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Exmo. Sr(a). Dr(a). Juiz(a) de Direito da MM. Vara da ...§ão Civil Pública... · serve de base...

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Exmo. Sr(a). Dr(a). Juiz(a) de Direito da MM. Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre. AÇÃO CIVIL PÚBLICA com pedido de LIMINAR O MINISTÉRIO PÚBLICO, por sua Promotoria de Justiça de Habitação e Defesa da Ordem Urbanística de Porto Alegre, presentada pelo agente firmatário; forte no art. 127, “caput”, e no art. 129, inciso III, ambos da Constituição Federal; no art. 1º, inciso III (com a redação dada pela Lei n.º 10.527/2001), e no art. 5º, “caput”, ambos da Lei n.º 7.347/85; amparado nos dados colhidos na Peça de Informação n.º 11/2005, intenta a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA com pedido de LIMINAR contra MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE, pessoa jurídica de direito público interno, com sede na Rua Siqueira Campos, n.º 1300, 12º andar, nesta Capital, devendo ser citado na pessoa de seu representante legal, Exmo. Sr. Prefeito Municipal de Porto Alegre, Sr. José Alberto Fogaça de Medeiros (art. 94, inciso IX, da Lei Orgânica do Município de Porto Alegre); ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, pessoa jurídica de direito público 1
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Exmo. Sr(a). Dr(a). Juiz(a) de Direito da MM. Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre.

AÇÃO CIVIL PÚBLICA com pedido de LIMINAR

O MINISTÉRIO PÚBLICO, por sua Promotoria de Justiça de Habitação e Defesa da Ordem Urbanística de Porto Alegre, presentada pelo agente firmatário; forte no art. 127, “caput”, e no art. 129, inciso III, ambos da Constituição Federal; no art. 1º, inciso III (com a redação dada pela Lei n.º 10.527/2001), e no art. 5º, “caput”, ambos da Lei n.º 7.347/85; amparado nos dados colhidos na Peça de Informação n.º 11/2005, intenta a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA com pedido de LIMINAR contra

MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE, pessoa jurídica de direito público interno, com sede na Rua Siqueira Campos, n.º 1300, 12º andar, nesta Capital, devendo ser citado na pessoa de seu representante legal, Exmo. Sr. Prefeito Municipal de Porto Alegre, Sr. José Alberto Fogaça de Medeiros (art. 94, inciso IX, da Lei Orgânica do Município de Porto Alegre);

ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, pessoa jurídica de direito público

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interno, com sede na Praça Marechal Deodoro, nesta Capital, devendo ser citado na pessoa do Sr. Procurador-Geral do Estado do Rio Grande do Sul (art. 117, parágrafo único, da Constituição Estadual), com gabinete na Av. Borges de Medeiros, n.º 1501 – 11º andar, Centro, em Porto Alegre;

com base nos seguintes fundamentos de fato e de direito:

I – FATOS

O presente caso diz respeito à situação fática e jurídica de dezenas de famílias de baixa renda que habitam ao largo da rodovia BR-290, no trecho entre a Ponte do Guaíba e os limites territoriais do Município de Porto Alegre. Já faz alguns anos que a área foi progressivamente ocupada com moradias precárias, a maior parte casebres, desprovidos de acesso aos equipamentos urbanos mais elementares. As casas situadas na faixa de domínio da rodovia não têm abastecimento de água, serviços de esgotos, tampouco rede regular de energia elétrica ou de coleta de águas pluviais (equipamentos urbanos previstos no art. 5º, parágrafo único, da Lei n.º 6.766/79).

Assim, cerca de 600 pessoas habitam irregularmente aquela área, conforme relação contida nos autos da investigação civil promovida pelo Ministério Público 1 e corroborada por matérias jornalísticas acostadas aos autos 2. A maior parte das habitações é extremamente precária, barracos em que seres humanos vivem em condições miseráveis, sujeitos a todo tipo de dificuldades. Como a área é absolutamente imprópria para ocupação humana – não se tratando de mera proibição legal, mas de efetiva falta de condições fáticas – os moradores sofrem os efeitos de enchentes (ás 1

1

Relação das fls. 503/509 da PI 11/2005 – PJDHOU.2 Ver documentos (matérias jornalísticas) das fls. 520 e 533/534 da PI 11/2005 – PJDHOU.

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vezes com resultados fatais 3), sofrem com atropelamentos 4, acabam por provocar acidentes (pois vários sobrevivem como carroceiros e deixam seus animais soltos para pastar perto da pista 5), além, é claro dos inevitáveis problemas de segurança pública que inexoravelmente surgem. A prática de roubos a usuários da rodovia tem se tornado cada vez mais freqüente, causando insegurança a toda a coletividade 6.

Trata-se, pois, de ocupação ilegal (como se verá logo adiante) que, além de afrontar a legislação, tem prejudicado toda a coletividade, em face da lesão ao ordenamento urbanístico, dos danos causados aos usuários da rodovia e das condições desumanas e miseráveis em que vivem os habitantes da faixa de domínio da BR-290. Destaca-se, porém, que tal situação não se confunde com a situação geral atinente ao Parque Estadual do Delta do Jacuí, embora também contenha elementos relativos àquele caso. Com efeito, a ocupação irregular nas margens da rodovia se insere em um quadro maior que é justamente a ocupação da área do referido Parque, ocupação levada a cabo em face da inércia fiscalizatória dos entes públicos. Entretanto, a questão da ocupação irregular no território do Parque Estadual do Delta do Jacuí, com seus múltiplos aspectos (urbanísticos, ambientais, etc.), será devidamente tratada por legislação a ser editada no âmbito estadual. Já há o Projeto de Lei n.º 159/2005 (cópia inclusa), enviado à Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul e atualmente tramitando junto à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) daquela Casa, cuidando da matéria e disciplinando os aspectos polêmicos. Em seu art. 9º, “caput”, o aludido Projeto prevê que “As populações

tradicionais residentes na Unidade de Proteção Integral, cuja permanência não for

permitida, serão indenizadas ou compensadas pelas benfeitorias existentes e 3

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Ver documento (matéria jornalística) da fl. 535 da PI 11/2005 – PJDHOU.4 Ver documento das fls. 546/547 da PI 11/2005 – PJDHOU.5 Ver documento (matéria jornalística) da fl. 544 da PI 11/2005 – PJDHOU.6 Ver documentos (matérias jornalísticas) das fls. 539/541 da PI 11/2005 – PJDHOU.

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devidamente realocadas pelo Poder Público, em local e condições acordados pelas

partes”. A matéria, como fica evidente na leitura dos parágrafos do mencionado artigo, dependerá de ulterior regulamentação para poder ser implementada. Flagrante, pois, a morosidade com que a situação das ocupação irregular no Parque será enfrentada. Além do tempo dilatado que o processo legislativo geralmente demanda, haverá ainda a necessidade de estudos e discussões para a regulamentação da novel legislação, com prazos mais e mais alargados... Como se vê, a situação contida nos autos, embora aparentada, não se confunde com a dos ocupantes do Parque. Para os ocupantes da faixa de domínio da BR-290, a situação é sui generis. Não são, a rigor, invasores da área do Parque Estadual do Delta do Jacuí e, deste modo, não estão contemplados no programa de

realocação previsto no art. 9º do aludido Projeto de Lei em tramitação na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. Por outro lado, como invasores de uma área pública, estando em situação de perigo permanente (para si e para outros) nas margens de uma rodovia, sua situação é de ilegalidade, não comportando qualquer tipo de regularização. A área, por ser pública – imprescritível, portanto – e por ter vedação legal para edificar (art. 4º, inciso III, da Lei n.º 6.766/79) impede qualquer possibilidade de legalização da ocupação. Isso gera uma situação emblemática da crueldade e cinismo do abismo social brasileiro: se por um lado as autoridades não coíbem eficazmente a invasão da faixa de domínio, permitindo a instalação de famílias de forma precária, sem segurança alguma, por outro lado, ante a ilegalidade da ocupação, não proporcionam a instalação de equipamentos urbanos básicos, indispensáveis ao mínimo existencial. Tolera-se a ilegalidade – a ocupação irregular – ao alto preço da conivência com a miséria brutal. Pessoas vivendo animalizadas pela pobreza, sem água corrente, sem fornecimento regular de energia elétrica, aviltadas em sua dignidade mais

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básica de seres humanos. Aceita-se essa situação desumanizadora de dezenas de famílias, invocando-se, porém, os comandos da legislação para negar a concretização efetiva de melhorias mínimas à existência daquela coletividade. Não bastasse isso, a situação ainda é agravada pelo fato de muitas destas famílias estarem assentadas sob um gasoduto, ou nas imediações dos dutos de gás natural. O quadro é literalmente explosivo: muitas dessas famílias obtêm energia elétrica em ligações clandestinas, os populares “gatos”. Essas ligações clandestinas são em regra precárias, com forte possibilidade de fagulhas ou de contato do fluxo de energia com materiais externos. Estes “gatos”, perigosos em si mesmos, são feitos em cima de uma tubulação de gás natural, substância altamente inflamável e conduzida sob pressão

dentro dos dutos 7. Basta o contato entre uma fagulha elétrica e um pequeno vazamento de gás para gerar uma enorme explosão. Assim, a potencialidade de um desastre vitimando centenas de famílias é grande demais para ser ignorada. Esse risco não é imaginário, mas concreto. Já ocorreram vários incêndios no local 8, potencializando enormemente o risco de explosão no gasoduto e, conseqüentemente, a possibilidade de uma enorme catástrofe, com centenas de pessoas atingidas e um grande número de vítimas fatais. Já houve inclusive um foco de incêndio no próprio gasoduto, causando a interdição temporária da rodovia para tráfego de veículos. Esse foco de incêndio foi causado justamente por uma ligação clandestina de energia elétrica (“gato”) 9. Por sorte nada de mais grave ocorreu, mas é apenas uma questão de tempo para que aconteça uma tragédia de grandes proporções.

Embora a rodovia seja originariamente federal, a exploração da pista foi concedida à Concessionária da Rodovia Osório – Porto Alegre S.A. – CONCEPA . 7

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No caso, pressão de 16 kgf/cm2, conforme documento das fls. 528/529 da PI 11/2005 – PJDHOU, trecho citado especificamente à fl. 528.8 Ver documentos (matérias jornalísticas) das fls. 522/524 da PI 11/2005 – PJDHOU.9 Ver documentos (matérias jornalísticas) das fls. 530 e 536 da PI 11/2005 – PJDHOU.

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Como a empresa passou a ter a posse da área, e é isso, ultima ratio, que se discute neste feito, entre outras coisas (pois não se discute nem se controverte o domínio sobre a área ocupada), a competência é deslocada para a Justiça Estadual, conforme já decidido pela Justiça Federal (o tema será explanado mais adiante). A CONCEPA ingressou com ações de reintegração de posse e, mesmo tendo obtido a reintegração, não conseguiu obter o cumprimento dos mandados, seja pela lamentável omissão da força pública estadual, seja pelo grave problema social que restaria agravado 10.

A matéria foi inicialmente investigada pelo Ministério Público pelo prisma ambiental, no contexto da problemática do Parque Estadual do Delta do Jacuí. Remetido ao Conselho Superior do Ministério Público, houve a determinação de prosseguimento das investigações quanto às situações de risco (fl. 235 da PI 11/2005 – PJDHOU) – vale dizer, quanto à ocupação nas margens da BR-290, objeto da presente ação. A questão foi então enviada à Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos, tendo lá aportado em outubro de 2003 (fls. 243/244 da PI 11/2005 – PJDHOU).

Ante a criação e instalação da Promotoria de Justiça de Habitação e Defesa da Ordem Urbanística de Porto Alegre, os autos foram redistribuídos, tendo chegado às mãos do agente firmatário na data de 12 de agosto de 2005 (ofício da fl. 04 da PI 11/2005 – PJDHOU). O expediente foi numerado como PI 11/2005 – PJDHOU e serve de base documental à presente demanda. Pela narrativa, verifica-se que a situação se arrasta sem solução efetiva há tempos. No entanto, como salientado acima e será desenvolvido mais adiante, o quadro é grave e não pode esperar mais por uma solução no âmbito administrativo. Os gestores públicos estão jogando com centenas de vidas ao permitirem a ocupação em uma área tão perigosa e de forma tão precária. Mais do que simplesmente uma petição inicial, faz-se aqui um grito de alerta, confiando no Poder Judiciário como instância capaz de garantir os direitos fundamentais dos 10 Ver documentos das fls. 358/372 da PI 11/2005 – PJDHOU.

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invasores e, assim encerrar definitivamente este triste capítulo na vida de Porto Alegre.

II – DIREITO

II.1. Impossibilidade de permanência na área

O primeiro – e mais premente – fundamento da ação é a absoluta impossibilidade de permanência daquelas centenas de famílias junto à faixa de domínio da BR-290. Não se pode permitir que aquelas pessoas continuem a ocupar uma área pertencente ao domínio da União, pois sua ocupação não é passível de regularização, dada as suas características de bem público. A Lei n.º 6.766/79, em normatização de caráter público e cogente, estabelece uma área non aedificandi na faixa de domínio público das rodovias, impossibilitando o estabelecimento de moradias em tais áreas. Diz o diploma em questão:

“Art. 4º - Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos:(...)III - ao longo das águas correntes e dormentes e das faixas de domínio público das rodovias e ferrovias, será obrigatória a reserva de uma faixa não-edificável de 15 (quinze) metros de cada lado, salvo maiores exigências da legislação específica; (Redação dada pela Lei n.º 10.932, 03.8.2004)”.

A reserva de terreno não-edificável prevista na legislação tem sua razão de ser. O bem jurídico tutelado na norma, mais do que a proteção do patrimônio estatal, é a preservação da segurança da coletividade. Ocupada a faixa de domínio de rodovia, inúmeros são os riscos que daí advém, boa parte deles concretizados na situação

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concreta sub examine. Atropelamentos de moradores da faixa de domínio da rodovia (especialmente crianças), acidentes automobilísticos causados por animais soltos na pista, roubos contra usuários da rodovia, tudo isso ocorre no cotidiano da BR-290, conforme demonstrado nos autos da investigação promovida pelo Ministério Público. Essas limitações de ordem pública, previstas na legislação e relativas ao uso e ocupação do solo, destinam-se a propiciar melhor qualidade de vida à população urbana. Tais preceitos atendem à coletividade como um todo, pois disciplinam a utilização dos espaços habitáveis e, para o bem-estar geral, consagram os critérios de desenvolvimento do Município. A desordenada ocupação do solo às margens da BR-290, resultante da não-observância às normas urbanísticas, conduziu, no presente caso:

a) à proliferação de habitações edificadas de forma precária, insegura, sem critérios técnicos e em condições sub-humanas;

b) ao surgimento de focos de insalubridade e degradação da saúde;

c) ao adensamento populacional desprovido de equipamentos urbanos e comunitários definidos em lei e incompatível com o meio físico (má localização, à margem de rodovia muito movimentada), gerando o crescimento caótico da cidade;

d) em suma, à marginalização dos seus habitantes com o incremento das desigualdades sociais e reflexos na segurança da população.

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Está em causa, pois, a defesa de condições adequadas para a vida coletiva. Essa falta de condições básicas é agravada, como dito anteriormente, pela presença de dutos de gás natural justamente no trecho da BR-290 habitado pelos ocupantes ilegais 11. A situação foi objeto, como visto, de levantamento de local de risco por parte do Comando Regional de Bombeiros, que assim definiu a situação 12:

“Conforme atestam as fotos em anexo, está confirmada a existência das sub-habitações irregulares abaixo da canalização do gasoduto, construídas após a instalação do mesmo, constituindo-se em risco real de acidente que implique em colapso da estrutura precocemente, não descartando-se a possibilidade de ocorrer um ‘flash-fire’ ou até explosão em situação extraordinária, levando-se em consideração que os afastamentos previstos para a canalização (fls.......) são horizontais e não verticais conforme a situação se apresenta, bem como a possibilidade de um incêndio no local, salientando que o ponto de fundição do Aço carbono de aproximadamente 1600ºC e a característica do gás natural de entrar em combustão espontânea a aproximadamente 600ºC, ratificamos que as sub-habitações deverão ser retiradas do local devendo haver o impedimento de novas construções irregulares”.

Verifica-se que existe risco de explosão em caso de incêndio no local. Esse risco não é imaginário, mas concreto. Já ocorreram vários incêndios no local 13, potencializando enormemente o risco de explosão no gasoduto e, conseqüentemente, a possibilidade de uma enorme catástrofe, com centenas de pessoas atingidas e um grande número de vítimas fatais. Já houve inclusive um foco de incêndio no próprio gasoduto, causando a interdição temporária da rodovia para tráfego de veículos. Esse foco de incêndio foi causado justamente por uma ligação clandestina de energia elétrica 11

1

Vide contrato entre a CONCEPA e a SULGÁS juntado às fls. 511/518 da PI 11/2005 - PJDHOU.12 Relatório das fls. 528/529 da PI 11/2005 – PJDHOU, trecho citado especificamente à fl. 529, grifou-se.13 Ver documentos (matérias jornalísticas) das fls. 522/524 da PI 11/2005 – PJDHOU.

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(“gato”) 14. Por sorte nada de mais grave ocorreu, mas é apenas uma questão de tempo, repete-se novamente, para que aconteça uma tragédia de grandes proporções.

Em síntese: a situação dos ocupantes das margens da rodovia BR-290 é frontalmente contrária ao texto da lei. É ilegal e, mais do que isso, perigosa, insalubre e desumana. Devem, pois, ser retirados urgentemente do local, interditando-se as margens daquela rodovia à ocupação humana com fins habitacionais. Se os demais ocupantes de áreas não-regularizáveis do Parque Estadual do Delta do Jacuí, ocupantes de áreas não perigosas, destinadas à conservação ambiental, serão retirados e realocados, conforme o art. 9º do aludido Projeto de Lei, então com certeza igual providência se impõe em relação aos ocupantes da faixa de domínio da rodovia BR-290 com maior celeridade, para suprimir este terrível quadro de ilegalidade e insegurança.

II.2. Direito fundamental à moradia e à vida digna (direito constitucional brasileiro e direito comparado) 15

O outro fundamento jurídico da presente ação é o direito fundamental à

moradia, direito este que foi agora expressamente incluído entre os direitos sociais previstos no artigo 6º, “caput”, da Constituição Federal, por força do texto da Emenda Constitucional n. 26/2000 (grifou-se):

“Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

14 Ver documentos (matérias jornalísticas) das fls. 530 e 536 da PI 11/2005 – PJDHOU.15 A argumentação que segue é extensamente fundada no texto de petição inicial de ação civil pública ajuizada pelo Dr. Cláudio Ari Pinheiro de Mello, DD. Promotor de Justiça, em face do Município de Uruguaiana.

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A incorporação do direito à moradia no catálogo de direitos fundamentais da Constituição da República recupera a omissão do texto original de 1988, já que a principal inspiração daquele rol foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos de

1948, que contempla em seu texto o direito à habitação, nos termos do art. XXV (1):

“todos têm direito ao repouso e ao lazer, bem como a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos, e serviços sociais indispensáveis, o direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice, ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora do seu controle”.

Como todos os direitos sociais, o direito constitucional à moradia desafia o intérprete e aplicador da Constituição a definir construtivamente o seu conteúdo e a extensão da sua eficácia jurídica, sem ignorar as limitações orçamentárias e financeiras do Poder Público, nem a existência de uma legítima esfera de discricionariedade administrativa na gestão pública. Por um lado, o intérprete constitucional dos direitos sociais deve pautar-se pelo princípio hermenêutico da máxima efetividade das normas

constitucionais, e portanto não deve, de forma alguma, inibir-se diante de argumentos como a natureza genérica ou o caráter programático dos direitos sociais, ou com limites derivados da separação de poderes, como a teoria da discricionariedade administrativa.

Ao contrário, constatando que a reivindicação de uma determinada pessoa ou de uma coletividade pela garantia de um direito social é legítima e razoável e que a omissão da garantia pelo Estado é, ao contrário, ilegítima e irrazoável, deve o aplicador da Constituição Federal reconhecer a existência de um direito subjetivo individual ou coletivo a uma prestação estatal e, para tutelá-lo, deve construir uma solução jurídica

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que assegure, no caso concreto, a maior eficácia possível ao direito social.

Neste sentido a lição de INGO WOLFGANG SARLET 16:

“em todas as situações em que o argumento da reserva de competência do legislador (assim como a separação de poderes e as demais objeções habituais aos direitos sociais a prestações como direitos subjetivos) implicar grave agressão (ou mesmo o sacrifício) do valor maior da vida e da dignidade da pessoa humana, ou nas hipóteses em que, da análise dos bens constitucionais colidentes, resultar a prevalência do direito social prestacional, poder-se-á sustentar, na esteira de Alexy e de Gomes Canotilho, que, na esfera de um padrão mínimo existencial, haverá, em princípio, a possibilidade de reconhecer um direito subjetivo definitivo a prestações”.

O direito à moradia pode ter diversos efeitos jurídicos, como adiante será analisado. No caso desta ação, uma das eficácias jurídicas que se pretende afirmar diz respeito ao reconhecimento da existência de um dever jurídico-constitucional do Poder Público de prover o acesso à moradia adequada para uma determinada coletividade de pessoas carentes, que não possuem recursos para obterem habitação por seus próprios esforços. O conteúdo mínimo do direito à moradia adequada deve conter ao menos as condições básicas de bem-estar compatíveis com o princípio da dignidade da pessoa

humana, previsto no art. 1º, inciso III, da Constituição da República.

Assim, a ação civil pública pretende afirmar a existência de uma eficácia positiva do direito fundamental à moradia, da qual se extrai o dever jurídico do Poder Público de proporcionar serviços públicos para a implementação de condições mínimas

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1

Ingo Wolfgang Sarlet, O Direito Fundamental à Moradia na Constituição, Algumas Anotações a Respeito do seu Contexto, Conteúdo e Possível Eficácia, Arquivos de Direitos Humanos, vol. 4, p. 185-186.

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de moradia adequada para uma coletividade específica de pessoas carentes, que neste momento está submetida a condições habitacionais incompatíveis com as exigências mínimas do princípio constitucional da dignidade humana. A afirmação da eficácia positiva dos direitos sociais é, atualmente, um dos mais relevantes e candentes temas da jurisdição constitucional, e o Poder Judiciário brasileiro, certamente pelas precárias condições sociais e econômicas do país e pela deficiente atuação do Poder Público, vem se transformando em uma nova instância jurídico-política de garantia dos direitos sociais, a exemplo do que ocorre em outros países.

A jurisprudência brasileira versando sobre direitos sociais pode ser hoje classificada com toda a justiça como uma das mais avançadas do mundo. A partir da promulgação da Constituição Federal em 1988, os Juizes e Tribunais brasileiros foram gradualmente ampliando os exemplos de decisões judiciais que protegem os mais variados direitos sociais, tanto em ações envolvendo direitos de indivíduos quanto em casos envolvendo direitos sociais coletivos. Essas decisões têm enfrentado e superado, com sensatez e prudência, argumentos antigos e conservadores que foram historicamente utilizados para recusar qualquer eficácia jurídica aos direitos sociais, como o princípio da separação de poderes, a doutrina da discricionariedade administrativa, a doutrina das questões políticas e a tese do caráter programático das normas constitucionais que tutelam direitos sociais. Outros argumentos formulados mais recentemente, como a reserva do possível e a reserva orçamentária, também têm sido enfrentados e superados com igual cuidado pelo Poder Judiciário brasileiro no intuito de estender a eficácia jurídica dos direitos fundamentais sociais.

Um exame do panorama geral da jurisprudência brasileira sobre direitos sociais revela, aliás, que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul encontra-se na vanguarda do julgamento de ações judiciais sobre o direito à moradia, buscando

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assegurar eficácia jurídica a este direito fundamental. Veja-se, por exemplo, o Agravo de

Instrumento n. 70008228561, em 08 de junho de 2004, em que a 19ª Câmara Cível reformou decisão de primeira instância que concedera medida liminar de reintegração de posse ao Município de Esteio para desalojar um grupo de 23 famílias que havia invadido área pública municipal, estabelecendo que não basta expulsar os invasores,

mas deve ser observado o direito à cidadania, dignidade e moradia das famílias que ocuparam a área 17. Destaca-se também outro julgado, em que a 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça decidiu que, no conflito entre direitos patrimoniais e o direito à moradia, deve prevalecer o último, conectado à proteção da dignidade humana 18.

Por outro lado, uma pesquisa da jurisprudência sobre direitos sociais em outros países, sobretudo naqueles que vivem sob condições sociais e econômicas semelhantes às do Brasil, revela uma ampliação do recurso ao Poder Judiciário para a assegurar a eficácia de direitos sociais. Um exemplo particularmente importante para a proteção judicial do direito à moradia encontra-se no caso Government of the Republic

of South Africa & Others vs. Grootboom & Others, que é atualmente considerado um dos mais relevantes precedentes de tutela judicial de direitos sociais no mundo, e que trata exatamente da garantia do direito à moradia pelo Poder Judiciário, mediante ordem ao Poder Público para executar obras ou programas de melhoria das condições de habitação de um grupo ou uma coletividade de pessoas.

Antes de referir este caso paradigmático, o chamado caso Grootboom,

17 “Posse. Liminar. Bem público. Garantias constitucionais. No caso, embora a área invadida seja bem público, necessário observar questões de maior relevância, de cunho constitucional, como a dignidade da pessoa humana, o direito à moradia, entre outros. Não pode o município pretender simplesmente expulsar os agravantes da área, sem que estes tenham para onde ir. Deram provimento”. (grifou-se)18 “(...) na pendência de litígio acerca do débito de mútuo hipotecário, deve prevalecer o direito à moradia sobre direitos patrimoniais, em homenagem ao princípio fundamental constitucional que garante o direito à dignidade humana. Agravo de Instrumento provido”. (Agravo de Instrumento nº 70008103871, Nona Câmara Cível, TJRS, Rel. Adão Sérgio do Nascimento Cassiano, julgado em 12 de maio de 2004, grifou-se).

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convém registrar que a Constituição Sul-Africana editada em 1996 garante expressamente o direito à moradia e impõe ao Estado o dever de prover condições adequadas de habitação, nos termos do artigo 26 19:

“Art. 26. HOUSING(1) Everyone has the right to have access to adequate housing.(2) The State must take reasonable legislative and other measures, within its available resources, to achieve a progressive realisation of this right”.

O caso Grootboom envolvia uma invasão de área particular sem uso por um grupo de 390 adultos e 510 crianças que viviam em situação de extrema pobreza em Walladane, os quais haviam sido retirados da área e tido suas barracas e pertences queimados e destruídos. O grupo ajuizou uma ação contra o Estado na Cape High Court

e obteve uma decisão judicial ordenando o Governo Sul-africano a prover-lhe abrigo. O Governo recorreu à Corte Constitucional da África do Sul, que finalmente decidiu, em 11 de outubro de 2000, que o Estado deveria promover medidas para prover alívio para pessoas sem acesso à terra e sem telhado sobre suas cabeças, e que estejam vivendo em condições intoleráveis ou em situações de crise 20. A ordem da Corte Constitucional incluiu planejamento, previsão de recursos, implementação e supervisão de medidas para prover alívio às pessoas sem teto em situação de necessidade desesperada 21.

Nesta importante e influente decisão, a Corte Constitucional da África do Sul manifestou-se sobre diversos aspectos decisivos a respeito da proteção judicial dos 19 Art. 26. MORADIA. (1) Todos tem o direito de ter acesso à moradia adequada. (2) O Estado deve adotar medidas legislativas razoáveis e outras, dentro dos recursos disponíveis, para atingir uma realização progressiva deste direito.20 “provide relief for people who have no access to land, no roof over their heads, and who are living in intolerable conditions or crisis situations”.21 “desperate need”.

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direitos sociais. Em primeiro lugar, a Corte Sul-Africana afirmou explicitamente a justiciabilidade dos direitos sociais, declarando que, “dado que os direitos econômicos e sociais estão expressamente incluídos na Declaração de Direitos da Constituição, a questão não é se eles são justiciáveis, mas como garanti-los em determinado caso” 22.

A seguir, a Corte assinalou que o direito à moradia deve ser compreendido não isoladamente, mas em relação com os demais direitos sociais e econômicos, considerando-se o contexto histórico e social em que estão inseridos 23:

“Os direitos são inter-relacionados e se apoiam mutuamente. Prover direitos socioeconômicos para todos é uma forma de capacitá-los para usufruir os demais direitos previstos na Constituição. A este respeito, o direito de acesso à moradia adequada não pode ser visto isoladamente, e sua íntima relação com os outros direitos socioeconômicos deve ser levada em conta na determinação de obrigações do Estado, junto com seu contexto histórico e social”.

Ou seja, o que decidiu a Corte Constitucional Sul-Africana é que a garantia de acesso à moradia adequada repercute diretamente na garantia de outros direitos sociais, como o direito à saúde, à proteção da infância e do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Por isso, o dever imposto ao Poder Público de assegurar condições mínimas de moradia traduz-se em um modo de assegurar a dignidade das pessoas submetidas a situações habitacionais desesperadoras e humilhantes, 22 “given that socio-economic rights are expressly included in the Bill [of Rights] the question is not whether they are justiciable, but how to enforce them in a given case”.23 “All rights are inter-related and mutually suporting. Affording socio-economic rights to all enables them to enjoy the other rights enshrined in the Constitution. In this regard the right to access ro adequate housing cannot be viewed in isolation na its close relationship with other socio-economic rights, must be taken into account in determining State obligations, together with its social and historical context”.

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incompatíveis com o ideal de vida digna.

O direito à moradia adequada, na medida em que concretiza o princípio da dignidade da pessoa humana, possui um conteúdo normativo complexo que transcende o provimento de condições econômicas de acesso a uma habitação. O direito à moradia envolve também, no mínimo, a oferta de terrenos para construção de moradias populares por preços módicos ou simbólicos, de energia elétrica residencial, de água potável, de iluminação pública, de rede de esgoto, de rede telefônica, de vias públicas em condições de trafegabilidade para pedestres e veículos automotores e, inclusive, de serviços escolares para crianças nas proximidades.

Comentando a decisão em Grootboom, os autores argentinos Victor Abramovich e Christian Courtis, em obra de referência internacional sobre a justiciabilidade dos direitos sociais, dizem que “o caso Grootboom não é apenas um caso testemunha sobre a possibilidade de exigência direta de um direito à moradia, senão que no marco das estratégias comentadas neste capítulo deveria ser lido como um exemplo das enormes possibilidades que tem a justiça de avançar frente a um caso particular, com ferramentas de análise jurídica, no exame de medidas e políticas públicas na área social” 24.

No âmbito nacional, recentemente o Supremo Tribunal Federal, em decisão monocrática do Min. Celso de Mello na Ação de Descumprimento de Prefeito

Fundamental n. 45, em 29 de abril de 2004, fez pronunciamento de extrema importância acerca da justiciabilidade de direitos sociais.

A ementa da decisão é a seguinte (grifou-se):

24 Victor Abramovich e Christian Courtis, Los derechos sociales como derechos exigibles, Madrid, Editoral Trotta, 2002, p. 166.

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ADPF - Políticas Públicas - Intervenção Judicial - "Reserva do Possível" (Transcrições) ADPF 45 MC/DF. RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO EMENTA: ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA "RESERVA DO POSSÍVEL". NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO "MÍNIMO EXISTENCIAL". VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO).

Nesta que é provavelmente a mais importante decisão brasileira sobre o controle judicial de políticas públicas de implementação de direitos sociais, o Ministro Celso de Mello manifestou-se expressamente sobre uma série de questões polêmicas envolvendo a temática, merecendo o devido destaque.

Primeiro, afirma o Ministro Celso de Mello que a atribuição da função de Guardião da Constituição confere ao Supremo Tribunal Federal uma dimensão política que o impede de demitir-se “do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos,

sociais e culturais, que se identificam, enquanto direitos de segunda geração, com as liberdades positivas, reais ou concretas, sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da

Constituição, comprometer, de modo inaceitável, a integridade da própria ordem constitucional”.

Segundo, admite que, excepcionalmente, considerado o caso concreto, pode o Poder Judiciário assumir a função de impor, de determinar ao Poder Público a efetivação de políticas públicas: “É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções

institucionais do Poder Judiciário – nas desta Suprema Corte, em especial – a atribuição de formular e implementar políticas públicas, pois neste domínio o encargo reside, primariamente, nos Poderes

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Legislativo e Executivo. Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos jurídico-políticos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que

derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático”.

Terceiro, que embora se deva reconhecer a relevância da objeção da limitação financeira do Estado (a cláusula da “reserva do possível”), “cumpre advertir, desse

modo, que a cláusula da ‘reserva do possível’ - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido

de essencial fundamentalidade”.

Uma das grandes virtudes desta decisão monocrática do Ministro Celso de Mello é a advertência de que o Supremo Tribunal Federal está disposto a controlar o cumprimento dos deveres impostos ao Estado pelos direitos sociais, econômicos e culturais inscritos na Constituição da República, ao menos em casos em que a omissão estatal comprometa severamente a garantia dos direitos, e a alegação da reserva do possível ou da limitação orçamentária não será considerada um fundamento absoluto para a auto-restrição judicial no exame da constitucionalidade da omissão estatal.

Há – refira-se – o argumento tradicional utilizado contra a tutela judicial dos direitos sociais, sobretudo em ações que visem à condenação do Poder Público a concretizá-los de forma que exija recursos orçamentários: o argumento da discricionariedade administrativa, segundo a qual faltaria ao Poder Judiciário legitimidade política para impor ao Poder Executivo determinada linha de ação no âmbito das suas funções administrativas, em face do princípio constitucional da separação de poderes. Entretanto, a concepção moderna de discricionariedade

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administrativa tem relativizado a extensão da liberdade de ação do administrador público, especialmente quando se trata de implementar programas de satisfação de direitos sociais e coletivos, como revela o julgado do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n. 429.570-GO, da 2ª Turma, Relatora Min. Eliana Calmon, de 11 de novembro de 2003, verbis:

ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA –OBRAS DE RECUPERAÇÃO EM PROL DO MEIO AMBIENTE – ATOADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO.1. Na atualidade, a Administração pública está submetida ao império da lei, inclusive quanto à conveniência e oportunidade do ato administrativo.2. Comprovado tecnicamente ser imprescindível, para o meio ambiente, a realização de obras de recuperação do solo, tem o Ministério Público legitimidade para exigi-la.3. O Poder Judiciário não mais se limita a examinar os aspectos extrínsecos da administração, pois pode analisar, ainda, as razões de conveniência e oportunidade, uma vez que essas razões devem observar critérios de moralidade e razoabilidade.4. Outorga de tutela específica para que a Administração destine do orçamento verba própria para cumpri-la.5. Recurso especial provido.

No voto da relatora, a doutrina da discricionariedade administrativa foi enfrentada e afastada pela Min. Eliana Calmon com sólidos argumentos jurídicos a favor da justiciabilidade dos direitos sociais e coletivos. Considerando a relevância histórica do julgamento e a sua incidência no tema desta ação, passa-se a citar os trechos mais significativos do voto:

“A pergunta que se faz é a seguinte: pode o Judiciário, diante de omissão do Poder

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Executivo, interferir nos critérios da conveniência e oportunidade da Administração para dispor sobre a prioridade da realização de obra pública voltada para a reparação do meio ambiente, no assim chamado mérito administrativo, impondo-lhe a imediata obrigação de fazer? Em caso negativo, estaria deixando de dar cumprimento à determinação imposta pelo art. 3º, da lei de ação civil pública?

(...) O primeiro aspecto a considerar diz respeito à atuação do Poder Judiciário, em relação à Administração. No passado, estava o Judiciário atrelado ao princípio da legalidade, expressão maior do Estado de direito, entendendo-se como tal a submissão de todos os poderes à lei. A visão exacerbada e literal do princípio transformou o Legislativo em um super poder, com supremacia absoluta, fazendo-o bom parceiro do Executivo, que dele merecia conteúdo normativo abrangente e vazio de comando, deixando-se por conta da Administração o facere ou non facere, ao que se chamou de mérito administrativo, longe do alcance do Judiciário. A partir da última década do Século XX, o Brasil, com grande atraso, promoveu a sua revisão crítica do Direito, que consistiu em retirar do Legislador a supremacia de super poder, ao dar nova interpretação ao princípio da legalidade. Em verdade, é inconcebível que se submeta a Administração, de forma absoluta e total, à lei. Muitas vezes, o vínculo de legalidade significa só a atribuição de competência, deixando zonas de ampla liberdade ao administrador, com o cuidado de não fomentar o arbítrio. Para tanto, deu-se ao Poder Judiciário maior atribuição para imiscuir-se no âmago do ato administrativo, a fim de, mesmo nesse íntimo campo, exercer o juízo de legalidade, coibindo abusos ou vulneração aos princípios constitucionais, na dimensão globalizada do orçamento.

A tendência, portanto, é a de manter fiscalizado o espaço livre de entendimento da Administração, espaço este gerado pela discricionariedade, chamado de "Cavalo de Tróia" pelo alemão Huber, transcrito em "Direito Administrativo em Evolução", de Odete Medauar. Dentro desse novo paradigma, não se pode simplesmente dizer que, em matéria de conveniência e oportunidade, não pode o Judiciário examiná-las. Aos poucos, o caráter de liberdade total do administrador vai se apagando da cultura

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brasileira e, no lugar, coloca-se na análise da motivação do ato administrativo a área de controle. E, diga-se, porque pertinente, não apenas o controle em sua acepção mais ampla, mas também o político e a opinião pública”.

Como se vê, portanto, a jurisprudência brasileira já admite a relativização da discricionariedade administrativa nos casos em que a proteção de direitos fundamentais esteja a exigir a intervenção do Poder Judiciário para garantir, de maneira firme, a força normativa da Constituição (Die normative Kraft der Verfassung). Nesta ação, o Ministério Público sustenta, pois, que os entes públicos demandados não têm discricionariedade administrativa e tampouco pode invocar pura e simplesmente o princípio da reserva orçamentária, com o fito de deixar de proporcionar moradia digna às pessoas removidas da faixa de domínio da BR-290, com condições básicas de infra-estrutura, de forma a garantir o mínimo existencial àquela coletividade. Trata-se de, via Poder Judiciário, garantir e afirmar o conteúdo mínimo do princípio da dignidade da pessoa humana. Há, pois, a necessidade de comando judicial afirmando a existência do dever jurídico dos entes públicos demandados, no sentido de concretizar o direito fundamental à habitação daquela coletividade.

II.3. Responsabilidade Civil do Estado do Rio Grande do Sul e do Município de Porto Alegre 25

II.3.1. Competência e responsabilidade do Município de Porto Alegre

25 A argumentação que segue é largamente fundamentada em material produzido pela Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo de São Paulo.

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O controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano constitui encargo, por excelência, do Município (Constituição Federal, art. 30, VIII). Consoante se verifica na Lei Orgânica do Município de Porto Alegre, no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental, no Código de Edificações do Município de Porto Alegre (Lei Complementar n.º 284, de 27 de outubro de 1992), e no Decreto Municipal n.º 12.715, de 23 de março de 2000, o Município de Porto Alegre tem atribuições para:

a) exercer o controle urbanístico de todas as edificações na área da cidade 26;

b) realizar diretamente as medidas administrativas, de sua competência, relativas ao parcelamento do solo;

c) efetuar a devida fiscalização e promoção das medidas judiciais cabíveis;

d) identificar os loteamentos e edificações irregularmente implantados e adotar as providências necessárias à adequada estruturação do espaço urbano e à sua regularização fundiária;

e) propor soluções sobre projetos relativos a intervenções urbanas a serem empreendidas.

26 Decreto Municipal n.º 12.715. Art. 2º - Nenhum loteamento ou obra de construção, reconstrução, ampliação, reforma, transladação, demolição ou reciclagem de uso poderá ser realizada sem prévio licenciamento municipal.Código de Edificações. Art. 13 - Nenhuma obra de construção, reconstrução, ampliação, reforma, transladação, demolição de qualquer edificação, ou alteração de atividade, poderá ser realizada sem prévio licenciamento municipal.

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No exercício desse controle urbanístico 27., o Município pode:

a) aplicar multas a quem efetuar parcelamento do solo sem prévio licenciamento municipal (Código de Edificações, artigos 224 a 228);

b) embargar a obra 28 e intimar o infrator a regularizá-la (Código de Edificações, artigos 229 a 231; e Decreto Municipal n.º 12.715, art. 58) 29;

c) por intermédio dos órgãos competentes, promover a responsabilidade daqueles que descumprirem as normas de caráter urbanístico (Código de Edificações, art. 7º) 30; Assim, percebe-se que:

a) é dever do Município garantir a regularidade no uso, no parcelamento e na ocupação do solo, para assegurar o respeito aos padrões urbanísticos e o bem-estar da população;

27 “Toda construção urbana, e especialmente a edificação, fica sujeita a esse duplo controle – urbanístico e estrutural – que exige a prévia aprovação do projeto pela Prefeitura, com a subseqüente expedição do alvará de construção e, posteriormente, do alvará de utilização, vulgarmente conhecido como “habite-se”. Além da aprovação do projeto, o controle das construções estende-se à execução da obra, possibilitando embargo e demolição quando realizada em desconformidade com o aprovado, ou antes de seu início, a cassação do alvará, se for o prazo” (Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro. 7ª edição, atualizada por Izabel Camargo Lopes Monteiro e Yara Darcy Police Monteiro. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 418).28 “A construção clandestina, por não ter alvará de licença ou de autorização, pode ser embargada e demolida, porque em tal caso o particular está incidindo em manifesto ilícito administrativo, já comprovado pela falta de licenciamento do projeto, ou por sua inteira ausência”. (Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal..., p. 357.29 Decreto Municipal n.º 12.715. Art. 58 - O Município poderá embargar, às expensas do proprietário, sem prejuízos de outras penalidades , parcelamento do solo , edificações e obras em geral realizados em desacordo com o licenciamento. 30 Código de Edificações. Art. 7º - É da responsabilidade do Município: (...) IV – promover a responsabilidade do proprietário do imóvel e/ou do profissional pelo descumprimento da legislação pertinente.

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b) em matéria urbanística e, particularmente, quanto a habitações, a Municipalidade dispõe de amplíssimos poderes para controle e fiscalização, inclusive o de aplicar direta e imediatamente as sanções adequadas, sem necessidade de mandado judicial, o que lhe permite prevenir comportamentos lesivos de particulares ou, quando menos, atenuar os seus efeitos.

No caso concreto, a responsabilidade do Município é patente na ocupação habitacional ilegal, precária, insegura e insalubre às margens da BR-290. A Municipalidade se omitiu, permitindo a instalação de centenas de famílias naquela área, em total desacordo com a legislação vigente e com os postulados constitucionais de garantia da dignidade da pessoa humana.

II.3.2. Competência e responsabilidade do Estado do Rio Grande do Sul

Embora este controle urbanístico caiba naturalmente ao Município de Porto Alegre, não se cuida de uma função que ele possa ou deva desempenhar com exclusividade. Há também uma responsabilidade concorrente por parte do Estado do Rio Grande do Sul, calcada em duas vertentes de argumentação: (a) a defesa do interesse metropolitano, (b) a inserção da ocupação ilegal às margens da BR-290 em um todo maior, este de responsabilidade exclusiva do Estado, qual seja, o da ocupação habitacional irregular no Parque Estadual do Delta do Jacuí, no entorno da rodovia. De fato, nas regiões metropolitanas, ocorre um entrelaçamento de cidades, que passam a constituir uma única comunidade, com interesses econômicos e sociais comuns, carentes de um tratamento uniforme. Nestas circunstâncias, há uma

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irradiação dos interesses locais, que transcendem a esfera de cada Município, para repercutir em um todo maior, circunscrito em uma região. Nessas circunstâncias, algumas funções públicas, especialmente aquelas relativas ao uso do solo metropolitano, ultrapassam o interesse puramente municipal. Configurando, assim, um peculiar interesse metropolitano (ou regional), submetem-se ao controle concorrente do governo da metrópole 31. Como se sabe, o encargo e a competência, para estes assuntos, foram atribuídos aos Estados-membros pela Lei Complementar Federal n.º 14/73. Esta sufragou a tese de que, em nosso sistema federativo, à falta de um nível de governo específico, o interesse metropolitano é de titularidade estadual, cabendo ao Estado o desenvolvimento das funções governamentais e a administração dos serviços comuns aos municípios nesta região 32. A Constituição de 1988 repassou justamente aos Estados-membros a regulamentação das regiões metropolitanas, reconhecendo a primazia estadual no trato da matéria. Entre nós, a matéria foi disciplinada na Constituição Estadual (artigos 16 a 18) e regulamentada especialmente pela Lei Estadual Complementar n.º 11.740/2002, assim como por outras leis. Deste modo, havendo, nesses casos, aspectos de interesse local e outros onde predomina o interesse regional, o uso do solo metropolitano sujeita-se, simultaneamente, à ação do Município e do Estado (Lei n.º 6.766/79, art. 13, inciso II e parágrafo único, combinado com a Lei Complementar Federal n.º 14/73, art. 5º, III).

31 Constituição Federal, art. 25, § 3º; Lei Complementar Federal n.º 14/73; vide também o art. 27 da Lei Estadual n.º 10.116/94, estabelecendo a competência administrativa estadual em matéria de uso do solo urbano. Ver também Eliana Donatelli de Moura, Região Metropolitana, “Revista de Direito Público" n.º 67, p. 261-263; e João Francisco Moreira Viegas, Ação Civil Pública por Dano Urbanístico: Questões Controvertidas, “Temas de Direito Urbanístico”, v. 2, CAOHURB, Ministério Público do Estado de São Paulo, 2000, p. 66-67. 32 Consulte-se Eurico de Andrade Azevedo, Institucionalização das Regiões Metropolitanas, em "Revista de Direito Administrativo", n.º 119, p. 1-15.

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Para o cumprimento de seus deveres, ambos sempre poderão usar dos instrumentos legais apropriados, estando igualmente habilitados ao adequado exercício dessa função de garantia e, portanto, sujeitos a reparar os efeitos de sua inércia, dentre as quais os relacionados com a implantação de ocupações clandestinas, que obviamente não teriam surgido se tivessem atuado com o devido zelo. Em verdade, na região metropolitana, interessa tanto ao Município como ao Estado a ordenação físico-social dos espaços habitáveis, pois essa atividade, ainda quando exercida por particulares, em nome próprio, no interesse próprio e às próprias custas e riscos, constitui uma função pública por excelência. De resto, esse encargo não pode ser cometido, exclusivamente, aos Municípios, porque jamais poderá ser eficientemente provido pela ação restrita e isolada das entidades locais. Convergindo os interesses das duas esferas estatais, também devem convergir os seus esforços para a satisfação do interesse coletivo. É certo que os poderes instrumentais do Estado, no que concerne ao interesse metropolitano, são mais modestos e menos explícitos do que os conferidos a cada Município integrante dessa região. Entretanto, esses poderes estaduais - preventivos e repressivos - constituem conseqüência lógica de sua competência na matéria e, sendo inerentes ao poder de polícia, prescindem de específica regulamentação (confira-se o acolhimento deste princípio em acórdão unânime da 3a. Câmara Civil do E. Tribunal de Justiça de São Paulo, em RJTJESP 133/66-67, Relator Desembargador Flávio Pinheiro). É assente na doutrina que à competência para impor condicionamentos ao exercício regular de direitos (tradicionalmente definida como poder de polícia) vinculam-se, necessariamente, mais duas competências: fiscalizar sua observância e reprimir infrações à lei. Esta, de ordinário, prevê tais poderes expressamente; entretanto, mesmo quando silencia, não há como recusá-los à Administração, pois são ínsitos à sua função

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ordenadora. Realmente, se um ente estatal tem o poder de disciplinar determinada atividade, tem também o correlato dever de fiscalizar a observância de suas regras, pois "não se compreenderia a edição de normas legais para serem impunemente desobedecidas" 33. A todo interesse relevante da coletividade ou do Estado, corresponde, para protegê-lo, igual poder de polícia, cujo exercício cabe à entidade competente para regular a matéria. Exatamente por isto, na lógica de distribuição das competências, as matérias de interesse regional sujeitam-se em regra às normas e à polícia estadual e os assuntos de interesse local subordinam-se às leis e ao policiamento municipal. Evidente, pois, a necessidade de fiscalização contínua sobre tais atividades, e de imposição, por ambos os entes de direito público interno, das medidas repressivas adequadas, dentre as quais sempre figura, pelo menos, a possibilidade de ordenar a correção ou supressão das irregularidades. Como se vê, dispondo dos correspondentes poderes – alguns expressos, outros implícitos –, o Estado também está habilitado a interferir na regulação urbanística e a cumprir, assim, a função que nessa matéria lhe cabe, para garantia dos interesses individuais e coletivos. A melhor jurisprudência, ademais, posiciona-se neste sentido. Cumpre observar o contido no Agravo de Instrumento no. 241.606-1/8, sendo Agravante a Fazenda do Estado de São Paulo e Agravado o Ministério Público do Estado de São Paulo, voto da lavra do Exmo. Desembargador Álvaro Lazzarini:

"De resto, é também evidente a legitimidade passiva da agravante para responder à ação.Com efeito, na região metropolitana, porque dispõe de competência para anuir à sua implantação e recebeu poderes para se opor aos que sejam feitos sem o seu

33 Hely Lopes Meirelles, "Estudos e Pareceres de Direito Público", v. II, Revista dos Tribunais: São Paulo, 1977, p. 539.

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consentimento, não se compreende que o Estado-membro esteja dispensado de fiscalizar loteamentos, especialmente os situados em áreas de proteção de

mananciais".

No caso concreto, a responsabilidade do Estado é decorrente de sua omissão na fiscalização da ocupação irregular no contexto metropolitano. Apesar de, conforme já mencionado, ter poderes para impedir a ocupação irregular, não se valeu de tais poderes a contento, como a sociedade justamente poderia esperar. Essa responsabilidade é especialmente perceptível se apreendido em um quadro maior de ocupação habitacional no Parque Estadual do Delta do Jacuí, este de especial responsabilidade estadual. As ilhas e a área ambientalmente protegida foram objeto de ocupação em larga escala – tanto de casebres quanto de mansões – sem que a fiscalização estadual atuasse no sentido de impedir o acesso e edificação em tais áreas. Ora, a rodovia BR-290 ‘corta’ a área do Parque. A ocupação das margens da estrada com favelas em condições precárias ocorreu juntamente com a ocupação das áreas adjacentes, pertencentes ao Parque. Seria ilógico definir a responsabilidade pela fiscalização nas margens da estrada como competência municipal e a de seu entorno imediato como competência estadual. Melhor é, atentando na natureza unitária do fenômeno da ocupação habitacional e na competência metropolitana comum instituída pela legislação, reconhecer-se a competência concorrente de ambos os entes públicos, isso, espera-se, agilizará a resolução do problema social descrito nesta ação. Aliás, a omissão do Estado do Rio Grande do Sul persiste ainda hoje, sendo comprovada pela omissão da força pública em garantir a execução dos mandados de reintegração posse obtidos pela CONCEPA. O Estado permitiu a ocupação irregular da área, ao não exercer qualquer fiscalização efetiva, e agora, chamado a colaborar, por meio da Brigada Militar, em uma eventual retirada das famílias

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em situação irregular, mais uma vez se omite, negando-se a efetivar o comando judicial de reintegração 34. Com isso, fica clara a responsabilidade estadual concorrente.

II.3.3. Responsabilidade civil extracontratual da administração pública.

No direito brasileiro, desde a Constituição de 1946, o dever de reparação dos entes estatais, pelos danos que provocam, funda-se na responsabilidade objetiva, sobre a qual, porém, ainda não há uma concepção uniforme. Essa responsabilidade se inspira na idéia do risco criado pelas atividades, normais ou anormais, da Administração e, a rigor, para configurá-la, bastaria "o vínculo etiológico – atividade do Estado, como causa, e dano sofrido pelo particular, como conseqüência", ficando eliminado "o exame de qualquer coeficiente de culpa identificada do funcionário, ou de culpa anônima decorrente de falha da máquina administrativa", pois a culpa decorreria de uma "presunção absoluta, ‘iuris et de iure’, portanto invencível e sem possibilidade de qualquer contraprova" 35. Contudo, parte da doutrina e da jurisprudência, buscando amenizar suas graves implicações, rejeitam uma interpretação com tal amplitude e, por diferentes teorias e fundamentos, advogam limites para a responsabilidade estatal de ressarcir. Com este propósito, muitos autores e julgados retomam a velha noção de culpa, adaptando-a, entretanto, ao Direito Público, para identificá-la em toda falha no funcionamento da máquina administrativa, decorrente de culpa anônima, impessoal, objetiva, diluída no serviço público como um todo. Adota-se, assim, clássica formulação doutrinária, segundo a qual a culpa da Administração no exercício de suas funções apresenta-se nos casos em que o serviço público, por falha na sua organização, não

34 Ver documentos das fls. 358/372 da PI 11/2005 – PJDHOU.35 Yussef Said Cahali, Responsabilidade Civil do Estado, Revista dos Tribunais: São Paulo, 1982, p. 24.

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funciona, funciona mal ou funciona tardiamente 36. Ocorrendo qualquer destas modalidades, há um descumprimento da lei, por culpa presumida do Poder Público, que fica sujeito a ressarcir os danos conseqüentes dessa falta. Essa opinião é combatida por Yussef Said Cahali, para quem, ainda que não se prove culpa ou falha da máquina administrativa, a Administração deve ressarcir os danos que têm como causa uma conduta sua, comissiva ou omissiva, atenuando-se a responsabilidade estatal se concorre, como causa, fato da natureza ou do próprio prejudicado 37. Neste tema, há particular polêmica sobre os efeitos da inércia, quando o Estado omite-se em adotar providências indispensáveis ao bom funcionamento do serviço público e à segurança dos seus usuários. Em tal hipótese, a tendência dominante é responsabilizá-lo pelo descumprimento da lei, sempre que dele seja razoavelmente exigível uma conduta diversa, dotada de um padrão normal de eficiência e apta a impedir ou a atenuar as conseqüências do dano. O pressuposto da razoabilidade, sujeito à discrição judicial, reclama uma análise do caso concreto, para verificar, de acordo com as suas circunstâncias peculiares, qual era o padrão de conduta adequado, se ele era viável e se poderia ter impedido ou atenuado o dano. Só há responsabilidade do Estado quando, existindo, em tese, seu dever de atuar, se evidencia, no caso concreto, uma falha, ainda que

presumida, na execução das atividades normais, que impediriam a produção do dano ou diminuiriam seus efeitos. Se a Administração podia e devia atuar, mas permaneceu inerte e o resultado se verificou, animado ou auxiliado pela indiferença ou ineficiência da

36 Consulte-se Martinho Garcez Neto, Prática da Responsabilidade Civil, Editora Jurídica e Universitária Ltda.: Rio de Janeiro, 1970, p. 157; Celso Antônio Bandeira De Mello, Ato Administrativo e Direito dos Administrados, Revista dos Tribunais: São Paulo, 1981, pp. 133 e 144-145. 37 Yussef Said Cahali, Responsabilidade Civil do Estado, Revista dos Tribunais: São Paulo, 1982, p. 25-26 e 33-34. No mesmo sentido, Weida Zancaner Brunini, Da Responsabilidade Extracontratual da Administração Pública, Revista dos Tribunais: 1981, p. 59-62.

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máquina administrativa, entende-se que esse procedimento do Poder Público foi a causa do dano 38.

II.3.4. Fundamentos alternativos: responsabilidade objetiva ou falta do serviço.

No caso concreto, Município e Estado descumpriram dever legal, claramente imposto, de controle do uso e ocupação do solo, não adotando as medidas aptas a prevenir ou atenuar suas repercussões danosas. De ambos era exigível uma conduta diversa, mais eficiente, que estavam plenamente habilitados a prestar. Exatamente por isso, devem reparar os danos resultantes de seu comportamento, seja este encarado sob o prisma da responsabilidade objetiva ou, mais restritamente, nos limites demarcados para a falta impessoal do serviço. Na realidade, embora o exame da culpa seja dispensável, não há dúvida de que, na espécie, o evento danoso se deve à negligência da Administração Pública. Houve desídia na fiscalização do uso do solo e a omissão de qualquer providência oportuna que impedisse a implantação da ocupação clandestina. Como é cediço, desde que o serviço público influi na gênese ou no agravamento do dano suportado por particulares – ou, como no caso, para a coletividade dos particulares, i.e., a sociedade – nasce para o ente estatal o dever de ressarcimento. E isto acontece porque não tomou as precauções necessárias para evitar ou diminuir o dano, ou porque não prestou o serviço em condição adequada para cumprir o seu destino. Realmente, no poder de polícia se compreende também o dever de eficiência e presteza, pois cabe à Administração vigiar para que as normas de ordem 38 Yussef Said Cahali, Responsabilidade Civil do Estado, Revista dos Tribunais: São Paulo, 1982, p. 161-171.

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pública sejam cumpridas. Como explica Paul Duez, em lição clássica, "o exercício da competência não é um privilégio, mas um dever para o agente, que tem a obrigação funcional de ser vigilante. E isto é verdadeiro não somente nos casos de competência vinculada, mas ainda nos casos de competência discricionária" 39. Não se pode efetivamente esquecer que toda atividade humana supõe um dever geral, de diligência e prudência, a que ninguém está imune. Logo, se a Administração descura do dever que lhe cabe, de fiscalizar o uso e a ocupação do solo, e em razão disso são feitas ocupações irregulares, em condições perigosas e indignas, esta abstenção acarreta seu dever de compor os danos que poderia ter evitado. É conseqüência natural do princípio da legalidade que o Estado deva reparar os danos propiciados por seu comportamento, sempre que faz o que não deveria fazer ou deixa de fazer o que deveria. Pouco importa que sua conduta consista em uma ação ou em uma inação, pois, nessa matéria, tanto o fazer como o omitir

podem ser ilícitos, conforme disposição da lei civil. Aliás, a doutrina há muito acentua que, em essência, "não atuar, não prevenir, não reprimir, quando a ordem jurídica impõe atuação, prevenção, repressão, é decidir não atuar, não prevenir, não reprimir ou, quando menos, decidir assumir os riscos por isso. É, em suma, descumprir as determinações do Direito. Se, podendo cumpri-las e de modo suficiente para evitar o dano, o Estado se omite, evidentemente, assujeita-se à responsabilidade oriunda de sua injurídica inação" 40. Na espécie, é evidente que a situação atual também deve ser debitada aos comportamentos do Município e do Estado, porque, infringindo deveres legais,

39 Paul Duez, La Responsabilité de la Puissance Publique, Dalloz: Paris, 1927, p. 16, citado por Celso Antônio Bandeira de Mello, Responsabilidade Pública por Danos Causados por Instituições Financeiras, em “Revista de Direito Público”, n.º 91, p. 247. 40

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Celso Antônio Bandeira de Mello, Responsabilidade Pública por Danos Causados por Instituições Financeiras, em “Revista de Direito Público”, n.º 91, p. 246.

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abstiveram-se de adotar, a tempo e com eficiência, as medidas preventivas e corretivas, necessárias para impedir, atenuar e remover o dano à ordem urbanística. As autoridades competentes, embora estivessem diante de uma ocupação a olhos vistos, ao longo do principal acesso rodoviário à Porto Alegre, deixaram de realizar todas as medidas que lhes competiam, para defesa dos padrões urbanísticos e dos interesses difusos e coletivos. Desse modo, o serviço público, exigível de um e de outro, "não funcionou" ou "funcionou mal", quando deveria legalmente funcionar a tempo e de modo eficiente. Ambos incorreram, pois, nas modalidades de falta de serviço acima referidas ou, em outros termos, com tais condutas, objetivamente, deram causa aos danos. É claro que a responsabilidade do Estado só se configura se, podendo atuar, ficou inerte, ou se, agindo, atuou insuficientemente, aquém dos padrões a que estava sujeito. Entretanto, a Administração Pública não pode alegar sua impossibilidade ou dificuldade prática de atuar apenas porque, eventualmente, não tenha reservado agentes e recursos materiais e orçamentários suficientes para o cumprimento de sua função. Do contrário, o preceito se tornaria inteiramente inútil, não consagrando, realmente, um dever, mas simples recomendação, cujo cumprimento estaria sujeito apenas à conveniência da própria autoridade administrativa, que dele poderia se liberar não dotando sua máquina de instrumentos eficientes para agir. Não se concebe uma norma de ordem pública sem efetividade, impotente para compelir seu destinatário à satisfação de seu comando. Presume-se que o dever de agir, notadamente quando endereçado ao Poder Público, também traga para este, implícito, o encargo de se preparar adequadamente para cumpri-lo. Evidente, pois, a responsabilidade concorrente do Município de Porto Alegre e do Estado do Rio Grande do Sul na reparação do dano urbanístico constatado

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e na prestação dos direitos fundamentais lesados por sua omissão. Ambos os entes têm, até por força de comando constitucional 41, o dever genérico de envidar esforços conjuntos na resolução dos problemas habitacionais brasileiros – no caso concreto, trata-se de dever específico de responsabilização concorrente na solução do problema.

III – QUESTÕES PROCESSUAIS

III.1. Posição processual dos ocupantes e da CONCEPA

Questão interessante diz respeito à posição processual que possa vir a ser assumida pelos invasores da área em questão, bem como pela titular da posse da área, a concessionária CONCEPA. São partes, terceiros ou sequer isso?

Partes não são, pois não é em face deles, ocupantes e CONCEPA, que se pede a expressa prestação jurisdicional, mas contra os entes públicos nomeados a princípio. Poderão eventualmente ser terceiros, participando na lide. A CONCEPA, como possuidora da área, é titular de evidente interesse jurídico na resolução da lide. Os ocupantes, talvez sequer interesse jurídico possuam – pois não podem opor pretensão jurídica válida de permanência no local, circunscrevendo-se ao mero interesse de fato 42.

Entretanto, para evitar maiores controvérsias, o mais razoável é facultar a todos a possibilidade de, querendo, intervir no feito. A forma mais adequada para viabilizar tal intervenção é a publicação do edital de que trata o art. 94 do Código de

41 Constituição Federal: “Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...) IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (...)”.42 “Evidentemente, a intervenção de terceiros somente deve ser aceita sob determinados pressupostos; um deles, ocorrente em todos os casos de intervenção, é o de que o terceiro deve ser juridicamente interessado no processo pendente” (Athos Gusmão Carneiro, Intervenção de terceiros, 6ª edição revista e atualizada, Saraiva: São Paulo, 1994, p. 47, grifos no original).

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Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078/90), aplicável analogicamente à espécie dos autos, até por ser medida de caráter processual. Com a publicação do aviso oficial, os outros eventuais interessados na lide poderão dela tomar ciência, habilitando-se se quiserem.

III.2. Sobre a competência

Como já salientado por ocasião da narrativa dos fatos que ensejaram a presente ação, a questão da competência já foi delimitada quando do ingresso de ação de reintegração de posse pela CONCEPA junto à Justiça Federal. Na oportunidade, houve declinação da competência para a Justiça Estadual. Disse a decisão 43:

“Trata-se de ação de reintegração de posse com pedido liminar contra grupo de invasores desconhecidos promovida pela CONCEPA, empresa privada concessionária da rodovia Osório-Porto Alegre.O fato trazido a apreciação do Juízo diz respeito a bem público pertencente a União, não envolvendo discussão sobre o domínio; a pretensão da demandante é relativa à posse.O que atrairia a competência da Justiça Federal para processamento da presente ação seria a participação na lide da União, entidade autárquica ou empresa pública federal. Assim, estabelece o art. 109, inciso I, da Constituição da República, tratando da competência do Juiz Federal: ‘Aos juizes federais compete processar e julgar: I – as

causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem

interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes...’.A concessionária detentora da posse por força da concessão outorgada pelo ente público é a titular do direito posto à apreciação do Juízo. Súmula 14 do extinto TFR nesse sentido: ‘O processo e julgamento de ação

possessória relativa a terreno do domínio da União, autarquias e empresas públicas

43 Fls. 102/103 da PI 11/2005 – PJDHOU.

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federais, somente são da competência da Justiça Federal quando dela participar

qualquer dessas entidades como autora, ré, assistente ou opoente’.Decisão a seguir do Superior Tribunal de Justiça no mesmo sentido:‘Se embora pertencente o imóvel à União Federal, a ação de reintegração de posse é

travada entre partes sem prerrogativa de foro na Justiça Federal, sem que participe da

relação processual qualquer ente que desafie a incidência do art. 109-I da

Constituição, competente para julgar a causa é a Justiça Estadual. (STJ-4ª Turma, CC 20.918-RJ, rel. Min. Sálvio de Figueiredo, j. 13.5.98, DJU 22.6.98, p. 7)’.Ante o exposto, tratando-se de competência absoluta, reconheço-a de ofício, declinando o processamento e julgamento do feito à Justiça Estadual de Porto Alegre”.

O raciocínio é perfeitamente aplicável à presente ação civil pública. Embora a rodovia seja originariamente federal, a exploração da pista foi concedida à Concessionária da Rodovia Osório – Porto Alegre S.A. – CONCEPA . Como a empresa passou a ter a posse da área, e é isso, ultima ratio, que se discute neste feito (a posse irregular dos ocupantes), entre outras coisas (pois não se discute nem se controverte o domínio sobre a área ocupada), a competência é deslocada para a Justiça Estadual.

Da mesma forma, o outro aspecto da decisão também se faz presente na espécie. Os entes que litigarão ou estarão interessados no feito – o Ministério Público do Rio Grande do Sul, o Estado do Rio Grande do Sul, o Município de Porto Alegre e, se for o caso, a CONCEPA e os invasores – não têm prerrogativa de foro na Justiça Federal. Impõe-se, destarte, o processamento e julgamento da demanda na Justiça Estadual, que tem a competência residual para o trato da matéria, conforme o sistema de distribuição de competências judiciais estabelecido na Constituição de 1988.

Também não impressiona eventual argumento no sentido de que, como a ação diz respeito a uma rodovia federal, a competência teria de ser deslocada. O que define a fixação do foro, conforme se depreende do exame da doutrina e da

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jurisprudência, é o alcance finalístico da discussão travada nos autos. O mero fato de envolver uma rodovia federal não altera a competência judicial, mas a qualidade da lide trazida a julgamento. Parece ser esse, e.g., o entendimento da jurisprudência:

“CONFLITO DE COMPETENCIA - AÇÃO CIVIL PUBLICA - RESTAURAÇÃO -RODOVIA - DNER - PATRIMONIO PUBLICO.1. COMPETE A JUSTIÇA ESTADUAL CONHECER E JULGAR AÇÃO CIVILPUBLICA COM OBJETIVO DE RESTAURAÇÃO DE RODOVIA BR 282 PELO DNER.2. CONFLITO CONHECIDO PARA DECLARAR COMPETENTE O JUIZO DEDIREITO DA VARA CIVEL DE PONTO SERRADA - SC.(STJ, CC 14054 / SC 1995/0030164-4, Relator Min. Peçanha Martins, Data do Julgamento 29/08/1995, DJ 11.03.1996 p. 6555, LEXSTJ vol. 83 p. 32)”.

Some-se a isso o derradeiro argumento de que o que é discutido na ação é um problema urbanístico, de caráter predominantemente local. Diz respeito à urbe, à cidade, à boa ordenação da convivência do povo no seio da coletividade citadina. Nada tem a ver, repete-se, com o plexo especializado de competências da Justiça da União.

III.3. Legitimidade do Ministério Público.

É conveniente, na presente peça exordial, destacar os aspectos pelos quais o Ministério Público tem legitimidade para a propositura da presente ação civil pública. Não se postula, aqui, é verdade, como substituto processual dos invasores da área, pois a tutela de seus interesses individuais e disponíveis é tarefa estranha à destinação constitucional do Ministério Público. Busca-se, apenas, o cumprimento do dever que a Carta Republicana lhe conferiu, ao dispor que uma de suas funções institucionais consiste, exatamente, em promover ação civil pública "para a proteção do

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patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos". Sendo, por natureza, insuscetíveis de fracionamento, os interesses atinentes à defesa do regular padrão de desenvolvimento urbano figuram, certamente, dentre os difusos. De fato, sua ofensa ou satisfação dissemina-se por toda a sociedade, não podendo limitar-se a um ou algum dos titulares, sem concernir aos demais. Destinando-se a propiciar melhor qualidade de vida à população, é intuitivo que importam potencialmente a todos (não somente aos que moram na cidade mas também aos que nela circunstancialmente transitam) a existência e conservação de equipamentos urbanos, vias de circulação e logradouros públicos e o fiel cumprimento, nos núcleos residenciais, dos preceitos relativos a arruamento, salubridade, segurança, funcionalidade e estética da cidade. Tais melhoramentos, preordenados à prestação de serviços públicos gerais, são indivisíveis, permitem fruição por usuários anônimos, indeterminados e indetermináveis, e atendem à coletividade como um todo. Os artigos 1º, inciso VI, 5º, “caput”, ambos da Lei n.º 7.347/85 dispõem:

“Art. 1º- Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados:(...)

VI – à ordem urbanística” (inciso renumerado pela Lei nº 10.257, de 10.7.2001 – Redação conferida pela Medida Provisória nº 2.180-35, de 28.8.2001).(...)

Art. 5o – A ação principal e a cautelar poderão ser propostas pelo Ministério Público (...)”.

Evidente, pois, a legitimação do Ministério Público do Rio Grande do Sul

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para atuar na proteção da ordem urbanística e, por conseguinte, na reparação dos danos patrimoniais e morais a ela causados. Além disso, outra fonte legal legitima a presente actio do Ministério Público, especialmente no que toca à promoção dos direitos fundamentais, como, in casu, o direito fundamental à moradia. Com efeito, preceitua o art. 80 da Lei n. 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, que dispõe sobre normas gerais para a organização do Ministério Público dos Estados):

“Art. 80. Aplicam-se aos Ministérios Públicos dos Estados, subsidiariamente, as normas da Lei Orgânica do Ministério Público da União”.

O Ministério Público da União, por seu turno, é regido pela Lei Complementar n.º 75/93, que dispõe, em seu art. 6º:

“Art. 6º Compete ao Ministério Público da União:(...)

VII - promover o inquérito civil e a ação civil pública para:a) a proteção dos direitos constitucionais;(...)”.

Como se depreende da leitura dos dispositivos legais acima transcritos, é garantida a integral legitimidade ad causam ao Ministério Público para ajuizar ação civil pública em defesa dos direitos fundamentais. Isso se aplica, evidentemente, à ação judicial para efetivação do direito fundamental à moradia, um dos pilares da demanda.

IV – LIMINAR

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Diz o art. 12 da Lei n.º 7.347/85:

“Art. 12. Poderá o juiz conceder mandado liminar, com ou sem justificação prévia, em decisão sujeita a agravo”.

Além do poder geral cautelar que a lei processual lhe confere (Código de Processo Civil, artigos 798 e 799), a legislação pertinente a ação civil pública autoriza o Magistrado a antecipar o provimento final, liminarmente, e a determinar de imediato medidas satisfativas ou que assegurem o resultado prático da obrigação a ser cumprida. No caso, é imperiosa a concessão de medida liminar com esse conteúdo antecipatório, prefigurando-se os comandos judiciais buscados ao final do processo. Destarte, estão perfeitamente caracterizados os seus pressupostos tradicionalmente previstos em sede doutrinária e jurisprudencial para a sua concessão, consistentes no fumus boni juris e no periculum in mora. A plausibilidade do direito, caracterizando a presença do primeiro requisito, é manifesta, ante a absoluta ilegalidade da ocupação habitacional às margens da BR-290 e, em decorrência, da necessidade de assegurar-se a eficácia plena do direito fundamental à moradia para aquela coletividade. De outro lado, o perigo na demora também está presente. A ocupação se dá em área de risco, com possibilidade concreta de enchentes na área alagável, explosões no gasoduto em face das ligações clandestinas de energia, incêndios, além, é claro, dos graves problemas advindos da falta de equipamentos urbanos básicos. A ocorrência de qualquer destes eventos – ocorrência não só possível como provável, na forma salientada acima – traria conseqüências trágicas à comunidade, caso se

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concretizasse. Deve-se impedir, portanto, a continuidade da ocupação irregular, por meio de provimento liminar, independentemente de prévia justificação, de sorte a resguardar a eficácia da ordem, se concedida ao final. Pelos mesmos motivos, pois, justifica-se a ordem liminar, para que os réus, Estado do Rio Grande do Sul e Município de Porto Alegre, providenciem a desocupação da área, providenciando a prévia transferência dos moradores para local onde tenham acesso imediato a moradia digna e a equipamentos urbanos básicos, como, v.g., fornecimento de água corrente, energia elétrica, serviço de esgotos, conforme previsto em disposição legal.

V – POSTULAÇÃO

V.1. Liminar

Pelo exposto, sob cominação de multa diária, sujeita a atualização, para cuja estimativa sugere o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), devida por qualquer ato praticado em desacordo à ordem judicial, o Ministério Público, por sua Promotoria de Justiça de Habitação e Defesa da Ordem Urbanística de Porto Alegre, REQUER a concessão de medida liminar, sem justificação prévia, ordenando ao ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL e ao MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE, de forma concorrente:

V.1.1. a retirada das pessoas que ocupam as margens da rodovia BR-290 entre os quilômetros 96 e 103, i.e., entre a Ponte do Guaíba e os limites territoriais do Município de Porto Alegre, no prazo designado por Vossa Excelência, não superior a 30 (trinta)dias;

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V.1.2. o assentamento das pessoas acima mencionadas em área diversa e apropriada, provendo-lhes condições dignas de moradia, com habitações próprias à ocupação humana (ou seja, dotadas de rede completa de água potável, rede completa de esgoto sanitário, rede completa de esgoto pluvial, rede de energia elétrica residencial, iluminação pública em todo o assentamento e calçamento e pavimentação das vias públicas), no prazo designado por Vossa Excelência, não superior a 30 (trinta)dias.

V.2. Requerimentos

O Ministério Público REQUER ainda:

V.2.1. a citação dos réus para, querendo, responderem no prazo legal;

V.2.2. a publicação do edital de que trata o art. 94 do Código de Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078/90), aplicável analogicamente à espécie, de modo a que os outros eventuais interessados na lide dela tomem ciência;

V.2.3. a produção de todas as provas juridicamente admissíveis, notadamente documentos, oitiva de testemunhas, realização de perícias e inspeções judiciais e, em especial, a juntada aos autos dos seguintes documentos, que acompanham a ação:

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1. Peças de Informação n.º 11/2005 (contando 551 páginas); 2. Anexo fotográfico;

V.2.4. a dispensa do pagamento de custas, emolumentos e outros encargos, desde logo, à vista do disposto no art. 18 da Lei n.º 7.347/85;

V.2.5. a realização de sua intimação pessoal dos atos e termos processuais, na forma do art. 236, § 2.º, do Código de Processo Civil, mediante entrega dos autos (art. 41, inciso IV, da Lei 8.625/93), a se efetivar na Rua General Andrade Neves, n.º 59, 5º andar, Centro, nesta Capital, onde está sediada a Promotoria de Justiça de Habitação e Defesa da Ordem Urbanística de Porto Alegre.

V.3. Pedido

O Ministério Público PEDE, ao final, a integral procedência da presente ação civil pública, com imposição dos ônus da sucumbência aos demandados, quanto às custas e demais despesas processuais, para o fim de condenar:

V.3.1. o ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL e ao MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE, de forma solidária e concorrente, às seguintes obrigações de fazer, para cumprimento em prazo a ser fixado por Vossa Excelência quando da r. sentença (Código de Processo Civil, artigos 632 e 633), consistentes em:

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V.3.1.1. proceder à retirada definitiva das pessoas que ocupam e habitam irregularmente as margens da rodovia BR-290 entre os quilômetros 96 e 103, i.e., entre a Ponte do Guaíba e os limites territoriais do Município de Porto Alegre;

V.3.1.2. proceder à demolição de todas as habitações e edificações irregulares existentes nas margens da rodovia BR-290 entre os quilômetros 96 e 103, i.e., entre a Ponte do Guaíba e os limites territoriais do Município de Porto Alegre;

V.3.1.3. proceder ao assentamento definitivo, em área diversa e apropriada, das pessoas retiradas da faixa de domínio da rodovia BR-290, provendo-lhes condições dignas de moradia, com habitações próprias à ocupação humana e todos os elementos de infra-estrutura básica dos loteamentos, nos termos do art. 2º, § 5º, da Lei n. 6.766/79 (com redação dada pela Lei n.º 9.785/99), nomeadamente:

1. rede completa de água potável;2. rede completa de esgoto sanitário;3. rede completa de esgoto pluvial;4. rede de energia elétrica residencial5. iluminação pública em todo o assentamento;6. rede de telefonia;

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7. calçamento e pavimentação das vias públicas do assentamento;8. construção das guias das calçadas e sarjetas;9. arborização de todas as vias públicas;10. acesso a transporte coletivo urbano;

V.3.2. o ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL e ao MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE, de forma solidária e concorrente, ao pagamento de multa diária, para cuja estimativa sugere-se o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), devida somente se, ao término do prazo fixado na sentença, houver o descumprimento das obrigações de fazer determinadas pelo MM. Juízo, quantia sujeita a correção monetária, pelos índices oficiais, desde a distribuição da petição inicial até o efetivo adimplemento, destinada a recolhimento ao Fundo Estadual de Desenvolvimento Social do Estado do Rio Grande do Sul, na forma do art. 12 da Lei Estadual n.º 10.529/95.

Dá-se á causa o valor de alçada, pois inestimável o objeto da demanda.

Porto Alegre, 14 de setembro de 2005.

LUCIANO DE FARIA BRASIL, 1º Promotor de Justiça,

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Promotoria de Justiça de Habitação e Defesa da Ordem Urbanística.

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