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Apontamentos sobre Dano Moral Coletivo

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75 Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 9(16-17): 75-91, jan.-dez. 2009 Apontamentos sobre Dano Moral Coletivo Considerations on Collective Moral Damage FAUSTO KOZO KOSAKA Procurador da República do Ministério Público Federal, ex-Procurador Federal da Advocacia-Geral da União, mestrando em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba–UNIMEP. RESUMO O presente estudo objetiva abordar alguns aspectos do dano moral coletivo, instituto de acentuada relevância, mas cujos contornos não se encontram definidos de forma pacífica pelos Tribunais brasileiros. Inicialmente será realizado um breve retrospecto histórico sobre o tratamento que o dano moral tem recebido ao longo do tempo pela doutrina e pela jurisprudência, passando pelo período em que não se ad- mitia a indenizabilidade de qualquer espécie de dano moral, até a fase atual, em que a idéia de danos morais sofridos pela pessoa jurídica ou pela coletividade não causa maior perplexidade. Serão apresentados o conceito, os elementos e as peculiaridades do dano moral coletivo, bem como os mecanismos e as formas para a sua prevenção e reparação, inclusive os critérios que devem pautar a fixação de eventual indeniza- ção pecuniária. Serão apontados, ao final, os principais vetores que devem nortear os operadores do Direito para a correta caracterização do dano moral coletivo Palavras-chave RESPONSABILIDADE CIVIL DANO MORAL COLETIVO CARACTERIZAÇÃO INDENIZAÇÃO EVOLUÇÃO HISTÓRICA. ABSTRACT This study aims to address some aspects of collective moral damage, ins- titute of marked importance, but whose contours are not defined in a peaceful man- ner by the Brazilian courts. Initially there will be a brief historical treatment of the moral damage that has received over time by the doctrine and jurisprudence, through the period that was not permitted to indemnify any kind of moral damage, until the current phase, in which the idea of moral damages suffered by the person or the legal community does not cause greater perplexity. Will be presented the concept, the elements and the peculiarities of the collective moral damage, as well as the mechanisms and ways for its prevention and redress, including the standards that should guide the determination of any monetary compensation. Will be appointed at the end, the main vectors that should guide the operators in the law for the correct characterization of the collective moral damage. Keywords Liability COLLECTIVE MORAL DAMAGES CHARACTERIZATION INDEMNITY HISTORICAL EVOLUTION.
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75Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 9(16-17): 75-91, jan.-dez. 2009

Apontamentos sobre Dano Moral ColetivoConsiderations on Collective Moral Damage

Fausto Kozo KosaKaProcurador da República do Ministério

Público Federal, ex-Procurador Federal da Advocacia-Geral da União, mestrando em Direito pela

Universidade Metodista de Piracicaba–unimep.

Resumo O presente estudo objetiva abordar alguns aspectos do dano moral coletivo, instituto de acentuada relevância, mas cujos contornos não se encontram definidos de forma pacífica pelos Tribunais brasileiros. Inicialmente será realizado um breve retrospecto histórico sobre o tratamento que o dano moral tem recebido ao longo do tempo pela doutrina e pela jurisprudência, passando pelo período em que não se ad-mitia a indenizabilidade de qualquer espécie de dano moral, até a fase atual, em que a idéia de danos morais sofridos pela pessoa jurídica ou pela coletividade não causa maior perplexidade. Serão apresentados o conceito, os elementos e as peculiaridades do dano moral coletivo, bem como os mecanismos e as formas para a sua prevenção e reparação, inclusive os critérios que devem pautar a fixação de eventual indeniza-ção pecuniária. Serão apontados, ao final, os principais vetores que devem nortear os operadores do Direito para a correta caracterização do dano moral coletivoPalavras-chave responsabilidade civil – dano moral coletivo – caracterização – indenização – evolução histórica.

AbstRAct This study aims to address some aspects of collective moral damage, ins-titute of marked importance, but whose contours are not defined in a peaceful man-ner by the Brazilian courts. Initially there will be a brief historical treatment of the moral damage that has received over time by the doctrine and jurisprudence, through the period that was not permitted to indemnify any kind of moral damage, until the current phase, in which the idea of moral damages suffered by the person or the legal community does not cause greater perplexity. Will be presented the concept, the elements and the peculiarities of the collective moral damage, as well as the mechanisms and ways for its prevention and redress, including the standards that should guide the determination of any monetary compensation. Will be appointed at the end, the main vectors that should guide the operators in the law for the correct characterization of the collective moral damage.Keywords Liability – collective moral damages – characterization – indemnity – historical evolution.

Fausto Kozo KosaKa

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IntRodução

As teorias da responsabilidade civil encontram-se em constante evolução, impul-sionadas pela tentativa de se adequarem à dinâmica das relações sociais e às necessida-des vigentes. Há não muito tempo atrás existia grande resistência de parcela da doutrina e da jurisprudência em se aceitar a possibilidade de indenização do dano moral (indivi-dual), não obstante o arcabouço normativo já contivesse dispositivos aptos a agasalhar esta possibilidade (por exemplo, o artigo 159 do Código Civil de 1916). Com o advento da Constituição Federal de 1988, que previu expressamente o direito à reparação pelo dano moral (artigo 5º, incisos V e X), esta celeuma perdeu razão de ser.

Passou-se a discutir, então, se seria possível ao autor, em uma mesma demanda e em razão do mesmo evento, postular pedido de indenização por danos morais cumu-lados com danos materiais. Foi necessário que o Superior Tribunal de Justiça, corte superior responsável pela uniformização da interpretação da legislação infraconsti-tucional, assentar a possibilidade de referido cúmulo, o que o fez mediante a edição de sua súmula 37, in verbis: “São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato”. Advirta-se que este enunciado, embora cor-reto, encontra-se incompleto e desatualizado, pois, no atual estágio da doutrina e da jurisprudência, além de danos morais e materiais, o mesmo evento poderá ensejar pe-dido de indenização também por danos estéticos, que com aqueles não se confunde.

Também ensejou acirrada discordância a possibilidade da pessoa jurídica sofrer dano moral, uma vez que esta espécie de lesão atingiria os chamados direitos de per-sonalidade, comumente associados à pessoa humana. Desse modo, os defensores da tese contrária sustentam que como a pessoa jurídica não é titular de direitos da per-sonalidade em sentido estrito, não pode ser vitimada por danos morais. Novamente coube ao STJ dissipar a celeuma, ao sumular, em seu enunciado de nº 227, que “a pessoa jurídica pode sofrer dano moral”. Ademais, cumpre registrar que o atual Código Civil, que em seu artigo 52 preconizou ser extensível às pessoas jurídicas os direitos da personalidade que com elas compatíveis, cuidou de afastar a principal objeção dos defensores da tese contrária.

Encontra-se em debate um novo tema: o dano moral coletivo. De fato, a possi-bilidade de ocorrência e reparabilidade de dano moral de natureza coletiva é assun-to relativamente recente e ainda polêmico, especialmente na jurisprudência. E esta exploração incipiente da temática é explicada porque cuida da conjugação de dois assuntos que passaram a receber maior atenção há pouco tempo, quais sejam, o dano moral e a defesa dos interesse coletivos (lato sensu) em juízo. Não obstante, o atual estágio das relações sociais, marcadas pela coletivização, complexidade e globali-zação, favorece a criação e a manutenção das condições necessárias para a doutrina

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da reparabilidade do dano moral coletivo. Como bem sintetiza Yussef Said Cahali (2005, p. 387):

Esvaindo-se paulatinamente o dano moral, na sua versão mais atualizada, de seus contingentes exclusivamente subjetivos de ‘dor’, ‘sofrimento’, ‘angústia’, para projetar objetivamente os seus efeitos de modo a com-preender também as lesões à honorabilidade, ao respeito, à consideração e ao apreço social, ao prestígio e à credibilidade nas relações jurídicas do cotidiano, de modo a afirmar-se a indenizabilidade dos danos morais infligidos às pessoas jurídicas ou coletivas, já se caminha, com fácil trân-sito, para o reconhecimento da existência de danos morais reparáveis.

Parece ser esta a questão da vez em matéria de responsabilidade civil por dano moral, e que será objeto de breves considerações a seguir.

conceIto do dAno moRAl coletIvo e elementos pARA A suA RepARAbIlIdAde

O dano moral (também chamado de extrapatrimonial ou imaterial) relaciona-se à lesão injusta a interesses imateriais, sem conteúdo econômico imediato, mas que são caros à pessoa (física ou jurídica) e/ou à coletividade. Esses interesses podem integrar o âmbito interno da pessoa (como o bem-estar, a intimidade, a liberdade, a privacidade, o equilíbrio psíquico, a paz) ou a sua projeção externa (como o nome, a reputação, a respeitabilidade social).

Sob o influxo da tendência de coletivização dos interesses, em que se procura pres-tigiar o coletivo em contraste com o individual, a doutrina da reparabilidade do dano moral coletivo vem ganhando força acadêmica e acolhida no Poder Judiciário. CAHA-LI (2005, p. 388), citando Carlos Alberto Bittar Filho, esclarece com maestria que:

O direito vem passando por profundas transformações, que podem ser sintetizadas pela palavra ‘socialização’; efetivamente, o direito como um todo está sofrendo, ao longo do presente século, profundas mudanças, sob o impacto da evolução da tecnologia em geral e das alterações cons-tantes havidas no tecido social; todas essas mutações têm direção e senti-do certo: conduzem o direito ao primado insofismável do coletivo sobre o individual. Como não poderia deixar de ser, os reflexos desse panorama de mudanças estão se fazendo sentir na teoria do dano moral, dando ori-gem à novel figura do dano moral coletivo. Ora, se o indivíduo pode ser vítima de dano moral, não há por que não possa sê-lo a coletividade.

Na definição de Carlos Alberto Bittar Filho:

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[...] o dano moral coletivo é a injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, é a violação antijurídica de um determinado círcu-lo de valores coletivos. Quando se fala em dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o patrimônio valorativo de uma certa comunidade (maior ou menor), idealmente considerado, foi agredido de maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico: quer isso dizer, em última instância, que se feriu a própria cultura, em seu aspecto imaterial.1

À caracterização do dano moral coletivo é necessário que a lesão aos bens e valores imateriais diga respeito a algum dos interesses coletivos lato sensu, que abarcam os interesses difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêne-os. O Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078/90, trouxe a definição destas três espécies de interesses em seu artigo 81, parágrafo único, nos seguintes termos:

I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titula-res pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.

Os interesses difusos e coletivos stricto sensu possuem a natureza de direitos coletivos, o que se evidencia pela sua transindividualidade e pela indivisibilidade de seus objetos. Diferenciam-se, contudo, pelo seu grau de dispersão (maior nos difu-sos) e na vinculação e determinação de seus titulares, pois enquanto nos coletivos em sentido estrito existe uma relação jurídica base a uní-los (entre si ou com a parte contrária), os titulares dos direitos difusos são identificáveis apenas por circunstân-cias de fato que lhes são comuns. Como exemplo de interesse difuso, temos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, e de interesse coletivo stricto sensu, o direito à privacidade dos funcionários de uma empresa, o que a impede de colocar uma câmera filmadora nos banheiros por eles utilizados.

Os direitos individuais homogêneos, por sua vez, não são coletivos em sua es-sência, pois são perfeitamente divisíveis e possuem titulares certos e determinados. A opção do legislador em possibilitar a “coletivização” da defesa desses interesses

1 BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 559, 17 jan. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6183>. Acesso em: 10 jul. 2009.

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em juízo justifica-se sobretudo para facilitar o acesso à justiça, para evitar a prolação de decisões judiciais contraditórias decorrentes do mesmo evento e por razões de economia processual. Para exemplificar esta modalidade, cita-se o direito à repara-ção de diversos consumidores que tenham adquirido produtos com o mesmo defeito, manufaturados em um mesmo lote.

Para Xisto Tiago de Medeiros Neto (2004, p. 298), “o dano moral coletivo corresponde à ‘injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade’, constituindo a ‘violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos’”. Os ele-mentos necessários ao surgimento do dever de reparar o dano moral coletivo não guardam diferenças de relevo em comparação com o dano moral individual. Para este último autor citado (2004, p. 298), tais elementos são os seguintes:

(a) a conduta antijurídica (ação ou omissão) do agente, pessoa física ou jurídica;(b) a ofensa significativa e intolerável a interesses extrapatrimoniais, identificados no caso concreto, reconhecidos e inequivocamente com-partilhados por uma determinada coletividade (comunidade, grupo, ca-tegoria ou classe de pessoas titular de tais interesses protegidos pela ordem jurídica);(c) a percepção do dano causado, correspondente aos efeitos que, ipso facto, emergem coletivamente, traduzidos pela sensação de desvalor, de indignação, de menosprezo, de repulsa, de inferioridade, de descrédito, de desesperança, de aflição, de humilhação, de angústia ou respeitante a qualquer outra conseqüência de apreciável conteúdo negativo;(d) o nexo causal observado entre a conduta ofensiva e a lesão social-mente apreendida e repudiada.

Segundo MEDEIROS NETO, para a configuração do dano moral (tanto o co-letivo como o individual), basta a demonstração de determinado evento que o dano extrapatrimonial causado à vítima é presumido, pois de difícil comprovação, es-pecialmente quando incidente no âmbito de projeção interna do lesado. Assim, de acordo com as máximas de experiência, sabe-se que certos eventos agridem com in-tensidade determinados bens imateriais do ofendido, independentemente de prova do efetivo dano. Menciona-se, como exemplo, a morte de um filho, cujo sentimento de profunda dor, perda e sofrimento causado aos pais independeria de comprova-ção. Outros autores de escol compartilham do mesmo entendimento, caso de Sérgio Cavalieri Filho (2005, p. 108), que defende que a percepção do dano moral advém “da presunção natural, hominis ou facti, que decorre das regras da experiência co-mum”. Carlos Roberto Gonçalves (2003, p. 552) e Carlos Alberto Bittar (1999, p. 216) sustentam que a ocorrência do dano moral coletivo em consequência de

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determinados eventos lesivos encerra presunção absoluta, enfatizando este último autor citado que:

O dano existe no próprio fato violador, impondo a necessidade de res-posta, que na reparação se efetiva. Surge ex facto, ao atingir a esfera do lesado, provocando-lhe as reações negativas já apontadas. Nesse senti-do é que se fala em damnum in re ipsa.Ora, trata-se de presunção absoluta, ou iuris et de iure, como a qualifica a doutrina. Dispensa, portanto, prova em concreto. Com efeito, corolá-rio da orientação traçada é o entendimento de que não há que se cogitar de prova de dano moral. Não cabe ao lesado, pois, fazer demonstração de que sofreu, realmente, o dano moral alegado. [...]

Dentro da sistemática acima apresentada, em favor de determinados eventos militaria a presunção de ocorrência de dano moral coletivo. Em outras palavras, em eventual demanda de reparação por dano moral coletivo, bastaria ao autor a com-provação da conduta antijurídica e do nexo de causalidade, pois os prejuízos ao patrimônio imaterial seriam decorrência lógica e natural do aludido evento injusto. Alguns eventos que trariam consigo a presunção de causação de dano moral coletivo são citados como exemplos pela doutrina, tais como:

(a) a veiculação de publicidade enganosa prejudicial aos consumido-res; [...] destruição de bem ambiental, comprometendo o equilíbrio do sistema e gerando conseqüências nefastas ao bem-estar, à saúde ou à qualidade de vida da comunidade; [...] divulgação de informações ofen-sivas à honra, à imagem ou à consideração social de certas comunida-des ou categorias de pessoas; [...] discriminação em relação ao gênero, à idade, à orientação sexual, à nacionalidade, às pessoas portadoras de deficiência e de enfermidades ou aos integrantes de determinada classe social, religião, etnia ou raça; [...] dilapidação e utilização indevida do patrimônio público, além da prática de atos de improbidade administra-tiva que, pela dimensão, cause repercussão negativa à coletividade; [...] deterioração do patrimônio cultural da comunidade; [...]. (MEDEIROS NETO, 2004, p. 270-271).

Deve-se anotar, por outro lado, que a presunção de ocorrência de dano moral coletivo não pode ser óbice à apreciação das circunstâncias do caso concreto pelo julgador. Deveras, existem situações em que é absolutamente clara a causação de sentimentos negativos em razão de determinados eventos, como a dor psíquica e emocional intensa suportada pelos pais pelo falecimento de um filho. Todavia, há casos em que não resta totalmente patenteada, prima facie, a ocorrência de

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sentimentos negativos – não ao menos com um mínimo de extensão – em virtu-de de certas situações. Tome-se como exemplo a ocorrência do dano ambiental. Tratando-se de uma conduta que cause uma agressão diminuta ao meio ambiente, como a pesca de uns poucos espécimes em local proibido, embora a biota sofra uma consequência negativa, a menor repercussão e gravidade do evento impede, salvo melhor juízo, se condene o agente agressor por dano moral coletivo. Por outro lado, nas hipóteses de ações causadoras de danos ambientais de grandes pro-porções, que geram prejuízos em grande medida ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (v.g., grandes derramamentos de óleo no mar; queimada da palha da cana-de-açúcar; etc.), a extensão negativa dos efeitos são tão grandes e sentidos de forma intensa pela comunidade que a reparabilidade por danos morais coletivos exsurge induvidosa, sem prejuízo dos danos materiais cabíveis. Portanto, malgra-do o dano moral coletivo propriamente dito (sentimentos negativos, de desvalor, de descrédito, de profundo repúdio etc.) não dependa de prova para a sua compro-vação, pois decorre de presunção ipso facto do evento danoso, cabe ao julgador avaliar e sopesar as circunstâncias do caso concreto, como a gravidade da conduta, a sua repercussão social, a extensão territorial dos seus efeitos e a dimensão do dano causado, a fim de concluir se o evento em julgamento reuniu os requisitos e proporções necessários ao reconhecimento do dano moral coletivo.

dos mecAnIsmos JudIcIAIs de pRevenção e RepARAção do dAno moRAl coletIvo

Consoante já exposto anteriormente, o dano moral afeta negativamente o patri-mônio imaterial, lesando valores e/ou aspectos da personalidade, não quantificáveis em pecúnia, que são muito caros para os seus titulares. A indenizabilidade do dano moral, em verdade, não possui o condão de devolver ao status quo ante o patrimônio imaterial do lesado, pois os bens que atinge são insuscetíveis de substituição por dinheiro ou outro tipo de prestação.

Destarte, diante da iminência da ocorrência ou repetição de evento antijurídico que possa causar o dano moral, inclusive e principalmente o coletivo, os titulares legitimados devem lançar mão dos instrumentos jurídicos hábeis a impedir a verifi-cação do evento danoso, inclusive valendo-se das tutelas preventiva e inibitória. Em outras palavras, levando-se em conta a essência dos direitos lesados quando se fala em dano moral coletivo – pertencentes a uma coletividade, geralmente de acentuada relevância social –, deve-se sempre tentar evitar que esses direitos sejam agredidos. Na precisa lição de Yussef Said Cahali (2005, p. 793),

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[...] o ordenamento brasileiro conhece instrumentos eficazes no sentido dessa tutela: ‘Além de disposições legais constantes da legislação ex-travagante – como os dos arts. 11-12 da Lei de Ação Civil Pública (Lei 7.347/85) e art. 84 do CDC -, o art. 461 e parágrafos do CPC trazem o fundamento para a tutela específica nas obrigações de fazer e não-fazer, tutela essa que desfruta de declarada primazia, e que pode ser conce-dida antecipadamente, de sorte, portanto, a atuar de forma preventiva (inclusive para garantir seu atributo de tutela específica). A disposi-ção tem inteira pertinência com a prevenção do dano moral, pois é precisamente no âmbito dos direitos não patrimoniais – nome, imagem, honra, intimidade, privacidade – que as tutelas preventiva e específica revelam-se mais necessárias, precisamente pelas dificul-dades de – após consumada a lesão – obter-se uma justa e adequada reparação. (Grifo nosso).

Após enumerar hipóteses passíveis de se evitar a ocorrência do dano moral me-diante tutela judicial prévia e específica, CAHALI (2005, p. 793) salienta que

Em todos esses casos, portanto, não se cogita de uma tutela propriamen-te sancionatória, no sentido de tutela que venha a neutralizar os efeitos do dano consumado, mas essencialmente preventiva ou inibitória, isto é, apta a impedir a consumação, reiteração ou o agravamento do dano.

Caso consumada a ofensa, deve ser privilegiada uma alternativa reparadora que possibilite, na medida do possível, o retorno da situação às condições anteriores à lesão perpetrada. A indenização em pecúnia, meramente compensatória e dissuasória de novos atentados, merece ser deixada como última opção. Não é outro o pensa-mento da mais abalizada doutrina:

Em nosso direito, ausente disposição legal explícita, demonstra Flá-vio Luiz Yarshell, de maneira convincente, a admissibilidade da mais ampla tutela preventiva e inibitória e da tutela específica do dano mo-ral: o exame do tema comporta duplo enfoque, conforme se tome o momento da consumação do dano. Quando se trata de prevenir a per-petuação do ilícito (impedindo que o dano moral venha se consumar), ou mesmo de fazer cessar a violação que está em curso (impedindo sua reiteração ou agravamento), não há dúvida de que intervenção judicial pode dar-se mediante a imposição de prestações de fazer e não-fazer. Trata-se de atuar sobre a conduta do autor da violação, para que se abstenha da prática do ilícito; ou para que cesse a violação já iniciada; ou ainda para que, desde logo, desfaça a material. (CAHALI, 2005, p. 792).

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Aqui será dado um exemplo para tentar explicar a “gradação” acima sugerida. Suponha-se que uma grande empresa pretenda veicular uma publicidade abusiva em horário nobre, com conteúdo gravemente atentatório à dignidade da mulher e com evidente conotação discriminatória. Se algum dos legitimados à ação civil pública tomar conhecimento desse fato antes da veiculação da publicidade, poderá ele in-gressar em juízo pleiteando uma obrigação de não-fazer, consistente na proibição de veiculação daquela publicidade (tutela inibitória). Caso o anúncio já tenha sido veiculado e desde que seja possível a retratação pública daquele que a veiculou, esta deverá ser a medida a ser perseguida. Não sendo possível a retratação, cabível será a condenação pelos danos morais coletivos causados. Não se olvide, ademais, a possi-bilidade de cumulação dos pedidos acima citados, desde que compatíveis entre si.

A maior efetividade da proteção judicial, proporcionada pela adoção da medida que se mostre mais específica e adequada para a prevenção ou reparação do dano mo-ral, também é reconhecida por Carlos Alberto Bittar (1999, p. 231), ao afirmar que

Admitem-se, portanto, nesse campo, conforme a natureza da deman-da e a repercussão dos fatos, formas várias de reparação, algumas ex-pressamente contempladas em lei, outras implícitas no ordenamento jurídico positivo, como dentre outras: a realização de certa ação, como a de retratação que, acolhida, pode satisfazer o interesse lesado (Lei 5.250/67, arts. 29 e 30); o desmentido, ou retificação de notícia inju-riosa, nos mesmos termos (idem); a divulgação imediata de resposta (idem); a republicação de material com a indicação do nome do autor (Lei 5988/73, art. 126); a contrapropaganda, em casos de publicidade enganosa ou abusiva (Lei 8.078/90, art. 60); a publicação gratuita de sentença condenatória (Lei 5.250/67. art. 68), ou sob expensas do infra-tor (Lei 8.078/90, art. 78); a divulgação de reclamações fundamentadas contra fornecedores de produtos ou de serviços (idem, art. 44).

São todos mecanismos jurídicos hábeis a satisfazer os interesses do lesado, que mostram, ademais, à sociedade, a força da reação cabível em hipóteses de violações a certos valores protegidos, a fim de que o exemplo sirva como desestímulo a novas investidas do gênero.

A IndenIzAção pelo dAno moRAl coletIvo. peculIARIdAdes

Pelas razões explicitadas anteriormente, a indenização em dinheiro pelo dano moral coletivo causado deve ser a última alternativa. No entanto, não sendo pos-sível a concessão de uma tutela preventiva e específica objetivando a sua não-ocorrência, muitas vezes porque o evento já encontra-se concretizado, e a míngua

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de prestações alternativas não-pecuniárias mais compatíveis com a tentativa de retorno ao status quo ante, a reparação do dano moral coletivo far-se-á mediante o pagamento de uma indenização em dinheiro, a ser suportada pelo causador do evento danoso.

A doutrina e a jurisprudência majoritárias, baseadas na teoria norte-america-na das punitive damages, vislumbram nessa indenização pecuniária uma dúplice função: por um lado, mediante a entrega de uma determinada quantia em dinheiro, compensar os ofendidos pelos sentimentos negativos provocados pelo evento da-noso; de outro lado, a indenização teria um efeito dissuasório para que novos aten-tados de mesma espécie não mais ocorram, conscientizando o causador do dano a respeito da antijuridicidade de sua conduta (prevenção específica) e demonstrando a toda a sociedade a não-tolerância de ações do mesmo jaez (prevenção geral). Com espeque nessas funções, o julgador deve promover o arbitramento do valor da indenização pelo dano moral (individual ou coletivo), pois, nas palavras de Carlos Alberto Bittar (1999, p. 233-234):

[...] deve traduzir-se em montante que represente advertência ao lesan-te e à sociedade de que se não se aceita o comportamento assumido, ou o evento lesivo advindo. Consubstancia-se, portanto, em importân-cia compatível com o vulto dos interesses em conflito, refletindo-se de modo expressivo, no patrimônio do lesante, a fim de que sinta, efeti-vamente, a resposta da ordem jurídica aos efeitos do resultado lesivo produzido. Deve, pois, ser quantia economicamente significativa, em razão das potencialidades do patrimônio do lesante. [...] Coaduna-se essa postura, ademais, com a própria índole da teoria em debate, pos-sibilitando que se realize com maior ênfase, a sua função inibidora de comportamentos. Com efeito, o peso do ônus financeiro é, em um mundo em que cintilam interesses econômicos, a resposta pecuniária mais adequada a lesionamentos de ordem moral.

Sem perder de vista as duas funções da indenização pelo dano moral (preven-tiva e compensatória), alguns critérios são comumente utilizados para a fixação, no caso concreto, do montante devido. Sobre o assunto, Carlos Alberto Bittar (1999 p. 284) aponta que

[...] há parâmetros em leis, em decisões jurisprudenciais e em doutrina (Cf. nosso livro específico, cit., p. 219), mas devem ser eles considerados sempre em razão da hipótese sub examine, atentando o julgador para: a) as condições das partes, b) a gravidade da lesão e a sua repercussão e c) as circunstâncias fáticas. [...]

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Com efeito, ao arbitrar a indenização devida, não deve o magistrado deixar de ava-liar fatores como a gravidade do dano e a extensão dos seus efeitos, as particularidades do caso concreto, o potencial econômico do ofensor e as condições financeiras da vítima.

As balizas acima, geralmente invocadas no arbitramento do dano moral indi-vidual, aplicam-se, de um modo geral, ao dano moral coletivo. Impende, todavia, destacar algumas peculiaridades com relação a este último. Por afetar interesses coletivos lato sensu, no dano moral coletivo a extensão e a repercussão do dano, aferida pelo número (real ou potencial) de pessoas atingidas e pelos limites territo-riais alcançados, devem merecer especial atenção do julgador na fixação do valor da indenização. Veja-se a hipótese de uma publicidade com conteúdo discriminatório (contra uma determinada raça, por exemplo) veiculada em horário nobre de emissora televisiva com abrangência nacional e com público telespectador virtual que abranja praticamente toda a população do país. Suponha-se que não seja viável a veiculação de uma “contrapropaganda” de retratação neste caso (tal como ocorre, mutatis mu-tandis, com o crime de injúria, no Direito Penal). Ora, o valor da indenização pelo dano moral coletivo causado deve levar em conta a larguíssima extensão dos efeitos do evento, tanto no aspecto territorial (todo o país) como no tocante a quantidade de ofendidos (praticamente toda a população).

O destino da indenização por dano moral coletivo também apresenta uma peculiaridade.

Tratando-se de indenização por danos morais em razão de ofensa a interesses difusos ou coletivos stricto sensu, os recursos obtidos serão destinados ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos, previsto no artigo 13 da Lei 7.347/85, ou para outros fundos específicos, como o Fundo de Amparo ao Trabalhador (no caso de danos veri-ficados na seara trabalhista) ou o Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente (se a lesão atingir essas classes de pessoas). Esta parece ser a sistemática mais adequada, pois os recursos de tais fundos são empregados na adoção de medidas tendentes à proteção e à recomposição de direitos coletivos lesados. Ademais, como os recursos são destinados aos mencionados fundos, afasta-se o argumento de que indenizações de vulto acarretariam o enriquecimento sem causa do autor da ação, alegação muito comum dos réus das demandas por danos morais.

Com relação aos direitos individuais homogêneos, a indenização por danos morais coletivos beneficiará os próprios titulares dos interesses lesados, pois, como já dito, são perfeitamente determinados e divisíveis os objetos e seus titulares. Ainda assim, se após um ano da condenação não houver a habilitação de um número de lesados compatível com a gravidade do dano, o autor legitimado para a ação promo-verá a execução coletiva, que se reverterá em prol do Fundo de Defesa de Direitos Difusos (artigo 100, parágrafo único da Lei 8.078/90).

Fausto Kozo KosaKa

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o oRdenAmento JuRídIco e A posIção AtuAl dA JuRIspRudêncIA

Em que pese o tema em apreço estar em voga apenas recentemente, de há muito o ordenamento jurídico pátrio contempla normas suficientes a embasar a reparabili-dade do dano moral coletivo.

A Lei da Ação Popular (nº 4.717/65), editada para a defesa de interesses co-letivos por iniciativa do cidadão, bem como a Lei de Meio Ambiente 6.938/81, já continham disposições que autorizavam a postulação de reparação de danos, e, por não fazerem restrição neste aspecto, podem englobar os extrapatrimoniais. A Lei da Ação Civil Pública – LACP (nº 7.347/85) representou importante marco na defesa dos direitos coletivos em sentido lato, pois previu expressamente, já em seu artigo 1º, a possibilidade de reparação de danos, indistintamente. Mas a Constituição de 1988, que em vários de seus dispositivos tratou dos interesses coletivos lato sensu e da repa-rabilidade do dano moral, foi o principal diploma normativo a sedimentar a doutrina do dano moral coletivo. Seguiram-se outras importantes leis que cuidaram do tema, merecendo destaque o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03) e a Lei Antitruste (Lei 8.884/94), esta última tendo modificado a redação do artigo 1º da LACP para prever expressamente a reparabilidade dos danos morais.

O Poder Judiciário, após alguma timidez inicial, vem admitindo a caracteriza-ção e a reparabilidade do dano moral coletivo.

Em sentença prolatada pela 2ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Porto Alegre, na ação civil pública nº 2003.71.00.001233-0, proposta pelo Ministério Pú-blico Federal em face da Gravadora Sony Music Entertainment Indústria e Comércio Ltda. e Furacão 2000 Produção Artísticas Ltda., esta última foi condenada a pagar R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) a título de danos morais coletivos pelas ofen-sas à dignidade da mulher veiculadas através da música “Tapinha”, cujo conteúdo banaliza e incentiva o emprego de violência contra as pessoas do sexo feminino. (publicado no Diário Eletrônico de 13/10/2008, data da decisão: 19/02/2008, Juiz Federal Substituto Dr. Adriano Vitalino dos Santos).

Também admitindo a indenizabilidade do dano moral coletivo, a Terceira Tur-ma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, ao julgar o recurso de apelação na ação civil pública nº 2003.71.01.001937-0 proposta pelo Ministério Público Federal em face de Paulo G. S. Correa e Outro na 1ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Rio Grande/RS, confirmou o entendimento de ser cabível a indenização por dano moral coletivo em virtude de discriminação e preconceito praticados pelos réus con-tra o grupo indígena Kaingang. (publicado no Diário da Justiça de 30/08/2006, data da decisão: 10/07/2006, relatora Juíza Federal Vânia Hack de Almeida).

apontamentos sobre dano moral coletivo

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O Superior Tribunal de Justiça mantém posições divergentes a respeito do tema. As Segunda e Terceira Turmas do STJ tem decidido, a nosso ver de modo acertado, pela possibilidade da configuração e da reparação dos danos morais coletivos.2 A Primeira Turma daquela corte, todavia, tem repudiado a possibilidade de indenização por danos morais coletivos, com o entendimento de que os danos morais relacionam-se à idéia de dor, sofrimento, sentimentos incompatíveis com uma coletividade despersonificada.3 Este posicionamento da Primeira Turma mostra-se incompatível com o atual estágio da doutrina sobre o dano moral, sobretudo porque se vale de argumentos já afastados pelo próprio Superior Tribunal de Justiça quando da edição de sua súmula 227, que admitiu a possibilidade da pessoa jurídica sofrer dano moral. A pessoa jurídica, muito mais do que a coletividade (titular dos direitos lesados pelo dano moral coletivo), não experimenta sensações como a dor, o sofrimento, e nem por isto hodiernamente se lhe nega a possibilidade de reparação por danos morais. Na perspicaz visão de Sérgio Ca-valieri Filho (2005, p. 120), em lição de todo aplicável ao dano moral coletivo,

2 Neste sentido, o seguinte julgado: “PROCESSO CIVIL E ADMINISTRATIVO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – ALCANCE – PROVA – SÚMULA 7/STJ. 1. A ação civil pública, ao coibir dano moral ou patrimonial, é própria para censura a ato de improbidade, mesmo que não haja lesão aos cofres públicos. 2. Moralidade pública que, quando agredida, enseja censura. 3. Elementos probatórios exa-minados e avaliados pelo Tribunal que afastou a improbidade. 4. Necessidade de reexame de prova, o que está vedado na instância especial (Súmula 7/STJ). 5. Recurso especial não conhecido.” (RESP – RECURSO ESPECIAL – 261691; Processo: 200000550302 UF: MG Órgão Julgador: SEGUN-DA TURMA; Data da decisão: 28/05/2002 Documento: STJ000164849 ; DJ DATA:05/08/2002 PG:00230; Rel. Ministra ELIANA CALMON).

3 Ilustrando este entedimento: “PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLI-CA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. FRAUDE EM LICITAÇÃO REALIZADA PELA MU-NICIPALIDADE. ANULAÇÃO DO CERTAME. APLICAÇÃO DA PENALIDADE CONSTANTE DO ART. 87 DA LEI 8.666/93. DANO MORAL COLETIVO. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. INDICAÇÃO DE DISPOSITIVO NÃO DEBATIDO NA INSTÂN-CIA “A QUO”. (...) 2. Ad argumentandum tantum, ainda que ultrapassado o óbice erigido pelas Sú-mulas 282 e 356 do STF, melhor sorte não socorre ao recorrente, máxime porque a incompatibilida-de entre o dano moral, qualificado pela noção de dor e sofrimento psíquico, e a transindividualidade, evidenciada pela indeterminabilidade do sujeito passivo e indivisibilidade da ofensa objeto de repa-ração, conduz à não indenizabilidade do dano moral coletivo, salvo comprovação de efetivo prejuízo dano. 3. Sob esse enfoque decidiu a 1ª Turma desta Corte, no julgamento de hipótese análoga, verbis: “PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANO AMBIENTAL. DANO MORAL COLE-TIVO. NECESSÁRIA VINCULAÇÃO DO DANO MORAL À NOÇÃO DE DOR, DE SOFRIMEN-TO PSÍQUICO, DE CARÁTER INDIVIDUAL. INCOMPATIBILIDADE COM A NOÇÃO DE TRANSINDIVIDUALIDADE (INDETERMINABILIDADE DO SUJEITO PASSIVO E INDIVI-SIBILIDADE DA OFENSA E DA REPARAÇÃO). RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.” (REsp 598.281/MG, Rel. Ministro LUIZ FUX, Rel. p/ Acórdão Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRI-MEIRA TURMA, julgado em 02.05.2006, DJ 01.06.2006) (...); 5. Recurso especial não conhecido.” (RESP – RECURSO ESPECIAL – 821891; Processo: 200600380062 UF: RS Órgão Julgador: PRI-MEIRA TURMA; Data da decisão: 08/04/2008 Documento: STJ000323806 DJE DATA:12/05/2008; rel. Ministro LUIZ FUX).

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[...] deixar o causador do dano moral sem punição, a pretexto de não ser a pessoa jurídica passível de reparação, parece, data venia, equívoco tão grave quanto aquele que se cometia ao tempo em que não se admitia a reparação do dano moral nem mesmo em relação à pessoa física. Isso só estimula a irresponsabilidade e a impunidade.

A compAtIbIlIzAção dA teoRIA do dAno moRAl com A coletIvIzAção dA defesA dos dIReItos. A necessIdAde de mudAnçA de pARAdIgmAs

As concepções marcadamente individualistas, frutos do Estado Liberal, devem ser deixadas de lado no estudo deste tema. Vive-se um momento em que se busca a ampliação do acesso à Justiça, o que passa necessariamente pela valorização das de-mandas de natureza coletiva. O dano moral coletivo deve ser analisado e concebido sob esta nova ótica.

As ações coletivas foram introduzidas no sistema brasileiro sob a inspiração da class action norte-americana. Um dos motivos da criação desta última foi a necessi-dade de tutela por danos relativamente diminutos se individualmente considerados, o que desestimulava a propositura de demandas individuais, geralmente custosas e demoradas. A class action permitiu ao Poder Judiciário norte-americano conhecer questões que, embora sob a perspectiva coletiva fossem relevantes, antes não eram levadas a Juízo porque eventual ganho individual do autor seria tão pequeno que não encontrava ele estímulo para a judicialização do caso. O agente ofensor, que antes era beneficiado por esta justificada inércia e tolerância dos ofendidos – e via com isto um incentivo para a reiteração da conduta ilícita – passou a ser demandado em juízo. Esta idéia pode ser transposta, com alguns ajustes, para a ação civil pública que objetive a reparação por dano moral coletivo.

Com efeito, nas ações individuais que postulam indenização por dano moral, é comum o julgamento de improcedência do pedido ao fundamento de que o evento não causou mais do que mero dissabor, pequeno aborrecimento, sensações a que to-dos estamos sujeitos na vida em sociedade. Em suma, a jurisprudência tem entendido que os sentimentos negativos (dor, sofrimento etc.) provocados pela ação do agente, ensejadores da reparação por dano moral (individual), devem ser intensos, capazes de atingir profundamente a vítima, perturbando-lhe a alma, o espírito e a mente.

Todavia, no campo do dano moral coletivo, a aplicação do Direito não pode pautar-se pelas mesmas concepções, sob pena de tornar inviável a reparabilidade desta espécie de lesão a direitos coletivos lato sensu. Se uma determinada ofensa, considerada isoladamente em relação a cada uma das pessoas atingidas (efetiva ou potencialmente) pode não ser muito significativa no caso concreto, o conjunto de

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lesões causadas pode ser apta a ensejar a reparação pelos danos morais vistos sob uma perspectiva coletiva. Neste caso, como os recursos obtidos com eventual inde-nização são vertidos aos Fundos de Defesa de Direitos Difusos, obtém-se a solução mais adequada, pois ainda que se considere que o sentimento negativo experimenta-do individualmente não justificaria o pagamento de indenização a cada pessoa lesada pela conduta, a falta de condenação por danos morais estimularia o agente ofensor a repetir a conduta injusta. Esta última consequência é extremamente perniciosa, pois como adverte Carlos Alberto Bittar (1999, p. 229):

[...] conscientizou-se a doutrina, de um lado, de que é necessário que o agente sinta as consequências da resposta do ordenamento jurídico, para que o sistema tenha eficácia, e, de outro, mister se faz dotar-se a reparação cabível de expressão que sirva de exemplo para a sociedade, tudo para a realização efetiva de sua função inibidora.

A experiência mostrou que a defesa dos interesses coletivos (em sentido lato) em juízo comporta uma série de peculiaridades, cujas regras formam um micros-sistema processual na tutela desta espécie de direitos. A fracassada tentativa de, no passado, explicar diversas situações com as regras processuais “comuns”, como a modalidade de legitimação dos autores da ação civil pública, ilustra a insuficiência daquelas regras na seara dos direitos coletivos. As particularidades não se limitam ao campo do direito processual. Também sob o aspecto material os direitos coletivos guardam singularidades que os diferem dos direitos individuais.

Dadas as peculiaridades dos interesses coletivos lato sensu, não se deve pura e simplesmente “transportar” para o dano moral coletivo todas as balizas e critérios consagrados na doutrina e na jurisprudência para a aferição do dano moral indivi-dual. Enquanto a verificação do dano moral individual pauta-se principalmente pela intensidade da repercussão do evento no patrimônio imaterial do lesado (causando sensações de dor, sofrimento etc.), para o dano moral coletivo assume especial rele-vância o seu âmbito de alcance, seja pelo número (efetivo ou potencial) de lesados, seja pelos limites territoriais onde o evento irradie os seus efeitos deletérios.

É cediço que o dano moral individual geralmente é relacionado a um único indivíduo ou a um grupo reduzido e determinado de pessoas. Em razão do pequeno número de atingidos, o enfoque jurídico no tocante à caracterização e à reparabili-dade do dano moral individual incide na profundidade, na intensidade dos efeitos causados pelo evento, ou seja, na causação de sensações negativas capazes de abalar a psique dos vitimados direta ou indiretamente. Esta ideia decorre da perspectiva pu-ramente individualista do Direito Privado, ranço do Estado Liberal Clássico, que tem

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o ser humano – individualmente considerado – como o centro do Universo. Trata-se de uma visão egocêntrica e egoísta do fenômeno jurídico.

Contudo, sob a luz da Constituição Federal de 1988, que cuidou de prever a tutela dos interesses transindividuais, estas concepções não são totalmente adequadas à teoria da reparabilidade do dano moral coletivo. Esta espécie de lesão tem por carac-terística atingir um grupo relativamente grande de pessoas (muitas vezes até indeter-mináveis, caso dos direitos difusos), afetando negativamente valores compartilhados por toda uma comunidade. Reconhece-se que nos eventos lesivos a direitos coletivos (degradação ambiental, improbidade administrativa marcada por escândalos políticos etc.), muitas vezes os sentimentos negativos causados aos vitimados direta ou indire-tamente, não sejam tão profundos e intensos como nas hipóteses ensejadoras do dano moral individual. Ninguém duvida que a perda de um filho cause aos pais uma dor e uma sensação de perda muito mais intensa e duradoura do que o conhecimento de que o dinheiro público é dilapidado diuturnamente por nossos políticos, envolvidos em seguidos escândalos. Esta diferença de percepção e reação aos acontecimentos acima narrados é natural, na medida em que o ser humano tende a sentir com maior intensidade os eventos que repercutam de forma mais próxima, e que modificam de forma direta e imediata a sua vida e/ou o seu cotidiano. Mas nem por isto o dano moral coletivo é menos importante do que o dano moral individual. Enquanto neste último a amplitude e gravidade da ofensa é medida apenas no plano de análise ver-tical (profundidade da perturbação psíquica causada no indivíduo) – o que pode ser chamado de extensão vertical da lesão –, no dano moral coletivo a grande extensão da ofensa pode ser percebida pelo grande número de pessoas que sofrem os efeitos deletérios do evento – o que chamaremos aqui de extensão horizontal da lesão –, nelas provocando sensações negativas (de indignação, de menosprezo, de repulsa, de inferioridade, de descrédito, de desesperança, de aflição, de humilhação, de angústia), muitas vezes abalando a confiança e/ou a respeitabilidade da sociedade em relação a instituições do Estado Democrático de Direito. O exemplo exposto anteriormente, de veiculação de publicidade discriminatória que produza efeitos em todo o território nacional e tenha por público virtual toda a população brasileira, bem ilustra o pensa-mento ora desenvolvido, posto que seria inconcebível não reconhecer o dano moral coletivo em evento que tenha gerado um sentimento de consternação e de indignação em praticamente toda a sociedade. Patente, pois, que nas lesões a direitos coletivos deve ser privilegiada, na verificação do caso concreto, a extensão dos danos morais sob o plano horizontal, a fim de se melhor avaliar o seu alcance e a sua relevância.

À guisa de conclusão, propõe-se que, quando da análise a respeito da caracte-rização e da reparabilidade do dano moral (individual ou coletivo), devem ser ava-liados estes dois vetores: a extensão vertical e a extensão horizontal da lesão. Não

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se trata de aplicar uma regra aritmética, que trará resultados precisos. Entretanto, aferindo-se o âmbito dos efeitos da ofensa provocados sob estes dois planos – verti-cal e horizontal –, o operador do Direito poderá visualizar o fenômeno jurídico com maior clareza, permitindo-lhe concluir com mais segurança sobre a real extensão de eventual dano causado, seja ao indivíduo, seja para a coletividade.

RefeRêncIAs

BITTAR, Carlos Alberto. Reparação Civil por Danos Morais. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídi-co brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 559, 17 jan. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6183>. Acesso em: 10 jul. 2009.CAHALI, Yussef Said. Dano Moral. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano Moral Coletivo. São Paulo: Ltr, 2004.

Recebido: 22/9/10Aprovado: 6/12/10


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