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Date post: 31-Mar-2016
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DICIONÁRIO DO DIABO AMBROSE BIERCE
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DICIONÁRIO DO DIABOAMBROSE BIERCE

TÍTULO ORIGINALThe Devil’s Dictionary

AUTOR Ambrose Bierce

PREFÁCIO

Pedro Mexia

ORIENTAÇÃO GRÁFICA

Mónica Pedreira

MAIO 2011

TIPOGRAFIACaecilia (Peter Matthias Noordzij)

I.ª edição: Janeiro 2006

ISBN 972-8955-02-2

Depósito Legal n.º 237073/06

DICIONÁRIO DO DIABOAMBROSE BIERCE

ESTE DICIONÁRIO É...

ACUSADOR13 ADMITIR13 AGITADOR13 ANORMAL16 ARENA16 ASSALTANTE19 AUTÊNTICO19 ATREVIMENTO19 BANDIDO23 BATALHA24 BOBO25 BRONCO27 BRUTO27 CANIBAL32 CARRETA32 CEMITÉRIO33 CÉREBRO32 COMETA37 CORAGEM42 CRÍTICO43 DEBUCHADO49 DELITO53 DEMÓNIO53 DEPRAVADO53 DESRAGAMENTO53 DESOBEDECER53 DESAMUNIDADE54 DIABO56 DIAGONÓSTICO58 DILÚBIO58 DUELO61 ÉBRIO64 ELECTRICIDADE65 ENTUSIASMO68 ESCRÚPULOS69 ESPELHO69 EXCESSO74 EXTRAORDINÁRIO74 EU75 FORÇA78 FUTURO80 GUERRA84 HISTÓRIA88 HOMEM88 HUMORISTA89 IMAGINAÇÃO92 IMPARCIAL92 IMPLACÁVEL94 INSENSÍVEL94 INTENÇÃO97 JULGAMENTO100 JUSTIÇA100 LOUCO108 MALANDRO112 OFENSIVO120 PURGATÓRIO128 REALIDADE136 REBELDE136 RETRATO138 SATANÁS142 UNIVERSALISTA150 VERDADE154

DICIONÁRIO DO DIABOAMBROSE BIERCE

DICIONÁRIO DO DIABO

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Ambrose Bierce, jornalista e escritor americano, nasceu no Ohio, em 1842, e desapareceu numa viagem ao México, em 1914. Filho de agricultores carenciados, combateu na cruenta Guerra Civil, dois factos essenciais na sua mundividência. Bierce escreveu contos umas vezes realistas outras vezes góticos, sempre num estilo seco e económico. Há duas colectâneas com edição portuguesa: Um Acontecimento na Ponte de Owl Creek (Assírio & Alvim) Esopo Emendado & Outras Fábulas Fantásticas (Antígona) e Fábulas Fantásticas (Estampa). Crítico social satírico e implacável (herdeiro de Swift ou Voltaire), foi colunista em vários jornais do magnata Hearst, nomeadamente o San Francisco Examiner. A sua propensão para a veemência e o sarcasmo tornou-o um dos articulistas mais polémicos da sua época e valeu-lhe a alcunha «bitter Bierce» (o amargo Bierce). O seu legado mais original consiste num volume que reúne colunas publicadas nos jornais entre 1881 e 1906, que se chamou primeiro The Cynic’s Word Book (1906) e se tornou depois conhecido como The Devil’s Dictionary. O que significa Dicionário do Diabo? É um dicionário escrito do ponto de vista do Diabo? Ou do ponto de vista de um autor tido como diabólico? Ou diabólico é o espírito que anima este Dicionário? Todas estas leituras são possíveis. Bierce é levado do Diabo, e tem todo o interesse em associar a maldição ao seu texto. O título é como que um jogada de promoção. Este Dicionário anuncia logo no seu nome que não se pretende informativo, como os dicionários comuns. Nem sequer instrutivo e empenhado, como a Enciclopédia iluminista. O que interessa a Bierce não é descrever o mundo tal como é. O mundo tal como é não passa de uma ilusão de óptica, de um engodo social. O mundo não deve ser analisado com frieza científica ou ideológica, deve ser confrontado com os seus vícios numa linguagem viciosa. Bierce joga contra o mundo mas no terreno do mundo: ele não denuncia nem lamenta, apenas usa os artifícios da civilização contra essa mesma civilização. Se vivemos protegidos e enganados por conceitos, convenções, conveniências, então o que importa é aceitar isso como se fosse um jogo. E depois viciar o jogo por dentro. Ao definir as coisas do mundo, Bierce usa as estratégias mundanas: ele mente para chegar à sua verdade. Se a hipocrisia existe como homenagem do vício à virtude (segundo Wilde), então a virtude que se faz vício é a mais genial das retóricas. O que critica Bierce? Os fundamentos da sociedade do seu tempo: o patriotismo, o colonialismo, o militarismo, o clericalismo, a demagogia democrática. E os vícios humanos de todos os tempos: o oportunismo, a hipocrisia, a estupidez, a cupidez e a vigarice. No entanto, o seu principal alvo é a manipulação e o abastardamento das palavras e dos sentidos. A retórica das definições deste Dicionário consiste em apresentar todos os nossos mecanismos de inveja, arrogância, desculpabilização e demonização do outro. Bierce distorce o sentido das palavras porque as palavras adquiriram sentidos distorcidos. Quando o amargo colunista diz que o realismo é a representação da natureza do ponto de vista de um sapo, não está apenas a satirizar uma determinada estética. Está a contestar toda a ideia de uma visão naturalista da sociedade. Os seus aforismos divertidos e às vezes surrealistas deformam e

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transformam o mundo do ponto de vista de um individualista. O que se compreende quando uma entrada do dicionário sugere que liberdade e imaginação são a mesma coisa. Se situarmos Bierce no contexto oitocentista, surgem alguns paralelos com Mark Twain, que escrevia vinhetas irónicas e sátiras delirantes, e depois com o polemista H.L. Mencken. Acontece que Mencken era bastante mais conservador e talvez mais agressivo. E Twain cultivava um registo sentimental e uma certa bonomia, enquanto Bierce é quase gélido. O Dictionaire des Idées Reçues de Gustave Flaubert tem evidentes afinidades com The Devil’s Dictionary, na sua impaciência com o cliché. No entanto, Flaubert era um misantropo e um elitista, ao passo que Bierce, americano dissidente mas ainda assim americano, é essencialmente um populista. Amesquinhez e a mediocridade divertem Gustave e Ambrose, mas o autor de Bouvard e Pécuchet não esconde um certo nojo, ao passo que o colunista californiano denuncia um assinalável gozo. Bierce não se fica pelo cinismo: inventa uma espécie de cinismo do cinismo.Diversas entradas do Dicionário são modelarmente cínicas: é assim quando define o comércio como «saque», o catecismo como «adivinhas teológicas» ou o amor como «uma demência temporária que se cura com o casamento». Ou quando define «inocência», «Ocidente», «funeral», «justiça» ou «fidelidade». A sua definição de cínico é particularmente interessante: «um malandro cuja visão deficiente lhe apresenta as coisas como elas são, não como deviam ser». De muitas destas tiradas percebemos que Bierce é mais um anarquista que um progressista. Ele é tão contra o optimismo que a entrada «pessimismo» critica o optimismo em vez de satirizar o pessimismo. Bierce sabe que o radicalismo de hoje é o conservadorismo de amanhã: segundo ele, um conservador «gosta das coisas más que já existem, por oposição ao liberal, que as quer substituir por outras». E não hesita em apresentar a revolução como a troca de um mal por outro mal. No fundo, é da História que ele mais desconfia: a História é «um relato geralmente falso de acontecimentos geralmente fúteis, contado por governos geralmente velhacos e soldados geralmente tolos». Não há aqui espaço para mitologias de nenhuma espécie. É verdade que no Dicionário encontramos indignação. Mas esta indignação não tem ilusões sobre os seus efeitos e cultiva o humor negro. O cínico reconhece subtilmente que o mundo é cínico. Bierce parece às vezes um moralista porque joga com os dois conceitos essenciais do moralista: a verdade e o aforismo. Se algumas coisas são falsas e repugnantemente falsas, é porque existe uma possibilidade de serem verdadeiras. Bierce supõe que existe uma verdade e essa verdade é parcialmente desvendada pelo aforismo. A frase concisa e definitiva, dotada de um grau de certeza e de um grau de ambiguidade, permite que se extraia um conceito moral de todas as matérias. Acontece que esse moralismo fracassa porque Bierce gosta demasiado do seu jogo. Ele combate o fogo com o fogo e pelo fogo se apaixona. Quando Bierce define «clube» como «uma associação de homens que tem por objectivos a embriaguez, a gula, o riso alarve, o homicídio, o sacrilégio e a difamação de mães, esposas e irmãs» acrescenta que obteve essa informação através das esposas desses

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homens. Ou seja: Bierce não está a assumir o discurso da virtude, mas a caricaturar a mentalidade dos obcecados com a decência. Um mundo decente seria enfadonho. É a imperfeição do mundo que anima o Diabo.Escritos na imprensa da época, estes textos tinham um significado determinado. A sua junção em volume implica a transformação da sua natureza, uma vez que os textos se desligam dos acontecimentos concretos e se tornam uma colecção de epigramas. Bierce é eminentemente citável, e provavelmente muitas destas definições diabólicas circulam isoladamente, em epígrafes, conversas ou dicionários de citações, pelo que cada uma adquire um valor individual e provavelmente novos sentidos. Se a citação é «o acto de repetir erradamente as palavras de outra pessoa», então essa inevitabilidade torna-se num trunfo. E num triunfo. O Dicionário do Diabo é um manual de guerrilha contra o conformismo. Uma guerrilha moderadamente convicta dos seus poderes mas ainda assim apostada na inconveniência e na crítica sem tréguas. Um crítico, escreve Ambrose Bierce, é «uma pessoa que se diz difícil de agradar porque ninguém tenta agradar-lhe».

QUE ESTE DICIONÁRIO VOS DESAGRADE.

PEDRO MEXIA

AMBROSE BIERCE

ABSURDOUma afirmação ou convicção manifestamente contrária à nossa própria opinião.

ACADEMIA Uma escola antiga onde se ensinava moral e filosofia.

ACADÉMICO {DE ACADEMIA} Relativo a uma escola moderna onde se ensina futebol.

ACÉFALOQue se encontra na surpreendente condição daquele Cruzado que distraidamente ajeitou a franja algumas horas depois de uma cimitarra sarracena ter passado – sem ele disso tivesse tomado consciência – pelo seu pescoço, como relatado por De Joinville.

ACIDENTEUma ocorrência inevitável devida à acção de leis imutáveis.

ACORDEQue está em harmonia.

ACORDEÃOInstrumento que está em harmonia com os sentimentos de um assassino.

ACROBATAUm homem que dobra as costas para encher a barriga.

ACTRIZMulher cujo bom nome é habitualmente manchado por andar tanto nas nossas bocas.

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ACUSADORAlguém que já foi nosso amigo; particularmente, a pessoa à qual prestámos um serviço amigável.

ACUSARAfirmar a culpa ou demérito de outra pessoa; aplica-se , na maioria dos casos, como justificação por lhe termos feito mal.

ADIAMENTOSuspensão das hostilidades contra um assassino condenado, com o objectivo de peritir ao Executivo descobrir se o crime pode ter sido perpetrado pelo advogado de acusação. Qualquer pausa no processo de uma expectativa desagradável.

ADIVINHAQuem elege os nossos governantes?

ADIVINHAÇÂOArte de meter o nariz no oculto. Há tantas espécies de adivinhação quanto variedades frutíferas de estúpidos-em-flor e de cretinos-precoces.

ADMINISTRAÇÂOEm política, uma engenhosa abstracção, concebida para receber os pontapés e as estaladas que o Primeiro-Ministro e o Presidente deviam levar.

ADMIRAÇÃOO nosso reconhecimento cortês da semelhança de outrem connosco próprios.

ADMITIRConfessar. Admitirmos os erros uns dos outros é o mais alto dever imposto pelo nosso amor à verdade.

ADOLESCENTEA recuperar da infância.

ADORARVenerar com expectativas.

ADVOGADO Indivíduo com jeito para contornar a lei.

AFORISMASabedoria já mastigada.

AFRICANOUm preto que vota no nosso partido.

AGITADORUm estadista que abana as árvores de fruto dos seus vizinhos (para desalojar as minhocas).

AGRADARColocar os alicerces para uma superestrutura de imposição.

AJUDARCriar um ingrato.

ÁLBUMUm instrumento de tortura com o qual as nossas amigas nos crucificam entre dois ladrões.

ALCANCEO raio de acção da mão humana.

AMBROSE BIERCE

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AMIZADE

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ÁLCOOL(do Àrabe al kohl, uma tinta para os olhos )Princípio essencial de todos os líquidos que fazem o homem ficar com o olho negro.

ALCORÃOUm livro que os Maometanos acreditam ter sido escrito por inspiração divina, mas os Cristãos sabem que é uma impostura maléfica, que contradiz as Sagradas Escrituras.

ALEGRIAUma sensação agradável provocada pela contemplação da miséria dos outros.

ALEMÃOOm tipo munto orrgulhosa (e munto kontent) porr serr dá Deustschland, korrecta?

ALIANÇAEm política internacional, consiste na união de dois ladrões com as mãos tão afumadas nos bolsos um do outro que já não conseguem roubar um terceiro separadamente.

ALIGÁTORO crocodilo da América, em tudo superior aos crocodilos das obsoletas monarquias do Velho Mundo.

ALÍVIOAcordar cedo, numa manhã fria, e descobrir que é domingo.

ALMIRANTEa parte de um navio de guerra que trata de falar, enquanto a figura da proa trata de pensar.

AMADORUm transtorno público que não conhece a diferença entre gosto e habilidade, e confunde a sua ambição com a sua ambição com a sua capacidade.

AMATÓRIODevíamos ficar corados quando murmuramos esta palavra.

AMAZONAPessoa de uma antiga raça que não parecia preocupar-se muito com os direitos das mulheres e a igualdade entre os dois sexos. O seu hábito irreflectido de torcer o pescoço aos machos originou, como infeliz consequência, a extinção da sua espécie.

AMBIÇÃO Um desejo irresistível de ser vilipendiado por inimigos enquanto se está vivo e ridicularizado por amigos quando se está morto.

AMBIDESTROQue é tão hábil a roubar uma carteira com a mão direita como com a mão esquerda.

AMNISTIAA magnanimidade do Estado para com aqueles transgressores que seria demasiadamente caro castigar.

AMBROSE BIERCE

AMORDemência temporária que se cura com o casamento, ou afastando o paciente das influências que provocaram a enfermidade. Esta doença, tal como a cárie e outras, prevalece apenas entre as raças civilizadas que vivem em condições artificiais; as nações bárbaras que respiram ar puro e comem alimentos simples são imunes aos seus ataques. Chega a ser fatal, embora mais para o médico do que para o paciente.

ANGÚSTIAUma doença provocada pela exposição à prosperidade de um amigo.

ANOUm período de trezentas e sessenta e cinco desilusões.

ANORMALNão conforme à norma. Em matérias de pensamento e de conduta, ser independente é ser anormal e ser anormal é ser detestado. Daí que o lexicógrafo aconselhe um esforço no sentido de uma semelhança mais estreita (sic) com o Homem Normal do que consigo próprio. Quem o conseguir terá paz, a perspectiva da morte e a esperança do Inferno.

ANTAGONISTAO sacana miserável que não nos deixa em Paz

ANTIAMERICANOMalvado, intolerável, bárbaro.

APAZIGUARChamar «cãozinho» a um buldogue quando este se encontra firmemente agarrado à nossa retaguarda.

APELAR No contexto forense, voltar a pôr os dados no copo para os lançar novamente.

APETITEUm instinto previdentemente implantado pela Providênciacomo solução para a questão laboral.

APLAUSO O eco de um lugar-comum.

APRESENTÁVELHorrivelmente vestido à maneira do tempo e do lugar.

AR Uma substância nutritiva fornecida para a engorda dos pobres por uma Providência caridosa.

ARCEBISPOUm dignitário eclesiástico com um bocadinho mais de santidade que um bispo.

ARENAEm política, uma ratoeira imaginária na qual o estadista luta contra o seu passado.

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Uma cerimónia social inventada pelo Diabo para gratificar os seus servos e afligir os seus inimigos. A apresentação atinge o seu grau de

desenvolvimento mais malévolo neste país, estando, sem dúvida, intimamente relacionada com o nosso sistema político. Sendo qualquer americano igual aos outros americanos, daqui

decorre que todos têm o direito de conhecer toda a gente, o que implica o direito de apresentar

pessoas sem pedir licença ou permissão. A Declaração de Independência ter ficado assim:

Consideramos evidentes estas verdades: que todos os homens foram criados para serem iguais; que o seu criador os dotou de certos

direitos inalienáveis; que entre esses direitos se encontra o direito à vida e o direito de tornar

a vida dos outros numa miséria ao atirar para cima deles um número incalculável de pessoas

conhecidas; à liberdade, e especialmente à liberdade de apresentar as pessoas umas às outras sem verificar primeiro se não se

conhecem já na qualidade de inimigos; e à busca da felicidade dos outros com uma matilha de

estranhos a farejar.

APRESENTAÇÃO

AMBROSE BIERCE

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ATREVIMENTO

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ARENGAO discurso de um opositor, a quem chamamos arengotango.

ARISTOCRACIAGoverno pelos melhores homens. (Neste sentido o termo é obsoleto – tal como o é esta forma de governo.) Indivíduos que usam chapéus felpudos e camisas asseadas - são acusados deterem educação e suspeitos de terem contas bancárias.

ARMADURATipo de roupa usado por um homem cujo alfaiate é um ferreiro.

ARQUITECTOAquele que faz planos para a nossa casa e para o nosso dinheiro.

ARREPENDIMENTOUm sentimento que raramente incomoda as pessoas antes de começarem a sofrer.

ASSALTANTEUm homem de negócios sincero.

AUSENTEPessoa com rendimentos, queatempadamente se retirou da esfera da extorção.

AUTÊNTICOIndubitavelmente verdadeiro – na opinião de alguém.

AUTO-ESTIMAUma apreciação errada.

AVESTRUZUma ave grande à qual (pelos seus pecados, sem dúvida) a natureza negou esse dedo posterior no qual tantos naturalistas piedosos viram uma prova manifesta do desígnio divino. A ausência de um bom par de asas não é defeito, pois, como tem sido pertinentemente observado, a avestruz não voa.

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BACOUma divindade conveniente, inventada pelos antigos como desculpa para se embriagarem.

BAIONETAUm instrumento para rebentar a bolha de vaidade de uma nação.

BAIXASA qualidade das motivações de um rival.

BANDEIRAUm trapo colorido que se usa acima das tropas e nos quarteis e navios. Parece ter a mesma função de certos cartazes que se podem ver nos terrenos baldios de Londres: «Pode atirar-se lixo para aqui».

BANDIDOUma pessoa que, à força, tira a A aquilo que A, com manhas, tirou a B.

BANHOUm tipo de cerimónia mística que substituiu o culto religioso, desconhecendo-se ainda a sua eficácia espiritual.

BAPTISMOUm ritual sagrado tão eficaz que torna eternamente infelizes aqueles que vão para o Céu sem terem sido baptizados. É feito com água, de duas formas – por imersão ou mergulho; por aspersão ou borrifadela.

BAPTIZARInfligir cerimoniosamente um nome a uma criança indefesa.

AMBROSE BIERCE

BARBAO cabelo que é habitualmente cortado por aqueles que abominam o absurdo costume chinês de rapar a cabeça.

BARBEIRO(do Latim barbarus, selvagem, a partir de barba, a barba.) Um selvagem que nos faz esquecer a laceração da nossa cara, perante o tormento superior que é ter de ouvir a sua conversa.

BARÓMETROUm instrumento engenhoso que nos indica o tempo que estamos a ter.

BATALHAUma forma de desatar com os dentes um nó político que resiste à língua.

BEIJOUma palavra inventada pelos poetas para rimar com «desejo». Supõe-se que significa, de um modo geral, uma forma qualquer de rito, ou cerimónia propiciadora de um bom entendimento; mas este lexicógrafo desconhece a forma como ela é realizada.

BELADONAEm Italiano, uma mulher bela; em Português, um veneno mortal. Um exemplo assinalável da semelhança entre dua línguas.

BELEZAPoder com o qual uma mulher encanta o amante e aterroriza o marido.

BENEVOLÊNCIAOferecer cinco euros para o conforto do nosso avozinho que está no asilo, publicitando-o depois do jornal.

BENFEITORIndivíduo que compra grandes quantidades de ingratidão, sem, contudo, afectar meterialmente o preço, que continha ao alcance de todos.

BIGAMIAMau gosto para o qual a sabedoria do futuro decretará um castigo chamado trigamia.

BIOGRAFIAO tributo literáro que um pequeno homem presta a um grande homem.

BOCANo homem, é a porta da alma; na mulher, é a saída do coração.

BOMConsciente, cara senhora, do mérito deste seu escriba. Desperto, caro senhor, para as vantagens de não se meter com ele.

BOTÂNICAA ciência dos vegetais - dos que não são bons para comer e dos que são. De um modo geral, ocupa-se das suas flores, que são normalmente mal desenhadas, mas coloridas e mal cheirosas.

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Um funcionário da casa do Rei, cuja função era divertir a corte através de acções e palavras

grotescas; o absurdo da situação era reforçado pela vestimenta multicolor. Sendo o próprio rei

um espelho de dignidade, passaram muitos séculos até que se descobrisse que a sua conduta e os seus decretos eram suficientemente ridículos

para divertir a corte – e até mesmo toda a humanidade.

BOBO

AMBROSE BIERCE

DICIONÁRIO DO DIABO

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BOTICÁRIOO cúmplice do médico, benfeitor do cangalheiro e fornecedor dos vermes de cemitério.

BRONCOUm membro de dinastia reinante nas letras e na vida. Os Broncos remontam aos tempos de Adão e, sendo simultaneamente numerosos e robustos, acabaram por dominar o mundo habitável. O segredo do seu poder é o facto de serem insensíveis a ataques; toquem-lhes com um cacete e eles riem-se de forma vulgar.

BRUTOVer MARIDO.

BRUXA(I) Uma mulher feia e repelente, que fez um pacto demoníaco com o Diabo. (2) Uma jovem mulher bela e atraente, muito mais demoníaca que o próprio Diabo.

AMBROSE BIERCE

C

CC

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CACAREJARCelebrar o nascimento de um ovo.

CALAMIDADEUma forma simples e inolvidável de relembrar que os assuntos desta vida não dependem da nossa vontade. Há dois tipos de calamidades: infortúnio para nós próprios e fortuna para os outros.

CALÇASVestuário que cobre as partes inferiores do macho adulto civilizado. É uma peça tubular e desprovida de dobradiças nos pontos de flexão. Supõe-se que foi inventada por um humorista.

CALOIRO Um estudante familiarizado com a aflição.

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CALUNIARDizer tudo o que achamos sobre um homem quando não nos consegue achar.

CAMPAUm sítio no qual os mortos repousam, à espera dos estudantes de medicina.

CANALHAUm homem cujas qualidades, arrumadas como as caixas da fruta nos mercados - as melhores do lado de cima, foram abertas pelo lado errado.Um cavalheiro ao contrário.

CANHÃOUm instrumento utilizado na rectificação das fronteiras nacionais.

CANIBALUm gastrónomo da velha escola, que preserva os gostos simples e adere à dieta natural do período pré-porco.

Uma espécie de Divindade subsidiária ou adicional, concebida para receber os excedentes da adoração mundial. Este ser Divino, nalgumas das suas encarnações mais pequenas e macias, ocupa no coração da Mulher o lugar no qual nenhum macho pode aspirar.

CAPITALA sede do desgoverno.

CARNEA Segunda Pessoa da Trindade secular.

CARNÍVOROViciado na crueldade de devorar o vegetariano timorato e os seus herdeiros.

CARRASCOUm funcionário que produz animação em suspensão.

CARRETA (FÚNEBRE)O carrinho de bebé da Morte.

CARTESIANORelativo a Descartes, um filósofo famoso, autor da célebre máxima Cogito ergo sum, a partir da qual acreditou que ficava demonstrada a realidade da existência humana. No entanto, a máxima pode ser aperfeiçoada da seguinte forma: Cogito cogito ergo cogito sum – Penso que penso, logo penso que existo; o que está mais próximo da verdade do que algum filósofo alguma vez esteve.

CASAUm edifício oco, construído para ser habitado pelo homem, pela ratazana, pelo rato, peloescaravelho, pela barata, pela mosca, pelo mosquito, pela pulga, pelo bacilo e pelo micróbio.

CASAMENTOCerimónia na qual duas pessoas passam a ser uma, uma passa a ser nada e nada a ser sustentável.

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CEMITÉRIO

CATECISMOUm tipo de adivinhas teológicas nas quais as dúvidas universais e eternas são resolvidas com respostas locias e efémeras.

CÉRBEROO cão de guarda do Hades, que tinha por dever proteger a sua entrada – não se percebendo claramente contra quê ou quem a guardava ele, pois toda a gente, mais cedo ou mais tarde, tinha de passar por ela, e também ninguém tinha vontade de forçar a entrada.

CÉREBRODispositivo com o qual pensamos que pensamos. Aquilo que distingue o homem que se contenta com ser alguma coisa do homem que quer fazer alguma coisa.

CHATOPessoa que fala quando desejaríamos que ouvisse.

CHICANEIROUm crítico do nosso trabalho.

CÍNICOUm malandro cuja visão deficiente lhe apresenta as coisas como elas são, não comoe deviam ser. Daí o costume, entre os Cítios, de arrancar um olho ao Cínico para melhorar a sua visão.

CIRCOUm sítio onde os cavalos, os póneis e os elefantes podem ver homens, mulheres e crianças a fazerem figura de parvos.

CIRCUNLOCUÇÃOUm truque literário através do qual o escritor que não tem nada para dizer faz chegar a mensagem suavemente ao leitor.

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CITAÇÃO

AMBROSE BIERCE

CIUMENTOIndevidamente preocupado com a preservação daquilo que só pode ser perdido se não valer a

pena ser mantido.

CLARINETEInstrumento manejado por uma pessoa com

algodão nos ouvidos. Há dois instrumentos piores do que um clarinete: dois clarinetes.

CLEPTOMANÍACOUm ladrão rico.

CLÉRIGOUm homem que se encarrega de gerir os nossos

assuntos espirituais, como forma de melhorar os seus assuntos temporais.

CLIENTEUma pessoa que fez a escolha mais habitual

entre os dois métodos de se ser licitamente roubado.

CLUBEUma associação de homens que tem por

objectivos a embriaguez, a gula, o riso alarve, o homicídio, o sacrilégio e a difamação de mães,

esposas e irmãs. Para esta definição contei com o contributo de várias senhoras estimáveis que se

revelaram os melhores meios de informação, pois os seus maridos são membros de vários clubes.

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COMBOIOA mais importante das invenções que nos permitem sair do sítio onde estamos e ir para um sítio onde estamos e ir para um sítio onde estaremos melhor. Por esta razão, o comboio é muito apreciado pelo optimista, pois permite-lhe fazer a viagem com maior rapidez.

COMERDesempenhar, de forma sucessiva( e com sucesso), as funções de mastigação, humificação e deglutição.

COMÉRCIOUma forma de transacção na qual A saqueia a B e os bens de C e, em compensação, B rouba a carteira de D com o dinheiro que pertence a E.

COMESTÍVELBom para comer e salutar para digerir; como um verme come um sapo, um sapo para uma cobra, uma cobra para um porco, um porco para um homem, e um homem para um verme.

COMETAUma desculpa para andar na rua até as tantas da noite e chegar a casa de manhã embriagado.

COMPROMETIDOEquipado com uma argola para receber a corrente e a bola de ferro.

AMBROSE BIERCE

CONFEDERAÇÃOUnião de dois ou mais partidos, facções ou associações, para promover qualquer objectivo, normalmente nefasto.

CONFERENCISTAIndivíduo que tem na mão no nosso bolso, a língua no nosso ouvido e a fé na nossa paciência.

CONFESSIONÁRIOSítio onde o padre se senta para perdoar os pecados maiores, pelo prazer de ouvir os pecados menores.

CONFIDENTEIndivíduo que ouve de A os segredos de B, confidenciando-os a C.

CONFORTOEstado de espírito originado pela contemplação das inquietações de um vizinho.

CONGRATULAÇÃOA cortesia da inveja.

CONGREGAÇÃOAs cobaias de uma experiência de hipnotismo.

CONGRESSOUm conjunto de homens que se reúnem para anular leis.

CONHECIDOPessoa que conhecemos suficientemente bem para lhe pedir emprestado, mas não o suficiente para lhe emprestarmos. Grau de amizade que consideramos afastado quando o seu objecto é pobre ou obscuro, e intimo quando é rico ou famoso.

CONSELHOA mais pequena moeda de troca.

CONSERVADORUm estadista que gosta das coisas más que já existem; por oposição ao Liberal, que as quer substituir por outras.

CONSOLAÇÃOSaber que uma pessoa melhor é mais infeliz que nós.

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AMBROSE BIERCE

Uma noite, o sr. Rudolph Block, de Nova Iorque, deu por si sentado o lado do sr.Percival Pollard, o famoso crítico.

Sr. Pollard, disse ele, o meu livro, Biografia de uma Vaca Morta, foi publicado anonimamente, mas não acredito que desconheça a sua autoria. E, no entanto, na sua crítica fala dele como a obra do Idiota do Século. Acha mesmo que é assim que se faz crítica?Peço desculpa, caro senhor, disse o crítico num tom amistoso, mas não me ocorreu que podia não querer que o público soubesse quem o escreveu.

O sr. W.C.Morrow, que vivia em San Jose, na Califórnia, dedicava-se a escrever histórias de fantasmas que faziam o leitor sentir-se como se uma fila de lagartos, acabados de sair

do gelo, passasse a correr pelas suas costas para logo se esconder no seu cabelo. Nessa altura, acreditava-se que San Jose era assombrada pelo espírito visível de um conhecido bandido chamado Vasquez, que tinha sido lá enforcado. A cidade era mal iluminada, e

não exagero se disser que os seus habitantes não saíam à noite sem alguma relutância. Numa noite particularmente escura, iam dois cavalheiros a conversar na rua, em voz muito alta – para não perderem a coragem – e,num dos sítios mais isolados da cidade,

encontraram o sr. J.J. Owen, um reputado jornalista.

Ora, sr. Owen, disse um deles, o que o traz aqui numa noite como esta? Foi você que me disse que este é um dos sítios que o Vasquez mais gosta de assombrar! E você é dos que acreditam nessas coisas. Não tem medo de andar aqui na rua?Meu caro amigo, respondeu-lhe o jornalista, com uma lúgubre cadência outonal na voz, como o som do vento que arrasta as folhas, eu tenho medo é de estar dentro de casa. Tenho um dos contos do Will Morrow no meu bolso e não me arrisco a entrar num sítio onde haja luz suficiente para o ler.tudo.

CONTO Uma narrativa, normalmente falsa. A verdade das histórias que a seguir se transcrevem, no entanto, não foi ainda

desmentida:

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O General H.H. Wotherspoon, presidente do Colégio de Armas Militares, tem um babuíno como animal doméstico, com uma inteligência pouco comum, embora não deva muito à beleza. Uma noite, regressando ao seu apartamento, o General ficou surpeendido e aborrecido por encontrar Adam (pois, sendo o general um Darwinista, era este o nome do animal) sentado à sua espera e envergando o melhor casaco do uniforme do dono, com insígnias e tudo.

Oh meu antepassado remoto perturbado!, gritou o grande estratega, o que é que andas a fazer fora da cama a estas horas? - e com o meu casaco vestido!

Adam levantou-se e, com um olhar de reprovação, pôs-se de quatro patas, como é próprio da sua espécie, e foi buscar um cartão de visita: o General Barry tinha aparecido e, a julgar pela garrafa de champanhe vazia e pelos restos de charutos, deve ter sido recebido com toda a hospitalidade enquanto ali esperava. O general pediu desculpa ao seu fiel antepassado e retirou-se. No dia seguinte, encontrou o General Barry, que lhe disse:

Spoon, velho amigo, quando saí de tua casa, ontem à noite, esqueci-me de te fazr uma pergunta acerca daqueles charutos maravilhosos. Onde é que os arranjaste?O general Wotherspoon nem se dignou a responder, afastando-se imediatamente.Desculpa, por favor, disse Barry, seguindo atrás dele, eu estava a brincar, é claro. Olha, eu percebi logo que não eras tu quando ainda nem tinham passado quinze minutos.

AMBROSE BIERCE

CONTROVÉRSIAUma batalha na qual o cuspo e a tinta substituem a perigosa bala de canhão e a imprudente baioneta.

CONVENTOLocal para onde se retiram as mulheres que precisam de tempo para meditar sobre o vício da ociosidade.

CONVERSAFeira na qual se expõem os dotes mentais mais despiciendos, estando cada expositor tão ocupado com a arrumação dos seus bens que nem consegue dar atenção aos do colega do lado.

COQUETEUma rapariga fútil, tola e estúpida, que preferiu andar com outro depois de ter andado algum tempo a experimentar-nos.

CORAGEMAdmitir que se é um cobarde.

CORDAUm utensílio obsolescente que serve para relembrar aos assassinos que eles também são mortais. É colocada à volta do pescoço e lá permanece até ao fim da vida. CORONa ópera, um bando de dervixes ululantes que aterrorizam o público enquanto os cantores recuperam o fôlego.

COROAÇÃOA cerimónia através da qual um soberano é investido com os sinais exteriores e visíveis do seu direito divino de ser enviado para os anjinhos cim uma bomba de dinamite.

CORSÁRIOUm político dos mares.

DICIONÁRIO DO DIABO

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CORTESIAPedir desculpa a um indivíduo por estar no meio do caminho e ter sido alvejado por uma bala que ele disparou para acertar noutra pessoa. A forma mais aceitável de hipocrisia.

COSTASA parte do teu amigo que tens o privilégio de contemplar nos teus momentos de adversidade.

COUVEUm vegetal muito caseiro, com o tamanho e a sabedoria de um homem.

CREDORIndivíduo que pertence a uma tribo de selvagens que vive para lá dos Estreitos da Finança e é temida pelas suas incursões devastadoras.

CRISTÃOAquele que acredita que o Novo Testamento é um livro de inspiração divina, admiravelmente adequado às necessidades espirituais do seu vizinho. Aquele que segue os ensinamentos de Cristo, na exacta medida em que não sejam incompatíveis com uma vida de pecado.

CRÍTICOUma pessoa que se diz difícil de agradar porque ninguém tenta agradar-lhe.

AMBROSE BIERCE

CULPADOO outro indivíduo.

CÚMPLICEPessoa associada a outra num crime, sendo culpada de conhecimento dos factos e de cumplicidade; como um advogado que defende um criminoso, sabendo-o culpado. Esta perspectiva da posição do advogado nesta matéria não granjeou, até agora, a concordância dos advogados, pois ninguém lhes pagou para que concordassem.

DICIONÁRIO DO DIABO

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CUPIDOAquele a quem chamam o deus do amor. Esta criação abastardada de um capricho bárbaro foi, sem dúvida, infligidà mitologia por causa dos pecados dos seus deuses. De todos os conceitos desagradáveis e impróprios, este é o mais injustificado e ofensivo. A ideia de simbolizar o amor a partir de um bebé sexualmente ambíguo, de comparar as agruras da paixão com as feridas de uma seta, de introduzir este homúnculo gorducho na arte para materializar de forma grosseira o espírito subtil e a sugestão da obra – tudo isto é claramente merecedor da época que, tendo-o feito nascer, o deixou às portas da posteridade.

CURIOSIDADEUma qualidade repreensível do espírito feminino. O desejo de saber se uma mulher sofre da maldição da curiosidade constitui uma das paixões mais insaciáveis da alma masculina.

AMBROSE BIERCE

d

DICIONÁRIO DO DIABO

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DANÇARSaltar ao som da música galhofeira,

especialmente com os braços à volta da mulher ou da filha do nosso vizinho.

DEBOCHADOIndivíduo que correu atrás do prazer tão

diligentemente que teve a infelicidade de o ultrapassar

AMBROSE BIERCE

DECÁLOGO UMA SÉRIE DE MANDAMENTOS, DEZ AO TODO – O SUFICIENTE PARA PERMITIR ESCOLHER BEM AQUELES QUE QUEREMOS CUMPRIR, E MESMO

À CONTA PARA NÃO DIFICULTAR A ESCOLHA. SEGUE-SE A VERSÃO REVISTA DO DECÁLOGO,

PENSADA PARA ESTE MERIDIANO:

DICIONÁRIO DO DIABO

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Não terás outro Deus além de mim;Seria muito mais caro se não fosse assim.Nem imagens nem Ídolos deves construir

Pois logo um ateu os irá destruís.

Não invocarás o nome de Deus em vão;Só quando der jeito – escolhe bem a ocasião.

No dia do Senhor, não deves trabalhar;Vai mas é ver o teu clube a jogar.

Honra os teus pais, pois assim é um factoQue o seguro de vida ficará mais barato.

Não matarás – nem ajudarás outro a matar;Logo, a conta do talho não deves pagar.

Não beijarás a mulher do teu vizinho,A não ser que ele à tua deite o olhinho.

AMBROSE BIERCE

Numa folha que da árvore se soltou,Disse assim: “Para o chão eu vou”.

O vento Oeste logo a fez desviar.“Para Este”, disse ela, “vou-me virar”.

Quando o vento Este, soprando, crescia,Ela disse: “Mudei de rumo, tal como queria”

Eis que sopram os ventos com igual poder.Diz ela: “Agora espero e nada vou fazer”.

Cessam os ventos; diz a folha, satisfeita:“Sempre a descer, ao chão vou direita”.

“As primeiras ideias são melhores?” Não é esta a moral;Escolham, pois, a vossa e não nos daremos mal.

Escolham bem ou mal, entre o sim e o não,Pois nada, afinal, depende da vossa decsião.

G.F.

DECIDIR SUCUMBIR À PREPONDERÂNCIA DE UM DETERMINADO CONJUNTO DE INFLUÊNCIAS SOBRE

UM OUTRO CONJUNTO DE INFLUÊNCIAS.

DICIONÁRIO DO DIABO

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DELADele.

DELIBERAÇÃOO acto de examinar a fatia de pão para ver de que lado é que está a manteiga.

DELITOUma infracção à lei com menos dignidade do que um assalto; em nada contribui para se ser admitido na alta sociedade do crime.

DEMAGOGOUm opositor político.

DEMENTEA lamentável condição mental de um indivíduo a cujos argumentos não conseguimos responder.

DEMITIR-SERenunciar a uma honra por uma situação vantajosa. Renunciar a uma situação vantajosa por outra ainda mais vantajosa.

DEMÓNIOUm homem cujas crueldades são descritas nos jornais.

DENTISTAUm prestidigitador que, pondo metal nas nossas bocas, consegue tirar moedas das nossas carteiras.

DEPÓSITOUma contribuição caridosa para ajudar ao sustento de um banco.

DEPRAVADOA condição moral de um cavalheiro que te uma opinião contrária.

DESALOJADOIndivíduo que pagou todos os impostos sobre bens domésticos.

DESBRAGAMENTOLinguagem utilizada por outra pessoa para nos criticar.

DESCRÉDITOA condição de um filósofo. A condição de um tolo. A condição de um candidato.

DESCULPAR(-SE)Lançar as bases para uma futura ofensa.

DESERÇÃOUma aversão ao conflito, como pode ser observada num indivíduo que abandona o exército ou a mulher.

DESGRAÇAO tipo de graça que nunca vem só.

DESOBEDECERCelebrar, com uma cerimónia apropriada, a maturidade de uma ordem.

DESPREZOO que um homem prudente sente por um inimigo demasiado temível para que se lhe faça frente.

AMBROSE BIERCE

DESTINOAquilo que autoriza os crimes do tirano e serve de desculpa para os fracassos do idiota.

DESUMANIDADEUma das qualidades mais destacadas e características da humanidade.

DEVERAquilo que nos impele firmemente na direcção do curo, seguindo a linha do desejo.

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DIA

AMBROSE BIERCE

IA

IA BOO autor de todos os nossos infortúnios e proprietário de todas as coisas boas deste mundo.

DIAGNÓSTICOUma previsão de doenças que o médico consegue fazer agarrando o pulso e a carteira do paciente.

DIÁRIORegisto quotidiano daquela parta da nossa vida que conseguimos contar a nós próprios sem corar.

DIFAMARMentir acerca de outra pessoa. Dizer a verdade acerca de outra pessoa.

DIFERENTEMENTEIgualmente mau.

DIGESTÃOConversão de vitualhas em virtudes.

DILÚVIOUma primeira experiência de baptismo notável, que lavou os pecados (e os pecadores) deste mundo.

DINHEIROUma benção que só se torna vantajosa quando a damos a outra pessoa. Um sinal exterior de cultura e um passaporte para a sociedade elegante. Bem suportável.

DICIONÁRIOUm dispositivo literário malévolo para impedir o crescimento da língua e para a tornar rígida e pouco flexível. Este dicionário, no entanto, é uma abril muito útil.

DIPLOMACIAA arte patriótica de mentir pelo nosso país.

DIREITOAutoridade legítima para ser, fazer, ou ter; como o direito a ser rei, o direito a fazer mal ao próximo, o direito a ter sarampo, entre outros.

DISCRIMINARChamar a atenção para os aspectos particulares que tornam, se possível, uma pessoa ou coisa mais censuráveis do que outras.

DISCUSSÃOUm método para demonstrar os erros dos outros.

DISPARATADOPensar que o homicídio é crime.

DISPARATESAs objectes a este excelente dicionário.

DISSIMULARestir uma camisa lavada por cima do carácter.

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DISTÂNCIAA única coisa que os ricos deixam que os pobres tenham e mantenham.

DISCRIMINARChamar a atenção para osaspectos particulares que tornam, se possível, uma pessoa ou coisa mais censuráveis do que outras.

DISCUSSÃOUm método para demonstrar os erros dos outros.

DISPARATADOPensar que o homicídio é crime.

DISPARATESAs objectes a este excelente dicionário.

DISSIMULARestir uma camisa lavada por cima do carácter.

DISTÂNCIAA única coisa que os ricos deixam que os pobres tenham e mantenham.

DITADORO líder de uma nação que prefere a pestilência do despotismo à praga da anarquia.

DÍVIDAS(Devido à consideração que temos pelos sentimentos de um grande e respeitável número dos nossos subscritores e anunciantes, a definição desta palavra fica suspensa.)

DIVÓRCIOUm toque de corneta que separa os combatentes, fazendo-os lutar à distância.

DITADOUm dito popular corriqueiro, ou provérbio. (Figurativo e

coloquial.) É assim chamado porque obriga a não pensar muito. Seguem-se alguns

exemplos de velhor ditados agora renovados:

Um tostão poupado é um tostão para desperdiçar.

Mais vale tarde do que antes de ter sido convidado.

Ri melhor o que ri menos.Fala-se no Diabo e ele acaba por saber.

Metade de um pão é melhor do que um pão inteiro, se houver

outras coisas para comer.Entre dois males devemos

escolher ser o menor.Malha-se no patrão enquanto

o negócio lhe corre bem.Tudo vale a pena quando

alguém o pode fazer por nós.

AMBROSE BIERCE

DITADORlíder de uma nação que prefere a pestilência do despotismo à praga da anarquia.

DÍVIDAS(Devido à consideração que temos pelos sentimentos de um grande e respeitável número dos nossos subscritores e anunciantes, a definição desta palavra fica suspensa.)

DIVÓRCIOUm toque de corneta que separa os combatentes, fazendo-os lutar à distância.

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DUELO

AMBROSE BIERCE

ÉBRIOEmbriagado, bêbedo, tocado, borracho, toldado, com os copos, perdido, de rastos com uma carraspana, exaltado, encharcado, zonzo, atestado, langoroso, grogue, roscado, rubro, espumejante, bambo, mole, acabado, piegas, meloso, piedoso, alegre, etc.

ECONOMIAAdquirir o barril de uísque que não é necessário pelo preço da vaca que não se tem dinheiro para comprar.

EDITORUma pessoa que combina as funções judiciais de Mino, Radamante e Aecus, mas que é aplicável com um óbolo; um censor severo e virtuoso, mas tão caridoso que tolera as virtudes que encontra nos outros e os defeitos que encontra em si próprio.

EDUCAÇÃOAquilo que revela aos sábios e esconde aos tolos a sua falta de inteligência.

EFECTIVAMENTETalvez; possivelmente.

EFEITOO segundo de dois fenómenos que ocorrem sempre juntos e na mesma ordem. Do primeiro, ao qual se chama Causa, diz-se que gera o segundo – o que é tão sensato como dizer-se que, por se ter visto um cão a perseguir um coelho, o coelho é a causa do cão.

EGOÍSTADesprovido de consideração pelo egoísmo dos outros.

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EGOTISTAUma pessoa com mau gosto, mais interessada em si própria do que em mim.

ELECTRICIDADEA força que causa todos os fenómenos naturais cujas outras causas desconhecemos.

ELEFANTEO brincalhão do reino animal, com o seu nariz flexível e com pouco espaço para acomodar os dentes.

ELEITORIndivíduo que goza do privilégio

ELÍSIOPaís imaginário e encantador que os antigos acreditam, disparatadamente, ser a morada dos espíritos das pessoas

boas. Esta fábula ridícula e perniciosa foi varrida da superfície da Terra pelos Cristãos primitivos – que as suas almas sejam felizes no paraíso!

ELOGIOUm empréstimo que rende juros.

ELOQUÊNCIAA arte de persuadir oralmente os tolos de que o branco é a cor que aparenta ser. Inclui o dom de fazer qualquer cor parecer branca.

EMANCIPAÇÃOMudança que ocorre quando um servo passa da tirania exercida por outra pessoa para o despotismo exercido por si próprio.

AMBROSE BIERCE

Beberricar, embebedar-se, beber como uma esponja, apanhar uma bebedeira, beber até cair, beber uma golada ou um trago. Numa perspectiva individual, o emborcando é olhado com algum desagrado, mas as nações que emborcam estão na vanguarda da civilização e do poderio. Quando comparados com os cristãos beberrões, os muçulmanos abstémios vão-se abaixo como a erva perante a gadanha. Na Índia, cem mil britânicos, alimentados a bife e a brande, mantiveram o domínio sobre duzentos e cinquenta milhões de obstémios vegetarianos da mesma raça ariana.

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Com que facilidade os Americanos, entre duas goladas de uísque, empurraram os Epanhóis para fora das suas terras! Desde o tempo em que os Brutamontes atacavam a costa ocidental da Europa e adormeciam embriagados em todos os portos conquistados, tem sido sempre igual: por todo o lado se vê que as nações que bebem demais lutam muito bem e sem grandes problemas éticos.

AMBROSE BIERCE

EMPURRARUmas das duas coisas que melhor conduzem ao sucesso, especialmente na política. A outra é Puxar.

ENCOMIASTAUm tipo especial (mas não peculiar) de mentiroso.

ENGANARDizer ao povo soberano que não vamos roubar se formos eleitos.

ENTENDIMENTOUma secreção cerebral que permite, a quem a tem, distinguir um cavalo de uma casa a partir do telhado da casa. A sua natureza e as suas leis foram exaustivamente expostas por Locke, que cavalgava uma casa, e por Kant, que morava num cavalo.

ENTREVISTANo jornalismo, um confessionário no qual a impudência ouve os disparates da vaidade e da ambição.

ENTULHOCoisas sem importância, tais como as religiões, as filosofias, as literaturas, as artes e as ciências das tribos que infestam as regiões situadas a sul do Pólo Norte.

ENTUSIASMOUma doença de juventude que se cura com pequenas doses de arrependimento e umas aplicações exteriores de experiência.

EPICURISTAOpositor de Epicuro, um filósofo abstémio que, ao mesmo tempo que defendia que o prazer deveria ser o principal objectivo do homem, não perdia muito tempo a gratificar os sentidos.

EPITÁFIOUma inscrição num túmulo que demonstra que as virtudes adquiridas com a morte têm um efeito retroactivo.

EREMITAUma pessoa com vícios e manias que são sociáveis.

ERROUmas das minhas ofensas, que se distingue de uma das vossas por estas últimas serem consideradas crimes.

ERUDIÇÃOPó soprado de cima de um livro para dentro de um crânio vazio.

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ESCONDER-SEMover-se «de forma misteriosa», geralmente com os bens de outra pessoa.

ESCREVINHADORUm escritor profissional com opiniões contrárias às nossas.

ESCRITURASOs livros sagrados da nossa santa religião, que se distinguem dos escritos falsos e profanos em que se baseiam todos os outros credos.ESCRÚPULOSUma palavra caída em desuso por expressar uma ideia que já não existe.

ESÓFAGOAquela parte do canal alimentar que se situa entre o prazer e o negócio.

ESOTÉRICOParticularmente abstruso e consumadamente oculto. As filosofias antigas dividiam-se em dois ramos: exotéricas, que eram aquelas que os próprios filósofos conseguiam entenderem parcialmente; e esotéricas, que eram as que ninguém percebia.

Foram estas últimas que afectaram mais profundamente o pensamento moderno, tendo encontrado grande aceitação nos nossos dias.

ESPAÇOSOO Hades.

ESPELHOUma superfície

plana de vidro, na qual é encenado um espectáculo

efémero para deleite das desilusões do

homem.

ESPERANÇADesejo e expectativa combinados num só.

ESPELHO

AMBROSE BIERCE

ESPIAROuvir secretamente um catálogo dos criminosos e vícios de outra pessoa – ou de nós próprios.

DICIONÁRIO DO DIABO

72

Pelo buraco da fechadura, uma senhora ouviaO que, à vontade, uma amiga à outra dizia.

E, por querer saber do que elas conversavam,Descobri que era mesmo sobre si que falavam.

«Eu cá acho»,

disse uma,

«tal como o meu marido,Que ela é das tais que encostam o ouvido.»

Quando já não suportava mais, então, a senhoraDesencostou-se da porta, pois só queria ir-se embora.

«Não fico mais aqui»,

disse, amuando, por fim,

«A ouvir estas mentiras que dizem sobre mim!»

AMBROSE BIERCE

EXCESSO (DE TRABALHO)Uma maleita perioga, que atinge os altos funcionários do Estado quando querem ir pescar.

EXÉRCITOUma classe de pessoas improdutivas que, para defenderem a sua nação de uma invasão, devoram tudo aquilo que o inimigo possa querer.

EXILADOIndivíduo que serve o seu país por viver fora dele, sem que, no entanto, seja um embaixador.

EXEPECTATIVAEstado ou condição mental que, no cortejo das emoções humanas, é precedido pela esperança e seguido pelo desespero.

EXPOSTULAÇÃOUm dos muitos métodos pelos quais os tolos preferem perder os seus amigos.

EXTINÇÃOMatéria-prima com a qual a teologia criou o estado futuro.

EXTRAORDINÁRIOA forma como aquele idiota do Silva se vai safando; enquanto nós, que temos muito mais talento do que ele, não saímos da cepa torta.

ESTRADAUma faixa de terreno através da qual podemos ir de um sítio cansativo para um sítio inútil.

ESTRANGEIROUm soberano americano no seu período probatório.

ETNOLOGIAA ciência que trata das várias tribos do Homem, como a dos gatunos, a dos ladrões, a dos aldrabões, a dos burros, a dos lunáticos, a dos idiotas e a dos etnólogos.

EUCARISTIAUma festa sagrada da seita religiosa dos Teófagos.Em tempos, teve início uma infeliz discussão entre os membros desta seita, afinal, aquilo que comiam. Por causa desta controvérsia, foram já chacinadas quinhentas mil pessoas, estando a questão ainda por resolver.

EVANGELISTAAquele que traz as boas-novas, sobretudo (no sentido religioso) as que asseguram a nossa própria salvação e a maldição dos nossos semelhantes.

EVIDENTE (POR SI MESMO)Evidente para o próprio e para mais ninguém.

EXCENTRICIDADEUm método de distinção tão barato que os parvos o usam para acentuar a sua incapacidade.

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74

EUA PESSOA MAIS IMPORTANTE DO

UNIVERSO. VER NÓS.

AMBROSE BIERCE

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172

PORTUGUESESUma espécie de gansos nativos de Portugal. Quase não têm penas e não são muito bons para comer, mesmo quando recheados com alho.

A dificuldade desta entrada, tal como ocorre com algumas entradas que integram esta edição e com outras que foram excluídas, reside no facto de a ironia estar centrada numa questão meramente fonética: Portuguese (Portugueses) / Geese (Gansos) – com a terminação da primeira palavra a soar igual à segunda palavra, na pronúncia inglesa. Nalguns casos, torna-se possível resolver a situação com outro jogo de palavras que mantenham o sentido lúdico – por assim dizer – do jogo original; no presente caso, o tradutor assina a rendição neste posfácio; evitando a mácula explicativa ao fim da página e deixando ao leitor a restante exegese desta entrada tão edificante.

RUI LOPES

POSFÁCIO

(PARA ENVIAR UMA NOTA DE RODAPÉ)

NA PRIMEIRA TRADUÇÃO PORTUGUESA DESTE DICIONÁRIO DO DIABO, AINDA QUE ABREVIADA, NÃO PODERIA FALTAR

A ENTRADA QUE SUPOSTAMENTE DEFINE ESTE NOSSO POVO, SEMPRE ANSIOSO POR SABER O QUE OS OUTROS

PENSAM DELE LÁ FORA:

AMBROSE BIERCE

DICIONÁRIO DO DIABO

174

ESQUECIMENTOUm dom concebido por Deus aos devedores, para compensar o facto de serem destituídos de consciência.

AMBROSE BIERCE

DICIONÁRIO DO DIABOAMBROSE BIERCE

MAIO 2011


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