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Clarice Lispector - Cloud Object Storage · antinomias do ser. Suas obras ... que de uma planta...

Date post: 08-Nov-2018
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Clarice Lispector
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Clarice Lispector

“O que verdadeiramente somos é aquilo que

o impossível cria em nós”

Clarice Lispector, nascida Haia Lispector (Chechelnyk,10 de dezembro de 1920 — Rio deJaneiro, 9 de dezembro de 1977) foiuma escritora brasileira, nascida naUcrânia. Autora de linhaintrospectiva, buscava exprimir,através de seus textos, as agruras eantinomias do ser. Suas obrascaracterizam-se pela exacerbação domomento interior e intensa rupturacom o enredo factual, a ponto de aprópria subjetividade entrar em crise.

A Vida

De origem judaica, terceira filha de Pinkouss e de ManiaLispector. A família de Clarice sofreu a perseguição aosjudeus, durante a Guerra Civil Russa de 1918-1921.Chegou no Brasil quando tinha dois anos de idade. Afamília chegou a Maceió em março de 1922, sendorecebida por Zaina, irmã de Mania, e seu marido e primoJosé Rabin. Por iniciativa de seu pai, mudaram de nome:Haia tornou-se Clarice. Clarice Lispector começou aescrever logo que aprendeu a ler, na cidade do Recife,onde passou parte da infância. Falava vários idiomas,entre eles o francês e inglês. Cresceu ouvindo no âmbitodomiciliar o idioma materno, o iídiche. Foi hospitalizadapouco tempo depois da publicação do romance A Hora daEstrela com câncer e faleceu um dia antes de seu 57°aniversário.

A descoberta do amor

“[...] Depois, com o decorrer de mais tempo, em vezde me sentir escandalizada pelo modo como umamulher e um homem se unem, passei a achar essemodo de uma grande perfeição. E também de grandedelicadeza. Já então eu me transformara numamocinha alta, pensativa, rebelde, tudo misturado abastante selvageria e muita timidez.Antes de me reconciliar com o processo da vida, noentanto, sofri muito, o que poderia ter sido evitado seum adulto responsável se tivesse encarregado de mecontar como era o amor.

[...] Porque o mais surpreendente é que, mesmo depois de saber de tudo, o mistério continuou intacto. Embora eu saiba que de uma planta brota uma flor, continuo surpreendida com os caminhos secretos da natureza. E se continuo até hoje com pudor não é porque ache vergonhoso, é por pudor apenas feminino. Pois juro que a vida é bonita.”

“Eu disse a uma amiga: A vida sempre

superexigiu de mim. Ela disse: Mas lembre-

se de que você também superexige da vida.

Sim, respondi.”

O resultado tem sido meio a meio: às vezes aconteceque agi sob uma intuição dessas que não falham, àsvezes erro completamente, o que prova que não setratava de intuição, mas de simples infantilidade.Trata-se de saber se devo prosseguir nos meusimpulsos. E até que ponto posso controlá-los. [...]Deverei continuar a acertar e a errar, aceitando osresultados resignadamente? Ou devo lutar e tornar-me uma pessoa mais adulta? E também tenho medode tornar-me adulta demais: eu perderia um dosprazeres do que é um jogo infantil, do que tantasvezes é uma alegria pura. Vou pensar no assunto. Ecertamente o resultado ainda virá sob a forma de umimpulso. Não sou madura bastante ainda. Ou nuncaserei.”

Temperamento

impulsivo

“Sou o que se chama depessoa impulsiva. Comodescrever? Acho que assim:vem-me uma idéia ou umsentimento e eu, em vez derefletir sobre o que me veio,ajo quase que imediatamente.

Lúcida em excesso

“Estou sentindo uma clareza tão grande que meanula como pessoa atual e comum: é uma lucidezvazia, como explicar? assim como um cálculomatemático perfeito do qual, no entanto, não seprecise. Estou por assim dizer vendo claramente ovazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estouinfinitamente maior do que eu mesma, e não mealcanço. Além do quê: que faço dessa lucidez? Seitambém que esta minha lucidez pode-se tornar oinferno humano — já me aconteceu antes. Pois seique — em termos de nossa diária e permanenteacomodação resignada à irrealidade — essa clarezade realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama,Deus, porque ela não me serve para viver os dias.Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis.Eu consisto, eu consisto, amém.”.

A síntese perfeita

“Sou tão misteriosa que não me

entendo”.

Escritora sim, intelectual não!

Escritora, sim; intelectual, não

“Outra coisa que não parece ser entendida pelosoutros é quando me chamam de intelectual e eu digoque não sou. De novo, não se trata de modéstia e simde uma realidade que nem de longe me fere. Serintelectual é usar sobretudo a inteligência, o que eunão faço: uso é a intuição, o instinto. Ser intelectual étambém ter cultura, e eu sou tão má leitora que agorajá sem pudor, digo que não tenho mesmo cultura. Nemsequer li as obras importantes da humanidade.[...] Literata também não sou porque não tornei o fatode escrever livros „uma profissão‟, nem uma „carreira‟.Escrevi-os só quando espontaneamente me vieram, esó quando eu realmente quis. Sou uma amadora?O que sou então? Sou uma pessoa que tem umcoração que por vezes percebe, sou uma pessoa quepretendeu pôr em palavras um mundo ininteligível eum mundo impalpável. Sobretudo uma pessoa cujocoração bate de alegria levíssima quando consegue emuma frase dizer alguma coisa sobre a vida humana ouanimal.”

Viver e escrever

“Não sei mais escrever, perdi o jeito. Mas já vi muita coisa no mundo. Uma delas, e não das

menos dolorosas, é ter visto bocas se abrirem para dizer ou

talvez apenas balbuciar, e simplesmente não conseguirem. Então eu quereria às vezes dizer

o que elas não puderam falar. Não sei mais escrever, porém o

fato literário tornou-se aos poucos tão desimportante para

mim que não saber escrever talvez seja exatamente o que me

salvará da literatura.O que é que se tornou importante

para mim? No entanto, o que quer que seja, é através da

literatura que poderá talvez se manifestar.”

“Quando comecei a escrever, que desejava eu atingir?Queria escrever alguma coisa que fosse tranqüila e semmodas, alguma coisa como a lembrança de um altomonumento que parece mais alto porque é lembrança.Mas queria, de passagem, ter realmente tocado nomonumento. Sinceramente não sei o que simbolizavapara mim a palavra monumento. E terminei escrevendocoisas inteiramente diferentes.”“Até hoje eu por assim dizer não sabia que se pode nãoescrever. Gradualmente, gradualmente até que derepente a descoberta tímida: quem sabe, também eu jápoderia não escrever. Como é infinitamente maisambicioso. É quase inalcançável”.

As obras de

Clarice

Os romances

1971Felicidade Clandestina

1960Laços defamília

1964Legião

Estrangeira

Os contos

1974A Bela e

a Fera

1974A vida íntima de Laura

1967O mistério do coelho pensante

1968A mulher que

matou os peixes

Os infantis

1978Quase de verdade

“Eu sou uma

pergunta”

— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:— Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!— Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.

1960Laços de famíliaConto: Uma galinha (trecho)

Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.

1971Felicidade ClandestinaConto: Restos de Carnaval (trecho)

“Ele teve a sensação de ser. Não poderia explicar,tão profundo, nítido e largo que era. A sensaçãode ser era uma visão aguda, calma e instantâneade ser o próprio representante da vida e damorte. Então, ele não quis dormir, para nãoperder a sensação da vida”.

A Descoberta do Mundo (2008)


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