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Caligaris, Contardo-Adolescencia

Date post: 03-Oct-2015
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Descrição sobre a adolescência nos dias atuais.
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FOLHA EXPLICA C ONSELHO EDITORIAL Alci no Leite Neto Ana Luisa Astiz, editora executiva Antonio Manuel Teixeira Mendes Arthur Nestrovski, editor Carlos He it or Cony Gilson Schwartz Mar celo Coelho Mar celo Leite Otavio Frias Fil ho Paula Cesarino Costa A ADOLESCÊNCIA CONTARDO CALLIGARIS .I C> 2000 A.JbliFolho d: isóo de Publicoçóes do Empresa Folha do Monhó S.A. e 2000 Fr4<tcls..,. ....,, Nenhuma porte desta obro pode ser reproduzido, arquivado ou transmitido de nenhuma formo ou por qualquer meio eletr6nico, mecónico, por fotocópia, 9"""'ÇÓ' ou outros, sem o permissóo expresso e esaito do PubliFolho. Copa e projeto grófico Silvia Ribeiro Assistente de projeto grófico Mariliso von Schmoedel PUBLIFOLHA
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  • FOLHA EXPLICA

    C ONSELHO EDITORIAL

    Alcino Leite Neto Ana Luisa Astiz, editora executiva Antonio Manuel Teixeira Mendes Arthur Nestrovski, editor Carlos Heitor Cony Gilson Schwartz Marcelo Coelho Marcelo Leite Otavio Frias Filho Paula Cesarino Costa

    A ADOLESCNCIA CONTARDO CALLIGARIS

    .I C> 2000 A.JbliFolho d:iso de Publicoes do Empresa Folha do Monh S.A. e 2000 Fr4

  • SUMRIO INTRODUO .............................................................. 7

    1. ELEMENTOS DE DEFINIO ........................ ......... 11

    2. "O QUE ELES ESPERAM DE MIM?" ....................... 23

    3. "COMO CONSEGUIR QUE ME RECONHEAM E ADMITAM COMO ADULTO?" ... ................... .......... 31

    4. A ADOLESCNCIA COMO IDEAL CULTURAL ....... .......... ........... ...... .... 55

    PEQUENA BIBLIOGRAFIA COMENTADA ......... ............ 75

    1. ELEMENTOS DE DEFINIO

    INTRODUO

    m adolescente um pouco sem rumo, es-tranhando seu prprio comportamento, paradoxalmente desafiador e arrependido, pra voc na rua e fala:"Estou s passando

    por uma fase agora. Todo o mundo passa por fases, no ?" Algum talvez reconhea sua voz. Holden, o heri do romance O Apanhador no Campo de Centeio, de J .D. Salinger.

    Aproveitando-se da situao, atrs e ao lado dele se aglomeram pais e mes de adolescentes. Eles tam-bm perguntam:"Ento, assim?Vai passar? s uma fase?"

    Resposta de bolso, caso Holden e os pais o pa-rem na rua: "No. No apenas uma fase. Por isso nada garante que passe".

    Nossos adolescentes amam, estudam., brigam, tra-balham. Batalham com seus corpos, que se esticam e se transformam. Lidam com as dificuldades de crescer no quadro complicado da famlia moderna. Como se diz

  • I ntroduQo 9

    hoje, eles se procuram e eventualmente se acham. Mas, alm disso, eles precisam lutar com a adolescncia, que uma criatura um pouco monstruosa, sustentada pela imaginao de todos, adolescentes e pais. Um mito, in-ventado no comeo do sculo 20, que vingou sobretu-do depois da Segunda Guerra Mundial. 1

    A adolescncia o prisma pelo qual os adultos olham os adolescentes e pelo qual os prprios adoles-centes se contemplam. Ela uma das formaes cul-turais mais poderosas de nossa poca.

    Objeto de inveja e de medo, ela d forma aos sonhos de liberdade ou de evaso dos adultos e, ao mesmo tempo, a seus pesadelos de violncia e desor-dem.

    Objeto de admirao e ojeriza, ela um pode-roso argumento de marketing e, ao mesmo tempo, uma fonte de desconfiana e represso preventiva.

    A Holden e aos pais pode-se responder, assim, que os jovens de hoje chegaram adolescncia numa poca que alimenta uma espcie de culto desse tempo da vida. E caberia, ento, tentar explicar como isso nos afeta a todos.

    1 Cf. Bibliografia. I.

    A ADOLESCNCIA COMO MORATRIA

    [!] magine que, por algum acidente, voc seja transportado, de uma hora para outra, a uma sociedade totalmente diferente. Digamos que o avio no qual voc estava sobrevoando um

    canto recndito da Amaznia teve uma dificuldade tc-nica. O piloto conseguiu aterrissar, mas o aparelho est destrudo. No h como esperar socorro, nem como sair do fundo selvagem da floresta. Por sorte, uma tribo de ndios que nunca encontraram homens modernos, mas que so relativamente bem-humorados adota voc e seus amigos. Ser necessrio, imaginemos, 12 anos para que vocs se entrosem com os usos e costumes de sua nova tribo - desde a linguagem at o entendimento dos valo-res da sociedade em que aparentemente vocs vivero o resto de seus dias.

    Os 12 anos passaram. Voc agora fala corrente-mente a lngua, conhece as leis e regras de sua nova tribo, na verdade se sente um deles. Entre as coisas que voc aprendeu, est o fato evidente de que, nessa soei-

  • Elcncntos tk tk.finio IJ

    edade, importante sobressair e adquirir destaque. E, para se destacar, h principalmente dois campos, seja voc homem ou mulher: a pesca com o arpo e as serenatas de berimbau. Em outras palavras, nessa soci-edade bom e necessrio ser um excelente pescador com o arpo e tocar magistralmente o berimbau-de-boca. Quem melhor pesca e toca - todos percebem - claramente muito mais feliz do que os outros.

    Voc est muito satisfeito com isso. Pois, durante os 12 anos, voc olhou, imitou e aprendeu. Voc na verdade se acha e talvez seja mesmo timo na pesca com o arpo - pelos anos na selva, seu corpo est treinado, forte e rpido - e est prestes a desafiar qual-quer um numa serenata de berimbau.

    Nesta altura, os ancies da tribo lhe comunicam o seguinte: talvez voc tenha tamanho e percia sufici-entes para encarar tanto um surubim de dois metros quanto um berimbau dos mais sofisticados, mas melhor esperar mais dez anos antes de vir fazer pro-priamente parte da tribo e, portanto, competir de igual para igual com os outros membros. Naturalmente, os ancies acrescentaro que esse "pequeno" atraso in-teiramente para seu bem. Eles amam voc e por isso querem que ainda por um tempo voc seja protegido dos perigosssimos surubins que andam por a. Isso sem falar dos berimbaus . ..

    Portanto, voc vai poder se preparar melhor ainda para o dia em que ser enfim reconhecido como mem-bro da tribo. Que tudo isso, acrescentaro tambm os ancies, no constitua frustrao nenhuma, pois na ver-dade a tribo inteira considera que voc tirou a sorte grande e que os ditos dez anos sero os mais felizes de sua existncia. Voc - acrescentam eles - no ter as pesadas responsabilidades dos membros da tribo. Ao mesmo tempo, poder pescar e tocar berimbau von-

    tade - ser apenas como treino, de brincadeira, mas jus-tamente por isso sero atividades despreocupadas.

    Agora, seriamente, como voc acha que encara-ria o anncio e a perspectiva desses dez anos de limbo? Logo agora que voc achava que seu berimbau ia se-duzir qualquer ouvido e sua destreza transfi.xar peixes de olhos quase fechados ...

    bem provvel que voc passasse por um le-que variado de sentimentos: raiva, ojeriza, desprezo e enfim rebeldia. Se houvesse uma tribo inimiga, se-ria o momento de considerar uma traio. No mni-mo, voc voltaria a se agrupar com os companheiros do avio, que talvez voc tivesse perdido de vista e que agora estariam lidando com a imposio da mes-ma moratria. Juntos, vocs acabariam constituindo uma espcie de tribo na tribo, outorgando mutua-mente o reconhecimento que a sociedade parece temporariamente negar a vocs todos. Vocs se afas-tariam de suas famlias (adotivas, no caso) e viveriam no e pelo grupo, onde se sentem tratados como ho-mens e mulheres de verdade. Circulando em grupo, impondo sua presena rebelde pelas ruas da aldeia -se possvel nas horas menos adequadas -,vocs seri-am fonte de preocupao e medo, objeto de repres-so e, quem sabe, de inveja.

    Pois bem: o que acontece com nossos adolescen-tes parecido com o destino dos aeronufragos dessa pequena histria.Ao longo de mais ou menos 12 anos, as crianas, por assim dizer, se integram em nossa cultu-ra e, entre outras coisas, elas aprendem que h dois cam-pos nos quais importa se destacar para chegar felicidade e ao reconhecimento pela comunidade: as relaes amorosas/ sexuais e o poder (ou melhor, a potncia) no campo produtivo, financeiro e social. Em outras pala-vras, elas aprendem que h duas qualidades subjetivas

  • que so cruciais para se fazer valer em nossa tribo: necessrio ser desejvel e invejvel.

    Enfim, esse aprendizado mnimo est solidamente assimilado. Seus corpos, que se tornaram desejantes e desejveis, poderiam lhes permitir amar, copular ego-zar, assim como se reproduzir. Suas foras poderiam assumir qualquer tarefa de trabalho e comear a lev-los na direo de invejveis sucessos sociais. Ora, logo nesse instante, lhes comunicado que no est bem na hora ainda.

    Em primeira aproximao, eis ento como co-mear a definir um adolescente. 2 Inicialmente, algum

    1. que teve o tempo de assimilar os valores mais banais e mais bem compartilhados na comunidade (por exemplo, no nosso caso: destaque pelo sucesso finan-ceiro/social e amoroso/sexual);

    2. cujo corpo chegou maturao necessria para que ele possa efetiva e eficazmente se consagrar s ta-refas que lhes so apontadas por esses valores, compe-tindo de igual para igual com todo mundo;

    3. para quem, nesse exato momento, a comuni-dade impe uma moratria.

    Em outras palavras, h um sujeito capaz, instru-do e treinado por mil caminhos - pela escola, pelos pais, pela mdia- para adotar os ideais da comunidade. Ele se torna um adolescente quando, apesar de seu corpo e seu esprito estarem prontos para a competi-o, no reconhecido como adulto. Aprende que, por volta de mais dez anos, ficar sob a tutela dos adul-

    1 Em todo o texto, quando falamos do "adolescente" sem mais especificar, entende-mos a palavra como substantivo neutro. Salvo indica.o expliciu do contririo, nossas afJimaes valem, portanto, para ambos os sexos.

    tos, preparando-se para o sexo, o amor e o trabalho, sem produzir, ganhar ou amar; ou ento produzindo, ganhando e amando, s que marginalmente.

    Uma vez transmitidos os valores sociais mais b-sicos, h um tempo de suspenso entre a chegada maturao dos corpos e a autorizao de realizar os ditos valores. Essa autorizao postergada. E o tem-po de suspenso a adolescncia.

    Esse fenm~no novo, quase especificamente contemporneo. E com a modernidade tardia (com o sculo que mal acabou) que essa moratria se instaura, se prolonga e se torna enfim mais uma idade da vida.

    A ADOLESCNCIA COMO REAAO E REBELDIA

    A imposio dessa moratria j seria razo sufi-ciente para que a adolescncia assim criada e mantida fosse uma poca da vida no mnimo inquieta.

    Afinal, no seria estranho que moas e rapazes nos reservassem alguma surpresa desagradvel, uma vez impedidos de se realizar como seus corpos permitiri-am, no reconhecidos como pares e adultos pela co-munidade, logo quando passam a se julgar enfim competitivos.

    Pensem de novo em como vocs reagiriam na hipottica tribo: mesmo supondo que evitassem deci-ses drsticas (cair fora, entrar em guerra aberta com os ancies, trair a tribo etc.), presumvel que passari-am por um perodo de contestao aguda. Comeari-am a pescar com dinamite e a tocar teclado eletrnico em vez de berimbau. Inventariam e tentariam impor (eventualmente fora) meios de obter reconheci-

  • mente totalmente inditos para a tribo. Essas so ape-nas sugestes benignas.

    Ora, o caso dos jovens modernos bem pior do que o destino dos aeronufragos na hospitaleira tribo da selva amaznica. Pois, alm de instruir os jovens nos valores essenciais que eles deveriam per-seguir para agradar comunidade, a modernidade tambm promove ativamente um ideal que ela situa acima de qualquer outro valor: o ideal de indepen-dncia. Instigar os jovens a se tornarem indivduos independentes uma pea-chave da educao mo-derna. Em nossa cultura, um sujeito ser reconheci-do como adulto e responsvel na medida em que viver e se afirmar como independente, autnomo-como os adultos dizem que so.

    Isso torna ainda mais penoso o hiato que a ado-lescncia instaura entre aparente maturao dos cor-pos e ingresso na vida adulta. Apesar da maturao dos corpos, a autonomia reverenciada, idealizada por todos como valor supremo, reprimida, deixada para mais tarde.

    Desde j vale mencionar que a desculpa nor-malmente produzida para justificar a moratria da adolescncia problemtica. Pretende-se que, apesar da maturao do corpo, ao dito adolescente faltaria maturidade. Essa idia circular, pois a espera que lhe imposta justamente o que o mantm ou torna inadaptado e imaturo.

    No difcil verificar que, em pocas nas quais essa moratria no era imposta, jovens de 15 anos j levavam exrcitos batalha, comandavam navios ou simplesmente tocavam negcios com competncia.

    O adolescente no pode evitar perceber a con-tradio entre o ideal de autonomia e a continuao de sua dependncia, imposta pela moratria.

    A ADOLESCNCIA IDEALIZADA

    Tal contradio torna-se ainda mais enigmti-ca para o adolescente na medida em que essa cultu-ra parece idealizar a adolescncia como se fosse um tempo particularmente feliz. Como possvel? Se o adolescente privado de autonomia, se afastado da realizao plena dos valores cruciais de nossa cultura, como pode essa mesma cultura 1magmar que ele seja feliz?

    O adolescente poderia facilmente concluir que essa idealizao da poca da vida que ele est atra-vessando uma zombaria que agrava sua insatisfa-o. Ele certamente tem direito de se irritar com isso: dificil entender por que os adultos (que em princpio deveriam conhecer a adolescncia, por te-rem passado por a em algum momento no passa-do) achariam graa nessa poca da vida ou a lembrariam com nostalgia. Tentaremos explicar essa idealizao, sobretudo no Captulo 4. Mas, seja como for, o adolescente vive um paradoxo: ele frustrado pela moratria imposta, e, ao mesmo tempo, a id~aliz~o social da adolescncia lhe ordena que sep fehz. Se a adolescncia um ideal para todos, ele s pode ter a delicadeza de ser feliz ou, no m-nimo, fazer barulhentamente de conta.

    Em nossa cultura, a passagem para a vida adul-ta um verdadeiro enigma. A adolescncia no s uma moratria mal justificada, contradizendo valo-res cruciais como o ideal de autonomia. Para o ado-lescente, ela no s uma sofrida privao de reconhecimento e independncia, misteriosamente idealizada pelos adultos. tambm um tempo de transio, cuja durao misteriosa.

  • DURAO DA ADOLESCNCIA

    O comeo da adolescncia facilmente observvel, por se tratar da mudana fisiolgica pro-duzida pela puberdade. Trata-se, em outras palavras, de uma transformao substancial do corpo do jo-vem, que adquire as funes e os atributos do cor-po adulto. Querendo circunscrever a adolescncia no tempo, como idade da vida, chega-se facilmente a um consenso no que concerne ao seu comeo. Ele decidido pela puberdade, ou seja, pelo ama-durecimento dos rgos sexuais. Alguns diro que a adolescncia propriamente dita comea um ou dois anos depois da puberdade, pois esse seria o tempo necessrio para que, de alguma forma, o estorvo fi-siolgico se transformasse numa espcie de identi-dade adolescente consolidada. Outros diro, ao contrrio, que a adolescncia comea antes da pu-berdade, pois esta antecipada pela adoo precoce de comportamentos e estilos de adolescentes mais velhos. Seja como for, a puberdade - ano a mais, ano a menos - a marca que permite calcular o comeo da adolescncia.

    Quando a adolescncia comeou a ser instituda por nossa cultura e, logicamente, apareceram as com-plicaes sociais e subjetivas produzidas pela inveno dessa moratria, pensou-se primeiro que a causa de toda dificuldade da adolescncia fosse a transforma-o fisiolgica da puberdade.A adolescncia, em suma, seria uma manifestao de mudanas hormonais, um processo natural.3

    1 Cf. Bibliografu, f , em particular os comentrios obr.a de SunJey C. Hall.

    De fato, a transformao trazida pela puberdade considervel. Tanto do ponto de vista fisiolgico quanto da imagem de si que deve se adaptar a essa mudana. Basta lembrar a chegada dos desejos sexuais (que j existiam, mas que so agora reconhecidos como tais pelos prprios sujeitos) e, aos poucos, a descoberta de uma competio possvel com os adultos, tanto na seduo quanto no enfrentamento.

    Mas essas mudanas s acabam constituindo um problema chamado adolescncia na medida em que o olhar dos adultos no reconhece nelas os sinais da pas-sagem para a idade adulta.

    O problema ento no : "Quando comea a adolescncia?", mas: "Como se sai da adolescncia?"

    O equivalente da adolescncia, em outras cultu-ras, um rito de iniciao, eventualmente acompa-nhado de algumas provas. Por mais duras que possam ser, elas sero sempre mais suportveis do que a inde-finida moratria moderna. Alis, em nossa hipottica tribo amaznica, na verdade os ancies nunca impo-riam uma espera indefinida de dez anos ou mais. Eles poderiam exigir que vocs lutassem corpo a corpo com o rei dos surubins gigantes, por exemplo. Ou ento que levassem 15 berimbauzadas na cabea.

    Mas, para que fosse possvel uma iniciao vida adulta, com uma prova designada, seria necessrio que se soubesse o que define um homem ou uma mulher adultos. Essa definio, na cultura moderna ocidental, fica em aberto. Adulto, por exemplo, quem conse-gue ser desejvel e invejvel. Como saber ento quan-to desejo e quanta inveja preciso levantar para ser admitido no Olimpo dos"grandes"? Portanto, fica tam-bm em aberto a questo de quais provas seriam ne-cessrias para que um adolescente merecesse se tornar um adulto.

  • De certa forma, a moratria ch adolescncia o fruto dessa indefinio. Numa sociechde en1 que os adultos fossem definidos por algun1a competncia es-pecfica, no haveria adolescentes, s candidatos e uma iniciao pela qual seria facil decidir: sabe ou no sabe, ou no adulto.

    Como ningum sabe direito o que um ho-mem ou uma mulher, ningum sabe tambm o que preciso para que um adolescente se torne adulto. O critrio simples da maturao fsica descartado. Falta uma lista estabelecida de provas rituais. S sobram ento a espera, a procrastinao e o enigma, que confrontam o adolescente- este condenado a uma moratria for-ada de sua vida - com uma insegurana radical em que se agitam questes que correspondem aos prxi-mos captulos:"O que eles esperam de mim?","Como conseguir que me reconheam e admitam como adul-to?", "Por que me idealizam?"

    Voltando pequena lista de elementos definitrios exposta acima, no final da seo" A adolescncia como moratria", acrescentemos, concluindo, que o adoles-cente tambm algum:

    4. cujos sentimentos e comportamentos so ob-viamente reativos, de rebeldia a uma moratria injusta;

    5. que tem o inexplicvel dever de ser feliz, pois vive uma poca da vida idealizach por todos;

    6 . que no sabe quando e como vai poder sair de sua adolescncia.

  • 2. "O QUE ELES ESPERAM DE MIM?"

    INSEGURANA

    O adolescente se olha no espelho e se acha cliferente. Constata facilmente que perdeu aquela graa infantil que, em nossa cultu-ra, parece garantir o amor incondicional

    dos adultos, sua proteo e solicitude imediatas. Essa segurana perdida deveria ser compensada por um novo olhar dos mesmos adultos, que reconhecesse a imagem pbere como sendo a figura de outro adulto, seu par iminente. Ora, esse olhar falha: o adolescente perde (ou, para crescer, renuncia) a segurana do amor que era garantido criana, sem ganhar em troca ou-tra forma de reconhecimento que lhe pareceria, nesta altura, devido.

    Ao contrrio, a maturao, que, para ele, evi-dente, invasiva e destrutiva do que fazia sua graa de criana, recusada, suspensa, negada. Talvez haja maturao, lhe dizem, mas ainda no maturidade. Por conseqncia, ele no mais nada, nem criana amada, nem adulto reconhecido.

  • O que vemos no espelho no bem nossa ima-gem. uma imagem que sempre deve muito ao olhar dos outros. Ou seja, me vejo bonito ou desejvel se tenho razes de acreditar que os outros gostam de mim ou me desejam. Vejo, em suma, o que imagino que os outros vejam. Por isso o espelho ao mesmo tempo to tentador e to perigoso para o adolescente: porque gostaria muito de descobrir o que os outros vem nele. Entre a criana que se foi e o adulto que ainda no chega, o espelho do adolescente freqen-temente vazio . Podemos entender ento como essa poca da vida possa ser campe em fragilidade de auto-estima, depresso e tentativas de suicdio.

    Parado na frente do espelho, caando as espinhas, medindo as novas formas de seu corpo, desejando e ojerizando seus novos plos ou seios, o adolescente vive a f.lta do olhar apaixonado que ele merecia quan-do criana e a falta de palavras que o admitam como par na sociedade dos adultos. A insegurana se torna assim o trao prprio da adolescncia.

    Grande parte das dificuldades relacionais dos adolescentes, tanto com os adultos quanto com seus coetneos, deriva dessa insegurana. Tanto uma timi-dez apagada quanto o estardalhao manaco manifes-tam as mesmas questes constantemente flor da pele, de quem se sente no mais adorado e ainda no reco-nhecido: ser que sou amvel, desejvel, bonito, agra-dvel, visvel, invisvel, oportuno, inadequado etc.

    INTERPRETAR OS ADULTOS

    O adolescente portanto se lana numa interro-gao que durar o tempo (indefinido) de sua adoles-

    -,._

    26 A adolcscincia

    cncia e que consiste em se perguntar o que ser que os adultos querem e esperam dele. Ou seja, qual seria o requisito para conquistar uma nova dose do amor dos adultos que ele estima ter perdido junto com a infncia. Qual seria o gesto necessrio para redirecionar o olhar adulto, que parece ter-se desviado. Qual o atri-buto que garantiria, enfim, que ele fosse reconhecido entre "os grandes".

    Infelizmente (pois sem isto tudo seria mais fcil), nessa tentativa o adolescente no pode se confinar a uma simples adeso ao que os adultos parecem expli-citamente esperar dele e desejar para ele. Pois os adul-tos se contradizem. Parecem negar a bvia maturao de seu corpo e lhe pedir que continue criana; e ten-tam mant-lo numa subordinao que contrasta com os valores que eles mesmos lhe ensinaram.

    Querem que ele seja autnomo e lhe recusam essa autonomia. Querem que persiga o sucesso social e amo-roso e lhe pedem que postergue esses esforos para "se preparar" melhor. E legtimo que o adolescente se per-gunte: "mas o que eles querem de mim, ento? Querem (segundo eles dizem) que eu aceite esta moratria, ou preferem, na verdade, que eu desobedea e afirme minha independncia, realizando assim seus ideais?"

    Ser que os prprios adultos sabem? Aparente-mente no: a adolescncia assume assim a tarefa de interpretar o desejo inconsciente (ou simplesmente escondido, esquecido) dos adultos.

    O pensamento mais ou menos o seguinte: "Os adultos querem coisas contraditrias. Eles pedem urna moratria de minha autonomia, mas o resultado de minha aceitao que eles no me amam mais como uma criana, nem reconhecem como um par esta 'coi-sa' na qual eu me transformei. Talvez, para ganhar seu amor e seu reconhecimento, eu no deva ento seguir

  • risca suas indicaes e seus pedidos, mas descobrir qual de fato o desejo deles, atrs do que dizem que que-rem. Em suma: de fato (e no s em suas recomenda-es pedaggicas), qual o ideal dos adultos, para que eu possa presente-los com isso e portanto ser por eles enfim amado e reconhecido como adulto?"

    Em geral, o adolescente timo intrprete do desejo dos adultos. Mas o prprio sucesso de suas in-terpretaes produz fatalmente o desencontro entre adultos e adolescentes. Pois se estabelece um fantsti-co qiproqu: o adolescente acaba eventualmente atu-ando, realizando um ideal que mesmo algum desejo reprimido do adulto. Mas acontece que esse desejo no era reprimido pelo adulto por acaso. Se reprimiu, foi porque queria esquec-lo. Por conseqncia, o adulto s pode negar a paternidade desse desejo e se aproveitar da situao para reprimi-lo ainda mais no adolescente.

    Um caso simples e crucial: a idealizao do que est fora da lei prpria cultura moderna. O indivi-dualismo de nossa cultura preza acima de tudo a auto-nomia e a independncia de cada sujeito. Por outro lado, a convivncia social pede que se traguem doses cavalares de conformismo. Para compensar essa exign-cia, a idealizao do fora-da-lei, do bandido, tornou-se parte integrante da cultura popular. Gngsteres, cowboys, malandros literrios, televisivos ou cinematogrficos se-guem entretendo nossos sonhos. Eventualmente (mas no necessariamente) essa idealizao acompanhada por algum tipo de justificativa moral. Por exemplo, Robin Hood est margem da lei, mas isso porque o xerife de Nottingham um usurpador ilegtimo. Ou seja, Robin Hood se situa contra e acima da lei em nome de uma justia superior a ela. Mas essa artimanha parece cada vez menos necessria: nas ltimas dcadas

    28 A adclcscincia

    Gustamente quando apareceu e vingou a adolescncia), a marginalidade e a delinqncia so cada vez mais glorificadas pela cultura popular. Prova de um sonho adulto bem presente e bem reprimido.

    No difcil, portanto, ao adolescente interpre-tar o conformismo ou mesmo o "legalismo" dos adul-tos como sintomas de um desejo que sonha mesmo com transgresses e infraes e que (supe o adoles-cente) preferiria portanto um filho malandro a um "mauricinho babaca".

    Para chegar a essa concluso, o adolescente no precisa de muito esforo, pois a cultura popular tam-bm idealiza a prpria adolescncia rebelde.

    Esse um sonho ou uma nostalgia explcita dos mesmos adultos que pedem obedincia e conformida-de aos adolescentes e sempre lembram o que aconte-ceu com Chapeuzinho Vermelho por ter desobedecido me, mas que na verdade se extasiam com uma longa srie de apologias da revolta dos jovens, desde Juventude Transviada at Kids. 4

    Em suma, o adolescente levado inevitavelmente a descobrir a nostalgia adulta de transgresso ou melhor, de resistncia s exigncias antilibertrias do mundo. Ele ouve, atrs dos pedidos dos adultos, um "Faa o que eu desejo e no o que eu peo". E atua em conseqncia.

    Essa interpretao do desejo dos adultos pelo adolescente no s facilitada ou induzida pela cultu-ra popular, que oferece leitura de todos uma espcie de repertrio social dos sonhos e dos ideais. Mesmo sem essa facilitao, as propriedades bsicas do desejo moderno levariam o adolescente s mesmas conclu-ses de fundo. Pelo seguinte caminho:

    Cf Bibliografia, li.

  • 1. Uma cultura em que a auconomia e a inde-pendncia so os valores centrais e mais exaltados s pode se transmitir por um duplo vinculo, ou seja, por uma consignao paradoxal e contraditria. A virtude essencial que deve ser ensinada , com efeito, a capaci-dade de desobedecer. Portanto, obedecer desobede-cer. Mas - complicao - quem desobedece est obedecendo. Dificil tanto obedecer quanto seu con-trrio.

    2. Na sociedade pr-moderna, a diviso social era relativamente pacfica, estabelecida. Hoje, a divi-so social mvel e a posio de cada um depende, em princpio, do reconhecimento dos outros que se consegue ou no. normal que ningum esteja satis-feito com sua situao e que cada um tente melhor-la. O adulto moderno transmite ao adolescente no um estado onde ele poderia se instalar como se her-dasse uma moradia, mas uma aspirao. Mais do que isso: ele transmite a seu rebento a ambio de no repetir a vida e o status dos adultos que o engendra-ram. Ou seja, de desrespeitar suas origens, de no se conformar, de se destacar.

    3. Apesar disso tudo, os adultos devem tambm transmitir ao adolescente as regras da conformidade social, necessria para que ele no seja simplesmente inadaptado. Ora, essa transmisso inevitvel de princ-pios morais e valores prezados pelo consenso social aparece ao adolescente como prova da covardia, do oportunismo e do fracasso dos adultos. Se eles prezam a exceo, porque se dobram a rogar a conformidade? A autoridade do adulto assim minada, pois todos os valores positivos parecem emanar da resignao ao fra-casso, de um desejo frustrado de rebeldia ou de unicidade. Quanto mais o adulto tenta se constituir como autoridade moral, tanto mais se qualifica como

    JO A adol~cia

    hipcrita, porque a cultura (e ele junto com ela) pro-move como ideal aquele que faz exceo norma.

    4. Quanto mais o adulto se manifesta rigoroso e quer impor sua autoridade recorrendo a uma tradi-o, tanto mais ele a enfraquece e se enfraquece com ela. Esse recurso, portanto, passa a produzir cada vez mais revolta por aparecer sempre, em nossa cultura, como hipcrita. Ou seja, como represso exercida contra o inconfessvel de nossos sonhos.

    5. O adolescente levado a concluir que o adul-to quer dele revolta. E a represso s confirma nele essa crena, apenas acrescentando a constatao que o adulto repressor hipcrita.

  • 3.

    A finalidade da adolescncia clara: o ado-lescente quer se tomar adulto. Podemos manter essa hiptese inicial, embora, como veremos (concluso do Caprulo 4), nessa

    empreitada o adolescente encontre uma surpresa. Mas, por ora, constatemos que o adolescente quer ser reco-nhecido como sujeito adulto, um par dos adultos. Ele quer permisso para fazer parte da comunidade.

    O problema, como observamos antes, que para ser reconhecido ele parece ter que transgredir. Para ser amado, para preencher as expectativas do desejo dos adultos, necessrio, paradoxalmente, no se con-formar ao que os mesmos adultos explicitamente pe-dem. Transgredir tambm no nada fcil. No suficiente atender s expectativas implcitas e faltar com as explcitas. Como j observamos, o adolescente se encontra entregue a problemas lgicos complicados.

    Se o imperativo cultural dominante "Desobe-dece!", "Prova tua autonomia!", ento desobedecer

  • "Como ~mtguir que me r~nhllm t ~ w.lmitam ~mo adulto?" JJ

    pode ser uma maneira de obedecer. E obedecer, quem sabe, talvez seja o jeito certo de no se conformar.

    Essa complicao insolvel introduz um leque de transgresses que vai desde um conformismo ines-perado (o cmulo da transgresso nesse caso consiste em voltar a uma cultura que no faria a apologia da transgresso) at uma espcie de arrematao infinita, em que no se sabe mais qual lance encontrar que constitua uma transgresso suficiente.

    No h como tentar uma lista mesmo sucinta dos comportamentos e estilos pelos quais os adoles-centes pedem sua admisso sociedade adulta. Na mesma poca em que parece vingar o pesadelo do predador urbano, tambm aparecem jovens que co-letivamente abjuram as sedues do mundo, se engajam a chegar virgens ao casamento e se vestem como missionrios. A variedade de escolhas morais no menor: desde o cinismo criminoso at a pie-dade mais solidria.

    O fato que a adolescncia uma interpreta-o de sonhos adultos, produzida por uma moratria que fora o adolescente a tentar descobrir o que os adultos querem dele. O adolescente pode encontrar e construir respostas muito diferentes a essa investi-gao. As condutas adolescentes, em suma, so to variadas quanto os sonhos e os desejos reprimidos dos adultos. Por isso elas parecem (e talvez sejam) todas transgressoras. No mnimo, transgridem a von-tade explcita dos adultos.

    O adolescente, na procura de reconhecimento, culturalmente seduzido a se engajar por caminhos tor-tuosos onde, paradoxalmente, ele se marginaliza logo no momento em que viria se integrar. Pois o que lhe proposto tentar, ou melhor, forar sua integrao, justamente se opondo s regras da comunidade.

    34 A adoksdnda

    As mil e uma condutas que um adolescente pode escolher para tentar obter o reconhecimento dos adul-tos tm, portanto, uma coisa em comum, alm do ca-rter dificil, seno desesperado, do empreendimento. Trata-se do sentimento dos adultos de que a adoles-cncia uma espcie de patologia social ou, no me-lhor dos casos, um lugar onde as patologias psquicas e sociais seriam endmicas e epidmicas.

    O comportamento adolescente considerado no mnimo anormal, por aparecer (e de fato ser) transgressivo, quando comparado ao padro adulto (o padro confesso dos adultos) .

    Os adolescentes so facilmente considerados uma ameaa ordem estabelecida e paz familiar.

    Os adultos receiam as irrupes transgressivas que os adolescentes podem escolher como maneiras de se afirmar. Mas, sobretudo, os adultos sabem confusamente que o que h de mais transgressor nos adolescentes a realizao de um desejo dos adultos, que estes preten-diam reprimir e esquecer. Se a adolescncia uma patologia, ela ento uma patologia dos desejos de rebeldia reprimidos pelos adultos.

    A vida real dos adolescentes (da grande maioria deles) pode ter pouco a ver com as figuras dessa pato-logia. Mas elas so cruciais, por duas razes.

    Primeiro, descrever e tentar explicar os com-portamentos extremos dos adolescentes a me-lhor maneira de situar os monstros que enfrenta tambm o adolescente aparentemente "normal"-embora ele os enfrente de maneira mais bem-su-cedida. Pais e adolescentes conseguem a cada dia negociar acordos viveis. Mas, por isso mesmo, o drama da adolescncia, com o qual conseguem li-dar, aparece mais claramente quando sua violncia atropela seus atores.

  • uComo constgur que me rcamhc4m c me admitam corno adulto? J5

    Segundo, a adolescncia no s o conjunto das vidas dos adolescentes. tambm uma imagem ou uma srie de imagens que muito pesa sobre a vida dos adolescentes. Eles transgridem para ser reconhecidos, e os adultos, para reconhec-los, constroem vises da adolescncia. Elas podem estar entre o sonho (afinal, o adolescente a atuao de desejos dos adultos), o pe-sadelo (so desejos que estariam melhor esquecidos) e o espantalho (so desejos que talvez voltem para se vingar de quem os reprimiu).

    Essas vises - embora sempre e.x-uemas - so tam-bm as linhas segundo as quais de fato se organiza o comportamento dos adolescentes em sua procura de reconhecimento. So ao mesmo tempo concrees da rebeldia extrema dos adolescentes e sonhos, pesadelos ou espantalhos dos adultos. Por isso, so chaves de acesso adolescncia. Destaco cinco: o adolescente gregrio, o delinqente, o toxicmano, o adolescente que se enfeia e o adolescente barulhento.

    O ADOLESCENTE GREGRIO O adolescente, descobrindo que a nova imagem

    projetada por seu corpo no lhe vale "naturalmente" o estatuto de adulto, acuado a agir.

    A primeira ao- em resposta falta do reco-nhecimento que ele esperava dos adultos - consiste em procurar novas condies sociais, em que sua ad-misso como cidado de pleno direito no dependa mais dos adultos e, portanto, no seja mais sujeita moratria. O adolescente transforma assim sua faixa etria num grupo social, ou ento num conglomera-do de grupos sociais dos quais os adultos so exclu-

    36 A adoltsncia

    dos e em que os adolescentes podem mutuamente se reconhecer como pares.

    Contrariamente s crianas, os adolescentes em geral consideraro que sua verdadeira comunidade no a famlia. Isso no propriamente um efeito da fre-qente desagregao dos ncleos familiares (esvazia-mento das casas onde todos trabalham, ou separao dos pais). o inverso: a crise da famlia revela de fato que os prprios adultos esto tomados por pruridos adolescentes, com nsia de rebeldias e liberdades (en-tre elas, a liberdade das responsabilidades de uma fa-mlia). Essas inquietaes juvenis no os aproximam dos adolescentes, os quais esper~m deles algo que no encontram em seus coetneos. E possvel que surjam novos modelos de famlia e estes permitam que adul-tos e adolescentes convivam - e no s se abriguem sob o mesmo teto. At l, a verdadeira comunidade do adolescente composta por seus coetneos e, entre estes, pelo grupo restrito de pares com os quais com-partilha as escolhas de estilo mais importantes.

    Recusado como par pela comunidade dos adul-tos, indignado pela moratria que lhe imposta e acuado pela in definio dos requisitos para termin-la (a famosa e enigmtica maturidade), o adolescente se afasta dos adultos e cria, inventa e integra microsso-ciedades que vo desde o grupo de amigos at o gru-po de estilo, at a gangue.

    Nesses grupos, ele procura a ausncia de mora-tria ou, no mnimo, uma integrao mais rpida e critrios de admisso claros, explcitos e praticveis ( diferena do que acontece com a famosa "maturida-de" exigida pelos adultos).

    Os grupos adolescentes, sempre respondendo a esses pr-requisitos, so, por assim dizer, de densi-dades diferentes. Alguns so informais e abertos,

  • NComo conseguir qut me rcconh((JJm (me admitam como adulto?- 37

    como as comunidades de estilo (dark, punk, rave, clubber etc.): o acesso aqui exige apenas a composi-o de uma imagem, um look que todos reconhe-am como trao comum.

    Outros grupos pedem que a senha que d aces-so comunidade seja uma marca duradoura- tatu-agem, cicatriz - ou um tipo especfico de modificao corporal.

    Outros, ainda, pedem uma espcie de pacto de sangue, como a participao numa responsabilidade coletiva indissolvel, sem retorno. Aqui o ato de rou-bar, estuprar ou matar coletivamente produz uma cul-pa comum, um segredo comum.

    O grupo adolescente -seja um estilo comparti-lhado ou propriamente uma gangue- aparece de qual-quer jeito como uma patologia aos olhos dos adultos. Os gostos gregrios dos jovens so considerados anor-mais e perigosos. O grupo adolescente vivido como o que sanciona a desagregao da farrlia e quebra a relao hierrquica entre geraes, visto que o adoles-cente encontra em seus coetneos o reconhecimento que se esperava que pedisse aos adultos.

    O adulto, sem se perguntar muito pot: que os adolescentes so gregrios, demoniza o grupo adoles-cente temido como uma espcie de tribo na tribo.

    De fato, a prpria constituio do grupo adoles-cente , do ponto de vista dos adultos, uma transgres-so. Os adolescentes se tornam gregrios porque lhes negado o reconhecimento dos adultos- sendo isso o que eles mais querem. Por isso, inventam grupos em que possam encontrar e trocar o que os adultos recu-saram ou pediram que fosse deixado para mais tarde.

    Ora, os adultos consideram suspeito esse afas-tamento dos adolescentes. Com razo, pois o gru-po adolescente surge justamente porque estes

    38 A adobincia

    escolheram no mais esperar pelo reconhecimento postergado dos adultos. O que j uma transgres-so, talvez a mais grave.

    Portanto, o gregarismo aparece como uma pato-logia adolescente por ser uma forma de insubordina-o aos adultos.

    Os jovens gregrios transgridem por se basta-rem, ou seja, por se reconhecerem entre pares, dispen-sando os adultos.

    Mas, alm disso, no grupo assim constitudo, eles perseguem e praticam os sonhos proibidos (dos adul-tos). O grupo adolescente transgressor em sua fun-o (oferecer reconhecimento sem precisar dos adultos). Mas tambm facilmente transgressor em suas atuaes. Para seus membros, vale a idia de que a esperana de reconhecimento vem da transgresso. Sobretudo, vale a constatao de que a transgresso coletiva solidifica o grupo e garante reconhecimento recproco no seu seio. O grupo adolescente se torna por isso mesmo um espantalho.

    No por acaso que, em certas jurisdies dos Estados Unidos, por exemplo, a legislao local per-mite que os jovens pilotem um carro desde os 16 anos, mas probe que dirijam com outros adoles-centes no veculo antes dos 18 anos de idade. A ex-perincia mostra ao legislador que a reunio de adolescentes multiplica substancialmente a tentao de infringir regras. Ou seja, desde que o grupo ado-lescente esteja reunido, cada um (a comear pelo piloto) ter a tarefa de conseguir aquele reconheci-mento pelos outros que os adultos negam.

    Quanto mais o comportamento for transgressor, tanto mais facil ser o reconhecimento: a transgres-so demonstra afastamento dos adultos, adeso e fi-delidade ao grupo.

  • "como comtgur que me reconheam c mt' admitam como adulto!" 39

    E, quanto mais o comportamento infrator en-contrar reconhecimento imediato pelos outros, tanto mais vai se estender, se tornar complexo e se distanci-ar das normas.

    Por essa razo, qualquer policial de ronda sabe que, a partir de trs, os adolescentes se tornam poten-cialmente mais perigosos, visto que se constituem num grupo de reconhecimento mtuo, em que a infrao (grande ou pequena) vale como senha.

    O ADOLESCENTE DELINQENTE Voltemos motivao primeira do adolescente:

    trata-se de conseguir um reconhecimento para o qual ningum sabe lhe dizer quais so as provas, qual o ritual iniciatrio necessrio. E, por conseqncia, de colocar fim a uma moratria que lhe imposta logo quando se sente maduro, forte e potencialmente adul-to.

    O adolescente rejeitado pela sociedade dos adultos, que respondem ao seu pedido de admisso com uma bola preta na urna. Ora, quando um pedido no encontra uma palavra que no mnimo reconhea sua relevncia, normalmente seu autor levanta a voz. Numa progresso linear, grita, quebra vidros e pratos, coloca fogo na casa e pode at se matar para ser levado a srio. Ou seja, ele tenta impor pela fora, ou mesmo pela violncia, o que aparentemente no ouvido.

    lugar-comum notar que haveria uma impor-tncia quantitativa da criminalidade adolescente - o que no totalmente surpresa, visto que a rebeldia parece ser um caminho que o prprio adulto aponta para o adolescente. Mesmo nos ltimos anos, quando

    40 A adok.scina

    a criminalidade diminuiu drasticamente nas grandes cidades americanas, por exemplo, o nico nmero que resistiu foi o de adolescentes infratores e criminosos. Em alguns momentos e lugares, eles at cresceram. Alimenta-se assim o espantalho do adolescente dito "predador" (como se fosse uma espcie diferente identificada por seu comportamento sanguinrio).

    Ora, custou certo tempo para que algum se desse conta do que est por trs dos nmeros (vai custar mais ainda para que esta verdade seja assimilada pelo pblico).A verdade que o nmero de crimes come-tidos por adolescentes provavelmente evolui segundo uma curva bem parecida com a curva dos crimes dos adultos. Provavelmente- porque a grande maioria das pesquisas no conta os crimes, mas os criminosos indiciados e condenados. A conseqncia dessa abor-dagem que a tribo mais gregria sempre parece mais criminosa. No dificil entender por qu: os adoles-centes cometem seus crimes em grupo (para se reco-nhecerem mutuamente como membros do grupo). claro, por conseguinte, que a cada crime vrios ado-lescentes criminosos podem ser inculpados e conde-nados. Isso no o caso dos adultos.

    A idia de que os adolescentes seriam o grupo mais perigosamente criminoso no parece ter suporte quantitativo. Os nmeros s nos dizem algo que de fato no surpreendente, luz de nossas considera-es: ou seja, um adulto ou no mximo dois se engajam juntos no empreendimento de roubar um carro. O mesmo crime poder ser cometido por um bando de adolescentes que, uma vez o crime perpetrado, mal cabero todos no carro.

    Resumindo, o adolescente tem dois caminhos possveis e compatveis para obter algum reconheci-mento: fazer grupo e fazer estardalhao, ou "bestei-

  • "Como conseguir que me reconheam c me a.lmtam como adulto!n 41

    ras". Melhor ainda: fazer grupo e com o grupo fazer besteiras. Enfim, se associar para transgredir.

    Nessas condies, a delinqncia poderia ser uma slida vocao da adolescncia.

    "Delinqncia" no uma palavra excessiva, embora de fato pouqussimos adolescentes se tornem propriamente delinqentes. Mas existe uma parceria de adolescncia e delinqncia, porque o adolescente, por no ser reconhecido dentro do pacto social, ten-tar ser reconhecido "fora" ou contra ele - ou, o que d na mesma, no pacto alternativo do grupo.

    Ele constituir um novo pacto entre adolescen-tes, com claras regras de reconhecimento mtuo. Es-sas regras sempre estaro deliberadamente em ruptura, mais ou menos declarada, com o pacto social.

    Dentro ou fora da prtica gregria, os jovens no desistiro de tentar suscitar a ateno e o reconheci-mento dos adultos. O grupo que eles vierem a consti-tuir seguir um modelo de ao que dever transgredir o pacto social, j que continua viva a esperana de merecer, por essa transgresso, a ateno dos adultos. A transgresso tenta encenar o que os adolescentes acre-ditam seja um desejo recalcado dos adultos. H o pro-jeto de entregar como presente para os adultos um comportamento, um gesto, do qual eles teriam sido frustrados e, assim, de merecer uma medalha. Quanto mais a interpretao do desejo dos adultos for certei-ra, mais esse projeto fracassar. Nesse caso, a transgres-so adolescente presenteia os adultos com uma imagem que justamente eles querem reprimir. O erro dos ado-lescentes (erro em relao a sua prpria estratgia) pensar que para os adultos possa ser agradvel encon-trar uma encenao de seu prprio recalque.

    Paradoxo e dificulda.de._da. r~_o entre geraes: os adolescentes transgridem - at gravemente - no

    42 A adolescitua

    para burlar a lei, no na esperana de esca12.ar das con-seqncias de seus atos. mas, ao contrrio, para excit-la, para que a represso corra atrs deles e assim os reconhea como pares dos adultos, ou melhor, como as partes escuras e esquecidas dos adultos. Eles imagi-nam que, como delinqentes, sero amados por serem portadores de sonhos recalcados. Nessa condio, tor-na-se impossvel para os adultos escolher uma estrat-gia correta entre tolerncia e represso. Por exemplo, um perigo deixar a porta aberta (como est aconte-cendo cada vez em mais pases) para que o tribunal decida se jovens culpados de crimes graves devem ser perseguidos como menores ou como adultos. vista disso, como o jovem resistiria tentao de fazer algo que seja grave a ponto de forar o tribunal a julg-lo como adulto -- que o que ele pede desde sempre? Se forem julgados e condenados como adultos, isso ser a demonstrao do fato de que os adultos s ou-vem a linguagem do crime mais detestvel e de que essa linguagem funciona.

    Tolerar no uma opo, visto que o jovem atua justamente para levantar a represso. A tolerncia s o forar a atuar com mais violncia.

    Os adolescentes, ento, transgridem e os adultos reprimem. Por um lado, se os adultos reprimem pre-ventivamente, im_pondo regras ao comportamento adolescente, eles afirmam a no-maturidade dos ado-lescentes. Em resposta, os adolescentes sero levados a procurar maneiras violentas de impor seu reconheci-mento.

    Por outro lado, a represso punitiva s manifesta ao adolescente que seu gesto no foi entendido como deveria, ou seja, como um pacote de presente cheio de ideais e desejos reprimidos dos adultos. O que tambm levar o adolescente a aumentar a dose de rebeldia.

  • como conseguir qut me reconlrcQm t me admitam como adulto? 43

    No difcil enumerar os comportamentos mais freqentes da delinqncia adolescente. Sua banalida-de s demonstra a banalidade dos desejos que os ado-lescentes conseguem descobrir atrs do silncio dos adultos.

    O furto - desde os pequenos roubos de merca-doria nas lojas at o assalto e a colaborao em em-preendimentos criminosos (extorso, trficos ilcitos etc.) -so a conduta mais bvia. Afinal, o ideal social do sucesso financeiro triunfante em nossa socieda-de, e o jovem mantido afastado dele pela moratria da adolescncia. Ele escolhe perseguir esse sucesso por um caminho que dispensa a retrica explcita sobre o valor do esforo, do suor na testa e do traba-lho (todos pretextos da moratria). Trata esses valo-res morais como se fossem apenas ornamentos corretivos, que permitem ao adulto tolerar sua pr-pria avidez. O pensamento do jovem, por inconsci-ente que seja, soar assim: "Vocs me dizem que para ficar rico, mas querem que eu fique aqui na es-pera suando para me preparar. Eu acho que essa pre-parao suada que vocs promovem e elogiam apenas um jeito de vocs se consolarem de seus fra-cassos e no encararem suas covardias. Eu vou com-pet ir pelos meios diretos que na verdade vocs gostariam de usar. Vou roubar, por exemplo".

    Outro exemplo a valorizao seja da fora f-sica, seja da provocao, da disponibilidade ao enfrentamento (a capacidade de lutar e arriscar). O adolescente atua, encena o gosto de se afirmar sobre e contra os outros arriscando a pele, pardia do mes-tre antigo, qual o adulto renunciou faz tempo -preferindo negociaes e outros compromissos soci-ais menos perigosos. De novo o adolescente, lem-brando pelo seu comportamento que a violncia pode

    44 A adoltScinca

    ser fonte de autoridade, no seduz o adulto. Ao con-trrio, ele o constrange e o ameaa, apontando sua covardia. Na relao com os adultos (no s sua fa-mlia), o adolescente, no conseguindo produzir res-peito, prefere e consegue produzir medo. O medo o equivalente fsico, real, do que o respeito seria sim-bolicamente.

    Entende-se como a delinqncia propriamente dita, organizada, pode vir a ser uma resposta mora-tria. Ela freqentemente implica uma associao de delinqentes que comporta todos os requisitos do gru-po de adolescentes. Satisfaz o ideal social de sucesso e riqueza pela apropriao imediata e real . E impe o medo que o equivalente real do respeito. "Me disse-ram que era crucial enriquecer, ter sucesso e poder. No me deixaram competir - pediram para esperar. Ento eles vo ver".

    Do mesmo jeito, a promiscuidade mais arriscada pode ser uma resposta moratria sexual, que trans-gride a retrica explcita do pudor, do respeito, da vergonha. "Me dizem que para ser desejante e dese-jvel e gozar com isso, mas me pedem para esperar, para no me queimar cedo demais. Eles no querem encarar suas covardias frente a seus prprios desejos. Querem, falam, falam e nunca fazem o que querem. Eu vou lhes mostrar como se goza". No conseguin-do que seu corpo seja reconhecido como adulto (por-tanto desejvel), o adolescente pode escolher se impor pela seduo mais brutal. O desejo do adulto seduzi-do, tentado, - como o medo - outro equivalente fsico, real, de um reconhecimento que tarda.

    A prostituio adolescente com clientes adultos um bom exemplo de uma maneira de forar o reco-nhecimento, quase irnica: "Se este corpo no dese-jvel, por que pagam para t-lo por um momento?"

  • "Como ~II.Stgur qut mt r~Hht{Am t mt admitam ~mo adulto?. 45

    O ADOLESCENTE TOXICMANO

    A viso da adolescncia que parece ser mais preocupante para os adultos a viso do adolescente toxicmano. Os adolescentes seriam mais sensveis do que os adultos ao charme das drogas ilegais.

    Na verdade, no seria difcil argumentar que o interesse dos adolescentes, de hoje para as drogas a atuao de um interesse para as drogas da gerao pre-cedente. Os adolescentes de hoje so os descendentes de uma gerao que explicitamente ligou o uso das drogas a todos os sonhos de liberao e revoluo (pes-soal, sexual, social etc.) que agitou e subseqentemente abandonou e recalcou.

    Desse ponto de vista, a relao adolescente com as drogas seria hoje um captulo da rebeldia herdada pelos adolescentes, depois de largada por seus pais. Ela seria a interpretao e atuao da grande esperana que os adultos de hoje recalcaram, quando desistiram de sua revolta e abraaram valores mais estabelecidos.

    Mas a droga tem tambm outras razes de sedu-zir o adolescente.

    Sensvel "injustia" da moratria, o adoles-cente descobre que, em matria de drogas ditas legais (lcool e tabaco), h em princpio uma se-parao de pesos e medidas entre adultos e adoles-centes. A interdio seletiva dessas drogas aos adolescentes vivida como parte do processo de sua infantilizao, uma vez que cigarro e lcool so liberados para os adultos.

    O argumento que insiste sobre o perigo de l-cool e tabaco para a sade pode produzir o efeito in-verso ao esperado, pois nada prova que o adolescente queira ser o objeto de uma proteo ou de um cuida-

    46 A adoltsdnca

    do especial que, de novo, o infantilizaria. No entanto, esse argumento deve ser levantado e defendido vigorosamente pelos pais. Sem isso, o adolescente po-deria se sentir entregue a algo bem pior do que a infantilizao: o descaso de seus pais com sua vida.

    Ele tambm pode ser seduzido justamente pelo risco de vida que cigarro e bebida acarretam. Repre-sentante quase oficial das fantasias inconfessveis dos adultos, o adolescente no vai poder ficar atrs, logo num campo onde alguns adultos parecem dispostos a correr riscos para gozar um pouco. A tentao ser de desafiar os riscos fumando e bebendo at no poder ma1s.

    As drogas que so proibidas para todos tm mais charmes ainda.

    Alm de serem proibidas (um charme em si), podem representar uma maneira de enriquecer pelo trfico, desmentindo a moratria.

    Elas proporcionam tambm uma boa forma gregria de reconhecimento recproco entre droga-dos, ou seja, so a ocasio da constituio de grupos adolescentes coesos.

    H mais um aspecto que faz o sucesso da toxico-mania adolescente, ou no mnimo de seu espectro, que perturba o sonho dos adultos.

    O que os adultos receiam, na viso do adoles-cente drogado, da maconha herona e ao crack? Fora os riscos para a sade e o perigo de encarar conseq-ncias penais, h uma espcie de temor de que, no baseado ou na pedra, o adolescente encontre um ob-jeto que satisfaa seu desejo, mate sua procura, acabe com a insatisfao. O medo, em suma, de que com a droga o adolescente, de repente, seja feliz. Por que isso angustia os adultos? Seria mesmo um problema para os adolescentes?

  • #Como cot!Slguir qut me rccorJirc{Qm c'"' admitam como adulto?'' 47

    O que prprio ao desejo moderno que, atrs de cada objeto desejado, sempre h um desejo de algo mais, de uma qualidade diferente: uma vontade de re-conhecimento social - a qual nunca se esgota no ob-jeto. Em outras palavras, o que desejado sempre instrumental para afirmar e constituir nosso lugar so-cial. Por mais que eu possa obter o objeto que eu quero, nem por isso ele me satisfar. A riqueza de nos-so mundo depende disto: de uma procura que deve se manter inesgotvel - nenhum objeto satisfazendo a sede de reconhecimento social que permanece atrs de nossa vontade de possuir ou de consumir.

    Ora- na fantasia dos adultos e talvez de fato -,a droga seria o objeto que promete e entrega uma satis-fao acabada, mesmo que apenas momentnea. Essa fantasia transforma a droga em senha de acesso a um universo alternativo regrado por um pacto diferente. Nesse outro mundo, o que importa para todos o objeto, a droga, sua presena, no o status social que ela instaura. Por isso a toxicomania talvez seja a trans-gresso mais preocupante, porque parece minar um pressuposto fundamental do pacto social vigente: a permanncia da insatisfao.

    Por ser ou parecer um objeto que satisfaz de vez, um bem em si, a droga uma ameaa muito especial. Ela quebra a regra moderna de funcionamento do desejo. O drogado pra de deslizar de um objeto a outro, da roupa ao carro, ao parceiro bonito - todos metforas no caminho de um status social que nem a totalidade dos objetos poderia produzir. A droga - diferena dos outros objetos - apagaria o desejo. A preocupao de que o rapaz ou a moa que usam maconha parem de competir na escola, se deprimam, no saiam da cama etc. mais que justificada: ela ex-pressa o medo legtimo de que, pela droga, eles trans-

    gridam de vez as regras essenciais do funcionamento do desejo moderno.

    Mais do que nas outras formas da delinqncia, os adultos vem na droga uma perigosa porta de sada por onde os adolescentes escapariam moratria para entrar de vez outro mundo.

    Os adolescentes concordam com essa preocu-pao e s podem encontrar nela mais uma razo para se satisfazer na droga. Afinal, os adultos no param de mentir, para os outros e para eles mesmos, sobre o valor, o charme e o interesse dos objetos. Consomem como se acreditassem mesmo que o desfile dos obje-tos de consumo possa responder, satisfazer a seus anseios e desejos.

    Precisamos acreditar que os objetos podem nos fazer felizes. Deslizamos sem parar de um a outro, sem-pre na espera de mais um que ser decisivo, final. De fato, isso um faz-de-conta. No podemos renunciar insatisfao que nos faz correr e que vitaliza nosso mundo. Nenhum objeto pode nos satisfazer, pois o que queremos no so coisas e posses, mas -atrs de-las - reconhecimento ou status. E nada pode extin-guir nossa sede desses dois.

    Ora, a droga , na srie dos objetos, uma espcie de subverso. Drogando-se, o adolescente pode pen-sar estar atuando a seguinte verdade recalcada pelos adultos: "H um objeto que nos satisfaria, mas ne-cessrio esquec-lo, pois a satisfao seria fatal para nosso sistema social".

    A droga um objeto mortal. No s porque pode matar o usurio, mas porque - to grave quanto isso -ela pode matar seu desejo.

    De fato, no o caso de dramatizar essa viso do adolescente toxicmano. A grande maioria dos ado-lescentes apenas flerta com a droga.

  • "Como amscguir qut me reconheam e me admitam Ci!tno adulto ?w 49

    Na verdade, freqente que adolescentes passem pela droga um tempo e parem de usar. tambm fre-qente que isso acontea na cara dos adultos, os jovens pedindo ajuda para voltar dessa viagem. H adolescen-tes que se drogam para en,to precisar de algum tipo de reabilitao e pedir ajuda. E uma estratgia parecida com a dos que naufragam de propsito na rota de um tran-satlntico, para - uma vez recolhidos - viajar de graa na primeira classe. Ou seja, uma estratgia que fora o reconhecimento do adulto.

    A reabilitao, trazer algum de volta da delin-qncia, da droga ou da prostituio, o contrrio da infantilizao: ela implica o reconhecimento de que quem, se perdeu esteve em perigo de verdade.

    E isso que almejam todas as condutas extremas da adolescncia transgressora: convencer o outro de que a vida do adolescente no nenhum limbo pre-paratrio, ela est acontecendo de verdade, como a vida adulta.

    O ADOLESCENTE QUE SE ENFEIA Os adolescentes parecem contradizer, ou melhor,

    desafiar, os cnones estticos dos adultos. Segundo es-tes, eles se enfeiam sistematicamente.

    Os grupos adolescentes inventam quase sempre um padro esttico interno, pelo qual os membros se diferenciam e se reconhecem entre si. No raro que esse estilo constitua alguma espcie de agresso deli-berada ao cnone dominante: afinal, o grupo (mesmo o grupo de estilo) outorga seu prprio reconhecimento interno. Desafiar a aprovao dos adultos sua pr-pria funo.

    50 A adoksdna

    Mas a esttica adolescente no surge s para isso (ou seja, para se diferenciar, produzir coeso de grupo e desafiar o cnone adulto).

    Pode ser que o ato de se enfeiar corresponda a uma recusa da sexualidade e, sobretudo, da desejabili-dade como valor social.Assim como o adolescente pode parecer contestar a idolatria do valor financeiro, econ-mico (por exemplo, recusando-se a ostentar os apetre-chos desse valor nas vestimentas e em outros smbolos tradicionais de riqueza), tornando-se feio ele poderia criticar um sistema que valoriza a desejabilidade dos corpos como razo do reconhecimento social.

    Pode ser tambm que o adolescente se enfeie para se proteger de um olhar que poderia no ach-lo desejvel. Ele conseguiria prevenir essa catstrofe para sua insegurana atribuindo sua indesejabilidade a seus prprios esforos de se enfeiar:"No gostam de mim,

    , - . ,, mas e porque eu nao qms .

    Na verdade, a feira tambm uma espcie de exibicionismo escancarado, a proposta de um erotis-mo fora da norma, a promessa de uma armadilha se-xual que no se preocupa em passar pelos cones socialmente aceitos da desejabilidade.

    O piercing umbilical das garotas exemplarmen-te tudo isso ao mesmo tempo. uma lembrana do nen de umbigo apenas cicatrizado. uma curiosa distrao ldica no caminho do rgo genital, ou uma aluso a uma fechadura de castidade. , sobretudo, uma maneira de chamar o olhar para o encontro perma-nente, no to longe da vagina, de uma abertura do corpo com algo metlico e duro.

    A mesma coisa vale para a marca registrada dos garotos dos anos 90: os centmetros de cueca expostos acima do cs baixado. Eles so uma recusa da sexuali-dade pela infantilizao (a cueca vista evoca uma

  • H Como conseguir qut me reconheJJm t mt admitam como adulto?- 51

    histria de coc-xixi e de fraldas), uma maneira pre-ventiva de se ridicularizar logo nos arredores dos r-gos genitais, mas tambm a promessa de um permanente interesse com o que est nas cuecas (a cueca fica, por assim dizer, sempre em riste).

    No conjunto, as transgresses estticas que pare-cem assinalar e prometer transgresses sexuais ou morais so esforos para encontrar algum conforto no olhar indignado ou assustado dos adultos. Logo, para que o medo, o escndalo do olhar dos adultos con-venam o adolescente de que l no espelho ele est contemplando um ser perigoso, atrevido e sexy. Al-gum que os adultos teriam de reconhecer como adul-to, adultssimo. Na verdade, a grande maioria dos adolescentes de cabelos ultraloiros, brincos, tatuagens e cara feia, caso encontrassem a si mesmos numa rua escura, trocariam de calada preocupados ou correri-am para casa assustadssimos.

    O ADOLESCENTE BARULHENTO

    Os adultos criticam facilmente. Dizem que os adolescentes so tietes, adulam seus dolos. Ou ainda que os adolescentes gostam de marcas, se transformam em anncios publicitrios ambulantes. Acrescentam que eles vivem num filme, ou em vrios, e arrumam uma identidade imitando personagens. Por isso eles se perdem na contemplao das estrelas (do cinema e dos palcos), assim como se esquecem nas marcas que passam a defini-los.

    uma ironia barata. Pois, de fato, os adolescentes vivem nos mesmos filmes que os adultos. Caras e People no so revistas para adolescentes. Ou seja, a imitao e

    52 A adoltsetca

    a idolatria so formas bsicas da socializao moderna; valem para os adultos tanto como para os adolescentes. No mais, trata-se, nessa crtica irnica, apenas do emba-te entre, digamos, estilistas como Prada e Giorgio Armani contra Tommy Hilfiger. Ou ento de um ator como Leonardo DiCaprio contra Robert De Niro.

    Mas, se todos vivemos ou procuramos inventar nossa vida graas aos mesmos filmes, verdade que o adolescente o maior f de videoclipes.Aqui, mais do que a histria, importam as imagens e a msica. As figuras que cantam e danam so personagens que ain-da procuram seus roteiros - perfeitas para os adoles-centes se identificarem, pois permitem adotar um gesto, um estilo, um look, sem por isso comprar uma aventu-ra narrada e preestabelecida ou, pior, uma vida inteira.

    A msica deixa mais liberdade ainda do que o clipe. Ela d apenas o clima, sugere uma atitude, mas no dita uma histria. O adolescente vive com uma trilha sonora permanente, inspiradora de imagens com as quais compe sua identidade. Ele fica (ou ) irrita-do com o metal, romntico com Phil Collins, cool e inspirado com o rave, todo dinmico com a disco etc.

    Essa escuta constante comporta sua parte de pro-vocao. O adolescente oscila entre estourar as caixas de som e viver de fone de ouvido. O recado claro: ou te ensurdeo ou no te ouo.

    Seja qual for o efeito disso sobre a comunicao verbal, o volume da msica tambm uma espcie de metfora sonora da intensidade da experincia ado-lescente. Uma maneira de gritar: "Eu no vivo, arre-bento". Os adultos, por mais que protestem, no agem diferentemente e, de vez em quando, adoram estourar as caixas de seus aparelhos para comunicar (aos vizi-nhos, aparentemente) as insustentveis emoes da-quele dia (ou, pior para o vizinho, daquela noite).

  • A ADOLESCNCIA

    "como constgur que mt rcamhtQm t r1l( .ulmiram como adulto!'' 53

    Em todas as suas tentativas de desafiar e provo-car, o adolescente encontra uma dificuldade: por mais que invente maneiras de se enfeiar, de se distanciar do cnone esttico e comportamental dos adultos, a cada vez, rapidamente, a cultura parece encontrar jeitos de idealizar essas maneiras, de transform-las em com-portamentos aceitos, at desejveis e invejveis. Ou seja, o adolescente descobre que sua rebeldia no pra de alimentar os ideais sociais dos adultos.

  • m lado exasperante da adolescncia que dificil encontrar uma escolha adolescente que no seja a realizao do sonho dos adultos. quase impossvel, para o adoles-

    cente, se afastar da interpretao do desejo adulto, por duas razes.

    Primeiro, porque o acesso idade adulta em nossa cultura no regrado por um ritual, mas depende de um olhar, de um consenso que nem sabe articular suas condies. Portanto necessrio procur-las interro-gando e interpretando o desejo dos adultos.

    Segundo, por uma espcie de pecado original prprio a uma cultura que idealiza a autonomia. Mes-mo se o comportamento adolescente fosse totalmen-te regrado pelo plano de no mais depender do reconhecimento dos adultos, mesmo se iss9 fosse pos-svel (e talvez se tome possvel, por exemplo no grupo adolescente), a autonomia assim realizada ainda seria o sonho dos adultos para o adolescente. Alis, esse o

    A aJo/c$c(n(i.l como idCtJf cufrura 57

    sonho de liberdade por excelncia, o sonho que acom-panha qualquer vida adulta contempornea nas for-mas mais variadas, do desejo de frias tentao de cair fora.

    Verifica-se ento o paradoxo seguinte: a adoles-cncia, excluda da vida adulta, rejeitada num limbo, acaba interpretando e encenando o catlogo dos so-nhos adultos, com maior ou menor sucesso. Mas, atra-vs de todas as suas variantes, ela sempre encarna o maior sonho de nossa cultura, o sonho de liberdade. Ou seja, por tentar dispensar a tutela dos adultos, a rebeldia adolescente se toma uma encenao do ideal cultural bsico. Por esse motivo, as condutas adoles-centes em todas as suas variantes se cristalizam, se fi-xam e se tornam objeto de imitao.

    Tudo leva a fazer da adolescncia um ideal soci-al. at bem possvel que a adolescncia surja na modernidade como ideal necessrio. Logo, que a ado-lescncia como ideal seja quase um corolrio do mun-do contemporneo. Mas, alm dessa possibilidade (que examinaremos no Captulo 5), h outras cumplicida-des que, no mnimo, colaboram em tal idealizao da adolescncia.

    Os adolescentes, como vimos, se renem em gru-pos que podem ser mais ou menos fechados, mas sem-pre apresentam ao mundo uma identidade prpria, diferente do universo dos adultos e dos outros grupos. No rrnimo, so comunidades de estilo regradas por traos de identidade claros e definidos, pois os mem-bros devem poder pertencer a elas sem ter de coar a cabea se perguntando: "Mas o que ser que os outros querem para me aceitar?" Os grupos tm portanto em comum um look (vestimentas, cabelos, maquiagem), preferncias culturais (tipo de msica, imprensa) e comportamentos (bares, clubes, restaurantes etc.).

  • 58 A adoluciucia

    O resultado disso que cada grupo impe facil-mente a seus membros uma conformidade de consu-mo bastante definida. Por isso mesmo, todos os grupos se tornam tambm grupos de consumo facilmente comercializveis. Os adolescentes, organizados em identidades que eles querem poder reconhecer sem hesitao, se tornam consumidores ideais por serem um pblico-alvo perfeitamente definido. A adolescn-cia e suas variantes so assim um negcio excelente. O prprio marketing se encarrega de definir e crista-lizar os grupos adolescentes, o mximo possvel.

    Os grupos, nascidos como amparo contra a mo-ratria imposta pelos adultos, se constituem em ideais para os adultos justamente por serem rebeldes. Ao mesmo tempo, esses grupos so culturalmente exalta-dos pelo marketing, que tem todo interesse em apresent-los como coesos, catalogando os apetrechos necessrios para seus membros, comercializando as senhas de reconhecimento e todos os traos do look suscetveis de circular no mercado.

    Esses looks que surgiram como " rebeldia" so ento propostos como ideais para aumentar a adeso de seus membros, ou seja, para seduzir os adolescentes que chegam ao mercado dos grupos ou transitam de um grupo para o utro.

    Cada look propagandeado e idealizado por sua comercializao. Cada grupo e a adolescncia em ge-ral se transformam numa espcie de franchising que pode ser proposta idealizao e ao investimento de todo mundo, em qualquer faixa etria.

    Se a adolescncia encena um ideal cultural bsi-co, compreensvel que ela se transforme num estilo que cool para todos.

    Na idealizao comercial e para maior proveito dos empresrios da adolescncia, praticamente todos

    A adob:indll ~)mo ideal cultura 59

    os estilos adolescentes (seus produtos, seus; apetrechos) so oferecidos e vendidos aos adultos, magnificando um mercado j interessante em si. Desde os anos 80, surge uma verdadeira especialidade do marketing da adolescncia. Sua relevncia est nas propores do mercado dos adolescentes: eles so numerosos e dis-pem de cada vez mais dinheiro. Mas interessam ao mercado tambm pela influncia que exercem sobre a deciso e a consolidao de modas, que transformam os modelos de consumo de muitos adultos.

    A adolescncia, por ser um ideal dos adultos, se torna um fantstico argumento promocional.

    At aqui pensvamos que havia uma revolta dos jovens contra sua excluso da sociedade dos adultos. E acrescentvamos que as formas dessa revolta podiam coincidir com ideais adultos por duas razes: porque o ideal cultural dominante , em nossa cultura, a insu-bordinao e porque, ao se revoltar, os jovens ainda estariam tentando agradar aos adultos, ou seja, realizar algum sonho deles.

    Agora podemos perguntar se a adolescncia no surgiu justamente porque os adultos modernos preci-saram dela como ideal.

    Ser que a adolescncia no foi provocada, im-pondo a moratria e suscitando a rebeldia, justamente para que encenasse o sonho de idiossincrasia, de unicidade, de liberdade individual e de desobedincia que prprio de nossa cultura? Ser que a adolescn-cia no veio a existir para o uso da conten1plao pre-ocupa9a, mas complacente, dos adultos?

    As vezes, essa suspeita deve atravessar o esprito dos adolescentes.

    Vimos como e por qu - correndo atrs de um reconhecimento que os adultos lhe negam e que ele procura com seus pares - o adolescente

  • 6o A adolcscinca

    constitui grupos e conformismos. interessan te notar que esses grupos mudam com extrema rapi-dez. H uma constante inveno de novos estilos. Como se o adolescente tentasse correr mais rpido do que a comercializao, que quer descrev-lo para melhor idealiz-lo e vender seu estilo. Como se ele fugisse da assdua recuperao de sua rebeldia pelos adultos, famintos de modelos estticos de juventu-de, liberdade e rebeldia.

    Se a adolescncia no existisse, os adultos mo-dernos a inventariam, tanto ela necessria ao bom desempenho psquico deles.

    DA INVENO DA INFNCIA POCA DA ADOLESCNCIA

    Chegou a hora de perguntar em que medida e como essa moratria que produziu a adolescncia veio a ocorrer logo na modernidade tardia que ns habita-mos. Chegou a hora, em suma, de explicar por que e como a adolescncia que nos interessa um fenme-no sobretudo dos ltimos 50 anos.

    Faz um sculo apenas que a adolescncia se tor-nou um tema que justificasse um livro como este. At ento, certamente era possvel se preocupar com o devir dos jovens, tanto fisico quanto moral e econmico, mas "a adolescncia" no era uma entidade que enco-rajasse um ttulo ou animasse a imprensa. No era um fato social reconhecido. Era uma faixa etria, mas no por isso um grupo social. Ainda menos um estado de esprito e um ideal da cultura.

    Para entender como isso aconteceu, necess-rio primeiro lembrar que a prpria infancia uma

    A adoks:rs..i.J romo idtal cultura 61

    inveno moderna. Em princpio e com as devidas excees, em nossa cultura todos amamos, ou me-lhor, veneramos, as crianas incondicionalmente e ir-resistivelmente. No podemos deixar passar um mido perto de ns sem estender a mo para uma carcia protetora na pequena testa. Quando, num cate ou restaurante, cruzamos o olhar de uma criana sen-tada em outra mesa, estamos dispostos a fazer qual-quer macaquice para extrair seu sorriso. Em outras palavras: qualquer adulto parece estar investido da dupla misso de proteger as crianas e torn-las feli-zes. Mas por que essa seria uma propriedade exclusi-va da modernidade?

    Certo, os seres humanos nascem extraordinaria-mente prematuros, e a espcie conta com cuidados parentais assduos e permanentes para assegurar a so-brevivncia dos rebentos. Sem urna dose brutal de amor dos pais e esforos anexos, nossa espcie estaria presumivelmente ameaada.

    O amor pelas crianas nos parece portanto na-tural, um efeito quase fisiolgico da prematurao dos pequenos humanos, necessrio na batalha da evolu-o das espcies. Sem amor e cuidados as crianas de-certo no sobreviveriam, mas nem por isso o amor e os cuidados foram sempre os mesmos.

    Ao contrrio, como foi inicial e magistral-mente mostrado por Philippe Aries,5 pode-se di-zer que a infncia uma inveno moderna. Entendendo aqui por infncia no os primeiros anos da vida- que sempre existiram, obviamente -, mas a prpria idia de um tempo da vida bem distinto da idade adulta, miticamente feliz, prote-

    s C f. Bibliografia, 111.

  • 62 A adollScina

    gido pelo amor dos pais e, sobretudo, no definido simplesmente pela espera apressada de se tornar adultos. Na modernidade, a infncia se tornou objeto de preocupaes, meditaes, planos e pro-jetos infinitos, tema inesgotvel e autnomo de explorao e debate. Alis, essa posio aos poucos parece ser herdada pela adolescncia.

    Vamos ver como essa idia ou viso da infncia veio surgindo em nossa cultura junto com a modernidade (do sculo 13 em diante) e se afirmou definitivamente s quando a modernidade ganhou a partida, no fim do sculo 18.

    A maneira moderna de olhar para as crianas, esse jeito de am-las que faz da infncia uma verda-deira divindade cultural, triunfou quando a sociedade tradicional cedeu o passo ao individualismo.

    Sem passar por uma descrio da transformao cultural que leva da sociedade tradicional ao indivi-dualismo que domina nossa modernidade, possvel lembrar dois traos essenciais que contriburam para fazer desta mudana cultural o momento da inveno da infncia.

    O prprio Aries nos deixou uma obra centrada sobre essa transio, da qual salientou, alm da inven-o da infncia, outro aspecto decisivo: uma mudana na experincia da morte.

    Explicado rapidamente: numa sociedade tradi-cional, a comunidade a verdadeira depositria da continuidade da vida. Aqui a morte, por mais que seja um evento trgico e triste na vida do sujeito, no um ponto final, conclusivo, pois a vida que mais importa no a do indivduo -que se perde com a morte. A comunidade sobrevive e segue. Ela uma experincia que fala mais alto do que o fim do breve tempo de uma vida.

    A adob:ina como ideal cultura 6)

    Com o fim da sociedade tradicional, a morte se torna fundamentalmente uma experincia individual, cujo sentido (ou falta de sentido) deve ser procurado no espao da vida do indivduo e no pode ser substi-tudo pela significao mais ampla da comunidade. Mesmo que a f religiosa venha consolar cada um em seu foro ntimo, a morte antecipada na modernidade como o fim sempre trgico e solitrio de uma exis-tncia que, por sua vez, parece coincidir com, e no ser nada mais do que, a sobrevivncia do indivduo.

    Entende-se que de repente, nesse contexto cul-tural, as crianas assumam uma importncia especial e nova. Para quem a morte o fim de tudo, as crianas se tornam a nica consolao, a nica promessa de algum tipo de continuao ou mesmo de imortalida-de. Mas essa apenas uma razo para que o individu-alismo moderno invente a infncia.

    Numa sociedade tradicional, cada criana vinda ao mundo ocupa um lugar definido numa rede social articulada e estabelecida. Em qualquer comunidade hierarquicamente organizada, nascer numa classe, numa casta, numa corporao so figuras iniciais e decisivas do destino. Certo, a vida de cada um continua em suas mos e eventualmente nas da graa divina, mas o su-jeito encontra uma exigncia social ao mesmo tempo fundamental e incontestvel e, por isso mesmo, pacifi-cada, tranqila, geralmente explcita: trata-se de ocu-par o lugar que o nascimento outorgou a cada um, num universo onde por regra a diviso social deci-dida pela tradio.

    Ao contrrio, numa cultura individualista como a nossa, espera-se de antemo que qualquer sujeito se construa um lugar e se invente um destino contra o que a tradio e o bero onde nasceu lhe reservaram. Por isso, transmitir, ensinar, formar so, em nossa cultu-

  • 64 A adok.sdnca

    ra, atividades to problemticas, pois a ordem transmiti-da (quer dizer, a tradio) de contradizer a tradio.

    Ora, quase todas as instituies do mundo tradi-cional periclitaram ou sumiram com a modernidade. O indivduo s no se achou desprovido de comuni-dade porque uma sobreviveu e, de certa forma, adqui-riu importncia nova e central na vida de todos: a famlia. A famlia moderna restrita ao essencial, nu-clear (ou seja, composta essencialmente pelo ncleo de pais e crianas), mas por isso mesmo mais intensa, pois idealmente organizada ao redor no de consanginidades extensas, de obrigaes, deveres e contratos, mas da fora proclamada dos sentimentos ntimos. A famlia nuclear existe e resiste por ser fun-dada no amor. Amor entre pai e me e amor entre estes e as crianas que eles criam. A famlia - institui-o que portanto sobrevive e vinga na modernidade- a grande porta-voz do duplo vnculo moderno: ela pede s crianas todo tipo de submisso e obedincia em nome do amor, mas tambm pede que, em nome do mesmo amor, a criana se liberte da famlia e ultra-passe a condio na qual se criou, para responder s expectativas dos pais. Particularmente, para dar conti-nuidade (imortalidade) aos sonhos dos pais -sonhos frustrados antes de mais nada pela mortalidade dos sonhadores.

    Para entender melhor como se criam na modernidade as condies sociais e psicolgicas da sacralizao da infncia, ainda preciso acrescentar a esse quadro sucinto outro trao bem especfico da modernidade ocidental: a insatisfao fundamental do sujeito. O homem moderno no insatisfeito aciden-talmente com o que lhe acontece, infeliz porque cho-veu, a peste recrudesceu ou de novo a guerra vem por a. indispensvel que ele seja insatisfeito constituti-

    A adoksdnca como ideal cultura 65

    vamente, por definio. Pois seu lugar no mundo no pode nem deve ser mais definido do que sua aspirao - como se diz - de subir na vida, sua ambio, sua inveja. Esse trao se revelou crucial para produzir uma acelerao indita na produo de riqueza e de dife-rena social: o sujeito moderno quer mais (portanto, produz e consome mais) porque deve querer sempre mais do que os outros.

    No h, no pode haver, objeto, faanha ou mes-mo triunfo social que possa apagar essa insatisfao. Para o sujeito moderno, sua obra, seu trabalho de escalador social permanecero sempre inacabados.

    Talvez se compreenda melhor agora por que a modernidade realizada produz uma paixo indita pelas crianas. Para seus pais e para os adultos em geral, elas so a consolao e a esperana. Graas a elas, os adul-tos estendem o sentido e a expectativa de suas vidas para alm do limite estreito de sua sobrevivncia indi-vidual. Graas a elas, a insatisfao prpria do sujeito moderno se torna suportvel, pois o fracasso- inevi-tvel numa corrida que desconhece faixa de chegada - alimenta a espera de que as crianas faam revezamento conosco.

    A infncia preenche a funo cultural essencial de tornar a modernidade suportvel.

    Para isso, ela proporciona antes de mais nada um prazer esttico. No por acaso que Aries descobriu a transformao que a modernidade produziu na ma-neira de ver e amar as crianas principalmente a partir da iconografia da infancia. As crianas modernas so um objeto de contemplao, de agrado e descanso para nossos olhos. Criamos, vestimos, arrumamos as crian-as para comporem uma imagem perfeita e segura de felicidade. No comeo da viso moderna da infncia, elas eram vestidas aqum da diferena sexual, seu de-

  • 66 A adoksci11cia

    sejo era negado por ser para elas uma possvel fonte de inquietao. Ns precisamos ver as crianas ao abrigo das imperfeies e das mgoas: completamente dife-rentes de ns, por serem protegidas da corrida insatisfatria ao sexo e ao dinheiro. Amparadas da ne-cessidade, no desejantes, elas so sorridentes, amadas, encantadas: vivem em outro mundo.

    Essa imagem de felicidade, inocncia e paz que construmos como um prespio permanente no meio de nossas casas a perfeio que nunca alcanamos nem alcanaremos, pois ser insatisfeitos para ns defini trio. Por isso, a infancia, mais do que uma uto-pia, nossa idade de ouro.

    De certa forma, a infancia moderna o verda-deiro grande resto da sociedade tradicional na socie-dade moderna: as crianas so as nicas que gozam de direitos s pelo fato de serem pequenas, ou seja, de terem nascido crianas. Uma infancia feliz a nica coisa qual teramos direito de nascena.

    Isso o que parece primeira vista. Mas o ver-me da modernidade est no encanto desse jardim re-servado, onde artificialmente contemplaramos nossas crianas felizes.

    A infancia no oferece s um prazer esttico: a imagem da felicidade infantil tem tambm outra fun-o. Essas crianas felizes so tambm encarregadas de dar um sentido a nossa corrida social - garantindo que, embora incompleta, ela ser continuada. Elas so as herdeiras de nossos anseios, de nossa insatisfao constitutiva.

    Portanto nos deleitamos na imagem de sua feli-cidade, como se esta nos consolasse de nosso fracasso. Ou, melhor ainda, como se demonstrasse nosso suces-so: fracassamos ns, mas elas so felizes e seguiro sen-do, dando assim completude a nossas falhas.

    A adok5cinil como ideill cultura 67

    Por isso mesmo precisamos lutar para que nossos anseios passem para elas nas melhores condies pos-sveis, ou seja, com a maior chance de serem satisfeitos por elas no futuro.

    Paradoxalmente, as crianas devem ao mesmo tempo ser felizes e se preparar ativamente para conse-guirem tudo o que ns no conseguimos. A transmis-so dessa tarefa crucial, constitutiva da infncia moderna, que portanto no s uma imagem esttica de felicidade, mas uma espcie de promessa.

    Por isso, a modernidade pode ser paradoxal-mente hiperprotetora e violenta com suas crian-as: ela venera, protege as que tm condio de ser portadoras da promessa, ou seja, mandatrias dos sonhos dos adultos. E pode brutalmente deixar cair, abandonar, aquelas que por qualquer razo no tm, ou parecem no ter condio de realizar um dia nossas esperanas (o nico corretivo a essa bruta-lidade que sempre sobra algum gosto esttico de ver crianas felizes).

    Por isso tambm a modernidade sofre de con-tradies pedaggicas: como preparar as crianas para o futuro sem comprometer a imagem de sua felicida-de? Surge assim a utopia do aprender prazeroso, da aula que seria eficaz como um cursinho acelerado e divertida como um jogo de jardim da infancia. Essas contradies no ajudando, a preparao fica cada vez mais longa e laboriosa.

    Quanto mais a infncia se afasta de um simples consolo esttico, quanto mais encarregada de prepa-rar o futuro, ou seja, de se preparar para alcanar um (impossvel) sucesso que faltou aos adultos, tanto mais ela se prolonga. Isso inevitavelmente fora a inveno da adolescncia, que um derivado contemporneo da infancia moderna.

  • 68 A adckscinca

    A POCA DA ADOLESCNCIA

    Aos poucos, os adultos verificam que essas cri-anas que esto se preparando j so um pouco cresci-das, fora de esperar. Elas constituem uma nova mistura, indita. Os adultos tentam mant-las protegi-das e felizes, assistidas, no mundo encantado da infn-cia, sem obrigaes e responsabilidades. Por outro lado, elas se parecem cada vez mais com os adultos, pelo tamanho, pela maturao de seus corpos e pelas exi-gncias de sua felicidade e de seus prazeres, que no so mais brinquedos e historinhas, mas, por exemplo, sexo e dinheiro - segundo eles vo aprendendo. Alm disso, a prpria presso preparatria se torna parecida para essas crianas com a presso da corrida adulta.

    Aparece assim uma semelhana indita entre os adultos e essas supostas "crianas" que j tm corpos, gostos, vontades, prazeres e alguns deveres muito pa-recidos com os nossos.

    Cada vez mais, o olhar dos adultos se desloca das crianas para os adolescentes, pois o espetculo de sua felicidade de fato mais gratificante. Se conseguirmos realiz-la mantendo os adolescentes protegidos e ir-responsveis como crianas, mas com exigncias e voracidades de adultos, eles vo nos oferecer um show bem parecido com a felicidade que gostaramos aqui e agora, para ns.

    A imagem da infncia encantada nos deleita por-que nos consola e contm uma promessa. A imagem da adolescncia feliz nos prope um espelho para con-templar a satisfao de nossos vidos desejos, se por algum milagre pudssemos deixar de lado os deveres e as obrigaes bsicas que nos constrangem. Ou seja, se pudssemos ser to despreocupados quanto gosta-

    A adoksncia como idtal cultura 69

    ramos que fossem nossos adolescentes. Gostaramos por qu? Para nos oferecer esse show,justamente.

    As vises de infancia e adolescncia se opem como um erotismo alusivo se ope pornografia. Olhamos para infancia como promessa. Procuramos na viso da adolescncia o clipe de nossos gozos:"Nos-sa, se pudssemos de verdade tirar ferias de um jeito que nem adolescente consegue!".

    H certo gnero de filme pornogrfico onde as situaes extremas filmadas so reais, no atuadas. Pois bem, a adolescncia real nos assusta como um desses filmes, em que, de repente, se realizam de verdade fantasias que esto em ns, mas que prefe-

    . '

    nnamos esquecer. A infncia um ideal comparativo. Os adultos

    podem desejar ser ou vir a ser felizes, inocentes, des-preocupados como crianas. Mas normalmente no gostariam de voltar a ser crianas.

    Com a adolescncia que hoje toma o lugar da infncia no iderio ocidental, a coisa muda.

    O adolescente no s um ideal comparativo, como as criancinhas. Ele um ideal possivelmente identificatrio. Os adultos podem querer ser adoles-centes.

    Os adolescentes ideais tm corpos que reconhe-cemos como parecidos com os nossos em suas formas e seus gozos, prazeres iguais aos nossos e, ao mesmo tempo, graas mgica da infncia estendida at a eles, so ou deveriam ser felizes numa hipottica suspenso das obrigaes, das dificuldades e das responsabilida-des da vida adulta. Eles so adultos de frias, sem lei. Em nossa idealizao, seriam turistas sexuais num Ter-ceiro Mundo sem policia, bon vivants gostando de fi-car high no Afeganisto antes de 1970 ou nos cafs de Amsterd, compradores em dlares nos supermerca-

  • 70 A adokscinca

    dos inflacionados do Quarto Mundo e mesmo assim eternos ganhadores da loteria.

    Talvez adoremos mais essa imagem do que a ima-gem das crianas que nos extasiava. Pois propriamen-te uma imagem de ns mesmos gozando, felizes, sem impedimento ou quase. Gostamos tanto que uma pena nos confinarmos na contemplao esttica ou no so-nho. Por que simplesmente no imit-los? Concreta-mente no simples, pois quem vai nos dar a mesada? Mas podemos, por exemplo, imitar seus estilos.

    A adolescncia se torna assim um ideal dos adul-tos. Ou seja, os adultos no se contentam mais com o consolo oferecido pela viso das criancinhas felizes. Eles encontram nos adolescentes idealizados um pra-zer menos utpico e mais narcisista. Os adolescentes oferecem uma imagem plausvel, praticvel.

    Idealizar os prazeres da adolescncia (que, con-trariamente infncia, imitvel) uma maneira de querer menos consolo com perspectivas futuras (o que a inffincia oferece) e mais satisfao imediata. Quere-mos ver os adolescentes felizes porque eles seriam ape-nas a caricatura despreocupada de ns mesmos. Portanto, atingveis, a nosso alcance.

    Essa idealizao no escapa aos prprios adoles-centes.

    At a metade dos anos 60, claramente o ideal (inclusive esttico) da maioria dos adolescentes era a idade adulta. O que os adolescentes dessa poca mais queriam era ser aceitos e reconhecidos como adultos, obter, em suma, pleno acesso tribo. Isso provavel-mente no diferente do que querem os adolescentes de hoje. Mas, justamente com esse fim, os de ento se esforavam em imitar os adultos. O aniversrio (12 ou 13 anos) em que as calas compridas eram autorizadas era esperado como se fosse mais importante ou to

    A adolt.SdncU! como ideal cultura 71

    importante quanto crisma, barmitzvah ou equivalente. As maneiras em pblico eram, do mesmo jeito, inspi-radas pelos adultos. Chegando em casa da escola, os jovens deviam trocar da roupa de rua para a roupa de casa (isso porque se presumia que uma "criana" se sujasse, deitasse no cho etc.).

    A vontade frustrada de poder ficar o dia inteiro de palet e n de gravata tem como paralelo hoje a grande vontade dos adultos de poderem enfim se ves-tir como adolescentes nos domingos e mesmo nas sex-tas- feiras informais permitidas nos escritrios. A vontade de usar sapato amarrado at em casa corresponde hoje vontade adulta de usar tnis at quando no a hora de praticar nenhum esporte.

    Tambm os adolescentes dos anos 60 procura-vam no s parecer adultos, mas se aventurar em qua-lidades de experincia adultas. Se possvel, mais adultas do que a experincia dos adultos. Algumas ativida-des adolescentes (desde as brincadeiras at a masturbao) eram culpadas e vergonhosas, no tan-to por serem proibidas, mas por serem infantis, ou seja, prova de distncia da idade adulta, de falta da maturidade que daria acesso ao reconhecimento so-cial e independncia.

    Talvez por isso os adolescentes dos anos 60 aca-baram sendo uma gerao de indivduos politicamen-te engajados, para mitigar e esconder uma vontade de folia atrs da seriedade da conscincia social. O ideal deles era a vida adulta. O desejo era no de se confor-mar aos adultos, mas de no se diferenciar deles por ser infantis, adolescentes.

    Atrs desses adolescentes, havia as crianas, que eram aparentemente felizes num mundo de contos de fada e assim ficariam at descobrirem que o que im-portava era ser adulto. Elas eram idealizadas por todos,

  • 72 A adolt.sdnda

    mas como um daguerretipo da felicidade de outros tempos. As crianas eram decorativas. O ideal eram os adultos, l na frente.

    Isso comeou a mudar bem naquela poca. Aos po


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