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KAUKUA, J. Self-Awareness in Islamic Philosophy. Avicenna and … · 2018. 7. 25. ·...

Date post: 30-Jan-2021
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Translatio. Caderno de resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ ISSN 2176-8765 Vol. 9 (2017) KAUKUA, J. Self-Awareness in Islamic Philosophy. Avicenna and Beyond. Cambridge: Cambridge University Press, 2015, 257 p. Meline Costa Sousa* ___________________________________________ Publicado em 2015, o livro de Jari Kaukua, cuja proposta é analisar o conceito de autoconsciência na obra de Avicena, Abū al-Barakāt al-Baghdādī, Suhrawardī e Mullā Sadrā, fornece uma longa abordagem do tema a partir da interseção entre psicologia, epistemologia e metafísica. Dada a estrutura argumentativa adotada, o livro divide-se em duas grandes partes 1 . Os quatro capítulos iniciais se articulam de modo a fundamentar, através da análise minuciosa das ocorrências textuais (conceitos, argumentos, experimentos mentais) ao longo do corpus aviceniano, a tese segundo a qual Avicena teria sido o primeiro filósofo islâmico a teorizar sobre a autoconsciência. A segunda parte do livro volta-se para os autores posteriores a Avicena que, através de um processo de continuidade e ruptura, constituíram certa tradição aviceniana no que diz respeito ao tema. A análise dos filósofos Abū al-Barakāt al-Baghdādī, Suhrawardī e Mullā Sadrā, embora não seja tão meticulosa quanto aquela dedicada a Avicena, exerce uma dupla função. Primeiro, compõe a estrutura argumentativa do livro ao corroborar a tese segundo a qual o tema da autoconsciência já estava, sistematicamente, presente no pensamento islâmico. Segundo, apresenta-se como um estudo introdutório a um grupo de filósofos ainda pouco explorados pelos estudiosos contemporâneos. As contribuições de Kaukua para as discussões sobre autoconsciência a partir de uma matriz aviceniana são extremamente relevantes. Embora já existam * Professora de História da Filosofia Antiga e Medieval da Universidade Federal de Lavras. E-mail: [email protected]. 1 A obra é composta por uma introdução, oito capítulos, uma conclusão, um apêndice contendo a terminologia árabe relacionada ao tema da autoconsciência e uma extensa bibliografia sobre as fontes primárias e secundárias.
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  • Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.9(2017)

    KAUKUA, J. Self-Awareness in Islamic Philosophy. Avicenna and Beyond.

    Cambridge: Cambridge University Press, 2015, 257 p.

    Meline Costa Sousa*

    ___________________________________________

    Publicado em 2015, o livro de Jari Kaukua, cuja proposta é analisar o conceito de

    autoconsciência na obra de Avicena, Abū al-Barakāt al-Baghdādī, Suhrawardī e

    Mullā Sadrā, fornece uma longa abordagem do tema a partir da interseção entre

    psicologia, epistemologia e metafísica. Dada a estrutura argumentativa adotada, o

    livro divide-se em duas grandes partes1. Os quatro capítulos iniciais se articulam

    de modo a fundamentar, através da análise minuciosa das ocorrências textuais

    (conceitos, argumentos, experimentos mentais) ao longo do corpus aviceniano, a

    tese segundo a qual Avicena teria sido o primeiro filósofo islâmico a teorizar

    sobre a autoconsciência. A segunda parte do livro volta-se para os autores

    posteriores a Avicena que, através de um processo de continuidade e ruptura,

    constituíram certa tradição aviceniana no que diz respeito ao tema. A análise dos

    filósofos Abū al-Barakāt al-Baghdādī, Suhrawardī e Mullā Sadrā, embora não seja

    tão meticulosa quanto aquela dedicada a Avicena, exerce uma dupla função.

    Primeiro, compõe a estrutura argumentativa do livro ao corroborar a tese

    segundo a qual o tema da autoconsciência já estava, sistematicamente, presente

    no pensamento islâmico. Segundo, apresenta-se como um estudo introdutório a

    um grupo de filósofos ainda pouco explorados pelos estudiosos

    contemporâneos.

    As contribuições de Kaukua para as discussões sobre autoconsciência a

    partir de uma matriz aviceniana são extremamente relevantes. Embora já existam

    * Professora de História da Filosofia Antiga e Medieval da Universidade Federal de Lavras. E-mail: [email protected]. 1 A obra é composta por uma introdução, oito capítulos, uma conclusão, um apêndice contendo a terminologia árabe relacionada ao tema da autoconsciência e uma extensa bibliografia sobre as fontes primárias e secundárias.

  • 2KAUKUA,J.Self-AwarenessinIslamicPhilosophy

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    estudos relevantes sobre esse fenômeno e suas implicações, como indicado pela

    própria bibliografia da obra, há certa resistência em associá-lo, imediatamente, a

    tal terminologia (self, self-awareness, awareness etc.). A pergunta pela pertinência

    dessa associação torna-se, assim, inevitável: o reconhecimento da própria

    existência, ilustrado pelo experimento mental do homem suspenso no ar, seria

    um caso de self-awareness? O que o termo significa nesse contexto?

    Tendo em vista essas questões e dada a complexidade da discussão,

    restringir-me-ei à análise dos argumentos apresentados pelo autor para defender

    a sua compreensão da teoria aviceniana da autoconsciência2.

    I

    Embora o uso do termo self-awareness em referência à expressão árabe shu‘u ̄r bi

    al-dha ̄t possa soar anacrônico, todo o esforço de Kaukua volta-se para a

    reconstrução da teoria (ou das teorias) sobre a autoconsciência na filosofia

    islâmica. Assim, a primeira dificuldade durante a leitura do livro é encontrar uma

    expressão, na língua portuguesa, que traduza self-awareness e self. A tarefa se

    torna ainda mais árdua se levarmos em conta que não se trata do modo pelo

    qual nós leitores traduzimos as expressões árabes equivalentes a self-awareness

    (shu‘u ̄r bi al-dha ̄t) e self (dha ̄t, nafs, ana ̄, annīya, huwīya), mas de como o autor

    compreende essas expressões e o que o leva a traduzi-las, para o inglês, de tal

    modo. Segundo Kaukua, “a escolha deste termo em particular é motivada por

    sua aparente conotação dos aspectos fenomênicos, experimentáveis ou sensíveis

    dos diferentes tipos de cognição” (p. 236). Embora eu não considere o termo

    autoconsciência a melhor opção para traduzir, nos casos em questão, shu‘u ̄r bi al-

    dha ̄t e self-awareness, essa tradução parece ser aquela que mais se aproxima da

    proposta do autor.

    Partindo, na introdução, da identificação da centralidade da noção de self

    e dos diferentes posicionamentos quanto à possibilidade de o indivíduo pensar

    2 O primeiro argumento será discutido na segunda seção desta resenha, o segundo argumento, na terceira seção e o terceiro argumento será analisado na quarta seção.

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    sobre si mesmo, próprios do pensamento moderno e pós-moderno, Kaukua

    busca ambientar o leitor quanto ao tema central da obra. Nesse primeiro

    momento, encontra-se uma das questões norteadoras do livro: teria havido

    algum tipo de teorização sobre identidade pessoal antes do período moderno?

    A proposta não é partir de estudos contemporâneos sobre os conceitos

    de “eu” ou “si mesmo” (self), buscando reconhecer semelhanças entre o que foi

    dito antes e depois da modernidade. Antes, sua finalidade é apresentar a

    concepção que Avicena e alguns outros filósofos da mesma tradição

    desenvolveram sobre a noção de autoconsciência (self-awareness) e do indivíduo

    que realiza esse ato (self). Não se trata, portanto, de um estudo comparativo,

    mas de estudos de caso. Isso significa que o livro não tem como objetivo

    comparar abordagens realizadas em diferentes contextos, mas, através da análise

    dos quatro casos encontrados na filosofia islâmica, demonstrar a existência, no

    mesmo contexto, de uma teorização sobre a autoconsciência.

    O autor, ao distinguir um estudo comparativo de um estudo de caso,

    parece tentar se salvaguardar das críticas quanto ao conteúdo da sua introdução.

    Embora o recurso de mencionar as abordagens modernas e pós-modernas tenha

    um caráter introdutório, valer-se disso dificulta a compreensão da proposta da

    obra. Se o recurso introdutório tem em vista apenas familiarizar o leitor com o

    tema, seu uso se mostra desnecessário na medida em que os contextos

    mencionados não contribuem para a compreensão do modo pelo qual os

    filósofos islâmicos pensaram o fenômeno. Ainda, se o objetivo do livro não é

    relacionar a abordagem pós-moderna com a abordagem islâmica, seja para

    aproximá-las ou distanciá-las, a presença de tal recurso também se mostra

    desnecessária.

    II

    Uma das dificuldades com a quais Kaukua tem que lidar para levar a cabo sua

    tese é mostrar que todo o variado vocabulário encontrado ao longo do corpus

    aviceniano refere-se ao mesmo conceito, a saber, à autoconsciência. Mesmo que

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    Avicena não a aborde a partir de um vocabulário bem delimitado, Kaukua

    considera ser possível estabelecer um sentido unívoco para um termo válido

    para todos os diversos contextos. Ao longo do quarto capítulo (p. 62-79)3,

    encontra-se a tentativa de delimitar esse sentido unívoco. São apresentados três

    argumentos para defender a presença, no corpus aviceniano, de um conceito bem

    estabelecido de autoconsciência.

    O primeiro argumento baseia-se na existência de algo não corpóreo

    (alma, si mesmo) que unifica as diferentes percepções, experiências sensíveis e

    atividades do homem. Embora a expressão autoconsciência e seus correlatos não

    apareçam nas passagens citadas pelo autor, mas apenas os termos “alma” (nafs),

    “si mesmo” (dha ̄tahu), “nós mesmos” (nahnu) e “eu” (ana ̄), eles igualmente se

    refeririam a algo subjacente capaz de unificar os “diferentes constituintes da

    experiência” (p. 66). Essa referência primitiva reconhecida pelo próprio indivíduo

    seria o que Kaukua chama de autoconsciência (self-awareness).

    Assim, do ponto de vista psicológico, reconhecer a alma como algo que

    unifica as múltiplas e temporárias experiências humanas depende da intuição que

    um dado indivíduo tem de si mesmo; o que poderia ser percebido através da

    indicação da unidade da alma e do experimento mental do homem voador.

    Segundo o argumento da unidade da alma, para além das múltiplas ações

    realizadas pelas substâncias animadas (nutrição, sensação, locomoção,

    deliberação etc.), há algo que torna todas essas experiências próprias de um

    único indivíduo, o qual pode vir a reconhecê-las como sendo dele (fenômeno da

    autoconsciência). Como esse algo não é o corpo, logo, ele identifica-se com a

    alma.

    Para Kaukua, partindo da distinção entre as abordagens fenomenológica e

    metafísica4, esse raciocínio indicaria um fenômeno, sem necessariamente apontar

    3 “In the first person: Avicenna’s concept of self-awareness reconstructed”. 4 A distinção sugerida por Kaukua entre a abordagem metafísica da autoconsciência e a abordagem fenomenológica é pautada na compreensão exposta na introdução (p. 3) dos âmbitos de investigação tanto da metafísica quanto da fenomenologia. Assim, a metafísica é descrita como o “estudo geral de como as coisas são, podem ou deveriam ser” (p. 3); a fenomenologia seria o “estudo de uma parcela particular de como as coisas são, podem ou deveriam ser” (p. 3). Essa parcela está diretamente relacionada à experiência dessas coisas a partir dos aspectos sensoriais e cognitivos. Aplicando essas duas perspectivas às investigações sobre o si mesmo (self), a

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    a natureza disso que subjaz ao fenômeno. Deste modo, poderíamos dissociar o

    fenômeno da autoconsciência do tipo de existência própria do indivíduo que o

    instancia. Em outras palavras, o raciocínio da unidade da alma pode ser abordado

    apenas enquanto indicativo de um fenômeno sem fornecer qualquer tipo de

    informação metafísica.

    Do ponto de vista da terminologia, ainda que Avicena explore uma

    diferente gama de termos para se referir ao elemento unificador indicado pelo

    raciocínio, todos eles podem ser entendidos como modos de dizer a mesma

    coisa, i.e., a alma. O que Kaukua parece não ter levado em consideração nesta

    indicação é que se trata da dedução da existência de algo comum a todas as

    substâncias animadas do ponto de vista metafísico. O raciocínio indicativo,

    diferentemente do experimento mental do homem voador, não se pauta na

    intuição que um indivíduo tem de si mesmo (no fenômeno), mas na natureza

    própria de um tipo de substância. A posse de uma alma é o que garante, para

    qualquer substância animada, um conjunto delimitado de atividades que podem

    vir a ser executadas. O reconhecimento dessa unidade resulta da dedução da

    alma como o princípio que determina as ações próprias de cada espécie de

    substância animada. Portanto, o raciocínio não depende de o indivíduo ter

    consciência desse princípio; o que conduz a duas possibilidades: a) negar que o

    raciocínio da unidade da alma pressuponha o fenômeno da autoconsciência; b)

    ou assumir que todas as substâncias animadas são autoconscientes. Como a

    segunda opção parece não ser o caso, podemos assumir, diferentemente de

    Kaukua, que o raciocínio da unidade da alma não depende de o homem ter

    consciência de si mesmo, nem reconhecer que possui uma alma.

    abordagem metafísica da autoconsciência trata: a) da análise do tipo de evento ou capacidade atribuído ao ato de estar ciente de si mesmo; b) do tipo de existência que podemos atribuir ao si mesmo (self) e à autoconsciência (self-awareness); c) da verificação de se eles correspondem a isso que, incialmente, eles parecem ser. Sobre a relação entre essas duas perspectivas, uma abordagem não necessariamente conduz à outra, pois podemos investigar o fenômeno da autoconsciência a partir do tipo de experiência cognitiva envolvida no ato sem nos comprometermos com qualquer explicação acerca da natureza do si mesmo (self).

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    III

    O segundo argumento encontra-se ao longo da discussão sobre a distinção entre

    o conhecimento que um indivíduo tem de si e os atos cognitivos reflexivos. O

    autor tenta reconstruir o conceito aviceniano de reflexão partindo do fato de a

    reflexão ser uma passagem da potência ao ato. Tratar-se-ia, portanto, não de

    uma atividade contínua do homem, mas da atualização, em um momento

    específico, de uma potencialidade. Deste modo, refletir sobre o ato de refletir

    sobre si mesmo (self-reflection) é diferente da autoconsciência, a qual Kaukua se

    refere como primitiva (primitive self-awareness): “(...) a reflexão sobre a

    autoconsciência só é possível se o self já está primitivamente dado no objeto de

    reflexão para o qual alguém se volta (...)” (p. 91). Apenas somos capazes de

    refletir sobre nós mesmos porque já pressupomos a nossa existência individuada.

    A fim de negar que esse ato primitivo diga respeito a algum tipo de ato

    reflexivo, o qual envolveria uma “relação reflexiva do sujeito cognitivo consigo

    mesmo” (p. 72), Kaukua utiliza um texto tardio de Avicena, os Apontamentos e

    Considerações (Isha ̄ra ̄t). Porque a autoconsciência não envolve a cognição de

    nenhum conteúdo específico, e todo ato reflexivo implica a relação sujeito-

    objeto, ela não é um ato reflexivo, mas um ato “imediato e epistemologicamente

    primitivo” (p. 74). Ainda que a autoconsciência esteja conectada com os atos

    reflexivos, ela seria irredutível a eles.

    Esse tipo de afirmação de que a autoconsciência não envolve a cognição de

    nenhum conteúdo específico seria indicado pelo homem voador. A versão mais

    conhecida do experimento, localizada no Livro sobre a alma I.15, é utilizada como

    5 "Então, nós dizemos: um de nós deve imaginar a si mesmo como se fosse criado de uma vez e perfeito, mas sua visão é impedida de ver as coisas externas, como se fosse criado suspenso no ar ou no vazio de modo que a resistência do ar não o tocasse, caso contrário ele o sentiria, como se seus membros fossem separados uns dos outros de modo que eles não se tocassem. Deve-se considerar, assim, se ele afirma a sua própria existência. Ele não hesitará em afirmar que ele mesmo existe, mas ele não afirmará nenhum dos seus membros, das suas entranhas, o coração ou o cérebro ou nenhuma coisa externa. Pelo contrário, ele afirmará a si mesmo sem afirmar seu comprimento, largura e profundidade. Se fosse possível para ele, nesse sentido, imaginar uma mão ou outro membro, ele não o imaginaria como parte de si mesmo ou como condição de si. Você sabe que o que é afirmado é diferente do que não é afirmado e o que é confirmado é diferente do que não é confirmado. Assim, o si mesmo cuja existência foi afirmada

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    um modo de relembrar (tanbīh) o leitor e apontar (isha ̄ra) para a compreensão

    correta do que seria a substância que se denomina alma. Segundo Kaukua,

    relembrar e apontar são termos técnicos que denotam o método indicativo de

    chamar a atenção para algo sobre o qual estamos pouco cientes, mas que deve

    ser objeto da nossa atenção. Diferentemente do método demonstrativo, o qual

    apresenta a conclusão para o ouvinte, o método indicativo tem em vista conduzi-

    lo à conclusão.

    As grandes dificuldades com as quais nos deparamos nessa versão do

    experimento dizem respeito à compreensão da sua natureza e às conclusões que

    podem ser tiradas dele. Se abordado como um argumento lógico, o experimento

    mostra-se falacioso ao produzir conclusões metafísicas a partir de distinções

    fenomenológicas: a existência de algo metafisicamente independente do corpo

    não é uma consequência necessária do fato de o corpo não atuar durante o

    fenômeno da autoconsciência. Segundo Kaukua, “se Avicena utiliza o homem

    voador para demonstrar a imaterialidade da entidade que funciona como uma

    alma no corpo humano, é difícil não julgar o argumento como falacioso” (p. 37).

    Portanto, o experimento mental não pode ser entendido como um argumento

    lógico, mas como um recurso indicativo.

    O fato de o homem voador ter sido criado imediatamente exclui que a

    autoconsciência resulte de conteúdos advindos das faculdades corpóreas

    (sentidos externos e internos), as quais dependem do corpo. Para Kaukua,

    exclui-se, ainda, que se trate de um ato do intelecto6, partindo do pressuposto

    de que a percepção inteligível depende da percepção sensível e,

    consequentemente, da operação abstrativa realizada pelos sentidos. Assim, o

    “homem voador não possui nenhum conteúdo objetivo advindo da experiência,

    nenhum ato de percepção, imaginação ou intelecção” (p. 36).

    é específico a ele, pois é ele mesmo; diferente do seu corpo e membros que ele não afirmou. Assim, aquele que leva isso em consideração está em condição de tomar a existência da alma como algo diferente do corpo, enfim, como diferente de qualquer corpo; conhecer e estar ciente disto" (p. 35). 6 Kaukua nega que seja uma reflexão (p. 63; 89-91), uma percepção (p. 60), ou uma intelecção (p. 60; 99).

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    Contudo, nas obras Livro sobre a alma I.37, Epístola sobre a vida futura8 e Os

    estados da alma9, Avicena explicitamente associa a substância cuja existência é

    constatada durante o experimento do homem voador com a alma racional ou

    com o intelecto. Dada a classificação aviceniana das faculdades da alma humana,

    há, para toda ação que possa ser realizada, uma faculdade da alma

    correspondente. Deste modo, se a autoconsciência é um tipo de ação que pode

    ser realizada pelos homens, é necessário que haja, para ela, uma faculdade

    correspondente; se essa faculdade é o intelecto, a autoconsciência tem que ser

    um tipo de intelecção.

    A posição do autor parece ir além. Kaukua mantém-se resistente quanto

    ao fato de o homem voador (segundo a versão do Livro sobre a alma I.1) ser um

    meio de reconhecer a alma como uma substância independente do corpo. Para

    ele, a função primeira do recurso é descrever um fenômeno experimentável por

    qualquer indivíduo da espécie humana; apenas de modo secundário poderíamos

    chegar a conclusões metafísicas sobre o que é isso que subjaz e sua relação com

    o corpo. Não seria uma consequência necessária do homem voador afirmar a

    alma como uma substância independente do corpo.

    Ainda que sejam grandes contribuições da obra a distinção entre as

    abordagens fenomenológica e metafísica do experimento e a tentativa de evitar

    conclusões que o extrapolem, Kaukua não leva em consideração o contexto no

    qual o homem voador é apresentado no Livro sobre a alma I.1. Embora discuta e

    apresente esse contexto, o autor não o analisa em vista do problema com o qual

    Avicena tem que lidar durante a busca pela definição de alma: como poderíamos

    expressar a substancialidade da alma através de uma definição já que todas as

    definições propostas (faculdade, forma e perfeição) pressupõem a relação entre

    alma e corpo? Se a alma é definida em vista da sua relação com o corpo, como

    ela poderia ser dita uma substância independente dele? Em vista de lidar com

    7 IBN SINA. Kitāb al-nafs. Ed. Rahman, New York: Oxford University Press, 1959, pp. 27-8; AVICENA. Livro da alma. Trad. M. Attie Filho, São Paulo: Editora Globo, 2011, p. 52. 8 AVICENNA. Epistolla sulla vita futura. Cura F. Lucchetta, Padova: Editrice Antenore, 1969, p. 152. 9 IBN SINA. Aḥwāl al-nafs, pp. 52-3 (apud ALWISHAH, A. R. D. Avicenna's Philosophy of Mind: Self-Awareness and Intentionality. Ph.D. Thesis, University of California, 2006, p. 12).

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    essas questões, Avicena encerra sua busca com o experimento mental do

    homem voador. Neste contexto, o experimento é apresentado como um modo

    de indicar, relembrar, apontar para a substancialidade da alma sem recorrer à

    definição. Trata-se, portanto, de um recurso metodológico adotado frente às

    dificuldades impostas pela linguagem discursiva.

    IV

    O terceiro argumento, localizado na obra Muba ̄hatha ̄t, situa-se no contexto do

    debate acerca da unidade ontológica da substância frente às alterações das suas

    propriedades. Assim, o fato de o indivíduo manter-se como um eu singular (ana ̄)

    não pode ser atribuído às suas propriedades corruptíveis, mas a algo que

    essencialmente se mantém ao longo de todas essas mudanças (innīya).

    Tal como nos outros dois argumentos levantados por Kaukua, o

    reconhecimento da identidade pessoal pressuporia a autoconsciência como uma

    evidência dessa identidade. Portanto, o “eu é o real self e essência do ser

    humano e, consequentemente, sua substância, e ele é tomado como alma na

    psicologia” (p. 80). Reconhecer a si mesmo como o objeto cognitivo desse ato

    primitivo apenas é possível em virtude da familiaridade do indivíduo consigo

    mesmo ao ter uma perspectiva própria sobre si e não sobre seu corpo.

    Um dos problemas apontados por Kaukua diz respeito à

    incompatibilidade entre essa concepção dualística do homem e a explicação

    aristotélica da individuação. Partindo da definição de alma como forma do corpo

    (De anima II.1), Aristóteles estabelece a unidade das substâncias animadas tendo

    em vista a dependência ontológica entre forma e matéria. Deste modo, a matéria

    do composto é responsável por sua individuação.

    No entanto, para Avicena, como a alma não existe em um substrato, ou

    seja, não inere à matéria do corpo, eles não formam um composto hilemórfico.

    Assim, devido à alma ser uma substância imaterial, sua individualidade não pode

    ser entendida em termos materiais. Avicena aponta, em uma passagem do Livro

    sobre a alma V.3, que a alma se origina de modo individuado quando há, para ela,

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    um corpo apropriado. A junção originária entre corpo e alma seria um elemento

    individuador. Dado esse vínculo, a alma deixaria de existir de modo individuado

    após a morte do corpo?

    Kaukua fornece uma alternativa extremamente interessante para o

    problema. A solução apontada diz respeito a entender a relação entre alma e

    corpo como uma propriedade da alma; ou seja, mesmo depois de o corpo deixar

    de existir, a alma mantém-se individuada por ter, em algum momento da sua

    existência, mantido relação com certo corpo. O princípio do raciocínio

    consistiria no fato de a alma ser imaterial e suas propriedades individuantes

    também serem imateriais. Logo, como as propriedades individuantes são

    propriedades da alma, a individuação estaria relacionada à alma e não ao corpo.

    Deste modo, a individuação envolveria, conjuntamente, as propriedades da

    alma relacionadas: 1) às disposições emocionais da alma causadas pelos humores

    corpóreos (sangue, fleuma, bile amarela e bile negra); 2) ao grau de perfeição

    alcançado por cada intelecto; 3) ao conhecimento que cada um tem de si mesmo;

    4) aos traços particulares adquiridos pelo hábito ou configurações morais; 5) às

    propriedades da alma devidas a sua relação com o corpo.

    Dentre essas propriedades, encontra-se a autoconsciência como um modo

    de pensar a individuação humana (propriedade 3). A obra utilizada para isso são

    as Correspondências (Ta‘līqa ̄t) de Avicena, na qual a autoconsciência é pensada

    como o “modo de existência da substância humana” (p. 51). Por ser uma

    atividade essencial do homem que o acompanha sempre, a autoconsciência é

    descrita como inata, intransferível, independente de qualquer instrumento

    corpóreo ou exterior ao próprio indivíduo (self) e é identificada com sua

    existência; ou melhor, “(...) constitui a existência humana. É o modo segundo o

    qual as substâncias humanas individuais e imateriais existem tal como a

    materialidade é o modo segundo o qual os corpos humanos individuais existem”

    (p. 54). Assim, aquilo que individua e particulariza a existência humana é a

    atividade de conhecer a si mesmo. Diferentemente do Livro sobre a alma V.3, no

    qual a autoconsciência é listada como uma das cinco propriedades da alma, nas

    Correspondências ela seria promovida a fator determinante da individuação: “(...)

  • 11KAUKUA,J.Self-AwarenessinIslamicPhilosophy

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    como um constituinte primitivo de qualquer ser humano, a autoconsciência é a

    base que nos permite atribuir qualquer coisa a nós mesmos como algo exclusivo

    de certo indivíduo (...)” (p. 55).

    V

    A partir dos argumentos apresentados e da análise de algumas passagens

    extraídas do Livro sobre a alma e das Correspondências, Kaukua sugere duas

    propriedades gerais para isso que ele chama de teoria aviceniana da

    autoconsciência: 1) ela identifica-se com a nossa própria existência e 2) consiste

    em algo que pode ser fenomenologicamente experimentado, tal como indica o

    homem voador. Dada a continuidade, em determinado período de tempo, da

    existência de um indivíduo, o fenômeno da autoconsciência também é contínuo

    ao identificar-se com o período da sua existência. Portanto, se a existência de

    um indivíduo é contínua e sua existência identifica-se com a autoconsciência, a

    autoconsciência de um indivíduo também é contínua.

    Kaukua dedica parte considerável da discussão sobre o homem voador a

    apresentar argumentos contra a posição de D. N. Hasse, para quem o

    experimento mental não diz respeito ao fenômeno da autoconsciência. Segundo

    Hasse, a) o termo árabe dha ̄t não poderia ser traduzido por self dado o contexto

    de uso do termo; b) deveria ser traduzido por essência já que, na versão

    analisada do homem voador, é indicada a existência de uma essência particular

    que é independente do corpo; c) o homem voador não tem acesso imediato a si

    mesmo nem está consciente da própria existência porque ele, unicamente, afirma

    a existência dessa entidade essencial sem afirmar a existência do corpo.

    A estratégia do autor contra os argumentos de Hasse é mostrar as

    consequências de negarmos a relação entre o homem voador e o fenômeno da

    autoconsciência. Se considerarmos, tal como Hasse, que o homem voador tem

    ciência da sua essência, ela não pode ser identificada com o conteúdo inteligível

    (o conceito de ser humano) que se tornaria presente na mente humana. Logo,

    não há outra atividade para o homem voador senão estar consciente de si, ao

  • 12KAUKUA,J.Self-AwarenessinIslamicPhilosophy

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    que Avicena se refere, em outro momento, como o ato figurado de ver a si

    próprio.

    Embora Kaukua concorde com Hasse quanto ao fato de, durante o

    experimento mental, ser reconhecido que a essência afirmada está separada do

    corpo, que não foi afirmado, ele discorda de que essa conclusão possa ser

    alcançada sem a “identificação da consciência dessa essência com a própria

    autoconsciência” (p. 41). Grande parte da confusão, segundo o autor, está

    relacionada à não distinção dos três níveis de consciência envolvidos no

    fenômeno. O primeiro diz respeito à autoconsciência pré-reflexiva que é

    anterior ao experimento mental e independente de nós termos ou não

    experimentado algo como no caso do homem voador. O segundo nível

    relaciona-se ao ato de sermos levados a pensar sobre a autoconsciência pré-

    reflexiva ao realizarmos o experimento mental. Por fim, o terceiro grau vincula-

    se às conclusões que produzimos sobre a autoconsciência após refletirmos

    acerca do primeiro nível. Kaukua classifica esses dois últimos níveis como atos

    reflexivos na medida em que pressupõem um conteúdo sobre o qual nosso

    intelecto reflete. Diferentemente, o primeiro nível envolve apenas a identificação

    imediata do “eu” como um ponto de referência a partir do qual se dão todos os

    tipos de reflexão; o que individua esse ato primitivo de consciência é o fato de

    ele pertencer à perspectiva, em primeira pessoa, que um indivíduo tem de si

    próprio.

    Ainda que Kaukua, de modo bastante produtivo, tente argumentar contra

    a posição de Hasse, a defesa da existência de uma teoria sobre a autoconsciência

    de matriz aviceniana é bastante problemática. Uma das grandes contribuições da

    obra é mostrar a presença da autoconsciência enquanto fenômeno. Contudo, a

    tentativa de sistematizar essas ocorrências, ignorando as suas funções dentro dos

    contextos nos quais elas são apresentadas, mostra-se questionável. É difícil

    aceitar que um grupo de filósofos tenha uma teoria bem estabelecida sobre um

    dado conceito tendo-se em vista, a partir do reconhecimento do vocabulário

    adotado, a dificuldade de delimitar tal conceito. Reconhecer a autoconsciência

  • 13KAUKUA,J.Self-AwarenessinIslamicPhilosophy

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    como um fenômeno descrito, por exemplo, ao longo do experimento do homem

    voador é diferente de reconhecer que o experimento é sobre a autoconsciência.


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