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Largo da Banana, berço do samba paulista?

Date post: 07-Aug-2015
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Monografia realizada para a conclusão do curso História e Memória, ministrado pelo professor Lizânias de Souza Lima no ano de 2010.
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Largo da Banana, berço do samba paulista? Autor Mário de C. Andrade Lamparelli Orientador Lizânias de Souza Lima
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Page 1: Largo da Banana, berço do samba paulista?

Largo da Banana, berço do samba paulista?

Autor

Mário de C. Andrade Lamparelli

Orientador

Lizânias de Souza Lima

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao professor Lizânias, por me orientar durante todo desenvolvimento

do trabalho, ao meu avô Celso por auxiliar na elaboração de um roteiro a ser seguido na

dissertação, aos meus pais por me apoiarem e enriquecerem o trabalho com muitas

informações sobre a urbanização de São Paulo, além da participação em ricas

descobertas. E à colega Mariana por sempre me confortar nos momentos complicados.

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SUMÁRIO

Introdução ................................................................................................................................... 1

I. A gênese: o samba rural paulista ........................................................................................... 5

II. Barra Funda e São Paulo do início do século XX ............................................................ 20

III. Núcleo do samba: o Largo da Banana e suas manifestações ......................................... 27

Considerações Finais ................................................................................................................ 36

Bibliografia ................................................................................................................................ 38

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INTRODUÇÃO

O curso “História e Memória” traz à tona perguntas essenciais para aquele

que deseja se aprofundar no que diz respeito à pesquisas antropológicas, históricas de

cunho geral sobre qualquer que seja o objeto de estudo, uma data, manifestação,

localidade, figura histórica, entre muitos outros que esbocem diálogo entre a Memória

propriamente dita, inconsciente com sua subjetividade, dinâmica capacidade de

evolução e manipulação, e sua reconstrução problemática e intelectual, a História. As

questões oriundas dessa relação entre História e Memória abrem um leque ainda

mais extenso de perguntas, que vão desde a interpretação histórico-científica do

tempo até a subjetividade inerente a qualquer documento histórico, imposta por sua

própria condição de documento.

Digo que tais perguntas são vitais pelo motivo de que as mesmas remetem à

um campo de pesquisa no qual o atemporal reina simultaneamente com o temporal,

questionamentos de caráter filosófico à tarefa histórica são necessários para a própria

compreensão daquilo que o historiador produz e as problemáticas envolvidas nesse

processo de produção de material histórico. Esses questionamentos se dão pela

posição da História como ciência, e, como nos recorda Guarinello1, tal posição foi

atacada pela corrente pós-moderna, que acreditava não ser o conhecimento histórico

1 Norberto L. Guarinello, “Memória coletiva e história científica”, em Revista Brasileira de História (São

Paulo: ANPUH, v.7, n.13, 1994).

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Largo da Banana: berço do samba paulista? 2

mais que um mero estilo narrativo e retórico, incapaz de produzir verdades, apenas

especular sobre um passado inatingível e caótico, sem sair do universo textual, onde

impera o subjetivismo. Guarinello argumenta que tal visão de história pode

perigosamente conduzir ao relativismo absoluto, à equiparação de todas as verdades e

consequentemente o esvaziamento de todo o saber racional, visto que

[…] o passado que investigamos não é, por assim dizer, um processo onírico e indeterminado, aberto a todas as significações, mas a condição mesma, concreta e

positiva, de nossa existência presente. Nem é o historiador livre para criar

passados, como se traçasse sua trama por caminhos desimpedidos, mas deve falar através de documentos que são, também eles, bastante reais.[...] Mas não é só isso:

a história liga-se à realidade também por ser parte dela, por ser um produto de um

lugar socialmente determinado e historicamente constituído.[...] Se a história, enquanto disciplina, possui subjetividade, esta não é a subjetividade individual de

cada historiador, nem aquela, sem sujeito, do texto, mas a subjetividade de um

lugar, instituído como tal e custeado pela própria sociedade contemporânea.2

Ainda sobre essa subjetividade da história, levantada por Guarinello, e como já

dito anteriormente, ela existe, também, na condição de os documentos e monumentos

com que a História trabalha não serem

[…] o conjunto do que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade,

quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os

historiadores.3

Outro fator decisivo nessa subjetividade, e também aplicação dos documentos

e monumentos, é a adoção de uma concepção sintática do tempo pela historiografia

moderna, encarando-o como serial, numa cadeia de antes-e-depois. O tempo, porém,

não é homogêneo, aliás, uma característica de culturas ameríndias é sua

atemporalidade, em ritos onde os cultores experimentam uma regressão na

temporalidade, a manifestação, em seu conceito mais geral, os abstêm desse tempo

2 Idem, Ibidem. 3 Jacques Le Goff, “Documento/Monumento”, em História e Memória (Campinas: Editora da UNICAMP,

2003), p. 535.

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Introdução 3

serial. Mesmo o diálogo com o passado, segundo Bosi4, faz torná-lo presente.

O reencontro do tempo antigo pelo moderno faz pensar em um fenômeno que tende a aprofundar-se e a estender-se em nossos dias: o convívio dos tempos. […]

Essa convivência pode ser forçada, artificial, promovida pelo mercado cultural,

moda parente da morte. Mas pode acontecer espontaneamente, sinal de que o tempo que se vive não é homogêneo.5

Também os vínculos estabelecidos entre Memória e História podem aparentar

duas características distintas, citando Guarinello:

Podem ser vistos, em primeiro lugar, como uma relação positiva, pois a história produzida por historiadores, por especialistas da história, enriquece as

representações possíveis da memória coletiva, fornece símbolos, conceitos,

instrumentos rigorosos para que a sociedade pense a si mesma em sua relação com o passado. Mas podem também ser vistos sob um ângulo negativo, porque a

história científica se volta contra as representações produzidas pela memória

“espontânea” da sociedade, destruindo seus suportes, atacando seus princípios, seus pressupostos, seus símbolos.6

Assim, munido de ferramentas para uma análise crítica e histórica de qualquer

objeto de estudo à disposição, não custou muito para que o próprio curso me levasse ao

tema.

É de longa data meu interesse pelo samba como autêntica expressão popular,

com toda sua riqueza folclórica, extravasando em muito os limites impostos pelo rótulo

gênero, o qual por vezes me vejo obrigado a utilizar em prol de um maior didatismo,

embora opte muitas vezes pelo uso do termo manifestação. Muito vulnerável como

folclore, fora do eruditismo e intrinsecamente coletivo, como já dito, o samba reserva

muitas características comuns à memória, e daí a interessante relação estabelecida entre

o tema e o curso como um todo.

Neste universo de valorização da arte do povo, resistência à mercantilização e

pasteurização da cultura popular, é quase impossível não esbarrar na figura maior do

samba paulistano, o politizado Geraldo Filme, de apelido “Negrinho das marmitas”

4 Alfredo Bosi, “O tempo e os tempos”, em Adauto Novaes (org.), Tempo e História (São Paulo:

Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura, 1992) 5 Idem, Ibidem, p.30 6 Norberto L. Guarinello, op. cit..

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Largo da Banana: berço do samba paulista? 4

quando criança em meados de 1930. Encantado com o discurso e mesmo o lirismo que

suas músicas carregavam, logo me vi imerso numa incansável busca a procura de mais

músicas do artista. Com raras obras gravadas e parco material para um personagem

do porte de Geraldo Filme, descobri a participação do renomado sambista em uma peça

do dramaturgo Plínio Marcos, defensor de primeiríssima linha do samba paulista,

posteriormente gravado em LP. “Plínio Marcos em Prosa e Samba – Nas quebradas

do mundaréu” foi riquíssimo para minha pesquisa e principalmente para a

elaboração do tema que abordo na presente monografia.

Citado na música “Vou sambar n'outro lugar” de Geraldo Filme, o Largo da

Banana despertou imediatamente meu interesse, porque embora apreciador do samba,

ouvia pela primeira vez referência à tal local ao qual era atribuída grande importância.

A ponte entre o Largo da Banana e o curso “História e Memória” estabeleceu-se

quase que instantaneamente, pois poucos textos tratavam com profundidade o largo, de

suma importância para o desenvolvimento de um samba propriamente paulistano.

Interessante é, portanto, analisar a memória do que parece ser um local não

de memória, mas esquecimento, apesar de seu valor cultural inestimável. A pretensão

deste trabalho é de resgatar a manifestação extinta de um lugar já não mais existente

num universo físico, mas que semeou experiências culturais ao longo do tempo na

cidade de São Paulo, cujo samba próprio, apesar de pouco divulgado pela mídia de

massa e muito desconhecido do grande público, sobrevive muito da memória cada vez

mais restrita daqueles que o vivenciaram e esporádicos trabalhos acadêmicos, muitos

não publicados.

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I. A GÊNESE

O samba rural paulista

Canto de negro dói, canto de negro mata

Canto de negro faz bem e faz mal

Negro é como couro de tambor

Quanto mais quente, mais toca

Quanto mais velho, mais zoada faz.

Solano Trindade

O samba paulista, ao contrário do que muitos acreditam, não é uma vertente do

samba tradicional carioca. O samba feito no estado de São Paulo tem sua raiz nas

manifestações rurais feitas no interior do estado (jongo, catira, samba-de-bumbo,

samba-lenço) que por sua vez têm sua mais remota origem no obscuro batuque,

manifestação trazida por escravos africanos que, segundo a folclorista Raquel Trindade,

deu origem a todos os sambas e tinha por principal característica a umbigada. Diz-se

obscuro pelo pouco que se sabe em relação à tal manifestação e pelo fato de o termo

batuque ser muito genérico, abarcar um conjunto muito grande de gêneros os mais

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Largo da Banana: berço do samba paulista? 6

variados. Em quimbundo, língua falada por negros bantos oriundos da região de

Angola, parte da costa africana de onde mais se exportaram escravos para o Brasil

(cerca de 73% dos escravos brasileiros eram angolanos), o termo semba designa

“umbigada”. Este batuque, levado pelos negros às mais distantes localidades do Brasil,

daria origem à diferentes sambas nas distintas regiões. Citando a historiadora Olga von

Simson:

A alma do samba vem para o Brasil com os escravos nos navios negreiros, e aqui

ele se torna crioulo, adquirindo um corpo com características diversas, conforme a

região onde se desenvolve:

No Nordeste ele será, em geral chamado de Coco. No litoral norte de Pernambuco

o denominam samba de matuto, e será dançado nos ranchos pastoris. Na Bahia,

além de ser dançado nos ranchos pastoris do Ciclo Natalino ele será chamado de samba de roda, apresentando forte influência das religiões africanas e estará

carregado de axé. No Rio de Janeiro, trazido por migrantes baianos que se fixaram

na cidade em meados do século dezenove, ele será a princípio o samba de partido alto, muito próximo do batuque africano, uma dança de umbigada com ritmo

marcado por palmas, pelo prato de cozinha raspado com faca, por chocalhos e outros instrumentos de percussão e, ás vezes [sic] acompanhado pelo violão e pelo

cavaquinho. Segundo velhos sambistas, a expressão partido alto provém da alta

dignidade desse samba, cultivado por minorias negras.

[…] Por longo tempo, as raízes do samba paulista se mantiveram fortemente

rurais e ele foi chamado ora de samba de roda, ora de samba de bumbo, ora de samba-lenço ou ainda de samba rural, segundo os intelectuais que o estudaram

nos anos 30, como Mário de Andrade e Mário Wagner da Silva. O povo o

chamava simplesmente de batuque.7

A citação também mostra a vagueza do termo batuque, e devido às diferentes

interpretações que lhe podem ser dado, a autora opta pela utilização de “alma do

samba”.

O desenvolvimento de um samba característico de São Paulo só é possível a

partir do momento em que há um contingente relativamente grande de negros, fato

que só vai se dar a partir do século XVIII, mas principalmente no século XIX com a

cultura cafeeira. A primeira região aglutinadora de negros em São Paulo foi Santana de

Parnaíba. Os escravos empregados nas lavouras de café vinham da decadente economia

7 Olga R. de Moraes von Simson, O samba paulista e suas histórias: textos, depoimentos orais, músicas e

imagens na reconstrução da trajetória de uma manifestação da cultura popular paulista (Campinas: Centro

de Memória/UNICAMP, 2008), p.2.

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A gênese 7

canavieira do Nordeste brasileiro, e, obviamente, traziam consigo cultura, saberes e

hábitos que adquiriram em sua infância e juventude no Nordeste. Tal processo de

migração de mão de obra se intensificou em 1850 com a Lei Eusébio de Queirós, que

proibia o tráfico transatlântico de negros. Há registros no Arquivo Histórico

Municipal de Campinas de que um único fazendeiro campineiro, o Barão de Itatiba,

importou sessenta e um cativos de províncias nordestinas entre os anos de 1853 e

1874.

Há registros, que datam de meados do século XIX, de manifestações do samba

nessas fazendas de municípios como Botucatu, Rio Claro, São Simão, Itapira, Itu, São

Roque, Araçoiaba da Serra, Laranjal Paulista, Campinas, Redenção da Serra, Jacareí,

Jundiaí, Caçapava, Capivari e Piracicaba. Em depoimento, Geraldo Filme relembra as

ocasiões em que se praticava o samba, frisando a diferença com o samba carioca:

O nosso samba não tem nada a ver com o samba do Rio. É tão diferente, em tudo, nos tipos de manifestações da gente, no andamento. O nosso vem mesmo

daqueles batuques, daquelas festas, as festas que eram dadas aos escravos quando tinha boas colheitas de café, dava aquelas festas pros escravos, na qual eles se

manifestavam, com aquelas danças. Era batuque, era umbigada...8

As manifestações de jongo, samba entre outros abarcados dentro do

termo batuques, eram feitos pelos negros nestas ocasiões festivas, onde celebrava-se a

boa safra de café, embora, como nos lembra Fernando Penteado, filho e neto de

fundadores da Escola de Samba Vai-Vai, nem tudo fosse alegria nessas ocasiões. Os

escravos, nesse momento de lazer, se reuniam em roda para “orar”, em forma de

samba, os lamentos colhidos durante a vida na senzala. O samba acalentava os negros.

Nos versos entoados durante a brincadeira, imperava a comunicação de duplo sentido

desenvolvida na senzala, de modo a desviar o olhar censor dos senhores que

presenciavam a manifestação. Como nos versos do batuque “Tiá de Junqueira”,

lembranças de Geraldo Filme dos cantos de sua avó:

Oi tiá, tiá, tiá

Oi tiá de Junqueira, tiá

Oi tiá, tiá, tiá

8 Geraldo Filme, em depoimento gravado pelo programa Ensaio da TV Cultura em 1982.

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Largo da Banana: berço do samba paulista? 8

Oi tiá de Junqueira, tiá

Moça bonita de lírio, tiá

Veja que coisa indecente, tiá Deita sem estar casada, tiá Fazendo vergonha pra gente.9

Como analisa o próprio Geraldo, há um protesto de ordem moral das negras,

constantemente assediadas pelos senhores, enquanto as moças brancas (de lírio)

tinham relações sexuais antes do casamento por livre e espontânea vontade, gerando

prole que viria a ser criada pelas negras.

Na coreografia desses batuques, a umbigada estava também sempre presente, e atribuía

conotação de extrema sensualidade ao samba, o que justificava, para muitos senhores, a

proibição deste tipo de manifestação.

[...] Na Campinas do último quartel do século dezenove, o samba já era aceito por

alguns senhores de escravos mais benevolentes, sendo dançado pelos negros em

datas especiais, como no aniversário de uma sinházinha [sic] ou em dia de festa religiosa.

É o caso do Barão Geraldo de Rezende, grande cafeicultor que não só permitia,

como apreciava o samba dos seus escravos, convidando amigos e parentes, para juntos assistirem ao sambas dançados em dias de festa no terreiro de café da

famosa Fazenda Santa Genebra.10

Amélia Rezende, filha do barão, registrou a letra e a melodia de alguns sambas

que eram cantados no terreiro de Santa Genebra:

I.

Quando o meu bem vai’se embora, ai eu fico Panha laranja no chão tico-tico

Panha laranja no chão. Panha laranja no chão tico-tico

Panha laranja no chão.

Minha toalha de renda

Minha toalha de bico

Panha laranja no chão tico-tico Panha laranja no chão.

Panha laranja no chão tico-tico Panha laranja no chão.

9 Música gravada por Geraldo Filme, no programa Ensaio da TV Cultura em 1982. 10 Olga R. de Moraes von Simson, op. cit., p. 27.

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A gênese 9

II.

Minha cumadi, pelo amor se Deus ai,

Minha cumadi, pelo amor de Deus ai,

Me dá meu leite, co’ a vaca me deu

Me dá meu leite, co’ a vaca me deu

III.

Vô chamá Nhonhô

Vô chamá Nhonhô

Mucama tá brigando

Lá no corredor

Oi viva Neném

Oi viva Neném Viva Neném, crioula

Oi viva Neném.11

A prática da umbigada, segundo von Simson, não trazia em si um ato licencioso

carregado de sensualidade, mas uma forma ritualizada de se louvar a fertilidade da

natureza.

Cuíca e Domingues12 afirmarão que o termo samba em São Paulo, porém, só

ganha sentido comum, entendido por gente de todo estado, quando se falava no

samba-de-bumbo de Pirapora do Bom Jesus. Pirapora figurou, principalmente após a

“suavização” da escravatura em meados do século XIX e posterior abolição, em 1888,

como principal núcleo cultural-religioso do interior de São Paulo. Muito desse valor

atribuído à grande festa de Bom Jesus de Pirapora, realizada nos dias 3, 4, 5 e 6 de

agosto, se deve à presença maciça de negros no ritual, que inspirados no primeiro

milagre do Bom Jesus, tomaram-no como poderoso protetor de sua gente. O primeiro

milagre diz respeito ao mito de criação do município de Pirapora , quando, em idos de

1725, três escravos negros tentavam transportar uma imagem de Jesus Cristo feita em

madeira, encontrada às margens do Tietê. Em um atoleiro da várzea, a remoção da

imagem parecia impossível, os escravos discutiam, até que o carreiro sugeriu uma

mudança na disposição dos eixos do carro de boi e tudo se resolveu. Foi o primeiro

11 Idem, Ibidem, p.9. 12 Osvaldinho da Cuíca e André Domingues, Batuqueiros da Paulicéia: enredo do samba de São Paulo (São

Paulo: Bracarolla, 2009)

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milagre do Bom Jesus, não pelo desencalhe, mas porque o carreiro era surdo-mudo. O

local onde a imagem foi encontrada foi marcado com uma cruz e logo passou a receber

romeiros interessados no poder milagroso da estatueta e das águas do Tietê, enquanto

no ponto exato do milagre foi construída uma capela. Inevitavelmente, com o grande

contingente de negros que se dirigiam às festas do Bom Jesus, houve uma

contaminação da festa cristã pela cultura africana.

A inclusão do bumbo tem seu crédito atribuído a Honorato Missé, de quem

pouco se sabe. Nascido a 12 de dezembro de 1903, em Santana de Parnaíba, branco,

filho de uma família de 8 irmãos, Honorato evidentemente não foi o primeiro a

perceber o uso do bumbo (instrumento usado pelas popularíssimas bandas marciais)

para batucar, mas os testemunhos existentes são praticamente unânimes na afirmação

de que somente a partir de Honorato (ao final de 1910) que os bumbos passaram a

reinar no samba de Pirapora.

Um instrumento muito presente nos batuques paulistas e que reiterava o vigor

rítmico grave das manifestações africanas era o tambu, tambor escavado a fogo em

grande tronco, com pele de couro, no qual se batiam com duas baquetas de madeira.

Não muito comum em Pirapora, uma vez que seu tamanho e peso dificultavam o

transporte, o tambu se viu substituído pelo bumbo no papel de realçar o caráter rítmico

das canções. Esta substituição é observada com nostalgia pelo cronista-historiador

Rolando de Sergi, já em 1927: “O bumbo corriqueiro e prosaico substituía em todos os

grupos o primitivo e característico tambu”13.

O tocador de bumbo, ele obedece à uma “regra africana” musical, que é o instrumento grave ser o solista. Hoje a gente tá assistindo à uma inversão disso, os

instrumentos agudos é que partem pros solos e os graves fazem a marcação do

tempo. Mas isso, na África e em muitas manifestações da cultura popular é o inverso, então o bumbo no samba preserva isso14

Uma característica peculiar do samba-de-bumbo é a participação muito

13 Rolando de Sergi apud José Ramos Tinhorão, “A vocação caipira de uma cidade cosmopolita” em

Tinhorão, Cultura Popular: temas e questões (São Paulo: Editora 34, 2001), p.228. 14 Marcelo Manzatti em depoimento gravado no longa-metragem Samba à paulista, de 2007, parte I.

4’29’’.

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A gênese 11

representativa de caboclos e mesmo brancos, o que foi interessante culturalmente para a

manifestação, visto que a falta de identificação com um segmento cultural mais

específico levou esse samba

a receber tipos de toda origem e vindos de toda parte, que imprimiram no samba-

de-bumbo suas marcas culturais, enriquecendo-o com elementos musicais

originalmente dispersos, como o jongo, a catira, caninha verde e a importantíssima folia do divino15.

Muito presente nos batuques paulistas, o tambu reiterava o caráter rítmico próprio da tradição

musical africana.

Predominava no samba-de-bumbo a improvisação de versos sobre uma base

melódica/harmônica simples em longos desafios. O dono-do-samba, o indivíduo que

fazia os “pontos” (nome que se dá aos versos lançados ao coro), é sempre alguém com

facilidade de improviso. O discurso dos versos, à semelhança de outros batuques de São

Paulo, trazia mensagens de duplo sentido, como já foi dito, fruto de uma linguagem

velada na senzala, e possui uma riqueza literária, muito carregado de complexas

metáforas. Os instrumentos utilizados eram: bumbo, caixinha (que guarda alguma

semelhança com a alfaia), réque-réque (de chifre, trazido pelos escravos bantos),

15 Osvaldinho da Cuíca e André Domingues, op. cit., p.26.

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Largo da Banana: berço do samba paulista? 12

chocalhos e pandeiros.

De acordo com von Simson16, com muita repressão às formas de divertimento

negro em São Paulo no século XX, os sambadores, para continuar a realização de suas

festas, retiraram a umbigada de suas performances, e o contato entre os participantes

passou a se dar por intermédio do bumbo, posicionado à frente do corpo do

tocador . Os registros de Mário de Andrade, em seu estudo intitulado O samba rural

paulista, descrevem com grande riqueza de detalhes este recorte específico da

manifestação:

Na noite de 14 de fevereiro de 1931, foi mesmo sublime de coreografia sexual o

par que se formou de repente no centro da dança coletiva. […] A graça da pretinha se esgueirando ante o bumbo avançado com violência, se aproximando

quando ele se retirava no avanço e recuo de obrigação, era mesmo uma graça

dominadora. […] Era impossível não sentir que o negrão, afastado da negrinha, mandava o seu gozo todo pro instrumento. Era visível a necessidade que tinha de

apalpar com o bumbo enorme o corpito da companheira. […]

Nunca senti maior sensação artística de sexualidade, que diante daquele par cujo contato físico era no entanto realizado através dum grande bumbo. Era

sensualidade? Deve ser isso que fez tantos viajantes e cronistas chamarem de

indecentes os sambas de negros...17

O samba-de-bumbo tem outras características particulares no que diz respeito à

coreografia:

A coreografia deste samba difere profundamente da do batuque, ou samba, ou que outro nome tenha, que, vindo da África, se generalizou entre nós. No batuque ou

samba mais tradicional, descrito por viajantes antigos, e ainda sobrevivente na

Bahia, há três elementos essenciais que o definem coreograficamente. É uma dança em que os dançantes formam círculo; quem dança realmente é um par, destacado

do círculo e posto em evidência no centro dele; o passo, ou melhor, o movimento

característico desse par dançarino é a umbigada, fim culminante dos floreios coreográficos, acabado o qual a dança recomeça com par novo. Nenhum destes

três elementos existe no samba rural paulista que não é uma dança de par, mas

coletiva; cuja disposição não é o círculo, mas o paralelismo dos dançantes em fileiras; e onde não existe a umbigada18

16 Olga R. de Moraes von Simson, op. cit. 17 Mário de Andrade, “O samba rural paulista” em Edison Carneiro, Antologia do negro brasileiro: de

Joaquim Nabuco a Jorge Amado, os textos mais significativos sobre a presença do negro em nosso país (Rio

de Janeiro: Agir, 2005), p. 328. 18 Mário de Andrade apud José Ramos Tinhorão, op. cit., p.224.

Page 16: Largo da Banana, berço do samba paulista?

A gênese 13

Em registro fotográfico de Mário

de Andrade, nota-se a

imponência do bumbo em meio

à multidão.

Essa disposição do grupo em fileiras de “cobrinhas” é muito provavelmente

influência de rituais indígenas brasileiros. O fato de não haver umbigada se trata de

uma estratégia desenvolvida pelos que participavam do samba, de modo a continuar a

prática da manifestação sem maior censura da elite.

O samba-de-bumbo, durante a festa do Bom Jesus, representava grande atrativo

para a camada popular de todo o estado de São Paulo, às vezes se estendendo para além

das fronteiras interestaduais (há registros de grupos vindos do sul de Minas para

presenciar a festa).

Com o crescimento da população flutuante nos dias de festa, quando os hotéis, pensões e casas de família ficavam lotados, a alternativa para várias pessoas era

acampar às margens do rio (geralmente os caboclos que utilizavam essa forma de

alojamento). Afastados da vila também existia dois amplos edifícios abandonados que haviam servido de moradia de seminaristas e religiosos, e neles se alojavam

exclusivamente os negros vindos de todas as regiões e cidades da província. É

nesse local que a parte profana dos festejos vai se originar e se desenvolver, pois,

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Largo da Banana: berço do samba paulista? 14

após os cultos religiosos, negros batucavam e dançavam, desafiando-se a noite

inteira, Essa dimensão da fração profana da festa, e da influência dos negros na sua

realização, é reiterada no estudo de Mário Wagner V. Da Cunha, que identifica e estabelece dois tipos diferenciados de protagonistas: havia o devoto cumpridor de

seu dever religioso; os romeiros, constituídos por brancos, que pretendiam

cumprir o dever religioso, mas também acalentavam a ideia de participação nos festejos profanos; e, finalmente, os piraporeanos, constituídos por negros e

mulatos que se dirigiam para Pirapora, exclusivamente em função da festa

profana, ou seja, o samba. […] Nessas comemorações participavam todos os segmentos da população, sem exclusões; por isso, seguiam para Pirapora tanto os

negros e caboclos pobres como a parcela mais privilegiada19.

Moraes aponta que esse grupo de romeiros e piraporeanos se estabeleciam em

barracões de alvenaria, dantes utilizados por seminaristas e religiosos. Estes barracões

eram palco principal da “fração profana” das festas do Bom Jesus. As batucadas lá

ocorriam de modo que o samba nunca foi bem visto pela Igreja, instituição poderosa

em Pirapora, e nos barracões, distantes das praças onde se realizavam as procissões, os

negros encontravam espaço de maior liberdade para realizar as batucadas, porque,

apesar de um aparente confinamento, o isolamento social acabou garantindo a

liberdade de expressão desses grupos. Pelos barracões passaram importantes figuras do

samba paulista, como Henricão, Geraldo Filme, Dionísio Barbosa, Livinho da Vai-Vai,

entre outros.

Um samba de Geraldo Filme, Batuque de Pirapora, que relata suas memórias de

infância, ilustra perfeitamente o ambiente dos festejos do Bom Jesus de Pirapora:

Eu era menino

Mamãe disse: vamo' embora

Você vai ser batizado No samba de Pirapora

Mamãe fez uma promessa

Para me vestir de anjo Me vestiu de azul-celeste

Na cabeça um arranjo

Ouviu-se a voz do festeiro No meio da multidão

“Menino preto não sai

Aqui nessa procissão”

19 Moraes apud Márcio Michalczuk Marcelino, Uma leitura do samba rural ao samba urbano na cidade de

São Paulo (Mestrado em Geografia Humana, 183 f., FFLCH-USP, São Paulo, 2007), p. 25.

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A gênese 15

Mamãe, mulher decidida

Ao santo pediu pediu perdão

Jogou minha asa fora Me levou pro barracão

Lá no barraco

Tudo era alegria Nego batia na zabumba

E o boi gemia

Iniciado o neguinho

Num batuque de terreiro

Samba de Piracicaba Tietê e campineiro

Os bambas da Paulicéia

Não consigo esquecer Fredericão na zabumba

Fazia a terra tremer

Cresci na roda de bamba No meio da alegria

Eunice puxava o ponto

Dona Olímpia respondia Sinhá caía na roda

Gastando a sua sandália

E a poeira levantava Com o vento das sete saias20

Este samba evidencia a clara divisão entre o profano e o sagrado na festa do

Bom Jesus de Pirapora: enquanto nas praças as manifestações eram dirigidas pela

Igreja, e as procissões tinham como participantes exclusivamente os brancos, nos

barracões de alvenaria havia a livre expressão das classes mais humildes, que

compareciam em maior peso às festas. Temos menções claras ao tipo de música que se

fazia nesse ambiente, com desafios (“Eunice puxava o ponto”) e presença do bumbo

(“zabumba”).

A igreja, ela sempre teve, assim, uma diferenciação de classes, depois é que houve

uma abertura maior. Mas os escravos, os negros, eles não tinham liberdade de ficar na igreja nos mesmos lugares que os brancos ficavam, nas missas solenes, nas

procissões; eles eram discriminados. […] O negro fazia, então, a sua devoção

dentro do barracão. De que maneira? Cantando. E o canto deles era aquele canto no estilo africano, que era mais ou menos o ritmo do samba21

20 Geraldo Filme, “Batuque de Pirapora”, gravado em 1972. 21 Policarpo José da Cruz, em depoimento gravado no curta-metragem Bumbo dá Samba, de 2003. 8’56’’.

Page 19: Largo da Banana, berço do samba paulista?

Largo da Banana: berço do samba paulista? 16

Essa grande mobilização que existia entre o samba-de-bumbo de Pirapora, à

medida que a festa vai ganhando maior relevância cultural, passa a competir com os

interesses religiosos da poderosa Igreja local. Como resultado, em 1936, a Igreja, numa

iniciativa em parceria com a prefeitura do município, interdita os barracões, alegando

falta de segurança e desarticula os sambeiros (termo usado para denominar aqueles que

participavam mais ativamente das batucadas). Mário de Andrade22, em 1937, já relata

mudanças significativas nas características originais do samba-de-bumbo e atesta que a

festa perdeu muito de seu valor, sendo encontrado apenas um batalhão de sambeiros

no lugar, e o mais humorístico do caso, com suas próprias palavras, é que o grupo de

samba que estudou em Pirapora tinha ido de São Paulo.

Espaço de manifestação do profano na festa do Bom Jesus, o barracão de alvenaria.

As restrições ao samba em Pirapora diminuíram a lotação da cadeia local naquelas

noites frias de agosto, repletas de bêbados e arruaceiros, mas fizeram com que,

gradativamente, o peso cultural da festa de Bom Jesus fosse diminuindo. Para piorar, ao mesmo tempo, o samba começou a sumir do interior paulista por conta

do grande êxodo rural decorrente da industrialização desembestada da capital e

suas adjacências. […] Por tudo isso, na década de 50, quando os barracões dos

22 Mário de Andrade in Edison Carneiro, op. cit..

Page 20: Largo da Banana, berço do samba paulista?

A gênese 17

romeiros foram demolidos, a efervescência já não era nem sombra da de outrora,

ainda que um bom número de sambistas continuasse indo até Pirapora para fazer

suas orações.23

É interessante notar que muitos dos sambistas que frequentavam as festas de

Pirapora, vinham em grupos da capital, em processo de vertiginosa urbanização, São

Paulo. O fato de a centralidade de São Paulo não agregar tanto culturalmente a camada

popular é de grande particularidade, como observará Tinhorão, em seu polêmico

artigo, A vocação caipira de uma cidade cosmopolita:

A consequência dessa polarização do urbano pelo rural – fenômeno paulista absolutamente original dentro do processo cultural brasileiro, onde a cidade diluiu

sempre os modelos do campo, impondo sua marca na síntese representada por

novo produto final – foi a inconsistência das criações populares de São Paulo na área do lazer.24

O debate sobre a questão da reprodução das formas de lazer próprias do

universo rural na capital será abordado com mais profundidade no próximo capítulo.

Os sambistas da capital se dirigiam aos festejos religioso-profanos de Pirapora

com o objetivo de entrar em contato mais direto com suas raízes. Os nomes dos já

citados renomados sambistas que passaram pelos barracões de alvenaria iam para um

espaço onde podiam, de maneira mais livre, praticar o samba, impossível de assim o ser

no ambiente inóspito da capital. Os próprios sambeiros afirmam que, além do fator da

maciça presença de indivíduos com semelhante formação cultural e interesse na prática

do samba, também o ambiente rural, o maior contato com a natureza do interior, onde

as raízes desse samba se firmaram, o “contato com o passado” trazia inspiração para a

manifestação do samba.

De repente, aqui, 'cê pode chegar aqui, dá uma iluminação em você, você alembra do passado, esse rio Tietê aqui, um rio tão lindo, um rio tão belo, 'cê entendeu?

Sentava aqui no barranco, aqui, pescava lambari, 'cê bebia uma água limpa, hoje tá

tudo poluído, cê entendeu? Então, assim, são uns batuques, são umas modas que de repente você vai criando na hora, assim, sem revanchismo e sem dor no

coração.25

23 Osvaldinho da Cuíca e André Domingues, op. cit., p.31. 24 José Ramos Tinhorão, op. cit., p. 223. 25 Edmur, em depoimento gravado no longa-metragem Samba à paulista, parte I, de 2007. 11’37’’.

Page 21: Largo da Banana, berço do samba paulista?

Largo da Banana: berço do samba paulista? 18

Geraldo Filme confirma que “lá o negro relembrava suas raízes, na cidade ele

não tinha mais condições”26.

Em foto de Lévi-Strauss, “batalhão”de paulistanos se aglomera em redor do bumbo.

É interessante notar no discurso dos praticantes do samba a relação

aparentemente contraditória entre a comum prática de desafios no interior paulista e a

música dita “sem revanchismo” entoada nos momentos de lazer. Os desafios eram

realizados em grande parte através do cururu, gênero musical similar ao repente,

cantado ao som de violas e “cultivado” principalmente na região do Médio Tietê. O que

se pode presumir é que os desafios não tinham caráter necessariamente depreciativo e

agressivo, como é o caso de muitos outros gêneros onde há improvisação em espécie de

discussão envolvendo dois ou mais participantes. Os improvisos iriam nascendo, à

semelhança do partido-alto, “não só sobre um tema, refrão, mas também sobre o

26 Geraldo filme, em depoimento documentado em fita, disponível em acervo do Museu da Imagem e do

Som de São Paulo, fita n. 112.14-15-16 e 17.

Page 22: Largo da Banana, berço do samba paulista?

A gênese 19

ambiente, sobre um clima que vai se criando aos poucos”27. E realmente é o que se

observa em muitos dos casos, como em alguns improvisos do famigerado Zé Soldado,

anotados por Mário de Andrade no ano de 1937, em Pirapora:

O cabôco Marculino

- Ai, meu Deus

É cabôco malcriado - Ai, meu Deus

Pegô na prima choca

- Ai, meu Deus Foi vendê pro delegado

- Ai, meu Deus

Ê-lê-lê-lê.28

Também outro gênero popularíssimo no interior do estado de São Paulo, e do

qual se sabe muito pouco, foi a catira, também conhecido como cateretê, onde se

utilizavam principalmente violas e, como percussão, somente as palmas de mãos e

batidas de pé. Os versos de danças de catira podiam ser ouvidos nos arredores da capital,

ainda no fim do século XIX, como anota Freitas: “[…]ficando neste capítulo O Cateretê

uma das feições características do nosso povo, as cenas do cateretê paulista, tal como se

desenrolavam ainda há uns trinta anos passados [o livro é de 1921] em os arredores da

Capital”29.

27 Antônio Candeia Filho, em depoimento gravado no curta-metragem Partido alto, de 1971. 4’ 15’’. 28 Osvaldinho da Cuíca e André Domingues, op. cit., p.90. 29 Freitas apud José Ramos Tinhorão, op. cit., p. 216.

Page 23: Largo da Banana, berço do samba paulista?

II. BARRA FUNDA E SÃO PAULO

DO INÍCIO DO SÉCULO XX

Branco quando morre,

Foi a morte que o levou

Negro quando morre,

Foi cachaça que o matou.

Dito popular do início do séc. XX

São Paulo, até o final do século XIX e início do seguinte, ainda guardava muito

da atmosfera provinciana e pacata tipicamente interiorana. A cultura cafeeira, que fazia

São Paulo figurar como maior exportador de café na economia mundial, acumulou o

primitivo capital necessário para o desenvolvimento da indústria na cidade.

A capital conheceu vertiginoso processo de crescimento demográfico no período

compreendido entre meados de 1875 e 1920, com migrantes vindos das fazendas de café

do Vale do Paraíba e interior, e imigrantes desembarcando no porto de Santos,

principalmente italianos, espanhóis e alemães. Cabe aqui fazer um parêntese para

melhor compreensão da vinda dessa massa de ex-escravos do interior. Segundo

Page 24: Largo da Banana, berço do samba paulista?

Barra Funda e São Paulo do início do século XX 21

Lamego30 o primeiro ciclo dos barões do café entrava em decadência por conta do mal

uso das terras, culminando com a abolição da escravatura, em 1888. Com tal derrocada

do primeiro ciclo do café, a cidade de São Paulo passa a representar uma região atrativa

para essa massa de trabalhadores rurais, muitos deles ex-escravos e seus descendentes.

Dos Santos31 aponta os seguintes números: de 23.352 habitantes, em 1874, a população

dá um salto para 581.435, em 1920. Essa explosão demográfica se deve principalmente

ao intenso fluxo de imigração que se estabeleceu nesse período: enquanto em 1872 a

população estrangeira representava 8% da população da capital, contra 92% dos “da

terra” (expressão encontrada em documentos de época para designar os nacionais) num

total de 26.020 habitantes, em 1893 essa parcela de estrangeiros ultrapassa a quantidade

de nacionais, com 55,52% do total de 120.775 habitantes. Dentre os estrangeiros, a

imensa maioria era de italianos, seguidos de portugueses e ainda os espanhóis.

[…] Macola, um viajante italiano que visitou São Paulo alguns anos depois, ficou impressionado ao ouvir que se falava, se chamava e se imprecava, por toda a parte,

“nos dialetos mais autênticos da Península”. Daí a impressão de espanto de um

mineiro ao conhecer São Paulo em 1902: “Os meus ouvidos e os meus olhos guardam cenas inesquecíveis. Não sei se a Itália o seria menos em São Paulo. No

bonde, no teatro, na rua, na igreja, fala-se mais o idioma de Dante que o de

Camões. Os maiores e mais numerosos comerciantes e industriais eram italianos. Os operários eram italianos.” Sousa Pinto, um jornalista português que esteve na

Cidade na mesma época, não conseguiu se fazer entender por vários cocheiros de

tílburi, todos falando em dialetos peninsulares e gesticulando à napolitana. Escritas em italiano eram também as tabuletas de vários edifícios: “Encontramo-nos a

cogitar se por um estranho fenômeno de letargia em vez de descer em São Paulo

teríamos ido parar à Cidade do Vesúvio.”32

Nesses relatos de viajantes e até mesmo nas estatísticas recolhidas por órgãos

municipais da época, existe clara tendência otimista em atribuir o progresso da cidade à

vinda em massa dos imigrantes, mão de obra melhor qualificada tecnicamente e com

costumes e cultura mais próximos do modelo europeu almejado pela elite paulistana. O

“embranquecimento” da cidade, abordado em muitos documentos de época, revela um

30 Paulo Lamego, O Brasil é o Vale (Valença: Gráfica PC Duboc, 2006). 31 Carlos José Ferreira dos Santos, Nem tudo era italiano - São Paulo e pobreza: 1890-1915 (São Paulo:

Annablume/FAPESP, 2008) 32 Ernani Silva Bruno apud Carlos José F. dos Santos, op. cit., p.36.

Page 25: Largo da Banana, berço do samba paulista?

Largo da Banana: berço do samba paulista? 22

desejo latente de “reconstruir a Paulicéia inferiorizando, silenciando e excluindo aqueles

que estivessem fora dos padrões socioculturais desejados ou fossem vinculados a

aspectos de um passado que se desejava apagar – entre esses os nacionais pobres”33.

A massa operária da cidade era formada quase que exclusivamente por

imigrantes, sob a justificativa de melhor qualificação técnica dos mesmos para os

serviços exigidos pela indústria, deixando a essa camada de “nacionais despossuídos”

serviços mais pesados e de menor especialização, como carregamento e ensacamento,

pequenos biscates pela cidade e ainda serviços domésticos nas casas das famílias mais

abastadas.

[...] os negros eram quase tantos quantos os italianos, na época, em São Paulo, [mas] viviam totalmente desintegrados [...] Os imigrantes – na indústria e no

comércio. Para o negro sobrava só a tarefa de lavar casas, limpar escritórios,

carregar lenhas e outras cargas. Éramos todos subempregados. Via-se muito, na época, negros puxando carrocinhas pela cidade ou fazendo ‘ponto’ na [rua]

Quintino Bocaiuva, com latas e escovões nas mãos, à espera de ser chamado para

limpar uma casa aqui, raspar um assoalho ali.34

Sob a bandeira da higiene, na qual eram repelidos por seus costumes,

embriaguez e vagabundagem nos momentos de recesso, e da insuficiência técnica para a

realização de trabalhos que demandavam maior habilidade (torneiros mecânicos,

soldadores...), essa parcela popular nacional da população foi marginalizada pela

sociedade como um todo, constrangida a abraçar o modelo europeu de civilização. A

música Mulher de malandro, de Geraldo Filme, ilustra bem os serviços realizados por

essa camada da população:

Meu bem, eu vou me embora

Não fique triste, mulher de malandro não chora

Eu fiz de tudo para ser bom operário

Veio a crise financeira, eu perdi o meu trabalho

Vou com o sol, volto com a luz da lua Oh! Meu bem não fique triste, dinheiro se ganha na rua

33

Carlos José Ferreira dos Santos, op. cit., p. 42. 34 George Reid Andrews apud Edson Roberto de Jesus, “Bamo sambá” em Revista Histórica (São Paulo:

Arquivo Público do Estado de São Paulo, edição nº 40 de fevereiro de 2010).

Page 26: Largo da Banana, berço do samba paulista?

Barra Funda e São Paulo do início do século XX 23

Dê um beijo nos negrinhos, vou ganhar o nosso pão

Carregar algumas malas lá na porta da estação

Engraxar sapato e bota, carregar cesto na feira Alugar uma casaca, ser garçom de gafieira

Hoje vou jogar no bicho, minha jura quebrarei Quero ver se aumento um pouco sobre aquele que eu ganhei

Oh! Meu bem não tenha medo, pois o jogo não dá nada

Para tudo dá-se um jeito, a polícia é camarada

Vou vender bala de coco, barbatana e rapadura

Oh! Meu bem só tenho medo do fiscal da prefeitura Pra arrumar algum dinheiro, garantir nossa gordura

Vou em algum velório de rico, vou chorar na sepultura.35

Outro aspecto a ser analisado é a decisiva participação das mulheres negras na

geração de renda familiar naquela época. Como os homens não possuíam empregos

fixos, cabia às mulheres o papel de arrecadar renda estável para a manutenção familiar.

Após a abolição da escravatura, criou-se uma massa de negros desempregados, que

continuavam marginalizados, e as mulheres encontravam emprego como lavadeiras,

arrumadeiras, amas-secas. Nas palavras de von Simson, “[…] os maridos vão viver de

biscate, vão viver de pequenos serviços, de carregamentos, de consertar telhados, de

raspar tacos, de consertar calha, de fazer essas coisas como um trabalho esporádico, sem

carteira assinada.”36

A partir da análise da mancha urbana de São Paulo dos anos de 1881 a 1951,

através de mapas cedidos pela Prefeitura da Cidade de São Paulo, é possível visualizar,

além do súbito crescimento da cidade, a região da Barra Funda como área periférica da

cidade de São Paulo no início do século XX. Região hoje considerada como parte das

chamadas centralidades da cidade, a Barra Funda no início do século XX, representava,

junto da Baixada do Glicério e o Bexiga, a periferia da crescente São Paulo, área que

concentrava em grande número os negros expulsos dos cortiços do centro da cidade. A

região central da cidade nessa época, compreendendo regiões como Campos Elíseos,

35 Geraldo Filme, Mulher de malandro, gravado em 1980. 36 Olga R. de Moraes von Simson, em depoimento gravado no longa-metragem Samba à paulista, parte I,

de 2007. 21’ 50’’.

Page 27: Largo da Banana, berço do samba paulista?

Largo da Banana: berço do samba paulista? 24

Santa Ifigênia, Luz, Consolação, sofreu intenso processo de modernização, visando criar

espaço de afirmação das elites, o que implicou na destruição física dos cortiços e espaços

da comunidade negra e consequente expulsão dessa parcela mais pobre da população

para a então periferia da cidade. As medidas de urbanização do centro incluíram

alargamento da Avenida São João e da Libero Badaró, ajardinamento do Vale do

Anhangabaú, e construção do conjunto de Carlos Gomes na encosta do Teatro

Municipal.

A Barra Funda representava, tanto no nível físico como operacional, a fronteira

entre centro e subúrbio. Esse limite estava evidenciado no corte da cidade pelas linhas

de trem da Estação Barra Funda da Estrada de Ferro Sorocabana e a da São Paulo

Railway, inauguradas, respectivamente, em 1875 e 1895, desenhando extensa malha de

linhas ferroviárias na região.

Com população predominante de imigrantes italianos em sua origem, o bairro

passa a concentrar, no início do século XX, muito da parcela de negros e mulatos da

capital, das mais diferentes matizes, vindos, em boa parte, de diversos pontos do interior

do estado, sobretudo das regiões cafeeiras.

É muito interessante observar a conexão estabelecida entre o choque cultural nas

relações humanas que se davam no bairro, de indivíduos portadores de cultura e

experiências absolutamente díspares, e a organização espacial e arquitetônica das

habitações do bairro. Para tal tarefa é preciso remontar ao período do final do século

XIX, quando são loteadas as terras da extensa Chácara do Carvalho. Os lotes foram

ocupados pelos recém-chegados imigrantes italianos, e a arquitetura de suas moradias,

conhecida por “ponta de chuva” (por serem marcados, no início da construção, na terra

com a ponta do guarda-chuva dos mestres de obra italianos), possui peculiares aspectos

funcionais que cabem ser analisados. As residências são em maioria geminadas,

possuem uma entrada lateral, uma fileira de cômodos, uma cozinha, um quintal e um

porão. Os porões dessas construções foram posteriormente alugadas aos negros, que

apareciam cada vez em maior número no bairro. Muitas das manifestações de batuques

e sambas se davam no porão das casas, em eventos festivos que reuniam essa camada

Page 28: Largo da Banana, berço do samba paulista?

Barra Funda e São Paulo do início do século XX 25

popular nacional da cidade, onde, de acordo com Plínio Marcos, “[...] crioulo de mais de

um metro e setenta tinha que dançar dobrado em cima da mulher, pra não bater com a

testa na viga” 37

Casa de antiga vila

operária na Barra Funda,

geminada e com porta

lateral para o porão.

Através de depoimentos de antigos moradores, sabe-se que no bairro havia

também algumas gafieiras, onde tocava-se samba, de exclusiva frequência dos negros da

região. Outro local de encontro da comunidade negra em São Paulo eram os terreiros

das mães-de-santo, onde os afro-descendentes “tinham liberdade para fazer uma música

que espelhasse sua memória ancestral, longe da repressão e do preconceito que

manifestações desse tipo sofriam em lugares públicos, sob o olhar da elite

majoritariamente branca”.38

37 Plínio Marcos, em depoimento gravado no LP Plínio Marcos em prosa e samba: nas quebradas do

mundaréu, de 1974. 38 Osvaldinho da Cuíca e André Domingues, op. cit., p.90.

Page 29: Largo da Banana, berço do samba paulista?

Largo da Banana: berço do samba paulista? 26

Essa prática do samba nesses terreiros evidencia a íntima ligação do samba com a

vida social e religiosa das denominadas “roças” de umbanda e candomblé, como na da

mãe-de-santo Tia Olympia, que recebia e incentivava sambistas regularmente na sua

“roça”, próxima à linha do trem. Mas em se tratando de núcleo para manifestação do

samba, nenhum local agregava culturalmente mais sambeiros do que o Largo da

Banana.

Page 30: Largo da Banana, berço do samba paulista?

III. NÚCLEO DO SAMBA

O Largo da Banana e suas manifestações

[...] Meu pai sempre me dizia:

“Meu filho tome cuidado,

quando eu penso no futuro,

não esqueço o meu passado”

Dança da Solidão

Paulinho da Viola

O desenvolvimento e a ocupação da Barra Funda estiveram estreitamente ligados

à construção das estradas de ferro no bairro. O Largo da Banana se localizava atrás da

antiga estação ferroviária, funcionando quase que como um apêndice desta. O Largo

possuía uma considerável área circular, onde eram dispostos cochos para os cavalos e

mulas que por ali fossem fazer parada. O cenário era tomado por extensas pilhas de

bananas e caixotes espalhados sobre o chão de terra batida. O local funcionava como

ponto de descarregamento dos produtos vindos do porto de Santos, pela ferrovia

Santos-Jundiaí, para eventualmente serem transferidos para os trens que seguiam para o

interior do estado. A atividade mais recorrente era, porém, o descarregamento e

Page 31: Largo da Banana, berço do samba paulista?

Largo da Banana: berço do samba paulista? 28

encaixotamento das cargas de banana provenientes de Cubatão. Sendo a banana

produto perecível, em ruas muito próximas ao largo existiam vários armazéns de banana

verde e alfafa, de modo que se depositava temporariamente o excedente, garantindo o

dinâmico escoamento do produto para o interior do estado.

Cortado pelas linhas de ferro, o Largo da Banana ficava em meio à densa malha de vias férreas.

Os trabalhadores do Largo (descarregadores, encaixotadores) eram em grande

maioria negros que moravam em ruas próximas da estação e, à semelhança da parcela

de negros trabalhadores da capital, não possuíam emprego estável, de carteira assinada,

recebendo como diaristas. Por não ser um emprego fixo, a competitividade era brutal e,

como lembram antigos moradores do bairro, em dadas ocasiões o local amanhecia com

cadáveres no chão.

Lá no Largo da Banana, na Barra Funda, o ordenado era pequeno, o soldo era

pequeno. Então, por cada tantos cachos de banana carregados eles ganhavam um.

Então eles colocavam ali na praça para comércio. Na hora em que folgavam um pouquinho, aí eles armavam um samba e a gente era moleque, ficava olhando os

velhos, não deixavam entrar na roda: "Sai daqui, moleque, chega pra lá". A gente

ficava apreciando "os coroa" todos cantar e a gente guardou muita coisa e deu continuidade.39

39 Geraldo Filme, em depoimento gravado no programa Ensaio da TV Cultura, em 1982.

Page 32: Largo da Banana, berço do samba paulista?

Núcleo do samba 29

Formava-se, então, uma espécie de centro comercial popular especializado na

venda de bananas, oriundas da particular remuneração concedida aos carregadores.

O local era frequentado pelos trabalhadores e pela “malandragem local”, que ia

com o único propósito de presenciar e participar das frequentes e lendárias rodas de

samba. A repressão ao samba como autêntica forma de expressão da cultura negra era

latente, pois uma sociedade dotada de ares cosmopolitas e extremamente progressista

não admitia desvios das condutas de civilidade calcadas em modelo europeu. Como bem

expressa o historiador Francisco Rocha, o sambista, em sua essência, não está inserido

na lógica de mercantilização do tempo, este representa potencial para realização de festa,

samba. Em depoimento de Geraldo Filme, nota-se o caráter marginal da manifestação:

Na época não podia fazer samba na rua em São Paulo. É fazer samba ia em cana. A

gente já saía, quem conseguia, [...] uma moeda de dois mil réis, que é dinheiro pra chuchu, rapaz, na época, no bolso que sabia que cantava samba ia preso, pra pagar a

carceragem. E tinha alguns polícia que tiravam sarro com a gente. Chegava as

meninas, também entrava na roda, sambar, aquela brincadeira. Enfim, tinha um policial lá que ele tinha uma veia musical, um negócio, então chegava: “A cadeia tá

suja, vai todo mundo lavar”, aí ele mesmo cantava: “Vem cá menino, vem cá

menina, tá tudo preso pra amanhã fazer faxina”.40

Como reduto de marginalidade, o Largo da Banana não sofria a mesma

vigilância dos agentes repressores, exclusão que, à semelhança dos barracões de

alvenaria de Pirapora, garantia a liberdade de expressão dessa camada da população nos

momentos de lazer, propiciando assim espaço para o florescimento do nascente samba

paulistano.

Como já visto no depoimento de Filme, o canto era entoado coletivamente pelos

trabalhadores do lugar, na forma de samba. Levantada a origem de tais agentes

produtores da manifestação (negros e mulatos vindos do interior do estado), sabe-se que

o samba produzido no Largo levava muito da influência do samba rural do interior de

São Paulo, adquirindo na capital, porém, muitos aspectos da vida propriamente urbana.

Os batuques eram acompanhados por palmas de mão e batuque em qualquer que fosse

o objeto disponível, latas de lixo, latinha de graxa e caixas para estocagem de banana. O

40 Idem, Ibidem.

Page 33: Largo da Banana, berço do samba paulista?

Largo da Banana: berço do samba paulista? 30

Largo representava local de confluência e síntese das formas de samba praticadas no

interior com o ambiente urbano da cidade. Assim, cultivava-se no Largo, não um gênero

específico, mas um turbilhão de influências, desde recortados de cururu a versos típicos

da catira, mas sempre com acompanhamento rítmico improvisado.

Apesar de o ritmo ser mais “picado” na capital, pelas palmas e instrumentos

improvisados de tom agudo, a lata de lixo produzia um som mais grave, muito similar

ao som do rústico tambu, e também eram as músicas cantadas numa levada mais

pesada, característica do samba rural paulista.

Inocêncio Tobias, um dos fundadores da segunda fase da Camisa Verde e

Branca, lembra do cururu (ou caruru) realizado no largo: “Esse partido alto hoje em dia,

era caruru antigamente, que o pessoal chamava no interior. Isso aí é antigo. Então nóis

fazia isso no Largo da Banana, fazia na mão, compreende?!”.41

O cururu realizado no Largo da Banana trazia muitas características peculiares

em se tratando desde a temática à sua forma:

É patente o pano de fundo rural sobre o qual se move o Cururu. Mas sua temática

não envolve a realidade do participante como trabalhador. Não se canta a terra, a

colheita, a vaquejada. Não se cantam as questões sociais. Cantam-se, principalmente, fatos bíblicos, vida de santos: algo esotérico.42

O cururu na capital subverte em muitos aspectos esse cururu praticado no

interior: seu acompanhamento foge do tradicional, não acompanhado por violas e

instrumentos predominantemente de corda, mas somente percussão; seu pano de fundo

é a urbanizada capital paulista; a temática abordada está intimamente ligada à “realidade

participante” do trabalhador, nos improvisos, como em outras manifestações de

batuques na cidade, cantava-se a saudade do interior e os aspectos cotidianos e

corriqueiros do pesado serviço. Também na dança, conservava-se o gingado do cateretê.

Uma manifestação muito peculiar da cidade que tinha especial espaço no Largo

da Banana era a tiririca, “uma derivação da capoeira em que não se pode usar as mãos

41 Inocêncio Tobias (também conhecido por Inocêncio Mulata), em depoimento gravado no longa-

metragem Samba à Paulista, parte I, 2007. 34’ 10’’. 42 Otávio Ramos e Arnaldo F. Drummond, Função do cururu (Cuiabá: Prefeitura Municipal de Cuiabá,

1978), col. Cadernos cuiabanos, vol. 8. p.2,

Page 34: Largo da Banana, berço do samba paulista?

Núcleo do samba 31

para bater e, ao invés de gingar, os oponentes dançam samba […] enquanto jogam”43.

Assim, ao som de palmas e improvisada percussão, os sambeiros se desafiavam na roda

e, sem parar de sambar, começavam um jogo de simulações, “fazendo visagem”,

tentando golpes até que alguém de fato atingia o oponente, derrubando-o no chão. A

roda cantava um refrão para acompanhar, de um samba qualquer, mas existiam alguns

refrões que apareciam exclusivamente para o jogo de tiririca, como

É tumba, moleque, tumba É tumba pra derrubar,

Tiririca, faca de ponta, Capoeira quer te pegar,

Dona Rita do tabuleiro

Quem derrubou meu companheiro? Abre a roda minha gente

Que o batuque é diferente.44

A tiririca não representava, em si, um jogo violento. Porém era nítida a posição

de não se tratar de um divertimento inocente, havia cunho um tanto agressivo, embora

os sambistas ressaltem que, ao contrário dos jogos de pernada do Rio, a brincadeira não

acabava em morte.

Existia esse negócio de valentia, de o garoto gritar alto, dar rasteira, fazer... Mas eu nunca vi um defunto. Quer dizer, nunca vi ninguém cortado, nem defunto. […]

Fica bem claro que não existia esse negócio. Existia sim, pula pra lá, pula pra cá,

sacode... Que um crioulo quando encontrava com o outro, e fazia tempo que a gente não via, então havia toda uma... […] Pula pra lá, abaixa, ameaçava rasteira,

saltava pra trás, fazia aquela graça e depois cumprimentava.45

Cuíca e Domingues argumentam que a tiririca foi essencial no desenvolvimento

de uma maneira paulista de sambar:

Algo muito interessante na tiririca era a maneira como os bambas se

movimentavam. Ao contrário da capoeira – principalmente a da linha de Angola –, em que os contendores deslizam horizontalmente, com gestos harmônicos e

postura elegante, o jogo de tiririca era meio pulado, brusco, e tinha como

característica o porte algo curvado de seus praticantes. Essa maneira de mexer o corpo foi decisiva para o desenvolvimento do jeito paulista de sambar – um jeito

43 Osvaldinho da Cuíca e André Domingues, op. cit., p. 85. 44 Geraldo Filme, em canção gravada pelo programa Ensaio da TV Cultura, em 1982. 45 Toniquinho Batuqueiro, em depoimento do filme Geraldo Filme: Crioulo cantando samba era coisa feia,

de 1998. 13’ 44’’.

Page 35: Largo da Banana, berço do samba paulista?

Largo da Banana: berço do samba paulista? 32

bastante particular que, interpretado como inabilidade pelos que cultores [sic] do

modelo carioca, acabou sumindo.46

Também a influência santista era notável no samba do Largo da Banana, por

conta da estrada ferroviária da estação, que descendo a Serra do Mar, favorecia

intercâmbio cultural entre trabalhadores do porto de Santos e os ensacadores do largo.

O samba santista, por conta do intenso movimento portuário, recebeu muita influência

cultural do Rio de Janeiro e da Bahia, representando principal porta de entrada do

samba carioca (de ascendência baiana) no estado de São Paulo.

Assim, o espaço funcionou como um melting pot, agregando e sintetizando

grande quantidade de culturas e manifestações distintas, embora o termo sugira

ingenuidade, passividade e imobilidade por parte da cultura, que é extremamente

dinâmica e está em constante conflito.

É importante destacar a particularidade de São Paulo figurar como capital que

não centralizava a cultura da camada popular de sua população; essa parcela de

indivíduos reproduzia na cidade, como foi visto, manifestações típicas do universo rural

do interior do estado, fenômeno explicado por Tinhorão da seguinte maneira:

Para as camadas populares de São Paulo […] a nova composição social nascida

dessa mistura [influência de ex-escravos vindos da área rural e chegada de levas de

trabalhadores imigrantes estrangeiros da Europa] iria se revelar culturalmente problemática. É que, levados a uma convivência obrigatória com estrangeiros e

migrados da área rural em diversos bairros […], os negros paulistanos não

contavam com um modelo de organização própria já estruturado para oferecer, o que estava destinado a gerar uma contradição: em vez de converter os recém-

chegados do interior à cultura urbana local, foram eles levados a incorporar as peculiaridades do mundo rural.47

Registra-se efervescência cultural no Largo e grande movimentação em torno de

seu samba até sua destruição física, em meados da década de 50, com a construção do

viaduto Pacaembu, que hoje, junto do Memorial da América Latina (inaugurado em

março de 1989), sepulta o antigo Largo da Banana. Geraldo Filme, em sua composição

Vou sambar n'outro lugar, lamenta o ocorrido:

46 Osvaldinho da Cuíca e André Domingues, op. cit., p. 86. 47 José Ramos Tinhorão, op. cit., p. 223.

Page 36: Largo da Banana, berço do samba paulista?

Núcleo do samba 33

Fiquei sem o terreiro da escola

Já não posso mais sambar

Sambista sem o Largo da Banana A Barra Funda vai parar

Surgiu um viaduto, é progresso

Eu não posso protestar Adeus, berço do samba

Eu vou me embora,

Vou sambar n'outro lugar.48

Densa malha ferroviária da antiga estação Barra Funda.

Atualmente, o local que já abrigou o saudoso Largo, já não guarda nenhuma

referência visual do que foi o lugar onde ocorriam as famosas rodas de samba, ou seja,

fisicamente, não restou nada do antigo Largo da Banana na atual paisagem. Assim,

aquele que porventura se aventurar a descobrir o antigo local sem qualquer outra

referência que não antigos registros, logo se verá numa tarefa impossível. Isso porque

não existem resquícios materiais que façam a ligação entre o atual cenário e a antiga

localidade. A linha de trem da atual estação Palmeiras–Barra Funda não é nem sombra

da malha ferroviária de outrora, e parte do Memorial da América Latina e o pé do

48 Geraldo Filme, “Vou sambar n’outro lugar”, gravado em 1974.

Page 37: Largo da Banana, berço do samba paulista?

Largo da Banana: berço do samba paulista? 34

viaduto jazem sobre pedaço do antigo lugar, em divisão que torna inimaginável a

disposição do Largo no atual espaço.

Também na memória dos antigos moradores do bairro, o Largo e sua localização

são deturpados pelo tempo. Em entrevistas colhidas com indivíduos que participaram

da história da Barra Funda, percebe-se a vagueza com que se aponta o local onde ficava

o Largo, e muitos desconhecem até mesmo a antiga prática de samba no local. Assim,

através de consenso de depoimentos de velhos e lúcidos (no que diz respeito à memória)

moradores, é possível estabelecer a localização do amplo Largo da Banana, que

compreendia parte do atual Memorial da América Latina (Auditório Simón Bolívar), o

pé e pedaço abaixo do Viaduto Pacaembu e pequena parte da atual linha de trem Barra

Funda.

As heranças deixadas pelo Largo não são palpáveis, se dão num nível de

formação cultural da cidade, que no entanto atropela um lugar com sua desenfreada

urbanização, sem no entanto similarmente aos antigos frequentadores, se preocupar em

perpetuar a memória do que ali foi criado, a riqueza que num passado não tão distante,

no local se manifestou.

Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória

espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notoriar atas, porque essas

operações não são naturais. É por isso a defesa, pelas minorias, de uma memória

refugiada sobre focos privilegiados e enciumadamente guardados nada mais faz do que levar à incandescência a verdade de todos os lugares de memória. Sem

vigilância comemorativa, a história depressa os varreria.49

O Largo da Banana atesta a afirmação de que um lugar de memória é dependente

da “vontade de memória”, de transferir os locais espacialmente do tempo em que

pertencem, fossilizados, caso contrário “a história depressa os varreria”, como de fato

ocorreu.

Fica nítida no bairro a Memória em sua mais pulsante forma, “aberta à dialética

da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, 49 Pierre Nora, “Entre memória e história, a problemática dos lugares” em Projeto História: Revista do

Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP (São Paulo,

nº 10, dezembro de 1993).

Page 38: Largo da Banana, berço do samba paulista?

Núcleo do samba 35

vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas

revitalizações”.50

50 Idem, Ibidem.

Page 39: Largo da Banana, berço do samba paulista?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho procurou apontar a relevância do local para a síntese do que

podemos chamar um samba propriamente paulistano, e, além disso, suas cruas

características como pertencente à uma Memória. Procurando subverter a, no mínimo

precipitada frase do célebre Vinícius de Moraes: “São Paulo é o túmulo do samba”, as

pesquisas somente conduziram à reiteração da afirmação, dando, porém nova

interpretação à ela. São Paulo é sim o túmulo do samba, mas não pelo fato de a

manifestação do batuque não se dar em território paulista, ou ser cá mal representado,

mas porque sepulta aquele samba, de raízes rurais, considerado seu fruto mais legítimo.

O local considerado consensualmente um de seus mais ricos berços, hoje amarga

esquecimento mesmo na memória dos mais antigos, não restam menores esboços do

que possa ter sido o lugar na atual paisagem. Isso porque as marcas que este deixou se

dão num nível que trespassa o material, suas heranças são quase que puramente

imateriais. O Largo é aquilo que acontecia.

Numa cidade dirigida por interesses elitistas baseados num modelo de civilização

europeu, o samba marginalizado de São Paulo foi duramente reprimido enquanto

manifestação da cultura negra, e seus espaços foram destruídos lentamente, sem deixar

quaisquer resquícios. Com o passar do tempo, por influências do samba do Rio de

Janeiro e incompetência da administração da cidade, além do descuido dos agentes

produtores do samba em melhor conservar aquilo que é seu, proteger de influências

Page 40: Largo da Banana, berço do samba paulista?

Considerações finais 37

externas de indivíduos que não estão inseridos no universo dessa produção, esse samba

foi extinto.

São Paulo é o túmulo de um samba.

Page 41: Largo da Banana, berço do samba paulista?

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