dever mas a accedilatildeo puramente moral eacute aquela
praticada apenas por dever sem interesse (cf KANT 1999) Isto significa que a accedilatildeo
puramente moral eacute aquela que se orienta exclusivamente pela razatildeo ou seja a
moralidade natildeo pode se apoiar nem nos desejos nem em algo que se apresente como
uma heteronomia por exemplo a religiatildeo
A descriccedilatildeo da tentativa de fundamentaccedilatildeo por parte de Kierkegaard seguiraacute a
indicaccedilatildeo que MacIntyre realiza em Depois da Virtude (cf MACINTYRE 2001b p 73)
A obra de Kierkegaard que serve de apoio agrave exposiccedilatildeo eacute Ou Ou Segundo MacIntyre
Kierkegaard apresenta dois modos de vida o esteacutetico e o eacutetico O primeiro tem como
paradigma o amante romacircntico que estaacute imerso na proacutepria paixatildeo e simboliza uma
face do eu que eacute capaz de se entregar agrave imediaticidade da experiecircncia presente (cf
MACINTYRE 2001b p 80) jaacute o estado eacutetico eacute simbolizado pelo modelo do casamento
e alude agrave situaccedilatildeo do compromisso e da obrigaccedilatildeo eternos na qual o presente estaacute
preso ao passado e ao futuro (cf MACINTYRE 2001b) Segundo Teofilo Urdanoz os
estados da existecircncia em Kierkegaard ou etapas no caminho de uma vida ldquosatildeo as
determinantes existenciais os modos de vida gerais que servem como esquema ou
princiacutepios antagocircnicos com os quais o indiviacuteduo concreto enfrenta na busca de uma
posse de si proacutepriordquo (URDANOZ 1975 vol V p 453)
Segundo MacIntyre esses modos de vida estatildeo fundamentados em conceitos
diferentes e ateacute mesmo rivais a escolha de um eacute a negaccedilatildeo do outro A questatildeo
fundamental na reflexatildeo que MacIntyre sugere a partir da leitura de Ou Ou eacute a de
que os princiacutepios que conduzem agrave adoccedilatildeo de algum dos modelos eacute totalmente
independente de motivos satildeo opccedilotildees feitas a partir de razatildeo nenhuma Esta opccedilatildeo
se refere apenas agrave escolha do que seja uma razatildeo para um determinado sujeito
Uma siacutentese das supracitadas teses pode ser realizado pela seguinte citaccedilatildeo
de MacIntyre
Assim como Hume procura fundamentar a moralidade nas paixotildees porque seus argumentos excluiacuteram a possibilidade de fundamentaacute-los nas paixotildees Kant fundamenta na razatildeo porque seus argumentos excluiacuteram a possibilidade de fundamentaacute-los nas paixotildees e Kierkegaard a fundamenta na escolha fundamental sem criteacuterios devido ao que acredita ser a natureza inapelaacutevel das ponderaccedilotildees que excluem tanto a razatildeo quanto as paixotildees (MACINTYRE 2001b p 95)
A siacutentese de MacIntyre de certo modo deixa clara a multiplicidade de apoios
para a sustentaccedilatildeo de discurso moral O pensamento moral moderno se mostra
40
marcado pela carecircncia de um ponto de apoio para a moralidade conforme conclui
MacIntyre A multiplicidade de pontos de apoio sinaliza a dificuldade em definir um
deles e o consequente desacordo Assim como na alegoria inicial de Depois da
Virtude em que aqueles que achavam que faziam ciecircncia apenas por repeticcedilatildeo dos
fragmentos de teoria e natildeo tinham ciecircncia de que natildeo estavam fazendo ciecircncia
alguma tambeacutem natildeo houve por parte dos modernos uma inconsciecircncia desse
desacordo
A ideia baacutesica de MacIntyre eacute a de que em relaccedilatildeo aos antigos e medievais
existe na modernidade uma perda da unidade fundamental no discurso moral Esta
perda da unidade eacute evidenciada pela multiplicidade de fundamentos Como jaacute natildeo
existe uma unidade do discurso moral tem-se na modernidade uma progressiva
passagem de uma Moral das Virtudes para uma moral que sobre valoriza a norma
uma deontologia A questatildeo que vai preocupar os filoacutesofos modernos no campo da
moralidade eacute o que fundamenta a norma E a pergunta em torno do fundamento da
norma tornar-se-aacute uma das questotildees mais relevantes da Eacutetica Moderna
33 O FRACASSO DO PROJETO ILUMINISTA
A questatildeo do fracasso do projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade
natildeo se deu exclusivamente em virtude da diversidade de opiniotildees sobre qual seria
afinal o fundamento primeiro da moralidade se nas paixotildees na razatildeo ou na escolha
A opiniatildeo de MacIntyre eacute que os modernos representados aqui por Hume Kant e
Kierkegaard foram herdeiros de um esquema especiacutefico e particular de crenccedilas
morais e foi este mesmo esquema que com uma incoerecircncia interna conduziu ao
fracasso do projeto filosoacutefico em comum desde o iniacutecio (cf MACINTYRE 2001b p 97)
Em consonacircncia com a tese do MacIntyre cabe explicitar em que consiste esta
incoerecircncia que conduziu ao fracasso do projeto iluminista de justificaccedilatildeo da
moralidade Essa eacute a tarefa desta segunda parte deste capiacutetulo
41
331 O passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana
O meacutetodo seguido por MacIntyre parte da anaacutelise das crenccedilas comuns dos
pensadores que contribuiacuteram para a construccedilatildeo do projeto iluminista de justificaccedilatildeo
da moralidade Ele exemplifica que ldquoo casamento e a famiacutelia satildeo no fundo tatildeo
incontroversos para o philosophe racionalista de Diderot quanto para o juiz Guilherme
de Kierkegaard o cumprimento de promessas e a justiccedila satildeo tatildeo inviolaacuteveis para
Hume quanto para Kantrdquo (MACINTYRE 2001b p 98) Ao final MacIntyre indaga sobre
de onde provecircm essas convicccedilotildees em comum mesmo vindas de pensadores que
defenderam teses distintas Duas caracteriacutesticas relevantes satildeo compartilhadas por
estes pensadores a saber o passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana
O segundo ponto de convergecircncia que eacute a crenccedila da existecircncia de uma
natureza humana universal seria ponto de apoio agrave construccedilatildeo de uma filosofia moral
A posiccedilatildeo comum eacute que as normas da moralidade se justificariam na natureza
humana isto eacute elas seriam explicadas e justificadas como desenvolvimento
necessaacuterio do que essa tal natureza humana aceitaria No exemplo de Hume e
Diderot o que haacute de peculiar na natureza humana satildeo as caracteriacutesticas das paixotildees
para Kant a caracteriacutestica importante da subjetividade eacute o caraacuteter universal e
categoacuterico de certas normas acessiacuteveis agrave razatildeo17 no caso de Kierkegaard embora
ela natildeo pretenda estritamente justificar a moralidade sua argumentaccedilatildeo segue a
mesma estrutura das anteriores enquanto Hume e Kant apelam para as
caracteriacutesticas das paixotildees e da razatildeo respectivamente Kierkegaard apela para a
escolha como caracteriacutestica fundamental da natureza humana MacIntyre finaliza
esclarecendo que ldquotodos esses escritores tecircm em comum o projeto de construir
argumentos vaacutelidos que passem das premissas relativas agrave natureza humana
conforme a entendem agraves conclusotildees sobre a autoridade das normas e dos preceitos
moraisrdquo (MACINTYRE 2001b p 99 )18
Haacute um questionamento que merece ser aqui considerado A argumentaccedilatildeo de
MacIntyre vinha sendo desenvolvida defendendo a tese de um desacordo no discurso
17A questatildeo sobre a noccedilatildeo de natureza humana em Kant natildeo eacute tatildeo simples de ser resolvida MacIntyre
acredita que em Kant a natureza humana se refere ao aspecto fisioloacutegico do homem e este aspecto por sua vez eacute distinto da racionalidade do sujeito Corrobora com a opiniatildeo de MacIntyre Otfried Houmlffe Segundo ele ldquode modo geral a razatildeo significa a faculdade de ultrapassar o acircmbito dos sentidos da natureza A ultrapassagem dos sentidos pelo conhecimento eacute o uso teoacuterico na accedilatildeo eacute o uso praacutetico da razatildeo Cf HOumlFFE 2005 p 188
18 O texto que a seguir acompanha passo a passo a argumentaccedilatildeo de MacIntyre
42
moral proveniente dos distintos pontos de apoio que cada pensador havia tomado A
pergunta eacute por que se falar em pontos de convergecircncia se o argumento principal do
autor se referia ao desacordo Para responder a questatildeo eacute necessaacuterio voltar a
alegoria inicial de Depois da Virtude Na alegria as pessoas se apropriavam de
pedaccedilos de teorias foacutermulas cientiacuteficas que no entanto natildeo possuiacuteam sentido algum
Em nada os ajuda uma vez que os fragmentos das teorias natildeo estavam inseridos em
seus contextos originais haviam perdido sua rede de significados No exemplo dos
exemplares filosoacuteficos apresentados por MacIntyre acontece a mesma coisa Eles
tecircm em comum a noccedilatildeo de natureza humana entretanto esta noccedilatildeo pertence a outro
esquema moral Desse modo MacIntyre conclui que a noccedilatildeo de natureza humana
sem sua rede de significados original natildeo pode ajudar na construccedilatildeo de um discurso
moral A questatildeo sobre a noccedilatildeo de natureza humana e sua relaccedilatildeo com as normas e
preceitos seraacute melhor desenvolvida a seguir
332 A incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a noccedilatildeo
de natureza humana na moral moderna
O cerne do processo que causou o fracasso do projeto iluminista estaacute ligado
segundo MacIntyre agrave incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a
noccedilatildeo de natureza humana A tarefa do pensador consiste agora em contar a histoacuteria
desses dois conceitos mostrar como eles satildeo incompatiacuteveis e estabelecer uma
relaccedilatildeo entre esta incompatibilidade e o fracasso
MacIntyre expotildee que existe uma forma geral do esquema moral que foi
ancestral dos conceitos em questatildeo Este esquema moral foi predominante na Idade
Meacutedia desde o seacuteculo XII e era composto de elementos da moral aristoteacutelica e de
caracteriacutesticas cristatildes da moral tomista A estrutura baacutesica deste esquema eacute a que
Aristoacuteteles apresentou na Eacutetica a Nicocircmacos O esquema aristoteacutelico distingue ldquoo
homem como ele eacuterdquo e o ldquohomem como poderia ser se realizasse sua natureza
essencialrdquo A proacutepria tarefa da eacutetica estaacute aiacute delimitada ela eacute o saber que habilita o
homem a compreender como se daacute a passagem de um estado para outro Potecircncia e
Ato essecircncia do homem e telos satildeo conceitos pressupostos para compreender este
esquema Os preceitos que recomendam tais virtudes e vetam determinados viacutecios
43
satildeo aqueles que proporcionam a passagem da verdadeira natureza para alcanccedilar o
verdadeiro fim
Existe pois uma co-relaccedilatildeo necessaacuteria entre ldquonatureza humana como eacuterdquo
preceitos e ldquonatureza humana como pode ser se realizar seu telosrdquo Cada um desses
trecircs elementos necessita dos outros dois isto eacute ldquoos nossos desejos e emoccedilotildees devem
ser organizados e educados pelo uso de tais preceitos e pelo cultivo de haacutebitos de
accedilatildeo que a eacutetica prescreve a razatildeo nos instrui quanto ao nosso verdadeiro fim e
quanto a como atingi-lordquo (MACINTYRE 2001b p100) Estas noccedilotildees natildeo podem pois
ser adequadamente compreendidas senatildeo segundo esta relaccedilatildeo de
interdependecircncia Separadas elas perdem sua inteligibilidade
O pensamento medieval assume esse esquema com o diferencial de
acrescentar que os preceitos da eacutetica aleacutem de mandados teleoloacutegicos satildeo tambeacutem
expressotildees de uma lei divinamente decretada MacIntyre endossa que ldquoeacute preciso
retificar e ampliar a tabela das virtudes e viacutecios acrescentando-se o conceito de
pecado ao conceito aristoteacutelico de erro A lei de Deus exige um novo tipo de temor e
respeitordquo (MACINTYRE 2001b p100) Este mundo natildeo eacute mais o lugar da efetivaccedilatildeo
do fim do homem como era a polis grega no sentido que Aristoacuteteles pensou Grande
parte dos filoacutesofos medievais concordava que esse esquema tanto pertencia agrave
revelaccedilatildeo quanto podia ser sustentada racionalmente Com o advento do
protestantismo e do catolicismo jansenista este consenso eacute paulatinamente desfeito
dando lugar a um novo conceito de razatildeo
3321 O passado cristatildeo e o novo conceito de razatildeo
Uma ideia fundamental ao novo conceito de Razatildeo forjado no seio do
protestantismo e do catolicismo jansenista consiste na convicccedilatildeo de que a razatildeo natildeo
eacute capaz de compreender qual seja o verdadeiro fim do homem
O finito se aniquila na presenccedila do infinito e torna-se um puro nada Assim nosso espiacuterito em face de Deus assim nossa justiccedila em face da justiccedila divina Natildeo haacute uma desproporccedilatildeo tatildeo grande entre a nossa justiccedila e a de Deus como entre a unidade e o infinito (apud BRANDAtildeO 1961)
Essa atitude consiste num certo ceticismo em relaccedilatildeo agrave capacidade de a razatildeo
alcanccedilar a certeza de que a constituiccedilatildeo do homem comporta alguma finalidade
44
MacIntyre afirma que o pensamento moderno de tradiccedilatildeo protestante lecirc as escrituras
entendendo que o episoacutedio da queda do homem significou a marca de debilidade da
razatildeo humana sendo ela destituiacuteda do poder de compreensatildeo do fim do homem A
criacutetica dos empiristas ratifica essa compreensatildeo Atraveacutes do empirismo moderno
tambeacutem se pode vislumbrar o ponto de vista de que nos limites da natureza acessiacutevel
ao homem natildeo se pode garantir o conhecimento de nenhum telos isto eacute aquilo que
a razatildeo estabelece como telos eacute fruto apenas de um costume ou haacutebito um ato
psicoloacutegico sem fundamento na experiecircncia Conforme Hume
O costume eacute pois o grande guia da vida humana Eacute o uacutenico princiacutepio que torna uacutetil nossa experiecircncia e nos faz esperar no futuro uma seacuterie de eventos semelhantes agravequeles que apareceram no passado Sem a influecircncia do costume ignorariacuteamos completamente toda questatildeo de fato que estaacute fora do alcance dos dados imediatos da memoacuteria e dos sentidos Nunca poderiacuteamos saber como ajustar os meios em funccedilatildeo dos fins nem como empregar nossas faculdades naturais para a produccedilatildeo de um efeito (HUME 1999 seccedilatildeo V p 63)
A partir da afirmaccedilatildeo de Hume pode-se afirmar que natildeo estaacute no domiacutenio da
razatildeo humana o conhecimento de nenhum telos Como desenrolar das ideias de
Hume compreende-se que uma possiacutevel idealizaccedilatildeo de um fim para a vida humana
seria apenas um estabelecimento habitual daquilo que se crecirc como fim O resultado
destas ideias eacute conforme MacIntyre uma rejeiccedilatildeo a qualquer noccedilatildeo teleoloacutegica da
natureza humana e a qualquer ideia do homem como ser que possui uma essecircncia
que defina seu verdadeiro fim ldquosegundo essas novas teologias protestantes e a
catoacutelico jansenista a razatildeo natildeo fornece nenhuma compreensatildeo genuiacutena do verdadeiro
fim do homemrdquo (MACINTYRE 2001b p 101) Assim sendo o ambiente social e cultural
dos modernos jaacute natildeo comporta a noccedilatildeo de Telos no plano moral
Mais uma vez mostra-se aqui a fragmentaccedilatildeo dos elementos fundamentais do
discurso moral anterior a modernidade Os pensadores em questatildeo conforme foi
apresentado assumiram a noccedilatildeo de natureza humana prescindindo poreacutem da
noccedilatildeo de Telos Eacute neste sentido que MacIntyre entende a fragmentaccedilatildeo que
provocaraacute o ulterior desacordo moral
3322 A ciecircncia e a filosofia do seacuteculo XVII
ldquoCiecircncia e poder do homem coincidem uma vez que sendo a causa ignorada
frustra-se o efeitordquo (BACON 1999 p 33 sect III) As palavras de Bacon ao iniciar o Novum
45
Organum traduzem bem o abandono que a modernidade procedeu em relaccedilatildeo agrave
terminologia da escolaacutestica e do aristotelismo em relaccedilatildeo agrave ciecircncia O homem que
natildeo conhece a causa natildeo pode ter pretensotildees de determinar efeitos O pensamento
sozinho natildeo eacute capaz de determinar os fins ou o telos mesmo partindo da observaccedilatildeo
das coisas A ciecircncia experimental fundamentada em Bacon afasta-se do aparato
conceitual da metafiacutesica claacutessica natildeo se fala mais sobre essecircncias e
consequentemente sobre efeitos Efeito eacute aqui compreendido como resultado das
possibilidades contidas na essecircncia de uma coisa Neste sentido determinar um efeito
eacute anaacutelogo a determinar um fim Conforme MacIntyre
A razatildeo natildeo compreende essecircncias ou transiccedilotildees da potecircncia ao ato esses conceitos pertencem ao desprezado esquema conceitual da escolaacutestica Aleacutem disso a ciecircncia anti-aristoteacutelica impotildee limites riacutegidos aos poderes da razatildeo A razatildeo eacute calculadora sabe avaliar verdades de fato e relaccedilotildees matemaacuteticas poreacutem nada mais No campo da praacutetica portanto soacute sabe falar de meios Precisa calar-se no tocante aos fins (MACINTYRE 2001b p 102)
MacIntyre completa afirmando que em relaccedilatildeo agraves teologias catoacutelica e
protestante em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave proacutepria Filosofia haacute um progressivo abandono
da crenccedila de que a razatildeo eacute capaz de determinar alguma finalidade
Kant por exemplo natildeo estabelece finalidade para o homem porque para ele
qualquer finalidade diferente do homem em si mesmo representa uma heteronomia
E por conseguinte natildeo serve como fundamento de um discurso aprioriacutestico pois a
felicidade eacute extriacutenseca e algo que traz consigo elementos sensiacuteveis Nos esquemas
claacutessicos de fundamentaccedilatildeo da moralidade a felicidade eacute o fim a que naturalmente
todo homem tende e eacute a partir dela que seratildeo definidos os caminhos pelos quais o
homem deve percorrer para alcanccedilaacute-la Assim sendo a perspectiva kantiana
representa o que tradicionalmente se define como uma moral deontoloacutegica porque
na impossibilidade de um discurso que inclua a felicidade soacute se pode falar em dever
3323 A incoerecircncia entre o posicionamento pela lsquofalecircnciarsquo da razatildeo e a decisatildeo
pela noccedilatildeo de natureza humana
MacIntyre tem consciecircncia de que haacute uma profunda incoerecircncia nas tentativas
de os modernos constituiacuterem uma filosofia moral fundamentados na noccedilatildeo de
natureza humana Para ele essa noccedilatildeo soacute podia ser adequadamente compreendida
46
e utilizada se inserida no esquema de uma moralidade teleoloacutegica Qual a utilidade
pois da noccedilatildeo de natureza humana para uma fundamentaccedilatildeo da moral se os
modernos haviam rejeitado agrave razatildeo a possibilidade de definir o fim do homem E mais
ainda de que serve a noccedilatildeo de natureza humana se a razatildeo natildeo consegue
compreender as possibilidades desta natureza MacIntyre vecirc neste posicionamento
uma contradiccedilatildeo Esta contradiccedilatildeo levou MacIntyre a defender que o projeto moderno
de justificaccedilatildeo da moralidade jaacute nasceu fracassado pois se constituiu a partir de um
esquema ldquoestilhaccediladordquo
Herdaram fragmentos incoerentes de um esquema de pensamentos e accedilotildees que um dia foi coerente e jaacute que natildeo reconheceram sua proacutepria situaccedilatildeo histoacuterica e cultural natildeo podiam reconhecer o caraacuteter impossiacutevel e quixotesco da tarefa que se auto-atribuiacuteram (MACINTYRE 2001b p 104 )19
A noccedilatildeo de natureza humana possuiacutea adequado na Eacutetica Teleoloacutegica Nela os
preceitos morais se ligam ao esquema teleoloacutegico geral de modo que no conjunto do
esquema eles satildeo necessaacuterios poreacutem secundaacuterios Jaacute num esquema de
justificaccedilatildeo que natildeo reconhece aos preceitos a funccedilatildeo de aprimoramento do homem
a fim de que ele passe de uma natureza humana dada para uma natureza humana
vislumbrada como telos isto eacute o homem como pode ser se realizar sua finalidade
soacute pode sobrevalorizar os preceitos seraacute pois uma moral deontoloacutegica No primeiro
tipo de moralidade os preceitos valem como condutores do homem agrave vida feliz Na
uacuteltima os preceitos valem em si mesmos traduzem as accedilotildees conforme e por dever
MacIntyre acrescenta agrave sua consideraccedilatildeo sobre o fracasso do projeto moderno
um argumento referente agrave funcionalidade dos conceitos particularmente ao conceito
de homem Para ele os argumentos morais da tradiccedilatildeo aristoteacutelica claacutessica e
medieval envolvem pelo menos um conceito funcional central que eacute o de homem
enquanto ser que tem uma natureza essencial e uma finalidade ou funccedilatildeo essencial
Assim sendo quando se fala em homem natildeo se pode perder as referecircncias de que o
conceito natildeo estaacute separado das funccedilotildees que o homem realiza como membro de uma
famiacutelia como cidadatildeo soldado filoacutesofo servo de Deus A funccedilatildeo se relaciona com o
fim para o qual algo eacute feito MacIntyre conclui que homem se tornaraacute apenas um
conceito loacutegico a partir do momento em que passa a ser compreendido como
19Esta passagem remete claramente agrave metaacutefora inicial de Depois da Virtude no capiacutetulo Uma ideia
inquietante
47
indiviacuteduo antes e fora de todos os papeacuteis o que impossibilita a retirada de conclusotildees
valorativas e normativas a partir de premissas factuais Para o autor isto se deve agrave
falta de conexatildeo entre os preceitos morais e a noccedilatildeo de natureza humana aprimorada
O ponto de partida de Aristoacuteteles eacute relacionar homem e viver bem de modo que o
segundo estaacute implicado na razatildeo do primeiro
Na modernidade a tese de que natildeo satildeo vaacutelidos os argumentos que partem de
juiacutezos de fato para juiacutezos de valor isto eacute de um lsquoeacutersquo para um lsquodeversquo refere-se agrave perda
da compreensatildeo primordial que o conceito de homem tinha antes de ser arrancado
de sua rede de significados conforme exposto no paraacutegrafo anterior MacIntyre
conclui que esse posicionamento ganha forccedila em virtude da compreensatildeo insuficiente
e parcial que os modernos tinham do conceito de homem Ele denominou como ldquofalta
de consciecircncia histoacutericardquo que eacute comum desde a modernidade ateacute os tempos atuais
3324 Sobre a mudanccedila do significado dos juiacutezos morais
Dizer que algo eacute bom na Tradiccedilatildeo Aristoteacutelica significa dizer que este algo
realiza todas as funccedilotildees para as quais se destina ou seja realiza perfeitamente sua
finalidade ou funccedilatildeo especiacutefica Para MacIntyre dizer que algo eacute bom natildeo eacute apenas
expressatildeo de um juiacutezo de valor simplesmente emotivista mas significa a partir da
compreensatildeo de funccedilatildeo e de realizaccedilatildeo desta um juiacutezo de fato ldquoDizer que algo eacute
bom portanto tambeacutem eacute fazer uma declaraccedilatildeo factual Dizer que determinado ato eacute
justo ou certo eacute dizer que ele eacute o que um homem bom faria em tal situaccedilatildeo por
conseguinte esse tipo de declaraccedilatildeo tambeacutem eacute factualrdquo (MACINTYRE 2001b p 111)
Assim a partir desta tradiccedilatildeo pode-se falar em juiacutezos morais verdadeiros ou falsos
A questatildeo dos juiacutezos de valor a partir de juiacutezos de fato e sua impossibilidade
de se constituir deste modo tornou-se implausiacutevel quando na modernidade
lsquodesaparece da moralidade a ideia de funccedilotildees ou finalidades humanas essenciaisrsquo
Consequentemente abre-se um espaccedilo para a pertinecircncia das teses em torno da
invalidade de argumentos morais que partem de um lsquoeacutersquo para um lsquodeversquo Aleacutem disso
acrescenta Macintyre a laicizaccedilatildeo da moralidade operada pelo iluminismo pocircs em
questatildeo a veracidade dos juiacutezos morais como expressotildees da voluntas divinitatis
Mesmo em Kant que pensa os juiacutezos morais como expressatildeo de uma lei universal
48
natildeo haacute possibilidade de questionar os juiacutezos em termos de verdade ou falsidade eles
satildeo categoacutericos
As teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade segundo MacIntyre
proporcionaram um desacordo moral
Esta desordem proveacutem do proacuteprio poder cultural predominante de um jargatildeo no qual os fragmentos conceituais incompatiacuteveis de vaacuterias partes do nosso passado satildeo aplicados juntos em debates puacuteblicos e privados que satildeo notaacuteveis pelo caraacuteter insoluacutevel das controveacutersias neles envolvidas e pela clara arbitrariedade de cada participante do debate (MACINTYRE 2001b p 429)
Assim as reflexotildees operadas pelo autor conduzem a algumas proposiccedilotildees A
primeira delas eacute que o desacordo dos modernos sobre o lsquoalicercersquo desde onde
fundamentar a moral proporcionou um desacordo contemporacircneo e uma
fragmentaccedilatildeo do discurso sobre as accedilotildees Esta situaccedilatildeo original foi proporcionada por
um lsquoesquecimento histoacutericorsquo e pela histoacuteria social que formaram o ambiente filosoacutefico
de onde brotaram as principais teses de justificaccedilatildeo da moralidade O fracasso do
projeto deveu-se em grande parte a incompatibilidade entre a noccedilatildeo de natureza
humana e a de preceitos Acrescente-se a isto a nova compreensatildeo de racionalidade
e a perda do sentido de funcionalidade dos conceitos
Cumpre agora desenvolver o empreendimento de apresentar a teoria
macintyreana da moral O intuito de MacIntyre eacute oferecer atraveacutes de sua teoria um
pensamento eacutetico que devolva a inteligibilidade ao discurso moral a partir do conceito
de virtude enriquecido pelas noccedilotildees de Praacuteticas Unidade narrativa de uma vida
humana individual e o conceito de tradiccedilatildeo
49
4 O PROJETO DE DEPOIS DA VIRTUDE E A TEORIA MORAL DE MACINTYRE
A exposiccedilatildeo dos elementos fundamentos que orientam o estabelecimento da
Eacutetica das Virtudes mostrou-se necessaacuteria agrave compreensatildeo do cenaacuterio que compotildee a
Filosofia Moral Contemporacircnea Aleacutem disso pode-se ver a orientaccedilatildeo filosoacutefica que
marcou o pensamento de MacIntyre isto eacute os limites dos fundamentos que forjaram
a moral contemporacircnea e o modo como a Eacutetica das Virtudes se apresenta como uma
alternativa viaacutevel de inteligibilidade das accedilotildees
A obra Depois da Virtude foi publicada em 1981 e passou a fazer parte da
terceira via da filosofia moral de liacutengua inglesa Autores como Gertrude Anscombe
conforme apresentado no Cap I deste trabalho proporcionaram ao pensamento
contemporacircneo um renascimento ou recolocaccedilatildeo do pensamento moral de
Aristoacuteteles A proposta da obra de MacIntyre se alinha ao movimento de afirmaccedilatildeo do
pensamento aristoteacutelico como uma opccedilatildeo viaacutevel agrave moralidade contemporacircnea
A criacutetica de MacIntyre agraves teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade e
o modo como o pensamento contemporacircneo eacute herdeiro da incoerecircncia e do
lsquoesquecimentorsquo deste momento da filosofia moral se constituiu como preparaccedilatildeo agrave
apresentaccedilatildeo de sua proposta moral agrave filosofia moral contemporacircnea Aleacutem da ampla
criacutetica aos males percebidos da modernidade MacIntyre apresenta sugestotildees que
aleacutem de reforccedilarem a reabilitaccedilatildeo de uma Moral das Virtudes mostram como alguns
dos males podem ser corrigidos Esses dois elementos se constituem pois na tarefa
desta seccedilatildeo do trabalho
41 O ANTES DE DEPOIS DA VIRTUDE
Antes da publicaccedilatildeo de Depois da Virtude jaacute eacute possiacutevel encontrar em
MacIntyre sinais dos fundamentos que hatildeo de orientar seus principais
posicionamentos O texto Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica de 1966 apresenta sinais
do movimento de criacutetica agrave Filosofia Moral Moderna Naturalmente a partir do ano de
publicaccedilatildeo desta obra vecirc-se que ela eacute imediatamente posterior ao Modern Moral
Philosophy de Gertrude de 1958 cujas teses fundamentais jaacute foram expostas no
primeiro capiacutetulo deste trabalho
50
Algumas das teses presentes em Depois da Virtude jaacute encontram sua forma
embrionaacuteria em Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica a saber o anseio de refutar a tese
de que natildeo se podem retirar proposiccedilotildees normativas de proposiccedilotildees factuais isto eacute
o dever ser do ser uma desarticulaccedilatildeo no discurso moral a crenccedila de que os
conceitos morais natildeo deveriam ser formulados na crenccedila de sua intemporalidade
desarticulados das sociedades que os proporcionaram e o potencial lsquodestrutivorsquo do
emotivismo
411 Vida social e conceitos morais
O primeiro capiacutetulo intitulado A importacircncia filosoacutefica da histoacuteria da eacutetica
chama a atenccedilatildeo para o costume recorrente de dar uma importacircncia secundaacuteria agrave
histoacuteria da eacutetica Esta pouca importacircncia ao tema decorre de uma crenccedila comum de
que o aparato conceitual da eacutetica pode ser compreendido prescindindo de sua
histoacuteria Contudo agrave medida que a vida social muda mudam tambeacutem os conceitos Os
conceitos morais segundo MacIntyre ganham sua inteligibilidade quando as regras
que governam o seu uso satildeo apreendidas Sua apreensatildeo se daacute a partir das distintas
formas de vida social e estas proporcionam os diferentes papeis para que sejam
representados por estes conceitos
Os conceitos morais na realidade mudam agrave medida que muda a vida social Deliberadamente natildeo digo lsquoporque muda a vida socialrsquo jaacute que isto poderia sugerir que a vida social eacute uma coisa e a moralidade eacute outra e que existe meramente uma relaccedilatildeo de causa externa e contingente entre elas Evidentemente que isto eacute falso Os conceitos morais satildeo encarnados em (e satildeo parcialmente constituiacutedos de) nas
formas de vida social (MACINTYRE 1988 p 11)20
MacIntyre percebe que a partir dos conceitos morais eacute possiacutevel compreender
as diferentes manifestaccedilotildees da vida social Seu entendimento eacute o de que os conceitos
morais estatildeo situados natildeo satildeo atemporais Vida social e conceitos morais natildeo podem
ser pensados separadamente John Horton e Susan Mendus em seu artigo Alasdair
MacIntyre After Virtue and After acrescentam que
20ldquoIn fact of course moral concepts change as social life changes I deliberately do not write ldquobecause
social life changesrdquo for this might suggest that social life is one thing morality another and that there is merely an external contingent causal relationship between them This is obviously false Moral concepts are embodied in and are partially constitutive of forms of social liferdquo Cf tambeacutem MACINTYRE 2005 p 01
51
entre as grandes contribuiccedilotildees de Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica MacIntyre rejeitou explicitamente a crenccedila comum nos ciacuterculos filosoacuteficos da eacutepoca que os conceitos morais seriam uma intemporal limitada imutaacutevel determinada espeacutecie de conceitos que poderiam ser analisados e compreendidos aleacutem da sua histoacuteria (HORTON MENDUS 1994 p 2)21
Os conceitos morais soacute seratildeo adequadamente compreendidos se forem
estudados historicamente e contextualmente uma vez que satildeo incorporados como
partes constitutivas da vida social A importacircncia da histoacuteria e do contexto social para
a filosofia moral seraacute uma temaacutetica recorrente em toda a obra de MacIntyre
412 Fundamentaccedilatildeo das proposiccedilotildees normativas
O texto de Gertrude Anscombe jaacute traz uma referecircncia agrave criacutetica de Hume que
aponta a problemaacutetica de se retirarem proposiccedilotildees normativas do tipo deve a partir
de proposiccedilotildees factuais do tipo eacute ou seja a ideia eacute que o deve ser natildeo pode estar
fundamentado no ser Os autores desta tese natildeo vecircem como se construir uma eacutetica
de uma ontologia
As proposiccedilotildees deste tipo refletem em torno do significado das proposiccedilotildees
morais Na filosofia anglosaxocircnica a tentativa de formular proposiccedilotildees deontoloacutegicas
de proposiccedilotildees factuais ficou intitulada como falaacutecia naturalista MacIntyre aponta que
esta qualificaccedilatildeo foi dada pelos escritos de George Moore (cf MACINTYRE 2001b p
243) Em seu Principia Ethica George Moore explica o sentido do que ele chama de
falaacutecia naturalista Esta se refere agrave tentativa de identificar o bem ou bom como se
fosse o nome de uma de uma coisa natural O problema estaacute no fato de que quem
afirma que bom eacute uma propriedade simples e natildeo analisaacutevel tem diante de si o
incocircmodo de encontrar expressotildees que aplicam o termo bom sob acepccedilotildees muito
distintas como por exemplo este eacute um bom amigo ou este eacute um bom reloacutegio Com
efeito apenas o predicado bom da primeira sentenccedila eacute o que traz algum significado
moral
A questatildeo em torno do bom se relaciona agrave necessidade de compreender o
modo como o bem e as accedilotildees se relacionam Encontrar a conexatildeo entre um e outro
21ldquoMacIntyre explicity rejected the belief common in philosophical circles at the time that lsquomoral
concepts were timeless limited unchanging determinate species of concept (that) can be examined and understood apart from their historyrdquo
52
seria uma abertura para responder agraves duas perguntas dos Principia Ethica a saber
que tipo de coisas deve existir em virtude de si mesmas Que tipo de accedilotildees devemos
realizar (cf MOORE 2005 p 17) Isto de certo modo justificaria a relaccedilatildeo entre bem
e dever Mas como justificar esta relaccedilatildeo diante do caraacuteter enigmaacutetico da noccedilatildeo de
bem MacIntyre citando George Moore questiona
O bom entatildeo eacute um nome de uma propriedade simples e natildeo analisaacutevel Haacute pelo menos duas objeccedilotildees decisivas contra a doutrina que responde afirmativamente A primeira eacute que soacute podemos empregar inteligivelmente o nome de uma propriedade simples quando conhecemos um modelo exemplar dele por referecircncia ao qual podemos dar-nos conta se estaacute presente ou ausente em outros casos (MACINTYRE 2005 p 161 )22
O caraacuteter enigmaacutetico da noccedilatildeo bem assinalado por George Moore o faz propor
que para aplicaccedilatildeo da noccedilatildeo de bem ou o que eacute intrinsecamente bom o agente
simplesmente o reconhece O resumo da questatildeo eacute que natildeo eacute possiacutevel se ter o bem
como uma propriedade simples aplicaacutevel e que sirva de criteacuterio para verificar sua
presenccedila ou ausecircncia e em que medida esta noccedilatildeo foi aplicada Assim quando o
indiviacuteduo agente ele natildeo se faz uma relaccedilatildeo direta entre bem e dever simplesmente
age segundo seus proacuteprios sentimentos Esta afirmaccedilatildeo abre espaccedilo ao emotivismo
que se torna objeto de criacutetica em Depois da Virtude
413 O emotivismo
O MacIntyre de Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica ainda natildeo faz associaccedilatildeo entre
o emotivismo e o desacordo moral Segundo ele o emotivismo teria seu germe nas
reaccedilotildees contra o pensamento de George Moore Ora se natildeo eacute possiacutevel definir o bem
como uma propriedade simples legiacutetima as accedilotildees satildeo entatildeo expressotildees dos
proacuteprios sentimentos dos agentes Contudo aqui aparece um problema do qual o
proacuteprio George Moore vai ser o primeiro a apontar pois ldquoos juiacutezos morais natildeo podem
ser simples informaccedilotildees sobre os nossos sentimentos porque neste caso dois
homens que expressam juiacutezos aparentemente contraditoacuterios sobre uma questatildeo
moral natildeo estariam de fato em desacordordquo (MACINTYRE 1988 p247)
22ldquoIs good then the name of a simple unanalyzable property To the doctrine that it is there are at
least two conclusive objections The first is that we can only use the name of a simple property by reference to which we are acquainted with some standard example of the property by reference to which we are to recognize whether it is present or absent in other casesrdquo
53
Entre os representantes do emotivismo encontra-se Charles Leslie Stevenson
Sua obra O Significado Emotivo dos Termos Eacuteticos defende a ideia de que a funccedilatildeo
primaacuteria das expressotildees morais eacute dar uma nova direccedilatildeo agraves atitudes dos outros com o
objetivo de provocar a adesatildeo o que seria segundo Stevenson uma funccedilatildeo dinacircmica
dessas expressotildees As expressotildees morais possuem esta funccedilatildeo dinacircmica porque
satildeo emotivas O seu significado corresponde agrave tendecircncia desta palavra construiacuteda
atraveacutes da histoacuteria de seu modo de uso a produzir respostas afetivas nas pessoas (cf
MACINTYRE 1988 p 248)
Em relaccedilatildeo ao significado dos termos morais Charles Stevenson propotildee dois
modelos nos quais ambos enfatizam o caraacuteter emotivo desses termos No primeiro
modelo o autor defende que proposiccedilotildees do tipo isto eacute bom satildeo equivalentes a Eu
gosto disto entatildeo faz o mesmo Jaacute o segundo modelo se ocupa de expressotildees que
encarnam o que Stevenson denomina de expressotildees persuasivas que possuem um
significado descritivo e associam a este um significado emotivo Assim sendo duas
pessoas podem associar agrave noccedilatildeo de Justiccedila diferentes significados descritivos em
virtude do elemento emotivo presente na experiecircncia individual com esta palavra
Alguns desdobramentos da tese de Charles Stevenson podem ser expressos
aqui o primeiro eacute que termos valorativos natildeo podem receber descriccedilatildeo completa pela
multiplicidade de significados Assim os fatos se apresentam como separados dos
valores em seguida o caraacuteter emotivo das expressotildees morais impossibilita de
construir uma teoria na qual os diversos agentes se sintam implicados porque
quaisquer proposiccedilotildees satildeo vaacutelidas Neste sentido conclui MacIntyre a Filosofia nos
assuntos ligados agrave moral seria neutra como tambeacutem a proacutepria teoria de Stevenson
uma vez que se podem utilizar palavras emotivas para lsquoabenccediloarrsquo quaisquer accedilotildees (cf
MACINTYRE 1988 p 248)
Aqui se encontra a razatildeo do desacordo valorativo uma vez que ldquonatildeo haacute limite
para as possibilidades de desacordo e conforme delineado acima nem
procedimentos que possam resolvecirc-losrdquo (MACINTYRE 1988 p 249) As razotildees que se
podem mencionar para fundamentar um juiacutezo moral natildeo possuem nenhuma relaccedilatildeo
loacutegica com a conclusatildeo que se pode derivar dela Os juiacutezos satildeo por assim dizer
apenas apoios psicoloacutegicos No discurso moral os termos lsquoporquersquo e lsquoportantorsquo perdem
sua conveniecircncia
54
Embora MacIntyre jaacute na Pequena Historia da Eacutetica apresente argumentos
contra o emotivismo interessa apresentar aqui como o emotivismo quase quinze
anos antes de Depois da Virtude jaacute se constitui numa das preocupaccedilotildees mais
relevantes do autor
Nas obras anteriores a Depois da Virtude se apresentava um certo ceticismo
sobre alguns aspectos do pensamento moral moderno entretanto eacute soacute com Depois
da Virtude que MacIntyre revela um profundo desencantamento com a filosofia moral
moderna Este desencantamento eacute tatildeo marcante que chega ateacute a obscurecer a
proposta moral de MacIntyre e objetivo fundamental da obra que eacute a proposiccedilatildeo da
Eacutetica das Virtudes via pensamento Aristoteacutelico a fim de resgatar a inteligibilidade do
discurso moral ultrapassando assim uma moralidade emotivista
42 A OBRA DEPOIS DA VIRTUDE
A apresentaccedilatildeo da fragmentaccedilatildeo do discurso moral contemporacircneo com a
falecircncia do projeto moderno de sua justificaccedilatildeo e a tentativa de restauraccedilatildeo da
racionalidade do discurso moral constituem as duas tarefas de Depois da Virtude Em
relaccedilatildeo ao projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade MacIntyre defende que o
seu fracasso se deu em virtude de as tentativas de fundamentaccedilatildeo da moralidade
partirem de uma concepccedilatildeo de racionalidade independente da histoacuteria e contexto
social Aleacutem disso todas as teses apesar de tomarem por base uma certa noccedilatildeo de
natureza humana natildeo a articularam no esquema moral da qual esta noccedilatildeo fazia parte
A desordem do discurso moral que o mundo contemporacircneo experimenta eacute a
consequecircncia natildeo soacute da falecircncia do projeto moderno mas tambeacutem dos proacuteprios
caminhos que a modernidade trilhou Um aspecto problemaacutetico de Depois da Virtude
e que eacute objeto de criacuteticas das mais contundentes eacute que a teoria moral de MacIntyre
natildeo se apresenta com o mesmo vigor de sua criacutetica agrave modernidade O diagnoacutestico eacute
bom mas o remeacutedio natildeo parece tatildeo eficaz
A afirmaccedilatildeo proferida ilustra bem a grande dificuldade que o proacuteprio
pensamento contemporacircneo enfrenta Em geral os pensadores contemporacircneos
tomam a Tradiccedilatildeo com bastante propriedade isto eacute fazem um bom diagnoacutestico dos
principais problemas da Tradiccedilatildeo entretanto natildeo parecem assim tatildeo propositivos ou
suas soluccedilotildees natildeo se impotildee com a mesma forccedila de sua criacutetica
55
As criacuteticas ao projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade e os
encaminhamentos que proporcionaram a sua crise jaacute foram adequadamente
esclarecidos no Capiacutetulo II deste trabalho A proacutexima tarefa eacute justamente apresentar
a teoria de MacIntyre em Depois da Virtude e com isso resgatar a inteligibilidade do
discurso moral que se constitui como grande tarefa afirmativa desta obra de
MacIntyre
421 A natureza das virtudes tese central de Depois da Virtude
Os capiacutetulos XIV A natureza das virtudes e o XV As virtudes a unidade da
vida humana e o conceito de tradiccedilatildeo apresentam os elementos chave da tentativa de
MacIntyre em constituir uma teoria da moralidade No desenvolvimento de sua teoria
MacIntyre enfrenta a problemaacutetica das diferentes listas e concepccedilotildees de virtude Haacute
enorme diferenccedilas entre a concepccedilatildeo homeacuterica a aristoteacutelica e a neotestamentaacuteria
Eles nos oferecem listas diferentes e incompatiacuteveis das virtudes classificam em hierarquias diferentes e incompatiacuteveis Se incluiacutessemos autores ocidentais mais recentes a lista das diferenccedilas aumentaria ainda mais e se estendermos nossa pesquisa agrave cultura japonesa ou digamos ameriacutendia as diferenccedilas aumentariam ainda mais Seria faacutecil demais concluir que existem inuacutemeras concepccedilotildees rivais e alternativas das virtudes poreacutem mesmo dentro da tradiccedilatildeo que tracei natildeo existe uma concepccedilatildeo nuclear uacutenica (MACINTYRE 2007 p 181)23
Sem duacutevida haacute um nuacutemero surpreendente de diferenccedilas e incompatibilidades
entre as vaacuterias listas das vaacuterias tradiccedilotildees Somem-se a isso virtudes que eram
completamente desconhecidas como eacute o caso das virtudes da feacute esperanccedila e
caridade Elas eram completamente estranhas a Aristoacuteteles Contudo MacIntyre
percebe que mesmo havendo uma enorme diferenccedila entre a lista de virtudes do Novo
Testamento e de Aristoacuteteles elas possuem a mesma estrutura conceitual
Virtude eacute assim como para Aristoacuteteles uma qualidade cujo exerciacutecio leva agrave conquista do telos humano O bem para o homem eacute naturalmente um bem sobrenatural [no cristianismo]24 e natildeo soacute um
23ldquoThey offer us different and incompatible lists of the virtues they give a different rank order of
importance to different of the virtues and they have different and incompatible theory of the virtues If we extended our enquiry to Japanese say or American Indian cultures the differences would become greater still It would be all too easy to conclude that there are a number of rival and alternative conceptions of the virtues but even within the tradition which I have been delineating no single core conceptionrdquo
24Destaque nosso
56
bem natural pois o sobrenatural redime e completa a natureza (MACINTYRE 2007 p 184 )25
Uma segunda similaridade se daacute na relaccedilatildeo das virtudes como sendo um
meio para um fim que eacute a entrada do homem no Reino dos ceacuteus num futuro vindouro
Essa passagem se daacute na interioridade do homem assim como em Aristoacuteteles
MacIntyre salienta que este paralelismo entre o aristotelismo e o Novo Testamento eacute
realizado por Tomaacutes de Aquino e ldquouma caracteriacutestica fundamental desse paralelismo
eacute o modo como o conceito de vida boa para o homem antecede ao conceito de virtuderdquo
(MACINTYRE 2007 p 184) O autor ainda salienta que tanto em Aristoacuteteles quanto em
Tomaacutes o conceito de virtude eacute um conceito secundaacuterio
Haacute algo de cartesiano na atitude de MacIntyre ele potildee em duacutevida a
possibilidade de alcanccedilar um conceito central ou em suas palavras nuclear de
virtude o que possa proporcionar uma unidade conceitual agrave tradiccedilatildeo moral
fundamentada na Eacutetica das Virtudes Contudo foi analisando atentamente qual a
distinccedilatildeo entre as tradiccedilotildees e os diversos conceitos de virtudes que o autor visualizou
que o conceito de virtude era secundaacuterio O fato de ser secundaacuterio eacute um nuacutecleo
comum entre as tradiccedilotildees e isto o faz responder agrave pergunta o que pode tornar
inteligiacutevel o conceito de virtude
Eacute na resposta a esta pergunta que se torna claro o caraacuteter complexo histoacuterico e multifacetado do conceito central de virtude pois natildeo haacute menos de trecircs estaacutegios no desenvolvimento loacutegico do conceito que precisam ser identificados na ordem correta para que se possa entender o conceito principal de virtude e cada um desses estaacutegios tem seu proacuteprio contexto conceitual O primeiro estaacutegio requer uma explicaccedilatildeo contextualizadora do que chamei praacutetica o segundo uma explicaccedilatildeo do que jaacute caracterizei como ordem narrativa de uma vida humana singular e o terceiro uma explicaccedilatildeo muito mais completa do que a que elaborei ateacute agora do que constitui uma tradiccedilatildeo moral (MACINTYRE 2007 p 314-315 )26
Praacutetica Narrativa de uma Vida Humana Singular e Tradiccedilatildeo satildeo os elementos
da teoria moral macintyreana Esses estaacutegios obedecem a uma ordem temporal pois
25ldquoA virtue is as with Aristotle a quality the exercise of which leads to the achievement of the human
telos The good for man is of course a supernatural and not only a natural good bus supernature redeems and completes naturerdquo
26ldquoIt is in answering this question that the complex historical multi-layered character of the core concept of virtue becomes clear For there are no less than three stages in the logical development of the concept which have to be identified in order if the core conception virtue is to be understood and each of these stages has its own conceptual background The first stage requires a background account of what I have already characterized as the narrative order of a single human life and the third an account a good deal fuller than I have given up to now of what constitutes a moral traditionrdquo
57
o posterior pressupotildee o anterior mas natildeo o contraacuterio Assim como cada estaacutegio eacute
reinterpretado pelo posterior e oferece elementos essenciais agrave sua compreensatildeo
Deve-se pois passar a uma anaacutelise de cada um desses estaacutegios
422 O conceito de praacuteticas
Costumeiramente Aristoacuteteles fala da excelecircncia na atividade humana
referindo-se a algum tipo de praacutetica humana bem definida tocar flauta guerrear
pensar geometricamente Essas praacuteticas proporcionam a oportunidade de expressatildeo
das virtudes satildeo o campo onde elas se desenvolvem MacIntyre salienta que praacuteticas
natildeo tecircm o sentido usual nem tambeacutem satildeo a uacutenica base atraveacutes da qual as virtudes
satildeo exibidas Qual eacute pois o sentido de Praacutetica
Praacutetica eacute qualquer forma coerente e complexa de atividade humana cooperativa socialmente estabelecida por meio da qual os bens internos a essa forma de atividade satildeo realizados durante a tentativa de alcanccedilar os padrotildees de excelecircncia apropriados para tal forma de atividade e parcialmente dela definidores tendo como consequecircncia a ampliaccedilatildeo sistemaacutetica dos poderes humanos para alcanccedilar tal excelecircncia e dos conceitos humanos dos fins e dos bens envolvidos (MACINTYRE 2007 p 187)27
Parece natildeo haver escrito de eacutetica que natildeo traga exemplo Assim MacIntyre
apresenta o exemplo de uma crianccedila de sete anos que ele gostaria de ensinar xadrez
mas que ela natildeo estaacute imediatamente interessada no aprendizado do jogo Como toda
crianccedila gosta de doce ele o oferece a ela desde que ela jogue xadrez uma vez por
semana pois aiacute ela receberaacute 50 centavos em doces e se ela vencer vai receber mais
50 centavos em doces Desse modo a crianccedila estaacute motivada e joga para ganhar
Apenas os doces motivam proporcionam agrave crianccedila um bom motivo para jogar xadrez
Ela natildeo tem razatildeo para trapacear e estaacute cheia de motivos para trapacear contanto
que consiga fazecirc-lo com ecircxito Entretanto haveraacute um momento em que a crianccedila vai
encontrar nos bens especiacuteficos do xadrez na aquisiccedilatildeo de certa capacidade
especialiacutessima imaginaccedilatildeo estrateacutegica e intensidade competitiva Este seraacute um novo
conjunto de razotildees e razotildees agora existem natildeo apenas para vencer em determinada
27ldquoBy a lsquopraticersquo I am going to mean any coherent and complex form of socially established cooperative
human activity through which goods internal to that form form of activity are realized in the course of trying to achieve those standards of excellence which are appropriate to and partially definitive of that form of activity with the result that human powers to achieve excellence and human conceptions of the ends and goods involved are systematically extendedrdquo
58
ocasiatildeo mas para tentar destacar-se de todos os modos que o jogo de xadrez exigir
Caso a crianccedila trapaceie natildeo estaraacute derrotando o oponente mas a si mesma (cf
MACINTYRE 2007 p 188)
Os bens internos ligados a essa atividade satildeo realizados durante a tentativa
de alcanccedilar os padrotildees de excelecircncia apropriados a tal forma de atividade O sentido
de bem interno pode ser explicitado de duas maneiras haacute certa capacidade que
apenas o exerciacutecio dessa atividade pode proporcionar no caso do jogo de xadrez ou
de qualquer outro da mesma natureza eacute a capacidade especialiacutessima de jogaacute-lo a
outra maneira se refere ao fato de que esses bens soacute podem ser identificados e
reconhecidos pela experiecircncia em participar da atividade
Bens externos e internos ainda trazem outra caracteriacutestica relevante que
proporciona uma maior compreensatildeo e distinccedilatildeo Bens externos quando
conquistados satildeo sempre posse de algueacutem Aleacutem disso sua posse eacute limitada de
modo que eles natildeo estatildeo disponiacuteveis para todos sendo portanto objeto de disputa e
concorrecircncia Por outro lado bens internos embora sejam objeto de competiccedilatildeo sua
conquista se torna disponiacutevel a toda a comunidade envolvida na praacutetica Como pois
a noccedilatildeo de bens internos se relaciona com a noccedilatildeo de virtude A resposta a esta
questatildeo se apresenta na primeira definiccedilatildeo provisoacuteria de virtude que Macintyre
oferece ldquoa virtude eacute uma qualidade humana adquirida cuja posse e exerciacutecio costuma
nos capacitar a alcanccedilar aqueles bens internos agraves praacuteticas e cuja ausecircncia nos
impede para todos os efeitos de alcanccedilar tais bensrdquo (MACINTYRE 2007 p 191)28
A definiccedilatildeo provisoacuteria de virtude elucida sua funccedilatildeo na vida humana seu papel
eacute proporcionar ao ser humano o acesso aos bens internos agraves praacuteticas Sua ausecircncia
significa de certo modo a negaccedilatildeo do acesso a esses bens
Ao conceito macintyreano de praacuteticas sejam elas jogos artes ciecircncias
atitudes tambeacutem pertence o pressuposto de que os bens internos a essas praacuteticas soacute
podem ser adquiridos por meio da proacutepria subordinaccedilatildeo dentro da praacutetica no
relacionamento com outros praticantes Toda praacutetica neste caso requer certo tipo de
relacionamento entre os seus integrantes A funccedilatildeo das virtudes eacute apresentar-se como
uma referecircncia para definir o modo de relaccedilatildeo entre os integrantes da praacutetica Eacute
necessaacuteria a aceitaccedilatildeo dos componentes necessaacuterios que a praacutetica foi aos poucos
28ldquoA virtue is an acquired human quality the possession and exercise of which tends to enable us to
achieve those goods which are internal to practices and the lack of which effectively prevents us from achieving any such goodrdquo
59
estabelecendo como padratildeo interno de excelecircncia Diga-se isso principalmente da
justiccedila coragem e da sinceridade A natildeo aceitaccedilatildeo desses padrotildees eacute anaacuteloga a estar
disposto a trapacear assim como a crianccedila do exemplo acima Assim faz-se
necessaacuteria uma constante valorizaccedilatildeo das virtudes e de seu papel na aquisiccedilatildeo dos
bens internos
A relevacircncia da sinceridade da justiccedila e da coragem eacute realccedilada por MacIntyre
dado que essas virtudes definem o relacionamento entre os integrantes de uma
praacutetica
Acredito entatildeo que do ponto de vista desses tipos de relaccedilotildees sem os quais as praacuteticas natildeo se mantecircm a sinceridade a justiccedila e a coragem e talvez algumas outras satildeo excelecircncias genuiacutenas satildeo virtudes agrave luz das quais precisamos caracterizar a noacutes mesmos e aos outros seja qual for nossa perspectiva moral ou os coacutedigos especiacuteficos da nossa sociedade Esse reconhecimento de natildeo podermos escapar agrave definiccedilatildeo dos nossos relacionamentos segundo tais bens eacute perfeitamente compatiacutevel com o reconhecimento de que cada sociedade tem e tem tido coacutedigos diferentes de sinceridade justiccedila e coragem (MACINTYRE 2007 p 192)29
Embora os coacutedigos se apresentem como muito distintos eles apenas o satildeo
sob certos aspectos distintos das virtudes particularmente o que natildeo acontece
poreacutem eacute o florescimento das virtudes em comunidades que natildeo as valorizem As
virtudes satildeo fundamentais porque elas consolidam as praacuteticas e a aquisiccedilatildeo dos bens
relativos a elas
As praacuteticas no entanto natildeo devem ser confundidas com um conjunto de
capacidades teacutecnicas O que distingue o modo como os conceitos dos devidos bens
e fins aos quais as capacidades teacutecnicas servem eacute a aptidatildeo que uma capacidade
teacutecnica proporciona agrave transformaccedilatildeo e ao enriquecimento dos poderes humanos e da
consideraccedilatildeo por seus proacuteprios bens internos Estes por sua vez tambeacutem vatildeo definir
parcialmente cada praacutetica ou tipo de praacutetica
MacIntyre acrescenta que ldquoas praacuteticas nunca tecircm uma meta ou metas fixas
definitivamente ndash a pintura [por exemplo] natildeo tem tal meta nem a Fiacutesica ndash mas as
29ldquoI take it then that from the standpoint of those types of relationship without practices cannot be
sustained truthfulness justice and courage ndash and perhaps some others ndash are genuine excellences are virtues in the light of which we have to characterize ourselves and others whatever our private moral standpoint or our societyrsquos particular codes may be For this recognition that we cannot escape the definition of our relationshipsin terms of such goods is perfectly compatible with the acknowledgment that different societies have and have had different codes of truthfulness justice and couragerdquo
60
proacuteprias metas se transmutam ao longo da histoacuteriardquo (MACINTYRE 2007 p 193 )30 Eacute
pois em virtude da transmutaccedilatildeo das metas que as praacuteticas se modificam e
consequentemente cada praacutetica seraacute portadora de uma histoacuteria peculiar diferente da
histoacuteria do aprimoramento de uma determinada capacidade teacutecnica Esta eacute pois uma
dimensatildeo histoacuteria fundamental na relaccedilatildeo entre praacuteticas e virtudes
Praacuteticas virtudes bens internos e externos se relacionam pois da seguinte
maneira numa sociedade que natildeo valoriza as virtudes soacute poderia haver um
reconhecimento dos bens externos e em hipoacutetese alguma dos bens internos no
contexto das praacuteticas MacIntyre acrescenta ldquoque em qualquer sociedade que
reconhecesse somente os bens externos a concorrecircncia seria a caracteriacutestica
predominante e ateacute exclusivardquo (MACINTYRE 1988 p 196)31
Neste sentido eacute possiacutevel delinear uma relaccedilatildeo distinta entre as virtudes e os
bens externos e internos A posse das virtudes eacute necessaacuteria para se alcanccedilar os bens
internos entretanto esta mesma posse pode dificultar o acesso a bens externos pois
o cultivo de determinadas virtudes como a justiccedila a sinceridade e a coragem pode
muitas vezes impossibilitar o acesso agraves riquezas ao prestiacutegio ao status Nesse
sentido talvez seja possiacutevel pensar que na verdade a riqueza o prestiacutegio e o status
sejam incompatiacuteveis com uma vida virtuosa
Desse modo no sentido empregado por MacIntyre as virtudes mesmo
proporcionando os bens internos agraves praacuteticas justificam-se independentes de seus
resultados pois embora elas sejam necessaacuterias agraves praacuteticas o acesso aos bens natildeo
se daacute de maneira uniacutevoca
423 Ordem narrativa de uma vida humana singular
O desenvolvimento da noccedilatildeo de ordem narrativa de uma vida humana singular
eacute uma resposta agrave questatildeo formulada no fim do capiacutetulo XIV de Depois da Virtude
Este elemento fundamental da teoria moral macintyreana aprofunda e enriquece o seu
conceito provisoacuterio de virtude explicitado no toacutepico acima A pergunta se esboccedila da
seguinte maneira
30ldquoPratices never have a goal or goals fixed for all time ndash painting has no such goal nor has physics ndash
but the goals themselves are transmuted by the history of the activityrdquo 31ldquoAnd in any society which recognized only external goods competitiveness would be the dominant and
even exclusive featurerdquo
61
seraacute racionalmente justificaacutevel conceber cada vida humana como uma unidade de modo que possamos tentar especificar cada uma dessas vidas como tendo o seu bem de modo que possamos entender as virtudes como tendo a funccedilatildeo de capacitar o indiviacuteduo a fazer de sua vida uma determinada espeacutecie de unidade e natildeo de outra (MACINTYRE 2007 p 203)32
O objetivo de MacIntyre neste ponto eacute oferecer uma compreensatildeo de cada
vida humana como um todo como uma unidade na qual o caraacuteter desta unidade
ofereccedila agraves virtudes um telos apropriado O primeiro passo que eacute o iniacutecio do Cap XV
de Depois da virtude eacute ultrapassar obstaacuteculos que contrariam a ideia de unidade da
vida humana o primeiro de natureza socioloacutegica e o segundo de natureza filosoacutefica
ou ainda da teoria socioloacutegica
O obstaacuteculo social agrave ideia de unidade da vida humana singular proveacutem da
maneira como a sociedade moderna passou a conceber a vida do indiviacuteduo sua vida
eacute pensada na forma de segmentos cada um com seu proacuteprio modus operandi nos
quais ldquoo trabalho eacute pensado separado de lazer a vida privada eacute afastada da vida
puacuteblica a vida empresarial eacute separada da vida pessoalrdquo (MACINTYRE 1988 p 204)33
Estas separaccedilotildees estatildeo articuladas de modo tal que a ideia de unidade da vida do
indiviacuteduo lhe eacute completamente estranha
Os obstaacuteculos filosoacuteficos se referem agrave ideia de que a vida humana eacute articulada
como uma sequecircncia de atos e episoacutedios individuais Numa concepccedilatildeo existencialista
por exemplo a vida humana se torna natildeo visualizaacutevel dado que indiviacuteduo estaacute
constantemente a desempenhar papeis que natildeo dizem respeito a ele imediatamente
MacIntyre toma o Sartre da Naacuteusea a fim de apresentar a seguinte tese
a narrativa eacute bem diferente da vida e que apresentar a vida humana em forma de narrativa eacute sempre deturpaacute-la De acordo com este pensamento conclui MacIntyre natildeo existiriam narrativas verdadeiras e a vida humana consistiria em accedilotildees que natildeo conduzem a lugar nenhum (MACINTYRE 2001b p 360)
Esta concepccedilatildeo existencialista de um eu separado de seus papeis
impossibilitaria o espaccedilo social de desenvolvimento das virtudes A criacutetica de
MacIntyre a tese de Sartre eacute a de para afirmar que nenhuma narrativa eacute possiacutevel
Sartre se utiliza de uma narrativa aleacutem disso MacIntyre afirma tambeacutem se poderia
32ldquois it rationally justifiable to conceive of each human life as a unity so that we may try to specify each
such life as having their function in enabling an individual to make of his or her life one kind of unity rather than anotherrdquo
33 ldquowork is divided from leisure private life from public the corporate from the personalrdquo
62
questionar a Sartre como seriam os atos humanos destituiacutedos de qualquer narrativa
mesmo que deturpadora A resposta agrave pergunta eacute o silecircncio completa o autor
Para o desenvolvimento das virtudes eacute fundamental compreender a vida
humana individual como uma unidade Aleacutem disso ldquoa unidade de virtude na vida de
algueacutem soacute se torna inteligiacutevel como caracteriacutestica de uma vida unitaacuteria uma vida que
se possa compreender e se avaliar na iacutentegrardquo (MACINTYRE 2007 p 205 )34 Como as
abordagens anteriores que representam uma antiacutetese agrave noccedilatildeo da vida humana
individual como uma unidade satildeo heranccedila da proacutepria concepccedilatildeo moderna sobre
homem e o seu ser-no-mundo faz-se necessaacuteria a exposiccedilatildeo do ldquoconceito de um eu
cuja unidade reside na unidade de uma narrativa que une o nascimento agrave vida e agrave
morte em forma de uma narrativa com comeccedilo meio e fimrdquo (MACINTYRE 2007 p
205)35
O conceito de eu como uma unidade narrativa vai dar a Macintyre a
oportunidade de passar para o segundo momento do seu conceito virtude que natildeo se
limita exclusivamente agraves praacuteticas O Prof Helder de Carvalho comenta sobre a
problemaacutetica de limitar o conceito de virtude ao conceito de praacuteticas
Se restringirmos a definiccedilatildeo do conceito de virtude ao acircmbito das praacuteticas fatalmente chegaremos a uma situaccedilatildeo em que a possibilidade do conflito traacutegico se efetiva uma situaccedilatildeo em que as pretensotildees de uma praacutetica podem ser incompatiacuteveis com as de outras ambas apontando para direccedilotildees diferentes de tal forma que podemos nos ver oscilando de um modo arbitraacuterio entre uma posiccedilatildeo e outra sem conseguirmos constituir propriamente uma escolha racional (CARVALHO 2001 p 14)
A superaccedilatildeo do elemento arbitraacuterio da vida moral e a consistecircncia do
conceito de virtude satildeo proporcionadas pelo conceito de unidade narrativa de uma
vida humana individual pensada integralmente A accedilatildeo humana deve pois ser
articulada por um tipo de narrativa histoacuterica que seja ldquoo gecircnero fundamental e
essencial para a caracterizaccedilatildeo das accedilotildees humanasrdquo (MACINTYRE 2007 p 208 )36 A
perspectiva narrativa garante que os diversos episoacutedios da vida de uma pessoa
ganhem lugar e sentido por que natildeo dizer inteligibilidade Com efeito essa unidade
34ldquoAnd the unity of a virtue in someonersquos life is intelligible only as a characteristc of a unitary life a life
that can be conceived and evaluated as a wholerdquo 35ldquoa concept of a self whose unity resides in the unity of a narrative which links birth to life to death as
narrative beginning to middle to endrdquo 36ldquonarrative history of a certain kind turns out to be basic and essential genre for the characterization of
human actionsrdquo
63
somente eacute possiacutevel porque segundo MacIntyre as accedilotildees estatildeo articuladas atraveacutes
de uma perspectiva histoacuterica Uma vida humana singular pode ser compreendida na
forma de uma narrativa e consequentemente a ela tambeacutem proporciona a
compreensatildeo da vida e da accedilatildeo dos outros
Eacute porque todos vivenciamos narrativas nas nossas vidas e porque entendemos nossa proacutepria vida nos termos das narrativas que vivenciamos que a forma de narrativa eacute adequada para se entender os atos de outras pessoas (MACINTYRE 1988 p 212)37
A Narrativa natildeo deve tambeacutem ser pensada exclusivamente de modo singular
pois as diversas narrativas se intercomunicam estatildeo relacionadas umas agraves outras
Prof Helder de Carvalho salienta que a ldquovida individual para MacIntyre consiste na
unidade de uma narrativa encarnada numa vida singular que na forma de atos e
palavras tenta responder sistematicamente agraves questotildees acerca do que eacute bom para o
indiviacuteduo e do que eacute bom para o homemrdquo (CARVALHO 2001 p 15) Com a resposta a
essas duas questotildees a saber o que eacute bom para o indiviacuteduo e para o homem se tem
a unidade da vida moral tanto individualmente quanto para um grupo Aleacutem disso
enfatiza MacIntyre ldquoa formulaccedilatildeo sistemaacutetica dessas duas questotildees e a tentativa de
respondecirc-las tanto em atos quanto em palavras que proporcionam unidade agrave vida
moralrdquo (MACINTYRE 2007 p 218)38
A unidade da vida moral deve ser pensada como uma unidade de busca
narrativa Esse conceito medieval possui duas caracteriacutesticas fundamentais
primeiramente a busca soacute pode se iniciar se houver ao menos uma noccedilatildeo de telos
isto eacute deve-se ter ao menos uma noccedilatildeo do seja o bem para o homem Esta primeira
caracteriacutestica eacute alcanccedilada atraveacutes da resposta agravequelas questotildees ora mencionadas
A segunda eacute a noccedilatildeo de que a busca natildeo se refere a algo jaacute adequadamente
caracterizado pois eacute no decorrer da busca e somente no enfrentamento de inuacutemeras
vicissitudes que se pode intuir meta da busca A busca tem pois um caraacuteter
pedagoacutegico no aprendizado moral e no processo de conhecimento de si
A relaccedilatildeo entre unidade narrativa da vida e a noccedilatildeo de busca aperfeiccediloam a
noccedilatildeo macintyreana de virtude
37ldquoIt is because we all live out narratives in our lives and because we understand our own lives in terms
of the narratives that we live out that the form of narrative is appropriate for understanding the actions of othersrdquo
38ldquoit is the systematic asking of these two questions and the attempt to answer them in deed as well as in word which provide the moral life with its unityrdquo
64
As virtudes portanto devem ser compreendidas como as disposiccedilotildees que aleacutem de nos sustentar e capacitar para alcanccedilar os bens internos agraves praacuteticas tambeacutem nos sustentam no devido tipo de busca pelo bem capacitando-nos a superar os males os riscos as tentaccedilotildees e as tensotildees com que nos deparamos e que nos forneceratildeo um autoconhecimento cada vez maior (MACINTYRE 2007 p 219)39
O conjunto das virtudes iraacute dar conta natildeo apenas dos elementos comunitaacuterios
nos quais a busca pelo bem eacute dada em conjunto mas inclui agora virtudes
necessaacuterias agrave investigaccedilatildeo acerca do caraacuteter do bem que se almeja MacIntyre
conclui afirmando que chegou a uma conclusatildeo provisoacuteria sobre a vida virtuosa para
o homem ldquoa vida virtuosa para o homem eacute a vida passada na procura da vida boa
para o homemrdquo (MACINTYRE 2007 p 219)40 Com efeito as virtudes que satildeo
necessaacuterias satildeo aquelas que mais proporcionarem esse entendimento Ademais elas
esclarecem em relaccedilatildeo aos bens natildeo apenas em relaccedilatildeo agraves praacuteticas mas tambeacutem agrave
vida individual proporcionada por uma unidade narrativa que rompe com a noccedilatildeo de
vida e tempo segmentados
424 Tradiccedilatildeo
O conceito de tradiccedilatildeo apresenta sua relevacircncia a partir da consciecircncia de
uma identidade individual que natildeo pode ser concebida arrancada da rede de
significados e dos contextos na histoacuteria das comunidades que forjaram esta mesma
identidade Deve-se pois pensar que eacute necessaacuteria ao indiviacuteduo a posse de uma
identidade histoacuterica Busca-se a identidade moral no interior da famiacutelia do bairro da
cidade sem natildeo entanto se estar obrigados a assumir o que Macintyre intitula de
limitaccedilotildees morais dessas particulares formas histoacutericas de comunidade O ponto de
partida da busca pela identidade histoacuterica eacute justamente as particularidades Iniciando
pelas particularidades busca-se o bem o universal
A identidade eacute em parte resultado daquilo que o indiviacuteduo herdou daqueles
que o precederam O presente de uma pessoa natildeo possui sentido independente das
39ldquoThe virtues therefore are to be understood as those dispositions which will not only sustain practices
and enable us to achieve the goods internal to practices but which will also sustain us in the relevant kind of quest for the good by enabling us to overcome the harms dangers temptations and distractions which we encounter and which will furnish us with increasing self-knowledge and increasing knowledge of the goodrdquo
40ldquothe good life for man is the life seeking are those which will enable us to understand what more and what else the good life for man isrdquo
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marcas e influecircncia de um passado que natildeo eacute simplesmente aquilo que jaacute natildeo eacute
mas que manteacutem com o presente uma relaccedilatildeo na forma de um vigor de ter sido
Assim a pessoa se descobre como partiacutecipe de uma tradiccedilatildeo quer goste ou natildeo quer
reconheccedila ou natildeo Ao desenvolver o conceito de Praacuteticas MacIntyre afirmou que elas
sempre tecircm histoacuterias e o que elas satildeo dependem do modo como cada geraccedilatildeo a
compreende e a transmite
Neste sentido as virtudes sustentam relacionamentos necessaacuterios agraves praacuteticas
como tambeacutem sustentam a relaccedilatildeo com o passado pensado a partir do conceito de
tradiccedilatildeo Qual eacute pois o conceito macintyreano de tradiccedilatildeo Segundo MacIntyre ldquouma
tradiccedilatildeo viva eacute entatildeo uma argumentaccedilatildeo que se estende na histoacuteria e eacute socialmente
incorporada e eacute uma argumentaccedilatildeo em parte exatamente sobre os bens que
constituem tal tradiccedilatildeordquo (MACINTYRE 2007 p 222)41 A procura pelos bens no interior
de uma tradiccedilatildeo atravessa muitas vezes geraccedilotildees inteiras Assim sendo a procura
do bem individual natildeo acontece separada da tradiccedilatildeo mas eacute realizada sob as
circunstacircncias definidas pela tradiccedilatildeo da qual um indiviacuteduo eacute partiacutecipe Essa procura
se daacute em relaccedilatildeo aos bens internos agraves praacuteticas e tambeacutem aos bens de uma uacutenica
vida Isto significa que ldquohistoacuteria de uma praacutetica na nossa eacutepoca estaacute em geral e
caracteristicamente inserida na histoacuteria mais longa e ampla da tradiccedilatildeo e por meio
da qual a praacutetica se torna inteligiacutevel e chega assim agrave forma atual que nos foi
transmitidardquo (MACINTYRE 2007 p 222)42 A inteligibilidade da histoacuteria de cada pessoa
ganha seu sentido no interior da histoacuteria de cada tradiccedilatildeo
A sustentaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo sua conservaccedilatildeo e seu decliacutenio dependem do
exerciacutecio das virtudes que lhe satildeo correspondentes ou agrave falta dele Neste sentido as
virtudes tambeacutem servem como sustentaacuteculo para as tradiccedilotildees ou seja a permanecircncia
ou a extinccedilatildeo delas mantecircm relaccedilatildeo com o exerciacutecio das virtudes
A convicccedilatildeo de MacIntyre eacute a de que a falta de justiccedila sinceridade coragem
e de outras virtudes intelectuais correspondentes corrompem tradiccedilotildees mas tambeacutem
as praacuteticas que foram forjadas na proacutepria tradiccedilatildeo da qual elas (as praacuteticas) satildeo reflexo
(Cf MACINTYRE 2007 p 223) Haacute aqui a necessidade de se reconhecer a importacircncia
41ldquoA living tradition then is an historically extended socially embodied argument and an argument
precisely in part about the goods which constitute that traditionrdquo 42ldquothe history of a practice in our time is generally and characteristically embedded in and made
intelligible in terms of the larger and longer history of the tradition through which the practice in its present form was conveyed to usrdquo
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das tradiccedilotildees das quais se faz parte no entendimento de suas possibilidades futuras
que o passado tornou disponiacutevel no presente
O uacuteltimo conceito da teoria moral de MacIntyre atraveacutes da noccedilatildeo de tradiccedilatildeo
complementa sua compreensatildeo do conceito de virtude A busca pelo bem do homem
natildeo tem sentido sem se considerar a tradiccedilatildeo que alimentou de experiecircncias
conceitos opiniotildees a identidade de uma pessoa Assim o autor compreende a moral
como uma relaccedilatildeo entre o eu o contexto social e a histoacuteria
Esta seccedilatildeo do trabalho explicitou o projeto de Depois da Virtude atraveacutes da
exposiccedilatildeo da segunda tarefa da obra que eacute formular uma teoria moral capaz de
resgatar a inteligibilidade do discurso moral Embora esta segunda tarefa aparente ter
sido ofuscada pelo grande descontentamento do autor em relaccedilatildeo agrave Filosofia Moral
Moderna o autor oferece uma alternativa agrave moral do dever ou uma moral utilitarista
Praacuteticas Unidade narrativa de uma vida humana individual e o conceito de Tradiccedilatildeo
compotildeem o conceito macintyreano de virtude e se constituem no nuacutecleo de sua teoria
moral
O proacuteximo passo eacute empreender uma anaacutelise agraves principais criacuteticas ao seu
pensamento e verificar um modo de como eacute possiacutevel defender a pertinecircncia de uma
Eacutetica das Virtudes dando continuidade a uma tarefa que o proacuteprio MacIntyre indicou
em sua obra apresentar como Tomaacutes de Aquino empreende uma reconciliaccedilatildeo entre
o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica como tambeacutem verificar de que modo o feito de
Tomaacutes ajuda a compreender a moral contemporacircnea
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5 RECONCILIACcedilAtildeO ENTRE O PENSAMENTO CRISTAtildeO E O ARISTOTELISMO
A grandeza do pensamento de MacIntyre reside no esforccedilo que ele teve em
tentar estabelecer uma teoria moral ao modo de uma Eacutetica das Virtudes Entretanto
atraveacutes de seu proacuteprio testemunho vecirc-se que a suas consideraccedilotildees acerca do
pensamento de Tomaacutes de Aquino foram insuficientes ldquoPenso agora por exemplo que
a minha criacutetica anterior agraves teses de Santo Tomaacutes sobre a unidade das virtudes estava
simplesmente errada devido em parte a uma leitura equivocada do Aquinaterdquo
(MACINTYRE 2001a p 8) Assim sendo a segunda parte deste trabalho assume como
objetivo principal a apresentaccedilatildeo da Reconciliaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo Biacuteblica e o
Aristotelismo
A presente pesquisa jaacute sinalizou que embora MacIntyre seja devedor do
pensamento de Gertrude Anscombe eles possuem posicionamentos diferentes
acerca da antropologia Anscombe sugere que o ponto de partida estaacute numa
psicologia filosoacutefica enquanto que MacIntyre abre matildeo desta antropologia por
consideraacute-la uma lsquobiologia metafiacutesicarsquo cujo conceito de homem seria lsquoahistoacutericorsquo e
lsquoaculturalrsquo distanciando-se assim do meacutetodo histoacuterico por ele utilizado
Posteriormente MacIntyre volta atraacutes e assume a biologia aristoteacutelica no conceito de
homem Esta pesquisa compartilha com Anscombe a consciecircncia da necessidade de
uma psicologia filosoacutefica e segundo esta perspectiva daraacute continuidade agrave tarefa
indicada por MacIntyre
A ideia de uma reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo cristatilde inclui a
necessidade de uma retomada do pensamento de Aristoacuteteles Na dinacircmica entre atos
e virtudes Aristoacuteteles considera que as accedilotildees possuem certa precedecircncia sobre as
disposiccedilotildees Ele afirma na EN II 1-2 que ldquoeacute a partir dos atos repetidos em uma certa
direccedilatildeo que adquirimos as disposiccedilotildees correspondentesrdquo Os atos tambeacutem
prevalecem sobre a disposiccedilatildeo por maior que seja o haacutebito de um agente ele sempre
pode em relaccedilatildeo a cada accedilatildeo particularmente agir diferentemente Dessa maneira
sendo as virtudes um modo de disposiccedilatildeo da alma elas natildeo podem prescindir de uma
reflexatildeo sobre a teoria dos atos
Entre as objeccedilotildees que podem ser feitas agrave proposta moral de MacIntyre eacute que o
autor de certo modo potildee o conceito de virtude como conceito primordial
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prescindindo assim de uma elaboraccedilatildeo teoacuterica que eacute anterior e condicionante ao
conceito de virtude que eacute uma teoria das accedilotildees A consideraccedilatildeo das virtudes a partir
de uma teoria das accedilotildees ao contraacuterio do que se poderia pensar natildeo representa um
retorno agrave centralidade das accedilotildees em detrimento da centralidade do agente o que seria
uma contradiccedilatildeo agrave criacutetica da moral deontoloacutegica
Embora o caraacuteter do agente seja crucial para Aristoacuteteles a sua relevacircncia para
o julgamento de uma accedilatildeo proveacutem do fato de que uma accedilatildeo eacute entendida de tal maneira
que inviabiliza um procedimento fundado em regras previamente estipuladas Essa
compreensatildeo segundo Marco Zingano eacute o que favorece a busca por um agente
moralmente bom quando devemos descobrir qual eacute a coisa certa para ser feita (cf
ZINGANO 2010 p 32) A questatildeo fundamental estaacute natildeo em afirmar que um ato
moralmente bom eacute o que deve ser feito por um agente que eacute igualmente bom mas
em reconhecer que um ato eacute bom porque corresponde agraves propriedades de evitar o
viacutecio seja na falta ou no excesso Tornar-se bom eacute a qualidade do agente que
frequentemente agiu desse modo Neste sentido eacute possiacutevel afirmar que o lugar
relevante das virtudes deve-se pois agrave certa teoria das accedilotildees
Afirmar que a centralidade das virtudes depende das accedilotildees natildeo desfaz a
importacircncia das virtudes mas agraves coloca numa posiccedilatildeo secundaacuteria em relaccedilatildeo agraves
accedilotildees Uma vez que elas derivam das accedilotildees eacute compreensiacutevel vecirc-las como efeito de
boas accedilotildees Desse modo eacute importante compreender que a eacutetica de Aristoacuteteles eacute uma
Eacutetica das Virtudes natildeo porque as virtudes sejam fundamento do bem agir mas porque
as virtudes estatildeo fundamentadas em accedilotildees das quais as virtudes sinalizam que satildeo
moralmente boas Assim sendo faz-se necessaacuteria uma exposiccedilatildeo da teoria
aristoteacutelica dos atos
A teoria dos atos exposta na EN proporciona a compreensatildeo dos
fundamentos de filosofia moral de Aristoacuteteles Segundo Henrique de Lima Vaz essa
filosofia traz consigo elementos cosmocecircntricos Por sua vez alguns desses
elementos seratildeo retomados por Tomaacutes de Aquino o qual realizaraacute um processo que
se denomina aqui de reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo e a filosofia de
Aristoacuteteles A exposiccedilatildeo dos pontos fundamentais desta reconciliaccedilatildeo se constitui na
tarefa mais fundamental deste trabalho O alcance deste objetivo se constitui
conforme se compreende aqui na continuidade da tarefa deixada em aberto por
MacIntyre em Depois da Virtude Esta tarefa eacute necessaacuteria uma vez que se pode
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afirmar que muitos dos conceitos morais contemporacircneos possuem um conteuacutedo
semacircntico influenciado pelo pensamento cristatildeo Os conceitos a que esta pesquisa se
refere satildeo o de intenccedilatildeo consciecircncia obrigaccedilatildeo liberdade livre-arbiacutetrio e felicidade
Muitos destes conceitos ou natildeo foram aprofundados pelos gregos ou foram ateacute
desconhecidos deles
O posicionamento fundamental deste trabalho eacute o de que a exposiccedilatildeo do modo
como Tomaacutes de Aquino promove a retomada do pensamento aristoteacutelico na filosofia
moral compatibilizando-o com o pensamento cristatildeo garante de certa maneira uma
consciecircncia de que conceitos importantes da filosofia moral natildeo satildeo os mesmos se
essa leitura cristatilde natildeo for considerada
O elemento central desta compatibilizaccedilatildeo se encontra na siacutentese entre o
horizontalismo da moral aristoteacutelica e o verticalismo da Teologia Cristatilde Embora estes
dois conceitos ainda mereccedilam um melhor esclarecimento esta siacutentese se constitui
como princiacutepio que guia o problema tomista da Beatitude e do Fim uacuteltimo do homem
Aristoacuteteles seguindo a articulaccedilatildeo da Eacutetica Antiga tem a Eudaimonia como ideia
central da vida moral Tomando esta ideia sob a acepccedilatildeo de Beatitude Tomaacutes de
Aquino ultrapassa a ideia aristoteacutelica primitiva de Eudaimonia rompendo assim com
os cosmocentrismo da Eacutetica Antiga na qual a moral aristoteacutelica tambeacutem estava
inserida
O desenvolvimento deste capiacutetulo cumpre a seguinte orientaccedilatildeo
primeiramente analisar a teoria aristoteacutelica dos atos como tambeacutem a retomada e o
desenvolvimento tomista dos conceitos necessaacuterios agraves accedilotildees Em seguida discutir de
que maneira os elementos da teoria aristoteacutelica dos atos satildeo retomados e que
encaminhamentos eles tecircm com o pensamento cristatildeo Finalmente deve-se
desenvolver o modo como Tomaacutes de Aquino ultrapassa o cosmocentrismo da eacutetica
de Aristoacuteteles
51 AS VIRTUDES E A TEORIA ARISTOTEacuteLICA DOS ATOS ndash EN III 1-8
Foi afirmado que Aristoacuteteles assumia uma posiccedilatildeo de precedecircncia dos atos em
relaccedilatildeo agraves virtudes Para essa finalidade preferir-se-aacute o texto da EN em virtude de
seu peso na Tradiccedilatildeo pelo modo como a obra estaacute articulada e pela significaccedilatildeo que
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a obra conquistou na histoacuteria da filosofia moral Esta seccedilatildeo se dedica a mostrar como
o estagirita desenvolve sua teoria dos atos cuja seccedilatildeo se situa no livro III 1-8
Aristoacuteteles inicia a seccedilatildeo da EN esclarecendo que a virtude diz respeito a
emoccedilotildees e accedilotildees e de que maneira os atos voluntaacuterios satildeo louvados ou censurados
ao passo que os involuntaacuterios satildeo objeto de perdatildeo e por vezes de piedade Em
seguida ele assinala a importacircncia de os estudiosos da virtude e os legisladores
definirem o voluntaacuterio e o involuntaacuterio (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III
1 1109 b30)
511 Do voluntaacuterio e do involuntaacuterio
A primeira questatildeo relevante acerca das accedilotildees eacute a compreensatildeo dos atos
voluntaacuterios e involuntaacuterios Existe uma voluntariedade em relaccedilatildeo a coisas exteriores
na forma de causas motoras quando estas de apresentam na forma de bem
Contrariamente o involuntaacuterio diz respeito aos moacutebeis externos quando estes se
apresentam de modo forccediloso ou por ignoracircncia ldquoParecem ser involuntaacuterias as accedilotildees
praticadas por forccedila ou por ignoracircncia Eacute forccediloso o ato cujo princiacutepio eacute exterior ao
agente princiacutepio para o qual o agente ou paciente em nada contribuirdquo (ARISTOacuteTELES
Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a1)43
Existem accedilotildees que se desenvolvem de uma maneira mista Aristoacuteteles chama
a atenccedilatildeo para accedilotildees realizadas por meio de males maiores e estas mesmo
indesejadas satildeo assumidas em virtude das circunstacircncias Assim ele diz dos
navegantes que para evitar o naufraacutegio se livram da carga Embora forccediladas estas
accedilotildees se assemelham agraves accedilotildees voluntaacuterias pois ldquosatildeo escolhidas no momento em que
satildeo praticadas e o fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeo Voluntaacuterio e involuntaacuterio
entatildeo devem ser ditos com referecircncia ao momento em que se pratica a accedilatildeordquo
(ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a10)44
Haacute um elemento curioso nesta uacuteltima afirmaccedilatildeo de Aristoacuteteles quando este diz
que o fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeo Corriqueiramente se diz que a finalidade
natildeo pertence agrave deliberaccedilatildeo do agente Talvez seja possiacutevel afirmar que existe uma
classe de fins que sejam abertos agrave eleiccedilatildeo do agente ou ainda que o fim de uma
43 ldquoβίαιον δὲ οὗ ἡ ἀρχὴ ἔξωθεν τοιαύτη οὖσα ἐν ᾗ μηδὲν συμβάλλεται ὁ πράττων ἢ ὁ πάσχωrdquo 44 ldquoκαὶ τὸ ἑκούσιον δὴ καὶ τὸ ἀκούσιον ὅτε πράττει (15) λεκτέονrdquo
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accedilatildeo tenha certa dinamicidade pois ldquoo fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeordquo
(ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a10)45 Este foi o caso por
exemplo dos navegantes que antes tinham o objetivo de levar a carga mas diante
da tempestade livraram-se da carga a fim de salvar suas vidas Intimamente os
navegantes natildeo gostariam de se livrar da carga entretanto voluntariamente a
jogaram no mar
Deve-se afirmar tambeacutem que para ser involuntaacuteria natildeo eacute o bastante um ato
ser forccedilado mas se deve acrescentar que aleacutem de ser forccedilado um ato natildeo deve
possuir nenhuma contribuiccedilatildeo do agente como princiacutepio da accedilatildeo e mais ainda
provocarem dor e arrependimento (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1
1110 b20)46 Do involuntaacuterio forccedilado conclui-se que deve ser externo forccedilado e
penoso ao agente
Da accedilatildeo por ignoracircncia Aristoacuteteles estabelece distinccedilotildees na forma de natildeo-
voluntaacuterio e involuntaacuterio Todo ato feito por ignoracircncia eacute natildeo voluntaacuterio (cf
ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 2 1110 b20)47 mas somente merece o
nome de involuntaacuterio aquele ato que realizado por ignoracircncia causou o
arrependimento O agente que por ignoracircncia realizou uma accedilatildeo mas natildeo se
arrependeu merece que sua accedilatildeo seja chamada apenas de natildeo voluntaacuteria
Aristoacuteteles tambeacutem distingue o agir por ignoracircncia e o agir em estado de
ignoracircncia (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 2 1110 b25)48 O agir em
estado de ignoracircncia se refere ao caso de algueacutem que por alguma causa qualquer
que lhe tire da ciecircncia do ato a exemplo de um becircbado ou de um homem
encolerizado tornou-se ignorante do que estava a fazer Haacute tambeacutem exemplos de
homens que deliberadamente ignoram o que deveriam fazer Esse eacute o caso do
homem perverso que por ignorar o que deveria fazer merece ser chamado de injusto
ou de mau Eacute involuntaacuterio tambeacutem o ato de algueacutem que ignora natildeo deliberadamente
alguma das circunstacircncias particulares nas quais uma accedilatildeo se desenvolve Entre os
criteacuterios para que uma accedilatildeo por causa da ignoracircncia seja involuntaacuteria deve-se
acrescentar o sofrimento do agente e o seu arrependimento
45 ldquoτὸ δὲ τέλος τῆς πράξεως κατὰ τὸν καιρόν ἐστινrdquo 46 ldquoτοῦ δὴ κατὰ τὴν τοιαύτην ἄγνοιαν ἀκουσίου λεγομένου (20) ἔτι δεῖ τὴν πρᾶξιν λυπηρὰν εἶναι καὶ ἐν
μεταμελείᾳrdquo 47 ldquoτὸ δὲ δι᾽ ἄγνοιαν οὐχ ἑκούσιον μὲν ἅπαν ἐστίνrdquo 48 ldquoἕτερον δ᾽ (25) ἔοικε καὶ τὸ δι᾽ ἄγνοιαν πράττειν τοῦ ἀγνοοῦνταrdquo
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Os atos forccedilados assim como os atos por ignoracircncia comportam igualmente
a caracteriacutestica de serem penosos ao agente contudo o ser penoso dos atos forccedilados
natildeo parece se identificar com o penoso dos atos por ignoracircncia Com efeito o penoso
dos atos forccedilados eacute um sofrimento infringido pela circunstacircncia enquanto o dos atos
por ignoracircncia eacute um sofrimento infringido pelo proacuteprio agente em virtude de seu
arrependimento Os atos voluntaacuterios satildeo aqueles cujo princiacutepio reside no agente que
conhece as circunstacircncias particulares nas quais ocorre a accedilatildeo (Cf ARISTOacuteTELES
Ethica Nicomachea 2010 III 3 1111 a25)49
512 A escolha deliberada
Mais apropriada agrave virtude e a discriminar o caraacuteter do que as accedilotildees Aristoacuteteles
entende que a escolha deliberada eacute por um lado voluntaacuteria e por outro involuntaacuteria
(Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 4 1111 b5)50 A ideia geral eacute a de que
a escolha deliberada eacute um modo mais especiacutefico do voluntaacuterio sendo este mais
abrangente do que ela O exemplo geral eacute o das crianccedilas que apesar de terem atos
voluntaacuterios natildeo possuem ainda escolha deliberada
A escolha deliberada diz respeito aos atos que estatildeo ao alcance do agente e
que concernem agravequilo que conduz ao fim O exemplo eacute o do desejo da sauacutede no qual
a escolha deliberada proporciona as coisas necessaacuterias agrave sauacutede (cf ARISTOacuteTELES
Ethica Nicomachea 2010 III 4 1111 b25 51 Assim esta escolha se refere agrave obtenccedilatildeo
do que se deve obter e agrave fuga do que se deve evitar Escolhe-se deliberadamente
quando se sabe que uma coisa eacute boa Deste modo ldquoa escolha deliberada eacute
acompanhada de pensamento e de reflexatildeordquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010
III 4 1112 a15)52
No paraacutegrafo V do livro III a conclusatildeo eacute a de que o objeto da escolha
deliberada eacute o objeto do desejo deliberado daquilo que estaacute em poder do agente A
escolha deliberada eacute o desejo deliberativo pois julgando em funccedilatildeo de ter deliberado
49 ldquoτὸ ἑκούσιον δόξειεν ἂν εἶναι οὗ ἡ ἀρχὴ ἐν αὐτῷ εἰδότι τὰ καθ᾽ ἕκαστα ἐν οἷς ἡ πρᾶξιςrdquo 50 ldquoἡ προαίρεσις δὴ ἑκούσιον μὲν φαίνεται οὐ ταὐτὸν δέ ἀλλ᾽ ἐπὶ πλέον τὸ ἑκούσιον τοῦ μὲν γὰρ
ἑκουσίου καὶ παῖδες καὶ τἆλλα ζῷα κοινωνεῖ προαιρέσεως δ᾽ οὔ καὶ τὰ ἐξαίφνης (10) ἑκούσια μὲν λέγομεν κατὰ προαίρεσιν δ᾽rdquo
51 ldquoἔτι δ᾽ ἡ μὲν βούλησις τοῦ τέλους ἐστὶ μᾶλλον ἡ δὲ προαίρεσις τῶν πρὸς τὸ τέλος οἷον ὑγιαίνειν βουλόμεθα προαιρούμεθα δὲ δι᾽ ὧν ὑγιανοῦμεν καὶ εὐδαιμονεῖν βουλόμεθα μὲν καὶ φαμέν προαιρούμεθα δὲ λέγειν οὐχ ἁρμόζει ὅλως (30) γὰρ ἔοικεν ἡ προαίρεσις περὶ τὰ ἐφ᾽ ἡμῖν εἶναιrdquo
52 ldquoἡ γὰρ προαίρεσις μετὰλόγου καὶ διανοίαςrdquo
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deseja-se conforme o deliberado A deliberaccedilatildeo poreacutem refere-se apenas aos meios
que conduzem a um fim (Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 5 1112 b30)53
513 A definiccedilatildeo do objeto do querer
A reflexatildeo aristoteacutelica em torno do querer ou do desejo racional eacute um debate
latente entre as teses platocircnicas e sofistas que seraacute exposta a seguir Aleacutem disso
muito mais do que uma simples siacutentese entre esses dois posicionamentos Aristoacuteteles
inaugura uma perspectiva nova em torno da teoria das accedilotildees a saber a compreensatildeo
de que o bem aparente eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria ao bem embora natildeo lhe seja
suficiente (Cf ZINGANO 2010 p 193) A tese geral de Aristoacuteteles eacute a de que para uma
coisa ser tomada como fim deve ser tomada como tal pelo agente isto eacute no processo
de direcionamento em busca do bem a questatildeo fundamental eacute como o agente
percebe um determinado objeto O texto aristoteacutelico abre a discussatildeo em torno de se
o querer diz respeito ao fim
Foi dito que o querer concerne ao fim mas a uns parece concernir ao bem a outros ao bem aparente Aos que dizem que o objeto do querer eacute o bem decorre que natildeo eacute objeto do querer o que quer aquele que natildeo escolhe corretamente (pois se for objeto do querer seraacute entatildeo um bem era no entanto no caso um mal) por sua vez aos que dizem que o bem aparente eacute objeto do querer decorre que natildeo existe objeto do querer por natureza mas eacute objeto do querer o que parece bom a cada um (a pessoas diferentes coisas diferentes parecem boas mesmo no caso coisas contraacuterias) (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113 a15 )54
A referecircncia agrave filosofia platocircnica pode ser reconhecida pela proposiccedilatildeo de que
o bem eacute objeto do querer e que apenas este o bem poderia ser o seu objeto Note-
se que o termo original para fim eacute τέλους e que o querer βούλησις se direciona a este
fim porque ele eacute um bem enquanto tal τἀγαθοῦ O inconveniente desta tese para
Aristoacuteteles eacute o fato de que se apenas o bem eacute objeto do querer implica dizer que a
escolha errada tambeacutem seria um bem uma vez que de certo modo tambeacutem ela eacute
querida Assim sendo o fato de os agentes escolherem errado permite concluir que
53 ldquoοὐ γὰρ ἂν εἴη βουλευτὸν τὸ τέλος ἀλλὰ τὰ πρὸς τὰ τέλη οὐδὲ δὴ τὰ καθ᾽ ἕκασταrdquo 54 ldquoἡ δὲ βούλησις ὅτι μὲν τοῦ τέλους ἐστὶν εἴρηται δοκεῖ δὲ τοῖς μὲν τἀγαθοῦ εἶναι τοῖς δὲ τοῦ φαινομένου
ἀγαθοῦ [] συμβαίνει δὲ τοῖς μὲν [τὸ] βουλητὸν τἀγαθὸν λέγουσι μὴ εἶναι βουλητὸν ὃ βούλεται ὁ μὴ ὀρθῶς αἱρούμενος (εἰ γὰρ ἔσται βουλητόν καὶ ἀγαθόν ἦν δ᾽ εἰ οὕτως ἔτυχε κακόν) (20) τοῖς δ᾽ αὖ τὸ φαινόμενον ἀγαθὸν βουλητὸν λέγουσι μὴ εἶναι φύσει βουλητόν ἀλλ᾽ ἑκάστῳ τὸ δοκοῦν ἄλλο δ᾽ ἄλλῳ φαίνεται καὶ εἰ οὕτως ἔτυχε τἀναντίαrdquo
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o τἀγαθοῦ unicamente natildeo pode ser o uacutenico objeto do querer a menos que se queira
considerar a escolha errada tambeacutem um bem
Jaacute a referecircncia agrave posiccedilatildeo sofista daacute-se em virtude da tese de que o bem eacute um
modo particular de sentir-se atraiacutedo por um objeto que dependendo da disposiccedilatildeo do
agente apresenta-se como bem O φαινομένου ἀγαθοῦ tambeacutem seria um moacutebil do
querer
Apoacutes as objeccedilotildees agraves teses tradicionais Aristoacuteteles comeccedila a expor sua tese
na forma de pergunta ldquose entatildeo estas posiccedilotildees natildeo satildeo satisfatoacuterias natildeo se deve
dizer que eacute objeto do querer sem mais e segundo a verdade o bem enquanto o que
aparece a cada um eacute o bem aparenterdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6
1113 a20)55 Aristoacuteteles entende que primeiramente tanto o homem virtuoso quanto
o de pouco valor desejam um objeto que lhes parece bom entretanto apenas o
virtuoso eacute capaz de querer um objeto verdadeiramente bom Sendo a virtude
consolidada pelo haacutebito o homem virtuoso eacute aquele que aprendeu em termos praacuteticos
a querer o bem Este bem eacute de maior relevacircncia do que um bem aparente φαινομένου
ἀγαθοῦ porque por causa do exerciacutecio das virtudes o homem virtuoso aprendeu a
distinguir o bem e o que apenas tem aparecircncia de bem Entretanto Aristoacuteteles daacute a
entender que o φαινομένου ἀγαθοῦ eacute primeiro a todos os homens na ordem do querer
ldquomas eacute o objeto do querer o que parece bom a cada umrdquo (ARISTOacuteTELES Ethica
Nicomachea 2010 III 6 1113 a20)56
Esta parece ser uma tese central de Aristoacuteteles certamente eacute bom o bem
enquanto tal entretanto eacute necessaacuterio que independente de ser um bem real uma
coisa apareccedila como um bem isto eacute seja tomada como tal pelo agente Esta eacute a
conclusatildeo do prof Marco Zingano sobre esta seccedilatildeo
Parecer um bem ou seja ser um φαινομένου ἀγαθοῦ natildeo eacute meramente uma aparecircncia de caraacuteter enganador como que o platonismo mas eacute principalmente a condiccedilatildeo loacutegica do bem humano isto eacute sua intencionalidade que pode secundariamente se revelar como uma crenccedila falsa um bem aparente no sentido platocircnico do termo (Cf ZINGANO 2010 p 193)
A questatildeo fundamental neste caso natildeo estaacute num caraacuteter pejorativo de uma
aparecircncia de bem que apetece ao querer mas no modo como o ser humano vai se
55 ldquoεἰ δὲ δὴ ταῦτα μὴ ἀρέσκει ἆρα φατέον ἁπλῶς μὲν καὶ κατ᾽ ἀλήθειαν βουλητὸν εἶναι τἀγαθόν ἑκάστῳ
δὲ τὸ φαινόμενονrdquo 56 ldquoτοῖς δ᾽ αὖ τὸ φαινόμενον ἀγαθὸν βουλητὸν λέγουσι μὴ εἶναι φύσει βουλητόνrdquo
75
relacionar com essa representaccedilatildeo Aristoacuteteles tem claro que sem a aparecircncia de
bem natildeo existe a apetecircncia pelo objeto mas ela natildeo dispensa o julgamento do ser
humano ldquoO homem virtuoso julga corretamente (κρίνειὀρθῶς) cada coisa e em cada
uma a verdade se manifesta a elerdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113
a30)57 Pelo julgamento correto κρίνειὀρθῶς o homem chega agrave visatildeo do verdadeiro
em cada coisa O homem virtuoso eacute pois natildeo apenas aquele que age frequentemente
bem mas o que toma posse das razotildees pelas quais age e as tem diante de si e isto
faz dele um homem prudente Se pela phroacutenesis a virtude intelectual eacute posta em
relevo no homem virtuoso suas disposiccedilotildees satildeo moralmente boas
O papel da phroacutenesisna restringe apenas agraves virtudes intelectuais Existe uma
relaccedilatildeo entre a phroacutenesise as virtudes morais assim como existe relaccedilatildeo entre a
phroacutenesise a empeiria Marcelo Perine esclarece este caraacuteter paradigmaacutetico da
phroacutenesis
Aristoacuteteles vai mostrar que phroacutenesis eacute um estado habitual cognitivo isto eacute racional e por isso eacute uma virtude intelectual que contudo pressupotildee seja um estado desiderativo portanto natildeo-racional seja um estado cognitivo natildeo-racional que eacute justamente a experiecircncia (PERINE 2006 p 28)
O objetivo da phroacutenesis satildeo bens humanos e estes satildeo alcanccedilados a medida
que podem estar em consonacircncia com a phroacutenesis Natildeo eacute a toa que o debate entre o
ato voluntaacuterio e o involuntaacuterio envolva aquilo que aparece como bem e o que necessita
de um posterior discernimento Assim nesse processo de desvelamento natildeo se
deixar de lado a importacircncia das intenccedilotildees
Aristoacuteteles natildeo parece citar o termo intencionalidade nas questotildees praacuteticas
mas ela parece estar latente nesta questatildeo da aparecircncia de bem Aristoacuteteles tem claro
que sem a aparecircncia de bem natildeo existe a apetecircncia pelo objeto mas ela natildeo
dispensa o julgamento do ser humano Pelo julgamento correto κρίνειὀρθῶς o
homem chega agrave visatildeo do verdadeiro em cada coisa
A aparecircncia de bem muito mais do que uma aparecircncia enganadora constitui-
se como modus cognoscendi preparatoacuterio e necessaacuterio ao julgamento correto e agrave
visatildeo da realidade da coisa em niacutevel praacutetico Assim ateacute mesmo as coisas que
posteriormente satildeo constatadas como boas tambeacutem requerem uma aparecircncia de
bem e no caso destas um bem real Assim o homem virtuoso eacute pois natildeo apenas
57 ldquoἕκαστα κρίνει ὀρθῶς καὶ ἐν ἑκάστοις τἀληθὲς αὐτῷ φαίνεταιrdquo
76
aquele que age frequentemente bem mas o que toma posse das razotildees pelas quais
age e as tem diante de si e isto faz dele um homem prudente Marco Zingano
acrescenta que
enquanto no homem prudente φρόνιμοςeacute ressaltado o papel da virtude intelectual que opera no interior das virtudes morais no homem virtuoso σπουδαίoς o que eacute posto em relevo eacute o fato de suas disposiccedilotildees serem virtuosas ou moralmente boas (ZINGANO 2010 p 197)
Neste sentido o domiacutenio da virtude pode ser delineado natildeo apenas pelo
homem prudente enquanto capaz de ponderar o que seria a virtude num determinado
caso mas tambeacutem pelo homem virtuoso que eacute capaz e age segundo esta virtude A
relaccedilatildeo entre bem e verdade para Aristoacuteteles inclui agora certo ordenamento
primeiramente aquilo que aparece como bem natildeo eacute necessariamente bom e por isto
mesmo necessita passar pelo julgamento do homem prudente φρόνιμος para em
seguida revelar-se como verdadeiramente boa ou natildeo
A partir do esclarecimento aristoteacutelico entre escolha deliberada e querer
esclarece-se qual o domiacutenio de cada um destes atos e consequentemente qual sua
relaccedilatildeo com as virtudes pertence ao querer ter o fim por objeto enquanto os meios
para alcanccedilaacute-lo dizem respeito agrave escolha deliberada Neste sentido compreende-se
que o fim eacute apenas reconhecido isto eacute natildeo se constitui como objeto de escolha O
acircmbito das escolhas satildeo os meios isto eacute as accedilotildees que dizem respeito a elas satildeo por
escolha delibera e voluntaacuterias Aristoacuteteles completa dizendo que ldquoas atividades das
virtudes envolvem estas coisasrdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 7 1113
b5) A conclusatildeo de Aristoacuteteles eacute a de que escolha deliberada relaciona-se diretamente
agraves virtudes uma vez que elas satildeo meio e sobre elas se pode deliberar Assim sendo
um entendimento adequado das virtudes requer a distinccedilatildeo entre a escolha deliberada
e os diversos outros atos humanos
Ao final do tratado dos atos Aristoacuteteles se posiciona acerca do que vem a ser
o engano no julgamento em relaccedilatildeo agraves accedilotildees ldquoagrave turba do engano parece engendrar-
se devido ao prazer pois natildeo sendo de fato um bem parece serrdquo (ARISTOacuteTELES
Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113 b1) Com isso talvez seja possiacutevel afirmar que
para Aristoacuteteles o prazer de certo modo natildeo contribui com o voluntaacuterio
Tomaacutes de Aquino adota uma postura distinta de Aristoacuteteles neste ponto preciso
Segundo ele o desejo sensiacutevel caminhando no mesmo sentido da vontade para um
77
certo bem contribui para aumentar o caraacuteter voluntaacuterio das accedilotildees ou seja a
sensibilidade formada pela virtude pode por vezes participar de uma accedilatildeo boa
Assim a conclusatildeo que Tomaacutes de Aquino propotildee eacute dizer que a causa do involuntaacuterio
natildeo estaacute necessariamente no desejo sensiacutevel embora ele possa eventualmente
obscurecer o juiacutezo
52 A SIacuteNTESE TOMISTA ATOS HUMANOS E FILOSOFIA MORAL
A tarefa a ser desenvolvida agora se refere agrave necessidade de desenvolver os
conceitos relevantes da teoria tomista dos atos e a partir deles aprofundar em que
medida Tomaacutes de Aquino opera uma siacutentese entre o pensamento grego e a Tradiccedilatildeo
Cristatilde Eacute impressionante como a alguns dos conceitos de Tomaacutes de Aquino encontram
traduzem bem o que Aristoacuteteles tratou em sua teoria dos atos
A distinccedilatildeo tomista entre o irasciacutevel e o concupisciacutevel corresponde a esta
observaccedilatildeo aristoteacutelica sobre o voluntaacuterio e o involuntaacuterio Pode-se afirmar que o
concupisciacutevel estaacute como moacutebil externo em relaccedilatildeo ao voluntaacuterio enquanto o irasciacutevel
estaacute como moacutebil externo em relaccedilatildeo ao involuntaacuterio Neste sentido eacute possiacutevel afirmar
que Tomaacutes de Aquino aprofunda o conceito aristoteacutelico de voluntaacuterio e involuntaacuterio
Qual o aprofundamento que Tomaacutes de Aquino promove Primeiramente uma
coisa apeteciacutevel nem sempre eacute da ordem da razatildeo como objeto proacuteprio pois eacute
possiacutevel haver um moacutebil apenas do apetite sensitivo ou concupisciacutevel Outro elemento
fundamental eacute que Tomaacutes compreende que o voluntaacuterio natildeo significa
necessariamente o livre pois a vontade pode natildeo seguir necessariamente agrave
iluminaccedilatildeo da inteligecircncia Neste caso a adesatildeo eacute fruto da eleiccedilatildeo do livre-arbiacutetrio
mas natildeo eacute necessariamente expressatildeo da liberdade enquanto tal
Tomaacutes tambeacutem aprofunda a ideia de intencionalidade que apenas de modo
latente podia-se encontrar na Eacutetica a Nicocircmacos Com efeito Tomaacutes de Aquino vai
retomar o problema da intencionalidade expressamente com este termo O autor
assume a posiccedilatildeo de que o bem que eacute objeto do querer ou da vontade natildeo precisa
necessariamente ser um bem na coisa mesma mas um bem apreendido Deste
modo o querer se move em direccedilatildeo a uma coisa que foi apreendida como um bem
Pode-se concluir portanto que o bem aparente seja uma condiccedilatildeo necessaacuteria
embora natildeo suficiente para se saber se alguma coisa eacute realmente boa A teoria tomista
78
dos atos segue aprofundando ou forjando novos conceitos que doravante faratildeo parte
da Eacutetica Ocidental Eacute em virtude desta influecircncia que a exposiccedilatildeo da teoria tomista
dos atos se justifica
521 Os atos humanos em Santo Tomaacutes de Aquino
O proacutelogo da Prima Secundae da Suma Teoloacutegica inicia com a afirmaccedilatildeo
de que eacute pelo livre-arbiacutetrio que o homem eacute imagem de Deus Eacute em virtude da posse
de seu agir isto eacute do poder agir por si mesmo que o homem se assemelha a Deus
O tema biacuteblico da semelhanccedila entre Deus e o homem eacute que vai orientar o estudo dos
atos humanos em Tomaacutes de Aquino O homem vai unir-se ao seu exemplar divino na
bem-aventuranccedila prometida E sendo esta o fim do homem o tema biacuteblico da
semelhanccedila pelo livre-arbiacutetrio e a noccedilatildeo de fim do homem promove atraveacutes de
Tomaacutes uma siacutentese entre o pensamento grego e o pensamento cristatildeo
O estudo dos atos humanos em Tomaacutes de Aquino engloba o tratado das
paixotildees com o objetivo de aprofundar de que maneira a sensibilidade pode contribuir
aos atos voluntaacuterios de modo que este estudo pode ser apresentado como um dos
mais profundos acerca do agir humano no plano moral Faz-se necessaacuterio pois uma
apresentaccedilatildeo do plano conjunto do trabalho de Tomaacutes de Aquino para
posteriormente refletir acerca das particularidades em relaccedilatildeo agrave temaacutetica da
reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica
A beatitude eacute a condiccedilatildeo mais almejada pelo cristatildeo Ela se constitui na visatildeo
amante de Deus eacute a bem-aventuranccedila A teoria dos atos humanos se encontra em
consonacircncia com a beatitude pois ela eacute o fim uacuteltimo do homem Neste sentido pode-
se afirmar que a eacutetica de Santo Tomaacutes eacute uma eacutetica da felicidade o que se encontra
profundamente em sintonia com a mensagem das bem-aventuranccedilas mas tambeacutem
se harmoniza com a moral aristoteacutelica enquanto uma eacutetica dos fins
O ser humano se encaminha agrave felicidade de modo particular A felicidade eacute
pois fruto das accedilotildees particulares auxiliadas pela graccedila de Deus Desse modo as
accedilotildees humanas devem ser compreendidas em seus aspectos fundamentais a saber
uma dimensatildeo voluntaacuteria obra de uma vontade livre que o estudo sobre os atos
humanos contempla e uma dimensatildeo ligada agrave sensibilidade contemplada no estudo
sobre as paixotildees da alma
79
522 Sindeacuterese e consciecircncia
Segundo Tomaacutes de Aquino a sindeacuterese eacute um habitus (cf AQUINO Tomaacutes
de S Th I 79 a12)58 Uma compreensatildeo adequada da Sindeacuterese exige um
aprofundamento acerca do modus operandi do raciociacutenio humano O intelecto em
virtude de seu objeto quando raciocina acerca de coisas inteligiacuteveis diz-se que se
ldquomoverdquo como um intelecto especulativo e quando raciocina sobre coisas da accedilatildeo se
move como uma razatildeo praacutetica Assim como haacute princiacutepios de ordem especulativa os
princiacutepios praacuteticos se relacionam agrave sindeacuterese como um habito natural especial Sua
funccedilatildeo eacute incitar o bem e condenar o mal Ela funciona como uma intuiccedilatildeo dos
primeiros princiacutepios da lei moral Eacute curioso o fato de Tomaacutes de Aquino definir a
Sindeacuterese como um habitus mas de natureza inata A Sindeacuterese natildeo se confunde
com a consciecircncia Ela eacute uma intuiccedilatildeo dos primeiros princiacutepios da moral enquanto
que a consciecircncia eacute o ato pelo qual se julga um ato que se realizou ou que seraacute
realizado Em seu ato a consciecircncia supotildee natildeo apenas a Sindeacuterese mas todo o
conhecimento moral que se apoacuteia sobre ela
A noccedilatildeo tomista da consciecircncia eacute a de que ela eacute um ato A funccedilatildeo da
consciecircncia eacute atestar obrigar e incitar e ainda acusar reprovar ou repreender (cf
AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)59 Estas funccedilotildees da consciecircncia se efetivam a
medida em o agente tem conhecimento ou ciecircncia do que se faz Tomaacutes de Aquino
esclarece que este conhecimento se daacute de trecircs maneiras quando se reconhece o que
se faz ou o que natildeo foi feito afirma-se que a consciecircncia atesta (Cf AQUINO Tomaacutes
de S Th I 79 a13)60 quando se julga que eacute preciso fazer ou natildeo uma accedilatildeo diz-se
que a consciecircncia incita ou obriga (Cf AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13 )61 e quando
se julga o meacuterito do que foi feito diz-se que a consciecircncia escusa62 acusa ou reprova
(cf AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)63
58 ldquoSynderesis non est potentia sed habitusrdquo 59 ldquoDicitur enim conscientia testificari ligare vel intigare et etiam accusare vel remordere sive
reprehendererdquo 60 ldquoQuod recognoscimus aliquid nos fecisse vel non fecisse [] conscientia dicitur testificarirdquo 61 ldquoQuod per nonstram conscientiam iudicamos aliquid esse faciendum vel non faciendum et secundum
hoc dicitur conscientia instigare vel ligarerdquo 62A escusa eacute uma razatildeo ou um pretexto invocado para eximir de uma obrigaccedilatildeo 63 ldquoQuod per conscientiam iudicamus quod aliquid quod est factum sit bene factum vel non bene factum
et secundum hoc conscientia dicitur excusare vel accusare seu remordererdquo
80
Tomaacutes de Aquino acrescenta que para desenvolver estas funccedilotildees faz-se
necessaacuteria ldquouma aplicaccedilatildeo atual de nosso conhecimento agrave nossa accedilatildeordquo (AQUINO
Tomaacutes de S Th I 79 a13)64 Esta informaccedilatildeo eacute relevante uma vez que a partir dela
entende-se que o autor natildeo estaacute a considerar o exerciacutecio da consciecircncia moral como
um funcionamento constante Isto eacute a consciecircncia passa a atuar efetivamente quando
os objetos relativos agraves accedilotildees assim a solicitam De certo modo esta compreensatildeo da
consciecircncia mitiga um entendimento contemporacircneo de que a concepccedilatildeo cristatilde de
homem da qual o pensamento moderno eacute devedor acreditaria que o homem pensado
como animal racional implicaria num actus ratiocinandi ad infinitum65
Ao final das consideraccedilotildees sobre a consciecircncia Tomaacutes de Aquino esclarece
como consciecircncia e sindeacuterese se relacionam Embora a consciecircncia seja um ato ela
natildeo eacute atualizada o tempo inteiro mas sempre que objetos relativos agrave sua accedilatildeo Desse
modo a consciecircncia necessita de um habitus que a faccedila atualizar-se A sindeacuterese
que conteacutem os primeiros princiacutepios da moral eacute quem naturalmente coopera na
atualizaccedilatildeo da consciecircncia
Deve-se dizer que o ato se permanece sempre em si mesmo permanence entretanto sempre em sua causa a potecircncia ou o habitus Os habitus pelos quais a consciecircncia eacute informada ainda que sejam muitos todos recebem a sua eficaacutecia de um primeiro a saber do habitus dos primeiros princiacutepios que se chama sindeacuterese Por isso e de modo especial esse habitus eacute por vezes chamado consciecircncia (AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)66
A relevacircncia desta afirmaccedilatildeo diz algo a mais sobre a concepccedilatildeo tomista de
homem Em relaccedilatildeo agraves questotildees da accedilatildeo pode-se afirmar que a consciecircncia moral eacute
o proacuteprio pensamento praacutetico que eacute posto em movimento por um habitus natural Uma
vez que este habitus natildeo eacute a razatildeo mesma em funcionamento talvez seja possiacutevel
defender que em Tomaacutes de Aquino haacute algo anaacutelogo ao lebenswelt russeliano um
mundo da vida ou uma instacircncia que de certo modo eacute anterior ao ato de raciocinar
523 O conceito de vontade
64 ldquoPatet autem quod omnia haec consequuntur actualem applicationem scientiae ad ea quae agimusrdquo 65 Para um melhor entendimento desta tese conferir o prefaacutecio de Ser e Tempo de Martim Heidegger 66 ldquoDicendum quod actus etsi non semper maneat in se semper tamen Manet in sua causa quae est
potentia et habitus Habitus autem ex quibus conscientia informatur etsi multi sint omnes tamen efficaciam habent ab uno primo scilicet ab habitu primorum principiorum qui dicitur synderesis Unde specialiter hic habitus interdum conscientia nominaturrdquo
81
Segundo Tomaacutes de Aquino o conceito de vontade se alinha agrave noccedilatildeo de
necessidade e estes se relacionam agrave noccedilatildeo de telos entendido aqui como a felicidade
que eacute um bem desejado por todos Tomaacutes de Aquino distingue diferentes noccedilotildees de
necessidade necessitas naturalis et absoluta necessitas finis e necessitas coactionis
A necessitas naturalis se apresenta quando a uma coisa algo se apresenta
em virtude de seus princiacutepios intriacutensecos sejam materiais ou formais Materialmente
eacute naturalmente necessaacuterio que o composto de contraacuterios se corrompa Formalmente
eacute naturalmente necessaacuterio que os acircngulos internos de um triacircngulo sejam iguais a
dois acircngulos retos Existem tambeacutem princiacutepios extriacutensecos que garantem este tipo de
necessidade diga-se por exemplo a morte como causa final ou a geraccedilatildeo como
causa eficiente (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)67
A necessitas finis se potildee quando algueacutem natildeo pode atingir seu fim ou atingi-lo
convenientemente sem esse princiacutepio Tomaacutes de Aquino cita o exemplo da
alimentaccedilatildeo para atingir uma vida saudaacutevel ou o cavalo para se chegar ao destino
pretendido (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1 )68 Finalmente quando um ente
eacute constrangido de tal modo que natildeo pode fazer o contraacuterio a necessidade eacute pensada
como necessitas coactionis (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)69
Deve-se perceber que a necessitas coactionis eacute contraacuteria agrave vontade pois se
constitui como uma violecircncia agrave inclinaccedilatildeo de ser humano Natildeo eacute difiacutecil chegar a uma
compreensatildeo da liberdade em Tomaacutes de Aquino atraveacutes das elucidaccedilotildees acerca do
conceito de vontade Pode-se afirmar primeiramente que a liberdade se refere a uma
ausecircncia de constrangimento externo Este se constitui como um niacutevel baacutesico da
noccedilatildeo de liberdade Aleacutem disso eacute importante salientar que seraacute possiacutevel estabelecer
uma distinccedilatildeo entre a liberdade como ausecircncia de constrangimento interno e a
liberdade como uma orientaccedilatildeo racional ao fim e inclusive como independecircncia em
relaccedilatildeo aos ditames de livre-arbiacutetrio que eacute a fonte mais primordial de exerciacutecio da
vontade mas que ainda natildeo pode ser considerada liberdade no sentido pleno
Uma vez que o conceito de vontade (ou voluntaacuterio) oferece ldquoluzesrdquo ao conceito
de liberdade eacute tambeacutem possiacutevel chegar ao conceito de involuntaacuterio e este relaciona-
67 ldquoSobre a necessitas naturalis et absoluta Tomaacutes de Aquino afirma Quod quid convenit alicui uno
modo ex principio intriacutenseco sive materiali [] sive formali [] Alio modo convenit alicui quod non possit non esse ex aliquo extriacutenseco vel fine vel agenterdquo
68 ldquoFine quidem aut bene consequi finem aliquem ut cibus dicitur necessaries ad vitam et equus ad iter Et haec vocatur necessitas finis quae interdum etiam utilitas diciturrdquo
69 ldquoEx agente autem hoc alicui convenit sicut cum aliquis cogitur ab aliquo agente it quod non possit contrarium agere Et haec vocatur necesssitas coactionisrdquo
82
se ao conceito de necessitas coactionis Um agente constrangido a fazer o que natildeo
deseja eacute algueacutem que age involuntariamente Mas a liberdade estaacute para aleacutem do agir
pois eacute ateacute possiacutevel obrigar que algueacutem faccedila alguma coisa mas natildeo eacute possiacutevel obrigaacute-
lo a querer fazer
Assim pois Tomaacutes de Aquino entende que o movimento da vontade eacute uma
certa inclinaccedilatildeo para algo Desse modo ldquoassim como se chama natural o que eacute
segundo a inclinaccedilatildeo da natureza chama-se de voluntaacuterio o que eacute segundo a
inclinaccedilatildeo da vontaderdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1) Entretanto este apetite
denominado de vontade eacute de natureza racional Para entender esta afirmaccedilatildeo deve-
se estabelecer em relaccedilatildeo agrave vontade agrave distinccedilatildeo entre irasciacutevel e o concupisciacutevel
A alma possui potecircncias sensitivas e intelectivas estas uacuteltimas satildeo tambeacutem
chamadas de potecircncias espirituais O apetite sensitivo se diversifica em concupisciacutevel
quando se refere agrave razatildeo de bem no sentido daquilo que agrada aos sentidos e em
irasciacutevel quando se refere agrave razatildeo de bem enquanto se busca evitar aquilo que eacute
prejudicial (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a5)70 Estes apetites satildeo ambos da
ordem da sensibilidade A vontade poreacutem diz respeito agrave razatildeo faz parte dela
voluntas in ratione est A vontade eacute proacuteprio apetite intelectivo e por isso mesmo o
bem a que a vontade apetece eacute o bem sob razatildeo universal
Este conceito aprofunda a noccedilatildeo de voluntaacuterio e involuntaacuterio e eacute entendido
como um movente das accedilotildees tanto naturalmente como teleologicamente Natildeo haacute
segundo Tomaacutes de Aquino uma oposiccedilatildeo entre a necessidade de um fim e a ideia de
vontade ldquoA necessidade de fim natildeo repugna agrave vontade quando ela natildeo pode atingir
esse fim senatildeo por um soacute meio por exemplo quando se tem a vontade de atravessar
o mar eacute necessaacuterio a vontade que queira um naviordquo (AQUINO Tomas de S Th I q
82 a1)71 Resulta claramente que natildeo haacute oposiccedilatildeo entre a liberdade e teleologia em
Tomaacutes de Aquino
Desse modo Tomaacutes de Aquino compatibiliza a ideia de liberdade com a ideia
de fim Analogicamente assim como o intelecto adere aos primeiros princiacutepios a
vontade deve pois aderir ao fim uacuteltimo que eacute a bem-aventuranccedila uma vez que a
70ldquoAppetitus autem sensitivus non respicit comunem rationem boni quia nec sensus apprehendit
universal Et ideo secundum diversas rationes particularium bonorum diversiticantur partes appetites sensitive nam concupiscibilis respicit propriam rationem boni inquantum est delectabile secundum sensum et conveniens naturae irascibilis autem respicit rationem boni secundum quod est repulsivum et impugnativum eius quod infet nocumentumrdquo
71 ldquoNecessitas autem finis non repugnat valuntati quando ad finem non potest perveniri nisi uno modo sicut ex voluntate transeundi mare fit necessitas in voluntate ut velit navemrdquo
83
bem-aventuranccedila ou a felicidade eacute almejada por todos Assim sendo compreende-
se que o fato de haver uma vontade natural natildeo implica uma contradiccedilatildeo com uma
vontade livre
Um esclarecimento deve ser feito nestas teses de Tomaacutes de Aquino Ele retira
a felicidade como sendo o fim uacuteltimo do homem pelo fato de todos os seres humanos
serem dotados de vontade e este desejo eacute universal pois decorre da natureza humana
o fato de todos desejarem ser felizes Poucas pessoas parecem duvidar desta tese
entretanto eacute possiacutevel concluir que o problema natildeo estaacute no fato de todos desejarem a
felicidade mas no itineraacuterio que cada pessoa particularmente percorre para atingi-la
Tomaacutes de Aquino salienta que a escolha natildeo versa sobre o fim ela versa sobre
os meios para o fim (Cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)72 Isto implica em dizer
que o fato de a felicidade ser o fim uacuteltimo do homem natildeo tem nada aver com sua
escolha uma vez que este eacute o fim natural a que todos tendem o destino potencial de
todo homem Por que o destino potencial Naturalmente este ldquodestinordquo natildeo implica
um fim inexoraacutevel mas o horizonte que daacute sentido agraves accedilotildees praticadas Elas devem
ser orientadas de modo a tornar mais acessiacutevel o alcance desse fim Na eacutetica de
Tomaacutes de Aquino assim como na eacutetica de Aristoacuteteles as accedilotildees satildeo apropriadas em
virtude do bem que elas proporcionam e natildeo porque o valor das accedilotildees se encerra
nelas proacuteprias A eacutetica de Tomaacutes de Aquino seguindo a moral aristoteacutelica vai propor
o exerciacutecio das accedilotildees virtuosas como o meio para se atingir essa felicidade
O ato de buscar a felicidade atraveacutes das virtudes aleacutem de ser a maneira mais
adequada a essa busca apresenta indiretamente a forccedila que a ideia de liberdade
possui na eacutetica cristatilde Henrique de Lima Vaz lendo Hegel afirma que ldquoa ideia de
liberdade pertence agrave esfera da manifestaccedilatildeo mais alta do Espiacuterito da sua
manifestaccedilatildeo como razatildeordquo e complementa ldquopara Hegel o momento decisivo em que
na cultura do Ocidente a razatildeo se manifesta como liberdade tem lugar com o advento
do Cristianismordquo (VAZ 2002 p 14) No esquema geral da Suma Teoloacutegica eacute por livre
vontade que homem opera um caminho de retorno a Deus Assim a ideia de liberdade
pode ser apontada como elemento distinto na reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e o
pensamento cristatildeo
72 ldquoElectio autem non est de fine sed de his quae sunt ad finemrdquo
84
524 A relaccedilatildeo entre inteligecircncia e vontade
A Inteligecircncia e a vontade satildeo duas potecircncias espirituais e ambas fazem parte
da capacidade racional das substacircncias intelectuais Tomaacutes de Aquino investiga a
relaccedilatildeo de superioridade de uma potecircncia em relaccedilatildeo a outra a partir da noccedilatildeo de
superioridade em termos absolutos e em termos relativos Tomaacutes de Aquino explica o
sentido de absoluto e relativo
A superioridade de uma coisa sobre outra pode ser considerada de dois modos quer absolutamente quer relativamente Uma coisa eacute tal absolutamente quando ela eacute isso em si mesma e eacute tal relativamente quando o eacute em relaccedilatildeo a outra (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a3)73
Absolutamente o intelecto eacute superior agrave vontade uma vez que a razatildeo do bem
desejaacutevel eacute apreendida pelo intelecto e este bem eacute objeto da vontade Nesse sentido
a superioridade daquele em relaccedilatildeo a esta se daacute porque eacute em virtude da accedilatildeo do
intelecto que a vontade se apropria de seu objeto Sem a accedilatildeo do intelecto entende-
se que a vontade natildeo teria o seu objeto mais proacuteprio Nesse caso o intelecto
considerado em si mesmo e absolutamente eacute uma potecircncia superior agrave vontade
Tomaacutes de Aquino esclarece
O objeto do intelecto eacute mais simples e absoluto que o da vontade Com efeito o objeto do intelecto eacute a proacutepria razatildeo do bem desejaacutevel e o bem desejaacutevel cuja razatildeo estaacute no intelecto eacute objeto da vontade Ora quanto mais uma coisa eacute simples e abstrata tanto mais eacute em si mesma mais nobre e superior Portanto o objeto do intelecto eacute superior ao objeto da vontade (AQUINO Tomas de S Th I q 82
a3)74
A partir desta afirmaccedilatildeo compreendem-se as duas grandes linhas da eacutetica
cristatilde que influenciaram por demais o desenvolvimento da filosofia moral no
Ocidente De um lado haacute os que defendem uma precedecircncia do intelecto sobre a
vontade assim como Tomaacutes de Aquino e estes satildeo chamados de intelectualistas
73 ldquoquod eminentia alicuius ad alterum potest attendi dupliciter uno modo simpliciter alio modo
sedundum quid Consideratur autem aliquid tale simpliciter prout est secundum seipsum tale secundum quid autem prout dicitur tale secundum respectum ad alterumrdquo
74 ldquoObiectum enim intellectus est simplicius et magis absolutum quam obiectum voluntatis nam obiectum intellectus est ipsa ratio boni appetibilis bonum autem appetibile cuius ratio est in intellectu est obiectum voluntatis Quanto autem aliquid est simplicius et abstractius tanto secundum se est nobilius et altius Et ideo obiectum intellectus est alius quam obietum voluntatis Cum ergo proacutepria ratio potentiae sit secundum ordinem ad obiectum sequitur quod secundum se et simpliciter intellectus sit altior et nobilior voluntaterdquo
85
Por outro lado os pensadores que defendem que intelecto e vontade tecircm o mesmo
status sendo a vontade igualmente autocircnoma independente do intelecto no seu
operar satildeo chamados de voluntaristas
Em termos relativos eacute possiacutevel considerar que a vontade seja superior ao
intelecto pois o objeto da vontade eacute superior ao do intelecto se se considerar que eacute
melhor amar a Deus do que conhececirc-lo Desse modo e relativamente ldquoquando a coisa
na qual estaacute o bem eacute mais nobre que a proacutepria alma em que se encontra a razatildeo desta
coisa a vontade eacute superior ao intelectordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a3 )75 O
bem eacute objeto de inclinaccedilatildeo da vontade O intelecto conhece o fim uacuteltimo e o
proporciona agrave vontade que por sua vez move todas as outras potecircncias em busca
desse bem que eacute a felicidade perfeita
Eacute possiacutevel notar uma pequena distinccedilatildeo entre Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino
No livro X da Eacutetica a Nicocircmacos Aristoacuteteles defende que a felicidade perfeita consiste
na vida contemplativa isto eacute na accedilatildeo do intelecto
Mas se a felicidade consiste na atividade conforme agrave excelecircncia eacute razoaacutevel que ela seja uma atividade conforme a mais alta de todas as formas de excelecircncia e esta seraacute a excelecircncia da melhor parte de cada um de noacutes Se esta parte melhor eacute o intelecto ou qualquer outra parte considerada naturalmente dominante em noacutes e que nos dirige e tem o conhecimento das coisas nobilitantes e divinas se ela mesma eacute divina ou somente a parte mais divina existente em noacutes entatildeo sua atividade conforme agrave espeacutecie de excelecircncia que lhe eacute pertinente seraacute a felicidade perfeita Jaacute dissemos que esta atividade eacute contemplativa (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco 1176b4 2001 p 201)
Por outro lado a posiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino se dirige primeiramente a
considerar a felicidade como estado no qual o amor como accedilatildeo da vontade atuaria
mais primordialmente que o intelecto Aquilo que possui uma existecircncia espiritual seja
Deus outra pessoa a proacutepria verdade ou ainda a beleza eacute superior ao ato de
pensar Tomaacutes de Aquino conserva a tese aristoteacutelica de superioridade do intelecto
entretanto ao inserir a distinccedilatildeo entre superioridade absoluta e superioridade relativa
coloca a felicidade em relaccedilatildeo ao amor e natildeo ao conhecimento
O ponto de equiliacutebrio entre as teses desses dois autores estaacute no lugar onde a
felicidade deve ser efetivada Aristoacuteteles pensava a felicidade circunscrita agrave Cidade
75 ldquoQuando igitur res in qua est bonum est nobilior ipsa anima in qua est ratio intellect per
comparationem ad talem rem voluntas est altior intellecturdquo
86
mas de certo modo desapegada como uma atividade autocircnoma isto eacute auto-
suficiente Aristoacuteteles acrescenta
Somente esta atividade parece ser estimada por sua proacutepria causa pois nada decorre dela aleacutem da proacutepria atividade de contemplar enquanto com as atividades de ordem praacutetica obtemos algumas vantagens maiores ou menores aleacutem da proacutepria accedilatildeo (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco 1176b4 2001 1177b p 202)
A vida feliz ou beatitude para Tomaacutes de Aquino soacute pode ser encontrada na
totalidade do bem na realizaccedilatildeo concreta e efetiva do Bem universal o que implica
num processo de retorno a Deus pois esta vida natildeo comporta a realizaccedilatildeo da
felicidade enquanto tal Esta concepccedilatildeo de Beatitude promove uma profunda
revoluccedilatildeo em relaccedilatildeo ao pensamento grego e o pensamento cristatildeo A
eudaimoniapara Aristoacuteteles encontra seu sentido no cosmocentrismo grego Por outro
lado a ideia de Beatitude ultrapassa os limites do cosmos grego De modo que Tomaacutes
de Aquino assume a ideia de Felicidade como fim uacuteltimo do ser humano mas ela eacute
realizada num niacutevel que estaacute para aleacutem do cosmocentrismo grego A superaccedilatildeo do
cosmocentrismo grego pelo teocentrismo cristatildeo seraacute elucidado mais adequadamente
adiante Antes poreacutem deve ser aprofundada a questatildeo da liberdade do ato voluntaacuterio
525 A liberdade do ato voluntaacuterio e a distinccedilatildeo entre liberdade e livre-
arbiacutetrio
A teoria tomista do livre-arbiacutetrio eacute de certo modo uma busca por compreender
o que diz respeito ao intelecto e agrave vontade num ato livre Dito de outra maneira o
empreendimento de Tomaacutes de Aquino pode ser traduzido pela seguinte pergunta
existe num ato livre a atuaccedilatildeo de alguma outra potecircncia aleacutem da inteligecircncia e da
vontade Seu aprofundamento acerca dessa temaacutetica traz distinccedilotildees fundamentais
que aleacutem de se fundamentarem no questionamento aristoteacutelico acerca do voluntaacuterio
e do involuntaacuterio promovem distinccedilotildees que seratildeo essenciais agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica
posterior
O desenvolvimento da questatildeo do livre-arbiacutetrio estaacute na questatildeo 83 da primeira
parte da Suma Teoloacutegica A questatildeo eacute dividida em quatro artigos e defende a tese
geral de que a liberdade eacute uma propriedade do ato voluntaacuterio na condiccedilatildeo de que
87
este seja exprimido em um juiacutezo que incida sobre a conveniecircncia ou natildeo do objeto do
querer A liberdade do homem consiste pois num ato de julgar que natildeo eacute
condicionado
O significado dos preceitos conselhos exortaccedilotildees assim como das
proibiccedilotildees recompensas e penas soacute estaacute garantido graccedilas ao livre-arbiacutetrio Tomaacutes
de Aquino estabelece uma distinccedilatildeo entre coisas que agem sem julgamento outras
que agem com julgamento e mesmo assim natildeo satildeo livres e outras que agem com o
julgamento livre
Deve-se considerar que certas coisas agem sem julgamento Por exemplo a pedra que se move para baixo e igualmente todas as coisas que natildeo tecircm conhecimento Outras coisas agem com julgamento mas esse natildeo eacute livre como os animais Por exemplo a ovelha vendo o lobo julga que eacute preciso fugir eacute um julgamento natural mas natildeo livre pois natildeo julga por comparaccedilatildeo mas por instinto natural [] o homem poreacutem age com julgamento porque por sua potecircncia cognoscitiva julga que se deve fugir de alguma coisa ou procuraacute-la Mas como esse julgamento natildeo eacute efeito de um instinto natural aplicado a uma accedilatildeo particular mas de uma certa comparaccedilatildeo da razatildeo por isso o homem age com julgamento livre podendo se orientar para diversos objetos (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1 )76
A liberdade tem a ver com o libero iudicium O julgamento livre eacute a expressatildeo
mais perfeita da liberdade do ser humano Aqui Tomaacutes de Aquino estabelece uma
distinccedilatildeo importante a saber a distinccedilatildeo entre o julgamento natural ou instintivo e o
julgamento racional Embora ambos sejam julgamentos lsquopraacuteticosrsquo apenas o ente que
possui o livre-arbiacutetrio isto eacute possui julgamento racional eacute senhor desse julgamento
Ambos os juiacutezos satildeo mandados pois prescrevem que o agente deve fazer algo mas
somente o ente que possui livre-arbiacutetrio atraveacutes da potecircncia cognoscitiva o intelecto
pode apresentar a si um julgamento que conduza ao bem Portanto eacute pela
racionalidade que o homem eacute dotado de livre-arbiacutetrio
Aqui se apresenta um questionamento importante por que muitas vezes
deseja-se contrariamente ao que o intelecto indica E como pode um ente que tem
seu ser criado ser livre As respostas podem ser encaminhadas da seguinte forma
76 ldquoConsiderandum est quod quaedam agunt absque iudicio sicut laacutepis movetur deorsum et similiter
omnia cognitione carentia Quaedam autem agunt iudicio sed non libero sicut animalia bruta Iudicat enim ovis videns lupum eum esse fugiendum naturali iudicio et non libero quia non ex collatione sed ex naturali instinctu hoc iudicat [] Sed homo agit iudicio quia per vim cognoscitivam iudicat aliquid iudicium istud non est ex naturali instinctu in particulari operabili sed ex collatione quadam rationis ideo agit libero iudicio potens in diversa ferrirdquo
88
em relaccedilatildeo agrave primeira pergunta diz-se que o fato de haver uma escolha da razatildeo natildeo
impede o desejo do apetite sensiacutevel mas pode impedir a sua realizaccedilatildeo Neste
sentido pode-se entender que a liberdade natildeo eacute necessariamente natildeo ter um
determinado desejo mas de certo modo consiste em estar acima das proacuteprias
inclinaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave segunda questatildeo o proacuteprio Tomaacutes de Aquino afirma que
ldquonatildeo eacute necessaacuterio agrave liberdade que o que eacute livre seja a causa primeira de si mesmordquo
(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1 )77 Assim mesmo que o homem tenha seu ser
por outro seja um ensab alio em relaccedilatildeo aos seus julgamentos ele permanece livre
e conta com o respeito de Deus em relaccedilatildeo agrave sua liberdade pois ldquoDeus opera em
cada um segundo a natureza que lhe eacute proacutepriardquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83
a1)78
Note-se que Tomaacutes de Aquino natildeo fala em accedilotildees livres mas em julgamentos
livres Ora eacute ateacute possiacutevel entender que alguma forccedila externa possa obrigar algueacutem a
agir de determinada maneira de modo que este seja obrigado a fazer algo que na
verdade natildeo deseje Embora ele possa fazer isto natildeo implica que ele queira fazer
Assim sendo mesmo que natildeo se mencione a palavra intenccedilatildeo ela estaacute latente neste
artigo da Suma Com isto eacute possiacutevel compreender a radicalidade com que Tomaacutes de
Aquino concebe a liberdade humana a ponto de considerar que ldquonada haacute que repugne
a liberdade do livre-arbiacutetriordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1)79
Todas as deliberaccedilotildees e accedilotildees do ser humano passam pela faculdade racional
ateacute mesmo as inclinaccedilotildees do apetite sensiacutevel devem passar pelo assentimento ou natildeo
da razatildeo A razatildeo por ateacute obedecer a um destes apetites ditos inferiores (cf AQUINO
Tomaacutes de S Th I q 83 a1)80 E aqui eacute possiacutevel aprofundar a noccedilatildeo tomista de
liberdade Com efeito a liberdade do ser humano eacute tamanha que mesmo o
assentimento do homem a algum apetite sensitivo eacute ainda ato de uma razatildeo sem
constrangimento mas que natildeo eacute livre enquanto tal pois a liberdade mesma eacute aquela
na qual o ser humano escolhe em favor do que eacute melhor isto eacute em favor do bem O
livre-arbiacutetrio eacute pois uma potecircncia que eacute sujeito da graccedila e com o seu auxiacutelio escolhe
o bem (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a2)81
77 ldquoNon tamen hoc est de necessitate libertatis quod sit prima causa sui id quod liberum estrdquo 78 ldquoOperatur enim in unoquoque secundum eius proprietatemrdquo 79 ldquoEt sic nihil est quod libertati arbitrii repugnetrdquo 80 ldquoSed istae inclinationes subiacent iudicio rationis cui obedit inferior appetitus ut dictum estrdquo 81 ldquoSed liberum arbitrium est subiectum gratiae qua sibi assistente bonum eligit Ergo liberum arbitrium
est potentiardquo
89
Natildeo eacute de se admirar que a graccedila seja auxiliar do livre-arbiacutetrio O seu auxiacutelio natildeo
implica uma negaccedilatildeo da liberdade do homem uma vez que este por si mesmo pode
negar o este auxiacutelio Contudo natildeo dirigir as escolhas em favor do bem eacute abrir matildeo
de ser realmente livre Esta eacute uma relaccedilatildeo curiosa pois sem o livre-arbiacutetrio natildeo se
pode ser livre mas com a sua atuaccedilatildeo se pode ateacute escolher mas natildeo ser livre
propriamente Tomaacutes afirma que ldquoo livre-arbiacutetrio eacute indiferente a escolher bem ou malrdquo
(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a2)82 Assim sendo sem o livre-arbiacutetrio natildeo eacute
possiacutevel algueacutem ser livre mas com ele a liberdade ainda natildeo estaacute garantida Ser livre
eacute estar livre de todas as formas de submissatildeo inclusive a do livre-arbiacutetrio quando este
escolhe o mal
Esta distinccedilatildeo eacute por demais relevante e natildeo eacute agrave toa que autores como Kant
seratildeo influenciados por esta distinccedilatildeo entre liberdade e livre-arbiacutetrio Kant utiliza uma
terminologia diferente mas que ao final pressupotildee a distinccedilatildeo ora apresentada A
terminologia kantiana eacute a do arbiacutetrium brutum e o livre-arbiacutetrio sendo o primeiro o
sentido de livre-arbiacutetrio e o segundo a liberdade ldquodaacute-se o nome de livre arbiacutetrio agrave
escolha que pode ser determinada pela razatildeo pura a que pode ser determinada
somente pela inclinaccedilatildeo (impulso sensiacutevel estiacutemulo) seria o arbiacutetrio animal (arbitrium
brutum) (cf KANT 2003 p 63)
A questatildeo 83 da Suma conclui precisando a relaccedilatildeo entre vontade e livre-
arbiacutetrio Em relaccedilatildeo agrave potecircncia da qual fazem parte pode-se afirmar que vontade e
livre-arbiacutetrio satildeo uma e mesma coisa porque ambos dizem respeito agrave eleiccedilatildeo
Contudo em relaccedilatildeo ao modus operandi cada uma opera de modo distinto a saber
o livre-arbiacutetrio opera na deliberaccedilatildeo a vontade na accedilatildeo
A proposiccedilatildeo de uma teoleologia na moralidade implica uma negaccedilatildeo da
autonomia Cabe esclarecer que esta oposiccedilatildeo entre teleologia e autonomia natildeo eacute
uma oposiccedilatildeo real as duas natildeo satildeo diretamente opostas Filosoficamente Tomaacutes de
Aquino por exemplo soube compatibilizar telos e liberdade
O modo como Tomaacutes de Aquino compreende a constituiccedilatildeo do homem na
Suma Teoloacutegica natildeo encontra dificuldades entre afirmar o livre arbiacutetrio ao homem e
ao mesmo tempo afirmar que por sua natureza o homem eacute capaz de agir em virtude
de um fim Faz-se necessaacuteria pois uma exposiccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio e de
82 ldquoLiberum autem arbitrium indifferenter se habet ad bene eligendum vel malerdquo
90
telos em Tomaacutes de Aquino a fim de mostrar como o autor compatibiliza telos e
autonomia
Deve-se esclarecer primeiramente que a exposiccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-
arbiacutetrio e a noccedilatildeo de finalidade como telos das accedilotildees se encontram em momentos
distintos da Suma Teoloacutegica A noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio estaacute na seccedilatildeo em que Tomaacutes
de Aquino dedica agrave criaccedilatildeo e ao Governo Divino Esta seccedilatildeo se insere na 1ordf parte da
Suma Teoloacutegica como o momento da accedilatildeo de Deus A 1ordf parte discorre sobre Deus
quem ele eacute como conhececirc-lo e sobre a Trindade (S Th I 1-43) o segundo momento
ainda da 1ordf parte apresenta a accedilatildeo de Deus que eacute a sua criaccedilatildeo (S Th I 44-119)
Justamente aqui situa-se a apresentaccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio
Jaacute a noccedilatildeo de Telos ou como diz Tomaacutes de Aquino fim do homem
encontra-se na primeira seccedilatildeo da 2ordf parte da Suma Teoloacutegica que vai das questotildees
1-48 (S Th I - IIae 1-48) Esta parte da Suma apresenta o retorno da criaccedilatildeo a Deus
particularmente com a busca livre do homem para Deus que eacute o conceito cristatildeo de
beatitude
A resposta eacute natildeo A proposiccedilatildeo de uma teleologia aqui tem a funccedilatildeo de ser o
resultado das accedilotildees virtuosas isto eacute numa eacutetica teleoloacutegica o valor de uma accedilatildeo natildeo
reside na accedilatildeo em si mesma
A verdade e o bem se incluem mutuamente Pois a verdade eacute um bem sem o que natildeo seria inteligiacutevel Do mesmo modo portanto que o objeto do apetite pode ser uma coisa verdadeira enquanto tem a razatildeo de bem por exemplo quando se deseja conhecer a verdade do mesmo modo o objeto do intelecto praacutetico eacute o bem que pode ser ordenado agrave accedilatildeo sob a razatildeo de verdadeiro O intelecto praacutetico com efeito conhece a verdade como o intelecto especulativo mas ordena agrave accedilatildeo essa verdade conhecida (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 79 a11)83
Para Tomaacutes de Aquino o valor de uma accedilatildeo seraacute relativo agrave finalidade que ela
atingiraacute Talvez a oposiccedilatildeo mais apropriada seria entre Destino e Autonomia ao inveacutes
de se pensar em termos de teleologia e autonomia
83 ldquoDicendum quo verum et bonum se invicem includunt nam verum est quoddam bonum alioquin non
esset appetibile et bonum est quoddam verum alioquin non esset intelligibile Sicut igitur obiectum appetites potest esse verum inquantum habet rationem boni sicut cum aliquis appetit veritatem cognoscere ita objectum intellectus practici est bonum ordinabile ad opus sub ratione veri Intellectus enim practicus veritatem cognoscit sicut et speculativus sed veritatem cognitam ordinat ad opusrdquo
91
526 A intenccedilatildeo
A definiccedilatildeo claacutessica de intenccedilatildeo se deve a Tomaacutes de Aquino No acircmbito da
filosofia moral a ideia eacute a de que a intenccedilatildeo eacute uma vontade que faz a accedilatildeo em uma
meta ao mesmo tempo proacutexima e longiacutenqua precisa e vasta indo ateacute o fim uacuteltimo A
intenccedilatildeo envolve pois a potecircncia da vontade para engendrar uma accedilatildeo e para mover-
se em busca do fim O desenvolvimento do conceito de intenccedilatildeo estaacute expresso na
questatildeo 12 da Primeira parte da Segunda Parte da Suma Teoloacutegica Nos quatro
artigos que compotildeem a questatildeo Tomaacutes de Aquino apresenta a intenccedilatildeo e o seu
objeto (a 1-2) e explicita o ato da intenccedilatildeo (a 3-4)
Tomando a definiccedilatildeo de Agostinho a intenccedilatildeo propriamente dita se refere
agravequilo que move uma coisa a seu fim (cf AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a1)84
Neste sentido como eacute a vontade que move todas as potecircncias a um fim a intenccedilatildeo
se constitui como ato da vontade ldquoOra a vontade move todas as outras potecircncias da
alma para o fim como foi estabelecido acima Eacute manifesto portanto que a intenccedilatildeo eacute
propriamente ato da vontaderdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a1)85
Existe ainda relaccedilatildeo entre Vontade razatildeo e intenccedilatildeo Agrave vontade cabe tender
ao fim enquanto cabe agrave razatildeo ordenar O papel da intenccedilatildeo consiste em ser o
movimento da vontade actus voluntatis em busca do fim uacuteltimo conforme
ordenamento da racionalidade Aleacutem disso a intenccedilatildeo embora se refira
primeiramente ao fim uacuteltimo natildeo exclui a relaccedilatildeo com os fins intermediaacuterios desde
que estes estejam relacionados ao fim uacuteltimo ldquonem sempre eacute necessaacuterio que [a
intenccedilatildeo] seja do fim uacuteltimordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a2 )
Qual o alcance desta reflexatildeo de Tomaacutes de Aquino A intencionalidade
promove uma unidade nos atos voluntaacuterios pois cada accedilatildeo se encontra concatenada
na busca do homem pela felicidade Assim eacute possiacutevel se falar a partir de Tomaacutes de
Aquino de uma unidade da vida moral Esta unidade da vida moral atraveacutes da
intencionalidade garante uma ligaccedilatildeo interna de todos os fins intermediaacuterios
alcanccedilados pelo homem na busca do fim uacuteltimo
84 ldquoUnde intentio primo et principaliter pertinent ad id quod movet ad finemrdquo 85 ldquoVoluntas autem movet omnes alias vires animae ad finem ut supra habitum est Unde manifestum
est quod intentio proprie est actus voluntatisrdquo
92
Natildeo eacute de admirar que a intenccedilatildeo possa se referir a vaacuterias coisas
simultaneamente Tomas de Aquino afirma
A arte imita a natureza Mas a natureza por um soacute instrumento busca duas utilidades ldquocomo a liacutengua que se ordena para o gosto e para falarrdquo diz o livro II da Alma Logo pela mesma razatildeo a arte e a razatildeo podem simultacircneas ordenar para dois fins uma soacute coisa Assim sendo algueacutem pode ter a intenccedilatildeo de muitas coisas simultaneamente (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a3)86
Tomaacutes de Aquino indica que aleacutem da razatildeo a arte tambeacutem pode proporcionar
finalidades e como conclusatildeo a intenccedilatildeo pode se referir a vaacuterias coisas Nesse
sentido compreende-se que ela pode combinar diversos planos nos quais os fins
podem ser dados Este reconhecimento da multiplicidade de coisas as quais a
intenccedilatildeo pode se referir explica de certo modo porque frequentemente os homens
se perdem em suas buscas Natildeo eacute a toa que Tomaacutes sugere uma cooperaccedilatildeo entre a
razatildeo a vontade e a intenccedilatildeo
Tambeacutem eacute relevante o fato de a intenccedilatildeo ser cooperadora da razatildeo na
descoberta de fins Se a arte eacute uma instacircncia distinta da razatildeo e se a intenccedilatildeo tambeacutem
pode se referir a ela pode-se afirmar que aleacutem do fim ordenado pela razatildeo natildeo haacute
um impedimento da participaccedilatildeo da intenccedilatildeo na construccedilatildeo do agir humano o que
implica uma abertura agrave liberdade da intenccedilatildeo nesta construccedilatildeo Pode-se concluir que
os juiacutezos praacuteticos e a escolha livre resultam da interaccedilatildeo entre a racionalidade e a
intenccedilatildeo voluntaacuteria
Existe finalmente uma conexatildeo entre intenccedilatildeo e vontade Tomaacutes de Aquino
afirma que ldquonas as coisas voluntaacuterias um soacute movimento eacute a intenccedilatildeo do fim e a
vontade do que eacute para o fimrdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a3)87 Embora agrave
vontade se relacione com aquilo eacute que para o fim uma vez que ela elege os meios
para atingi-lo sua relaccedilatildeo com a intenccedilatildeo que eacute o seu proacuteprio movimento eacute
constituiacuteda como um movimento uacutenico Pode-se entatildeo afirmar que a conexatildeo entre
intenccedilatildeo e vontade eacute de tal modo que natildeo se pode afirmar uma sem a outra
O estudo da intenccedilatildeo em Tomaacutes de Aquino aprofunda uma questatildeo que estava
em Aristoacuteteles apenas de modo latente Natildeo se pode afirmar que em Aristoacuteteles natildeo
havia uma preocupaccedilatildeo com a intenccedilatildeo poreacutem o seu detalhamento se deve ao
86 ldquoArs imitatur naturam Sed natura ex uno instrument intendit duas utilitates sicut lingua ordinatur et
ad gustum et ad locutionem dicitur in II de Anima Ergo pari ration ears vel ratio potest simul aliquid unum ad duos fines ordinare Et ipsa aliquis simul plura intendererdquo
87 ldquoIn rebus voluntariis idem motus est intentio finis et voluntas eius quod est ad finemrdquo
93
Aquinate A intenccedilatildeo eacute de tal modo necessaacuteria que estaacute presente em cada um dos
atos concernentes aos meios e a escolha eacute ativa em todo desenvolvimento das accedilotildees
53 TOMISMO E EacuteTICA DAS VIRTUDES
Alguns elementos da Psicologia Filosoacutefica de Santo Tomaacutes foram expostos de
modo que foram elucidados como elementos que ou eram desconhecidos ao
pensamento moral aristoteacutelico ou foram insuficientemente aprofundados Cabe entatildeo
verificar quais satildeo os elementos distintivos em relaccedilatildeo agraves proacuteprias virtudes Para isto
aleacutem do proacuteprio Santo Tomaacutes investigou-se o pensamento de Giuseppe Abbaacute
Juvenal Savian Filho Henrique de Lima Vaz Joseph Pieper entre outros que
contribuiacuteram significativamente nesta parte da pesquisa
Em geral natildeo se tem duacutevida de que Tomaacutes de Aquino operou uma releitura do
cristianismo por meio do pensamento aristoteacutelico Cabe pois aleacutem de demonstrar que
mudanccedilas essa releitura provocou explicitar de que modo elas ecoaram no
pensamento moral contemporacircneo Com a realizaccedilatildeo desta tarefa espera-se fazer
entender um dos principais objetivos desta pesquisa mostrar que um retorno
contemporacircneo a Eacutetica das Virtudes deve considerar a influecircncia do pensamento
cristatildeo pelo vieacutes de uma leitura tomasiana Um dos pontos de importacircncia capital para
a pesquisa eacute defender que algumas distinccedilotildees entre o conceito aristoteacutelico e o
conceito tomista de virtude a saber a relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo
de liberdade constituem-se como contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino agrave Eacutetica das
Virtudes e agrave histoacuteria da eacutetica ocidental em geral
Esta seccedilatildeo da pesquisa cumpre a tarefa de mostrar como Tomaacutes de Aquino
opera mudanccedilas significativas no acircmbito da Eacutetica das Virtudes Ele apresenta por um
lado acreacutescimos relevantes agrave moral de Aristoacuteteles e por outro permite afirmar que
muitos desses aspectos se incorporam agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica posterior A partir desta
compreensatildeo pretende-se concluir que propor uma Eacutetica das Virtudes ao
pensamento contemporacircneo negligenciando estes aspectos produz certa fragilidade
agrave proposta Por fim esta seccedilatildeo faraacute consideraccedilotildees sobre a proposta moral do
MacIntyre de Depois da Virtude agrave luz do estudo realizado
94
531 Vida feliz e virtudes antes da siacutentese tomista
Eacute a partir de Santo Agostinho que se tem no pensamento cristatildeo um primeiro
aprofundamento dos temas morais e eacute este aprofundamento que contribui para uma
ulterior moral teoloacutegica Entretanto este primeiro esforccedilo de Agostinho natildeo resulta na
inserccedilatildeo de uma seccedilatildeo moral como componente necessaacuteria da ciecircncia teoloacutegica As
reflexotildees morais embora relevantes encontram-se dispersas entre outras temaacuteticas
da teologia Este pensamento seraacute retomado por Tomaacutes como mote de reflexatildeo agrave luz
do pensamento aristoteacutelico Pode-se afirma que Tomas de Aquino tributa ao
pensamento cristatildeo a doutrina moral que doravante se constitui como parte
integrante da ciecircncia teoloacutegica e seraacute referecircncia para toda a filosofia moral
Pode-se afirmar que a vida feliz desde Aristoacuteteles foi a grande motora do
pensamento eacutetico Com Santo Agostinho ela passa a ser definida como a uniatildeo da
mente a Deus no conhecimento no amor e no gaacuteudio da verdade e do bem divino
Assim Agostinho afirma no De Beata Vita
Certo impulso interior que nos convida a lembrar-nos de Deus a buscaacute-lo a sentir sede dele sem nenhum fastio jorra em noacutes dessa mesma fonte da Verdade Eacute luz que esse misterioso sol irradia em nossos olhos interiores E eacute dele que procede tudo o que proferimos de verdadeiro ainda que temamos volver para ele nossos olhos ainda doentios ou receacutem-abertos e de o fixarmos face a face Esse sol revela-se a noacutes como sendo o proacuteprio Deus ser perfeito sem nenhuma imperfeiccedilatildeo a diminuiacute-lo Pois nele se encontra toda a perfeiccedilatildeo completa e iacutentegra visto que ele eacute ao mesmo tempo o Deus todo-poderoso (AGOSTINHO Santo A vida feliz 1998 p 156 PL 32 4 35)88
Agostinho acredita que naturalmente existe um impulso do homem para Deus
Em outras passagens ele tambeacutem jaacute havia demonstrado esta compreensatildeo ldquotu nos
criastes para voacutes e incansaacutevel estaacute o nosso coraccedilatildeo enquanto natildeo repousa em voacutesrdquo
(agostinho Santo Confissotildees I 1998 p 7) Eacute atraveacutes da inteligecircncia ou ldquoos olhos
interioresrdquo que o homem compreende este desejo de busca de Deus assim como a
proacutepria inteligecircncia atesta que a verdade do que se profere depende dele A perfeiccedilatildeo
de Deus eacute certificada pelo fato de Deus se mostrar ao pensamento humano no interior
de cada homem Eacute este Deus que eacute a proacutepria vida feliz
88 ldquoHoc interioribus luminibus nostris iubar sol ille secretus infundit Huius est verum omne quod
loquimur etiam quando adhuc vel minus sanis vel repente apertis oculis audacter converti et totum intueri trepidamus nihilque aliud etiam hoc apparet esse quam Deum nulla degeneratione impediente perfectum Nam ibi totum atque omne perfectum est simulque est omnipotentissimus Deusrdquo
95
Eacute possiacutevel compreender a partir de Agostinho que pela perfeiccedilatildeo de Deus a
vida feliz diz respeito a um domiacutenio que estaacute para aleacutem da vida efecircmera do homem
no mundo Embora se tenha assim como em Aristoacuteteles que o fim do homem eacute a
felicidade esta acontece em dimensotildees extremamente distintas Eacute em virtude desta
nova concepccedilatildeo de vida feliz que se requer uma reformulaccedilatildeo na taacutebua das virtudes
de modo que entre as virtudes jaacute existentes a caridade possa figurar entre as
principais O modelo da caridade eacute aquela que Deus tem para o homem e tendo Deus
por exemplar o homem a viveraacute em relaccedilatildeo aos seus
Segundo Giuseppe Abbaacute (cf 2008 p 24) para alcanccedilar esta nova vida feliz ou
vida beata era preciso um conhecimento apropriado o conhecimento que Deus
mesmo tem de si mesmo e da ordem das criaturas Este conhecimento presente em
Deus ao modo de uma lei eterna eacute comunicado por via de iluminaccedilatildeo a cada mente
humana no modo de um conhecimento inato das razotildees eternas segundo os quais
satildeo regulados os atos da vontade Deve-se acrescentar que a lei eterna tambeacutem pode
ser conhecida por via de revelaccedilatildeo na lei escrita do Antigo e do Novo Testamento
Ainda segundo Giuseppe Abbaacute a accedilatildeo de Deus para conduzir o homem agrave vida
beata natildeo se limita agrave comunicaccedilatildeo da lei Deus interveacutem tambeacutem mediante uma
gratuita ajuda interior para converter a vontade humana da aversatildeo contra Deus ao
amor por Deus e a sustentar continuamente a retidatildeo da vontade nas obras virtuosas
A teologia moral seraacute assim uma investigaccedilatildeo em torno da lei divina eterna e de
como devem agir aqueles que nela inspiram-se
As concepccedilotildees agostinianas de vida feliz virtudes e lei eterna permanecem
praticamente as mesmas ateacute a chegada dos Sententiarum Libri de Pedro Lombardo
A partir do sec XII e iniacutecio do seacuteculo XIII as Sentenccedilas e as Sumas passam a fazer
uma apresentaccedilatildeo da doutrina cristatilde O elemento relevante deste dado eacute o fato de as
Sentenccedilas e Sumas serem agora obrigatoacuterias como textos baacutesicos de leitura nas
escolas teoloacutegicas Eacute ainda relevante o fato de estes textos natildeo reservarem um
espaccedilo especiacutefico para a filosofia moral assim tambeacutem como aconteceu com a
concepccedilatildeo agostiniana conforme o comentaacuterio de Giuseppe Abbaacute (cf 2008 p 24)
Os temas morais eram apresentados difusamente de modo que eles soacute aparecem
como temaacuteticas assessoacuterias Pedro Lombardo por exemplo tratava sobre a liberdade
e sobre o pecado no livro segundo que explicitava a questatildeo da queda do homem No
96
livro trecircs a propoacutesito do verbo encarnado Lombardo fala sobre as virtudes quando
responde agrave questatildeo de se Cristo teve virtudes
Traduzida para o latim por Roberto Grossatesta em 1246-47 a Eacutetica a
Nicocircmacos natildeo foi capaz de modificar o rumo do pensamento moral cristatildeo-catoacutelico
fortemente marcado pelo agostinismo ao menos ateacute Santo Tomaacutes Eacute atraveacutes dele que
se datildeo dois acontecimentos de particular relevacircncia a construccedilatildeo de uma parte
especificamente moral na teologia e a sua fundamentaccedilatildeo tendo a eacutetica aristoteacutelica
como fonte inspiradora Naturalmente a realizaccedilatildeo dessas duas tarefas natildeo se deu
de modo paciacutefico pois pensamentos jaacute instituiacutedos natildeo cedem facilmente agraves novas
ideias Quais foram pois as articulaccedilotildees filosoacuteficas que Tomaacutes de Aquino se utilizou
para a realizaccedilatildeo desses dois empreendimentos
97
5311 A construccedilatildeo de uma parte moral na teologia
Sobre a criaccedilatildeo de uma parte moral na Teologia Tomaacutes de Aquino enfrenta a
seguinte dificuldade como eacute possiacutevel a tematizaccedilatildeo sobre as virtudes se a teologia
tem Deus por assunto principal Deus natildeo necessita de virtudes uma vez que estas
satildeo haacutebitos que aperfeiccediloam o agente Assim faz-se necessaacuterio expor o modo como
Tomaacutes de Aquino responde a este problema
No desenvolvimento desta seccedilatildeo ver-se-aacute que primeira soluccedilatildeo de Tomaacutes ao
problema da uma inclusatildeo de uma parte moral na teologia daacute-se ainda sob o esquema
agostiniano partindo da lei divina agrave finitude do homem Nesta primeira soluccedilatildeo Tomaacutes
coloca hierarquicamente a lei em primeiro lugar e as virtudes em segundo abrindo um
espaccedilo para se tratar da moral na teologia Qual o problema desta primeira soluccedilatildeo
Ora sendo a lei divina o elemento primordial a eacutetica tomista perderia um de seus
viacutenculos mais relevantes com a eacutetica aristoteacutelica a saber uma eacutetica centrada no
agente A eacutetica aristoteacutelica privilegia por excelecircncia o agente enquanto que em
Agostinho o que brilha eacute a eacutetica fundamentada na lei divina A segunda soluccedilatildeo de
Tomaacutes de Aquino agrave questatildeo se daacute pela via indireta do discurso sobre Deus Com
efeito se pelo modus cognocendio homem conhece a Deus pela ciecircncia moral o
homem conhece a Lei Divina Com esta soluccedilatildeo pode-se afirmar que Tomaacutes de
Aquino garante um lugar agrave moral na Teologia sem no entanto abdicar da uma moral
centrada no agente
Seguindo a primeira soluccedilatildeo Tomaacutes introduz a noccedilatildeo de haacutebitos virtuosos
como formas impressas na alma ldquoas quais a reparam a retificam na medida em que
a fazem partiacutecipe das divinas sabedoria e retidatildeordquo (ABBAacute 2008 p 27) Segundo
Giuseppe Abbaacute existe da parte de Tomaacutes de Aquino uma profunda coerecircncia entre
sua antropologia e esses haacutebitos que informam a alma (cf ABBAacute 2008 p 27) A
explicaccedilatildeo dessa coerecircncia eacute possiacutevel ser mostrada a partir do De Ente et Essentia
a essecircncia se encontra concretizada nas substacircncias criadas intelectuais nas quais o ser ou existecircncia difere da essecircncia embora a essecircncia nelas exista sem a mateacuteria Daiacute que o ser dessas substacircncias natildeo eacute absoluto mas recebido e por conseguinte limitado e finito conforme a capacidade da natureza recipiente embora a natureza ou quididade delas seja absoluta e carente de mateacuteria (AQUINO Tomaacutes de De ente et essentia 2009)
98
Na compreensatildeo desta obra do jovem Tomaacutes de Aquino a alma humana que
se une ao corpo como forma de uma mateacuteria individuante natildeo atua nele comunicando
toda a sua perfeiccedilatildeo em razatildeo composiccedilatildeo das substacircncias O indiviacuteduo soacute se
atualiza no sentido da perfeiccedilatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de formas acidentais
suplementares Estas formas satildeo haacutebitos denominados virtudes Desse modo eacute
possiacutevel afirmar que a inclusatildeo de uma parte moral na teologia por parte de Tomaacutes
de Aquino natildeo eacute uma simples inclusatildeo arbitraacuteria mas um desenvolvimento necessaacuterio
de seu pensamento ontoloacutegico
Deve-se notar ainda que no Scriptum super Sententiis Tomaacutes de Aquino
adota a posiccedilatildeo de que os haacutebitos ou as virtudes necessitam ser dirigidos nos seus
atos pela lei divina pois ldquoa lei ensina a agir demonstra os atos retos as virtudes nos
conduzem ao bem agirrdquo (AQUINO Tomaacutes de Scriptum super sententiis III 37 ad 40
2011) Conforme este posicionamento o enfoque primordial permanece na lei divina
o que permite a Tomaacutes dar continuidade ao esquema da Teologia agostiniana poreacutem
a obediecircncia agrave lei divina daacute-se sob o auxiacutelio das virtudes Obedecendo a esta
hierarquia a lei divina tem precedecircncia sob as virtudes e estas em seu papel
secundaacuterio ganham ldquoabrigordquo na teologia agora com um tratado especiacutefico
Na segunda soluccedilatildeo que se como justificaccedilatildeo definitiva da constituiccedilatildeo de uma
parte moral na teologia Tomaacutes se utiliza da ideia de que uma vez que eacute impossiacutevel
tratar de Deus a partir de sua essecircncia pois este eacute inacessiacutevel ao conhecimento
sensitivo eacute possiacutevel tratar de Deus a partir de seus efeitos ldquose a existecircncia de Deus
natildeo eacute evidente para noacutes pode ser demonstrada pelos efeitos por noacutes conhecidosrdquo
(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 2 a2)89 O homem na qualidade de criatura racional
constitui-se como uma das obras (efeitos) especiais de Deus pois eacute ldquocriado agrave imagem
de Deus enquanto o termo imagem significa o que eacute dotado de intelecto de livre-
arbiacutetrio e revestido por si de poderrdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II prologus)90 Ora eacute
justamente atraveacutes do conhecimento praacutetico que homem tem de suas obras que o
permite construir uma ciecircncia moral Esta ciecircncia se fundamenta na razatildeo com a qual
Deus governa as criaturas particularmente o homem em seu agir Pela ciecircncia moral
conhece-se a lei divina
89ldquoUnde Deum esse secundum quod non est per se notum quoad nos demonstrabile est per effectus
nobis notusrdquo 90 ldquoHomo factus ad imaginem Dei dicitur secundum quod per imaginem significatur intellectuale et
arbiacutetrio liberum et per se potestativumrdquo
99
A ciecircncia sagrada eacute mais especulativa do que praacutetica porque se refere mais agraves coisas divinas do que aos atos humanos Ela considera estes uacuteltimos enquanto por eles o homem eacute ordenado ao pleno conhecimento de Deus no qual consiste a bem-aventuranccedila eterna (AQUINO Tomaacutes de S Th I q1 a4)91
A partir da afirmaccedilatildeo de Tomaacutes a ciecircncia praacutetica trata dos atos humanos e
estes satildeo considerados na medida em que contribuem ao conhecimento de Deus
Esta eacute a via que faz com que a ciecircncia moral tenha lugar na Teologia Desse modo
torna-se possiacutevel fazer uma ciecircncia moral sobre o homem autor de seus proacuteprios
atos em uma teologia que tem Deus por sujeito Assim segue justificada a inclusatildeo
de uma parte moral na Teologia
5312 A fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista
Foi apresentado ateacute o modo como Tomaacutes de Aquino tornou possiacutevel a
construccedilatildeo de uma parte moral na teologia Frequentemente a eacutetica tomista ainda eacute
vista de certo modo como uma filosofia em que domina o conceito de lei seja a lei
eterna seja a lei natural constituiacuteda segundo os preceitos da lei divina Segundo
Giuseppe Abbaacute a ideia comum eacute que ldquoa lei constituiria a regra moral obrigatoacuteria agrave qual
deve se ater ao sujeito humano livre nas suas accedilotildees voluntaacuterias Os haacutebitos virtuosos
interviriam para tornar faacutecil estaacutevel e agradaacutevel o exerciacutecio dos atos livresrdquo (ABBAacute
2008 p 26) Entretanto vista deste modo a eacutetica tomista seria centrada muito mais
na norma do que no agente Com efeito viu-se que a eacutetica de Tomaacutes se vincula
fortemente agrave moral aristoteacutelica porque focaliza primordialmente o agente Este viacutenculo
eacute um meio de se justificar a fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista segundo
ponto a ser aqui explicitado
O primeiro contato de Tomaacutes de Aquino com o texto da Eacutetica a Nicocircmacos foi
nos anos de 1248-52 logo apoacutes completar 20 anos Atraveacutes do primeiro curso sobre
esta nova traduccedilatildeo Tomaacutes de Aquino recebe do mestre Alberto Magno as primeiras
liccedilotildees sobre a Eacutetica do Estagirita Conforme Giuseppe Abbaacute Tomaacutes de Aquino teve
bastante tempo para amadurecer as ideias em torno deste texto e somente 17 anos
depois o Aquinate levou a cabo a tarefa de introduzir na teologia uma eacutetica de
91 ldquoMagis tamen est speculativa quam practica quia principalius agit de rebus divinis quam de actibus
humanis de quibus agit secundum quod per eos ordinatur homo ad perfectam Dei cognitionem in qua aeterna beatitudo consistirdquo
100
inspiraccedilatildeo aristoteacutelica justamente quando compotildee a segunda parte da Suma de
Teologia periacuteodo em que se encontra em Paris de 1269-72 Embora Tomaacutes de
Aquino jaacute ensaie a introduccedilatildeo do estudo sobre as virtudes em obras anteriores como
eacute o caso do Scriptum super Sententiis seu aprofundamento se consolida por ocasiatildeo
da construccedilatildeo da segunda parte da Suma Ainda segundo Giuseppe Abbaacute o
desenvolvimento do pensamento do moral de Tomaacutes de Aquino ldquoeacute a primeira soacutelida
tentativa de utilizar em Teologia a doutrina aristoteacutelica das virtudesrdquo (ABBAacute 2008 p
27) Deve-se agora apresentar qual a perspectiva tomista do conceito de virtude
532 O lugar das virtudes na teologia e sua explicitaccedilatildeo
5321 A beatitude e o lugar das virtudes na siacutentese teoloacutegica tomista
A apresentaccedilatildeo do modo como Tomaacutes de Aquino constituiu uma parte moral
na Teologia a partir da moral aristoteacutelica exige uma reformulaccedilatildeo de vaacuterios conceitos
de sua filosofia moral do estagirita Entre eles encontra-se o conceito de virtude que
possui particular relevacircncia nesta pesquisa Considerando como foi afirmado que a
ciecircncia praacutetica de inspiraccedilatildeo aristoteacutelico-tomista tem o enfoque no agente a filosofia
moral tomista se inicia com uma investigaccedilatildeo acerca fim mais apropriado agraves accedilotildees
humanas Assim ele inicia a Prima Secundae
Eacute de se considerar em primeiro lugar o fim uacuteltimo da vida humana Em seguida aqueles meios que poderatildeo levar o homem a este fim ou desviaacute-lo dele pois eacute do fim que aquelas coisas que a ele concernem recebem as razotildees Como o fim uacuteltimo da vida humana eacute a bem-aventuranccedila deve-se considerar primeiramente o fim uacuteltimo em comum e em seguida a bem-aventuranccedila (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q1 proecircmio )92
A bem-aventuranccedila que eacute o fim uacuteltimo aqui tratado Tomaacutes a apresenta desta
maneira porque sendo Deus a proacutepria beatitude conserva-se por meio dela uma
unidade temaacutetica dentro da Ciecircncia Teoloacutegica isto eacute a felicidade e os meios para
adquiri-la satildeo temas necessaacuterios agrave Teologia O que ocorre eacute que obedecendo agrave
ordem teoloacutegica trata-se inicialmente de Deus e de sua obra depois se deve tratar
92ldquoUbi primo considerandum occurit de ultimo fine humanae vitae et deinde de his per quae homo ad
hunc fine pervenire potest vela ab eo deviare ex fine enim oportet accipere rationes eorum quae ordinantur ad finem Et quia ultimus finis humanae vitae ponitur esse beatitudo oportet primo considerare de ultimo fine in communi deinde de beatitudinerdquo
101
do modo como as criaturas realizam um caminho de retorno a ele sobretudo o
homem que demonstra sua semelhanccedila com Deus na capacidade de conhecer e de
poder ser princiacutepio e senhor de seu agir Com efeito Tomaacutes de Aquino entende que
o homem retorna a Deus de uma maneira muito peculiar este retorno natildeo eacute uma
imposiccedilatildeo de Deus ao homem mas um ato de confianccedila na vontade livre do homem
de procedecirc-lo sem dispensar o auxiacutelio da graccedila (Cf BRUGUEgraveS 2003 Tomo III nota
ldquobrdquo p 29)
A elaboraccedilatildeo de uma Moral das Virtudes encontra pois seu lugar na teologia
agrave medida que por meio do exerciacutecio das virtudes o homem encontra um caminho
mais adequado de alcanccedilar a beatitude com maior propriedade Acrescente-se a isto
o fato de Tomaacutes de Aquino dedicar na Suma uma parte ao estudo daqueles haacutebitos
que distanciam o homem de seu fim Esses haacutebitos denominados viacutecios merecem
uma menccedilatildeo devida dado que o itineraacuterio do homem agrave felicidade comporta tanto os
atos afirmativos das virtudes quanto os atos negativos dos viacutecios O que significa um
ato afirmativo e outro negativo A ideia central eacute a de que o saber sobre as virtudes e
os viacutecios sejam ambos uacuteteis para o encaminhamento do ser humano agrave felicidade seja
exercitando as virtudes (atos afirmativos) seja evitando os viacutecios (atos negativos)
O estudo sobre as virtudes passa a ser desenvolvido no interior do proacuteprio
pensamento de Santo Tomaacutes antes das consideraccedilotildees sobre o modo como Deus
governa as criaturas ao seu fim e governa especialmente os indiviacuteduos humanos agrave
vida beata mediante a lei e a graccedila (cf ABBAacute 2008 p 34) pois entre a vida beata e o
governo divino estatildeo os atos dos quais o indiviacuteduo eacute autor e pelos quais ele realiza
a sua beatitude E como as virtudes se referem ao modo como o homem realiza o
processo de retorno a Deus deve-se aprofundar o modo como as virtudes estatildeo
relacionadas ao ser do homem
5312 A concepccedilatildeo tomista de homem e as virtudes
A partir da Tradiccedilatildeo Biacuteblica a relaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo de homem e as
virtudes se articulam com aquilo que Joseph Pieper denominou de imagem cristatilde do
homem (cf PIEPER 2010 p 9) Esta imagem toma por indicaccedilatildeo a afirmaccedilatildeo que
diz ldquosede perfeitos como o vosso Pai do ceacuteu eacute perfeitordquo Ora na condiccedilatildeo de criaturas
a perfeiccedilatildeo eacute fruto de um aprendizado continuo que inclui a vivecircncia constante dos
102
habitus que vatildeo conduzir o ser humano a expor o que haacute de melhor em si Esse melhor
diz respeito agraves virtudes que aperfeiccediloam o agente e tornam mais acessiacutevel o caminho
agrave beatitude
A partir da antropologia tomista o homem eacute compreendido como uma unidade
substancial de corpo e alma Tomaacutes entende que o ser da mateacuteria corpoacuterea estaacute como
recipiente e sujeito para ser algo superior Neste caso eacute a alma humana que estaacute
como princiacutepio formal pela sua proacutepria natureza Por isso a alma humana eacute forma do
corpo tornando esse composto num ser uno ldquopois eacute atraveacutes da forma pela qual as
coisas tecircm o ser que tambeacutem o composto corpo e alma recebe sua unidaderdquo
(AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles II c 58 )93
A unidade do homem eacute assegurada pela composiccedilatildeo de corpo e alma de modo
que em sua constituiccedilatildeo o homem goza da daacutediva de pela alma fazer parte do reino
espiritual e pelo corpo fazer parte do reino corporal Assim segundo Tomaacutes de
Aquino o homem encontra-se na fronteira do espiritual e do corporal
Deve-se pois admitir algo supremo no gecircnero dos corpos a saber o corpo humano possuidor de temperamento uniforme que atinja o iacutentimo do gecircnero superior isto eacute a alma humana que ocupa o uacuteltimo grau das substacircncias intelectuais como se pode verificar pelo seu modo inteligente de conhecer e por isso se diz que a alma intelectual eacute como o horizonte e a fronteira entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo enquanto substacircncia incorpoacuterea e no entanto como forma do corpo (AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles II 68 )94
Eacute de especial relevacircncia o fato de o homem por sua condiccedilatildeo estar habilitado
a buscar a felicidade pois possui um modo inteligente de conhecer o que o
assemelha a Deus A semelhanccedila com Deus tambeacutem se daacute considerando que o
homem possui domiacutenio de seus atos Neste sentido pode-se afirmar que entre as
criaturas sensiacuteveis o homem eacute aquele que possui uma capacidade natural de buscar
o seu fim Natural poreacutem eacute o seu despreparo dada a constante falibilidade de sua
vontade livre Segundo a antropologia tomista sabe-se que pelo princiacutepio corporal o
homem eacute portador das paixotildees e estas consideradas isoladamente natildeo possuem
nenhuma conotaccedilatildeo no sentido de boas ou maacutes Elas satildeo potecircncias neutras
93ldquoCum igitur a forma unaquaeque res habeat esse a forma etiam habebit unitatemrdquo 94ldquoEst igitur accipere aliquid supremum in genere corporum scilicet corpus humanum aequaliter
complexionatum quod attingit ad infimum seperioris generis scilicet ad animam humanam quae tenet ultimum gradum in genere intellectualium substantiarium ut ex modo intelligendi percipi potest b) Et inde est quod anima intellectualis dicitur esse quase quidam horizon et confinium corporeorum et incorporeorum inquantum est substantia incorporea corporis tamen formardquo
103
moralmente mas que podem condicionar as decisotildees do homem em virtude de seu
forte apelo agrave sensibilidade Eacute justamente aiacute que as virtudes ganham o seu sentido As
potecircncias do homem tanto as da alma quanto as do corpo necessitam de um habitus
que as atualizem em virtude do melhor Assim as virtudes iratildeo pois preparar o
homem positivamente na busca de seu fim uacuteltimo da vida feliz
Deve-se dizer que o irasciacutevel e o concupisciacutevel em si mesmos considerados enquanto partes do apetite sensitivo satildeo comuns a noacutes e aos animais irracionais Mas enquanto racionais por participaccedilatildeo obedientes agrave razatildeo satildeo potecircncias proacuteprias do homem e desse modo poreacutem ser sujeitos da virtude humana (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 56 a4 )95
As virtudes satildeo organizadas para atender as necessidades do homem
considerado em sua integralidade Desse modo as virtudes iratildeo aperfeiccediloar tanto as
potecircncias espirituais isto eacute a inteligecircncia e a vontade que pertencem ao acircmbito da
razatildeo do homem quanto as potecircncias sensitivas que satildeo a concupiscecircncia e a
irascibilidade fontes das paixotildees ambas ligadas ao corpo Eacute em virtude desta
totalidade que eacute o homem que um tratado sobre as virtudes natildeo deveria negligenciar
um estudo sobre as paixotildees e os viacutecios caso contraacuterio um tratado desta natureza
poderia ateacute visar um bem das accedilotildees particularmente mas natildeo o bem do agente
pensado em sua totalidade Acerca disto Tomaacutes de Aquino afirma
O nuacutemero de determinadas coisas pode ser estabelecido ou pelos princiacutepios formais ou pelos sujeitos Em ambos os casos temos quatro virtudes cardeais porque o princiacutepio formal da virtude aqui considerada eacute o bem da razatildeo que pode ser considerado sob o duplo aspecto ou enquanto consiste na proacutepria consideraccedilatildeo da razatildeo e se teraacute entatildeo uma virtude principal que se chama prudecircncia ndash ou enquanto se afirma a ordem da razatildeo em relaccedilatildeo a alguma coisa E isso seraacute ou quanto as accedilotildees e se teraacute entatildeo a justiccedila ou quanto agraves paixotildees e nesse caso eacute preciso que haja virtudes pois para afirmar a ordem da razatildeo nas paixotildees eacute necessaacuterio levar em conta a oposiccedilatildeo delas agrave razatildeo Essa oposiccedilatildeo pode se dar de duas formas primeiro quanto a paixatildeo impele a algo contraacuterio agrave razatildeo e aiacute eacute preciso que a paixatildeo seja controlada o que chamamos temperanccedila segundo quando a paixatildeo nos afasta das normas da razatildeo como o temor do perigo ou do sofrimento e nesse caso devemos nos firmar
95 ldquoErgo dicendum quod irascibilis et concupiscibilis secundum se consideratae prout sunt partes
appetitus sensitivi communes sunt nobis et brutis Sed secundum quod sunt rationales per participationem ut obedientes rationi sic sunt propriae hominis Et hoc modo possunt esse subiectum virtutis humanaerdquo
104
inarredavelmente no que eacute racional e a isso se daacute o nome de fortaleza (AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles I-II q 61 a2 )96
Tomaacutes de Aquino entende que o nuacutemero das virtudes eacute determinado e esta
determinaccedilatildeo eacute dada de duas maneiras ou segundo os princiacutepios formais ou
conforme os princiacutepios subjetivos na qualidade de sujeitos97 Tanto numa quanto
noutra maneira o nuacutemero das virtudes pode ser resumido em quatro Com efeito esse
nuacutemero de quatro virtudes cardeais eacute exatamente o numero suficiente para dar conta
de todas as dimensotildees do homem pensado em sua constituiccedilatildeo Conforme os
princiacutepios formais a virtude seraacute pois o bem da razatildeo (prudecircncia) ou daquilo que a
ela se refere a saber agrave vontade (justiccedila) como segunda potecircncia espiritual e agrave
concupiscecircncia (temperanccedila) e a irascibilidade (fortaleza) como potecircncias ligadas ao
corpo
Em relaccedilatildeo aos princiacutepios subjetivos o nuacutemero das virtudes principais tambeacutem
seraacute quatro pois segundo Tomaacutes de Aquino os sujeitos satildeo quatro o racional por
essecircncia e dele a prudecircncia e o racional por participaccedilatildeo a vontade sujeito da
justiccedila o apetite concupisciacutevel sujeito da temperanccedila e o irasciacutevel sujeito da
fortaleza
Com isso entende-se que as virtudes visam natildeo apenas a perfeiccedilatildeo das
potecircncias tomadas particular ou aleatoriamente mas visam agrave perfeiccedilatildeo do agente
compreendido em sua totalidade Segundo Albert Pleacute a virtude moral humana e
humanizante levada agrave perfeiccedilatildeo habilita o homem a agir com todo o seu ser em
conformidade com sua natureza racional Eacute dessa forma que ele assegura de uma
vez soacute tanto o bem da obra cumprida (bonum operis) quanto o do sujeito que age
(bonum operantis) (Cf PLEacute 2005 vol IV nota ldquobrdquo p 162)
A relaccedilatildeo entre as virtudes e a constituiccedilatildeo do homem leva a compreender que
eacute em virtude de o homem ser pensado a partir de uma unidade substancial que se
96 ldquodicendum quod numerous aliquorum accipi potest aut secundum principia formalia aut secundum
subiecta et utroque modo inveniuntur quatuor cardinales virtutes Principium enim formale virtutis de qua nunc loquimur est rationis bonum Quod quidem dupliciter potest considerari Uno modo secundum quod in ipsa consideratione rationis consistit Et sic erit uma virtus principalis quae dicitur prudentia ndash Alio modo secundo quod circa aliquid ponitur rationis ordo Et hoc vel circa operationes et sic est iusticia vel circa passiones considerata repugnantia ipsarum ad rationem Quae quidem potest esse dupliciter Uno modo secundum quod passio impellit ad aliquid contrarium rationi et sic necesse est quod passio reprimatur et ab hoc denominatur temperantia Alio modo secundum quod passio retrahit ab eo quod ratio dictat sicut timor periculorum vel laborum et sic necesse est quod homo firmetur in eo quod est rationis ne recedat et ab hoc denominatur fortitudordquo
97 A noccedilatildeo de sujeito tem aqui um sentido preciso Sujeito significa o substrato que suportaraacute a efetivaccedilatildeo de uma coisa
105
pode pleitear uma unidade das virtudes Com efeito esta unidade decorre por um
lado da exigecircncia ou da necessidade que cada potecircncia do homem tem de ser
adequadamente aperfeiccediloada e por outro da inter-relaccedilatildeo existe entre as proacuteprias
virtudes conforme se veraacute adiante quando se tematizar sobre a conexatildeo entre as
virtudes
5313 A explicitaccedilatildeo do conceito de virtude e a releitura tomista da teoria das
virtudes
53131 A perfeiccedilatildeo da potecircncia e habito operativo
Apoacutes ter apontado qual o lugar filosoacutefico das virtudes na Suma Teoloacutegica e o
modo como elas se estruturam em favor do homem e de sua da bem-aventuranccedila
faz-se necessaacuterio expor como Tomaacutes de Aquino assumiu e modificou a noccedilatildeo
aristoteacutelica de virtude Deve-se esclarecer que Tomaacutes se utiliza de duas concepccedilotildees
de virtudes a saber virtude enquanto excelecircncia dos atos humanos e virtude
enquanto habitus operativo que aperfeiccediloa e prepara as potecircncias para emitirem os
atos excelentes requeridos pela vida beata
Primeiramente deve-se afirmar que as virtudes satildeo habitus Segundo Albert
Pleacute habitus eacute uma disposiccedilatildeo uma capacidade da natureza humana a qual se
enraiacuteza em sua natureza especiacutefica e individual finalizada pelo agir (cf PLEacute 2005
tomo IV p 35) Muito mais que uma simples disposiccedilatildeo o habitus qualifica as outras
disposiccedilotildees de modo que estas se realizam da melhor maneira nas accedilotildees especiacuteficas
A partir desta compreensatildeo chega-se ao primeiro conceito de virtude como perfeiccedilatildeo
da potecircncia isto eacute como excelecircncia dos atos humanos
Em que consiste esta excelecircncia Segundo Giuseppe Abbaacute ldquoesta excelecircncia
consiste no fato de que nos atos voluntaacuterios a vontade e os apetites passionais satildeo
regulados segundo especiacuteficos modos de regulaccedilatildeo que satildeo requeridos para a vida
felizrdquo (ABBAacute 2008 p 35) Estes modos especiacuteficos de regulaccedilatildeo satildeo proporcionados
pela razatildeo atraveacutes do que Tomaacutes denominou ordo rationis Eacute pela ordem da razatildeo
ou reta razatildeo que o agente regula as proacuteprias escolhas subordinando-as aos fins
virtuosos Deste modo pela ordo rationis o indiviacuteduo manteacutem uma retidatildeo na busca
da vida feliz Sobre isto Tomaacutes de Aquino afirma ldquoa virtude designa certa perfeiccedilatildeo
106
da potecircncia Mas a perfeiccedilatildeo de uma coisa eacute considerada principalmente em ordem
ao seu fim Ora o fim da potecircncia eacute o ato Portanto a potecircncia seraacute perfeita na medida
em que eacute determinada por seu atordquo (AQUINO Tomaacutes deS Th I-II q55 a1)98 O
primeiro sentido aplicado por Tomaacutes de Aquino jaacute era conhecido e tematizado por
Aristoacuteteles
A virtude designa certa perfeiccedilatildeo da potecircncia pois ela eacute considerada desta
maneira uma vez que ordena as potecircncias em funccedilatildeo do fim do homem Entretanto
as virtudes satildeo a perfeiccedilatildeo apenas das potecircncias que corroboram com o fim do
homem Estas potecircncias as potecircncias racionais necessitam das virtudes porque elas
natildeo se determinam a um uacutenico objeto Tomaacutes de Aquino afirma que ldquoas potecircncias
racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se
prestam indeterminadamente a muitas coisasrdquo Nesta hipoacutetese as virtudes teriam a
funccedilatildeo de aperfeiccediloar e de preparar as potecircncias para emitirem os atos excelentes
que satildeo exigidos agrave vida feliz Aleacutem disso a vontade livre do homem de certo modo
nunca teria dispensada sua atuaccedilatildeo
Em segundo lugar virtude eacute tomada segundo a compreensatildeo de haacutebito
operativo isto eacute enquanto habito operativo ela valoriza as capacidades naturais do
ser humano como forma de tambeacutem corrigir o despreparo natural do homem em
buscar a vida beata dada a constituiccedilatildeo do homem na qual o seu existir natildeo atualiza
naturalmente todas as potencialidades presentes na sua essecircncia Este conceito de
habitus operativus eacute uma particularidade e um acreacutescimo de Tomaacutes de Aquino ao
conceito primitivo de virtude Por isto mesmo Tomaacutes de Aquino conclui que ldquoa virtude
humana natildeo eacute apenas perfeiccedilatildeo mas tambeacutem aquilo que o aperfeiccediloardquo
Eacute possiacutevel afirmar que o duplo conceito de virtude como perfeiccedilatildeo das
potecircncias e como habitus operativus se dirige por um lado agrave construccedilatildeo de um haacutebito
bom (bocircnus habitus) e por outro como produtor de bem (boni operativus) Constitui-
se como um fato novo a concepccedilatildeo de virtude como um habitus que contem a funccedilatildeo
de aperfeiccediloamento e preparaccedilatildeo agrave felicidade Segundo Tomaacutes de Aquino ldquoa virtude
humana natildeo implica em uma ordenaccedilatildeo para o existir mas antes para a accedilatildeo Assim
eacute da razatildeo da virtude humana ser haacutebito operativordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q55
98 ldquovirtus nominat quandam potentiae perfectionem Uniuscuiusque autem perfectio praecipue
consideratur in ordine ad suum finem Finis autem potentiae actus est Unde potentia dicitur esse perfecta secundum quod determinatur ad suum actumrdquo
107
a1)99 Esta concepccedilatildeo supera de certo modo a concepccedilatildeo aristoteacutelica de virtude Com
efeito a partir da abordagem tomista a virtude natildeo diz respeito apenas agrave excelecircncia
dos atos humanos mas ao habitus operativus que aperfeiccediloa e repara os atos
humanos na ldquojornadardquo do homem de retorno a Deus
53132 As virtudes teologais
As virtudes teologais correspondem ao contributo de Deus ao homem na busca
de uma vida perfeitamente feliz As virtudes cardeais satildeo resultado das capacidades
naturais do homem por isso mesmo como ldquopor sua forccedila ningueacutem pode se salvarrdquo
as virtudes teologais acrescentam agrave natureza humana a capacidade de se dirigirem a
Deus com um forccedila sobrenatural isto eacute com uma forccedila que sozinha a natureza
humana natildeo seria capaz de proporcionar
A ideia de Tomaacutes eacute que a razatildeo humana eacute capaz de ordenar os apetites
volitivos e passionais em funccedilatildeo de seu proacuteprio fim
Uma das grandes inovaccedilotildees do pensamento de Santo Tomaacutes estaacute na
articulaccedilatildeo das virtudes teologais tanto na teologia quanto no cataacutelogo das proacuteprias
virtudes Com efeito a esperanccedila passa a ser considerada componente das virtudes
de tal modo que ateacute autores de inspiraccedilatildeo marxista como Ernst Bloch a tem em grande
conta
Embora as virtudes teologais tenham sido infundidas por Deus no ser humano
segundo a opiniatildeo se Tomaacutes de Aquino elas tambeacutem participam no aperfeiccediloamento
do intelecto e do apetite Esta ideia do Aquinate abre espaccedilo agrave noccedilatildeo de conexatildeo
entre as virtudes Eacute por meio desta conexatildeo entre as virtudes que se estrutura no
agente a unidade de seu caraacuteter E eacute justamente pela virtude da Prudecircncia que se daacute
a unidade da pessoa uma vez que a prudecircncia desenvolve uma harmonizaccedilatildeo
dinacircmica entre a razatildeo e o apetite
53133 A virtude da Justiccedila
99 ldquoEt ideo de ratione virtutis humanae est quo sit habitus operativusrdquo
108
Eacute digno de nota que a Beatitude cristatilde natildeo eacute um achado exclusivamente
individual e nem deve ser pensada desapegada do caraacuteter social Mesmo que o aacutepice
da Beatitude seja a visio beatifica pensada num plano para aleacutem histoacuteria conforme a
revelaccedilatildeo cristatilde haacute que se pensar nas condiccedilotildees sensiacuteveis favoraacuteveis ao alcance
dela Estas condiccedilotildees satildeo certamente proporcionadas num niacutevel individual atraveacutes da
maior parte das virtudes e num niacutevel comunitaacuterio atraveacutes da virtude da justiccedila
A justiccedila jaacute desde o Aristoacuteteles carrega a marca de ser a maior de todas as
virtudes pois eacute a uacutenica que diz a respeito a relaccedilatildeo do agente com outros O livro V
da Eacutetica a Nicocircmacos eacute dedicado agrave Justiccedila suas acepccedilotildees divisotildees e gradualidades
Tomaacutes de Aquino ldquobeberdquo dos princiacutepios aristoteacutelicos da justiccedila e dedica a questatildeo 58
da IIa IIae da Suma Teoloacutegica agrave anaacutelise e aprofundamento desta virtude
Na anaacutelise tomista sobre a Justiccedila as dimensotildees pessoais e sociais da vida
moral satildeo postas em relaccedilatildeo especialmente no que diz respeito agrave vida cristatilde
Pertence agrave justiccedila a funccedilatildeo de qualificar e retificar as accedilotildees da pessoa Esta funccedilatildeo
tambeacutem se estende agraves relaccedilotildees e instituiccedilotildees da vida social
Do ponto de vista pessoal considerando a antropologia tomista a potecircncia
espiritual da vontade se relaciona agrave capacidade de agir O bem agir enquanto melhor
atualizaccedilatildeo da potecircncia da vontade se traduz na forma de Justiccedila Do ponto de vista
pessoal a justiccedila eacute a virtude conexa agrave vontade ao passo que do ponto de vista social
Justiccedila de refletiraacute ou seraacute atualizada como Direito O Direito eacute assim o objeto da
justiccedila Nesse sentido a virtude da justiccedila faz parte de um elo que inclui homem
vontade virtude e Direito Segundo Claacuteudio Pedrosa ldquoO Direito como objeto da
Justiccedila eacute erigido segundo entendemos como qualificativo eacutetico-juriacutedico da
conceituaccedilatildeo de Justiccedila em Santo Tomaacutesrdquo (NUNES 2011 p 590)
53134 A unidade das virtudes e conexatildeo entre as virtudes
A unidade das virtudes em Tomaacutes de Aquino pode ser encontrada naquilo que
ele intitula a conexatildeo entre as virtudes Com efeito estaacute ideia de interdependecircncia
entre as virtudes ateacute entatildeo pouco tematizada no acircmbito da Eacutetica das Virtudes eacute o
que daacute inteligibilidade a uma consolidaccedilatildeo da unidade do caraacuteter moral de um agente
Andreacute Comte-Sponville critica a ideia de em um estudo sobre a moral se
tematizar sobre as paixotildees e os viacutecios ldquoe o que eacute mais digno de interesse na moral
109
que as virtudes Assim como Spinoza natildeo creio haver utilidade em denunciar os
viacutecios o mal o pecado Eacute a moral dos tristes e uma triste moralrdquo (COMTE-SPONVILLE
1995 p 7) Contrariamente a afirmaccedilatildeo do autor eacute relevante compreender que a
consideraccedilatildeo sobre as paixotildees muito mais do que uma fuga que realmente importa
contrariamente ao que diz Andreacute Comte-Sponville constitui-se como um
reconhecimento do modo como a razatildeo se relaciona com os apetites Tomaacutes de
Aquino sabe e afirma que em relaccedilatildeo aos apetites a razatildeo natildeo pode agir na forma
de um ldquopoder despoacuteticordquo mas age na forma de um ldquopoder poliacuteticordquo no qual as
decisotildees satildeo tomadas como resultado de um longo e contiacutenuo diaacutelogo entre forccedilas
contraacuterias
A parte apetitiva obedece agrave razatildeo natildeo ao menor aceno mas com certa resistecircncia Razatildeo porque o Filoacutesofo diz que lsquoa razatildeo rege a potecircncia apetitiva com poder poliacuteticorsquo tal qual se governam as pessoas livres que tecircm certos direitos de oposiccedilatildeo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 58 a2)100
A necessidade de se conhecer as paixotildees e os viacutecios se impotildee porque mesmo
podendo conduzir o ser humano agrave vida boa a vontade humana permanece faliacutevel
sendo assim deve-se saber sobre as virtudes e sobre o seu oposto porque estas satildeo
de certo modo realidades quotidianas ao indiviacuteduo Com efeito pelas paixotildees eacute
possiacutevel condicionar o exerciacutecio da vontade livre caso estas potecircncias sejam
atualizadas na forma de viacutecios
Outro dado relevante eacute que a compreensatildeo acerca das paixotildees ainda
proporciona a consciecircncia da relaccedilatildeo entre as paixotildees e suas virtudes
correspondentes Isto eacute cada paixatildeo suscita o exerciacutecio de uma virtude que lhe eacute
apropriada Dessa afirmaccedilatildeo podem-se concluir duas coisas a primeira eacute a de que a
diversidade das paixotildees causa a diversidade das virtudes morais e a segunda eacute a de
que o cataacutelogo das virtudes eacute fundamentado nas necessidades concretas do ser
humano Assim contra ao que Andreacute Comte-Sponville coloca o estudo sobre as
paixotildees muito mais do que uma moral dos tristes constitui-se num reconhecimento
desta unidade que eacute o homem e de como as virtudes natildeo se ligam a ele acidental
Uma decorrecircncia necessaacuteria unidade das virtudes eacute a ideia de que as virtudes
estatildeo conectadas umas agraves outras A ideia de Tomaacutes eacute fazer entender que se pelas
100 ldquoPars enim appetitiva obedit rationi nom omnimo ad notum sed cum aliqua contradictione unde
Philosophus dicit in I Polit quod ratio imperat appetitivae principatu poliacutetico quod scilicet aliquis praeest liberis qui habent ius in aliquo contradicendirdquo
110
virtudes consideradas separadamente o homem possui a perfeiccedilatildeo de suas
potecircncias a praacutetica das virtudes mostraraacute que umas natildeo seratildeo possiacuteveis sem as
outras Ora se na arquitetura da antropologia tomista todas as virtudes recebem uma
iluminaccedilatildeo pela virtude intelectual da prudecircncia de modo que ao final todo o agir do
homem virtuoso estaacute relacionado agrave reta razatildeo deve-se aceitar tambeacutem que todas as
virtudes estatildeo relacionadas e conectadas
A conexatildeo das virtudes a partir do Comentaacuterio a Eacutetica a Nicocircmacos mostra
como a parte racional do homem atua relacionada agrave vontade e como existe uma
relaccedilatildeo de interdependecircncia entre as virtudes
Duas coisas satildeo asseguradas na obra da virtude Uma eacute que o homem tenha uma intenccedilatildeo correta para o fim o que a virtude moral providencia inclinando a faculdade apetitiva para um fim proacuteprio A outra eacute dada pela prudecircncia a qual daacute bons conselhos julga e ordena os meios para o fim (DrsquoAQUIN Thomas Commentary on Aristotles
Nicomachean Ethics VI 10 1269 1993)101
Essas duas potecircncias satildeo partes essenciais das accedilotildees virtuosas a prudecircncia
aperfeiccediloando a parte racional e a virtude moral a parte apetitiva A prudecircncia natildeo
pode existir sem virtude moral bem como a virtude moral natildeo pode existir sem a
prudecircncia Joatildeo Hobuss acrescenta que ldquoo mesmo se daacute com as virtudes morais pois
enquanto a prudecircncia garante a bondade dos meios as virtudes morais garantem a
retidatildeo do fim isto eacute a obra da virtude eacute assegurada por ambas tanto a prudecircncia
quanto as virtudes moraisrdquo (HOBUSS 2011) Desse modo entende-se que uma accedilatildeo
virtuosa necessita da conexatildeo entre as virtudes
Possui particular relevacircncia a posiccedilatildeo tomista de que todas as virtudes
dependam da caridade Sua tese proveacutem do posicionamento fundamental da Tradiccedilatildeo
Biacuteblica que defende que entre as virtudes teologais a caridade eacute a virtude mais
importante Tomaacutes de Aquino afirma que ldquoas virtudes morais infusas estatildeo ligadas
entre si natildeo soacute por causa da prudecircncia mas tambeacutem da caridade e quem perde a
caridade pelo pecado mortal perde todas as virtudes morais infusasrdquo (AQUINO Tomaacutes
S Th I-II q65 a3)102 A afirmaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino leva a concluir uma coisa a
101 ldquoTwo things are needed in a work of virtue One is that a man have a right intention for the end which
moral virtue provides in inclining the appetitive faculty to a proprer end The other is to be well disposed towards the means This is done by prudence which gives good advice judges and orders the means to the endrdquo
102 ldquoQuod virtutes morales infusae non solum habent connexionem propter prudentiam sed etiam propter caritatem Et quod qui amittit caritatem per peccatum mortale amittit caritatem per peccatum mortele amittit omnes virtutes Morales infusasrdquo
111
unidade e a conexatildeo entre as virtudes natildeo eacute um feito exclusivo da racionalidade mas
eacute uma condiccedilatildeo proporcionada pelo ato de amor que eacute a caridade
A organizaccedilatildeo da conexatildeo entre as virtudes a partir de Tomaacutes de
Aquino obedece a seguinte ordem primeiramente haacute conexatildeo das virtudes
intelectuais entre si por meio dos primeiros princiacutepios (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I-
II q 65 a3) Jaacute a conexatildeo entre as virtudes intelectuais e as virtudes morais se daacute por
meio da prudecircncia Com efeito eacute justamente por meio da relaccedilatildeo existente entre a
prudecircncia e as virtudes morais que se daacute a harmonizaccedilatildeo entre razatildeo e o apetite
denominado de desejo refletido Por fim a conexatildeo entre as virtudes morais e as
teologais se daacute por meio da caridade e por obra de sua atuaccedilatildeo as virtudes humanas
se tornam mais perfeitas Cabe afirmar que esta uacuteltima conexatildeo entre as virtudes
teologais e as virtudes morais eacute resultado da siacutentese tomista entre a tradiccedilatildeo biacuteblica e
o aristotelismo Cabe verificar ainda outras relaccedilotildees entre estas duas tradiccedilotildees
53135 O habitus e vontade livre
Aleacutem do conceito de virtude Tomaacutes de Aquino traz outras inovaccedilotildees agrave
concepccedilatildeo aristoteacutelica de virtudes Uma dessas inovaccedilotildees consiste na relaccedilatildeo que se
estabelece entre habitus e vontade livre Segundo Giuseppe Abbaacute
uma vez que a Aristoacuteteles faltava o conceito de livre vontade as virtudes eacuteticas introduziam uma determinaccedilatildeo inelutaacutevel nos apetites Para Tomaacutes poreacutem introduzem uma determinaccedilatildeo que estaacute continuamente agrave disposiccedilatildeo da vontade que pode usar delas quando quiser mas tais determinaccedilotildees natildeo passam ao ato sem o livre consenso da vontade As virtudes permanecem sendo determinaccedilotildees uniacutevocas e infaliacuteveis mas a livre vontade humana permanece faliacutevel (ABBAacute 2008 p 36)
A relaccedilatildeo entre habitus e vontade livre explica por exemplo como algueacutem
mesmo sendo virtuoso sempre estaacute na iminecircncia de natildeo secirc-lo Assim esta relaccedilatildeo
contribui com a ideia de que soacute existe virtude onde o homem pode libertar-se do
determinismo da natureza animal Isto soacute eacute possiacutevel ao homem pela accedilatildeo de suas
capacidades inteligentes E porque as potecircncias racionais se prestam de maneira
indeterminadas a muitas coisas eacute que satildeo necessaacuterios os habitus virtuosos
Existem poreacutem potecircncias que satildeo determinadas em si mesmas para os seus atos como as potecircncias naturais ativas e por isso elas proacuteprias se chamam virtudes Jaacute as potecircncias racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se prestam
112
indeterminadamente a muitas coisas (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q55 a 1)
Se se considera a realidade indeterminada das potecircncias racionais torna-se
possiacutevel chegar ao fato de Eacutetica Tomista estar profundamente ligada agrave ideia de
liberdade Com efeito pelas virtudes se podem aperfeiccediloar as potecircncias para o
melhor entretanto o exerciacutecio das virtudes fundamenta-se numa adesatildeo consciente
da pessoa mostrando como estatildeo inter-relacionados virtudes pessoa e liberdade103
Na verdade natildeo eacute necessaacuterio apresentar separadamente a noccedilatildeo de pessoa e a de
liberdade pois o conceito de pessoa jaacute inclui a ideia de liberdade por se referir a uma
substacircncia individual de natureza racional Ora como se sabe a livre vontade em
Tomaacutes de Aquino decorre da condiccedilatildeo racional do homem
Considerando a condiccedilatildeo do homem se as virtudes possuem uma funccedilatildeo
aperfeiccediloadora e reparadora das potecircncias humanas se vecirc que existe uma relaccedilatildeo
iacutentima entre virtude e livre-arbiacutetrio em Tomaacutes de Aquino Ora se o livre-arbiacutetrio eacute a
capacidade de se fazer o que se quer sua relaccedilatildeo com as virtudes haacute de dirigir os
atos especificamente humanos de modo que o proacuteprio homem seja plenamente livre
Plenamente livre se refere pois ao intento de que o homem que natildeo seja escravo
nem mesmo das determinaccedilotildees do livre-arbiacutetrio que com sua natureza
indeterminada pode liberar o ser humano agrave maldade
A afirmaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino ratifica ldquoque a virtude eacute o bom uso do livre
arbiacutetrio a saber porque a virtude se ordena a isso como o ao seu proacuteprio ato proacuteprio
pois o ato virtuoso nada mais eacute que o bom uso do livre-arbiacutetriordquo (AQUINO Tomaacutes de
S Th I-II q 55 a 1)104 Como se viu em outra seccedilatildeo desta pesquisa livre-arbiacutetrio natildeo
significa necessariamente a liberdade Daiacute a afirmaccedilatildeo de Tomaacutes ao relacionar virtude
a um ldquobom usordquo do livre arbiacutetrio A partir da afirmaccedilatildeo do autor pode-se afirmar por
um lado que as virtudes satildeo haacutebitos que auxiliam a vivecircncia pessoal da liberdade
por outro o aprofundamento da ideia de que a eacutetica tomista natildeo eacute uma simples
reduccedilatildeo das accedilotildees agrave racionalidade pura ou exclusivamente na vontade Esta
conclusatildeo tambeacutem eacute ratificada por Juvenal Savian Filho quando afirma que
103Sobre a fundamentaccedilatildeo da eacutetica tomista na noccedilatildeo de liberdade conferir o artigo de SAVIAN FILHO
2008 p 177-184 104 ldquoDicendum quod bonus usus liberi arbitrii dicitur esse virtus secundum eandem rationem scilicet est
id ad quod ordinatur virtus sicut ad proprium actum Nihil est enim aliud actus virtutis quam bonus usus liberi arbitriirdquo
113
Uma accedilatildeo [segundo o pensamento tomista] nunca eacute fundada num mero raciociacutenio nem num mero desejo Razatildeo e vontade mostram-se entrelaccediladas na accedilatildeo moral e Tomaacutes ainda que decirc prerrogativa agrave razatildeo prefere apontar para tal entrelaccedilamento ou enovelamento como dissemos acima (SAVIAN FILHO 2008 p 181)
A partir da afirmaccedilatildeo de Juvenal Savian Filho compreende-se que o
posicionamento de Santo Tomaacutes em relaccedilatildeo agraves accedilotildees natildeo negligencia o modo como
o ser humano eacute constituiacutedo A constituiccedilatildeo corporal e aniacutemica do homem deixa patente
que seria um reducionismo negligenciar da relaccedilatildeo interna que a razatildeo e a vontade
possuem Esta relaccedilatildeo seraacute pensada a seguir
53136 As virtudes eacuteticas e a razatildeo
Segundo Giuseppe Abbaacute a outra inovaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino em relaccedilatildeo ao
conceito aristoteacutelico de virtude refere-se a relaccedilatildeo entre as virtudes eacuteticas e a razatildeo
Para ele Aristoacuteteles e Tomaacutes reconhecem que as virtudes recebem da razatildeo
enquanto ato prudencial a determinaccedilatildeo do justo meio entretanto Tomaacutes de Aquino
acrescenta que tanto a prudecircncia quanto as outras virtudes eacuteticas recebem da razatildeo
a concepccedilatildeo e a prescriccedilatildeo dos fins virtuosos gerais da vida boa e certos tipos de
accedilotildees absolutamente requeridas ou excluiacutedas por tais fins
Ora ao fim devido o homem se dispotildee convenientemente pela virtude que aperfeiccediloa a parte apetitiva da alma cujo objeto eacute o fim Quanto aos meios adequados ao fim importa que o homem esteja diretamente disposto pelo haacutebito da razatildeo porque aconselhar e escolher que satildeo accedilotildees relacionadas como os meios satildeo atos da razatildeo (ABBAacute 2008)
A partir da afirmaccedilatildeo apresentada eacute possiacutevel perguntar de onde a razatildeo retira
os meios adequados ao fim Ora se o fim uacuteltimo da vida humana eacute Deus nele
tambeacutem deve estar a razatildeo e o fundamento da lei eterna que dispotildee os meios mais
adequados ao fim E eacute dessa lei eterna que proveacutem a ideia de que a razatildeo humana
nela participa e como tal eacute atraveacutes das virtudes e natildeo dos preceitos da lei que a lei
eterna alcanccedila os atos individuais e os torna perfeitos
Segundo Eacutetienne Gilson o caraacuteter propriamente humano eacute garantido pela
razatildeo assim a virtude e o bem moral como que se harmonizam agrave nossa natureza
Contrariamente o mal moral o pecado e o viacutecio de que o pecado decorre soacute podem
ser concebidos como faltas de racionalidade no ato ou no costume (cf GILSON 2006
p 398)
114
53137 A relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo tomista de pessoa
Existe uma relaccedilatildeo entre as virtudes e a individualidade Embora as virtudes se
encontrem no ser humano em seu germe a natureza humana comporta natildeo apenas
as virtualidades especiacuteficas e comuns a todos os homens Com efeito as virtudes soacute
existem individualizadas num ente concreto e singular Esta convicccedilatildeo de Santo
Tomaacutes eacute o que fundamenta a ideia de que cada pessoa possui uma aptidatildeo especiacutefica
e toda particular tanto para o saber quanto para as virtudes
Seja de um modo ou de outro a virtude eacute natural no homem incoativamente Segundo a natureza especiacutefica enquanto na razatildeo do homem estatildeo presentes naturalmente certos princiacutepios naturalmente conhecidos tanto na ordem do saber quanto na ordem da accedilatildeo princiacutepios que satildeo sementes das virtudes intelectuais e das virtudes morais e enquanto estaacute presente na vontade um apetite natural do bem conforme a razatildeo Por outro lado segundo a natureza individual enquanto uns satildeo pela disposiccedilatildeo de seu corpo mais ou menos dispostos a algumas virtudes e isso porque certas potecircncias sensitivas satildeo atos de algumas partes do corpo e a disposiccedilatildeo deles favorece ou dificulta os atos dessas potecircncias e por consequecircncia as potecircncias racionais as quais as faculdades sensitivas obedecem Assim eacute que uma pessoa tem aptidatildeo natural para a ciecircncia outra para a fortaleza e outra para a temperanccedila E dessa forma tanto as virtudes intelectuais quanto as morais existem em noacutes naturalmente como que num iniacutecio de aptidatildeo Natildeo pois de maneira consumada porque a natureza estaacute determinada a uma soacute coisa e a consumaccedilatildeo dessas virtudes natildeo se realiza por um soacute tipo de accedilatildeo mas segundo formas diversas segundo as vaacuterias mateacuterias sobre que versam as virtudes e segundo as diferenccedilas circunstanciais (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 63 a2)105
Tomaacutes de Aquino compreende que os princiacutepios do conhecimento e da accedilatildeo
estatildeo presentes no homem na forma de semente Ou seja como partiacutecipe de uma
105 ldquoUtroque autem modo virtus est homini naturalis secundum quandam inchoationem Secundum
quidem naturam speciei inquantum in ratione hominis insunt naturaliter quaedam principia naturaliter coacutegnita tam scibilium quam agendorum quae sunt quaedam seminalia intellectualium virtutum et moralium et inquantum in voluntate inest quidam naturalis appetitus boni quod est secundum rationem Secundum vero naturam individui inquantum ex corporis dispositione aliqui sunt dispositi vel melius vel peius ad quasdam virtutes prout scilicet vires quaedam sensitivae actus sunt quarundam partium corporis ex quarum dispositione adiuvantur vel impediuntur huismodi vires in suis actibus et per consequens vires deserviunt Et secundum hoc unus homo habet naturalem aptitudinem ad scientiam alius ad fotitudinem alius ad temperantiam Et his modis tam virtutes intellectuales quam morales secundum quandam aptitudinis inchoationem sunt in nobis a natura ndash Non autem consummatio earum Quia natura determinatur ad unum consummatio autem huiusmodi vitutum non est secundum unum modum actionis sed diversimode sedundum diversas mateacuterias in quibus virtutes operantur et sedundum diversas circumstantiasrdquo
115
essecircncia que garante esta aptidatildeo pode-se afirmar que o ser humano consolida sua
vida de saber e de agir no interior de sua personalidade atraveacutes da vida virtuosa e na
exterioridade da vida poliacutetica entendida aqui como expressatildeo da vivecircncia social do
ser humano
Se como foi dito os princiacutepios do conhecimento e do agir estatildeo presentes no
homem na forma de sementes eacute por meio da natureza individual que os seres
humanos atualizam essas potecircncias e por conseguinte distinguem-se no
aprendizado e no exerciacutecio efetivo das virtudes Assim eacute possiacutevel afirmar que embora
as virtudes se relacionem entre si o modo como cada indiviacuteduo atualiza suas
potecircncias eacute muito particular Daiacute porque Tomaacutes de Aquino afirmar que uma pessoa
tem aptidatildeo natural para a ciecircncia outra para a fortaleza e outra para a temperanccedila
(cf AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 63 a2)
Tomaacutes de Aquino ainda revela uma profunda consciecircncia acerca da
consumaccedilatildeo das virtudes Ao afirmar que as virtudes intelectuais e morais estatildeo no
homem como aptidatildeo e que a sua consumaccedilatildeo natildeo se realiza por um soacute tipo de accedilatildeo
e sob diversas circunstacircncias o autor sinaliza que diversas formas de vivecircncia ou de
praacuteticas satildeo capazes de atualizar as mesmas virtudes Assim natildeo se precisa acentuar
a necessidade de as pessoas viverem da mesma maneira para serem portadoras das
mesmas virtudes Eacute possiacutevel pois afirmar que pertence a Tomaacutes de Aquino o meacuterito
de compreender que em sua consumaccedilatildeo ou atualizaccedilatildeo as virtudes se aplicam de
maneiras diferentes em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que as praticam Estatildeo na base dessas
suas compreensotildees tanto o aprofundamento que Tomaacutes realizou da noccedilatildeo de
indiviacuteduo quanto o da noccedilatildeo de pessoa Como se sabe pela evoluccedilatildeo histoacuterica do
conceito de pessoa natildeo esteve entre as preocupaccedilotildees mais relevantes de Aristoacuteteles
o problema da individuaccedilatildeo aleacutem disso somente com Boeacutecio pessoa passa a
significar este mais particular no gecircnero humano Assim Tomaacutes de Aquino conclui
que ldquoas condiccedilotildees individuais de cada pessoa tambeacutem proporciona maior ou menos
proximidade agrave virtude entendida como meiordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q66 a1)
532 A eacutetica antiga assunccedilatildeo compatibilizaccedilatildeo e superaccedilatildeo
A ideia de liberdade em Tomaacutes de Aquino se constitui como princiacutepio que guia
o problema tomista da Beatitude e do Fim uacuteltimo do homem Aristoacuteteles seguindo a
116
articulaccedilatildeo da Eacutetica Antiga tem a Eudaimonia como ideia central da vida moral
Tomando esta ideia sob a acepccedilatildeo de Beatitude Tomaacutes de Aquino ultrapassa a ideia
aristoteacutelica primitiva de Eudaimonia rompendo assim com o cosmocentrismo da
Eacutetica Antiga assentado na moral aristoteacutelica e no neoplatonismo
Tomaacutes de Aquino empreende em relaccedilatildeo agrave Eacutetica das Virtudes um esforccedilo de
integraccedilatildeo da moral antiga ao personalismo cristatildeo Santo Tomaacutes busca manter um
equiliacutebrio entre a consistecircncia de uma natureza humana essencial da eacutetica antiga e
o homem histoacuterico peregrino do teocentrismo cristatildeo Eacute possiacutevel afirmar que a
questatildeo da liberdade humana estaacute situada entre a posiccedilatildeo teocecircntrica e a beatitude
A ideia cristatilde de que a beatitude soacute se realiza em sua plenitude com a visatildeo beatiacutefica
da divina essecircncia eacute mais um contributo singular agrave Eacutetica das Virtudes
O cosmocentrismo da eacutetica de Aristoacuteteles repousa sobre uma noccedilatildeo de
natureza que compreende que a tendecircncia para a Eudaimonia eacute fruto de ldquoum princiacutepio
interno de movimento dos seres que lhes confere sua consistecircncia proacutepria num
universo ordenado segundo os ciacuterculos ascendentes das naturezas ou essecircnciasrdquo
(LIMA VAZ 2002 p 39) Por sua vez do cosmocentrismo de origem neoplatocircnica o
pensamento cristatildeo importou a ideia de processatildeo e retorno dos seres com relaccedilatildeo
ao seu princiacutepio Esta ideia tornou-se posteriormente o esquema mais baacutesico da
ciecircncia teoloacutegica que compreende tudo como vindo de Deus e a ele retornando Deus
eacute portanto o ldquoArdquo enquanto tudo dele procede e o ldquoΩrdquo enquanto tudo para ele
retorna
A Eudaimonia eacute sem duacutevida de valor fundamental na eacutetica aristoteacutelica Ela estaacute
em consonacircncia um esquema cosmocecircntrico presente no pensamento de Aristoacuteteles
Na Poliacutetica por exemplo ser escravo ou ser livre eacute obra da natureza O recorte tomista
da Eudaimonia apresentado como Beatitude eacute justamente uma transgressatildeo da
ordem da coacutesmica possui um caraacuteter espiritual A visatildeo beatiacutefica transcende a ordem
da natureza seja no homem seja porque a proacutepria visatildeo eacute compreendida enquanto
uniatildeo agravequele que eacute o princiacutepio e termo da ordem natural embora natildeo fazendo parte
dela
Segundo Lima Vaz um dos motivos de o cosmocentrismo antigo se
compatibilizar ao pensamento cristatildeo deve-se ao caraacuteter teoloacutegico
Eacute preciso no entanto acentuar que o cosmocentrismo antigo eacute de natureza teoloacutegica e foi como tal que entrou em confronto com o
117
teocentrismo cristatildeo Com efeito o cosmos como totalidade perfeita tem como predicado fundamental a divindade Eacute o theion por excelecircncia Sendo assim sua contemplaccedilatildeo assume necessariamente a forma de uma teologia De resto a teologia cristatilde constitui-se em grande parte utilizando as estruturas conceptuais (sic) dessa teologia coacutesmica embora criticando-a nas suas expressotildees panteiacutestas (LIMA VAZ 2002 p 42)
No estudo do Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio Carlos Arthur
mostra como Tomaacutes de Aquino aponta exatamente a similitude entre o objeto da
Teologia e o objeto da Filosofia Primeira ou seja tanto a Teologia quando a
Metafiacutesica ou Filosofia Primeira compartilham um objeto semelhante106 Esta seria
pois a natureza teoloacutegica do cosmocentrismo antigo Ora a eacutetica teleoloacutegica que
aponta para o fim uacuteltimo do homem assume uma perspectiva finalista ao modo de
uma causa final a medida em que a eudaimonia se constitui na contemplaccedilatildeo do
cosmos divino e no conhecimento do seu princiacutepio ordenador
Seguindo a ideia da Reconciliaccedilatildeo entre o Pensamento Cristatildeo e o
Aristotelismo ver-se-aacute que aleacutem de assumir a influecircncia aristoteacutelica acerca do fim
uacuteltimo do homem Tomaacutes de Aquino faz do alcance ao fim uacuteltimo natildeo apenas uma
condiccedilatildeo de um movimento interno natural mas tambeacutem um ato acessiacutevel ao homem
atraveacutes de um ato da inteligecircncia O alcance e a compreensatildeo do fim uacuteltimo pelo
homem eacute assim o elemento de assunccedilatildeo e superaccedilatildeo do esquema aristoteacutelico da
Eacutetica das Virtudes por Santo Tomaacutes natildeo porque a espiritualidade da inteligecircncia seja
o diferencial mas pelo objeto alcanccedilado por ela Deus eacute o alcanccedilado na beatitude
cristatilde e como tal ele estaacute para aleacutem da ordem natural
Eacute possiacutevel afirmar que a eacutetica de Aristoacuteteles como tambeacutem a sua poliacutetica
constituiu-se como forma de manter uma coerecircncia entre a ordem do cosmos e os
atos humanos Especificamente a teoria aristoteacutelica das accedilotildees tenta compatibilizar o
desafio de desenvolver uma teoria causal das accedilotildees que compatibilizem a ordem da
natureza e a responsabilidade do agente Sobre a causalidade das accedilotildees em
Aristoacuteteles Carlo Natali afirma ldquoa causalidade aristoteacutelica individua uma conexatildeo real
existente no mundordquo (NATALI 2010 p 319)
106 NASCIMENTO Carlos Arthur R do Introduccedilatildeo ao Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio
questotildees 5 e 6 In TOMAS DE AQUINO Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio questotildees 5 e 6 Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Editora da UNESP 1999 p 17
118
A existecircncia de uma conexatildeo real no mundo significa que a teoria aristoteacutelica
dos atos e por conseguinte a eacutetica aristoteacutelica possuem um caraacuteter natural ou
cosmocecircntrico Qual a insistecircncia na distinccedilatildeo entre o caraacuteter cosmocecircntrico da eacutetica
aristoteacutelica e a eacutetica cristatilde ldquoancoradardquo na ideia de liberdade A credibilidade da ideia
de liberdade mesmo com os questionamentos posteriores dada pelos filoacutesofos
modernos ratifica a sequecircncia de contribuiccedilotildees oferecidas pelo pensamento cristatildeo agrave
Eacutetica das Virtudes e agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica
Henrique de Lima Vaz afirma que ldquoeacute um fato que a concepccedilatildeo da liberdade e
da beatitude como fim uacuteltimo do homem em Santo Tomaacutes edificada com materiais
aristoteacutelicos e neoplatocircnicos natildeo pretende atenuar mas ao contraacuterio acentuar o rigor
do teocentrismo cristatildeordquo (VAZ 2002 p 36) Aquilo que se entende aqui por superaccedilatildeo
do cosmocentrismo aristoteacutelico natildeo comporta elementos valorativos no sentido de
entender superaccedilatildeo como melhor ou pior A partir de algumas seccedilotildees anteriores pode-
se mostrar como Tomaacutes de Aquino conduziu esta tarefa
Tomaacutes de Aquino descentrou a teoria aristoteacutelica das accedilotildees quando encontrou
um modo de inserir uma parte moral na teologia sem no entanto perder o
foco da centralidade de Deus como sujeito (tema) fundamental da ciecircncia teoloacutegica
Segundo verificou-se como a moral tomista se encontrou profundamente
harmonizada com a ideia de liberdade distinguindo-a inclusive do livre-arbiacutetrio em sua
teoria dos atos humanos A ideia de liberdade foi no pensamento cristatildeo uma das
conquistas mais paradigmaacuteticas e problemaacuteticas deixadas para a Tradiccedilatildeo Filosoacutefica
Pode-se afirmar ainda que o problema da liberdade em Tomaacutes de Aquino se
encontra centralizado entre sua posiccedilatildeo teocecircntrica jaacute exposta no modo como o autor
encontrou um lugar para a moral sem ferir a unidade da ciecircncia teoloacutegica e a noccedilatildeo
de Beatitude A partir do pensamento de Tomaacutes de Aquino sobre esta questatildeo
compreende-se que para ele natildeo eacute possiacutevel ser feliz sem ser livre assim como natildeo
eacute livre aquele cuja felicidade se resume a uma perspectiva transitoacuteria do mundo das
criaturas sensiacuteveis
119
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A questatildeo da fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes se constituiu como objeto
de estudo desta pesquisa O problema que orientou as leituras e reflexotildees entatildeo
desenvolvidas foi de que maneira o pensamento cristatildeo tomista pode deixar uma
heranccedila na fundamentaccedilatildeo de desenvolvimento desta proposta eacutetica A tese aqui
desenvolvida como resposta agrave problemaacutetica foi a de que uma eacutetica das virtudes
proposta ao pensamento contemporacircneo natildeo deveria prescindir dos elementos
forjados no seio da interpretaccedilatildeo cristatilde tomista desta eacutetica
O desenvolvimento desta tarefa foi realizado atraveacutes da terminologia
denominada Reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e o pensamento cristatildeo tomista Esta
expressatildeo e o intento de mostrar como seria possiacutevel pensaacute-la filosoficamente
constituiu-se na tarefa que comprovou a tese de que o pensamento cristatildeo tem
contribuiccedilotildees relevantes agrave fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes A motivaccedilatildeo pelo
desenvolvimento do tema surgiu do pensamento de MacIntyre a partir de sua
indicaccedilatildeo presente no texto Justiccedila de Quem Qual Racionalidade em que o autor
afirma ter errado em sua interpretaccedilatildeo do pensamento de Santo Tomaacutes sobre a
unidade das virtudes e que seria necessaacuterio investigar o modo como Tomaacutes de Aquino
realizou o que o proacuteprio MacIntyre intitulou de Reconciliaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo Biacuteblica
e o Aristotelismo
Preferiu-se utilizar a expressatildeo Reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo
tomista e o aristotelismo A tradiccedilatildeo biacuteblica e suas diversas correntes de interpretaccedilatildeo
satildeo muito vastas Por isto a especificaccedilatildeo pensamento cristatildeo tomista traduziu de
modo delimitado os limites deste trabalho Jaacute o aristotelismo foi a outra ldquofonterdquo que
incitou e influenciou o pensamento de Tomaacutes de Aquino a se constituir como
pensamento epocal nas palavras de Hegel
A expressatildeo vinda de MacIntyre natildeo resultou numa tentativa de preenchimento
de uma lacuna em seu pensamento Esta pesquisa natildeo teve a ilusatildeo de ser a
continuadora da tarefa que MacIntyre reconheceu como erro de suas anaacutelises
Entretanto o diagnoacutestico feito acerca da fragmentaccedilatildeo do discurso moral
contemporacircneo a explicaccedilatildeo da origem da fragmentaccedilatildeo nas teses modernas sobre
120
a moralidade e a indicaccedilatildeo de que o pensamento cristatildeo tomista e o aristotelismo
poderiam ser relacionados foram o suficiente para motivar o seguimento de um
caminho singular de leitura e desenvolvimento das ideias de Tomaacutes de Aquino em
relaccedilatildeo aos fundamentos da Eacutetica das Virtudes
No itineraacuterio da pesquisa tomou-se o seguinte caminho na primeira parte o
modo como esta corrente do pensamento eacutetico retorna ao debate contemporacircneo e
quais dos seus fundamentos se pode compreender atraveacutes das ideias de Rosalind
Hursthouse e Gertrude Anscombe Expocircs-se tambeacutem os elementos de criacutetica agraves
morais deontoloacutegica e utilitarista Ao final se atingiu o horizonte filosoacutefico do qual o
pensamento de MacIntyre eacute devedor
A segunda parte apresentou o pensamento do MacIntyre em Depois da Virtude
com a exposiccedilatildeo do que ele chamou desacordo do discurso contemporacircneo sobre a
moralidade sua anaacutelise sobre a teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade e
o modo como elas influenciaram o desacordo contemporacircneo e o desenvolvimento de
sua teoria moral apresentada na terceira parte desta pesquisa
A quarta parte foi o desenvolvimento do pensamento de Tomaacutes de Aquino
intitulada Reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo tomista e o aristotelismo Nesta
parte tomou-se o pensamento de Aristoacuteteles sobre a teoria dos atos chegando a
compreensatildeo de que esta teoria eacute anterior e necessaacuteria a uma Eacutetica das Virtudes Em
seguida passou-se agrave anaacutelise reflexatildeo e aprofundamento das ideias relativas agrave
psicologia filosoacutefica tomista e os temas fundamentais ligados a Eacutetica das Virtudes
Da investigaccedilatildeo realizada cabe agora apresentar perspectivas de alcance
filosoacutefico e hermenecircutico acerca da Eacutetica das Virtudes dos autores aqui estudados e
da contribuiccedilatildeo do pensamento cristatildeo tomista em torno deste objeto
A Eacutetica das Virtudes eacute uma via possiacutevel de experiecircncia eacutetica agrave
contemporaneidade entre as morais deontoloacutegica e utilitarista A eacutetica do dever
pressupotildee o desenvolvimento de uma racionalidade madura para ser legisladora de
si e que seja imparcial para conter as inclinaccedilotildees e acima delas conformar as accedilotildees
agrave norma O utilitarismo se vale da moral da maximizaccedilatildeo do bem-estar de algueacutem e a
uma valoraccedilatildeo das accedilotildees em virtude das consequecircncias O produto das duas
expressotildees eacuteticas dominantes da contemporaneidade eacute uma certa convicccedilatildeo de que
por um lado estas propostas mantecircm sua atenccedilatildeo primordialmente na norma e por
outro as reflexotildees em torno do agente que pratica a norma ficaram negligenciadas
121
Assim como a Eacutetica das Virtudes tem sua atenccedilatildeo primordial agravequele que age eacute
possiacutevel garanti-la agrave qualidade de uma via possiacutevel dentro do debate eacutetico
contemporacircneo
Uma consequecircncia possiacutevel decorrente da coexistecircncia das trecircs correntes
eacuteticas supracitadas eacute a de que tem se firmado a impossibilidade de uma determinaccedilatildeo
da accedilatildeo de forma monista conforme uma corrente eacutetica em particular Este eacute um
achado problemaacutetico agraves teorias uma vez que cada uma delas ao se desenvolver
justifica-se como necessaacuteria Firma-se aos poucos a consolidaccedilatildeo de um certo
emotivismo Este emotivismo delineado por MacIntyre em Depois da Virtude tem por
tese fundante a ideia de que as accedilotildees satildeo expressotildees dos proacuteprios sentimentos dos
agentes Ou seja natildeo se determina a accedilatildeo de modo uniacutevoco
Foi possiacutevel compreender influecircncias filosoacuteficas ao pensamento do MacIntyre
na exposiccedilatildeo dos fundamentos da Eacutetica das Virtudes e na apresentaccedilatildeo das criacuteticas
agrave deontologia e ao utilitarismo atraveacutes dos pensamentos de Rosalind Hursthouse e
Gertrude Anscombe Em A filosofia moral moderna de Gertrude Anscombe
explicitou-se a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica no tratamento das questotildees
relativas agrave virtude O alcance desta pertinecircncia levou agrave compreensatildeo de que uma
psicologia filosoacutefica eacute necessaacuteria e anterior a uma teoria das virtudes Esta afirmaccedilatildeo
serviu entatildeo de fio condutor a anaacutelise da teoria dos atos em Aristoacuteteles e
nos conceitos de fundamentaccedilatildeo da Eacutetica de Tomaacutes de Aquino
Foi possiacutevel compreender o movimento interno de Depois das Virtudes Em
primeiro lugar MacIntyre apresenta elementos que comprovariam a existecircncia de um
desacordo moral em seguida o autor mostra como o desacordo resulta dos
empreendimentos realizados pela filosofia moral moderna mencionando as principais
posiccedilotildees de Kant Hume e Kierkegaard com a exposiccedilatildeo das divergecircncias entre as
teses MacIntyre mostra como o discurso moral perdeu a sua inteligibilidade e aiacute
propotildee uma teoria moral que seria capaz de garantir o retorno agrave unidade de um
discurso moral
Como MacIntyre postula um retorno de uma eacutetica das virtudes e como a
fundamentaccedilatildeo deste discurso estaacute primitivamente em Aristoacuteteles a pesquisa
adentrou num primeiro momento agrave teoria aristoteacutelica dos atos uma vez que as
virtudes dependem dela como anterior No segundo momento a investigaccedilatildeo seguiu
na anaacutelise dos conceitos tomistas que eram tomados de Aristoacuteteles e que foram se
122
compatibilizando agraves exigecircncias das circunstacircncias histoacuterico-cultural-filosoacuteficas de
Tomaacutes de Aquino Esta anaacutelise explicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do pensamento de Tomaacutes
de Aquino foram traduzidas aqui com o que se denominou Reconciliaccedilatildeo entre
pensamento cristatildeo e o aristotelismo Mostrar a tomada do pensamento eacutetico de
Aristoacuteteles e as contribuiccedilotildees do pensamento tomista foram tarefas fundamentais
desta pesquisa
Encontrou-se a compreensatildeo de que a eacutetica de Aristoacuteteles e de Santo Tomaacutes
tem mais a ver com o que faz a vida ser vivida do que com a obediecircncia agrave lei moral
O fato de ldquoter mais a verrdquo com a vida do agente natildeo implica num ldquonatildeo tem nada a verrdquo
com a norma Implica que a norma tem valor enquanto for capaz te ter sentido a um
agente que frequentemente a pratica e que tende a fazecirc-lo mais naturalmente A
questatildeo do desenvolvimento das virtudes brota de condiccedilotildees fundamentais do proacuteprio
ser do homem e por isso a virtude eacute a expressatildeo melhor do proacuteprio homem
e contribui na sua realizaccedilatildeo
Pela teoria dos atos e a consolidaccedilatildeo das virtudes pelos haacutebitos alcanccedila-se a
ideia de que a accedilatildeo virtuosa natildeo resulta exclusivamente da capacidade intelectual ela
necessita de uma praacutetica habitual constante Esta caracteriacutestica parece mais coerente
em relaccedilatildeo agrave constituiccedilatildeo aristoteacutelico-tomista do homem o ser uno em cuja existecircncia
conta com a sua dimensatildeo corpoacuterea e o modo como por vezes ela determina o seu
agir A praacutetica das virtudes respeita por assim dizer a estrutura da uniatildeo corpo e alma
do ser humano
Num contexto de Eacutetica das Virtudes a norma natildeo eacute exclusivamente um
conjunto de regras exteriores aos quais se deve obedecer mas modos de accedilatildeo que
internalizados pelo haacutebito proporcionam o desenvolvimento das virtudes uma
estabilidade nas vivecircncias cotidianas para conviver com as dores inevitaacuteveis da vida
pessoal e em comum Ao mesmo tempo as virtudes potildeem os seres humanos numa
corrente de interdependecircncia na qual o bem de um exige a contrapartida do bem dos
outros Isto se pode confirmar com a referecircncia ao conceito de justiccedila
O conceito de justiccedila corresponde agrave compreensatildeo de que natildeo haacute beatitude
sem a ideia de que sua busca eacute de caraacuteter comunitaacuterio A justiccedila tanto em Aristoacuteteles
quando em Tomaacutes de Aquino eacute a maior das virtudes porque se refere agrave relaccedilatildeo do
homem com os outros Eacute aceitaacutevel uma compreensatildeo bilateral da justiccedila pois o bem
que se quer para si deve-se tambeacutem se querer acessiacutevel aos outros
123
O aprofundamento dos elementos da psicologia filosoacutefica de Santo Tomaacutes se
constituiu numa tarefa imprescindiacutevel Os conceitos de sindeacuterese consciecircncia
vontade e intenccedilatildeo puderam ser apresentados como um contributo bem especiacutefico agrave
fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes
A sindeacuterese enquanto haacutebito natural especial relaciona-se aos princiacutepios
praacuteticos da accedilatildeo de modo a incitar o bem e condenar o mal Intuiccedilatildeo dos primeiros
princiacutepios da moral Jaacute a consciecircncia se encarrega de estabelecer o julgamento
acerca dos atos realizados pressupondo natildeo apenas a sindeacuterese mas todo o
conhecimento moral que se apoia sobre ela Tomaacutes de Aquino acrescenta que para
desenvolver estas funccedilotildees faz-se necessaacuteria ldquouma aplicaccedilatildeo atual de nosso
conhecimento agrave nossa accedilatildeordquo
A consciecircncia segundo Santo Tomaacutes natildeo eacute pensada como um funcionamento
constante Ela atua efetivamente quando os objetos relativos agraves accedilotildees assim a
solicitam Tal compreensatildeo do papel da consciecircncia desfaz o mito de que a concepccedilatildeo
do homem como animal racional implicaria necessariamente num
funcionamento constante da consciecircncia
As consideraccedilotildees sobre a vontade fundamentam a ideia de liberdade num
sentido mais baacutesico poreacutem necessaacuterio que eacute o conceito de livre arbiacutetrio e na
independecircncia de qualquer forma de determinaccedilatildeo inclusive as determinaccedilotildees do
proacuteprio livre arbiacutetrio O livre-arbiacutetrio eacute a fonte mais primordial de exerciacutecio da vontade
mas natildeo pode ser considerada a liberdade mesma Jaacute a liberdade eacute uma orientaccedilatildeo
racional ao fim No conceito da liberdade compreende-se porque natildeo eacute escravo
aquele que foi obrigado a fazer pois ser obrigado a fazer natildeo implica que houve o
movimento interno do querer fazer
Santo Tomaacutes aprofunda o conceito de vontade que seja naturalmente seja em
vista de fim ela permanece atuante A necessidade de fim natildeo repugna agrave vontade
nesse sentido compreende-se o salto posterior na relaccedilatildeo entre liberdade e Beatitude
promovido pelo filoacutesofo enquanto a eudaimonia aristoteacutelica eacute a contemplaccedilatildeo do
divino natural em Tomaacutes de Aquino Visio beatifica eacute fruto de um rompimento com a
concepccedilatildeo cosmocecircntrica da Eacutetica Antiga Desse modo Tomaacutes de Aquino
compatibiliza a ideia de liberdade com a ideia de fim Analogicamente assim como o
intelecto adere aos primeiros princiacutepios a vontade deve pois aderir ao fim uacuteltimo que
eacute a bem-aventuranccedila uma vez que a bem-aventuranccedila ou a felicidade eacute almejada
124
por todos Assim sendo compreende-se que o fato de haver uma vontade natural natildeo
implica uma contradiccedilatildeo com uma vontade livre
Instigar a vontade a agir e mover-se em busca de um fim eacute funccedilatildeo da intenccedilatildeo
Ela move natildeo somente a vontade mas todas as potecircncias do ser humano em busca
de um fim Tomaacutes de Aquino desenvolve o conceito intenccedilatildeo num duplo sentido
designa por um lado a intenccedilatildeo voluntaacuteria e por outro intenccedilatildeo aplicada agrave definiccedilatildeo
enquanto se exprime a intenccedilatildeo da verdade a intenccedilatildeo de bem Ela eacute o actus
voluntatis em busca dos fins quer transitoacuterios quer do uacuteltimo do homem Nesse
sentido pode-se afirmar que pela intenccedilatildeo os atos voluntaacuterios tornam-se unos o que
implica posteriormente em uma unidade da vida moral
No desenvolvimento que Aristoacuteteles faz sobre os atos voluntaacuterios estaacute
presente de forma latente a ideia de intenccedilatildeo Tomaacutes de Aquino aprofunda de modo
consideraacutevel este conceito Se a intenccedilatildeo se relaciona com os fins intermediaacuterios e
em relaccedilatildeo ao fim uacuteltimo pode-se firmar a ideia que ela atua em cada um dos atos
concernentes aos meios e a escolha Ou seja a intenccedilatildeo eacute ativa em todo
desenvolvimento das accedilotildees
O aprofundamento dos conceitos da psicologia filosoacutefica tomista e o estado em
que o autor deixou estes conceitos se firmaram com muita forccedila no seio da Tradiccedilatildeo
filosoacutefica Pelo conceito de arbiacutetrio bruto e livre arbiacutetrio o Kant da Metafiacutesica dos
Costumes assume quase que com a mesma nomenclatura o formato tomista dos
termos no mesmo texto os conceitos kantianos de sentimento moral e consciecircncia
moral satildeo por demais semelhantes aos conceitos de sindeacuterese e de consciecircncia Na
proacutepria contemporaneidade o conceito de intencionalidade perpassou tanto a eacutetica
quanto a fenomenologia Estas influecircncias filosoacuteficas asseguram ao pensamento
cristatildeo lugar na Tradiccedilatildeo Jaacute os conceitos da psicologia filosoacutefica comprovam a ideia
inicial que a teoria de uma Eacutetica das virtudes sugerida ao pensamento
contemporacircneo necessita considerar os achados do pensamento cristatildeo em seu
processo de fundamentaccedilatildeo
A partir das consideraccedilotildees elencadas eacute possiacutevel confirmar uma das ideias
iniciais desta pesquisa Um breve olhar sobre o vocabulaacuterio moral contemporacircneo
permite perceber que nele haacute muito do conteuacutedo semacircntico de conceitos que foram
forjados no seio do pensamento cristatildeo
125
Cabe ainda explicitar alguns achados no pensamento de Santo Tomaacutes
passiacuteveis de serem relacionados ao pensamento de MacIntyre Esta tarefa natildeo eacute
como se afirmou acima uma listagem de erros do autor mas possibilidades de
encontro dos dois filoacutesofos
Em Depois da Virtude MacIntyre desenvolveu um novo conceito de virtude que
de certo modo reabilitasse o discurso moral Antes de falar dos elementos que
compotildee a sua teoria moral eacute possiacutevel encontrar um inconveniente a sua teoria moral
e seu conceito de virtude natildeo levam em conta uma Psicologia Filosoacutefica Eacute bem
verdade que ele afirmou os ldquoriscosrdquo da biologia metafiacutesica de Aristoacuteteles entretanto
uma das coisas que foram encontradas nesta pesquisa foi a relaccedilatildeo estreita que
existe entre as virtudes e a compreensatildeo de homem A articulaccedilatildeo do cataacutelogo das
virtudes estaacute em consonacircncia com a constituiccedilatildeo do homem e com as potecircncias que
ele necessita desenvolver em busca de seu melhor Saliente-se que MacIntyre
posteriormente em Dependent rational animals reconheceu a importacircncia de uma
psicologia filosoacutefica
O conceito macintyreano de praacuteticas se alinha ao seu meacutetodo e consiste em
encontrar manifestaccedilotildees histoacutericas que sirvam de apoio agraves suas investigaccedilotildees Seu
conceito de Praacuteticas se refere agraves formas coerentes e complexas da atividade humana
que satildeo socialmente estabelecidas e como tais ampliadores dos poderes humanos
na forma de excelecircncia e transmissores dos bens internos inerentes a essas Praacuteticas
Eacute possiacutevel em Tomaacutes de Aquino conforme demonstrado que a vivecircncia das virtudes
como atualizaccedilatildeo das potecircncias do homem se daacute sob accedilotildees diversas e sob diversas
circunstacircncias da histoacuteria Assim parece a esta pesquisa que o desenvolvimento
histoacuterico das virtudes manteacutem uma certa similitude ao conceito de praacuteticas
Na questatildeo da unidade das virtudes que foi uma questatildeo apontada pelo proacuteprio
MacIntyre como contendo um erro de sua anaacutelise viu-se que segundo Tomaacutes de
Aquino haacute uma ideia de interdependecircncia entre as virtudes A articulaccedilatildeo interna
entre as potecircncias do homem proporciona tambeacutem uma articulaccedilatildeo e tambeacutem uma
hierarquizaccedilatildeo entre as virtudes A unidade das virtudes proporciona ainda uma
consolidaccedilatildeo da unidade do caraacuteter moral de um agente Ora o conceito de unidade
das virtudes contribuiria por demais com a componente a ordem narrativa de uma
vida humana singular Eacute claro que a unidade das virtudes diz pouco ou quase nada agrave
noccedilatildeo de narrativa Entretanto o conceito de unidade das virtudes atinge um objetivo
126
similar ao conceito macintyreano a saber considerar cada vida humana como uma
unidade singular Tambeacutem foi verificado que natildeo apenas o conceito de unidade das
virtudes mas tambeacutem o conceito de intencionalidade no estudo dos atos humanos
foi capaz de preencher este requisito e mais ainda lanccedilou luzes agrave ideia de
consciecircncia aprofundada com propriedade pelo pensamento cristatildeo e assumido pelo
pensamento moderno praticamente na forma como os medievais deixaram
127
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A Ana Luiacutesa Rafael Joseacute e Adriana
AGRADECIMENTOS
Do fundo do meu coraccedilatildeo agradeccedilo
A Deus pelo dom da feacute da existecircncia e da capacidade de pensar
A Adriana Rafael Joseacute e Ana Luiacutesa que suportaram com muito amor o
processo doloroso e fecundo de construccedilatildeo desta pesquisa
Aos meus pais Francisco e Nataacutelia a quem sou grato pelo dom da vida e pela
educaccedilatildeo que recebi Aos meus irmatildeos Junior e Kaline por serem quem satildeo
Cunhados Marques Alessandra Luciana e Paulinho Meus sobrinhos Ceciacutelia
Viniacutecios Ana Caroline Ana Beatriz e Paulinho
Agrave minha sogra Dona Carminha meu sogro Modestino de Arruda Fontes (in
memoriam) e agrave famiacutelia Fenelon
Ao meu orientador Marcos Roberto Nunes Costa pela confianccedila disposiccedilatildeo
incentivo em fazer-me crescer na difiacutecil tarefa do pensar e do produzir em Filosofia
Agrave Profa Patriacutecia Lira revisora do texto e dos erros que meus olhos jaacute natildeo
enxergavam
Aos membros da banca professores Edmilson Azevedo Claacuteudio Pedrosa
Nunes Joseacute Francisco Preto Meirinhos Gilfranco Lucena e Marcos Costa
A todo o corpo docente do Programa de Doutorado Integrado em Filosofia das
Universidades Federal de Pernambuco Federal da Paraiacuteba e Federal do Rio Grande
do Norte na pessoa do seu coordenador Geral Prof Dr Alfredo Moraes
Ao povo brasileiro que atraveacutes da CAPES financiou esta pesquisa por 2 anos
A Miguel Antocircnio ex-coordenador Geral do Programa pelas contribuiccedilotildees que
pudemos Aos discentes do Programa pela confianccedila que me concederam em
representar-lhes
Aos amigos de minha turma de Doutorado Gleidmar Graciele Coutinho Marta
Fernandes e Faacutebio ldquoque nos tornamos amigos ao calor dos estudosrdquo
A meu amigo irmatildeo pessoa por quem tenho grande amor e admiraccedilatildeo
Gilfranco Lucena
Agrave gestatildeo professores e funcionaacuterios e alunos da Faculdade Satildeo Miguel
especialmente do Curso de Licenciatura em Letras onde na docecircncia aprofundei o
meu conhecimento na docecircncia da liacutengua latina
Aos colegas de trabalho alunos e alunas da UNEAL - Universidade Estadual
de Alagoas minha nova casa
A Faacutetima Costa Marcela George e Mauriacutecio da Faculdade Filosofia Ciecircncias
e Letras de Caruaru ndash FAFICA
Aos amigos Peacutericles Gena Mazurk Ricardo Carvalho Tambeacutem a Harlen
Ricardo e Diego Marques A todos os amigos e amigas da FACOL
A todos os que a mim estiveram unidos para que eu pudesse concluir esse
trabalho
Meus sinceros agradecimentos
ldquo [] Homo habet naturaliter rationem et manus quae sunt organa organorum
quia per eas homo postest sibi praeparare instrumenta infinitorum modorum et ad
infinitus effectusrdquo
ldquo [] O homem possui por natureza a razatildeo e as matildeos que satildeo os oacutergatildeos dos
oacutergatildeos porque por elas pode preparar para si uma variedade infinita de instrumentos
para infinitos efeitosrdquo (ARISTOacuteTELES apud TOMAacuteS DE AQUINO STh I q76 a5)
RESUMO
A Eacutetica das Virtudes e sua fundamentaccedilatildeo satildeo o objeto de estudo desta
pesquisa Partindo do pensamento de Alasdair Macintyre autor de Depois da Virtude
o trabalho apresenta o esforccedilo do pensamento contemporacircneo em reabilitar esta
proposta eacutetica Seguindo a orientaccedilatildeo do proacuteprio Macintyre de que seria necessaacuterio
investigar a reconciliaccedilatildeo que Tomaacutes de Aquino operou entre a tradiccedilatildeo biacuteblica e o
pensamento aristoteacutelico o texto responde agrave seguinte pergunta a Eacutetica das Virtudes
de raiz aristoteacutelica pode receber contribuiccedilotildees do pensamento cristatildeo especialmente
de natureza tomista A tese que brota como tentativa de resposta a esta questatildeo eacute a
de que o pensamento cristatildeo via Tomaacutes de Aquino oferece significativas
contribuiccedilotildees agrave fundamentaccedilatildeo desta corrente do pensamento eacutetico A pesquisa
bibliograacutefica de natureza indutiva percorre um caminho de anaacutelise e interpretaccedilatildeo
dos textos fundamentais do Macintyre Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino Na busca de
atingir sua finalidade satildeo aprofundados os temas acerca do ldquoanti-iluminismo eacuteticordquo e
a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes ao pensamento contemporacircneo Nesta parte
abordam-se as principais criacuteticas agrave ldquoeacutetica do deverrdquo e a ldquoeacutetica utilitaristardquo ou
ldquoconsequencialistardquo em seguida apresenta-se a criacutetica de Macintyre ao projeto
moderno de fundamentaccedilatildeo da eacutetica como tambeacutem a sua teoria moral fundamentada
numa Eacutetica das Virtudes por fim a partir da proacutepria indicaccedilatildeo do Macintyre de que
sua leitura do pensamento tomista foi insuficiente o texto analisa fundamentos da
Eacutetica das Virtudes em Aristoacuteteles e apresenta os conceitos do pensamento tomista
que aqui entende-se como o contributo a esta eacutetica
Palavras-chave Eacutetica Virtudes Pensamento cristatildeo
ABSTRACT
The Virtue Ethics and its fundamentals are the object of this research Starting
from Alasdair Macintyrersquos thought author of After Virtue the work presents the effort
of the contemporary thought on rehabilitating this ethical purpose According to
Macintyre own orientation that it would be necessary to investigate the reconciliation
which Thomas Aquinas operated between the biblical tradition and the aristotelian
thought the text responds to the following question can The Virtue Ethics of
aristotelian roots receive contributions from the Christian thought specially of
thomistic nature The thesis which buds as an attempt to answer this question is the
one that the Christian thought via Thomas Aquinas offers meaningful contributions to
the fundamentals of this current of ethical thoughts The bibliographical research of
inductive nature goes through a path of analysis and interpretation of Macintyrersquos
Aristotlersquos and Thomas Aquinasrsquos fundamental texts In the search for reaching its goal
themes about ldquoethical anti-enlightenmentrdquo and the relocation of Virtue Ethics to the
contemporary thought are deepened In this part the main criticisms to ldquothe ethics of
dutyrdquo and ldquothe utilitarianistrdquo or ldquoconsequentialist ethicsrdquo are approached in the following
part it is presented a critic by Macintyre to the modern fundamentals of ethics as well
as his theory of moral based on an Virtue Ethics finally from Macintyrersquos own
indication that his reading of the thomistic thought was insufficient the text analyses
the fundamentals of the Virtue Ethics in Aristotle and presents the concepts of the
thomistic thought that here is understood as a contribution to this ethics
Keywords Ethics Virtues Christian thought
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO 13
2 O ANTIILUMINISMO EacuteTICO E A EacuteTICA DAS VIRTUDES 16
21 SOBRE A RE-COLOCACcedilAtildeO DA VIRTUE ETHICS 16
211 Sobre a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica 20
212 A incoerecircncia do dever moral 25
213 Criacutetica ao utilitarismo 29
214 A diacutevida filosoacutefica de MacIntyre ao pensamento de
Gertrude Anscombe 32
3 A CRIacuteTICA DE MACINTYRE AO PROJETO MODERNO
DE FUNDAMENTACcedilAtildeO DA MORALIDADE 35
31 A ALEGORIA INICIAL DE DEPOIS DA VIRTUDE 35
32 AS TESES MODERNAS SOBRE A FUNDAMENTACcedilAtildeO
DA ORALIDADE 37
33 O FRACASSO DO PROJETO ILUMINISTA 40
331 O passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana 41
332 A incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a
noccedilatildeo de natureza humana na moral moderna 42
3321 O passado cristatildeo e o novo conceito de razatildeo 43
3322 A ciecircncia e a filosofia do seacuteculo XVII 45
3323 A incoerecircncia entre o posicionamento pela lsquofalecircnciarsquo da razatildeo
e a decisatildeo pela noccedilatildeo de natureza humana 45
3324 Sobre a mudanccedila do significado dos juiacutezos morais 47
4 O PROJETO DE DEPOIS DA VIRTUDE E A TEORIA
MORAL DE MACINTYRE 49
41 O ANTES DE DEPOIS DA VIRTUDE 49
411 Vida social e conceitos morais 50
412 Fundamentaccedilatildeo das proposiccedilotildees normativas 51
413 O emotivismo 52
42 A OBRA DEPOIS DA VIRTUDE 54
421 A natureza das virtudes tese central de Depois da Virtude 55
422 O conceito de praacuteticas 57
423 Ordem narrativa de uma vida humana singular 60
423 Tradiccedilatildeo 64
5 RECONCILIACcedilAtildeO ENTRE O PENSAMENTO CRISTAtildeO
E O ARISTOTELISMO 67
51 AS VIRTUDES E A TEORIA ARISTOTEacuteLICA DOS ATOS ndash EN III 1-8 69
511 Do voluntaacuterio e do involuntaacuterio 70
512 A escolha deliberada 72
513 A definiccedilatildeo do objeto do querer 73
52 A SIacuteNTESE TOMISTA ATOS HUMANOS E FILOSOFIA MORAL 77
521 Os atos humanos em Santo Tomaacutes de Aquino 78
522 Sindeacuterese e consciecircncia 79
523 O conceito de vontade 80
524 A relaccedilatildeo entre inteligecircncia e vontade 84
525 A liberdade do ato voluntaacuterio e a distinccedilatildeo entre liberdade e livre-
arbiacutetrio 86
526 A intenccedilatildeo 91
53 TOMISMO E EacuteTICA DAS VIRTUDES 93
531 Vida feliz e virtudes antes da siacutentese tomista 94
5311 A construccedilatildeo de uma parte moral na teologia 97
5312 A fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista 99
532 O lugar das virtudes na teologia e sua explicitaccedilatildeo 100
5321 A beatitude e o lugar das virtudes na siacutentese teoloacutegica tomista 100
5312 A concepccedilatildeo tomista de homem e as virtudes 101
5313 A explicitaccedilatildeo do conceito de virtude e a releitura tomista
da teoria das virtudes 105
53131 A perfeiccedilatildeo da potecircncia e habito operativo 105
53132 As virtudes teologais 107
53133 A virtude da justiccedila 107
53134 A unidade das virtudes e conexatildeo entre as virtudes 108
53135 O habitus e vontade livre 111
53136 As virtudes eacuteticas e a razatildeo 113
53137 A relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo tomista de pessoa 114
532 A eacutetica antiga assunccedilatildeo compatibilizaccedilatildeo e superaccedilatildeo 115
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 119
REFEREcircNCIAS 127
13
1 INTRODUCcedilAtildeO
A histoacuteria do homem em seus desdobramentos de sentidos tem sido a luta para
definir o certo e o errado enquanto conjunto de valores que orienta as accedilotildees e
possibilita o homem como singularidade e comunidade Em relaccedilatildeo a Filosofia a
preocupaccedilatildeo com a experiecircncia eacutetica eacute uma das questotildees centrais da atitude criacutetico-
reflexiva e definiu o encaminhamento dos pensadores desde os preacute-socraacuteticos ateacute a
contemporaneidade Em todos os momentos de sua histoacuteria o homem tenta
compreender as accedilotildees como decorrecircncia de valores que orientam o seu agir O
homem eacute a um soacute tempo norma e desejo de quebraacute-la Isto longe de ser uma
deficiecircncia da condiccedilatildeo humana constitui precisamente seu salto maior Salto sobre
o reino da necessidade e que possibilita o advento do reino da liberdade
O pensamento eacutetico ocidental eacute profundamente marcado pelas figuras de
Aristoacuteteles Tomaacutes de Aquino dentre outros Aristoacuteteles trabalha com a ideia de que
o estudo dos atos humanos da virtude e do bem para o homem considerado
individualmente pertence a eacutetica Esta ciecircncia enquanto ciecircncia praacutetica conduz agrave
compreensatildeo do que seja o bem supremo para o ser humano e quais atitudes o
conduzem mais adequadamente a esse fim Tomaacutes de Aquino enquanto
representante da eacutetica cristatilde assume a estrutura da eacutetica de Aristoacuteteles
estabelecendo uma reinterpretaccedilatildeo dessa moral agrave luz da moral cristatilde Assim o que
em Tomaacutes de Aquino se menciona como felicidade possui um conteuacutedo distinto
daquilo que Aristoacuteteles compreendia por este termo
O pensamento moderno promove uma virada no esquema claacutessico da eacutetica
Kant eacute por assim dizer o exemplar que traduz os anseios do pensamento moderno
em relaccedilatildeo agrave Filosofia Praacutetica O ideal de autonomia e a constituiccedilatildeo de uma moral do
dever marcam profundamente este momento da histoacuteria do pensamento Nas palavras
de Otfried Houmlffe deve-se a Kant a radicalizaccedilatildeo de uma filosofia moral que reivindica
a pretensatildeo de uma validade objetiva A origem da moralidade pode ser encontrada
no caraacuteter autolegislador do sujeito Ateacute mesmo as outras expressotildees do pensamento
eacutetico moderno corroboram com a ideia de que o fundamento das accedilotildees humanas
encontra sua fonte no sujeito
14
Como eacute comum ao pensamento contemporacircneo este eacute marcado pela criacutetica
ao pensamento moderno Desde Nietzsche ateacute Wittgenstein Habermas Hans Jonas
MacIntyre todos eles trazem consigo ressalvas ao pensamento moderno o que vai
causar grandes siacutenteses principalmente do diagnoacutestico das fragilidades do discurso
moral moderno Por outro lado parece natildeo ser mais possiacutevel encontrar uma grande
siacutentese do pensamento eacutetico De qualquer maneira seja para negar ou para propor
a eacutetica permanece como uma das questotildees filosoacuteficas mais relevantes do pensamento
contemporacircneo
Alasdair MacIntyre se insere na filosofia moral contemporacircnea Esta pesquisa
considera que a grandeza de seu pensamento reside no esforccedilo que ele fez para
efetivar uma teoria moral agrave contemporaneidade ao modo de uma eacutetica das virtudes
MacIntyre encontra sua inspiraccedilatildeo filosoacutefica no movimento moral inglecircs denomina
Virtue Ethics Gertrude Anscombe eacute uma das figuras inspiradores deste movimento e
deixa como heranccedila dois elementos fundamentais ao pensamento de MacIntyre a
saber sua criacutetica agrave moral moderna e sua opccedilatildeo pela Eacutetica das Virtudes Embora
tributaacuterio de Gertrude Anscombe a proximidade de MacIntyre com o marxismo e com
as ciecircncias sociais proporciona a ele um itineraacuterio filosoacutefico peculiar
O objetivo deste trabalho eacute tomar o pensamento de MacIntyre e sua criacutetica
efetivada agrave modernidade criacutetica esta que o leva a retomar a Eacutetica das Virtudes a partir
de Aristoacuteteles propondo para a contemporaneidade um modelo de filosofia praacutetica
centrado natildeo nas accedilotildees mas no agente No entanto conforme seu proacuteprio
testemunho a relaccedilatildeo entre o aristotelismo e o pensamento cristatildeo natildeo foi
apresentada adequadamente (cf MACINTYRE 2001) No iniacutecio de Justiccedila de Quem e
Qual racionalidade (cf MACINTYRE 2001) MacIntyre reconhece a precariedade de
sua interpretaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino em relaccedilatildeo agrave Eacutetica das Virtudes Essa
precariedade consiste em natildeo haver pensado com suficiente radicalidade a
reconciliaccedilatildeo que Tomaacutes de Aquino operou entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica
Este trabalho parte deste ponto seu objetivo eacute dar continuidade ao que MacIntyre
deixou inacabado no que se refere ao tratamento que Tomaacutes de Aquino efetivou entre
o aristotelismo e o pensamento cristatildeo Assim onde termina o pensamento do
MacIntyre de Depois da Virtude eacute o ponto de iniacutecio desta pesquisa
O desenvolvimento do objetivo acima proposto exige uma exposiccedilatildeo do que
significa a Eacutetica das Virtudes e sua forma histoacuteria de retorno bem como de sua relaccedilatildeo
15
com Aristoacuteteles Requer tambeacutem a tematizaccedilatildeo do modo como o pensamento cristatildeo
retomou e reelaborou esta eacutetica O posicionamento deste trabalho se fundamenta na
tese de que uma Eacutetica das Virtudes que pretenda recorrer a Aristoacuteteles natildeo pode se
apresentar como alternativa agrave contemporaneidade sem considerar a contribuiccedilatildeo do
pensamento cristatildeo visto que o universo cultural e semacircntico dos conceitos morais
da contemporaneidade eacute perpassado pela influecircncia deste pensamento
Os autores que orientam esta pesquisa satildeo principalmente Alasdair MacIntyre
Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino atraveacutes das obras que se referem agrave Filosofia Moral
Com relaccedilatildeo ao pensamento de MacIntyre seraacute realizado um corte epistemoloacutegico
que parte da obra Depois da Virtude e manteacutem seu foco na tarefa que esta obra deixou
em aberto Os possiacuteveis desdobramentos do pensamento de MacIntyre natildeo se
constituem como empecilho ao desenvolvimento desta pesquisa
Para a realizaccedilatildeo do objetivo proposto faz-se necessaacuterio organizar a estrutura
do trabalho do seguinte modo no primeiro capiacutetulo O Antiiluminismo Eacutetico e a Eacutetica
das Virtudes seraacute feita uma exposiccedilatildeo geral sobre os fundamentos da eacutetica das
virtudes e como esta retorna ao cenaacuterio da filosofia moral contemporacircnea o segundo
A Criacutetica de MacIntyre ao Projeto Moderno de Fundamentaccedilatildeo da Moralidade trata
da primeira tarefa de Depois da Virtude ou seja de como a moral contemporacircnea
resulta segundo MacIntyre do desacordo das teses modernas de fundamentaccedilatildeo da
moralidade e de suas incoerecircncias denominadas por ele lsquofalecircnciarsquo do projeto
iluminista O terceiro capiacutetulo O Projeto de Depois da Virtude expotildee a teoria moral
de MacIntyre retomando os conceitos anteriores a obra mas que determinaram e se
mantiveram presentes nela a quarta parte da tese Tradiccedilatildeo Biacuteblica e Aristotelismo
aborda a Reconciliaccedilatildeo Tomista do Aristotelismo e da Tradiccedilatildeo Biacuteblica na Filosofia
Moral
16
2 O ANTIILUMINISMO EacuteTICO E A EacuteTICA DAS VIRTUDES
O pensamento de MacIntyre se insere numa corrente da Filosofia Moral Inglesa
do seacuteculo XX denominada Eacutetica das Virtudes Este movimento teraacute grande influecircncia
em seu pensamento especialmente na criacutetica que eacute apresentada agrave Moral Moderna
como tambeacutem no esforccedilo de promover uma releitura da Eacutetica de Aristoacuteteles e de
compatibilizaacute-la agraves exigecircncias do pensamento contemporacircneo Esta seccedilatildeo apresenta
esse movimento e seu questionamento dos fundamentos da moral moderna como
tambeacutem apresenta as principais teses daacute Eacutetica das Virtudes por meio dos
pensamentos de Rosalind Hursthouse e de Gertrude Anscombe
A Filosofia Moral Inglesa da segunda deacutecada do seacuteculo XX foi denominada
Virtue Ethics porque propocircs a recolocaccedilatildeo da problemaacutetica das accedilotildees agrave luz da eacutetica
das virtudes Tem como foco o questionamento da moral moderna e o renascimento
da eacutetica aristoteacutelica A intenccedilatildeo era constituir a Eacutetica das Virtudes como uma terceira
via entre a Filosofia Deontoloacutegica kantiana e o utilitarismo eacutetico tatildeo fortemente
instituiacutedo no Ocidente Qual eacute a necessidade de uma terceira via para a filosofia
moral Quais satildeo as insuficiecircncias das eacuteticas deontoloacutegicas e utilitaristas que
justificam esta empreitada Estas satildeo questotildees que orientam a construccedilatildeo teoacuterica
deste capiacutetulo
Serviratildeo de apoio epistemoloacutegico aleacutem do MacIntyre a obra Sobre a Eacutetica das
Virtudes (cf HURSTHOUSE 2001)1 de Rosalind Hursthouse e o texto A filosofia
moral moderna de Gertrude Anscombe pensadora que com grande relevacircncia
influenciou o itineraacuterio filosoacutefico Alasdair MacIntyre
21 SOBRE A RE-COLOCACcedilAtildeO DA VIRTUE ETHICS
Segundo Rosalind Hursthouse (cf HURSTHOUSE 2001) Virtue Ethics eacute um
termo teacutecnico que inicialmente diferenciava uma eacutetica normativa com o foco nas
virtudes e no caraacuteter das abordagens eacuteticas que enfatizavam os direitos ou regras
denominadas deontologias e das que destacavam as consequecircncias das accedilotildees
1 Rosalin Hursthouse eacute professora de Filosofia da Universidade de Auckland na Nova Zelacircndia No
Doutorado foi orientanda de Elizabeth Anscombe e Philippa Ruth Foot
17
denominadas de consequencialismo ou utilitarismo (cf HURSTHOUSE 2001 p1)
Para ilustrar a definiccedilatildeo a autora propotildee o seguinte exemplo
Imagine um caso em que eacute oacutebvio que eu deveria por exemplo ajudar algueacutem em necessidade Um utilitarista iria destacar o fato de que o resultado de minha accedilatildeo contribuiria com o bem estar do necessitado Um deontologista diria que minha accedilatildeo estaacute de acordo com a maacutexima fazer aos outros aquilo que eu gostaria que fosse feito comigo e finalmente um filoacutesofo das virtudes diria que o fato de ajudar a quem precisa seria sinal de benevolecircncia ou caridade (HURSTHOUSE 2001 p1)
A posiccedilatildeo do utilitarista considera que ajudar a um necessitado deve ser visto
em virtude do resultado da accedilatildeo jaacute o deontologista compreende a accedilatildeo pela
perspectiva da universalizaccedilatildeo do ato de ajudar algueacutem finalmente para o filoacutesofo
das virtudes a accedilatildeo eacute boa porque eacute expressatildeo de um agente bom
A Eacutetica das Virtudes eacute uma abordagem ao mesmo tempo antiga e nova para
a Filosofia Praacutetica Antiga porque remonta a Platatildeo e Aristoacuteteles e nova se se
considera sua recolocaccedilatildeo como alternativa ao pensamento moral contemporacircneo
Rosalind Hursthouse enfatiza que apenas dois tipos de abordagem dominaram a eacutetica
normativa nos uacuteltimos 30 anos2 a deontoloacutegica inspirada primordialmente em Kant
e a utilitarista tendo como representantes mais importantes Jeremy Bentham e John
Stuart Mill Ainda segundo a supracitada Filoacutesofa lsquoentre os muitos livros e artigos
publicados sobre a eacutetica normativa discutia-se ampliava-se corrigia-se apenas as
duas abordagens jaacute mencionadas entretanto natildeo figurava entre elas nenhum texto
que fizesse referecircncia a uma terceira possibilidadersquo (cf HURSTHOUSE 2001 p 2)
permanecendo impensada uma terceira possibilidade para a Filosofia Moral de entatildeo
Rosalind Hursthouse ainda acrescenta que em alguns manuais de graduaccedilatildeo
sobre eacutetica normativa vaacuterios artigos criacuteticos da ortodoxia dominante pleitearam um
reconhecimento da eacutetica das virtudes Em alguns paraacutegrafos dizia-se lsquoo que um
filoacutesofo da virtude3 diria nesse casorsquo Para a referida Autora as menccedilotildees agrave moral das
virtudes o mais das vezes tendiam a ser curtas e com desprezo Rigorosamente
falando a Eacutetica das Virtudes natildeo era considerada como uma uma alternativa viaacutevel
uma vez que suas interferecircncias se referiam apenas a aspectos interessantes sobre
os motivos e o caraacuteter do agente moral que podiam ser inseridos como informaccedilotildees
complementares a essas abordagens A Eacutetica das Virtudes era ateacute entatildeo
2 A Autora estaacute escrevendo em 1998 Assim sendo deve-se entender lsquonos uacuteltimos 40 anosrsquo 3 Esta eacute uma traduccedilatildeo proposta para a expressatildeo virtue ethicist
18
considerada como um lsquogarotorsquo mais novo entre os rapazes podia entrar no lsquojogorsquo
mas natildeo era contado efetivamente como um lsquojogadorrsquo Somente em pouco mais de 40
anos a Eacutetica das Virtudes adquiriu o status completo ocupando a qualidade de
terceira das abordagens morais rivalizando com deontologistas e ou utilitaristas
A respeito de um retorno da Eacutetica das Virtudes Rosalind Hursthouse apresenta
as seguintes questotildees por que a Filosofia Moderna4 (ou contemporacircnea) revive a
antiga abordagem da Eacutetica das Virtudes Por que o pensamento contemporacircneo ou
um movimento de pensadores sentiu a necessidade de promover um retorno ao
pensamento antigo especialmente a Aristoacuteteles Sabe-se que existe uma grande
distacircncia temporal entre a contemporaneidade seus escritos e sua organizaccedilatildeo
social Aleacutem disso muitos dos pontos de vista desses autores como por exemplo a
escravidatildeo o lugar da mulher na sociedade satildeo na realidade insustentaacuteveis No
entanto Rosalind Hursthouse enfatiza que nenhum dos filoacutesofos da virtude estaacute
comprometido com os detalhes lsquoparoquiaisrsquo de Aristoacuteteles assim como nenhum dos
deontologistas estaacute comprometido com as opiniotildees de Kant sobre os animais por
exemplo (cf HURSTHOUSE 2001 p 2)5 Para Rosalind Hursthouse a questatildeo
fundamental eacute que ao lado desses motivos haacute muitos outros que se empotildee para o
renascimento ou recolocaccedilatildeo das moral das virtudes a saber a sabedoria praacutetica a
amizade e o relacionamento familiar o aprofundamento do conceito de felicidade o
papel das emoccedilotildees na vida moral dos indiviacuteduos Esses temas afirma a autora
praticamente desapareceram do vocabulaacuterio filosoacutefico do pensamento moral dos
seacuteculos XVIII e XIX Dessa maneira o renascimento da Eacutetica das Virtudes natildeo eacute uma
simples coincidecircncia Ele coincide com a redescoberta desses temas fundamentais
em virtude do proacuteprio apelo que eles impotildeem agrave existecircncia humana Esses temas natildeo
satildeo devidamente considerados pelos pensadores modernos e na opiniatildeo de Rosalind
Hursthouse aos olhos de algueacutem mais atento satildeo reconhecidos como as temaacuteticas
sempre pertinentes agrave Filosofia Moral (cf HURSTHOUSE 2001 p 3)
Atraveacutes da recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes Rosalind Hursthouse salienta
que a redescoberta da Eacutetica das Virtudes proporcionou revisotildees e releituras por parte
demuitos defensores da eacutetica do dever ou entre os utilitaristas Atraveacutes dessas
4 Esta eacute a terminologia utilizada por Rosalind Hursthouse A julgar a distacircncia temporal pequena mas
significante seraacute utilizada a expressatildeo Contemporacircnea 5 Aqui a autora faz referecircncia agrave posiccedilatildeo kantiana de que os animais satildeo coisas e que o maior defensor
da liberaccedilatildeo dos animais Tom Regam seja um deontologista
19
revisotildees eacute que foram propostas temaacuteticas como a Doutrina kantiana da virtude Outros
pensadores como McDowell promoveram aproximaccedilotildees entre Aristoacuteteles e Kant
enquanto autores como Herman e Korsgaard trouxeram Kant mais perto de Aristoacuteteles
(cf HURSTHOUSE 2001 p 4)
A reconsideraccedilatildeo de noccedilotildees e de temas da Eacutetica das Virtudes gerou um
problema acerca dos limites entre as abordagens eacuteticas Esses limites se referem ao
fato de que a especificidade de cada abordagem natildeo parece bem determinada
Rosalind Hursthouse afirma que jaacute natildeo eacute mais tatildeo simples afirmar genericamente que
a eacutetica das virtudes eacute uma corrente que enfatiza as virtudes Do mesmo modo a
deontologia e o utilitarismo tambeacutem natildeo podem ser resolvidos apenas pela descriccedilatildeo
que um e outro enfatizam regras ou consequecircncias em contraste com o caraacuteter do
agente
O fim da problematizaccedilatildeo entre as especificidades das abordagens eacuteticas para
Rosalind Hursthouse aponta natildeo para uma separaccedilatildeo ldquobarristardquo entre as abordagens
Eu suspeito que a persistecircncia da crenccedila da eacutetica da virtude natildeo eacute como afirmei acima lsquouma rival para abordagens deontoloacutegicas e utilitaristas mas se apresenta como interessante e desafiadora entre elas
a abordagem ainda eacute nova o suficiente para ser distinta e o objetivo deste livro eacute explorar o que pode ser adquirido como insights para a filosofia moral sendo escrito de uma forma muito detalhada e compreensiva Se os utilitaristas e deontologistas estiverem em desacordo com o que eu digo que eacute claro que eu quero eacute discutir com eles e talvez alguns dos nossos pontos de atrito sejam apenas sobre teses particulares que tipicamente embora natildeo universalmente eles defendem e rejeitam na eacutetica das virtudes ou vice-versa Eu natildeo deveria estar inclinada para argumentar em tudo Eu deveria estar feliz por todos noacutes pois isto significa parar de se preocupar sobre como distinguimos noacutes mesmos e acolher os nossos acordos (HURSTHOUSE 2001p 7)
A partir da afirmaccedilatildeo de Rosalind Hursthouse sente-se a necessidade de se
promover muito mais do que uma concorrecircncia entre as aborgadens eacuteticas um
reavivamento da moral das virtudes cuja expressividade ficou de certo modo
lsquomarginalizadarsquo na Tradiccedilatildeo Filosoacutefica dos seacuteculos XVIII e XIX A abertura para esta
abordagem conduz pois agrave compreensatildeo de que uma moral do dever ou uma eacutetica
centrada nos resultados natildeo foram suficientes para responder agraves demandas do agir
humano como tambeacutem sinaliza o reavivamento de uma eacutetica que valoriza accedilatildeo
20
apenas na medida em que ela for um desdobramento das condiccedilotildees e do
aprimoramento do agente moral atraveacutes das virtudes
A Eacutetica das Virtudes teve seu retorno a partir de algumas obras inspiradoras
particularmente o ensaio de Gertrude Anscombe Modern Moral Philosophy de 1958
Segundo Kevin Flannery o artigo Modern Moral Philosophy ao lado da obra Intention
consagrou Gertrude Anscombe como filoacutesofa Gertrude Anscombe foi interlocutora e
amiga particular de Wittgenstein Apoacutes a morte dele Gertrude Anscombe realizou uma
das melhores traduccedilotildees das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas para os leitores de liacutengua
inglesaque praticamente nunca foram contestadas em virtude de seu rigor e
fidelidade agrave obra do autor (cf FLANNERY 2009)
211 Sobre a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica
No texto A Filosofia Moral Moderna Gertrude Anscombe sugere algumas teses
A primeira eacute a de que ldquonatildeo eacute proveitoso fazer filosofia moral no tempo presente ateacute
que se tenha uma filosofia adequada da psicologiardquo (ANSCOMBE 2010 p 19) isto eacute
uma Psicologia Filosoacutefica Mas por que no tempo presente natildeo eacute proveitoso fazer
uma filosofia moral sem antes encontrar uma Psicologia Filosoacutefica E porque esta
Psicologia Filosoacutefica abre os horizontes para se fazer uma filosofia moral
contemporaneamente Essas satildeo as questotildees que orientam a construccedilatildeo desta
seccedilatildeo
Desde a Criacutetica da Razatildeo Pura a tarefa de construir uma Psicologia Filosoacutefica
tornou-se por demais complicada As conclusotildees de Kant expressas na Dialeacutetica
Transcendental mostraram a lsquofalecircnciarsquo que esta ciecircncia da Metafiacutesica Claacutessica
encontrou em seu intento de assegurar a imortalidade da alma
Ora na verdade natildeo haacute ningueacutem que possa extrair de princiacutepios especulativos a miacutenima base para semelhante afirmaccedilatildeo nem mesmo demonstrar-lhe a possibilidade soacute eacute possiacutevel supocirc-la mas tatildeo-pouco pode algueacutem opor-lhe qualquer objeccedilatildeo dogmaacutetica vaacutelida Pois ningueacutem sabe mais do que eu ou de que outro qualquer sobre a causa absoluta e intriacutenseca dos fenocircmenos exteriores e corporais Tambeacutem ningueacutem pode pretender saber com fundamento sobre que repousa no estado atual (na vida) a realidade dos fenocircmenos externos e por consequecircncia tambeacutem natildeo pode afirmar que a condiccedilatildeo de toda a intuiccedilatildeo externa ou tambeacutem o proacuteprio sujeito pensante deva cessar depois deste estado (na morte) (KANT 2001)
21
As conclusotildees de Kant na Criacutetica da Razatildeo Pura inviabilizaram a Psicologia
Racional na tarefa de demonstrar a imortalidade da alma Contudo a finalidade com
que Gertrude Anscombe sugere uma Psicologia Filosoacutefica tem agora um objetivo
distinto da antiga Psichologya Rationalis A Psicologia Filosoacutefica conforme Gertrude
Anscombe sugere serviraacute para apresentar o modo como os atos humanos satildeo
capazes de se relacionar com as virtudes Com efeito se as virtudes satildeo tipos de atos
realizados em favor do bem do homem um estudo sobre estes atos humanos
proporciona uma maior compreensatildeo sobre as virtudes e suas possibilidades no agir
do ser humano
A afirmaccedilatildeo de Gertrude Anscombe que sugere o abandono da moral pode ateacute
soar de maneira estranha vindo de uma moralista Entretanto o sentido desta
afirmaccedilatildeo eacute resgatado quando se entende o que a autora compreende como
aplicaccedilatildeo de uma psicologia filosoacutefica agrave moral Segundo Kevin Flannety esta recusa
se refere pelo menos inderetamente agrave maneira como uma psicologia proscede ao
estudar os fenocircmenos ou dados que existem necessariamente e exclusivamente na
mente isto eacute na interioridade do indiviacuteduo (cf FLANNERY 2009 p 44) Eacute em virtude
desta interioridade que Gertrude Anscombe compreende que a prioridade de uma
psicologia filosoacutefica para a filosofia moral se justifica porque as accedilotildees humanas se
fundamentam em processos internos da psiqueacute especialmente na chamada
intencionalidade Deste modo uma psicologia filosoacutefica como saber preliminar agrave
filosofia moral natildeo pode entre outras coisas prescindir do estudo da intencionalidade
Gertrude Anscombe entende a dificuldade de propor uma Psicologia Filosoacutefica
sem no entanto recorrer a experiecircncias e relatos de casos assim como acontece
com a psicologia empiacuterica Entretanto a autora natildeo parece se contentar com o que a
psicologia empiacuterica fez ao fenocircmemo da intencionalidade Com efeito esta ciecircncia
passou a considerar a intencionalidade um sentimento que os indiviacuteduos
supostamente tecircm quando fazem algo intencional A intencionalidade passou a ser
tematizada como um outro sentimento ou estado psicoloacutegico assim como a empatia
ou animosidade sentidas pelos outros (cf FLANNERY 2009 p 44)
O resultado deste modus operandi da psicologia empiacuterica enfatiza Kevin
Flannery eacute ignorar a funccedilatildeo das intenccedilotildees nos atos humanos e reduzir a psicologia
ao estudo dos pensamentos acrescidos dos sentimentos na forma de estados
psicoloacutegicos (cf FLANNERY 2009 p 45) A intencionalidade e a moralidade assim
22
pensadas podem ser consideradas apenas como um niacutevel de sentimentalismo
acrescentado agraves accedilotildees Kevin Flannery aponta consequecircncias desse modo de
entender a moral
O resultado da aplicaccedilatildeo de uma tal abordagem da moralidade eacute que a moralidade se torna uma espeacutecie de camada de sentimentalismo acrescentada agrave accedilatildeo humana de tal forma que uma accedilatildeo em si pode ser absolutamente vergonhosa mas pode ser declarada moralmente correta de acordo com o argumento de que no final natildeo tem nada a ver com o que a pessoa realmente faz Pense por exemplo no discurso do padre que apresenta o raciociacutenio da Igreja em relaccedilatildeo agrave contracepccedilatildeo ou a fertilizaccedilatildeo in vitro como vaacutelido e sadio e ao mesmo tempo diz para os seus paroquianos que em relaccedilatildeo agraves suas obrigaccedilotildees morais eles devem seguir suas consciecircncias
(FLANNERY 2009 p 45)
Conforme a afirmaccedilatildeo de Kevin Flannery pensar a intencionalidade apenas
como um estado psicoloacutegico engendra uma incoerecircncia tiacutepica e recorrente na
contemporaneidade a ideia de que a maneira como se age eacute independente da
maneira como se pensa Tomando o exemplo acima tem-se a ideia de que os
ensinamentos da Igreja de certo modo satildeo apenas da ordem do conhecimento isto
eacute natildeo existe contradiccedilatildeo entre o saber de uma moral e a modo como algueacutem vive sua
vida particularmente A criacutetica se refere precisamente ao fato de se transformar a
intenccedilatildeo num simples sentimento A confusatildeo entre sentimento e intencionalidade eacute
o cenaacuterio atraveacutes do qual Gertrude Anscombe afirma a necessidade de uma
Psicologia Filosoacutefica Eacute importante salientar que a atitude naturalista da psicologia
empiacuterica diante do fenocircmeno da intenccedilatildeo eacute tambeacutem criticada por autores como
Edmund Husserl e Heidegger6
A relaccedilatildeo entre Psicologia Filosoacutefica e moralidade jaacute havia sido expressa na
Tradiccedilatildeo Filosoacutefica e Gertrude Anscombe natildeo acha viaacutevel ignoraacute-la Kevin Flannery
salienta que a noccedilatildeo de que a Tradiccedilatildeo podia ser ignorada no sentido de iniciar do
lsquozerorsquo foi um dos elementos que causou a crise da Teoria Moderna da Moralidade (cf
FLANNERY 2009 p 47) Em seu retorno agrave moral aristoteacutelica Gertrude Anscombe
entende a necessidade de se refletir acerca dos atos tarefa realizada especialmente
por uma Psicologia Filosoacutefica
6 Para um maior esclarecimento sobre a criacutetica de Heidegger ao conceito de intencionalidade como
fenocircmeno psiacutequico feita nos Prolegocircmenos agrave Histoacuteria do Conceito de Tempo cf HEIDEGGER Tertio Ed sect4 p13-18GA 20 1994 e HUSSERL 1989 p 42 Aqui Husserl fala a simplificaccedilatildeo do fenocircmeno do conhecimento como factum psicoloacutegico Esta eacute uma caracteriacutestica da atitude naturalista que extensivamente acontece com o exemplo do fenocircmeno da intenccedilatildeo
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Qual eacute pois o sentido de se trabalhar agraves intenccedilotildees na abordagem sobre a
moralidade No livro III da Eacutetica a Nicocircmacos Aristoacuteteles afirma
Como a virtude diz respeito a emoccedilotildees e accedilotildees e como os atos voluntaacuterios satildeo censurados e louvados ao passo que os involuntaacuterios satildeo objeto de perdatildeo e por vezes tambeacutem de piedade eacute presumivelmente necessaacuterio aos estudiosos da virtude definir o voluntaacuterio e o involuntaacuterio bem como eacute uacutetil aos legisladores tanto para a distribuiccedilatildeo das honrarias quanto para a aplicaccedilatildeo de puniccedilotildees (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea III 1109 b30 2010 p 59)
Aparentemente a referecircncia a Aristoacuteteles natildeo esclaresceu a pergunta
Entretetanto eacute a respeito dos atos voluntaacuterios e involuntaacuterios que a intenccedilatildeo diz
respeito Ela natildeo eacute compreendida apenas como um acaso em relaccedilatildeo agraves accedilotildees mas
como elemento que estaacute presente em todos os atos Aristoacuteteles natildeo desenvolve
explicitamente um estudo sobre as intenccedilotildees mas elas estatildeo latentes quando ele
fundamenta a teoria dos atos no livro III da EN Compreender o que faz de um ato
voluntaacuterio ou natildeo eacute ir buscar uma melhor compreensatildeo das intenccedilotildees e esta por sua
vez apresenta-se como fundamental agrave compreensatildeo dos atos voluntaacuterios e
involuntaacuterios
Aqui se esboccedila um problema a dificuldade de se tratar acerca das decisotildees
morais e das intenccedilotildees pois ldquoquando pensamos ter finalmente compreendido um
objeto de estudo podemos transformaacute-lo um pouco e vecirc-lo de forma bastante
diferenterdquo (FLANNERY 2009 p 47) Kevin Flannery acrescenta que a dificuldade no
tratamento da questatildeo conduz agrave tendecircncia de desistir do empreendimento e optar por
um criteacuterio mais lsquogerenciaacutevel da moralrsquo tornando a compreensatildeo sobre a moralidade
mais acessiacutevel Sua criacutetica chama a atenccedilatildeo para o fato de que o mais lsquogerenciaacutevelrsquo
se torna entretanto ineficaz ao rompimento da compreensatildeo da moral como um
estado psicoloacutegico
Ateacute entatildeo foram apresentados os limites da filosofia moral quando natildeo se
considera uma Psicologia Filosoacutefica Este eacute um aspecto negativo da resoluccedilatildeo da
questatildeo fundamental desta seccedilatildeo que eacute compreender a partir da afirmaccedilatildeo de
Gertrude Anscombe o porquecirc de natildeo ser proveitoso fazer filosofia moral no presente
e porque eacute necessaacuteria uma Psicologia Filosoacutefica
O aspecto positivo da necessidade de uma Psicologia Filosoacutefica retirado do
pensamento de Gertrude Anscombe eacute tambeacutem a caracteriacutestica que diferencia a
Autora entre os moralistas da virtude Para Gertrude Anscombe assim como as
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virtudes e os atos particulares do agente moral estatildeo associados associados tambeacutem
estatildeo os atos agrave psicologia da pessoa Para ela a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes
natildeo se inicia pelas virtudes mesmas mas por uma Psicologia Filosoacutefica que tem por
funccedilatildeo explicar a relaccedilatildeo entre a psicologia da pessoa os atos e as virtudes
Para Anscombe o ponto de partida natildeo eacute as virtudes mas a filosofia da psicologia que eacute nosso uacutenico caminho para uma boa compreensatildeo das virtudes Se haacute uma ligaccedilatildeo estreita entre os atos particulares e as virtudes deve haver estreita conexatildeo entre os atos e a psicologia de uma pessoa seu comportamento e reaccedilotildees caracteriacutesticas (FLANNERY 2009 p 52)
A afirmaccedilatildeo acima aponta para uma dependecircncia do estudo das virtudes em
relaccedilatildeo a um estudo sobre os atos e humanos Este estudo sobre os atos humanos
se constitui como outra tarefa da Psicologia Filosoacutefica De acordo com o que foi
apresentado a Psicologia Empiacuterica mostrou-se insuficiente no tratamento dos atos
humanos especialmente no que se refere ao fenocircmeno da intencionalidade O
aprofundamento dos atos humanos atraveacutes de uma psicologia filosoacutefica pode
oferecer maior consistecircncia agrave Moral das Virtudes O fato eacute que as virtudes e tambeacutem
os viacutecios satildeo consolidados pelos atos concretos
Na relaccedilatildeo entre atos e virtudes o mais importante natildeo eacute necessariamente
desvendar as complexas relaccedilotildees que existem entre a psicologia de uma pessoa o
modo como os acontecimentos particulares sua vida vatildeo influenciar o
desenvolvimento futuro de sua histoacuteria O que estes argumentos natildeo podem
obscurecer nem invalidar a existecircncia de uma relaccedilatildeo estreita entre atos e virtudes
Neste sentido expotildee Kevin Flannery
Natildeo eacute ilegiacutetimo perguntar por exemplo como o envolvimento na morte de inocentes mesmo em parte por pessoas perfeitamente boas tem uma influecircncia sobre a vida familiar ou em qualquer outro aspecto do comportamento relacional Natildeo eacute ilegiacutetimo por exemplo questionar como um ato sexual com um menor em seu passado pode ter uma influecircncia sobre a vida pastoral de um possiacutevel padre no futuro Mas para entender como se relacionam virtudes viacutecios e atos particulares noacutes devemos tambeacutem compreender que atos satildeo genuinamente intencionais e em que medida o satildeo (FLANNERY 2009 p 53)
Embora o estudo sobre a intencionalidade e seu lugar numa Psicologia
Filosoacutefica natildeo seja o foco desta pesquisa sua menccedilatildeo eacute pertinente a este trabalho O
direcionamento se refere agrave compreensatildeo e exposiccedilatildeo do modo como no pensamento
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contemporacircneo a moralidade moderna e seus desdobramentos foram questionados
proporcionando a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes
212 A incoerecircncia do dever moral
Tendo apresentado a relaccedilatildeo de precedecircncia de uma teoria dos atos como um
propedecircutica ao estudo das virtudes Filosofia Moral Moderna apresenta um
questionamento acerca da noccedilatildeo de dever moral Para a Gertrude Anscombe a moral
moderna toma por base a noccedilatildeo de lsquodever moralrsquo Esta noccedilatildeo proveacutem de uma filosofia
praacutetica de caraacuteter legalista como eacute o caso da moral cristatilde A ideia baacutesica eacute que as
tentativas modernas de constituiccedilatildeo de uma filosofia praacutetica natildeo tiveram ecircxito porque
pensaram ser possiacutevel desenvolver uma eacutetica como lei moral tomando por
fundamento primordial o sujeito moral
Embora o termo moral seja herdado do pensamento aristoteacutelico Gertrude
Anscombe enfatiza que o que se entende por moral contemporaneamente possui um
conteuacutedo semacircntico distinto do que o termo possui nos contextos do pensamento de
Aristoacuteteles Ademais a moral parece estar relacionada agravequilo que eacute lsquoreprovaacutevelrsquo de
modo que falhas natildeo apenas da praacutexis mereccedilam receber igualmente o termo
reprovaacutevel (cf ANSCOMBE 2010 p 30) O que eacute explicitado pela autora eacute que
expressotildees do tipo lsquotem dersquo ou lsquodeversquo satildeo utilizadas em contextos natildeo apenas morais
como compreendia Aristoacuteteles mas em contextos que ele denominaria de
lsquointelectuaisrsquo
A Autora encontra na cristandade a razatildeo da modificaccedilatildeo semacircntica do termo
moral ldquoA resposta pertence agrave Histoacuteria entre Aristoacuteteles e noacutes encontra-se a
Cristandade com sua concepccedilatildeo legalista de eacutetica visto que a Cristandade deriva
suas noccedilotildees morais da Toraacuterdquo (ANSCOMBE 2010 p 24) Para ela a Cristandade opera
uma releitura na eacutetica aristoteacutelica
Os termos comuns (e indispensaacuteveis) [grifo da autora] ldquotem derdquo ldquoprecisa derdquo ldquodeverdquo ldquotem a obrigaccedilatildeo derdquo adquiriram esse sentido especial ao serem equacionados nos contextos relevantes com ldquoestaacute obrigadordquo ldquoassumiu o encargo derdquo e eacute ldquoexigido derdquo no sentido que se
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pode estar obrigado ou se pode assumir um encargo por lei ou de que algo pode ser exigido por lei (ANSCOMBE 2001 p 383)7
O predomiacutenio da Cristandade trouxe para a linguagem moral do Ocidente uma
grande modificaccedilatildeo no sentido daquilo que Aristoacuteteles entendia por moral e mesmo
que a Cristandade e sua compreensatildeo de mundo tenham sido abandonadas as
noccedilotildees de dever e obrigaccedilatildeo permaneceram sendo empregadas a partir das
influecircncias recebidas
Numa segunda justificativa aleacutem da tese da origem religiosa do conceito de
dever moral Gertrude Anscombe propotildee uma distinccedilatildeo entre accedilotildees maacutes por si
mesmas e accedilotildees maacutes sob determinadas circunstacircncias A condenaccedilatildeo de um
inocente conhecendo-se sua inocecircncia eacute um exemplo de accedilatildeo maacute em si mesma
enquanto que a violaccedilatildeo do direito de propriedade figura entre as accedilotildees maacutes sob
determinadas circunstacircncias No caso da condenaccedilatildeo de um inocente a accedilatildeo eacute maacute
diretamente em virtude da consciecircncia que se tem da inocecircncia e da violaccedilatildeo
deliberada do direito do inocente jaacute no caso do direito de propriedade a accedilatildeo natildeo
pode ser maacute em si mesma por causa das circunstacircncias Ora algueacutem pode invadir a
propriedade de outrem por que eventualmente estaacute a fugir da morte iminente
Esta distinccedilatildeo eacute relevante pois apresenta o modo como um pensamento moral
pode se constituir como uma teoria centrada nas accedilotildees de um agente ou como uma
teoria que prioriza as accedilotildees de um agente centrado Esta uacuteltima eacute por assim dizer
um tipo de filosofia praacutetica que visa o bem natildeo apenas das accedilotildees mas tambeacutem do
agente eacutetico A acusaccedilatildeo de Gertrude Anscombe em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de dever e
obrigaccedilatildeo se refere ao fato de que nestes casos haacute uma estrutura normativa que
privilegia a accedilatildeo em detrimento do agente No caso da Eacutetica das Virtudes haacute uma
tentativa de priorizar natildeo a accedilatildeo em seus efeitos externos ao agente mas o que ela
provoca em seu caraacuteter A noccedilatildeo de caraacuteter necessita de um aprofundamento
No contexto de uma Moral das Virtudes as accedilotildees satildeo convenientes na medida
em que contribuem com o fim do homem O caraacuteter significa aqui a capacidade de
agir virtuosamente com fundamento na condiccedilatildeo do agente que em por causa do
haacutebito adquiriu a capacidade de agir harmonizando o querer o poder e dever O mais
importante aqui natildeo reside numa accedilatildeo modelo na qual o agente deva se conformar
7ldquoThe ordinary (and quite indispensable) terms ldquoshouldrdquo ldquoneedsrdquo ldquooughtrdquo ldquomustrdquo acquired this special
sense by being equated in the relevant contexts with ldquois obligedrdquo or ldquois boundrdquo or ldquois required tordquo in the sense in which one can be obligaded or bound by law or something can be required by lawrdquo
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independente de seus processos internos sejam os desejos seja a razatildeo Neste
sentido pode-se afirmar a Eacutetica das Virtudes como uma eacutetica que manteacutem a
centralidade no agente
As eacuteticas deontoloacutegicas e utilitaristas centralizam sua atenccedilatildeo na idoneidade
das accedilotildees Este posicionamento faz com que a virtude seja dependente das accedilotildees
Opostamente a Eacutetica das Virtudes propotildee que as accedilotildees devem ser pensadas agrave luz
do caraacuteter de quem as pratica Na obra O bem viver em comunidade a vida boa
segundo Platatildeo e Aristoacuteteles (cf RICKEN 2008 p 181-182) o professor Friedo Ricken
relaciona trecircs teses sobre o agir a tese epistemoloacutegica a tese ontoloacutegica ou axioloacutegica
e a tese do chamado reducionismo conceitual
A tese epistemoloacutegica defende que as accedilotildees corretas satildeo fundamentadas por
conceitos de virtude uma accedilatildeo eacute considerada correta quando traduz aquilo que uma
pessoa virtuosa faria sob determinadas circunstacircncias Neste sentido as accedilotildees satildeo
julgadas em relaccedilatildeo agraves virtudes A tese ontoloacutegica ou axioloacutegica propotildee que o valor
moral da accedilatildeo se fundamenta no valor moral do caraacuteter ou seja as boas accedilotildees
decorrem do caraacuteter bom de uma pessoa entretanto natildeo vale a formulaccedilatildeo inversa
o caraacuteter como decorrente das accedilotildees Finalmente o reducionismo conceitual defende
que os assim chamados deveres podem ser retirados de predicados de virtude
Segundo Friedo Ricken a tese de Gertrude Anscombe parece alinhada ao
reducionismo conceitual pois para ela a eacutetica da virtude eacute contraposta com a eacutetica
do dever ou da lei como alternativa excludente os predicados ldquomoralmente corretordquo e
ldquomoralmente erradordquo conforme a exigecircncia poderiam ser substituiacutedos por predicados
de virtude ou seja pelo predicado lsquojustorsquo (cf RICKEN 2008 p 183)
Ainda segundo Gertrude Anscombe contemporaneamente o Ocidente
internalizou uma noccedilatildeo de dever que era tanto estranha agrave moral aristoteacutelica quanto agrave
moral hebraico-cristatilde Mais grave ainda eacute a defesa da noccedilatildeo de dever tentando
prescindir da cultura que a forjou Gertrude Anscombe esclarece que a eacutetica hebraico-
cristatilde tem como caracteriacutestica fundamental ldquoensinar que haacute coisas proibidas quaisquer
que sejam as consequecircncias no horizonterdquo (ANSCOMBE 2010 p 30) A autora expotildee
em seguida que a proibiccedilatildeo de certas accedilotildees simplesmente em virtude de sua
descriccedilatildeo como tais e tais tipos identificaacuteveis de accedilatildeo natildeo importando quais as
consequecircncias ulteriores vem a se constituir como a mais notaacutevel caracteriacutestica da
eacutetica hebraico-cristatilde
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A eacutetica legalista do Ocidente entatildeo mencionada foi forjada no seio da cultura
hebraico-cristatilde e eacute dela que provecircm as noccedilotildees de dever de obrigaccedilatildeo Estas noccedilotildees
se relacionam com a figura do legislador divino pois as leis satildeo por ele formuladas
A criacutetica de Gertrude Anscombe se dirige agraves deontologias modernas e ao utilitarismo
justamente porque eles defendem a noccedilatildeo de dever e obrigaccedilatildeo querendo no
entanto lsquoescaparrsquo agrave figura de um legislador divino Para a autora a noccedilatildeo de lei possui
um sentido muito forte de interdito Este interdito que possui forccedila de lei e dever natildeo
seria adequadamente se fosse realizado ou imputado apelando apenas para forccedilas
do indiviacuteduo
Gertrude Anscombe considera que a sobrevivecircncia da noccedilatildeo de dever moral
se deu muito mais pela forccedila psicoloacutegica da expressatildeo do que pelo seu conteuacutedo (cf
ANSCOMBE 2010 p 28) Para a autora teria sido de grande valia se em vez de
lsquomoralmente erradorsquo fossem sempre invocados termos como lsquoinveriacutedicorsquo lsquoimpudicorsquo
lsquoinjustorsquo Deste modo natildeo se discutiria mais acerca da accedilatildeo se ela foi ou natildeo errada
mas se discutiria se foi justa ou injusta A questatildeo central aqui estaacute no fato de que
apresentar as accedilotildees em termos de moralmente certa ou errada natildeo traria implicaccedilotildees
sobre a bondade ou natildeo do agente pois certas ou erradas satildeo as accedilotildees Por outro
lado questionar como justas ou injustas qualifica de certo modo o agente como bom
ou natildeo Isto significa que a centralidade do julgamento natildeo iria residir nas accedilotildees mas
no agente
As palavras de Kant apresentando a modernidade como o tempo em que o
sujeito caminha com seus proacuteprios peacutes proporcionou a ideia de que a eacutetica moderna
se sustentaria com uma autolegislaccedilatildeo do sujeito de modo a ocupar o papel que
antes desenvolvido pelo Deus da Eacutetica Cristatilde
Duas coisas enchem o acircnimo de admiraccedilatildeo e veneraccedilatildeo sempre nova e crescente quanto mais frequente e persistentemente agrave reflexatildeo ocupa-se com elas o ceacuteu estrelado acima de mim e a lei moral em mim (KANT 2008 p 255)
Gertrude Anscombe critica a ideia de que o sujeito seja legislador de si proacuteprio
ldquorejeito como absurdo que se possa legislar lsquopara si mesmorsquo O que quer que vocecirc
faccedila lsquopara si mesmorsquo pode ser admiraacutevel mas natildeo legislaccedilatildeordquo (ANSCOMBE 2010 p
34) Para autora a questatildeo fundamental eacute se questionar acerca da real capacidade
de um sujeito empiacuterico acessar uma maacutexima universal e conformar sua accedilatildeo particular
a ela prescindindo de suas inclinaccedilotildees
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Uma deduccedilatildeo necessaacuteria do pensamento de Gertrude Anscombe eacute que no
horizonte de uma eacutetica assegurada pela lei divina o lsquoiliacutecitorsquo ou lsquoo que eacute obrigatoacuterio natildeo
fazerrsquo termos que satildeo ancestrais do conceito lsquomoralmente erradorsquo ganham um
sentido pois satildeo o que a lei divina obriga Assim sendo a noccedilatildeo de lsquodeverrsquo ou
lsquomoralmente erradorsquo soacute satildeo adequadamente contextualizados se relacionados com a
Lei Divina
Aparentemente a autora estaacute defendendo uma lsquoparceriarsquo entre a moral
moderna e a eacutetica hebraico-cristatilde Se se retornar ao iniacutecio de seu texto ver-se-aacute que
a questatildeo central natildeo eacute a proposiccedilatildeo de uma lsquoparceriarsquo mas a indicaccedilatildeo de que os
conceitos de obrigaccedilatildeo e dever tatildeo fundamentais agrave moral moderna pelo fato de
serem remanescentes da eacutetica hebraico-cristatilde que jaacute natildeo existe mas dos ganhos
trariam danos agrave filosofia moral moderna (cf ANSCOMBE 2010 p 19)
213 Criacutetica ao utilitarismo
A criacutetica de Gertrude Anscombe ao utilitarismo aparece em sua apresentaccedilatildeo
do pensamento de Sidgwick O ponto de partida da filoacutesofa eacute a noccedilatildeo de intenccedilatildeo
utilizada por este autor Para Gertrude Anscombe o conceito intenccedilatildeo se refere agrave
possibilidade de prever as consequecircncias de uma accedilatildeo voluntaacuteria (cf ANSCOMBE
2010 p 31) A partir deste noccedilatildeo de intenccedilatildeo esboccedila-se a tese utilitarista do autor ldquoa
tese que natildeo ter sentido desejo algum por algo antevisto quer seja um fim ou um meio
para um fim eacute indiferente no que diz respeito agrave responsabilidade por esse algordquo
(ANSCOMBE 2010 p 31) A siacutentese da tese utilitarista ou consequencialista eacute a
compreensatildeo de que um indiviacuteduo pode ser responsabilizado pelo resultado de uma
accedilatildeo mesmo que esta determinada consequecircncia natildeo tenha sido desejada ou
intencionada previamente A autora ainda propotildee outra formulaccedilatildeo para tese de
Sidgwick ldquonatildeo ter a intenccedilatildeo de uma accedilatildeo eacute indiferente no que diz respeito agrave
responsabilidade por esse algordquo (ANSCOMBE 2010 p 31)8 Para melhor esclarecer a
autora propotildee um exemplo
Suponhamos que um homem seja responsaacutevel pelo sustento de uma crianccedila Por conseguinte deliberadamente deixar de lhe dar o sustento seria algo ruim a fazer de sua parte Seria ruim deixar de lhe dar o sustento porque ao deixar de fazecirc-lo estaria digamos
8 Cf tambeacutem ANSCOMBE 2001 p 387 ldquoit does not make any difference to a manrsquos responsibility for
something that he foresaw that he felt no desire for it either as an end or as a means to an endrdquo
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compelindo outro a fazer algo (Pode-se conceder neste argumento que compelir esse outro a fazer algo digno de admiraccedilatildeo) [grifo da autora] Agora poreacutem ele tem de escolher entre fazer algo ignoacutebil e ir preso se for preso segue-se que deixaraacute de dar o sustento agrave crianccedila (ANSCOMBE 2010 p 387)9
A interpretaccedilatildeo que Gertrude Anscombe faz da tese de Sidgwick eacute a seguinte
do ponto de vista da responsabilidade natildeo existe diferenccedila entre deixar de dar o
sustento por deliberaccedilatildeo e deixar de daacute-lo como consequecircncia da prisatildeo mesmo que
este resultado natildeo tenha sido computado como consequecircncia possiacutevel antes de vir a
cometer o ato indesejaacutevel Ora se natildeo haacute distinccedilatildeo entre uma accedilatildeo e outra em virtude
de a consequecircncia ser a mesma o agente pode ateacute concluir que deixar-se ir preso
seja menos mau do que deixar de dar o sustento agrave crianccedila por escolha Com efeito
deixar de o sustento passa a ser consequecircncia de ter sido preso minorando assim
a responsabilidade pelo ato
Gertrude Anscombe conclui que este tipo de eacutetica impulsiona o agente a
antever as consequecircncias natildeo haacute uma reflexatildeo sobre a maldade desta ou daquela
accedilatildeo apenas um caacutelculo dos possiacuteveis resultados Acontece que considerando
apenas as consequecircncias possiacuteveis pode ser que consequecircncias inesperadas se
apresentem como resultado Entretanto diante de resultados que natildeo foram
antevistos o agente natildeo pode a rigor ser culpado por um resultado desastroso
desde que argumente que um determinado resultado natildeo foi antevisto
A criacutetica da autora aponta para a ldquocomodidaderdquo do consequencialismo o agente
soacute eacute responsaacutevel na medida em que o resultado de suas accedilotildees for adequadamente
previsto Ao contraacuterio ela defende que ldquouma pessoa eacute responsaacutevel pelas maacutes
consequecircncias de suas maacutes accedilotildees mas natildeo recebe o creacutedito pelas boas
consequecircncias destasrdquo (ANSCOMBE 2010 p 32) Deste modo esta moralidade natildeo
se apresenta como propositiva no sentido de sugerir o que deve ser feito mas se
preocupa primordialmente com o que homem natildeo deveria fazer com que
acontecesse
9ldquoLet us suppose that a man has a responsibility for the maintenance of some child Therefore
deliberately to withdraw support from it is a bad sort of thing for him to do It would be bad for him to withdraw its maintenance because he didnrsquot want to maintain it any longer and also bad for him to withdraw it because by doing so he would let us say compel someone else to do something (we may suppose for the sake of argument that compelling that person to do that thing is in ifself quite admirable) but now he has to choose between doing something disgraceful and going to prison if he goes to prison it will follow that he withdraws support from de childrdquo
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A partir da ldquocrenccedilardquo na superficialidade da proposta consequencialista a autora
expotildee a ela seu questionamento Um aristoteacutelico por exemplo questiona-se sobre
se fazer tal coisa em tal circunstacircncia eacute ou natildeo injusta e a partir daiacute julga o que deve
ser feito ou natildeo Jaacute um consequencialista natildeo tem base para dizer que determinada
accedilatildeo natildeo seria permitida ldquoo maacuteximo que ele pode dizer eacute que um homem natildeo deve
fazer com que aconteccedila isto ou aquilordquo (ANSCOMBE 2010 p 33) O que permite ao um
consequencialista o que natildeo deveria acontecer Ao refletir sobre qual o resultado natildeo
desejaacutevel como consequecircncia de uma accedilatildeo este pensador tem diante de si um caso
limite o que exige sua atenccedilatildeo aos padrotildees sociais
O consequencialista de modo a estar de fato imaginando um caso-limite tem de assumir algum tipo de lei ou padratildeo segundo o qual esse eacute um caso-limite De onde obteacutem esse padratildeo Na praacutetica a resposta invariavelmente eacute dos padrotildees correntes em sua sociedade ou ciacuterculo (ANSCOMBE 2010 p34)
A fundamentaccedilatildeo dos casos limites partindo dos exemplares sociais permite
uma associaccedilatildeo entre consequencialismo e convencionalismo moral Com efeito se
o ponto de partida da fundamentaccedilatildeo moral satildeo os padrotildees correntes numa
determinada sociedade qual a chance de uma proposiccedilatildeo consequencialista
contradizer algum modelo convencional A autora ainda explica que aleacutem do
convencionalismo eacutetico a moral consequencialista cria a possibilidade de um
determinado agente consentindo maacutes accedilotildees
[] o ponto de considerar situaccedilotildees hipoteacuteticas por vezes bastante improvaacuteveis parece ser o de produzir em vocecirc ou em algueacutem a decisatildeo hipoteacutetica de fazer algo ruim Natildeo duvido que isso tenha o efeito de predispor as pessoas que jamais se veratildeo nas situaccedilotildees para as quais fazem as escolhas hipoteacuteticas a dar consentimento a maacutes accedilotildees similares ou a enaltecer e lisonjear quem as pratique desde que a sua malta10 a faccedila tambeacutem quando as terriacuteveis circunstacircncias imaginadas natildeo se datildeo (ANSCOMBE 2010 p 33)
O fato de natildeo conseguir prever a consequecircncia de uma determinada accedilatildeo
utilizando-se de hipoacuteteses sobre as consequecircncias o que natildeo eacute difiacutecil de acontecer
dadas as inuacutemeras possibilidades de resultados de seu agir incita o agente a dar
assentimento a uma maacute accedilatildeo uma vez que a anaacutelise se refere ao que natildeo deve ser
feito
10Melhor traduzir por expectadores pois o texto original diz crowd
32
A conclusatildeo das criacuteticas de Gertrude Anscombe sobre o consequencialismo eacute
de certo modo controversa pois talvez natildeo seja uma consequecircncia necessaacuteria que o
fato de analisar uma accedilatildeo que natildeo deve ser realizada predisponha o agente a fazecirc-
la Entretanto dizer que esta anaacutelise em nada influencia o agente eacute igualmente
controverso
214 A diacutevida filosoacutefica de MacIntyre ao pensamento de Gertrude Anscombe
A repercussatildeo do pensamento de Gertrude Anscombe no itineraacuterio filosoacutefico de
MacIntyre eacute bem relevante O desenvolvimento da criacutetica deste uacuteltimo ao projeto
moderno de fundamentaccedilatildeo da moralidade segue uma linha de pensamento que
encontra ressonacircncias com os argumentos de Filosofia Moral Moderna Contudo a
vinculaccedilatildeo de MacIntyre com o pensamento marxista e com as ciecircncias sociais
proporcionaram aprofundamento e amadurecimento ao seu pensamento conforme
afirma Jorge Garcia
A criacutetica de MacIntyre da filosofia moral moderna mesmo com todas as semelhanccedilas natildeo apenas eacute um simples recapitular de Anscombe Sua criacutetica eacute mais detalhada e profundamente influenciada por seus viacutenculos com o marxismo e sua leitura das ciecircncias sociais (Cf GARCIA 2003 p 95 )11
O ponto de convergecircncia entre a Gertrude Anscombe e MacIntyre reside pois
no questionamento e na rejeiccedilatildeo agrave moral moderna Conforme Ernst Tugendhat
(2007)12 satildeoantiiluministas eacuteticos os autores que assumem este posicionamento
Outra aproximaccedilatildeo entre os dois autores eacute o realce na distinccedilatildeo entre o modus
operandi da eacutetica antiga e moderna e a opccedilatildeo pela moral das virtudes Talbot Brewer
salienta que tanto Gertrude Anscombe quanto MacIntyre enfatizam ldquouma estranheza
fundamental aos lsquoouvidosrsquo modernos dos conceitos baacutesicos atraveacutes dos quais
Aristoacuteteles e outros antigos medievais cercaram sua investigaccedilatildeo sobre a virtude o a
felicidade humanardquo (BREWER 2009 p 2 )13 Em siacutentese eacute possiacutevel afirmar que o
11ldquoMacIntyres critique of modernist moral philosophy for all these similarities does not at all simply
recapitulate Anscombes His criticism is more detailed deeply informed by his ties to Marxism and his reading the social sciencesrdquo
12Sobre o antiiluminismo eacutetico conferir a deacutecima liccedilatildeo intitulada o antiiluminismo eacutetico Hegel e a escola de Ritter cf Aftervirtue Third edition Notre Dame Notre Dame Press 2007 p 197-224
13ldquoThe two texts that are most widely cited as the starting points and the inspiration for the movement are Elizabeth Anscombes Modern Moral Philosophy and Alasdair MacIntyres After Virtue Both Anscombe and MacIntyre emphasize the fundamental strangeness to modern ears of the basic
33
antiiluminismo eacutetico e a opccedilatildeo pelas virtudes satildeo elementos dos quais MacIntyre eacute
herdeiro de Gertrude Anscombe
O fato de ser devedor de um pensamento natildeo implica numa simples repeticcedilatildeo
Jaacute foi mencionado que a anaacutelise de MacIntyre eacute enriquecida por sua proximidade com
o marxismo e com as ciecircncias sociais O elemento antropoloacutegico eacute a segunda
distinccedilatildeo relevante entre os autores Segundo David Carr e Jan Steutel (cf 1999 p
162-163) Gertrude Anscombe acreditava ser possiacutevel tomar como ponto de partida
uma concepccedilatildeo de homem ao modo de Aristoacuteteles na forma de uma psicologia
filosoacutefica que permitisse estabelecer relaccedilatildeo entre atos virtudes e fim do homem Por
seu turno em Depois da Virtude MacIntyre procura evitar o que chama de biologia
metafiacutesica de Aristoacuteteles ldquoAristoacuteteles escreve como se os baacuterbaros e os gregos
tivessem natureza fixa e ao encaraacute-los assim ele nos traz de volta o caraacuteter natildeo
histoacuterico de sua compreensatildeo de natureza humanardquo (MACINTYRE 2001b p 270)
MacIntyre parece natildeo adotar esse modelo antropoloacutegico porque esta seria uma
forma a-histoacuterica e a-cultural de considerar o homem o que natildeo poderia ser
sustentado do ponto de vista das ciecircncias sociais e aleacutem disso destoaria da
perspectiva metodoloacutegica de Depois da Virtude Esse talvez seja o motivo pelo qual
Depois da Virtude careccedila de uma teoria dos atos humanos Este fato abre espaccedilo agrave
criacutetica de que MacIntyre daacute pouca importacircncia agrave relaccedilatildeo entre atos e virtudes O que
seria de certo modo fundamental agrave moral as virtudes Posteriormente o proacuteprio
MacIntyre refaz sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave biologia metafiacutesica de Aristoacuteteles
Em Depois da virtude tentei dar conta do lugar das virtudes entendidas como Aristoacuteteles as entendeu dentro de praacuteticas sociais das vidas de indiviacuteduos e das vidas das comunidades fazendo com que tal abordagem fosse independente do que chamei de ldquobiologia metafiacutesicardquo de Aristoacuteteles Embora haja de fato boas razotildees para repudiar elementos importantes da biologia de Aristoacuteteles creio agora que estava errado ao supor que fosse possiacutevel haver uma eacutetica independente da biologia mdash e estou grato agravequeles criacuteticos que me objetaram quanto a isso [] (MACINTYRE 1999 Preface X )14
concepts through which Aristotle and other Ancient Medieval thinkers framed their inquires into virtues and the human goodrdquo
14ldquoIn After Virtue I had attempted to give an account of the place of the virtues understood as Aristotle understood them within social practices the lives of individuals and the lives of communities while making that account independent of what I called Aristotlersquos ldquometaphysical biologyrdquo Although there is indeed good reason to repudiate important elements in Aristotlersquos biology I now judge that I was in error in sopposing an ethics independent of biology to be possible ndash and I am grateful to those critics who distintct [hellip]rdquo
34
Finalmente fazem-se necessaacuterias algumas consideraccedilotildees ao final deste
capiacutetulo A partir da siacutentese de Rosalind Hursthouse vecirc-se que a recolocaccedilatildeo Eacutetica
das Virtudes se impotildee dadas as questotildees morais que natildeo se encontram contempladas
pelas morais deontoloacutegicas ou utilitaristas a siacutentese de Gertrude Anscombe daacute iniacutecio
ao movimento de retorno agrave Eacutetica das Virtudes e estabelece relevante influecircncia na
ulterior criacutetica de MacIntyre agrave filosofia moral moderna como tambeacutem na assunccedilatildeo da
Moral das Virtudes o movimento denominado Virtue Ethics manteacutem vivo o debate
eacutetico na contemporaneidade e abriu a possibilidade de pensar a Moral das Virtudes
como mais uma via pensamento na filosofia moral de liacutengua inglesa e na filosofia moral
como um todo
A seguir deve-se apresentar como o pensamento de MacIntyre se insere na
tradiccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes Primeiramente em seus questionamentos agrave Filosofia
Moral Moderna e secundariamente como teoacuterico de uma Eacutetica das Virtudes agrave
contemporaneidade
35
3 A CRIacuteTICA DE MACINTYRE AO PROJETO MODERNO DE FUNDAMENTACcedilAtildeO
DA MORALIDADE
A apresentaccedilatildeo das teses modernas sobre a moralidade eacute uma das temaacuteticas
centrais do pensamento de Alasdair MacIntyre Ela se constitui como momento
preparatoacuterio ao desenvolvimento de sua teoria moral Com efeito MacIntyre crecirc que
a exposiccedilatildeo destas teses se faz necessaacuteria porque o fato de existirem na
modernidade diferentes fundamentos agrave moralidade comprovaria em sua opiniatildeo o
chamado desacordo moral Esse desacordo seria pois a heranccedila deixada pelos
modernos agrave contemporaneidade e o ponto de partida da tese central de MacIntyre
Este capiacutetulo tem como tarefa apresentar a interpretaccedilatildeo manintyreana das principais
teses modernas sobre a fundamentaccedilatildeo da moralidade e os principais episoacutedios da
histoacuteria social que representaram o ldquoterrenordquo desde onde estas teses brotaram
A referecircncia baacutesica para a realizaccedilatildeo do objetivo deste capiacutetulo eacute a quarta
seccedilatildeo de Depois da Virtude intitulada A cultura predecessora e o projeto iluminista de
justificar a moralidade Para uma melhor compreensatildeo do fio condutor da
argumentaccedilatildeo do autor faz-se necessaacuteria uma exposiccedilatildeo da alegoria inicial de Depois
da Virtude no cap I Com efeito eacute a partir da alegoria inicial de Depois da Virtude que
MacIntyre daacute prosseguimento agrave primeira tarefa de Depois da Virtude a apresentaccedilatildeo
dos fundamentos do discurso moral contemporacircneo e a fragmentaccedilatildeo desse mesmo
discurso
31 A ALEGORIA INICIAL DE DEPOIS DA VIRTUDE
A alegoria inicial de Depois da Virtude se apresenta com um bastante
apocaliacuteptico A exposiccedilatildeo desta alegoria seguiraacute a apresentaccedilatildeo de MacIntyre O
iniacutecio do texto daacute conta das consequecircncias de uma cataacutestrofe hipoteacutetica nas ciecircncias
naturais A esta cataacutestrofe a opiniatildeo puacuteblica culpa os cientistas e em consequecircncia
inuacutemeros laboratoacuterios satildeo incendiados cientistas satildeo linchados livros e instrumentos
satildeo destruiacutedos Com a tomada de poder por um movimento poliacutetico intitulado ldquoNenhum
saberrdquo o ensino das ciecircncias nas escolas e nas universidades eacute eliminado enquanto
o restante dos cientistas eacute eliminado Posteriormente contra este movimento aparece
uma reaccedilatildeo e pessoas esclarecidas tentam ressuscitar a ciecircncia mesmo tendo se
36
esquecido em grande parte o que ela tinha sido Soacute possuem fragmentos
conhecimento dos experimentos isolados do contexto teoacuterico que lhes dava
significado partes de teorias desvinculadas seja de outros fragmentos de teoria que
possuem seja de experimentos instrumentos cujo uso foi esquecido capiacutetulos de
livros pela metade paacuteginas soltas de artigos nem sempre legiacuteveis porque estatildeo
rasgadas e chamuscadas Como se natildeo bastasse todos esses fragmentos satildeo
reunidos num conjunto de praacuteticas que recebem os nomes restaurados de fiacutesica
quiacutemica e biologia Os adultos discutem entre si os meacuteritos das teorias da relatividade
da evoluccedilatildeo e do flogismo embora seus conhecimentos sobre cada uma delas sejam
apenas rudimentares As crianccedilas decoram partes que restaram da tabela perioacutedica e
recitam alguns teoremas de Euclides como se fossem encantamentos Ningueacutem ou
quase ningueacutem percebe que o que estatildeo fazendo natildeo eacute ciecircncia natural em nenhum
sentido adequado pois tudo o que dizem e fazem obedece a certas leis da
compatibilidade e da coerecircncia e os contextos que seriam necessaacuterios para dar
sentido agravequilo que eles estatildeo fazendo foram perdidos talvez irrecuperaacuteveis (cf
MACINTYRE 2001 p 14)
A descriccedilatildeo de abertura de Depois da Virtude exemplifica diversos momentos
da primeira parte da obra da obra de MacIntyre Seu posicionamento eacute o de que a
filosofia moral moderna e sua tentativa de fundamentaccedilatildeo da moral satildeo anaacutelogas a
historinha entatildeo apresentada Assim como na historinha a reconstruccedilatildeo da ciecircncia
natural se mostrou impossiacutevel de ser remontada dada a fragmentaccedilatildeo a que o
material disponiacutevel estava acometido a filosofia moral moderna e sua tentativa de
fundamentaccedilatildeo natildeo teve condiccedilatildeo de impor-se coerentemente porque alguns de seus
fundamentos satildeo vestiacutegios fragmentados de um esquema moral que embora tribute
agrave modernidade alguns de seus elementos jaacute natildeo existe e os elementos disponiacuteveis
natildeo possuem sentido se separados dos seus contextos de origem
Pretensatildeo ou natildeo este eacute o ponto de partida de Depois da Virtude e a reflexatildeo
que MacIntyre faz sobre o projeto moderno de fundamentaccedilatildeo da moralidade recebe
suas motivaccedilotildees filosoacuteficas a partir desta alegoria Assim como na alegoria o que
sobraram das teorias cientiacuteficas eram fragmentos desconexos assim tambeacutem a
linguagem moral contemporacircnea eacute o resultado fragmentado de vaacuterias tentativas de
fundamentaccedilatildeo do discurso moral Entretanto esta desordem natildeo pode ser percebida
37
por todos assim como na alegoria pois existe de certo modo uma aparecircncia de
linguagem ordenada
O autor vai entatildeo expor a desmistificaccedilatildeo desta aparente linguagem
ordenada atraveacutes da apresentaccedilatildeo dos motivos que conduziram o pensamento moral
moderno ao fracasso intitulado por MacIntyre como o fracasso do projeto iluminista
32 AS TESES MODERNAS SOBRE A FUNDAMENTACcedilAtildeO DA MORALIDADE
O homem moderno se orgulha de ldquocaminhar com os seus proacuteprios peacutesrdquo de
tomar suas proacuteprias decisotildees de escolher os seus caminhos sua religiatildeo seus
governantes Este orgulho se deve ao marco divisoacuterio entre a moral claacutessica e a
moralidade moderna Este marco divisoacuterio foi propriamente a passagem da moral
claacutessica influenciada especialmente na eacutetica teleoloacutegica de Aristoacuteteles para a moral
moderna marcada profundamente pela ideia de autonomia o sujeito dando leis a si
proacuteprio Henrique de Lima Vaz afirmar que a Filosofia Moral Moderna eacute profundamente
marcada ldquopela tentativa kantiana de instauraccedilatildeo de uma Eacutetica da razatildeo pura praacutetica
termo da evoluccedilatildeo anterior e iniacutecio de um novo ciclo na histoacuteria da Eacutetica ocidentalrdquo
(VAZ 1999 p 257)
Sabe-se que a moral moderna embora tendo como aacutepice a moral kantiana natildeo
eacute constituiacuteda apenas pela moral da razatildeo pura praacutetica Em sua exposiccedilatildeo de teses
modernas de fundamentaccedilatildeo da moral MacIntyre expotildee outras manifestaccedilotildees que
propotildeem outros fundamentos para a moral diferentes da razatildeo pura praacutetica
Neste capiacutetulo a partir do pensamento de MacIntyre seratildeo explicitadas as trecircs
grandes tentativas de fundamentaccedilatildeo da moral moderna nomeadamente a moral
kantiana a moral humeana e a moral kiekegaardiana Para MacIntyre a colocaccedilatildeo de
Kierkegaard natildeo significa que o filoacutesofo eacute um pensador moderno em sentido proacuteprio
Para MacIntyre o pensamento de Kierkegaard traduz ldquoa perspectiva distintivamente
moderna em forma amadurecidardquo (MACINTYRE 2007 p 39 )15 isto eacute o pensamento
de Kierkegaard serve como elemento tipoloacutegico de uma das tendecircncias modernas de
fundamentaccedilatildeo da moral
15ldquobeginning from that point at which for the first time the distinctively modern standpoint appears in
something like fully-fledged formrdquo
38
Ainda segundo MacIntyre as teses de fundamentaccedilatildeo da moral aludem agraves trecircs
grandes dimensotildees fundamentais do sujeito a razatildeo os sentimentos ou paixotildees e a
escolha Estas dimensotildees correspondem respectivamente agrave fundamentaccedilatildeo da moral
a partir da razatildeo a partir das paixotildees e a fundamentaccedilatildeo da moralidade fundada na
escolha O autor entende que as diferentes fontes de fundamentaccedilatildeo satildeo a evidecircncia
do desacordo e da fragmentaccedilatildeo que de certo modo conduziram o projeto iluminista
de fundamentaccedilatildeo da moralidade agrave falecircncia Este caminho eacute exatamente o caminho
proposto por MacIntyre em Depois da Virtude e serve como base de sua criacutetica agrave moral
contemporacircnea
David Hume considera que os juiacutezos morais particulares satildeo expressatildeo do
gosto e dos sentimentos isto eacute das paixotildees Em Resumo de Um Tratado da Natureza
Humana o autor afirma
A uacutenica finalidade da loacutegica eacute explicar os princiacutepios e operaccedilotildees de nossa faculdade de raciociacutenio e a natureza de nossas ideias a moral e a criacutetica dizem respeito aos nossos gostos e sentimentos e a poliacutetica considera os homens enquanto unidos na sociedade e dependentes uns dos outros (HUME 1995 p 40 )16
Para Hume os juiacutezos morais satildeo expressatildeo de utilidade para os fins que foram
postos pelas paixotildees isto eacute estes fins estatildeo a serviccedilo dos sentimentos Hume afirma
ldquoa accedilatildeo pode causar um juiacutezo ou pode ser obliquamente causada por um juiacutezo quando
este coincide com uma paixatildeordquo (HUME 2009 p 499) A declaraccedilatildeo de Hume enfatiza
a condiccedilatildeo que uma accedilatildeo possui em relaccedilatildeo agrave paixatildeo pois eacute na coincidecircncia com
uma paixatildeo que uma accedilatildeo eacute causada ou causadora de um juiacutezo As accedilotildees satildeo pois
realizadas em virtude das paixotildees
A natureza do homem segundo Kant natildeo eacute mais que sua capacidade de viver
conforme seus instintos Em seu texto Sobre a Pedagogia uma coletacircnea de liccedilotildees
proferidas na Universidade de Koumlnigsberg e reunidas por um de seus disciacutepulos Kant
afirma que a disciplina uma das partes da educaccedilatildeo converte a animalidade em
humanidade (cf KANT 2002) Ora natildeo eacute difiacutecil compreender o porquecirc de Kant
acreditar que as paixotildees interesses ou inclinaccedilotildees natildeo podem ser fundamento da
accedilatildeo moral Na Fundamentaccedilatildeo da Metafiacutesica dos Costumes ele assinala que uma
accedilatildeo moralmente boa natildeo pode conter nada que possa remeter agraves inclinaccedilotildees Haacute
16ldquoThe sole end of logic is to explain the principies and operation of our reasoning faculty and the nature
of our ideas morals and criticism regard our tastes and sentiments and politics consider men as united in society and dependent on each otherrdquo
39
vaacuterias maneiras de agir em relaccedilatildeo ao dever mas a accedilatildeo puramente moral eacute aquela
praticada apenas por dever sem interesse (cf KANT 1999) Isto significa que a accedilatildeo
puramente moral eacute aquela que se orienta exclusivamente pela razatildeo ou seja a
moralidade natildeo pode se apoiar nem nos desejos nem em algo que se apresente como
uma heteronomia por exemplo a religiatildeo
A descriccedilatildeo da tentativa de fundamentaccedilatildeo por parte de Kierkegaard seguiraacute a
indicaccedilatildeo que MacIntyre realiza em Depois da Virtude (cf MACINTYRE 2001b p 73)
A obra de Kierkegaard que serve de apoio agrave exposiccedilatildeo eacute Ou Ou Segundo MacIntyre
Kierkegaard apresenta dois modos de vida o esteacutetico e o eacutetico O primeiro tem como
paradigma o amante romacircntico que estaacute imerso na proacutepria paixatildeo e simboliza uma
face do eu que eacute capaz de se entregar agrave imediaticidade da experiecircncia presente (cf
MACINTYRE 2001b p 80) jaacute o estado eacutetico eacute simbolizado pelo modelo do casamento
e alude agrave situaccedilatildeo do compromisso e da obrigaccedilatildeo eternos na qual o presente estaacute
preso ao passado e ao futuro (cf MACINTYRE 2001b) Segundo Teofilo Urdanoz os
estados da existecircncia em Kierkegaard ou etapas no caminho de uma vida ldquosatildeo as
determinantes existenciais os modos de vida gerais que servem como esquema ou
princiacutepios antagocircnicos com os quais o indiviacuteduo concreto enfrenta na busca de uma
posse de si proacutepriordquo (URDANOZ 1975 vol V p 453)
Segundo MacIntyre esses modos de vida estatildeo fundamentados em conceitos
diferentes e ateacute mesmo rivais a escolha de um eacute a negaccedilatildeo do outro A questatildeo
fundamental na reflexatildeo que MacIntyre sugere a partir da leitura de Ou Ou eacute a de
que os princiacutepios que conduzem agrave adoccedilatildeo de algum dos modelos eacute totalmente
independente de motivos satildeo opccedilotildees feitas a partir de razatildeo nenhuma Esta opccedilatildeo
se refere apenas agrave escolha do que seja uma razatildeo para um determinado sujeito
Uma siacutentese das supracitadas teses pode ser realizado pela seguinte citaccedilatildeo
de MacIntyre
Assim como Hume procura fundamentar a moralidade nas paixotildees porque seus argumentos excluiacuteram a possibilidade de fundamentaacute-los nas paixotildees Kant fundamenta na razatildeo porque seus argumentos excluiacuteram a possibilidade de fundamentaacute-los nas paixotildees e Kierkegaard a fundamenta na escolha fundamental sem criteacuterios devido ao que acredita ser a natureza inapelaacutevel das ponderaccedilotildees que excluem tanto a razatildeo quanto as paixotildees (MACINTYRE 2001b p 95)
A siacutentese de MacIntyre de certo modo deixa clara a multiplicidade de apoios
para a sustentaccedilatildeo de discurso moral O pensamento moral moderno se mostra
40
marcado pela carecircncia de um ponto de apoio para a moralidade conforme conclui
MacIntyre A multiplicidade de pontos de apoio sinaliza a dificuldade em definir um
deles e o consequente desacordo Assim como na alegoria inicial de Depois da
Virtude em que aqueles que achavam que faziam ciecircncia apenas por repeticcedilatildeo dos
fragmentos de teoria e natildeo tinham ciecircncia de que natildeo estavam fazendo ciecircncia
alguma tambeacutem natildeo houve por parte dos modernos uma inconsciecircncia desse
desacordo
A ideia baacutesica de MacIntyre eacute a de que em relaccedilatildeo aos antigos e medievais
existe na modernidade uma perda da unidade fundamental no discurso moral Esta
perda da unidade eacute evidenciada pela multiplicidade de fundamentos Como jaacute natildeo
existe uma unidade do discurso moral tem-se na modernidade uma progressiva
passagem de uma Moral das Virtudes para uma moral que sobre valoriza a norma
uma deontologia A questatildeo que vai preocupar os filoacutesofos modernos no campo da
moralidade eacute o que fundamenta a norma E a pergunta em torno do fundamento da
norma tornar-se-aacute uma das questotildees mais relevantes da Eacutetica Moderna
33 O FRACASSO DO PROJETO ILUMINISTA
A questatildeo do fracasso do projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade
natildeo se deu exclusivamente em virtude da diversidade de opiniotildees sobre qual seria
afinal o fundamento primeiro da moralidade se nas paixotildees na razatildeo ou na escolha
A opiniatildeo de MacIntyre eacute que os modernos representados aqui por Hume Kant e
Kierkegaard foram herdeiros de um esquema especiacutefico e particular de crenccedilas
morais e foi este mesmo esquema que com uma incoerecircncia interna conduziu ao
fracasso do projeto filosoacutefico em comum desde o iniacutecio (cf MACINTYRE 2001b p 97)
Em consonacircncia com a tese do MacIntyre cabe explicitar em que consiste esta
incoerecircncia que conduziu ao fracasso do projeto iluminista de justificaccedilatildeo da
moralidade Essa eacute a tarefa desta segunda parte deste capiacutetulo
41
331 O passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana
O meacutetodo seguido por MacIntyre parte da anaacutelise das crenccedilas comuns dos
pensadores que contribuiacuteram para a construccedilatildeo do projeto iluminista de justificaccedilatildeo
da moralidade Ele exemplifica que ldquoo casamento e a famiacutelia satildeo no fundo tatildeo
incontroversos para o philosophe racionalista de Diderot quanto para o juiz Guilherme
de Kierkegaard o cumprimento de promessas e a justiccedila satildeo tatildeo inviolaacuteveis para
Hume quanto para Kantrdquo (MACINTYRE 2001b p 98) Ao final MacIntyre indaga sobre
de onde provecircm essas convicccedilotildees em comum mesmo vindas de pensadores que
defenderam teses distintas Duas caracteriacutesticas relevantes satildeo compartilhadas por
estes pensadores a saber o passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana
O segundo ponto de convergecircncia que eacute a crenccedila da existecircncia de uma
natureza humana universal seria ponto de apoio agrave construccedilatildeo de uma filosofia moral
A posiccedilatildeo comum eacute que as normas da moralidade se justificariam na natureza
humana isto eacute elas seriam explicadas e justificadas como desenvolvimento
necessaacuterio do que essa tal natureza humana aceitaria No exemplo de Hume e
Diderot o que haacute de peculiar na natureza humana satildeo as caracteriacutesticas das paixotildees
para Kant a caracteriacutestica importante da subjetividade eacute o caraacuteter universal e
categoacuterico de certas normas acessiacuteveis agrave razatildeo17 no caso de Kierkegaard embora
ela natildeo pretenda estritamente justificar a moralidade sua argumentaccedilatildeo segue a
mesma estrutura das anteriores enquanto Hume e Kant apelam para as
caracteriacutesticas das paixotildees e da razatildeo respectivamente Kierkegaard apela para a
escolha como caracteriacutestica fundamental da natureza humana MacIntyre finaliza
esclarecendo que ldquotodos esses escritores tecircm em comum o projeto de construir
argumentos vaacutelidos que passem das premissas relativas agrave natureza humana
conforme a entendem agraves conclusotildees sobre a autoridade das normas e dos preceitos
moraisrdquo (MACINTYRE 2001b p 99 )18
Haacute um questionamento que merece ser aqui considerado A argumentaccedilatildeo de
MacIntyre vinha sendo desenvolvida defendendo a tese de um desacordo no discurso
17A questatildeo sobre a noccedilatildeo de natureza humana em Kant natildeo eacute tatildeo simples de ser resolvida MacIntyre
acredita que em Kant a natureza humana se refere ao aspecto fisioloacutegico do homem e este aspecto por sua vez eacute distinto da racionalidade do sujeito Corrobora com a opiniatildeo de MacIntyre Otfried Houmlffe Segundo ele ldquode modo geral a razatildeo significa a faculdade de ultrapassar o acircmbito dos sentidos da natureza A ultrapassagem dos sentidos pelo conhecimento eacute o uso teoacuterico na accedilatildeo eacute o uso praacutetico da razatildeo Cf HOumlFFE 2005 p 188
18 O texto que a seguir acompanha passo a passo a argumentaccedilatildeo de MacIntyre
42
moral proveniente dos distintos pontos de apoio que cada pensador havia tomado A
pergunta eacute por que se falar em pontos de convergecircncia se o argumento principal do
autor se referia ao desacordo Para responder a questatildeo eacute necessaacuterio voltar a
alegoria inicial de Depois da Virtude Na alegria as pessoas se apropriavam de
pedaccedilos de teorias foacutermulas cientiacuteficas que no entanto natildeo possuiacuteam sentido algum
Em nada os ajuda uma vez que os fragmentos das teorias natildeo estavam inseridos em
seus contextos originais haviam perdido sua rede de significados No exemplo dos
exemplares filosoacuteficos apresentados por MacIntyre acontece a mesma coisa Eles
tecircm em comum a noccedilatildeo de natureza humana entretanto esta noccedilatildeo pertence a outro
esquema moral Desse modo MacIntyre conclui que a noccedilatildeo de natureza humana
sem sua rede de significados original natildeo pode ajudar na construccedilatildeo de um discurso
moral A questatildeo sobre a noccedilatildeo de natureza humana e sua relaccedilatildeo com as normas e
preceitos seraacute melhor desenvolvida a seguir
332 A incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a noccedilatildeo
de natureza humana na moral moderna
O cerne do processo que causou o fracasso do projeto iluminista estaacute ligado
segundo MacIntyre agrave incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a
noccedilatildeo de natureza humana A tarefa do pensador consiste agora em contar a histoacuteria
desses dois conceitos mostrar como eles satildeo incompatiacuteveis e estabelecer uma
relaccedilatildeo entre esta incompatibilidade e o fracasso
MacIntyre expotildee que existe uma forma geral do esquema moral que foi
ancestral dos conceitos em questatildeo Este esquema moral foi predominante na Idade
Meacutedia desde o seacuteculo XII e era composto de elementos da moral aristoteacutelica e de
caracteriacutesticas cristatildes da moral tomista A estrutura baacutesica deste esquema eacute a que
Aristoacuteteles apresentou na Eacutetica a Nicocircmacos O esquema aristoteacutelico distingue ldquoo
homem como ele eacuterdquo e o ldquohomem como poderia ser se realizasse sua natureza
essencialrdquo A proacutepria tarefa da eacutetica estaacute aiacute delimitada ela eacute o saber que habilita o
homem a compreender como se daacute a passagem de um estado para outro Potecircncia e
Ato essecircncia do homem e telos satildeo conceitos pressupostos para compreender este
esquema Os preceitos que recomendam tais virtudes e vetam determinados viacutecios
43
satildeo aqueles que proporcionam a passagem da verdadeira natureza para alcanccedilar o
verdadeiro fim
Existe pois uma co-relaccedilatildeo necessaacuteria entre ldquonatureza humana como eacuterdquo
preceitos e ldquonatureza humana como pode ser se realizar seu telosrdquo Cada um desses
trecircs elementos necessita dos outros dois isto eacute ldquoos nossos desejos e emoccedilotildees devem
ser organizados e educados pelo uso de tais preceitos e pelo cultivo de haacutebitos de
accedilatildeo que a eacutetica prescreve a razatildeo nos instrui quanto ao nosso verdadeiro fim e
quanto a como atingi-lordquo (MACINTYRE 2001b p100) Estas noccedilotildees natildeo podem pois
ser adequadamente compreendidas senatildeo segundo esta relaccedilatildeo de
interdependecircncia Separadas elas perdem sua inteligibilidade
O pensamento medieval assume esse esquema com o diferencial de
acrescentar que os preceitos da eacutetica aleacutem de mandados teleoloacutegicos satildeo tambeacutem
expressotildees de uma lei divinamente decretada MacIntyre endossa que ldquoeacute preciso
retificar e ampliar a tabela das virtudes e viacutecios acrescentando-se o conceito de
pecado ao conceito aristoteacutelico de erro A lei de Deus exige um novo tipo de temor e
respeitordquo (MACINTYRE 2001b p100) Este mundo natildeo eacute mais o lugar da efetivaccedilatildeo
do fim do homem como era a polis grega no sentido que Aristoacuteteles pensou Grande
parte dos filoacutesofos medievais concordava que esse esquema tanto pertencia agrave
revelaccedilatildeo quanto podia ser sustentada racionalmente Com o advento do
protestantismo e do catolicismo jansenista este consenso eacute paulatinamente desfeito
dando lugar a um novo conceito de razatildeo
3321 O passado cristatildeo e o novo conceito de razatildeo
Uma ideia fundamental ao novo conceito de Razatildeo forjado no seio do
protestantismo e do catolicismo jansenista consiste na convicccedilatildeo de que a razatildeo natildeo
eacute capaz de compreender qual seja o verdadeiro fim do homem
O finito se aniquila na presenccedila do infinito e torna-se um puro nada Assim nosso espiacuterito em face de Deus assim nossa justiccedila em face da justiccedila divina Natildeo haacute uma desproporccedilatildeo tatildeo grande entre a nossa justiccedila e a de Deus como entre a unidade e o infinito (apud BRANDAtildeO 1961)
Essa atitude consiste num certo ceticismo em relaccedilatildeo agrave capacidade de a razatildeo
alcanccedilar a certeza de que a constituiccedilatildeo do homem comporta alguma finalidade
44
MacIntyre afirma que o pensamento moderno de tradiccedilatildeo protestante lecirc as escrituras
entendendo que o episoacutedio da queda do homem significou a marca de debilidade da
razatildeo humana sendo ela destituiacuteda do poder de compreensatildeo do fim do homem A
criacutetica dos empiristas ratifica essa compreensatildeo Atraveacutes do empirismo moderno
tambeacutem se pode vislumbrar o ponto de vista de que nos limites da natureza acessiacutevel
ao homem natildeo se pode garantir o conhecimento de nenhum telos isto eacute aquilo que
a razatildeo estabelece como telos eacute fruto apenas de um costume ou haacutebito um ato
psicoloacutegico sem fundamento na experiecircncia Conforme Hume
O costume eacute pois o grande guia da vida humana Eacute o uacutenico princiacutepio que torna uacutetil nossa experiecircncia e nos faz esperar no futuro uma seacuterie de eventos semelhantes agravequeles que apareceram no passado Sem a influecircncia do costume ignorariacuteamos completamente toda questatildeo de fato que estaacute fora do alcance dos dados imediatos da memoacuteria e dos sentidos Nunca poderiacuteamos saber como ajustar os meios em funccedilatildeo dos fins nem como empregar nossas faculdades naturais para a produccedilatildeo de um efeito (HUME 1999 seccedilatildeo V p 63)
A partir da afirmaccedilatildeo de Hume pode-se afirmar que natildeo estaacute no domiacutenio da
razatildeo humana o conhecimento de nenhum telos Como desenrolar das ideias de
Hume compreende-se que uma possiacutevel idealizaccedilatildeo de um fim para a vida humana
seria apenas um estabelecimento habitual daquilo que se crecirc como fim O resultado
destas ideias eacute conforme MacIntyre uma rejeiccedilatildeo a qualquer noccedilatildeo teleoloacutegica da
natureza humana e a qualquer ideia do homem como ser que possui uma essecircncia
que defina seu verdadeiro fim ldquosegundo essas novas teologias protestantes e a
catoacutelico jansenista a razatildeo natildeo fornece nenhuma compreensatildeo genuiacutena do verdadeiro
fim do homemrdquo (MACINTYRE 2001b p 101) Assim sendo o ambiente social e cultural
dos modernos jaacute natildeo comporta a noccedilatildeo de Telos no plano moral
Mais uma vez mostra-se aqui a fragmentaccedilatildeo dos elementos fundamentais do
discurso moral anterior a modernidade Os pensadores em questatildeo conforme foi
apresentado assumiram a noccedilatildeo de natureza humana prescindindo poreacutem da
noccedilatildeo de Telos Eacute neste sentido que MacIntyre entende a fragmentaccedilatildeo que
provocaraacute o ulterior desacordo moral
3322 A ciecircncia e a filosofia do seacuteculo XVII
ldquoCiecircncia e poder do homem coincidem uma vez que sendo a causa ignorada
frustra-se o efeitordquo (BACON 1999 p 33 sect III) As palavras de Bacon ao iniciar o Novum
45
Organum traduzem bem o abandono que a modernidade procedeu em relaccedilatildeo agrave
terminologia da escolaacutestica e do aristotelismo em relaccedilatildeo agrave ciecircncia O homem que
natildeo conhece a causa natildeo pode ter pretensotildees de determinar efeitos O pensamento
sozinho natildeo eacute capaz de determinar os fins ou o telos mesmo partindo da observaccedilatildeo
das coisas A ciecircncia experimental fundamentada em Bacon afasta-se do aparato
conceitual da metafiacutesica claacutessica natildeo se fala mais sobre essecircncias e
consequentemente sobre efeitos Efeito eacute aqui compreendido como resultado das
possibilidades contidas na essecircncia de uma coisa Neste sentido determinar um efeito
eacute anaacutelogo a determinar um fim Conforme MacIntyre
A razatildeo natildeo compreende essecircncias ou transiccedilotildees da potecircncia ao ato esses conceitos pertencem ao desprezado esquema conceitual da escolaacutestica Aleacutem disso a ciecircncia anti-aristoteacutelica impotildee limites riacutegidos aos poderes da razatildeo A razatildeo eacute calculadora sabe avaliar verdades de fato e relaccedilotildees matemaacuteticas poreacutem nada mais No campo da praacutetica portanto soacute sabe falar de meios Precisa calar-se no tocante aos fins (MACINTYRE 2001b p 102)
MacIntyre completa afirmando que em relaccedilatildeo agraves teologias catoacutelica e
protestante em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave proacutepria Filosofia haacute um progressivo abandono
da crenccedila de que a razatildeo eacute capaz de determinar alguma finalidade
Kant por exemplo natildeo estabelece finalidade para o homem porque para ele
qualquer finalidade diferente do homem em si mesmo representa uma heteronomia
E por conseguinte natildeo serve como fundamento de um discurso aprioriacutestico pois a
felicidade eacute extriacutenseca e algo que traz consigo elementos sensiacuteveis Nos esquemas
claacutessicos de fundamentaccedilatildeo da moralidade a felicidade eacute o fim a que naturalmente
todo homem tende e eacute a partir dela que seratildeo definidos os caminhos pelos quais o
homem deve percorrer para alcanccedilaacute-la Assim sendo a perspectiva kantiana
representa o que tradicionalmente se define como uma moral deontoloacutegica porque
na impossibilidade de um discurso que inclua a felicidade soacute se pode falar em dever
3323 A incoerecircncia entre o posicionamento pela lsquofalecircnciarsquo da razatildeo e a decisatildeo
pela noccedilatildeo de natureza humana
MacIntyre tem consciecircncia de que haacute uma profunda incoerecircncia nas tentativas
de os modernos constituiacuterem uma filosofia moral fundamentados na noccedilatildeo de
natureza humana Para ele essa noccedilatildeo soacute podia ser adequadamente compreendida
46
e utilizada se inserida no esquema de uma moralidade teleoloacutegica Qual a utilidade
pois da noccedilatildeo de natureza humana para uma fundamentaccedilatildeo da moral se os
modernos haviam rejeitado agrave razatildeo a possibilidade de definir o fim do homem E mais
ainda de que serve a noccedilatildeo de natureza humana se a razatildeo natildeo consegue
compreender as possibilidades desta natureza MacIntyre vecirc neste posicionamento
uma contradiccedilatildeo Esta contradiccedilatildeo levou MacIntyre a defender que o projeto moderno
de justificaccedilatildeo da moralidade jaacute nasceu fracassado pois se constituiu a partir de um
esquema ldquoestilhaccediladordquo
Herdaram fragmentos incoerentes de um esquema de pensamentos e accedilotildees que um dia foi coerente e jaacute que natildeo reconheceram sua proacutepria situaccedilatildeo histoacuterica e cultural natildeo podiam reconhecer o caraacuteter impossiacutevel e quixotesco da tarefa que se auto-atribuiacuteram (MACINTYRE 2001b p 104 )19
A noccedilatildeo de natureza humana possuiacutea adequado na Eacutetica Teleoloacutegica Nela os
preceitos morais se ligam ao esquema teleoloacutegico geral de modo que no conjunto do
esquema eles satildeo necessaacuterios poreacutem secundaacuterios Jaacute num esquema de
justificaccedilatildeo que natildeo reconhece aos preceitos a funccedilatildeo de aprimoramento do homem
a fim de que ele passe de uma natureza humana dada para uma natureza humana
vislumbrada como telos isto eacute o homem como pode ser se realizar sua finalidade
soacute pode sobrevalorizar os preceitos seraacute pois uma moral deontoloacutegica No primeiro
tipo de moralidade os preceitos valem como condutores do homem agrave vida feliz Na
uacuteltima os preceitos valem em si mesmos traduzem as accedilotildees conforme e por dever
MacIntyre acrescenta agrave sua consideraccedilatildeo sobre o fracasso do projeto moderno
um argumento referente agrave funcionalidade dos conceitos particularmente ao conceito
de homem Para ele os argumentos morais da tradiccedilatildeo aristoteacutelica claacutessica e
medieval envolvem pelo menos um conceito funcional central que eacute o de homem
enquanto ser que tem uma natureza essencial e uma finalidade ou funccedilatildeo essencial
Assim sendo quando se fala em homem natildeo se pode perder as referecircncias de que o
conceito natildeo estaacute separado das funccedilotildees que o homem realiza como membro de uma
famiacutelia como cidadatildeo soldado filoacutesofo servo de Deus A funccedilatildeo se relaciona com o
fim para o qual algo eacute feito MacIntyre conclui que homem se tornaraacute apenas um
conceito loacutegico a partir do momento em que passa a ser compreendido como
19Esta passagem remete claramente agrave metaacutefora inicial de Depois da Virtude no capiacutetulo Uma ideia
inquietante
47
indiviacuteduo antes e fora de todos os papeacuteis o que impossibilita a retirada de conclusotildees
valorativas e normativas a partir de premissas factuais Para o autor isto se deve agrave
falta de conexatildeo entre os preceitos morais e a noccedilatildeo de natureza humana aprimorada
O ponto de partida de Aristoacuteteles eacute relacionar homem e viver bem de modo que o
segundo estaacute implicado na razatildeo do primeiro
Na modernidade a tese de que natildeo satildeo vaacutelidos os argumentos que partem de
juiacutezos de fato para juiacutezos de valor isto eacute de um lsquoeacutersquo para um lsquodeversquo refere-se agrave perda
da compreensatildeo primordial que o conceito de homem tinha antes de ser arrancado
de sua rede de significados conforme exposto no paraacutegrafo anterior MacIntyre
conclui que esse posicionamento ganha forccedila em virtude da compreensatildeo insuficiente
e parcial que os modernos tinham do conceito de homem Ele denominou como ldquofalta
de consciecircncia histoacutericardquo que eacute comum desde a modernidade ateacute os tempos atuais
3324 Sobre a mudanccedila do significado dos juiacutezos morais
Dizer que algo eacute bom na Tradiccedilatildeo Aristoteacutelica significa dizer que este algo
realiza todas as funccedilotildees para as quais se destina ou seja realiza perfeitamente sua
finalidade ou funccedilatildeo especiacutefica Para MacIntyre dizer que algo eacute bom natildeo eacute apenas
expressatildeo de um juiacutezo de valor simplesmente emotivista mas significa a partir da
compreensatildeo de funccedilatildeo e de realizaccedilatildeo desta um juiacutezo de fato ldquoDizer que algo eacute
bom portanto tambeacutem eacute fazer uma declaraccedilatildeo factual Dizer que determinado ato eacute
justo ou certo eacute dizer que ele eacute o que um homem bom faria em tal situaccedilatildeo por
conseguinte esse tipo de declaraccedilatildeo tambeacutem eacute factualrdquo (MACINTYRE 2001b p 111)
Assim a partir desta tradiccedilatildeo pode-se falar em juiacutezos morais verdadeiros ou falsos
A questatildeo dos juiacutezos de valor a partir de juiacutezos de fato e sua impossibilidade
de se constituir deste modo tornou-se implausiacutevel quando na modernidade
lsquodesaparece da moralidade a ideia de funccedilotildees ou finalidades humanas essenciaisrsquo
Consequentemente abre-se um espaccedilo para a pertinecircncia das teses em torno da
invalidade de argumentos morais que partem de um lsquoeacutersquo para um lsquodeversquo Aleacutem disso
acrescenta Macintyre a laicizaccedilatildeo da moralidade operada pelo iluminismo pocircs em
questatildeo a veracidade dos juiacutezos morais como expressotildees da voluntas divinitatis
Mesmo em Kant que pensa os juiacutezos morais como expressatildeo de uma lei universal
48
natildeo haacute possibilidade de questionar os juiacutezos em termos de verdade ou falsidade eles
satildeo categoacutericos
As teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade segundo MacIntyre
proporcionaram um desacordo moral
Esta desordem proveacutem do proacuteprio poder cultural predominante de um jargatildeo no qual os fragmentos conceituais incompatiacuteveis de vaacuterias partes do nosso passado satildeo aplicados juntos em debates puacuteblicos e privados que satildeo notaacuteveis pelo caraacuteter insoluacutevel das controveacutersias neles envolvidas e pela clara arbitrariedade de cada participante do debate (MACINTYRE 2001b p 429)
Assim as reflexotildees operadas pelo autor conduzem a algumas proposiccedilotildees A
primeira delas eacute que o desacordo dos modernos sobre o lsquoalicercersquo desde onde
fundamentar a moral proporcionou um desacordo contemporacircneo e uma
fragmentaccedilatildeo do discurso sobre as accedilotildees Esta situaccedilatildeo original foi proporcionada por
um lsquoesquecimento histoacutericorsquo e pela histoacuteria social que formaram o ambiente filosoacutefico
de onde brotaram as principais teses de justificaccedilatildeo da moralidade O fracasso do
projeto deveu-se em grande parte a incompatibilidade entre a noccedilatildeo de natureza
humana e a de preceitos Acrescente-se a isto a nova compreensatildeo de racionalidade
e a perda do sentido de funcionalidade dos conceitos
Cumpre agora desenvolver o empreendimento de apresentar a teoria
macintyreana da moral O intuito de MacIntyre eacute oferecer atraveacutes de sua teoria um
pensamento eacutetico que devolva a inteligibilidade ao discurso moral a partir do conceito
de virtude enriquecido pelas noccedilotildees de Praacuteticas Unidade narrativa de uma vida
humana individual e o conceito de tradiccedilatildeo
49
4 O PROJETO DE DEPOIS DA VIRTUDE E A TEORIA MORAL DE MACINTYRE
A exposiccedilatildeo dos elementos fundamentos que orientam o estabelecimento da
Eacutetica das Virtudes mostrou-se necessaacuteria agrave compreensatildeo do cenaacuterio que compotildee a
Filosofia Moral Contemporacircnea Aleacutem disso pode-se ver a orientaccedilatildeo filosoacutefica que
marcou o pensamento de MacIntyre isto eacute os limites dos fundamentos que forjaram
a moral contemporacircnea e o modo como a Eacutetica das Virtudes se apresenta como uma
alternativa viaacutevel de inteligibilidade das accedilotildees
A obra Depois da Virtude foi publicada em 1981 e passou a fazer parte da
terceira via da filosofia moral de liacutengua inglesa Autores como Gertrude Anscombe
conforme apresentado no Cap I deste trabalho proporcionaram ao pensamento
contemporacircneo um renascimento ou recolocaccedilatildeo do pensamento moral de
Aristoacuteteles A proposta da obra de MacIntyre se alinha ao movimento de afirmaccedilatildeo do
pensamento aristoteacutelico como uma opccedilatildeo viaacutevel agrave moralidade contemporacircnea
A criacutetica de MacIntyre agraves teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade e
o modo como o pensamento contemporacircneo eacute herdeiro da incoerecircncia e do
lsquoesquecimentorsquo deste momento da filosofia moral se constituiu como preparaccedilatildeo agrave
apresentaccedilatildeo de sua proposta moral agrave filosofia moral contemporacircnea Aleacutem da ampla
criacutetica aos males percebidos da modernidade MacIntyre apresenta sugestotildees que
aleacutem de reforccedilarem a reabilitaccedilatildeo de uma Moral das Virtudes mostram como alguns
dos males podem ser corrigidos Esses dois elementos se constituem pois na tarefa
desta seccedilatildeo do trabalho
41 O ANTES DE DEPOIS DA VIRTUDE
Antes da publicaccedilatildeo de Depois da Virtude jaacute eacute possiacutevel encontrar em
MacIntyre sinais dos fundamentos que hatildeo de orientar seus principais
posicionamentos O texto Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica de 1966 apresenta sinais
do movimento de criacutetica agrave Filosofia Moral Moderna Naturalmente a partir do ano de
publicaccedilatildeo desta obra vecirc-se que ela eacute imediatamente posterior ao Modern Moral
Philosophy de Gertrude de 1958 cujas teses fundamentais jaacute foram expostas no
primeiro capiacutetulo deste trabalho
50
Algumas das teses presentes em Depois da Virtude jaacute encontram sua forma
embrionaacuteria em Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica a saber o anseio de refutar a tese
de que natildeo se podem retirar proposiccedilotildees normativas de proposiccedilotildees factuais isto eacute
o dever ser do ser uma desarticulaccedilatildeo no discurso moral a crenccedila de que os
conceitos morais natildeo deveriam ser formulados na crenccedila de sua intemporalidade
desarticulados das sociedades que os proporcionaram e o potencial lsquodestrutivorsquo do
emotivismo
411 Vida social e conceitos morais
O primeiro capiacutetulo intitulado A importacircncia filosoacutefica da histoacuteria da eacutetica
chama a atenccedilatildeo para o costume recorrente de dar uma importacircncia secundaacuteria agrave
histoacuteria da eacutetica Esta pouca importacircncia ao tema decorre de uma crenccedila comum de
que o aparato conceitual da eacutetica pode ser compreendido prescindindo de sua
histoacuteria Contudo agrave medida que a vida social muda mudam tambeacutem os conceitos Os
conceitos morais segundo MacIntyre ganham sua inteligibilidade quando as regras
que governam o seu uso satildeo apreendidas Sua apreensatildeo se daacute a partir das distintas
formas de vida social e estas proporcionam os diferentes papeis para que sejam
representados por estes conceitos
Os conceitos morais na realidade mudam agrave medida que muda a vida social Deliberadamente natildeo digo lsquoporque muda a vida socialrsquo jaacute que isto poderia sugerir que a vida social eacute uma coisa e a moralidade eacute outra e que existe meramente uma relaccedilatildeo de causa externa e contingente entre elas Evidentemente que isto eacute falso Os conceitos morais satildeo encarnados em (e satildeo parcialmente constituiacutedos de) nas
formas de vida social (MACINTYRE 1988 p 11)20
MacIntyre percebe que a partir dos conceitos morais eacute possiacutevel compreender
as diferentes manifestaccedilotildees da vida social Seu entendimento eacute o de que os conceitos
morais estatildeo situados natildeo satildeo atemporais Vida social e conceitos morais natildeo podem
ser pensados separadamente John Horton e Susan Mendus em seu artigo Alasdair
MacIntyre After Virtue and After acrescentam que
20ldquoIn fact of course moral concepts change as social life changes I deliberately do not write ldquobecause
social life changesrdquo for this might suggest that social life is one thing morality another and that there is merely an external contingent causal relationship between them This is obviously false Moral concepts are embodied in and are partially constitutive of forms of social liferdquo Cf tambeacutem MACINTYRE 2005 p 01
51
entre as grandes contribuiccedilotildees de Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica MacIntyre rejeitou explicitamente a crenccedila comum nos ciacuterculos filosoacuteficos da eacutepoca que os conceitos morais seriam uma intemporal limitada imutaacutevel determinada espeacutecie de conceitos que poderiam ser analisados e compreendidos aleacutem da sua histoacuteria (HORTON MENDUS 1994 p 2)21
Os conceitos morais soacute seratildeo adequadamente compreendidos se forem
estudados historicamente e contextualmente uma vez que satildeo incorporados como
partes constitutivas da vida social A importacircncia da histoacuteria e do contexto social para
a filosofia moral seraacute uma temaacutetica recorrente em toda a obra de MacIntyre
412 Fundamentaccedilatildeo das proposiccedilotildees normativas
O texto de Gertrude Anscombe jaacute traz uma referecircncia agrave criacutetica de Hume que
aponta a problemaacutetica de se retirarem proposiccedilotildees normativas do tipo deve a partir
de proposiccedilotildees factuais do tipo eacute ou seja a ideia eacute que o deve ser natildeo pode estar
fundamentado no ser Os autores desta tese natildeo vecircem como se construir uma eacutetica
de uma ontologia
As proposiccedilotildees deste tipo refletem em torno do significado das proposiccedilotildees
morais Na filosofia anglosaxocircnica a tentativa de formular proposiccedilotildees deontoloacutegicas
de proposiccedilotildees factuais ficou intitulada como falaacutecia naturalista MacIntyre aponta que
esta qualificaccedilatildeo foi dada pelos escritos de George Moore (cf MACINTYRE 2001b p
243) Em seu Principia Ethica George Moore explica o sentido do que ele chama de
falaacutecia naturalista Esta se refere agrave tentativa de identificar o bem ou bom como se
fosse o nome de uma de uma coisa natural O problema estaacute no fato de que quem
afirma que bom eacute uma propriedade simples e natildeo analisaacutevel tem diante de si o
incocircmodo de encontrar expressotildees que aplicam o termo bom sob acepccedilotildees muito
distintas como por exemplo este eacute um bom amigo ou este eacute um bom reloacutegio Com
efeito apenas o predicado bom da primeira sentenccedila eacute o que traz algum significado
moral
A questatildeo em torno do bom se relaciona agrave necessidade de compreender o
modo como o bem e as accedilotildees se relacionam Encontrar a conexatildeo entre um e outro
21ldquoMacIntyre explicity rejected the belief common in philosophical circles at the time that lsquomoral
concepts were timeless limited unchanging determinate species of concept (that) can be examined and understood apart from their historyrdquo
52
seria uma abertura para responder agraves duas perguntas dos Principia Ethica a saber
que tipo de coisas deve existir em virtude de si mesmas Que tipo de accedilotildees devemos
realizar (cf MOORE 2005 p 17) Isto de certo modo justificaria a relaccedilatildeo entre bem
e dever Mas como justificar esta relaccedilatildeo diante do caraacuteter enigmaacutetico da noccedilatildeo de
bem MacIntyre citando George Moore questiona
O bom entatildeo eacute um nome de uma propriedade simples e natildeo analisaacutevel Haacute pelo menos duas objeccedilotildees decisivas contra a doutrina que responde afirmativamente A primeira eacute que soacute podemos empregar inteligivelmente o nome de uma propriedade simples quando conhecemos um modelo exemplar dele por referecircncia ao qual podemos dar-nos conta se estaacute presente ou ausente em outros casos (MACINTYRE 2005 p 161 )22
O caraacuteter enigmaacutetico da noccedilatildeo bem assinalado por George Moore o faz propor
que para aplicaccedilatildeo da noccedilatildeo de bem ou o que eacute intrinsecamente bom o agente
simplesmente o reconhece O resumo da questatildeo eacute que natildeo eacute possiacutevel se ter o bem
como uma propriedade simples aplicaacutevel e que sirva de criteacuterio para verificar sua
presenccedila ou ausecircncia e em que medida esta noccedilatildeo foi aplicada Assim quando o
indiviacuteduo agente ele natildeo se faz uma relaccedilatildeo direta entre bem e dever simplesmente
age segundo seus proacuteprios sentimentos Esta afirmaccedilatildeo abre espaccedilo ao emotivismo
que se torna objeto de criacutetica em Depois da Virtude
413 O emotivismo
O MacIntyre de Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica ainda natildeo faz associaccedilatildeo entre
o emotivismo e o desacordo moral Segundo ele o emotivismo teria seu germe nas
reaccedilotildees contra o pensamento de George Moore Ora se natildeo eacute possiacutevel definir o bem
como uma propriedade simples legiacutetima as accedilotildees satildeo entatildeo expressotildees dos
proacuteprios sentimentos dos agentes Contudo aqui aparece um problema do qual o
proacuteprio George Moore vai ser o primeiro a apontar pois ldquoos juiacutezos morais natildeo podem
ser simples informaccedilotildees sobre os nossos sentimentos porque neste caso dois
homens que expressam juiacutezos aparentemente contraditoacuterios sobre uma questatildeo
moral natildeo estariam de fato em desacordordquo (MACINTYRE 1988 p247)
22ldquoIs good then the name of a simple unanalyzable property To the doctrine that it is there are at
least two conclusive objections The first is that we can only use the name of a simple property by reference to which we are acquainted with some standard example of the property by reference to which we are to recognize whether it is present or absent in other casesrdquo
53
Entre os representantes do emotivismo encontra-se Charles Leslie Stevenson
Sua obra O Significado Emotivo dos Termos Eacuteticos defende a ideia de que a funccedilatildeo
primaacuteria das expressotildees morais eacute dar uma nova direccedilatildeo agraves atitudes dos outros com o
objetivo de provocar a adesatildeo o que seria segundo Stevenson uma funccedilatildeo dinacircmica
dessas expressotildees As expressotildees morais possuem esta funccedilatildeo dinacircmica porque
satildeo emotivas O seu significado corresponde agrave tendecircncia desta palavra construiacuteda
atraveacutes da histoacuteria de seu modo de uso a produzir respostas afetivas nas pessoas (cf
MACINTYRE 1988 p 248)
Em relaccedilatildeo ao significado dos termos morais Charles Stevenson propotildee dois
modelos nos quais ambos enfatizam o caraacuteter emotivo desses termos No primeiro
modelo o autor defende que proposiccedilotildees do tipo isto eacute bom satildeo equivalentes a Eu
gosto disto entatildeo faz o mesmo Jaacute o segundo modelo se ocupa de expressotildees que
encarnam o que Stevenson denomina de expressotildees persuasivas que possuem um
significado descritivo e associam a este um significado emotivo Assim sendo duas
pessoas podem associar agrave noccedilatildeo de Justiccedila diferentes significados descritivos em
virtude do elemento emotivo presente na experiecircncia individual com esta palavra
Alguns desdobramentos da tese de Charles Stevenson podem ser expressos
aqui o primeiro eacute que termos valorativos natildeo podem receber descriccedilatildeo completa pela
multiplicidade de significados Assim os fatos se apresentam como separados dos
valores em seguida o caraacuteter emotivo das expressotildees morais impossibilita de
construir uma teoria na qual os diversos agentes se sintam implicados porque
quaisquer proposiccedilotildees satildeo vaacutelidas Neste sentido conclui MacIntyre a Filosofia nos
assuntos ligados agrave moral seria neutra como tambeacutem a proacutepria teoria de Stevenson
uma vez que se podem utilizar palavras emotivas para lsquoabenccediloarrsquo quaisquer accedilotildees (cf
MACINTYRE 1988 p 248)
Aqui se encontra a razatildeo do desacordo valorativo uma vez que ldquonatildeo haacute limite
para as possibilidades de desacordo e conforme delineado acima nem
procedimentos que possam resolvecirc-losrdquo (MACINTYRE 1988 p 249) As razotildees que se
podem mencionar para fundamentar um juiacutezo moral natildeo possuem nenhuma relaccedilatildeo
loacutegica com a conclusatildeo que se pode derivar dela Os juiacutezos satildeo por assim dizer
apenas apoios psicoloacutegicos No discurso moral os termos lsquoporquersquo e lsquoportantorsquo perdem
sua conveniecircncia
54
Embora MacIntyre jaacute na Pequena Historia da Eacutetica apresente argumentos
contra o emotivismo interessa apresentar aqui como o emotivismo quase quinze
anos antes de Depois da Virtude jaacute se constitui numa das preocupaccedilotildees mais
relevantes do autor
Nas obras anteriores a Depois da Virtude se apresentava um certo ceticismo
sobre alguns aspectos do pensamento moral moderno entretanto eacute soacute com Depois
da Virtude que MacIntyre revela um profundo desencantamento com a filosofia moral
moderna Este desencantamento eacute tatildeo marcante que chega ateacute a obscurecer a
proposta moral de MacIntyre e objetivo fundamental da obra que eacute a proposiccedilatildeo da
Eacutetica das Virtudes via pensamento Aristoteacutelico a fim de resgatar a inteligibilidade do
discurso moral ultrapassando assim uma moralidade emotivista
42 A OBRA DEPOIS DA VIRTUDE
A apresentaccedilatildeo da fragmentaccedilatildeo do discurso moral contemporacircneo com a
falecircncia do projeto moderno de sua justificaccedilatildeo e a tentativa de restauraccedilatildeo da
racionalidade do discurso moral constituem as duas tarefas de Depois da Virtude Em
relaccedilatildeo ao projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade MacIntyre defende que o
seu fracasso se deu em virtude de as tentativas de fundamentaccedilatildeo da moralidade
partirem de uma concepccedilatildeo de racionalidade independente da histoacuteria e contexto
social Aleacutem disso todas as teses apesar de tomarem por base uma certa noccedilatildeo de
natureza humana natildeo a articularam no esquema moral da qual esta noccedilatildeo fazia parte
A desordem do discurso moral que o mundo contemporacircneo experimenta eacute a
consequecircncia natildeo soacute da falecircncia do projeto moderno mas tambeacutem dos proacuteprios
caminhos que a modernidade trilhou Um aspecto problemaacutetico de Depois da Virtude
e que eacute objeto de criacuteticas das mais contundentes eacute que a teoria moral de MacIntyre
natildeo se apresenta com o mesmo vigor de sua criacutetica agrave modernidade O diagnoacutestico eacute
bom mas o remeacutedio natildeo parece tatildeo eficaz
A afirmaccedilatildeo proferida ilustra bem a grande dificuldade que o proacuteprio
pensamento contemporacircneo enfrenta Em geral os pensadores contemporacircneos
tomam a Tradiccedilatildeo com bastante propriedade isto eacute fazem um bom diagnoacutestico dos
principais problemas da Tradiccedilatildeo entretanto natildeo parecem assim tatildeo propositivos ou
suas soluccedilotildees natildeo se impotildee com a mesma forccedila de sua criacutetica
55
As criacuteticas ao projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade e os
encaminhamentos que proporcionaram a sua crise jaacute foram adequadamente
esclarecidos no Capiacutetulo II deste trabalho A proacutexima tarefa eacute justamente apresentar
a teoria de MacIntyre em Depois da Virtude e com isso resgatar a inteligibilidade do
discurso moral que se constitui como grande tarefa afirmativa desta obra de
MacIntyre
421 A natureza das virtudes tese central de Depois da Virtude
Os capiacutetulos XIV A natureza das virtudes e o XV As virtudes a unidade da
vida humana e o conceito de tradiccedilatildeo apresentam os elementos chave da tentativa de
MacIntyre em constituir uma teoria da moralidade No desenvolvimento de sua teoria
MacIntyre enfrenta a problemaacutetica das diferentes listas e concepccedilotildees de virtude Haacute
enorme diferenccedilas entre a concepccedilatildeo homeacuterica a aristoteacutelica e a neotestamentaacuteria
Eles nos oferecem listas diferentes e incompatiacuteveis das virtudes classificam em hierarquias diferentes e incompatiacuteveis Se incluiacutessemos autores ocidentais mais recentes a lista das diferenccedilas aumentaria ainda mais e se estendermos nossa pesquisa agrave cultura japonesa ou digamos ameriacutendia as diferenccedilas aumentariam ainda mais Seria faacutecil demais concluir que existem inuacutemeras concepccedilotildees rivais e alternativas das virtudes poreacutem mesmo dentro da tradiccedilatildeo que tracei natildeo existe uma concepccedilatildeo nuclear uacutenica (MACINTYRE 2007 p 181)23
Sem duacutevida haacute um nuacutemero surpreendente de diferenccedilas e incompatibilidades
entre as vaacuterias listas das vaacuterias tradiccedilotildees Somem-se a isso virtudes que eram
completamente desconhecidas como eacute o caso das virtudes da feacute esperanccedila e
caridade Elas eram completamente estranhas a Aristoacuteteles Contudo MacIntyre
percebe que mesmo havendo uma enorme diferenccedila entre a lista de virtudes do Novo
Testamento e de Aristoacuteteles elas possuem a mesma estrutura conceitual
Virtude eacute assim como para Aristoacuteteles uma qualidade cujo exerciacutecio leva agrave conquista do telos humano O bem para o homem eacute naturalmente um bem sobrenatural [no cristianismo]24 e natildeo soacute um
23ldquoThey offer us different and incompatible lists of the virtues they give a different rank order of
importance to different of the virtues and they have different and incompatible theory of the virtues If we extended our enquiry to Japanese say or American Indian cultures the differences would become greater still It would be all too easy to conclude that there are a number of rival and alternative conceptions of the virtues but even within the tradition which I have been delineating no single core conceptionrdquo
24Destaque nosso
56
bem natural pois o sobrenatural redime e completa a natureza (MACINTYRE 2007 p 184 )25
Uma segunda similaridade se daacute na relaccedilatildeo das virtudes como sendo um
meio para um fim que eacute a entrada do homem no Reino dos ceacuteus num futuro vindouro
Essa passagem se daacute na interioridade do homem assim como em Aristoacuteteles
MacIntyre salienta que este paralelismo entre o aristotelismo e o Novo Testamento eacute
realizado por Tomaacutes de Aquino e ldquouma caracteriacutestica fundamental desse paralelismo
eacute o modo como o conceito de vida boa para o homem antecede ao conceito de virtuderdquo
(MACINTYRE 2007 p 184) O autor ainda salienta que tanto em Aristoacuteteles quanto em
Tomaacutes o conceito de virtude eacute um conceito secundaacuterio
Haacute algo de cartesiano na atitude de MacIntyre ele potildee em duacutevida a
possibilidade de alcanccedilar um conceito central ou em suas palavras nuclear de
virtude o que possa proporcionar uma unidade conceitual agrave tradiccedilatildeo moral
fundamentada na Eacutetica das Virtudes Contudo foi analisando atentamente qual a
distinccedilatildeo entre as tradiccedilotildees e os diversos conceitos de virtudes que o autor visualizou
que o conceito de virtude era secundaacuterio O fato de ser secundaacuterio eacute um nuacutecleo
comum entre as tradiccedilotildees e isto o faz responder agrave pergunta o que pode tornar
inteligiacutevel o conceito de virtude
Eacute na resposta a esta pergunta que se torna claro o caraacuteter complexo histoacuterico e multifacetado do conceito central de virtude pois natildeo haacute menos de trecircs estaacutegios no desenvolvimento loacutegico do conceito que precisam ser identificados na ordem correta para que se possa entender o conceito principal de virtude e cada um desses estaacutegios tem seu proacuteprio contexto conceitual O primeiro estaacutegio requer uma explicaccedilatildeo contextualizadora do que chamei praacutetica o segundo uma explicaccedilatildeo do que jaacute caracterizei como ordem narrativa de uma vida humana singular e o terceiro uma explicaccedilatildeo muito mais completa do que a que elaborei ateacute agora do que constitui uma tradiccedilatildeo moral (MACINTYRE 2007 p 314-315 )26
Praacutetica Narrativa de uma Vida Humana Singular e Tradiccedilatildeo satildeo os elementos
da teoria moral macintyreana Esses estaacutegios obedecem a uma ordem temporal pois
25ldquoA virtue is as with Aristotle a quality the exercise of which leads to the achievement of the human
telos The good for man is of course a supernatural and not only a natural good bus supernature redeems and completes naturerdquo
26ldquoIt is in answering this question that the complex historical multi-layered character of the core concept of virtue becomes clear For there are no less than three stages in the logical development of the concept which have to be identified in order if the core conception virtue is to be understood and each of these stages has its own conceptual background The first stage requires a background account of what I have already characterized as the narrative order of a single human life and the third an account a good deal fuller than I have given up to now of what constitutes a moral traditionrdquo
57
o posterior pressupotildee o anterior mas natildeo o contraacuterio Assim como cada estaacutegio eacute
reinterpretado pelo posterior e oferece elementos essenciais agrave sua compreensatildeo
Deve-se pois passar a uma anaacutelise de cada um desses estaacutegios
422 O conceito de praacuteticas
Costumeiramente Aristoacuteteles fala da excelecircncia na atividade humana
referindo-se a algum tipo de praacutetica humana bem definida tocar flauta guerrear
pensar geometricamente Essas praacuteticas proporcionam a oportunidade de expressatildeo
das virtudes satildeo o campo onde elas se desenvolvem MacIntyre salienta que praacuteticas
natildeo tecircm o sentido usual nem tambeacutem satildeo a uacutenica base atraveacutes da qual as virtudes
satildeo exibidas Qual eacute pois o sentido de Praacutetica
Praacutetica eacute qualquer forma coerente e complexa de atividade humana cooperativa socialmente estabelecida por meio da qual os bens internos a essa forma de atividade satildeo realizados durante a tentativa de alcanccedilar os padrotildees de excelecircncia apropriados para tal forma de atividade e parcialmente dela definidores tendo como consequecircncia a ampliaccedilatildeo sistemaacutetica dos poderes humanos para alcanccedilar tal excelecircncia e dos conceitos humanos dos fins e dos bens envolvidos (MACINTYRE 2007 p 187)27
Parece natildeo haver escrito de eacutetica que natildeo traga exemplo Assim MacIntyre
apresenta o exemplo de uma crianccedila de sete anos que ele gostaria de ensinar xadrez
mas que ela natildeo estaacute imediatamente interessada no aprendizado do jogo Como toda
crianccedila gosta de doce ele o oferece a ela desde que ela jogue xadrez uma vez por
semana pois aiacute ela receberaacute 50 centavos em doces e se ela vencer vai receber mais
50 centavos em doces Desse modo a crianccedila estaacute motivada e joga para ganhar
Apenas os doces motivam proporcionam agrave crianccedila um bom motivo para jogar xadrez
Ela natildeo tem razatildeo para trapacear e estaacute cheia de motivos para trapacear contanto
que consiga fazecirc-lo com ecircxito Entretanto haveraacute um momento em que a crianccedila vai
encontrar nos bens especiacuteficos do xadrez na aquisiccedilatildeo de certa capacidade
especialiacutessima imaginaccedilatildeo estrateacutegica e intensidade competitiva Este seraacute um novo
conjunto de razotildees e razotildees agora existem natildeo apenas para vencer em determinada
27ldquoBy a lsquopraticersquo I am going to mean any coherent and complex form of socially established cooperative
human activity through which goods internal to that form form of activity are realized in the course of trying to achieve those standards of excellence which are appropriate to and partially definitive of that form of activity with the result that human powers to achieve excellence and human conceptions of the ends and goods involved are systematically extendedrdquo
58
ocasiatildeo mas para tentar destacar-se de todos os modos que o jogo de xadrez exigir
Caso a crianccedila trapaceie natildeo estaraacute derrotando o oponente mas a si mesma (cf
MACINTYRE 2007 p 188)
Os bens internos ligados a essa atividade satildeo realizados durante a tentativa
de alcanccedilar os padrotildees de excelecircncia apropriados a tal forma de atividade O sentido
de bem interno pode ser explicitado de duas maneiras haacute certa capacidade que
apenas o exerciacutecio dessa atividade pode proporcionar no caso do jogo de xadrez ou
de qualquer outro da mesma natureza eacute a capacidade especialiacutessima de jogaacute-lo a
outra maneira se refere ao fato de que esses bens soacute podem ser identificados e
reconhecidos pela experiecircncia em participar da atividade
Bens externos e internos ainda trazem outra caracteriacutestica relevante que
proporciona uma maior compreensatildeo e distinccedilatildeo Bens externos quando
conquistados satildeo sempre posse de algueacutem Aleacutem disso sua posse eacute limitada de
modo que eles natildeo estatildeo disponiacuteveis para todos sendo portanto objeto de disputa e
concorrecircncia Por outro lado bens internos embora sejam objeto de competiccedilatildeo sua
conquista se torna disponiacutevel a toda a comunidade envolvida na praacutetica Como pois
a noccedilatildeo de bens internos se relaciona com a noccedilatildeo de virtude A resposta a esta
questatildeo se apresenta na primeira definiccedilatildeo provisoacuteria de virtude que Macintyre
oferece ldquoa virtude eacute uma qualidade humana adquirida cuja posse e exerciacutecio costuma
nos capacitar a alcanccedilar aqueles bens internos agraves praacuteticas e cuja ausecircncia nos
impede para todos os efeitos de alcanccedilar tais bensrdquo (MACINTYRE 2007 p 191)28
A definiccedilatildeo provisoacuteria de virtude elucida sua funccedilatildeo na vida humana seu papel
eacute proporcionar ao ser humano o acesso aos bens internos agraves praacuteticas Sua ausecircncia
significa de certo modo a negaccedilatildeo do acesso a esses bens
Ao conceito macintyreano de praacuteticas sejam elas jogos artes ciecircncias
atitudes tambeacutem pertence o pressuposto de que os bens internos a essas praacuteticas soacute
podem ser adquiridos por meio da proacutepria subordinaccedilatildeo dentro da praacutetica no
relacionamento com outros praticantes Toda praacutetica neste caso requer certo tipo de
relacionamento entre os seus integrantes A funccedilatildeo das virtudes eacute apresentar-se como
uma referecircncia para definir o modo de relaccedilatildeo entre os integrantes da praacutetica Eacute
necessaacuteria a aceitaccedilatildeo dos componentes necessaacuterios que a praacutetica foi aos poucos
28ldquoA virtue is an acquired human quality the possession and exercise of which tends to enable us to
achieve those goods which are internal to practices and the lack of which effectively prevents us from achieving any such goodrdquo
59
estabelecendo como padratildeo interno de excelecircncia Diga-se isso principalmente da
justiccedila coragem e da sinceridade A natildeo aceitaccedilatildeo desses padrotildees eacute anaacuteloga a estar
disposto a trapacear assim como a crianccedila do exemplo acima Assim faz-se
necessaacuteria uma constante valorizaccedilatildeo das virtudes e de seu papel na aquisiccedilatildeo dos
bens internos
A relevacircncia da sinceridade da justiccedila e da coragem eacute realccedilada por MacIntyre
dado que essas virtudes definem o relacionamento entre os integrantes de uma
praacutetica
Acredito entatildeo que do ponto de vista desses tipos de relaccedilotildees sem os quais as praacuteticas natildeo se mantecircm a sinceridade a justiccedila e a coragem e talvez algumas outras satildeo excelecircncias genuiacutenas satildeo virtudes agrave luz das quais precisamos caracterizar a noacutes mesmos e aos outros seja qual for nossa perspectiva moral ou os coacutedigos especiacuteficos da nossa sociedade Esse reconhecimento de natildeo podermos escapar agrave definiccedilatildeo dos nossos relacionamentos segundo tais bens eacute perfeitamente compatiacutevel com o reconhecimento de que cada sociedade tem e tem tido coacutedigos diferentes de sinceridade justiccedila e coragem (MACINTYRE 2007 p 192)29
Embora os coacutedigos se apresentem como muito distintos eles apenas o satildeo
sob certos aspectos distintos das virtudes particularmente o que natildeo acontece
poreacutem eacute o florescimento das virtudes em comunidades que natildeo as valorizem As
virtudes satildeo fundamentais porque elas consolidam as praacuteticas e a aquisiccedilatildeo dos bens
relativos a elas
As praacuteticas no entanto natildeo devem ser confundidas com um conjunto de
capacidades teacutecnicas O que distingue o modo como os conceitos dos devidos bens
e fins aos quais as capacidades teacutecnicas servem eacute a aptidatildeo que uma capacidade
teacutecnica proporciona agrave transformaccedilatildeo e ao enriquecimento dos poderes humanos e da
consideraccedilatildeo por seus proacuteprios bens internos Estes por sua vez tambeacutem vatildeo definir
parcialmente cada praacutetica ou tipo de praacutetica
MacIntyre acrescenta que ldquoas praacuteticas nunca tecircm uma meta ou metas fixas
definitivamente ndash a pintura [por exemplo] natildeo tem tal meta nem a Fiacutesica ndash mas as
29ldquoI take it then that from the standpoint of those types of relationship without practices cannot be
sustained truthfulness justice and courage ndash and perhaps some others ndash are genuine excellences are virtues in the light of which we have to characterize ourselves and others whatever our private moral standpoint or our societyrsquos particular codes may be For this recognition that we cannot escape the definition of our relationshipsin terms of such goods is perfectly compatible with the acknowledgment that different societies have and have had different codes of truthfulness justice and couragerdquo
60
proacuteprias metas se transmutam ao longo da histoacuteriardquo (MACINTYRE 2007 p 193 )30 Eacute
pois em virtude da transmutaccedilatildeo das metas que as praacuteticas se modificam e
consequentemente cada praacutetica seraacute portadora de uma histoacuteria peculiar diferente da
histoacuteria do aprimoramento de uma determinada capacidade teacutecnica Esta eacute pois uma
dimensatildeo histoacuteria fundamental na relaccedilatildeo entre praacuteticas e virtudes
Praacuteticas virtudes bens internos e externos se relacionam pois da seguinte
maneira numa sociedade que natildeo valoriza as virtudes soacute poderia haver um
reconhecimento dos bens externos e em hipoacutetese alguma dos bens internos no
contexto das praacuteticas MacIntyre acrescenta ldquoque em qualquer sociedade que
reconhecesse somente os bens externos a concorrecircncia seria a caracteriacutestica
predominante e ateacute exclusivardquo (MACINTYRE 1988 p 196)31
Neste sentido eacute possiacutevel delinear uma relaccedilatildeo distinta entre as virtudes e os
bens externos e internos A posse das virtudes eacute necessaacuteria para se alcanccedilar os bens
internos entretanto esta mesma posse pode dificultar o acesso a bens externos pois
o cultivo de determinadas virtudes como a justiccedila a sinceridade e a coragem pode
muitas vezes impossibilitar o acesso agraves riquezas ao prestiacutegio ao status Nesse
sentido talvez seja possiacutevel pensar que na verdade a riqueza o prestiacutegio e o status
sejam incompatiacuteveis com uma vida virtuosa
Desse modo no sentido empregado por MacIntyre as virtudes mesmo
proporcionando os bens internos agraves praacuteticas justificam-se independentes de seus
resultados pois embora elas sejam necessaacuterias agraves praacuteticas o acesso aos bens natildeo
se daacute de maneira uniacutevoca
423 Ordem narrativa de uma vida humana singular
O desenvolvimento da noccedilatildeo de ordem narrativa de uma vida humana singular
eacute uma resposta agrave questatildeo formulada no fim do capiacutetulo XIV de Depois da Virtude
Este elemento fundamental da teoria moral macintyreana aprofunda e enriquece o seu
conceito provisoacuterio de virtude explicitado no toacutepico acima A pergunta se esboccedila da
seguinte maneira
30ldquoPratices never have a goal or goals fixed for all time ndash painting has no such goal nor has physics ndash
but the goals themselves are transmuted by the history of the activityrdquo 31ldquoAnd in any society which recognized only external goods competitiveness would be the dominant and
even exclusive featurerdquo
61
seraacute racionalmente justificaacutevel conceber cada vida humana como uma unidade de modo que possamos tentar especificar cada uma dessas vidas como tendo o seu bem de modo que possamos entender as virtudes como tendo a funccedilatildeo de capacitar o indiviacuteduo a fazer de sua vida uma determinada espeacutecie de unidade e natildeo de outra (MACINTYRE 2007 p 203)32
O objetivo de MacIntyre neste ponto eacute oferecer uma compreensatildeo de cada
vida humana como um todo como uma unidade na qual o caraacuteter desta unidade
ofereccedila agraves virtudes um telos apropriado O primeiro passo que eacute o iniacutecio do Cap XV
de Depois da virtude eacute ultrapassar obstaacuteculos que contrariam a ideia de unidade da
vida humana o primeiro de natureza socioloacutegica e o segundo de natureza filosoacutefica
ou ainda da teoria socioloacutegica
O obstaacuteculo social agrave ideia de unidade da vida humana singular proveacutem da
maneira como a sociedade moderna passou a conceber a vida do indiviacuteduo sua vida
eacute pensada na forma de segmentos cada um com seu proacuteprio modus operandi nos
quais ldquoo trabalho eacute pensado separado de lazer a vida privada eacute afastada da vida
puacuteblica a vida empresarial eacute separada da vida pessoalrdquo (MACINTYRE 1988 p 204)33
Estas separaccedilotildees estatildeo articuladas de modo tal que a ideia de unidade da vida do
indiviacuteduo lhe eacute completamente estranha
Os obstaacuteculos filosoacuteficos se referem agrave ideia de que a vida humana eacute articulada
como uma sequecircncia de atos e episoacutedios individuais Numa concepccedilatildeo existencialista
por exemplo a vida humana se torna natildeo visualizaacutevel dado que indiviacuteduo estaacute
constantemente a desempenhar papeis que natildeo dizem respeito a ele imediatamente
MacIntyre toma o Sartre da Naacuteusea a fim de apresentar a seguinte tese
a narrativa eacute bem diferente da vida e que apresentar a vida humana em forma de narrativa eacute sempre deturpaacute-la De acordo com este pensamento conclui MacIntyre natildeo existiriam narrativas verdadeiras e a vida humana consistiria em accedilotildees que natildeo conduzem a lugar nenhum (MACINTYRE 2001b p 360)
Esta concepccedilatildeo existencialista de um eu separado de seus papeis
impossibilitaria o espaccedilo social de desenvolvimento das virtudes A criacutetica de
MacIntyre a tese de Sartre eacute a de para afirmar que nenhuma narrativa eacute possiacutevel
Sartre se utiliza de uma narrativa aleacutem disso MacIntyre afirma tambeacutem se poderia
32ldquois it rationally justifiable to conceive of each human life as a unity so that we may try to specify each
such life as having their function in enabling an individual to make of his or her life one kind of unity rather than anotherrdquo
33 ldquowork is divided from leisure private life from public the corporate from the personalrdquo
62
questionar a Sartre como seriam os atos humanos destituiacutedos de qualquer narrativa
mesmo que deturpadora A resposta agrave pergunta eacute o silecircncio completa o autor
Para o desenvolvimento das virtudes eacute fundamental compreender a vida
humana individual como uma unidade Aleacutem disso ldquoa unidade de virtude na vida de
algueacutem soacute se torna inteligiacutevel como caracteriacutestica de uma vida unitaacuteria uma vida que
se possa compreender e se avaliar na iacutentegrardquo (MACINTYRE 2007 p 205 )34 Como as
abordagens anteriores que representam uma antiacutetese agrave noccedilatildeo da vida humana
individual como uma unidade satildeo heranccedila da proacutepria concepccedilatildeo moderna sobre
homem e o seu ser-no-mundo faz-se necessaacuteria a exposiccedilatildeo do ldquoconceito de um eu
cuja unidade reside na unidade de uma narrativa que une o nascimento agrave vida e agrave
morte em forma de uma narrativa com comeccedilo meio e fimrdquo (MACINTYRE 2007 p
205)35
O conceito de eu como uma unidade narrativa vai dar a Macintyre a
oportunidade de passar para o segundo momento do seu conceito virtude que natildeo se
limita exclusivamente agraves praacuteticas O Prof Helder de Carvalho comenta sobre a
problemaacutetica de limitar o conceito de virtude ao conceito de praacuteticas
Se restringirmos a definiccedilatildeo do conceito de virtude ao acircmbito das praacuteticas fatalmente chegaremos a uma situaccedilatildeo em que a possibilidade do conflito traacutegico se efetiva uma situaccedilatildeo em que as pretensotildees de uma praacutetica podem ser incompatiacuteveis com as de outras ambas apontando para direccedilotildees diferentes de tal forma que podemos nos ver oscilando de um modo arbitraacuterio entre uma posiccedilatildeo e outra sem conseguirmos constituir propriamente uma escolha racional (CARVALHO 2001 p 14)
A superaccedilatildeo do elemento arbitraacuterio da vida moral e a consistecircncia do
conceito de virtude satildeo proporcionadas pelo conceito de unidade narrativa de uma
vida humana individual pensada integralmente A accedilatildeo humana deve pois ser
articulada por um tipo de narrativa histoacuterica que seja ldquoo gecircnero fundamental e
essencial para a caracterizaccedilatildeo das accedilotildees humanasrdquo (MACINTYRE 2007 p 208 )36 A
perspectiva narrativa garante que os diversos episoacutedios da vida de uma pessoa
ganhem lugar e sentido por que natildeo dizer inteligibilidade Com efeito essa unidade
34ldquoAnd the unity of a virtue in someonersquos life is intelligible only as a characteristc of a unitary life a life
that can be conceived and evaluated as a wholerdquo 35ldquoa concept of a self whose unity resides in the unity of a narrative which links birth to life to death as
narrative beginning to middle to endrdquo 36ldquonarrative history of a certain kind turns out to be basic and essential genre for the characterization of
human actionsrdquo
63
somente eacute possiacutevel porque segundo MacIntyre as accedilotildees estatildeo articuladas atraveacutes
de uma perspectiva histoacuterica Uma vida humana singular pode ser compreendida na
forma de uma narrativa e consequentemente a ela tambeacutem proporciona a
compreensatildeo da vida e da accedilatildeo dos outros
Eacute porque todos vivenciamos narrativas nas nossas vidas e porque entendemos nossa proacutepria vida nos termos das narrativas que vivenciamos que a forma de narrativa eacute adequada para se entender os atos de outras pessoas (MACINTYRE 1988 p 212)37
A Narrativa natildeo deve tambeacutem ser pensada exclusivamente de modo singular
pois as diversas narrativas se intercomunicam estatildeo relacionadas umas agraves outras
Prof Helder de Carvalho salienta que a ldquovida individual para MacIntyre consiste na
unidade de uma narrativa encarnada numa vida singular que na forma de atos e
palavras tenta responder sistematicamente agraves questotildees acerca do que eacute bom para o
indiviacuteduo e do que eacute bom para o homemrdquo (CARVALHO 2001 p 15) Com a resposta a
essas duas questotildees a saber o que eacute bom para o indiviacuteduo e para o homem se tem
a unidade da vida moral tanto individualmente quanto para um grupo Aleacutem disso
enfatiza MacIntyre ldquoa formulaccedilatildeo sistemaacutetica dessas duas questotildees e a tentativa de
respondecirc-las tanto em atos quanto em palavras que proporcionam unidade agrave vida
moralrdquo (MACINTYRE 2007 p 218)38
A unidade da vida moral deve ser pensada como uma unidade de busca
narrativa Esse conceito medieval possui duas caracteriacutesticas fundamentais
primeiramente a busca soacute pode se iniciar se houver ao menos uma noccedilatildeo de telos
isto eacute deve-se ter ao menos uma noccedilatildeo do seja o bem para o homem Esta primeira
caracteriacutestica eacute alcanccedilada atraveacutes da resposta agravequelas questotildees ora mencionadas
A segunda eacute a noccedilatildeo de que a busca natildeo se refere a algo jaacute adequadamente
caracterizado pois eacute no decorrer da busca e somente no enfrentamento de inuacutemeras
vicissitudes que se pode intuir meta da busca A busca tem pois um caraacuteter
pedagoacutegico no aprendizado moral e no processo de conhecimento de si
A relaccedilatildeo entre unidade narrativa da vida e a noccedilatildeo de busca aperfeiccediloam a
noccedilatildeo macintyreana de virtude
37ldquoIt is because we all live out narratives in our lives and because we understand our own lives in terms
of the narratives that we live out that the form of narrative is appropriate for understanding the actions of othersrdquo
38ldquoit is the systematic asking of these two questions and the attempt to answer them in deed as well as in word which provide the moral life with its unityrdquo
64
As virtudes portanto devem ser compreendidas como as disposiccedilotildees que aleacutem de nos sustentar e capacitar para alcanccedilar os bens internos agraves praacuteticas tambeacutem nos sustentam no devido tipo de busca pelo bem capacitando-nos a superar os males os riscos as tentaccedilotildees e as tensotildees com que nos deparamos e que nos forneceratildeo um autoconhecimento cada vez maior (MACINTYRE 2007 p 219)39
O conjunto das virtudes iraacute dar conta natildeo apenas dos elementos comunitaacuterios
nos quais a busca pelo bem eacute dada em conjunto mas inclui agora virtudes
necessaacuterias agrave investigaccedilatildeo acerca do caraacuteter do bem que se almeja MacIntyre
conclui afirmando que chegou a uma conclusatildeo provisoacuteria sobre a vida virtuosa para
o homem ldquoa vida virtuosa para o homem eacute a vida passada na procura da vida boa
para o homemrdquo (MACINTYRE 2007 p 219)40 Com efeito as virtudes que satildeo
necessaacuterias satildeo aquelas que mais proporcionarem esse entendimento Ademais elas
esclarecem em relaccedilatildeo aos bens natildeo apenas em relaccedilatildeo agraves praacuteticas mas tambeacutem agrave
vida individual proporcionada por uma unidade narrativa que rompe com a noccedilatildeo de
vida e tempo segmentados
424 Tradiccedilatildeo
O conceito de tradiccedilatildeo apresenta sua relevacircncia a partir da consciecircncia de
uma identidade individual que natildeo pode ser concebida arrancada da rede de
significados e dos contextos na histoacuteria das comunidades que forjaram esta mesma
identidade Deve-se pois pensar que eacute necessaacuteria ao indiviacuteduo a posse de uma
identidade histoacuterica Busca-se a identidade moral no interior da famiacutelia do bairro da
cidade sem natildeo entanto se estar obrigados a assumir o que Macintyre intitula de
limitaccedilotildees morais dessas particulares formas histoacutericas de comunidade O ponto de
partida da busca pela identidade histoacuterica eacute justamente as particularidades Iniciando
pelas particularidades busca-se o bem o universal
A identidade eacute em parte resultado daquilo que o indiviacuteduo herdou daqueles
que o precederam O presente de uma pessoa natildeo possui sentido independente das
39ldquoThe virtues therefore are to be understood as those dispositions which will not only sustain practices
and enable us to achieve the goods internal to practices but which will also sustain us in the relevant kind of quest for the good by enabling us to overcome the harms dangers temptations and distractions which we encounter and which will furnish us with increasing self-knowledge and increasing knowledge of the goodrdquo
40ldquothe good life for man is the life seeking are those which will enable us to understand what more and what else the good life for man isrdquo
65
marcas e influecircncia de um passado que natildeo eacute simplesmente aquilo que jaacute natildeo eacute
mas que manteacutem com o presente uma relaccedilatildeo na forma de um vigor de ter sido
Assim a pessoa se descobre como partiacutecipe de uma tradiccedilatildeo quer goste ou natildeo quer
reconheccedila ou natildeo Ao desenvolver o conceito de Praacuteticas MacIntyre afirmou que elas
sempre tecircm histoacuterias e o que elas satildeo dependem do modo como cada geraccedilatildeo a
compreende e a transmite
Neste sentido as virtudes sustentam relacionamentos necessaacuterios agraves praacuteticas
como tambeacutem sustentam a relaccedilatildeo com o passado pensado a partir do conceito de
tradiccedilatildeo Qual eacute pois o conceito macintyreano de tradiccedilatildeo Segundo MacIntyre ldquouma
tradiccedilatildeo viva eacute entatildeo uma argumentaccedilatildeo que se estende na histoacuteria e eacute socialmente
incorporada e eacute uma argumentaccedilatildeo em parte exatamente sobre os bens que
constituem tal tradiccedilatildeordquo (MACINTYRE 2007 p 222)41 A procura pelos bens no interior
de uma tradiccedilatildeo atravessa muitas vezes geraccedilotildees inteiras Assim sendo a procura
do bem individual natildeo acontece separada da tradiccedilatildeo mas eacute realizada sob as
circunstacircncias definidas pela tradiccedilatildeo da qual um indiviacuteduo eacute partiacutecipe Essa procura
se daacute em relaccedilatildeo aos bens internos agraves praacuteticas e tambeacutem aos bens de uma uacutenica
vida Isto significa que ldquohistoacuteria de uma praacutetica na nossa eacutepoca estaacute em geral e
caracteristicamente inserida na histoacuteria mais longa e ampla da tradiccedilatildeo e por meio
da qual a praacutetica se torna inteligiacutevel e chega assim agrave forma atual que nos foi
transmitidardquo (MACINTYRE 2007 p 222)42 A inteligibilidade da histoacuteria de cada pessoa
ganha seu sentido no interior da histoacuteria de cada tradiccedilatildeo
A sustentaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo sua conservaccedilatildeo e seu decliacutenio dependem do
exerciacutecio das virtudes que lhe satildeo correspondentes ou agrave falta dele Neste sentido as
virtudes tambeacutem servem como sustentaacuteculo para as tradiccedilotildees ou seja a permanecircncia
ou a extinccedilatildeo delas mantecircm relaccedilatildeo com o exerciacutecio das virtudes
A convicccedilatildeo de MacIntyre eacute a de que a falta de justiccedila sinceridade coragem
e de outras virtudes intelectuais correspondentes corrompem tradiccedilotildees mas tambeacutem
as praacuteticas que foram forjadas na proacutepria tradiccedilatildeo da qual elas (as praacuteticas) satildeo reflexo
(Cf MACINTYRE 2007 p 223) Haacute aqui a necessidade de se reconhecer a importacircncia
41ldquoA living tradition then is an historically extended socially embodied argument and an argument
precisely in part about the goods which constitute that traditionrdquo 42ldquothe history of a practice in our time is generally and characteristically embedded in and made
intelligible in terms of the larger and longer history of the tradition through which the practice in its present form was conveyed to usrdquo
66
das tradiccedilotildees das quais se faz parte no entendimento de suas possibilidades futuras
que o passado tornou disponiacutevel no presente
O uacuteltimo conceito da teoria moral de MacIntyre atraveacutes da noccedilatildeo de tradiccedilatildeo
complementa sua compreensatildeo do conceito de virtude A busca pelo bem do homem
natildeo tem sentido sem se considerar a tradiccedilatildeo que alimentou de experiecircncias
conceitos opiniotildees a identidade de uma pessoa Assim o autor compreende a moral
como uma relaccedilatildeo entre o eu o contexto social e a histoacuteria
Esta seccedilatildeo do trabalho explicitou o projeto de Depois da Virtude atraveacutes da
exposiccedilatildeo da segunda tarefa da obra que eacute formular uma teoria moral capaz de
resgatar a inteligibilidade do discurso moral Embora esta segunda tarefa aparente ter
sido ofuscada pelo grande descontentamento do autor em relaccedilatildeo agrave Filosofia Moral
Moderna o autor oferece uma alternativa agrave moral do dever ou uma moral utilitarista
Praacuteticas Unidade narrativa de uma vida humana individual e o conceito de Tradiccedilatildeo
compotildeem o conceito macintyreano de virtude e se constituem no nuacutecleo de sua teoria
moral
O proacuteximo passo eacute empreender uma anaacutelise agraves principais criacuteticas ao seu
pensamento e verificar um modo de como eacute possiacutevel defender a pertinecircncia de uma
Eacutetica das Virtudes dando continuidade a uma tarefa que o proacuteprio MacIntyre indicou
em sua obra apresentar como Tomaacutes de Aquino empreende uma reconciliaccedilatildeo entre
o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica como tambeacutem verificar de que modo o feito de
Tomaacutes ajuda a compreender a moral contemporacircnea
67
5 RECONCILIACcedilAtildeO ENTRE O PENSAMENTO CRISTAtildeO E O ARISTOTELISMO
A grandeza do pensamento de MacIntyre reside no esforccedilo que ele teve em
tentar estabelecer uma teoria moral ao modo de uma Eacutetica das Virtudes Entretanto
atraveacutes de seu proacuteprio testemunho vecirc-se que a suas consideraccedilotildees acerca do
pensamento de Tomaacutes de Aquino foram insuficientes ldquoPenso agora por exemplo que
a minha criacutetica anterior agraves teses de Santo Tomaacutes sobre a unidade das virtudes estava
simplesmente errada devido em parte a uma leitura equivocada do Aquinaterdquo
(MACINTYRE 2001a p 8) Assim sendo a segunda parte deste trabalho assume como
objetivo principal a apresentaccedilatildeo da Reconciliaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo Biacuteblica e o
Aristotelismo
A presente pesquisa jaacute sinalizou que embora MacIntyre seja devedor do
pensamento de Gertrude Anscombe eles possuem posicionamentos diferentes
acerca da antropologia Anscombe sugere que o ponto de partida estaacute numa
psicologia filosoacutefica enquanto que MacIntyre abre matildeo desta antropologia por
consideraacute-la uma lsquobiologia metafiacutesicarsquo cujo conceito de homem seria lsquoahistoacutericorsquo e
lsquoaculturalrsquo distanciando-se assim do meacutetodo histoacuterico por ele utilizado
Posteriormente MacIntyre volta atraacutes e assume a biologia aristoteacutelica no conceito de
homem Esta pesquisa compartilha com Anscombe a consciecircncia da necessidade de
uma psicologia filosoacutefica e segundo esta perspectiva daraacute continuidade agrave tarefa
indicada por MacIntyre
A ideia de uma reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo cristatilde inclui a
necessidade de uma retomada do pensamento de Aristoacuteteles Na dinacircmica entre atos
e virtudes Aristoacuteteles considera que as accedilotildees possuem certa precedecircncia sobre as
disposiccedilotildees Ele afirma na EN II 1-2 que ldquoeacute a partir dos atos repetidos em uma certa
direccedilatildeo que adquirimos as disposiccedilotildees correspondentesrdquo Os atos tambeacutem
prevalecem sobre a disposiccedilatildeo por maior que seja o haacutebito de um agente ele sempre
pode em relaccedilatildeo a cada accedilatildeo particularmente agir diferentemente Dessa maneira
sendo as virtudes um modo de disposiccedilatildeo da alma elas natildeo podem prescindir de uma
reflexatildeo sobre a teoria dos atos
Entre as objeccedilotildees que podem ser feitas agrave proposta moral de MacIntyre eacute que o
autor de certo modo potildee o conceito de virtude como conceito primordial
68
prescindindo assim de uma elaboraccedilatildeo teoacuterica que eacute anterior e condicionante ao
conceito de virtude que eacute uma teoria das accedilotildees A consideraccedilatildeo das virtudes a partir
de uma teoria das accedilotildees ao contraacuterio do que se poderia pensar natildeo representa um
retorno agrave centralidade das accedilotildees em detrimento da centralidade do agente o que seria
uma contradiccedilatildeo agrave criacutetica da moral deontoloacutegica
Embora o caraacuteter do agente seja crucial para Aristoacuteteles a sua relevacircncia para
o julgamento de uma accedilatildeo proveacutem do fato de que uma accedilatildeo eacute entendida de tal maneira
que inviabiliza um procedimento fundado em regras previamente estipuladas Essa
compreensatildeo segundo Marco Zingano eacute o que favorece a busca por um agente
moralmente bom quando devemos descobrir qual eacute a coisa certa para ser feita (cf
ZINGANO 2010 p 32) A questatildeo fundamental estaacute natildeo em afirmar que um ato
moralmente bom eacute o que deve ser feito por um agente que eacute igualmente bom mas
em reconhecer que um ato eacute bom porque corresponde agraves propriedades de evitar o
viacutecio seja na falta ou no excesso Tornar-se bom eacute a qualidade do agente que
frequentemente agiu desse modo Neste sentido eacute possiacutevel afirmar que o lugar
relevante das virtudes deve-se pois agrave certa teoria das accedilotildees
Afirmar que a centralidade das virtudes depende das accedilotildees natildeo desfaz a
importacircncia das virtudes mas agraves coloca numa posiccedilatildeo secundaacuteria em relaccedilatildeo agraves
accedilotildees Uma vez que elas derivam das accedilotildees eacute compreensiacutevel vecirc-las como efeito de
boas accedilotildees Desse modo eacute importante compreender que a eacutetica de Aristoacuteteles eacute uma
Eacutetica das Virtudes natildeo porque as virtudes sejam fundamento do bem agir mas porque
as virtudes estatildeo fundamentadas em accedilotildees das quais as virtudes sinalizam que satildeo
moralmente boas Assim sendo faz-se necessaacuteria uma exposiccedilatildeo da teoria
aristoteacutelica dos atos
A teoria dos atos exposta na EN proporciona a compreensatildeo dos
fundamentos de filosofia moral de Aristoacuteteles Segundo Henrique de Lima Vaz essa
filosofia traz consigo elementos cosmocecircntricos Por sua vez alguns desses
elementos seratildeo retomados por Tomaacutes de Aquino o qual realizaraacute um processo que
se denomina aqui de reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo e a filosofia de
Aristoacuteteles A exposiccedilatildeo dos pontos fundamentais desta reconciliaccedilatildeo se constitui na
tarefa mais fundamental deste trabalho O alcance deste objetivo se constitui
conforme se compreende aqui na continuidade da tarefa deixada em aberto por
MacIntyre em Depois da Virtude Esta tarefa eacute necessaacuteria uma vez que se pode
69
afirmar que muitos dos conceitos morais contemporacircneos possuem um conteuacutedo
semacircntico influenciado pelo pensamento cristatildeo Os conceitos a que esta pesquisa se
refere satildeo o de intenccedilatildeo consciecircncia obrigaccedilatildeo liberdade livre-arbiacutetrio e felicidade
Muitos destes conceitos ou natildeo foram aprofundados pelos gregos ou foram ateacute
desconhecidos deles
O posicionamento fundamental deste trabalho eacute o de que a exposiccedilatildeo do modo
como Tomaacutes de Aquino promove a retomada do pensamento aristoteacutelico na filosofia
moral compatibilizando-o com o pensamento cristatildeo garante de certa maneira uma
consciecircncia de que conceitos importantes da filosofia moral natildeo satildeo os mesmos se
essa leitura cristatilde natildeo for considerada
O elemento central desta compatibilizaccedilatildeo se encontra na siacutentese entre o
horizontalismo da moral aristoteacutelica e o verticalismo da Teologia Cristatilde Embora estes
dois conceitos ainda mereccedilam um melhor esclarecimento esta siacutentese se constitui
como princiacutepio que guia o problema tomista da Beatitude e do Fim uacuteltimo do homem
Aristoacuteteles seguindo a articulaccedilatildeo da Eacutetica Antiga tem a Eudaimonia como ideia
central da vida moral Tomando esta ideia sob a acepccedilatildeo de Beatitude Tomaacutes de
Aquino ultrapassa a ideia aristoteacutelica primitiva de Eudaimonia rompendo assim com
os cosmocentrismo da Eacutetica Antiga na qual a moral aristoteacutelica tambeacutem estava
inserida
O desenvolvimento deste capiacutetulo cumpre a seguinte orientaccedilatildeo
primeiramente analisar a teoria aristoteacutelica dos atos como tambeacutem a retomada e o
desenvolvimento tomista dos conceitos necessaacuterios agraves accedilotildees Em seguida discutir de
que maneira os elementos da teoria aristoteacutelica dos atos satildeo retomados e que
encaminhamentos eles tecircm com o pensamento cristatildeo Finalmente deve-se
desenvolver o modo como Tomaacutes de Aquino ultrapassa o cosmocentrismo da eacutetica
de Aristoacuteteles
51 AS VIRTUDES E A TEORIA ARISTOTEacuteLICA DOS ATOS ndash EN III 1-8
Foi afirmado que Aristoacuteteles assumia uma posiccedilatildeo de precedecircncia dos atos em
relaccedilatildeo agraves virtudes Para essa finalidade preferir-se-aacute o texto da EN em virtude de
seu peso na Tradiccedilatildeo pelo modo como a obra estaacute articulada e pela significaccedilatildeo que
70
a obra conquistou na histoacuteria da filosofia moral Esta seccedilatildeo se dedica a mostrar como
o estagirita desenvolve sua teoria dos atos cuja seccedilatildeo se situa no livro III 1-8
Aristoacuteteles inicia a seccedilatildeo da EN esclarecendo que a virtude diz respeito a
emoccedilotildees e accedilotildees e de que maneira os atos voluntaacuterios satildeo louvados ou censurados
ao passo que os involuntaacuterios satildeo objeto de perdatildeo e por vezes de piedade Em
seguida ele assinala a importacircncia de os estudiosos da virtude e os legisladores
definirem o voluntaacuterio e o involuntaacuterio (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III
1 1109 b30)
511 Do voluntaacuterio e do involuntaacuterio
A primeira questatildeo relevante acerca das accedilotildees eacute a compreensatildeo dos atos
voluntaacuterios e involuntaacuterios Existe uma voluntariedade em relaccedilatildeo a coisas exteriores
na forma de causas motoras quando estas de apresentam na forma de bem
Contrariamente o involuntaacuterio diz respeito aos moacutebeis externos quando estes se
apresentam de modo forccediloso ou por ignoracircncia ldquoParecem ser involuntaacuterias as accedilotildees
praticadas por forccedila ou por ignoracircncia Eacute forccediloso o ato cujo princiacutepio eacute exterior ao
agente princiacutepio para o qual o agente ou paciente em nada contribuirdquo (ARISTOacuteTELES
Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a1)43
Existem accedilotildees que se desenvolvem de uma maneira mista Aristoacuteteles chama
a atenccedilatildeo para accedilotildees realizadas por meio de males maiores e estas mesmo
indesejadas satildeo assumidas em virtude das circunstacircncias Assim ele diz dos
navegantes que para evitar o naufraacutegio se livram da carga Embora forccediladas estas
accedilotildees se assemelham agraves accedilotildees voluntaacuterias pois ldquosatildeo escolhidas no momento em que
satildeo praticadas e o fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeo Voluntaacuterio e involuntaacuterio
entatildeo devem ser ditos com referecircncia ao momento em que se pratica a accedilatildeordquo
(ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a10)44
Haacute um elemento curioso nesta uacuteltima afirmaccedilatildeo de Aristoacuteteles quando este diz
que o fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeo Corriqueiramente se diz que a finalidade
natildeo pertence agrave deliberaccedilatildeo do agente Talvez seja possiacutevel afirmar que existe uma
classe de fins que sejam abertos agrave eleiccedilatildeo do agente ou ainda que o fim de uma
43 ldquoβίαιον δὲ οὗ ἡ ἀρχὴ ἔξωθεν τοιαύτη οὖσα ἐν ᾗ μηδὲν συμβάλλεται ὁ πράττων ἢ ὁ πάσχωrdquo 44 ldquoκαὶ τὸ ἑκούσιον δὴ καὶ τὸ ἀκούσιον ὅτε πράττει (15) λεκτέονrdquo
71
accedilatildeo tenha certa dinamicidade pois ldquoo fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeordquo
(ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a10)45 Este foi o caso por
exemplo dos navegantes que antes tinham o objetivo de levar a carga mas diante
da tempestade livraram-se da carga a fim de salvar suas vidas Intimamente os
navegantes natildeo gostariam de se livrar da carga entretanto voluntariamente a
jogaram no mar
Deve-se afirmar tambeacutem que para ser involuntaacuteria natildeo eacute o bastante um ato
ser forccedilado mas se deve acrescentar que aleacutem de ser forccedilado um ato natildeo deve
possuir nenhuma contribuiccedilatildeo do agente como princiacutepio da accedilatildeo e mais ainda
provocarem dor e arrependimento (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1
1110 b20)46 Do involuntaacuterio forccedilado conclui-se que deve ser externo forccedilado e
penoso ao agente
Da accedilatildeo por ignoracircncia Aristoacuteteles estabelece distinccedilotildees na forma de natildeo-
voluntaacuterio e involuntaacuterio Todo ato feito por ignoracircncia eacute natildeo voluntaacuterio (cf
ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 2 1110 b20)47 mas somente merece o
nome de involuntaacuterio aquele ato que realizado por ignoracircncia causou o
arrependimento O agente que por ignoracircncia realizou uma accedilatildeo mas natildeo se
arrependeu merece que sua accedilatildeo seja chamada apenas de natildeo voluntaacuteria
Aristoacuteteles tambeacutem distingue o agir por ignoracircncia e o agir em estado de
ignoracircncia (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 2 1110 b25)48 O agir em
estado de ignoracircncia se refere ao caso de algueacutem que por alguma causa qualquer
que lhe tire da ciecircncia do ato a exemplo de um becircbado ou de um homem
encolerizado tornou-se ignorante do que estava a fazer Haacute tambeacutem exemplos de
homens que deliberadamente ignoram o que deveriam fazer Esse eacute o caso do
homem perverso que por ignorar o que deveria fazer merece ser chamado de injusto
ou de mau Eacute involuntaacuterio tambeacutem o ato de algueacutem que ignora natildeo deliberadamente
alguma das circunstacircncias particulares nas quais uma accedilatildeo se desenvolve Entre os
criteacuterios para que uma accedilatildeo por causa da ignoracircncia seja involuntaacuteria deve-se
acrescentar o sofrimento do agente e o seu arrependimento
45 ldquoτὸ δὲ τέλος τῆς πράξεως κατὰ τὸν καιρόν ἐστινrdquo 46 ldquoτοῦ δὴ κατὰ τὴν τοιαύτην ἄγνοιαν ἀκουσίου λεγομένου (20) ἔτι δεῖ τὴν πρᾶξιν λυπηρὰν εἶναι καὶ ἐν
μεταμελείᾳrdquo 47 ldquoτὸ δὲ δι᾽ ἄγνοιαν οὐχ ἑκούσιον μὲν ἅπαν ἐστίνrdquo 48 ldquoἕτερον δ᾽ (25) ἔοικε καὶ τὸ δι᾽ ἄγνοιαν πράττειν τοῦ ἀγνοοῦνταrdquo
72
Os atos forccedilados assim como os atos por ignoracircncia comportam igualmente
a caracteriacutestica de serem penosos ao agente contudo o ser penoso dos atos forccedilados
natildeo parece se identificar com o penoso dos atos por ignoracircncia Com efeito o penoso
dos atos forccedilados eacute um sofrimento infringido pela circunstacircncia enquanto o dos atos
por ignoracircncia eacute um sofrimento infringido pelo proacuteprio agente em virtude de seu
arrependimento Os atos voluntaacuterios satildeo aqueles cujo princiacutepio reside no agente que
conhece as circunstacircncias particulares nas quais ocorre a accedilatildeo (Cf ARISTOacuteTELES
Ethica Nicomachea 2010 III 3 1111 a25)49
512 A escolha deliberada
Mais apropriada agrave virtude e a discriminar o caraacuteter do que as accedilotildees Aristoacuteteles
entende que a escolha deliberada eacute por um lado voluntaacuteria e por outro involuntaacuteria
(Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 4 1111 b5)50 A ideia geral eacute a de que
a escolha deliberada eacute um modo mais especiacutefico do voluntaacuterio sendo este mais
abrangente do que ela O exemplo geral eacute o das crianccedilas que apesar de terem atos
voluntaacuterios natildeo possuem ainda escolha deliberada
A escolha deliberada diz respeito aos atos que estatildeo ao alcance do agente e
que concernem agravequilo que conduz ao fim O exemplo eacute o do desejo da sauacutede no qual
a escolha deliberada proporciona as coisas necessaacuterias agrave sauacutede (cf ARISTOacuteTELES
Ethica Nicomachea 2010 III 4 1111 b25 51 Assim esta escolha se refere agrave obtenccedilatildeo
do que se deve obter e agrave fuga do que se deve evitar Escolhe-se deliberadamente
quando se sabe que uma coisa eacute boa Deste modo ldquoa escolha deliberada eacute
acompanhada de pensamento e de reflexatildeordquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010
III 4 1112 a15)52
No paraacutegrafo V do livro III a conclusatildeo eacute a de que o objeto da escolha
deliberada eacute o objeto do desejo deliberado daquilo que estaacute em poder do agente A
escolha deliberada eacute o desejo deliberativo pois julgando em funccedilatildeo de ter deliberado
49 ldquoτὸ ἑκούσιον δόξειεν ἂν εἶναι οὗ ἡ ἀρχὴ ἐν αὐτῷ εἰδότι τὰ καθ᾽ ἕκαστα ἐν οἷς ἡ πρᾶξιςrdquo 50 ldquoἡ προαίρεσις δὴ ἑκούσιον μὲν φαίνεται οὐ ταὐτὸν δέ ἀλλ᾽ ἐπὶ πλέον τὸ ἑκούσιον τοῦ μὲν γὰρ
ἑκουσίου καὶ παῖδες καὶ τἆλλα ζῷα κοινωνεῖ προαιρέσεως δ᾽ οὔ καὶ τὰ ἐξαίφνης (10) ἑκούσια μὲν λέγομεν κατὰ προαίρεσιν δ᾽rdquo
51 ldquoἔτι δ᾽ ἡ μὲν βούλησις τοῦ τέλους ἐστὶ μᾶλλον ἡ δὲ προαίρεσις τῶν πρὸς τὸ τέλος οἷον ὑγιαίνειν βουλόμεθα προαιρούμεθα δὲ δι᾽ ὧν ὑγιανοῦμεν καὶ εὐδαιμονεῖν βουλόμεθα μὲν καὶ φαμέν προαιρούμεθα δὲ λέγειν οὐχ ἁρμόζει ὅλως (30) γὰρ ἔοικεν ἡ προαίρεσις περὶ τὰ ἐφ᾽ ἡμῖν εἶναιrdquo
52 ldquoἡ γὰρ προαίρεσις μετὰλόγου καὶ διανοίαςrdquo
73
deseja-se conforme o deliberado A deliberaccedilatildeo poreacutem refere-se apenas aos meios
que conduzem a um fim (Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 5 1112 b30)53
513 A definiccedilatildeo do objeto do querer
A reflexatildeo aristoteacutelica em torno do querer ou do desejo racional eacute um debate
latente entre as teses platocircnicas e sofistas que seraacute exposta a seguir Aleacutem disso
muito mais do que uma simples siacutentese entre esses dois posicionamentos Aristoacuteteles
inaugura uma perspectiva nova em torno da teoria das accedilotildees a saber a compreensatildeo
de que o bem aparente eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria ao bem embora natildeo lhe seja
suficiente (Cf ZINGANO 2010 p 193) A tese geral de Aristoacuteteles eacute a de que para uma
coisa ser tomada como fim deve ser tomada como tal pelo agente isto eacute no processo
de direcionamento em busca do bem a questatildeo fundamental eacute como o agente
percebe um determinado objeto O texto aristoteacutelico abre a discussatildeo em torno de se
o querer diz respeito ao fim
Foi dito que o querer concerne ao fim mas a uns parece concernir ao bem a outros ao bem aparente Aos que dizem que o objeto do querer eacute o bem decorre que natildeo eacute objeto do querer o que quer aquele que natildeo escolhe corretamente (pois se for objeto do querer seraacute entatildeo um bem era no entanto no caso um mal) por sua vez aos que dizem que o bem aparente eacute objeto do querer decorre que natildeo existe objeto do querer por natureza mas eacute objeto do querer o que parece bom a cada um (a pessoas diferentes coisas diferentes parecem boas mesmo no caso coisas contraacuterias) (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113 a15 )54
A referecircncia agrave filosofia platocircnica pode ser reconhecida pela proposiccedilatildeo de que
o bem eacute objeto do querer e que apenas este o bem poderia ser o seu objeto Note-
se que o termo original para fim eacute τέλους e que o querer βούλησις se direciona a este
fim porque ele eacute um bem enquanto tal τἀγαθοῦ O inconveniente desta tese para
Aristoacuteteles eacute o fato de que se apenas o bem eacute objeto do querer implica dizer que a
escolha errada tambeacutem seria um bem uma vez que de certo modo tambeacutem ela eacute
querida Assim sendo o fato de os agentes escolherem errado permite concluir que
53 ldquoοὐ γὰρ ἂν εἴη βουλευτὸν τὸ τέλος ἀλλὰ τὰ πρὸς τὰ τέλη οὐδὲ δὴ τὰ καθ᾽ ἕκασταrdquo 54 ldquoἡ δὲ βούλησις ὅτι μὲν τοῦ τέλους ἐστὶν εἴρηται δοκεῖ δὲ τοῖς μὲν τἀγαθοῦ εἶναι τοῖς δὲ τοῦ φαινομένου
ἀγαθοῦ [] συμβαίνει δὲ τοῖς μὲν [τὸ] βουλητὸν τἀγαθὸν λέγουσι μὴ εἶναι βουλητὸν ὃ βούλεται ὁ μὴ ὀρθῶς αἱρούμενος (εἰ γὰρ ἔσται βουλητόν καὶ ἀγαθόν ἦν δ᾽ εἰ οὕτως ἔτυχε κακόν) (20) τοῖς δ᾽ αὖ τὸ φαινόμενον ἀγαθὸν βουλητὸν λέγουσι μὴ εἶναι φύσει βουλητόν ἀλλ᾽ ἑκάστῳ τὸ δοκοῦν ἄλλο δ᾽ ἄλλῳ φαίνεται καὶ εἰ οὕτως ἔτυχε τἀναντίαrdquo
74
o τἀγαθοῦ unicamente natildeo pode ser o uacutenico objeto do querer a menos que se queira
considerar a escolha errada tambeacutem um bem
Jaacute a referecircncia agrave posiccedilatildeo sofista daacute-se em virtude da tese de que o bem eacute um
modo particular de sentir-se atraiacutedo por um objeto que dependendo da disposiccedilatildeo do
agente apresenta-se como bem O φαινομένου ἀγαθοῦ tambeacutem seria um moacutebil do
querer
Apoacutes as objeccedilotildees agraves teses tradicionais Aristoacuteteles comeccedila a expor sua tese
na forma de pergunta ldquose entatildeo estas posiccedilotildees natildeo satildeo satisfatoacuterias natildeo se deve
dizer que eacute objeto do querer sem mais e segundo a verdade o bem enquanto o que
aparece a cada um eacute o bem aparenterdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6
1113 a20)55 Aristoacuteteles entende que primeiramente tanto o homem virtuoso quanto
o de pouco valor desejam um objeto que lhes parece bom entretanto apenas o
virtuoso eacute capaz de querer um objeto verdadeiramente bom Sendo a virtude
consolidada pelo haacutebito o homem virtuoso eacute aquele que aprendeu em termos praacuteticos
a querer o bem Este bem eacute de maior relevacircncia do que um bem aparente φαινομένου
ἀγαθοῦ porque por causa do exerciacutecio das virtudes o homem virtuoso aprendeu a
distinguir o bem e o que apenas tem aparecircncia de bem Entretanto Aristoacuteteles daacute a
entender que o φαινομένου ἀγαθοῦ eacute primeiro a todos os homens na ordem do querer
ldquomas eacute o objeto do querer o que parece bom a cada umrdquo (ARISTOacuteTELES Ethica
Nicomachea 2010 III 6 1113 a20)56
Esta parece ser uma tese central de Aristoacuteteles certamente eacute bom o bem
enquanto tal entretanto eacute necessaacuterio que independente de ser um bem real uma
coisa apareccedila como um bem isto eacute seja tomada como tal pelo agente Esta eacute a
conclusatildeo do prof Marco Zingano sobre esta seccedilatildeo
Parecer um bem ou seja ser um φαινομένου ἀγαθοῦ natildeo eacute meramente uma aparecircncia de caraacuteter enganador como que o platonismo mas eacute principalmente a condiccedilatildeo loacutegica do bem humano isto eacute sua intencionalidade que pode secundariamente se revelar como uma crenccedila falsa um bem aparente no sentido platocircnico do termo (Cf ZINGANO 2010 p 193)
A questatildeo fundamental neste caso natildeo estaacute num caraacuteter pejorativo de uma
aparecircncia de bem que apetece ao querer mas no modo como o ser humano vai se
55 ldquoεἰ δὲ δὴ ταῦτα μὴ ἀρέσκει ἆρα φατέον ἁπλῶς μὲν καὶ κατ᾽ ἀλήθειαν βουλητὸν εἶναι τἀγαθόν ἑκάστῳ
δὲ τὸ φαινόμενονrdquo 56 ldquoτοῖς δ᾽ αὖ τὸ φαινόμενον ἀγαθὸν βουλητὸν λέγουσι μὴ εἶναι φύσει βουλητόνrdquo
75
relacionar com essa representaccedilatildeo Aristoacuteteles tem claro que sem a aparecircncia de
bem natildeo existe a apetecircncia pelo objeto mas ela natildeo dispensa o julgamento do ser
humano ldquoO homem virtuoso julga corretamente (κρίνειὀρθῶς) cada coisa e em cada
uma a verdade se manifesta a elerdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113
a30)57 Pelo julgamento correto κρίνειὀρθῶς o homem chega agrave visatildeo do verdadeiro
em cada coisa O homem virtuoso eacute pois natildeo apenas aquele que age frequentemente
bem mas o que toma posse das razotildees pelas quais age e as tem diante de si e isto
faz dele um homem prudente Se pela phroacutenesis a virtude intelectual eacute posta em
relevo no homem virtuoso suas disposiccedilotildees satildeo moralmente boas
O papel da phroacutenesisna restringe apenas agraves virtudes intelectuais Existe uma
relaccedilatildeo entre a phroacutenesise as virtudes morais assim como existe relaccedilatildeo entre a
phroacutenesise a empeiria Marcelo Perine esclarece este caraacuteter paradigmaacutetico da
phroacutenesis
Aristoacuteteles vai mostrar que phroacutenesis eacute um estado habitual cognitivo isto eacute racional e por isso eacute uma virtude intelectual que contudo pressupotildee seja um estado desiderativo portanto natildeo-racional seja um estado cognitivo natildeo-racional que eacute justamente a experiecircncia (PERINE 2006 p 28)
O objetivo da phroacutenesis satildeo bens humanos e estes satildeo alcanccedilados a medida
que podem estar em consonacircncia com a phroacutenesis Natildeo eacute a toa que o debate entre o
ato voluntaacuterio e o involuntaacuterio envolva aquilo que aparece como bem e o que necessita
de um posterior discernimento Assim nesse processo de desvelamento natildeo se
deixar de lado a importacircncia das intenccedilotildees
Aristoacuteteles natildeo parece citar o termo intencionalidade nas questotildees praacuteticas
mas ela parece estar latente nesta questatildeo da aparecircncia de bem Aristoacuteteles tem claro
que sem a aparecircncia de bem natildeo existe a apetecircncia pelo objeto mas ela natildeo
dispensa o julgamento do ser humano Pelo julgamento correto κρίνειὀρθῶς o
homem chega agrave visatildeo do verdadeiro em cada coisa
A aparecircncia de bem muito mais do que uma aparecircncia enganadora constitui-
se como modus cognoscendi preparatoacuterio e necessaacuterio ao julgamento correto e agrave
visatildeo da realidade da coisa em niacutevel praacutetico Assim ateacute mesmo as coisas que
posteriormente satildeo constatadas como boas tambeacutem requerem uma aparecircncia de
bem e no caso destas um bem real Assim o homem virtuoso eacute pois natildeo apenas
57 ldquoἕκαστα κρίνει ὀρθῶς καὶ ἐν ἑκάστοις τἀληθὲς αὐτῷ φαίνεταιrdquo
76
aquele que age frequentemente bem mas o que toma posse das razotildees pelas quais
age e as tem diante de si e isto faz dele um homem prudente Marco Zingano
acrescenta que
enquanto no homem prudente φρόνιμοςeacute ressaltado o papel da virtude intelectual que opera no interior das virtudes morais no homem virtuoso σπουδαίoς o que eacute posto em relevo eacute o fato de suas disposiccedilotildees serem virtuosas ou moralmente boas (ZINGANO 2010 p 197)
Neste sentido o domiacutenio da virtude pode ser delineado natildeo apenas pelo
homem prudente enquanto capaz de ponderar o que seria a virtude num determinado
caso mas tambeacutem pelo homem virtuoso que eacute capaz e age segundo esta virtude A
relaccedilatildeo entre bem e verdade para Aristoacuteteles inclui agora certo ordenamento
primeiramente aquilo que aparece como bem natildeo eacute necessariamente bom e por isto
mesmo necessita passar pelo julgamento do homem prudente φρόνιμος para em
seguida revelar-se como verdadeiramente boa ou natildeo
A partir do esclarecimento aristoteacutelico entre escolha deliberada e querer
esclarece-se qual o domiacutenio de cada um destes atos e consequentemente qual sua
relaccedilatildeo com as virtudes pertence ao querer ter o fim por objeto enquanto os meios
para alcanccedilaacute-lo dizem respeito agrave escolha deliberada Neste sentido compreende-se
que o fim eacute apenas reconhecido isto eacute natildeo se constitui como objeto de escolha O
acircmbito das escolhas satildeo os meios isto eacute as accedilotildees que dizem respeito a elas satildeo por
escolha delibera e voluntaacuterias Aristoacuteteles completa dizendo que ldquoas atividades das
virtudes envolvem estas coisasrdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 7 1113
b5) A conclusatildeo de Aristoacuteteles eacute a de que escolha deliberada relaciona-se diretamente
agraves virtudes uma vez que elas satildeo meio e sobre elas se pode deliberar Assim sendo
um entendimento adequado das virtudes requer a distinccedilatildeo entre a escolha deliberada
e os diversos outros atos humanos
Ao final do tratado dos atos Aristoacuteteles se posiciona acerca do que vem a ser
o engano no julgamento em relaccedilatildeo agraves accedilotildees ldquoagrave turba do engano parece engendrar-
se devido ao prazer pois natildeo sendo de fato um bem parece serrdquo (ARISTOacuteTELES
Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113 b1) Com isso talvez seja possiacutevel afirmar que
para Aristoacuteteles o prazer de certo modo natildeo contribui com o voluntaacuterio
Tomaacutes de Aquino adota uma postura distinta de Aristoacuteteles neste ponto preciso
Segundo ele o desejo sensiacutevel caminhando no mesmo sentido da vontade para um
77
certo bem contribui para aumentar o caraacuteter voluntaacuterio das accedilotildees ou seja a
sensibilidade formada pela virtude pode por vezes participar de uma accedilatildeo boa
Assim a conclusatildeo que Tomaacutes de Aquino propotildee eacute dizer que a causa do involuntaacuterio
natildeo estaacute necessariamente no desejo sensiacutevel embora ele possa eventualmente
obscurecer o juiacutezo
52 A SIacuteNTESE TOMISTA ATOS HUMANOS E FILOSOFIA MORAL
A tarefa a ser desenvolvida agora se refere agrave necessidade de desenvolver os
conceitos relevantes da teoria tomista dos atos e a partir deles aprofundar em que
medida Tomaacutes de Aquino opera uma siacutentese entre o pensamento grego e a Tradiccedilatildeo
Cristatilde Eacute impressionante como a alguns dos conceitos de Tomaacutes de Aquino encontram
traduzem bem o que Aristoacuteteles tratou em sua teoria dos atos
A distinccedilatildeo tomista entre o irasciacutevel e o concupisciacutevel corresponde a esta
observaccedilatildeo aristoteacutelica sobre o voluntaacuterio e o involuntaacuterio Pode-se afirmar que o
concupisciacutevel estaacute como moacutebil externo em relaccedilatildeo ao voluntaacuterio enquanto o irasciacutevel
estaacute como moacutebil externo em relaccedilatildeo ao involuntaacuterio Neste sentido eacute possiacutevel afirmar
que Tomaacutes de Aquino aprofunda o conceito aristoteacutelico de voluntaacuterio e involuntaacuterio
Qual o aprofundamento que Tomaacutes de Aquino promove Primeiramente uma
coisa apeteciacutevel nem sempre eacute da ordem da razatildeo como objeto proacuteprio pois eacute
possiacutevel haver um moacutebil apenas do apetite sensitivo ou concupisciacutevel Outro elemento
fundamental eacute que Tomaacutes compreende que o voluntaacuterio natildeo significa
necessariamente o livre pois a vontade pode natildeo seguir necessariamente agrave
iluminaccedilatildeo da inteligecircncia Neste caso a adesatildeo eacute fruto da eleiccedilatildeo do livre-arbiacutetrio
mas natildeo eacute necessariamente expressatildeo da liberdade enquanto tal
Tomaacutes tambeacutem aprofunda a ideia de intencionalidade que apenas de modo
latente podia-se encontrar na Eacutetica a Nicocircmacos Com efeito Tomaacutes de Aquino vai
retomar o problema da intencionalidade expressamente com este termo O autor
assume a posiccedilatildeo de que o bem que eacute objeto do querer ou da vontade natildeo precisa
necessariamente ser um bem na coisa mesma mas um bem apreendido Deste
modo o querer se move em direccedilatildeo a uma coisa que foi apreendida como um bem
Pode-se concluir portanto que o bem aparente seja uma condiccedilatildeo necessaacuteria
embora natildeo suficiente para se saber se alguma coisa eacute realmente boa A teoria tomista
78
dos atos segue aprofundando ou forjando novos conceitos que doravante faratildeo parte
da Eacutetica Ocidental Eacute em virtude desta influecircncia que a exposiccedilatildeo da teoria tomista
dos atos se justifica
521 Os atos humanos em Santo Tomaacutes de Aquino
O proacutelogo da Prima Secundae da Suma Teoloacutegica inicia com a afirmaccedilatildeo
de que eacute pelo livre-arbiacutetrio que o homem eacute imagem de Deus Eacute em virtude da posse
de seu agir isto eacute do poder agir por si mesmo que o homem se assemelha a Deus
O tema biacuteblico da semelhanccedila entre Deus e o homem eacute que vai orientar o estudo dos
atos humanos em Tomaacutes de Aquino O homem vai unir-se ao seu exemplar divino na
bem-aventuranccedila prometida E sendo esta o fim do homem o tema biacuteblico da
semelhanccedila pelo livre-arbiacutetrio e a noccedilatildeo de fim do homem promove atraveacutes de
Tomaacutes uma siacutentese entre o pensamento grego e o pensamento cristatildeo
O estudo dos atos humanos em Tomaacutes de Aquino engloba o tratado das
paixotildees com o objetivo de aprofundar de que maneira a sensibilidade pode contribuir
aos atos voluntaacuterios de modo que este estudo pode ser apresentado como um dos
mais profundos acerca do agir humano no plano moral Faz-se necessaacuterio pois uma
apresentaccedilatildeo do plano conjunto do trabalho de Tomaacutes de Aquino para
posteriormente refletir acerca das particularidades em relaccedilatildeo agrave temaacutetica da
reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica
A beatitude eacute a condiccedilatildeo mais almejada pelo cristatildeo Ela se constitui na visatildeo
amante de Deus eacute a bem-aventuranccedila A teoria dos atos humanos se encontra em
consonacircncia com a beatitude pois ela eacute o fim uacuteltimo do homem Neste sentido pode-
se afirmar que a eacutetica de Santo Tomaacutes eacute uma eacutetica da felicidade o que se encontra
profundamente em sintonia com a mensagem das bem-aventuranccedilas mas tambeacutem
se harmoniza com a moral aristoteacutelica enquanto uma eacutetica dos fins
O ser humano se encaminha agrave felicidade de modo particular A felicidade eacute
pois fruto das accedilotildees particulares auxiliadas pela graccedila de Deus Desse modo as
accedilotildees humanas devem ser compreendidas em seus aspectos fundamentais a saber
uma dimensatildeo voluntaacuteria obra de uma vontade livre que o estudo sobre os atos
humanos contempla e uma dimensatildeo ligada agrave sensibilidade contemplada no estudo
sobre as paixotildees da alma
79
522 Sindeacuterese e consciecircncia
Segundo Tomaacutes de Aquino a sindeacuterese eacute um habitus (cf AQUINO Tomaacutes
de S Th I 79 a12)58 Uma compreensatildeo adequada da Sindeacuterese exige um
aprofundamento acerca do modus operandi do raciociacutenio humano O intelecto em
virtude de seu objeto quando raciocina acerca de coisas inteligiacuteveis diz-se que se
ldquomoverdquo como um intelecto especulativo e quando raciocina sobre coisas da accedilatildeo se
move como uma razatildeo praacutetica Assim como haacute princiacutepios de ordem especulativa os
princiacutepios praacuteticos se relacionam agrave sindeacuterese como um habito natural especial Sua
funccedilatildeo eacute incitar o bem e condenar o mal Ela funciona como uma intuiccedilatildeo dos
primeiros princiacutepios da lei moral Eacute curioso o fato de Tomaacutes de Aquino definir a
Sindeacuterese como um habitus mas de natureza inata A Sindeacuterese natildeo se confunde
com a consciecircncia Ela eacute uma intuiccedilatildeo dos primeiros princiacutepios da moral enquanto
que a consciecircncia eacute o ato pelo qual se julga um ato que se realizou ou que seraacute
realizado Em seu ato a consciecircncia supotildee natildeo apenas a Sindeacuterese mas todo o
conhecimento moral que se apoacuteia sobre ela
A noccedilatildeo tomista da consciecircncia eacute a de que ela eacute um ato A funccedilatildeo da
consciecircncia eacute atestar obrigar e incitar e ainda acusar reprovar ou repreender (cf
AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)59 Estas funccedilotildees da consciecircncia se efetivam a
medida em o agente tem conhecimento ou ciecircncia do que se faz Tomaacutes de Aquino
esclarece que este conhecimento se daacute de trecircs maneiras quando se reconhece o que
se faz ou o que natildeo foi feito afirma-se que a consciecircncia atesta (Cf AQUINO Tomaacutes
de S Th I 79 a13)60 quando se julga que eacute preciso fazer ou natildeo uma accedilatildeo diz-se
que a consciecircncia incita ou obriga (Cf AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13 )61 e quando
se julga o meacuterito do que foi feito diz-se que a consciecircncia escusa62 acusa ou reprova
(cf AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)63
58 ldquoSynderesis non est potentia sed habitusrdquo 59 ldquoDicitur enim conscientia testificari ligare vel intigare et etiam accusare vel remordere sive
reprehendererdquo 60 ldquoQuod recognoscimus aliquid nos fecisse vel non fecisse [] conscientia dicitur testificarirdquo 61 ldquoQuod per nonstram conscientiam iudicamos aliquid esse faciendum vel non faciendum et secundum
hoc dicitur conscientia instigare vel ligarerdquo 62A escusa eacute uma razatildeo ou um pretexto invocado para eximir de uma obrigaccedilatildeo 63 ldquoQuod per conscientiam iudicamus quod aliquid quod est factum sit bene factum vel non bene factum
et secundum hoc conscientia dicitur excusare vel accusare seu remordererdquo
80
Tomaacutes de Aquino acrescenta que para desenvolver estas funccedilotildees faz-se
necessaacuteria ldquouma aplicaccedilatildeo atual de nosso conhecimento agrave nossa accedilatildeordquo (AQUINO
Tomaacutes de S Th I 79 a13)64 Esta informaccedilatildeo eacute relevante uma vez que a partir dela
entende-se que o autor natildeo estaacute a considerar o exerciacutecio da consciecircncia moral como
um funcionamento constante Isto eacute a consciecircncia passa a atuar efetivamente quando
os objetos relativos agraves accedilotildees assim a solicitam De certo modo esta compreensatildeo da
consciecircncia mitiga um entendimento contemporacircneo de que a concepccedilatildeo cristatilde de
homem da qual o pensamento moderno eacute devedor acreditaria que o homem pensado
como animal racional implicaria num actus ratiocinandi ad infinitum65
Ao final das consideraccedilotildees sobre a consciecircncia Tomaacutes de Aquino esclarece
como consciecircncia e sindeacuterese se relacionam Embora a consciecircncia seja um ato ela
natildeo eacute atualizada o tempo inteiro mas sempre que objetos relativos agrave sua accedilatildeo Desse
modo a consciecircncia necessita de um habitus que a faccedila atualizar-se A sindeacuterese
que conteacutem os primeiros princiacutepios da moral eacute quem naturalmente coopera na
atualizaccedilatildeo da consciecircncia
Deve-se dizer que o ato se permanece sempre em si mesmo permanence entretanto sempre em sua causa a potecircncia ou o habitus Os habitus pelos quais a consciecircncia eacute informada ainda que sejam muitos todos recebem a sua eficaacutecia de um primeiro a saber do habitus dos primeiros princiacutepios que se chama sindeacuterese Por isso e de modo especial esse habitus eacute por vezes chamado consciecircncia (AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)66
A relevacircncia desta afirmaccedilatildeo diz algo a mais sobre a concepccedilatildeo tomista de
homem Em relaccedilatildeo agraves questotildees da accedilatildeo pode-se afirmar que a consciecircncia moral eacute
o proacuteprio pensamento praacutetico que eacute posto em movimento por um habitus natural Uma
vez que este habitus natildeo eacute a razatildeo mesma em funcionamento talvez seja possiacutevel
defender que em Tomaacutes de Aquino haacute algo anaacutelogo ao lebenswelt russeliano um
mundo da vida ou uma instacircncia que de certo modo eacute anterior ao ato de raciocinar
523 O conceito de vontade
64 ldquoPatet autem quod omnia haec consequuntur actualem applicationem scientiae ad ea quae agimusrdquo 65 Para um melhor entendimento desta tese conferir o prefaacutecio de Ser e Tempo de Martim Heidegger 66 ldquoDicendum quod actus etsi non semper maneat in se semper tamen Manet in sua causa quae est
potentia et habitus Habitus autem ex quibus conscientia informatur etsi multi sint omnes tamen efficaciam habent ab uno primo scilicet ab habitu primorum principiorum qui dicitur synderesis Unde specialiter hic habitus interdum conscientia nominaturrdquo
81
Segundo Tomaacutes de Aquino o conceito de vontade se alinha agrave noccedilatildeo de
necessidade e estes se relacionam agrave noccedilatildeo de telos entendido aqui como a felicidade
que eacute um bem desejado por todos Tomaacutes de Aquino distingue diferentes noccedilotildees de
necessidade necessitas naturalis et absoluta necessitas finis e necessitas coactionis
A necessitas naturalis se apresenta quando a uma coisa algo se apresenta
em virtude de seus princiacutepios intriacutensecos sejam materiais ou formais Materialmente
eacute naturalmente necessaacuterio que o composto de contraacuterios se corrompa Formalmente
eacute naturalmente necessaacuterio que os acircngulos internos de um triacircngulo sejam iguais a
dois acircngulos retos Existem tambeacutem princiacutepios extriacutensecos que garantem este tipo de
necessidade diga-se por exemplo a morte como causa final ou a geraccedilatildeo como
causa eficiente (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)67
A necessitas finis se potildee quando algueacutem natildeo pode atingir seu fim ou atingi-lo
convenientemente sem esse princiacutepio Tomaacutes de Aquino cita o exemplo da
alimentaccedilatildeo para atingir uma vida saudaacutevel ou o cavalo para se chegar ao destino
pretendido (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1 )68 Finalmente quando um ente
eacute constrangido de tal modo que natildeo pode fazer o contraacuterio a necessidade eacute pensada
como necessitas coactionis (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)69
Deve-se perceber que a necessitas coactionis eacute contraacuteria agrave vontade pois se
constitui como uma violecircncia agrave inclinaccedilatildeo de ser humano Natildeo eacute difiacutecil chegar a uma
compreensatildeo da liberdade em Tomaacutes de Aquino atraveacutes das elucidaccedilotildees acerca do
conceito de vontade Pode-se afirmar primeiramente que a liberdade se refere a uma
ausecircncia de constrangimento externo Este se constitui como um niacutevel baacutesico da
noccedilatildeo de liberdade Aleacutem disso eacute importante salientar que seraacute possiacutevel estabelecer
uma distinccedilatildeo entre a liberdade como ausecircncia de constrangimento interno e a
liberdade como uma orientaccedilatildeo racional ao fim e inclusive como independecircncia em
relaccedilatildeo aos ditames de livre-arbiacutetrio que eacute a fonte mais primordial de exerciacutecio da
vontade mas que ainda natildeo pode ser considerada liberdade no sentido pleno
Uma vez que o conceito de vontade (ou voluntaacuterio) oferece ldquoluzesrdquo ao conceito
de liberdade eacute tambeacutem possiacutevel chegar ao conceito de involuntaacuterio e este relaciona-
67 ldquoSobre a necessitas naturalis et absoluta Tomaacutes de Aquino afirma Quod quid convenit alicui uno
modo ex principio intriacutenseco sive materiali [] sive formali [] Alio modo convenit alicui quod non possit non esse ex aliquo extriacutenseco vel fine vel agenterdquo
68 ldquoFine quidem aut bene consequi finem aliquem ut cibus dicitur necessaries ad vitam et equus ad iter Et haec vocatur necessitas finis quae interdum etiam utilitas diciturrdquo
69 ldquoEx agente autem hoc alicui convenit sicut cum aliquis cogitur ab aliquo agente it quod non possit contrarium agere Et haec vocatur necesssitas coactionisrdquo
82
se ao conceito de necessitas coactionis Um agente constrangido a fazer o que natildeo
deseja eacute algueacutem que age involuntariamente Mas a liberdade estaacute para aleacutem do agir
pois eacute ateacute possiacutevel obrigar que algueacutem faccedila alguma coisa mas natildeo eacute possiacutevel obrigaacute-
lo a querer fazer
Assim pois Tomaacutes de Aquino entende que o movimento da vontade eacute uma
certa inclinaccedilatildeo para algo Desse modo ldquoassim como se chama natural o que eacute
segundo a inclinaccedilatildeo da natureza chama-se de voluntaacuterio o que eacute segundo a
inclinaccedilatildeo da vontaderdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1) Entretanto este apetite
denominado de vontade eacute de natureza racional Para entender esta afirmaccedilatildeo deve-
se estabelecer em relaccedilatildeo agrave vontade agrave distinccedilatildeo entre irasciacutevel e o concupisciacutevel
A alma possui potecircncias sensitivas e intelectivas estas uacuteltimas satildeo tambeacutem
chamadas de potecircncias espirituais O apetite sensitivo se diversifica em concupisciacutevel
quando se refere agrave razatildeo de bem no sentido daquilo que agrada aos sentidos e em
irasciacutevel quando se refere agrave razatildeo de bem enquanto se busca evitar aquilo que eacute
prejudicial (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a5)70 Estes apetites satildeo ambos da
ordem da sensibilidade A vontade poreacutem diz respeito agrave razatildeo faz parte dela
voluntas in ratione est A vontade eacute proacuteprio apetite intelectivo e por isso mesmo o
bem a que a vontade apetece eacute o bem sob razatildeo universal
Este conceito aprofunda a noccedilatildeo de voluntaacuterio e involuntaacuterio e eacute entendido
como um movente das accedilotildees tanto naturalmente como teleologicamente Natildeo haacute
segundo Tomaacutes de Aquino uma oposiccedilatildeo entre a necessidade de um fim e a ideia de
vontade ldquoA necessidade de fim natildeo repugna agrave vontade quando ela natildeo pode atingir
esse fim senatildeo por um soacute meio por exemplo quando se tem a vontade de atravessar
o mar eacute necessaacuterio a vontade que queira um naviordquo (AQUINO Tomas de S Th I q
82 a1)71 Resulta claramente que natildeo haacute oposiccedilatildeo entre a liberdade e teleologia em
Tomaacutes de Aquino
Desse modo Tomaacutes de Aquino compatibiliza a ideia de liberdade com a ideia
de fim Analogicamente assim como o intelecto adere aos primeiros princiacutepios a
vontade deve pois aderir ao fim uacuteltimo que eacute a bem-aventuranccedila uma vez que a
70ldquoAppetitus autem sensitivus non respicit comunem rationem boni quia nec sensus apprehendit
universal Et ideo secundum diversas rationes particularium bonorum diversiticantur partes appetites sensitive nam concupiscibilis respicit propriam rationem boni inquantum est delectabile secundum sensum et conveniens naturae irascibilis autem respicit rationem boni secundum quod est repulsivum et impugnativum eius quod infet nocumentumrdquo
71 ldquoNecessitas autem finis non repugnat valuntati quando ad finem non potest perveniri nisi uno modo sicut ex voluntate transeundi mare fit necessitas in voluntate ut velit navemrdquo
83
bem-aventuranccedila ou a felicidade eacute almejada por todos Assim sendo compreende-
se que o fato de haver uma vontade natural natildeo implica uma contradiccedilatildeo com uma
vontade livre
Um esclarecimento deve ser feito nestas teses de Tomaacutes de Aquino Ele retira
a felicidade como sendo o fim uacuteltimo do homem pelo fato de todos os seres humanos
serem dotados de vontade e este desejo eacute universal pois decorre da natureza humana
o fato de todos desejarem ser felizes Poucas pessoas parecem duvidar desta tese
entretanto eacute possiacutevel concluir que o problema natildeo estaacute no fato de todos desejarem a
felicidade mas no itineraacuterio que cada pessoa particularmente percorre para atingi-la
Tomaacutes de Aquino salienta que a escolha natildeo versa sobre o fim ela versa sobre
os meios para o fim (Cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)72 Isto implica em dizer
que o fato de a felicidade ser o fim uacuteltimo do homem natildeo tem nada aver com sua
escolha uma vez que este eacute o fim natural a que todos tendem o destino potencial de
todo homem Por que o destino potencial Naturalmente este ldquodestinordquo natildeo implica
um fim inexoraacutevel mas o horizonte que daacute sentido agraves accedilotildees praticadas Elas devem
ser orientadas de modo a tornar mais acessiacutevel o alcance desse fim Na eacutetica de
Tomaacutes de Aquino assim como na eacutetica de Aristoacuteteles as accedilotildees satildeo apropriadas em
virtude do bem que elas proporcionam e natildeo porque o valor das accedilotildees se encerra
nelas proacuteprias A eacutetica de Tomaacutes de Aquino seguindo a moral aristoteacutelica vai propor
o exerciacutecio das accedilotildees virtuosas como o meio para se atingir essa felicidade
O ato de buscar a felicidade atraveacutes das virtudes aleacutem de ser a maneira mais
adequada a essa busca apresenta indiretamente a forccedila que a ideia de liberdade
possui na eacutetica cristatilde Henrique de Lima Vaz lendo Hegel afirma que ldquoa ideia de
liberdade pertence agrave esfera da manifestaccedilatildeo mais alta do Espiacuterito da sua
manifestaccedilatildeo como razatildeordquo e complementa ldquopara Hegel o momento decisivo em que
na cultura do Ocidente a razatildeo se manifesta como liberdade tem lugar com o advento
do Cristianismordquo (VAZ 2002 p 14) No esquema geral da Suma Teoloacutegica eacute por livre
vontade que homem opera um caminho de retorno a Deus Assim a ideia de liberdade
pode ser apontada como elemento distinto na reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e o
pensamento cristatildeo
72 ldquoElectio autem non est de fine sed de his quae sunt ad finemrdquo
84
524 A relaccedilatildeo entre inteligecircncia e vontade
A Inteligecircncia e a vontade satildeo duas potecircncias espirituais e ambas fazem parte
da capacidade racional das substacircncias intelectuais Tomaacutes de Aquino investiga a
relaccedilatildeo de superioridade de uma potecircncia em relaccedilatildeo a outra a partir da noccedilatildeo de
superioridade em termos absolutos e em termos relativos Tomaacutes de Aquino explica o
sentido de absoluto e relativo
A superioridade de uma coisa sobre outra pode ser considerada de dois modos quer absolutamente quer relativamente Uma coisa eacute tal absolutamente quando ela eacute isso em si mesma e eacute tal relativamente quando o eacute em relaccedilatildeo a outra (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a3)73
Absolutamente o intelecto eacute superior agrave vontade uma vez que a razatildeo do bem
desejaacutevel eacute apreendida pelo intelecto e este bem eacute objeto da vontade Nesse sentido
a superioridade daquele em relaccedilatildeo a esta se daacute porque eacute em virtude da accedilatildeo do
intelecto que a vontade se apropria de seu objeto Sem a accedilatildeo do intelecto entende-
se que a vontade natildeo teria o seu objeto mais proacuteprio Nesse caso o intelecto
considerado em si mesmo e absolutamente eacute uma potecircncia superior agrave vontade
Tomaacutes de Aquino esclarece
O objeto do intelecto eacute mais simples e absoluto que o da vontade Com efeito o objeto do intelecto eacute a proacutepria razatildeo do bem desejaacutevel e o bem desejaacutevel cuja razatildeo estaacute no intelecto eacute objeto da vontade Ora quanto mais uma coisa eacute simples e abstrata tanto mais eacute em si mesma mais nobre e superior Portanto o objeto do intelecto eacute superior ao objeto da vontade (AQUINO Tomas de S Th I q 82
a3)74
A partir desta afirmaccedilatildeo compreendem-se as duas grandes linhas da eacutetica
cristatilde que influenciaram por demais o desenvolvimento da filosofia moral no
Ocidente De um lado haacute os que defendem uma precedecircncia do intelecto sobre a
vontade assim como Tomaacutes de Aquino e estes satildeo chamados de intelectualistas
73 ldquoquod eminentia alicuius ad alterum potest attendi dupliciter uno modo simpliciter alio modo
sedundum quid Consideratur autem aliquid tale simpliciter prout est secundum seipsum tale secundum quid autem prout dicitur tale secundum respectum ad alterumrdquo
74 ldquoObiectum enim intellectus est simplicius et magis absolutum quam obiectum voluntatis nam obiectum intellectus est ipsa ratio boni appetibilis bonum autem appetibile cuius ratio est in intellectu est obiectum voluntatis Quanto autem aliquid est simplicius et abstractius tanto secundum se est nobilius et altius Et ideo obiectum intellectus est alius quam obietum voluntatis Cum ergo proacutepria ratio potentiae sit secundum ordinem ad obiectum sequitur quod secundum se et simpliciter intellectus sit altior et nobilior voluntaterdquo
85
Por outro lado os pensadores que defendem que intelecto e vontade tecircm o mesmo
status sendo a vontade igualmente autocircnoma independente do intelecto no seu
operar satildeo chamados de voluntaristas
Em termos relativos eacute possiacutevel considerar que a vontade seja superior ao
intelecto pois o objeto da vontade eacute superior ao do intelecto se se considerar que eacute
melhor amar a Deus do que conhececirc-lo Desse modo e relativamente ldquoquando a coisa
na qual estaacute o bem eacute mais nobre que a proacutepria alma em que se encontra a razatildeo desta
coisa a vontade eacute superior ao intelectordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a3 )75 O
bem eacute objeto de inclinaccedilatildeo da vontade O intelecto conhece o fim uacuteltimo e o
proporciona agrave vontade que por sua vez move todas as outras potecircncias em busca
desse bem que eacute a felicidade perfeita
Eacute possiacutevel notar uma pequena distinccedilatildeo entre Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino
No livro X da Eacutetica a Nicocircmacos Aristoacuteteles defende que a felicidade perfeita consiste
na vida contemplativa isto eacute na accedilatildeo do intelecto
Mas se a felicidade consiste na atividade conforme agrave excelecircncia eacute razoaacutevel que ela seja uma atividade conforme a mais alta de todas as formas de excelecircncia e esta seraacute a excelecircncia da melhor parte de cada um de noacutes Se esta parte melhor eacute o intelecto ou qualquer outra parte considerada naturalmente dominante em noacutes e que nos dirige e tem o conhecimento das coisas nobilitantes e divinas se ela mesma eacute divina ou somente a parte mais divina existente em noacutes entatildeo sua atividade conforme agrave espeacutecie de excelecircncia que lhe eacute pertinente seraacute a felicidade perfeita Jaacute dissemos que esta atividade eacute contemplativa (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco 1176b4 2001 p 201)
Por outro lado a posiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino se dirige primeiramente a
considerar a felicidade como estado no qual o amor como accedilatildeo da vontade atuaria
mais primordialmente que o intelecto Aquilo que possui uma existecircncia espiritual seja
Deus outra pessoa a proacutepria verdade ou ainda a beleza eacute superior ao ato de
pensar Tomaacutes de Aquino conserva a tese aristoteacutelica de superioridade do intelecto
entretanto ao inserir a distinccedilatildeo entre superioridade absoluta e superioridade relativa
coloca a felicidade em relaccedilatildeo ao amor e natildeo ao conhecimento
O ponto de equiliacutebrio entre as teses desses dois autores estaacute no lugar onde a
felicidade deve ser efetivada Aristoacuteteles pensava a felicidade circunscrita agrave Cidade
75 ldquoQuando igitur res in qua est bonum est nobilior ipsa anima in qua est ratio intellect per
comparationem ad talem rem voluntas est altior intellecturdquo
86
mas de certo modo desapegada como uma atividade autocircnoma isto eacute auto-
suficiente Aristoacuteteles acrescenta
Somente esta atividade parece ser estimada por sua proacutepria causa pois nada decorre dela aleacutem da proacutepria atividade de contemplar enquanto com as atividades de ordem praacutetica obtemos algumas vantagens maiores ou menores aleacutem da proacutepria accedilatildeo (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco 1176b4 2001 1177b p 202)
A vida feliz ou beatitude para Tomaacutes de Aquino soacute pode ser encontrada na
totalidade do bem na realizaccedilatildeo concreta e efetiva do Bem universal o que implica
num processo de retorno a Deus pois esta vida natildeo comporta a realizaccedilatildeo da
felicidade enquanto tal Esta concepccedilatildeo de Beatitude promove uma profunda
revoluccedilatildeo em relaccedilatildeo ao pensamento grego e o pensamento cristatildeo A
eudaimoniapara Aristoacuteteles encontra seu sentido no cosmocentrismo grego Por outro
lado a ideia de Beatitude ultrapassa os limites do cosmos grego De modo que Tomaacutes
de Aquino assume a ideia de Felicidade como fim uacuteltimo do ser humano mas ela eacute
realizada num niacutevel que estaacute para aleacutem do cosmocentrismo grego A superaccedilatildeo do
cosmocentrismo grego pelo teocentrismo cristatildeo seraacute elucidado mais adequadamente
adiante Antes poreacutem deve ser aprofundada a questatildeo da liberdade do ato voluntaacuterio
525 A liberdade do ato voluntaacuterio e a distinccedilatildeo entre liberdade e livre-
arbiacutetrio
A teoria tomista do livre-arbiacutetrio eacute de certo modo uma busca por compreender
o que diz respeito ao intelecto e agrave vontade num ato livre Dito de outra maneira o
empreendimento de Tomaacutes de Aquino pode ser traduzido pela seguinte pergunta
existe num ato livre a atuaccedilatildeo de alguma outra potecircncia aleacutem da inteligecircncia e da
vontade Seu aprofundamento acerca dessa temaacutetica traz distinccedilotildees fundamentais
que aleacutem de se fundamentarem no questionamento aristoteacutelico acerca do voluntaacuterio
e do involuntaacuterio promovem distinccedilotildees que seratildeo essenciais agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica
posterior
O desenvolvimento da questatildeo do livre-arbiacutetrio estaacute na questatildeo 83 da primeira
parte da Suma Teoloacutegica A questatildeo eacute dividida em quatro artigos e defende a tese
geral de que a liberdade eacute uma propriedade do ato voluntaacuterio na condiccedilatildeo de que
87
este seja exprimido em um juiacutezo que incida sobre a conveniecircncia ou natildeo do objeto do
querer A liberdade do homem consiste pois num ato de julgar que natildeo eacute
condicionado
O significado dos preceitos conselhos exortaccedilotildees assim como das
proibiccedilotildees recompensas e penas soacute estaacute garantido graccedilas ao livre-arbiacutetrio Tomaacutes
de Aquino estabelece uma distinccedilatildeo entre coisas que agem sem julgamento outras
que agem com julgamento e mesmo assim natildeo satildeo livres e outras que agem com o
julgamento livre
Deve-se considerar que certas coisas agem sem julgamento Por exemplo a pedra que se move para baixo e igualmente todas as coisas que natildeo tecircm conhecimento Outras coisas agem com julgamento mas esse natildeo eacute livre como os animais Por exemplo a ovelha vendo o lobo julga que eacute preciso fugir eacute um julgamento natural mas natildeo livre pois natildeo julga por comparaccedilatildeo mas por instinto natural [] o homem poreacutem age com julgamento porque por sua potecircncia cognoscitiva julga que se deve fugir de alguma coisa ou procuraacute-la Mas como esse julgamento natildeo eacute efeito de um instinto natural aplicado a uma accedilatildeo particular mas de uma certa comparaccedilatildeo da razatildeo por isso o homem age com julgamento livre podendo se orientar para diversos objetos (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1 )76
A liberdade tem a ver com o libero iudicium O julgamento livre eacute a expressatildeo
mais perfeita da liberdade do ser humano Aqui Tomaacutes de Aquino estabelece uma
distinccedilatildeo importante a saber a distinccedilatildeo entre o julgamento natural ou instintivo e o
julgamento racional Embora ambos sejam julgamentos lsquopraacuteticosrsquo apenas o ente que
possui o livre-arbiacutetrio isto eacute possui julgamento racional eacute senhor desse julgamento
Ambos os juiacutezos satildeo mandados pois prescrevem que o agente deve fazer algo mas
somente o ente que possui livre-arbiacutetrio atraveacutes da potecircncia cognoscitiva o intelecto
pode apresentar a si um julgamento que conduza ao bem Portanto eacute pela
racionalidade que o homem eacute dotado de livre-arbiacutetrio
Aqui se apresenta um questionamento importante por que muitas vezes
deseja-se contrariamente ao que o intelecto indica E como pode um ente que tem
seu ser criado ser livre As respostas podem ser encaminhadas da seguinte forma
76 ldquoConsiderandum est quod quaedam agunt absque iudicio sicut laacutepis movetur deorsum et similiter
omnia cognitione carentia Quaedam autem agunt iudicio sed non libero sicut animalia bruta Iudicat enim ovis videns lupum eum esse fugiendum naturali iudicio et non libero quia non ex collatione sed ex naturali instinctu hoc iudicat [] Sed homo agit iudicio quia per vim cognoscitivam iudicat aliquid iudicium istud non est ex naturali instinctu in particulari operabili sed ex collatione quadam rationis ideo agit libero iudicio potens in diversa ferrirdquo
88
em relaccedilatildeo agrave primeira pergunta diz-se que o fato de haver uma escolha da razatildeo natildeo
impede o desejo do apetite sensiacutevel mas pode impedir a sua realizaccedilatildeo Neste
sentido pode-se entender que a liberdade natildeo eacute necessariamente natildeo ter um
determinado desejo mas de certo modo consiste em estar acima das proacuteprias
inclinaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave segunda questatildeo o proacuteprio Tomaacutes de Aquino afirma que
ldquonatildeo eacute necessaacuterio agrave liberdade que o que eacute livre seja a causa primeira de si mesmordquo
(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1 )77 Assim mesmo que o homem tenha seu ser
por outro seja um ensab alio em relaccedilatildeo aos seus julgamentos ele permanece livre
e conta com o respeito de Deus em relaccedilatildeo agrave sua liberdade pois ldquoDeus opera em
cada um segundo a natureza que lhe eacute proacutepriardquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83
a1)78
Note-se que Tomaacutes de Aquino natildeo fala em accedilotildees livres mas em julgamentos
livres Ora eacute ateacute possiacutevel entender que alguma forccedila externa possa obrigar algueacutem a
agir de determinada maneira de modo que este seja obrigado a fazer algo que na
verdade natildeo deseje Embora ele possa fazer isto natildeo implica que ele queira fazer
Assim sendo mesmo que natildeo se mencione a palavra intenccedilatildeo ela estaacute latente neste
artigo da Suma Com isto eacute possiacutevel compreender a radicalidade com que Tomaacutes de
Aquino concebe a liberdade humana a ponto de considerar que ldquonada haacute que repugne
a liberdade do livre-arbiacutetriordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1)79
Todas as deliberaccedilotildees e accedilotildees do ser humano passam pela faculdade racional
ateacute mesmo as inclinaccedilotildees do apetite sensiacutevel devem passar pelo assentimento ou natildeo
da razatildeo A razatildeo por ateacute obedecer a um destes apetites ditos inferiores (cf AQUINO
Tomaacutes de S Th I q 83 a1)80 E aqui eacute possiacutevel aprofundar a noccedilatildeo tomista de
liberdade Com efeito a liberdade do ser humano eacute tamanha que mesmo o
assentimento do homem a algum apetite sensitivo eacute ainda ato de uma razatildeo sem
constrangimento mas que natildeo eacute livre enquanto tal pois a liberdade mesma eacute aquela
na qual o ser humano escolhe em favor do que eacute melhor isto eacute em favor do bem O
livre-arbiacutetrio eacute pois uma potecircncia que eacute sujeito da graccedila e com o seu auxiacutelio escolhe
o bem (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a2)81
77 ldquoNon tamen hoc est de necessitate libertatis quod sit prima causa sui id quod liberum estrdquo 78 ldquoOperatur enim in unoquoque secundum eius proprietatemrdquo 79 ldquoEt sic nihil est quod libertati arbitrii repugnetrdquo 80 ldquoSed istae inclinationes subiacent iudicio rationis cui obedit inferior appetitus ut dictum estrdquo 81 ldquoSed liberum arbitrium est subiectum gratiae qua sibi assistente bonum eligit Ergo liberum arbitrium
est potentiardquo
89
Natildeo eacute de se admirar que a graccedila seja auxiliar do livre-arbiacutetrio O seu auxiacutelio natildeo
implica uma negaccedilatildeo da liberdade do homem uma vez que este por si mesmo pode
negar o este auxiacutelio Contudo natildeo dirigir as escolhas em favor do bem eacute abrir matildeo
de ser realmente livre Esta eacute uma relaccedilatildeo curiosa pois sem o livre-arbiacutetrio natildeo se
pode ser livre mas com a sua atuaccedilatildeo se pode ateacute escolher mas natildeo ser livre
propriamente Tomaacutes afirma que ldquoo livre-arbiacutetrio eacute indiferente a escolher bem ou malrdquo
(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a2)82 Assim sendo sem o livre-arbiacutetrio natildeo eacute
possiacutevel algueacutem ser livre mas com ele a liberdade ainda natildeo estaacute garantida Ser livre
eacute estar livre de todas as formas de submissatildeo inclusive a do livre-arbiacutetrio quando este
escolhe o mal
Esta distinccedilatildeo eacute por demais relevante e natildeo eacute agrave toa que autores como Kant
seratildeo influenciados por esta distinccedilatildeo entre liberdade e livre-arbiacutetrio Kant utiliza uma
terminologia diferente mas que ao final pressupotildee a distinccedilatildeo ora apresentada A
terminologia kantiana eacute a do arbiacutetrium brutum e o livre-arbiacutetrio sendo o primeiro o
sentido de livre-arbiacutetrio e o segundo a liberdade ldquodaacute-se o nome de livre arbiacutetrio agrave
escolha que pode ser determinada pela razatildeo pura a que pode ser determinada
somente pela inclinaccedilatildeo (impulso sensiacutevel estiacutemulo) seria o arbiacutetrio animal (arbitrium
brutum) (cf KANT 2003 p 63)
A questatildeo 83 da Suma conclui precisando a relaccedilatildeo entre vontade e livre-
arbiacutetrio Em relaccedilatildeo agrave potecircncia da qual fazem parte pode-se afirmar que vontade e
livre-arbiacutetrio satildeo uma e mesma coisa porque ambos dizem respeito agrave eleiccedilatildeo
Contudo em relaccedilatildeo ao modus operandi cada uma opera de modo distinto a saber
o livre-arbiacutetrio opera na deliberaccedilatildeo a vontade na accedilatildeo
A proposiccedilatildeo de uma teoleologia na moralidade implica uma negaccedilatildeo da
autonomia Cabe esclarecer que esta oposiccedilatildeo entre teleologia e autonomia natildeo eacute
uma oposiccedilatildeo real as duas natildeo satildeo diretamente opostas Filosoficamente Tomaacutes de
Aquino por exemplo soube compatibilizar telos e liberdade
O modo como Tomaacutes de Aquino compreende a constituiccedilatildeo do homem na
Suma Teoloacutegica natildeo encontra dificuldades entre afirmar o livre arbiacutetrio ao homem e
ao mesmo tempo afirmar que por sua natureza o homem eacute capaz de agir em virtude
de um fim Faz-se necessaacuteria pois uma exposiccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio e de
82 ldquoLiberum autem arbitrium indifferenter se habet ad bene eligendum vel malerdquo
90
telos em Tomaacutes de Aquino a fim de mostrar como o autor compatibiliza telos e
autonomia
Deve-se esclarecer primeiramente que a exposiccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-
arbiacutetrio e a noccedilatildeo de finalidade como telos das accedilotildees se encontram em momentos
distintos da Suma Teoloacutegica A noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio estaacute na seccedilatildeo em que Tomaacutes
de Aquino dedica agrave criaccedilatildeo e ao Governo Divino Esta seccedilatildeo se insere na 1ordf parte da
Suma Teoloacutegica como o momento da accedilatildeo de Deus A 1ordf parte discorre sobre Deus
quem ele eacute como conhececirc-lo e sobre a Trindade (S Th I 1-43) o segundo momento
ainda da 1ordf parte apresenta a accedilatildeo de Deus que eacute a sua criaccedilatildeo (S Th I 44-119)
Justamente aqui situa-se a apresentaccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio
Jaacute a noccedilatildeo de Telos ou como diz Tomaacutes de Aquino fim do homem
encontra-se na primeira seccedilatildeo da 2ordf parte da Suma Teoloacutegica que vai das questotildees
1-48 (S Th I - IIae 1-48) Esta parte da Suma apresenta o retorno da criaccedilatildeo a Deus
particularmente com a busca livre do homem para Deus que eacute o conceito cristatildeo de
beatitude
A resposta eacute natildeo A proposiccedilatildeo de uma teleologia aqui tem a funccedilatildeo de ser o
resultado das accedilotildees virtuosas isto eacute numa eacutetica teleoloacutegica o valor de uma accedilatildeo natildeo
reside na accedilatildeo em si mesma
A verdade e o bem se incluem mutuamente Pois a verdade eacute um bem sem o que natildeo seria inteligiacutevel Do mesmo modo portanto que o objeto do apetite pode ser uma coisa verdadeira enquanto tem a razatildeo de bem por exemplo quando se deseja conhecer a verdade do mesmo modo o objeto do intelecto praacutetico eacute o bem que pode ser ordenado agrave accedilatildeo sob a razatildeo de verdadeiro O intelecto praacutetico com efeito conhece a verdade como o intelecto especulativo mas ordena agrave accedilatildeo essa verdade conhecida (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 79 a11)83
Para Tomaacutes de Aquino o valor de uma accedilatildeo seraacute relativo agrave finalidade que ela
atingiraacute Talvez a oposiccedilatildeo mais apropriada seria entre Destino e Autonomia ao inveacutes
de se pensar em termos de teleologia e autonomia
83 ldquoDicendum quo verum et bonum se invicem includunt nam verum est quoddam bonum alioquin non
esset appetibile et bonum est quoddam verum alioquin non esset intelligibile Sicut igitur obiectum appetites potest esse verum inquantum habet rationem boni sicut cum aliquis appetit veritatem cognoscere ita objectum intellectus practici est bonum ordinabile ad opus sub ratione veri Intellectus enim practicus veritatem cognoscit sicut et speculativus sed veritatem cognitam ordinat ad opusrdquo
91
526 A intenccedilatildeo
A definiccedilatildeo claacutessica de intenccedilatildeo se deve a Tomaacutes de Aquino No acircmbito da
filosofia moral a ideia eacute a de que a intenccedilatildeo eacute uma vontade que faz a accedilatildeo em uma
meta ao mesmo tempo proacutexima e longiacutenqua precisa e vasta indo ateacute o fim uacuteltimo A
intenccedilatildeo envolve pois a potecircncia da vontade para engendrar uma accedilatildeo e para mover-
se em busca do fim O desenvolvimento do conceito de intenccedilatildeo estaacute expresso na
questatildeo 12 da Primeira parte da Segunda Parte da Suma Teoloacutegica Nos quatro
artigos que compotildeem a questatildeo Tomaacutes de Aquino apresenta a intenccedilatildeo e o seu
objeto (a 1-2) e explicita o ato da intenccedilatildeo (a 3-4)
Tomando a definiccedilatildeo de Agostinho a intenccedilatildeo propriamente dita se refere
agravequilo que move uma coisa a seu fim (cf AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a1)84
Neste sentido como eacute a vontade que move todas as potecircncias a um fim a intenccedilatildeo
se constitui como ato da vontade ldquoOra a vontade move todas as outras potecircncias da
alma para o fim como foi estabelecido acima Eacute manifesto portanto que a intenccedilatildeo eacute
propriamente ato da vontaderdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a1)85
Existe ainda relaccedilatildeo entre Vontade razatildeo e intenccedilatildeo Agrave vontade cabe tender
ao fim enquanto cabe agrave razatildeo ordenar O papel da intenccedilatildeo consiste em ser o
movimento da vontade actus voluntatis em busca do fim uacuteltimo conforme
ordenamento da racionalidade Aleacutem disso a intenccedilatildeo embora se refira
primeiramente ao fim uacuteltimo natildeo exclui a relaccedilatildeo com os fins intermediaacuterios desde
que estes estejam relacionados ao fim uacuteltimo ldquonem sempre eacute necessaacuterio que [a
intenccedilatildeo] seja do fim uacuteltimordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a2 )
Qual o alcance desta reflexatildeo de Tomaacutes de Aquino A intencionalidade
promove uma unidade nos atos voluntaacuterios pois cada accedilatildeo se encontra concatenada
na busca do homem pela felicidade Assim eacute possiacutevel se falar a partir de Tomaacutes de
Aquino de uma unidade da vida moral Esta unidade da vida moral atraveacutes da
intencionalidade garante uma ligaccedilatildeo interna de todos os fins intermediaacuterios
alcanccedilados pelo homem na busca do fim uacuteltimo
84 ldquoUnde intentio primo et principaliter pertinent ad id quod movet ad finemrdquo 85 ldquoVoluntas autem movet omnes alias vires animae ad finem ut supra habitum est Unde manifestum
est quod intentio proprie est actus voluntatisrdquo
92
Natildeo eacute de admirar que a intenccedilatildeo possa se referir a vaacuterias coisas
simultaneamente Tomas de Aquino afirma
A arte imita a natureza Mas a natureza por um soacute instrumento busca duas utilidades ldquocomo a liacutengua que se ordena para o gosto e para falarrdquo diz o livro II da Alma Logo pela mesma razatildeo a arte e a razatildeo podem simultacircneas ordenar para dois fins uma soacute coisa Assim sendo algueacutem pode ter a intenccedilatildeo de muitas coisas simultaneamente (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a3)86
Tomaacutes de Aquino indica que aleacutem da razatildeo a arte tambeacutem pode proporcionar
finalidades e como conclusatildeo a intenccedilatildeo pode se referir a vaacuterias coisas Nesse
sentido compreende-se que ela pode combinar diversos planos nos quais os fins
podem ser dados Este reconhecimento da multiplicidade de coisas as quais a
intenccedilatildeo pode se referir explica de certo modo porque frequentemente os homens
se perdem em suas buscas Natildeo eacute a toa que Tomaacutes sugere uma cooperaccedilatildeo entre a
razatildeo a vontade e a intenccedilatildeo
Tambeacutem eacute relevante o fato de a intenccedilatildeo ser cooperadora da razatildeo na
descoberta de fins Se a arte eacute uma instacircncia distinta da razatildeo e se a intenccedilatildeo tambeacutem
pode se referir a ela pode-se afirmar que aleacutem do fim ordenado pela razatildeo natildeo haacute
um impedimento da participaccedilatildeo da intenccedilatildeo na construccedilatildeo do agir humano o que
implica uma abertura agrave liberdade da intenccedilatildeo nesta construccedilatildeo Pode-se concluir que
os juiacutezos praacuteticos e a escolha livre resultam da interaccedilatildeo entre a racionalidade e a
intenccedilatildeo voluntaacuteria
Existe finalmente uma conexatildeo entre intenccedilatildeo e vontade Tomaacutes de Aquino
afirma que ldquonas as coisas voluntaacuterias um soacute movimento eacute a intenccedilatildeo do fim e a
vontade do que eacute para o fimrdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a3)87 Embora agrave
vontade se relacione com aquilo eacute que para o fim uma vez que ela elege os meios
para atingi-lo sua relaccedilatildeo com a intenccedilatildeo que eacute o seu proacuteprio movimento eacute
constituiacuteda como um movimento uacutenico Pode-se entatildeo afirmar que a conexatildeo entre
intenccedilatildeo e vontade eacute de tal modo que natildeo se pode afirmar uma sem a outra
O estudo da intenccedilatildeo em Tomaacutes de Aquino aprofunda uma questatildeo que estava
em Aristoacuteteles apenas de modo latente Natildeo se pode afirmar que em Aristoacuteteles natildeo
havia uma preocupaccedilatildeo com a intenccedilatildeo poreacutem o seu detalhamento se deve ao
86 ldquoArs imitatur naturam Sed natura ex uno instrument intendit duas utilitates sicut lingua ordinatur et
ad gustum et ad locutionem dicitur in II de Anima Ergo pari ration ears vel ratio potest simul aliquid unum ad duos fines ordinare Et ipsa aliquis simul plura intendererdquo
87 ldquoIn rebus voluntariis idem motus est intentio finis et voluntas eius quod est ad finemrdquo
93
Aquinate A intenccedilatildeo eacute de tal modo necessaacuteria que estaacute presente em cada um dos
atos concernentes aos meios e a escolha eacute ativa em todo desenvolvimento das accedilotildees
53 TOMISMO E EacuteTICA DAS VIRTUDES
Alguns elementos da Psicologia Filosoacutefica de Santo Tomaacutes foram expostos de
modo que foram elucidados como elementos que ou eram desconhecidos ao
pensamento moral aristoteacutelico ou foram insuficientemente aprofundados Cabe entatildeo
verificar quais satildeo os elementos distintivos em relaccedilatildeo agraves proacuteprias virtudes Para isto
aleacutem do proacuteprio Santo Tomaacutes investigou-se o pensamento de Giuseppe Abbaacute
Juvenal Savian Filho Henrique de Lima Vaz Joseph Pieper entre outros que
contribuiacuteram significativamente nesta parte da pesquisa
Em geral natildeo se tem duacutevida de que Tomaacutes de Aquino operou uma releitura do
cristianismo por meio do pensamento aristoteacutelico Cabe pois aleacutem de demonstrar que
mudanccedilas essa releitura provocou explicitar de que modo elas ecoaram no
pensamento moral contemporacircneo Com a realizaccedilatildeo desta tarefa espera-se fazer
entender um dos principais objetivos desta pesquisa mostrar que um retorno
contemporacircneo a Eacutetica das Virtudes deve considerar a influecircncia do pensamento
cristatildeo pelo vieacutes de uma leitura tomasiana Um dos pontos de importacircncia capital para
a pesquisa eacute defender que algumas distinccedilotildees entre o conceito aristoteacutelico e o
conceito tomista de virtude a saber a relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo
de liberdade constituem-se como contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino agrave Eacutetica das
Virtudes e agrave histoacuteria da eacutetica ocidental em geral
Esta seccedilatildeo da pesquisa cumpre a tarefa de mostrar como Tomaacutes de Aquino
opera mudanccedilas significativas no acircmbito da Eacutetica das Virtudes Ele apresenta por um
lado acreacutescimos relevantes agrave moral de Aristoacuteteles e por outro permite afirmar que
muitos desses aspectos se incorporam agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica posterior A partir desta
compreensatildeo pretende-se concluir que propor uma Eacutetica das Virtudes ao
pensamento contemporacircneo negligenciando estes aspectos produz certa fragilidade
agrave proposta Por fim esta seccedilatildeo faraacute consideraccedilotildees sobre a proposta moral do
MacIntyre de Depois da Virtude agrave luz do estudo realizado
94
531 Vida feliz e virtudes antes da siacutentese tomista
Eacute a partir de Santo Agostinho que se tem no pensamento cristatildeo um primeiro
aprofundamento dos temas morais e eacute este aprofundamento que contribui para uma
ulterior moral teoloacutegica Entretanto este primeiro esforccedilo de Agostinho natildeo resulta na
inserccedilatildeo de uma seccedilatildeo moral como componente necessaacuteria da ciecircncia teoloacutegica As
reflexotildees morais embora relevantes encontram-se dispersas entre outras temaacuteticas
da teologia Este pensamento seraacute retomado por Tomaacutes como mote de reflexatildeo agrave luz
do pensamento aristoteacutelico Pode-se afirma que Tomas de Aquino tributa ao
pensamento cristatildeo a doutrina moral que doravante se constitui como parte
integrante da ciecircncia teoloacutegica e seraacute referecircncia para toda a filosofia moral
Pode-se afirmar que a vida feliz desde Aristoacuteteles foi a grande motora do
pensamento eacutetico Com Santo Agostinho ela passa a ser definida como a uniatildeo da
mente a Deus no conhecimento no amor e no gaacuteudio da verdade e do bem divino
Assim Agostinho afirma no De Beata Vita
Certo impulso interior que nos convida a lembrar-nos de Deus a buscaacute-lo a sentir sede dele sem nenhum fastio jorra em noacutes dessa mesma fonte da Verdade Eacute luz que esse misterioso sol irradia em nossos olhos interiores E eacute dele que procede tudo o que proferimos de verdadeiro ainda que temamos volver para ele nossos olhos ainda doentios ou receacutem-abertos e de o fixarmos face a face Esse sol revela-se a noacutes como sendo o proacuteprio Deus ser perfeito sem nenhuma imperfeiccedilatildeo a diminuiacute-lo Pois nele se encontra toda a perfeiccedilatildeo completa e iacutentegra visto que ele eacute ao mesmo tempo o Deus todo-poderoso (AGOSTINHO Santo A vida feliz 1998 p 156 PL 32 4 35)88
Agostinho acredita que naturalmente existe um impulso do homem para Deus
Em outras passagens ele tambeacutem jaacute havia demonstrado esta compreensatildeo ldquotu nos
criastes para voacutes e incansaacutevel estaacute o nosso coraccedilatildeo enquanto natildeo repousa em voacutesrdquo
(agostinho Santo Confissotildees I 1998 p 7) Eacute atraveacutes da inteligecircncia ou ldquoos olhos
interioresrdquo que o homem compreende este desejo de busca de Deus assim como a
proacutepria inteligecircncia atesta que a verdade do que se profere depende dele A perfeiccedilatildeo
de Deus eacute certificada pelo fato de Deus se mostrar ao pensamento humano no interior
de cada homem Eacute este Deus que eacute a proacutepria vida feliz
88 ldquoHoc interioribus luminibus nostris iubar sol ille secretus infundit Huius est verum omne quod
loquimur etiam quando adhuc vel minus sanis vel repente apertis oculis audacter converti et totum intueri trepidamus nihilque aliud etiam hoc apparet esse quam Deum nulla degeneratione impediente perfectum Nam ibi totum atque omne perfectum est simulque est omnipotentissimus Deusrdquo
95
Eacute possiacutevel compreender a partir de Agostinho que pela perfeiccedilatildeo de Deus a
vida feliz diz respeito a um domiacutenio que estaacute para aleacutem da vida efecircmera do homem
no mundo Embora se tenha assim como em Aristoacuteteles que o fim do homem eacute a
felicidade esta acontece em dimensotildees extremamente distintas Eacute em virtude desta
nova concepccedilatildeo de vida feliz que se requer uma reformulaccedilatildeo na taacutebua das virtudes
de modo que entre as virtudes jaacute existentes a caridade possa figurar entre as
principais O modelo da caridade eacute aquela que Deus tem para o homem e tendo Deus
por exemplar o homem a viveraacute em relaccedilatildeo aos seus
Segundo Giuseppe Abbaacute (cf 2008 p 24) para alcanccedilar esta nova vida feliz ou
vida beata era preciso um conhecimento apropriado o conhecimento que Deus
mesmo tem de si mesmo e da ordem das criaturas Este conhecimento presente em
Deus ao modo de uma lei eterna eacute comunicado por via de iluminaccedilatildeo a cada mente
humana no modo de um conhecimento inato das razotildees eternas segundo os quais
satildeo regulados os atos da vontade Deve-se acrescentar que a lei eterna tambeacutem pode
ser conhecida por via de revelaccedilatildeo na lei escrita do Antigo e do Novo Testamento
Ainda segundo Giuseppe Abbaacute a accedilatildeo de Deus para conduzir o homem agrave vida
beata natildeo se limita agrave comunicaccedilatildeo da lei Deus interveacutem tambeacutem mediante uma
gratuita ajuda interior para converter a vontade humana da aversatildeo contra Deus ao
amor por Deus e a sustentar continuamente a retidatildeo da vontade nas obras virtuosas
A teologia moral seraacute assim uma investigaccedilatildeo em torno da lei divina eterna e de
como devem agir aqueles que nela inspiram-se
As concepccedilotildees agostinianas de vida feliz virtudes e lei eterna permanecem
praticamente as mesmas ateacute a chegada dos Sententiarum Libri de Pedro Lombardo
A partir do sec XII e iniacutecio do seacuteculo XIII as Sentenccedilas e as Sumas passam a fazer
uma apresentaccedilatildeo da doutrina cristatilde O elemento relevante deste dado eacute o fato de as
Sentenccedilas e Sumas serem agora obrigatoacuterias como textos baacutesicos de leitura nas
escolas teoloacutegicas Eacute ainda relevante o fato de estes textos natildeo reservarem um
espaccedilo especiacutefico para a filosofia moral assim tambeacutem como aconteceu com a
concepccedilatildeo agostiniana conforme o comentaacuterio de Giuseppe Abbaacute (cf 2008 p 24)
Os temas morais eram apresentados difusamente de modo que eles soacute aparecem
como temaacuteticas assessoacuterias Pedro Lombardo por exemplo tratava sobre a liberdade
e sobre o pecado no livro segundo que explicitava a questatildeo da queda do homem No
96
livro trecircs a propoacutesito do verbo encarnado Lombardo fala sobre as virtudes quando
responde agrave questatildeo de se Cristo teve virtudes
Traduzida para o latim por Roberto Grossatesta em 1246-47 a Eacutetica a
Nicocircmacos natildeo foi capaz de modificar o rumo do pensamento moral cristatildeo-catoacutelico
fortemente marcado pelo agostinismo ao menos ateacute Santo Tomaacutes Eacute atraveacutes dele que
se datildeo dois acontecimentos de particular relevacircncia a construccedilatildeo de uma parte
especificamente moral na teologia e a sua fundamentaccedilatildeo tendo a eacutetica aristoteacutelica
como fonte inspiradora Naturalmente a realizaccedilatildeo dessas duas tarefas natildeo se deu
de modo paciacutefico pois pensamentos jaacute instituiacutedos natildeo cedem facilmente agraves novas
ideias Quais foram pois as articulaccedilotildees filosoacuteficas que Tomaacutes de Aquino se utilizou
para a realizaccedilatildeo desses dois empreendimentos
97
5311 A construccedilatildeo de uma parte moral na teologia
Sobre a criaccedilatildeo de uma parte moral na Teologia Tomaacutes de Aquino enfrenta a
seguinte dificuldade como eacute possiacutevel a tematizaccedilatildeo sobre as virtudes se a teologia
tem Deus por assunto principal Deus natildeo necessita de virtudes uma vez que estas
satildeo haacutebitos que aperfeiccediloam o agente Assim faz-se necessaacuterio expor o modo como
Tomaacutes de Aquino responde a este problema
No desenvolvimento desta seccedilatildeo ver-se-aacute que primeira soluccedilatildeo de Tomaacutes ao
problema da uma inclusatildeo de uma parte moral na teologia daacute-se ainda sob o esquema
agostiniano partindo da lei divina agrave finitude do homem Nesta primeira soluccedilatildeo Tomaacutes
coloca hierarquicamente a lei em primeiro lugar e as virtudes em segundo abrindo um
espaccedilo para se tratar da moral na teologia Qual o problema desta primeira soluccedilatildeo
Ora sendo a lei divina o elemento primordial a eacutetica tomista perderia um de seus
viacutenculos mais relevantes com a eacutetica aristoteacutelica a saber uma eacutetica centrada no
agente A eacutetica aristoteacutelica privilegia por excelecircncia o agente enquanto que em
Agostinho o que brilha eacute a eacutetica fundamentada na lei divina A segunda soluccedilatildeo de
Tomaacutes de Aquino agrave questatildeo se daacute pela via indireta do discurso sobre Deus Com
efeito se pelo modus cognocendio homem conhece a Deus pela ciecircncia moral o
homem conhece a Lei Divina Com esta soluccedilatildeo pode-se afirmar que Tomaacutes de
Aquino garante um lugar agrave moral na Teologia sem no entanto abdicar da uma moral
centrada no agente
Seguindo a primeira soluccedilatildeo Tomaacutes introduz a noccedilatildeo de haacutebitos virtuosos
como formas impressas na alma ldquoas quais a reparam a retificam na medida em que
a fazem partiacutecipe das divinas sabedoria e retidatildeordquo (ABBAacute 2008 p 27) Segundo
Giuseppe Abbaacute existe da parte de Tomaacutes de Aquino uma profunda coerecircncia entre
sua antropologia e esses haacutebitos que informam a alma (cf ABBAacute 2008 p 27) A
explicaccedilatildeo dessa coerecircncia eacute possiacutevel ser mostrada a partir do De Ente et Essentia
a essecircncia se encontra concretizada nas substacircncias criadas intelectuais nas quais o ser ou existecircncia difere da essecircncia embora a essecircncia nelas exista sem a mateacuteria Daiacute que o ser dessas substacircncias natildeo eacute absoluto mas recebido e por conseguinte limitado e finito conforme a capacidade da natureza recipiente embora a natureza ou quididade delas seja absoluta e carente de mateacuteria (AQUINO Tomaacutes de De ente et essentia 2009)
98
Na compreensatildeo desta obra do jovem Tomaacutes de Aquino a alma humana que
se une ao corpo como forma de uma mateacuteria individuante natildeo atua nele comunicando
toda a sua perfeiccedilatildeo em razatildeo composiccedilatildeo das substacircncias O indiviacuteduo soacute se
atualiza no sentido da perfeiccedilatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de formas acidentais
suplementares Estas formas satildeo haacutebitos denominados virtudes Desse modo eacute
possiacutevel afirmar que a inclusatildeo de uma parte moral na teologia por parte de Tomaacutes
de Aquino natildeo eacute uma simples inclusatildeo arbitraacuteria mas um desenvolvimento necessaacuterio
de seu pensamento ontoloacutegico
Deve-se notar ainda que no Scriptum super Sententiis Tomaacutes de Aquino
adota a posiccedilatildeo de que os haacutebitos ou as virtudes necessitam ser dirigidos nos seus
atos pela lei divina pois ldquoa lei ensina a agir demonstra os atos retos as virtudes nos
conduzem ao bem agirrdquo (AQUINO Tomaacutes de Scriptum super sententiis III 37 ad 40
2011) Conforme este posicionamento o enfoque primordial permanece na lei divina
o que permite a Tomaacutes dar continuidade ao esquema da Teologia agostiniana poreacutem
a obediecircncia agrave lei divina daacute-se sob o auxiacutelio das virtudes Obedecendo a esta
hierarquia a lei divina tem precedecircncia sob as virtudes e estas em seu papel
secundaacuterio ganham ldquoabrigordquo na teologia agora com um tratado especiacutefico
Na segunda soluccedilatildeo que se como justificaccedilatildeo definitiva da constituiccedilatildeo de uma
parte moral na teologia Tomaacutes se utiliza da ideia de que uma vez que eacute impossiacutevel
tratar de Deus a partir de sua essecircncia pois este eacute inacessiacutevel ao conhecimento
sensitivo eacute possiacutevel tratar de Deus a partir de seus efeitos ldquose a existecircncia de Deus
natildeo eacute evidente para noacutes pode ser demonstrada pelos efeitos por noacutes conhecidosrdquo
(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 2 a2)89 O homem na qualidade de criatura racional
constitui-se como uma das obras (efeitos) especiais de Deus pois eacute ldquocriado agrave imagem
de Deus enquanto o termo imagem significa o que eacute dotado de intelecto de livre-
arbiacutetrio e revestido por si de poderrdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II prologus)90 Ora eacute
justamente atraveacutes do conhecimento praacutetico que homem tem de suas obras que o
permite construir uma ciecircncia moral Esta ciecircncia se fundamenta na razatildeo com a qual
Deus governa as criaturas particularmente o homem em seu agir Pela ciecircncia moral
conhece-se a lei divina
89ldquoUnde Deum esse secundum quod non est per se notum quoad nos demonstrabile est per effectus
nobis notusrdquo 90 ldquoHomo factus ad imaginem Dei dicitur secundum quod per imaginem significatur intellectuale et
arbiacutetrio liberum et per se potestativumrdquo
99
A ciecircncia sagrada eacute mais especulativa do que praacutetica porque se refere mais agraves coisas divinas do que aos atos humanos Ela considera estes uacuteltimos enquanto por eles o homem eacute ordenado ao pleno conhecimento de Deus no qual consiste a bem-aventuranccedila eterna (AQUINO Tomaacutes de S Th I q1 a4)91
A partir da afirmaccedilatildeo de Tomaacutes a ciecircncia praacutetica trata dos atos humanos e
estes satildeo considerados na medida em que contribuem ao conhecimento de Deus
Esta eacute a via que faz com que a ciecircncia moral tenha lugar na Teologia Desse modo
torna-se possiacutevel fazer uma ciecircncia moral sobre o homem autor de seus proacuteprios
atos em uma teologia que tem Deus por sujeito Assim segue justificada a inclusatildeo
de uma parte moral na Teologia
5312 A fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista
Foi apresentado ateacute o modo como Tomaacutes de Aquino tornou possiacutevel a
construccedilatildeo de uma parte moral na teologia Frequentemente a eacutetica tomista ainda eacute
vista de certo modo como uma filosofia em que domina o conceito de lei seja a lei
eterna seja a lei natural constituiacuteda segundo os preceitos da lei divina Segundo
Giuseppe Abbaacute a ideia comum eacute que ldquoa lei constituiria a regra moral obrigatoacuteria agrave qual
deve se ater ao sujeito humano livre nas suas accedilotildees voluntaacuterias Os haacutebitos virtuosos
interviriam para tornar faacutecil estaacutevel e agradaacutevel o exerciacutecio dos atos livresrdquo (ABBAacute
2008 p 26) Entretanto vista deste modo a eacutetica tomista seria centrada muito mais
na norma do que no agente Com efeito viu-se que a eacutetica de Tomaacutes se vincula
fortemente agrave moral aristoteacutelica porque focaliza primordialmente o agente Este viacutenculo
eacute um meio de se justificar a fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista segundo
ponto a ser aqui explicitado
O primeiro contato de Tomaacutes de Aquino com o texto da Eacutetica a Nicocircmacos foi
nos anos de 1248-52 logo apoacutes completar 20 anos Atraveacutes do primeiro curso sobre
esta nova traduccedilatildeo Tomaacutes de Aquino recebe do mestre Alberto Magno as primeiras
liccedilotildees sobre a Eacutetica do Estagirita Conforme Giuseppe Abbaacute Tomaacutes de Aquino teve
bastante tempo para amadurecer as ideias em torno deste texto e somente 17 anos
depois o Aquinate levou a cabo a tarefa de introduzir na teologia uma eacutetica de
91 ldquoMagis tamen est speculativa quam practica quia principalius agit de rebus divinis quam de actibus
humanis de quibus agit secundum quod per eos ordinatur homo ad perfectam Dei cognitionem in qua aeterna beatitudo consistirdquo
100
inspiraccedilatildeo aristoteacutelica justamente quando compotildee a segunda parte da Suma de
Teologia periacuteodo em que se encontra em Paris de 1269-72 Embora Tomaacutes de
Aquino jaacute ensaie a introduccedilatildeo do estudo sobre as virtudes em obras anteriores como
eacute o caso do Scriptum super Sententiis seu aprofundamento se consolida por ocasiatildeo
da construccedilatildeo da segunda parte da Suma Ainda segundo Giuseppe Abbaacute o
desenvolvimento do pensamento do moral de Tomaacutes de Aquino ldquoeacute a primeira soacutelida
tentativa de utilizar em Teologia a doutrina aristoteacutelica das virtudesrdquo (ABBAacute 2008 p
27) Deve-se agora apresentar qual a perspectiva tomista do conceito de virtude
532 O lugar das virtudes na teologia e sua explicitaccedilatildeo
5321 A beatitude e o lugar das virtudes na siacutentese teoloacutegica tomista
A apresentaccedilatildeo do modo como Tomaacutes de Aquino constituiu uma parte moral
na Teologia a partir da moral aristoteacutelica exige uma reformulaccedilatildeo de vaacuterios conceitos
de sua filosofia moral do estagirita Entre eles encontra-se o conceito de virtude que
possui particular relevacircncia nesta pesquisa Considerando como foi afirmado que a
ciecircncia praacutetica de inspiraccedilatildeo aristoteacutelico-tomista tem o enfoque no agente a filosofia
moral tomista se inicia com uma investigaccedilatildeo acerca fim mais apropriado agraves accedilotildees
humanas Assim ele inicia a Prima Secundae
Eacute de se considerar em primeiro lugar o fim uacuteltimo da vida humana Em seguida aqueles meios que poderatildeo levar o homem a este fim ou desviaacute-lo dele pois eacute do fim que aquelas coisas que a ele concernem recebem as razotildees Como o fim uacuteltimo da vida humana eacute a bem-aventuranccedila deve-se considerar primeiramente o fim uacuteltimo em comum e em seguida a bem-aventuranccedila (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q1 proecircmio )92
A bem-aventuranccedila que eacute o fim uacuteltimo aqui tratado Tomaacutes a apresenta desta
maneira porque sendo Deus a proacutepria beatitude conserva-se por meio dela uma
unidade temaacutetica dentro da Ciecircncia Teoloacutegica isto eacute a felicidade e os meios para
adquiri-la satildeo temas necessaacuterios agrave Teologia O que ocorre eacute que obedecendo agrave
ordem teoloacutegica trata-se inicialmente de Deus e de sua obra depois se deve tratar
92ldquoUbi primo considerandum occurit de ultimo fine humanae vitae et deinde de his per quae homo ad
hunc fine pervenire potest vela ab eo deviare ex fine enim oportet accipere rationes eorum quae ordinantur ad finem Et quia ultimus finis humanae vitae ponitur esse beatitudo oportet primo considerare de ultimo fine in communi deinde de beatitudinerdquo
101
do modo como as criaturas realizam um caminho de retorno a ele sobretudo o
homem que demonstra sua semelhanccedila com Deus na capacidade de conhecer e de
poder ser princiacutepio e senhor de seu agir Com efeito Tomaacutes de Aquino entende que
o homem retorna a Deus de uma maneira muito peculiar este retorno natildeo eacute uma
imposiccedilatildeo de Deus ao homem mas um ato de confianccedila na vontade livre do homem
de procedecirc-lo sem dispensar o auxiacutelio da graccedila (Cf BRUGUEgraveS 2003 Tomo III nota
ldquobrdquo p 29)
A elaboraccedilatildeo de uma Moral das Virtudes encontra pois seu lugar na teologia
agrave medida que por meio do exerciacutecio das virtudes o homem encontra um caminho
mais adequado de alcanccedilar a beatitude com maior propriedade Acrescente-se a isto
o fato de Tomaacutes de Aquino dedicar na Suma uma parte ao estudo daqueles haacutebitos
que distanciam o homem de seu fim Esses haacutebitos denominados viacutecios merecem
uma menccedilatildeo devida dado que o itineraacuterio do homem agrave felicidade comporta tanto os
atos afirmativos das virtudes quanto os atos negativos dos viacutecios O que significa um
ato afirmativo e outro negativo A ideia central eacute a de que o saber sobre as virtudes e
os viacutecios sejam ambos uacuteteis para o encaminhamento do ser humano agrave felicidade seja
exercitando as virtudes (atos afirmativos) seja evitando os viacutecios (atos negativos)
O estudo sobre as virtudes passa a ser desenvolvido no interior do proacuteprio
pensamento de Santo Tomaacutes antes das consideraccedilotildees sobre o modo como Deus
governa as criaturas ao seu fim e governa especialmente os indiviacuteduos humanos agrave
vida beata mediante a lei e a graccedila (cf ABBAacute 2008 p 34) pois entre a vida beata e o
governo divino estatildeo os atos dos quais o indiviacuteduo eacute autor e pelos quais ele realiza
a sua beatitude E como as virtudes se referem ao modo como o homem realiza o
processo de retorno a Deus deve-se aprofundar o modo como as virtudes estatildeo
relacionadas ao ser do homem
5312 A concepccedilatildeo tomista de homem e as virtudes
A partir da Tradiccedilatildeo Biacuteblica a relaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo de homem e as
virtudes se articulam com aquilo que Joseph Pieper denominou de imagem cristatilde do
homem (cf PIEPER 2010 p 9) Esta imagem toma por indicaccedilatildeo a afirmaccedilatildeo que
diz ldquosede perfeitos como o vosso Pai do ceacuteu eacute perfeitordquo Ora na condiccedilatildeo de criaturas
a perfeiccedilatildeo eacute fruto de um aprendizado continuo que inclui a vivecircncia constante dos
102
habitus que vatildeo conduzir o ser humano a expor o que haacute de melhor em si Esse melhor
diz respeito agraves virtudes que aperfeiccediloam o agente e tornam mais acessiacutevel o caminho
agrave beatitude
A partir da antropologia tomista o homem eacute compreendido como uma unidade
substancial de corpo e alma Tomaacutes entende que o ser da mateacuteria corpoacuterea estaacute como
recipiente e sujeito para ser algo superior Neste caso eacute a alma humana que estaacute
como princiacutepio formal pela sua proacutepria natureza Por isso a alma humana eacute forma do
corpo tornando esse composto num ser uno ldquopois eacute atraveacutes da forma pela qual as
coisas tecircm o ser que tambeacutem o composto corpo e alma recebe sua unidaderdquo
(AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles II c 58 )93
A unidade do homem eacute assegurada pela composiccedilatildeo de corpo e alma de modo
que em sua constituiccedilatildeo o homem goza da daacutediva de pela alma fazer parte do reino
espiritual e pelo corpo fazer parte do reino corporal Assim segundo Tomaacutes de
Aquino o homem encontra-se na fronteira do espiritual e do corporal
Deve-se pois admitir algo supremo no gecircnero dos corpos a saber o corpo humano possuidor de temperamento uniforme que atinja o iacutentimo do gecircnero superior isto eacute a alma humana que ocupa o uacuteltimo grau das substacircncias intelectuais como se pode verificar pelo seu modo inteligente de conhecer e por isso se diz que a alma intelectual eacute como o horizonte e a fronteira entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo enquanto substacircncia incorpoacuterea e no entanto como forma do corpo (AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles II 68 )94
Eacute de especial relevacircncia o fato de o homem por sua condiccedilatildeo estar habilitado
a buscar a felicidade pois possui um modo inteligente de conhecer o que o
assemelha a Deus A semelhanccedila com Deus tambeacutem se daacute considerando que o
homem possui domiacutenio de seus atos Neste sentido pode-se afirmar que entre as
criaturas sensiacuteveis o homem eacute aquele que possui uma capacidade natural de buscar
o seu fim Natural poreacutem eacute o seu despreparo dada a constante falibilidade de sua
vontade livre Segundo a antropologia tomista sabe-se que pelo princiacutepio corporal o
homem eacute portador das paixotildees e estas consideradas isoladamente natildeo possuem
nenhuma conotaccedilatildeo no sentido de boas ou maacutes Elas satildeo potecircncias neutras
93ldquoCum igitur a forma unaquaeque res habeat esse a forma etiam habebit unitatemrdquo 94ldquoEst igitur accipere aliquid supremum in genere corporum scilicet corpus humanum aequaliter
complexionatum quod attingit ad infimum seperioris generis scilicet ad animam humanam quae tenet ultimum gradum in genere intellectualium substantiarium ut ex modo intelligendi percipi potest b) Et inde est quod anima intellectualis dicitur esse quase quidam horizon et confinium corporeorum et incorporeorum inquantum est substantia incorporea corporis tamen formardquo
103
moralmente mas que podem condicionar as decisotildees do homem em virtude de seu
forte apelo agrave sensibilidade Eacute justamente aiacute que as virtudes ganham o seu sentido As
potecircncias do homem tanto as da alma quanto as do corpo necessitam de um habitus
que as atualizem em virtude do melhor Assim as virtudes iratildeo pois preparar o
homem positivamente na busca de seu fim uacuteltimo da vida feliz
Deve-se dizer que o irasciacutevel e o concupisciacutevel em si mesmos considerados enquanto partes do apetite sensitivo satildeo comuns a noacutes e aos animais irracionais Mas enquanto racionais por participaccedilatildeo obedientes agrave razatildeo satildeo potecircncias proacuteprias do homem e desse modo poreacutem ser sujeitos da virtude humana (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 56 a4 )95
As virtudes satildeo organizadas para atender as necessidades do homem
considerado em sua integralidade Desse modo as virtudes iratildeo aperfeiccediloar tanto as
potecircncias espirituais isto eacute a inteligecircncia e a vontade que pertencem ao acircmbito da
razatildeo do homem quanto as potecircncias sensitivas que satildeo a concupiscecircncia e a
irascibilidade fontes das paixotildees ambas ligadas ao corpo Eacute em virtude desta
totalidade que eacute o homem que um tratado sobre as virtudes natildeo deveria negligenciar
um estudo sobre as paixotildees e os viacutecios caso contraacuterio um tratado desta natureza
poderia ateacute visar um bem das accedilotildees particularmente mas natildeo o bem do agente
pensado em sua totalidade Acerca disto Tomaacutes de Aquino afirma
O nuacutemero de determinadas coisas pode ser estabelecido ou pelos princiacutepios formais ou pelos sujeitos Em ambos os casos temos quatro virtudes cardeais porque o princiacutepio formal da virtude aqui considerada eacute o bem da razatildeo que pode ser considerado sob o duplo aspecto ou enquanto consiste na proacutepria consideraccedilatildeo da razatildeo e se teraacute entatildeo uma virtude principal que se chama prudecircncia ndash ou enquanto se afirma a ordem da razatildeo em relaccedilatildeo a alguma coisa E isso seraacute ou quanto as accedilotildees e se teraacute entatildeo a justiccedila ou quanto agraves paixotildees e nesse caso eacute preciso que haja virtudes pois para afirmar a ordem da razatildeo nas paixotildees eacute necessaacuterio levar em conta a oposiccedilatildeo delas agrave razatildeo Essa oposiccedilatildeo pode se dar de duas formas primeiro quanto a paixatildeo impele a algo contraacuterio agrave razatildeo e aiacute eacute preciso que a paixatildeo seja controlada o que chamamos temperanccedila segundo quando a paixatildeo nos afasta das normas da razatildeo como o temor do perigo ou do sofrimento e nesse caso devemos nos firmar
95 ldquoErgo dicendum quod irascibilis et concupiscibilis secundum se consideratae prout sunt partes
appetitus sensitivi communes sunt nobis et brutis Sed secundum quod sunt rationales per participationem ut obedientes rationi sic sunt propriae hominis Et hoc modo possunt esse subiectum virtutis humanaerdquo
104
inarredavelmente no que eacute racional e a isso se daacute o nome de fortaleza (AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles I-II q 61 a2 )96
Tomaacutes de Aquino entende que o nuacutemero das virtudes eacute determinado e esta
determinaccedilatildeo eacute dada de duas maneiras ou segundo os princiacutepios formais ou
conforme os princiacutepios subjetivos na qualidade de sujeitos97 Tanto numa quanto
noutra maneira o nuacutemero das virtudes pode ser resumido em quatro Com efeito esse
nuacutemero de quatro virtudes cardeais eacute exatamente o numero suficiente para dar conta
de todas as dimensotildees do homem pensado em sua constituiccedilatildeo Conforme os
princiacutepios formais a virtude seraacute pois o bem da razatildeo (prudecircncia) ou daquilo que a
ela se refere a saber agrave vontade (justiccedila) como segunda potecircncia espiritual e agrave
concupiscecircncia (temperanccedila) e a irascibilidade (fortaleza) como potecircncias ligadas ao
corpo
Em relaccedilatildeo aos princiacutepios subjetivos o nuacutemero das virtudes principais tambeacutem
seraacute quatro pois segundo Tomaacutes de Aquino os sujeitos satildeo quatro o racional por
essecircncia e dele a prudecircncia e o racional por participaccedilatildeo a vontade sujeito da
justiccedila o apetite concupisciacutevel sujeito da temperanccedila e o irasciacutevel sujeito da
fortaleza
Com isso entende-se que as virtudes visam natildeo apenas a perfeiccedilatildeo das
potecircncias tomadas particular ou aleatoriamente mas visam agrave perfeiccedilatildeo do agente
compreendido em sua totalidade Segundo Albert Pleacute a virtude moral humana e
humanizante levada agrave perfeiccedilatildeo habilita o homem a agir com todo o seu ser em
conformidade com sua natureza racional Eacute dessa forma que ele assegura de uma
vez soacute tanto o bem da obra cumprida (bonum operis) quanto o do sujeito que age
(bonum operantis) (Cf PLEacute 2005 vol IV nota ldquobrdquo p 162)
A relaccedilatildeo entre as virtudes e a constituiccedilatildeo do homem leva a compreender que
eacute em virtude de o homem ser pensado a partir de uma unidade substancial que se
96 ldquodicendum quod numerous aliquorum accipi potest aut secundum principia formalia aut secundum
subiecta et utroque modo inveniuntur quatuor cardinales virtutes Principium enim formale virtutis de qua nunc loquimur est rationis bonum Quod quidem dupliciter potest considerari Uno modo secundum quod in ipsa consideratione rationis consistit Et sic erit uma virtus principalis quae dicitur prudentia ndash Alio modo secundo quod circa aliquid ponitur rationis ordo Et hoc vel circa operationes et sic est iusticia vel circa passiones considerata repugnantia ipsarum ad rationem Quae quidem potest esse dupliciter Uno modo secundum quod passio impellit ad aliquid contrarium rationi et sic necesse est quod passio reprimatur et ab hoc denominatur temperantia Alio modo secundum quod passio retrahit ab eo quod ratio dictat sicut timor periculorum vel laborum et sic necesse est quod homo firmetur in eo quod est rationis ne recedat et ab hoc denominatur fortitudordquo
97 A noccedilatildeo de sujeito tem aqui um sentido preciso Sujeito significa o substrato que suportaraacute a efetivaccedilatildeo de uma coisa
105
pode pleitear uma unidade das virtudes Com efeito esta unidade decorre por um
lado da exigecircncia ou da necessidade que cada potecircncia do homem tem de ser
adequadamente aperfeiccediloada e por outro da inter-relaccedilatildeo existe entre as proacuteprias
virtudes conforme se veraacute adiante quando se tematizar sobre a conexatildeo entre as
virtudes
5313 A explicitaccedilatildeo do conceito de virtude e a releitura tomista da teoria das
virtudes
53131 A perfeiccedilatildeo da potecircncia e habito operativo
Apoacutes ter apontado qual o lugar filosoacutefico das virtudes na Suma Teoloacutegica e o
modo como elas se estruturam em favor do homem e de sua da bem-aventuranccedila
faz-se necessaacuterio expor como Tomaacutes de Aquino assumiu e modificou a noccedilatildeo
aristoteacutelica de virtude Deve-se esclarecer que Tomaacutes se utiliza de duas concepccedilotildees
de virtudes a saber virtude enquanto excelecircncia dos atos humanos e virtude
enquanto habitus operativo que aperfeiccediloa e prepara as potecircncias para emitirem os
atos excelentes requeridos pela vida beata
Primeiramente deve-se afirmar que as virtudes satildeo habitus Segundo Albert
Pleacute habitus eacute uma disposiccedilatildeo uma capacidade da natureza humana a qual se
enraiacuteza em sua natureza especiacutefica e individual finalizada pelo agir (cf PLEacute 2005
tomo IV p 35) Muito mais que uma simples disposiccedilatildeo o habitus qualifica as outras
disposiccedilotildees de modo que estas se realizam da melhor maneira nas accedilotildees especiacuteficas
A partir desta compreensatildeo chega-se ao primeiro conceito de virtude como perfeiccedilatildeo
da potecircncia isto eacute como excelecircncia dos atos humanos
Em que consiste esta excelecircncia Segundo Giuseppe Abbaacute ldquoesta excelecircncia
consiste no fato de que nos atos voluntaacuterios a vontade e os apetites passionais satildeo
regulados segundo especiacuteficos modos de regulaccedilatildeo que satildeo requeridos para a vida
felizrdquo (ABBAacute 2008 p 35) Estes modos especiacuteficos de regulaccedilatildeo satildeo proporcionados
pela razatildeo atraveacutes do que Tomaacutes denominou ordo rationis Eacute pela ordem da razatildeo
ou reta razatildeo que o agente regula as proacuteprias escolhas subordinando-as aos fins
virtuosos Deste modo pela ordo rationis o indiviacuteduo manteacutem uma retidatildeo na busca
da vida feliz Sobre isto Tomaacutes de Aquino afirma ldquoa virtude designa certa perfeiccedilatildeo
106
da potecircncia Mas a perfeiccedilatildeo de uma coisa eacute considerada principalmente em ordem
ao seu fim Ora o fim da potecircncia eacute o ato Portanto a potecircncia seraacute perfeita na medida
em que eacute determinada por seu atordquo (AQUINO Tomaacutes deS Th I-II q55 a1)98 O
primeiro sentido aplicado por Tomaacutes de Aquino jaacute era conhecido e tematizado por
Aristoacuteteles
A virtude designa certa perfeiccedilatildeo da potecircncia pois ela eacute considerada desta
maneira uma vez que ordena as potecircncias em funccedilatildeo do fim do homem Entretanto
as virtudes satildeo a perfeiccedilatildeo apenas das potecircncias que corroboram com o fim do
homem Estas potecircncias as potecircncias racionais necessitam das virtudes porque elas
natildeo se determinam a um uacutenico objeto Tomaacutes de Aquino afirma que ldquoas potecircncias
racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se
prestam indeterminadamente a muitas coisasrdquo Nesta hipoacutetese as virtudes teriam a
funccedilatildeo de aperfeiccediloar e de preparar as potecircncias para emitirem os atos excelentes
que satildeo exigidos agrave vida feliz Aleacutem disso a vontade livre do homem de certo modo
nunca teria dispensada sua atuaccedilatildeo
Em segundo lugar virtude eacute tomada segundo a compreensatildeo de haacutebito
operativo isto eacute enquanto habito operativo ela valoriza as capacidades naturais do
ser humano como forma de tambeacutem corrigir o despreparo natural do homem em
buscar a vida beata dada a constituiccedilatildeo do homem na qual o seu existir natildeo atualiza
naturalmente todas as potencialidades presentes na sua essecircncia Este conceito de
habitus operativus eacute uma particularidade e um acreacutescimo de Tomaacutes de Aquino ao
conceito primitivo de virtude Por isto mesmo Tomaacutes de Aquino conclui que ldquoa virtude
humana natildeo eacute apenas perfeiccedilatildeo mas tambeacutem aquilo que o aperfeiccediloardquo
Eacute possiacutevel afirmar que o duplo conceito de virtude como perfeiccedilatildeo das
potecircncias e como habitus operativus se dirige por um lado agrave construccedilatildeo de um haacutebito
bom (bocircnus habitus) e por outro como produtor de bem (boni operativus) Constitui-
se como um fato novo a concepccedilatildeo de virtude como um habitus que contem a funccedilatildeo
de aperfeiccediloamento e preparaccedilatildeo agrave felicidade Segundo Tomaacutes de Aquino ldquoa virtude
humana natildeo implica em uma ordenaccedilatildeo para o existir mas antes para a accedilatildeo Assim
eacute da razatildeo da virtude humana ser haacutebito operativordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q55
98 ldquovirtus nominat quandam potentiae perfectionem Uniuscuiusque autem perfectio praecipue
consideratur in ordine ad suum finem Finis autem potentiae actus est Unde potentia dicitur esse perfecta secundum quod determinatur ad suum actumrdquo
107
a1)99 Esta concepccedilatildeo supera de certo modo a concepccedilatildeo aristoteacutelica de virtude Com
efeito a partir da abordagem tomista a virtude natildeo diz respeito apenas agrave excelecircncia
dos atos humanos mas ao habitus operativus que aperfeiccediloa e repara os atos
humanos na ldquojornadardquo do homem de retorno a Deus
53132 As virtudes teologais
As virtudes teologais correspondem ao contributo de Deus ao homem na busca
de uma vida perfeitamente feliz As virtudes cardeais satildeo resultado das capacidades
naturais do homem por isso mesmo como ldquopor sua forccedila ningueacutem pode se salvarrdquo
as virtudes teologais acrescentam agrave natureza humana a capacidade de se dirigirem a
Deus com um forccedila sobrenatural isto eacute com uma forccedila que sozinha a natureza
humana natildeo seria capaz de proporcionar
A ideia de Tomaacutes eacute que a razatildeo humana eacute capaz de ordenar os apetites
volitivos e passionais em funccedilatildeo de seu proacuteprio fim
Uma das grandes inovaccedilotildees do pensamento de Santo Tomaacutes estaacute na
articulaccedilatildeo das virtudes teologais tanto na teologia quanto no cataacutelogo das proacuteprias
virtudes Com efeito a esperanccedila passa a ser considerada componente das virtudes
de tal modo que ateacute autores de inspiraccedilatildeo marxista como Ernst Bloch a tem em grande
conta
Embora as virtudes teologais tenham sido infundidas por Deus no ser humano
segundo a opiniatildeo se Tomaacutes de Aquino elas tambeacutem participam no aperfeiccediloamento
do intelecto e do apetite Esta ideia do Aquinate abre espaccedilo agrave noccedilatildeo de conexatildeo
entre as virtudes Eacute por meio desta conexatildeo entre as virtudes que se estrutura no
agente a unidade de seu caraacuteter E eacute justamente pela virtude da Prudecircncia que se daacute
a unidade da pessoa uma vez que a prudecircncia desenvolve uma harmonizaccedilatildeo
dinacircmica entre a razatildeo e o apetite
53133 A virtude da Justiccedila
99 ldquoEt ideo de ratione virtutis humanae est quo sit habitus operativusrdquo
108
Eacute digno de nota que a Beatitude cristatilde natildeo eacute um achado exclusivamente
individual e nem deve ser pensada desapegada do caraacuteter social Mesmo que o aacutepice
da Beatitude seja a visio beatifica pensada num plano para aleacutem histoacuteria conforme a
revelaccedilatildeo cristatilde haacute que se pensar nas condiccedilotildees sensiacuteveis favoraacuteveis ao alcance
dela Estas condiccedilotildees satildeo certamente proporcionadas num niacutevel individual atraveacutes da
maior parte das virtudes e num niacutevel comunitaacuterio atraveacutes da virtude da justiccedila
A justiccedila jaacute desde o Aristoacuteteles carrega a marca de ser a maior de todas as
virtudes pois eacute a uacutenica que diz a respeito a relaccedilatildeo do agente com outros O livro V
da Eacutetica a Nicocircmacos eacute dedicado agrave Justiccedila suas acepccedilotildees divisotildees e gradualidades
Tomaacutes de Aquino ldquobeberdquo dos princiacutepios aristoteacutelicos da justiccedila e dedica a questatildeo 58
da IIa IIae da Suma Teoloacutegica agrave anaacutelise e aprofundamento desta virtude
Na anaacutelise tomista sobre a Justiccedila as dimensotildees pessoais e sociais da vida
moral satildeo postas em relaccedilatildeo especialmente no que diz respeito agrave vida cristatilde
Pertence agrave justiccedila a funccedilatildeo de qualificar e retificar as accedilotildees da pessoa Esta funccedilatildeo
tambeacutem se estende agraves relaccedilotildees e instituiccedilotildees da vida social
Do ponto de vista pessoal considerando a antropologia tomista a potecircncia
espiritual da vontade se relaciona agrave capacidade de agir O bem agir enquanto melhor
atualizaccedilatildeo da potecircncia da vontade se traduz na forma de Justiccedila Do ponto de vista
pessoal a justiccedila eacute a virtude conexa agrave vontade ao passo que do ponto de vista social
Justiccedila de refletiraacute ou seraacute atualizada como Direito O Direito eacute assim o objeto da
justiccedila Nesse sentido a virtude da justiccedila faz parte de um elo que inclui homem
vontade virtude e Direito Segundo Claacuteudio Pedrosa ldquoO Direito como objeto da
Justiccedila eacute erigido segundo entendemos como qualificativo eacutetico-juriacutedico da
conceituaccedilatildeo de Justiccedila em Santo Tomaacutesrdquo (NUNES 2011 p 590)
53134 A unidade das virtudes e conexatildeo entre as virtudes
A unidade das virtudes em Tomaacutes de Aquino pode ser encontrada naquilo que
ele intitula a conexatildeo entre as virtudes Com efeito estaacute ideia de interdependecircncia
entre as virtudes ateacute entatildeo pouco tematizada no acircmbito da Eacutetica das Virtudes eacute o
que daacute inteligibilidade a uma consolidaccedilatildeo da unidade do caraacuteter moral de um agente
Andreacute Comte-Sponville critica a ideia de em um estudo sobre a moral se
tematizar sobre as paixotildees e os viacutecios ldquoe o que eacute mais digno de interesse na moral
109
que as virtudes Assim como Spinoza natildeo creio haver utilidade em denunciar os
viacutecios o mal o pecado Eacute a moral dos tristes e uma triste moralrdquo (COMTE-SPONVILLE
1995 p 7) Contrariamente a afirmaccedilatildeo do autor eacute relevante compreender que a
consideraccedilatildeo sobre as paixotildees muito mais do que uma fuga que realmente importa
contrariamente ao que diz Andreacute Comte-Sponville constitui-se como um
reconhecimento do modo como a razatildeo se relaciona com os apetites Tomaacutes de
Aquino sabe e afirma que em relaccedilatildeo aos apetites a razatildeo natildeo pode agir na forma
de um ldquopoder despoacuteticordquo mas age na forma de um ldquopoder poliacuteticordquo no qual as
decisotildees satildeo tomadas como resultado de um longo e contiacutenuo diaacutelogo entre forccedilas
contraacuterias
A parte apetitiva obedece agrave razatildeo natildeo ao menor aceno mas com certa resistecircncia Razatildeo porque o Filoacutesofo diz que lsquoa razatildeo rege a potecircncia apetitiva com poder poliacuteticorsquo tal qual se governam as pessoas livres que tecircm certos direitos de oposiccedilatildeo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 58 a2)100
A necessidade de se conhecer as paixotildees e os viacutecios se impotildee porque mesmo
podendo conduzir o ser humano agrave vida boa a vontade humana permanece faliacutevel
sendo assim deve-se saber sobre as virtudes e sobre o seu oposto porque estas satildeo
de certo modo realidades quotidianas ao indiviacuteduo Com efeito pelas paixotildees eacute
possiacutevel condicionar o exerciacutecio da vontade livre caso estas potecircncias sejam
atualizadas na forma de viacutecios
Outro dado relevante eacute que a compreensatildeo acerca das paixotildees ainda
proporciona a consciecircncia da relaccedilatildeo entre as paixotildees e suas virtudes
correspondentes Isto eacute cada paixatildeo suscita o exerciacutecio de uma virtude que lhe eacute
apropriada Dessa afirmaccedilatildeo podem-se concluir duas coisas a primeira eacute a de que a
diversidade das paixotildees causa a diversidade das virtudes morais e a segunda eacute a de
que o cataacutelogo das virtudes eacute fundamentado nas necessidades concretas do ser
humano Assim contra ao que Andreacute Comte-Sponville coloca o estudo sobre as
paixotildees muito mais do que uma moral dos tristes constitui-se num reconhecimento
desta unidade que eacute o homem e de como as virtudes natildeo se ligam a ele acidental
Uma decorrecircncia necessaacuteria unidade das virtudes eacute a ideia de que as virtudes
estatildeo conectadas umas agraves outras A ideia de Tomaacutes eacute fazer entender que se pelas
100 ldquoPars enim appetitiva obedit rationi nom omnimo ad notum sed cum aliqua contradictione unde
Philosophus dicit in I Polit quod ratio imperat appetitivae principatu poliacutetico quod scilicet aliquis praeest liberis qui habent ius in aliquo contradicendirdquo
110
virtudes consideradas separadamente o homem possui a perfeiccedilatildeo de suas
potecircncias a praacutetica das virtudes mostraraacute que umas natildeo seratildeo possiacuteveis sem as
outras Ora se na arquitetura da antropologia tomista todas as virtudes recebem uma
iluminaccedilatildeo pela virtude intelectual da prudecircncia de modo que ao final todo o agir do
homem virtuoso estaacute relacionado agrave reta razatildeo deve-se aceitar tambeacutem que todas as
virtudes estatildeo relacionadas e conectadas
A conexatildeo das virtudes a partir do Comentaacuterio a Eacutetica a Nicocircmacos mostra
como a parte racional do homem atua relacionada agrave vontade e como existe uma
relaccedilatildeo de interdependecircncia entre as virtudes
Duas coisas satildeo asseguradas na obra da virtude Uma eacute que o homem tenha uma intenccedilatildeo correta para o fim o que a virtude moral providencia inclinando a faculdade apetitiva para um fim proacuteprio A outra eacute dada pela prudecircncia a qual daacute bons conselhos julga e ordena os meios para o fim (DrsquoAQUIN Thomas Commentary on Aristotles
Nicomachean Ethics VI 10 1269 1993)101
Essas duas potecircncias satildeo partes essenciais das accedilotildees virtuosas a prudecircncia
aperfeiccediloando a parte racional e a virtude moral a parte apetitiva A prudecircncia natildeo
pode existir sem virtude moral bem como a virtude moral natildeo pode existir sem a
prudecircncia Joatildeo Hobuss acrescenta que ldquoo mesmo se daacute com as virtudes morais pois
enquanto a prudecircncia garante a bondade dos meios as virtudes morais garantem a
retidatildeo do fim isto eacute a obra da virtude eacute assegurada por ambas tanto a prudecircncia
quanto as virtudes moraisrdquo (HOBUSS 2011) Desse modo entende-se que uma accedilatildeo
virtuosa necessita da conexatildeo entre as virtudes
Possui particular relevacircncia a posiccedilatildeo tomista de que todas as virtudes
dependam da caridade Sua tese proveacutem do posicionamento fundamental da Tradiccedilatildeo
Biacuteblica que defende que entre as virtudes teologais a caridade eacute a virtude mais
importante Tomaacutes de Aquino afirma que ldquoas virtudes morais infusas estatildeo ligadas
entre si natildeo soacute por causa da prudecircncia mas tambeacutem da caridade e quem perde a
caridade pelo pecado mortal perde todas as virtudes morais infusasrdquo (AQUINO Tomaacutes
S Th I-II q65 a3)102 A afirmaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino leva a concluir uma coisa a
101 ldquoTwo things are needed in a work of virtue One is that a man have a right intention for the end which
moral virtue provides in inclining the appetitive faculty to a proprer end The other is to be well disposed towards the means This is done by prudence which gives good advice judges and orders the means to the endrdquo
102 ldquoQuod virtutes morales infusae non solum habent connexionem propter prudentiam sed etiam propter caritatem Et quod qui amittit caritatem per peccatum mortale amittit caritatem per peccatum mortele amittit omnes virtutes Morales infusasrdquo
111
unidade e a conexatildeo entre as virtudes natildeo eacute um feito exclusivo da racionalidade mas
eacute uma condiccedilatildeo proporcionada pelo ato de amor que eacute a caridade
A organizaccedilatildeo da conexatildeo entre as virtudes a partir de Tomaacutes de
Aquino obedece a seguinte ordem primeiramente haacute conexatildeo das virtudes
intelectuais entre si por meio dos primeiros princiacutepios (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I-
II q 65 a3) Jaacute a conexatildeo entre as virtudes intelectuais e as virtudes morais se daacute por
meio da prudecircncia Com efeito eacute justamente por meio da relaccedilatildeo existente entre a
prudecircncia e as virtudes morais que se daacute a harmonizaccedilatildeo entre razatildeo e o apetite
denominado de desejo refletido Por fim a conexatildeo entre as virtudes morais e as
teologais se daacute por meio da caridade e por obra de sua atuaccedilatildeo as virtudes humanas
se tornam mais perfeitas Cabe afirmar que esta uacuteltima conexatildeo entre as virtudes
teologais e as virtudes morais eacute resultado da siacutentese tomista entre a tradiccedilatildeo biacuteblica e
o aristotelismo Cabe verificar ainda outras relaccedilotildees entre estas duas tradiccedilotildees
53135 O habitus e vontade livre
Aleacutem do conceito de virtude Tomaacutes de Aquino traz outras inovaccedilotildees agrave
concepccedilatildeo aristoteacutelica de virtudes Uma dessas inovaccedilotildees consiste na relaccedilatildeo que se
estabelece entre habitus e vontade livre Segundo Giuseppe Abbaacute
uma vez que a Aristoacuteteles faltava o conceito de livre vontade as virtudes eacuteticas introduziam uma determinaccedilatildeo inelutaacutevel nos apetites Para Tomaacutes poreacutem introduzem uma determinaccedilatildeo que estaacute continuamente agrave disposiccedilatildeo da vontade que pode usar delas quando quiser mas tais determinaccedilotildees natildeo passam ao ato sem o livre consenso da vontade As virtudes permanecem sendo determinaccedilotildees uniacutevocas e infaliacuteveis mas a livre vontade humana permanece faliacutevel (ABBAacute 2008 p 36)
A relaccedilatildeo entre habitus e vontade livre explica por exemplo como algueacutem
mesmo sendo virtuoso sempre estaacute na iminecircncia de natildeo secirc-lo Assim esta relaccedilatildeo
contribui com a ideia de que soacute existe virtude onde o homem pode libertar-se do
determinismo da natureza animal Isto soacute eacute possiacutevel ao homem pela accedilatildeo de suas
capacidades inteligentes E porque as potecircncias racionais se prestam de maneira
indeterminadas a muitas coisas eacute que satildeo necessaacuterios os habitus virtuosos
Existem poreacutem potecircncias que satildeo determinadas em si mesmas para os seus atos como as potecircncias naturais ativas e por isso elas proacuteprias se chamam virtudes Jaacute as potecircncias racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se prestam
112
indeterminadamente a muitas coisas (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q55 a 1)
Se se considera a realidade indeterminada das potecircncias racionais torna-se
possiacutevel chegar ao fato de Eacutetica Tomista estar profundamente ligada agrave ideia de
liberdade Com efeito pelas virtudes se podem aperfeiccediloar as potecircncias para o
melhor entretanto o exerciacutecio das virtudes fundamenta-se numa adesatildeo consciente
da pessoa mostrando como estatildeo inter-relacionados virtudes pessoa e liberdade103
Na verdade natildeo eacute necessaacuterio apresentar separadamente a noccedilatildeo de pessoa e a de
liberdade pois o conceito de pessoa jaacute inclui a ideia de liberdade por se referir a uma
substacircncia individual de natureza racional Ora como se sabe a livre vontade em
Tomaacutes de Aquino decorre da condiccedilatildeo racional do homem
Considerando a condiccedilatildeo do homem se as virtudes possuem uma funccedilatildeo
aperfeiccediloadora e reparadora das potecircncias humanas se vecirc que existe uma relaccedilatildeo
iacutentima entre virtude e livre-arbiacutetrio em Tomaacutes de Aquino Ora se o livre-arbiacutetrio eacute a
capacidade de se fazer o que se quer sua relaccedilatildeo com as virtudes haacute de dirigir os
atos especificamente humanos de modo que o proacuteprio homem seja plenamente livre
Plenamente livre se refere pois ao intento de que o homem que natildeo seja escravo
nem mesmo das determinaccedilotildees do livre-arbiacutetrio que com sua natureza
indeterminada pode liberar o ser humano agrave maldade
A afirmaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino ratifica ldquoque a virtude eacute o bom uso do livre
arbiacutetrio a saber porque a virtude se ordena a isso como o ao seu proacuteprio ato proacuteprio
pois o ato virtuoso nada mais eacute que o bom uso do livre-arbiacutetriordquo (AQUINO Tomaacutes de
S Th I-II q 55 a 1)104 Como se viu em outra seccedilatildeo desta pesquisa livre-arbiacutetrio natildeo
significa necessariamente a liberdade Daiacute a afirmaccedilatildeo de Tomaacutes ao relacionar virtude
a um ldquobom usordquo do livre arbiacutetrio A partir da afirmaccedilatildeo do autor pode-se afirmar por
um lado que as virtudes satildeo haacutebitos que auxiliam a vivecircncia pessoal da liberdade
por outro o aprofundamento da ideia de que a eacutetica tomista natildeo eacute uma simples
reduccedilatildeo das accedilotildees agrave racionalidade pura ou exclusivamente na vontade Esta
conclusatildeo tambeacutem eacute ratificada por Juvenal Savian Filho quando afirma que
103Sobre a fundamentaccedilatildeo da eacutetica tomista na noccedilatildeo de liberdade conferir o artigo de SAVIAN FILHO
2008 p 177-184 104 ldquoDicendum quod bonus usus liberi arbitrii dicitur esse virtus secundum eandem rationem scilicet est
id ad quod ordinatur virtus sicut ad proprium actum Nihil est enim aliud actus virtutis quam bonus usus liberi arbitriirdquo
113
Uma accedilatildeo [segundo o pensamento tomista] nunca eacute fundada num mero raciociacutenio nem num mero desejo Razatildeo e vontade mostram-se entrelaccediladas na accedilatildeo moral e Tomaacutes ainda que decirc prerrogativa agrave razatildeo prefere apontar para tal entrelaccedilamento ou enovelamento como dissemos acima (SAVIAN FILHO 2008 p 181)
A partir da afirmaccedilatildeo de Juvenal Savian Filho compreende-se que o
posicionamento de Santo Tomaacutes em relaccedilatildeo agraves accedilotildees natildeo negligencia o modo como
o ser humano eacute constituiacutedo A constituiccedilatildeo corporal e aniacutemica do homem deixa patente
que seria um reducionismo negligenciar da relaccedilatildeo interna que a razatildeo e a vontade
possuem Esta relaccedilatildeo seraacute pensada a seguir
53136 As virtudes eacuteticas e a razatildeo
Segundo Giuseppe Abbaacute a outra inovaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino em relaccedilatildeo ao
conceito aristoteacutelico de virtude refere-se a relaccedilatildeo entre as virtudes eacuteticas e a razatildeo
Para ele Aristoacuteteles e Tomaacutes reconhecem que as virtudes recebem da razatildeo
enquanto ato prudencial a determinaccedilatildeo do justo meio entretanto Tomaacutes de Aquino
acrescenta que tanto a prudecircncia quanto as outras virtudes eacuteticas recebem da razatildeo
a concepccedilatildeo e a prescriccedilatildeo dos fins virtuosos gerais da vida boa e certos tipos de
accedilotildees absolutamente requeridas ou excluiacutedas por tais fins
Ora ao fim devido o homem se dispotildee convenientemente pela virtude que aperfeiccediloa a parte apetitiva da alma cujo objeto eacute o fim Quanto aos meios adequados ao fim importa que o homem esteja diretamente disposto pelo haacutebito da razatildeo porque aconselhar e escolher que satildeo accedilotildees relacionadas como os meios satildeo atos da razatildeo (ABBAacute 2008)
A partir da afirmaccedilatildeo apresentada eacute possiacutevel perguntar de onde a razatildeo retira
os meios adequados ao fim Ora se o fim uacuteltimo da vida humana eacute Deus nele
tambeacutem deve estar a razatildeo e o fundamento da lei eterna que dispotildee os meios mais
adequados ao fim E eacute dessa lei eterna que proveacutem a ideia de que a razatildeo humana
nela participa e como tal eacute atraveacutes das virtudes e natildeo dos preceitos da lei que a lei
eterna alcanccedila os atos individuais e os torna perfeitos
Segundo Eacutetienne Gilson o caraacuteter propriamente humano eacute garantido pela
razatildeo assim a virtude e o bem moral como que se harmonizam agrave nossa natureza
Contrariamente o mal moral o pecado e o viacutecio de que o pecado decorre soacute podem
ser concebidos como faltas de racionalidade no ato ou no costume (cf GILSON 2006
p 398)
114
53137 A relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo tomista de pessoa
Existe uma relaccedilatildeo entre as virtudes e a individualidade Embora as virtudes se
encontrem no ser humano em seu germe a natureza humana comporta natildeo apenas
as virtualidades especiacuteficas e comuns a todos os homens Com efeito as virtudes soacute
existem individualizadas num ente concreto e singular Esta convicccedilatildeo de Santo
Tomaacutes eacute o que fundamenta a ideia de que cada pessoa possui uma aptidatildeo especiacutefica
e toda particular tanto para o saber quanto para as virtudes
Seja de um modo ou de outro a virtude eacute natural no homem incoativamente Segundo a natureza especiacutefica enquanto na razatildeo do homem estatildeo presentes naturalmente certos princiacutepios naturalmente conhecidos tanto na ordem do saber quanto na ordem da accedilatildeo princiacutepios que satildeo sementes das virtudes intelectuais e das virtudes morais e enquanto estaacute presente na vontade um apetite natural do bem conforme a razatildeo Por outro lado segundo a natureza individual enquanto uns satildeo pela disposiccedilatildeo de seu corpo mais ou menos dispostos a algumas virtudes e isso porque certas potecircncias sensitivas satildeo atos de algumas partes do corpo e a disposiccedilatildeo deles favorece ou dificulta os atos dessas potecircncias e por consequecircncia as potecircncias racionais as quais as faculdades sensitivas obedecem Assim eacute que uma pessoa tem aptidatildeo natural para a ciecircncia outra para a fortaleza e outra para a temperanccedila E dessa forma tanto as virtudes intelectuais quanto as morais existem em noacutes naturalmente como que num iniacutecio de aptidatildeo Natildeo pois de maneira consumada porque a natureza estaacute determinada a uma soacute coisa e a consumaccedilatildeo dessas virtudes natildeo se realiza por um soacute tipo de accedilatildeo mas segundo formas diversas segundo as vaacuterias mateacuterias sobre que versam as virtudes e segundo as diferenccedilas circunstanciais (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 63 a2)105
Tomaacutes de Aquino compreende que os princiacutepios do conhecimento e da accedilatildeo
estatildeo presentes no homem na forma de semente Ou seja como partiacutecipe de uma
105 ldquoUtroque autem modo virtus est homini naturalis secundum quandam inchoationem Secundum
quidem naturam speciei inquantum in ratione hominis insunt naturaliter quaedam principia naturaliter coacutegnita tam scibilium quam agendorum quae sunt quaedam seminalia intellectualium virtutum et moralium et inquantum in voluntate inest quidam naturalis appetitus boni quod est secundum rationem Secundum vero naturam individui inquantum ex corporis dispositione aliqui sunt dispositi vel melius vel peius ad quasdam virtutes prout scilicet vires quaedam sensitivae actus sunt quarundam partium corporis ex quarum dispositione adiuvantur vel impediuntur huismodi vires in suis actibus et per consequens vires deserviunt Et secundum hoc unus homo habet naturalem aptitudinem ad scientiam alius ad fotitudinem alius ad temperantiam Et his modis tam virtutes intellectuales quam morales secundum quandam aptitudinis inchoationem sunt in nobis a natura ndash Non autem consummatio earum Quia natura determinatur ad unum consummatio autem huiusmodi vitutum non est secundum unum modum actionis sed diversimode sedundum diversas mateacuterias in quibus virtutes operantur et sedundum diversas circumstantiasrdquo
115
essecircncia que garante esta aptidatildeo pode-se afirmar que o ser humano consolida sua
vida de saber e de agir no interior de sua personalidade atraveacutes da vida virtuosa e na
exterioridade da vida poliacutetica entendida aqui como expressatildeo da vivecircncia social do
ser humano
Se como foi dito os princiacutepios do conhecimento e do agir estatildeo presentes no
homem na forma de sementes eacute por meio da natureza individual que os seres
humanos atualizam essas potecircncias e por conseguinte distinguem-se no
aprendizado e no exerciacutecio efetivo das virtudes Assim eacute possiacutevel afirmar que embora
as virtudes se relacionem entre si o modo como cada indiviacuteduo atualiza suas
potecircncias eacute muito particular Daiacute porque Tomaacutes de Aquino afirmar que uma pessoa
tem aptidatildeo natural para a ciecircncia outra para a fortaleza e outra para a temperanccedila
(cf AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 63 a2)
Tomaacutes de Aquino ainda revela uma profunda consciecircncia acerca da
consumaccedilatildeo das virtudes Ao afirmar que as virtudes intelectuais e morais estatildeo no
homem como aptidatildeo e que a sua consumaccedilatildeo natildeo se realiza por um soacute tipo de accedilatildeo
e sob diversas circunstacircncias o autor sinaliza que diversas formas de vivecircncia ou de
praacuteticas satildeo capazes de atualizar as mesmas virtudes Assim natildeo se precisa acentuar
a necessidade de as pessoas viverem da mesma maneira para serem portadoras das
mesmas virtudes Eacute possiacutevel pois afirmar que pertence a Tomaacutes de Aquino o meacuterito
de compreender que em sua consumaccedilatildeo ou atualizaccedilatildeo as virtudes se aplicam de
maneiras diferentes em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que as praticam Estatildeo na base dessas
suas compreensotildees tanto o aprofundamento que Tomaacutes realizou da noccedilatildeo de
indiviacuteduo quanto o da noccedilatildeo de pessoa Como se sabe pela evoluccedilatildeo histoacuterica do
conceito de pessoa natildeo esteve entre as preocupaccedilotildees mais relevantes de Aristoacuteteles
o problema da individuaccedilatildeo aleacutem disso somente com Boeacutecio pessoa passa a
significar este mais particular no gecircnero humano Assim Tomaacutes de Aquino conclui
que ldquoas condiccedilotildees individuais de cada pessoa tambeacutem proporciona maior ou menos
proximidade agrave virtude entendida como meiordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q66 a1)
532 A eacutetica antiga assunccedilatildeo compatibilizaccedilatildeo e superaccedilatildeo
A ideia de liberdade em Tomaacutes de Aquino se constitui como princiacutepio que guia
o problema tomista da Beatitude e do Fim uacuteltimo do homem Aristoacuteteles seguindo a
116
articulaccedilatildeo da Eacutetica Antiga tem a Eudaimonia como ideia central da vida moral
Tomando esta ideia sob a acepccedilatildeo de Beatitude Tomaacutes de Aquino ultrapassa a ideia
aristoteacutelica primitiva de Eudaimonia rompendo assim com o cosmocentrismo da
Eacutetica Antiga assentado na moral aristoteacutelica e no neoplatonismo
Tomaacutes de Aquino empreende em relaccedilatildeo agrave Eacutetica das Virtudes um esforccedilo de
integraccedilatildeo da moral antiga ao personalismo cristatildeo Santo Tomaacutes busca manter um
equiliacutebrio entre a consistecircncia de uma natureza humana essencial da eacutetica antiga e
o homem histoacuterico peregrino do teocentrismo cristatildeo Eacute possiacutevel afirmar que a
questatildeo da liberdade humana estaacute situada entre a posiccedilatildeo teocecircntrica e a beatitude
A ideia cristatilde de que a beatitude soacute se realiza em sua plenitude com a visatildeo beatiacutefica
da divina essecircncia eacute mais um contributo singular agrave Eacutetica das Virtudes
O cosmocentrismo da eacutetica de Aristoacuteteles repousa sobre uma noccedilatildeo de
natureza que compreende que a tendecircncia para a Eudaimonia eacute fruto de ldquoum princiacutepio
interno de movimento dos seres que lhes confere sua consistecircncia proacutepria num
universo ordenado segundo os ciacuterculos ascendentes das naturezas ou essecircnciasrdquo
(LIMA VAZ 2002 p 39) Por sua vez do cosmocentrismo de origem neoplatocircnica o
pensamento cristatildeo importou a ideia de processatildeo e retorno dos seres com relaccedilatildeo
ao seu princiacutepio Esta ideia tornou-se posteriormente o esquema mais baacutesico da
ciecircncia teoloacutegica que compreende tudo como vindo de Deus e a ele retornando Deus
eacute portanto o ldquoArdquo enquanto tudo dele procede e o ldquoΩrdquo enquanto tudo para ele
retorna
A Eudaimonia eacute sem duacutevida de valor fundamental na eacutetica aristoteacutelica Ela estaacute
em consonacircncia um esquema cosmocecircntrico presente no pensamento de Aristoacuteteles
Na Poliacutetica por exemplo ser escravo ou ser livre eacute obra da natureza O recorte tomista
da Eudaimonia apresentado como Beatitude eacute justamente uma transgressatildeo da
ordem da coacutesmica possui um caraacuteter espiritual A visatildeo beatiacutefica transcende a ordem
da natureza seja no homem seja porque a proacutepria visatildeo eacute compreendida enquanto
uniatildeo agravequele que eacute o princiacutepio e termo da ordem natural embora natildeo fazendo parte
dela
Segundo Lima Vaz um dos motivos de o cosmocentrismo antigo se
compatibilizar ao pensamento cristatildeo deve-se ao caraacuteter teoloacutegico
Eacute preciso no entanto acentuar que o cosmocentrismo antigo eacute de natureza teoloacutegica e foi como tal que entrou em confronto com o
117
teocentrismo cristatildeo Com efeito o cosmos como totalidade perfeita tem como predicado fundamental a divindade Eacute o theion por excelecircncia Sendo assim sua contemplaccedilatildeo assume necessariamente a forma de uma teologia De resto a teologia cristatilde constitui-se em grande parte utilizando as estruturas conceptuais (sic) dessa teologia coacutesmica embora criticando-a nas suas expressotildees panteiacutestas (LIMA VAZ 2002 p 42)
No estudo do Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio Carlos Arthur
mostra como Tomaacutes de Aquino aponta exatamente a similitude entre o objeto da
Teologia e o objeto da Filosofia Primeira ou seja tanto a Teologia quando a
Metafiacutesica ou Filosofia Primeira compartilham um objeto semelhante106 Esta seria
pois a natureza teoloacutegica do cosmocentrismo antigo Ora a eacutetica teleoloacutegica que
aponta para o fim uacuteltimo do homem assume uma perspectiva finalista ao modo de
uma causa final a medida em que a eudaimonia se constitui na contemplaccedilatildeo do
cosmos divino e no conhecimento do seu princiacutepio ordenador
Seguindo a ideia da Reconciliaccedilatildeo entre o Pensamento Cristatildeo e o
Aristotelismo ver-se-aacute que aleacutem de assumir a influecircncia aristoteacutelica acerca do fim
uacuteltimo do homem Tomaacutes de Aquino faz do alcance ao fim uacuteltimo natildeo apenas uma
condiccedilatildeo de um movimento interno natural mas tambeacutem um ato acessiacutevel ao homem
atraveacutes de um ato da inteligecircncia O alcance e a compreensatildeo do fim uacuteltimo pelo
homem eacute assim o elemento de assunccedilatildeo e superaccedilatildeo do esquema aristoteacutelico da
Eacutetica das Virtudes por Santo Tomaacutes natildeo porque a espiritualidade da inteligecircncia seja
o diferencial mas pelo objeto alcanccedilado por ela Deus eacute o alcanccedilado na beatitude
cristatilde e como tal ele estaacute para aleacutem da ordem natural
Eacute possiacutevel afirmar que a eacutetica de Aristoacuteteles como tambeacutem a sua poliacutetica
constituiu-se como forma de manter uma coerecircncia entre a ordem do cosmos e os
atos humanos Especificamente a teoria aristoteacutelica das accedilotildees tenta compatibilizar o
desafio de desenvolver uma teoria causal das accedilotildees que compatibilizem a ordem da
natureza e a responsabilidade do agente Sobre a causalidade das accedilotildees em
Aristoacuteteles Carlo Natali afirma ldquoa causalidade aristoteacutelica individua uma conexatildeo real
existente no mundordquo (NATALI 2010 p 319)
106 NASCIMENTO Carlos Arthur R do Introduccedilatildeo ao Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio
questotildees 5 e 6 In TOMAS DE AQUINO Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio questotildees 5 e 6 Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Editora da UNESP 1999 p 17
118
A existecircncia de uma conexatildeo real no mundo significa que a teoria aristoteacutelica
dos atos e por conseguinte a eacutetica aristoteacutelica possuem um caraacuteter natural ou
cosmocecircntrico Qual a insistecircncia na distinccedilatildeo entre o caraacuteter cosmocecircntrico da eacutetica
aristoteacutelica e a eacutetica cristatilde ldquoancoradardquo na ideia de liberdade A credibilidade da ideia
de liberdade mesmo com os questionamentos posteriores dada pelos filoacutesofos
modernos ratifica a sequecircncia de contribuiccedilotildees oferecidas pelo pensamento cristatildeo agrave
Eacutetica das Virtudes e agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica
Henrique de Lima Vaz afirma que ldquoeacute um fato que a concepccedilatildeo da liberdade e
da beatitude como fim uacuteltimo do homem em Santo Tomaacutes edificada com materiais
aristoteacutelicos e neoplatocircnicos natildeo pretende atenuar mas ao contraacuterio acentuar o rigor
do teocentrismo cristatildeordquo (VAZ 2002 p 36) Aquilo que se entende aqui por superaccedilatildeo
do cosmocentrismo aristoteacutelico natildeo comporta elementos valorativos no sentido de
entender superaccedilatildeo como melhor ou pior A partir de algumas seccedilotildees anteriores pode-
se mostrar como Tomaacutes de Aquino conduziu esta tarefa
Tomaacutes de Aquino descentrou a teoria aristoteacutelica das accedilotildees quando encontrou
um modo de inserir uma parte moral na teologia sem no entanto perder o
foco da centralidade de Deus como sujeito (tema) fundamental da ciecircncia teoloacutegica
Segundo verificou-se como a moral tomista se encontrou profundamente
harmonizada com a ideia de liberdade distinguindo-a inclusive do livre-arbiacutetrio em sua
teoria dos atos humanos A ideia de liberdade foi no pensamento cristatildeo uma das
conquistas mais paradigmaacuteticas e problemaacuteticas deixadas para a Tradiccedilatildeo Filosoacutefica
Pode-se afirmar ainda que o problema da liberdade em Tomaacutes de Aquino se
encontra centralizado entre sua posiccedilatildeo teocecircntrica jaacute exposta no modo como o autor
encontrou um lugar para a moral sem ferir a unidade da ciecircncia teoloacutegica e a noccedilatildeo
de Beatitude A partir do pensamento de Tomaacutes de Aquino sobre esta questatildeo
compreende-se que para ele natildeo eacute possiacutevel ser feliz sem ser livre assim como natildeo
eacute livre aquele cuja felicidade se resume a uma perspectiva transitoacuteria do mundo das
criaturas sensiacuteveis
119
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A questatildeo da fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes se constituiu como objeto
de estudo desta pesquisa O problema que orientou as leituras e reflexotildees entatildeo
desenvolvidas foi de que maneira o pensamento cristatildeo tomista pode deixar uma
heranccedila na fundamentaccedilatildeo de desenvolvimento desta proposta eacutetica A tese aqui
desenvolvida como resposta agrave problemaacutetica foi a de que uma eacutetica das virtudes
proposta ao pensamento contemporacircneo natildeo deveria prescindir dos elementos
forjados no seio da interpretaccedilatildeo cristatilde tomista desta eacutetica
O desenvolvimento desta tarefa foi realizado atraveacutes da terminologia
denominada Reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e o pensamento cristatildeo tomista Esta
expressatildeo e o intento de mostrar como seria possiacutevel pensaacute-la filosoficamente
constituiu-se na tarefa que comprovou a tese de que o pensamento cristatildeo tem
contribuiccedilotildees relevantes agrave fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes A motivaccedilatildeo pelo
desenvolvimento do tema surgiu do pensamento de MacIntyre a partir de sua
indicaccedilatildeo presente no texto Justiccedila de Quem Qual Racionalidade em que o autor
afirma ter errado em sua interpretaccedilatildeo do pensamento de Santo Tomaacutes sobre a
unidade das virtudes e que seria necessaacuterio investigar o modo como Tomaacutes de Aquino
realizou o que o proacuteprio MacIntyre intitulou de Reconciliaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo Biacuteblica
e o Aristotelismo
Preferiu-se utilizar a expressatildeo Reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo
tomista e o aristotelismo A tradiccedilatildeo biacuteblica e suas diversas correntes de interpretaccedilatildeo
satildeo muito vastas Por isto a especificaccedilatildeo pensamento cristatildeo tomista traduziu de
modo delimitado os limites deste trabalho Jaacute o aristotelismo foi a outra ldquofonterdquo que
incitou e influenciou o pensamento de Tomaacutes de Aquino a se constituir como
pensamento epocal nas palavras de Hegel
A expressatildeo vinda de MacIntyre natildeo resultou numa tentativa de preenchimento
de uma lacuna em seu pensamento Esta pesquisa natildeo teve a ilusatildeo de ser a
continuadora da tarefa que MacIntyre reconheceu como erro de suas anaacutelises
Entretanto o diagnoacutestico feito acerca da fragmentaccedilatildeo do discurso moral
contemporacircneo a explicaccedilatildeo da origem da fragmentaccedilatildeo nas teses modernas sobre
120
a moralidade e a indicaccedilatildeo de que o pensamento cristatildeo tomista e o aristotelismo
poderiam ser relacionados foram o suficiente para motivar o seguimento de um
caminho singular de leitura e desenvolvimento das ideias de Tomaacutes de Aquino em
relaccedilatildeo aos fundamentos da Eacutetica das Virtudes
No itineraacuterio da pesquisa tomou-se o seguinte caminho na primeira parte o
modo como esta corrente do pensamento eacutetico retorna ao debate contemporacircneo e
quais dos seus fundamentos se pode compreender atraveacutes das ideias de Rosalind
Hursthouse e Gertrude Anscombe Expocircs-se tambeacutem os elementos de criacutetica agraves
morais deontoloacutegica e utilitarista Ao final se atingiu o horizonte filosoacutefico do qual o
pensamento de MacIntyre eacute devedor
A segunda parte apresentou o pensamento do MacIntyre em Depois da Virtude
com a exposiccedilatildeo do que ele chamou desacordo do discurso contemporacircneo sobre a
moralidade sua anaacutelise sobre a teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade e
o modo como elas influenciaram o desacordo contemporacircneo e o desenvolvimento de
sua teoria moral apresentada na terceira parte desta pesquisa
A quarta parte foi o desenvolvimento do pensamento de Tomaacutes de Aquino
intitulada Reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo tomista e o aristotelismo Nesta
parte tomou-se o pensamento de Aristoacuteteles sobre a teoria dos atos chegando a
compreensatildeo de que esta teoria eacute anterior e necessaacuteria a uma Eacutetica das Virtudes Em
seguida passou-se agrave anaacutelise reflexatildeo e aprofundamento das ideias relativas agrave
psicologia filosoacutefica tomista e os temas fundamentais ligados a Eacutetica das Virtudes
Da investigaccedilatildeo realizada cabe agora apresentar perspectivas de alcance
filosoacutefico e hermenecircutico acerca da Eacutetica das Virtudes dos autores aqui estudados e
da contribuiccedilatildeo do pensamento cristatildeo tomista em torno deste objeto
A Eacutetica das Virtudes eacute uma via possiacutevel de experiecircncia eacutetica agrave
contemporaneidade entre as morais deontoloacutegica e utilitarista A eacutetica do dever
pressupotildee o desenvolvimento de uma racionalidade madura para ser legisladora de
si e que seja imparcial para conter as inclinaccedilotildees e acima delas conformar as accedilotildees
agrave norma O utilitarismo se vale da moral da maximizaccedilatildeo do bem-estar de algueacutem e a
uma valoraccedilatildeo das accedilotildees em virtude das consequecircncias O produto das duas
expressotildees eacuteticas dominantes da contemporaneidade eacute uma certa convicccedilatildeo de que
por um lado estas propostas mantecircm sua atenccedilatildeo primordialmente na norma e por
outro as reflexotildees em torno do agente que pratica a norma ficaram negligenciadas
121
Assim como a Eacutetica das Virtudes tem sua atenccedilatildeo primordial agravequele que age eacute
possiacutevel garanti-la agrave qualidade de uma via possiacutevel dentro do debate eacutetico
contemporacircneo
Uma consequecircncia possiacutevel decorrente da coexistecircncia das trecircs correntes
eacuteticas supracitadas eacute a de que tem se firmado a impossibilidade de uma determinaccedilatildeo
da accedilatildeo de forma monista conforme uma corrente eacutetica em particular Este eacute um
achado problemaacutetico agraves teorias uma vez que cada uma delas ao se desenvolver
justifica-se como necessaacuteria Firma-se aos poucos a consolidaccedilatildeo de um certo
emotivismo Este emotivismo delineado por MacIntyre em Depois da Virtude tem por
tese fundante a ideia de que as accedilotildees satildeo expressotildees dos proacuteprios sentimentos dos
agentes Ou seja natildeo se determina a accedilatildeo de modo uniacutevoco
Foi possiacutevel compreender influecircncias filosoacuteficas ao pensamento do MacIntyre
na exposiccedilatildeo dos fundamentos da Eacutetica das Virtudes e na apresentaccedilatildeo das criacuteticas
agrave deontologia e ao utilitarismo atraveacutes dos pensamentos de Rosalind Hursthouse e
Gertrude Anscombe Em A filosofia moral moderna de Gertrude Anscombe
explicitou-se a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica no tratamento das questotildees
relativas agrave virtude O alcance desta pertinecircncia levou agrave compreensatildeo de que uma
psicologia filosoacutefica eacute necessaacuteria e anterior a uma teoria das virtudes Esta afirmaccedilatildeo
serviu entatildeo de fio condutor a anaacutelise da teoria dos atos em Aristoacuteteles e
nos conceitos de fundamentaccedilatildeo da Eacutetica de Tomaacutes de Aquino
Foi possiacutevel compreender o movimento interno de Depois das Virtudes Em
primeiro lugar MacIntyre apresenta elementos que comprovariam a existecircncia de um
desacordo moral em seguida o autor mostra como o desacordo resulta dos
empreendimentos realizados pela filosofia moral moderna mencionando as principais
posiccedilotildees de Kant Hume e Kierkegaard com a exposiccedilatildeo das divergecircncias entre as
teses MacIntyre mostra como o discurso moral perdeu a sua inteligibilidade e aiacute
propotildee uma teoria moral que seria capaz de garantir o retorno agrave unidade de um
discurso moral
Como MacIntyre postula um retorno de uma eacutetica das virtudes e como a
fundamentaccedilatildeo deste discurso estaacute primitivamente em Aristoacuteteles a pesquisa
adentrou num primeiro momento agrave teoria aristoteacutelica dos atos uma vez que as
virtudes dependem dela como anterior No segundo momento a investigaccedilatildeo seguiu
na anaacutelise dos conceitos tomistas que eram tomados de Aristoacuteteles e que foram se
122
compatibilizando agraves exigecircncias das circunstacircncias histoacuterico-cultural-filosoacuteficas de
Tomaacutes de Aquino Esta anaacutelise explicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do pensamento de Tomaacutes
de Aquino foram traduzidas aqui com o que se denominou Reconciliaccedilatildeo entre
pensamento cristatildeo e o aristotelismo Mostrar a tomada do pensamento eacutetico de
Aristoacuteteles e as contribuiccedilotildees do pensamento tomista foram tarefas fundamentais
desta pesquisa
Encontrou-se a compreensatildeo de que a eacutetica de Aristoacuteteles e de Santo Tomaacutes
tem mais a ver com o que faz a vida ser vivida do que com a obediecircncia agrave lei moral
O fato de ldquoter mais a verrdquo com a vida do agente natildeo implica num ldquonatildeo tem nada a verrdquo
com a norma Implica que a norma tem valor enquanto for capaz te ter sentido a um
agente que frequentemente a pratica e que tende a fazecirc-lo mais naturalmente A
questatildeo do desenvolvimento das virtudes brota de condiccedilotildees fundamentais do proacuteprio
ser do homem e por isso a virtude eacute a expressatildeo melhor do proacuteprio homem
e contribui na sua realizaccedilatildeo
Pela teoria dos atos e a consolidaccedilatildeo das virtudes pelos haacutebitos alcanccedila-se a
ideia de que a accedilatildeo virtuosa natildeo resulta exclusivamente da capacidade intelectual ela
necessita de uma praacutetica habitual constante Esta caracteriacutestica parece mais coerente
em relaccedilatildeo agrave constituiccedilatildeo aristoteacutelico-tomista do homem o ser uno em cuja existecircncia
conta com a sua dimensatildeo corpoacuterea e o modo como por vezes ela determina o seu
agir A praacutetica das virtudes respeita por assim dizer a estrutura da uniatildeo corpo e alma
do ser humano
Num contexto de Eacutetica das Virtudes a norma natildeo eacute exclusivamente um
conjunto de regras exteriores aos quais se deve obedecer mas modos de accedilatildeo que
internalizados pelo haacutebito proporcionam o desenvolvimento das virtudes uma
estabilidade nas vivecircncias cotidianas para conviver com as dores inevitaacuteveis da vida
pessoal e em comum Ao mesmo tempo as virtudes potildeem os seres humanos numa
corrente de interdependecircncia na qual o bem de um exige a contrapartida do bem dos
outros Isto se pode confirmar com a referecircncia ao conceito de justiccedila
O conceito de justiccedila corresponde agrave compreensatildeo de que natildeo haacute beatitude
sem a ideia de que sua busca eacute de caraacuteter comunitaacuterio A justiccedila tanto em Aristoacuteteles
quando em Tomaacutes de Aquino eacute a maior das virtudes porque se refere agrave relaccedilatildeo do
homem com os outros Eacute aceitaacutevel uma compreensatildeo bilateral da justiccedila pois o bem
que se quer para si deve-se tambeacutem se querer acessiacutevel aos outros
123
O aprofundamento dos elementos da psicologia filosoacutefica de Santo Tomaacutes se
constituiu numa tarefa imprescindiacutevel Os conceitos de sindeacuterese consciecircncia
vontade e intenccedilatildeo puderam ser apresentados como um contributo bem especiacutefico agrave
fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes
A sindeacuterese enquanto haacutebito natural especial relaciona-se aos princiacutepios
praacuteticos da accedilatildeo de modo a incitar o bem e condenar o mal Intuiccedilatildeo dos primeiros
princiacutepios da moral Jaacute a consciecircncia se encarrega de estabelecer o julgamento
acerca dos atos realizados pressupondo natildeo apenas a sindeacuterese mas todo o
conhecimento moral que se apoia sobre ela Tomaacutes de Aquino acrescenta que para
desenvolver estas funccedilotildees faz-se necessaacuteria ldquouma aplicaccedilatildeo atual de nosso
conhecimento agrave nossa accedilatildeordquo
A consciecircncia segundo Santo Tomaacutes natildeo eacute pensada como um funcionamento
constante Ela atua efetivamente quando os objetos relativos agraves accedilotildees assim a
solicitam Tal compreensatildeo do papel da consciecircncia desfaz o mito de que a concepccedilatildeo
do homem como animal racional implicaria necessariamente num
funcionamento constante da consciecircncia
As consideraccedilotildees sobre a vontade fundamentam a ideia de liberdade num
sentido mais baacutesico poreacutem necessaacuterio que eacute o conceito de livre arbiacutetrio e na
independecircncia de qualquer forma de determinaccedilatildeo inclusive as determinaccedilotildees do
proacuteprio livre arbiacutetrio O livre-arbiacutetrio eacute a fonte mais primordial de exerciacutecio da vontade
mas natildeo pode ser considerada a liberdade mesma Jaacute a liberdade eacute uma orientaccedilatildeo
racional ao fim No conceito da liberdade compreende-se porque natildeo eacute escravo
aquele que foi obrigado a fazer pois ser obrigado a fazer natildeo implica que houve o
movimento interno do querer fazer
Santo Tomaacutes aprofunda o conceito de vontade que seja naturalmente seja em
vista de fim ela permanece atuante A necessidade de fim natildeo repugna agrave vontade
nesse sentido compreende-se o salto posterior na relaccedilatildeo entre liberdade e Beatitude
promovido pelo filoacutesofo enquanto a eudaimonia aristoteacutelica eacute a contemplaccedilatildeo do
divino natural em Tomaacutes de Aquino Visio beatifica eacute fruto de um rompimento com a
concepccedilatildeo cosmocecircntrica da Eacutetica Antiga Desse modo Tomaacutes de Aquino
compatibiliza a ideia de liberdade com a ideia de fim Analogicamente assim como o
intelecto adere aos primeiros princiacutepios a vontade deve pois aderir ao fim uacuteltimo que
eacute a bem-aventuranccedila uma vez que a bem-aventuranccedila ou a felicidade eacute almejada
124
por todos Assim sendo compreende-se que o fato de haver uma vontade natural natildeo
implica uma contradiccedilatildeo com uma vontade livre
Instigar a vontade a agir e mover-se em busca de um fim eacute funccedilatildeo da intenccedilatildeo
Ela move natildeo somente a vontade mas todas as potecircncias do ser humano em busca
de um fim Tomaacutes de Aquino desenvolve o conceito intenccedilatildeo num duplo sentido
designa por um lado a intenccedilatildeo voluntaacuteria e por outro intenccedilatildeo aplicada agrave definiccedilatildeo
enquanto se exprime a intenccedilatildeo da verdade a intenccedilatildeo de bem Ela eacute o actus
voluntatis em busca dos fins quer transitoacuterios quer do uacuteltimo do homem Nesse
sentido pode-se afirmar que pela intenccedilatildeo os atos voluntaacuterios tornam-se unos o que
implica posteriormente em uma unidade da vida moral
No desenvolvimento que Aristoacuteteles faz sobre os atos voluntaacuterios estaacute
presente de forma latente a ideia de intenccedilatildeo Tomaacutes de Aquino aprofunda de modo
consideraacutevel este conceito Se a intenccedilatildeo se relaciona com os fins intermediaacuterios e
em relaccedilatildeo ao fim uacuteltimo pode-se firmar a ideia que ela atua em cada um dos atos
concernentes aos meios e a escolha Ou seja a intenccedilatildeo eacute ativa em todo
desenvolvimento das accedilotildees
O aprofundamento dos conceitos da psicologia filosoacutefica tomista e o estado em
que o autor deixou estes conceitos se firmaram com muita forccedila no seio da Tradiccedilatildeo
filosoacutefica Pelo conceito de arbiacutetrio bruto e livre arbiacutetrio o Kant da Metafiacutesica dos
Costumes assume quase que com a mesma nomenclatura o formato tomista dos
termos no mesmo texto os conceitos kantianos de sentimento moral e consciecircncia
moral satildeo por demais semelhantes aos conceitos de sindeacuterese e de consciecircncia Na
proacutepria contemporaneidade o conceito de intencionalidade perpassou tanto a eacutetica
quanto a fenomenologia Estas influecircncias filosoacuteficas asseguram ao pensamento
cristatildeo lugar na Tradiccedilatildeo Jaacute os conceitos da psicologia filosoacutefica comprovam a ideia
inicial que a teoria de uma Eacutetica das virtudes sugerida ao pensamento
contemporacircneo necessita considerar os achados do pensamento cristatildeo em seu
processo de fundamentaccedilatildeo
A partir das consideraccedilotildees elencadas eacute possiacutevel confirmar uma das ideias
iniciais desta pesquisa Um breve olhar sobre o vocabulaacuterio moral contemporacircneo
permite perceber que nele haacute muito do conteuacutedo semacircntico de conceitos que foram
forjados no seio do pensamento cristatildeo
125
Cabe ainda explicitar alguns achados no pensamento de Santo Tomaacutes
passiacuteveis de serem relacionados ao pensamento de MacIntyre Esta tarefa natildeo eacute
como se afirmou acima uma listagem de erros do autor mas possibilidades de
encontro dos dois filoacutesofos
Em Depois da Virtude MacIntyre desenvolveu um novo conceito de virtude que
de certo modo reabilitasse o discurso moral Antes de falar dos elementos que
compotildee a sua teoria moral eacute possiacutevel encontrar um inconveniente a sua teoria moral
e seu conceito de virtude natildeo levam em conta uma Psicologia Filosoacutefica Eacute bem
verdade que ele afirmou os ldquoriscosrdquo da biologia metafiacutesica de Aristoacuteteles entretanto
uma das coisas que foram encontradas nesta pesquisa foi a relaccedilatildeo estreita que
existe entre as virtudes e a compreensatildeo de homem A articulaccedilatildeo do cataacutelogo das
virtudes estaacute em consonacircncia com a constituiccedilatildeo do homem e com as potecircncias que
ele necessita desenvolver em busca de seu melhor Saliente-se que MacIntyre
posteriormente em Dependent rational animals reconheceu a importacircncia de uma
psicologia filosoacutefica
O conceito macintyreano de praacuteticas se alinha ao seu meacutetodo e consiste em
encontrar manifestaccedilotildees histoacutericas que sirvam de apoio agraves suas investigaccedilotildees Seu
conceito de Praacuteticas se refere agraves formas coerentes e complexas da atividade humana
que satildeo socialmente estabelecidas e como tais ampliadores dos poderes humanos
na forma de excelecircncia e transmissores dos bens internos inerentes a essas Praacuteticas
Eacute possiacutevel em Tomaacutes de Aquino conforme demonstrado que a vivecircncia das virtudes
como atualizaccedilatildeo das potecircncias do homem se daacute sob accedilotildees diversas e sob diversas
circunstacircncias da histoacuteria Assim parece a esta pesquisa que o desenvolvimento
histoacuterico das virtudes manteacutem uma certa similitude ao conceito de praacuteticas
Na questatildeo da unidade das virtudes que foi uma questatildeo apontada pelo proacuteprio
MacIntyre como contendo um erro de sua anaacutelise viu-se que segundo Tomaacutes de
Aquino haacute uma ideia de interdependecircncia entre as virtudes A articulaccedilatildeo interna
entre as potecircncias do homem proporciona tambeacutem uma articulaccedilatildeo e tambeacutem uma
hierarquizaccedilatildeo entre as virtudes A unidade das virtudes proporciona ainda uma
consolidaccedilatildeo da unidade do caraacuteter moral de um agente Ora o conceito de unidade
das virtudes contribuiria por demais com a componente a ordem narrativa de uma
vida humana singular Eacute claro que a unidade das virtudes diz pouco ou quase nada agrave
noccedilatildeo de narrativa Entretanto o conceito de unidade das virtudes atinge um objetivo
126
similar ao conceito macintyreano a saber considerar cada vida humana como uma
unidade singular Tambeacutem foi verificado que natildeo apenas o conceito de unidade das
virtudes mas tambeacutem o conceito de intencionalidade no estudo dos atos humanos
foi capaz de preencher este requisito e mais ainda lanccedilou luzes agrave ideia de
consciecircncia aprofundada com propriedade pelo pensamento cristatildeo e assumido pelo
pensamento moderno praticamente na forma como os medievais deixaram
127
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ZINGANO Marco (org) Sobre a Eacutetica Nicomaqueia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Odysseus Editora 2010
AGRADECIMENTOS
Do fundo do meu coraccedilatildeo agradeccedilo
A Deus pelo dom da feacute da existecircncia e da capacidade de pensar
A Adriana Rafael Joseacute e Ana Luiacutesa que suportaram com muito amor o
processo doloroso e fecundo de construccedilatildeo desta pesquisa
Aos meus pais Francisco e Nataacutelia a quem sou grato pelo dom da vida e pela
educaccedilatildeo que recebi Aos meus irmatildeos Junior e Kaline por serem quem satildeo
Cunhados Marques Alessandra Luciana e Paulinho Meus sobrinhos Ceciacutelia
Viniacutecios Ana Caroline Ana Beatriz e Paulinho
Agrave minha sogra Dona Carminha meu sogro Modestino de Arruda Fontes (in
memoriam) e agrave famiacutelia Fenelon
Ao meu orientador Marcos Roberto Nunes Costa pela confianccedila disposiccedilatildeo
incentivo em fazer-me crescer na difiacutecil tarefa do pensar e do produzir em Filosofia
Agrave Profa Patriacutecia Lira revisora do texto e dos erros que meus olhos jaacute natildeo
enxergavam
Aos membros da banca professores Edmilson Azevedo Claacuteudio Pedrosa
Nunes Joseacute Francisco Preto Meirinhos Gilfranco Lucena e Marcos Costa
A todo o corpo docente do Programa de Doutorado Integrado em Filosofia das
Universidades Federal de Pernambuco Federal da Paraiacuteba e Federal do Rio Grande
do Norte na pessoa do seu coordenador Geral Prof Dr Alfredo Moraes
Ao povo brasileiro que atraveacutes da CAPES financiou esta pesquisa por 2 anos
A Miguel Antocircnio ex-coordenador Geral do Programa pelas contribuiccedilotildees que
pudemos Aos discentes do Programa pela confianccedila que me concederam em
representar-lhes
Aos amigos de minha turma de Doutorado Gleidmar Graciele Coutinho Marta
Fernandes e Faacutebio ldquoque nos tornamos amigos ao calor dos estudosrdquo
A meu amigo irmatildeo pessoa por quem tenho grande amor e admiraccedilatildeo
Gilfranco Lucena
Agrave gestatildeo professores e funcionaacuterios e alunos da Faculdade Satildeo Miguel
especialmente do Curso de Licenciatura em Letras onde na docecircncia aprofundei o
meu conhecimento na docecircncia da liacutengua latina
Aos colegas de trabalho alunos e alunas da UNEAL - Universidade Estadual
de Alagoas minha nova casa
A Faacutetima Costa Marcela George e Mauriacutecio da Faculdade Filosofia Ciecircncias
e Letras de Caruaru ndash FAFICA
Aos amigos Peacutericles Gena Mazurk Ricardo Carvalho Tambeacutem a Harlen
Ricardo e Diego Marques A todos os amigos e amigas da FACOL
A todos os que a mim estiveram unidos para que eu pudesse concluir esse
trabalho
Meus sinceros agradecimentos
ldquo [] Homo habet naturaliter rationem et manus quae sunt organa organorum
quia per eas homo postest sibi praeparare instrumenta infinitorum modorum et ad
infinitus effectusrdquo
ldquo [] O homem possui por natureza a razatildeo e as matildeos que satildeo os oacutergatildeos dos
oacutergatildeos porque por elas pode preparar para si uma variedade infinita de instrumentos
para infinitos efeitosrdquo (ARISTOacuteTELES apud TOMAacuteS DE AQUINO STh I q76 a5)
RESUMO
A Eacutetica das Virtudes e sua fundamentaccedilatildeo satildeo o objeto de estudo desta
pesquisa Partindo do pensamento de Alasdair Macintyre autor de Depois da Virtude
o trabalho apresenta o esforccedilo do pensamento contemporacircneo em reabilitar esta
proposta eacutetica Seguindo a orientaccedilatildeo do proacuteprio Macintyre de que seria necessaacuterio
investigar a reconciliaccedilatildeo que Tomaacutes de Aquino operou entre a tradiccedilatildeo biacuteblica e o
pensamento aristoteacutelico o texto responde agrave seguinte pergunta a Eacutetica das Virtudes
de raiz aristoteacutelica pode receber contribuiccedilotildees do pensamento cristatildeo especialmente
de natureza tomista A tese que brota como tentativa de resposta a esta questatildeo eacute a
de que o pensamento cristatildeo via Tomaacutes de Aquino oferece significativas
contribuiccedilotildees agrave fundamentaccedilatildeo desta corrente do pensamento eacutetico A pesquisa
bibliograacutefica de natureza indutiva percorre um caminho de anaacutelise e interpretaccedilatildeo
dos textos fundamentais do Macintyre Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino Na busca de
atingir sua finalidade satildeo aprofundados os temas acerca do ldquoanti-iluminismo eacuteticordquo e
a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes ao pensamento contemporacircneo Nesta parte
abordam-se as principais criacuteticas agrave ldquoeacutetica do deverrdquo e a ldquoeacutetica utilitaristardquo ou
ldquoconsequencialistardquo em seguida apresenta-se a criacutetica de Macintyre ao projeto
moderno de fundamentaccedilatildeo da eacutetica como tambeacutem a sua teoria moral fundamentada
numa Eacutetica das Virtudes por fim a partir da proacutepria indicaccedilatildeo do Macintyre de que
sua leitura do pensamento tomista foi insuficiente o texto analisa fundamentos da
Eacutetica das Virtudes em Aristoacuteteles e apresenta os conceitos do pensamento tomista
que aqui entende-se como o contributo a esta eacutetica
Palavras-chave Eacutetica Virtudes Pensamento cristatildeo
ABSTRACT
The Virtue Ethics and its fundamentals are the object of this research Starting
from Alasdair Macintyrersquos thought author of After Virtue the work presents the effort
of the contemporary thought on rehabilitating this ethical purpose According to
Macintyre own orientation that it would be necessary to investigate the reconciliation
which Thomas Aquinas operated between the biblical tradition and the aristotelian
thought the text responds to the following question can The Virtue Ethics of
aristotelian roots receive contributions from the Christian thought specially of
thomistic nature The thesis which buds as an attempt to answer this question is the
one that the Christian thought via Thomas Aquinas offers meaningful contributions to
the fundamentals of this current of ethical thoughts The bibliographical research of
inductive nature goes through a path of analysis and interpretation of Macintyrersquos
Aristotlersquos and Thomas Aquinasrsquos fundamental texts In the search for reaching its goal
themes about ldquoethical anti-enlightenmentrdquo and the relocation of Virtue Ethics to the
contemporary thought are deepened In this part the main criticisms to ldquothe ethics of
dutyrdquo and ldquothe utilitarianistrdquo or ldquoconsequentialist ethicsrdquo are approached in the following
part it is presented a critic by Macintyre to the modern fundamentals of ethics as well
as his theory of moral based on an Virtue Ethics finally from Macintyrersquos own
indication that his reading of the thomistic thought was insufficient the text analyses
the fundamentals of the Virtue Ethics in Aristotle and presents the concepts of the
thomistic thought that here is understood as a contribution to this ethics
Keywords Ethics Virtues Christian thought
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO 13
2 O ANTIILUMINISMO EacuteTICO E A EacuteTICA DAS VIRTUDES 16
21 SOBRE A RE-COLOCACcedilAtildeO DA VIRTUE ETHICS 16
211 Sobre a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica 20
212 A incoerecircncia do dever moral 25
213 Criacutetica ao utilitarismo 29
214 A diacutevida filosoacutefica de MacIntyre ao pensamento de
Gertrude Anscombe 32
3 A CRIacuteTICA DE MACINTYRE AO PROJETO MODERNO
DE FUNDAMENTACcedilAtildeO DA MORALIDADE 35
31 A ALEGORIA INICIAL DE DEPOIS DA VIRTUDE 35
32 AS TESES MODERNAS SOBRE A FUNDAMENTACcedilAtildeO
DA ORALIDADE 37
33 O FRACASSO DO PROJETO ILUMINISTA 40
331 O passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana 41
332 A incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a
noccedilatildeo de natureza humana na moral moderna 42
3321 O passado cristatildeo e o novo conceito de razatildeo 43
3322 A ciecircncia e a filosofia do seacuteculo XVII 45
3323 A incoerecircncia entre o posicionamento pela lsquofalecircnciarsquo da razatildeo
e a decisatildeo pela noccedilatildeo de natureza humana 45
3324 Sobre a mudanccedila do significado dos juiacutezos morais 47
4 O PROJETO DE DEPOIS DA VIRTUDE E A TEORIA
MORAL DE MACINTYRE 49
41 O ANTES DE DEPOIS DA VIRTUDE 49
411 Vida social e conceitos morais 50
412 Fundamentaccedilatildeo das proposiccedilotildees normativas 51
413 O emotivismo 52
42 A OBRA DEPOIS DA VIRTUDE 54
421 A natureza das virtudes tese central de Depois da Virtude 55
422 O conceito de praacuteticas 57
423 Ordem narrativa de uma vida humana singular 60
423 Tradiccedilatildeo 64
5 RECONCILIACcedilAtildeO ENTRE O PENSAMENTO CRISTAtildeO
E O ARISTOTELISMO 67
51 AS VIRTUDES E A TEORIA ARISTOTEacuteLICA DOS ATOS ndash EN III 1-8 69
511 Do voluntaacuterio e do involuntaacuterio 70
512 A escolha deliberada 72
513 A definiccedilatildeo do objeto do querer 73
52 A SIacuteNTESE TOMISTA ATOS HUMANOS E FILOSOFIA MORAL 77
521 Os atos humanos em Santo Tomaacutes de Aquino 78
522 Sindeacuterese e consciecircncia 79
523 O conceito de vontade 80
524 A relaccedilatildeo entre inteligecircncia e vontade 84
525 A liberdade do ato voluntaacuterio e a distinccedilatildeo entre liberdade e livre-
arbiacutetrio 86
526 A intenccedilatildeo 91
53 TOMISMO E EacuteTICA DAS VIRTUDES 93
531 Vida feliz e virtudes antes da siacutentese tomista 94
5311 A construccedilatildeo de uma parte moral na teologia 97
5312 A fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista 99
532 O lugar das virtudes na teologia e sua explicitaccedilatildeo 100
5321 A beatitude e o lugar das virtudes na siacutentese teoloacutegica tomista 100
5312 A concepccedilatildeo tomista de homem e as virtudes 101
5313 A explicitaccedilatildeo do conceito de virtude e a releitura tomista
da teoria das virtudes 105
53131 A perfeiccedilatildeo da potecircncia e habito operativo 105
53132 As virtudes teologais 107
53133 A virtude da justiccedila 107
53134 A unidade das virtudes e conexatildeo entre as virtudes 108
53135 O habitus e vontade livre 111
53136 As virtudes eacuteticas e a razatildeo 113
53137 A relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo tomista de pessoa 114
532 A eacutetica antiga assunccedilatildeo compatibilizaccedilatildeo e superaccedilatildeo 115
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 119
REFEREcircNCIAS 127
13
1 INTRODUCcedilAtildeO
A histoacuteria do homem em seus desdobramentos de sentidos tem sido a luta para
definir o certo e o errado enquanto conjunto de valores que orienta as accedilotildees e
possibilita o homem como singularidade e comunidade Em relaccedilatildeo a Filosofia a
preocupaccedilatildeo com a experiecircncia eacutetica eacute uma das questotildees centrais da atitude criacutetico-
reflexiva e definiu o encaminhamento dos pensadores desde os preacute-socraacuteticos ateacute a
contemporaneidade Em todos os momentos de sua histoacuteria o homem tenta
compreender as accedilotildees como decorrecircncia de valores que orientam o seu agir O
homem eacute a um soacute tempo norma e desejo de quebraacute-la Isto longe de ser uma
deficiecircncia da condiccedilatildeo humana constitui precisamente seu salto maior Salto sobre
o reino da necessidade e que possibilita o advento do reino da liberdade
O pensamento eacutetico ocidental eacute profundamente marcado pelas figuras de
Aristoacuteteles Tomaacutes de Aquino dentre outros Aristoacuteteles trabalha com a ideia de que
o estudo dos atos humanos da virtude e do bem para o homem considerado
individualmente pertence a eacutetica Esta ciecircncia enquanto ciecircncia praacutetica conduz agrave
compreensatildeo do que seja o bem supremo para o ser humano e quais atitudes o
conduzem mais adequadamente a esse fim Tomaacutes de Aquino enquanto
representante da eacutetica cristatilde assume a estrutura da eacutetica de Aristoacuteteles
estabelecendo uma reinterpretaccedilatildeo dessa moral agrave luz da moral cristatilde Assim o que
em Tomaacutes de Aquino se menciona como felicidade possui um conteuacutedo distinto
daquilo que Aristoacuteteles compreendia por este termo
O pensamento moderno promove uma virada no esquema claacutessico da eacutetica
Kant eacute por assim dizer o exemplar que traduz os anseios do pensamento moderno
em relaccedilatildeo agrave Filosofia Praacutetica O ideal de autonomia e a constituiccedilatildeo de uma moral do
dever marcam profundamente este momento da histoacuteria do pensamento Nas palavras
de Otfried Houmlffe deve-se a Kant a radicalizaccedilatildeo de uma filosofia moral que reivindica
a pretensatildeo de uma validade objetiva A origem da moralidade pode ser encontrada
no caraacuteter autolegislador do sujeito Ateacute mesmo as outras expressotildees do pensamento
eacutetico moderno corroboram com a ideia de que o fundamento das accedilotildees humanas
encontra sua fonte no sujeito
14
Como eacute comum ao pensamento contemporacircneo este eacute marcado pela criacutetica
ao pensamento moderno Desde Nietzsche ateacute Wittgenstein Habermas Hans Jonas
MacIntyre todos eles trazem consigo ressalvas ao pensamento moderno o que vai
causar grandes siacutenteses principalmente do diagnoacutestico das fragilidades do discurso
moral moderno Por outro lado parece natildeo ser mais possiacutevel encontrar uma grande
siacutentese do pensamento eacutetico De qualquer maneira seja para negar ou para propor
a eacutetica permanece como uma das questotildees filosoacuteficas mais relevantes do pensamento
contemporacircneo
Alasdair MacIntyre se insere na filosofia moral contemporacircnea Esta pesquisa
considera que a grandeza de seu pensamento reside no esforccedilo que ele fez para
efetivar uma teoria moral agrave contemporaneidade ao modo de uma eacutetica das virtudes
MacIntyre encontra sua inspiraccedilatildeo filosoacutefica no movimento moral inglecircs denomina
Virtue Ethics Gertrude Anscombe eacute uma das figuras inspiradores deste movimento e
deixa como heranccedila dois elementos fundamentais ao pensamento de MacIntyre a
saber sua criacutetica agrave moral moderna e sua opccedilatildeo pela Eacutetica das Virtudes Embora
tributaacuterio de Gertrude Anscombe a proximidade de MacIntyre com o marxismo e com
as ciecircncias sociais proporciona a ele um itineraacuterio filosoacutefico peculiar
O objetivo deste trabalho eacute tomar o pensamento de MacIntyre e sua criacutetica
efetivada agrave modernidade criacutetica esta que o leva a retomar a Eacutetica das Virtudes a partir
de Aristoacuteteles propondo para a contemporaneidade um modelo de filosofia praacutetica
centrado natildeo nas accedilotildees mas no agente No entanto conforme seu proacuteprio
testemunho a relaccedilatildeo entre o aristotelismo e o pensamento cristatildeo natildeo foi
apresentada adequadamente (cf MACINTYRE 2001) No iniacutecio de Justiccedila de Quem e
Qual racionalidade (cf MACINTYRE 2001) MacIntyre reconhece a precariedade de
sua interpretaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino em relaccedilatildeo agrave Eacutetica das Virtudes Essa
precariedade consiste em natildeo haver pensado com suficiente radicalidade a
reconciliaccedilatildeo que Tomaacutes de Aquino operou entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica
Este trabalho parte deste ponto seu objetivo eacute dar continuidade ao que MacIntyre
deixou inacabado no que se refere ao tratamento que Tomaacutes de Aquino efetivou entre
o aristotelismo e o pensamento cristatildeo Assim onde termina o pensamento do
MacIntyre de Depois da Virtude eacute o ponto de iniacutecio desta pesquisa
O desenvolvimento do objetivo acima proposto exige uma exposiccedilatildeo do que
significa a Eacutetica das Virtudes e sua forma histoacuteria de retorno bem como de sua relaccedilatildeo
15
com Aristoacuteteles Requer tambeacutem a tematizaccedilatildeo do modo como o pensamento cristatildeo
retomou e reelaborou esta eacutetica O posicionamento deste trabalho se fundamenta na
tese de que uma Eacutetica das Virtudes que pretenda recorrer a Aristoacuteteles natildeo pode se
apresentar como alternativa agrave contemporaneidade sem considerar a contribuiccedilatildeo do
pensamento cristatildeo visto que o universo cultural e semacircntico dos conceitos morais
da contemporaneidade eacute perpassado pela influecircncia deste pensamento
Os autores que orientam esta pesquisa satildeo principalmente Alasdair MacIntyre
Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino atraveacutes das obras que se referem agrave Filosofia Moral
Com relaccedilatildeo ao pensamento de MacIntyre seraacute realizado um corte epistemoloacutegico
que parte da obra Depois da Virtude e manteacutem seu foco na tarefa que esta obra deixou
em aberto Os possiacuteveis desdobramentos do pensamento de MacIntyre natildeo se
constituem como empecilho ao desenvolvimento desta pesquisa
Para a realizaccedilatildeo do objetivo proposto faz-se necessaacuterio organizar a estrutura
do trabalho do seguinte modo no primeiro capiacutetulo O Antiiluminismo Eacutetico e a Eacutetica
das Virtudes seraacute feita uma exposiccedilatildeo geral sobre os fundamentos da eacutetica das
virtudes e como esta retorna ao cenaacuterio da filosofia moral contemporacircnea o segundo
A Criacutetica de MacIntyre ao Projeto Moderno de Fundamentaccedilatildeo da Moralidade trata
da primeira tarefa de Depois da Virtude ou seja de como a moral contemporacircnea
resulta segundo MacIntyre do desacordo das teses modernas de fundamentaccedilatildeo da
moralidade e de suas incoerecircncias denominadas por ele lsquofalecircnciarsquo do projeto
iluminista O terceiro capiacutetulo O Projeto de Depois da Virtude expotildee a teoria moral
de MacIntyre retomando os conceitos anteriores a obra mas que determinaram e se
mantiveram presentes nela a quarta parte da tese Tradiccedilatildeo Biacuteblica e Aristotelismo
aborda a Reconciliaccedilatildeo Tomista do Aristotelismo e da Tradiccedilatildeo Biacuteblica na Filosofia
Moral
16
2 O ANTIILUMINISMO EacuteTICO E A EacuteTICA DAS VIRTUDES
O pensamento de MacIntyre se insere numa corrente da Filosofia Moral Inglesa
do seacuteculo XX denominada Eacutetica das Virtudes Este movimento teraacute grande influecircncia
em seu pensamento especialmente na criacutetica que eacute apresentada agrave Moral Moderna
como tambeacutem no esforccedilo de promover uma releitura da Eacutetica de Aristoacuteteles e de
compatibilizaacute-la agraves exigecircncias do pensamento contemporacircneo Esta seccedilatildeo apresenta
esse movimento e seu questionamento dos fundamentos da moral moderna como
tambeacutem apresenta as principais teses daacute Eacutetica das Virtudes por meio dos
pensamentos de Rosalind Hursthouse e de Gertrude Anscombe
A Filosofia Moral Inglesa da segunda deacutecada do seacuteculo XX foi denominada
Virtue Ethics porque propocircs a recolocaccedilatildeo da problemaacutetica das accedilotildees agrave luz da eacutetica
das virtudes Tem como foco o questionamento da moral moderna e o renascimento
da eacutetica aristoteacutelica A intenccedilatildeo era constituir a Eacutetica das Virtudes como uma terceira
via entre a Filosofia Deontoloacutegica kantiana e o utilitarismo eacutetico tatildeo fortemente
instituiacutedo no Ocidente Qual eacute a necessidade de uma terceira via para a filosofia
moral Quais satildeo as insuficiecircncias das eacuteticas deontoloacutegicas e utilitaristas que
justificam esta empreitada Estas satildeo questotildees que orientam a construccedilatildeo teoacuterica
deste capiacutetulo
Serviratildeo de apoio epistemoloacutegico aleacutem do MacIntyre a obra Sobre a Eacutetica das
Virtudes (cf HURSTHOUSE 2001)1 de Rosalind Hursthouse e o texto A filosofia
moral moderna de Gertrude Anscombe pensadora que com grande relevacircncia
influenciou o itineraacuterio filosoacutefico Alasdair MacIntyre
21 SOBRE A RE-COLOCACcedilAtildeO DA VIRTUE ETHICS
Segundo Rosalind Hursthouse (cf HURSTHOUSE 2001) Virtue Ethics eacute um
termo teacutecnico que inicialmente diferenciava uma eacutetica normativa com o foco nas
virtudes e no caraacuteter das abordagens eacuteticas que enfatizavam os direitos ou regras
denominadas deontologias e das que destacavam as consequecircncias das accedilotildees
1 Rosalin Hursthouse eacute professora de Filosofia da Universidade de Auckland na Nova Zelacircndia No
Doutorado foi orientanda de Elizabeth Anscombe e Philippa Ruth Foot
17
denominadas de consequencialismo ou utilitarismo (cf HURSTHOUSE 2001 p1)
Para ilustrar a definiccedilatildeo a autora propotildee o seguinte exemplo
Imagine um caso em que eacute oacutebvio que eu deveria por exemplo ajudar algueacutem em necessidade Um utilitarista iria destacar o fato de que o resultado de minha accedilatildeo contribuiria com o bem estar do necessitado Um deontologista diria que minha accedilatildeo estaacute de acordo com a maacutexima fazer aos outros aquilo que eu gostaria que fosse feito comigo e finalmente um filoacutesofo das virtudes diria que o fato de ajudar a quem precisa seria sinal de benevolecircncia ou caridade (HURSTHOUSE 2001 p1)
A posiccedilatildeo do utilitarista considera que ajudar a um necessitado deve ser visto
em virtude do resultado da accedilatildeo jaacute o deontologista compreende a accedilatildeo pela
perspectiva da universalizaccedilatildeo do ato de ajudar algueacutem finalmente para o filoacutesofo
das virtudes a accedilatildeo eacute boa porque eacute expressatildeo de um agente bom
A Eacutetica das Virtudes eacute uma abordagem ao mesmo tempo antiga e nova para
a Filosofia Praacutetica Antiga porque remonta a Platatildeo e Aristoacuteteles e nova se se
considera sua recolocaccedilatildeo como alternativa ao pensamento moral contemporacircneo
Rosalind Hursthouse enfatiza que apenas dois tipos de abordagem dominaram a eacutetica
normativa nos uacuteltimos 30 anos2 a deontoloacutegica inspirada primordialmente em Kant
e a utilitarista tendo como representantes mais importantes Jeremy Bentham e John
Stuart Mill Ainda segundo a supracitada Filoacutesofa lsquoentre os muitos livros e artigos
publicados sobre a eacutetica normativa discutia-se ampliava-se corrigia-se apenas as
duas abordagens jaacute mencionadas entretanto natildeo figurava entre elas nenhum texto
que fizesse referecircncia a uma terceira possibilidadersquo (cf HURSTHOUSE 2001 p 2)
permanecendo impensada uma terceira possibilidade para a Filosofia Moral de entatildeo
Rosalind Hursthouse ainda acrescenta que em alguns manuais de graduaccedilatildeo
sobre eacutetica normativa vaacuterios artigos criacuteticos da ortodoxia dominante pleitearam um
reconhecimento da eacutetica das virtudes Em alguns paraacutegrafos dizia-se lsquoo que um
filoacutesofo da virtude3 diria nesse casorsquo Para a referida Autora as menccedilotildees agrave moral das
virtudes o mais das vezes tendiam a ser curtas e com desprezo Rigorosamente
falando a Eacutetica das Virtudes natildeo era considerada como uma uma alternativa viaacutevel
uma vez que suas interferecircncias se referiam apenas a aspectos interessantes sobre
os motivos e o caraacuteter do agente moral que podiam ser inseridos como informaccedilotildees
complementares a essas abordagens A Eacutetica das Virtudes era ateacute entatildeo
2 A Autora estaacute escrevendo em 1998 Assim sendo deve-se entender lsquonos uacuteltimos 40 anosrsquo 3 Esta eacute uma traduccedilatildeo proposta para a expressatildeo virtue ethicist
18
considerada como um lsquogarotorsquo mais novo entre os rapazes podia entrar no lsquojogorsquo
mas natildeo era contado efetivamente como um lsquojogadorrsquo Somente em pouco mais de 40
anos a Eacutetica das Virtudes adquiriu o status completo ocupando a qualidade de
terceira das abordagens morais rivalizando com deontologistas e ou utilitaristas
A respeito de um retorno da Eacutetica das Virtudes Rosalind Hursthouse apresenta
as seguintes questotildees por que a Filosofia Moderna4 (ou contemporacircnea) revive a
antiga abordagem da Eacutetica das Virtudes Por que o pensamento contemporacircneo ou
um movimento de pensadores sentiu a necessidade de promover um retorno ao
pensamento antigo especialmente a Aristoacuteteles Sabe-se que existe uma grande
distacircncia temporal entre a contemporaneidade seus escritos e sua organizaccedilatildeo
social Aleacutem disso muitos dos pontos de vista desses autores como por exemplo a
escravidatildeo o lugar da mulher na sociedade satildeo na realidade insustentaacuteveis No
entanto Rosalind Hursthouse enfatiza que nenhum dos filoacutesofos da virtude estaacute
comprometido com os detalhes lsquoparoquiaisrsquo de Aristoacuteteles assim como nenhum dos
deontologistas estaacute comprometido com as opiniotildees de Kant sobre os animais por
exemplo (cf HURSTHOUSE 2001 p 2)5 Para Rosalind Hursthouse a questatildeo
fundamental eacute que ao lado desses motivos haacute muitos outros que se empotildee para o
renascimento ou recolocaccedilatildeo das moral das virtudes a saber a sabedoria praacutetica a
amizade e o relacionamento familiar o aprofundamento do conceito de felicidade o
papel das emoccedilotildees na vida moral dos indiviacuteduos Esses temas afirma a autora
praticamente desapareceram do vocabulaacuterio filosoacutefico do pensamento moral dos
seacuteculos XVIII e XIX Dessa maneira o renascimento da Eacutetica das Virtudes natildeo eacute uma
simples coincidecircncia Ele coincide com a redescoberta desses temas fundamentais
em virtude do proacuteprio apelo que eles impotildeem agrave existecircncia humana Esses temas natildeo
satildeo devidamente considerados pelos pensadores modernos e na opiniatildeo de Rosalind
Hursthouse aos olhos de algueacutem mais atento satildeo reconhecidos como as temaacuteticas
sempre pertinentes agrave Filosofia Moral (cf HURSTHOUSE 2001 p 3)
Atraveacutes da recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes Rosalind Hursthouse salienta
que a redescoberta da Eacutetica das Virtudes proporcionou revisotildees e releituras por parte
demuitos defensores da eacutetica do dever ou entre os utilitaristas Atraveacutes dessas
4 Esta eacute a terminologia utilizada por Rosalind Hursthouse A julgar a distacircncia temporal pequena mas
significante seraacute utilizada a expressatildeo Contemporacircnea 5 Aqui a autora faz referecircncia agrave posiccedilatildeo kantiana de que os animais satildeo coisas e que o maior defensor
da liberaccedilatildeo dos animais Tom Regam seja um deontologista
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revisotildees eacute que foram propostas temaacuteticas como a Doutrina kantiana da virtude Outros
pensadores como McDowell promoveram aproximaccedilotildees entre Aristoacuteteles e Kant
enquanto autores como Herman e Korsgaard trouxeram Kant mais perto de Aristoacuteteles
(cf HURSTHOUSE 2001 p 4)
A reconsideraccedilatildeo de noccedilotildees e de temas da Eacutetica das Virtudes gerou um
problema acerca dos limites entre as abordagens eacuteticas Esses limites se referem ao
fato de que a especificidade de cada abordagem natildeo parece bem determinada
Rosalind Hursthouse afirma que jaacute natildeo eacute mais tatildeo simples afirmar genericamente que
a eacutetica das virtudes eacute uma corrente que enfatiza as virtudes Do mesmo modo a
deontologia e o utilitarismo tambeacutem natildeo podem ser resolvidos apenas pela descriccedilatildeo
que um e outro enfatizam regras ou consequecircncias em contraste com o caraacuteter do
agente
O fim da problematizaccedilatildeo entre as especificidades das abordagens eacuteticas para
Rosalind Hursthouse aponta natildeo para uma separaccedilatildeo ldquobarristardquo entre as abordagens
Eu suspeito que a persistecircncia da crenccedila da eacutetica da virtude natildeo eacute como afirmei acima lsquouma rival para abordagens deontoloacutegicas e utilitaristas mas se apresenta como interessante e desafiadora entre elas
a abordagem ainda eacute nova o suficiente para ser distinta e o objetivo deste livro eacute explorar o que pode ser adquirido como insights para a filosofia moral sendo escrito de uma forma muito detalhada e compreensiva Se os utilitaristas e deontologistas estiverem em desacordo com o que eu digo que eacute claro que eu quero eacute discutir com eles e talvez alguns dos nossos pontos de atrito sejam apenas sobre teses particulares que tipicamente embora natildeo universalmente eles defendem e rejeitam na eacutetica das virtudes ou vice-versa Eu natildeo deveria estar inclinada para argumentar em tudo Eu deveria estar feliz por todos noacutes pois isto significa parar de se preocupar sobre como distinguimos noacutes mesmos e acolher os nossos acordos (HURSTHOUSE 2001p 7)
A partir da afirmaccedilatildeo de Rosalind Hursthouse sente-se a necessidade de se
promover muito mais do que uma concorrecircncia entre as aborgadens eacuteticas um
reavivamento da moral das virtudes cuja expressividade ficou de certo modo
lsquomarginalizadarsquo na Tradiccedilatildeo Filosoacutefica dos seacuteculos XVIII e XIX A abertura para esta
abordagem conduz pois agrave compreensatildeo de que uma moral do dever ou uma eacutetica
centrada nos resultados natildeo foram suficientes para responder agraves demandas do agir
humano como tambeacutem sinaliza o reavivamento de uma eacutetica que valoriza accedilatildeo
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apenas na medida em que ela for um desdobramento das condiccedilotildees e do
aprimoramento do agente moral atraveacutes das virtudes
A Eacutetica das Virtudes teve seu retorno a partir de algumas obras inspiradoras
particularmente o ensaio de Gertrude Anscombe Modern Moral Philosophy de 1958
Segundo Kevin Flannery o artigo Modern Moral Philosophy ao lado da obra Intention
consagrou Gertrude Anscombe como filoacutesofa Gertrude Anscombe foi interlocutora e
amiga particular de Wittgenstein Apoacutes a morte dele Gertrude Anscombe realizou uma
das melhores traduccedilotildees das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas para os leitores de liacutengua
inglesaque praticamente nunca foram contestadas em virtude de seu rigor e
fidelidade agrave obra do autor (cf FLANNERY 2009)
211 Sobre a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica
No texto A Filosofia Moral Moderna Gertrude Anscombe sugere algumas teses
A primeira eacute a de que ldquonatildeo eacute proveitoso fazer filosofia moral no tempo presente ateacute
que se tenha uma filosofia adequada da psicologiardquo (ANSCOMBE 2010 p 19) isto eacute
uma Psicologia Filosoacutefica Mas por que no tempo presente natildeo eacute proveitoso fazer
uma filosofia moral sem antes encontrar uma Psicologia Filosoacutefica E porque esta
Psicologia Filosoacutefica abre os horizontes para se fazer uma filosofia moral
contemporaneamente Essas satildeo as questotildees que orientam a construccedilatildeo desta
seccedilatildeo
Desde a Criacutetica da Razatildeo Pura a tarefa de construir uma Psicologia Filosoacutefica
tornou-se por demais complicada As conclusotildees de Kant expressas na Dialeacutetica
Transcendental mostraram a lsquofalecircnciarsquo que esta ciecircncia da Metafiacutesica Claacutessica
encontrou em seu intento de assegurar a imortalidade da alma
Ora na verdade natildeo haacute ningueacutem que possa extrair de princiacutepios especulativos a miacutenima base para semelhante afirmaccedilatildeo nem mesmo demonstrar-lhe a possibilidade soacute eacute possiacutevel supocirc-la mas tatildeo-pouco pode algueacutem opor-lhe qualquer objeccedilatildeo dogmaacutetica vaacutelida Pois ningueacutem sabe mais do que eu ou de que outro qualquer sobre a causa absoluta e intriacutenseca dos fenocircmenos exteriores e corporais Tambeacutem ningueacutem pode pretender saber com fundamento sobre que repousa no estado atual (na vida) a realidade dos fenocircmenos externos e por consequecircncia tambeacutem natildeo pode afirmar que a condiccedilatildeo de toda a intuiccedilatildeo externa ou tambeacutem o proacuteprio sujeito pensante deva cessar depois deste estado (na morte) (KANT 2001)
21
As conclusotildees de Kant na Criacutetica da Razatildeo Pura inviabilizaram a Psicologia
Racional na tarefa de demonstrar a imortalidade da alma Contudo a finalidade com
que Gertrude Anscombe sugere uma Psicologia Filosoacutefica tem agora um objetivo
distinto da antiga Psichologya Rationalis A Psicologia Filosoacutefica conforme Gertrude
Anscombe sugere serviraacute para apresentar o modo como os atos humanos satildeo
capazes de se relacionar com as virtudes Com efeito se as virtudes satildeo tipos de atos
realizados em favor do bem do homem um estudo sobre estes atos humanos
proporciona uma maior compreensatildeo sobre as virtudes e suas possibilidades no agir
do ser humano
A afirmaccedilatildeo de Gertrude Anscombe que sugere o abandono da moral pode ateacute
soar de maneira estranha vindo de uma moralista Entretanto o sentido desta
afirmaccedilatildeo eacute resgatado quando se entende o que a autora compreende como
aplicaccedilatildeo de uma psicologia filosoacutefica agrave moral Segundo Kevin Flannety esta recusa
se refere pelo menos inderetamente agrave maneira como uma psicologia proscede ao
estudar os fenocircmenos ou dados que existem necessariamente e exclusivamente na
mente isto eacute na interioridade do indiviacuteduo (cf FLANNERY 2009 p 44) Eacute em virtude
desta interioridade que Gertrude Anscombe compreende que a prioridade de uma
psicologia filosoacutefica para a filosofia moral se justifica porque as accedilotildees humanas se
fundamentam em processos internos da psiqueacute especialmente na chamada
intencionalidade Deste modo uma psicologia filosoacutefica como saber preliminar agrave
filosofia moral natildeo pode entre outras coisas prescindir do estudo da intencionalidade
Gertrude Anscombe entende a dificuldade de propor uma Psicologia Filosoacutefica
sem no entanto recorrer a experiecircncias e relatos de casos assim como acontece
com a psicologia empiacuterica Entretanto a autora natildeo parece se contentar com o que a
psicologia empiacuterica fez ao fenocircmemo da intencionalidade Com efeito esta ciecircncia
passou a considerar a intencionalidade um sentimento que os indiviacuteduos
supostamente tecircm quando fazem algo intencional A intencionalidade passou a ser
tematizada como um outro sentimento ou estado psicoloacutegico assim como a empatia
ou animosidade sentidas pelos outros (cf FLANNERY 2009 p 44)
O resultado deste modus operandi da psicologia empiacuterica enfatiza Kevin
Flannery eacute ignorar a funccedilatildeo das intenccedilotildees nos atos humanos e reduzir a psicologia
ao estudo dos pensamentos acrescidos dos sentimentos na forma de estados
psicoloacutegicos (cf FLANNERY 2009 p 45) A intencionalidade e a moralidade assim
22
pensadas podem ser consideradas apenas como um niacutevel de sentimentalismo
acrescentado agraves accedilotildees Kevin Flannery aponta consequecircncias desse modo de
entender a moral
O resultado da aplicaccedilatildeo de uma tal abordagem da moralidade eacute que a moralidade se torna uma espeacutecie de camada de sentimentalismo acrescentada agrave accedilatildeo humana de tal forma que uma accedilatildeo em si pode ser absolutamente vergonhosa mas pode ser declarada moralmente correta de acordo com o argumento de que no final natildeo tem nada a ver com o que a pessoa realmente faz Pense por exemplo no discurso do padre que apresenta o raciociacutenio da Igreja em relaccedilatildeo agrave contracepccedilatildeo ou a fertilizaccedilatildeo in vitro como vaacutelido e sadio e ao mesmo tempo diz para os seus paroquianos que em relaccedilatildeo agraves suas obrigaccedilotildees morais eles devem seguir suas consciecircncias
(FLANNERY 2009 p 45)
Conforme a afirmaccedilatildeo de Kevin Flannery pensar a intencionalidade apenas
como um estado psicoloacutegico engendra uma incoerecircncia tiacutepica e recorrente na
contemporaneidade a ideia de que a maneira como se age eacute independente da
maneira como se pensa Tomando o exemplo acima tem-se a ideia de que os
ensinamentos da Igreja de certo modo satildeo apenas da ordem do conhecimento isto
eacute natildeo existe contradiccedilatildeo entre o saber de uma moral e a modo como algueacutem vive sua
vida particularmente A criacutetica se refere precisamente ao fato de se transformar a
intenccedilatildeo num simples sentimento A confusatildeo entre sentimento e intencionalidade eacute
o cenaacuterio atraveacutes do qual Gertrude Anscombe afirma a necessidade de uma
Psicologia Filosoacutefica Eacute importante salientar que a atitude naturalista da psicologia
empiacuterica diante do fenocircmeno da intenccedilatildeo eacute tambeacutem criticada por autores como
Edmund Husserl e Heidegger6
A relaccedilatildeo entre Psicologia Filosoacutefica e moralidade jaacute havia sido expressa na
Tradiccedilatildeo Filosoacutefica e Gertrude Anscombe natildeo acha viaacutevel ignoraacute-la Kevin Flannery
salienta que a noccedilatildeo de que a Tradiccedilatildeo podia ser ignorada no sentido de iniciar do
lsquozerorsquo foi um dos elementos que causou a crise da Teoria Moderna da Moralidade (cf
FLANNERY 2009 p 47) Em seu retorno agrave moral aristoteacutelica Gertrude Anscombe
entende a necessidade de se refletir acerca dos atos tarefa realizada especialmente
por uma Psicologia Filosoacutefica
6 Para um maior esclarecimento sobre a criacutetica de Heidegger ao conceito de intencionalidade como
fenocircmeno psiacutequico feita nos Prolegocircmenos agrave Histoacuteria do Conceito de Tempo cf HEIDEGGER Tertio Ed sect4 p13-18GA 20 1994 e HUSSERL 1989 p 42 Aqui Husserl fala a simplificaccedilatildeo do fenocircmeno do conhecimento como factum psicoloacutegico Esta eacute uma caracteriacutestica da atitude naturalista que extensivamente acontece com o exemplo do fenocircmeno da intenccedilatildeo
23
Qual eacute pois o sentido de se trabalhar agraves intenccedilotildees na abordagem sobre a
moralidade No livro III da Eacutetica a Nicocircmacos Aristoacuteteles afirma
Como a virtude diz respeito a emoccedilotildees e accedilotildees e como os atos voluntaacuterios satildeo censurados e louvados ao passo que os involuntaacuterios satildeo objeto de perdatildeo e por vezes tambeacutem de piedade eacute presumivelmente necessaacuterio aos estudiosos da virtude definir o voluntaacuterio e o involuntaacuterio bem como eacute uacutetil aos legisladores tanto para a distribuiccedilatildeo das honrarias quanto para a aplicaccedilatildeo de puniccedilotildees (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea III 1109 b30 2010 p 59)
Aparentemente a referecircncia a Aristoacuteteles natildeo esclaresceu a pergunta
Entretetanto eacute a respeito dos atos voluntaacuterios e involuntaacuterios que a intenccedilatildeo diz
respeito Ela natildeo eacute compreendida apenas como um acaso em relaccedilatildeo agraves accedilotildees mas
como elemento que estaacute presente em todos os atos Aristoacuteteles natildeo desenvolve
explicitamente um estudo sobre as intenccedilotildees mas elas estatildeo latentes quando ele
fundamenta a teoria dos atos no livro III da EN Compreender o que faz de um ato
voluntaacuterio ou natildeo eacute ir buscar uma melhor compreensatildeo das intenccedilotildees e esta por sua
vez apresenta-se como fundamental agrave compreensatildeo dos atos voluntaacuterios e
involuntaacuterios
Aqui se esboccedila um problema a dificuldade de se tratar acerca das decisotildees
morais e das intenccedilotildees pois ldquoquando pensamos ter finalmente compreendido um
objeto de estudo podemos transformaacute-lo um pouco e vecirc-lo de forma bastante
diferenterdquo (FLANNERY 2009 p 47) Kevin Flannery acrescenta que a dificuldade no
tratamento da questatildeo conduz agrave tendecircncia de desistir do empreendimento e optar por
um criteacuterio mais lsquogerenciaacutevel da moralrsquo tornando a compreensatildeo sobre a moralidade
mais acessiacutevel Sua criacutetica chama a atenccedilatildeo para o fato de que o mais lsquogerenciaacutevelrsquo
se torna entretanto ineficaz ao rompimento da compreensatildeo da moral como um
estado psicoloacutegico
Ateacute entatildeo foram apresentados os limites da filosofia moral quando natildeo se
considera uma Psicologia Filosoacutefica Este eacute um aspecto negativo da resoluccedilatildeo da
questatildeo fundamental desta seccedilatildeo que eacute compreender a partir da afirmaccedilatildeo de
Gertrude Anscombe o porquecirc de natildeo ser proveitoso fazer filosofia moral no presente
e porque eacute necessaacuteria uma Psicologia Filosoacutefica
O aspecto positivo da necessidade de uma Psicologia Filosoacutefica retirado do
pensamento de Gertrude Anscombe eacute tambeacutem a caracteriacutestica que diferencia a
Autora entre os moralistas da virtude Para Gertrude Anscombe assim como as
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virtudes e os atos particulares do agente moral estatildeo associados associados tambeacutem
estatildeo os atos agrave psicologia da pessoa Para ela a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes
natildeo se inicia pelas virtudes mesmas mas por uma Psicologia Filosoacutefica que tem por
funccedilatildeo explicar a relaccedilatildeo entre a psicologia da pessoa os atos e as virtudes
Para Anscombe o ponto de partida natildeo eacute as virtudes mas a filosofia da psicologia que eacute nosso uacutenico caminho para uma boa compreensatildeo das virtudes Se haacute uma ligaccedilatildeo estreita entre os atos particulares e as virtudes deve haver estreita conexatildeo entre os atos e a psicologia de uma pessoa seu comportamento e reaccedilotildees caracteriacutesticas (FLANNERY 2009 p 52)
A afirmaccedilatildeo acima aponta para uma dependecircncia do estudo das virtudes em
relaccedilatildeo a um estudo sobre os atos e humanos Este estudo sobre os atos humanos
se constitui como outra tarefa da Psicologia Filosoacutefica De acordo com o que foi
apresentado a Psicologia Empiacuterica mostrou-se insuficiente no tratamento dos atos
humanos especialmente no que se refere ao fenocircmeno da intencionalidade O
aprofundamento dos atos humanos atraveacutes de uma psicologia filosoacutefica pode
oferecer maior consistecircncia agrave Moral das Virtudes O fato eacute que as virtudes e tambeacutem
os viacutecios satildeo consolidados pelos atos concretos
Na relaccedilatildeo entre atos e virtudes o mais importante natildeo eacute necessariamente
desvendar as complexas relaccedilotildees que existem entre a psicologia de uma pessoa o
modo como os acontecimentos particulares sua vida vatildeo influenciar o
desenvolvimento futuro de sua histoacuteria O que estes argumentos natildeo podem
obscurecer nem invalidar a existecircncia de uma relaccedilatildeo estreita entre atos e virtudes
Neste sentido expotildee Kevin Flannery
Natildeo eacute ilegiacutetimo perguntar por exemplo como o envolvimento na morte de inocentes mesmo em parte por pessoas perfeitamente boas tem uma influecircncia sobre a vida familiar ou em qualquer outro aspecto do comportamento relacional Natildeo eacute ilegiacutetimo por exemplo questionar como um ato sexual com um menor em seu passado pode ter uma influecircncia sobre a vida pastoral de um possiacutevel padre no futuro Mas para entender como se relacionam virtudes viacutecios e atos particulares noacutes devemos tambeacutem compreender que atos satildeo genuinamente intencionais e em que medida o satildeo (FLANNERY 2009 p 53)
Embora o estudo sobre a intencionalidade e seu lugar numa Psicologia
Filosoacutefica natildeo seja o foco desta pesquisa sua menccedilatildeo eacute pertinente a este trabalho O
direcionamento se refere agrave compreensatildeo e exposiccedilatildeo do modo como no pensamento
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contemporacircneo a moralidade moderna e seus desdobramentos foram questionados
proporcionando a recolocaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes
212 A incoerecircncia do dever moral
Tendo apresentado a relaccedilatildeo de precedecircncia de uma teoria dos atos como um
propedecircutica ao estudo das virtudes Filosofia Moral Moderna apresenta um
questionamento acerca da noccedilatildeo de dever moral Para a Gertrude Anscombe a moral
moderna toma por base a noccedilatildeo de lsquodever moralrsquo Esta noccedilatildeo proveacutem de uma filosofia
praacutetica de caraacuteter legalista como eacute o caso da moral cristatilde A ideia baacutesica eacute que as
tentativas modernas de constituiccedilatildeo de uma filosofia praacutetica natildeo tiveram ecircxito porque
pensaram ser possiacutevel desenvolver uma eacutetica como lei moral tomando por
fundamento primordial o sujeito moral
Embora o termo moral seja herdado do pensamento aristoteacutelico Gertrude
Anscombe enfatiza que o que se entende por moral contemporaneamente possui um
conteuacutedo semacircntico distinto do que o termo possui nos contextos do pensamento de
Aristoacuteteles Ademais a moral parece estar relacionada agravequilo que eacute lsquoreprovaacutevelrsquo de
modo que falhas natildeo apenas da praacutexis mereccedilam receber igualmente o termo
reprovaacutevel (cf ANSCOMBE 2010 p 30) O que eacute explicitado pela autora eacute que
expressotildees do tipo lsquotem dersquo ou lsquodeversquo satildeo utilizadas em contextos natildeo apenas morais
como compreendia Aristoacuteteles mas em contextos que ele denominaria de
lsquointelectuaisrsquo
A Autora encontra na cristandade a razatildeo da modificaccedilatildeo semacircntica do termo
moral ldquoA resposta pertence agrave Histoacuteria entre Aristoacuteteles e noacutes encontra-se a
Cristandade com sua concepccedilatildeo legalista de eacutetica visto que a Cristandade deriva
suas noccedilotildees morais da Toraacuterdquo (ANSCOMBE 2010 p 24) Para ela a Cristandade opera
uma releitura na eacutetica aristoteacutelica
Os termos comuns (e indispensaacuteveis) [grifo da autora] ldquotem derdquo ldquoprecisa derdquo ldquodeverdquo ldquotem a obrigaccedilatildeo derdquo adquiriram esse sentido especial ao serem equacionados nos contextos relevantes com ldquoestaacute obrigadordquo ldquoassumiu o encargo derdquo e eacute ldquoexigido derdquo no sentido que se
26
pode estar obrigado ou se pode assumir um encargo por lei ou de que algo pode ser exigido por lei (ANSCOMBE 2001 p 383)7
O predomiacutenio da Cristandade trouxe para a linguagem moral do Ocidente uma
grande modificaccedilatildeo no sentido daquilo que Aristoacuteteles entendia por moral e mesmo
que a Cristandade e sua compreensatildeo de mundo tenham sido abandonadas as
noccedilotildees de dever e obrigaccedilatildeo permaneceram sendo empregadas a partir das
influecircncias recebidas
Numa segunda justificativa aleacutem da tese da origem religiosa do conceito de
dever moral Gertrude Anscombe propotildee uma distinccedilatildeo entre accedilotildees maacutes por si
mesmas e accedilotildees maacutes sob determinadas circunstacircncias A condenaccedilatildeo de um
inocente conhecendo-se sua inocecircncia eacute um exemplo de accedilatildeo maacute em si mesma
enquanto que a violaccedilatildeo do direito de propriedade figura entre as accedilotildees maacutes sob
determinadas circunstacircncias No caso da condenaccedilatildeo de um inocente a accedilatildeo eacute maacute
diretamente em virtude da consciecircncia que se tem da inocecircncia e da violaccedilatildeo
deliberada do direito do inocente jaacute no caso do direito de propriedade a accedilatildeo natildeo
pode ser maacute em si mesma por causa das circunstacircncias Ora algueacutem pode invadir a
propriedade de outrem por que eventualmente estaacute a fugir da morte iminente
Esta distinccedilatildeo eacute relevante pois apresenta o modo como um pensamento moral
pode se constituir como uma teoria centrada nas accedilotildees de um agente ou como uma
teoria que prioriza as accedilotildees de um agente centrado Esta uacuteltima eacute por assim dizer
um tipo de filosofia praacutetica que visa o bem natildeo apenas das accedilotildees mas tambeacutem do
agente eacutetico A acusaccedilatildeo de Gertrude Anscombe em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de dever e
obrigaccedilatildeo se refere ao fato de que nestes casos haacute uma estrutura normativa que
privilegia a accedilatildeo em detrimento do agente No caso da Eacutetica das Virtudes haacute uma
tentativa de priorizar natildeo a accedilatildeo em seus efeitos externos ao agente mas o que ela
provoca em seu caraacuteter A noccedilatildeo de caraacuteter necessita de um aprofundamento
No contexto de uma Moral das Virtudes as accedilotildees satildeo convenientes na medida
em que contribuem com o fim do homem O caraacuteter significa aqui a capacidade de
agir virtuosamente com fundamento na condiccedilatildeo do agente que em por causa do
haacutebito adquiriu a capacidade de agir harmonizando o querer o poder e dever O mais
importante aqui natildeo reside numa accedilatildeo modelo na qual o agente deva se conformar
7ldquoThe ordinary (and quite indispensable) terms ldquoshouldrdquo ldquoneedsrdquo ldquooughtrdquo ldquomustrdquo acquired this special
sense by being equated in the relevant contexts with ldquois obligedrdquo or ldquois boundrdquo or ldquois required tordquo in the sense in which one can be obligaded or bound by law or something can be required by lawrdquo
27
independente de seus processos internos sejam os desejos seja a razatildeo Neste
sentido pode-se afirmar a Eacutetica das Virtudes como uma eacutetica que manteacutem a
centralidade no agente
As eacuteticas deontoloacutegicas e utilitaristas centralizam sua atenccedilatildeo na idoneidade
das accedilotildees Este posicionamento faz com que a virtude seja dependente das accedilotildees
Opostamente a Eacutetica das Virtudes propotildee que as accedilotildees devem ser pensadas agrave luz
do caraacuteter de quem as pratica Na obra O bem viver em comunidade a vida boa
segundo Platatildeo e Aristoacuteteles (cf RICKEN 2008 p 181-182) o professor Friedo Ricken
relaciona trecircs teses sobre o agir a tese epistemoloacutegica a tese ontoloacutegica ou axioloacutegica
e a tese do chamado reducionismo conceitual
A tese epistemoloacutegica defende que as accedilotildees corretas satildeo fundamentadas por
conceitos de virtude uma accedilatildeo eacute considerada correta quando traduz aquilo que uma
pessoa virtuosa faria sob determinadas circunstacircncias Neste sentido as accedilotildees satildeo
julgadas em relaccedilatildeo agraves virtudes A tese ontoloacutegica ou axioloacutegica propotildee que o valor
moral da accedilatildeo se fundamenta no valor moral do caraacuteter ou seja as boas accedilotildees
decorrem do caraacuteter bom de uma pessoa entretanto natildeo vale a formulaccedilatildeo inversa
o caraacuteter como decorrente das accedilotildees Finalmente o reducionismo conceitual defende
que os assim chamados deveres podem ser retirados de predicados de virtude
Segundo Friedo Ricken a tese de Gertrude Anscombe parece alinhada ao
reducionismo conceitual pois para ela a eacutetica da virtude eacute contraposta com a eacutetica
do dever ou da lei como alternativa excludente os predicados ldquomoralmente corretordquo e
ldquomoralmente erradordquo conforme a exigecircncia poderiam ser substituiacutedos por predicados
de virtude ou seja pelo predicado lsquojustorsquo (cf RICKEN 2008 p 183)
Ainda segundo Gertrude Anscombe contemporaneamente o Ocidente
internalizou uma noccedilatildeo de dever que era tanto estranha agrave moral aristoteacutelica quanto agrave
moral hebraico-cristatilde Mais grave ainda eacute a defesa da noccedilatildeo de dever tentando
prescindir da cultura que a forjou Gertrude Anscombe esclarece que a eacutetica hebraico-
cristatilde tem como caracteriacutestica fundamental ldquoensinar que haacute coisas proibidas quaisquer
que sejam as consequecircncias no horizonterdquo (ANSCOMBE 2010 p 30) A autora expotildee
em seguida que a proibiccedilatildeo de certas accedilotildees simplesmente em virtude de sua
descriccedilatildeo como tais e tais tipos identificaacuteveis de accedilatildeo natildeo importando quais as
consequecircncias ulteriores vem a se constituir como a mais notaacutevel caracteriacutestica da
eacutetica hebraico-cristatilde
28
A eacutetica legalista do Ocidente entatildeo mencionada foi forjada no seio da cultura
hebraico-cristatilde e eacute dela que provecircm as noccedilotildees de dever de obrigaccedilatildeo Estas noccedilotildees
se relacionam com a figura do legislador divino pois as leis satildeo por ele formuladas
A criacutetica de Gertrude Anscombe se dirige agraves deontologias modernas e ao utilitarismo
justamente porque eles defendem a noccedilatildeo de dever e obrigaccedilatildeo querendo no
entanto lsquoescaparrsquo agrave figura de um legislador divino Para a autora a noccedilatildeo de lei possui
um sentido muito forte de interdito Este interdito que possui forccedila de lei e dever natildeo
seria adequadamente se fosse realizado ou imputado apelando apenas para forccedilas
do indiviacuteduo
Gertrude Anscombe considera que a sobrevivecircncia da noccedilatildeo de dever moral
se deu muito mais pela forccedila psicoloacutegica da expressatildeo do que pelo seu conteuacutedo (cf
ANSCOMBE 2010 p 28) Para a autora teria sido de grande valia se em vez de
lsquomoralmente erradorsquo fossem sempre invocados termos como lsquoinveriacutedicorsquo lsquoimpudicorsquo
lsquoinjustorsquo Deste modo natildeo se discutiria mais acerca da accedilatildeo se ela foi ou natildeo errada
mas se discutiria se foi justa ou injusta A questatildeo central aqui estaacute no fato de que
apresentar as accedilotildees em termos de moralmente certa ou errada natildeo traria implicaccedilotildees
sobre a bondade ou natildeo do agente pois certas ou erradas satildeo as accedilotildees Por outro
lado questionar como justas ou injustas qualifica de certo modo o agente como bom
ou natildeo Isto significa que a centralidade do julgamento natildeo iria residir nas accedilotildees mas
no agente
As palavras de Kant apresentando a modernidade como o tempo em que o
sujeito caminha com seus proacuteprios peacutes proporcionou a ideia de que a eacutetica moderna
se sustentaria com uma autolegislaccedilatildeo do sujeito de modo a ocupar o papel que
antes desenvolvido pelo Deus da Eacutetica Cristatilde
Duas coisas enchem o acircnimo de admiraccedilatildeo e veneraccedilatildeo sempre nova e crescente quanto mais frequente e persistentemente agrave reflexatildeo ocupa-se com elas o ceacuteu estrelado acima de mim e a lei moral em mim (KANT 2008 p 255)
Gertrude Anscombe critica a ideia de que o sujeito seja legislador de si proacuteprio
ldquorejeito como absurdo que se possa legislar lsquopara si mesmorsquo O que quer que vocecirc
faccedila lsquopara si mesmorsquo pode ser admiraacutevel mas natildeo legislaccedilatildeordquo (ANSCOMBE 2010 p
34) Para autora a questatildeo fundamental eacute se questionar acerca da real capacidade
de um sujeito empiacuterico acessar uma maacutexima universal e conformar sua accedilatildeo particular
a ela prescindindo de suas inclinaccedilotildees
29
Uma deduccedilatildeo necessaacuteria do pensamento de Gertrude Anscombe eacute que no
horizonte de uma eacutetica assegurada pela lei divina o lsquoiliacutecitorsquo ou lsquoo que eacute obrigatoacuterio natildeo
fazerrsquo termos que satildeo ancestrais do conceito lsquomoralmente erradorsquo ganham um
sentido pois satildeo o que a lei divina obriga Assim sendo a noccedilatildeo de lsquodeverrsquo ou
lsquomoralmente erradorsquo soacute satildeo adequadamente contextualizados se relacionados com a
Lei Divina
Aparentemente a autora estaacute defendendo uma lsquoparceriarsquo entre a moral
moderna e a eacutetica hebraico-cristatilde Se se retornar ao iniacutecio de seu texto ver-se-aacute que
a questatildeo central natildeo eacute a proposiccedilatildeo de uma lsquoparceriarsquo mas a indicaccedilatildeo de que os
conceitos de obrigaccedilatildeo e dever tatildeo fundamentais agrave moral moderna pelo fato de
serem remanescentes da eacutetica hebraico-cristatilde que jaacute natildeo existe mas dos ganhos
trariam danos agrave filosofia moral moderna (cf ANSCOMBE 2010 p 19)
213 Criacutetica ao utilitarismo
A criacutetica de Gertrude Anscombe ao utilitarismo aparece em sua apresentaccedilatildeo
do pensamento de Sidgwick O ponto de partida da filoacutesofa eacute a noccedilatildeo de intenccedilatildeo
utilizada por este autor Para Gertrude Anscombe o conceito intenccedilatildeo se refere agrave
possibilidade de prever as consequecircncias de uma accedilatildeo voluntaacuteria (cf ANSCOMBE
2010 p 31) A partir deste noccedilatildeo de intenccedilatildeo esboccedila-se a tese utilitarista do autor ldquoa
tese que natildeo ter sentido desejo algum por algo antevisto quer seja um fim ou um meio
para um fim eacute indiferente no que diz respeito agrave responsabilidade por esse algordquo
(ANSCOMBE 2010 p 31) A siacutentese da tese utilitarista ou consequencialista eacute a
compreensatildeo de que um indiviacuteduo pode ser responsabilizado pelo resultado de uma
accedilatildeo mesmo que esta determinada consequecircncia natildeo tenha sido desejada ou
intencionada previamente A autora ainda propotildee outra formulaccedilatildeo para tese de
Sidgwick ldquonatildeo ter a intenccedilatildeo de uma accedilatildeo eacute indiferente no que diz respeito agrave
responsabilidade por esse algordquo (ANSCOMBE 2010 p 31)8 Para melhor esclarecer a
autora propotildee um exemplo
Suponhamos que um homem seja responsaacutevel pelo sustento de uma crianccedila Por conseguinte deliberadamente deixar de lhe dar o sustento seria algo ruim a fazer de sua parte Seria ruim deixar de lhe dar o sustento porque ao deixar de fazecirc-lo estaria digamos
8 Cf tambeacutem ANSCOMBE 2001 p 387 ldquoit does not make any difference to a manrsquos responsibility for
something that he foresaw that he felt no desire for it either as an end or as a means to an endrdquo
30
compelindo outro a fazer algo (Pode-se conceder neste argumento que compelir esse outro a fazer algo digno de admiraccedilatildeo) [grifo da autora] Agora poreacutem ele tem de escolher entre fazer algo ignoacutebil e ir preso se for preso segue-se que deixaraacute de dar o sustento agrave crianccedila (ANSCOMBE 2010 p 387)9
A interpretaccedilatildeo que Gertrude Anscombe faz da tese de Sidgwick eacute a seguinte
do ponto de vista da responsabilidade natildeo existe diferenccedila entre deixar de dar o
sustento por deliberaccedilatildeo e deixar de daacute-lo como consequecircncia da prisatildeo mesmo que
este resultado natildeo tenha sido computado como consequecircncia possiacutevel antes de vir a
cometer o ato indesejaacutevel Ora se natildeo haacute distinccedilatildeo entre uma accedilatildeo e outra em virtude
de a consequecircncia ser a mesma o agente pode ateacute concluir que deixar-se ir preso
seja menos mau do que deixar de dar o sustento agrave crianccedila por escolha Com efeito
deixar de o sustento passa a ser consequecircncia de ter sido preso minorando assim
a responsabilidade pelo ato
Gertrude Anscombe conclui que este tipo de eacutetica impulsiona o agente a
antever as consequecircncias natildeo haacute uma reflexatildeo sobre a maldade desta ou daquela
accedilatildeo apenas um caacutelculo dos possiacuteveis resultados Acontece que considerando
apenas as consequecircncias possiacuteveis pode ser que consequecircncias inesperadas se
apresentem como resultado Entretanto diante de resultados que natildeo foram
antevistos o agente natildeo pode a rigor ser culpado por um resultado desastroso
desde que argumente que um determinado resultado natildeo foi antevisto
A criacutetica da autora aponta para a ldquocomodidaderdquo do consequencialismo o agente
soacute eacute responsaacutevel na medida em que o resultado de suas accedilotildees for adequadamente
previsto Ao contraacuterio ela defende que ldquouma pessoa eacute responsaacutevel pelas maacutes
consequecircncias de suas maacutes accedilotildees mas natildeo recebe o creacutedito pelas boas
consequecircncias destasrdquo (ANSCOMBE 2010 p 32) Deste modo esta moralidade natildeo
se apresenta como propositiva no sentido de sugerir o que deve ser feito mas se
preocupa primordialmente com o que homem natildeo deveria fazer com que
acontecesse
9ldquoLet us suppose that a man has a responsibility for the maintenance of some child Therefore
deliberately to withdraw support from it is a bad sort of thing for him to do It would be bad for him to withdraw its maintenance because he didnrsquot want to maintain it any longer and also bad for him to withdraw it because by doing so he would let us say compel someone else to do something (we may suppose for the sake of argument that compelling that person to do that thing is in ifself quite admirable) but now he has to choose between doing something disgraceful and going to prison if he goes to prison it will follow that he withdraws support from de childrdquo
31
A partir da ldquocrenccedilardquo na superficialidade da proposta consequencialista a autora
expotildee a ela seu questionamento Um aristoteacutelico por exemplo questiona-se sobre
se fazer tal coisa em tal circunstacircncia eacute ou natildeo injusta e a partir daiacute julga o que deve
ser feito ou natildeo Jaacute um consequencialista natildeo tem base para dizer que determinada
accedilatildeo natildeo seria permitida ldquoo maacuteximo que ele pode dizer eacute que um homem natildeo deve
fazer com que aconteccedila isto ou aquilordquo (ANSCOMBE 2010 p 33) O que permite ao um
consequencialista o que natildeo deveria acontecer Ao refletir sobre qual o resultado natildeo
desejaacutevel como consequecircncia de uma accedilatildeo este pensador tem diante de si um caso
limite o que exige sua atenccedilatildeo aos padrotildees sociais
O consequencialista de modo a estar de fato imaginando um caso-limite tem de assumir algum tipo de lei ou padratildeo segundo o qual esse eacute um caso-limite De onde obteacutem esse padratildeo Na praacutetica a resposta invariavelmente eacute dos padrotildees correntes em sua sociedade ou ciacuterculo (ANSCOMBE 2010 p34)
A fundamentaccedilatildeo dos casos limites partindo dos exemplares sociais permite
uma associaccedilatildeo entre consequencialismo e convencionalismo moral Com efeito se
o ponto de partida da fundamentaccedilatildeo moral satildeo os padrotildees correntes numa
determinada sociedade qual a chance de uma proposiccedilatildeo consequencialista
contradizer algum modelo convencional A autora ainda explica que aleacutem do
convencionalismo eacutetico a moral consequencialista cria a possibilidade de um
determinado agente consentindo maacutes accedilotildees
[] o ponto de considerar situaccedilotildees hipoteacuteticas por vezes bastante improvaacuteveis parece ser o de produzir em vocecirc ou em algueacutem a decisatildeo hipoteacutetica de fazer algo ruim Natildeo duvido que isso tenha o efeito de predispor as pessoas que jamais se veratildeo nas situaccedilotildees para as quais fazem as escolhas hipoteacuteticas a dar consentimento a maacutes accedilotildees similares ou a enaltecer e lisonjear quem as pratique desde que a sua malta10 a faccedila tambeacutem quando as terriacuteveis circunstacircncias imaginadas natildeo se datildeo (ANSCOMBE 2010 p 33)
O fato de natildeo conseguir prever a consequecircncia de uma determinada accedilatildeo
utilizando-se de hipoacuteteses sobre as consequecircncias o que natildeo eacute difiacutecil de acontecer
dadas as inuacutemeras possibilidades de resultados de seu agir incita o agente a dar
assentimento a uma maacute accedilatildeo uma vez que a anaacutelise se refere ao que natildeo deve ser
feito
10Melhor traduzir por expectadores pois o texto original diz crowd
32
A conclusatildeo das criacuteticas de Gertrude Anscombe sobre o consequencialismo eacute
de certo modo controversa pois talvez natildeo seja uma consequecircncia necessaacuteria que o
fato de analisar uma accedilatildeo que natildeo deve ser realizada predisponha o agente a fazecirc-
la Entretanto dizer que esta anaacutelise em nada influencia o agente eacute igualmente
controverso
214 A diacutevida filosoacutefica de MacIntyre ao pensamento de Gertrude Anscombe
A repercussatildeo do pensamento de Gertrude Anscombe no itineraacuterio filosoacutefico de
MacIntyre eacute bem relevante O desenvolvimento da criacutetica deste uacuteltimo ao projeto
moderno de fundamentaccedilatildeo da moralidade segue uma linha de pensamento que
encontra ressonacircncias com os argumentos de Filosofia Moral Moderna Contudo a
vinculaccedilatildeo de MacIntyre com o pensamento marxista e com as ciecircncias sociais
proporcionaram aprofundamento e amadurecimento ao seu pensamento conforme
afirma Jorge Garcia
A criacutetica de MacIntyre da filosofia moral moderna mesmo com todas as semelhanccedilas natildeo apenas eacute um simples recapitular de Anscombe Sua criacutetica eacute mais detalhada e profundamente influenciada por seus viacutenculos com o marxismo e sua leitura das ciecircncias sociais (Cf GARCIA 2003 p 95 )11
O ponto de convergecircncia entre a Gertrude Anscombe e MacIntyre reside pois
no questionamento e na rejeiccedilatildeo agrave moral moderna Conforme Ernst Tugendhat
(2007)12 satildeoantiiluministas eacuteticos os autores que assumem este posicionamento
Outra aproximaccedilatildeo entre os dois autores eacute o realce na distinccedilatildeo entre o modus
operandi da eacutetica antiga e moderna e a opccedilatildeo pela moral das virtudes Talbot Brewer
salienta que tanto Gertrude Anscombe quanto MacIntyre enfatizam ldquouma estranheza
fundamental aos lsquoouvidosrsquo modernos dos conceitos baacutesicos atraveacutes dos quais
Aristoacuteteles e outros antigos medievais cercaram sua investigaccedilatildeo sobre a virtude o a
felicidade humanardquo (BREWER 2009 p 2 )13 Em siacutentese eacute possiacutevel afirmar que o
11ldquoMacIntyres critique of modernist moral philosophy for all these similarities does not at all simply
recapitulate Anscombes His criticism is more detailed deeply informed by his ties to Marxism and his reading the social sciencesrdquo
12Sobre o antiiluminismo eacutetico conferir a deacutecima liccedilatildeo intitulada o antiiluminismo eacutetico Hegel e a escola de Ritter cf Aftervirtue Third edition Notre Dame Notre Dame Press 2007 p 197-224
13ldquoThe two texts that are most widely cited as the starting points and the inspiration for the movement are Elizabeth Anscombes Modern Moral Philosophy and Alasdair MacIntyres After Virtue Both Anscombe and MacIntyre emphasize the fundamental strangeness to modern ears of the basic
33
antiiluminismo eacutetico e a opccedilatildeo pelas virtudes satildeo elementos dos quais MacIntyre eacute
herdeiro de Gertrude Anscombe
O fato de ser devedor de um pensamento natildeo implica numa simples repeticcedilatildeo
Jaacute foi mencionado que a anaacutelise de MacIntyre eacute enriquecida por sua proximidade com
o marxismo e com as ciecircncias sociais O elemento antropoloacutegico eacute a segunda
distinccedilatildeo relevante entre os autores Segundo David Carr e Jan Steutel (cf 1999 p
162-163) Gertrude Anscombe acreditava ser possiacutevel tomar como ponto de partida
uma concepccedilatildeo de homem ao modo de Aristoacuteteles na forma de uma psicologia
filosoacutefica que permitisse estabelecer relaccedilatildeo entre atos virtudes e fim do homem Por
seu turno em Depois da Virtude MacIntyre procura evitar o que chama de biologia
metafiacutesica de Aristoacuteteles ldquoAristoacuteteles escreve como se os baacuterbaros e os gregos
tivessem natureza fixa e ao encaraacute-los assim ele nos traz de volta o caraacuteter natildeo
histoacuterico de sua compreensatildeo de natureza humanardquo (MACINTYRE 2001b p 270)
MacIntyre parece natildeo adotar esse modelo antropoloacutegico porque esta seria uma
forma a-histoacuterica e a-cultural de considerar o homem o que natildeo poderia ser
sustentado do ponto de vista das ciecircncias sociais e aleacutem disso destoaria da
perspectiva metodoloacutegica de Depois da Virtude Esse talvez seja o motivo pelo qual
Depois da Virtude careccedila de uma teoria dos atos humanos Este fato abre espaccedilo agrave
criacutetica de que MacIntyre daacute pouca importacircncia agrave relaccedilatildeo entre atos e virtudes O que
seria de certo modo fundamental agrave moral as virtudes Posteriormente o proacuteprio
MacIntyre refaz sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave biologia metafiacutesica de Aristoacuteteles
Em Depois da virtude tentei dar conta do lugar das virtudes entendidas como Aristoacuteteles as entendeu dentro de praacuteticas sociais das vidas de indiviacuteduos e das vidas das comunidades fazendo com que tal abordagem fosse independente do que chamei de ldquobiologia metafiacutesicardquo de Aristoacuteteles Embora haja de fato boas razotildees para repudiar elementos importantes da biologia de Aristoacuteteles creio agora que estava errado ao supor que fosse possiacutevel haver uma eacutetica independente da biologia mdash e estou grato agravequeles criacuteticos que me objetaram quanto a isso [] (MACINTYRE 1999 Preface X )14
concepts through which Aristotle and other Ancient Medieval thinkers framed their inquires into virtues and the human goodrdquo
14ldquoIn After Virtue I had attempted to give an account of the place of the virtues understood as Aristotle understood them within social practices the lives of individuals and the lives of communities while making that account independent of what I called Aristotlersquos ldquometaphysical biologyrdquo Although there is indeed good reason to repudiate important elements in Aristotlersquos biology I now judge that I was in error in sopposing an ethics independent of biology to be possible ndash and I am grateful to those critics who distintct [hellip]rdquo
34
Finalmente fazem-se necessaacuterias algumas consideraccedilotildees ao final deste
capiacutetulo A partir da siacutentese de Rosalind Hursthouse vecirc-se que a recolocaccedilatildeo Eacutetica
das Virtudes se impotildee dadas as questotildees morais que natildeo se encontram contempladas
pelas morais deontoloacutegicas ou utilitaristas a siacutentese de Gertrude Anscombe daacute iniacutecio
ao movimento de retorno agrave Eacutetica das Virtudes e estabelece relevante influecircncia na
ulterior criacutetica de MacIntyre agrave filosofia moral moderna como tambeacutem na assunccedilatildeo da
Moral das Virtudes o movimento denominado Virtue Ethics manteacutem vivo o debate
eacutetico na contemporaneidade e abriu a possibilidade de pensar a Moral das Virtudes
como mais uma via pensamento na filosofia moral de liacutengua inglesa e na filosofia moral
como um todo
A seguir deve-se apresentar como o pensamento de MacIntyre se insere na
tradiccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes Primeiramente em seus questionamentos agrave Filosofia
Moral Moderna e secundariamente como teoacuterico de uma Eacutetica das Virtudes agrave
contemporaneidade
35
3 A CRIacuteTICA DE MACINTYRE AO PROJETO MODERNO DE FUNDAMENTACcedilAtildeO
DA MORALIDADE
A apresentaccedilatildeo das teses modernas sobre a moralidade eacute uma das temaacuteticas
centrais do pensamento de Alasdair MacIntyre Ela se constitui como momento
preparatoacuterio ao desenvolvimento de sua teoria moral Com efeito MacIntyre crecirc que
a exposiccedilatildeo destas teses se faz necessaacuteria porque o fato de existirem na
modernidade diferentes fundamentos agrave moralidade comprovaria em sua opiniatildeo o
chamado desacordo moral Esse desacordo seria pois a heranccedila deixada pelos
modernos agrave contemporaneidade e o ponto de partida da tese central de MacIntyre
Este capiacutetulo tem como tarefa apresentar a interpretaccedilatildeo manintyreana das principais
teses modernas sobre a fundamentaccedilatildeo da moralidade e os principais episoacutedios da
histoacuteria social que representaram o ldquoterrenordquo desde onde estas teses brotaram
A referecircncia baacutesica para a realizaccedilatildeo do objetivo deste capiacutetulo eacute a quarta
seccedilatildeo de Depois da Virtude intitulada A cultura predecessora e o projeto iluminista de
justificar a moralidade Para uma melhor compreensatildeo do fio condutor da
argumentaccedilatildeo do autor faz-se necessaacuteria uma exposiccedilatildeo da alegoria inicial de Depois
da Virtude no cap I Com efeito eacute a partir da alegoria inicial de Depois da Virtude que
MacIntyre daacute prosseguimento agrave primeira tarefa de Depois da Virtude a apresentaccedilatildeo
dos fundamentos do discurso moral contemporacircneo e a fragmentaccedilatildeo desse mesmo
discurso
31 A ALEGORIA INICIAL DE DEPOIS DA VIRTUDE
A alegoria inicial de Depois da Virtude se apresenta com um bastante
apocaliacuteptico A exposiccedilatildeo desta alegoria seguiraacute a apresentaccedilatildeo de MacIntyre O
iniacutecio do texto daacute conta das consequecircncias de uma cataacutestrofe hipoteacutetica nas ciecircncias
naturais A esta cataacutestrofe a opiniatildeo puacuteblica culpa os cientistas e em consequecircncia
inuacutemeros laboratoacuterios satildeo incendiados cientistas satildeo linchados livros e instrumentos
satildeo destruiacutedos Com a tomada de poder por um movimento poliacutetico intitulado ldquoNenhum
saberrdquo o ensino das ciecircncias nas escolas e nas universidades eacute eliminado enquanto
o restante dos cientistas eacute eliminado Posteriormente contra este movimento aparece
uma reaccedilatildeo e pessoas esclarecidas tentam ressuscitar a ciecircncia mesmo tendo se
36
esquecido em grande parte o que ela tinha sido Soacute possuem fragmentos
conhecimento dos experimentos isolados do contexto teoacuterico que lhes dava
significado partes de teorias desvinculadas seja de outros fragmentos de teoria que
possuem seja de experimentos instrumentos cujo uso foi esquecido capiacutetulos de
livros pela metade paacuteginas soltas de artigos nem sempre legiacuteveis porque estatildeo
rasgadas e chamuscadas Como se natildeo bastasse todos esses fragmentos satildeo
reunidos num conjunto de praacuteticas que recebem os nomes restaurados de fiacutesica
quiacutemica e biologia Os adultos discutem entre si os meacuteritos das teorias da relatividade
da evoluccedilatildeo e do flogismo embora seus conhecimentos sobre cada uma delas sejam
apenas rudimentares As crianccedilas decoram partes que restaram da tabela perioacutedica e
recitam alguns teoremas de Euclides como se fossem encantamentos Ningueacutem ou
quase ningueacutem percebe que o que estatildeo fazendo natildeo eacute ciecircncia natural em nenhum
sentido adequado pois tudo o que dizem e fazem obedece a certas leis da
compatibilidade e da coerecircncia e os contextos que seriam necessaacuterios para dar
sentido agravequilo que eles estatildeo fazendo foram perdidos talvez irrecuperaacuteveis (cf
MACINTYRE 2001 p 14)
A descriccedilatildeo de abertura de Depois da Virtude exemplifica diversos momentos
da primeira parte da obra da obra de MacIntyre Seu posicionamento eacute o de que a
filosofia moral moderna e sua tentativa de fundamentaccedilatildeo da moral satildeo anaacutelogas a
historinha entatildeo apresentada Assim como na historinha a reconstruccedilatildeo da ciecircncia
natural se mostrou impossiacutevel de ser remontada dada a fragmentaccedilatildeo a que o
material disponiacutevel estava acometido a filosofia moral moderna e sua tentativa de
fundamentaccedilatildeo natildeo teve condiccedilatildeo de impor-se coerentemente porque alguns de seus
fundamentos satildeo vestiacutegios fragmentados de um esquema moral que embora tribute
agrave modernidade alguns de seus elementos jaacute natildeo existe e os elementos disponiacuteveis
natildeo possuem sentido se separados dos seus contextos de origem
Pretensatildeo ou natildeo este eacute o ponto de partida de Depois da Virtude e a reflexatildeo
que MacIntyre faz sobre o projeto moderno de fundamentaccedilatildeo da moralidade recebe
suas motivaccedilotildees filosoacuteficas a partir desta alegoria Assim como na alegoria o que
sobraram das teorias cientiacuteficas eram fragmentos desconexos assim tambeacutem a
linguagem moral contemporacircnea eacute o resultado fragmentado de vaacuterias tentativas de
fundamentaccedilatildeo do discurso moral Entretanto esta desordem natildeo pode ser percebida
37
por todos assim como na alegoria pois existe de certo modo uma aparecircncia de
linguagem ordenada
O autor vai entatildeo expor a desmistificaccedilatildeo desta aparente linguagem
ordenada atraveacutes da apresentaccedilatildeo dos motivos que conduziram o pensamento moral
moderno ao fracasso intitulado por MacIntyre como o fracasso do projeto iluminista
32 AS TESES MODERNAS SOBRE A FUNDAMENTACcedilAtildeO DA MORALIDADE
O homem moderno se orgulha de ldquocaminhar com os seus proacuteprios peacutesrdquo de
tomar suas proacuteprias decisotildees de escolher os seus caminhos sua religiatildeo seus
governantes Este orgulho se deve ao marco divisoacuterio entre a moral claacutessica e a
moralidade moderna Este marco divisoacuterio foi propriamente a passagem da moral
claacutessica influenciada especialmente na eacutetica teleoloacutegica de Aristoacuteteles para a moral
moderna marcada profundamente pela ideia de autonomia o sujeito dando leis a si
proacuteprio Henrique de Lima Vaz afirmar que a Filosofia Moral Moderna eacute profundamente
marcada ldquopela tentativa kantiana de instauraccedilatildeo de uma Eacutetica da razatildeo pura praacutetica
termo da evoluccedilatildeo anterior e iniacutecio de um novo ciclo na histoacuteria da Eacutetica ocidentalrdquo
(VAZ 1999 p 257)
Sabe-se que a moral moderna embora tendo como aacutepice a moral kantiana natildeo
eacute constituiacuteda apenas pela moral da razatildeo pura praacutetica Em sua exposiccedilatildeo de teses
modernas de fundamentaccedilatildeo da moral MacIntyre expotildee outras manifestaccedilotildees que
propotildeem outros fundamentos para a moral diferentes da razatildeo pura praacutetica
Neste capiacutetulo a partir do pensamento de MacIntyre seratildeo explicitadas as trecircs
grandes tentativas de fundamentaccedilatildeo da moral moderna nomeadamente a moral
kantiana a moral humeana e a moral kiekegaardiana Para MacIntyre a colocaccedilatildeo de
Kierkegaard natildeo significa que o filoacutesofo eacute um pensador moderno em sentido proacuteprio
Para MacIntyre o pensamento de Kierkegaard traduz ldquoa perspectiva distintivamente
moderna em forma amadurecidardquo (MACINTYRE 2007 p 39 )15 isto eacute o pensamento
de Kierkegaard serve como elemento tipoloacutegico de uma das tendecircncias modernas de
fundamentaccedilatildeo da moral
15ldquobeginning from that point at which for the first time the distinctively modern standpoint appears in
something like fully-fledged formrdquo
38
Ainda segundo MacIntyre as teses de fundamentaccedilatildeo da moral aludem agraves trecircs
grandes dimensotildees fundamentais do sujeito a razatildeo os sentimentos ou paixotildees e a
escolha Estas dimensotildees correspondem respectivamente agrave fundamentaccedilatildeo da moral
a partir da razatildeo a partir das paixotildees e a fundamentaccedilatildeo da moralidade fundada na
escolha O autor entende que as diferentes fontes de fundamentaccedilatildeo satildeo a evidecircncia
do desacordo e da fragmentaccedilatildeo que de certo modo conduziram o projeto iluminista
de fundamentaccedilatildeo da moralidade agrave falecircncia Este caminho eacute exatamente o caminho
proposto por MacIntyre em Depois da Virtude e serve como base de sua criacutetica agrave moral
contemporacircnea
David Hume considera que os juiacutezos morais particulares satildeo expressatildeo do
gosto e dos sentimentos isto eacute das paixotildees Em Resumo de Um Tratado da Natureza
Humana o autor afirma
A uacutenica finalidade da loacutegica eacute explicar os princiacutepios e operaccedilotildees de nossa faculdade de raciociacutenio e a natureza de nossas ideias a moral e a criacutetica dizem respeito aos nossos gostos e sentimentos e a poliacutetica considera os homens enquanto unidos na sociedade e dependentes uns dos outros (HUME 1995 p 40 )16
Para Hume os juiacutezos morais satildeo expressatildeo de utilidade para os fins que foram
postos pelas paixotildees isto eacute estes fins estatildeo a serviccedilo dos sentimentos Hume afirma
ldquoa accedilatildeo pode causar um juiacutezo ou pode ser obliquamente causada por um juiacutezo quando
este coincide com uma paixatildeordquo (HUME 2009 p 499) A declaraccedilatildeo de Hume enfatiza
a condiccedilatildeo que uma accedilatildeo possui em relaccedilatildeo agrave paixatildeo pois eacute na coincidecircncia com
uma paixatildeo que uma accedilatildeo eacute causada ou causadora de um juiacutezo As accedilotildees satildeo pois
realizadas em virtude das paixotildees
A natureza do homem segundo Kant natildeo eacute mais que sua capacidade de viver
conforme seus instintos Em seu texto Sobre a Pedagogia uma coletacircnea de liccedilotildees
proferidas na Universidade de Koumlnigsberg e reunidas por um de seus disciacutepulos Kant
afirma que a disciplina uma das partes da educaccedilatildeo converte a animalidade em
humanidade (cf KANT 2002) Ora natildeo eacute difiacutecil compreender o porquecirc de Kant
acreditar que as paixotildees interesses ou inclinaccedilotildees natildeo podem ser fundamento da
accedilatildeo moral Na Fundamentaccedilatildeo da Metafiacutesica dos Costumes ele assinala que uma
accedilatildeo moralmente boa natildeo pode conter nada que possa remeter agraves inclinaccedilotildees Haacute
16ldquoThe sole end of logic is to explain the principies and operation of our reasoning faculty and the nature
of our ideas morals and criticism regard our tastes and sentiments and politics consider men as united in society and dependent on each otherrdquo
39
vaacuterias maneiras de agir em relaccedilatildeo ao dever mas a accedilatildeo puramente moral eacute aquela
praticada apenas por dever sem interesse (cf KANT 1999) Isto significa que a accedilatildeo
puramente moral eacute aquela que se orienta exclusivamente pela razatildeo ou seja a
moralidade natildeo pode se apoiar nem nos desejos nem em algo que se apresente como
uma heteronomia por exemplo a religiatildeo
A descriccedilatildeo da tentativa de fundamentaccedilatildeo por parte de Kierkegaard seguiraacute a
indicaccedilatildeo que MacIntyre realiza em Depois da Virtude (cf MACINTYRE 2001b p 73)
A obra de Kierkegaard que serve de apoio agrave exposiccedilatildeo eacute Ou Ou Segundo MacIntyre
Kierkegaard apresenta dois modos de vida o esteacutetico e o eacutetico O primeiro tem como
paradigma o amante romacircntico que estaacute imerso na proacutepria paixatildeo e simboliza uma
face do eu que eacute capaz de se entregar agrave imediaticidade da experiecircncia presente (cf
MACINTYRE 2001b p 80) jaacute o estado eacutetico eacute simbolizado pelo modelo do casamento
e alude agrave situaccedilatildeo do compromisso e da obrigaccedilatildeo eternos na qual o presente estaacute
preso ao passado e ao futuro (cf MACINTYRE 2001b) Segundo Teofilo Urdanoz os
estados da existecircncia em Kierkegaard ou etapas no caminho de uma vida ldquosatildeo as
determinantes existenciais os modos de vida gerais que servem como esquema ou
princiacutepios antagocircnicos com os quais o indiviacuteduo concreto enfrenta na busca de uma
posse de si proacutepriordquo (URDANOZ 1975 vol V p 453)
Segundo MacIntyre esses modos de vida estatildeo fundamentados em conceitos
diferentes e ateacute mesmo rivais a escolha de um eacute a negaccedilatildeo do outro A questatildeo
fundamental na reflexatildeo que MacIntyre sugere a partir da leitura de Ou Ou eacute a de
que os princiacutepios que conduzem agrave adoccedilatildeo de algum dos modelos eacute totalmente
independente de motivos satildeo opccedilotildees feitas a partir de razatildeo nenhuma Esta opccedilatildeo
se refere apenas agrave escolha do que seja uma razatildeo para um determinado sujeito
Uma siacutentese das supracitadas teses pode ser realizado pela seguinte citaccedilatildeo
de MacIntyre
Assim como Hume procura fundamentar a moralidade nas paixotildees porque seus argumentos excluiacuteram a possibilidade de fundamentaacute-los nas paixotildees Kant fundamenta na razatildeo porque seus argumentos excluiacuteram a possibilidade de fundamentaacute-los nas paixotildees e Kierkegaard a fundamenta na escolha fundamental sem criteacuterios devido ao que acredita ser a natureza inapelaacutevel das ponderaccedilotildees que excluem tanto a razatildeo quanto as paixotildees (MACINTYRE 2001b p 95)
A siacutentese de MacIntyre de certo modo deixa clara a multiplicidade de apoios
para a sustentaccedilatildeo de discurso moral O pensamento moral moderno se mostra
40
marcado pela carecircncia de um ponto de apoio para a moralidade conforme conclui
MacIntyre A multiplicidade de pontos de apoio sinaliza a dificuldade em definir um
deles e o consequente desacordo Assim como na alegoria inicial de Depois da
Virtude em que aqueles que achavam que faziam ciecircncia apenas por repeticcedilatildeo dos
fragmentos de teoria e natildeo tinham ciecircncia de que natildeo estavam fazendo ciecircncia
alguma tambeacutem natildeo houve por parte dos modernos uma inconsciecircncia desse
desacordo
A ideia baacutesica de MacIntyre eacute a de que em relaccedilatildeo aos antigos e medievais
existe na modernidade uma perda da unidade fundamental no discurso moral Esta
perda da unidade eacute evidenciada pela multiplicidade de fundamentos Como jaacute natildeo
existe uma unidade do discurso moral tem-se na modernidade uma progressiva
passagem de uma Moral das Virtudes para uma moral que sobre valoriza a norma
uma deontologia A questatildeo que vai preocupar os filoacutesofos modernos no campo da
moralidade eacute o que fundamenta a norma E a pergunta em torno do fundamento da
norma tornar-se-aacute uma das questotildees mais relevantes da Eacutetica Moderna
33 O FRACASSO DO PROJETO ILUMINISTA
A questatildeo do fracasso do projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade
natildeo se deu exclusivamente em virtude da diversidade de opiniotildees sobre qual seria
afinal o fundamento primeiro da moralidade se nas paixotildees na razatildeo ou na escolha
A opiniatildeo de MacIntyre eacute que os modernos representados aqui por Hume Kant e
Kierkegaard foram herdeiros de um esquema especiacutefico e particular de crenccedilas
morais e foi este mesmo esquema que com uma incoerecircncia interna conduziu ao
fracasso do projeto filosoacutefico em comum desde o iniacutecio (cf MACINTYRE 2001b p 97)
Em consonacircncia com a tese do MacIntyre cabe explicitar em que consiste esta
incoerecircncia que conduziu ao fracasso do projeto iluminista de justificaccedilatildeo da
moralidade Essa eacute a tarefa desta segunda parte deste capiacutetulo
41
331 O passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana
O meacutetodo seguido por MacIntyre parte da anaacutelise das crenccedilas comuns dos
pensadores que contribuiacuteram para a construccedilatildeo do projeto iluminista de justificaccedilatildeo
da moralidade Ele exemplifica que ldquoo casamento e a famiacutelia satildeo no fundo tatildeo
incontroversos para o philosophe racionalista de Diderot quanto para o juiz Guilherme
de Kierkegaard o cumprimento de promessas e a justiccedila satildeo tatildeo inviolaacuteveis para
Hume quanto para Kantrdquo (MACINTYRE 2001b p 98) Ao final MacIntyre indaga sobre
de onde provecircm essas convicccedilotildees em comum mesmo vindas de pensadores que
defenderam teses distintas Duas caracteriacutesticas relevantes satildeo compartilhadas por
estes pensadores a saber o passado cristatildeo e a noccedilatildeo de natureza humana
O segundo ponto de convergecircncia que eacute a crenccedila da existecircncia de uma
natureza humana universal seria ponto de apoio agrave construccedilatildeo de uma filosofia moral
A posiccedilatildeo comum eacute que as normas da moralidade se justificariam na natureza
humana isto eacute elas seriam explicadas e justificadas como desenvolvimento
necessaacuterio do que essa tal natureza humana aceitaria No exemplo de Hume e
Diderot o que haacute de peculiar na natureza humana satildeo as caracteriacutesticas das paixotildees
para Kant a caracteriacutestica importante da subjetividade eacute o caraacuteter universal e
categoacuterico de certas normas acessiacuteveis agrave razatildeo17 no caso de Kierkegaard embora
ela natildeo pretenda estritamente justificar a moralidade sua argumentaccedilatildeo segue a
mesma estrutura das anteriores enquanto Hume e Kant apelam para as
caracteriacutesticas das paixotildees e da razatildeo respectivamente Kierkegaard apela para a
escolha como caracteriacutestica fundamental da natureza humana MacIntyre finaliza
esclarecendo que ldquotodos esses escritores tecircm em comum o projeto de construir
argumentos vaacutelidos que passem das premissas relativas agrave natureza humana
conforme a entendem agraves conclusotildees sobre a autoridade das normas e dos preceitos
moraisrdquo (MACINTYRE 2001b p 99 )18
Haacute um questionamento que merece ser aqui considerado A argumentaccedilatildeo de
MacIntyre vinha sendo desenvolvida defendendo a tese de um desacordo no discurso
17A questatildeo sobre a noccedilatildeo de natureza humana em Kant natildeo eacute tatildeo simples de ser resolvida MacIntyre
acredita que em Kant a natureza humana se refere ao aspecto fisioloacutegico do homem e este aspecto por sua vez eacute distinto da racionalidade do sujeito Corrobora com a opiniatildeo de MacIntyre Otfried Houmlffe Segundo ele ldquode modo geral a razatildeo significa a faculdade de ultrapassar o acircmbito dos sentidos da natureza A ultrapassagem dos sentidos pelo conhecimento eacute o uso teoacuterico na accedilatildeo eacute o uso praacutetico da razatildeo Cf HOumlFFE 2005 p 188
18 O texto que a seguir acompanha passo a passo a argumentaccedilatildeo de MacIntyre
42
moral proveniente dos distintos pontos de apoio que cada pensador havia tomado A
pergunta eacute por que se falar em pontos de convergecircncia se o argumento principal do
autor se referia ao desacordo Para responder a questatildeo eacute necessaacuterio voltar a
alegoria inicial de Depois da Virtude Na alegria as pessoas se apropriavam de
pedaccedilos de teorias foacutermulas cientiacuteficas que no entanto natildeo possuiacuteam sentido algum
Em nada os ajuda uma vez que os fragmentos das teorias natildeo estavam inseridos em
seus contextos originais haviam perdido sua rede de significados No exemplo dos
exemplares filosoacuteficos apresentados por MacIntyre acontece a mesma coisa Eles
tecircm em comum a noccedilatildeo de natureza humana entretanto esta noccedilatildeo pertence a outro
esquema moral Desse modo MacIntyre conclui que a noccedilatildeo de natureza humana
sem sua rede de significados original natildeo pode ajudar na construccedilatildeo de um discurso
moral A questatildeo sobre a noccedilatildeo de natureza humana e sua relaccedilatildeo com as normas e
preceitos seraacute melhor desenvolvida a seguir
332 A incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a noccedilatildeo
de natureza humana na moral moderna
O cerne do processo que causou o fracasso do projeto iluminista estaacute ligado
segundo MacIntyre agrave incompatibilidade entre o conceito de normas e preceitos e a
noccedilatildeo de natureza humana A tarefa do pensador consiste agora em contar a histoacuteria
desses dois conceitos mostrar como eles satildeo incompatiacuteveis e estabelecer uma
relaccedilatildeo entre esta incompatibilidade e o fracasso
MacIntyre expotildee que existe uma forma geral do esquema moral que foi
ancestral dos conceitos em questatildeo Este esquema moral foi predominante na Idade
Meacutedia desde o seacuteculo XII e era composto de elementos da moral aristoteacutelica e de
caracteriacutesticas cristatildes da moral tomista A estrutura baacutesica deste esquema eacute a que
Aristoacuteteles apresentou na Eacutetica a Nicocircmacos O esquema aristoteacutelico distingue ldquoo
homem como ele eacuterdquo e o ldquohomem como poderia ser se realizasse sua natureza
essencialrdquo A proacutepria tarefa da eacutetica estaacute aiacute delimitada ela eacute o saber que habilita o
homem a compreender como se daacute a passagem de um estado para outro Potecircncia e
Ato essecircncia do homem e telos satildeo conceitos pressupostos para compreender este
esquema Os preceitos que recomendam tais virtudes e vetam determinados viacutecios
43
satildeo aqueles que proporcionam a passagem da verdadeira natureza para alcanccedilar o
verdadeiro fim
Existe pois uma co-relaccedilatildeo necessaacuteria entre ldquonatureza humana como eacuterdquo
preceitos e ldquonatureza humana como pode ser se realizar seu telosrdquo Cada um desses
trecircs elementos necessita dos outros dois isto eacute ldquoos nossos desejos e emoccedilotildees devem
ser organizados e educados pelo uso de tais preceitos e pelo cultivo de haacutebitos de
accedilatildeo que a eacutetica prescreve a razatildeo nos instrui quanto ao nosso verdadeiro fim e
quanto a como atingi-lordquo (MACINTYRE 2001b p100) Estas noccedilotildees natildeo podem pois
ser adequadamente compreendidas senatildeo segundo esta relaccedilatildeo de
interdependecircncia Separadas elas perdem sua inteligibilidade
O pensamento medieval assume esse esquema com o diferencial de
acrescentar que os preceitos da eacutetica aleacutem de mandados teleoloacutegicos satildeo tambeacutem
expressotildees de uma lei divinamente decretada MacIntyre endossa que ldquoeacute preciso
retificar e ampliar a tabela das virtudes e viacutecios acrescentando-se o conceito de
pecado ao conceito aristoteacutelico de erro A lei de Deus exige um novo tipo de temor e
respeitordquo (MACINTYRE 2001b p100) Este mundo natildeo eacute mais o lugar da efetivaccedilatildeo
do fim do homem como era a polis grega no sentido que Aristoacuteteles pensou Grande
parte dos filoacutesofos medievais concordava que esse esquema tanto pertencia agrave
revelaccedilatildeo quanto podia ser sustentada racionalmente Com o advento do
protestantismo e do catolicismo jansenista este consenso eacute paulatinamente desfeito
dando lugar a um novo conceito de razatildeo
3321 O passado cristatildeo e o novo conceito de razatildeo
Uma ideia fundamental ao novo conceito de Razatildeo forjado no seio do
protestantismo e do catolicismo jansenista consiste na convicccedilatildeo de que a razatildeo natildeo
eacute capaz de compreender qual seja o verdadeiro fim do homem
O finito se aniquila na presenccedila do infinito e torna-se um puro nada Assim nosso espiacuterito em face de Deus assim nossa justiccedila em face da justiccedila divina Natildeo haacute uma desproporccedilatildeo tatildeo grande entre a nossa justiccedila e a de Deus como entre a unidade e o infinito (apud BRANDAtildeO 1961)
Essa atitude consiste num certo ceticismo em relaccedilatildeo agrave capacidade de a razatildeo
alcanccedilar a certeza de que a constituiccedilatildeo do homem comporta alguma finalidade
44
MacIntyre afirma que o pensamento moderno de tradiccedilatildeo protestante lecirc as escrituras
entendendo que o episoacutedio da queda do homem significou a marca de debilidade da
razatildeo humana sendo ela destituiacuteda do poder de compreensatildeo do fim do homem A
criacutetica dos empiristas ratifica essa compreensatildeo Atraveacutes do empirismo moderno
tambeacutem se pode vislumbrar o ponto de vista de que nos limites da natureza acessiacutevel
ao homem natildeo se pode garantir o conhecimento de nenhum telos isto eacute aquilo que
a razatildeo estabelece como telos eacute fruto apenas de um costume ou haacutebito um ato
psicoloacutegico sem fundamento na experiecircncia Conforme Hume
O costume eacute pois o grande guia da vida humana Eacute o uacutenico princiacutepio que torna uacutetil nossa experiecircncia e nos faz esperar no futuro uma seacuterie de eventos semelhantes agravequeles que apareceram no passado Sem a influecircncia do costume ignorariacuteamos completamente toda questatildeo de fato que estaacute fora do alcance dos dados imediatos da memoacuteria e dos sentidos Nunca poderiacuteamos saber como ajustar os meios em funccedilatildeo dos fins nem como empregar nossas faculdades naturais para a produccedilatildeo de um efeito (HUME 1999 seccedilatildeo V p 63)
A partir da afirmaccedilatildeo de Hume pode-se afirmar que natildeo estaacute no domiacutenio da
razatildeo humana o conhecimento de nenhum telos Como desenrolar das ideias de
Hume compreende-se que uma possiacutevel idealizaccedilatildeo de um fim para a vida humana
seria apenas um estabelecimento habitual daquilo que se crecirc como fim O resultado
destas ideias eacute conforme MacIntyre uma rejeiccedilatildeo a qualquer noccedilatildeo teleoloacutegica da
natureza humana e a qualquer ideia do homem como ser que possui uma essecircncia
que defina seu verdadeiro fim ldquosegundo essas novas teologias protestantes e a
catoacutelico jansenista a razatildeo natildeo fornece nenhuma compreensatildeo genuiacutena do verdadeiro
fim do homemrdquo (MACINTYRE 2001b p 101) Assim sendo o ambiente social e cultural
dos modernos jaacute natildeo comporta a noccedilatildeo de Telos no plano moral
Mais uma vez mostra-se aqui a fragmentaccedilatildeo dos elementos fundamentais do
discurso moral anterior a modernidade Os pensadores em questatildeo conforme foi
apresentado assumiram a noccedilatildeo de natureza humana prescindindo poreacutem da
noccedilatildeo de Telos Eacute neste sentido que MacIntyre entende a fragmentaccedilatildeo que
provocaraacute o ulterior desacordo moral
3322 A ciecircncia e a filosofia do seacuteculo XVII
ldquoCiecircncia e poder do homem coincidem uma vez que sendo a causa ignorada
frustra-se o efeitordquo (BACON 1999 p 33 sect III) As palavras de Bacon ao iniciar o Novum
45
Organum traduzem bem o abandono que a modernidade procedeu em relaccedilatildeo agrave
terminologia da escolaacutestica e do aristotelismo em relaccedilatildeo agrave ciecircncia O homem que
natildeo conhece a causa natildeo pode ter pretensotildees de determinar efeitos O pensamento
sozinho natildeo eacute capaz de determinar os fins ou o telos mesmo partindo da observaccedilatildeo
das coisas A ciecircncia experimental fundamentada em Bacon afasta-se do aparato
conceitual da metafiacutesica claacutessica natildeo se fala mais sobre essecircncias e
consequentemente sobre efeitos Efeito eacute aqui compreendido como resultado das
possibilidades contidas na essecircncia de uma coisa Neste sentido determinar um efeito
eacute anaacutelogo a determinar um fim Conforme MacIntyre
A razatildeo natildeo compreende essecircncias ou transiccedilotildees da potecircncia ao ato esses conceitos pertencem ao desprezado esquema conceitual da escolaacutestica Aleacutem disso a ciecircncia anti-aristoteacutelica impotildee limites riacutegidos aos poderes da razatildeo A razatildeo eacute calculadora sabe avaliar verdades de fato e relaccedilotildees matemaacuteticas poreacutem nada mais No campo da praacutetica portanto soacute sabe falar de meios Precisa calar-se no tocante aos fins (MACINTYRE 2001b p 102)
MacIntyre completa afirmando que em relaccedilatildeo agraves teologias catoacutelica e
protestante em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave proacutepria Filosofia haacute um progressivo abandono
da crenccedila de que a razatildeo eacute capaz de determinar alguma finalidade
Kant por exemplo natildeo estabelece finalidade para o homem porque para ele
qualquer finalidade diferente do homem em si mesmo representa uma heteronomia
E por conseguinte natildeo serve como fundamento de um discurso aprioriacutestico pois a
felicidade eacute extriacutenseca e algo que traz consigo elementos sensiacuteveis Nos esquemas
claacutessicos de fundamentaccedilatildeo da moralidade a felicidade eacute o fim a que naturalmente
todo homem tende e eacute a partir dela que seratildeo definidos os caminhos pelos quais o
homem deve percorrer para alcanccedilaacute-la Assim sendo a perspectiva kantiana
representa o que tradicionalmente se define como uma moral deontoloacutegica porque
na impossibilidade de um discurso que inclua a felicidade soacute se pode falar em dever
3323 A incoerecircncia entre o posicionamento pela lsquofalecircnciarsquo da razatildeo e a decisatildeo
pela noccedilatildeo de natureza humana
MacIntyre tem consciecircncia de que haacute uma profunda incoerecircncia nas tentativas
de os modernos constituiacuterem uma filosofia moral fundamentados na noccedilatildeo de
natureza humana Para ele essa noccedilatildeo soacute podia ser adequadamente compreendida
46
e utilizada se inserida no esquema de uma moralidade teleoloacutegica Qual a utilidade
pois da noccedilatildeo de natureza humana para uma fundamentaccedilatildeo da moral se os
modernos haviam rejeitado agrave razatildeo a possibilidade de definir o fim do homem E mais
ainda de que serve a noccedilatildeo de natureza humana se a razatildeo natildeo consegue
compreender as possibilidades desta natureza MacIntyre vecirc neste posicionamento
uma contradiccedilatildeo Esta contradiccedilatildeo levou MacIntyre a defender que o projeto moderno
de justificaccedilatildeo da moralidade jaacute nasceu fracassado pois se constituiu a partir de um
esquema ldquoestilhaccediladordquo
Herdaram fragmentos incoerentes de um esquema de pensamentos e accedilotildees que um dia foi coerente e jaacute que natildeo reconheceram sua proacutepria situaccedilatildeo histoacuterica e cultural natildeo podiam reconhecer o caraacuteter impossiacutevel e quixotesco da tarefa que se auto-atribuiacuteram (MACINTYRE 2001b p 104 )19
A noccedilatildeo de natureza humana possuiacutea adequado na Eacutetica Teleoloacutegica Nela os
preceitos morais se ligam ao esquema teleoloacutegico geral de modo que no conjunto do
esquema eles satildeo necessaacuterios poreacutem secundaacuterios Jaacute num esquema de
justificaccedilatildeo que natildeo reconhece aos preceitos a funccedilatildeo de aprimoramento do homem
a fim de que ele passe de uma natureza humana dada para uma natureza humana
vislumbrada como telos isto eacute o homem como pode ser se realizar sua finalidade
soacute pode sobrevalorizar os preceitos seraacute pois uma moral deontoloacutegica No primeiro
tipo de moralidade os preceitos valem como condutores do homem agrave vida feliz Na
uacuteltima os preceitos valem em si mesmos traduzem as accedilotildees conforme e por dever
MacIntyre acrescenta agrave sua consideraccedilatildeo sobre o fracasso do projeto moderno
um argumento referente agrave funcionalidade dos conceitos particularmente ao conceito
de homem Para ele os argumentos morais da tradiccedilatildeo aristoteacutelica claacutessica e
medieval envolvem pelo menos um conceito funcional central que eacute o de homem
enquanto ser que tem uma natureza essencial e uma finalidade ou funccedilatildeo essencial
Assim sendo quando se fala em homem natildeo se pode perder as referecircncias de que o
conceito natildeo estaacute separado das funccedilotildees que o homem realiza como membro de uma
famiacutelia como cidadatildeo soldado filoacutesofo servo de Deus A funccedilatildeo se relaciona com o
fim para o qual algo eacute feito MacIntyre conclui que homem se tornaraacute apenas um
conceito loacutegico a partir do momento em que passa a ser compreendido como
19Esta passagem remete claramente agrave metaacutefora inicial de Depois da Virtude no capiacutetulo Uma ideia
inquietante
47
indiviacuteduo antes e fora de todos os papeacuteis o que impossibilita a retirada de conclusotildees
valorativas e normativas a partir de premissas factuais Para o autor isto se deve agrave
falta de conexatildeo entre os preceitos morais e a noccedilatildeo de natureza humana aprimorada
O ponto de partida de Aristoacuteteles eacute relacionar homem e viver bem de modo que o
segundo estaacute implicado na razatildeo do primeiro
Na modernidade a tese de que natildeo satildeo vaacutelidos os argumentos que partem de
juiacutezos de fato para juiacutezos de valor isto eacute de um lsquoeacutersquo para um lsquodeversquo refere-se agrave perda
da compreensatildeo primordial que o conceito de homem tinha antes de ser arrancado
de sua rede de significados conforme exposto no paraacutegrafo anterior MacIntyre
conclui que esse posicionamento ganha forccedila em virtude da compreensatildeo insuficiente
e parcial que os modernos tinham do conceito de homem Ele denominou como ldquofalta
de consciecircncia histoacutericardquo que eacute comum desde a modernidade ateacute os tempos atuais
3324 Sobre a mudanccedila do significado dos juiacutezos morais
Dizer que algo eacute bom na Tradiccedilatildeo Aristoteacutelica significa dizer que este algo
realiza todas as funccedilotildees para as quais se destina ou seja realiza perfeitamente sua
finalidade ou funccedilatildeo especiacutefica Para MacIntyre dizer que algo eacute bom natildeo eacute apenas
expressatildeo de um juiacutezo de valor simplesmente emotivista mas significa a partir da
compreensatildeo de funccedilatildeo e de realizaccedilatildeo desta um juiacutezo de fato ldquoDizer que algo eacute
bom portanto tambeacutem eacute fazer uma declaraccedilatildeo factual Dizer que determinado ato eacute
justo ou certo eacute dizer que ele eacute o que um homem bom faria em tal situaccedilatildeo por
conseguinte esse tipo de declaraccedilatildeo tambeacutem eacute factualrdquo (MACINTYRE 2001b p 111)
Assim a partir desta tradiccedilatildeo pode-se falar em juiacutezos morais verdadeiros ou falsos
A questatildeo dos juiacutezos de valor a partir de juiacutezos de fato e sua impossibilidade
de se constituir deste modo tornou-se implausiacutevel quando na modernidade
lsquodesaparece da moralidade a ideia de funccedilotildees ou finalidades humanas essenciaisrsquo
Consequentemente abre-se um espaccedilo para a pertinecircncia das teses em torno da
invalidade de argumentos morais que partem de um lsquoeacutersquo para um lsquodeversquo Aleacutem disso
acrescenta Macintyre a laicizaccedilatildeo da moralidade operada pelo iluminismo pocircs em
questatildeo a veracidade dos juiacutezos morais como expressotildees da voluntas divinitatis
Mesmo em Kant que pensa os juiacutezos morais como expressatildeo de uma lei universal
48
natildeo haacute possibilidade de questionar os juiacutezos em termos de verdade ou falsidade eles
satildeo categoacutericos
As teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade segundo MacIntyre
proporcionaram um desacordo moral
Esta desordem proveacutem do proacuteprio poder cultural predominante de um jargatildeo no qual os fragmentos conceituais incompatiacuteveis de vaacuterias partes do nosso passado satildeo aplicados juntos em debates puacuteblicos e privados que satildeo notaacuteveis pelo caraacuteter insoluacutevel das controveacutersias neles envolvidas e pela clara arbitrariedade de cada participante do debate (MACINTYRE 2001b p 429)
Assim as reflexotildees operadas pelo autor conduzem a algumas proposiccedilotildees A
primeira delas eacute que o desacordo dos modernos sobre o lsquoalicercersquo desde onde
fundamentar a moral proporcionou um desacordo contemporacircneo e uma
fragmentaccedilatildeo do discurso sobre as accedilotildees Esta situaccedilatildeo original foi proporcionada por
um lsquoesquecimento histoacutericorsquo e pela histoacuteria social que formaram o ambiente filosoacutefico
de onde brotaram as principais teses de justificaccedilatildeo da moralidade O fracasso do
projeto deveu-se em grande parte a incompatibilidade entre a noccedilatildeo de natureza
humana e a de preceitos Acrescente-se a isto a nova compreensatildeo de racionalidade
e a perda do sentido de funcionalidade dos conceitos
Cumpre agora desenvolver o empreendimento de apresentar a teoria
macintyreana da moral O intuito de MacIntyre eacute oferecer atraveacutes de sua teoria um
pensamento eacutetico que devolva a inteligibilidade ao discurso moral a partir do conceito
de virtude enriquecido pelas noccedilotildees de Praacuteticas Unidade narrativa de uma vida
humana individual e o conceito de tradiccedilatildeo
49
4 O PROJETO DE DEPOIS DA VIRTUDE E A TEORIA MORAL DE MACINTYRE
A exposiccedilatildeo dos elementos fundamentos que orientam o estabelecimento da
Eacutetica das Virtudes mostrou-se necessaacuteria agrave compreensatildeo do cenaacuterio que compotildee a
Filosofia Moral Contemporacircnea Aleacutem disso pode-se ver a orientaccedilatildeo filosoacutefica que
marcou o pensamento de MacIntyre isto eacute os limites dos fundamentos que forjaram
a moral contemporacircnea e o modo como a Eacutetica das Virtudes se apresenta como uma
alternativa viaacutevel de inteligibilidade das accedilotildees
A obra Depois da Virtude foi publicada em 1981 e passou a fazer parte da
terceira via da filosofia moral de liacutengua inglesa Autores como Gertrude Anscombe
conforme apresentado no Cap I deste trabalho proporcionaram ao pensamento
contemporacircneo um renascimento ou recolocaccedilatildeo do pensamento moral de
Aristoacuteteles A proposta da obra de MacIntyre se alinha ao movimento de afirmaccedilatildeo do
pensamento aristoteacutelico como uma opccedilatildeo viaacutevel agrave moralidade contemporacircnea
A criacutetica de MacIntyre agraves teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade e
o modo como o pensamento contemporacircneo eacute herdeiro da incoerecircncia e do
lsquoesquecimentorsquo deste momento da filosofia moral se constituiu como preparaccedilatildeo agrave
apresentaccedilatildeo de sua proposta moral agrave filosofia moral contemporacircnea Aleacutem da ampla
criacutetica aos males percebidos da modernidade MacIntyre apresenta sugestotildees que
aleacutem de reforccedilarem a reabilitaccedilatildeo de uma Moral das Virtudes mostram como alguns
dos males podem ser corrigidos Esses dois elementos se constituem pois na tarefa
desta seccedilatildeo do trabalho
41 O ANTES DE DEPOIS DA VIRTUDE
Antes da publicaccedilatildeo de Depois da Virtude jaacute eacute possiacutevel encontrar em
MacIntyre sinais dos fundamentos que hatildeo de orientar seus principais
posicionamentos O texto Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica de 1966 apresenta sinais
do movimento de criacutetica agrave Filosofia Moral Moderna Naturalmente a partir do ano de
publicaccedilatildeo desta obra vecirc-se que ela eacute imediatamente posterior ao Modern Moral
Philosophy de Gertrude de 1958 cujas teses fundamentais jaacute foram expostas no
primeiro capiacutetulo deste trabalho
50
Algumas das teses presentes em Depois da Virtude jaacute encontram sua forma
embrionaacuteria em Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica a saber o anseio de refutar a tese
de que natildeo se podem retirar proposiccedilotildees normativas de proposiccedilotildees factuais isto eacute
o dever ser do ser uma desarticulaccedilatildeo no discurso moral a crenccedila de que os
conceitos morais natildeo deveriam ser formulados na crenccedila de sua intemporalidade
desarticulados das sociedades que os proporcionaram e o potencial lsquodestrutivorsquo do
emotivismo
411 Vida social e conceitos morais
O primeiro capiacutetulo intitulado A importacircncia filosoacutefica da histoacuteria da eacutetica
chama a atenccedilatildeo para o costume recorrente de dar uma importacircncia secundaacuteria agrave
histoacuteria da eacutetica Esta pouca importacircncia ao tema decorre de uma crenccedila comum de
que o aparato conceitual da eacutetica pode ser compreendido prescindindo de sua
histoacuteria Contudo agrave medida que a vida social muda mudam tambeacutem os conceitos Os
conceitos morais segundo MacIntyre ganham sua inteligibilidade quando as regras
que governam o seu uso satildeo apreendidas Sua apreensatildeo se daacute a partir das distintas
formas de vida social e estas proporcionam os diferentes papeis para que sejam
representados por estes conceitos
Os conceitos morais na realidade mudam agrave medida que muda a vida social Deliberadamente natildeo digo lsquoporque muda a vida socialrsquo jaacute que isto poderia sugerir que a vida social eacute uma coisa e a moralidade eacute outra e que existe meramente uma relaccedilatildeo de causa externa e contingente entre elas Evidentemente que isto eacute falso Os conceitos morais satildeo encarnados em (e satildeo parcialmente constituiacutedos de) nas
formas de vida social (MACINTYRE 1988 p 11)20
MacIntyre percebe que a partir dos conceitos morais eacute possiacutevel compreender
as diferentes manifestaccedilotildees da vida social Seu entendimento eacute o de que os conceitos
morais estatildeo situados natildeo satildeo atemporais Vida social e conceitos morais natildeo podem
ser pensados separadamente John Horton e Susan Mendus em seu artigo Alasdair
MacIntyre After Virtue and After acrescentam que
20ldquoIn fact of course moral concepts change as social life changes I deliberately do not write ldquobecause
social life changesrdquo for this might suggest that social life is one thing morality another and that there is merely an external contingent causal relationship between them This is obviously false Moral concepts are embodied in and are partially constitutive of forms of social liferdquo Cf tambeacutem MACINTYRE 2005 p 01
51
entre as grandes contribuiccedilotildees de Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica MacIntyre rejeitou explicitamente a crenccedila comum nos ciacuterculos filosoacuteficos da eacutepoca que os conceitos morais seriam uma intemporal limitada imutaacutevel determinada espeacutecie de conceitos que poderiam ser analisados e compreendidos aleacutem da sua histoacuteria (HORTON MENDUS 1994 p 2)21
Os conceitos morais soacute seratildeo adequadamente compreendidos se forem
estudados historicamente e contextualmente uma vez que satildeo incorporados como
partes constitutivas da vida social A importacircncia da histoacuteria e do contexto social para
a filosofia moral seraacute uma temaacutetica recorrente em toda a obra de MacIntyre
412 Fundamentaccedilatildeo das proposiccedilotildees normativas
O texto de Gertrude Anscombe jaacute traz uma referecircncia agrave criacutetica de Hume que
aponta a problemaacutetica de se retirarem proposiccedilotildees normativas do tipo deve a partir
de proposiccedilotildees factuais do tipo eacute ou seja a ideia eacute que o deve ser natildeo pode estar
fundamentado no ser Os autores desta tese natildeo vecircem como se construir uma eacutetica
de uma ontologia
As proposiccedilotildees deste tipo refletem em torno do significado das proposiccedilotildees
morais Na filosofia anglosaxocircnica a tentativa de formular proposiccedilotildees deontoloacutegicas
de proposiccedilotildees factuais ficou intitulada como falaacutecia naturalista MacIntyre aponta que
esta qualificaccedilatildeo foi dada pelos escritos de George Moore (cf MACINTYRE 2001b p
243) Em seu Principia Ethica George Moore explica o sentido do que ele chama de
falaacutecia naturalista Esta se refere agrave tentativa de identificar o bem ou bom como se
fosse o nome de uma de uma coisa natural O problema estaacute no fato de que quem
afirma que bom eacute uma propriedade simples e natildeo analisaacutevel tem diante de si o
incocircmodo de encontrar expressotildees que aplicam o termo bom sob acepccedilotildees muito
distintas como por exemplo este eacute um bom amigo ou este eacute um bom reloacutegio Com
efeito apenas o predicado bom da primeira sentenccedila eacute o que traz algum significado
moral
A questatildeo em torno do bom se relaciona agrave necessidade de compreender o
modo como o bem e as accedilotildees se relacionam Encontrar a conexatildeo entre um e outro
21ldquoMacIntyre explicity rejected the belief common in philosophical circles at the time that lsquomoral
concepts were timeless limited unchanging determinate species of concept (that) can be examined and understood apart from their historyrdquo
52
seria uma abertura para responder agraves duas perguntas dos Principia Ethica a saber
que tipo de coisas deve existir em virtude de si mesmas Que tipo de accedilotildees devemos
realizar (cf MOORE 2005 p 17) Isto de certo modo justificaria a relaccedilatildeo entre bem
e dever Mas como justificar esta relaccedilatildeo diante do caraacuteter enigmaacutetico da noccedilatildeo de
bem MacIntyre citando George Moore questiona
O bom entatildeo eacute um nome de uma propriedade simples e natildeo analisaacutevel Haacute pelo menos duas objeccedilotildees decisivas contra a doutrina que responde afirmativamente A primeira eacute que soacute podemos empregar inteligivelmente o nome de uma propriedade simples quando conhecemos um modelo exemplar dele por referecircncia ao qual podemos dar-nos conta se estaacute presente ou ausente em outros casos (MACINTYRE 2005 p 161 )22
O caraacuteter enigmaacutetico da noccedilatildeo bem assinalado por George Moore o faz propor
que para aplicaccedilatildeo da noccedilatildeo de bem ou o que eacute intrinsecamente bom o agente
simplesmente o reconhece O resumo da questatildeo eacute que natildeo eacute possiacutevel se ter o bem
como uma propriedade simples aplicaacutevel e que sirva de criteacuterio para verificar sua
presenccedila ou ausecircncia e em que medida esta noccedilatildeo foi aplicada Assim quando o
indiviacuteduo agente ele natildeo se faz uma relaccedilatildeo direta entre bem e dever simplesmente
age segundo seus proacuteprios sentimentos Esta afirmaccedilatildeo abre espaccedilo ao emotivismo
que se torna objeto de criacutetica em Depois da Virtude
413 O emotivismo
O MacIntyre de Uma Pequena Histoacuteria da Eacutetica ainda natildeo faz associaccedilatildeo entre
o emotivismo e o desacordo moral Segundo ele o emotivismo teria seu germe nas
reaccedilotildees contra o pensamento de George Moore Ora se natildeo eacute possiacutevel definir o bem
como uma propriedade simples legiacutetima as accedilotildees satildeo entatildeo expressotildees dos
proacuteprios sentimentos dos agentes Contudo aqui aparece um problema do qual o
proacuteprio George Moore vai ser o primeiro a apontar pois ldquoos juiacutezos morais natildeo podem
ser simples informaccedilotildees sobre os nossos sentimentos porque neste caso dois
homens que expressam juiacutezos aparentemente contraditoacuterios sobre uma questatildeo
moral natildeo estariam de fato em desacordordquo (MACINTYRE 1988 p247)
22ldquoIs good then the name of a simple unanalyzable property To the doctrine that it is there are at
least two conclusive objections The first is that we can only use the name of a simple property by reference to which we are acquainted with some standard example of the property by reference to which we are to recognize whether it is present or absent in other casesrdquo
53
Entre os representantes do emotivismo encontra-se Charles Leslie Stevenson
Sua obra O Significado Emotivo dos Termos Eacuteticos defende a ideia de que a funccedilatildeo
primaacuteria das expressotildees morais eacute dar uma nova direccedilatildeo agraves atitudes dos outros com o
objetivo de provocar a adesatildeo o que seria segundo Stevenson uma funccedilatildeo dinacircmica
dessas expressotildees As expressotildees morais possuem esta funccedilatildeo dinacircmica porque
satildeo emotivas O seu significado corresponde agrave tendecircncia desta palavra construiacuteda
atraveacutes da histoacuteria de seu modo de uso a produzir respostas afetivas nas pessoas (cf
MACINTYRE 1988 p 248)
Em relaccedilatildeo ao significado dos termos morais Charles Stevenson propotildee dois
modelos nos quais ambos enfatizam o caraacuteter emotivo desses termos No primeiro
modelo o autor defende que proposiccedilotildees do tipo isto eacute bom satildeo equivalentes a Eu
gosto disto entatildeo faz o mesmo Jaacute o segundo modelo se ocupa de expressotildees que
encarnam o que Stevenson denomina de expressotildees persuasivas que possuem um
significado descritivo e associam a este um significado emotivo Assim sendo duas
pessoas podem associar agrave noccedilatildeo de Justiccedila diferentes significados descritivos em
virtude do elemento emotivo presente na experiecircncia individual com esta palavra
Alguns desdobramentos da tese de Charles Stevenson podem ser expressos
aqui o primeiro eacute que termos valorativos natildeo podem receber descriccedilatildeo completa pela
multiplicidade de significados Assim os fatos se apresentam como separados dos
valores em seguida o caraacuteter emotivo das expressotildees morais impossibilita de
construir uma teoria na qual os diversos agentes se sintam implicados porque
quaisquer proposiccedilotildees satildeo vaacutelidas Neste sentido conclui MacIntyre a Filosofia nos
assuntos ligados agrave moral seria neutra como tambeacutem a proacutepria teoria de Stevenson
uma vez que se podem utilizar palavras emotivas para lsquoabenccediloarrsquo quaisquer accedilotildees (cf
MACINTYRE 1988 p 248)
Aqui se encontra a razatildeo do desacordo valorativo uma vez que ldquonatildeo haacute limite
para as possibilidades de desacordo e conforme delineado acima nem
procedimentos que possam resolvecirc-losrdquo (MACINTYRE 1988 p 249) As razotildees que se
podem mencionar para fundamentar um juiacutezo moral natildeo possuem nenhuma relaccedilatildeo
loacutegica com a conclusatildeo que se pode derivar dela Os juiacutezos satildeo por assim dizer
apenas apoios psicoloacutegicos No discurso moral os termos lsquoporquersquo e lsquoportantorsquo perdem
sua conveniecircncia
54
Embora MacIntyre jaacute na Pequena Historia da Eacutetica apresente argumentos
contra o emotivismo interessa apresentar aqui como o emotivismo quase quinze
anos antes de Depois da Virtude jaacute se constitui numa das preocupaccedilotildees mais
relevantes do autor
Nas obras anteriores a Depois da Virtude se apresentava um certo ceticismo
sobre alguns aspectos do pensamento moral moderno entretanto eacute soacute com Depois
da Virtude que MacIntyre revela um profundo desencantamento com a filosofia moral
moderna Este desencantamento eacute tatildeo marcante que chega ateacute a obscurecer a
proposta moral de MacIntyre e objetivo fundamental da obra que eacute a proposiccedilatildeo da
Eacutetica das Virtudes via pensamento Aristoteacutelico a fim de resgatar a inteligibilidade do
discurso moral ultrapassando assim uma moralidade emotivista
42 A OBRA DEPOIS DA VIRTUDE
A apresentaccedilatildeo da fragmentaccedilatildeo do discurso moral contemporacircneo com a
falecircncia do projeto moderno de sua justificaccedilatildeo e a tentativa de restauraccedilatildeo da
racionalidade do discurso moral constituem as duas tarefas de Depois da Virtude Em
relaccedilatildeo ao projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade MacIntyre defende que o
seu fracasso se deu em virtude de as tentativas de fundamentaccedilatildeo da moralidade
partirem de uma concepccedilatildeo de racionalidade independente da histoacuteria e contexto
social Aleacutem disso todas as teses apesar de tomarem por base uma certa noccedilatildeo de
natureza humana natildeo a articularam no esquema moral da qual esta noccedilatildeo fazia parte
A desordem do discurso moral que o mundo contemporacircneo experimenta eacute a
consequecircncia natildeo soacute da falecircncia do projeto moderno mas tambeacutem dos proacuteprios
caminhos que a modernidade trilhou Um aspecto problemaacutetico de Depois da Virtude
e que eacute objeto de criacuteticas das mais contundentes eacute que a teoria moral de MacIntyre
natildeo se apresenta com o mesmo vigor de sua criacutetica agrave modernidade O diagnoacutestico eacute
bom mas o remeacutedio natildeo parece tatildeo eficaz
A afirmaccedilatildeo proferida ilustra bem a grande dificuldade que o proacuteprio
pensamento contemporacircneo enfrenta Em geral os pensadores contemporacircneos
tomam a Tradiccedilatildeo com bastante propriedade isto eacute fazem um bom diagnoacutestico dos
principais problemas da Tradiccedilatildeo entretanto natildeo parecem assim tatildeo propositivos ou
suas soluccedilotildees natildeo se impotildee com a mesma forccedila de sua criacutetica
55
As criacuteticas ao projeto iluminista de justificaccedilatildeo da moralidade e os
encaminhamentos que proporcionaram a sua crise jaacute foram adequadamente
esclarecidos no Capiacutetulo II deste trabalho A proacutexima tarefa eacute justamente apresentar
a teoria de MacIntyre em Depois da Virtude e com isso resgatar a inteligibilidade do
discurso moral que se constitui como grande tarefa afirmativa desta obra de
MacIntyre
421 A natureza das virtudes tese central de Depois da Virtude
Os capiacutetulos XIV A natureza das virtudes e o XV As virtudes a unidade da
vida humana e o conceito de tradiccedilatildeo apresentam os elementos chave da tentativa de
MacIntyre em constituir uma teoria da moralidade No desenvolvimento de sua teoria
MacIntyre enfrenta a problemaacutetica das diferentes listas e concepccedilotildees de virtude Haacute
enorme diferenccedilas entre a concepccedilatildeo homeacuterica a aristoteacutelica e a neotestamentaacuteria
Eles nos oferecem listas diferentes e incompatiacuteveis das virtudes classificam em hierarquias diferentes e incompatiacuteveis Se incluiacutessemos autores ocidentais mais recentes a lista das diferenccedilas aumentaria ainda mais e se estendermos nossa pesquisa agrave cultura japonesa ou digamos ameriacutendia as diferenccedilas aumentariam ainda mais Seria faacutecil demais concluir que existem inuacutemeras concepccedilotildees rivais e alternativas das virtudes poreacutem mesmo dentro da tradiccedilatildeo que tracei natildeo existe uma concepccedilatildeo nuclear uacutenica (MACINTYRE 2007 p 181)23
Sem duacutevida haacute um nuacutemero surpreendente de diferenccedilas e incompatibilidades
entre as vaacuterias listas das vaacuterias tradiccedilotildees Somem-se a isso virtudes que eram
completamente desconhecidas como eacute o caso das virtudes da feacute esperanccedila e
caridade Elas eram completamente estranhas a Aristoacuteteles Contudo MacIntyre
percebe que mesmo havendo uma enorme diferenccedila entre a lista de virtudes do Novo
Testamento e de Aristoacuteteles elas possuem a mesma estrutura conceitual
Virtude eacute assim como para Aristoacuteteles uma qualidade cujo exerciacutecio leva agrave conquista do telos humano O bem para o homem eacute naturalmente um bem sobrenatural [no cristianismo]24 e natildeo soacute um
23ldquoThey offer us different and incompatible lists of the virtues they give a different rank order of
importance to different of the virtues and they have different and incompatible theory of the virtues If we extended our enquiry to Japanese say or American Indian cultures the differences would become greater still It would be all too easy to conclude that there are a number of rival and alternative conceptions of the virtues but even within the tradition which I have been delineating no single core conceptionrdquo
24Destaque nosso
56
bem natural pois o sobrenatural redime e completa a natureza (MACINTYRE 2007 p 184 )25
Uma segunda similaridade se daacute na relaccedilatildeo das virtudes como sendo um
meio para um fim que eacute a entrada do homem no Reino dos ceacuteus num futuro vindouro
Essa passagem se daacute na interioridade do homem assim como em Aristoacuteteles
MacIntyre salienta que este paralelismo entre o aristotelismo e o Novo Testamento eacute
realizado por Tomaacutes de Aquino e ldquouma caracteriacutestica fundamental desse paralelismo
eacute o modo como o conceito de vida boa para o homem antecede ao conceito de virtuderdquo
(MACINTYRE 2007 p 184) O autor ainda salienta que tanto em Aristoacuteteles quanto em
Tomaacutes o conceito de virtude eacute um conceito secundaacuterio
Haacute algo de cartesiano na atitude de MacIntyre ele potildee em duacutevida a
possibilidade de alcanccedilar um conceito central ou em suas palavras nuclear de
virtude o que possa proporcionar uma unidade conceitual agrave tradiccedilatildeo moral
fundamentada na Eacutetica das Virtudes Contudo foi analisando atentamente qual a
distinccedilatildeo entre as tradiccedilotildees e os diversos conceitos de virtudes que o autor visualizou
que o conceito de virtude era secundaacuterio O fato de ser secundaacuterio eacute um nuacutecleo
comum entre as tradiccedilotildees e isto o faz responder agrave pergunta o que pode tornar
inteligiacutevel o conceito de virtude
Eacute na resposta a esta pergunta que se torna claro o caraacuteter complexo histoacuterico e multifacetado do conceito central de virtude pois natildeo haacute menos de trecircs estaacutegios no desenvolvimento loacutegico do conceito que precisam ser identificados na ordem correta para que se possa entender o conceito principal de virtude e cada um desses estaacutegios tem seu proacuteprio contexto conceitual O primeiro estaacutegio requer uma explicaccedilatildeo contextualizadora do que chamei praacutetica o segundo uma explicaccedilatildeo do que jaacute caracterizei como ordem narrativa de uma vida humana singular e o terceiro uma explicaccedilatildeo muito mais completa do que a que elaborei ateacute agora do que constitui uma tradiccedilatildeo moral (MACINTYRE 2007 p 314-315 )26
Praacutetica Narrativa de uma Vida Humana Singular e Tradiccedilatildeo satildeo os elementos
da teoria moral macintyreana Esses estaacutegios obedecem a uma ordem temporal pois
25ldquoA virtue is as with Aristotle a quality the exercise of which leads to the achievement of the human
telos The good for man is of course a supernatural and not only a natural good bus supernature redeems and completes naturerdquo
26ldquoIt is in answering this question that the complex historical multi-layered character of the core concept of virtue becomes clear For there are no less than three stages in the logical development of the concept which have to be identified in order if the core conception virtue is to be understood and each of these stages has its own conceptual background The first stage requires a background account of what I have already characterized as the narrative order of a single human life and the third an account a good deal fuller than I have given up to now of what constitutes a moral traditionrdquo
57
o posterior pressupotildee o anterior mas natildeo o contraacuterio Assim como cada estaacutegio eacute
reinterpretado pelo posterior e oferece elementos essenciais agrave sua compreensatildeo
Deve-se pois passar a uma anaacutelise de cada um desses estaacutegios
422 O conceito de praacuteticas
Costumeiramente Aristoacuteteles fala da excelecircncia na atividade humana
referindo-se a algum tipo de praacutetica humana bem definida tocar flauta guerrear
pensar geometricamente Essas praacuteticas proporcionam a oportunidade de expressatildeo
das virtudes satildeo o campo onde elas se desenvolvem MacIntyre salienta que praacuteticas
natildeo tecircm o sentido usual nem tambeacutem satildeo a uacutenica base atraveacutes da qual as virtudes
satildeo exibidas Qual eacute pois o sentido de Praacutetica
Praacutetica eacute qualquer forma coerente e complexa de atividade humana cooperativa socialmente estabelecida por meio da qual os bens internos a essa forma de atividade satildeo realizados durante a tentativa de alcanccedilar os padrotildees de excelecircncia apropriados para tal forma de atividade e parcialmente dela definidores tendo como consequecircncia a ampliaccedilatildeo sistemaacutetica dos poderes humanos para alcanccedilar tal excelecircncia e dos conceitos humanos dos fins e dos bens envolvidos (MACINTYRE 2007 p 187)27
Parece natildeo haver escrito de eacutetica que natildeo traga exemplo Assim MacIntyre
apresenta o exemplo de uma crianccedila de sete anos que ele gostaria de ensinar xadrez
mas que ela natildeo estaacute imediatamente interessada no aprendizado do jogo Como toda
crianccedila gosta de doce ele o oferece a ela desde que ela jogue xadrez uma vez por
semana pois aiacute ela receberaacute 50 centavos em doces e se ela vencer vai receber mais
50 centavos em doces Desse modo a crianccedila estaacute motivada e joga para ganhar
Apenas os doces motivam proporcionam agrave crianccedila um bom motivo para jogar xadrez
Ela natildeo tem razatildeo para trapacear e estaacute cheia de motivos para trapacear contanto
que consiga fazecirc-lo com ecircxito Entretanto haveraacute um momento em que a crianccedila vai
encontrar nos bens especiacuteficos do xadrez na aquisiccedilatildeo de certa capacidade
especialiacutessima imaginaccedilatildeo estrateacutegica e intensidade competitiva Este seraacute um novo
conjunto de razotildees e razotildees agora existem natildeo apenas para vencer em determinada
27ldquoBy a lsquopraticersquo I am going to mean any coherent and complex form of socially established cooperative
human activity through which goods internal to that form form of activity are realized in the course of trying to achieve those standards of excellence which are appropriate to and partially definitive of that form of activity with the result that human powers to achieve excellence and human conceptions of the ends and goods involved are systematically extendedrdquo
58
ocasiatildeo mas para tentar destacar-se de todos os modos que o jogo de xadrez exigir
Caso a crianccedila trapaceie natildeo estaraacute derrotando o oponente mas a si mesma (cf
MACINTYRE 2007 p 188)
Os bens internos ligados a essa atividade satildeo realizados durante a tentativa
de alcanccedilar os padrotildees de excelecircncia apropriados a tal forma de atividade O sentido
de bem interno pode ser explicitado de duas maneiras haacute certa capacidade que
apenas o exerciacutecio dessa atividade pode proporcionar no caso do jogo de xadrez ou
de qualquer outro da mesma natureza eacute a capacidade especialiacutessima de jogaacute-lo a
outra maneira se refere ao fato de que esses bens soacute podem ser identificados e
reconhecidos pela experiecircncia em participar da atividade
Bens externos e internos ainda trazem outra caracteriacutestica relevante que
proporciona uma maior compreensatildeo e distinccedilatildeo Bens externos quando
conquistados satildeo sempre posse de algueacutem Aleacutem disso sua posse eacute limitada de
modo que eles natildeo estatildeo disponiacuteveis para todos sendo portanto objeto de disputa e
concorrecircncia Por outro lado bens internos embora sejam objeto de competiccedilatildeo sua
conquista se torna disponiacutevel a toda a comunidade envolvida na praacutetica Como pois
a noccedilatildeo de bens internos se relaciona com a noccedilatildeo de virtude A resposta a esta
questatildeo se apresenta na primeira definiccedilatildeo provisoacuteria de virtude que Macintyre
oferece ldquoa virtude eacute uma qualidade humana adquirida cuja posse e exerciacutecio costuma
nos capacitar a alcanccedilar aqueles bens internos agraves praacuteticas e cuja ausecircncia nos
impede para todos os efeitos de alcanccedilar tais bensrdquo (MACINTYRE 2007 p 191)28
A definiccedilatildeo provisoacuteria de virtude elucida sua funccedilatildeo na vida humana seu papel
eacute proporcionar ao ser humano o acesso aos bens internos agraves praacuteticas Sua ausecircncia
significa de certo modo a negaccedilatildeo do acesso a esses bens
Ao conceito macintyreano de praacuteticas sejam elas jogos artes ciecircncias
atitudes tambeacutem pertence o pressuposto de que os bens internos a essas praacuteticas soacute
podem ser adquiridos por meio da proacutepria subordinaccedilatildeo dentro da praacutetica no
relacionamento com outros praticantes Toda praacutetica neste caso requer certo tipo de
relacionamento entre os seus integrantes A funccedilatildeo das virtudes eacute apresentar-se como
uma referecircncia para definir o modo de relaccedilatildeo entre os integrantes da praacutetica Eacute
necessaacuteria a aceitaccedilatildeo dos componentes necessaacuterios que a praacutetica foi aos poucos
28ldquoA virtue is an acquired human quality the possession and exercise of which tends to enable us to
achieve those goods which are internal to practices and the lack of which effectively prevents us from achieving any such goodrdquo
59
estabelecendo como padratildeo interno de excelecircncia Diga-se isso principalmente da
justiccedila coragem e da sinceridade A natildeo aceitaccedilatildeo desses padrotildees eacute anaacuteloga a estar
disposto a trapacear assim como a crianccedila do exemplo acima Assim faz-se
necessaacuteria uma constante valorizaccedilatildeo das virtudes e de seu papel na aquisiccedilatildeo dos
bens internos
A relevacircncia da sinceridade da justiccedila e da coragem eacute realccedilada por MacIntyre
dado que essas virtudes definem o relacionamento entre os integrantes de uma
praacutetica
Acredito entatildeo que do ponto de vista desses tipos de relaccedilotildees sem os quais as praacuteticas natildeo se mantecircm a sinceridade a justiccedila e a coragem e talvez algumas outras satildeo excelecircncias genuiacutenas satildeo virtudes agrave luz das quais precisamos caracterizar a noacutes mesmos e aos outros seja qual for nossa perspectiva moral ou os coacutedigos especiacuteficos da nossa sociedade Esse reconhecimento de natildeo podermos escapar agrave definiccedilatildeo dos nossos relacionamentos segundo tais bens eacute perfeitamente compatiacutevel com o reconhecimento de que cada sociedade tem e tem tido coacutedigos diferentes de sinceridade justiccedila e coragem (MACINTYRE 2007 p 192)29
Embora os coacutedigos se apresentem como muito distintos eles apenas o satildeo
sob certos aspectos distintos das virtudes particularmente o que natildeo acontece
poreacutem eacute o florescimento das virtudes em comunidades que natildeo as valorizem As
virtudes satildeo fundamentais porque elas consolidam as praacuteticas e a aquisiccedilatildeo dos bens
relativos a elas
As praacuteticas no entanto natildeo devem ser confundidas com um conjunto de
capacidades teacutecnicas O que distingue o modo como os conceitos dos devidos bens
e fins aos quais as capacidades teacutecnicas servem eacute a aptidatildeo que uma capacidade
teacutecnica proporciona agrave transformaccedilatildeo e ao enriquecimento dos poderes humanos e da
consideraccedilatildeo por seus proacuteprios bens internos Estes por sua vez tambeacutem vatildeo definir
parcialmente cada praacutetica ou tipo de praacutetica
MacIntyre acrescenta que ldquoas praacuteticas nunca tecircm uma meta ou metas fixas
definitivamente ndash a pintura [por exemplo] natildeo tem tal meta nem a Fiacutesica ndash mas as
29ldquoI take it then that from the standpoint of those types of relationship without practices cannot be
sustained truthfulness justice and courage ndash and perhaps some others ndash are genuine excellences are virtues in the light of which we have to characterize ourselves and others whatever our private moral standpoint or our societyrsquos particular codes may be For this recognition that we cannot escape the definition of our relationshipsin terms of such goods is perfectly compatible with the acknowledgment that different societies have and have had different codes of truthfulness justice and couragerdquo
60
proacuteprias metas se transmutam ao longo da histoacuteriardquo (MACINTYRE 2007 p 193 )30 Eacute
pois em virtude da transmutaccedilatildeo das metas que as praacuteticas se modificam e
consequentemente cada praacutetica seraacute portadora de uma histoacuteria peculiar diferente da
histoacuteria do aprimoramento de uma determinada capacidade teacutecnica Esta eacute pois uma
dimensatildeo histoacuteria fundamental na relaccedilatildeo entre praacuteticas e virtudes
Praacuteticas virtudes bens internos e externos se relacionam pois da seguinte
maneira numa sociedade que natildeo valoriza as virtudes soacute poderia haver um
reconhecimento dos bens externos e em hipoacutetese alguma dos bens internos no
contexto das praacuteticas MacIntyre acrescenta ldquoque em qualquer sociedade que
reconhecesse somente os bens externos a concorrecircncia seria a caracteriacutestica
predominante e ateacute exclusivardquo (MACINTYRE 1988 p 196)31
Neste sentido eacute possiacutevel delinear uma relaccedilatildeo distinta entre as virtudes e os
bens externos e internos A posse das virtudes eacute necessaacuteria para se alcanccedilar os bens
internos entretanto esta mesma posse pode dificultar o acesso a bens externos pois
o cultivo de determinadas virtudes como a justiccedila a sinceridade e a coragem pode
muitas vezes impossibilitar o acesso agraves riquezas ao prestiacutegio ao status Nesse
sentido talvez seja possiacutevel pensar que na verdade a riqueza o prestiacutegio e o status
sejam incompatiacuteveis com uma vida virtuosa
Desse modo no sentido empregado por MacIntyre as virtudes mesmo
proporcionando os bens internos agraves praacuteticas justificam-se independentes de seus
resultados pois embora elas sejam necessaacuterias agraves praacuteticas o acesso aos bens natildeo
se daacute de maneira uniacutevoca
423 Ordem narrativa de uma vida humana singular
O desenvolvimento da noccedilatildeo de ordem narrativa de uma vida humana singular
eacute uma resposta agrave questatildeo formulada no fim do capiacutetulo XIV de Depois da Virtude
Este elemento fundamental da teoria moral macintyreana aprofunda e enriquece o seu
conceito provisoacuterio de virtude explicitado no toacutepico acima A pergunta se esboccedila da
seguinte maneira
30ldquoPratices never have a goal or goals fixed for all time ndash painting has no such goal nor has physics ndash
but the goals themselves are transmuted by the history of the activityrdquo 31ldquoAnd in any society which recognized only external goods competitiveness would be the dominant and
even exclusive featurerdquo
61
seraacute racionalmente justificaacutevel conceber cada vida humana como uma unidade de modo que possamos tentar especificar cada uma dessas vidas como tendo o seu bem de modo que possamos entender as virtudes como tendo a funccedilatildeo de capacitar o indiviacuteduo a fazer de sua vida uma determinada espeacutecie de unidade e natildeo de outra (MACINTYRE 2007 p 203)32
O objetivo de MacIntyre neste ponto eacute oferecer uma compreensatildeo de cada
vida humana como um todo como uma unidade na qual o caraacuteter desta unidade
ofereccedila agraves virtudes um telos apropriado O primeiro passo que eacute o iniacutecio do Cap XV
de Depois da virtude eacute ultrapassar obstaacuteculos que contrariam a ideia de unidade da
vida humana o primeiro de natureza socioloacutegica e o segundo de natureza filosoacutefica
ou ainda da teoria socioloacutegica
O obstaacuteculo social agrave ideia de unidade da vida humana singular proveacutem da
maneira como a sociedade moderna passou a conceber a vida do indiviacuteduo sua vida
eacute pensada na forma de segmentos cada um com seu proacuteprio modus operandi nos
quais ldquoo trabalho eacute pensado separado de lazer a vida privada eacute afastada da vida
puacuteblica a vida empresarial eacute separada da vida pessoalrdquo (MACINTYRE 1988 p 204)33
Estas separaccedilotildees estatildeo articuladas de modo tal que a ideia de unidade da vida do
indiviacuteduo lhe eacute completamente estranha
Os obstaacuteculos filosoacuteficos se referem agrave ideia de que a vida humana eacute articulada
como uma sequecircncia de atos e episoacutedios individuais Numa concepccedilatildeo existencialista
por exemplo a vida humana se torna natildeo visualizaacutevel dado que indiviacuteduo estaacute
constantemente a desempenhar papeis que natildeo dizem respeito a ele imediatamente
MacIntyre toma o Sartre da Naacuteusea a fim de apresentar a seguinte tese
a narrativa eacute bem diferente da vida e que apresentar a vida humana em forma de narrativa eacute sempre deturpaacute-la De acordo com este pensamento conclui MacIntyre natildeo existiriam narrativas verdadeiras e a vida humana consistiria em accedilotildees que natildeo conduzem a lugar nenhum (MACINTYRE 2001b p 360)
Esta concepccedilatildeo existencialista de um eu separado de seus papeis
impossibilitaria o espaccedilo social de desenvolvimento das virtudes A criacutetica de
MacIntyre a tese de Sartre eacute a de para afirmar que nenhuma narrativa eacute possiacutevel
Sartre se utiliza de uma narrativa aleacutem disso MacIntyre afirma tambeacutem se poderia
32ldquois it rationally justifiable to conceive of each human life as a unity so that we may try to specify each
such life as having their function in enabling an individual to make of his or her life one kind of unity rather than anotherrdquo
33 ldquowork is divided from leisure private life from public the corporate from the personalrdquo
62
questionar a Sartre como seriam os atos humanos destituiacutedos de qualquer narrativa
mesmo que deturpadora A resposta agrave pergunta eacute o silecircncio completa o autor
Para o desenvolvimento das virtudes eacute fundamental compreender a vida
humana individual como uma unidade Aleacutem disso ldquoa unidade de virtude na vida de
algueacutem soacute se torna inteligiacutevel como caracteriacutestica de uma vida unitaacuteria uma vida que
se possa compreender e se avaliar na iacutentegrardquo (MACINTYRE 2007 p 205 )34 Como as
abordagens anteriores que representam uma antiacutetese agrave noccedilatildeo da vida humana
individual como uma unidade satildeo heranccedila da proacutepria concepccedilatildeo moderna sobre
homem e o seu ser-no-mundo faz-se necessaacuteria a exposiccedilatildeo do ldquoconceito de um eu
cuja unidade reside na unidade de uma narrativa que une o nascimento agrave vida e agrave
morte em forma de uma narrativa com comeccedilo meio e fimrdquo (MACINTYRE 2007 p
205)35
O conceito de eu como uma unidade narrativa vai dar a Macintyre a
oportunidade de passar para o segundo momento do seu conceito virtude que natildeo se
limita exclusivamente agraves praacuteticas O Prof Helder de Carvalho comenta sobre a
problemaacutetica de limitar o conceito de virtude ao conceito de praacuteticas
Se restringirmos a definiccedilatildeo do conceito de virtude ao acircmbito das praacuteticas fatalmente chegaremos a uma situaccedilatildeo em que a possibilidade do conflito traacutegico se efetiva uma situaccedilatildeo em que as pretensotildees de uma praacutetica podem ser incompatiacuteveis com as de outras ambas apontando para direccedilotildees diferentes de tal forma que podemos nos ver oscilando de um modo arbitraacuterio entre uma posiccedilatildeo e outra sem conseguirmos constituir propriamente uma escolha racional (CARVALHO 2001 p 14)
A superaccedilatildeo do elemento arbitraacuterio da vida moral e a consistecircncia do
conceito de virtude satildeo proporcionadas pelo conceito de unidade narrativa de uma
vida humana individual pensada integralmente A accedilatildeo humana deve pois ser
articulada por um tipo de narrativa histoacuterica que seja ldquoo gecircnero fundamental e
essencial para a caracterizaccedilatildeo das accedilotildees humanasrdquo (MACINTYRE 2007 p 208 )36 A
perspectiva narrativa garante que os diversos episoacutedios da vida de uma pessoa
ganhem lugar e sentido por que natildeo dizer inteligibilidade Com efeito essa unidade
34ldquoAnd the unity of a virtue in someonersquos life is intelligible only as a characteristc of a unitary life a life
that can be conceived and evaluated as a wholerdquo 35ldquoa concept of a self whose unity resides in the unity of a narrative which links birth to life to death as
narrative beginning to middle to endrdquo 36ldquonarrative history of a certain kind turns out to be basic and essential genre for the characterization of
human actionsrdquo
63
somente eacute possiacutevel porque segundo MacIntyre as accedilotildees estatildeo articuladas atraveacutes
de uma perspectiva histoacuterica Uma vida humana singular pode ser compreendida na
forma de uma narrativa e consequentemente a ela tambeacutem proporciona a
compreensatildeo da vida e da accedilatildeo dos outros
Eacute porque todos vivenciamos narrativas nas nossas vidas e porque entendemos nossa proacutepria vida nos termos das narrativas que vivenciamos que a forma de narrativa eacute adequada para se entender os atos de outras pessoas (MACINTYRE 1988 p 212)37
A Narrativa natildeo deve tambeacutem ser pensada exclusivamente de modo singular
pois as diversas narrativas se intercomunicam estatildeo relacionadas umas agraves outras
Prof Helder de Carvalho salienta que a ldquovida individual para MacIntyre consiste na
unidade de uma narrativa encarnada numa vida singular que na forma de atos e
palavras tenta responder sistematicamente agraves questotildees acerca do que eacute bom para o
indiviacuteduo e do que eacute bom para o homemrdquo (CARVALHO 2001 p 15) Com a resposta a
essas duas questotildees a saber o que eacute bom para o indiviacuteduo e para o homem se tem
a unidade da vida moral tanto individualmente quanto para um grupo Aleacutem disso
enfatiza MacIntyre ldquoa formulaccedilatildeo sistemaacutetica dessas duas questotildees e a tentativa de
respondecirc-las tanto em atos quanto em palavras que proporcionam unidade agrave vida
moralrdquo (MACINTYRE 2007 p 218)38
A unidade da vida moral deve ser pensada como uma unidade de busca
narrativa Esse conceito medieval possui duas caracteriacutesticas fundamentais
primeiramente a busca soacute pode se iniciar se houver ao menos uma noccedilatildeo de telos
isto eacute deve-se ter ao menos uma noccedilatildeo do seja o bem para o homem Esta primeira
caracteriacutestica eacute alcanccedilada atraveacutes da resposta agravequelas questotildees ora mencionadas
A segunda eacute a noccedilatildeo de que a busca natildeo se refere a algo jaacute adequadamente
caracterizado pois eacute no decorrer da busca e somente no enfrentamento de inuacutemeras
vicissitudes que se pode intuir meta da busca A busca tem pois um caraacuteter
pedagoacutegico no aprendizado moral e no processo de conhecimento de si
A relaccedilatildeo entre unidade narrativa da vida e a noccedilatildeo de busca aperfeiccediloam a
noccedilatildeo macintyreana de virtude
37ldquoIt is because we all live out narratives in our lives and because we understand our own lives in terms
of the narratives that we live out that the form of narrative is appropriate for understanding the actions of othersrdquo
38ldquoit is the systematic asking of these two questions and the attempt to answer them in deed as well as in word which provide the moral life with its unityrdquo
64
As virtudes portanto devem ser compreendidas como as disposiccedilotildees que aleacutem de nos sustentar e capacitar para alcanccedilar os bens internos agraves praacuteticas tambeacutem nos sustentam no devido tipo de busca pelo bem capacitando-nos a superar os males os riscos as tentaccedilotildees e as tensotildees com que nos deparamos e que nos forneceratildeo um autoconhecimento cada vez maior (MACINTYRE 2007 p 219)39
O conjunto das virtudes iraacute dar conta natildeo apenas dos elementos comunitaacuterios
nos quais a busca pelo bem eacute dada em conjunto mas inclui agora virtudes
necessaacuterias agrave investigaccedilatildeo acerca do caraacuteter do bem que se almeja MacIntyre
conclui afirmando que chegou a uma conclusatildeo provisoacuteria sobre a vida virtuosa para
o homem ldquoa vida virtuosa para o homem eacute a vida passada na procura da vida boa
para o homemrdquo (MACINTYRE 2007 p 219)40 Com efeito as virtudes que satildeo
necessaacuterias satildeo aquelas que mais proporcionarem esse entendimento Ademais elas
esclarecem em relaccedilatildeo aos bens natildeo apenas em relaccedilatildeo agraves praacuteticas mas tambeacutem agrave
vida individual proporcionada por uma unidade narrativa que rompe com a noccedilatildeo de
vida e tempo segmentados
424 Tradiccedilatildeo
O conceito de tradiccedilatildeo apresenta sua relevacircncia a partir da consciecircncia de
uma identidade individual que natildeo pode ser concebida arrancada da rede de
significados e dos contextos na histoacuteria das comunidades que forjaram esta mesma
identidade Deve-se pois pensar que eacute necessaacuteria ao indiviacuteduo a posse de uma
identidade histoacuterica Busca-se a identidade moral no interior da famiacutelia do bairro da
cidade sem natildeo entanto se estar obrigados a assumir o que Macintyre intitula de
limitaccedilotildees morais dessas particulares formas histoacutericas de comunidade O ponto de
partida da busca pela identidade histoacuterica eacute justamente as particularidades Iniciando
pelas particularidades busca-se o bem o universal
A identidade eacute em parte resultado daquilo que o indiviacuteduo herdou daqueles
que o precederam O presente de uma pessoa natildeo possui sentido independente das
39ldquoThe virtues therefore are to be understood as those dispositions which will not only sustain practices
and enable us to achieve the goods internal to practices but which will also sustain us in the relevant kind of quest for the good by enabling us to overcome the harms dangers temptations and distractions which we encounter and which will furnish us with increasing self-knowledge and increasing knowledge of the goodrdquo
40ldquothe good life for man is the life seeking are those which will enable us to understand what more and what else the good life for man isrdquo
65
marcas e influecircncia de um passado que natildeo eacute simplesmente aquilo que jaacute natildeo eacute
mas que manteacutem com o presente uma relaccedilatildeo na forma de um vigor de ter sido
Assim a pessoa se descobre como partiacutecipe de uma tradiccedilatildeo quer goste ou natildeo quer
reconheccedila ou natildeo Ao desenvolver o conceito de Praacuteticas MacIntyre afirmou que elas
sempre tecircm histoacuterias e o que elas satildeo dependem do modo como cada geraccedilatildeo a
compreende e a transmite
Neste sentido as virtudes sustentam relacionamentos necessaacuterios agraves praacuteticas
como tambeacutem sustentam a relaccedilatildeo com o passado pensado a partir do conceito de
tradiccedilatildeo Qual eacute pois o conceito macintyreano de tradiccedilatildeo Segundo MacIntyre ldquouma
tradiccedilatildeo viva eacute entatildeo uma argumentaccedilatildeo que se estende na histoacuteria e eacute socialmente
incorporada e eacute uma argumentaccedilatildeo em parte exatamente sobre os bens que
constituem tal tradiccedilatildeordquo (MACINTYRE 2007 p 222)41 A procura pelos bens no interior
de uma tradiccedilatildeo atravessa muitas vezes geraccedilotildees inteiras Assim sendo a procura
do bem individual natildeo acontece separada da tradiccedilatildeo mas eacute realizada sob as
circunstacircncias definidas pela tradiccedilatildeo da qual um indiviacuteduo eacute partiacutecipe Essa procura
se daacute em relaccedilatildeo aos bens internos agraves praacuteticas e tambeacutem aos bens de uma uacutenica
vida Isto significa que ldquohistoacuteria de uma praacutetica na nossa eacutepoca estaacute em geral e
caracteristicamente inserida na histoacuteria mais longa e ampla da tradiccedilatildeo e por meio
da qual a praacutetica se torna inteligiacutevel e chega assim agrave forma atual que nos foi
transmitidardquo (MACINTYRE 2007 p 222)42 A inteligibilidade da histoacuteria de cada pessoa
ganha seu sentido no interior da histoacuteria de cada tradiccedilatildeo
A sustentaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo sua conservaccedilatildeo e seu decliacutenio dependem do
exerciacutecio das virtudes que lhe satildeo correspondentes ou agrave falta dele Neste sentido as
virtudes tambeacutem servem como sustentaacuteculo para as tradiccedilotildees ou seja a permanecircncia
ou a extinccedilatildeo delas mantecircm relaccedilatildeo com o exerciacutecio das virtudes
A convicccedilatildeo de MacIntyre eacute a de que a falta de justiccedila sinceridade coragem
e de outras virtudes intelectuais correspondentes corrompem tradiccedilotildees mas tambeacutem
as praacuteticas que foram forjadas na proacutepria tradiccedilatildeo da qual elas (as praacuteticas) satildeo reflexo
(Cf MACINTYRE 2007 p 223) Haacute aqui a necessidade de se reconhecer a importacircncia
41ldquoA living tradition then is an historically extended socially embodied argument and an argument
precisely in part about the goods which constitute that traditionrdquo 42ldquothe history of a practice in our time is generally and characteristically embedded in and made
intelligible in terms of the larger and longer history of the tradition through which the practice in its present form was conveyed to usrdquo
66
das tradiccedilotildees das quais se faz parte no entendimento de suas possibilidades futuras
que o passado tornou disponiacutevel no presente
O uacuteltimo conceito da teoria moral de MacIntyre atraveacutes da noccedilatildeo de tradiccedilatildeo
complementa sua compreensatildeo do conceito de virtude A busca pelo bem do homem
natildeo tem sentido sem se considerar a tradiccedilatildeo que alimentou de experiecircncias
conceitos opiniotildees a identidade de uma pessoa Assim o autor compreende a moral
como uma relaccedilatildeo entre o eu o contexto social e a histoacuteria
Esta seccedilatildeo do trabalho explicitou o projeto de Depois da Virtude atraveacutes da
exposiccedilatildeo da segunda tarefa da obra que eacute formular uma teoria moral capaz de
resgatar a inteligibilidade do discurso moral Embora esta segunda tarefa aparente ter
sido ofuscada pelo grande descontentamento do autor em relaccedilatildeo agrave Filosofia Moral
Moderna o autor oferece uma alternativa agrave moral do dever ou uma moral utilitarista
Praacuteticas Unidade narrativa de uma vida humana individual e o conceito de Tradiccedilatildeo
compotildeem o conceito macintyreano de virtude e se constituem no nuacutecleo de sua teoria
moral
O proacuteximo passo eacute empreender uma anaacutelise agraves principais criacuteticas ao seu
pensamento e verificar um modo de como eacute possiacutevel defender a pertinecircncia de uma
Eacutetica das Virtudes dando continuidade a uma tarefa que o proacuteprio MacIntyre indicou
em sua obra apresentar como Tomaacutes de Aquino empreende uma reconciliaccedilatildeo entre
o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica como tambeacutem verificar de que modo o feito de
Tomaacutes ajuda a compreender a moral contemporacircnea
67
5 RECONCILIACcedilAtildeO ENTRE O PENSAMENTO CRISTAtildeO E O ARISTOTELISMO
A grandeza do pensamento de MacIntyre reside no esforccedilo que ele teve em
tentar estabelecer uma teoria moral ao modo de uma Eacutetica das Virtudes Entretanto
atraveacutes de seu proacuteprio testemunho vecirc-se que a suas consideraccedilotildees acerca do
pensamento de Tomaacutes de Aquino foram insuficientes ldquoPenso agora por exemplo que
a minha criacutetica anterior agraves teses de Santo Tomaacutes sobre a unidade das virtudes estava
simplesmente errada devido em parte a uma leitura equivocada do Aquinaterdquo
(MACINTYRE 2001a p 8) Assim sendo a segunda parte deste trabalho assume como
objetivo principal a apresentaccedilatildeo da Reconciliaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo Biacuteblica e o
Aristotelismo
A presente pesquisa jaacute sinalizou que embora MacIntyre seja devedor do
pensamento de Gertrude Anscombe eles possuem posicionamentos diferentes
acerca da antropologia Anscombe sugere que o ponto de partida estaacute numa
psicologia filosoacutefica enquanto que MacIntyre abre matildeo desta antropologia por
consideraacute-la uma lsquobiologia metafiacutesicarsquo cujo conceito de homem seria lsquoahistoacutericorsquo e
lsquoaculturalrsquo distanciando-se assim do meacutetodo histoacuterico por ele utilizado
Posteriormente MacIntyre volta atraacutes e assume a biologia aristoteacutelica no conceito de
homem Esta pesquisa compartilha com Anscombe a consciecircncia da necessidade de
uma psicologia filosoacutefica e segundo esta perspectiva daraacute continuidade agrave tarefa
indicada por MacIntyre
A ideia de uma reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo cristatilde inclui a
necessidade de uma retomada do pensamento de Aristoacuteteles Na dinacircmica entre atos
e virtudes Aristoacuteteles considera que as accedilotildees possuem certa precedecircncia sobre as
disposiccedilotildees Ele afirma na EN II 1-2 que ldquoeacute a partir dos atos repetidos em uma certa
direccedilatildeo que adquirimos as disposiccedilotildees correspondentesrdquo Os atos tambeacutem
prevalecem sobre a disposiccedilatildeo por maior que seja o haacutebito de um agente ele sempre
pode em relaccedilatildeo a cada accedilatildeo particularmente agir diferentemente Dessa maneira
sendo as virtudes um modo de disposiccedilatildeo da alma elas natildeo podem prescindir de uma
reflexatildeo sobre a teoria dos atos
Entre as objeccedilotildees que podem ser feitas agrave proposta moral de MacIntyre eacute que o
autor de certo modo potildee o conceito de virtude como conceito primordial
68
prescindindo assim de uma elaboraccedilatildeo teoacuterica que eacute anterior e condicionante ao
conceito de virtude que eacute uma teoria das accedilotildees A consideraccedilatildeo das virtudes a partir
de uma teoria das accedilotildees ao contraacuterio do que se poderia pensar natildeo representa um
retorno agrave centralidade das accedilotildees em detrimento da centralidade do agente o que seria
uma contradiccedilatildeo agrave criacutetica da moral deontoloacutegica
Embora o caraacuteter do agente seja crucial para Aristoacuteteles a sua relevacircncia para
o julgamento de uma accedilatildeo proveacutem do fato de que uma accedilatildeo eacute entendida de tal maneira
que inviabiliza um procedimento fundado em regras previamente estipuladas Essa
compreensatildeo segundo Marco Zingano eacute o que favorece a busca por um agente
moralmente bom quando devemos descobrir qual eacute a coisa certa para ser feita (cf
ZINGANO 2010 p 32) A questatildeo fundamental estaacute natildeo em afirmar que um ato
moralmente bom eacute o que deve ser feito por um agente que eacute igualmente bom mas
em reconhecer que um ato eacute bom porque corresponde agraves propriedades de evitar o
viacutecio seja na falta ou no excesso Tornar-se bom eacute a qualidade do agente que
frequentemente agiu desse modo Neste sentido eacute possiacutevel afirmar que o lugar
relevante das virtudes deve-se pois agrave certa teoria das accedilotildees
Afirmar que a centralidade das virtudes depende das accedilotildees natildeo desfaz a
importacircncia das virtudes mas agraves coloca numa posiccedilatildeo secundaacuteria em relaccedilatildeo agraves
accedilotildees Uma vez que elas derivam das accedilotildees eacute compreensiacutevel vecirc-las como efeito de
boas accedilotildees Desse modo eacute importante compreender que a eacutetica de Aristoacuteteles eacute uma
Eacutetica das Virtudes natildeo porque as virtudes sejam fundamento do bem agir mas porque
as virtudes estatildeo fundamentadas em accedilotildees das quais as virtudes sinalizam que satildeo
moralmente boas Assim sendo faz-se necessaacuteria uma exposiccedilatildeo da teoria
aristoteacutelica dos atos
A teoria dos atos exposta na EN proporciona a compreensatildeo dos
fundamentos de filosofia moral de Aristoacuteteles Segundo Henrique de Lima Vaz essa
filosofia traz consigo elementos cosmocecircntricos Por sua vez alguns desses
elementos seratildeo retomados por Tomaacutes de Aquino o qual realizaraacute um processo que
se denomina aqui de reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo e a filosofia de
Aristoacuteteles A exposiccedilatildeo dos pontos fundamentais desta reconciliaccedilatildeo se constitui na
tarefa mais fundamental deste trabalho O alcance deste objetivo se constitui
conforme se compreende aqui na continuidade da tarefa deixada em aberto por
MacIntyre em Depois da Virtude Esta tarefa eacute necessaacuteria uma vez que se pode
69
afirmar que muitos dos conceitos morais contemporacircneos possuem um conteuacutedo
semacircntico influenciado pelo pensamento cristatildeo Os conceitos a que esta pesquisa se
refere satildeo o de intenccedilatildeo consciecircncia obrigaccedilatildeo liberdade livre-arbiacutetrio e felicidade
Muitos destes conceitos ou natildeo foram aprofundados pelos gregos ou foram ateacute
desconhecidos deles
O posicionamento fundamental deste trabalho eacute o de que a exposiccedilatildeo do modo
como Tomaacutes de Aquino promove a retomada do pensamento aristoteacutelico na filosofia
moral compatibilizando-o com o pensamento cristatildeo garante de certa maneira uma
consciecircncia de que conceitos importantes da filosofia moral natildeo satildeo os mesmos se
essa leitura cristatilde natildeo for considerada
O elemento central desta compatibilizaccedilatildeo se encontra na siacutentese entre o
horizontalismo da moral aristoteacutelica e o verticalismo da Teologia Cristatilde Embora estes
dois conceitos ainda mereccedilam um melhor esclarecimento esta siacutentese se constitui
como princiacutepio que guia o problema tomista da Beatitude e do Fim uacuteltimo do homem
Aristoacuteteles seguindo a articulaccedilatildeo da Eacutetica Antiga tem a Eudaimonia como ideia
central da vida moral Tomando esta ideia sob a acepccedilatildeo de Beatitude Tomaacutes de
Aquino ultrapassa a ideia aristoteacutelica primitiva de Eudaimonia rompendo assim com
os cosmocentrismo da Eacutetica Antiga na qual a moral aristoteacutelica tambeacutem estava
inserida
O desenvolvimento deste capiacutetulo cumpre a seguinte orientaccedilatildeo
primeiramente analisar a teoria aristoteacutelica dos atos como tambeacutem a retomada e o
desenvolvimento tomista dos conceitos necessaacuterios agraves accedilotildees Em seguida discutir de
que maneira os elementos da teoria aristoteacutelica dos atos satildeo retomados e que
encaminhamentos eles tecircm com o pensamento cristatildeo Finalmente deve-se
desenvolver o modo como Tomaacutes de Aquino ultrapassa o cosmocentrismo da eacutetica
de Aristoacuteteles
51 AS VIRTUDES E A TEORIA ARISTOTEacuteLICA DOS ATOS ndash EN III 1-8
Foi afirmado que Aristoacuteteles assumia uma posiccedilatildeo de precedecircncia dos atos em
relaccedilatildeo agraves virtudes Para essa finalidade preferir-se-aacute o texto da EN em virtude de
seu peso na Tradiccedilatildeo pelo modo como a obra estaacute articulada e pela significaccedilatildeo que
70
a obra conquistou na histoacuteria da filosofia moral Esta seccedilatildeo se dedica a mostrar como
o estagirita desenvolve sua teoria dos atos cuja seccedilatildeo se situa no livro III 1-8
Aristoacuteteles inicia a seccedilatildeo da EN esclarecendo que a virtude diz respeito a
emoccedilotildees e accedilotildees e de que maneira os atos voluntaacuterios satildeo louvados ou censurados
ao passo que os involuntaacuterios satildeo objeto de perdatildeo e por vezes de piedade Em
seguida ele assinala a importacircncia de os estudiosos da virtude e os legisladores
definirem o voluntaacuterio e o involuntaacuterio (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III
1 1109 b30)
511 Do voluntaacuterio e do involuntaacuterio
A primeira questatildeo relevante acerca das accedilotildees eacute a compreensatildeo dos atos
voluntaacuterios e involuntaacuterios Existe uma voluntariedade em relaccedilatildeo a coisas exteriores
na forma de causas motoras quando estas de apresentam na forma de bem
Contrariamente o involuntaacuterio diz respeito aos moacutebeis externos quando estes se
apresentam de modo forccediloso ou por ignoracircncia ldquoParecem ser involuntaacuterias as accedilotildees
praticadas por forccedila ou por ignoracircncia Eacute forccediloso o ato cujo princiacutepio eacute exterior ao
agente princiacutepio para o qual o agente ou paciente em nada contribuirdquo (ARISTOacuteTELES
Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a1)43
Existem accedilotildees que se desenvolvem de uma maneira mista Aristoacuteteles chama
a atenccedilatildeo para accedilotildees realizadas por meio de males maiores e estas mesmo
indesejadas satildeo assumidas em virtude das circunstacircncias Assim ele diz dos
navegantes que para evitar o naufraacutegio se livram da carga Embora forccediladas estas
accedilotildees se assemelham agraves accedilotildees voluntaacuterias pois ldquosatildeo escolhidas no momento em que
satildeo praticadas e o fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeo Voluntaacuterio e involuntaacuterio
entatildeo devem ser ditos com referecircncia ao momento em que se pratica a accedilatildeordquo
(ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a10)44
Haacute um elemento curioso nesta uacuteltima afirmaccedilatildeo de Aristoacuteteles quando este diz
que o fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeo Corriqueiramente se diz que a finalidade
natildeo pertence agrave deliberaccedilatildeo do agente Talvez seja possiacutevel afirmar que existe uma
classe de fins que sejam abertos agrave eleiccedilatildeo do agente ou ainda que o fim de uma
43 ldquoβίαιον δὲ οὗ ἡ ἀρχὴ ἔξωθεν τοιαύτη οὖσα ἐν ᾗ μηδὲν συμβάλλεται ὁ πράττων ἢ ὁ πάσχωrdquo 44 ldquoκαὶ τὸ ἑκούσιον δὴ καὶ τὸ ἀκούσιον ὅτε πράττει (15) λεκτέονrdquo
71
accedilatildeo tenha certa dinamicidade pois ldquoo fim da accedilatildeo se daacute conforme a ocasiatildeordquo
(ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1 1110 a10)45 Este foi o caso por
exemplo dos navegantes que antes tinham o objetivo de levar a carga mas diante
da tempestade livraram-se da carga a fim de salvar suas vidas Intimamente os
navegantes natildeo gostariam de se livrar da carga entretanto voluntariamente a
jogaram no mar
Deve-se afirmar tambeacutem que para ser involuntaacuteria natildeo eacute o bastante um ato
ser forccedilado mas se deve acrescentar que aleacutem de ser forccedilado um ato natildeo deve
possuir nenhuma contribuiccedilatildeo do agente como princiacutepio da accedilatildeo e mais ainda
provocarem dor e arrependimento (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 1
1110 b20)46 Do involuntaacuterio forccedilado conclui-se que deve ser externo forccedilado e
penoso ao agente
Da accedilatildeo por ignoracircncia Aristoacuteteles estabelece distinccedilotildees na forma de natildeo-
voluntaacuterio e involuntaacuterio Todo ato feito por ignoracircncia eacute natildeo voluntaacuterio (cf
ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 2 1110 b20)47 mas somente merece o
nome de involuntaacuterio aquele ato que realizado por ignoracircncia causou o
arrependimento O agente que por ignoracircncia realizou uma accedilatildeo mas natildeo se
arrependeu merece que sua accedilatildeo seja chamada apenas de natildeo voluntaacuteria
Aristoacuteteles tambeacutem distingue o agir por ignoracircncia e o agir em estado de
ignoracircncia (cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 2 1110 b25)48 O agir em
estado de ignoracircncia se refere ao caso de algueacutem que por alguma causa qualquer
que lhe tire da ciecircncia do ato a exemplo de um becircbado ou de um homem
encolerizado tornou-se ignorante do que estava a fazer Haacute tambeacutem exemplos de
homens que deliberadamente ignoram o que deveriam fazer Esse eacute o caso do
homem perverso que por ignorar o que deveria fazer merece ser chamado de injusto
ou de mau Eacute involuntaacuterio tambeacutem o ato de algueacutem que ignora natildeo deliberadamente
alguma das circunstacircncias particulares nas quais uma accedilatildeo se desenvolve Entre os
criteacuterios para que uma accedilatildeo por causa da ignoracircncia seja involuntaacuteria deve-se
acrescentar o sofrimento do agente e o seu arrependimento
45 ldquoτὸ δὲ τέλος τῆς πράξεως κατὰ τὸν καιρόν ἐστινrdquo 46 ldquoτοῦ δὴ κατὰ τὴν τοιαύτην ἄγνοιαν ἀκουσίου λεγομένου (20) ἔτι δεῖ τὴν πρᾶξιν λυπηρὰν εἶναι καὶ ἐν
μεταμελείᾳrdquo 47 ldquoτὸ δὲ δι᾽ ἄγνοιαν οὐχ ἑκούσιον μὲν ἅπαν ἐστίνrdquo 48 ldquoἕτερον δ᾽ (25) ἔοικε καὶ τὸ δι᾽ ἄγνοιαν πράττειν τοῦ ἀγνοοῦνταrdquo
72
Os atos forccedilados assim como os atos por ignoracircncia comportam igualmente
a caracteriacutestica de serem penosos ao agente contudo o ser penoso dos atos forccedilados
natildeo parece se identificar com o penoso dos atos por ignoracircncia Com efeito o penoso
dos atos forccedilados eacute um sofrimento infringido pela circunstacircncia enquanto o dos atos
por ignoracircncia eacute um sofrimento infringido pelo proacuteprio agente em virtude de seu
arrependimento Os atos voluntaacuterios satildeo aqueles cujo princiacutepio reside no agente que
conhece as circunstacircncias particulares nas quais ocorre a accedilatildeo (Cf ARISTOacuteTELES
Ethica Nicomachea 2010 III 3 1111 a25)49
512 A escolha deliberada
Mais apropriada agrave virtude e a discriminar o caraacuteter do que as accedilotildees Aristoacuteteles
entende que a escolha deliberada eacute por um lado voluntaacuteria e por outro involuntaacuteria
(Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 4 1111 b5)50 A ideia geral eacute a de que
a escolha deliberada eacute um modo mais especiacutefico do voluntaacuterio sendo este mais
abrangente do que ela O exemplo geral eacute o das crianccedilas que apesar de terem atos
voluntaacuterios natildeo possuem ainda escolha deliberada
A escolha deliberada diz respeito aos atos que estatildeo ao alcance do agente e
que concernem agravequilo que conduz ao fim O exemplo eacute o do desejo da sauacutede no qual
a escolha deliberada proporciona as coisas necessaacuterias agrave sauacutede (cf ARISTOacuteTELES
Ethica Nicomachea 2010 III 4 1111 b25 51 Assim esta escolha se refere agrave obtenccedilatildeo
do que se deve obter e agrave fuga do que se deve evitar Escolhe-se deliberadamente
quando se sabe que uma coisa eacute boa Deste modo ldquoa escolha deliberada eacute
acompanhada de pensamento e de reflexatildeordquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010
III 4 1112 a15)52
No paraacutegrafo V do livro III a conclusatildeo eacute a de que o objeto da escolha
deliberada eacute o objeto do desejo deliberado daquilo que estaacute em poder do agente A
escolha deliberada eacute o desejo deliberativo pois julgando em funccedilatildeo de ter deliberado
49 ldquoτὸ ἑκούσιον δόξειεν ἂν εἶναι οὗ ἡ ἀρχὴ ἐν αὐτῷ εἰδότι τὰ καθ᾽ ἕκαστα ἐν οἷς ἡ πρᾶξιςrdquo 50 ldquoἡ προαίρεσις δὴ ἑκούσιον μὲν φαίνεται οὐ ταὐτὸν δέ ἀλλ᾽ ἐπὶ πλέον τὸ ἑκούσιον τοῦ μὲν γὰρ
ἑκουσίου καὶ παῖδες καὶ τἆλλα ζῷα κοινωνεῖ προαιρέσεως δ᾽ οὔ καὶ τὰ ἐξαίφνης (10) ἑκούσια μὲν λέγομεν κατὰ προαίρεσιν δ᾽rdquo
51 ldquoἔτι δ᾽ ἡ μὲν βούλησις τοῦ τέλους ἐστὶ μᾶλλον ἡ δὲ προαίρεσις τῶν πρὸς τὸ τέλος οἷον ὑγιαίνειν βουλόμεθα προαιρούμεθα δὲ δι᾽ ὧν ὑγιανοῦμεν καὶ εὐδαιμονεῖν βουλόμεθα μὲν καὶ φαμέν προαιρούμεθα δὲ λέγειν οὐχ ἁρμόζει ὅλως (30) γὰρ ἔοικεν ἡ προαίρεσις περὶ τὰ ἐφ᾽ ἡμῖν εἶναιrdquo
52 ldquoἡ γὰρ προαίρεσις μετὰλόγου καὶ διανοίαςrdquo
73
deseja-se conforme o deliberado A deliberaccedilatildeo poreacutem refere-se apenas aos meios
que conduzem a um fim (Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 5 1112 b30)53
513 A definiccedilatildeo do objeto do querer
A reflexatildeo aristoteacutelica em torno do querer ou do desejo racional eacute um debate
latente entre as teses platocircnicas e sofistas que seraacute exposta a seguir Aleacutem disso
muito mais do que uma simples siacutentese entre esses dois posicionamentos Aristoacuteteles
inaugura uma perspectiva nova em torno da teoria das accedilotildees a saber a compreensatildeo
de que o bem aparente eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria ao bem embora natildeo lhe seja
suficiente (Cf ZINGANO 2010 p 193) A tese geral de Aristoacuteteles eacute a de que para uma
coisa ser tomada como fim deve ser tomada como tal pelo agente isto eacute no processo
de direcionamento em busca do bem a questatildeo fundamental eacute como o agente
percebe um determinado objeto O texto aristoteacutelico abre a discussatildeo em torno de se
o querer diz respeito ao fim
Foi dito que o querer concerne ao fim mas a uns parece concernir ao bem a outros ao bem aparente Aos que dizem que o objeto do querer eacute o bem decorre que natildeo eacute objeto do querer o que quer aquele que natildeo escolhe corretamente (pois se for objeto do querer seraacute entatildeo um bem era no entanto no caso um mal) por sua vez aos que dizem que o bem aparente eacute objeto do querer decorre que natildeo existe objeto do querer por natureza mas eacute objeto do querer o que parece bom a cada um (a pessoas diferentes coisas diferentes parecem boas mesmo no caso coisas contraacuterias) (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113 a15 )54
A referecircncia agrave filosofia platocircnica pode ser reconhecida pela proposiccedilatildeo de que
o bem eacute objeto do querer e que apenas este o bem poderia ser o seu objeto Note-
se que o termo original para fim eacute τέλους e que o querer βούλησις se direciona a este
fim porque ele eacute um bem enquanto tal τἀγαθοῦ O inconveniente desta tese para
Aristoacuteteles eacute o fato de que se apenas o bem eacute objeto do querer implica dizer que a
escolha errada tambeacutem seria um bem uma vez que de certo modo tambeacutem ela eacute
querida Assim sendo o fato de os agentes escolherem errado permite concluir que
53 ldquoοὐ γὰρ ἂν εἴη βουλευτὸν τὸ τέλος ἀλλὰ τὰ πρὸς τὰ τέλη οὐδὲ δὴ τὰ καθ᾽ ἕκασταrdquo 54 ldquoἡ δὲ βούλησις ὅτι μὲν τοῦ τέλους ἐστὶν εἴρηται δοκεῖ δὲ τοῖς μὲν τἀγαθοῦ εἶναι τοῖς δὲ τοῦ φαινομένου
ἀγαθοῦ [] συμβαίνει δὲ τοῖς μὲν [τὸ] βουλητὸν τἀγαθὸν λέγουσι μὴ εἶναι βουλητὸν ὃ βούλεται ὁ μὴ ὀρθῶς αἱρούμενος (εἰ γὰρ ἔσται βουλητόν καὶ ἀγαθόν ἦν δ᾽ εἰ οὕτως ἔτυχε κακόν) (20) τοῖς δ᾽ αὖ τὸ φαινόμενον ἀγαθὸν βουλητὸν λέγουσι μὴ εἶναι φύσει βουλητόν ἀλλ᾽ ἑκάστῳ τὸ δοκοῦν ἄλλο δ᾽ ἄλλῳ φαίνεται καὶ εἰ οὕτως ἔτυχε τἀναντίαrdquo
74
o τἀγαθοῦ unicamente natildeo pode ser o uacutenico objeto do querer a menos que se queira
considerar a escolha errada tambeacutem um bem
Jaacute a referecircncia agrave posiccedilatildeo sofista daacute-se em virtude da tese de que o bem eacute um
modo particular de sentir-se atraiacutedo por um objeto que dependendo da disposiccedilatildeo do
agente apresenta-se como bem O φαινομένου ἀγαθοῦ tambeacutem seria um moacutebil do
querer
Apoacutes as objeccedilotildees agraves teses tradicionais Aristoacuteteles comeccedila a expor sua tese
na forma de pergunta ldquose entatildeo estas posiccedilotildees natildeo satildeo satisfatoacuterias natildeo se deve
dizer que eacute objeto do querer sem mais e segundo a verdade o bem enquanto o que
aparece a cada um eacute o bem aparenterdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6
1113 a20)55 Aristoacuteteles entende que primeiramente tanto o homem virtuoso quanto
o de pouco valor desejam um objeto que lhes parece bom entretanto apenas o
virtuoso eacute capaz de querer um objeto verdadeiramente bom Sendo a virtude
consolidada pelo haacutebito o homem virtuoso eacute aquele que aprendeu em termos praacuteticos
a querer o bem Este bem eacute de maior relevacircncia do que um bem aparente φαινομένου
ἀγαθοῦ porque por causa do exerciacutecio das virtudes o homem virtuoso aprendeu a
distinguir o bem e o que apenas tem aparecircncia de bem Entretanto Aristoacuteteles daacute a
entender que o φαινομένου ἀγαθοῦ eacute primeiro a todos os homens na ordem do querer
ldquomas eacute o objeto do querer o que parece bom a cada umrdquo (ARISTOacuteTELES Ethica
Nicomachea 2010 III 6 1113 a20)56
Esta parece ser uma tese central de Aristoacuteteles certamente eacute bom o bem
enquanto tal entretanto eacute necessaacuterio que independente de ser um bem real uma
coisa apareccedila como um bem isto eacute seja tomada como tal pelo agente Esta eacute a
conclusatildeo do prof Marco Zingano sobre esta seccedilatildeo
Parecer um bem ou seja ser um φαινομένου ἀγαθοῦ natildeo eacute meramente uma aparecircncia de caraacuteter enganador como que o platonismo mas eacute principalmente a condiccedilatildeo loacutegica do bem humano isto eacute sua intencionalidade que pode secundariamente se revelar como uma crenccedila falsa um bem aparente no sentido platocircnico do termo (Cf ZINGANO 2010 p 193)
A questatildeo fundamental neste caso natildeo estaacute num caraacuteter pejorativo de uma
aparecircncia de bem que apetece ao querer mas no modo como o ser humano vai se
55 ldquoεἰ δὲ δὴ ταῦτα μὴ ἀρέσκει ἆρα φατέον ἁπλῶς μὲν καὶ κατ᾽ ἀλήθειαν βουλητὸν εἶναι τἀγαθόν ἑκάστῳ
δὲ τὸ φαινόμενονrdquo 56 ldquoτοῖς δ᾽ αὖ τὸ φαινόμενον ἀγαθὸν βουλητὸν λέγουσι μὴ εἶναι φύσει βουλητόνrdquo
75
relacionar com essa representaccedilatildeo Aristoacuteteles tem claro que sem a aparecircncia de
bem natildeo existe a apetecircncia pelo objeto mas ela natildeo dispensa o julgamento do ser
humano ldquoO homem virtuoso julga corretamente (κρίνειὀρθῶς) cada coisa e em cada
uma a verdade se manifesta a elerdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113
a30)57 Pelo julgamento correto κρίνειὀρθῶς o homem chega agrave visatildeo do verdadeiro
em cada coisa O homem virtuoso eacute pois natildeo apenas aquele que age frequentemente
bem mas o que toma posse das razotildees pelas quais age e as tem diante de si e isto
faz dele um homem prudente Se pela phroacutenesis a virtude intelectual eacute posta em
relevo no homem virtuoso suas disposiccedilotildees satildeo moralmente boas
O papel da phroacutenesisna restringe apenas agraves virtudes intelectuais Existe uma
relaccedilatildeo entre a phroacutenesise as virtudes morais assim como existe relaccedilatildeo entre a
phroacutenesise a empeiria Marcelo Perine esclarece este caraacuteter paradigmaacutetico da
phroacutenesis
Aristoacuteteles vai mostrar que phroacutenesis eacute um estado habitual cognitivo isto eacute racional e por isso eacute uma virtude intelectual que contudo pressupotildee seja um estado desiderativo portanto natildeo-racional seja um estado cognitivo natildeo-racional que eacute justamente a experiecircncia (PERINE 2006 p 28)
O objetivo da phroacutenesis satildeo bens humanos e estes satildeo alcanccedilados a medida
que podem estar em consonacircncia com a phroacutenesis Natildeo eacute a toa que o debate entre o
ato voluntaacuterio e o involuntaacuterio envolva aquilo que aparece como bem e o que necessita
de um posterior discernimento Assim nesse processo de desvelamento natildeo se
deixar de lado a importacircncia das intenccedilotildees
Aristoacuteteles natildeo parece citar o termo intencionalidade nas questotildees praacuteticas
mas ela parece estar latente nesta questatildeo da aparecircncia de bem Aristoacuteteles tem claro
que sem a aparecircncia de bem natildeo existe a apetecircncia pelo objeto mas ela natildeo
dispensa o julgamento do ser humano Pelo julgamento correto κρίνειὀρθῶς o
homem chega agrave visatildeo do verdadeiro em cada coisa
A aparecircncia de bem muito mais do que uma aparecircncia enganadora constitui-
se como modus cognoscendi preparatoacuterio e necessaacuterio ao julgamento correto e agrave
visatildeo da realidade da coisa em niacutevel praacutetico Assim ateacute mesmo as coisas que
posteriormente satildeo constatadas como boas tambeacutem requerem uma aparecircncia de
bem e no caso destas um bem real Assim o homem virtuoso eacute pois natildeo apenas
57 ldquoἕκαστα κρίνει ὀρθῶς καὶ ἐν ἑκάστοις τἀληθὲς αὐτῷ φαίνεταιrdquo
76
aquele que age frequentemente bem mas o que toma posse das razotildees pelas quais
age e as tem diante de si e isto faz dele um homem prudente Marco Zingano
acrescenta que
enquanto no homem prudente φρόνιμοςeacute ressaltado o papel da virtude intelectual que opera no interior das virtudes morais no homem virtuoso σπουδαίoς o que eacute posto em relevo eacute o fato de suas disposiccedilotildees serem virtuosas ou moralmente boas (ZINGANO 2010 p 197)
Neste sentido o domiacutenio da virtude pode ser delineado natildeo apenas pelo
homem prudente enquanto capaz de ponderar o que seria a virtude num determinado
caso mas tambeacutem pelo homem virtuoso que eacute capaz e age segundo esta virtude A
relaccedilatildeo entre bem e verdade para Aristoacuteteles inclui agora certo ordenamento
primeiramente aquilo que aparece como bem natildeo eacute necessariamente bom e por isto
mesmo necessita passar pelo julgamento do homem prudente φρόνιμος para em
seguida revelar-se como verdadeiramente boa ou natildeo
A partir do esclarecimento aristoteacutelico entre escolha deliberada e querer
esclarece-se qual o domiacutenio de cada um destes atos e consequentemente qual sua
relaccedilatildeo com as virtudes pertence ao querer ter o fim por objeto enquanto os meios
para alcanccedilaacute-lo dizem respeito agrave escolha deliberada Neste sentido compreende-se
que o fim eacute apenas reconhecido isto eacute natildeo se constitui como objeto de escolha O
acircmbito das escolhas satildeo os meios isto eacute as accedilotildees que dizem respeito a elas satildeo por
escolha delibera e voluntaacuterias Aristoacuteteles completa dizendo que ldquoas atividades das
virtudes envolvem estas coisasrdquo (ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea 2010 III 7 1113
b5) A conclusatildeo de Aristoacuteteles eacute a de que escolha deliberada relaciona-se diretamente
agraves virtudes uma vez que elas satildeo meio e sobre elas se pode deliberar Assim sendo
um entendimento adequado das virtudes requer a distinccedilatildeo entre a escolha deliberada
e os diversos outros atos humanos
Ao final do tratado dos atos Aristoacuteteles se posiciona acerca do que vem a ser
o engano no julgamento em relaccedilatildeo agraves accedilotildees ldquoagrave turba do engano parece engendrar-
se devido ao prazer pois natildeo sendo de fato um bem parece serrdquo (ARISTOacuteTELES
Ethica Nicomachea 2010 III 6 1113 b1) Com isso talvez seja possiacutevel afirmar que
para Aristoacuteteles o prazer de certo modo natildeo contribui com o voluntaacuterio
Tomaacutes de Aquino adota uma postura distinta de Aristoacuteteles neste ponto preciso
Segundo ele o desejo sensiacutevel caminhando no mesmo sentido da vontade para um
77
certo bem contribui para aumentar o caraacuteter voluntaacuterio das accedilotildees ou seja a
sensibilidade formada pela virtude pode por vezes participar de uma accedilatildeo boa
Assim a conclusatildeo que Tomaacutes de Aquino propotildee eacute dizer que a causa do involuntaacuterio
natildeo estaacute necessariamente no desejo sensiacutevel embora ele possa eventualmente
obscurecer o juiacutezo
52 A SIacuteNTESE TOMISTA ATOS HUMANOS E FILOSOFIA MORAL
A tarefa a ser desenvolvida agora se refere agrave necessidade de desenvolver os
conceitos relevantes da teoria tomista dos atos e a partir deles aprofundar em que
medida Tomaacutes de Aquino opera uma siacutentese entre o pensamento grego e a Tradiccedilatildeo
Cristatilde Eacute impressionante como a alguns dos conceitos de Tomaacutes de Aquino encontram
traduzem bem o que Aristoacuteteles tratou em sua teoria dos atos
A distinccedilatildeo tomista entre o irasciacutevel e o concupisciacutevel corresponde a esta
observaccedilatildeo aristoteacutelica sobre o voluntaacuterio e o involuntaacuterio Pode-se afirmar que o
concupisciacutevel estaacute como moacutebil externo em relaccedilatildeo ao voluntaacuterio enquanto o irasciacutevel
estaacute como moacutebil externo em relaccedilatildeo ao involuntaacuterio Neste sentido eacute possiacutevel afirmar
que Tomaacutes de Aquino aprofunda o conceito aristoteacutelico de voluntaacuterio e involuntaacuterio
Qual o aprofundamento que Tomaacutes de Aquino promove Primeiramente uma
coisa apeteciacutevel nem sempre eacute da ordem da razatildeo como objeto proacuteprio pois eacute
possiacutevel haver um moacutebil apenas do apetite sensitivo ou concupisciacutevel Outro elemento
fundamental eacute que Tomaacutes compreende que o voluntaacuterio natildeo significa
necessariamente o livre pois a vontade pode natildeo seguir necessariamente agrave
iluminaccedilatildeo da inteligecircncia Neste caso a adesatildeo eacute fruto da eleiccedilatildeo do livre-arbiacutetrio
mas natildeo eacute necessariamente expressatildeo da liberdade enquanto tal
Tomaacutes tambeacutem aprofunda a ideia de intencionalidade que apenas de modo
latente podia-se encontrar na Eacutetica a Nicocircmacos Com efeito Tomaacutes de Aquino vai
retomar o problema da intencionalidade expressamente com este termo O autor
assume a posiccedilatildeo de que o bem que eacute objeto do querer ou da vontade natildeo precisa
necessariamente ser um bem na coisa mesma mas um bem apreendido Deste
modo o querer se move em direccedilatildeo a uma coisa que foi apreendida como um bem
Pode-se concluir portanto que o bem aparente seja uma condiccedilatildeo necessaacuteria
embora natildeo suficiente para se saber se alguma coisa eacute realmente boa A teoria tomista
78
dos atos segue aprofundando ou forjando novos conceitos que doravante faratildeo parte
da Eacutetica Ocidental Eacute em virtude desta influecircncia que a exposiccedilatildeo da teoria tomista
dos atos se justifica
521 Os atos humanos em Santo Tomaacutes de Aquino
O proacutelogo da Prima Secundae da Suma Teoloacutegica inicia com a afirmaccedilatildeo
de que eacute pelo livre-arbiacutetrio que o homem eacute imagem de Deus Eacute em virtude da posse
de seu agir isto eacute do poder agir por si mesmo que o homem se assemelha a Deus
O tema biacuteblico da semelhanccedila entre Deus e o homem eacute que vai orientar o estudo dos
atos humanos em Tomaacutes de Aquino O homem vai unir-se ao seu exemplar divino na
bem-aventuranccedila prometida E sendo esta o fim do homem o tema biacuteblico da
semelhanccedila pelo livre-arbiacutetrio e a noccedilatildeo de fim do homem promove atraveacutes de
Tomaacutes uma siacutentese entre o pensamento grego e o pensamento cristatildeo
O estudo dos atos humanos em Tomaacutes de Aquino engloba o tratado das
paixotildees com o objetivo de aprofundar de que maneira a sensibilidade pode contribuir
aos atos voluntaacuterios de modo que este estudo pode ser apresentado como um dos
mais profundos acerca do agir humano no plano moral Faz-se necessaacuterio pois uma
apresentaccedilatildeo do plano conjunto do trabalho de Tomaacutes de Aquino para
posteriormente refletir acerca das particularidades em relaccedilatildeo agrave temaacutetica da
reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e a Tradiccedilatildeo Biacuteblica
A beatitude eacute a condiccedilatildeo mais almejada pelo cristatildeo Ela se constitui na visatildeo
amante de Deus eacute a bem-aventuranccedila A teoria dos atos humanos se encontra em
consonacircncia com a beatitude pois ela eacute o fim uacuteltimo do homem Neste sentido pode-
se afirmar que a eacutetica de Santo Tomaacutes eacute uma eacutetica da felicidade o que se encontra
profundamente em sintonia com a mensagem das bem-aventuranccedilas mas tambeacutem
se harmoniza com a moral aristoteacutelica enquanto uma eacutetica dos fins
O ser humano se encaminha agrave felicidade de modo particular A felicidade eacute
pois fruto das accedilotildees particulares auxiliadas pela graccedila de Deus Desse modo as
accedilotildees humanas devem ser compreendidas em seus aspectos fundamentais a saber
uma dimensatildeo voluntaacuteria obra de uma vontade livre que o estudo sobre os atos
humanos contempla e uma dimensatildeo ligada agrave sensibilidade contemplada no estudo
sobre as paixotildees da alma
79
522 Sindeacuterese e consciecircncia
Segundo Tomaacutes de Aquino a sindeacuterese eacute um habitus (cf AQUINO Tomaacutes
de S Th I 79 a12)58 Uma compreensatildeo adequada da Sindeacuterese exige um
aprofundamento acerca do modus operandi do raciociacutenio humano O intelecto em
virtude de seu objeto quando raciocina acerca de coisas inteligiacuteveis diz-se que se
ldquomoverdquo como um intelecto especulativo e quando raciocina sobre coisas da accedilatildeo se
move como uma razatildeo praacutetica Assim como haacute princiacutepios de ordem especulativa os
princiacutepios praacuteticos se relacionam agrave sindeacuterese como um habito natural especial Sua
funccedilatildeo eacute incitar o bem e condenar o mal Ela funciona como uma intuiccedilatildeo dos
primeiros princiacutepios da lei moral Eacute curioso o fato de Tomaacutes de Aquino definir a
Sindeacuterese como um habitus mas de natureza inata A Sindeacuterese natildeo se confunde
com a consciecircncia Ela eacute uma intuiccedilatildeo dos primeiros princiacutepios da moral enquanto
que a consciecircncia eacute o ato pelo qual se julga um ato que se realizou ou que seraacute
realizado Em seu ato a consciecircncia supotildee natildeo apenas a Sindeacuterese mas todo o
conhecimento moral que se apoacuteia sobre ela
A noccedilatildeo tomista da consciecircncia eacute a de que ela eacute um ato A funccedilatildeo da
consciecircncia eacute atestar obrigar e incitar e ainda acusar reprovar ou repreender (cf
AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)59 Estas funccedilotildees da consciecircncia se efetivam a
medida em o agente tem conhecimento ou ciecircncia do que se faz Tomaacutes de Aquino
esclarece que este conhecimento se daacute de trecircs maneiras quando se reconhece o que
se faz ou o que natildeo foi feito afirma-se que a consciecircncia atesta (Cf AQUINO Tomaacutes
de S Th I 79 a13)60 quando se julga que eacute preciso fazer ou natildeo uma accedilatildeo diz-se
que a consciecircncia incita ou obriga (Cf AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13 )61 e quando
se julga o meacuterito do que foi feito diz-se que a consciecircncia escusa62 acusa ou reprova
(cf AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)63
58 ldquoSynderesis non est potentia sed habitusrdquo 59 ldquoDicitur enim conscientia testificari ligare vel intigare et etiam accusare vel remordere sive
reprehendererdquo 60 ldquoQuod recognoscimus aliquid nos fecisse vel non fecisse [] conscientia dicitur testificarirdquo 61 ldquoQuod per nonstram conscientiam iudicamos aliquid esse faciendum vel non faciendum et secundum
hoc dicitur conscientia instigare vel ligarerdquo 62A escusa eacute uma razatildeo ou um pretexto invocado para eximir de uma obrigaccedilatildeo 63 ldquoQuod per conscientiam iudicamus quod aliquid quod est factum sit bene factum vel non bene factum
et secundum hoc conscientia dicitur excusare vel accusare seu remordererdquo
80
Tomaacutes de Aquino acrescenta que para desenvolver estas funccedilotildees faz-se
necessaacuteria ldquouma aplicaccedilatildeo atual de nosso conhecimento agrave nossa accedilatildeordquo (AQUINO
Tomaacutes de S Th I 79 a13)64 Esta informaccedilatildeo eacute relevante uma vez que a partir dela
entende-se que o autor natildeo estaacute a considerar o exerciacutecio da consciecircncia moral como
um funcionamento constante Isto eacute a consciecircncia passa a atuar efetivamente quando
os objetos relativos agraves accedilotildees assim a solicitam De certo modo esta compreensatildeo da
consciecircncia mitiga um entendimento contemporacircneo de que a concepccedilatildeo cristatilde de
homem da qual o pensamento moderno eacute devedor acreditaria que o homem pensado
como animal racional implicaria num actus ratiocinandi ad infinitum65
Ao final das consideraccedilotildees sobre a consciecircncia Tomaacutes de Aquino esclarece
como consciecircncia e sindeacuterese se relacionam Embora a consciecircncia seja um ato ela
natildeo eacute atualizada o tempo inteiro mas sempre que objetos relativos agrave sua accedilatildeo Desse
modo a consciecircncia necessita de um habitus que a faccedila atualizar-se A sindeacuterese
que conteacutem os primeiros princiacutepios da moral eacute quem naturalmente coopera na
atualizaccedilatildeo da consciecircncia
Deve-se dizer que o ato se permanece sempre em si mesmo permanence entretanto sempre em sua causa a potecircncia ou o habitus Os habitus pelos quais a consciecircncia eacute informada ainda que sejam muitos todos recebem a sua eficaacutecia de um primeiro a saber do habitus dos primeiros princiacutepios que se chama sindeacuterese Por isso e de modo especial esse habitus eacute por vezes chamado consciecircncia (AQUINO Tomaacutes de S Th I 79 a13)66
A relevacircncia desta afirmaccedilatildeo diz algo a mais sobre a concepccedilatildeo tomista de
homem Em relaccedilatildeo agraves questotildees da accedilatildeo pode-se afirmar que a consciecircncia moral eacute
o proacuteprio pensamento praacutetico que eacute posto em movimento por um habitus natural Uma
vez que este habitus natildeo eacute a razatildeo mesma em funcionamento talvez seja possiacutevel
defender que em Tomaacutes de Aquino haacute algo anaacutelogo ao lebenswelt russeliano um
mundo da vida ou uma instacircncia que de certo modo eacute anterior ao ato de raciocinar
523 O conceito de vontade
64 ldquoPatet autem quod omnia haec consequuntur actualem applicationem scientiae ad ea quae agimusrdquo 65 Para um melhor entendimento desta tese conferir o prefaacutecio de Ser e Tempo de Martim Heidegger 66 ldquoDicendum quod actus etsi non semper maneat in se semper tamen Manet in sua causa quae est
potentia et habitus Habitus autem ex quibus conscientia informatur etsi multi sint omnes tamen efficaciam habent ab uno primo scilicet ab habitu primorum principiorum qui dicitur synderesis Unde specialiter hic habitus interdum conscientia nominaturrdquo
81
Segundo Tomaacutes de Aquino o conceito de vontade se alinha agrave noccedilatildeo de
necessidade e estes se relacionam agrave noccedilatildeo de telos entendido aqui como a felicidade
que eacute um bem desejado por todos Tomaacutes de Aquino distingue diferentes noccedilotildees de
necessidade necessitas naturalis et absoluta necessitas finis e necessitas coactionis
A necessitas naturalis se apresenta quando a uma coisa algo se apresenta
em virtude de seus princiacutepios intriacutensecos sejam materiais ou formais Materialmente
eacute naturalmente necessaacuterio que o composto de contraacuterios se corrompa Formalmente
eacute naturalmente necessaacuterio que os acircngulos internos de um triacircngulo sejam iguais a
dois acircngulos retos Existem tambeacutem princiacutepios extriacutensecos que garantem este tipo de
necessidade diga-se por exemplo a morte como causa final ou a geraccedilatildeo como
causa eficiente (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)67
A necessitas finis se potildee quando algueacutem natildeo pode atingir seu fim ou atingi-lo
convenientemente sem esse princiacutepio Tomaacutes de Aquino cita o exemplo da
alimentaccedilatildeo para atingir uma vida saudaacutevel ou o cavalo para se chegar ao destino
pretendido (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1 )68 Finalmente quando um ente
eacute constrangido de tal modo que natildeo pode fazer o contraacuterio a necessidade eacute pensada
como necessitas coactionis (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)69
Deve-se perceber que a necessitas coactionis eacute contraacuteria agrave vontade pois se
constitui como uma violecircncia agrave inclinaccedilatildeo de ser humano Natildeo eacute difiacutecil chegar a uma
compreensatildeo da liberdade em Tomaacutes de Aquino atraveacutes das elucidaccedilotildees acerca do
conceito de vontade Pode-se afirmar primeiramente que a liberdade se refere a uma
ausecircncia de constrangimento externo Este se constitui como um niacutevel baacutesico da
noccedilatildeo de liberdade Aleacutem disso eacute importante salientar que seraacute possiacutevel estabelecer
uma distinccedilatildeo entre a liberdade como ausecircncia de constrangimento interno e a
liberdade como uma orientaccedilatildeo racional ao fim e inclusive como independecircncia em
relaccedilatildeo aos ditames de livre-arbiacutetrio que eacute a fonte mais primordial de exerciacutecio da
vontade mas que ainda natildeo pode ser considerada liberdade no sentido pleno
Uma vez que o conceito de vontade (ou voluntaacuterio) oferece ldquoluzesrdquo ao conceito
de liberdade eacute tambeacutem possiacutevel chegar ao conceito de involuntaacuterio e este relaciona-
67 ldquoSobre a necessitas naturalis et absoluta Tomaacutes de Aquino afirma Quod quid convenit alicui uno
modo ex principio intriacutenseco sive materiali [] sive formali [] Alio modo convenit alicui quod non possit non esse ex aliquo extriacutenseco vel fine vel agenterdquo
68 ldquoFine quidem aut bene consequi finem aliquem ut cibus dicitur necessaries ad vitam et equus ad iter Et haec vocatur necessitas finis quae interdum etiam utilitas diciturrdquo
69 ldquoEx agente autem hoc alicui convenit sicut cum aliquis cogitur ab aliquo agente it quod non possit contrarium agere Et haec vocatur necesssitas coactionisrdquo
82
se ao conceito de necessitas coactionis Um agente constrangido a fazer o que natildeo
deseja eacute algueacutem que age involuntariamente Mas a liberdade estaacute para aleacutem do agir
pois eacute ateacute possiacutevel obrigar que algueacutem faccedila alguma coisa mas natildeo eacute possiacutevel obrigaacute-
lo a querer fazer
Assim pois Tomaacutes de Aquino entende que o movimento da vontade eacute uma
certa inclinaccedilatildeo para algo Desse modo ldquoassim como se chama natural o que eacute
segundo a inclinaccedilatildeo da natureza chama-se de voluntaacuterio o que eacute segundo a
inclinaccedilatildeo da vontaderdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1) Entretanto este apetite
denominado de vontade eacute de natureza racional Para entender esta afirmaccedilatildeo deve-
se estabelecer em relaccedilatildeo agrave vontade agrave distinccedilatildeo entre irasciacutevel e o concupisciacutevel
A alma possui potecircncias sensitivas e intelectivas estas uacuteltimas satildeo tambeacutem
chamadas de potecircncias espirituais O apetite sensitivo se diversifica em concupisciacutevel
quando se refere agrave razatildeo de bem no sentido daquilo que agrada aos sentidos e em
irasciacutevel quando se refere agrave razatildeo de bem enquanto se busca evitar aquilo que eacute
prejudicial (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a5)70 Estes apetites satildeo ambos da
ordem da sensibilidade A vontade poreacutem diz respeito agrave razatildeo faz parte dela
voluntas in ratione est A vontade eacute proacuteprio apetite intelectivo e por isso mesmo o
bem a que a vontade apetece eacute o bem sob razatildeo universal
Este conceito aprofunda a noccedilatildeo de voluntaacuterio e involuntaacuterio e eacute entendido
como um movente das accedilotildees tanto naturalmente como teleologicamente Natildeo haacute
segundo Tomaacutes de Aquino uma oposiccedilatildeo entre a necessidade de um fim e a ideia de
vontade ldquoA necessidade de fim natildeo repugna agrave vontade quando ela natildeo pode atingir
esse fim senatildeo por um soacute meio por exemplo quando se tem a vontade de atravessar
o mar eacute necessaacuterio a vontade que queira um naviordquo (AQUINO Tomas de S Th I q
82 a1)71 Resulta claramente que natildeo haacute oposiccedilatildeo entre a liberdade e teleologia em
Tomaacutes de Aquino
Desse modo Tomaacutes de Aquino compatibiliza a ideia de liberdade com a ideia
de fim Analogicamente assim como o intelecto adere aos primeiros princiacutepios a
vontade deve pois aderir ao fim uacuteltimo que eacute a bem-aventuranccedila uma vez que a
70ldquoAppetitus autem sensitivus non respicit comunem rationem boni quia nec sensus apprehendit
universal Et ideo secundum diversas rationes particularium bonorum diversiticantur partes appetites sensitive nam concupiscibilis respicit propriam rationem boni inquantum est delectabile secundum sensum et conveniens naturae irascibilis autem respicit rationem boni secundum quod est repulsivum et impugnativum eius quod infet nocumentumrdquo
71 ldquoNecessitas autem finis non repugnat valuntati quando ad finem non potest perveniri nisi uno modo sicut ex voluntate transeundi mare fit necessitas in voluntate ut velit navemrdquo
83
bem-aventuranccedila ou a felicidade eacute almejada por todos Assim sendo compreende-
se que o fato de haver uma vontade natural natildeo implica uma contradiccedilatildeo com uma
vontade livre
Um esclarecimento deve ser feito nestas teses de Tomaacutes de Aquino Ele retira
a felicidade como sendo o fim uacuteltimo do homem pelo fato de todos os seres humanos
serem dotados de vontade e este desejo eacute universal pois decorre da natureza humana
o fato de todos desejarem ser felizes Poucas pessoas parecem duvidar desta tese
entretanto eacute possiacutevel concluir que o problema natildeo estaacute no fato de todos desejarem a
felicidade mas no itineraacuterio que cada pessoa particularmente percorre para atingi-la
Tomaacutes de Aquino salienta que a escolha natildeo versa sobre o fim ela versa sobre
os meios para o fim (Cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a1)72 Isto implica em dizer
que o fato de a felicidade ser o fim uacuteltimo do homem natildeo tem nada aver com sua
escolha uma vez que este eacute o fim natural a que todos tendem o destino potencial de
todo homem Por que o destino potencial Naturalmente este ldquodestinordquo natildeo implica
um fim inexoraacutevel mas o horizonte que daacute sentido agraves accedilotildees praticadas Elas devem
ser orientadas de modo a tornar mais acessiacutevel o alcance desse fim Na eacutetica de
Tomaacutes de Aquino assim como na eacutetica de Aristoacuteteles as accedilotildees satildeo apropriadas em
virtude do bem que elas proporcionam e natildeo porque o valor das accedilotildees se encerra
nelas proacuteprias A eacutetica de Tomaacutes de Aquino seguindo a moral aristoteacutelica vai propor
o exerciacutecio das accedilotildees virtuosas como o meio para se atingir essa felicidade
O ato de buscar a felicidade atraveacutes das virtudes aleacutem de ser a maneira mais
adequada a essa busca apresenta indiretamente a forccedila que a ideia de liberdade
possui na eacutetica cristatilde Henrique de Lima Vaz lendo Hegel afirma que ldquoa ideia de
liberdade pertence agrave esfera da manifestaccedilatildeo mais alta do Espiacuterito da sua
manifestaccedilatildeo como razatildeordquo e complementa ldquopara Hegel o momento decisivo em que
na cultura do Ocidente a razatildeo se manifesta como liberdade tem lugar com o advento
do Cristianismordquo (VAZ 2002 p 14) No esquema geral da Suma Teoloacutegica eacute por livre
vontade que homem opera um caminho de retorno a Deus Assim a ideia de liberdade
pode ser apontada como elemento distinto na reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e o
pensamento cristatildeo
72 ldquoElectio autem non est de fine sed de his quae sunt ad finemrdquo
84
524 A relaccedilatildeo entre inteligecircncia e vontade
A Inteligecircncia e a vontade satildeo duas potecircncias espirituais e ambas fazem parte
da capacidade racional das substacircncias intelectuais Tomaacutes de Aquino investiga a
relaccedilatildeo de superioridade de uma potecircncia em relaccedilatildeo a outra a partir da noccedilatildeo de
superioridade em termos absolutos e em termos relativos Tomaacutes de Aquino explica o
sentido de absoluto e relativo
A superioridade de uma coisa sobre outra pode ser considerada de dois modos quer absolutamente quer relativamente Uma coisa eacute tal absolutamente quando ela eacute isso em si mesma e eacute tal relativamente quando o eacute em relaccedilatildeo a outra (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a3)73
Absolutamente o intelecto eacute superior agrave vontade uma vez que a razatildeo do bem
desejaacutevel eacute apreendida pelo intelecto e este bem eacute objeto da vontade Nesse sentido
a superioridade daquele em relaccedilatildeo a esta se daacute porque eacute em virtude da accedilatildeo do
intelecto que a vontade se apropria de seu objeto Sem a accedilatildeo do intelecto entende-
se que a vontade natildeo teria o seu objeto mais proacuteprio Nesse caso o intelecto
considerado em si mesmo e absolutamente eacute uma potecircncia superior agrave vontade
Tomaacutes de Aquino esclarece
O objeto do intelecto eacute mais simples e absoluto que o da vontade Com efeito o objeto do intelecto eacute a proacutepria razatildeo do bem desejaacutevel e o bem desejaacutevel cuja razatildeo estaacute no intelecto eacute objeto da vontade Ora quanto mais uma coisa eacute simples e abstrata tanto mais eacute em si mesma mais nobre e superior Portanto o objeto do intelecto eacute superior ao objeto da vontade (AQUINO Tomas de S Th I q 82
a3)74
A partir desta afirmaccedilatildeo compreendem-se as duas grandes linhas da eacutetica
cristatilde que influenciaram por demais o desenvolvimento da filosofia moral no
Ocidente De um lado haacute os que defendem uma precedecircncia do intelecto sobre a
vontade assim como Tomaacutes de Aquino e estes satildeo chamados de intelectualistas
73 ldquoquod eminentia alicuius ad alterum potest attendi dupliciter uno modo simpliciter alio modo
sedundum quid Consideratur autem aliquid tale simpliciter prout est secundum seipsum tale secundum quid autem prout dicitur tale secundum respectum ad alterumrdquo
74 ldquoObiectum enim intellectus est simplicius et magis absolutum quam obiectum voluntatis nam obiectum intellectus est ipsa ratio boni appetibilis bonum autem appetibile cuius ratio est in intellectu est obiectum voluntatis Quanto autem aliquid est simplicius et abstractius tanto secundum se est nobilius et altius Et ideo obiectum intellectus est alius quam obietum voluntatis Cum ergo proacutepria ratio potentiae sit secundum ordinem ad obiectum sequitur quod secundum se et simpliciter intellectus sit altior et nobilior voluntaterdquo
85
Por outro lado os pensadores que defendem que intelecto e vontade tecircm o mesmo
status sendo a vontade igualmente autocircnoma independente do intelecto no seu
operar satildeo chamados de voluntaristas
Em termos relativos eacute possiacutevel considerar que a vontade seja superior ao
intelecto pois o objeto da vontade eacute superior ao do intelecto se se considerar que eacute
melhor amar a Deus do que conhececirc-lo Desse modo e relativamente ldquoquando a coisa
na qual estaacute o bem eacute mais nobre que a proacutepria alma em que se encontra a razatildeo desta
coisa a vontade eacute superior ao intelectordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 82 a3 )75 O
bem eacute objeto de inclinaccedilatildeo da vontade O intelecto conhece o fim uacuteltimo e o
proporciona agrave vontade que por sua vez move todas as outras potecircncias em busca
desse bem que eacute a felicidade perfeita
Eacute possiacutevel notar uma pequena distinccedilatildeo entre Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino
No livro X da Eacutetica a Nicocircmacos Aristoacuteteles defende que a felicidade perfeita consiste
na vida contemplativa isto eacute na accedilatildeo do intelecto
Mas se a felicidade consiste na atividade conforme agrave excelecircncia eacute razoaacutevel que ela seja uma atividade conforme a mais alta de todas as formas de excelecircncia e esta seraacute a excelecircncia da melhor parte de cada um de noacutes Se esta parte melhor eacute o intelecto ou qualquer outra parte considerada naturalmente dominante em noacutes e que nos dirige e tem o conhecimento das coisas nobilitantes e divinas se ela mesma eacute divina ou somente a parte mais divina existente em noacutes entatildeo sua atividade conforme agrave espeacutecie de excelecircncia que lhe eacute pertinente seraacute a felicidade perfeita Jaacute dissemos que esta atividade eacute contemplativa (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco 1176b4 2001 p 201)
Por outro lado a posiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino se dirige primeiramente a
considerar a felicidade como estado no qual o amor como accedilatildeo da vontade atuaria
mais primordialmente que o intelecto Aquilo que possui uma existecircncia espiritual seja
Deus outra pessoa a proacutepria verdade ou ainda a beleza eacute superior ao ato de
pensar Tomaacutes de Aquino conserva a tese aristoteacutelica de superioridade do intelecto
entretanto ao inserir a distinccedilatildeo entre superioridade absoluta e superioridade relativa
coloca a felicidade em relaccedilatildeo ao amor e natildeo ao conhecimento
O ponto de equiliacutebrio entre as teses desses dois autores estaacute no lugar onde a
felicidade deve ser efetivada Aristoacuteteles pensava a felicidade circunscrita agrave Cidade
75 ldquoQuando igitur res in qua est bonum est nobilior ipsa anima in qua est ratio intellect per
comparationem ad talem rem voluntas est altior intellecturdquo
86
mas de certo modo desapegada como uma atividade autocircnoma isto eacute auto-
suficiente Aristoacuteteles acrescenta
Somente esta atividade parece ser estimada por sua proacutepria causa pois nada decorre dela aleacutem da proacutepria atividade de contemplar enquanto com as atividades de ordem praacutetica obtemos algumas vantagens maiores ou menores aleacutem da proacutepria accedilatildeo (ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco 1176b4 2001 1177b p 202)
A vida feliz ou beatitude para Tomaacutes de Aquino soacute pode ser encontrada na
totalidade do bem na realizaccedilatildeo concreta e efetiva do Bem universal o que implica
num processo de retorno a Deus pois esta vida natildeo comporta a realizaccedilatildeo da
felicidade enquanto tal Esta concepccedilatildeo de Beatitude promove uma profunda
revoluccedilatildeo em relaccedilatildeo ao pensamento grego e o pensamento cristatildeo A
eudaimoniapara Aristoacuteteles encontra seu sentido no cosmocentrismo grego Por outro
lado a ideia de Beatitude ultrapassa os limites do cosmos grego De modo que Tomaacutes
de Aquino assume a ideia de Felicidade como fim uacuteltimo do ser humano mas ela eacute
realizada num niacutevel que estaacute para aleacutem do cosmocentrismo grego A superaccedilatildeo do
cosmocentrismo grego pelo teocentrismo cristatildeo seraacute elucidado mais adequadamente
adiante Antes poreacutem deve ser aprofundada a questatildeo da liberdade do ato voluntaacuterio
525 A liberdade do ato voluntaacuterio e a distinccedilatildeo entre liberdade e livre-
arbiacutetrio
A teoria tomista do livre-arbiacutetrio eacute de certo modo uma busca por compreender
o que diz respeito ao intelecto e agrave vontade num ato livre Dito de outra maneira o
empreendimento de Tomaacutes de Aquino pode ser traduzido pela seguinte pergunta
existe num ato livre a atuaccedilatildeo de alguma outra potecircncia aleacutem da inteligecircncia e da
vontade Seu aprofundamento acerca dessa temaacutetica traz distinccedilotildees fundamentais
que aleacutem de se fundamentarem no questionamento aristoteacutelico acerca do voluntaacuterio
e do involuntaacuterio promovem distinccedilotildees que seratildeo essenciais agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica
posterior
O desenvolvimento da questatildeo do livre-arbiacutetrio estaacute na questatildeo 83 da primeira
parte da Suma Teoloacutegica A questatildeo eacute dividida em quatro artigos e defende a tese
geral de que a liberdade eacute uma propriedade do ato voluntaacuterio na condiccedilatildeo de que
87
este seja exprimido em um juiacutezo que incida sobre a conveniecircncia ou natildeo do objeto do
querer A liberdade do homem consiste pois num ato de julgar que natildeo eacute
condicionado
O significado dos preceitos conselhos exortaccedilotildees assim como das
proibiccedilotildees recompensas e penas soacute estaacute garantido graccedilas ao livre-arbiacutetrio Tomaacutes
de Aquino estabelece uma distinccedilatildeo entre coisas que agem sem julgamento outras
que agem com julgamento e mesmo assim natildeo satildeo livres e outras que agem com o
julgamento livre
Deve-se considerar que certas coisas agem sem julgamento Por exemplo a pedra que se move para baixo e igualmente todas as coisas que natildeo tecircm conhecimento Outras coisas agem com julgamento mas esse natildeo eacute livre como os animais Por exemplo a ovelha vendo o lobo julga que eacute preciso fugir eacute um julgamento natural mas natildeo livre pois natildeo julga por comparaccedilatildeo mas por instinto natural [] o homem poreacutem age com julgamento porque por sua potecircncia cognoscitiva julga que se deve fugir de alguma coisa ou procuraacute-la Mas como esse julgamento natildeo eacute efeito de um instinto natural aplicado a uma accedilatildeo particular mas de uma certa comparaccedilatildeo da razatildeo por isso o homem age com julgamento livre podendo se orientar para diversos objetos (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1 )76
A liberdade tem a ver com o libero iudicium O julgamento livre eacute a expressatildeo
mais perfeita da liberdade do ser humano Aqui Tomaacutes de Aquino estabelece uma
distinccedilatildeo importante a saber a distinccedilatildeo entre o julgamento natural ou instintivo e o
julgamento racional Embora ambos sejam julgamentos lsquopraacuteticosrsquo apenas o ente que
possui o livre-arbiacutetrio isto eacute possui julgamento racional eacute senhor desse julgamento
Ambos os juiacutezos satildeo mandados pois prescrevem que o agente deve fazer algo mas
somente o ente que possui livre-arbiacutetrio atraveacutes da potecircncia cognoscitiva o intelecto
pode apresentar a si um julgamento que conduza ao bem Portanto eacute pela
racionalidade que o homem eacute dotado de livre-arbiacutetrio
Aqui se apresenta um questionamento importante por que muitas vezes
deseja-se contrariamente ao que o intelecto indica E como pode um ente que tem
seu ser criado ser livre As respostas podem ser encaminhadas da seguinte forma
76 ldquoConsiderandum est quod quaedam agunt absque iudicio sicut laacutepis movetur deorsum et similiter
omnia cognitione carentia Quaedam autem agunt iudicio sed non libero sicut animalia bruta Iudicat enim ovis videns lupum eum esse fugiendum naturali iudicio et non libero quia non ex collatione sed ex naturali instinctu hoc iudicat [] Sed homo agit iudicio quia per vim cognoscitivam iudicat aliquid iudicium istud non est ex naturali instinctu in particulari operabili sed ex collatione quadam rationis ideo agit libero iudicio potens in diversa ferrirdquo
88
em relaccedilatildeo agrave primeira pergunta diz-se que o fato de haver uma escolha da razatildeo natildeo
impede o desejo do apetite sensiacutevel mas pode impedir a sua realizaccedilatildeo Neste
sentido pode-se entender que a liberdade natildeo eacute necessariamente natildeo ter um
determinado desejo mas de certo modo consiste em estar acima das proacuteprias
inclinaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave segunda questatildeo o proacuteprio Tomaacutes de Aquino afirma que
ldquonatildeo eacute necessaacuterio agrave liberdade que o que eacute livre seja a causa primeira de si mesmordquo
(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1 )77 Assim mesmo que o homem tenha seu ser
por outro seja um ensab alio em relaccedilatildeo aos seus julgamentos ele permanece livre
e conta com o respeito de Deus em relaccedilatildeo agrave sua liberdade pois ldquoDeus opera em
cada um segundo a natureza que lhe eacute proacutepriardquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83
a1)78
Note-se que Tomaacutes de Aquino natildeo fala em accedilotildees livres mas em julgamentos
livres Ora eacute ateacute possiacutevel entender que alguma forccedila externa possa obrigar algueacutem a
agir de determinada maneira de modo que este seja obrigado a fazer algo que na
verdade natildeo deseje Embora ele possa fazer isto natildeo implica que ele queira fazer
Assim sendo mesmo que natildeo se mencione a palavra intenccedilatildeo ela estaacute latente neste
artigo da Suma Com isto eacute possiacutevel compreender a radicalidade com que Tomaacutes de
Aquino concebe a liberdade humana a ponto de considerar que ldquonada haacute que repugne
a liberdade do livre-arbiacutetriordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a1)79
Todas as deliberaccedilotildees e accedilotildees do ser humano passam pela faculdade racional
ateacute mesmo as inclinaccedilotildees do apetite sensiacutevel devem passar pelo assentimento ou natildeo
da razatildeo A razatildeo por ateacute obedecer a um destes apetites ditos inferiores (cf AQUINO
Tomaacutes de S Th I q 83 a1)80 E aqui eacute possiacutevel aprofundar a noccedilatildeo tomista de
liberdade Com efeito a liberdade do ser humano eacute tamanha que mesmo o
assentimento do homem a algum apetite sensitivo eacute ainda ato de uma razatildeo sem
constrangimento mas que natildeo eacute livre enquanto tal pois a liberdade mesma eacute aquela
na qual o ser humano escolhe em favor do que eacute melhor isto eacute em favor do bem O
livre-arbiacutetrio eacute pois uma potecircncia que eacute sujeito da graccedila e com o seu auxiacutelio escolhe
o bem (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a2)81
77 ldquoNon tamen hoc est de necessitate libertatis quod sit prima causa sui id quod liberum estrdquo 78 ldquoOperatur enim in unoquoque secundum eius proprietatemrdquo 79 ldquoEt sic nihil est quod libertati arbitrii repugnetrdquo 80 ldquoSed istae inclinationes subiacent iudicio rationis cui obedit inferior appetitus ut dictum estrdquo 81 ldquoSed liberum arbitrium est subiectum gratiae qua sibi assistente bonum eligit Ergo liberum arbitrium
est potentiardquo
89
Natildeo eacute de se admirar que a graccedila seja auxiliar do livre-arbiacutetrio O seu auxiacutelio natildeo
implica uma negaccedilatildeo da liberdade do homem uma vez que este por si mesmo pode
negar o este auxiacutelio Contudo natildeo dirigir as escolhas em favor do bem eacute abrir matildeo
de ser realmente livre Esta eacute uma relaccedilatildeo curiosa pois sem o livre-arbiacutetrio natildeo se
pode ser livre mas com a sua atuaccedilatildeo se pode ateacute escolher mas natildeo ser livre
propriamente Tomaacutes afirma que ldquoo livre-arbiacutetrio eacute indiferente a escolher bem ou malrdquo
(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 83 a2)82 Assim sendo sem o livre-arbiacutetrio natildeo eacute
possiacutevel algueacutem ser livre mas com ele a liberdade ainda natildeo estaacute garantida Ser livre
eacute estar livre de todas as formas de submissatildeo inclusive a do livre-arbiacutetrio quando este
escolhe o mal
Esta distinccedilatildeo eacute por demais relevante e natildeo eacute agrave toa que autores como Kant
seratildeo influenciados por esta distinccedilatildeo entre liberdade e livre-arbiacutetrio Kant utiliza uma
terminologia diferente mas que ao final pressupotildee a distinccedilatildeo ora apresentada A
terminologia kantiana eacute a do arbiacutetrium brutum e o livre-arbiacutetrio sendo o primeiro o
sentido de livre-arbiacutetrio e o segundo a liberdade ldquodaacute-se o nome de livre arbiacutetrio agrave
escolha que pode ser determinada pela razatildeo pura a que pode ser determinada
somente pela inclinaccedilatildeo (impulso sensiacutevel estiacutemulo) seria o arbiacutetrio animal (arbitrium
brutum) (cf KANT 2003 p 63)
A questatildeo 83 da Suma conclui precisando a relaccedilatildeo entre vontade e livre-
arbiacutetrio Em relaccedilatildeo agrave potecircncia da qual fazem parte pode-se afirmar que vontade e
livre-arbiacutetrio satildeo uma e mesma coisa porque ambos dizem respeito agrave eleiccedilatildeo
Contudo em relaccedilatildeo ao modus operandi cada uma opera de modo distinto a saber
o livre-arbiacutetrio opera na deliberaccedilatildeo a vontade na accedilatildeo
A proposiccedilatildeo de uma teoleologia na moralidade implica uma negaccedilatildeo da
autonomia Cabe esclarecer que esta oposiccedilatildeo entre teleologia e autonomia natildeo eacute
uma oposiccedilatildeo real as duas natildeo satildeo diretamente opostas Filosoficamente Tomaacutes de
Aquino por exemplo soube compatibilizar telos e liberdade
O modo como Tomaacutes de Aquino compreende a constituiccedilatildeo do homem na
Suma Teoloacutegica natildeo encontra dificuldades entre afirmar o livre arbiacutetrio ao homem e
ao mesmo tempo afirmar que por sua natureza o homem eacute capaz de agir em virtude
de um fim Faz-se necessaacuteria pois uma exposiccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio e de
82 ldquoLiberum autem arbitrium indifferenter se habet ad bene eligendum vel malerdquo
90
telos em Tomaacutes de Aquino a fim de mostrar como o autor compatibiliza telos e
autonomia
Deve-se esclarecer primeiramente que a exposiccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-
arbiacutetrio e a noccedilatildeo de finalidade como telos das accedilotildees se encontram em momentos
distintos da Suma Teoloacutegica A noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio estaacute na seccedilatildeo em que Tomaacutes
de Aquino dedica agrave criaccedilatildeo e ao Governo Divino Esta seccedilatildeo se insere na 1ordf parte da
Suma Teoloacutegica como o momento da accedilatildeo de Deus A 1ordf parte discorre sobre Deus
quem ele eacute como conhececirc-lo e sobre a Trindade (S Th I 1-43) o segundo momento
ainda da 1ordf parte apresenta a accedilatildeo de Deus que eacute a sua criaccedilatildeo (S Th I 44-119)
Justamente aqui situa-se a apresentaccedilatildeo da noccedilatildeo de livre-arbiacutetrio
Jaacute a noccedilatildeo de Telos ou como diz Tomaacutes de Aquino fim do homem
encontra-se na primeira seccedilatildeo da 2ordf parte da Suma Teoloacutegica que vai das questotildees
1-48 (S Th I - IIae 1-48) Esta parte da Suma apresenta o retorno da criaccedilatildeo a Deus
particularmente com a busca livre do homem para Deus que eacute o conceito cristatildeo de
beatitude
A resposta eacute natildeo A proposiccedilatildeo de uma teleologia aqui tem a funccedilatildeo de ser o
resultado das accedilotildees virtuosas isto eacute numa eacutetica teleoloacutegica o valor de uma accedilatildeo natildeo
reside na accedilatildeo em si mesma
A verdade e o bem se incluem mutuamente Pois a verdade eacute um bem sem o que natildeo seria inteligiacutevel Do mesmo modo portanto que o objeto do apetite pode ser uma coisa verdadeira enquanto tem a razatildeo de bem por exemplo quando se deseja conhecer a verdade do mesmo modo o objeto do intelecto praacutetico eacute o bem que pode ser ordenado agrave accedilatildeo sob a razatildeo de verdadeiro O intelecto praacutetico com efeito conhece a verdade como o intelecto especulativo mas ordena agrave accedilatildeo essa verdade conhecida (AQUINO Tomaacutes de S Th I q 79 a11)83
Para Tomaacutes de Aquino o valor de uma accedilatildeo seraacute relativo agrave finalidade que ela
atingiraacute Talvez a oposiccedilatildeo mais apropriada seria entre Destino e Autonomia ao inveacutes
de se pensar em termos de teleologia e autonomia
83 ldquoDicendum quo verum et bonum se invicem includunt nam verum est quoddam bonum alioquin non
esset appetibile et bonum est quoddam verum alioquin non esset intelligibile Sicut igitur obiectum appetites potest esse verum inquantum habet rationem boni sicut cum aliquis appetit veritatem cognoscere ita objectum intellectus practici est bonum ordinabile ad opus sub ratione veri Intellectus enim practicus veritatem cognoscit sicut et speculativus sed veritatem cognitam ordinat ad opusrdquo
91
526 A intenccedilatildeo
A definiccedilatildeo claacutessica de intenccedilatildeo se deve a Tomaacutes de Aquino No acircmbito da
filosofia moral a ideia eacute a de que a intenccedilatildeo eacute uma vontade que faz a accedilatildeo em uma
meta ao mesmo tempo proacutexima e longiacutenqua precisa e vasta indo ateacute o fim uacuteltimo A
intenccedilatildeo envolve pois a potecircncia da vontade para engendrar uma accedilatildeo e para mover-
se em busca do fim O desenvolvimento do conceito de intenccedilatildeo estaacute expresso na
questatildeo 12 da Primeira parte da Segunda Parte da Suma Teoloacutegica Nos quatro
artigos que compotildeem a questatildeo Tomaacutes de Aquino apresenta a intenccedilatildeo e o seu
objeto (a 1-2) e explicita o ato da intenccedilatildeo (a 3-4)
Tomando a definiccedilatildeo de Agostinho a intenccedilatildeo propriamente dita se refere
agravequilo que move uma coisa a seu fim (cf AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a1)84
Neste sentido como eacute a vontade que move todas as potecircncias a um fim a intenccedilatildeo
se constitui como ato da vontade ldquoOra a vontade move todas as outras potecircncias da
alma para o fim como foi estabelecido acima Eacute manifesto portanto que a intenccedilatildeo eacute
propriamente ato da vontaderdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a1)85
Existe ainda relaccedilatildeo entre Vontade razatildeo e intenccedilatildeo Agrave vontade cabe tender
ao fim enquanto cabe agrave razatildeo ordenar O papel da intenccedilatildeo consiste em ser o
movimento da vontade actus voluntatis em busca do fim uacuteltimo conforme
ordenamento da racionalidade Aleacutem disso a intenccedilatildeo embora se refira
primeiramente ao fim uacuteltimo natildeo exclui a relaccedilatildeo com os fins intermediaacuterios desde
que estes estejam relacionados ao fim uacuteltimo ldquonem sempre eacute necessaacuterio que [a
intenccedilatildeo] seja do fim uacuteltimordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a2 )
Qual o alcance desta reflexatildeo de Tomaacutes de Aquino A intencionalidade
promove uma unidade nos atos voluntaacuterios pois cada accedilatildeo se encontra concatenada
na busca do homem pela felicidade Assim eacute possiacutevel se falar a partir de Tomaacutes de
Aquino de uma unidade da vida moral Esta unidade da vida moral atraveacutes da
intencionalidade garante uma ligaccedilatildeo interna de todos os fins intermediaacuterios
alcanccedilados pelo homem na busca do fim uacuteltimo
84 ldquoUnde intentio primo et principaliter pertinent ad id quod movet ad finemrdquo 85 ldquoVoluntas autem movet omnes alias vires animae ad finem ut supra habitum est Unde manifestum
est quod intentio proprie est actus voluntatisrdquo
92
Natildeo eacute de admirar que a intenccedilatildeo possa se referir a vaacuterias coisas
simultaneamente Tomas de Aquino afirma
A arte imita a natureza Mas a natureza por um soacute instrumento busca duas utilidades ldquocomo a liacutengua que se ordena para o gosto e para falarrdquo diz o livro II da Alma Logo pela mesma razatildeo a arte e a razatildeo podem simultacircneas ordenar para dois fins uma soacute coisa Assim sendo algueacutem pode ter a intenccedilatildeo de muitas coisas simultaneamente (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a3)86
Tomaacutes de Aquino indica que aleacutem da razatildeo a arte tambeacutem pode proporcionar
finalidades e como conclusatildeo a intenccedilatildeo pode se referir a vaacuterias coisas Nesse
sentido compreende-se que ela pode combinar diversos planos nos quais os fins
podem ser dados Este reconhecimento da multiplicidade de coisas as quais a
intenccedilatildeo pode se referir explica de certo modo porque frequentemente os homens
se perdem em suas buscas Natildeo eacute a toa que Tomaacutes sugere uma cooperaccedilatildeo entre a
razatildeo a vontade e a intenccedilatildeo
Tambeacutem eacute relevante o fato de a intenccedilatildeo ser cooperadora da razatildeo na
descoberta de fins Se a arte eacute uma instacircncia distinta da razatildeo e se a intenccedilatildeo tambeacutem
pode se referir a ela pode-se afirmar que aleacutem do fim ordenado pela razatildeo natildeo haacute
um impedimento da participaccedilatildeo da intenccedilatildeo na construccedilatildeo do agir humano o que
implica uma abertura agrave liberdade da intenccedilatildeo nesta construccedilatildeo Pode-se concluir que
os juiacutezos praacuteticos e a escolha livre resultam da interaccedilatildeo entre a racionalidade e a
intenccedilatildeo voluntaacuteria
Existe finalmente uma conexatildeo entre intenccedilatildeo e vontade Tomaacutes de Aquino
afirma que ldquonas as coisas voluntaacuterias um soacute movimento eacute a intenccedilatildeo do fim e a
vontade do que eacute para o fimrdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th Iordf II q12 a3)87 Embora agrave
vontade se relacione com aquilo eacute que para o fim uma vez que ela elege os meios
para atingi-lo sua relaccedilatildeo com a intenccedilatildeo que eacute o seu proacuteprio movimento eacute
constituiacuteda como um movimento uacutenico Pode-se entatildeo afirmar que a conexatildeo entre
intenccedilatildeo e vontade eacute de tal modo que natildeo se pode afirmar uma sem a outra
O estudo da intenccedilatildeo em Tomaacutes de Aquino aprofunda uma questatildeo que estava
em Aristoacuteteles apenas de modo latente Natildeo se pode afirmar que em Aristoacuteteles natildeo
havia uma preocupaccedilatildeo com a intenccedilatildeo poreacutem o seu detalhamento se deve ao
86 ldquoArs imitatur naturam Sed natura ex uno instrument intendit duas utilitates sicut lingua ordinatur et
ad gustum et ad locutionem dicitur in II de Anima Ergo pari ration ears vel ratio potest simul aliquid unum ad duos fines ordinare Et ipsa aliquis simul plura intendererdquo
87 ldquoIn rebus voluntariis idem motus est intentio finis et voluntas eius quod est ad finemrdquo
93
Aquinate A intenccedilatildeo eacute de tal modo necessaacuteria que estaacute presente em cada um dos
atos concernentes aos meios e a escolha eacute ativa em todo desenvolvimento das accedilotildees
53 TOMISMO E EacuteTICA DAS VIRTUDES
Alguns elementos da Psicologia Filosoacutefica de Santo Tomaacutes foram expostos de
modo que foram elucidados como elementos que ou eram desconhecidos ao
pensamento moral aristoteacutelico ou foram insuficientemente aprofundados Cabe entatildeo
verificar quais satildeo os elementos distintivos em relaccedilatildeo agraves proacuteprias virtudes Para isto
aleacutem do proacuteprio Santo Tomaacutes investigou-se o pensamento de Giuseppe Abbaacute
Juvenal Savian Filho Henrique de Lima Vaz Joseph Pieper entre outros que
contribuiacuteram significativamente nesta parte da pesquisa
Em geral natildeo se tem duacutevida de que Tomaacutes de Aquino operou uma releitura do
cristianismo por meio do pensamento aristoteacutelico Cabe pois aleacutem de demonstrar que
mudanccedilas essa releitura provocou explicitar de que modo elas ecoaram no
pensamento moral contemporacircneo Com a realizaccedilatildeo desta tarefa espera-se fazer
entender um dos principais objetivos desta pesquisa mostrar que um retorno
contemporacircneo a Eacutetica das Virtudes deve considerar a influecircncia do pensamento
cristatildeo pelo vieacutes de uma leitura tomasiana Um dos pontos de importacircncia capital para
a pesquisa eacute defender que algumas distinccedilotildees entre o conceito aristoteacutelico e o
conceito tomista de virtude a saber a relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo
de liberdade constituem-se como contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino agrave Eacutetica das
Virtudes e agrave histoacuteria da eacutetica ocidental em geral
Esta seccedilatildeo da pesquisa cumpre a tarefa de mostrar como Tomaacutes de Aquino
opera mudanccedilas significativas no acircmbito da Eacutetica das Virtudes Ele apresenta por um
lado acreacutescimos relevantes agrave moral de Aristoacuteteles e por outro permite afirmar que
muitos desses aspectos se incorporam agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica posterior A partir desta
compreensatildeo pretende-se concluir que propor uma Eacutetica das Virtudes ao
pensamento contemporacircneo negligenciando estes aspectos produz certa fragilidade
agrave proposta Por fim esta seccedilatildeo faraacute consideraccedilotildees sobre a proposta moral do
MacIntyre de Depois da Virtude agrave luz do estudo realizado
94
531 Vida feliz e virtudes antes da siacutentese tomista
Eacute a partir de Santo Agostinho que se tem no pensamento cristatildeo um primeiro
aprofundamento dos temas morais e eacute este aprofundamento que contribui para uma
ulterior moral teoloacutegica Entretanto este primeiro esforccedilo de Agostinho natildeo resulta na
inserccedilatildeo de uma seccedilatildeo moral como componente necessaacuteria da ciecircncia teoloacutegica As
reflexotildees morais embora relevantes encontram-se dispersas entre outras temaacuteticas
da teologia Este pensamento seraacute retomado por Tomaacutes como mote de reflexatildeo agrave luz
do pensamento aristoteacutelico Pode-se afirma que Tomas de Aquino tributa ao
pensamento cristatildeo a doutrina moral que doravante se constitui como parte
integrante da ciecircncia teoloacutegica e seraacute referecircncia para toda a filosofia moral
Pode-se afirmar que a vida feliz desde Aristoacuteteles foi a grande motora do
pensamento eacutetico Com Santo Agostinho ela passa a ser definida como a uniatildeo da
mente a Deus no conhecimento no amor e no gaacuteudio da verdade e do bem divino
Assim Agostinho afirma no De Beata Vita
Certo impulso interior que nos convida a lembrar-nos de Deus a buscaacute-lo a sentir sede dele sem nenhum fastio jorra em noacutes dessa mesma fonte da Verdade Eacute luz que esse misterioso sol irradia em nossos olhos interiores E eacute dele que procede tudo o que proferimos de verdadeiro ainda que temamos volver para ele nossos olhos ainda doentios ou receacutem-abertos e de o fixarmos face a face Esse sol revela-se a noacutes como sendo o proacuteprio Deus ser perfeito sem nenhuma imperfeiccedilatildeo a diminuiacute-lo Pois nele se encontra toda a perfeiccedilatildeo completa e iacutentegra visto que ele eacute ao mesmo tempo o Deus todo-poderoso (AGOSTINHO Santo A vida feliz 1998 p 156 PL 32 4 35)88
Agostinho acredita que naturalmente existe um impulso do homem para Deus
Em outras passagens ele tambeacutem jaacute havia demonstrado esta compreensatildeo ldquotu nos
criastes para voacutes e incansaacutevel estaacute o nosso coraccedilatildeo enquanto natildeo repousa em voacutesrdquo
(agostinho Santo Confissotildees I 1998 p 7) Eacute atraveacutes da inteligecircncia ou ldquoos olhos
interioresrdquo que o homem compreende este desejo de busca de Deus assim como a
proacutepria inteligecircncia atesta que a verdade do que se profere depende dele A perfeiccedilatildeo
de Deus eacute certificada pelo fato de Deus se mostrar ao pensamento humano no interior
de cada homem Eacute este Deus que eacute a proacutepria vida feliz
88 ldquoHoc interioribus luminibus nostris iubar sol ille secretus infundit Huius est verum omne quod
loquimur etiam quando adhuc vel minus sanis vel repente apertis oculis audacter converti et totum intueri trepidamus nihilque aliud etiam hoc apparet esse quam Deum nulla degeneratione impediente perfectum Nam ibi totum atque omne perfectum est simulque est omnipotentissimus Deusrdquo
95
Eacute possiacutevel compreender a partir de Agostinho que pela perfeiccedilatildeo de Deus a
vida feliz diz respeito a um domiacutenio que estaacute para aleacutem da vida efecircmera do homem
no mundo Embora se tenha assim como em Aristoacuteteles que o fim do homem eacute a
felicidade esta acontece em dimensotildees extremamente distintas Eacute em virtude desta
nova concepccedilatildeo de vida feliz que se requer uma reformulaccedilatildeo na taacutebua das virtudes
de modo que entre as virtudes jaacute existentes a caridade possa figurar entre as
principais O modelo da caridade eacute aquela que Deus tem para o homem e tendo Deus
por exemplar o homem a viveraacute em relaccedilatildeo aos seus
Segundo Giuseppe Abbaacute (cf 2008 p 24) para alcanccedilar esta nova vida feliz ou
vida beata era preciso um conhecimento apropriado o conhecimento que Deus
mesmo tem de si mesmo e da ordem das criaturas Este conhecimento presente em
Deus ao modo de uma lei eterna eacute comunicado por via de iluminaccedilatildeo a cada mente
humana no modo de um conhecimento inato das razotildees eternas segundo os quais
satildeo regulados os atos da vontade Deve-se acrescentar que a lei eterna tambeacutem pode
ser conhecida por via de revelaccedilatildeo na lei escrita do Antigo e do Novo Testamento
Ainda segundo Giuseppe Abbaacute a accedilatildeo de Deus para conduzir o homem agrave vida
beata natildeo se limita agrave comunicaccedilatildeo da lei Deus interveacutem tambeacutem mediante uma
gratuita ajuda interior para converter a vontade humana da aversatildeo contra Deus ao
amor por Deus e a sustentar continuamente a retidatildeo da vontade nas obras virtuosas
A teologia moral seraacute assim uma investigaccedilatildeo em torno da lei divina eterna e de
como devem agir aqueles que nela inspiram-se
As concepccedilotildees agostinianas de vida feliz virtudes e lei eterna permanecem
praticamente as mesmas ateacute a chegada dos Sententiarum Libri de Pedro Lombardo
A partir do sec XII e iniacutecio do seacuteculo XIII as Sentenccedilas e as Sumas passam a fazer
uma apresentaccedilatildeo da doutrina cristatilde O elemento relevante deste dado eacute o fato de as
Sentenccedilas e Sumas serem agora obrigatoacuterias como textos baacutesicos de leitura nas
escolas teoloacutegicas Eacute ainda relevante o fato de estes textos natildeo reservarem um
espaccedilo especiacutefico para a filosofia moral assim tambeacutem como aconteceu com a
concepccedilatildeo agostiniana conforme o comentaacuterio de Giuseppe Abbaacute (cf 2008 p 24)
Os temas morais eram apresentados difusamente de modo que eles soacute aparecem
como temaacuteticas assessoacuterias Pedro Lombardo por exemplo tratava sobre a liberdade
e sobre o pecado no livro segundo que explicitava a questatildeo da queda do homem No
96
livro trecircs a propoacutesito do verbo encarnado Lombardo fala sobre as virtudes quando
responde agrave questatildeo de se Cristo teve virtudes
Traduzida para o latim por Roberto Grossatesta em 1246-47 a Eacutetica a
Nicocircmacos natildeo foi capaz de modificar o rumo do pensamento moral cristatildeo-catoacutelico
fortemente marcado pelo agostinismo ao menos ateacute Santo Tomaacutes Eacute atraveacutes dele que
se datildeo dois acontecimentos de particular relevacircncia a construccedilatildeo de uma parte
especificamente moral na teologia e a sua fundamentaccedilatildeo tendo a eacutetica aristoteacutelica
como fonte inspiradora Naturalmente a realizaccedilatildeo dessas duas tarefas natildeo se deu
de modo paciacutefico pois pensamentos jaacute instituiacutedos natildeo cedem facilmente agraves novas
ideias Quais foram pois as articulaccedilotildees filosoacuteficas que Tomaacutes de Aquino se utilizou
para a realizaccedilatildeo desses dois empreendimentos
97
5311 A construccedilatildeo de uma parte moral na teologia
Sobre a criaccedilatildeo de uma parte moral na Teologia Tomaacutes de Aquino enfrenta a
seguinte dificuldade como eacute possiacutevel a tematizaccedilatildeo sobre as virtudes se a teologia
tem Deus por assunto principal Deus natildeo necessita de virtudes uma vez que estas
satildeo haacutebitos que aperfeiccediloam o agente Assim faz-se necessaacuterio expor o modo como
Tomaacutes de Aquino responde a este problema
No desenvolvimento desta seccedilatildeo ver-se-aacute que primeira soluccedilatildeo de Tomaacutes ao
problema da uma inclusatildeo de uma parte moral na teologia daacute-se ainda sob o esquema
agostiniano partindo da lei divina agrave finitude do homem Nesta primeira soluccedilatildeo Tomaacutes
coloca hierarquicamente a lei em primeiro lugar e as virtudes em segundo abrindo um
espaccedilo para se tratar da moral na teologia Qual o problema desta primeira soluccedilatildeo
Ora sendo a lei divina o elemento primordial a eacutetica tomista perderia um de seus
viacutenculos mais relevantes com a eacutetica aristoteacutelica a saber uma eacutetica centrada no
agente A eacutetica aristoteacutelica privilegia por excelecircncia o agente enquanto que em
Agostinho o que brilha eacute a eacutetica fundamentada na lei divina A segunda soluccedilatildeo de
Tomaacutes de Aquino agrave questatildeo se daacute pela via indireta do discurso sobre Deus Com
efeito se pelo modus cognocendio homem conhece a Deus pela ciecircncia moral o
homem conhece a Lei Divina Com esta soluccedilatildeo pode-se afirmar que Tomaacutes de
Aquino garante um lugar agrave moral na Teologia sem no entanto abdicar da uma moral
centrada no agente
Seguindo a primeira soluccedilatildeo Tomaacutes introduz a noccedilatildeo de haacutebitos virtuosos
como formas impressas na alma ldquoas quais a reparam a retificam na medida em que
a fazem partiacutecipe das divinas sabedoria e retidatildeordquo (ABBAacute 2008 p 27) Segundo
Giuseppe Abbaacute existe da parte de Tomaacutes de Aquino uma profunda coerecircncia entre
sua antropologia e esses haacutebitos que informam a alma (cf ABBAacute 2008 p 27) A
explicaccedilatildeo dessa coerecircncia eacute possiacutevel ser mostrada a partir do De Ente et Essentia
a essecircncia se encontra concretizada nas substacircncias criadas intelectuais nas quais o ser ou existecircncia difere da essecircncia embora a essecircncia nelas exista sem a mateacuteria Daiacute que o ser dessas substacircncias natildeo eacute absoluto mas recebido e por conseguinte limitado e finito conforme a capacidade da natureza recipiente embora a natureza ou quididade delas seja absoluta e carente de mateacuteria (AQUINO Tomaacutes de De ente et essentia 2009)
98
Na compreensatildeo desta obra do jovem Tomaacutes de Aquino a alma humana que
se une ao corpo como forma de uma mateacuteria individuante natildeo atua nele comunicando
toda a sua perfeiccedilatildeo em razatildeo composiccedilatildeo das substacircncias O indiviacuteduo soacute se
atualiza no sentido da perfeiccedilatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de formas acidentais
suplementares Estas formas satildeo haacutebitos denominados virtudes Desse modo eacute
possiacutevel afirmar que a inclusatildeo de uma parte moral na teologia por parte de Tomaacutes
de Aquino natildeo eacute uma simples inclusatildeo arbitraacuteria mas um desenvolvimento necessaacuterio
de seu pensamento ontoloacutegico
Deve-se notar ainda que no Scriptum super Sententiis Tomaacutes de Aquino
adota a posiccedilatildeo de que os haacutebitos ou as virtudes necessitam ser dirigidos nos seus
atos pela lei divina pois ldquoa lei ensina a agir demonstra os atos retos as virtudes nos
conduzem ao bem agirrdquo (AQUINO Tomaacutes de Scriptum super sententiis III 37 ad 40
2011) Conforme este posicionamento o enfoque primordial permanece na lei divina
o que permite a Tomaacutes dar continuidade ao esquema da Teologia agostiniana poreacutem
a obediecircncia agrave lei divina daacute-se sob o auxiacutelio das virtudes Obedecendo a esta
hierarquia a lei divina tem precedecircncia sob as virtudes e estas em seu papel
secundaacuterio ganham ldquoabrigordquo na teologia agora com um tratado especiacutefico
Na segunda soluccedilatildeo que se como justificaccedilatildeo definitiva da constituiccedilatildeo de uma
parte moral na teologia Tomaacutes se utiliza da ideia de que uma vez que eacute impossiacutevel
tratar de Deus a partir de sua essecircncia pois este eacute inacessiacutevel ao conhecimento
sensitivo eacute possiacutevel tratar de Deus a partir de seus efeitos ldquose a existecircncia de Deus
natildeo eacute evidente para noacutes pode ser demonstrada pelos efeitos por noacutes conhecidosrdquo
(AQUINO Tomaacutes de S Th I q 2 a2)89 O homem na qualidade de criatura racional
constitui-se como uma das obras (efeitos) especiais de Deus pois eacute ldquocriado agrave imagem
de Deus enquanto o termo imagem significa o que eacute dotado de intelecto de livre-
arbiacutetrio e revestido por si de poderrdquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II prologus)90 Ora eacute
justamente atraveacutes do conhecimento praacutetico que homem tem de suas obras que o
permite construir uma ciecircncia moral Esta ciecircncia se fundamenta na razatildeo com a qual
Deus governa as criaturas particularmente o homem em seu agir Pela ciecircncia moral
conhece-se a lei divina
89ldquoUnde Deum esse secundum quod non est per se notum quoad nos demonstrabile est per effectus
nobis notusrdquo 90 ldquoHomo factus ad imaginem Dei dicitur secundum quod per imaginem significatur intellectuale et
arbiacutetrio liberum et per se potestativumrdquo
99
A ciecircncia sagrada eacute mais especulativa do que praacutetica porque se refere mais agraves coisas divinas do que aos atos humanos Ela considera estes uacuteltimos enquanto por eles o homem eacute ordenado ao pleno conhecimento de Deus no qual consiste a bem-aventuranccedila eterna (AQUINO Tomaacutes de S Th I q1 a4)91
A partir da afirmaccedilatildeo de Tomaacutes a ciecircncia praacutetica trata dos atos humanos e
estes satildeo considerados na medida em que contribuem ao conhecimento de Deus
Esta eacute a via que faz com que a ciecircncia moral tenha lugar na Teologia Desse modo
torna-se possiacutevel fazer uma ciecircncia moral sobre o homem autor de seus proacuteprios
atos em uma teologia que tem Deus por sujeito Assim segue justificada a inclusatildeo
de uma parte moral na Teologia
5312 A fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista
Foi apresentado ateacute o modo como Tomaacutes de Aquino tornou possiacutevel a
construccedilatildeo de uma parte moral na teologia Frequentemente a eacutetica tomista ainda eacute
vista de certo modo como uma filosofia em que domina o conceito de lei seja a lei
eterna seja a lei natural constituiacuteda segundo os preceitos da lei divina Segundo
Giuseppe Abbaacute a ideia comum eacute que ldquoa lei constituiria a regra moral obrigatoacuteria agrave qual
deve se ater ao sujeito humano livre nas suas accedilotildees voluntaacuterias Os haacutebitos virtuosos
interviriam para tornar faacutecil estaacutevel e agradaacutevel o exerciacutecio dos atos livresrdquo (ABBAacute
2008 p 26) Entretanto vista deste modo a eacutetica tomista seria centrada muito mais
na norma do que no agente Com efeito viu-se que a eacutetica de Tomaacutes se vincula
fortemente agrave moral aristoteacutelica porque focaliza primordialmente o agente Este viacutenculo
eacute um meio de se justificar a fundamentaccedilatildeo aristoteacutelica da moral tomista segundo
ponto a ser aqui explicitado
O primeiro contato de Tomaacutes de Aquino com o texto da Eacutetica a Nicocircmacos foi
nos anos de 1248-52 logo apoacutes completar 20 anos Atraveacutes do primeiro curso sobre
esta nova traduccedilatildeo Tomaacutes de Aquino recebe do mestre Alberto Magno as primeiras
liccedilotildees sobre a Eacutetica do Estagirita Conforme Giuseppe Abbaacute Tomaacutes de Aquino teve
bastante tempo para amadurecer as ideias em torno deste texto e somente 17 anos
depois o Aquinate levou a cabo a tarefa de introduzir na teologia uma eacutetica de
91 ldquoMagis tamen est speculativa quam practica quia principalius agit de rebus divinis quam de actibus
humanis de quibus agit secundum quod per eos ordinatur homo ad perfectam Dei cognitionem in qua aeterna beatitudo consistirdquo
100
inspiraccedilatildeo aristoteacutelica justamente quando compotildee a segunda parte da Suma de
Teologia periacuteodo em que se encontra em Paris de 1269-72 Embora Tomaacutes de
Aquino jaacute ensaie a introduccedilatildeo do estudo sobre as virtudes em obras anteriores como
eacute o caso do Scriptum super Sententiis seu aprofundamento se consolida por ocasiatildeo
da construccedilatildeo da segunda parte da Suma Ainda segundo Giuseppe Abbaacute o
desenvolvimento do pensamento do moral de Tomaacutes de Aquino ldquoeacute a primeira soacutelida
tentativa de utilizar em Teologia a doutrina aristoteacutelica das virtudesrdquo (ABBAacute 2008 p
27) Deve-se agora apresentar qual a perspectiva tomista do conceito de virtude
532 O lugar das virtudes na teologia e sua explicitaccedilatildeo
5321 A beatitude e o lugar das virtudes na siacutentese teoloacutegica tomista
A apresentaccedilatildeo do modo como Tomaacutes de Aquino constituiu uma parte moral
na Teologia a partir da moral aristoteacutelica exige uma reformulaccedilatildeo de vaacuterios conceitos
de sua filosofia moral do estagirita Entre eles encontra-se o conceito de virtude que
possui particular relevacircncia nesta pesquisa Considerando como foi afirmado que a
ciecircncia praacutetica de inspiraccedilatildeo aristoteacutelico-tomista tem o enfoque no agente a filosofia
moral tomista se inicia com uma investigaccedilatildeo acerca fim mais apropriado agraves accedilotildees
humanas Assim ele inicia a Prima Secundae
Eacute de se considerar em primeiro lugar o fim uacuteltimo da vida humana Em seguida aqueles meios que poderatildeo levar o homem a este fim ou desviaacute-lo dele pois eacute do fim que aquelas coisas que a ele concernem recebem as razotildees Como o fim uacuteltimo da vida humana eacute a bem-aventuranccedila deve-se considerar primeiramente o fim uacuteltimo em comum e em seguida a bem-aventuranccedila (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q1 proecircmio )92
A bem-aventuranccedila que eacute o fim uacuteltimo aqui tratado Tomaacutes a apresenta desta
maneira porque sendo Deus a proacutepria beatitude conserva-se por meio dela uma
unidade temaacutetica dentro da Ciecircncia Teoloacutegica isto eacute a felicidade e os meios para
adquiri-la satildeo temas necessaacuterios agrave Teologia O que ocorre eacute que obedecendo agrave
ordem teoloacutegica trata-se inicialmente de Deus e de sua obra depois se deve tratar
92ldquoUbi primo considerandum occurit de ultimo fine humanae vitae et deinde de his per quae homo ad
hunc fine pervenire potest vela ab eo deviare ex fine enim oportet accipere rationes eorum quae ordinantur ad finem Et quia ultimus finis humanae vitae ponitur esse beatitudo oportet primo considerare de ultimo fine in communi deinde de beatitudinerdquo
101
do modo como as criaturas realizam um caminho de retorno a ele sobretudo o
homem que demonstra sua semelhanccedila com Deus na capacidade de conhecer e de
poder ser princiacutepio e senhor de seu agir Com efeito Tomaacutes de Aquino entende que
o homem retorna a Deus de uma maneira muito peculiar este retorno natildeo eacute uma
imposiccedilatildeo de Deus ao homem mas um ato de confianccedila na vontade livre do homem
de procedecirc-lo sem dispensar o auxiacutelio da graccedila (Cf BRUGUEgraveS 2003 Tomo III nota
ldquobrdquo p 29)
A elaboraccedilatildeo de uma Moral das Virtudes encontra pois seu lugar na teologia
agrave medida que por meio do exerciacutecio das virtudes o homem encontra um caminho
mais adequado de alcanccedilar a beatitude com maior propriedade Acrescente-se a isto
o fato de Tomaacutes de Aquino dedicar na Suma uma parte ao estudo daqueles haacutebitos
que distanciam o homem de seu fim Esses haacutebitos denominados viacutecios merecem
uma menccedilatildeo devida dado que o itineraacuterio do homem agrave felicidade comporta tanto os
atos afirmativos das virtudes quanto os atos negativos dos viacutecios O que significa um
ato afirmativo e outro negativo A ideia central eacute a de que o saber sobre as virtudes e
os viacutecios sejam ambos uacuteteis para o encaminhamento do ser humano agrave felicidade seja
exercitando as virtudes (atos afirmativos) seja evitando os viacutecios (atos negativos)
O estudo sobre as virtudes passa a ser desenvolvido no interior do proacuteprio
pensamento de Santo Tomaacutes antes das consideraccedilotildees sobre o modo como Deus
governa as criaturas ao seu fim e governa especialmente os indiviacuteduos humanos agrave
vida beata mediante a lei e a graccedila (cf ABBAacute 2008 p 34) pois entre a vida beata e o
governo divino estatildeo os atos dos quais o indiviacuteduo eacute autor e pelos quais ele realiza
a sua beatitude E como as virtudes se referem ao modo como o homem realiza o
processo de retorno a Deus deve-se aprofundar o modo como as virtudes estatildeo
relacionadas ao ser do homem
5312 A concepccedilatildeo tomista de homem e as virtudes
A partir da Tradiccedilatildeo Biacuteblica a relaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo de homem e as
virtudes se articulam com aquilo que Joseph Pieper denominou de imagem cristatilde do
homem (cf PIEPER 2010 p 9) Esta imagem toma por indicaccedilatildeo a afirmaccedilatildeo que
diz ldquosede perfeitos como o vosso Pai do ceacuteu eacute perfeitordquo Ora na condiccedilatildeo de criaturas
a perfeiccedilatildeo eacute fruto de um aprendizado continuo que inclui a vivecircncia constante dos
102
habitus que vatildeo conduzir o ser humano a expor o que haacute de melhor em si Esse melhor
diz respeito agraves virtudes que aperfeiccediloam o agente e tornam mais acessiacutevel o caminho
agrave beatitude
A partir da antropologia tomista o homem eacute compreendido como uma unidade
substancial de corpo e alma Tomaacutes entende que o ser da mateacuteria corpoacuterea estaacute como
recipiente e sujeito para ser algo superior Neste caso eacute a alma humana que estaacute
como princiacutepio formal pela sua proacutepria natureza Por isso a alma humana eacute forma do
corpo tornando esse composto num ser uno ldquopois eacute atraveacutes da forma pela qual as
coisas tecircm o ser que tambeacutem o composto corpo e alma recebe sua unidaderdquo
(AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles II c 58 )93
A unidade do homem eacute assegurada pela composiccedilatildeo de corpo e alma de modo
que em sua constituiccedilatildeo o homem goza da daacutediva de pela alma fazer parte do reino
espiritual e pelo corpo fazer parte do reino corporal Assim segundo Tomaacutes de
Aquino o homem encontra-se na fronteira do espiritual e do corporal
Deve-se pois admitir algo supremo no gecircnero dos corpos a saber o corpo humano possuidor de temperamento uniforme que atinja o iacutentimo do gecircnero superior isto eacute a alma humana que ocupa o uacuteltimo grau das substacircncias intelectuais como se pode verificar pelo seu modo inteligente de conhecer e por isso se diz que a alma intelectual eacute como o horizonte e a fronteira entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo enquanto substacircncia incorpoacuterea e no entanto como forma do corpo (AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles II 68 )94
Eacute de especial relevacircncia o fato de o homem por sua condiccedilatildeo estar habilitado
a buscar a felicidade pois possui um modo inteligente de conhecer o que o
assemelha a Deus A semelhanccedila com Deus tambeacutem se daacute considerando que o
homem possui domiacutenio de seus atos Neste sentido pode-se afirmar que entre as
criaturas sensiacuteveis o homem eacute aquele que possui uma capacidade natural de buscar
o seu fim Natural poreacutem eacute o seu despreparo dada a constante falibilidade de sua
vontade livre Segundo a antropologia tomista sabe-se que pelo princiacutepio corporal o
homem eacute portador das paixotildees e estas consideradas isoladamente natildeo possuem
nenhuma conotaccedilatildeo no sentido de boas ou maacutes Elas satildeo potecircncias neutras
93ldquoCum igitur a forma unaquaeque res habeat esse a forma etiam habebit unitatemrdquo 94ldquoEst igitur accipere aliquid supremum in genere corporum scilicet corpus humanum aequaliter
complexionatum quod attingit ad infimum seperioris generis scilicet ad animam humanam quae tenet ultimum gradum in genere intellectualium substantiarium ut ex modo intelligendi percipi potest b) Et inde est quod anima intellectualis dicitur esse quase quidam horizon et confinium corporeorum et incorporeorum inquantum est substantia incorporea corporis tamen formardquo
103
moralmente mas que podem condicionar as decisotildees do homem em virtude de seu
forte apelo agrave sensibilidade Eacute justamente aiacute que as virtudes ganham o seu sentido As
potecircncias do homem tanto as da alma quanto as do corpo necessitam de um habitus
que as atualizem em virtude do melhor Assim as virtudes iratildeo pois preparar o
homem positivamente na busca de seu fim uacuteltimo da vida feliz
Deve-se dizer que o irasciacutevel e o concupisciacutevel em si mesmos considerados enquanto partes do apetite sensitivo satildeo comuns a noacutes e aos animais irracionais Mas enquanto racionais por participaccedilatildeo obedientes agrave razatildeo satildeo potecircncias proacuteprias do homem e desse modo poreacutem ser sujeitos da virtude humana (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 56 a4 )95
As virtudes satildeo organizadas para atender as necessidades do homem
considerado em sua integralidade Desse modo as virtudes iratildeo aperfeiccediloar tanto as
potecircncias espirituais isto eacute a inteligecircncia e a vontade que pertencem ao acircmbito da
razatildeo do homem quanto as potecircncias sensitivas que satildeo a concupiscecircncia e a
irascibilidade fontes das paixotildees ambas ligadas ao corpo Eacute em virtude desta
totalidade que eacute o homem que um tratado sobre as virtudes natildeo deveria negligenciar
um estudo sobre as paixotildees e os viacutecios caso contraacuterio um tratado desta natureza
poderia ateacute visar um bem das accedilotildees particularmente mas natildeo o bem do agente
pensado em sua totalidade Acerca disto Tomaacutes de Aquino afirma
O nuacutemero de determinadas coisas pode ser estabelecido ou pelos princiacutepios formais ou pelos sujeitos Em ambos os casos temos quatro virtudes cardeais porque o princiacutepio formal da virtude aqui considerada eacute o bem da razatildeo que pode ser considerado sob o duplo aspecto ou enquanto consiste na proacutepria consideraccedilatildeo da razatildeo e se teraacute entatildeo uma virtude principal que se chama prudecircncia ndash ou enquanto se afirma a ordem da razatildeo em relaccedilatildeo a alguma coisa E isso seraacute ou quanto as accedilotildees e se teraacute entatildeo a justiccedila ou quanto agraves paixotildees e nesse caso eacute preciso que haja virtudes pois para afirmar a ordem da razatildeo nas paixotildees eacute necessaacuterio levar em conta a oposiccedilatildeo delas agrave razatildeo Essa oposiccedilatildeo pode se dar de duas formas primeiro quanto a paixatildeo impele a algo contraacuterio agrave razatildeo e aiacute eacute preciso que a paixatildeo seja controlada o que chamamos temperanccedila segundo quando a paixatildeo nos afasta das normas da razatildeo como o temor do perigo ou do sofrimento e nesse caso devemos nos firmar
95 ldquoErgo dicendum quod irascibilis et concupiscibilis secundum se consideratae prout sunt partes
appetitus sensitivi communes sunt nobis et brutis Sed secundum quod sunt rationales per participationem ut obedientes rationi sic sunt propriae hominis Et hoc modo possunt esse subiectum virtutis humanaerdquo
104
inarredavelmente no que eacute racional e a isso se daacute o nome de fortaleza (AQUINO Tomaacutes de Summa contra gentiles I-II q 61 a2 )96
Tomaacutes de Aquino entende que o nuacutemero das virtudes eacute determinado e esta
determinaccedilatildeo eacute dada de duas maneiras ou segundo os princiacutepios formais ou
conforme os princiacutepios subjetivos na qualidade de sujeitos97 Tanto numa quanto
noutra maneira o nuacutemero das virtudes pode ser resumido em quatro Com efeito esse
nuacutemero de quatro virtudes cardeais eacute exatamente o numero suficiente para dar conta
de todas as dimensotildees do homem pensado em sua constituiccedilatildeo Conforme os
princiacutepios formais a virtude seraacute pois o bem da razatildeo (prudecircncia) ou daquilo que a
ela se refere a saber agrave vontade (justiccedila) como segunda potecircncia espiritual e agrave
concupiscecircncia (temperanccedila) e a irascibilidade (fortaleza) como potecircncias ligadas ao
corpo
Em relaccedilatildeo aos princiacutepios subjetivos o nuacutemero das virtudes principais tambeacutem
seraacute quatro pois segundo Tomaacutes de Aquino os sujeitos satildeo quatro o racional por
essecircncia e dele a prudecircncia e o racional por participaccedilatildeo a vontade sujeito da
justiccedila o apetite concupisciacutevel sujeito da temperanccedila e o irasciacutevel sujeito da
fortaleza
Com isso entende-se que as virtudes visam natildeo apenas a perfeiccedilatildeo das
potecircncias tomadas particular ou aleatoriamente mas visam agrave perfeiccedilatildeo do agente
compreendido em sua totalidade Segundo Albert Pleacute a virtude moral humana e
humanizante levada agrave perfeiccedilatildeo habilita o homem a agir com todo o seu ser em
conformidade com sua natureza racional Eacute dessa forma que ele assegura de uma
vez soacute tanto o bem da obra cumprida (bonum operis) quanto o do sujeito que age
(bonum operantis) (Cf PLEacute 2005 vol IV nota ldquobrdquo p 162)
A relaccedilatildeo entre as virtudes e a constituiccedilatildeo do homem leva a compreender que
eacute em virtude de o homem ser pensado a partir de uma unidade substancial que se
96 ldquodicendum quod numerous aliquorum accipi potest aut secundum principia formalia aut secundum
subiecta et utroque modo inveniuntur quatuor cardinales virtutes Principium enim formale virtutis de qua nunc loquimur est rationis bonum Quod quidem dupliciter potest considerari Uno modo secundum quod in ipsa consideratione rationis consistit Et sic erit uma virtus principalis quae dicitur prudentia ndash Alio modo secundo quod circa aliquid ponitur rationis ordo Et hoc vel circa operationes et sic est iusticia vel circa passiones considerata repugnantia ipsarum ad rationem Quae quidem potest esse dupliciter Uno modo secundum quod passio impellit ad aliquid contrarium rationi et sic necesse est quod passio reprimatur et ab hoc denominatur temperantia Alio modo secundum quod passio retrahit ab eo quod ratio dictat sicut timor periculorum vel laborum et sic necesse est quod homo firmetur in eo quod est rationis ne recedat et ab hoc denominatur fortitudordquo
97 A noccedilatildeo de sujeito tem aqui um sentido preciso Sujeito significa o substrato que suportaraacute a efetivaccedilatildeo de uma coisa
105
pode pleitear uma unidade das virtudes Com efeito esta unidade decorre por um
lado da exigecircncia ou da necessidade que cada potecircncia do homem tem de ser
adequadamente aperfeiccediloada e por outro da inter-relaccedilatildeo existe entre as proacuteprias
virtudes conforme se veraacute adiante quando se tematizar sobre a conexatildeo entre as
virtudes
5313 A explicitaccedilatildeo do conceito de virtude e a releitura tomista da teoria das
virtudes
53131 A perfeiccedilatildeo da potecircncia e habito operativo
Apoacutes ter apontado qual o lugar filosoacutefico das virtudes na Suma Teoloacutegica e o
modo como elas se estruturam em favor do homem e de sua da bem-aventuranccedila
faz-se necessaacuterio expor como Tomaacutes de Aquino assumiu e modificou a noccedilatildeo
aristoteacutelica de virtude Deve-se esclarecer que Tomaacutes se utiliza de duas concepccedilotildees
de virtudes a saber virtude enquanto excelecircncia dos atos humanos e virtude
enquanto habitus operativo que aperfeiccediloa e prepara as potecircncias para emitirem os
atos excelentes requeridos pela vida beata
Primeiramente deve-se afirmar que as virtudes satildeo habitus Segundo Albert
Pleacute habitus eacute uma disposiccedilatildeo uma capacidade da natureza humana a qual se
enraiacuteza em sua natureza especiacutefica e individual finalizada pelo agir (cf PLEacute 2005
tomo IV p 35) Muito mais que uma simples disposiccedilatildeo o habitus qualifica as outras
disposiccedilotildees de modo que estas se realizam da melhor maneira nas accedilotildees especiacuteficas
A partir desta compreensatildeo chega-se ao primeiro conceito de virtude como perfeiccedilatildeo
da potecircncia isto eacute como excelecircncia dos atos humanos
Em que consiste esta excelecircncia Segundo Giuseppe Abbaacute ldquoesta excelecircncia
consiste no fato de que nos atos voluntaacuterios a vontade e os apetites passionais satildeo
regulados segundo especiacuteficos modos de regulaccedilatildeo que satildeo requeridos para a vida
felizrdquo (ABBAacute 2008 p 35) Estes modos especiacuteficos de regulaccedilatildeo satildeo proporcionados
pela razatildeo atraveacutes do que Tomaacutes denominou ordo rationis Eacute pela ordem da razatildeo
ou reta razatildeo que o agente regula as proacuteprias escolhas subordinando-as aos fins
virtuosos Deste modo pela ordo rationis o indiviacuteduo manteacutem uma retidatildeo na busca
da vida feliz Sobre isto Tomaacutes de Aquino afirma ldquoa virtude designa certa perfeiccedilatildeo
106
da potecircncia Mas a perfeiccedilatildeo de uma coisa eacute considerada principalmente em ordem
ao seu fim Ora o fim da potecircncia eacute o ato Portanto a potecircncia seraacute perfeita na medida
em que eacute determinada por seu atordquo (AQUINO Tomaacutes deS Th I-II q55 a1)98 O
primeiro sentido aplicado por Tomaacutes de Aquino jaacute era conhecido e tematizado por
Aristoacuteteles
A virtude designa certa perfeiccedilatildeo da potecircncia pois ela eacute considerada desta
maneira uma vez que ordena as potecircncias em funccedilatildeo do fim do homem Entretanto
as virtudes satildeo a perfeiccedilatildeo apenas das potecircncias que corroboram com o fim do
homem Estas potecircncias as potecircncias racionais necessitam das virtudes porque elas
natildeo se determinam a um uacutenico objeto Tomaacutes de Aquino afirma que ldquoas potecircncias
racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se
prestam indeterminadamente a muitas coisasrdquo Nesta hipoacutetese as virtudes teriam a
funccedilatildeo de aperfeiccediloar e de preparar as potecircncias para emitirem os atos excelentes
que satildeo exigidos agrave vida feliz Aleacutem disso a vontade livre do homem de certo modo
nunca teria dispensada sua atuaccedilatildeo
Em segundo lugar virtude eacute tomada segundo a compreensatildeo de haacutebito
operativo isto eacute enquanto habito operativo ela valoriza as capacidades naturais do
ser humano como forma de tambeacutem corrigir o despreparo natural do homem em
buscar a vida beata dada a constituiccedilatildeo do homem na qual o seu existir natildeo atualiza
naturalmente todas as potencialidades presentes na sua essecircncia Este conceito de
habitus operativus eacute uma particularidade e um acreacutescimo de Tomaacutes de Aquino ao
conceito primitivo de virtude Por isto mesmo Tomaacutes de Aquino conclui que ldquoa virtude
humana natildeo eacute apenas perfeiccedilatildeo mas tambeacutem aquilo que o aperfeiccediloardquo
Eacute possiacutevel afirmar que o duplo conceito de virtude como perfeiccedilatildeo das
potecircncias e como habitus operativus se dirige por um lado agrave construccedilatildeo de um haacutebito
bom (bocircnus habitus) e por outro como produtor de bem (boni operativus) Constitui-
se como um fato novo a concepccedilatildeo de virtude como um habitus que contem a funccedilatildeo
de aperfeiccediloamento e preparaccedilatildeo agrave felicidade Segundo Tomaacutes de Aquino ldquoa virtude
humana natildeo implica em uma ordenaccedilatildeo para o existir mas antes para a accedilatildeo Assim
eacute da razatildeo da virtude humana ser haacutebito operativordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q55
98 ldquovirtus nominat quandam potentiae perfectionem Uniuscuiusque autem perfectio praecipue
consideratur in ordine ad suum finem Finis autem potentiae actus est Unde potentia dicitur esse perfecta secundum quod determinatur ad suum actumrdquo
107
a1)99 Esta concepccedilatildeo supera de certo modo a concepccedilatildeo aristoteacutelica de virtude Com
efeito a partir da abordagem tomista a virtude natildeo diz respeito apenas agrave excelecircncia
dos atos humanos mas ao habitus operativus que aperfeiccediloa e repara os atos
humanos na ldquojornadardquo do homem de retorno a Deus
53132 As virtudes teologais
As virtudes teologais correspondem ao contributo de Deus ao homem na busca
de uma vida perfeitamente feliz As virtudes cardeais satildeo resultado das capacidades
naturais do homem por isso mesmo como ldquopor sua forccedila ningueacutem pode se salvarrdquo
as virtudes teologais acrescentam agrave natureza humana a capacidade de se dirigirem a
Deus com um forccedila sobrenatural isto eacute com uma forccedila que sozinha a natureza
humana natildeo seria capaz de proporcionar
A ideia de Tomaacutes eacute que a razatildeo humana eacute capaz de ordenar os apetites
volitivos e passionais em funccedilatildeo de seu proacuteprio fim
Uma das grandes inovaccedilotildees do pensamento de Santo Tomaacutes estaacute na
articulaccedilatildeo das virtudes teologais tanto na teologia quanto no cataacutelogo das proacuteprias
virtudes Com efeito a esperanccedila passa a ser considerada componente das virtudes
de tal modo que ateacute autores de inspiraccedilatildeo marxista como Ernst Bloch a tem em grande
conta
Embora as virtudes teologais tenham sido infundidas por Deus no ser humano
segundo a opiniatildeo se Tomaacutes de Aquino elas tambeacutem participam no aperfeiccediloamento
do intelecto e do apetite Esta ideia do Aquinate abre espaccedilo agrave noccedilatildeo de conexatildeo
entre as virtudes Eacute por meio desta conexatildeo entre as virtudes que se estrutura no
agente a unidade de seu caraacuteter E eacute justamente pela virtude da Prudecircncia que se daacute
a unidade da pessoa uma vez que a prudecircncia desenvolve uma harmonizaccedilatildeo
dinacircmica entre a razatildeo e o apetite
53133 A virtude da Justiccedila
99 ldquoEt ideo de ratione virtutis humanae est quo sit habitus operativusrdquo
108
Eacute digno de nota que a Beatitude cristatilde natildeo eacute um achado exclusivamente
individual e nem deve ser pensada desapegada do caraacuteter social Mesmo que o aacutepice
da Beatitude seja a visio beatifica pensada num plano para aleacutem histoacuteria conforme a
revelaccedilatildeo cristatilde haacute que se pensar nas condiccedilotildees sensiacuteveis favoraacuteveis ao alcance
dela Estas condiccedilotildees satildeo certamente proporcionadas num niacutevel individual atraveacutes da
maior parte das virtudes e num niacutevel comunitaacuterio atraveacutes da virtude da justiccedila
A justiccedila jaacute desde o Aristoacuteteles carrega a marca de ser a maior de todas as
virtudes pois eacute a uacutenica que diz a respeito a relaccedilatildeo do agente com outros O livro V
da Eacutetica a Nicocircmacos eacute dedicado agrave Justiccedila suas acepccedilotildees divisotildees e gradualidades
Tomaacutes de Aquino ldquobeberdquo dos princiacutepios aristoteacutelicos da justiccedila e dedica a questatildeo 58
da IIa IIae da Suma Teoloacutegica agrave anaacutelise e aprofundamento desta virtude
Na anaacutelise tomista sobre a Justiccedila as dimensotildees pessoais e sociais da vida
moral satildeo postas em relaccedilatildeo especialmente no que diz respeito agrave vida cristatilde
Pertence agrave justiccedila a funccedilatildeo de qualificar e retificar as accedilotildees da pessoa Esta funccedilatildeo
tambeacutem se estende agraves relaccedilotildees e instituiccedilotildees da vida social
Do ponto de vista pessoal considerando a antropologia tomista a potecircncia
espiritual da vontade se relaciona agrave capacidade de agir O bem agir enquanto melhor
atualizaccedilatildeo da potecircncia da vontade se traduz na forma de Justiccedila Do ponto de vista
pessoal a justiccedila eacute a virtude conexa agrave vontade ao passo que do ponto de vista social
Justiccedila de refletiraacute ou seraacute atualizada como Direito O Direito eacute assim o objeto da
justiccedila Nesse sentido a virtude da justiccedila faz parte de um elo que inclui homem
vontade virtude e Direito Segundo Claacuteudio Pedrosa ldquoO Direito como objeto da
Justiccedila eacute erigido segundo entendemos como qualificativo eacutetico-juriacutedico da
conceituaccedilatildeo de Justiccedila em Santo Tomaacutesrdquo (NUNES 2011 p 590)
53134 A unidade das virtudes e conexatildeo entre as virtudes
A unidade das virtudes em Tomaacutes de Aquino pode ser encontrada naquilo que
ele intitula a conexatildeo entre as virtudes Com efeito estaacute ideia de interdependecircncia
entre as virtudes ateacute entatildeo pouco tematizada no acircmbito da Eacutetica das Virtudes eacute o
que daacute inteligibilidade a uma consolidaccedilatildeo da unidade do caraacuteter moral de um agente
Andreacute Comte-Sponville critica a ideia de em um estudo sobre a moral se
tematizar sobre as paixotildees e os viacutecios ldquoe o que eacute mais digno de interesse na moral
109
que as virtudes Assim como Spinoza natildeo creio haver utilidade em denunciar os
viacutecios o mal o pecado Eacute a moral dos tristes e uma triste moralrdquo (COMTE-SPONVILLE
1995 p 7) Contrariamente a afirmaccedilatildeo do autor eacute relevante compreender que a
consideraccedilatildeo sobre as paixotildees muito mais do que uma fuga que realmente importa
contrariamente ao que diz Andreacute Comte-Sponville constitui-se como um
reconhecimento do modo como a razatildeo se relaciona com os apetites Tomaacutes de
Aquino sabe e afirma que em relaccedilatildeo aos apetites a razatildeo natildeo pode agir na forma
de um ldquopoder despoacuteticordquo mas age na forma de um ldquopoder poliacuteticordquo no qual as
decisotildees satildeo tomadas como resultado de um longo e contiacutenuo diaacutelogo entre forccedilas
contraacuterias
A parte apetitiva obedece agrave razatildeo natildeo ao menor aceno mas com certa resistecircncia Razatildeo porque o Filoacutesofo diz que lsquoa razatildeo rege a potecircncia apetitiva com poder poliacuteticorsquo tal qual se governam as pessoas livres que tecircm certos direitos de oposiccedilatildeo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 58 a2)100
A necessidade de se conhecer as paixotildees e os viacutecios se impotildee porque mesmo
podendo conduzir o ser humano agrave vida boa a vontade humana permanece faliacutevel
sendo assim deve-se saber sobre as virtudes e sobre o seu oposto porque estas satildeo
de certo modo realidades quotidianas ao indiviacuteduo Com efeito pelas paixotildees eacute
possiacutevel condicionar o exerciacutecio da vontade livre caso estas potecircncias sejam
atualizadas na forma de viacutecios
Outro dado relevante eacute que a compreensatildeo acerca das paixotildees ainda
proporciona a consciecircncia da relaccedilatildeo entre as paixotildees e suas virtudes
correspondentes Isto eacute cada paixatildeo suscita o exerciacutecio de uma virtude que lhe eacute
apropriada Dessa afirmaccedilatildeo podem-se concluir duas coisas a primeira eacute a de que a
diversidade das paixotildees causa a diversidade das virtudes morais e a segunda eacute a de
que o cataacutelogo das virtudes eacute fundamentado nas necessidades concretas do ser
humano Assim contra ao que Andreacute Comte-Sponville coloca o estudo sobre as
paixotildees muito mais do que uma moral dos tristes constitui-se num reconhecimento
desta unidade que eacute o homem e de como as virtudes natildeo se ligam a ele acidental
Uma decorrecircncia necessaacuteria unidade das virtudes eacute a ideia de que as virtudes
estatildeo conectadas umas agraves outras A ideia de Tomaacutes eacute fazer entender que se pelas
100 ldquoPars enim appetitiva obedit rationi nom omnimo ad notum sed cum aliqua contradictione unde
Philosophus dicit in I Polit quod ratio imperat appetitivae principatu poliacutetico quod scilicet aliquis praeest liberis qui habent ius in aliquo contradicendirdquo
110
virtudes consideradas separadamente o homem possui a perfeiccedilatildeo de suas
potecircncias a praacutetica das virtudes mostraraacute que umas natildeo seratildeo possiacuteveis sem as
outras Ora se na arquitetura da antropologia tomista todas as virtudes recebem uma
iluminaccedilatildeo pela virtude intelectual da prudecircncia de modo que ao final todo o agir do
homem virtuoso estaacute relacionado agrave reta razatildeo deve-se aceitar tambeacutem que todas as
virtudes estatildeo relacionadas e conectadas
A conexatildeo das virtudes a partir do Comentaacuterio a Eacutetica a Nicocircmacos mostra
como a parte racional do homem atua relacionada agrave vontade e como existe uma
relaccedilatildeo de interdependecircncia entre as virtudes
Duas coisas satildeo asseguradas na obra da virtude Uma eacute que o homem tenha uma intenccedilatildeo correta para o fim o que a virtude moral providencia inclinando a faculdade apetitiva para um fim proacuteprio A outra eacute dada pela prudecircncia a qual daacute bons conselhos julga e ordena os meios para o fim (DrsquoAQUIN Thomas Commentary on Aristotles
Nicomachean Ethics VI 10 1269 1993)101
Essas duas potecircncias satildeo partes essenciais das accedilotildees virtuosas a prudecircncia
aperfeiccediloando a parte racional e a virtude moral a parte apetitiva A prudecircncia natildeo
pode existir sem virtude moral bem como a virtude moral natildeo pode existir sem a
prudecircncia Joatildeo Hobuss acrescenta que ldquoo mesmo se daacute com as virtudes morais pois
enquanto a prudecircncia garante a bondade dos meios as virtudes morais garantem a
retidatildeo do fim isto eacute a obra da virtude eacute assegurada por ambas tanto a prudecircncia
quanto as virtudes moraisrdquo (HOBUSS 2011) Desse modo entende-se que uma accedilatildeo
virtuosa necessita da conexatildeo entre as virtudes
Possui particular relevacircncia a posiccedilatildeo tomista de que todas as virtudes
dependam da caridade Sua tese proveacutem do posicionamento fundamental da Tradiccedilatildeo
Biacuteblica que defende que entre as virtudes teologais a caridade eacute a virtude mais
importante Tomaacutes de Aquino afirma que ldquoas virtudes morais infusas estatildeo ligadas
entre si natildeo soacute por causa da prudecircncia mas tambeacutem da caridade e quem perde a
caridade pelo pecado mortal perde todas as virtudes morais infusasrdquo (AQUINO Tomaacutes
S Th I-II q65 a3)102 A afirmaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino leva a concluir uma coisa a
101 ldquoTwo things are needed in a work of virtue One is that a man have a right intention for the end which
moral virtue provides in inclining the appetitive faculty to a proprer end The other is to be well disposed towards the means This is done by prudence which gives good advice judges and orders the means to the endrdquo
102 ldquoQuod virtutes morales infusae non solum habent connexionem propter prudentiam sed etiam propter caritatem Et quod qui amittit caritatem per peccatum mortale amittit caritatem per peccatum mortele amittit omnes virtutes Morales infusasrdquo
111
unidade e a conexatildeo entre as virtudes natildeo eacute um feito exclusivo da racionalidade mas
eacute uma condiccedilatildeo proporcionada pelo ato de amor que eacute a caridade
A organizaccedilatildeo da conexatildeo entre as virtudes a partir de Tomaacutes de
Aquino obedece a seguinte ordem primeiramente haacute conexatildeo das virtudes
intelectuais entre si por meio dos primeiros princiacutepios (cf AQUINO Tomaacutes de S Th I-
II q 65 a3) Jaacute a conexatildeo entre as virtudes intelectuais e as virtudes morais se daacute por
meio da prudecircncia Com efeito eacute justamente por meio da relaccedilatildeo existente entre a
prudecircncia e as virtudes morais que se daacute a harmonizaccedilatildeo entre razatildeo e o apetite
denominado de desejo refletido Por fim a conexatildeo entre as virtudes morais e as
teologais se daacute por meio da caridade e por obra de sua atuaccedilatildeo as virtudes humanas
se tornam mais perfeitas Cabe afirmar que esta uacuteltima conexatildeo entre as virtudes
teologais e as virtudes morais eacute resultado da siacutentese tomista entre a tradiccedilatildeo biacuteblica e
o aristotelismo Cabe verificar ainda outras relaccedilotildees entre estas duas tradiccedilotildees
53135 O habitus e vontade livre
Aleacutem do conceito de virtude Tomaacutes de Aquino traz outras inovaccedilotildees agrave
concepccedilatildeo aristoteacutelica de virtudes Uma dessas inovaccedilotildees consiste na relaccedilatildeo que se
estabelece entre habitus e vontade livre Segundo Giuseppe Abbaacute
uma vez que a Aristoacuteteles faltava o conceito de livre vontade as virtudes eacuteticas introduziam uma determinaccedilatildeo inelutaacutevel nos apetites Para Tomaacutes poreacutem introduzem uma determinaccedilatildeo que estaacute continuamente agrave disposiccedilatildeo da vontade que pode usar delas quando quiser mas tais determinaccedilotildees natildeo passam ao ato sem o livre consenso da vontade As virtudes permanecem sendo determinaccedilotildees uniacutevocas e infaliacuteveis mas a livre vontade humana permanece faliacutevel (ABBAacute 2008 p 36)
A relaccedilatildeo entre habitus e vontade livre explica por exemplo como algueacutem
mesmo sendo virtuoso sempre estaacute na iminecircncia de natildeo secirc-lo Assim esta relaccedilatildeo
contribui com a ideia de que soacute existe virtude onde o homem pode libertar-se do
determinismo da natureza animal Isto soacute eacute possiacutevel ao homem pela accedilatildeo de suas
capacidades inteligentes E porque as potecircncias racionais se prestam de maneira
indeterminadas a muitas coisas eacute que satildeo necessaacuterios os habitus virtuosos
Existem poreacutem potecircncias que satildeo determinadas em si mesmas para os seus atos como as potecircncias naturais ativas e por isso elas proacuteprias se chamam virtudes Jaacute as potecircncias racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se prestam
112
indeterminadamente a muitas coisas (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q55 a 1)
Se se considera a realidade indeterminada das potecircncias racionais torna-se
possiacutevel chegar ao fato de Eacutetica Tomista estar profundamente ligada agrave ideia de
liberdade Com efeito pelas virtudes se podem aperfeiccediloar as potecircncias para o
melhor entretanto o exerciacutecio das virtudes fundamenta-se numa adesatildeo consciente
da pessoa mostrando como estatildeo inter-relacionados virtudes pessoa e liberdade103
Na verdade natildeo eacute necessaacuterio apresentar separadamente a noccedilatildeo de pessoa e a de
liberdade pois o conceito de pessoa jaacute inclui a ideia de liberdade por se referir a uma
substacircncia individual de natureza racional Ora como se sabe a livre vontade em
Tomaacutes de Aquino decorre da condiccedilatildeo racional do homem
Considerando a condiccedilatildeo do homem se as virtudes possuem uma funccedilatildeo
aperfeiccediloadora e reparadora das potecircncias humanas se vecirc que existe uma relaccedilatildeo
iacutentima entre virtude e livre-arbiacutetrio em Tomaacutes de Aquino Ora se o livre-arbiacutetrio eacute a
capacidade de se fazer o que se quer sua relaccedilatildeo com as virtudes haacute de dirigir os
atos especificamente humanos de modo que o proacuteprio homem seja plenamente livre
Plenamente livre se refere pois ao intento de que o homem que natildeo seja escravo
nem mesmo das determinaccedilotildees do livre-arbiacutetrio que com sua natureza
indeterminada pode liberar o ser humano agrave maldade
A afirmaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino ratifica ldquoque a virtude eacute o bom uso do livre
arbiacutetrio a saber porque a virtude se ordena a isso como o ao seu proacuteprio ato proacuteprio
pois o ato virtuoso nada mais eacute que o bom uso do livre-arbiacutetriordquo (AQUINO Tomaacutes de
S Th I-II q 55 a 1)104 Como se viu em outra seccedilatildeo desta pesquisa livre-arbiacutetrio natildeo
significa necessariamente a liberdade Daiacute a afirmaccedilatildeo de Tomaacutes ao relacionar virtude
a um ldquobom usordquo do livre arbiacutetrio A partir da afirmaccedilatildeo do autor pode-se afirmar por
um lado que as virtudes satildeo haacutebitos que auxiliam a vivecircncia pessoal da liberdade
por outro o aprofundamento da ideia de que a eacutetica tomista natildeo eacute uma simples
reduccedilatildeo das accedilotildees agrave racionalidade pura ou exclusivamente na vontade Esta
conclusatildeo tambeacutem eacute ratificada por Juvenal Savian Filho quando afirma que
103Sobre a fundamentaccedilatildeo da eacutetica tomista na noccedilatildeo de liberdade conferir o artigo de SAVIAN FILHO
2008 p 177-184 104 ldquoDicendum quod bonus usus liberi arbitrii dicitur esse virtus secundum eandem rationem scilicet est
id ad quod ordinatur virtus sicut ad proprium actum Nihil est enim aliud actus virtutis quam bonus usus liberi arbitriirdquo
113
Uma accedilatildeo [segundo o pensamento tomista] nunca eacute fundada num mero raciociacutenio nem num mero desejo Razatildeo e vontade mostram-se entrelaccediladas na accedilatildeo moral e Tomaacutes ainda que decirc prerrogativa agrave razatildeo prefere apontar para tal entrelaccedilamento ou enovelamento como dissemos acima (SAVIAN FILHO 2008 p 181)
A partir da afirmaccedilatildeo de Juvenal Savian Filho compreende-se que o
posicionamento de Santo Tomaacutes em relaccedilatildeo agraves accedilotildees natildeo negligencia o modo como
o ser humano eacute constituiacutedo A constituiccedilatildeo corporal e aniacutemica do homem deixa patente
que seria um reducionismo negligenciar da relaccedilatildeo interna que a razatildeo e a vontade
possuem Esta relaccedilatildeo seraacute pensada a seguir
53136 As virtudes eacuteticas e a razatildeo
Segundo Giuseppe Abbaacute a outra inovaccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino em relaccedilatildeo ao
conceito aristoteacutelico de virtude refere-se a relaccedilatildeo entre as virtudes eacuteticas e a razatildeo
Para ele Aristoacuteteles e Tomaacutes reconhecem que as virtudes recebem da razatildeo
enquanto ato prudencial a determinaccedilatildeo do justo meio entretanto Tomaacutes de Aquino
acrescenta que tanto a prudecircncia quanto as outras virtudes eacuteticas recebem da razatildeo
a concepccedilatildeo e a prescriccedilatildeo dos fins virtuosos gerais da vida boa e certos tipos de
accedilotildees absolutamente requeridas ou excluiacutedas por tais fins
Ora ao fim devido o homem se dispotildee convenientemente pela virtude que aperfeiccediloa a parte apetitiva da alma cujo objeto eacute o fim Quanto aos meios adequados ao fim importa que o homem esteja diretamente disposto pelo haacutebito da razatildeo porque aconselhar e escolher que satildeo accedilotildees relacionadas como os meios satildeo atos da razatildeo (ABBAacute 2008)
A partir da afirmaccedilatildeo apresentada eacute possiacutevel perguntar de onde a razatildeo retira
os meios adequados ao fim Ora se o fim uacuteltimo da vida humana eacute Deus nele
tambeacutem deve estar a razatildeo e o fundamento da lei eterna que dispotildee os meios mais
adequados ao fim E eacute dessa lei eterna que proveacutem a ideia de que a razatildeo humana
nela participa e como tal eacute atraveacutes das virtudes e natildeo dos preceitos da lei que a lei
eterna alcanccedila os atos individuais e os torna perfeitos
Segundo Eacutetienne Gilson o caraacuteter propriamente humano eacute garantido pela
razatildeo assim a virtude e o bem moral como que se harmonizam agrave nossa natureza
Contrariamente o mal moral o pecado e o viacutecio de que o pecado decorre soacute podem
ser concebidos como faltas de racionalidade no ato ou no costume (cf GILSON 2006
p 398)
114
53137 A relaccedilatildeo entre virtude e individualidade a noccedilatildeo tomista de pessoa
Existe uma relaccedilatildeo entre as virtudes e a individualidade Embora as virtudes se
encontrem no ser humano em seu germe a natureza humana comporta natildeo apenas
as virtualidades especiacuteficas e comuns a todos os homens Com efeito as virtudes soacute
existem individualizadas num ente concreto e singular Esta convicccedilatildeo de Santo
Tomaacutes eacute o que fundamenta a ideia de que cada pessoa possui uma aptidatildeo especiacutefica
e toda particular tanto para o saber quanto para as virtudes
Seja de um modo ou de outro a virtude eacute natural no homem incoativamente Segundo a natureza especiacutefica enquanto na razatildeo do homem estatildeo presentes naturalmente certos princiacutepios naturalmente conhecidos tanto na ordem do saber quanto na ordem da accedilatildeo princiacutepios que satildeo sementes das virtudes intelectuais e das virtudes morais e enquanto estaacute presente na vontade um apetite natural do bem conforme a razatildeo Por outro lado segundo a natureza individual enquanto uns satildeo pela disposiccedilatildeo de seu corpo mais ou menos dispostos a algumas virtudes e isso porque certas potecircncias sensitivas satildeo atos de algumas partes do corpo e a disposiccedilatildeo deles favorece ou dificulta os atos dessas potecircncias e por consequecircncia as potecircncias racionais as quais as faculdades sensitivas obedecem Assim eacute que uma pessoa tem aptidatildeo natural para a ciecircncia outra para a fortaleza e outra para a temperanccedila E dessa forma tanto as virtudes intelectuais quanto as morais existem em noacutes naturalmente como que num iniacutecio de aptidatildeo Natildeo pois de maneira consumada porque a natureza estaacute determinada a uma soacute coisa e a consumaccedilatildeo dessas virtudes natildeo se realiza por um soacute tipo de accedilatildeo mas segundo formas diversas segundo as vaacuterias mateacuterias sobre que versam as virtudes e segundo as diferenccedilas circunstanciais (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 63 a2)105
Tomaacutes de Aquino compreende que os princiacutepios do conhecimento e da accedilatildeo
estatildeo presentes no homem na forma de semente Ou seja como partiacutecipe de uma
105 ldquoUtroque autem modo virtus est homini naturalis secundum quandam inchoationem Secundum
quidem naturam speciei inquantum in ratione hominis insunt naturaliter quaedam principia naturaliter coacutegnita tam scibilium quam agendorum quae sunt quaedam seminalia intellectualium virtutum et moralium et inquantum in voluntate inest quidam naturalis appetitus boni quod est secundum rationem Secundum vero naturam individui inquantum ex corporis dispositione aliqui sunt dispositi vel melius vel peius ad quasdam virtutes prout scilicet vires quaedam sensitivae actus sunt quarundam partium corporis ex quarum dispositione adiuvantur vel impediuntur huismodi vires in suis actibus et per consequens vires deserviunt Et secundum hoc unus homo habet naturalem aptitudinem ad scientiam alius ad fotitudinem alius ad temperantiam Et his modis tam virtutes intellectuales quam morales secundum quandam aptitudinis inchoationem sunt in nobis a natura ndash Non autem consummatio earum Quia natura determinatur ad unum consummatio autem huiusmodi vitutum non est secundum unum modum actionis sed diversimode sedundum diversas mateacuterias in quibus virtutes operantur et sedundum diversas circumstantiasrdquo
115
essecircncia que garante esta aptidatildeo pode-se afirmar que o ser humano consolida sua
vida de saber e de agir no interior de sua personalidade atraveacutes da vida virtuosa e na
exterioridade da vida poliacutetica entendida aqui como expressatildeo da vivecircncia social do
ser humano
Se como foi dito os princiacutepios do conhecimento e do agir estatildeo presentes no
homem na forma de sementes eacute por meio da natureza individual que os seres
humanos atualizam essas potecircncias e por conseguinte distinguem-se no
aprendizado e no exerciacutecio efetivo das virtudes Assim eacute possiacutevel afirmar que embora
as virtudes se relacionem entre si o modo como cada indiviacuteduo atualiza suas
potecircncias eacute muito particular Daiacute porque Tomaacutes de Aquino afirmar que uma pessoa
tem aptidatildeo natural para a ciecircncia outra para a fortaleza e outra para a temperanccedila
(cf AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q 63 a2)
Tomaacutes de Aquino ainda revela uma profunda consciecircncia acerca da
consumaccedilatildeo das virtudes Ao afirmar que as virtudes intelectuais e morais estatildeo no
homem como aptidatildeo e que a sua consumaccedilatildeo natildeo se realiza por um soacute tipo de accedilatildeo
e sob diversas circunstacircncias o autor sinaliza que diversas formas de vivecircncia ou de
praacuteticas satildeo capazes de atualizar as mesmas virtudes Assim natildeo se precisa acentuar
a necessidade de as pessoas viverem da mesma maneira para serem portadoras das
mesmas virtudes Eacute possiacutevel pois afirmar que pertence a Tomaacutes de Aquino o meacuterito
de compreender que em sua consumaccedilatildeo ou atualizaccedilatildeo as virtudes se aplicam de
maneiras diferentes em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que as praticam Estatildeo na base dessas
suas compreensotildees tanto o aprofundamento que Tomaacutes realizou da noccedilatildeo de
indiviacuteduo quanto o da noccedilatildeo de pessoa Como se sabe pela evoluccedilatildeo histoacuterica do
conceito de pessoa natildeo esteve entre as preocupaccedilotildees mais relevantes de Aristoacuteteles
o problema da individuaccedilatildeo aleacutem disso somente com Boeacutecio pessoa passa a
significar este mais particular no gecircnero humano Assim Tomaacutes de Aquino conclui
que ldquoas condiccedilotildees individuais de cada pessoa tambeacutem proporciona maior ou menos
proximidade agrave virtude entendida como meiordquo (AQUINO Tomaacutes de S Th I-II q66 a1)
532 A eacutetica antiga assunccedilatildeo compatibilizaccedilatildeo e superaccedilatildeo
A ideia de liberdade em Tomaacutes de Aquino se constitui como princiacutepio que guia
o problema tomista da Beatitude e do Fim uacuteltimo do homem Aristoacuteteles seguindo a
116
articulaccedilatildeo da Eacutetica Antiga tem a Eudaimonia como ideia central da vida moral
Tomando esta ideia sob a acepccedilatildeo de Beatitude Tomaacutes de Aquino ultrapassa a ideia
aristoteacutelica primitiva de Eudaimonia rompendo assim com o cosmocentrismo da
Eacutetica Antiga assentado na moral aristoteacutelica e no neoplatonismo
Tomaacutes de Aquino empreende em relaccedilatildeo agrave Eacutetica das Virtudes um esforccedilo de
integraccedilatildeo da moral antiga ao personalismo cristatildeo Santo Tomaacutes busca manter um
equiliacutebrio entre a consistecircncia de uma natureza humana essencial da eacutetica antiga e
o homem histoacuterico peregrino do teocentrismo cristatildeo Eacute possiacutevel afirmar que a
questatildeo da liberdade humana estaacute situada entre a posiccedilatildeo teocecircntrica e a beatitude
A ideia cristatilde de que a beatitude soacute se realiza em sua plenitude com a visatildeo beatiacutefica
da divina essecircncia eacute mais um contributo singular agrave Eacutetica das Virtudes
O cosmocentrismo da eacutetica de Aristoacuteteles repousa sobre uma noccedilatildeo de
natureza que compreende que a tendecircncia para a Eudaimonia eacute fruto de ldquoum princiacutepio
interno de movimento dos seres que lhes confere sua consistecircncia proacutepria num
universo ordenado segundo os ciacuterculos ascendentes das naturezas ou essecircnciasrdquo
(LIMA VAZ 2002 p 39) Por sua vez do cosmocentrismo de origem neoplatocircnica o
pensamento cristatildeo importou a ideia de processatildeo e retorno dos seres com relaccedilatildeo
ao seu princiacutepio Esta ideia tornou-se posteriormente o esquema mais baacutesico da
ciecircncia teoloacutegica que compreende tudo como vindo de Deus e a ele retornando Deus
eacute portanto o ldquoArdquo enquanto tudo dele procede e o ldquoΩrdquo enquanto tudo para ele
retorna
A Eudaimonia eacute sem duacutevida de valor fundamental na eacutetica aristoteacutelica Ela estaacute
em consonacircncia um esquema cosmocecircntrico presente no pensamento de Aristoacuteteles
Na Poliacutetica por exemplo ser escravo ou ser livre eacute obra da natureza O recorte tomista
da Eudaimonia apresentado como Beatitude eacute justamente uma transgressatildeo da
ordem da coacutesmica possui um caraacuteter espiritual A visatildeo beatiacutefica transcende a ordem
da natureza seja no homem seja porque a proacutepria visatildeo eacute compreendida enquanto
uniatildeo agravequele que eacute o princiacutepio e termo da ordem natural embora natildeo fazendo parte
dela
Segundo Lima Vaz um dos motivos de o cosmocentrismo antigo se
compatibilizar ao pensamento cristatildeo deve-se ao caraacuteter teoloacutegico
Eacute preciso no entanto acentuar que o cosmocentrismo antigo eacute de natureza teoloacutegica e foi como tal que entrou em confronto com o
117
teocentrismo cristatildeo Com efeito o cosmos como totalidade perfeita tem como predicado fundamental a divindade Eacute o theion por excelecircncia Sendo assim sua contemplaccedilatildeo assume necessariamente a forma de uma teologia De resto a teologia cristatilde constitui-se em grande parte utilizando as estruturas conceptuais (sic) dessa teologia coacutesmica embora criticando-a nas suas expressotildees panteiacutestas (LIMA VAZ 2002 p 42)
No estudo do Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio Carlos Arthur
mostra como Tomaacutes de Aquino aponta exatamente a similitude entre o objeto da
Teologia e o objeto da Filosofia Primeira ou seja tanto a Teologia quando a
Metafiacutesica ou Filosofia Primeira compartilham um objeto semelhante106 Esta seria
pois a natureza teoloacutegica do cosmocentrismo antigo Ora a eacutetica teleoloacutegica que
aponta para o fim uacuteltimo do homem assume uma perspectiva finalista ao modo de
uma causa final a medida em que a eudaimonia se constitui na contemplaccedilatildeo do
cosmos divino e no conhecimento do seu princiacutepio ordenador
Seguindo a ideia da Reconciliaccedilatildeo entre o Pensamento Cristatildeo e o
Aristotelismo ver-se-aacute que aleacutem de assumir a influecircncia aristoteacutelica acerca do fim
uacuteltimo do homem Tomaacutes de Aquino faz do alcance ao fim uacuteltimo natildeo apenas uma
condiccedilatildeo de um movimento interno natural mas tambeacutem um ato acessiacutevel ao homem
atraveacutes de um ato da inteligecircncia O alcance e a compreensatildeo do fim uacuteltimo pelo
homem eacute assim o elemento de assunccedilatildeo e superaccedilatildeo do esquema aristoteacutelico da
Eacutetica das Virtudes por Santo Tomaacutes natildeo porque a espiritualidade da inteligecircncia seja
o diferencial mas pelo objeto alcanccedilado por ela Deus eacute o alcanccedilado na beatitude
cristatilde e como tal ele estaacute para aleacutem da ordem natural
Eacute possiacutevel afirmar que a eacutetica de Aristoacuteteles como tambeacutem a sua poliacutetica
constituiu-se como forma de manter uma coerecircncia entre a ordem do cosmos e os
atos humanos Especificamente a teoria aristoteacutelica das accedilotildees tenta compatibilizar o
desafio de desenvolver uma teoria causal das accedilotildees que compatibilizem a ordem da
natureza e a responsabilidade do agente Sobre a causalidade das accedilotildees em
Aristoacuteteles Carlo Natali afirma ldquoa causalidade aristoteacutelica individua uma conexatildeo real
existente no mundordquo (NATALI 2010 p 319)
106 NASCIMENTO Carlos Arthur R do Introduccedilatildeo ao Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio
questotildees 5 e 6 In TOMAS DE AQUINO Comentaacuterio ao Tratado da Trindade de Boeacutecio questotildees 5 e 6 Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Editora da UNESP 1999 p 17
118
A existecircncia de uma conexatildeo real no mundo significa que a teoria aristoteacutelica
dos atos e por conseguinte a eacutetica aristoteacutelica possuem um caraacuteter natural ou
cosmocecircntrico Qual a insistecircncia na distinccedilatildeo entre o caraacuteter cosmocecircntrico da eacutetica
aristoteacutelica e a eacutetica cristatilde ldquoancoradardquo na ideia de liberdade A credibilidade da ideia
de liberdade mesmo com os questionamentos posteriores dada pelos filoacutesofos
modernos ratifica a sequecircncia de contribuiccedilotildees oferecidas pelo pensamento cristatildeo agrave
Eacutetica das Virtudes e agrave Tradiccedilatildeo Filosoacutefica
Henrique de Lima Vaz afirma que ldquoeacute um fato que a concepccedilatildeo da liberdade e
da beatitude como fim uacuteltimo do homem em Santo Tomaacutes edificada com materiais
aristoteacutelicos e neoplatocircnicos natildeo pretende atenuar mas ao contraacuterio acentuar o rigor
do teocentrismo cristatildeordquo (VAZ 2002 p 36) Aquilo que se entende aqui por superaccedilatildeo
do cosmocentrismo aristoteacutelico natildeo comporta elementos valorativos no sentido de
entender superaccedilatildeo como melhor ou pior A partir de algumas seccedilotildees anteriores pode-
se mostrar como Tomaacutes de Aquino conduziu esta tarefa
Tomaacutes de Aquino descentrou a teoria aristoteacutelica das accedilotildees quando encontrou
um modo de inserir uma parte moral na teologia sem no entanto perder o
foco da centralidade de Deus como sujeito (tema) fundamental da ciecircncia teoloacutegica
Segundo verificou-se como a moral tomista se encontrou profundamente
harmonizada com a ideia de liberdade distinguindo-a inclusive do livre-arbiacutetrio em sua
teoria dos atos humanos A ideia de liberdade foi no pensamento cristatildeo uma das
conquistas mais paradigmaacuteticas e problemaacuteticas deixadas para a Tradiccedilatildeo Filosoacutefica
Pode-se afirmar ainda que o problema da liberdade em Tomaacutes de Aquino se
encontra centralizado entre sua posiccedilatildeo teocecircntrica jaacute exposta no modo como o autor
encontrou um lugar para a moral sem ferir a unidade da ciecircncia teoloacutegica e a noccedilatildeo
de Beatitude A partir do pensamento de Tomaacutes de Aquino sobre esta questatildeo
compreende-se que para ele natildeo eacute possiacutevel ser feliz sem ser livre assim como natildeo
eacute livre aquele cuja felicidade se resume a uma perspectiva transitoacuteria do mundo das
criaturas sensiacuteveis
119
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A questatildeo da fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes se constituiu como objeto
de estudo desta pesquisa O problema que orientou as leituras e reflexotildees entatildeo
desenvolvidas foi de que maneira o pensamento cristatildeo tomista pode deixar uma
heranccedila na fundamentaccedilatildeo de desenvolvimento desta proposta eacutetica A tese aqui
desenvolvida como resposta agrave problemaacutetica foi a de que uma eacutetica das virtudes
proposta ao pensamento contemporacircneo natildeo deveria prescindir dos elementos
forjados no seio da interpretaccedilatildeo cristatilde tomista desta eacutetica
O desenvolvimento desta tarefa foi realizado atraveacutes da terminologia
denominada Reconciliaccedilatildeo entre o aristotelismo e o pensamento cristatildeo tomista Esta
expressatildeo e o intento de mostrar como seria possiacutevel pensaacute-la filosoficamente
constituiu-se na tarefa que comprovou a tese de que o pensamento cristatildeo tem
contribuiccedilotildees relevantes agrave fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes A motivaccedilatildeo pelo
desenvolvimento do tema surgiu do pensamento de MacIntyre a partir de sua
indicaccedilatildeo presente no texto Justiccedila de Quem Qual Racionalidade em que o autor
afirma ter errado em sua interpretaccedilatildeo do pensamento de Santo Tomaacutes sobre a
unidade das virtudes e que seria necessaacuterio investigar o modo como Tomaacutes de Aquino
realizou o que o proacuteprio MacIntyre intitulou de Reconciliaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo Biacuteblica
e o Aristotelismo
Preferiu-se utilizar a expressatildeo Reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo
tomista e o aristotelismo A tradiccedilatildeo biacuteblica e suas diversas correntes de interpretaccedilatildeo
satildeo muito vastas Por isto a especificaccedilatildeo pensamento cristatildeo tomista traduziu de
modo delimitado os limites deste trabalho Jaacute o aristotelismo foi a outra ldquofonterdquo que
incitou e influenciou o pensamento de Tomaacutes de Aquino a se constituir como
pensamento epocal nas palavras de Hegel
A expressatildeo vinda de MacIntyre natildeo resultou numa tentativa de preenchimento
de uma lacuna em seu pensamento Esta pesquisa natildeo teve a ilusatildeo de ser a
continuadora da tarefa que MacIntyre reconheceu como erro de suas anaacutelises
Entretanto o diagnoacutestico feito acerca da fragmentaccedilatildeo do discurso moral
contemporacircneo a explicaccedilatildeo da origem da fragmentaccedilatildeo nas teses modernas sobre
120
a moralidade e a indicaccedilatildeo de que o pensamento cristatildeo tomista e o aristotelismo
poderiam ser relacionados foram o suficiente para motivar o seguimento de um
caminho singular de leitura e desenvolvimento das ideias de Tomaacutes de Aquino em
relaccedilatildeo aos fundamentos da Eacutetica das Virtudes
No itineraacuterio da pesquisa tomou-se o seguinte caminho na primeira parte o
modo como esta corrente do pensamento eacutetico retorna ao debate contemporacircneo e
quais dos seus fundamentos se pode compreender atraveacutes das ideias de Rosalind
Hursthouse e Gertrude Anscombe Expocircs-se tambeacutem os elementos de criacutetica agraves
morais deontoloacutegica e utilitarista Ao final se atingiu o horizonte filosoacutefico do qual o
pensamento de MacIntyre eacute devedor
A segunda parte apresentou o pensamento do MacIntyre em Depois da Virtude
com a exposiccedilatildeo do que ele chamou desacordo do discurso contemporacircneo sobre a
moralidade sua anaacutelise sobre a teses modernas de fundamentaccedilatildeo da moralidade e
o modo como elas influenciaram o desacordo contemporacircneo e o desenvolvimento de
sua teoria moral apresentada na terceira parte desta pesquisa
A quarta parte foi o desenvolvimento do pensamento de Tomaacutes de Aquino
intitulada Reconciliaccedilatildeo entre o pensamento cristatildeo tomista e o aristotelismo Nesta
parte tomou-se o pensamento de Aristoacuteteles sobre a teoria dos atos chegando a
compreensatildeo de que esta teoria eacute anterior e necessaacuteria a uma Eacutetica das Virtudes Em
seguida passou-se agrave anaacutelise reflexatildeo e aprofundamento das ideias relativas agrave
psicologia filosoacutefica tomista e os temas fundamentais ligados a Eacutetica das Virtudes
Da investigaccedilatildeo realizada cabe agora apresentar perspectivas de alcance
filosoacutefico e hermenecircutico acerca da Eacutetica das Virtudes dos autores aqui estudados e
da contribuiccedilatildeo do pensamento cristatildeo tomista em torno deste objeto
A Eacutetica das Virtudes eacute uma via possiacutevel de experiecircncia eacutetica agrave
contemporaneidade entre as morais deontoloacutegica e utilitarista A eacutetica do dever
pressupotildee o desenvolvimento de uma racionalidade madura para ser legisladora de
si e que seja imparcial para conter as inclinaccedilotildees e acima delas conformar as accedilotildees
agrave norma O utilitarismo se vale da moral da maximizaccedilatildeo do bem-estar de algueacutem e a
uma valoraccedilatildeo das accedilotildees em virtude das consequecircncias O produto das duas
expressotildees eacuteticas dominantes da contemporaneidade eacute uma certa convicccedilatildeo de que
por um lado estas propostas mantecircm sua atenccedilatildeo primordialmente na norma e por
outro as reflexotildees em torno do agente que pratica a norma ficaram negligenciadas
121
Assim como a Eacutetica das Virtudes tem sua atenccedilatildeo primordial agravequele que age eacute
possiacutevel garanti-la agrave qualidade de uma via possiacutevel dentro do debate eacutetico
contemporacircneo
Uma consequecircncia possiacutevel decorrente da coexistecircncia das trecircs correntes
eacuteticas supracitadas eacute a de que tem se firmado a impossibilidade de uma determinaccedilatildeo
da accedilatildeo de forma monista conforme uma corrente eacutetica em particular Este eacute um
achado problemaacutetico agraves teorias uma vez que cada uma delas ao se desenvolver
justifica-se como necessaacuteria Firma-se aos poucos a consolidaccedilatildeo de um certo
emotivismo Este emotivismo delineado por MacIntyre em Depois da Virtude tem por
tese fundante a ideia de que as accedilotildees satildeo expressotildees dos proacuteprios sentimentos dos
agentes Ou seja natildeo se determina a accedilatildeo de modo uniacutevoco
Foi possiacutevel compreender influecircncias filosoacuteficas ao pensamento do MacIntyre
na exposiccedilatildeo dos fundamentos da Eacutetica das Virtudes e na apresentaccedilatildeo das criacuteticas
agrave deontologia e ao utilitarismo atraveacutes dos pensamentos de Rosalind Hursthouse e
Gertrude Anscombe Em A filosofia moral moderna de Gertrude Anscombe
explicitou-se a pertinecircncia de uma psicologia filosoacutefica no tratamento das questotildees
relativas agrave virtude O alcance desta pertinecircncia levou agrave compreensatildeo de que uma
psicologia filosoacutefica eacute necessaacuteria e anterior a uma teoria das virtudes Esta afirmaccedilatildeo
serviu entatildeo de fio condutor a anaacutelise da teoria dos atos em Aristoacuteteles e
nos conceitos de fundamentaccedilatildeo da Eacutetica de Tomaacutes de Aquino
Foi possiacutevel compreender o movimento interno de Depois das Virtudes Em
primeiro lugar MacIntyre apresenta elementos que comprovariam a existecircncia de um
desacordo moral em seguida o autor mostra como o desacordo resulta dos
empreendimentos realizados pela filosofia moral moderna mencionando as principais
posiccedilotildees de Kant Hume e Kierkegaard com a exposiccedilatildeo das divergecircncias entre as
teses MacIntyre mostra como o discurso moral perdeu a sua inteligibilidade e aiacute
propotildee uma teoria moral que seria capaz de garantir o retorno agrave unidade de um
discurso moral
Como MacIntyre postula um retorno de uma eacutetica das virtudes e como a
fundamentaccedilatildeo deste discurso estaacute primitivamente em Aristoacuteteles a pesquisa
adentrou num primeiro momento agrave teoria aristoteacutelica dos atos uma vez que as
virtudes dependem dela como anterior No segundo momento a investigaccedilatildeo seguiu
na anaacutelise dos conceitos tomistas que eram tomados de Aristoacuteteles e que foram se
122
compatibilizando agraves exigecircncias das circunstacircncias histoacuterico-cultural-filosoacuteficas de
Tomaacutes de Aquino Esta anaacutelise explicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do pensamento de Tomaacutes
de Aquino foram traduzidas aqui com o que se denominou Reconciliaccedilatildeo entre
pensamento cristatildeo e o aristotelismo Mostrar a tomada do pensamento eacutetico de
Aristoacuteteles e as contribuiccedilotildees do pensamento tomista foram tarefas fundamentais
desta pesquisa
Encontrou-se a compreensatildeo de que a eacutetica de Aristoacuteteles e de Santo Tomaacutes
tem mais a ver com o que faz a vida ser vivida do que com a obediecircncia agrave lei moral
O fato de ldquoter mais a verrdquo com a vida do agente natildeo implica num ldquonatildeo tem nada a verrdquo
com a norma Implica que a norma tem valor enquanto for capaz te ter sentido a um
agente que frequentemente a pratica e que tende a fazecirc-lo mais naturalmente A
questatildeo do desenvolvimento das virtudes brota de condiccedilotildees fundamentais do proacuteprio
ser do homem e por isso a virtude eacute a expressatildeo melhor do proacuteprio homem
e contribui na sua realizaccedilatildeo
Pela teoria dos atos e a consolidaccedilatildeo das virtudes pelos haacutebitos alcanccedila-se a
ideia de que a accedilatildeo virtuosa natildeo resulta exclusivamente da capacidade intelectual ela
necessita de uma praacutetica habitual constante Esta caracteriacutestica parece mais coerente
em relaccedilatildeo agrave constituiccedilatildeo aristoteacutelico-tomista do homem o ser uno em cuja existecircncia
conta com a sua dimensatildeo corpoacuterea e o modo como por vezes ela determina o seu
agir A praacutetica das virtudes respeita por assim dizer a estrutura da uniatildeo corpo e alma
do ser humano
Num contexto de Eacutetica das Virtudes a norma natildeo eacute exclusivamente um
conjunto de regras exteriores aos quais se deve obedecer mas modos de accedilatildeo que
internalizados pelo haacutebito proporcionam o desenvolvimento das virtudes uma
estabilidade nas vivecircncias cotidianas para conviver com as dores inevitaacuteveis da vida
pessoal e em comum Ao mesmo tempo as virtudes potildeem os seres humanos numa
corrente de interdependecircncia na qual o bem de um exige a contrapartida do bem dos
outros Isto se pode confirmar com a referecircncia ao conceito de justiccedila
O conceito de justiccedila corresponde agrave compreensatildeo de que natildeo haacute beatitude
sem a ideia de que sua busca eacute de caraacuteter comunitaacuterio A justiccedila tanto em Aristoacuteteles
quando em Tomaacutes de Aquino eacute a maior das virtudes porque se refere agrave relaccedilatildeo do
homem com os outros Eacute aceitaacutevel uma compreensatildeo bilateral da justiccedila pois o bem
que se quer para si deve-se tambeacutem se querer acessiacutevel aos outros
123
O aprofundamento dos elementos da psicologia filosoacutefica de Santo Tomaacutes se
constituiu numa tarefa imprescindiacutevel Os conceitos de sindeacuterese consciecircncia
vontade e intenccedilatildeo puderam ser apresentados como um contributo bem especiacutefico agrave
fundamentaccedilatildeo da Eacutetica das Virtudes
A sindeacuterese enquanto haacutebito natural especial relaciona-se aos princiacutepios
praacuteticos da accedilatildeo de modo a incitar o bem e condenar o mal Intuiccedilatildeo dos primeiros
princiacutepios da moral Jaacute a consciecircncia se encarrega de estabelecer o julgamento
acerca dos atos realizados pressupondo natildeo apenas a sindeacuterese mas todo o
conhecimento moral que se apoia sobre ela Tomaacutes de Aquino acrescenta que para
desenvolver estas funccedilotildees faz-se necessaacuteria ldquouma aplicaccedilatildeo atual de nosso
conhecimento agrave nossa accedilatildeordquo
A consciecircncia segundo Santo Tomaacutes natildeo eacute pensada como um funcionamento
constante Ela atua efetivamente quando os objetos relativos agraves accedilotildees assim a
solicitam Tal compreensatildeo do papel da consciecircncia desfaz o mito de que a concepccedilatildeo
do homem como animal racional implicaria necessariamente num
funcionamento constante da consciecircncia
As consideraccedilotildees sobre a vontade fundamentam a ideia de liberdade num
sentido mais baacutesico poreacutem necessaacuterio que eacute o conceito de livre arbiacutetrio e na
independecircncia de qualquer forma de determinaccedilatildeo inclusive as determinaccedilotildees do
proacuteprio livre arbiacutetrio O livre-arbiacutetrio eacute a fonte mais primordial de exerciacutecio da vontade
mas natildeo pode ser considerada a liberdade mesma Jaacute a liberdade eacute uma orientaccedilatildeo
racional ao fim No conceito da liberdade compreende-se porque natildeo eacute escravo
aquele que foi obrigado a fazer pois ser obrigado a fazer natildeo implica que houve o
movimento interno do querer fazer
Santo Tomaacutes aprofunda o conceito de vontade que seja naturalmente seja em
vista de fim ela permanece atuante A necessidade de fim natildeo repugna agrave vontade
nesse sentido compreende-se o salto posterior na relaccedilatildeo entre liberdade e Beatitude
promovido pelo filoacutesofo enquanto a eudaimonia aristoteacutelica eacute a contemplaccedilatildeo do
divino natural em Tomaacutes de Aquino Visio beatifica eacute fruto de um rompimento com a
concepccedilatildeo cosmocecircntrica da Eacutetica Antiga Desse modo Tomaacutes de Aquino
compatibiliza a ideia de liberdade com a ideia de fim Analogicamente assim como o
intelecto adere aos primeiros princiacutepios a vontade deve pois aderir ao fim uacuteltimo que
eacute a bem-aventuranccedila uma vez que a bem-aventuranccedila ou a felicidade eacute almejada
124
por todos Assim sendo compreende-se que o fato de haver uma vontade natural natildeo
implica uma contradiccedilatildeo com uma vontade livre
Instigar a vontade a agir e mover-se em busca de um fim eacute funccedilatildeo da intenccedilatildeo
Ela move natildeo somente a vontade mas todas as potecircncias do ser humano em busca
de um fim Tomaacutes de Aquino desenvolve o conceito intenccedilatildeo num duplo sentido
designa por um lado a intenccedilatildeo voluntaacuteria e por outro intenccedilatildeo aplicada agrave definiccedilatildeo
enquanto se exprime a intenccedilatildeo da verdade a intenccedilatildeo de bem Ela eacute o actus
voluntatis em busca dos fins quer transitoacuterios quer do uacuteltimo do homem Nesse
sentido pode-se afirmar que pela intenccedilatildeo os atos voluntaacuterios tornam-se unos o que
implica posteriormente em uma unidade da vida moral
No desenvolvimento que Aristoacuteteles faz sobre os atos voluntaacuterios estaacute
presente de forma latente a ideia de intenccedilatildeo Tomaacutes de Aquino aprofunda de modo
consideraacutevel este conceito Se a intenccedilatildeo se relaciona com os fins intermediaacuterios e
em relaccedilatildeo ao fim uacuteltimo pode-se firmar a ideia que ela atua em cada um dos atos
concernentes aos meios e a escolha Ou seja a intenccedilatildeo eacute ativa em todo
desenvolvimento das accedilotildees
O aprofundamento dos conceitos da psicologia filosoacutefica tomista e o estado em
que o autor deixou estes conceitos se firmaram com muita forccedila no seio da Tradiccedilatildeo
filosoacutefica Pelo conceito de arbiacutetrio bruto e livre arbiacutetrio o Kant da Metafiacutesica dos
Costumes assume quase que com a mesma nomenclatura o formato tomista dos
termos no mesmo texto os conceitos kantianos de sentimento moral e consciecircncia
moral satildeo por demais semelhantes aos conceitos de sindeacuterese e de consciecircncia Na
proacutepria contemporaneidade o conceito de intencionalidade perpassou tanto a eacutetica
quanto a fenomenologia Estas influecircncias filosoacuteficas asseguram ao pensamento
cristatildeo lugar na Tradiccedilatildeo Jaacute os conceitos da psicologia filosoacutefica comprovam a ideia
inicial que a teoria de uma Eacutetica das virtudes sugerida ao pensamento
contemporacircneo necessita considerar os achados do pensamento cristatildeo em seu
processo de fundamentaccedilatildeo
A partir das consideraccedilotildees elencadas eacute possiacutevel confirmar uma das ideias
iniciais desta pesquisa Um breve olhar sobre o vocabulaacuterio moral contemporacircneo
permite perceber que nele haacute muito do conteuacutedo semacircntico de conceitos que foram
forjados no seio do pensamento cristatildeo
125
Cabe ainda explicitar alguns achados no pensamento de Santo Tomaacutes
passiacuteveis de serem relacionados ao pensamento de MacIntyre Esta tarefa natildeo eacute
como se afirmou acima uma listagem de erros do autor mas possibilidades de
encontro dos dois filoacutesofos
Em Depois da Virtude MacIntyre desenvolveu um novo conceito de virtude que
de certo modo reabilitasse o discurso moral Antes de falar dos elementos que
compotildee a sua teoria moral eacute possiacutevel encontrar um inconveniente a sua teoria moral
e seu conceito de virtude natildeo levam em conta uma Psicologia Filosoacutefica Eacute bem
verdade que ele afirmou os ldquoriscosrdquo da biologia metafiacutesica de Aristoacuteteles entretanto
uma das coisas que foram encontradas nesta pesquisa foi a relaccedilatildeo estreita que
existe entre as virtudes e a compreensatildeo de homem A articulaccedilatildeo do cataacutelogo das
virtudes estaacute em consonacircncia com a constituiccedilatildeo do homem e com as potecircncias que
ele necessita desenvolver em busca de seu melhor Saliente-se que MacIntyre
posteriormente em Dependent rational animals reconheceu a importacircncia de uma
psicologia filosoacutefica
O conceito macintyreano de praacuteticas se alinha ao seu meacutetodo e consiste em
encontrar manifestaccedilotildees histoacutericas que sirvam de apoio agraves suas investigaccedilotildees Seu
conceito de Praacuteticas se refere agraves formas coerentes e complexas da atividade humana
que satildeo socialmente estabelecidas e como tais ampliadores dos poderes humanos
na forma de excelecircncia e transmissores dos bens internos inerentes a essas Praacuteticas
Eacute possiacutevel em Tomaacutes de Aquino conforme demonstrado que a vivecircncia das virtudes
como atualizaccedilatildeo das potecircncias do homem se daacute sob accedilotildees diversas e sob diversas
circunstacircncias da histoacuteria Assim parece a esta pesquisa que o desenvolvimento
histoacuterico das virtudes manteacutem uma certa similitude ao conceito de praacuteticas
Na questatildeo da unidade das virtudes que foi uma questatildeo apontada pelo proacuteprio
MacIntyre como contendo um erro de sua anaacutelise viu-se que segundo Tomaacutes de
Aquino haacute uma ideia de interdependecircncia entre as virtudes A articulaccedilatildeo interna
entre as potecircncias do homem proporciona tambeacutem uma articulaccedilatildeo e tambeacutem uma
hierarquizaccedilatildeo entre as virtudes A unidade das virtudes proporciona ainda uma
consolidaccedilatildeo da unidade do caraacuteter moral de um agente Ora o conceito de unidade
das virtudes contribuiria por demais com a componente a ordem narrativa de uma
vida humana singular Eacute claro que a unidade das virtudes diz pouco ou quase nada agrave
noccedilatildeo de narrativa Entretanto o conceito de unidade das virtudes atinge um objetivo
126
similar ao conceito macintyreano a saber considerar cada vida humana como uma
unidade singular Tambeacutem foi verificado que natildeo apenas o conceito de unidade das
virtudes mas tambeacutem o conceito de intencionalidade no estudo dos atos humanos
foi capaz de preencher este requisito e mais ainda lanccedilou luzes agrave ideia de
consciecircncia aprofundada com propriedade pelo pensamento cristatildeo e assumido pelo
pensamento moderno praticamente na forma como os medievais deixaram
127
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