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Ed. 148 - Revista Caros Amigos

Date post: 21-Mar-2016
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Capa Marina Silva
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Page 1: Ed. 148 - Revista Caros Amigos
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GUTO LACAZ MARILENE FELINTO GLAUCO MATTOSO ANA MIRANDA JOSÉ ARBEX JR. GILBERTO VASCONCELLOS MARCOS BAGNO JOÃO PEDRO STEDILE RENATO POMPEU TATIANA MERLINO EDUARDO SUPLICY HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA CESAR CARDOSO JOEL RUFINO DOS SANTOS CAMILA MARTINS BRUNA BUZZO FREI BETTO GERSHON KNISPEL DANIELA BAUDOUIN ANA MARIA STRAUBE FIDEL CASTRO EMIR SADER MARCELO SALLES PLINIO TEODORO MARCOS ZIBORDI MC LEONARDO GUILHERME SCALZILLI LUCIA RODRIGUES LATUFF CLAUDIUS

ano XIII número 148 julho 2009R$ 9,90

PETROBRASPOR QUE A DIREITA ATACA A

DÍVIDA PÚBLICA

FUNK CARIOCA, O PERSEGUIDO

LUIZ MOTT:“AQUI É ONDE SE MATA MAIS HOMOSSEXUAIS”

PRISÃO-HOSPÍCIOESCONDE JOVENS INFRATORES

A FARRA DOS ESPECULADORES

AMAZÔNIAENTREVISTA EXCLUSIVA COM

MARINA SILVAAMAZÔNIAAMAZÔNIAAGRONEGÓCIO QUER ACABAR COM A

Novo sítio: www.carosamigos.com.br

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5maio 2009 caros amigos

Reunimos nesta edição da Caros Amigos algumas matérias que têm o mesmo denominador comum: a defesa dos recursos e do patrimô-nio do povo brasileiro.

Reconhecida internacionalmente por sua luta em defesa da Ama-zônia, a senadora Marina Silva (PT-AC), ex-ministra do Meio Ambien-te, analisa o atual processo de desmonte dos instrumentos de prote-ção ambiental e os ataques mais recentes dos predadores de sempre, que ela denomina de setores do agronegócio.

O crescimento econômico a qualquer preço, a realização de obras e atividades voltadas para a exportação (usinas hidrelétricas para empresas de extração mineral, extração da madeira, criação de gado e expansão de monoculturas da soja e da cana), estão acelerando a destruição da Amazônia, ao mesmo tempo em que proporcionam maior concentração da riqueza nas mãos de grupos empresariais na-cionais e estrangeiros.

A auditora federal Maria Lúcia Fattorelli – representante brasileira na auditoria da dívida pública do Equador - desvenda os vários me-canismos de transferência de recursos públicos para o setor privado, os esquemas de especulação financeira que elevaram a dívida públi-ca a cifras astronômicas, não apenas no Brasil, mas também em ou-tros países da América Latina.

A denúncia da auditora é seríssima. Ela deixa claro como o assalto aos cofres públicos tem sido praticado com a conivência das autorida-des brasileiras e de grupos econômicos que manipulam os poderes da República em benefício próprio. A evasão provocada pela dívida pú-blica está diretamente relacionada com o baixo investimento em edu-cação, saúde e nas demais áreas sociais.

Outra matéria da maior relevância procura esclarecer o que está por trás e quais são os reais interesses dos grupos de direita que pro-movem novos ataques a Petrobras. De olho nos lucros que a explo-ração do petróleo do pré-sal deverá proporcionar, o capital privado nacional e internacional procura fustigar a maior empresa estatal brasileira, certamente com a ajuda de parlamentares e da grande mídia neoliberal.

A revista oferece também aos leitores e leitoras reportagens sobre o assassinato de homossexuais no Brasil, a perseguição ao movimento funk do Rio de Janeiro, a mobilização para a Conferência Nacional de Comunicação, a prisão-hospício que São Paulo construiu para jovens infratores e o conjunto de artigos e colunas do nosso time de colabo-radores. Enfim, um conteúdo diferenciado, instigante, o contraponto necessário ao discurso da mídia grande neoliberal. Não deixe de ler.

CAROS AMIGOS ANO XIII 148 julhO 2009

EDITORA CASA AMARELA ­Revistas­•­LivRos­•­seRviços­editoRiaisfundadoR:­séRgio­de­souza­(1934-2008)diRetoR­geRaL:­WagneR­nabuco­de­aRaújo

EDITOR: hamilton Octavio de souza EDITORa aDjunTa: Tatiana Merlino EDITOREs EsPECIaIs: josé arbex jr e Renato Pompeu EDITORa DE aRTE: Lucia Tavares assIsTEnTE DE aRTE: henrique Koblitz Essinger EDITOR DE FOTOGRaFIa: Walter Firmo REPÓRTER EsPECIaL: Marcos Zibordi REPÓRTEREs: Camila Martins, Felipe Larsen, Fernando Lavieri, Luana schabib EsTaGIÁRIOs: Bruna Buzzo e Carolina Rossetti CORREsPOnDEnTEs: Marcelo salles (Rio de janeiro), Bosco Martins (Mato Grosso do sul), Maurício Macedo (Rio Grande do sul) e anelise sanchez (Roma) REvIsORa: Lucia Rodrigues sECRETÁRIa Da REDaÇÃO: simone alves DIRETOR DE MaRKETInG: andré herrmann PuBLICIDaDE: Melissa Rigo CIRCuLaÇÃO: Pedro nabuco de araújo RELaÇõEs InsTITuCIOnaIs: Cecília Figueira de Mello aDMInIsTRaTIvO E FInanCEIRO: Ingrid hentschel, Elisângela santana COnTROLE E PROCEssOs: Wanderley alves, Elys Regina LIvROs Casa aMaRELa: Clarice alvon síTIO: Paula Paschoalick aPOIO: Maura Carvalho, Douglas jerônimo e neidivaldo dos anjos aTEnDIMEnTO aO LEITOR: Lília Martins alves, Zélia Coelho assEssORIa juRíDICa: Marco Túlio Bottino, aton Fon Filho, juvelino strozake, Luis F. X. soares de Mello, Eduardo Gutierrez e susana Paim Figueiredo REPREsEnTanTE DE PuBLICIDaDE: BRasíLIa: joaquim Barroncas (61) 9972-0741.

jORnaLIsTa REsPOnsÁvEL: haMILTOn OCTavIO DE sOuZa (MTB 11.242)DIRETOR GERaL: WaGnER naBuCO DE aRaújO

CaROs aMIGOs, ano XIII, nº 148, é uma publicação mensal da Editora Casa amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de são Paulo, de acordo com a Lei de Imprensa. Distribuída com exclusividade no Brasil pela DInaP s/a - Distribuidora nacional de Publicações, são Paulo. IMPREssÃO: Bangraf

REDaÇÃO E aDMInIsTRaÇÃO: rua Paris, 856, CEP 01257-040, são Paulo, sP

A defesa do Brasil

07 Marilene Felinto comemora o golpe de mestre da comunicação da Petrobras.

08 Glauco Mattoso Porca Miséria.

Gilberto Vasconcellos desvenda Silva Mello, o Karl Marx da medicina.

09 José Arbex Jr. mostra como os brasileiros pagam pela falência da General Motors.

10 Marcos Bagno Falar Brasileiro.

Mc Leonardo fala da expansão das favelas e do Brasil politicamente incorreto.

12 Entrevista Maria Lucia Fattorelli Dívida Pública faz a farra dos especuladores.

16 Ivan Valente defende a instalação imediata da CPI da Dívida na Câmara Federal.

17 Renato Pompeu e suas memórias de um jornalista não investigativo.

Ana Miranda conta a história de um menino piloto que distribui cestas básicas.

18 João Pedro Stedile fala sobre a crise e a ofensiva do capital internacional.

Eduardo Suplicy comenta os filmes Garapa e Ave Poesia do Patativa do Assaré.

19 Hamilton Octavio de Souza Entrelinhas – A mídia como ela é.

Cesar Cardoso lembra que a mente temporária apaga a memória a cada momento.

20 Entrevista Luiz Mott O Brasil é o país onde mais se mata homossexuais.

22 Joel Rufino dos Santos critica o poder da televisão para eliminar o contraditório.

Guilherme Scalzilli analisa a guinada da política internacional dos Estados Unidos.

23 Gershon Knispel prevê um Estado de Israel binacional com mais apartheid.

24 Ensaio Fotográfico Latuff Visita aos campos de palestinos na Jordânia e Líbano.

26 Entrevista Marina Silva Crítica ao agronegócio pela destruição da Amazônia.

31 Plínio Teodoro Desmatamento acelerado nas fazendas de Daniel Dantas no Pará.

32 Frei Betto chama a atenção para a absolutização dos sistemas ideológicos.

Fidel Castro comenta o caso do casal de aposentados acusados de espionagem.

33 Daniela Baudouin analisa a ingerência da França no conflito do Sudão.

34 Ana Maria Straube O que está na pauta da Conferência Nacional de Comunicação.

36 Camila Martins A polêmica internação de menores infratores em unidade especial.

38 Lucia Rodrigues A direita parlamentar e a mídia neoliberal atacam a Petrobras.

41 Bruna Buzzo Documentário mostra a trajetória poética de Patativa do Assaré.

42 Marcelo Salles Movimento funk do Rio de Janeiro: perseguição e resistência.

44 Renato Pompeu Idéias de Botequim.

45 Emir Sader critica a falta de ética e a mercantilização da publicidade.

46 Claudius

sumárioFoto de capa ROBERtO JAYME

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caros amigos julho 2009 6

fale conosco

MulheresAproveito para parabenizá-los pela edição de

junho e pelas matérias impressionantes sobre o tráfico e a violência contra as mulheres. Também gostei muito de ver o trabalho do pessoal do NPC em destaque. Tive o prazer de assistir uma pales-tra de Vito Giannotti em 2007, e entendo que os jovens do Arraial do Cabo tenham se apaixonado pelo curso, pois os projetos que o Núcleo desen-volve são, de fato, fascinantes. Francine de Almeida, São José do Rio Preto/ SP

Brizola NetoParabéns pela excelente entrevista do Deputa-

do Federal Brizola Neto. É bom saber que ainda existe deputado com postura ética e leitura de um Brasil soberano, no meio de um Congresso com “alguns pilantras”, como no passado, afirmou o presidente Lula.Bruno Calderaro, Nova Friburgo/ RJ

Maria rita KehlRealmente excelente a entrevista de Maria

Rita Kehl no número de maio de 2009. Algumas pequenas observações. Com o crescente compro-misso da Organização Mundial da Saúde com a indústria farmacêutica, a expectativa que esta organização faz de que a depressão será a se-gunda maior causa de comorbidade não é exa-tamente um exercício de previsão, mas sim uma estratégia para que isto se torne realidade. Sen-do mais claro, a OMS está trabalhando para que esta meta seja alcançada, o que representará um aumento fabuloso no consumo de antidepressi-vos. E como isto pode acontecer? A própria Ma-ria Rita responde, ao demonstrar que as pesso-as tendem a se identificar com as enfermidades mentais, isto é, que elas podem ser produzidas socialmente e incrementadas.Paulo Amarante, Doutor em Ciências da Saúde

Marcos BagNoNa edição de maio da Caros Amigos, o lin-

güista Marcos Bagno mencionou, de maneira ad-mirável, a tristeza de se viver num país emergen-te com uma educação submersa. Eu não pude deixar de escrever com a intenção de acrescen-tar uma grande indignação no que diz respei-to aos cursos de licenciatura que vem forman-

do milhares de pessoas sem habilitações mínimas para exercer a profissão docente: inicia-se ain-da em 2009 a Universidade Virtual do Estado de São Paulo – UNIVESP – que pretende formar 35 mil professores através de cursos de licenciatu-ra ministrados pela Internet! Esse programa tra-ta-se de um grande exemplo de como as classes dirigentes brasileiras tiram o máximo proveito do abismo social de nosso país, valendo-se desse contexto por elas sustentado, para atingir o com-pleto sucateamento da educação brasileira.Daniela Perre

MarileNe FeliNtoGostaria de ressaltar que o seu artigo sobre a

situação dos professores no Estado de São Pau-lo retratou muito bem a perversidade do tucana-to no Brasil. Sou professora de história na cidade de Contagem (Grande BH) em Minas Gerais. Nes-te Estado a situação é a mesma, pois desde 2001 trabalho como contratada. Com o governo de Aé-cio Neves [a situação] tornou-se pior, pois foram criadas várias resoluções em que os professores são quase que obrigados a passar alunos que não conseguem aprender ou que possuem muita difi-culdade no aprendizado. O governador se recusa a fornecer o novo piso salarial e ainda cobra de-masiadamente de todos os professores Monica Valeska

José arBex Só gostaria de saber se o sr. José Arbex Jr. tem

alguma justificativa decente para tachar a justi-ficativa canhestra da justiça eleitoral para ca-çar Jackson Lago de “ishhperrrta” (assim, nessa grafia de fonética carioca)? Sei, sei... ele quis di-zer que foi uma atitude marota, metida a malan-dra, mas bastante vagabunda, né? Imagino que ao imitar nosso sotaque, seja exatamente essa a mensagem que passou no texto... Não quero ban-car o babaca politicamente correto, mas acre-dito que não sairia de seu texto nenhuma refe-rência a alguma atitude ridiculamente pilantra e arrogante, tipicamente “paulizta”, tá me “entein-deindo”, meu? Tá “enteindeindo” porque eu não achei graça na citação? Dá próxima vez que qui-ser soltar os cachorros em outro (justificadíssi-mo) ataque de fúria contra a injustiça do mundo, vê se toma mais cuidado pra não deixar seus pre-

conceitos babacas escaparem juntos, falô merrr-mão? Senão você acaba perdendo a razão.Fernando Miller

caros aMigosAo contrário do que pensa Ismael Santos Tei-

xeira (carta publicada na edição 146) sobre a re-vista Caros Amigos, sou fã da maneira juvenil que a revista trata as questões, das bandeiras e camisas juvenis que apóia. Considero uma revis-ta que se propõe de esquerda sem cair no autismo intelectual das academias, sem cair no intelectua-lismo excessivo. Continua e sempre continuará apoiando seus ídolos Che, Fidel, Marighela, La-marca e outros mais. É a única que se mantém firme naquele sonho adolescente de mudança do mundo, que mantém vivo os verdadeiros ídolos da esquerda. A única que não deixa esse sonho cair na armadilha de uma análise mais “madura” dos fatos, de se adaptar aos novos tempos. Que novos tempos? Os tempos continuam os mes-mos, guerras, fome, injustiças, capitalismo selva-gem, mundo da mercadoria, tudo isso em qual-quer canto do mundo. Se mudou, mudou apenas na aparência, adquiriu um formato diferente do mesmo conteúdo. Ser juvenil é tudo. Se amadu-recer significar a perda do caráter juvenil, então por favor, não amadureçam nunca. Felipe Telles

errataEm atendimento ao Ofício GABPR46-ASFM/

SP – 011629/2009, da procuradora da Repúbli-ca Adriana Scordamaglia, referente à reportagem A Protogênese da Operação Satiagraha, publicada na edição 138, de setembro de 2008, informamos que ocorreu um equívoco no fechamento da ma-téria e que, em momento algum, obtivemos qual-quer informação de que o juiz Alexandre Cassetari estivesse implicado com o vazamento da chama-da Operação Satiagraha. Por isso, pedimos des-culpas ao magistrado, ao advogado Nélio Macha-do, também referido na reportagem, e aos nossos leitores.

A entrevista com o ator Wagner Moura (edição 147) foi realizada na FR Produções, no bairro da Gávea, Rio de Janeiro e não na produtora do ator, como foi publicado.

Caros leitores

Nov

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amig

os.c

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redação

Comentários sobre

o Conteúdo editorial, sugestões

e CrítiCas a matérias.

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Page 8: Ed. 148 - Revista Caros Amigos

7junho 2009 caros amigos

Pela primeira vez os procedimentos do Es-tado foram mais rápidos do que o ingresso da mídia no acontecimento ou no fato. A inversão é histórica, até porque aconteceu no âmbito do esclarecimento públi-co, da chamada transparência na divulgação da infor-mação, no oposto mesmo da censura.

Foi o que ocorreu quando do lançamen-to de um blog criado pela Petrobras (http://petrobras-fatosedados.wordpress.com/) em junho para divulgar em tempo real, o tempo da verdade (e não no tempo da manipulação e da mentira dos jornalões, das revis-tonas e dos telejornais), e na íntegra, tudo o que era perguntado à empresa pelos jornalistas entrevistadores e tudo o que era respondido a eles. Golpe de mestre da comunicação da Petrobras: a divulgação das pergun-tas e respostas saía antes da publicação ou veiculação nos órgãos de imprensa. A imprensa desesperada ga-niu, ferida de morte. Soltou editoriais coléricos. Tudo inútil. A lição estava dada. Ainda que a Petrobras te-nha desistido depois de sair na frente da imprensa gol-pista. Viva o Estado (não por acaso petista), viva a Pe-trobras e a democracia na internet.

Os comentários de apoio à ação da Pe-trobras explodiram em numerosos sítios, blogs e lis-tas de esquerda: “Também são publicadas no blog as cartas enviadas aos jornais pela Petrobras, corrigin-do informações erradas, interpretações equivocadas e acusações sem fundamento. Utilizando-se de toda a potencialidade da Internet, o blog esfarelou quase instantaneamente uma parte do poder de manipula-ção e falsificação de informações, prática comum aos jornais, revistas e redes de TV, especialmente nos úl-timos anos e contra o governo Lula e o PT”.

A imprensa que se enxovalha a si mesma cada dia mais, toda ela sinônimo de imprensa

de escândalos, toda ela imprensa de sensacionalismo e distorção, há tempos já não é de interesse público, não informa ao cidadão e nem, muito menos, substi-tui o debate público.

A imprensa desacreditada, dos jor-nalões, por exemplo, que hoje em dia não escrevem se-não para si próprios, amarga ainda a queda vertiginosa nas vendas. O jornalão que mais vende não atinge nem mesmo 1% da população do país. A análise abaixo des-trincha bem os números da derrocada: “Os últimos da-dos sobre a circulação média de jornais divulgados pelo Instituto Verificador de Circulação (IVC) para o mês de abril revelam que a Folha de S.Paulo, O Globo e O Es-tado de S. Paulo perderam, respectivamente, 10,84%, 7,75% e 16,93% de circulação média diária em abril de 2009, se comparada aos números de abril de 2008. Ne-nhum deles atinge a circulação de 300 mil exemplares diários. Os números arredondados são, respectivamente, 289 mil, 259 mil e 214 mil exemplares. Se supusermos que cada exemplar é lido, em média, por quatro (?) pes-soas, o maior jornalão brasileiro teria hoje cerca de um milhão, 156 mil leitores/dia. Isto significa atingir poten-cialmente cerca de 0,604% do total estimado da popu-lação brasileira, que é de 191.231.246 habitantes (...).” (Venício de Lima, Observatório da Imprensa). O comen-tarista lembra ainda que, no ano 2000, a Folha tinha uma circulação média de 429.476 exemplares/dia.

A imprensa da avacalhação, que, por nostalgia, ainda chama a si mesma de “grande impren-sa”, amofinou-se também diante do corajoso ato do governo Lula de desconcentrar as verbas publicitárias, as quais, em governos anteriores, só se destinavam às grandes corporações de mídia. A resposta de Franklin Martins, ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, a um jornalão de São

Paulo que questionava a redistribuição da verba, é la-pidar: “(...) os anúncios da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), até 2003 concentrados em apenas 499 veículos e 182 municípios, em 2008 alcançaram 5.297 órgãos de comunicação em 1.149 municípios – um aumento da ordem de 961%. As verbas publicitárias de todos os órgãos ligados ao gover-no federal permaneceram no mesmo patamar do gover-no anterior, em torno de R$ 1 bilhão ao ano. Não hou-ve aumento de verbas. O que mudou foi a política. Em vez de concentrar anúncios num punhado de jornais, rá-dios e televisões, a publicidade do governo federal al-cança agora o maior número possível de veículos. Pelo mesmo custo, está falando melhor e mais diretamente com mais brasileiros. Acompanhando a diversificação que está ocorrendo nos meios de comunicação.”

Pela primeira vez, em duas décadas, vi jor-nalistas exaltarem, enfim, a ocupação corriqueiramen-te patética de ficar escrevendo o que (e como) o dono do jornalão manda. Eis o que disse um deles: “Obriga-do. Poucas vezes em 32 anos de profissão pude sen-tir o orgulho que estou sentindo hoje por ser jornalis-ta, graças à iluminada idéia e a coragem de realizar o blog da Petrobras. Esse é um pequeno grande exemplo da força do caminho da democracia, da transparência, da liberdade da informação, do compromisso com os fatos e as informações corretas. O duro é que isso ain-da hoje no Brasil é profundamente subversivo. É duro mas é bom: bastou um simples blog para esfarelar uma parte do poder dos oligopólios da mídia. Agora é espe-rar a reação, porque eles são brutos e não sabem per-der. Parabéns.” (Sérgio Alli)

Marilene Felinto é [email protected]

Ferida de morte,imprensa golpista ganiu

Marilene Felinto

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Novo sítio: www.carosamigos.com.br

Page 9: Ed. 148 - Revista Caros Amigos

caros amigos julho 2009 8

Si até o Obama se rendeu ao charis-ma do Lula, não serei eu, que não tenho olho azul nem visão, quem irá fazer cu doce: acho que, crises à parte, melhor um terceiro man-dato delle que qualquer outra hypothese. Mas Obama fez o que eu faria: ao invés de con-siderar a cor da pelle ou dos olhos, apertou-lhe a mão e a barriguinha para chegar a tal obser-vação. Reconheçamos, pois, aquillo que nin-guem mais nega: barriga faz parte da boa pin-ta, e não apenas num presidente charismatico. Emquanto enxerguei e tive alguma attrac-ção pelas mulheres, eram as gordinhas que me captivavam. Antes de me assumir como gay, só consegui namorar uma hipponga magra que nem a Joni Mitchell, mas meu sonho era namorar uma gorda que nem a Mama Cass. Sempre tive tesão pelas doceiras e quitutei-ras rechonchudas, tanto quanto tenho appe-tite pelas guloseimas que ellas preparam. Mi-nha melhor amiga na cegueira, aquella que me

frictava os bolinhos de chuva, é a Bia, uma gor-duchesima judia de olhos azues. Para as gordu-chas fiz todo um cyclo de sonetos, coisa que não faria para as esqueleticas estrellas das passarellas. Concluo que, na politica como no cardapio, quan-to menos dictatorial o regimen, mais tem a nossa cara. E só não sou tão gorducho nem tão sympa-thico quanto o Lula ou a Bia por causa do sangue ruim, pois, alem de cego, soffro duma prisão de ventre que prejudica minha capacidade de des-fructar plenamente dessas liberdades democra-ticas e gastronomicas. O que não me impede de applaudir os bolinhos de chuva, nem de concor-dar que o Lula, como diz o Obama, é mesmo o cara... Nossa lingua é muito expressiva: a pala-vra “enfezado” allude a alguem que não caga di-reito. Emfim, não basta poder, nem saber comer, nem gostar da comida: quem não caga livremen-te só pode se soltar mesmo no verso.

Glauco Mattoso é poeta, letrista e ensaísta.

porca miséria!Glauco Mattoso

Soneto para um regimen dictatorial (1781)

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Gilberto Felisberto Vasconcellos

De Rolim, tarimbado inteligente da editora Insu-lar, SC, me vem a notícia de que o meu livro sobre o mé-dico-filósofo Silva Mello está vindo a lume. O titulo é montagem da poesia de Oswald de Andrade com o sam-ba de Nelson Cavaquinho. Eis o título do livro que escre-vi durante quinze anos: Nossa Vida De Cada Dia Entre O Supermercado e a Drogaria.

Você come uma comida envenenada do super-mercado e vai se curar na drogaria com o remédio que não cura. Silva Mello ( 1886-1973) é o Karl Marx da me-dicina, embora não fosse marxista nem comunista. É que fez (e denunciou na prática médica) a anatomia da mer-cadoria na medicina. A formação do médico manipula-do pelo monopólio do fármaco. É a saúde publicitária, na qual se coisifica a pessoa e personifica a coisa. É o que Marx chamava de fetichismo da mercadoria. Silva Mello dirigiu durante 40 anos a Revista Brasileira de Medicina e não permitiu que nela houvesse anúncio.

Quem produz a comida é a mesma multinacio-nal que produz o remédio. A comida é desnaturalizada, transgênica, produzida com agrotóxico, baseada no pe-tróleo. O mais louco é que as empresas alimentárias e farmacológicas são as que fabricam armas para o impe-rialismo, como a Monsanto que fabricava Napalm para despejar nos vietcongues. São as mesmas que financia-ram a derrubada de governos progressistas na América Latina como João Goulart e Salvador Allende.

Silva Mello mostrou, no corpo humano, os efei-tos deletérios da aliança entre a drogaria e o supermerca-do, incluindo igreja e faculdade de medicina. É difícil achar um professor de medicina que tenha ouvido falar do siste-mão. Trata-se de um marginal específico no Brasil. Oswald de Andrade teve uma vida conturbada, ficou pobre. Glau-ber Rocha, nasceu pobre, na periferia de Vitória da Con-quista. Silva Mello era médico, formado em Berlim, clini-cou na Suíça, onde um de seus pacientes foi Rockefeller. Fez a maior clinica de gente rica do Rio. Seu automóvel era um Buick de oito mil quilos. Passava os fins de semana em uma datcha luxuosíssima em Petrópolis, onde escre-veu seus livros. Alguns foram traduzidos em alemão e in-glês. Em 1960 entrou para a Academia Brasileira de Letras. Antes foi procurado por Einstein em sua casa em Laranjei-ras, onde mais tarde morou Roberto Marinho. Na feijoada, Einstein encheu a cara de caipirinha, depois quis sentar a uma rede boliviana de dormir, quase caiu. Silva Mello re-parou: o cientista da relatividade não conseguiu se equili-brar na mecânica primitiva da rede.

Se você comesse bosta seria melhor

Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor.

“Balança mentirosa!”, a gorda exclama.“Só pode estar desregulada, a joça!”Amigas, condoidas de seu drama,lhe dão, para comer, o que inda possa...

Cortado o sal, ja quasi nada adoça.Temperos reduziu e, a cada grammaa mais no prato, alguem se espanta: “Nossa!”Patrulham a coitada até na cama...

Se queixa o namorado, outro gordão,que ja nem sobra espaço no colchãoe que ella ronca feito uma leitoa...

“Assim não dá! Me chamam de baleiae, emquanto não estão de pança cheia,mais alto é o ronco que, la dentro, echoa...”

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9junho 2009 caros amigos

José Arbex Jr.

Entre tantas e intermináveis crises, o 1º de junho será para sempre marcado como o fim de uma era do capitalismo: nesse dia, a General Motors de-clarou-se quebrada. É um fato de imensa amplitude his-tórica, absolutamente subestimada pelos meios de co-municação brasileiros. Por ignorância, má-fé ou – o que é mais provável – uma mistura de ambos, a mídia dos patrões preferiu abordar a nova queda de Golias como um mero desdobramento, na esfera industrial, da crise econômica mundial, ou como algo anedótico, inspirador de nostalgia. Foi muito mais do que isso: a falência da GM assinala, simbolicamente, a ruína um modelo intei-ro, sobre o qual estava ancorado o “american dream”, o fantástico motor que estruturou o mercado consumidor estadunidense e que estava na base do desenvolvimen-to do capitalismo em escala planetária.

Como contrapartida ao desastre da GM, os meios de comunicação também tentaram criar uma imagem “salvacionista” do presidente Barack Obama: ele seria uma reedição de Franklin Delano Roosevelt, um estadista capaz de apontar a saída da crise median-te a valorização do mundo do trabalho, em oposição ao capital financeiro. Assim, a estatização da GM (60% de suas ações passaram ao controle do Estado) assinalaria um novo período na história mundial do capitalismo, cujo sentido seria definido por uma estratégia supos-tamente neokeynesiana, de investimentos na produção, controle do mercado especulativo e benefícios assegu-rados aos trabalhadores. Nada mais falso, irreal.

Ao longo do século 20, a indústria au-tomobilística moveu a economia mundial. Basta pen-sar no circuito do petróleo (combustíveis, pavimenta-ção de vias, a vasta indústria de material plástico). Ou na siderurgia, com todos os setores associados (autope-ças, funilaria). Ou, ainda, no setor da informática, com motores cada vez mais regulados por chips e microcom-putadores (os bilhões gastos nas disputas de Fórmula 1 têm pelo menos uma utilidade concreta: servem para projetar e testar equipamentos cada vez mais sofistica-dos, com futuro emprego na fabricação de automóveis comerciais). A indústria automobilística também mobi-liza as mais avançadas tecnologias empregadas nas li-nhas de montagem, em total sintonia com a robótica e a indústria bélica. Em 1941, logo após a entrada dos Es-tados Unidos da Segunda Guerra, a GM mobilizou toda a sua linha de produção para a fabricação de tanques de guerra, blindados e peças para aviões.

Para além de seu lugar na produção propria-mente dita, a indústria automobilística também é asso-ciada aos sistemas de crédito que financiam e subsidiam o comércio do automóvel. Os maiores bancos do mun-do – associados a fundos de pensão, a empreiteiras, aos “fundos de derivativos” (os hedge funds, responsáveis pela orgia especulativa que levou o sistema ao desas-tre) – empataram seus capitais nesse comércio. Estimu-lados por campanhas publicitárias multibilionárias, que prometem a felicidade aos compradores de determina-da marca ou modelo, clientes assumem dívidas a serem pagas em 70, 80 ou 90 meses, a taxas de juros que, no Brasil, ultrapassam os limites da mais desavergonhada agiotagem. Os modelos são, deliberadamente, fabrica-dos para rapidamente ficarem “velhos”, assim estimu-lando novas compras e o empilhamento de sucata.

Pois bem, foi esse modelo, em seu con-junto, envolvendo todos os circuitos industriais e eco-nômicos mencionados (petróleo, siderurgia, informática, publicidade, especulação e agiotagem institucionaliza-da) que deu sinal de esgotamento, com a falência da GM. Há, em todo o planeta, uma crise imensa de super-produção de automóveis, num quadro em que as famí-lias de classe média e de trabalhadores, em todo o mun-do, já atingiram um teto de endividamento que não lhes permite mais participar da orgia do consumo.

“Tomemos o exemplo do automóvel na Alemanha, país que com a Suécia é o mais dependente de seu uso. O retrocesso no setor de produção do auto-móvel na Alemanha participou com 0,8% da contração do PIB alemão no quarto trimestre de 2008. Deve-se so-mar 0,1%, com a inclusão da compressão dos serviços ligados à venda: as concessionárias. O cálculo é simples: isso equivale a 33% da queda do PIB no último trimestre na Alemanha”, nota o economista Charles-André Udry. O tamanho da encrenca pode ser entendido quando se considera que a Alemanha enfrenta hoje sua pior reces-são desde o final dos anos 40, e que a indústria do au-tomóvel emprega cerca de 860 mil trabalhadores (2,6 milhões, considerando também os empregos indiretos). Nos Estados Unidos são 710 mil empregos diretos e 256 mil na França. Quando se leva em consideração a proliferação das montadoras na “periferia” do capita-lismo e o impacto da economia do automóvel nesses países (entre os quais, Brasil, México e Argentina, para ficar só na América Latina), a coisa toda adquire pro-porções ainda mais catastróficas, nem de longe ana-

lisadas pelos “especialistas” da mídia brasileira.Já Obama não é o novo Roosevelt. Nem pode-

ria ser. Em primeiro lugar, Roosevelt foi “estimulado” a promover o New Deal, nos anos 30, pela vitória da Re-volução de 1917 e pelo grande prestígio do socialis-mo entre os trabalhadores dos Estados Unidos. Havia o risco concreto de construção de um importante mo-vimento revolucionário nas terras de Tio Sam. Hoje, o movimento sindical estadunidense ainda é controlado por máfias associadas ao Partido Democrata, que acei-tam a diminuição de garantias e de direitos trabalhis-tas (impostos pelo “pacote de salvação” de Obama), em nome da preservação do emprego. Além disso, à épo-ca do New Deal, o capital financeiro não tinha adqui-rido a absoluta predominância que tem hoje: a indús-tria era o setor de maior importância e poder político. O dólar não era a moeda de troca universal (passou a sê-lo em 1944), o que atribui a Obama muito maior po-der de jogar com a economia mundial. Nem os Estados Unidos eram a potência com a incontrastável hegemo-nia militar que é hoje.

Os analistas da mídia ignoram estas pe-quenas particularidades históricas. Fingem que infor-mam, quando desinformam. Pouco ou nenhum desta-que foi dado, por exemplo, ao curioso fato de que o BNDES (entre outros bancos estatais) é um dos princi-pais financiadores da GM do Brasil (sob condições bem mais “amenas” do que as praticadas nos Estados Unidos, segundo os próprios dirigentes da GM brasileira). Ora, na medida em que a GM torna-se propriedade dos Es-tados Unidos, isso significa que nós, contribuintes, pas-samos a financiar, via bancos estatais, ninguém menos que o governo dos Estados Unidos. É mole? E os “espe-cialistas” tampouco informam que a sobrevida da GM e de outras montadoras no Brasil deve-se à renúncia fis-cal, que significa subtrair fundos para obras públicas, educação e saúde, além de o governo permitir a orgia de endividamento descontrolado de uma classe média que sentirá o baque nos próximos meses.

Em resumo, a falência da GM anuncia a falência do “american dream” e do modelo a ele associado. Enquan-to isso, embalado pelo canto de sereia de uma mídia mentirosa, incompetente e comprometida até o pesco-ço com o capital internacional, o Brasil permanece dei-tado em berço esplêndido.

José Arbex Jr. é jornalista.

Nem a morte de Golias acorda o Brasil

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caros amigos julho 2009 10

Mc Leonardo

É mesmo uma pena que nossos melhores di-cionários de referência, o Aurélio e o Houaiss, os-cilem entre a tentativa de preservação das pres-crições tradicionais e a vontade de incorporar e abonar as formas inovadoras já consagradas no uso do português brasileiro. Digo isso porque, ao tratar do substantivo óculo(s), ambos os di-cionários assumem o tom mais prescritivista e autoritário possível, em franca contradição com as análises mais bem feitas que encontramos em outros verbetes:

Aurélio Século XXI: “No Brasil, pelo menos, diz-se, erroneamente, o óculos, este óculos, meu óculos” (verbete óculos).

Houaiss: “A palavra óculos é pluralia tan-tum* ... sendo, portanto, erro a discordância de número (um óculos) que se tem vulgarizado no português coloquial do Brasil (formas corretas: uns óculos, meus óculos, um par de óculos)” (verbete óculo).

*Pluralia tantum são as palavras que só são usa-das no plural como bodas, anais, costas, férias.

Como diria nosso herói Macunaíma: “Ai, que preguiça!” Por que essa insistência em achar que esse importante dispositivo para melhorar a vi-são (que eu uso há quarenta anos!) tem que ser considerado como um par? Por que não chamá-lo então de binóculo, já que também existe o monóculo?

O que aconteceu com óculos foi o mesmo que aconteceu com tesouras, cuecas, calças, cerou-las, tenazes, listados pelo dicionário Houaiss no verbete pluralia tantum. Nesse verbete, a análi-se, felizmente, não recorre à imposição do que é “correto” e à condenação do “erro”, sendo, ao contrário, isenta desses preconceitos: plura-lia tantum.

Rubrica: gramática. Expressão latina com que são referidos os substantivos de uma língua cuja forma é um plural morfológico, mas que seman-ticamente podem denotar uma única unidade; trata-se sempre de referentes formados de partes simetricamente duplicadas (p.ex.: tesouras, cue-cas, calças, óculos, ceroulas, tenazes).

Uso. Embora o emprego do pl[ural] para in-dicar uma só parelha seja normal no portu-guês, registra-se uma dicotomia de tendência: de um lado, para obviar possíveis ambiguida-des e explicitar a unidade, o locutor refere-se a um par de tesouras, de alicates, de pinças etc.; de outro, esp[ecialmente] no port[uguês] do Brasil, consuma-se o quase geral emprego

do sing[ular] nos mesmos casos: uma tesoura, uma tenaz, a minha calça, a cueca.

É uma pena que não se tenha mencionado também o “quase geral emprego do singular” no caso de óculos. A razão do nosso uso de ócu-los no singular está nessas palavras do verbete: “substantivos cuja forma é um plural morfoló-gico, mas que semanticamente podem denotar uma única unidade”.

Pronto, gente, é só isso: é semântica! A se-mântica estuda a relação entre as palavras e as coisas do mundo que elas designam. Se nós con-cebemos o óculos como uma coisa só, nossa ló-gica linguística vai querer corresponder à nos-sa lógica de percepção da realidade: se o objeto é considerado como uma unidade, a palavra que o designa só pode estar no singular!

Vamos parar com essa insistência boboca, deixar todo mundo usar seu óculos em paz e cui-dar de coisas mais importantes? Por exemplo: so-mente 8% das escolas com as melhores médias do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) em 2009 eram públicas. Não é perdendo tempo ten-tando convencer os alunos de que a palavra ócu-los só pode ser usada no plural que nosso ensino público vai sair do fundo do poço!

Marcos Bagno é linguista e escritor. www.marcosbagno.com.br

falar brasileiroMarcos Bagno

Deixem o meu óculos em paz!

No final dos anos 60, já assassinavam muita gente nas favelas. Existiam os assaltantes, os jogadores de ronda, e os ladrões de varal, e a maioria dos comerciantes tinha uma garrucha pra se defender. As favelas estavam crescendo e os po-deres eram disputados a bala ou a facada, todo dia tinha gente morrendo. Crimes passionais, vingan-ça, ou disputa de terra, levaram a vida de muita gente. Comparando com os dias de hoje em que a população favelada é bem maior, posso dizer que proporcionalmente morria o mesmo número que morre hoje.

A imprensa estava censurada, os que morriam, muitas vezes nem documento ti-nham, a polícia estava atrás dos comunistas, es-condiam tudo, e ninguém que vivia fora da favela sabia o que se passava ali. Além do governo norte-americano, quem financiava a polícia para capturar e torturar os tais comunistas eram os empresários, uns porque queriam aquele regime de total loucu-ra dos militares, e outros diziam não ter escolha, pois seriam perseguidos e chamados de subversi-vos, mas a maioria pagava por interesses pessoais, licitações, contratos etc... Tudo estava em jogo, era melhor financiar aquela loucura ou teriam diversos problemas em suas empresas.

Até então nas favelas se comen-tava que “Fulano” fumava uma droga, que “Si-crano” tinha um revólver e vendia a tal droga, era o mercado de venda varejista de drogas que esta-va chegando com um poder que ninguém tinha ali dentro: o poder financeiro.

Para os comerciantes foi um grande negócio: ninguém mata ninguém, ninguém rouba ninguém, ninguém estupra ninguém, enfim, quem decidia era o comércio da droga. “Temos nossas re-gras e quem não quiser cumprir pode ir embora ou vai morrer”, diziam os vendedores de drogas.

Alguns demoraram pra enten-der, tentaram resistir, e acabaram morrendo. (Continua)

MC Leonardo é compositor, autor, com seu irmão MC Junior, de funks de protesto, como o Rap das Armas. [email protected] - http://mcjunioreleonardo.wordpress.com

Brasil, politicamente

incorreto - Parte I

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em entrevista exclusiva, a auditora da Receita Federal e coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lucia Fattorelli, conta como

foi sua participação, a convite do presidente Rafa-el Correa, na comissão oficial de auditoria da dívida do Equador, em 2008. Presidentes de outros países, como Bolívia, Venezuela e Paraguai, demonstram a intenção de seguir o exemplo equatoriano. Para Ma-ria Lucia, é preciso que o Brasil cumpra a Constitui-ção Federal, que prevê a auditoria, para que a socie-dade pare de pagar a conta à custa da privação de direitos sociais elementares, conta esta que a atual crise tende a tornar ainda mais cara.

Caros Amigos: Como se sentiu ao participar da auditoria da dívida do Equador, enquanto o Brasil continua a pagar, todos os anos, milhões de reais como juros de sua dívida?

foi subdividida em subcomissões que se dedicaram especificamente a cada tipo de endividamento: mul-tilateral (dívida externa contratada com FMI, Ban-co Mundial, Corporación Andina de Fomento e ou-tros organismos multilaterais); bilateral (dívida entre o Equador e outros países ou bancos públicos de ou-tros países); comercial (dívida contratada com ban-cos privados internacionais) e interna.

O que foi apontado pela auditoria?O resultado de todas as subcomissões apontou

impressionantes ilegalidades e ilegitimidades veri-ficadas em processos que sempre beneficiaram o setor financeiro privado, as grandes corporações e empresas privadas, em detrimento do Estado equa-toriano e de seu povo, carente de tantos serviços públicos e de condições de vida digna, apesar das riquezas nacionais, como o petróleo. A sangria pro-

Maria Lucia Fattorelli: A realização da audito-ria oficial da dívida pública equatoriana foi um dos principais fatos políticos da história da América La-tina, pois significa um importante passo no sentido de nossa verdadeira independência e retomada de nossa soberania. Sem dúvida foi uma imensa honra ter sido designada pelo presidente Rafael Correa Del-gado para a comissão da auditoria da dívida equa-toriana, CAIC, para realizar a auditoria integral de sua dívida pública interna e externa, visando à bus-ca da verdade sobre o endividamento público. Esse trabalho representou um desafio imenso, pois o de-creto presidencial determinou a realização de uma auditoria dos últimos 30 anos do processo de endivi-damento, envolvendo a investigação de aspectos fi-nanceiros, contábeis, jurídicos e também seus impac-tos sociais e ambientais. Considerando que teríamos apenas um ano para realizar essa tarefa, a comissão

A auditora da Receita Federal mostra como funcionam os mecanismos que colocaram o Brasil e outros países da América Latina reféns do capital financeiro Max Gimenes | Fotos Roberto Jayme

DÍVIDA PÚBLICA faz a farra dos especuladores

entrevista MARIA LUCIA FATTORELLI

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13junho 2009 caros amigos

vocada pela dívida não permitiu que esses recursos servissem ao povo equatoriano. Uma das consta-tações mais importantes da comissão foi a incrível semelhança do processo de endividamento equato-riano com o brasileiro e o dos demais países lati-no-americanos. No caso da dívida externa comer-cial - com bancos privados internacionais de cuja investigação participei, a dívida atual representada por títulos Bonos Global é resultado do endivida-mento agressivo iniciado no final da década de 70, durante a ditadura militar, majorado pela influência da elevação unilateral das taxas de juros pelo Fede-ral Reserve a partir de 1979, por onerosas renego-ciações ocorridas na década de 80, quando o Esta-do equatoriano assumiu inclusive dívidas privadas; seguido de renúncia à prescrição dessa dívida em 1992 e sua transformação em títulos negociáveis, denominados Bonos Brady em 1995, emissões de Eurobonos e nova transformação em Bonos Global em 2000. A dívida externa comercial equatoriana atual é fruto de sucessivas conversões equivocadas de uma mesma dívida que foi crescendo em função da alta de juros internacionais, assunção de dívidas pelo Estado, por seu valor nominal integral, inclu-sive, dívidas privadas, processo que no Equador se denominou “Sucretización”.

Qual a relação com a dívida brasileira?O endividamento externo comercial do Brasil se-

guiu passos idênticos, verificando-se a coincidência de datas, nomes dos convênios e dos títulos da dí-vida, termos e condições estabelecidas nos diversos contratos, além de interferência expressa do FMI; enfim, quando analisava os documentos do endivi-damento equatoriano parecia que estava lendo os mesmos documentos aos quais já tivemos acesso no Brasil durante os trabalhos da Auditoria Cidadã da Dívida. Diante de tantas semelhanças, o ideal é que os demais países também realizem auditoria de suas dívidas públicas, pois o endividamento tem sido um mecanismo contínuo, utilizado para sugar nossas riquezas e travar o desenvolvimento do nosso con-tinente. Várias iniciativas estão se conformando a partir do primeiro passo dado pelo presidente Rafa-el Correa: o Paraguai já está realizando uma inves-tigação oficial sobre sua dívida externa, e na últi-ma reunião da ALBA (Alternativa Bolivariana para os Povos de Nossa América), em novembro de 2008, Venezuela e Bolívia também anunciaram a inten-ção de fazer a auditoria integral de suas dívidas. O Brasil poderia estar em outro patamar de justiça social e desenvolvimento econômico se a auditoria da dívida prevista na Constituição Federal de 1988 tivesse sido realizada. É uma lástima que nenhum dos governos, nesses 20 anos, tenha respeitado esse preceito fundamental.

O que é e como funciona na prática a auditoria de uma dívida?

Auditoria da dívida, em resumo, significa a inves-tigação de todos os processos de contratação, rene-gociação, troca e rolagem de dívida pública – inter-na ou externa. A auditoria se dá com base na análise de documentos oficiais (contratos, títulos e corres-pondências oficiais, por exemplo) e registros existen-tes em livros de escrituração contábil, além de dados estatísticos e outras publicações existentes. A audi-toria da dívida envolve também a análise de cifras (valores contratados/pagos; comparações entre o va-lor renegociado e o valor de mercado, comissões di-versas, taxas de juros), estudo e análise da legislação de regência e outras questões jurídicas aplicáveis e, adicionalmente, visa à identificação dos participan-tes nos diversos processos relevantes.

Quais são os objetivos de uma auditoria?A auditoria deve abranger um período estabe-

lecido e ter objetivos claros. No caso equatoriano, o prazo estabelecido foi de trinta anos – 1976 a 2006 – e os principais objetivos foram os seguintes: 1) Efetuar uma auditoria integral dirigida a exami-nar e avaliar o processo de endividamento público com a finalidade de determinar sua legitimidade, le-galidade, transparência, qualidade, eficácia e efici-ência, além dos impactos econômicos e sociais. 2) Efetuar periodicamente relatórios nos quais cons-tem os avanços obtidos, com as recomendações e sugestões que considerem pertinentes, e um rela-tório final com conclusões, determinando as res-pectivas responsabilidades. 3) Propor normas e po-líticas públicas orientadas a fortalecer a auditoria sobre os créditos públicos como função permanen-te do Estado.

Como foi feita a apuração da dívida do Equador?

Com a finalidade de cumprir a delegação enco-mendada pelo presidente do Equador, a CAIC rea-lizou exames de livros e documentos contábeis no Ministério de Finanças, Banco Central do Equador e outros registros e documentos disponíveis na Pro-curadoria Geral do Estado, Controladoria Geral da Nação e Congresso Nacional. Ante as graves defici-ências de controle interno, a CAIC investigou tam-bém outros registros históricos existentes em livros, publicações e páginas da web, com o objetivo de buscar evidências de vinculações, conjunturas, si-tuação de firmas e entidades financeiras envolvi-das nas negociações da dívida externa equatoriana. O resumo executivo do relatório da CAIC e outros documentos sobre o processo histórico desenvolvi-do no Equador estão disponíveis na página da Au-ditoria Cidadã da Dívida no endereço www.divida-

auditoriacidada.org.br. Essa experiência histórica pode ser considerada vitoriosa, pois além de já es-tar inspirando outras nações, está permitindo ati-tudes soberanas por parte do governo equatoriano, como a suspensão do pagamento dos juros dos bô-nos Global, representação atual da dívida externa com bancos privados internacionais, fruto de con-tínuas ilegalidades e até indícios veementes de prá-ticas fraudulentas.

Como a auditoria pode auxiliar na reversão da dolarização do Equador?

De fato, a política econômica do Equador ficou muito restrita a partir da dolarização e da perda de sua própria moeda, o que afetou muito a sobera-nia do país, embora ainda cumpra importante papel na execução de políticas e instrumentos econômi-co-financeiros. A realização da auditoria da dívi-da equatoriana foi um importante passo no sentido de retomar a soberania financeira, mas para reaver sua moeda o país ainda terá que dar muitos outros passos. Historicamente o Equador teve uma classe dirigente que governou o país para interesses ex-ternos e não para povo equatoriano, por isso che-garam a comprometer gravemente a soberania do país, como se verifica no caso da moeda, do endi-vidamento ilegítimo e das negociações do petróleo, sua principal matéria-prima. Creio que a questão da moeda deverá ser enfrentada, até por conta da atual crise financeira mundial e seu impacto sobre o dólar. A sociedade deverá participar desse deba-te, pois grande parte da população guarda recorda-ções traumáticas do período em que o sucre (mo-eda equatoriana) passou por forte desvalorização, em virtude de inflação galopante, e por isso acredi-ta que estaria mais segura com o dólar, o que não é bem verdade.

O jornal O Globo a acusou de ter participado de uma comissão que estava ajudando “a preparar a tese do calote” contra o Brasil. Depois houve um desentendimento entre Equador e Brasil sobre uma obra da construtora Odebrecht. Afinal, quem devia ao BNDES: o governo do Equador ou a Odebrecht?

Com relação a esse fato, é interessante resga-tar trecho de matéria publicada pelo jornal Folha de S.Paulo na qual a ministra Dilma Rousseff re-pete afirmação do presidente Lula de que o BN-DES não fez empréstimo ao Equador: “O presiden-te Luiz Inácio Lula da Silva já disse que o BNDES não tem relação com o Equador, o banco não em-prestou o dinheiro para o Equador, mas para a em-presa. Não vamos complicar mais a situação”. Essa mesma afirmação da ministra foi publicada também no site da BBC Brasil. Conforme amplamente divul-gado pela imprensa equatoriana, a obra questiona-da custou mais que o dobro do previsto, e a usina hidrelétrica funcionou poucos meses e parou, ten-do apresentado sérios problemas técnicos e ambien-tais. Matéria irresponsável veiculada pelo jornal O Globo dá uma versão totalmente distorcida dos fa-tos, vinculando a realização da auditoria à prepara-ção de um calote contra o Brasil que nunca existiu, pois, embora não tenha recebido os recursos e este-

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“O acúmulo de reservas cambiais não significou o “fim” da dívida externa, mas a troca de dívida externa por

dívida interna a juros altíssimos e prazos muito curtos”.

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ja efetivamente enfrentando uma disputa comercial em corte de arbitragem internacional, o governo do Equador efetuou o pagamento da parcela vencida em dezembro de 2008, de US$ 28,1 milhões ao BN-DES. Além disso, a matéria distorce totalmente o trabalho que realizei no Equador, restrito à subco-missão de dívida comercial e relacionado com a in-vestigação de dívida externa com bancos privados internacionais. A investigação relacionada ao caso Odebrecht foi objeto da subcomissão de dívida bi-lateral, da qual não participei.

O presidente do Paraguai, Fernando Lugo, já anunciou que pretende auditar a dívida do seu país. A alegação do novo governo é a de que a dívida contraída com a construção de Itaipu é ilegítima. O que é uma dívida ilegítima?

Existem várias definições sobre ilegitimidade da dívida, porém os diferentes enfoques coincidem quanto à determinação da ilegitimidade das dívidas odiosas (contraídas por ditaduras militares). Em re-sumo, a jurisprudência existente sobre o tema con-sidera ilegítimas as dívidas marcadas por fraude e corrupção na origem da dívida; termos e cláusu-las abusivas nos contratos de empréstimos; contra-tação por governos ilegítimos ou por meio de pro-cedimentos irregulares; ausência de benefícios ou contrapartida positiva para a população. Segundo o cientista social inglês Joseph Hanlon, por exemplo, quatro condições caracterizam uma dívida como ilegítima: um empréstimo concedido para reforçar um regime ditatorial (empréstimo inaceitável), um empréstimo contraído com juros elevados que po-dem ser caracterizados como usura (condições ina-ceitáveis), um empréstimo concedido a um país de que se conhece a escassa capacidade de reembolso (empréstimo inadequado) e, por último, um emprés-timo repleto de condições impostas pelo FMI, que geram uma situação econômica que aumente as di-ficuldades de reembolso (condições inadequadas). Com relação ao Paraguai, de fato, recentemente o governo anunciou sua intenção de também realizar auditoria de sua dívida externa, composta princi-palmente do endividamento com o Brasil, referente à construção da usina hidrelétrica de Itaipu. O mais importante com relação a esse fato é que essa au-ditoria deverá beneficiar também o Brasil, pois os dois países estão sendo sacrificados por um meca-nismo que favorece somente os rentistas.

Qual é a situação da usina de Itaipu?Itaipu é uma empresa binacional composta de

50% de participação da empresa ANDE (do Para-guai) e 50% da Eletrobrás (Brasil), e tinha uma dívi-da de US$ 19,5 bilhões, ao final de 2007. Destes US$ 19,5 bilhões, 57,3% são devidos ao Tesouro Brasilei-ro, 42,5% à Eletrobrás e 0,2% a outros emprestado-res. Portanto, na prática, o Paraguai – por meio de sua participação de 50% da empresa Itaipu – possui uma dívida com o Brasil. Esta dívida tem sido paga, em última instância, pela sociedade paraguaia e bra-sileira, quando quita a conta de luz, cujos recursos são destinados a cobrir o custo de geração de ener-gia de Itaipu. E o principal componente desse cus-to é o pagamento da dívida junto ao Brasil, refe-

rente à construção da usina. Essa dívida de Itaipu possui muitas ilegitimidades, que devem ser inves-tigadas pela auditoria. A primeira delas refere-se ao imenso sobrepreço da obra, inicialmente orçada em US$ 2 bilhões e que acabou custando US$ 20 bilhões, ou seja, 10 vezes mais. Outra ilegitimidade é a alta taxa de juros e a atualização monetária que incidiu por décadas sobre o estoque dessa dívida: 7,5% ao ano mais a inflação norte-americana. Como resulta-do disso, até hoje Itaipu pagou de serviço desta dívi-da US$ 25 bilhões, ou seja, 12 vezes seu custo orça-do inicial, e ainda assim a dívida hoje está em quase US$ 20 bilhões! Caso não se altere esta situação, Itai-pu pagará ao todo US$ 63 bilhões por uma obra que deveria ter custado US$ 2 bilhões!

O que deve ser feito sobre a dívida de Itaipu?A grande parte da imprensa brasileira que de-

fende interesses financeiros diz que no caso de uma eventual anulação da dívida de Itaipu com a Ele-trobrás e o Tesouro brasileiro, “o povo brasileiro vai pagar pela dívida do Paraguai”. Esse argumen-to é equivocado, pois os recursos pagos por Itaipu ao Brasil são destinados, principalmente, para o pa-gamento da dívida interna e externa do Brasil, até hoje não auditada, como determina a Constituição Federal de 1988. Portanto, a dívida de Itaipu tem sido um mecanismo que alimenta o endividamen-to e que em nada beneficia o povo, mas os rentistas nacionais e internacionais. Em 2008, mais de 30%

do orçamento federal brasileiro foi destinado ao pa-gamento da dívida, enquanto os gastos com saúde foram de 4,81%, com educação, 2,57%, e com re-forma agrária, 0,27%.

É correto afirmar que a questão da dívida é uma luta política em vez de econômica?

Além de política e econômica, é também uma luta jurídica. De acordo com o artigo 62 da Con-venção de Viena sobre o Direito dos Tratados, é permitido a qualquer país questionar um contra-to, caso as condições vigentes quando de sua assi-natura sofram alterações significativas. Mais ain-da quando essa alteração nas condições parte de uma iniciativa dos próprios credores, que eleva-ram as taxas de juros de 5% ao ano (em meados dos anos 70) para até 20,5% ao ano, no início dos anos 80. Essa alta unilateral das taxas de juros provocou a multiplicação da dívida por ela mes-ma, provocando aumento absurdo no volume do serviço da dívida externa de todos os países que caíram na armadilha do endividamento “barato” dos anos 70, denominado “endividamento agressi-vo” dado o volume de empréstimos registrados no período. Portanto, é perfeitamente legítimo e le-gal o questionamento dessa dívida. Caso o Federal Reserve dos EUA (cuja administração é composta dos principais bancos privados norte-americanos) não tivesse promovido essa multiplicação dos ju-ros, tanto a dívida brasileira como a equatoriana

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15junho 2009 caros amigos

já estariam pagas, e o que pagamos a mais nos da-ria um crédito maior que a dívida atual, reclamada pelos bancos privados internacionais.

O governo Lula anunciou o fim do endividamento externo do Brasil, mas ocorreu um brutal crescimento do endividamento público. Como se deu esse processo de “internalização” da dívida e o que significa de fato o Brasil ter se tornado “credor internacional”?

Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que os da-dos divulgados pelo governo e pela grande mídia costumam ser manipulados, excluindo parcelas im-portantes das dívidas externa e interna. Ao final de 2008, a dívida interna atingiu a cifra de R$ 1,6 trilhão, enquanto a dívida externa alcançou US$ 267 bilhões, números bem maiores que os divulga-dos pelo governo. O governo recentemente alegou que o país se tornou “credor externo” pelo fato de o volume das reservas cambiais ter superado o es-toque da dívida externa pública. O que o governo não divulga é que tais reservas foram acumuladas ao mesmo tempo em que a dívida interna cresceu aceleradamente. Isso ocorreu porque durante o pe-ríodo em que o dólar se desvalorizava fortemente frente ao real, o governo brasileiro permitiu a en-trada indiscriminada de dólares no país para a com-pra de títulos da dívida interna. Os especuladores buscavam, além da proteção contra a desvaloriza-ção do dólar, a maior remuneração por meio das taxas de juros mais elevadas do mundo, com isen-ção de impostos para estrangeiros e total liberdade de movimentação. Essa combinação de fatores ex-tremamente danosos à economia do Brasil, mas al-tamente rentáveis para os especuladores, provocou uma avalanche de dólares ao Brasil. Rapidamente acumulamos US$ 200 bilhões de reservas interna-cionais e a dívida interna explodiu, tendo crescido 50% nos últimos três anos!

Qual o custo dessa política para o Brasil?Esse acúmulo de reservas internacionais repre-

sentou um custo altíssimo para o país, que ficou com grande quantidade de dólares (em queda!), que foram direcionados pelo Banco Central para as re-servas internacionais, que são, em sua maioria, re-vertidas na compra de títulos do tesouro norte-ame-ricano, que não remuneram quase nada. Por outro lado, só em 2007 os especuladores ganharam 30% livre de impostos em suas aplicações em títulos da dívida interna brasileira! Desta forma, o acúmulo de reservas cambiais não significou o “fim” da dívi-da externa, mas a troca de dívida externa por dívi-da interna a juros altíssimos e prazos muito curtos, além de um forte endividamento externo dos bancos e empresas nacionais, que especularam com o dólar e compraram títulos da dívida interna. Longe de ter virado “credor”, o país está, na realidade, proporcio-nando um negócio altamente rentável para os espe-culadores, ao mesmo tempo em que sacrifica a socie-dade brasileira com a subtração da maior parte dos recursos orçamentários que têm sido destinados a fi-nanciar essa verdadeira “farra”!A atual crise econômica escancara a

precariedade do sistema monetário internacional. Poderiam ser identificadas relações diretas entre a crise financeira e o processo de endividamento? Como a auditoria pode ajudar neste momento de crise?

A primeira relação direta que pode ser feita en-tre a crise financeira e o processo de endividamento é que ambos tiveram como principais protagonistas os mesmos grandes bancos privados internacionais. A investigação que realizei no Equador, na subco-missão de auditoria da dívida externa com ban-cos privados internacionais, comprovou que nos 30 anos analisados os bancos privados responsáveis pelas sucessivas renegociações eivadas de ilegitimi-dades e ilegalidades se concentraram em seis gran-des instituições norte-americanas e inglesas que, com o tempo, devido a fusões entre elas, hoje se re-sumem a apenas três! Além disso, o ponto de parti-da do endividamento com esses bancos se originou ainda na década de 70, durante a ditadura militar, quando se emitiram grandes quantidades de papéis sem lastro e extremamente desvalorizados no mer-cado secundário (“pagares”). Em 1983 esses papéis foram assumidos pelo Banco Central equatoriano por seu valor de face integral, criando uma amar-ra que impediu o desenvolvimento do país desde então. A principal causa da atual crise financei-ra é também a emissão de grandes quantidades de papéis sem lastro, carinhosamente chamados pela grande imprensa de “ativos tóxicos”, que uma vez mais estão sendo assumidos pelo Estado para “sal-var” as instituições financeiras desse prejuízo.

E como se dá essa relação no Brasil?No Brasil, essa prática pode ser evidenciada por

meio da recente Medida Provisória nº. 442, que per-mitiu que os bancos privados passassem a depositar garantias podres em troca de empréstimos concedi-dos pelo Banco Central, o que na verdade significa a transferência de prejuízos privados ao setor públi-co, que ao final serão arcadas por todos nós. Isso re-presenta uma infâmia, pois nos últimos anos os lu-cros do setor financeiro privado, no Brasil, atingiram níveis espantosos, e tais lucros nunca foram sociali-zados. Por um lado, o governo salva bancos e gran-des construtoras (MPs 443 e 445, além da 442 e 450), beneficia os rentistas estrangeiros (com isenção de IR desde 2006) e os grandes aplicadores nacionais (re-dução de IR sobre aplicações de renda fixa) e decla-ra que “é chique emprestar ao FMI”. Por outro lado, o governo anunciou que passará a tributar rendimentos de poupança acima de R$ 50 mil; tem reduzido os re-passes a Estados e municípios, provocando o sucatea-mento ainda maior dos serviços de saúde e educação, entre outros; e sua base aliada no Congresso tem adia-do continuamente a análise do veto presidencial ao reajuste dos aposentados. Enfim, declarou que “não é hora de trabalhador pedir aumento”. Verifica-se, por-tanto, que os trabalhadores estão pagando a conta da crise e os bancos protagonistas dela estão sendo sal-vos e ainda levando vantagem, devido à estreita rela-ção entre a atuação dos bancos e a contínua rolagem da dívida interna brasileira. A auditoria da dívida po-deria prestar um grande serviço neste momento, reve-lando toda a verdade sobre esse questionável proces-

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O gargalOEm fevereiro de 2008, apresentamos

à Câmara Federal o pedido de Comissão Parlamen-tar de Inquérito (CPI) para investigar a dívida pú-blica da União, Estados e municípios. Em dezem-bro do ano passado, finalmente ela foi autorizada, e só agora líderes partidários começam a indicar os nomes de parlamentares para seu funcionamento, num processo lento, que parece desconhecer a ur-gência e relevância da iniciativa ou tem a intenção de boicotá-la. A centralidade política desta ques-tão, que já era clara, agora ficou superevidenciada com a impactante crise econômica que vivemos.

A dependência financeira de crédito num siste-ma interconectado tem como pedra angular a dí-vida pública. É por ela que o Brasil sofre uma he-morragia brutal nas suas finanças públicas, com o pagamento de juros, amortizações e rolagem da dí-vida com recursos orçamentários e a emissão de tí-tulos públicos. Trata-se de um sistema que se re-troalimenta e inviabiliza qualquer desenvolvimento soberano, sustentável e com justiça social.

Tomando como referência apenas os governos dos dois últimos presidentes brasileiros, a dívida interna aumentou 17 vezes. No começo do governo FHC (janeiro de 95), a dívida interna era de R$ 61,8 bilhões. Em dezembro de 2002, estava em R$ 687,3 bilhões. Em janeiro deste ano, no governo Lula, ela atingiu a cifra de R$ 1 trilhão seiscentos e oiten-ta e dois bilhões de reais. No tocante à dívida ex-terna acumulada ao longo dos anos, irregularidades e uma postura submissa tornam grande parte des-sa dívida ilegal. Em janeiro de 2009, seu total era de US$ 262,93 bilhões, incluindo a dívida privada (uma vez que a oferta de dólares para o seu paga-mento é de responsabilidade do governo).

Estes são os números brutos da dívida. Mas neste mesmo período o governo federal gastou R$ 906 bi-lhões com juros e R$ 879 bilhões com amortizações. Nesses monumentais montantes não estão incluídos R$ 3,77 trilhões de refinanciamento ou rolagem da dívida através da emissão de títulos públicos. Mes-mo com todos estes pagamentos e apesar do masca-ramento da dívida externa pelo aumento das reser-vas internacionais do país, a dívida interna explodiu e a dívida externa continua crescendo. Somente em 2008, o país desembolsou 30,57% de seu orçamen-to com juros e amortizações.

Esse quadro é esclarecedor para se entender o impacto dessa lógica na política econômica que se-guiu o receituário do FMI. Para atender às exigên-cias crescentes dos compromissos com o pagamen-to da dívida, o superávit já chegou a atingir 6% do PIB em um ano. Dentro dessa lógica, o país vive comprando credibilidade junto ao setor financei-ro, acenando com mais privatizações, isenções es-drúxulas e nenhum controle sobre o fluxo de capi-tais. Ao mesmo tempo, os governos incorporam a lógica do encolhimento de recursos para a área so-cial, sucateamento dos serviços públicos e enxuga-mento da máquina pública. Pagar a dívida, mesmo que ilegal, ilegítima e imoral, tornou-se algo reli-gioso, sem questionamentos.

Agora, com a crise, os lobbies econômicos parti-ram para um ataque aos recursos públicos. São pe-didos de refinanciamento de dívidas, empréstimos subsidiados, financiamento de exportação, isenções fiscais etc. Para fazer frente à demanda por recur-sos, o governo ao invés de aplicar mecanismos que estanquem o sangramento do pagamento da dívi-da, edita medidas provisórias liberando a emissão de títulos públicos.

A instalação imediata da CPI da Dívida Pública será, portanto, um poderoso instrumento de escla-recimento, denúncia e propostas para superar esse modelo perverso. Permitirá desmistificar tabus como a necessidade de uma auditoria da dívida, como pre-vê a Constituição Federal. Por outro lado, vai mos-trar a ilegalidade cometida e os responsáveis por ta-manha iniqüidade contra o povo brasileiro.

A CPI vem no trilho do plebiscito feito nas ruas no ano 2000, pelos movimentos sociais, igreja, MST e partidos de esquerda, em que quase seis mi-lhões de brasileiros se pronunciaram e mais de 90% apoiaram a suspensão do pagamento da dívida. Es-peramos que o funcionamento CPI seja um gancho para mobilizações que transformem em conquis-ta dos trabalhadores e do povo brasileiro o en-frentamento desta questão. A auditoria da dívi-da externa do Equador é um exemplo de como um país pode exercer sua soberania, com total apoio dos movimentos populares. É hora de o Brasil fa-zer o mesmo.

Ivan Valente é deputado federal do PSOL-SP.

Ivan Valente

do desenvolvimento no Brasil

so de endividamento que tem servido de justificativa para medidas oficiais que beneficiam unicamente os bancos e as grandes corporações, em detrimento do conjunto da sociedade brasileira, que tem pago alto preço por essa política econômica equivocada, tradu-zida em desemprego, violência, sucateamento de ser-viços públicos e elevada carga tributária.

Recentemente o Ministério da Fazenda anunciou a redução da meta de superávit primário, para 2009, a fim de conter os efeitos da crise. Isso pode significar alguma possibilidade de aumento dos gastos sociais?

O governo anunciou a redução da meta de su-perávit primário para 2009, de 3,8% para 2,5% do Produto Interno Bruto, sugerindo que haveria R$ 40 bilhões a mais para gastar neste ano. Porém, na prá-tica, tal mudança não significa que o gasto social será aumentado, muito menos que os gastos com a dívida serão reduzidos. O que ocorrerá, na prática, é que o governo utilizará outras fontes de recursos para pagar a dívida, tais como a emissão de mais tí-tulos ou o lucro do Banco Central de 2008. Ou seja: quando o Banco Central tem prejuízo, este é cober-to pelo Tesouro. E quando tem lucro, o dinheiro vai para o pagamento da dívida. Na realidade haverá a manutenção dos gastos sociais programados, já re-duzidos pelos cortes orçamentários de R$ 21 bilhões feitos anteriormente. Por outro lado, os gastos com a dívida continuarão intocáveis, mesmo já tendo con-sumido, em 2009 mais de R$ 207 bilhões somen-te até 4 de abril (incluindo a chamada “rolagem”), o que representa cinco vezes os gastos com servido-res, 18 vezes o gasto com a saúde, 40 vezes os gas-tos com a educação ou 1.210 vezes o gasto com re-forma agrária. O próprio Banco Central admite que o governo conseguirá cumprir a meta de superávit primário anterior, de 3,8% do PIB, no primeiro qua-drimestre de 2009.

Em dezembro do ano passado foi criada a CPI da Dívida, por iniciativa do deputado federal Ivan Valente, do PSOL-SP. A CPI pode esclarecer a situação da dívida?

A criação da CPI ainda não significa o cumpri-mento da Constituição, mas representa um impor-tante passo na investigação do processo de endi-vidamento. Por isso, iniciamos a mobilização pela efetiva instalação da CPI da Dívida desde o Fórum Social Mundial de 2009, em Belém, num seminário que contou com a participação de mais de 500 pes-soas. Para que essa CPI tenha êxito, será necessá-rio que a sociedade exija dos parlamentares de cada partido a imediata indicação dos membros para sua efetiva instalação. Em seguida, que acompanhem de perto este processo, participando das reuniões da CPI e cobrando dos parlamentares a utilização de todas as suas prerrogativas de acesso a qualquer informa-ção acerca do endividamento e de envio à Justiça das denúncias referentes às ilegalidades encontra-das. O povo brasileiro, que está pagando muito caro por essa dívida, tem o direito à verdade sobre esse processo e, para isso, terá que se mobilizar.

Max Gimenes é estudante de Ciências Sociais.

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17junho 2009 caros amigos

Ana MirandaMeMórias De uM jornalista não-investigativoRenato Pompeu

Um menino de dez anos, a coisa mais linda, olhar meigo e inteligente, cabelinhos espe-tados, roupa de piloto de carro e capacete ao lado, aparece numa foto do jornal daqui, no meio de caixotes de papelão da CBA Alimentos. São ces-tas básicas. Ele é Anderson Lima, piloto de kart competitivo, atual líder do circuito local. No ano passado foi o vice-campeão, mesmo tendo a idade mínima da sua categoria, que é de dez a 14 anos. Sabendo que a maioria das crianças não tem as mesmas oportunidades, sonhou abrir o autódro-mo para que todas pudessem acompanhar as cor-ridas, ou seja, queria dividir com as crianças aqui-lo de que ele mais gosta. As crianças iriam adorar. Mas não deu certo. Porém Anderson não desistiu, e talvez orientado por seus maravilhosos educa-dores, talvez movido por algum exemplo fami-liar, talvez por simplesmente ter nascido com essa alma generosa e boa, comovido pelas cenas de crianças de rua, crianças com fome, Anderson teve a ideia de ajudar com alimentos. E cada ponto que ele ganha em campeonato se converte numa ces-ta básica. Numa das etapas ganhou onze pontos, e mandou onze cestas para os refugiados das en-chentes. Antes, foram nove pontos e nove ces-tas para crianças em um hospital. Mais onze ces-tas para um lar de idosos. Vencedor nato, dotado de um raro espírito público, ele declarou: “que-ro vencer mais para ajudar mais. Vou sempre fa-zer as doações. Queria que as outras pessoas tam-bém ajudassem.”

Em meio a toda essa meninada valente do esporte, Anderson já viajou pelo Brasil disputando campeonatos, já enviou re-portagem sobre o circuito de Caruaru, muito bem escrita, nem parece que foi ele. E já protagonizou um brilhante duelo na pista. Meu Deus, imagino o meu netinho de nove anos, pilotando, uma crian-ça! Mas, pensando bem, esses meninos devem di-rigir muito melhor do que eu....

O pequeno piloto

Ana Miranda é escritora, autora de Boca do Inferno, Desmundo, Dias & Dias, e outros romances, editados pela Companhia das Letras. Suas crônicas estão reu-nidas no volume Deus-dará, da Editora Casa [email protected]

Em 1982-1983 trabalhei na Agência Uni-ted Press International, a falecida UPI. A cer-ta altura, a mídia em geral no Brasil publicou que uma missão militar do comando brasilei-ro da Amazônia estava visitando o Suriname. No entanto, a UPI distribuía no Brasil, para o Diário Popular de São Paulo (hoje Diário de São Paulo) e para um jornal de Curitiba, a co-luna do jornalista americano Jack Anderson, Washington Merry Go-Round (“O Carrossel de Washington”), publicada numa cadeia de jor-nais, o principal deles o The Washington Post. Certo dia, numa curta nota, Anderson comu-nicou que tropas brasileiras tinham intervindo no Suriname e cercado a capital, Paramaribo. Não trazia mais detalhes, mas, além de enviar a coluna aos dois jornais que eram seus clien-tes, também comuniquei o fato a colegas dos grandes jornais de São Paulo e do Rio, para que buscassem apurar o assunto. Não tive ne-nhum retorno.

Pouco depois, um correspondente da Rádio da Holanda (o Suriname é a antiga Guiana Ho-landesa), visitou várias redações em São Pau-lo para saber se havia informações sobre a in-tervenção de tropas brasileiras no Suriname. Quando ele foi à UPI, eu o informei a respeito da nota de Jack Anderson. A coisa, que eu sai-ba, ficou por aí. Voltei a falar com vários cole-gas, já que eu mesmo, como jornalista não-in-vestigativo, não saberia como fazer a apuração de um caso desses.

Por coincidência, alguns anos depois, fui fazer ginástica numa academia em São Pau-lo, e o instrutor, ao saber que eu era jornalis-ta, me procurou e me contou que tinha servi-do o Exército na Amazônia e que participara de uma intervenção de tropas brasileiras no Suriname, segundo ele a pedido do governo do país, para combater guerrilheiros surina-meses antigovernamentais. Contou ainda mais que tinham morrido uns 30 brasileiros nesses combates, e como a operação era secreta, os caixões foram enviados às famílias com a in-formação de que cada militar tinha morrido em acidentes em manobras em diferentes regiões da Amazônia.

O dono da academia, entretanto, não queria aparecer em público e eu fiquei desconfiado de que ele era um provocador. Comuniquei tudo à minha chefia na Folha de São Paulo, onde en-tão eu trabalhava, de 1983 a 1985. Como um jornalista da cúpula da Folha ia para Washing-ton, ficou de verificar com o Washington Post. Voltou dizendo que não encontrara nada, nem a nota do Jack Anderson.

O que será que aconteceu?

Renato Pompeu é jornalista e [email protected]

“Eu sou do tempo que a escritora e jornalista Patrícia Galvão (Pagu) ditava suas matérias a um datilógrafo, na Agência France-Presse, porque naquela época não era obrigatório que o jornalista soubesse escrever a máquina.”

Suriname: visita ou intervenção?

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caros amigos julho 2009 18

Eduardo Matarazzo Suplicy

O mundo está vivendo mais uma crise sistêmica do capitalismo. É a terceira, desde o surgimento do capitalismo industrial. Houve uma grande crise nas décadas de 1870-1890 que atingiu ape-nas a Europa capitalista. Depois, a segunda em 1929-45, que atingiu todo o hemisfério norte. E agora, estamos diante da terceira, que re-cém se inicia e atinge a todos os países do mundo, na fase do capita-lismo globalizado.

As crises sistêmicas, que abrangem todo sistema são mais prolongadas e profundas do que as crises cíclicas, que afetam separa-damente as economias nacionais ou determinado ramo da produção. O Brasil viveu várias crises cíclicas ao longo do século XX, a ultima foi no segundo mandato do Governo FHC. Todas foram curtas e atingiam com mais força alguns setores da economia. E faz parte da lógica das crises prolongadas que elas afetem de maneira diferenciada cada economia. Alguns paises enfrentam depressão, que é a queda brusca dos níveis de produção. Outros enfrentam a recessão, que é a queda paulatina duran-te anos, dos níveis de produção. E há outros que enfrentam a estagna-ção. Que é um movimento ondular de pequenas quedas, retomadas de crescimento e novas quedas. Parece ser o caso da economia brasileira, e também das outras grandes economias da Rússia, Índia, e China.

É nos períodos de crise, que os capitalistas voltam a de-fender o papel do estado. Sempre usam o estado como poder para reu-nir os recursos de toda população e repassar a eles. Por isso, os perío-dos de crise são também de grande reconcentração da riqueza.

No caso brasileiro, a produção do agronegócio subordinado às transnacionais, a taxa de lucro no campo, as vendas e os preços no mercado externo, o preço das terras agrícolas - tudo caiu. Os agrocapi-talistas intensificaram as pressões para que o estado brasileiro liberas-se recursos. A produção pro mercado externo é totalmente dependente de crédito, do capital financeiro. Para produzir um PIB agrícola ao re-dor de 120 bilhões de reais, pediram e levaram ao redor de 97 bilhões de reais do governo, em financiamento. A agricultura familiar produz quase 80 bilhões, mas vai levar apenas 9 bilhões de crédito.

As transnacionais, mais agressivas, conhecem a teoria de Rosa Luxemburg, de que, com pouco trabalho humano, os recursos natu-rais, mercadorias de alto preço, rendem altas taxas de lucro na retomada do ciclo. Aumentaram a pressão para controlar as sementes transgêni-cas e as fontes de água, a energia e os rios nas hidrelétricas, as reser-vas do pré-sal (e a CPI da Petrobras é um teatrinho para isso). As fazen-das compradas pelo Banco Opportunity, do testa-de-ferro estadunidense Daniel Dantas, com seus 600 mil hectares, estão todas em cima de re-servas minerais. Aumentaram a pressão sobre a propriedade das terras da Amazônia, com a MP 458, e o controle sobre usinas de álcool e expor-tação do etanol.

Oxalá o povo brasileiro desperte.

João Pedro Stedile, membro da coordenação nacional do MST e da via campesina Brasil.

A crise, a agricultura e a ofensiva do

capital internacional

Os filmes A Ave Poesia do Patativa do Assaré, de Rosemberg Ariry, e Garapa, de José Padilha, são duas produções que levam o espectador a uma reflexão mais profunda sobre a pobreza e a liberdade de expressão.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, aos sete anos, deixou Garanhuns com destino ao Guarujá em São Paulo, numa típica situação observada por um po-eta que tão bem captou a sina dos nordestinos. Um dia, o sertanejo Luiz Gon-zaga ouviu no rádio, no interior da Paraíba, uma canção que achou muito bo-nita. Resolveu ir até Assaré, no Ceará, conversar com seu autor, Patativa:

- “Você quer me vender essa música?”- “Meu mundo é a minha poesia, minha família e eu não vendo direi-

to autoral por preço nenhum. Mas se você quiser cantá-la vou ficar mui-to honrado”.

A partir, daí Luiz Gonzaga passou a cantar Triste Partida:

“Eu vendo meu burroMeu jegue, meu cavalo.Nós vamos a São PauloViver ou morrerPois logo apareceFeliz fazendeiro Por pouco dinheiro Lhe compra o que temMeu Deus, meu Deus.Faz pena o nortista,Tão forte e tão bravo,Viver como escravo,No norte ou no sul”.

As músicas cantadas pelos jovens das grandes me-trópoles brasileiras, a exemplo do rap O Homem na Estrada, de Mano Bro-wn e dos Racionais, indicam que, mesmo meio século depois, o grau de li-berdade dos seres humanos, para muitos, é ainda limitado.

O filme Garapa, de José Padilha, mostra uma realidade que in-felizmente ainda perdura em nosso país: o quotidiano de três famílias po-bres no Ceará. Todas lutam, em sua batalha diária, para conseguir como se alimentar diante de extrema escassez.

“A fome é um ronco no estômago, uma correria para esquentar o leite que resta para três crianças que choram, uma casa sem móveis, é uma roupa puída, um chinelo gasto, uma parede para pintar, são crianças sem escola”, como diz Padilha que, em 2005, por um mês filmou a vida destas famílias. Quando a criança acorda na rede, a mãe lhe traz a mamadeira que, em vez de leite, tem garapa quente (água com açúcar).

Depois de assistir ao filme, temos que concordar com Jo-sué de Castro, o autor de Geografia da Fome e de Geopolítica da Fome, dos anos 40 e 50. Erradicar a fome e a pobreza absoluta está inteiramente em nossas mãos. Precisamos nos empenhar muito mais para conseguir.

a ave poesiado Patativa do Assaré

e Garapa

Eduardo Matarazzo Suplicy é senador.

João Pedro Stedile

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19junho 2009 caros amigos

Cesar Cardoso

Constantemente atacada pela direita, em es-pecial pela grande imprensa neoliberal, a Petro-bras reagiu com inteligência: construiu um blog e passou a veicular na Internet o conteúdo integral – perguntas e respostas – das entrevistas feitas com seus diretores e funcionários. Em princípio uma medida de transparência e sentido público, que ao mesmo tempo serve para desmascarar as manipulações sorrateiras dos principais jornais e revistas. Claro, as empresas jornalísticas caíram de pau na Petrobras com os argumentos mais es-tapafúrdios do mundo. A estatal recuou, mas dei-xou sinalizado o que mais assusta o oligopólio da distorção.

LUTA PELA TERRAOs jornalistas do Coletivo Catarse, de Por-

to Alegre, produziram uma excelente reporta-gem cinematográfica sobre os 25 anos do Mo-vimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), comemorados em Sarandi, no Rio Gran-de do Sul, onde os assentamentos da Fazenda Anoni se transformaram em modelos produtivos da reforma agrária. Quem tiver interesse no do-cumentário é só entrar em contato com [email protected] ou pelo telefone (51) 3012-5509. Vale a pena ver.

FLAGRANTE DELITOO jornal Campus, da Universidade de Brasília,

deu manchete de capa: o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, cos-tuma estacionar seu carro na vaga destinada a deficientes físicos – nos dias em que leciona Di-reito Constitucional naquela instituição. Os estu-dantes de jornalismo Sacha Brasil e Maria Sco-deler, que flagraram a delinquência, procuraram a assessoria do STF e foram informados que o ministro abriu sindicância administrativa contra seu motorista.

“LA COSA BERLUSCONI”O primeiro parágrafo do artigo de José Sara-

mago, no jornal El País, diz tudo: “não vejo que outro nome lhe poderia dar. Uma coisa perigo-samente parecida a um ser humano, uma coi-sa que dá festas, organiza orgias e manda em um país chamado Itália. Esta coisa, esta enfer-midade, este vírus ameaça ser a causa da mor-te moral do país de Verdi se um vômito profun-do não consegue arrancá-lo da consciência dos italianos antes que o veneno acabe corroendo as veias e destroçando o coração de uma das mais ricas culturas européias”.

INVERSÃO DOS FATOSA Polícia Militar foi chamada pela reitoria da

USP, invadiu o campus da Cidade Universitária e reprimiu com violência uma manifestação legí-tima e democrática de estudantes, professores e funcionários da universidade. Os principais jor-nais, revistas e emissoras de rádio e TV deram os fatos como sendo um “conflito” ou um “con-fronto” entre manifestantes e PM. Poucos jorna-listas se deram ao trabalho de perguntar por que não existe diálogo dentro da instituição, todas as reivindicações da comunidade são tratadas com violência. A mídia não deveria questionar o des-preparo da gestão pública?

A VELHA GLOBO NO ARUma equipe de reportagem da TV Globo re-

viveu, nos episódios da USP, os tempos em que a emissora apoiava a Ditadura Militar: foi ex-pulsa de uma assembléia dentro da universi-dade. Coincidentemente voltou a circular na Internet a gravação do direito de resposta do governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizo-la, levado ao ar no dia 15 de março de 1994. É sempre um prazer ver o Cid Moreira fazendo críticas ao concessionário Roberto Marinho. O povo não é bobo...

Hamilton Octavio de Souza é [email protected]

entrelinhasa mídia como ela éHamilton Octavio de Souza

Lição da Petrobras Eu sabia por que se chama ca-rioca da gema quem nasce no Rio, sabia a es-calação de Fluminense e Bangu na final de 64, sabia o que quer dizer blue moon. Mas pela ma-nhã ao acordar fui acertar o relógio, os pontei-ros me acertaram primeiro e esqueci tudo isso. Do que ainda lembro? Da emoção do primeiro caderno encapado com papel de seda azul. Ah, sim! Me lembro que o homem aprendeu a voar com Santos Dumont e a mulher com Fred Astai-re. Ou terá sido ao contrário? O muro de Ber-lim, o império romano, as torres gêmeas, Teresi-nha de Jesus. Quem desses reconheceu a queda e não desanimou? Quem levantou, sacudiu a po-eira e deu a volta por cima? Que praga destruiu a primavera de Praga?

Tudo tão difícil. A memória vem do la-tim, sim, mas vai para onde? Quantas vezes por dia é preciso morrer pra continuar vivo? Quantas memórias precisamos perder? Em que tempo?

Um ano, por exemplo. O intervalo de tem-po correspondente a uma revolução da terra em torno do sol. Ou bissexto ou letivo ou lunar. Tal-vez o tempo de gestação das girafas, de se fechar balancetes, de se parir e embalar Mateus.

Mas em alguma dobra da me-mória, que é o nosso tempo, existe um certo ano-luz sem nenhuma ciência que lhe dê conta. Uma revolução - não da terra – marítima, com seu ritmo que nenhum piano alcança, incabível - e como dança! E lá talvez esteja tudo que preci-samos de preciso e impreciso: ligar o rádio, bus-car a sintonia, o que vai ficando nos álbuns do olhar, tatuagens que não se vê, lã de vidro na ampulheta sem tampo nem fundo, escorre nos corpos - tão macia...

Quanto tempo terá levado até que o primeiro homem fizesse o primeiro armá-rio e deixasse aberta a primeira gaveta à esquer-da onde se encontra - quem sabe? - um bilhete esquecido dizendo bom dia?

Ventar e inventar folhinhas, memórias. O ca-lendário vai pras calendas. Os relógios partem e se partem. Estamos com a corda toda, desper-tamos a madrugada e anunciamos aos galos: o ano domini!

E o tempo segue nos dominando.

Temporariamentes

Cesar Cardoso perde tempo escrevendo. Ilus

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entrevista lUIZ MOTT

o Brasil é o país onde mais se mata homossexuais. Em 2008, foram regis-trados 190 assassinatos, um a cada dois dias. Os números superam as estatísticas de 2007, quando houve 122 homicídios dessa natureza. Os

dados, apresentados pela pesquisa do Grupo Gay da Bahia, indicam que o Bra-sil é o campeão mundial em crimes de homofobia, seguido pelo México – que apresenta média de 35 crimes por ano – e Estados Unidos – com 25.

As estatísticas são no mínimo estranhas para um país que sedia a maior pa-rada gay do mundo. Em sua ultima edição, a manifestação realizada anualmen-te em São Paulo reuniu cerca de três milhões de pessoas.

Para o antropólogo Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia, entidade mais antiga de defesa dos direitos dos homossexuais no país, “apesar do Bra-sil proclamar através de suas lideranças que teve a primeira conferencia GLBT do globo e o primeiro presidente a apresentar um programa nacional para os gays, estamos na rabeira de outros países que possuem menos organização em termos de parada”.

Ou seja, apesar da grandiosidade da parada gay brasileira, os números de as-sassinatos de homossexuais vêm crescendo ano a ano. Para Mott, um dos moti-vos é o fato de ainda não termos uma legislação que garanta o reconhecimen-to da homofobia como crime.

A despeito de iniciativas positivas apresentadas pelo governo Lula, como o pro-grama Brasil Sem Homofobia, de 2004, e o recente Plano Nacional da Cidadania dos Direitos Humanos LGBT, de maio deste ano, “infelizmente, é muita palavra e pou-ca ação efetiva”. Para combater a violência, o antropólogo defende a aprovação do projeto de lei que equipara a homofobia ao racismo [PLC 122/2006].

O levantamento anual dos assassinatos de homossexuais teve inicio em 1980, quando o Grupo Gay da Bahia foi criado. Desde então, até 2008, foram documentados 2.998 assassinatos de gays, travestis e lésbicas no Brasil, con-centrando-se 18% deles na década de 80, 45% nos anos 90 e 35% (1.168 casos) a partir de 2000. Quando divulgou os dados de 2008, Mott classificou o con-junto de crimes como um verdadeiro “homocausto”.

Caros Amigos - Como você avalia o governo Lula no combate à homofobia. Houve avanços? Luiz Mott - O primeiro presidente da República a falar a palavra homossexual foi o Fernando Henrique Cardoso, em 2002, e a primeira vez que um documen-to oficial do governo federal citou os homossexuais foi o Programa Nacional de Direitos Humanos, em 1996. O Lula tem sido o presidente que mais tem fa-

lado do assunto: participou da Conferência Nacional LGBT em Brasília, publi-cou o programa Brasil Sem Homofobia, propôs ações para a comunidade ho-mossexual, mas, infelizmente, é muita palavra e pouca ação efetiva. Das ações afirmativas propostas pelo Brasil Sem Homofobia, nem 5% saiu do papel. O que a gente espera é o que presidente Lula pressione mais essa base aliada em fa-vor dos dez projetos que estão no Congresso Nacional sobre direitos humanos LGBT, para que o país deixe essa infeliz condição de campeão mundial de as-sassinatos de homossexuais.

Recentemente, o governo federal lançou o Plano Nacional da Cidadania dos Direitos Humanos LGBT, primeira vez que um governo se compromete com políticas específicas para combater a homofobia. Quais são suas expectativas em relação ao Plano? É possível que ele resulte em ações concretas?

Pode ser que seja o primeiro, como foi o primeiro país no planeta a convocar uma Conferência Nacional, mas o que vale são ações efetivas. Depende muito da boa vontade do próprio Lula, da sua base aliada e da pressão dos homossexuais e dos simpatizantes aliados para que tantas boas intenções saiam do papel.

Para que essas medidas sejam colocadas em prática não é preciso esperar a aprovação de leis no Congresso?

No Brasil, o poder mais simpatizante e aliado dos direitos humanos dos ho-mossexuais é o Judiciário, concedendo diversas garantias, seja no nível da fa-mília, seja na mudança de nome para transexuais, na adoção, no reconhecimen-to de viúvos à herança. O Executivo tem manifestado boas intenções através do Programa Nacional de Direitos Humanos, o Brasil sem Homofobia etc. O Legis-lativo é que tem sido o mais conservador e o mais inerte, empurrando as nos-sas demandas com a barriga. Isso reflete o medo que os deputados e senadores têm de se envolver com uma causa tão tabu.

O plano pode ajudar na aprovação do projeto de união civil da Marta Suplicy, que é de 1995?

Esse projeto foi considerado por ela própria [Marta Suplicy] como caduco. Ele está muito aquém das conquistas já efetivadas pelo Judiciário, como o re-conhecimento da família e o direito à adoção. Na verdade, embora há mais de dez anos o movimento homossexual brasileiro lute pela aprovação desse pro-jeto, eu considero que o mais importante é a aprovação do projeto de lei que

Fundador do Grupo Gay da Bahia, Luiz Mott denuncia os crimes de homofobia no país da maior parada gay do mundo Tatiana Merlino | Fotos Marcelo Cerqueira

sangue

Entre o cor de rosa e o vermelho

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21junho 2009 caros amigos

“O Brasil tem esse lado cor-de-rosa, a maior parada gay do mundo, a maior associação de gays, lésbicas e

transgêneros da América do Sul. E tem o lado vermelho-sangue: a cada dois dias, um gay é assassinado.”

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equipara a homofobia ao racismo para assim diminuir o sofrimento e a morte de tantos gays como resultado da ideologia machista e homofóbica que ainda vê o homossexual como pecador, marginal, que merece pena de morte.

Como está a relação do movimento gay com as religiões? A bancada dos católicos é o maior entrave para a aprovação das reivindicações do movimento gay, não é?

Infelizmente. As igrejas cristãs – católicas e protestantes, sobretudo as neo-pentecostais – têm as mãos sujas de sangue. Através da pregação homofóbica, intolerante, preconceituosa que pastores e padres fazem nos cultos, eles forne-cem argumentos para homofóbicos que matam os homossexuais. Há a exce-ção do candomblé e de uma ala do espiritismo, que têm sido mais simpatizan-tes aos direitos humanos. As igrejas têm que se modernizar e acompanhar o que acontece na Europa e nos Estados Unidos, onde bispos são assumidamente gays, onde há até casamentos abençoados por denominações religiosas. Essas igrejas fundamentalistas cristãs do Brasil agem como se fossem muçulmanas, que são as mais intolerantes com os homossexuais no mundo inteiro.

Como pode se explicar a contradição do Brasil ter a maior parada gay do mundo e ser campeão em crimes de homofobia?

Esse é um grande dilema que o movimento homossexual brasileiro tem de enfrentar com apoio dos cientistas sociais e experts em cultura brasileira. O Brasil tem esse lado cor-de-rosa, a maior parada gay do mundo, a maior asso-ciação de gays, lésbicas e transgêneros da América do Sul. E tem o lado ver-melho-sangue: a cada dois dias, um gay é assassinado. No Brasil, a legislação ainda não garante o reconhecimento da homofobia como crime. Essa contradi-ção tem que ser superada a partir de quatro medidas fundamentais: a aprova-ção de leis que garantam a sobrevivência dos homossexuais do mesmo modo como o racismo é penalizado como crime inafiançável; que a polícia e a Justi-ça sejam ágeis e severas para punir e investigar criminosos que discriminam e violentam homossexuais; educação sexual obrigatória em todos os níveis esco-lares, desde o pré-primário até os níveis de pós-graduação, para que as pessoas entendam mais sobre a diversidade sexual; e um apelo à própria comunidade homossexual LGBT para que se assumam, que saiam do armário.

Infelizmente, o fundamentalismo religioso no Brasil ofusca e limita as pró-prias aspirações dos militantes homossexuais. A Espanha é um bom exemplo de país com tradição católica extremamente forte, mas que abandonou o projeto de parceria civil ou de pacto de solidariedade, como existe na França, para par-tir diretamente para o casamento, que foi aprovado sem nenhuma restrição em comparação aos casamentos heterossexuais. Na época em que a Marta Suplicy elaborou o projeto de parceria civil, ela e o movimento gay que a ajudou acre-ditaram que haveria uma resistência total por parte dos deputados caso fosse imediatamente proposto o casamento. Por isso, foi apresentado um projeto que são migalhas aos homossexuais. A união não é um casamento, não se consti-tui família, não se pode adotar. E acho que temos que partir para o confronto total. Queremos que o Brasil se equipare ao que acontece de mais moderno em termos de legislação de direitos humanos na Holanda, na Bélgica, em Portugal, na Espanha. A parceria civil é um arremedo de casamento.

Estamos atrasados em relação aos países da América Latina? O Uruguai já tem união civil e agora o governo quer o casamento. O Equador já tem união civil.

Apesar do Brasil proclamar e arrotar através de suas lideranças que teve a primeira conferencia GLBT do globo e que teve o primeiro presidente a apre-sentar um programa nacional, o Brasil está na rabeira de outros países que possuem menos organização em termos de parada. A parada de Buenos Aires, por exemplo, não chega a ter 20 mil pessoas. Esses países conseguiram vitórias mais importantes, como a Colômbia e o Equador, que tinha uma Constituição que criminalizava a sodomia e a substituiu pela segunda Constituição do mun-do, depois da África do Sul, a incluir a proibição de discriminar por orientação sexual. Embora a Argentina tenha uma Igreja Católica mais conservadora que a do Brasil, tendo uma participação durante a ditadura militar, lá houve con-quistas que os católicos espernearam mas tiveram que engolir.

Pesquisa recente realizada pela Fundação Perseu Abramo revela que há altos índices de homofobia no país. Isso também influencia na dificuldade de aprovar leis?

A única pesquisa existente no país sobre crimes de homofobia é a do Grupo Gay da Bahia, que mostra que somos campeões mundiais em crimes homofóbicos. Esses números vêm aumentando ano a ano. A ausência de políticas públicas é um estímulo para que isso aconteça?

A pesquisa de assassinatos de homossexuais no Brasil, coletados pelo Gru-po Gay da Bahia, teve início em 1980, e é o maior acervo sobre assassinatos de gays, travestis e lésbicas do mundo, de modo que nenhum outro grupo dispõe de informações tão preciosas. Esse cadastro está sendo digitalizado por meio de um financiamento do Ministério da Saúde e estará disponível ainda este ano para que seja consultado. Essas informações deveriam ser divulgadas, consultadas e interpretadas pelo governo para propor políticas que erradiquem esses crimes. Temos consciência que somos os primeiros, apesar da limitação e incompletu-de desses dados. Mesmo tendo uma rede importante de informantes por todo o Brasil, muitos crimes ou são escondidos pela família, ou não se chega a revelar a verdadeira identidade da vitima. Portanto, essa avaliação de que há um as-sassinato a cada dois dias certamente é inferior aos números reais. No mínimo, deve haver um assassinato por dia no Brasil tendo o homossexual como vitima da homofobia, do machismo.

Por que o movimento brasileiro luta por união civil se em muitos outros países se pede o direito ao casamento? Por exemplo, recentemente a Suécia, que já tinha união civil, aprovou o casamento.

meros de crimes de homofobia desconcertam qualquer tipo de previsão socio-lógica, porque variam enormemente de ano para ano no mesmo Estado. A úni-ca regularidade é que todo ano, mais de 100 homossexuais são assassinados: mais gays que travestis, uma média de 70% de gays, 25% a 27% de travestis, e 3% de lésbicas. Mas há Estados que em um ano se mata mais travesti e no ou-tro se mata mais gay. O Nordeste continua sendo a região mais afetada, e Per-nambuco continua sendo um dos Estados mais violentos. E o perfil das vítimas, qual é?

São travestis assassinadas nas ruas, com armas de fogo. Os gays são assassi-nados dentro de suas casas, com armas de fogo, faca de cozinha, enforcados em fios de telefone. Isso inclui todas as classes sociais, predominando profissionais do sexo e cabeleireiros, que são as categorias mais vulneráveis, e muitos profis-sionais liberais, professores, médicos, incluindo padres e pais-de-santo. Quais são os direitos dos homossexuais que são negados?

Uma pesquisa realizada nacionalmente listou 37 direitos dos homossexuais que são negados, como o direito a se casar, adotar crianças, declarar impos-to de renda juntos, restrições de acesso à igreja, ao exército, discriminação nos planos de saúde...

Tatiana Merlino é jornalista.

Na verdade, as estatísticas quanto ao nível de homofobia no Bra-sil são extremamente variáveis e contraditórias. Ainda se ouve coisas como “viado tem mais é que morrer”, ou “prefiro ter um filho ladrão do que um filho gay”, e também “prefiro ter uma fi-lha puta do que sapatão”. Seria mais prático e econômico atingir 19 milhões de homossexuais [estima-se que pelo menos 10% da população brasileira seja homossexual] com campanhas voltadas para a população vitima de espancamento, por meio de outdoors com mensagens diretas, do que mudar a cabeça de 189 milhões de brasileiros potencialmente homofóbicos, As estatísticas de nú-

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caros amigos julho 2009 22

Guilherme Scalzilli

Há alguns anos, resolvi juntar numa estante livros sobre a realidade brasileira, uma idéia-sentimento de grande circulação entre 1930 e 1960, mais ou menos. Idéia por ser uma re-presentação ideológica dos problemas do país (o atraso, a pobreza, a exploração estrangei-ra etc.), sentimento por ser um modo social de sofrer aqueles problemas. Além de valer por si mesma, RB inspirou sucessivas estratégias de luta pelo poder, desde a Revolução de Trinta até o petismo dos anos 80.

RB foi uma poderosa invenção ideológica que deu aos seus inventores a ilusão de ver-dade única. Parte insignificante da população, capaz de publicar livros, escrever em jornais e revistas, compor músicas, fazer filmes e peças de teatro apresentou a sua idéia-sentimento do país como verdadeira; e esse fato – esse tru-que – se tornou, ele próprio, um fato histórico, capaz de gerar e guiar, até hoje, outros fatos. Realidade brasileira era parcial, embora ver-dadeira; ou verdadeira, embora parcial. Toda verdade é histórica e, mesmo enquanto dura, disputa e/ou convive com outras idéias-senti-mentos da realidade social. RB foi apenas “a melhor fórmula da Revolução de 1930” (Gra-ciliano Ramos).

Até que ponto uma ideologia, um método sociológico ou uma simples proposição sobre a realidade revela ou esconde a realidade? Que seria da economia se os economistas se per-guntassem a cada análise de mercado pelo sig-nificado universal do dinheiro? Como escrever história sem perguntar, a cada passo, pelo grau de verdade da ideologia que estamos narran-do? Tomando o subjetivo, o imaginário, o fan-tasiado, o suposto, como fato objetivo.

Sendo realidade brasileira uma fórmula para explicar o Brasil e orientar a luta organizada contra seus males históricos (o atraso, a pobre-za, o latifúndio, a exploração estrangeira), foi ela própria um fato histórico: nasceu, viveu e mor-reu. Ao falar “Brasil” o que dizemos é diferente em cada período histórico, embora algo perma-neça sob a passagem do tempo: o de Brandônio não é o dos conjurados baianos de 1798, o de Castro Alves, o de Jorge Amado, o do Chacrinha ou o do Jornal Nacional.

Nenhuma idéia-sentimento conseguira se tornar totalitária, até hoje. Todas – o alian-cismo, o integralismo, o populismo, o desen-volvimentismo, o terceiro-mundismo, o ame-o

ou deixe-o e tantas outras – tiveram contradi-tórios, mesmo quando se esconderam sob lu-gares comuns como “nossa história”, “minha geração”, “meu tempo”, “minha época” e tan-tos outros. O poder atual da publicidade-televi-são parece eliminar esses contraditórios, subs-tituindo a história pelo presente contínuo e a experiência de pensar e sentir pelo gozo supre-mo de ver sem ser visto. Nesse êxtase bigbró-dico se entretém o telespectador – sem gosto próprio, idéia própria, desígnio próprio. O de-sejo de representar toda a sociedade para toda a sociedade através de uma realidade audiovi-sual, parece agora saciado. Está?

Joel Rufino é historiador e escritor.

amigos de papelJoel Rufino dos Santos

Realidade brasileira

Parece consensual que a política externa de Barack Obama representa uma gui-nada positiva em relação ao espírito interven-cionista dos governos Bush. Mesmo a frustração parcial das enormes expectativas iniciais é cre-ditada ao gradualismo exigido por algumas radi-cais promessas da campanha democrata.

Mas a benevolência da opinião pública internacional omite a nature-za pragmática da festejada mudança de rumo. O próprio Obama admitiu que os interesses dos EUA no restante do planeta são ameaçados pelo fracasso de sua própria diplomacia agressiva e intransigente. Considerando que o presidente questionava (e atualmente modifica) os pilares históricos do predomínio norte-americano, tra-ta-se de uma pungente confissão de derrota.

E o cenário internacional demonstra que ele está certo: a potência chinesa, o predomí-nio regional russo (sob os desmandos de um grupo oriundo da KGB), o Irã dos aiatolás, a resistência cubana, a Líbia do eterno Kadafi, a desafiadora Co-réia do Norte. As regiões dominadas militarmen-te pelos EUA sofrem com marionetes ditatoriais ou viraram palco de massacres injustificáveis, destrui-ção generalizada e revolta popular.

O antiamericanismo prolifera também nas populações sob regimes democrá-ticos e liberais, como em boa parte da Europa e da América Latina – vitrines das pretensões es-tadunidenses desde o início do século passado. Ademais, quase todos os governantes em exer-cício no continente americano já foram com-batidos pela Casa Branca, individual ou coleti-vamente, durante algum processo eleitoral ou revolucionário.

São reveses sérios demais para tratarmos a moderação apaziguadora dos EUA como uma novidade inofensiva. Porém, ainda que a estratégia reformulada apenas esconda a essência intocada do paradigma geopolítico, ela demonstra uma ruptura em relação às suas pre-tensões hegemônicas originais.

O império derrotado

Guilherme Scalzilli, historiador e escritor. Autor do romance Crisálida (editora Casa Amarela). www.gui-lhermescalzilli.blogspot.com

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23junho 2009 caros amigos

Gershon Knispel

“Definitivamente é preciso acabar com as fronteiras geográficas. Elas somente elas so-brevivem a separar a humanidade”.

“Creio que o melhor para palesti-nos e israelenses seria a existência de um Estado único laico e democrático, onde todos possam con-tinuar harmoniosamente” (Georges Bourdoukan), Caros Amigos 145 e 146.

No início do século 20, ou seja, com a Revolução de Outubro, começou a se realizar não só o seu sonho, Georges, mas também o meu sonho, e de muitos outros seres humanos, de acabar com as fron-teiras entre os povos, sob a palavra de ordem “Prole-tários de todo o mundo, uni-vos”. E que destino teve esse projeto tão grandioso? A queda da maior das revoluções, a União Soviética, que provocou também a queda dos “países socialistas” da Europa Oriental em pedaços quebrados; a própria União Soviética foi quebrada em partes como a Ucrânia, Estônia, Letô-nia, Lituânia, Geórgia, Azerbaijão...

A Tchecoslováquia foi dividida na República Tcheca e Eslováquia. A Iugoslávia se divi-diu em seis: Sérvia, Croácia, Eslovênia, Bósnia, Ma-cedônia e Montenegro. Romênia, Bulgária, Polônia, Hungria, Albânia concorrem entre si sobre quem vai ser recebido primeiro com todos os direitos na União Européia. Receberão, em seus territórios não mais soberanos, os mísseis de longo alcance.

Em vez de acabar com as fronteiras, elas dobram e triplicam. E não foi o Hamas que ergueu uma fronteira entre Gaza e a Cisjordânia? Em 31 de maio de 2009, o jornal O Estado de S. Paulo publi-cou a notícia: “Direita deverá crescer no Parlamento Europeu. A maior crise econômica desde a Segunda Guerra favorece discurso nacionalista e favorece a divisão entre os países europeus de novo”.

Depois das eleições do Parlamento Eu-ropeu, a realidade é pior: em todos os países euro-peus a extrema direita nacionalista se fortaleceu. Isso vai com certeza tornar a União Européia um episódio fugaz. E a fala de Marx, de que “a religião é o ópio do povo”, que foi realmente a grande esperança que deu asas para a imaginação humana de libertação das religiões, qual foi o seu resultado?

No início do século 21, estamos en-frentando uma situação bem contrária. O funda-mentalismo muçulmano extremista pegou a idéia marxista do mundo sem fronteiras para transfor-má-la na revolução islâmica mundial, bem além do mundo hoje muçulmano. Em Israel, a idéia dos fun-damentalistas messiânicos se tornou um consenso nacional, com a tendência de expandir o país bem além das fronteiras de 1967, por meio do roubo das terras palestinas da Cisjordânia, que estavam des-tinadas a cumprir os direitos dos palestinos a um país próprio deles, em resultado das resoluções da ONU de 1947. Os cristãos fundamentalistas não fi-caram atrás.

Os milhares de colonos judeus se instalaram para derrubar a idéia de um Estado pa-lestino legítimo, ao lado de Israel. A provocação do 11 de setembro pela Al Qaida deu legitimação a Ge-orge W. Bush e a seu governo que sofria de fun-damentalismo evangélico para abrir uma cruzada contra o mundo muçulmano. Os resultados catas-tróficos dessa cruzada não foram só deixar o Iraque em ruínas, mas renovaram o pacto entre os xiitas que hoje dominam o Iraque e os xiitas do Irã, dan-do ajuda financeira e moral para o Hamas, que con-seguiu expulsar o aparelho de governo da OLP em Gaza, em meio ao processo de paz com os entendi-mentos de Oslo em 1993 e o acordo de Camp Da-vid de 1994, dois anátemas para o Hamas e para a Frente da Negação de Israel. Os primeiros querem importar a revolução islâmica total para a Palesti-na e os últimos querem a Israel total, por enquanto entre o Mar Mediterrâneo e o rio Jordão.

Quero lembrar que, ainda em junho de 2002, foi apoiado pela direção da Caros Amigos o primeiro Projeto Portas Abertas – Dois Estados para Dois Povos, e vários eventos, como a grande exposi-ção de 35 artistas plásticos judeus israelenses con-tra a ocupação e 35 artistas plásticos brasileiros dos mais renomados, foram realizados, como o álbum feito por Oscar Niemeyer e por mim contra a ocu-pação. Esse princípio de dois Estados para dois po-vos já foi adotado como um consenso internacional e foi o tema principal do histórico discurso recente

do presidente Obama na Universidade do Cairo.Pela primeira vez, um presidente ame-

ricano usava as mesmas palavras nossas para des-crever o caráter terrível da ocupação por Israel dos territórios palestinos. Contra ele se juntaram os fundamentalistas nacionalistas israelenses lidera-dos pelo primeiro-ministro Bibi Netanyahu e por Avigdor Lieberman e a liderança do Hamas, os dois lados querendo tirar da mesa o projeto de dois Es-tados para dois povos.

Essa tendência perigosa do atual governo de Israel e a divisão provocada pelo Hamas na liderança palestina deram uma grande margem de manobra para a utilização da escalada em man-ter vivo o círculo vicioso. No encontro que tive no fim de abril último em Ramallah, com a liderança da OLP, o sr. Nidal, que substituiu o sr. Jased Abed Rabo como chefe do Comitê Palestino pela Paz, me disse que a tendência é por na geladeira os dirigen-tes que estiveram à frente dos entendimentos de Oslo e trocá-los por outros.

O sr. Nidal deixou claro que, apesar dos lí-deres europeus e da OLP que ainda aderem aos dois Estados para dois povos, o entorpecimento das ne-gociações que chegou ao auge com a subida ao go-verno de Bibi Netanyahu vai resultar, enfim, num Estado binacional, em que uma nação vai pregar o apartheid contra a outra.

Num artigo passado, citei o pensador Meiron Benbenischti, que num debate em Tel Aviv, uma semana antes do início da guerra de Gaza, dis-se que já estamos de fato num Estado binacional, que enfim vai se tornar um Estado em que os ju-deus serão uma minoria, em 10 ou 15 anos. Várias vezes me perguntaram: o que vai acontecer quan-do os judeus ficarem em minoria? Respondi: “O re-lacionamento de uma maioria árabe com a minoria judaica vai ser o mesmo que a maioria judaica tem com a minoria árabe em Israel”.

À pergunta de Bourdoukan: “será tão difí-cil” um Estado binacional laico e democrático, res-pondo: “é muito difícil, quase impossível”.

Gershon Knispel é artista plástico.

Acabar com as fronteiras geográficas?

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ensaio carlos latuff

A imposição de um estado judeu na Palestina em 1948 produziu um contingente colossal de refugiados (a ONU estima atualmente em mais de 4 milhões e meio). As famílias palestinas que não foram simplesmente assassinadas pelo terrorismo sionista de gru-pos como Irgun e Haganah tiveram de fugir para países limítrofes como Jordânia, Síria e Líbano, onde vivem até hoje em campos de refugiados. No ano do 61º aniversário do que os palestinos acertadamente cha-mam de A Catástrofe, estive no Oriente Médio, a convite da al-Hanou-neh Society for Popular Culture, e visitei três destes campos: Marka/Shnillar e al-Baq’a na Jordânia, e al-Badawi no Líbano. Neles encontrei um povo marginalizado, sobrevivendo em condições muitas vezes pre-cárias, semelhantes às favelas brasileiras, esquecido pelo Ocidente e por vezes, como no Líbano, correndo o risco de ser massacrado por milicias hostis ou mesmo pelo governo, como aconteceu no campo de Nahr al-Bared em 2007. Esta população sequer pode regressar a sua terra na-tal, já que seu direito de retorno é sistematicamente negado por Israel. Este ensaio é um tributo aos palestinos da diáspora.

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caros amigos julho 2009 26

entrevista Marina Silva

mulher, negra, pobre. Alfabetizada aos 16 anos. Do interior do Acre ao planalto central. De seringueira a ministra do Meio Ambiente. As muitas lutas de Marina Silva ao longo de sua vida

parecem ser pequenas se comparadas à que trava atualmente: impedir que a mentalidade predatória de desenvolvimento que dita as regras no Brasil e no mundo não termine por destruir de vez o planeta Terra. A hoje senadora pelo PT define a recente investida ruralista para flexibilizar a legislação am-biental do Brasil como um “conjunto de mudanças que representam um re-trocesso. Está se armando uma bomba de efeito retardado que não poderá ser contida na hora em que o país voltar a crescer”. Como principal exemplo, a Medida Provisória 458, que pretende regularizar áreas de até 1500 hectares na Amazônia. Segundo Marina, a medida premiará a grilagem. “É um pro-cesso de privatização de 67 milhões de hectares de floresta”.

Marcos Zibordi: Sempre começamos as nossas entrevistas pedindo ao entrevistado que conte suas lembranças mais remotas de infância.

Marina Silva: Tenho muitas lembranças, guardei muitas coisas de uma ida-de muito tenra. Uma lembrança muito boa é da minha coleção de bonecas de pano, que a minha avó fazia. Eu tinha doze bonecas de pano, lembro o nome de algumas delas: tinha a Estefânia, que era uma boneca mais ousada, usava umas roupas menos tímidas. Tinha a Hilda, que era a matriarca do conjunto das bonecas, porque eu sou de uma família de matriarcas, do lado da minha mãe e do lado do meu pai. E a minha avó, quando fez as bonecas, já disse que a Hilda era quem comandava o clã. Tinha o Jacinto, que era um meni-no bem levado, e o Catifum, que era um bonequinho aleijado, e tinha todos os cuidados especiais. Fui uma criança amplamente estimulada desde a mais tenra idade até a adolescência.

Marcos Zibordi: Fora essas lembranças mais tenras, por volta de dez, doze anos, o que você já estava fazendo? O primeiro namorado?

Na verdade, essa ideia de namorado veio surgir muito depois, pois desde cedo eu queria ser freira. Aprendi sobre o cristianismo com a minha avó Júlia, que era analfabeta. Foi ela quem me ensinou rudimentos do cristianismo. Ela tinha um catecismo para analfabetos, com ilustrações da Capela Sistina. Desde aquela épo-ca eu dizia à minha avó que eu queria ser freira, e ela dizia: “minha filha, freira não pode ser analfabeta”. Então, para ser freira, eu tinha que estudar. Tatiana Merlino: A família toda morava junto?

Eu morava na casa da minha avó. Minha irmã morava com os meus pais.

Tatiana Merlino: Por que a senhora morava com a sua avó e não com os seus pais?

Minha avó fez meu parto, em 1958, e se apegou muito a mim. Foi se criando um vínculo muito forte entre eu, minha avó e a minha tia que morava com ela. Eu passava o dia com ela, e às quatro, cinco horas da tarde, ela me trazia para dormir em casa com a minha mãe. Depois eu comecei a querer ficar dormindo lá e a insistir para a minha avó pedir para que eu fosse morar com ela. Até que um dia ela tomou coragem e foi falar com a minha mãe. E a minha mãe falou que iria falar com meu pai, e é lógico que ela queria um período para tentar me persuadir. Mas uma hora eu disse: “quero morar com a minha avó”. Só nos se-paramos quando eu fui morar na cidade, aos 16 anos.

Tatiana Merlino: E como era o trabalho no seringal? Era pesado, difícil, tinha que andar 14 quilômetros por dia, de segunda a

sexta. Meu pai trabalhava nessa atividade, e nós começamos, eu e minha irmã

A senadora Marina Silva conta porque que vive um dos piores momentos de sua vida, período em que o país enfrenta uma “operação desmonte da legislação ambiental”, encabeçada pelos ruralistasMarcos Zibordi e Tatiana Merlino | Fotos Roberto Jayme

"o setor mais atrasado do agronegócio quer mudar a legislação ambiental"

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27junho 2009 caros amigos Novo sítio: www.carosamigos.com.br

mais velha, quando eu tinha dez ou onze anos, a ajudá-lo a cortar seringa. No nosso caso, era uma mistura de trabalho, mas também com muita diversão, por-que nossos pais eram muito cuidadosos. A gente não trabalhava além daquilo que agüentava. E se enquanto a gente roçava, o sol começava a ficar quente, e as abelhas e os mosquitos começavam a apavorar, a gente tinha toda liberdade de ir para debaixo de uma moita, buscar uma água fresquinha. Então, a gente nadava no igarapé, ficava lá tomando banho e voltava. Mas a gente também tinha disciplina, eu e minha irmã.

Tatiana Merlino: Então eram quantas horas de trabalho por dia?

Cortando a seringa, a gente começava geralmente às cinco da manhã, meu pai saía mais cedo, por volta de quatro, quatro e meia. Nós saíamos por volta de cinco horas, porque a gente tinha medo de onça. E fechávamos o corte por volta de uma hora da tarde. Aí, geralmente, ficávamos liberados para ir no iga-rapé, tomar banho, lavar roupa, trazer água para casa.

Tatiana Merlino: Foram cinco, seis anos nesse trabalho? Foi aos 16 anos que a senhora foi para Rio Branco?

Até os 16 anos, mas durante as férias, eu voltava e trabalhava igualmente com minhas irmãs, no roçado e na extração da borracha. O povo era muito ri-goroso, queria ver se eu não estava metida a besta. Então, não podia nem re-clamar que tinha feito calo na mão (Risos).

Tatiana Merlino: Mas como é que foi a ida para a capital? A ida para a capital foi um processo de muita maturação.

Marcos Zibordi: Traumático? Não, não foi traumático. Mas antecedendo tudo isso, teve muita dor. Com

certeza uma dor muito traumática que depois precisou ser muito bem elabora-da e transformada em passado, porque durante muito tempo ela ficou presente em minha vida. Teve um surto de malária muito grande naquela região, não só no nosso seringal. Também teve um surto de sarampo. Morreram minhas duas irmãs mais novas, uma de seis meses e uma com um ano e seis meses, quinze dias de uma para outra. Morreu a minha mãe, seis meses depois, não de malá-ria e sarampo, mas de aneurisma. Morreu meu tio, de malária e sarampo tam-bém, e meu primo e minha avó materna. Então, foi uma coisa muito, muito di-fícil. Quando minha mãe morreu, eu estava com quatorze anos. Minha irmã já estava adulta, a mais velha, e um ano depois ela se casou e eu fiquei à fren-te da casa. Só que eu peguei uma hepatite, fiquei muito doente, não conseguia mais me alimentar direito, perdi muito peso, aí não consegui mais trabalhar. E fui ficando muito triste. A gente dizia que era tristeza, mas na verdade eu es-tava deprimida, porque como eu não tinha saúde, não conseguia mais fazer as coisas. Eu era uma adolescente muito ativa e, digamos assim, eu tinha muito orgulho das coisas que eu fazia, eu sabia cortar, sabia cuidar do roçado. Come-cei a pensar: “acho que agora é o momento para eu ir para a cidade cuidar da minha a saúde e estudar para ser freira”.

Marcos Zibordi: Essa vontade de estudar era uma opção intelectual sua somente, ou era uma coisa de estudar para a igreja, estudar para ser freira?

Eu tinha uma vontade de conhecimento e era uma criança considerada es-tranha. Havia perguntas que a maioria das crianças faz, mas eu fazia com mais persistência, tipo “o que é que está depois do azul do céu?” Isso deixava a mi-nha avó impaciente, minha mãe já dava um corte. Então, havia essas pergun-tas todas, mas com certeza eu tinha um objetivo, freira não podia ser analfabe-ta, então tinha que vencer uma etapa, estudar para vencer. É claro que eu estou elaborando isso hoje, mas era como eu sentia. Eu sabia que as pessoas que não tinham conhecimento tinham uma desvantagem, porque o meu pai sabia ler e escrever e ele era muito bom de matemática.

Marcos Zibordi: Não passavam ele para trás na hora de acertar? É, não passavam. Então, as pessoas, os seringueiros, que 99% eram analfabe-

tos, geralmente aos sábados iam lá até a casa do meu pai, que fazia as contas para ver se eles iam tirar saldo. E eu sentia que como aquelas pessoas não sabiam ler e fazer contas, elas eram enganadas. E eu aprendi matemática muito cedo para poder vender a borracha quando meu pai não estava, para não ser enganada no preço da borracha. Mas não sabia ler, escrever e não sabia a hora de relógio.

Tatiana Merlino: A senhora se alfabetizou aos dezesseis anos mesmo? Na verdade, aos dezesseis anos e meio. Fui para Rio Branco estudar em se-

tembro de 1975. A primeira coisa que eu procurei foi onde tinha uma igreja e uma escola. A igreja para ver se eu fazia algum contato com alguma freira para já me encaminhar para os meus objetivos estratégicos de ser freira, e a escola porque era a barreira que teria que ser vencida para poder ser freira. E eu fui nessa escola chamada Natalino da Silveira Brito, que foi onde fiz o Mobral. O curso tinha começado em fevereiro e isso era em setembro. Quando cheguei na sala de aula, a professora já estava ensinando os sons das letras, os fonemas, os dígrafos. Então eu fiz um cálculo matemático na minha cabeça, que b mais a é “ba”. Foi uma conta de somar mesmo, n mais a, “na”, então, banana. Isso eu consegui como se fosse uma coisa mágica. Eu pensei “É só você aprender as le-tras, o som das letras e somar o som das letras”. Aí eu fui para casa determina-da a aprender as letras e o som das letras, e somar era comigo mesma. Em quin-ze dias, eu já conseguia ler as coisas que estivessem em letra de forma. Como eu sabia muito bem as quatro operações, a professora achou que eu deveria ser transferida para uma outra sala, que era de educação integral, equivalente aos quatro anos do primário. Na primeira vez que eu entrei na sala de aula, tinha uma folha de papel, que era a chamada, mas a professora botou meu nome em cima do cabeçalho, e chamou: “Marina Osmarina”. Eu levantei e fui até a mesa dela, porque na minha turma anterior nem tinha chamada, e ela perguntou: “o que você está fazendo aqui, menina? Quando a gente chama, responda presen-te, você é abestada?” E todo mundo deu boas risadas, eu fiquei muito envergo-nhada e sai dali pensando: “será que eu volto para estudar de novo?” No ou-tro dia, decidi que sim, porque se eu não voltasse iam me chamar de abestada para o resto da vida. E eu trinquei os dentes, entrei na sala de aula, fui lá para a última carteira, e ela chamou “Marina Osmarina”, e eu falei “presente”. E todo mundo falou “Ah, agora já aprendeu, e deram nova risada”. Então, no final do ano, eu fiz um provão e, dos 46 alunos, passaram três, e eu era uma das três. Com isso, eu conclui o primário e me matriculei na quinta série já morando na casa da Madre Eliza, no Instituto Imaculada Conceição.

Tatiana Merlino: Senadora, e a militância política, quando começou? Foi nessa época?

Foi. Na verdade, a militância política começou quando eu conheci o Chico Mendes e o Clodovis Boff.

Tatiana Merlino: Como foi? Eu morava, como eu disse na casa da Madre Eliza, que era uma casa onde se

fazia um pré-noviciado. Lá, tinha uma divisão. As irmãs madres conservado-ras, que eram pessoas muito boas, dedicadas, mas não de se envolver com po-lítica, nem com movimentos sociais, e as progressistas, entre essas, a irmã Bea-triz, e as outras às vezes falavam: “poxa, a Beatriz fica se envolvendo com esse pessoal aí, com esse bispo comunista”. Era o Moacir Greck, que dava suporte e amparo ao trabalho que era feito pela Contag, pelo Chico Mendes, pelos movi-mentos que lutavam defendendo os direitos dos seringueiros e dos índios con-tra a invasão dos fazendeiros. E aquilo era um dilema na minha cabeça, porque eu sabia que o Dom Moacir defendia os seringueiros que estavam sendo expul-sos, mas ele era chamado de bispo comunista de uma forma pejorativa. E eu pensava: “meu Deus, por que ele defender a gente é ser uma coisa ruim, é ser comunista? Por que ser comunista é uma coisa ruim se o que ele está fazendo é bom?”. Aí, um dia, tinha um cartaz bem tímido numa cartolina azul escrito de vermelho na porta da sacristia, “Curso de Liderança Sindical Rural”, algu-ma coisa assim, com a participação de Clodovis Boff e Chico Mendes. Eu olhei para aquilo e pensei: “agora é que eu vou entender esse negócio de curso co-munista”. Aí, me inscrevi.

Tatiana Merlino: A senhora já sabia quem eles eram? Eu sabia quem eles eram, mas não tinha proximidade. Na época tinha 17

para 18 anos. Aí, quando eu vi o cartaz, pensei: “agora eu vou entender isso”. E me inscrevi. Quando chegamos em casa, eu falei para a madre que eu que-ria o sábado e parte do domingo para fazer o curso. E ela perguntou que curso era esse. Respondi que era um que o padre queria que a gente fizesse. Obvia-mente, ele não disse que queria que eu fizesse, mas imaginei que, como ele bo-tou a cartolina ali, ele queria que a gente fizesse (Risos). Então, ela disse: “En-tão está bom, você faz as suas coisas na sexta-feira, adianta o trabalho que tem

"o setor mais atrasado

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para fazer e pode fazer o curso”. E foi assim que eu conheci o Chico Mendes e o Clodovis. E aí me apaixonei pela Teologia da Libertação. Comecei a receber o jornal que o Chico Mendes mandava para mim, e me interessar pela literatura que a irmã Beatriz tinha. Então, entrei em conflito, sem saber se eu queria mesmo ir para o Rio de Janei-ro ser freira, uma proposta mais conservadora, recolhida, ou se que-ria me envolver mesmo com o movimento das comunidades de base. Porque ai eu já conhecia o trabalho que tinham os leigos, as pessoas que não necessariamente precisavam ser freiras ou padres, e come-cei a me encantar com aquilo tudo. Quando a irmã me chamou e disse que eu iria para o Rio de Janeiro, depois de um período pedi para sair. E fui trabalhar como empregada doméstica.

Tatiana Merlino: Isso simultâneo à militância? Isso, aí eu já estava completamente envolvida, aí eu fui para a Estação Ex-

perimental e comecei a trabalhar nos grupos de comunidade de base. Em me-nos de um ano eu já tinha sido eleita coordenadora da paróquia do Cristo Res-suscitado, e em 79 eu ia fazer o vestibular, só que fiquei com hepatite de novo e perdi. A essas alturas já tinha conhecido uma pessoa no trabalho da igreja, que foi meu primeiro marido, pai dos meus dois filhos mais velhos. No final de 80 fiz o vestibular e passei. Terminei a faculdade em 84.

Tatiana Merlino: A senhora poderia falar um pouquinho sobre o período da militância junto ao Chico Mendes, fundação da CUT...?

Era uma militância muito intensa, porque eu fazia o movimento estudantil, e ainda tinha alguma relação com a comunidade de base. Já conhecia o Chico Mendes, já estava envolvida com a luta dos seringueiros e, ao mesmo tempo, era professora na escola que estudei. Ai me envolvi com o movimento dos pro-fessores, porque nós éramos do movimento pró-CUT, mas o PC do B, que era a direção do sindicato, era contra a criação da CUT. Então eu era da oposição sin-dical, e me dividia entre isso e ir acompanhar parte das coisas que aconteciam na organização que fazia parte já, um partido clandestino, chamado PRC, que atuava um pedaço dentro do PT e um pedaço dentro do PMDB. Quando veio o processo de criação da CUT e teve o congresso da CUT estadual, foi eleito o Chico Mendes coordenador e eu a vice-coordenadora.

Tatiana Merlino: E a iniciação na vida política, no PT? A ligação com o PT começou desde cedo, em 80, porque estava ligado a essa

coisa do Chico Mendes e das comunidades de base. Desde o início nós nos con-siderávamos fundadores do PT, mas eu só fui me filiar ao PT em 85, por causa do Chico Mendes. Ele ia sair candidato, e articulamos que eu sairia candidata a deputada federal para ajudar o Chico na zona urbana, puxar voto para ele ser deputado estadual, e fazer o debate da Constituinte em 88.

Tatiana Merlino: Vamos dar um salto aí. Como foi a chegada ao Ministério do Meio Ambiente?

A chegada ao Ministério do Meio ambiente é parte e fruto dessa trajetória de quase trinta anos de luta social, sócio-ambiental, em que eu sai de uma atu-ação local, quando fui eleita em 95 para o Senado, e comecei a ter uma atua-ção nacional. Mas um nacional que não perdia essa raiz com as causas com as quais eu havia militado a vida toda, dos direitos humanos das populações tra-dicionais das florestas, da preservação da Amazônia e como isso podia transi-tar da minha realidade no Acre para a realidade de uma Amazônia mais am-pla. Teve um acolhimento muito grande por parte dos senadores. Nunca sofri aqui nenhum tipo de preconceito, fui recebida com muito respeito, e eu tam-bém não gosto desse negócio de me vitimizar. Acho que muitas vezes os emba-tes são por causa das minhas ideias, por aquilo que eu faço, por aquilo que eu digo, por aquilo que eu sou, por minha visão de mundo.

Marcos Zibordi:E não foi esse o problema justamente da sua atuação no Ministério, o peso institucional que isso tomou?

Ah sim. No Ministério, essa bagagem toda enfrentou três problemas. Um de-les: nós éramos um partido que no plano nacional não tinha a experiência de in-tegrar as visões e as propostas do que a gente pensava para o Brasil. Então, al-guns elaboravam a educação do PT. Outros elaboravam o que seria a saúde, a

política econômica. E para a política ambiental, era um grupo bem menor, por-que tanto o PT quanto os demais partidos não têm um acúmulo na questão só-cio-ambiental. Então era mais um grupo de pessoas que tinha muita dificuldade de transitar dentro do partido. Então, na questão ambiental, não nos eram dadas muitas escolhas. Porque boa parte das questões ligadas a um marco regulatório já haviam sido feitas, porque temos avanços significativos em todos os gover-nos. E qual era o passo de qualidade a ser dado pelo governo do presidente Lula com o respaldo social que vinha das urnas e de uma proposta com uma base po-pular muito forte? No meu entendimento, a implementação da legislação. E isso não era fácil. Então, a gente se perguntou: o que pode unir o mundo, o que pode unir a sociedade, os empresários? Ninguém vai ser contra que se tenha contro-le e participação social, ninguém vai ser contra o desenvolvimento sustentável, ninguém vai ser contra o fortalecimento do sistema nacional de meio Ambiente e ninguém vai ser contra que a política ambiental perpasse os diferentes setores das políticas públicas. Isso se configurou de uma forma mais delineada no plano de combate ao desmatamento da Amazônia. Tivemos todo um esforço de políti-cas públicas estruturantes, políticas públicas que não são apenas anúncios, coi-sas que efetivamente você pode medir, verificar, que fazem a diferença. Criar 24 milhões de hectares de unidades de conservação na frente da expansão predató-ria é algo que fez a diferença para a diminuição do desmatamento. Aprovar no Congresso Nacional uma lei que estabeleceu que qualquer área que esteja sendo degradada poderia ser interditada por um ato do governo por seis meses, prorro-gado por mais seis meses até que se fizesse os estudos para se decidir o que se fa-ria com aquela área, isso é algo muito objetivo. Aprovar uma lei de florestas pú-blicas num país que há 400 anos explora as florestas e que nunca teve uma lei para dizer como é que se explora essas florestas, isso dá muito trabalho. Criar o Instituto Florestal Brasileiro, criar o Instituto Chico Mendes, fazer licenciamentos complexos, como foi o caso do Madeira, do São Francisco. Estabelecer um pro-grama junto com o Ministério da Defesa e o Ministério da Justiça para enfren-tar as quadrilhas organizadas e, com isso, conseguir botar 750 pessoas na cadeia, apreender 1 milhão de metros cúbicos de madeira, aplicar 4 bilhões em multas, desconstituir mil e quinhentas empresas criminosas. Isso são coisas estruturais e isso mexe com o interesse. Seria praticamente impossível fazer isso se você não tivesse o suporte do próprio governo. Não foi uma pessoa que fez isso tudo, o presidente Lula chancelou e fez tudo isso juntamente comigo e minha equipe. O problema é que chegou o momento em que os tensionamentos que iam sendo ge-rados, no meu entendimento, chegaram a uma situação limite.

Tatiana Merlino: Com quem foram os principais embates? O principal embate foi, em primeiro lugar, com a visão de desenvolvimen-

to que se tem para o mundo e para o Brasil. Existe o paradigma de desenvolvi-mento que está estabelecido até hoje e não foi quebrado. É a ideia da infinitude, do não-limite dos recursos naturais, como se fossem ilimitados e como se nós pudéssemos extrair o quanto quisermos, do jeito que quisermos, para nos de-senvolvermos numa perspectiva linear. Isso talvez seja o maior inimigo dessas políticas públicas que nós estamos falando, e isso se materializa nos nossos fa-zeres, dentro da visão empresarial de alguns setores, dentro da visão de gestão pública de um e de outro e até mesmo da de formadores de opinião, que advo-gam também esses modelos. Então, do ponto de vista prático e objetivo, isso se confrontava muito com a visão de como fazer a infraestrutura logística no Bra-sil, na área de transportes. Sobretudo, se confrontava com como suprir o país com a necessária produção de energia. O Brasil precisa de energia, precisa cres-cer, precisa gerar emprego. Mas como suprir o Brasil de energia, sem que isso signifique continuar o modelo insustentável de fazer hidrelétricas, ou a forma insegura de ficar apostando em produção de energia nuclear? Do ponto de vis-ta de outras ações, como o Ministério da Agricultura, os tensionamentos que existiam com esses setores não são diferentes dos que nós temos na sociedade.

“As pessoas querem mudanças. E aí eles me tomam como símbolo e me colocam como candidata a presidente da República para dizer

‘esse tema é importante’”

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Podemos sim fazer uma transição do modelo predatório para o sustentável. Da visão desenvolvimentista para uma visão sustentabilista de desenvolvimento.

Tatiana Merlino: Essa visão desenvolvimentista prevaleceu, então?Eu não digo que ela prevaleceu, infelizmente ela está prevalecendo no mun-

do inteiro. Se você verificar o que está acontecendo na Europa, Índia, Estados Unidos, China, Japão, não vai ser diferente.

Tatiana Merlino: Mas eu digo dentro do governo Lula. Houve uma opção ao se dar o Ministério do Meio Ambiente e o do Desenvolvimento Agrário para a esquerda e a agricultura para a direita...

Mas vamos pegar a coisa de uma maneira menos simples. Isso é algo que está colocado no mundo. Seria muito idealismo achar que o governo Lula seria algo puro como eu estou dizendo. Inclusive porque, como eu disse, esse acúmu-lo não estava dentro de nenhum partido, nem do PT. Para aquele desafio, con-seguimos colocar estacas muito poderosas. Sabemos que essas estacas foram fincadas e que esse é o desafio deste século. Será que vamos ter a capacidade, não só como governo, mas como sociedade, de fazer esse transito? Foi esse o esforço que eu e minha equipe fizemos durante esse tempo. É paradoxal: tem que crescer, tem que ter energia, agricultura, mas tem que preservar.

Marcos Zibordi: É evidente que esse modelo que o PT adotou é diferente do modelo que você pensaria em muitos pontos, e isso me faz perguntar o seguinte: se a senadora Marina Silva quiser continuar na sua luta, ela vai ter que ser candidata à presidência fora do PT?

A mudança que precisamos fazer tem que considerar três coisas: a visão, o processo e a estrutura. Uma visão que seja capaz de perceber uma solução para algo que está comprometendo em 30% a capacidade de regeneração do plane-ta, que seja generosa sobretudo com aqueles que ainda não nasceram. Em se-gundo lugar, um processo que seja acolhedor dos diferentes olhares, que tenha capacidade de escuta apurada para ver de onde vem os sussurros da mudança. Hoje, o desenvolvimentismo berra nos nossos ouvidos. Mas a mudança para a sustentabilidade são apenas sussurros. Como transformar esses sussurros em palavras? É preciso uma escuta muito apurada. É um processo horizontal e tem que ser generoso, capaz de acolher a visão dos empresários, dos militantes dos movimentos sociais, da academia, das ONGs, da juventude...

Marcos Zibordi: Mas a senhora vai ser candidata ou não?Isso não está colocado para mim. Existe um movimento de alguns jovens na

internet que eu entendo muito mais como simbólico, e que tem a ver com o que eu estou dizendo. As pessoas querem mudanças, querem ver que isso é impor-tante dentro dos processos decisórios. E aí eles me tomam como símbolo e me colocam como candidata a presidente da República para dizer “esse tema é im-portante” para ser tratado na mais alta esfera de decisão. Mas quero continuar o meu raciocínio. A estrutura deve contar também com o apoio de todo mun-do, mas ela deve ter também uma certa plasticidade para poder ser capaz de fa-zer as adaptações necessárias, corrigir os rumos. O leito que está aí do desen-volvimentismo predatório nós não queremos. Temos que corrigir esse desvio da sustentabilidade econômica, social, cultural, ambiental. E no Brasil nós temos a benção de ter um conjunto de forças sociais que querem isso. A pesquisa do datafolha diz que 94% das pessoas preferem pagar mais pelo grão e pela carne do que ver a Amazônia sendo destruída. No Brasil, está se desperdiçando essa força e energia para ficar refém de uma mentalidade que com certeza não será boa para o Brasil e muito pior para o planeta.

Tatiana Merlino: Senadora, caso o presidente Lula não vete os três artigos da MP 458 que a senhora e muitos outras pessoas da sociedade civil querem, a senhora cogita sair do PT e ir para o PV?

Eu estou muito apreensiva com essa medida 458. Eu disse que ela é a terceira pior coisa que aconteceu na minha vida. Esse processo de privatização de 67 mi-lhões de hectares de floresta na Amazônia, o equivalente a um patrimônio do povo brasileiro de 70 bilhões de reais, se não forem tomados todos os cuidados, é como se fosse uma bomba de efeito retardado. Quando o país voltar a crescer, talvez não haja como controlar o peso de tudo isso. Ela [MP 458] já veio com problemas na sua origem. Está se pedindo que se faça três vetos, inclusive o que possibilite a vis-toria para separar o joio do trigo. E eu estou na expectativa de que o presidente Lula

possa vetar, até porque conhece como ninguém o que acontece na Amazônia. Nin-guém pode dizer que esses 67 milhões de hectares são apenas para aqueles que fo-ram estimulados por políticas publicas no passado. Existe um processo de ocupação ilegal e criminosa nos últimos 15, 20 anos, desde que o Brasil tem uma legislação que proíbe essa forma de ocupação. Estou na expectativa que seja vetado, embora não resolva a natureza dos problemas que já havia na origem. Mas vai ser um ate-nuante. Para as pessoas sentirem que não se está simplesmente anistiando aqueles que desrespeitaram a lei, usaram de violência e que até seifaram vidas.

Marcos Zibordi: Queria que a senhora descrevesse esse desmonte dessas leis, quais são os principais problemas que estão acontecendo, quais são os principais ataques à Amazônia.

Tatiana Merlino: Uma avaliação da ofensiva ruralista, a flexibilização das leis ambientais, tanto a MP 458, como mudanças no código florestal, licenciamento de obras em rodovias federais, como a BR 319...

Essa operação desmonte da legislação ambiental é, no meu entendimento, fruto de uma visão equivocada com a qual o teste de implementar a legislação se deparou. Em vez das pessoas fazerem um esforço para passar no teste, elas o estão alteran-do. Em relação à regularização fundiária. Em relação à questão da proteção das ca-vernas. Na regulamentação da proteção das florestas de crimes ambientais. E, ago-ra, vem a tentativa máxima de criar um código ambiental para o país, mexendo na lei de crimes ambientais, no sistema nacional de unidades de conservação, na polí-tica nacional de meio ambiente, nas competências do Conama, tornando-o apenas um conselho consultivo. É um conjunto de mudanças que representa um retroces-so. Está se armando uma bomba de efeito retardado que não poderá ser contida na hora que o país voltar a crescer. Está se transferindo 60 milhões de hectares de uni-dades de conservação. Se isso prosperar, será avassalador para os próximos anos da

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política ambiental do país. Isso é assustador, particularmente essa mudança no código ambiental, porque existe um setor que agora se sente tão à vontade que não bastava ter conse-guido algo que eles vem tentando nos últimos 20 anos, que é a transferência dessa quantidade de áreas de terra. Agora eles querem mudar toda a legislação ambiental.

Tatiana Merlino: Que setor é esse, senadora?O setor mais atrasado, ligado ao agronegócio. Eu nunca gosto de generali-

zar como sendo o agronegócio inteiro. Mas existe uma parte que tem uma visão atrasada e que não consegue perceber que o melhor para a agricultura é transi-tar do modelo insustentável para o modelo sustentável, o que pressupõe o res-peito à reserva legal, à área de preservação permanente, o uso de forma inten-siva das áreas que foram abertas, uso de novas tecnologias. Existe um custo, mas ele está sendo depositado na conta da natureza. Daqui um tempo, ele será devolvido com menos chuva, menos possibilidade de polinização, e uma série de prejuízos. E, daqui a pouco, talvez seja tarde demais.

Tatiana Merlino: E como fica o presidente Lula diante desse cenário? Recentemente ele declarou que as ONGs estavam mentindo, não estavam dizendo a verdade que a MP 458 ia abrir as portas da grilagem da Amazônia. Como ele fica diante desse cenário, dessa investida?

As ONGs e eu mesma dizemos que essa medida provisória, se não tiverem os cuidados necessários, vai favorecer a grilagem. Ela favorece a grilagem quan-do não assegura a questão da vistoria acima de 100 hectares, até os 4 módulos fiscais. Porque existem também os laranjas para os 400 hectares. Ela favoreceu a grilagem quando não fez o recorte para regularizar as posses até 4 módulos fiscais. Se tivesse feito esse recorte, beneficiaria 81,1% das posses e utilizaria uma área de terra de cerca de 7 milhões de hectares. Por ter ido até os médios e grandes é que ela vai para 67 milhões de hectares.

Marcos Zibordi: Esses 20% fizeram crescer em 10 vezes o tamanho...Exatamente. Em nome dos pequenos, se favorece os grandes. Quando o rela-

tor coloca lá as emendas que dizem que os que têm ocupação indireta e o que são pessoa jurídica também podem regularizar, ela descumpre o preceito constitucio-nal que diz que terras públicas só podem ser alienadas por relevante interesse so-cial. E quando foi estabelecido que os grandes poderão vender essas terras, a maior parte depois de três anos, isso é para dar liquidez rápida a esses que se apropriaram de terras publicas. Com a MP, é possível regularizar como pessoa física e em nome de quantas empresas precisar. Primeiro é só um frigorífico, depois tem uma madei-reira, uma agropecuária, vai pegando 1500 em nome de cada um desses entes jurí-dicos e de seu nome próprio. Então, quando se diz que favorece a grilagem é algo objetivo. E, para desconstruir isso, é preciso que se seja objetivo, que haja veto nes-ses artigos que foram propostos, que se faça vistoria. Até porque existem pessoas

que estão dentro dessas áreas aí há 20, 30, 40, 50 anos. Como elas vão fazer para ganhar uma disputa com quem pode advogar na perspectiva de que essa terra vai ser dele, e que daqui a três anos ele vai poder vendê-la?

Tatiana Merlino: Os movimentos levantaram a possibilidade de, caso a MP seja sancionada, entrarem com uma Ação de Inconstitucionalidade. O que a senhora acha disso?

É um dos caminhos, buscar uma regulamentação correta apelando inclusive para o centro de justiça e comprometimento que o presidente Lula tem com essa agenda de combate à violência e à grilagem. É em nome disso que se espera que haja o veto e um processo de regulamentação que corrija esses problemas.

Marcos Zibordi: A sensação é que sua saída ocorreu porque não havia mais condição, e que o Minc seria mais flexível. Mas ele também esta entrando em embates corriqueiros. Essa MP [458], assim que foi aprovada na Câmara dos Deputados, o ministro Carlos Minc deu uma declaração dizendo que tinha sido uma vitória dos ambientalistas. Deu um trabalho danado pra que se pudesse dizer que não foi vitória nenhuma e que tínhamos uma coisa grave. Depois ele percebeu e passou a trabalhar também pelos vetos. [Na gestão Minc] temos um tensionamento político em termos de palavras, mas na prática temos uma situação muito dramática, de muitas perdas para a questão ambiental.

Marcos Zibordi: Em que mundo que seus netos vão viver?Eu quero muito que o mundo seja melhor do que ele é hoje, que a Amazônia

continue a Amazônia, o Cerrado, a Mata Atlântica, que não haja um derretimen-to do gelo no ártico tão violento. Mas meu compromisso não é apenas com o meu neto, tem que ser com todos aqueles que ainda não nasceram, os filhos dos filhos dos filhos. Se ficarmos pensando apenas no nosso filho e no nosso neto, isso foi o que nossos pais pensaram e deu no que deu. Temos que pensar além deles e a con-tribuição tem que ser dada agora, por cada um de nós, porque estamos diante de uma esquina civilizatória, que é também uma esquina ética.

Alguns dias após a entrevista, o presidente Lula decidiu vetar apenas uma parte do artigo 7º da medida provisória 458, que permitiria a transferência de terras da União para empresas

“[Na gestão Minc] temos um tensionamento político em palavras, mas na prática temos uma situação dramática,

de muitas perdas para a questão ambiental”

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31junho 2009 caros amigos

Plínio Teodoro

antes de começar a ler este artigo, respire profundamente. Considerada o pulmão do mundo, a região amazônica passa por mais

um sufocamento iminente: o de ver cerca de 12% de seu território cair, agora oficialmente, nas mãos dos latifundiários de rapina da pecuária de corte. O fato não é novo. Três meses antes de seu suspi-ro final, o seringueiro Chico Mendes já alertara, em entrevista durante o terceiro congresso nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT), em 9 de se-tembro de 1988: “Essa força nova (dos defensores da floresta) que cresceu, serviu pra deixar os gran-des latifundiários cada vez mais preocupados. Hoje, a UDR (União Democrática Ruralista) se preocupa muito em tentar se estruturar na Amazônia”.

A aprovação da Medida Provisória 458 – que trata da “regulamentação” fundiária na Amazônia – pela Câmara dos Deputados e a entrega da MP para a re-latoria da senadora Kátia Abreu (DEM-TO), presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), es-trangularam as ações de ambientalistas e dos povos que lutam pela sobrevida – por meio do extrativismo – da maior floresta tropical do mundo.

Um levantamento minucioso da organização não governamental Greenpeace – que é mantida interi-namente com recursos de pessoas físicas – estima que entre 80 e 120 bilhões de toneladas de carbono estejam estocados na Amazônia. Se destruída, a flo-resta liberaria o equivalente a 50 vezes as emissões anuais de gases do efeito-estufa produzidas pelos Estados Unidos, sufocando, de vez, o planeta.

Desenvolvido ao longo de três anos, o estudo mostra que, segundo dados do próprio governo brasileiro, “a pecuária é responsável por cerca de 80% de todo o desmatamento” na região. Isto signi-fica que a cada 18 segundos, um hectare de floresta Amazônica, em média, é convertido em pasto.

O relatório revela ainda que os tentáculos de uma conturbada figura, que firmou seu império durante o – no mínimo - duvidoso processo de privatização conduzido durante o governo Fer-nando Henrique Cardoso, é o principal ponto de estrangulamento do planeta.

Segundo dados obtidos pelo Greenpeace em fontes oficiais do poder público, nada menos que as cinco maiores áreas devastadas na Amazônia es-tão em fazendas que pertencem à empresa Agrope-cuária Santa Bárbara, do grupo Opportunity. Sim, dele, Daniel Dantas, preso durante a Operação Sa-tiagraha, da Polícia Federal, acusado de lavagem de

vultosas quantias de recursos de origem duvidosa em paraísos fiscais - entre outros crimes – e conde-nado a 10 anos de cadeia por tentar corromper um delegado federal durante a fase investigatória.

Das teles às terrasClaramente beneficiado no processo de desesta-

tização das teles pelo então ministro das Comunica-ções, Luiz Carlos Mendonça de Barros, e pelo pró-prio presidente Fernando Henrique Cardoso – que chegou a declarar em escuta telefônica que iria in-terferir junto ao Banco do Brasil para que a Previ, o fundo de pensão dos funcionários da instituição, associa-se ao grupo Opportunity – o controverso banqueiro baiano é acusado pela Polícia Federal de remeter a paraísos fiscais até 2 bilhões de reais. Há suspeitas de que parte destes recursos seja oriundo do processo de privatização do sistema Telebrás, la-vados por meio do Opportunity Fund, o fundo de investimentos criado por Dantas.

Enquanto o banqueiro se digladiava com ex-sócios para assumir o controle do sistema de te-lecomunicações do país, a trupe “desenvolvimen-tista” de FHC agia, em outra frente, para anular os crimes cometidos pelos latifundiários na der-rubada da Floresta Amazônica.

Menos de um mês após a privatização do sis-tema Telebrás, em 10 de agosto de 1998, Fer-nando Henrique sancionou a Medida Provisória 1.710, que entraria para a história da legislação brasileira como um dos atos do Executivo mais inconsequentes na área ambiental. A MP deu a possibilidade aos devastadores da floresta firma-rem “termos de compromisso” com os órgãos do Sisnama (secretarias e órgãos ambientais muni-cipais, estaduais e federal) nos quais se compro-metiam a recuperar a área degradada em até 10 anos, ficando impunes por todo o período.

A decisão acirrou a corrida ao novo “Eldora-do” da pecuária brasileira, levando grandes empre-sários do setor a investirem na grilagem de terras devolutas, que pertencem à União, mesmo estan-do ocupadas. Estas áreas são adquiridas por meio de camponeses usados como laranjas, que assinam procurações e documentos falsos que possibilitam aos “patrões” a compra de várias propriedades vi-zinhas, como se fosse um grande loteamento. Po-rém, na verdade, estas várias propriedades unidas formam um grande latifúndio.

Durante o prazo de anuência concedido aos devastadores da floresta, grandes grupos adqui-riram as terras griladas da região para expan-dir a pecuária. Coincidência ou não, esta também foi a decisão do grupo Opportunity, que fundou a Agropecuária Santa Bárbara, atualmente dona de uma área de 510 mil hectares na região ama-zônica, o que corresponde a três vezes o tamanho do município de São Paulo.

Os negócios de Daniel Dantas na região vão bem. E quem diz o obrigado é o ex-cunhado e só-cio – inclusive de cela durante a Operação Satia-graha - do banqueiro, Carlos Rodenburg. Em re-portagem na edição de 15 de janeiro de 2008 do jornal Valor Econômico – que pertence ao grupo Folha e à Rede Globo – Rodenburg orgulha-se de dizer que ele e o sócio pretendiam faturar R$ 110 milhões com a venda de mais de 100 mil cabeças de gado no ano.

Quanto às irregularidades, comuns na região, o sócio de Dantas brada à mídia gorda: “Invasões e conflitos estão ligados à grilagem. Não senta-mos nem para conversar se tiver alguma ilegali-dade com a propriedade pretendida. Já a questão do trabalho escravo é uma realidade, mas temos rigor absoluto com as normas que regulamentam as leis trabalhistas do setor”.

Na visão do Ministério Público Federal, no en-tanto, a ética do império da pecuária de Daniel Dan-tas segue à risca o que o banqueiro já havia de-monstrado em outros ramos de negócios, como o financeiro e de telecomunicações.

No dia 01 de junho de 2009, promotores fede-rais pediram o indiciamento de dez fazendas per-tencentes à Agropecuária Santa Bárbara por des-matamento ilegal. Uma das indiciadas, a Fazenda Rio Tigre, também é conhecida por figurar na lis-ta suja do trabalho escravo. Em julho de 2004, a propriedade, localizada em Santana do Araguaia, no sul do Pará, recebeu a visita do grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Em-prego, que libertou 78 trabalhadores que viviam em condições análogas à da escravidão.

Além da restauração dos danos ambientais, o Ministério Público solicitou a emissão de multas que ultrapassam o valor de R$ 680 milhões pelas ir-regularidades causadas pelo braço pecuário do im-pério de Daniel Dantas.

Plínio Teodoro é jornalista.

Desmatamento aceleraDonas fazendas de Daniel DantasA Agropecuária Santa Bárbara, do Grupo Opportunity anunciou em 2008 a venda de mais de 100 cabeças de gado.

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caros amigos julho 2009 32

Fidel Castro

O homem e a mulher são os únicos seres vivos que se contrapõem à natureza. Os demais são todos determinados pela natu-reza. Esse distanciamento humano frente ao mundo natural faz a rea-lidade revestir-se de simbolismo e produz a emergência transcenden-tal do imaginário.

Voltada sobre si mesma, a consciência humana sabe que sabe, enquanto os animais sabem, mas ignoram a reflexão. Através do sím-bolo e do significado, o ser humano se relaciona com a natureza, consigo mesmo, com os semelhantes e com Deus.

Nasce a cultura. A vida social ganha contornos definidos e ex-plicações categóricas. Do domínio das forças arbitrárias da natureza chega-se às armas que permitem a imposição de um grupo cultural sobre o outro. Porém, cultura é identidade e, portanto, resistência. Mesmo assim, a abso-lutização de sistemas ideológicos oferece o paraíso, induzindo o dominado a sentir-se excluído por não pensar pela cabeça alheia.

No Brasil colônia, os métodos de catequese cristã introduziam entre os indígenas o vírus da desagregação e, hoje, os donos dos garimpos, das madeireiras e o governo perguntam perplexos por que os povos indí-genas necessitam de tanta terra se nada produzem. Os pentecostais ata-cam os umbandistas e certos setores da Igreja cristã olham com solene des-prezo o candomblé.

A queda dos governos dos países socialistas do Leste Europeu assinala, não o fim do socialismo, como propaga a mídia ca-pitalista, mas sim da absolutização de sistemas ideológicos. Desabam, com a herança estalinista, todas as estratégias de hegemonização da cultura, e a própria idéia de “evolução cultural”. Não há culturas superiores, há cul-turas distintas. Agonizam as versões totalizadoras em todos os terrenos da produção de sentido - político, econômico e religioso.

Quem pretender ignorar os sinais dos tempos terá de apelar ao autoritarismo para infundir temor. A mais de 500 anos da chegada de Colombo às Américas - uma invasão genocida que alguns cha-mam de “encontro de culturas” - convém relembrar esses conceitos an-tropológicos. E agora a democracia impregna também a cultura. Cada ho-mem e mulher, grupo étnico ou racial, descobre que pode ser produtor do próprio sentido de sua vida. O difícil é respeitar isso como valor, sobretu-do nós, cristãos, que ainda não sabemos distinguir Jesus Cristo do arca-bouço judaico e greco-romano que o reveste e tanto favorece o eurocen-trismo eclesiástico.

Felizmente, o próprio Jesus nos ensina a diferença entre imposição e revelação. Impõe-se pervertendo a natureza do poder (Ma-teus 23, 1-12). Mas revelação significa “tirar o véu”: ser capaz de captar os fragmentos culturais de cada povo e reconhecer as primícias evangéli-cas aí contidas, como afirmou o Concílio Vaticano II.

Aliás, Deus não fala latim. Prefere a linguagem do amor e da justiça. E esse dialeto toda cultura incorpora e entende.

Frei Betto é escritor, autor de Diário de Fernando – nos cárceres da di-tadura militar brasileira (Rocco), entre outros livros.

DEMOCRACIA CULTURAL

Resposta ridícula A UmA deRRoTA

Frei Betto

Chegaram notícias das agências com a estranha infor-mação de que duas pessoas aposentadas, com mais de 70 anos, foram pre-sas acusadas de ter espionado durante 30 anos para o governo de Cuba.

São Walter Kendall Myers e sua esposa, Gwendolyn Stein-graber Myers. Acrescenta-se que o primeiro trabalhou como especialista de assuntos europeus e que em 1995, vieram a Cuba e foram recebidos por mim. Durante esse tempo, reuni-me com milhares de norte-americanos, individualmente ou em grupos, às vezes de várias centenas, como os es-tudantes do Projeto Semestre no Mar. Assim, mal poderia lembrar de uma reunião com duas pessoas. A acusação especifica que o casal recebeu con-decorações, mas que nunca procurou dinheiro ou benefícios.

Posso assegurar que, por uma questão de princípios, jamais torturamos nem pagamos a ninguém para obter informação alguma. Aque-les que, de alguma maneira, contribuíram para a proteção da vida de cuba-nos, diante dos planos terroristas de governos dos Estados Unidos, o fize-ram por imperativos de suas próprias consciências.

O que mais chama a atenção é que essa notícia foi divul-gada 24 horas depois da derrota sofrida pela diplomacia dos Estados Uni-dos na Assembleia Geral da OEA. Se essas pessoas estavam sob controle, pois agentes do FBI as enganaram fingindo ser espiões cubanos, por que não foram presas antes?

Agora começará o jogo da pretensa justiça contra duas pes-soas trituradas moralmente de antemão com acusações que predeterminam a conduta do júri, que deverá decidir se são culpadas ou inocentes. Com certeza, não receberão o tratamento amável dado aos terroristas recruta-dos pelo governo dos EUA para destruírem o avião da Cubana com todos os que viajavam nele e cometerem horrendos crimes contra o nosso povo, os quais, inclusive, violaram as leis dos Estados Unidos cometendo no seu próprio território numerosos atos terroristas execráveis.

Já lançaram a campanha contra o casal. Foram apresenta-dos como traidores que podem ser condenados a 35 anos de prisão, e per-manecerão no cárcere até terem mais de 100 anos. Os promotores pode-rão fazer suas habituais manobras com fins políticos.

Armaram toda esta tramoia depois que Obama tomou posse da presidência dos Estados Unidos. Talvez tenham influído na deten-ção não apenas o tremendo fracasso sofrido em San Pedro Sula, mas tam-bém as notícias de contatos entre os governos dos Estados Unidos e Cuba sobre assuntos importantes de interesse comum.

Uma notícia da ANSA já informou que Walter Kendall Myers declarou que tentou ser “muito prudente” na hora de obter e transmitir segredos para Cuba.

Outras publicações se referem a um diário confiscado de Gwendolyn. Se tudo isso for verdade, não deixarei de admirar sua condu-ta desinteressada e valente em relação a Cuba.

Não acham bem ridícula essa história da espionagem cubana?

Fidel Castro Ruz

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33junho 2009 caros amigos

Desde 1983, o conflito entre os rebeldes do sul do Sudão com as forças regu-lares do país matou aproximadamente

1,5 milhão de pessoas até 2005, data da assi-natura de um precário acordo de paz. A partir de 2003 entra em cena uma nova guerrilha na parte ocidental do território, Darfur, onde tam-bém o controle dos benefícios econômicos ad-vindos do petróleo está na base das reivindica-ções autonomistas. Esta última etapa provocou mais de dois milhões de refugiados e 300 mil mortes, causados pela fome, doenças e pelos constantes ataques de milícias como os jan-jaweed, grupo supostamente apoiado pelo go-verno central do Sudão.

O Ocidente alega que há um genocídio sendo perpetrado por árabes brancos e muçulmanos alinhados ao poder em Cartum contra comuni-dades negras, cristãs e animistas em Darfur.

Mas outros interesses, que não propriamen-te humanitários, podem estar em jogo por trás dessas manifestações de repúdio e indignação e das resoluções que vem sendo tomadas.

O maior país da África é rico em petróleo, tem um governo de predomínio muçulmano e encontra-se em um cenário de rivalidades en-tre potências e compromissos neocoloniais da França, do Reino Unido e dos EUA.

O que diferencia a política deste governo da de seus vizinhos, que também utilizam a violên-cia contra civis para deter forças desestabiliza-doras, é que este tenta manter-se numa posição mais independente nas negociações pela explo-ração de seus recursos naturais e ambiciona ser uma potência petroleira. Aspiração que hoje só é possível pela diversificação dos investimentos no país e em particular pela incursão da China.

A crescente influência do gigante asiático é provavelmente a principal razão para que a União Européia e os EUA trabalhem juntos na África.

Se por um lado o imperialismo francês per-deu quase todas as batalhas contra os EUA e viu-se obrigado a capitular, por outro a Total Fina ELF (grupo petrolífero francês) é pratica-mente o único concorrente dos chineses no Su-dão. As companhias norte-americanas não po-dem participar dos novos contratos petrolíferos

de caça e helicópteros no quadro de um outro dispositivo militar, a força Epervier.

Outro programa criado pela França que ope-ra na África há aproximadamente dez anos é o Recamp (Reforço das Capacidades Africanas de Manutenção da Paz), dirigido com o propósito de associar terceiros (África, Europa, ONU) às suas incursões militares e de dividir custos e responsa-bilidades conservando o controle das operações.

O governo francês não conseguiu, ainda, com que seu projeto de corredor humanitário, que partiria do Chade e adentraria o território suda-nês em direção a Darfur, triunfe. Uma vez que seria necessária uma força armada para prote-ger as agências humanitárias, tal ajuda seria tão somente uma desculpa enganosa para uma ver-dadeira invasão militar.

Mas, na verdade, desde que Colin Powell, em 2004, lançou a campanha política contra o Su-dão acusando-o de genocídio e incluindo-o na lista dos “países perigosos”, o projeto de inter-venção militar-humanitária estava instaurado de modo inquestionável e oficial.

O novo humanitarismo seletivo (“humanis-mo armado“ nas palavras de Noam Chomsky) das potências mundiais, que fustigam o Sudão, mas recompensam regimes autoritários como o do chadiano Idriss Débry, se mostra pouco con-sistente perante o peso da China, que proporcio-na investimentos abundantes sem uma contra-partida política.

O denominado “direito de ingerência“, que já gozou de prestígio entre políticos e intelec-tuais, é atualmente muito criticado por diversos governos, e as ONGs que operam em regiões de conflito estão sendo consideradas como a van-guarda de uma nova era de recolonização.

Por isso não surpreende que perante a decisão inédita do Tribunal Penal Internacional de emi-tir um mandado de captura contra o presidente do Sudão, Omar Al-Bashir, por crimes de guerra e crimes contra a humanidade, o chefe de estado sudanês tenha decidido dar ordem de expulsão a diversas agências de ajuda humanitária.

Daniela Baudouin é editora da Casa das Áfricas.www.casadasafricas.org.br

devido ao embargo imposto, em 1996, ao país.Assim, Paris mantém a ilusão de participar

das grandes disputas mundiais no único conti-nente onde ainda tem certa influência.

O Ocidente empreende então uma ação com-posta na região, que não exclui rivalidades, como o caso da França e EUA, destinada a res-tringir o poder da China, favorecendo a seces-são das distintas províncias, a destruição do Es-tado e a instalação de um caos onde o poder seria ditado por bandos armados que se benefi-ciariam das exportações, como acontece com o ópio no Afeganistão.

O conflito se expande aos países vizinhos do Sudão, 200 mil pessoas se refugiam no Chade e as fronteiras porosas permitem incursões ar-madas de um lado ao outro. O presidente desse país, Idriss Débry, no poder desde o golpe mi-litar de 1990, patrocina os rebeldes de Darfur, principalmente o JEM, e enfrenta no seu terri-tório um grupo apoiado por Cartum.

A França (ex-potência colonial do Chade) que dá apoio logístico ao exército do ditador chadia-no como parte de um acordo de cooperação mi-litar com o país (acordos que remontam a 1976) é acusada pelo Sudão de enviar armas aos rebeldes de Darfur através desse país fronteiriço.

O regime do Chade também recebe financia-mentos da União Europeia. Um dos emprésti-mos, obtido junto ao BEI (Banco Europeu de In-vestimentos) que seria utilizado para financiar projetos de infraestrutura e de proteção ao meio ambiente, foi destinado pelo presidente ao or-çamento militar.

Há diversas forças de paz da União Euro-peia com grande contingente de soldados fran-ceses atuando ali. O corpo expedicionário eu-ropeu, Eufor, instaurado em 2008, com 3,7 mil soldados (dos quais 1.650 franceses), foi envia-do ao Chade para proteger os refugiados vin-dos do Sudão e responde tanto a considerações humanitárias como à preocupação dos ociden-tais de criar uma fortaleza estratégica no cen-tro da África.

As tropas não são consideradas isentas no conflito com o Sudão já que a França tinha um contingente de dois mil homens e de aparelhos

Vários programas europeus mantêm mais de seis mil soldados naquela região, que é rica em petróleo e vive clima de guerra civil

conflito do SudãoIngerência da França no

Daniela Baudouin

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caros amigos julho 2009 34

oficializada por decreto presidencial em 16 de abril, a 1ª Conferência Nacional de Co-municação tornou-se realidade, principal-

mente a partir da pressão de movimentos e organi-zações sociais ligadas à pauta da democratização da comunicação. Mas, apesar de simbolizar uma con-quista, a Confecom nasce marcada por particulari-dades que podem comprometer avanços reais em um campo que ainda carece de regulamentação e de políticas democratizantes.

As diferenças em relação a setores que reali-zam conferências há mais tempo são significativas, como a grande presença de empresários na comis-são organizadora, a demora do governo em com-por suas instâncias organizativas e colocá-las para funcionar, e mais recentemente, um corte drástico em seu orçamento.

Outro desafio é mobilizar a sociedade para a dis-cussão de uma pauta que parece naturalizada, em um setor que não possui organização popular con-solidada como as áreas de saúde e educação. As Conferências de Saúde, por exemplo, que têm peso político maior que o próprio Ministério. Em 1986, sua 8ª edição construiu um conjunto de políticas que desembocou na criação do Sistema Único de Saúde, o SUS, referência mundial. Realizadas de quatro em quatro anos, têm caráter vinculativo, ou seja, suas deliberações guiam a implantação de po-líticas públicas, além de contar com uma porcenta-gem muito menor de empresários em suas instân-cias organizativas, cerca de 25%. Nos anos em que não ocorrem, os conselhos não deixam de atuar.

IncertezasAinda há muita incerteza cercando a 1ª Confe-

com. Quase três meses após o decreto que a institu, a Comissão Organizadora se reuniu poucas vezes e somente em junho o calendário foi definido. Ques-tões como regimento interno, temário e eleição de delegados ainda estão pendentes.

De concreto, está definido que a Conferência Nacional, cujo tema é Comunicação: meios para a

construção de direitos e de cidadania na era digi-tal, será realizada no período de 01 a 03 de dezem-bro de 2009, em Brasília. As etapas preparatórias, chamadas de conferências livres, têm caráter mo-bilizador e devem acontecer até 31 de agosto. Já as municipais e estaduais, são eletivas e devem ser re-alizadas até 31 de outubro.

“A Conferência de Comunicação vai ser a úni-ca construída em seis meses. Como a sociedade já está fazendo debate, achamos que vamos conse-guir participar de forma tranqüila, mas todas as ou-tras questões de infra-estrutura, material e recursos podem atrasar esse processo”, diz Carolina Ribei-ro, do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunica-ção Social.

A Comissão Organizadora, definida em 20 de abril pelo Ministério das Comunicações, é compos-ta por 28 membros, sendo 12 do poder público, com oito indicados pelo Executivo e quatro pelo Con-gresso Nacional, e 16 da sociedade.

O Executivo está representado pela Casa Civil e ministérios das Comunicações, Ciência e Tecnolo-gia, Cultura, Educação e Justiça, pela Secretaria de Comunicação Social e pela Secretaria-Geral da Pre-sidência da República. Enquanto cada órgão do go-verno indicará um membro, Câmara e Senado po-derão indicar dois cada um.

Das 16 vagas de representantes da sociedade, oito foram ocupadas por entidades representativas do empresariado: Associação Brasileira de Emisso-ras de Rádio e Televisão (ABERT), Associação Bra-sileira de Radiodifusores (ABRA), Associação Brasi-leira de Provedores Internet (ABRANET), Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA), Associação dos Jornais e Revistas do Interior do Brasil (ADJORI BRASIL), Associação Nacional de Editores de Revis-tas (ANER), Associação Nacional de Jornais (ANJ) e Associação Brasileira de Telecomunicações (TE-LEBRASIL).

As outras oito cadeiras serão preenchidas por uma entidade ligada às emissoras públicas edu-cativas estatais, Associação Brasileira das Emis-

soras Públicas, Educativas e Culturais (ABEPEC), pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação So-cial, pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), Associação Brasileira de Ca-nais Comunitários (ABCCOM), Associação Brasilei-ra de Radiodifusão Comunitária (ABRAÇO), Federa-ção Nacional dos Jornalistas (FENAJ) e Federação Interestadual dos Trabalhadores de Empresas de Ra-diodifusão e Televisão (FITERT).

A composição da Comissão Organizadora Nacio-nal causou polêmicas entre os movimentos e orga-nizações da sociedade civil envolvidos no debate, pois além da representação empresarial exagerada – o setor tem peso semelhante, ou maior, do que a representação social (considerando que as entida-des como ABEPEC e ABCCOM não são exatamente sociedade civil organizada), falta em sua composi-ção entidades que não tenham a comunicação como pauta prioritária (somente a CUT não trabalha dire-tamente com o tema), entidades ligadas à academia ou mesmo representação estudantil.

Além disso, o Ministério ignorou a proposta de composição apresentada ao governo pela Comissão Nacional Pró-Conferência (CNPC), espaço constru-ído por 30 entidades da sociedade civil em 2008, para debater e pressionar pela realização da ativi-dade. Em janeiro, durante o Fórum Social Mundial de Belém, o presidente Lula declarou que a Confe-com seria realizada ainda em 2009. A partir disso, a Comissão Nacional Pró-Conferência debateu inter-namente uma proposta de composição da Comissão Organizadora, também referendada pelas comissões que se formaram nos estados. Um processo de inter-locução com a CNPC foi criado pelo governo, mas não chegou a ser concluído.

Para Carolina, do Intervozes, há uma super re-presentação do setor empresarial enquanto a so-ciedade civil não está bem representada, não há mulheres ou negros, por exemplo. “O Intervozes saudou o decreto, mas criticou a composição e a forma de definição dos nomes. Nossa proposta era

O que esperar da Conferência Nacional de Comunicação

A primeira conferência do setor começa a sair do papel enfrentando problemas como a presença maciça de empresários na organização e desinteresse do governo federal

Ana Maria Straube

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35junho 2009 caros amigos novo sítio: www.carosamigos.com.br

de 33% para o poder público, 16%, para o setor em-presarial, 6,5% para mídia pública, 3% para acade-mia e sociedade civil com o resto, cerca de 40%. A proposta final excluiu a academia e empresários fi-caram em maioria”, afirma.

Houve problemas também com as escolhas dos representantes do Legislativo. A Câmara indicou apenas um titular, o deputado Paulo Bornhausen (DEM-SC), quando podia ter indicado dois, fazendo com que a deputada Luiza Erundina (PSB-SP), que fez parte das articulações ao lado dos movimentos sociais e da CNPC desde seu início, fosse preterida e colocada como suplente junto com Milton Mon-ti (PR-SP), Cida Diogo (PT-RJ) e Eduardo Valverde (PT-RO). O Senado é representado por Wellington Salgado (PMDB-MG) e Flexa Ribeiro (PSDB-PA) ti-tulares, e Lobão Filho (PMDB-MA) e ACM Júnior (DEM-BA) como suplentes.

Outra surpresa foi a questão do orçamento. O Governo Federal decretou, em 11 de maio, um cor-te de 82% no orçamento previsto para a realização da Confecom. A verba prevista era de R$ 8,2 mi-lhões e caiu para R$ 1,6 milhão. Segundo a depu-tada Luiza Erundina, em entrevista ao Observatório do Direito à Comunicação, “o valor definido na Lei Orçamentária de 2009 já era resultado de uma re-dução em relação à emenda proposta pela Comis-são de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Infor-mática da Câmara (CCTCI). Inicialmente eram R$ 10 milhões. Nas discussões, reduziram para R$ 8,2 mi-lhões, com uma verba complementar aí de R$ 300 mil, totalizando R$ 8,5 milhões”. Marcelo Bechara, consultor jurídico do Ministério das Comunicações, afirma, na mesma matéria do Observatório, que há possibilidade de recomposição do orçamento. “Não acredito que este corte vá se manter. É uma deci-são do presidente Lula realizar a Conferência, que só ocorrerá se assegurado o montante suficiente de recursos por parte do governo federal”, afirma.

Interesses cOnflItantesComo era de se esperar, muitos interesses e visões

conflitantes estão colocados para a realização da 1ª Confecom, principalmente no que tange à disputa de posições entre empresários e sociedade civil.

Para Carolina, do Intervozes, seria importante que a Conferência se debruçasse sobre os meios (TV, rádio, internet, jornal, cinema) e suas questões es-pecificas que precisam ser regulamentadas e sobre questões transversais, não específicas dos meios, mas que precisam ser contempladas como conces-sões, espectro, agência reguladoras, propriedade intelectual, direito autoral, propriedade dos meios, universalização, políticas de fomento e acesso. “Há também a necessidade de discutir a cadeia produti-va, que aponta para o debate de convergência. No futuro, não vai existir TV como é hoje, vai haver conteúdo, produção, recepção e isso necessita de re-gulamentação”, coloca.

Celso Schröder, coordenador-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e representante da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) na Comissão Organizadora, considera importante que os debates não fiquem restritos a fazer um diagnóstico do setor das comu-

nicações. Para isso, considera positiva a inclusão de empresários na construção da Conferência. Para ele, é necessário atualizar a legislação voltada para o tema, que é antiga e não contempla as novas tec-nologias. “Apesar de isso ter sido feito por meio de políticas públicas em outros setores, na comunica-ção o país não conseguiu implementar políticas de-mocratizadoras, como aconteceu em outros luga-res”, diz. Schröder cita o caso dos Estados Unidos, onde a propriedade cruzada dos meios e a criação das cadeias é controlada. “Para o FNDC é importan-te superar os diagnósticos e elencar os dissensos en-tre sociedade civil e empresariado”.

Tanto Carolina como Schröeder concordam que a questão da convergência tecnológica impõe de-safios para os empresários do setor e apontam para uma necessidade de regulamentação. O termo con-vergência diz respeito às novas tecnologias que fa-zem com que a produção e distribuição de conteú-do não seja mais monopólio da radiodifusão. Com a implantação da interatividade proporcionada pela TV digital e com a possibilidade de difusão de in-formação por telefones celulares, os meios tradicio-nais tendem a se transformar.

Eduardo Parajo, presidente da Associação Brasi-leira de Provedores de Internet (ABRANET), não vê necessidade de mudança na legislação atual, mas considera importante que o setor que representa participe da Conferência e acompanhe o processo. “Precisamos ter voz para ver se as mudanças pro-postas serão favoráveis. Já há legislação e contra-tos estabelecidos, temos de ser cautelosos”, afirma. Decidido, afirma que a entidade pretende verificar como o processo vai se comportar, para defender os interesses do setor. “Precisamos preservar o merca-do de internet, que foi construído por anos”.

Já Frederico Nogueira, vice-presidente da Asso-ciação Brasileira de Radiodifusores (ABRA), que re-úne a TV Bandeirantes e Rede TV, diz estar aberto à todas as possibilidades. “Damos total apoio à re-alização da Conferência e ao diálogo com a socie-dade civil. Espero que seja um grande debate e não um bate-boca”, afirma. Segundo ele, o objetivo da ABRA é a defesa dos interesses nacionais e a discus-são à restrição ao conteúdo estrangeiro: “Só brasi-leiros podem produzir conteúdo”, coloca.

A restrição ao conteúdo estrangeiro é um dos pon-tos de atrito entre teles e radiodifusores, assim como o financiamento e participação de capital internacional. Flávio Cavalcanti Júnior, diretor de relações com as-sociados e entidades da Associação Brasileira de Rádio e Televisão (ABERT), vai no mesmo sentido. Para ele, é necessário que a Conferência discuta alguma forma de proteção ao conteúdo nacional. “Gostaria que fos-se discutido igualdade de direitos e deveres, isonomia para produção e distribuição de conteúdo. A TV aber-ta tem restrições, a TV a cabo não vai ter? Qual é a diferença do conteúdo gerado em telefone e TV aber-ta? Nós somos submetidos à classificação indicativa. E o conteúdo distribuído por celular? Essas coisas es-tão iguais e o quadro precisa ser rediscutido”, apon-ta. Segundo Cavalcanti, a ABERT defende que haja somente capital nacional na radiodifusão. Para ele, a concorrência com o capital estrangeiro nas teles pode ameaçar a produção nacional.

MObIlIzaçãOA partir de uma correlação de forças desfavorá-

vel, resta à sociedade civil organizada tentar mobi-lizar seus pares para interferir nas etapas municipais e estaduais da Conferência. Schröder acredita que o peso dos empresários não deve ser tão sentido nas etapas eletivas, que serão marcadas por diversidade e pluralidade de vozes e participação. Além disso, ele defende que os principais debates não devem ser fei-tos dentro da CO, mas nas Conferências em si. “Não podemos transformar a CO na Conferência sob o ris-co de empobrecer o debate, a comissão serve apenas para viabilizar o evento”, coloca. Com uma visão não tão otimista, João Brant, do Intervozes, coloca que é necessário ampliar o número de atores para tentar diminuir o espaço do mercado, mas pondera que é inocência achar que existe a possibilidade de cons-truir acordos com os empresários, pois “há confli-to no modelo”.

Em relação ao governo, os movimentos enxergam resistência e ambigüidade. Não se sabe ainda qual po-sição será tomada em relação às divisões entre os em-presários, mas essa dúvida sobre como fazer a media-ção torna o momento interessante para a realização da Conferência. Para a deputada Luiza Erundina “há uma enorme má vontade e uma indisposição para a reali-zação da Conferência. O atraso na convocação e a fal-ta de esforços para agilizar o processo nos estados já é um fator muito negativo, agora esse corte pode com-prometer as expectativas da sociedade civil.”

Para Brant “é preciso mapear o quanto consegui-remos intervir, mas fica claro que não devemos con-centrar essa discussão apenas entre especialistas. Esse é exatamente o intuito da Comissão Nacional Pró-Conferência, se consolidar como o espaço da socieda-de civil para interferir no processo e aglutinar a maior quantidade de movimentos e organizações.”

Outro papel da CNPC é centralizar e estimular o diálogo com os estados que realizarão Conferências. Até agora, há comissões organizadas em 23 estados e propostas como a da Comissão Paulista, que pre-tende montar uma caravana de formação sobre o tema para percorrer o interior do estado estimulan-do a construção das atividades municipais.

Para Schröder, está claro que a 1ª edição da Con-fecom não conseguirá discutir todos os temas e atin-gir todos os objetivos do movimento de comunica-ção, mas será um passo interessante ao significar a construção de uma agenda que aponte para deba-tes futuros. “A pauta não se esgota com essa Confe-rência. Trata-se da primeira edição e deve ser vista como tal. O processo será enriquecedor em si mesmo. Vamos ter agendas legais e regulamentação no que for possível e debates futuros para próximas agen-das”. Para Brant, não é o caso de deslegitimar o espa-ço ao constatar que a correlação de forças não é fa-vorável aos setores mais progressistas. Segundo ele, “o caminho oficial é um ponto do processo, a cons-trução de uma plataforma comum não é só para a Conferência”, diz, apontando um caminho que pode significar o tão necessário fortalecimento do movi-mento nacional pela democratização e pelo direito à comunicação.

Ana Maria Straube é jornalista.

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caros amigos julho 2009 36

Criada em 2006, a prisão-hospício é um depósito do Judiciário onde estão internados os casos considerados perigosos devido ao diagnóstico de “transtorno antissocial”. Foto Jesus Carlos/Imagemlatina

Unidade misteriosa escondejovens infratores

se Roberto Aparecido Alves Cardoso não fosse interno da Unidade Experimental de Saúde (UES), no Belém, em São Paulo, qua-

se nada se saberia do lugar. Digitando o nome da instituição no Google, 1.022 ocorrências aparecem, a maioria sobre o dia em que o jovem foi encami-nhado para lá.

Roberto Alves Aparecido Cardoso, mais conheci-do como Champinha, foi um dos acusados pelo as-sassinato do casal Liana Friedenbach e Felipe Caffé, na cidade de Embu Guaçu, em São Paulo, no ano de 2003. Os jovens, que eram estudantes do São Luiz, colégio da burguesia paulistana, namoravam e fo-ram acampar durante o feriado sem que suas famí-lias soubessem.

Em um primeiro momento foram dados como de-saparecidos, mas dias depois o mistério se revelou: o casal foi sequestrado por moradores da região. Felipe foi morto com um tiro de espingarda disparado por Paulo César da Silva Marques, o Pernambuco. Lia-na foi mantida em cárcere privado sendo estuprada e torturada, até ser morta a facadas por Champinha.

Todos que fizeram parte do crime foram conde-

nados - além dos já citados participaram do estupro Antônio Caetano, Antônio Matias e Agnaldo Pires. Champinha, na época com 16 anos, foi levado para a Febem, hoje Fundação Casa, para cumprir os três anos previsto pelo ECA, Estatuto da Criança e do Adolescente, em medida socioeducativa.

Um dos poucos links que aparecem no Google, e não ligam Champinha à UES, é do próprio site da Fundação Casa. O conteúdo, do ano de 2006, infor-ma sobre a construção da Unidade. A proposta era criar na cidade de São Paulo um sistema de refe-rência no tratamento de jovens que cumprem medi-da socioeducativa e apresentam distúrbios psicoló-gicos, através da parceria entre Fundação Casa (na época FEBEM), a ONG Santa Fé e a Universidade Federal de São Paulo, que se responsabilizaria pelo tratamento psiquiátrico. Era um terreno com cinco casas, abrigando até oito jovens cada.

“O que a gente escuta nos bastidores é que o Dr. Raul Gorayebe, professor de psiquiatria da Unifesp e idealizador do projeto, queria escolher tanto os profissionais quanto os jovens que iriam ser enca-minhados para a Unidade, e a Fundação Casa não

concordou. Com isso a parceria foi quebrada”, con-ta Fernanda Lavarello, conselheira do Conselho Re-gional de Psicologia de São Paulo.

Com a parceria desfeita, e a obra concluída, a UES ficou seis meses vazia.

Champinha e a UeSPouco antes de Champinha completar três anos

da medida socioeducativa, e ser colocado em liber-dade, o Ministério Público entrou com o processo para converter a medida socioeducativa em medida protetiva de tratamento psiquiátrico com conten-ção, o que garantiria sua permanecia na Fundação Casa até os 21 anos.

Na iminência da segunda medida se extinguir, o Estado entrou com pedido de interdição civil cumu-lada com internação hospitalar compulsória no Fó-rum de Embu Guaçu. A juíza expede uma liminar favorável ao Estado, pedindo a transferência de Champinha para a Casa de Custódia de Taubaté.

A internação hospitalar compulsória, modalida-de mais grave prevista pela lei 10.216/2001 da Re-forma Psiquiátrica, não deriva de um crime, mas de

Camila Martins

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37junho 2009 caros amigos

Unidade misteriosa escondejovens infratores

um laudo médico que constate a necessidade do in-ternamento, independe da vontade da própria pes-soa, ou de sua família.

“Para esse tipo de internação, o artigo sexto da lei diz que é necessário fazer um laudo médico cir-cunstanciado (naquela oportunidade), e isso não aconteceu, eles usaram os laudos feitos na ocasião da medida socioeducativa”, diz Daniel Adolpho As-sis, do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDACA Interlagos), e advogado do jovem. Outra inconsistência que Daniel aponta na liminar, é que Champinha não poderia ser en-caminhado para a Casa de Custódia de Taubaté por ele ainda estar sob respaldo do ECA, além de que a Casa de Custódia só recebe adultos que cometeram crimes e apresentam transtorno mental.

Nesse meio tempo, Champinha foge da Funda-ção Casa, logo é pego e levado para a UES.

a refUndação da UeSDepois de seis meses vazia, a UES recebe seu in-

terno mais famoso em maio de 2007. Em novembro desse mesmo ano o governador de São Paulo, José Serra, expede o decreto 52.419/2007, transferindo o imóvel da UES para a Secretaria de Saúde. Um Ter-mo de Cooperação Técnica entre Saúde, Administra-ção Penitenciária, e Fundação Casa firmava que a UES abrigaria adolescentes e jovens, autores de atos infracionais que cumpriram medida socioeducativa, e tiveram sua medida revertida em protetiva, já que apresentam diagnóstico de transtorno de personali-dade antissocial, e/ou alta periculosidade.

Segundo a juíza corregedora do DEIJ, Departa-mento das Execuções da Infância e da Juventude, Mônica Paukoaski, a saúde mental é um dos fatores importantes que fazem parte da trajetória de recu-peração dos adolescentes autores de atos infracio-nais, já que esses problemas interferem diretamente no resultado do processo sócio-educativo. “Os lau-dos do Imesc, Instituto de Medicina Social e Crimi-nologia, apresentaram ao Judiciário a necessidade do jovem portador de transtorno mental (os mais comuns eram deficiência mental, esquizofrenia, e transtorno de personalidade) ser acompanhado em local adequado sob contenção”, completa.

“Essa nova Unidade vai na contramão de todas as conquistas da luta antimanicomial e do ECA. O que eles fizeram foi um manicômio judicial para jo-vens”, diz Fernanda Lavarello, que também faz par-te do Grupo Interinstitucional, que debate questões sobre criança, adolescente, justiça, e saúde mental.

A luta antimanicomial é travada no Brasil des-de a década de 1980, e sua principal conquista foi a aprovação da lei 10.216/2001, que garante ao por-tador de transtorno mental que a internação só será indicada depois que todos os recursos extra-hospi-talares de tratamento se esgotarem.

Segundo Maria Cristina Vicentin, professora do programa de pós-graduação em Psicologia Social da PUC-SP, a cidade de São Paulo colocou diversos im-passes durante o processo de construção da reforma de saúde mental, como o lobby dos hospitais psiqui-átricos que visam interesses mercadológicos na saú-de. Para ela, a relação entre periculosidade e loucura é construída no começo do século 19, por psiquiatras que entendiam a sua ciência como aquela capaz de

identificar a dimensão mais íntima do sujeito capaz de emergir a qualquer momento. “Depois da Segunda Guerra Mundial profissionais dos diversos campos se juntaram para fazer a desconstrução dessa ideia, res-paldados por estudos epidemiológicos e estatísticos que mostram que não existe proporcionalmente um número maior de pessoas com transtorno mental que cometem atos infracionais, assim os loucos cometem tantos crimes como os ditos normais.”

Em uma pesquisa feita entre os anos de 2005 e 2006, antes da inauguração da UES, a professora apontava para o fenômeno de psiquiatrização do jo-vem autor de ato infracional, um modo de gestão que usa o transtorno mental para provocar mecanismos de segregação e ampliação do tempo de internação.

Outro fator identificado é a volta do diagnóstico de transtorno de personalidade antissocial. “Foi o caso do Roberto (Champinha) que trouxe isso, pois a mídia e a opinião pública fizeram uma pressão tão grande que, ou se revia a maioridade penal, ou aumentaria o tem-po de internação, que é um projeto em andamento. Mas, como nada saiu do papel, utilizar os mecanismos de internação psiquiátrica, foi o jeitinho que eles de-ram para driblar a lei”, explica Maria Cristina.

TranSTorno anTiSSoCialEntre os transtornos de personalidade identifica-

dos pelo Imesc está a personalidade antissocial, “na maioria dos casos não havia diagnóstico fechado, mas que o jovem apresentava traços de tal perso-nalidade”, conta a juíza Mônica Paukoaski.

O diagnóstico de transtorno de personalidade antissocial é questionado por algumas áreas da psi-cologia, apesar de constar na Classificação Interna-cional de Doenças Mentais.

Segundo Fernanda Lavarello, é a análise de um comportamento que foi externalizado a partir de um ato de transgressão, negando toda a historici-dade do sujeito e o fato de o crime ser produto de vulnerabilidade social. “O cometimento de um ato infracional não implica no cometimento de trans-gressões futuras, ninguém tem bola de cristal para prever o que vai acontecer.”

Depois do Termo de Cooperação Técnica assina-do, mais cinco jovens foram encaminhados para a Unidade Experimental de Saúde, todos com o mes-mo diagnóstico: transtorno de personalidade antis-social e alto grau de periculosidade.

E a juíza Mônica Paukoaski alerta: “Apesar de se tratar de questão polêmica, não foi o Judiciário que preconizou a necessidade de atendimento sob con-tenção, mas sim os médicos de órgão oficial do Es-tado. Além disso os jovens que se encontram hoje na UES não estão internados por determinação do DEIJ, mas foram interditados pela justiça comum.”

No caso específico de Champinha, “ele foi pego como bode expiatório para inaugurar essa instância arbitrária e de exceção que a Justiça está utilizando. Todos os jovens que estão lá cometeram crimes con-tra pessoas da classe média e alta em suas cidades de origem, que ganharam grande repercussão na mí-dia”, diz Daniel Adolpho. Este completa sua denún-cia: “ninguém tem coragem de cumprir a lei e assi-nar pela libertação do Roberto porque ninguém quer enfrentar a opinião pública e o pai da Liana, que tem bastante influência financeira e política..”

A juíza Paukoaski rebate a crítica, “Se existe uma anomalia psíquica, e a área médica aponta isso, não podemos devolvê-los à sociedade sem o acompa-nhamento de uma equipe multidisciplinar.”

Mas há outras irregularidades. Daniel Adolpho conta que não existe um regimento interno da Uni-dade, pois quem é internado não tem previsão do tempo de pena que irá cumprir, e que nenhum trata-mento psíquico acontece no local. “O que o Rober-to me conta é que mais ou menos a cada 15 dias vai um psicólogo lá, conversa um pouco com ele, per-gunta se precisa de algum remédio, e só. Nem o jo-vem, nem o seu defensor público, podem ter aces-so ao prontuário médico, violando mais uma vez a lei 10.216.”

“Mesmo quem se diz defensor dos direitos hu-manos torce o nariz quando se fala sobre o caso do Roberto, mas é importante saber que quando ele fosse liberado não ia simplesmente sair da Funda-ção Casa. As psicólogas que acompanharam todo o processo dele já estavam articulando uma rede em outro Estado pro qual ele e toda a sua família mu-dariam. Eles entrariam no serviço de proteção a tes-temunha, se necessário até mudariam de nome, com isso ele continuaria tendo um acompanhamento ju-dicial”, explica Fernanda Lavarello.

ningUém Sabe, ningUém viU. A assessoria de imprensa da Secretaria da Saú-

de foi procurada pela reportagem para falar sobre o assunto. A resposta: “O que temos a informar é que a decisão sobre a internação das pessoas atendidas na Unidade Experimental de Saúde é feita pela Jus-tiça. A Secretaria de Estado da Saúde mantêm esta estrutura para atender pacientes encaminhados por decisão judicial.”

Tanto os laudos periciais que encaminharam os seis jovens para a UES, quanto o tratamento psiqui-átrico daqueles que cumprem medida socioeducati-va na Fundação Casa são feitos pelo Nufor, Núcleo de Psiquiatria Forense do Hospital das Clínicas. O coor-denador do núcleo, Daniel Martins de Barros, respon-deu por email:

“O Nufor vem prestando assistência psiquiátrica apenas aos internos da Fundação Casa em unidades regulares da capital. A Unidade Experimental de Saú-de não está sob responsabilidade da Fundação Casa, não fazendo parte do nosso escopo de assistência.”

Também procuramos Vitor Manuel da Silva Mon-teiro, diretor da UES, mas um funcionário da adminis-tração informou que ele estava de férias fora do Brasil e não havia ninguém ocupando seu cargo nesse perío-do, além de que nenhum funcionário estaria capacita-do nem autorizado para falar com a imprensa.

“A Unidade Experimental de Saúde desvirtuou-se do seu caminho e não está funcionando da forma pro-posta pelo Judiciário, jamais uma unidade de saúde mental deve assumir feições de manicômio judiciário. O transtorno de personalidade antissocial é um diag-nóstico sério que precisa ser enfrentado com respon-sabilidade. Jovens que contam com esse diagnóstico precisam de uma atenção especial, a idéia não é segre-gar, mas acompanhar o jovem até que se obtenha al-gum avanço”, finaliza a juíza Mônica Paukoaski.

Camila Martins é repórter.

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Em defesa dos interesses privados e de olho nos lucros do pré-sal,parlamentares conservadores e a mídia neoliberal fustigam a estatal. Ilustração Latuff

a maior empresa do país em valor de mercado resiste a mais um ataque das forças conserva-doras. No centro de uma investigação, desen-

cadeada por senadores do PSDB e Democratas, a Pe-trobras parece não se preocupar com os resultados dos desdobramentos da CPI proposta pelo senador tucano Álvaro Dias, e mantém o ritmo de trabalho.

Os investimentos projetados para os próximos quatro anos atingem a casa dos US$ 174,4 bilhões. Só o pré-sal (petróleo extraído abaixo da lâmina de água e do sal do fundo do mar), receberá um aporte de US$ 111,4 bilhões nesse período. A produção em escala comercial do carro-chefe da companhia entra-

rá em velocidade de cruzeiro no final de 2010. “Até 2020 vamos aumentar a produção do pré-sal

em 1,8 bilhão de barris”, revela, em entrevista exclu-siva à Caros Amigos, o presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli de Azevedo. Para ele, as áreas do pré-sal são “quase bilhetes premiados”. E, por isso, devem continuar a ser exploradas pela estatal.

“Estaremos, com certeza, entre as maiores empre-sas de petróleo do mundo.Vamos sair da produção de 2,4 bilhões de barris/dia e chegar em 2020 produzin-do 5,7 bilhões de barris/dia”, frisa.

A potencialidade gerada pela descoberta das re-servas de petróleo da camada pré-sal na costa brasi-

Lúcia Rodrigues

leira tem despertado a cobiça dos Estados Unidos e do cartel das sete irmãs (principais companhias pe-trolíferas mundiais) sobre o ouro negro nacional.

As reservas norte-americanas estão secando. Os reservatórios estadunidenses possuem apenas 29 bi-lhões de barris para ser prospectados. Se mantido o atual ritmo no padrão de consumo, em torno de 10 bilhões de barris ao ano, as reservas estarão extintas em menos de três anos. “Os norte-americanos estão em apuros, desesperados atrás de petróleo. Por isso, invadiram o Iraque, o Afeganistão”, ressalta o presi-dente da Aepet (Associação dos Engenheiros da Pe-trobras), Fernando Siqueira.

ao ataque da direitaPetrobras resiste

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39junho 2009 caros amigos

A situação das sete irmãs também é delicadíssi-ma. Da cômoda posição de detentora de aproxima-damente 90% das reservas mundiais, despencou a um patamar de 3%. Por isso, os lobbies que repre-sentam esses interesses atuam de maneira voraz, em Brasília, para tentar reverter a situação extre-mamente desfavorável que atravessam. O pré-sal é encarado como a tábua de salvação de que necessi-tam para se livrar de seus infortúnios.

Os prognósticos geológicos mais conservadores para o petróleo extraído da camada pré-sal apontam reservas da ordem de 90 bilhões de barris, quase sete vezes superior à atual reserva brasileira, confirmada em 14 bilhões de barris de óleo equivalente. Mantido o padrão de consumo nacional, de um bilhão de barris/dia, teríamos assegurado 90 anos de tranqüilidade.

Para Siqueira, a Petrobras descobriu um “Iraque na América Latina”. Os números projetam o país, como a quarta reserva mundial de petróleo, atrás apenas da Arábia Saudita, que possui 260 bilhões de barris em reservas, do Irã, com 140 e Iraque, com 115.

O banco de investimento Goldman Sachs também aponta a Petrobras entre as dez empresas mais viá-veis do mundo. Ainda de acordo com o Goldman, a viabilidade da estatal brasileira a coloca na vanguar-da das demais petroleiras mundiais.

Em setembro do ano passado, a companhia estava avaliada em R$ 344 bilhões, segundo valor de merca-do. Em 2008, a Petrobras desembolsou sozinha, R$ 60 bilhões para o pagamento de impostos, taxas e contri-buições sociais ao governo. O valor é superior ao or-çamento de vários Estados brasileiros. O pagamento de royalties e participações governamentais por parte da companhia atingiram os R$ 23 bilhões.

Os números indicam uma empresa sólida e robus-tecida. Mas segundo o presidente Gabrielli, a imagem

da empresa pode sofrer desgastes em função de “ila-ções e de uma onda de denuncismo” contra a estatal motivada pela CPI. “Acaba minando a reputação da companhia. Isso é muito ruim”, lamenta.

O representante dos engenheiros da Petrobras considera que ao propor uma CPI para investigar a empresa, o principal objetivo do PSDB é quebrar o prestígio da companhia. “Querem enfraquecê-la para justificar a vinda de empresas estrangeiras”, afirma, ao se referir aos parlamentares e ao lobby que atua em defesa dos interesses capital estrangeiro.

De acordo com ele, entre os lobbistas que atu-am na defesa desses interesses, está o diretor-geral da ANP (Agência Nacional de Petróleo), deputa-do Haroldo Lima (PC do B - BA). Lima nega qual-quer envolvimento com lobbistas. “É uma afirma-ção irresponsável.”

A ANP é o órgão responsável pela realização dos leilões de blocos petrolíferos, abertos à participação da iniciativa privada. Com a quebra do monopólio esta-tal do petróleo em 1995 e com a lei 9.478/97, sancio-nada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, foi concedido à iniciativa privada, inclusive, ao capital internacional, o direito de operar na prospecção de pe-tróleo em território nacional. Até o momento, a ANP já realizou 10 rodadas de licitação. Todas as etapas fo-ram abertas à participação da iniciativa privada.

Lima critica aqueles que defendem o retorno do monopólio estatal do petróleo. “Os leilões estão dando certo. Não existe monopólio estatal do petróleo em ne-nhum país. É uma miopia política insistir nisso.”

DNA privAtistA Para o coordenador da FUP (Federação Única

dos Petroleiros), João Antônio de Moraes, o obje-tivo da CPI “não é fazer uma investigação séria”.

O senador José Nery (Psol-PA) não assinou o requerimento do tucano Álvaro Dias (PSDB-PR), para a instalação da CPI da Petrobras. Ele consi-dera que as denúncias que pesam contra a com-panhia já estão sob a investigação do Ministério Público Federal, Tribunal de Contas da União e da Polícia Federal. “As três instituições podem ado-tar as providências legais caso seja detectado al-gum problema”, afirma.

Para Nery, a instalação da Comissão Parla-mentar de Inquérito pode estar associada à dispu-ta eleitoral do ano que vem. Além disso, o sena-dor também quer evitar que as empresas privadas, que têm interesse nas áreas do pré-sal, capitali-zem em cima do desgaste imposto à imagem da companhia estatal.

“Neste momento a Petrobras tem o desafio de explorar a camada pré-sal. É preciso garantir credi-bilidade e respeitabilidade, para que continue sendo a empresa mais importante do país”, afirma.

O senador do Psol lembra que foi o governo de Fernando Henrique Cardoso quem derrubou o mo-nopólio estatal do petróleo, em 1995.

Nery defende a ideia de que as parcelas da companhia que passaram para as mãos de parti-culares sejam reestatizadas.

“Vão construir um palco político, para a disputa eleitoral de 2010”, afirma.

O sindicalista teme que a empresa também volte a ser objeto de ataques privatistas, apesar de o sena-dor Álvaro Dias, autor do requerimento que permitiu a instalação da CPI garantir que esse não é o obje-tivo da proposição. “Esse pessoal (tucanos e demo-cratas) têm a privatização no sangue, está no DNA”, ressalta Moraes.

O temor do dirigente sindical também é compar-tilhado pelo representante da Aepet. “O PSDB fez de tudo para desnacionalizar a Petrobras. Chegou até a mudar o nome da empresa para Petrobrax”, relembra Fernando Siqueira. “Queriam dividi-la em unidades de negócios, transformando-as em subsidiárias, para preparar a privatização”, acrescenta.

As duas entidades (FUP e Aepet) estão envolvidas na organização da sociedade civil com vistas à cons-trução de um novo marco regulatório para o setor. A FUP também pretende apresentar ao Congresso Na-cional um projeto de lei de iniciativa popular. “Esta-mos recolhendo um milhão de assinaturas. O projeto do governo (Lula) não contempla nossas reivindica-ções”, comenta Moraes.

Inúmeras manifestações de rua estão sendo rea-lizadas no país, em defesa da Companhia, como as que ocorreram em São Paulo e no Rio de Janeiro. No Rio, os manifestantes deram, inclusive, um abraço ao edifício-sede da estatal.

Neste mês é a vez de Brasília receber os manifes-tantes. Os sindicalistas aproveitam a realização do 51º Congresso da UNE, que acontece na capital fe-deral, e organizam um ato em defesa de uma Petro-bras pública e por uma nova lei de petróleo. Segun-do o dirigente petroleiro, 10 mil estudantes devem comparecer à manifestação.

Oposição de esquerda ao governo Lula não assina CPIrequerimeNto Do psDB

Segundo o senador Álvaro Dias, o objetivo da CPI que investigará a Petrobras será o de “responsabilizar civil e criminalmente os envolvidos em desmandos na administração da empresa”. O requerimento para a instalação da CPI conseguiu a adesão de 30 parla-mentares, eram necessárias 27 assinaturas para que a Comissão fosse aprovada. Os senadores têm um pra-zo de 180 dias para concluírem os trabalhos.

Pela proposta do tucano, as investigações que os senadores irão realizar vão se concentrar na admi-nistração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Não há nenhuma denúncia em relação aos governos anteriores. Mas como no Brasil um escândalo suce-de ao outro, e como são tantos os escândalos da ad-ministração da Petrobras, seria impossível buscar es-cândalos antigos”, conclui.

Para propor a CPI, Dias pautou-se em denúncias publicadas na imprensa. “Soubemos das denúncias, como o povo brasileiro, que tem a oportunidade de ler os grandes jornais e revistas”, conta.

As denúncias que serão investigadas, segundo Dias, vão se concentrar em três operações da Po-lícia Federal: Castelo de Areia, Águas Profunda e Royalties, além de auditorias do Tribunal de Con-tas da União, que segundo ele, comprovam superfa-

turamento de obras, aditivos irregulares. Existem ainda, de acordo com o senador, questionamen-tos do Ministério Público referentes ao pagamen-to de usineiros e à transferência de recursos para ONGs.

“São escândalos gigantescos. Nós não estamos nos referindo a migalhas. Trata-se de bilhões de reais que supostamente foram desviados em fun-ção do loteamento político da empresa”, critica.

petroBrAsO presidente da Petrobras, José Sérgio Gra-

brielli de Azevedo, conta que procurou os se-nadores do PSDB Arthur Virgílio (AM), Sérgio Guerra (PE) e Tasso Jereissati (CE) antes da ins-talação da Comissão Parlamentar de Inquérito, para afirmar que a Petrobras está à disposição, para prestar os esclarecimentos que o Senado considerar necessários.

Para ele, a CPI é um instrumento legítimo do Congresso Nacional. Gabrielli considera que as investigações têm de ser focadas. “Nesse perío-do há milhares de contratos”, ressalta.

Ele também conta que a companhia está cola-borando com as investigações da Polícia Federal e com o Tribunal de Contas da União.

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caros amigos julho 2009 40

Plataformas - 113Poços - 14 milRefi narias -16Capacidade instalada de refi no - 2,2 milhões de barris/diaTerminais - 66Malha dutoviária - 25 mil quilometrosSondas de perfuração (terra e mar) - 63Navios petroleiros próprios - 54Navios petroleiros afretados -135Termelétricas -15Produção média diária de óleo e gás* - 2,5 milhõesProdução diária de gás natural** - 67 milhões

Valor de mercado*** - R$ 344 bilhõesReceita operacional bruta - R$ 285 bilhõesReceita operacional líquida - R$ 232 bilhõesLucro líquido - 33 bilhõesInvestimento total – R$ 53 bilhõesInvestimento total **** – R$ 174,4 bilhõesCusto de extração por barril - US$ 9,6Pagamento de royalties e participações governamentais - R$ 23 bilhõesPagamento de impostos, taxas e contribuições sociais – R$ 60 bilhõesNúmero de empregados – 74.240

os NÚmeros DA GiGANte

Os dados referem-se às atividades da companhia no Brasil e exterior, em 2008 Fonte: Petrobras

* em barris de óleo equivalente** em metros cúbicos*** em setembro de 2008**** de 2009 a 2013

A Petrobras também aposta na diversifi cação da matriz energética. Além do pré-sal, a estatal investe em outras fontes de energia, como o biodiesel. Trinta e sete mil famílias ligadas à agricultura familiar vendem sua produção para a companhia, que processa as oleaginosas em três refi narias, para a obtenção do combustível ecológico. Para a área de biocombustíveis e etanol, os planos, até 2013, projetam um investimento de U$ 2,8 bilhões. A companhia também pretende construir cinco refi narias até 2017. Hoje, a empresa possui 16 plantas para o refi no, 11 no Brasil e cinco no exterior. As novas refi narias vão ampliar a capacidade de refi no instalada em 1,3 bilhão de barris/dia. As unidades serão voltadas para a produção de diesel e querosene de aviação. O Brasil é exportador de gasolina. Segundo o presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli de Azevedo, a geração de empregos diretos e indiretos motivados pelos novos investimentos deve girar em torno de 900 mil a um milhão de postos de trabalho. A exploração e produção do petróleo da camada pré-sal irá absorver a maioria desses trabalhadores. Hoje a Petrobras possui 74.240 empregados diretos. Para Gabrielli, o petróleo produzido na camada pré-sal é viável mesmo com o preço do barril abaixo de US$ 45. O custo de extração de um barril de petróleo fora do ambiente pré-sal era, em setembro do ano passado, U$ 9,6.

Diversificação da matriz energética

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41junho 2009 caros amigos

no ano do centenário de seu nascimento, o poeta Antônio Gonçalves da Silva, o Pata-tiva do Assaré, foi homenageado em livro,

filme e também no Senado, onde o senador Inácio Arruda (PCdoB-CE) lançou oficialmente o Ano Cul-tural Patativa do Assaré, agora em junho. Autodi-data, Patativa freqüentou a escola por pouco tempo e, nas palavras de Rosemberg Cariry, amigo e dire-tor do filme Patativa do Assaré – Ave Poesia, “ven-ceu o analfabetismo, o preconceito e se fez o grande poeta e a grande consciência social deste país”.

Nascido no dia 5 de março de 1909, em Serra de Santana, no interior do Ceará, região do Cariri, a 18 quilômetros da cidade de Assaré, Patativa era o se-gundo dos cinco filhos dos agricultores Pedro Gon-çalves da Silva e Maria Pereira da Silva. Aos nove anos, perdeu o pai e, ao lado de sua família, preci-sou enfrentar a vida de agricultor pobre no diminu-to terreno deixado como herança paterna.

Aos 12 anos, Patativa frequentou uma escola no mesmo campo onde sempre viveu, em Serra de San-tana. Ali passou seis meses e aprendeu apenas a ler: “sem vírgula, sem ponto, sem nada”, como conta no filme. Suas maiores distrações eram a poesia e a lei-tura. “Quando eu tinha tempo, chegava da roça, ao meio-dia ou à noite, e minha distração era ler, ler e ouvir outro ler para mim, o meu irmão mais velho, José. Ele lia sempre os folhetos de cordel e foi daí de onde surgiu a minha inspiração para fazer poesia. Eu comecei a fazer verso com 12 anos de idade.”, conta o poeta no filme de Rosemberg Cariry.

E continua: “Já com 20 anos começaram a me chamar Patativa [que é uma ave típica da região]. Posso dizer que foi José Carvalho de Brito que pôs esse apelido que o povo hoje conhece, esta alcunha. Patativa do Assaré.”

Esses relatos foram contados pelo poeta ao ami-go Cariry, em entrevista concedida em 1979. Os 84 minutos da película contêm ainda outras histórias da vida em Assaré: a infância, as primeiras letras, o começo na poesia e as lutas durante o período da ditadura militar. O filme se constrói tendo esta en-trevista como base e acrescenta imagens de pesqui-sadores, depoimentos de parentes e cenas gravadas do poeta cuidando de sua plantação de algodão, quando ainda não era famoso.

Admirador do trabalho de Patativa, Cariry não filmou o amigo tendo em mente um projeto para transformar as imagens colhidas de 1979 a 2006

em documentário. “O que existia era a vida, Patativa era meu compadre e par-ticipei junto com ele de muitas ativida-des culturais e políticas. Simplesmente documentei esses momentos impor-tantes. Depois da sua morte, em 8 de julho de 2002, resolvi prestar uma ho-menagem ao grande mestre, fazendo o filme”, conta o diretor.

Patativa do Assaré – Ave Poesia é fruto de um desejo do diretor de devol-ver Patativa ao povo. “Eu quis fazer este filme por-que a nação brasileira precisava saber de forma mais profunda quem foi Patativa do Assaré.” Cariry come-çou a edição das 100 horas de material fazendo um filme de cinco horas, relatando a vida do poeta e os principais acontecimentos do Brasil, que eram revis-tos a partir da poesia e da vida de Patativa.

O filme destaca o lado político. “Um homem e poeta de muitas facetas”, afirma Cariry, que diz ter sido sua vivência com Patativa o que o levou a op-tar pelo retrato deste lado específico. “Passei mais tempo ao seu lado no final da década de 70 e em toda a década de 80. Testemunhei e cheguei a parti-cipar ao seu lado de todas as lutas por justiça e pela redemocratização do país.”

Cariry conheceu o poeta na década de 60, quan-do o cineasta ainda era menino. Seu pai era dono de uma bodega e seu avô do Bar Tupy. “Esses locais eram pontos de encontro de muitos artistas popu-lares que vinham para a feira do Crato, também de operários e boêmios, que ficavam à noite discutindo política e as notícias que ouviam no rádio de ondas tropicais que meu avô mantinha no seu estabeleci-mento. Ali conheci grandes artistas do Cariri. Entre eles, Patativa do Assaré.”

Ave poesiAAinda em vida, Patativa do Assaré conseguiu “o

reconhecimento, o carinho e o amor do seu povo”, conta Cariry. Ele fazia poesia social, era um poeta do povo, sua luta era mais do que contra a ditadura, era contra a opressão que aflige o povo nordestino até hoje. “Não só o intelectual, mas também o artis-ta capaz de transformar aquele mal-estar em maté-ria poética”, lembra o professor e escritor Gilmar de Carvalho, no filme de Rosemberg Cariry.

Ao todo, Patativa publicou dez livros. O primei-ro, Inspiração Nordestina, publicado em 1956, com

O poeta popular Patativa do Assaré foi agricultor durante toda sua vida. Homem muito querido, difundiu poesia e cultura ao povo pobre do Nordeste. Foto Emerson Monteiro

pAtAtivA é do povo

incentivo do filósofo José Arraes de Alencar. Livro pronto e viola nas costas, Patativa andou por todo o Ceará fazendo suas cantorias e vendendo seu li-vro, para pagar a dívida que contraíra com o edi-tor. Depois vieram Inspiração Nordestina: Cantos do Patativa (1967), edição ampliada do primeiro livro, Cante Lá que Eu Canto Cá (1978), que lhe rendeu reconhecimento do meio acadêmico e da imprensa, Ispinho e Fulô (1988), Balceiro. Patativa e Outros Poetas de Assaré (1991), Cordéis (1993), Aqui Tem Coisa (1994), Biblioteca de Cordel: Patativa do As-saré (2000), Balceiro 2. Patativa e Outros Poetas de Assaré (2001) e Ao pé da mesa (2001).

Considerado comunista por seus atos em defe-sa do povo pobre, o poeta se declarava “comunista de coração” e em poemas como “Eu Quero”, “Tris-te Partida” (que mais tarde seria musicada por Luiz Gonzaga) e “O Brasil de baixo e o Brasil de cima”, dentre outros, defende os direitos e cobra melhorias para a vida do povo nordestino, debatendo assun-tos como seca, fome e reforma agrária.

Nas palavras do amigo cineasta, “Patativa do As-saré figura entre os grandes nomes da poesia do Bra-sil por ter conseguido, com arte e beleza, unir de-núncia social com lirismo, consciência política com profunda percepção humana. Quem lê a poesia de Patativa pensa, se emociona e se transforma, porque nela estão todas as lutas e esperanças do homem, es-tão as palavras que se erguem contra todas as formas de obscurantismo e opressão.”

Para Cariry, “Patativa é uma reserva ética e esté-tica do povo brasileiro. Se o Brasil não tem ainda o seu poeta-nacional, que simbolize e expresse o sen-timento de nação, como Pablo Neruda no Chile ou Camões em Portugal, o Nordeste brasileiro, popular e rebelado, tem o seu: Patativa do Assaré.”

Bruna Buzzo é estudante de Jornalismo.

Bruna Buzzo

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um ano após a lei estadual 5.265, que dificulta a realização de bailes funk, profissionais denunciam a repressão policial a cantores, compositores e até a quem simplesmente gosta de ouvir o ritmo popularizado nas favelas

do Rio de Janeiro. Na outra ponta, surge a Associação dos Profissionais e Ami-gos do Funk, cujo objetivo é unificar e politizar a categoria que leva para as pis-tas centenas de milhares de jovens todos os fins de semana.

Cidade de Deus, domingo, 14 de junho. Chego à rua GG, que na verdade é um espaço vazio, de terra batida, entre cinco ou seis edifícios. Circundado por ba-res e mercearias, o lugar deve ter o tamanho de uma quadra poliesportiva, tal-vez um pouco maior. São três da tarde, faz sol e as crianças se divertem. Brincam de pula-pula e de bola. Não resisto e acabo jogando altinha com eles. De repen-te, a bola cai na lama, suja pouco, quase nada. Mesmo assim um pequeno a toma pela mão e diz: “peraí, tio”. O menino, magrinho, uns 12 anos, esfrega a bola no meio-fio e completa: “pra não sujar sua calça”.

Olho pra trás e vejo um policial militar se aproximando. Daí a dez minutos aparece uma blazer da PM, que promove um escândalo inominável: com fuzis – que são armas de guerra - apontados para fora, o carro faz uma ronda passando por vezes muito perto das crianças que ali brincavam.

Enquanto isso a turma montava a aparelhagem de som no final da rua. Ainda era dia quando o sargento Alcântara foi até o DJ e afirmou: “dez horas tem que acabar”. Com um fuzil semiautomático a tira-colo, ele fazia cumprir a ordem do comando da polícia, que se baseia numa lei (ver quadro) que na prática inviabili-za a realização de bailes funk – a autoria é do ex-chefe de Polícia Civil e ex-de-putado estadual Álvaro Lins (PMDB-RJ), cassado e preso sob acusações de forma-ção de quadrilha, facilitação de contrabando e lavagem de dinheiro.

Na verdade, o DJ nem ficou tão aborrecido com o policial. Este era o primei-ro evento de funk realizado na CDD, berço desse ritmo no Brasil, desde a ocupa-ção policial, em novembro do ano passado. Aqui nasceram letras como “O povo

tem a força, só precisa descobrir / se eles lá não fazem nada, faremos tudo da-qui” – verdadeiro hino da classe trabalhadora –, escrita por Kátia e Julinho Ras-ta e popularizada pelos MCs Cidinho e Doca. Neste domingo, por insistência da Associação de Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk), o comando da PM au-torizou a realização de uma roda de funk, prestigiada por gente de todas as ida-des, incluindo meu parceiro de altinha.

A Lei 5.265, de junho de 2008, encerrou – direta ou indiretamente – bailes em pelo menos 60 casas no Estado, segundo Tojão, dono da equipe de som Espião Shock de Monstro. Isso dificulta muito a vida de quem vive do funk – cerca de 10 mil pessoas no Rio de Janeiro, segundo as contas da Apafunk. São DJs, MCs, dan-çarinos, compositores e empresários, mas também técnicos de som, motoristas, au-xiliares e toda uma gama de trabalhadores que, na década de 80, segundo o antro-pólogo Hermano Vianna em seu livro O mundo funk carioca, mobilizavam mais de um milhão de jovens (cerca de 20% da população da capital fluminense) em 700 bailes todos os finais de semana em torno dessa mistura de soul (música negra es-tadunidense, cujo maior representante foi James Brown), miami bass (batida ele-trônica) e percussão africana. O resultado é o batidão que hoje está entranhado na cultura do Rio de Janeiro, sobretudo nos espaços populares.

A professora Adriana Facina, do Departamento de História da UFF, acom-panhou de perto o funk carioca durante um ano e meio para sua pesquisa de pós-doutorado. Entrevistou mais de cem pessoas, esteve em duas dezenas de favelas e foi a bailes da zona sul à zona norte. Após todo esse trabalho de campo, ela acredita que o que existe é uma perseguição à população afrodes-cendente. “Os que hoje querem proibir o funk são herdeiros históricos daque-les que, no passado, quiseram calar os batuques que vinham das senzalas”. A propósito, o brasão da Polícia Militar do RJ ainda ostenta os ramos de cana e café, produtos que sustentaram a economia brasileira – movida a trabalho escravo – num passado não muito distante.

O batidão entre a perseguição e a resistência Foto Fernanda Chaves

Funk carioca

Marcelo Salles

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A lei estadual 5.265, de junho de 2008, determina que festas rave e bailes funk devem ser informadas com 30 dias de antecedência à Secretaria de Segurança Pública mediante a apresentação dos seguintes documentos: contrato social; CNPJ; comprovante de tratamento acústico; anotação de responsabilidade técnica das instalações de infraestrutura do evento, expedida por autoridade municipal; contrato da empresa de segurança autorizada pela Polícia Federal; comprovante de instalação de detectores de metal e câmeras; comprovante de previsão de atendimento médico e nada a opor da Delegacia Policial, do Batalhão de Polícia Militar, do Corpo

de Bombeiros e do Juizado de Menores.Além disso, o pedido de autorização deve informar a expectativa de público, o número de ingressos postos à venda, o nome do responsável pelo evento, a capacidade da área de estacionamento e previsão de horário de início e término do evento, que não poderá exceder 12 horas. Banheiros deverão ser disponibilizados na proporção de dois (um masculino e um feminino) para cada grupo de cinqüenta pessoas. São exigências que tornam alto demais o custo de realização de um baile e impõem uma burocracia que inviabiliza o trabalho dos pequenos produtores.

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Funk carioca

“Como é comum acontecer numa sociedade de herança de três séculos de escravidão, a música diaspórica, elemento fundamental de identidade negra, forma comunicacional principal dos modos de vida, dos valores e de denún-cia da população afrodescendente é vista com grande desconfiança pelas eli-tes”, complementa Adriana.

Além da dificuldade para a realização de bailes, o que termina por concen-trar os eventos nas grandes casas de show ou por marginalizar os pequenos produtores, a perseguição ao funk extrapolou para a violência contra o cidadão favelado. Naquele domingo, na Cidade de Deus, ouvi denúncias como a proibi-ção de jovens pintarem o cabelo de determinada cor ou de ouvirem funk den-tro de suas próprias casas.

Um cantor e compositor com quem estive, e que prefere não se identificar por medo de represália, contou que um dia estava reunido com amigos numa esquina da favela, chegou uma guarnição da polícia e perguntou o que esta-vam fazendo. “Compondo”, respondeu. “Então eles mandaram a gente disper-sar e tomaram o CD com a batida de fundo”, disse, entre irritado e envergonha-do pela humilhação sofrida.

O tenente-coronel Luigi Gatto, comandante do 18º Batalhão de Polícia Mi-litar, afirma que desconhece a proibição sobre a tinta no cabelo. Em relação à música dentro das casas, diz que a polícia atua baseada na lei do silêncio e quando algum vizinho reclama. Quanto à proibição dos bailes, declara: “não conheço baile funk em comunidade que não tenha tráfico de drogas, porte ile-gal de armas, corrupção de menores e apologia ao crime”, mas afirma que se o evento for realizado dentro da lei 5.265, ele não se opõe.

O comandante da PM faz uma avaliação positiva da ocupação da favela: “hoje a Cidade de Deus já está inserida no bairro de Jacarepaguá, os serviços públicos (luz, dragagem, coleta de lixo) estão funcionando, o espaço público foi devolvido para as pessoas que moram ali. Isso tudo era domínio do tráfico. Hoje em dia não há mais estado de exceção, a ordem pública foi restaurada”.

OrgaNizaçãO dO mOvimeNtO fuNkeirOFoi com o objetivo de enfrentar as dificuldades que MC Leonardo decidiu fun-

dar a Associação dos Profissionais e Amigos do Funk. O compositor, nascido e criado na Rocinha, ganhou projeção nacional ao lado de seu irmão, MC Júnior, com letras como Rap das Armas e Endereço dos Bailes. “O funk é uma das poucas diversões com preços acessíveis, criada dentro da favela, pelos favelados. O funk está sendo proibido de tocar no Rio de Janeiro!”, denuncia Leonardo.

Além de criticar muito a lei 5.265, o cantor relata outras formas de perse-guição a quem gosta de ouvir o ritmo. “No interior do Rio a polícia está pe-gando e quebrando CDs de quem escuta funk”. Leonardo também rebate as acusações de que o ritmo é pornográfico. “O mercado pornográfico é o que mais cresce no mundo, dizer que o funk é o responsável por isso é no míni-mo estranho. Uma parte do funk é o reflexo disso, não o espelho”. Mr. Catra, que tem feito até cinco shows por dia no Rio de Janeiro mas segue invisível aos olhos das corporações de mídia, também respondeu a estas acusações con-

Marlboro, que segundo as contas da Apafunk controlam mais de 90% do mercado. Os dois possuem as maiores produtoras, editoras e equipes de som. E mais: man-têm programas em rádios (FM O Dia e 98 FM, respectivamente) onde, segundo Le-onardo, só divulgam seus próprios artistas. “Usam concessão pública em benefício próprio”, acusa. O MC também critica o modelo de contrato feito com os artistas. “Pagam 150 reais ao garoto e mais nada”. E pra aumentar o volume do batidão, dispara: “estão sempre ao lado dos governos, fazem campanha, fizeram campanha para o [governador] Sérgio Cabral (PMDB)”.

Rômulo Costa não respondeu ao recado deixado em seu telefone celular. DJ Marlboro se defende: “meu contrato artístico é igual ao de todas as editoras no mundo. O autoral é 75% do autor e 25% da editora. O artístico, que não exige obrigatoriedade, varia de 4% a 10%. Na produção, eu pego o garoto que recebe R$ 50 na favela pra fazer a montagem com um computador e levo para o estú-dio, dou oportunidade a ele de aprender com equipamento profissional, coloco o nome dele no direito conexo e ainda pago R$ 150, três vezes mais do que ele re-cebe na favela. Agora, tem produtores que são mais caros, a gente vive no capi-talismo, cada um recebe de acordo com o retorno que dá. A música é um negó-cio”, diz. Marlboro também discorda da existência de um duopólio. “Ninguém é obrigado a assinar contrato comigo ou com o Rômulo. Tem vários meios, o cara pode ir pro meio da praça, para a internet... Agora, eu não vou colocar no meu programa de rádio artista de outras gravadoras, ninguém faz isso. Monopólio é quando não tem escolha. A gente não proíbe ninguém de ter iniciativa”. Sobre as idéias dos MCs Júnior e Leonardo, ele declara: “eles acham que tem que ser co-munismo, que todo mundo tem que ganhar igual. Querem o funk socialista”.

Talvez isso explique por que o Rap da Igualdade tenha sido declinado por Marlboro, que, segundo Leonardo, não quis divulgá-lo com o seguinte argu-mento: “Não é a hora de malhar a elite”.

Eu só imploro a igualdade pra viver, doutor No meu Brasil (que o negro construiu) Eu só imploro a igualdade pra viver, doutor No meu Brasil A injustiça vem do asfalto pra favela Há discriminação à vera Chegam em cartão postal Em outdoor a burguesia nos revela Que o pobre da favela tem instinto marginal E o meu povo quando desce pro trabalho Pede a Deus que o proteja Dessa gente ilegal, doutor Que nos maltrata e que finge não saber Que a guerra na favela é um problema social

(Trecho do Rap da Igualdade, MC Dolores)

Burocracia do preconceito

tra o funk no documentário Sou feia, mas tô na moda. “Sacanagem é o coroa comendo a crian-cinha na novela das oito.”

O MC da Rocinha defende a unificação do movimento em torno da conscientização políti-ca. “Eu cobro dos artistas que eles usem a sua arte como ferramenta de mudança contra as in-justiças que eles sofrem. O funk é preto, favela-do, discriminado e, por isso, deveria ter um dis-curso mais engajado que todas as outras artes”, afirma. Muitas vezes as pessoas julgam o funk por aquilo que ouvem na mídia comercial, sem saber que ali prevalece o funk comercial, despolitizado, do jeito que o sistema capitalista gosta. Leonardo tem corrido os gabinetes da Assembleia Legisla-tiva em busca de apoio para revogar a Lei 5.265 e aprovar um novo texto que reconheça e valori-ze o caráter cultural do funk.

Outro nó apontado por Leonardo é o duopó-lio exercido pelos empresários Rômulo Costa e DJ

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IDÉIAS DE BOTEQUIMRenato Pompeu

O livro mais bonito do mês é “Comunicação popular escri-ta”, do professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, Américo Pellegrino Filho, publicado pela Edusp. Do cordel brasileiro a um cartaz antifi ado manuscrito num bar italiano, passando por um “sinal de trânsito” que avisa que “não há cangurus na Áustria”, o livro, em gran-de formato e de capa dura, com quase 700 páginas, apresenta e discute mais de 14 mil grafi tos, de 107 países. Acompanha um CD. Está dividido em 22 classes (avulsos, brochuras populares, cartas a Papai Noel e à Velha Befana, epitáfi os populares, fórmulas de fi ado, etc.) e 40 temas e subte-mas. Adverte o autor: “É de se esperar que a leitura das análises, neste li-vro, não seja leve, descontraída, relaxada. Requer atenção, interesse, caneta para anotações (críticas?) e disposição para curtir as maravilhosas mensa-gens que os povos escrevem”.

Ainda de temática popular, e também de interesse geral, é “A Igreja Universal e seus demônios – um estudo etnográfi co”, do profes-sor da Universidade de Campinas Ronaldo de Almeida, lançado pela Editora Terceiro Nome. Diz na apresentação a famosa antropóloga Alba Zaluar: “A reconstituição histórica do crescimento espetacular das igrejas neopente-costais no Brasil é acompanhada por uma cuidadosa etnografi a baseada na observação feita por ele em cultos realizados dentro dos templos da Igre-ja Universal do Reino de Deus. A centralidade do exorcismo e a associação entre o diabo e as divindades cultuadas pelos adeptos das religiões afro-brasileiras adquirem uma visão ao mesmo tempo religiosa e política”. Uma leitura imprescindível para quem quer conhecer a mentalidade de amplos setores das camadas urbanas da sociedade brasileira.

Igualmente sobre religião, no caso o hinduísmo populariza-do pela telenovela “Caminho das Índias”, temos, em tradução do sânscri-to pelo professor de Letras da USP, Carlos Alberto Fonseca, a “Canção do Venerável”, publicada pela Editora Globo, ou seja, o famoso “Bhagavadgi-ta”, hino composto na Índia a partir do século 10 a.C., há três mil anos, e que constitui uma espécie de catecismo introdutório à religião hindu. Um

deus explica a um soldado que é preciso com-bater o egoísmo, o individualismo e a ganância, mas que é também necessário agir para cumprir o dever, no caso do soldado o dever de combater os inimigos e mesmo matá-los, ainda que se-jam parentes próximos. Afi nal, os mortos terão a oportunidade de voltarem mais puros e mais felizes numa próxima reencarnação.

Outro tema popular: há os que acreditam em tudo que lêem nos jornalões e há os que não acreditam em nada que neles é publicado. Para todos esses é importante a leitura do li-vro “Escritos sobre jornal e educação – olhares de longe e de perto”, editado pela Global e ALB. Com prefácio do cientista político e jornalista

Emir Sader, colaborador de “Ca-ros Amigos”, a educadora Car-men Lozzo, que foi durante 20 anos coordenadora pedagógica da Infoglobo, discute a utiliza-ção dos jornais como fontes de trabalhos escolares e de discus-sões durante as aulas. Diz Emir Sader: “um livro para professo-res, para alunos, para cidadãos, para gente comum, que se espanta diante da imprensa ou desconfi a profundamente dela”. Ele conclui: “Sem uma leitu-ra crítica que analise, selecione, relacione e complemente o sentido do vo-lume de informações da mídia escrita, a escola, como instrumento educati-vo e transformador, deixa de existir”.

O mais famoso livro de ficção sobre a fome, o romance li-teralmente chamado “Fome”, do escritor norueguês Knut Hamsun (1859-1952), Prêmio Nobel de 1920, foi relançado, na também famosa tradução do grande poeta Carlos Drummond de Andrade, pela Geração Editorial. Passado na segunda metade do século 19, Hamsun se baseou em sua própria experi-ência de vida, de escritor nascido em família pobre, que passava fome quan-do não conseguia realizar pequenos serviços, seja como trabalhador braçal, seja como articulista ocasional da imprensa de Cristiânia, nome que tinha na época a capital da Noruega, depois rebatizada como Oslo.

Esse lançamento, além de sua pungência clássica e da descri-ção comovente e chocante de o que é passar fome, experiência de tantos brasileiros e de tantas pessoas no mundo ainda hoje, é tanto mais opor-tuno na atual situação de renascimento do fascismo em meio a uma nova crise econômica estrutural do capitalismo internacional. Pois a vida de Ha-msun, com toda a sua visão de verdadeiro proletário, é uma advertência: sua solidariedade aos pobres e aos desempregados dos anos 1930 o levou a aderir ao nazismo e a saudar a ocupação de seu país pela Alemanha de Hitler. Ele morreu em 1952, sem se ter ar-rependido, mesmo depois de ter sido preso e dado como louco no pós-guerra. Afi nal o fascismo está renascendo hoje na Europa, em especial nos países ex-comunistas – e é preciso levar muito a sério o seu apelo po-pular, como solução bárbara para situações de barbarismo.

Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio O Mundo como Obra de Arte Criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela, e editor-especial de Caros Amigos. Envio de li-vros para a revista, rua Paris, 856, cep 01257-040, São Paulo-SP.

TEMAS DO POVÃO: grafi tos, Igreja Universal, hinduísmo, credibilidade dos jornais, fome...

deus explica a um soldado que é preciso com-bater o egoísmo, o individualismo e a ganância, mas que é também necessário agir para cumprir o dever, no caso do soldado o dever de combater os inimigos e mesmo matá-los, ainda que se-jam parentes próximos. Afi nal, os mortos terão a oportunidade de voltarem mais puros e mais felizes numa próxima reencarnação.

em tudo que lêem nos jornalões e há os que não acreditam em nada que neles é publicado. Para todos esses é importante a leitura do li-vro de longe e de perto”Com prefácio do cientista político e jornalista

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sugestões de leituraFORÇA DE TRABALHO E TECNOLOGIA NO BRASILMarcio PochmannEditora RevanO VOO DE MINERVAAntonio Carlos MazzeoBoitempo EditorialOS DESAFIOS DAS EMANCIPAÇÕES EM UM CONTEXTO MILITARIZADOAna Esther Ceceña (org.)Editora Expressão Popular

As novas regras de publicidade impedem que pessoas consideradas cele-bridades façam propaganda de remédios vendidos sem receita. É o mínimo de defesa dos cidadãos que se pode estabelecer. Se coloca em questão, pela primeira vez, uma das expressões mais instrumentalizadoras de personagens tornados famosos pela mí-dia, para vender qualquer tipo de produto.

Me lembro perfeitamente das publicidades milionárias do governo FHC para privatizar a Vale do Rio Doce, feitas por Raul Cortez. Um artista que conquis-tou fama por seu meritório trabalho no teatro e por um muito menos em telenovelas da Globo, se valia da empatia com sua imagem, para vender a privatização da maior empresa do seu ramo no mundo, com argumentos que se revelaram totalmente fa-lazes com o passar do tempo.

Da mesma forma outros artistas ou esportistas vendem, a preço de ouro, suas imagens, para promover a comercialização de mortadelas, apartamentos, carros, bancos, cervejas, entre tantas outras mercadorias. O que tem a ver a imagem de cada um deles com os produtos que anunciam? Não são nem sequer suas prefe-rências pessoais. Veja-se como Zeca Pagodinho anunciou uma cerveja que se conhecia não ser da sua preferência, mas que lhe pagou mais. Depois voltou àquela que prefe-re, não por ter mudado de marca, mas por uma oferta publicitária maior.

Em vários países escandinavos é proibida qualquer publicidade nos horários prioritários das crianças verem televisão, por se considerar que elas são ex-cessivamente frágeis, indefesas, diante da agressividade das ofertas das mercadorias que lhes são oferecidas pela televisão. Enquanto que o mercado deita e rola em cima das crianças, um nicho de mercado bombardeado com comidas, roupas, celulares, en-tre tantas outras coisas.

A mercantilização da vida se propaga através da publicidade, veicula-da de forma privilegiada pela televisão. Vale tudo para vender. Um conhecido publi-citário brasileiro disse, com toda sinceridade, que a publicidade não tem ética. Dê-em-me um produto e eu encontrarei a fórmula de dizer que é bom para as pessoas, que vale a pena comprá-lo. O sucesso de vendas de um produto não está na aceita-ção das pessoas, no reconhecimento das suas qualidades, mas no mérito das campa-nhas que o promovem. Da mesma forma que se diz que um processo na Justiça não é ganho por quem é inocente, mas por quem dispõe do melhor advogado. Isso se es-tende às eleições, em que os marqueteiros passaram a ser mais importantes do que as plataformas que os candidatos defendem.

O marketing, a publicidade, são expressões da concepção de mundo que buscar mercantilizar a tudo, que trata de que tudo tenha preço, tudo se venda, tudo se compre, da visão da sociedade como uma espécie de shopping-center, da vitória do mercado contra o direito. Democratizar é desmercantilizar, é afirmar direitos e es-fera pública contra o reino do mercado e do marketing.

Emir Sader é cientista político.

ÉTICA CONTRA A PuBliCidade

Emir Sader

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