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PA EI - Federal University of Mato Grosso do Sulpapeis.ufms.br/Revista_Papeis_V1_N1.pdf · Ficha...

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Papéis - Rev. Letras UFMS Campo Grande, MS v. 1 n. 1 p. 1-56 jan./jun. 1997 REVISTA DE LETRAS UFMS UFMS PA EI
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Papéis - Rev. Letras UFMS Campo Grande, MS v. 1 n. 1 p. 1-56 jan./jun. 1997

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UNIVERSIDADE FEDERAL DEMATO GROSSO DO SUL

ReitorJorge João Chacha

Vice-ReitorAmaury de Souza

CÂMARA EDITORIALRonaldo Assunção (CCHS-UFMS)

Maria Adélia Menegazzo (CCHS-UFMS)Paulo Sérgio Nolasco dos Santos (CEUD-UFMS)

Rita Maria Baltar Van Der Laan (CEUC-UFMS)Eliane Mara Costa Roos (CEUA-UFMS)

Ana Maria Pinto Pires de Oliveira (CCHS-UFMS)

Papéis revista de letras UFMS. Vol. 1, n. 1(jan-jun. 1997)- . -- Campo Grande, MS :Ed. UFMS, 1997-

V. : il ; 27 cm.

Semestral.

1. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

Ficha Catalográfica preparada pelaCoordenadoria de Biblioteca Central-UFMS

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O desafio está lançado. A primeira edição da Revista de Letras da UFMS,PAPÉIS, marca o início de um trabalho que promete ser longo e fecundo,apesar, é claro, das dificuldades por que vem passando nossas instituições deensino superior. Mais um motivo para marcarmos nossa presença, valorizandonosso trabalho. Os cinco Cursos de Letras da UFMS, espalhados pelo Estado,em Campo Grande, e nos Centros Universitários de Dourados, Corumbá,Três Lagoas e Aquidauana, já faziam por merecer a edição de sua própriarevista. Esse merecimento se concretiza agora, com a publicação desteprimeiro número de PAPÉIS.

Os objetivos que nortearam o surgimento desta revista podem ser traduzidos emdois pontos cruciais: a) ser o elo de articulação, de união, entre os pesquisadoresdos diversos Cursos de Letras da UFMS, propiciando-lhes o intercâmbio deconhecimentos; b) ser um meio de difusão dos trabalhos de especialistas,pertencentes ou não à UFMS, envolvidos nos estudos das letras, voltados para otexto literário, para a lingüística, para as questões culturais, ou outras, na área.PAPÉIS quer ser um espaço de troca de saberes e, com isso, estar em sintoniacom estudiosos de todo o país.

Colocando já em prática esses objetivos, a primeira edição de PAPÉIS traz aosleitores os trabalhos de estudiosos da UFMS e de outras instituições, discutindotemáticas variadas, que vão da estética, do modernismo, da subjetividade, dacidade, à língua, à fotografia e à interpretação.

Por fim, um agradecimento e dois desejos. Agradecemos a todos aqueles que,de forma direta ou indireta, colaboraram para a concretização deste trabalhoque ora inicia sua trajetória. O desejo de que mais textos surjam, comoresultado final de trabalhos originais de estudiosos das letras; e o desejo de quea Editora da UFMS estabeleça, de uma vez por todas, este mecanismo depublicação dos estudos acadêmicos na área, permitindo, assim, um meio fecundode intercâmbio do saber entre os pesquisadores e a comunidade.

Ronaldo Assunção

APRESENTAÇÃO

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Projeto Gráfico e Editoração EletrônicaEditora UFMS

Versão dos resumos para o inglêsDaniel Derrel Santee

RevisãoA revisão lingüística e ortográfica é de responsabilidade dos autores

Impressão e AcabamentoDivisão de Produção Gráfica - ACS/UFMS

DistribuiçãoLivraria UFMS

Publicação da

Rua 9 de Julho, 1922CEP 79.081-050 - Campo Grande-MS

Fone: (067) 787-1335 - Fax: (067) 787-7642e-mail:[email protected]

Ilustração de Capa: Titivillus Angélico de Letras - Obra de Genésio Fernandes - Acrílico e colagem sobre papelArtista plástico e mestre em Teoria da Literatura, Genésio inspirou-se numa passagem do romance A Rainha dos Cárceres da Grécia,

de Osman Lins, para criar a obra que se tornou cartaz da VII Semana de Letras-96 e capa desta Revista.A passagem é a seguinte: "Titivillus, alcunha familiar entre os monges da Alta Idade Média, era o demônio da transcrição infiel: ocioso,

instalava-se nas inscriptoria, induzindo a erro os copistas". A partir dessa referência, o artista criou um texto pictórico dialógico.

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SUMÁRIO

DIALOGIA ENTRE ARTE E VIDA:A ESTÉTICA DA RESPONDIBILIDADE DE MIKHAIL BAKHTINIrene A. Machado

MODERNISMO:GERME OU SENTIMENTO EM IRRADIAÇÃOPaulo Sérgio Nolasco dos Santos

A SUBJETIVIDADE POSTA EM QUESTÃO PORNARRADORES E PERSONAGENSMaria Adélia Menegazzo

UM PARAÍSO IMAGINÁRIO OU A BICHARADA NO CIMENTOJ. Genésio Fernandes

CIDADE REAL, CIDADE FICCIONALIZADA:WALTER BENJAMIN PASSEIA PELO CENÁRIO MOSCOVITARonaldo Assunção

AMBIGÜIDADE, POÉTICA E INTERTEXTO:A FOTOGRAFIA DE SEBASTIÃO SALGADOMarcelo Marinho

UMA LEITURA DE UMBERTO ECOMaria Emília Borges Daniel

DESIGNATIVOS DO VOCÁBULO ‘‘DIABO’’ EM ‘‘GRANDE SERTÃO: VEREDAS’’:UM ESTUDO SÓCIO-ETNOLINGÜÍSTICOAna Maria P. Pires de Oliveira

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O dogma da verossimilhança ainda é um critério vigoro-so para a definição da estética como mimesis. Ao situar oobjeto estético no contexto das experiências vivas estimu-ladas pela interação social, Bakhtin desenvolve um outrocampo conceitual para refletir sobre a criação verbal. Emsua estética da respondibilidade a obra de arte não sedesvincula da vida e do contexto cultural tampouco comeles se confunde. Arte não é vida, mas signo. Em tornodessas idéias se desenvolveu o assunto desse artigo.

Palavras-chave:Dialogismo, estética da respondibilidade,

criação verbal

The dogma of verisimilitude is yet a strict criterionfor the definition of aesthetic as mimesis. By situatingthe aesthetic object in the context of live experiencestimulated by the social interaction, Bakhtin developsanother conceptual field to reflect about the verbalcreation. In this aesthetics of responsibility the work ofart does not separate itself from life or from the cultu-ral context, nor do they mingle. Art is not life, but asign. Around these ideas the development of this essaywas built.

Key-words:Dialogicity, aesthetics of responsibility,

verbal creativity

* Este texto é umacondensação daprimeira parte dominicurso sobre aestética da criação verbalde M. Bakhtin, ocorridodurante a Semana deLetras da UFMS, CampoGrande, de 14 a 18 deoutubro de 1996.** Irene A. Machado éprofessora de TeoriaLiterária na EscolaTécnica Federal deSão Paulo. Doutora emTeoria Literáriapela USP.

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DIALOGIA ENTREARTE E VIDA

A ESTÉTICA DA RESPONDIBILIDADEDE MIKHAIL BAKHTIN*

Irene A. Machado**

O que é o estético?Há mais de dois mil anos filósofos e interessados

no estudo da arte e da criação em geral se fazem essapergunta e ainda estamos longe de chegar a uma res-posta definitiva. Certo de sua incapacidade de respon-der a essa questão de modo afirmativo, Sócrates arris-cou uma resposta negativa: estética não é retórica.A dúvida socrática, contudo, não foi suficiente paraimpedir sistematizações como, por exemplo, oparadigma aristotélico que situa o estético no campoda mimesis. No diálogo Hipias maior, “Socrates seinterroga sobre o que é o belo e chega à conclu-são de que definir o princípio estético é uma tarefaenormemente complexa. Aristóteles parece contestá-lo nas primeiras linhas da Poética com a tese deque o que define todo fenômeno estético é a imita-ção. Desde então muitos acreditam ter resolvidoessa questão. Nem Kant nem Bakhtin estão entreeles”1.

Onde então se situam as formulações que Bakhtinapresenta para as manifestações estéticas? Se as idéiasde Bakhtin não são aritotélicas em que sentido elassão kantianas? Arrisquemos um percurso teórico rumoa respostas mais esclarecedoras.

O conceito de estética Sabemos que a palavra estética deriva do grego

aisthesis cujo significado gravita em torno de sensa-ção, sentido, sentir; quer dizer, diz respeito às mani-festações da sensibilidade humana que dependem deimpulsos internos e externos. “A raiz grega aisth, noverbo aisthanomai quer dizer sentir, não com o co-ração ou com os sentimentos, mas com os sentidos,redes de percepções físicas”2.

Foi Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762)quem entendeu estética como disciplina filosófica, ciên-cia do belo ou filosofia da arte. Mas seu principal obje-tivo era entender a essência do belo, tal como seusantepassados gregos, Platão, Aristóteles, Plotino, queconservaram a tendência antiga de identificar o belocom o bom na unidade do real perfeito, subordinando ovalor da beleza a valores extra-estéticos e, em espe-cial, a entidades metafísicas.

Devemos a Kant (Immanuel 1724-1804) a introdu-ção do estudo da estética à luz da crítica do juízo3.Estética é juízo, e juízo de valor. Para Kant, pensa-mento é síntese de duas formas de conhecimento: asensibilidade e a compreensão. A primeira diz respeitoao mundo das sensações fora da mente e a segunda,

1 Luis B. Almería, 1994: 57, nota 2.2 Barilli 1989: 2, cit. por Lúcia Santaella 1994: 11.3 Estamos apresentando apenas pontos sumários de uma problemática complexa estudada com muito cuidado pelos autores cujas obras

citamos em nossa bibliografia.

Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 6-13, jan./jun., 1997.

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ao núcleo conceitual da mente. O conceito (compre-ensão) existe na mente, mas ele pode ser usado ativa-mente para organizar as sensações fora da mente. Ahabilidade de pensar é habilidade de fazer julgamentose requer ambas as formas de conhecimento. O belo,por sua vez, não é reconhecido objetivamente comoum “valor absoluto”, uma vez que ele se relaciona sócom o sujeito. Considerado o ponto de vista do sujeito,é possível chegar aos termos de uma conceituação,ainda que de modo precário. Se o estético resulta deum juízo produzido por uma vivência, estética podeser definida como uma forma de dar corpo a experiên-cias vivas. Somos assim introduzidos no contexto dasformulações bakhtinianas.

vista do sujeito e o juízo estético como produto da expe-riência. A estética de Bakhtin é a estética da respon-dibilidade fundada no diálogo: estética é um ato onde osentido tem caráter de resposta. A estética darespondibilidade formulada por Bakhtin considera, an-tes de mais nada, o ato da construção das relações en-tre seres, ordenando as categorias eu/outro. Dessa no-ção, podemos esboçar algumas implicações específicas.

1. A estética insere-se na ação humana. Ser hu-mano é significar; significar é articular valores.

2. A estética da respondibilidade fundada no diálo-go mergulha na ação viva do fato respondível e res-ponsável, atual e concreto. É o mundo das açõesinterconectadas num conjunto indissolúvel.

3. Se a estética é uma forma de dar corpo a expe-riências vivas, “a experiência estética é um tipo es-pecial de experiência fundada num dos momentosque precisam de vida própria e exigem um sujeitocontemplativo, isto é, que se situa fora dos limitesda vida ativa”5.

4. A experiência estética cria uma visão de acaba-mento (daí ser corpo da experiência viva), não do inte-rior, mas de um ponto de vista exterior.

5. O corpo estético ocupa um lugar na existência,ainda que o corpo não seja o lugar da existência. Ocorpo é o centro das ações.

6. O objeto estético surge a partir de um ponto devista extraposto, fora dos limites da ação específica.Graças à extraposição o acabamento torna-se possí-vel.

7. A extraposição se constrói pela lei geral da per-cepção: tudo que é percebido só pode ser percebidode um único ponto, dentro de uma estrutura que agre-ga muitos pontos de visão.

8. O ato perceptivo define-se como uma ação au-toral: em que um eu é levado a perceber a si própriona categoria do outro.

9. A possibilidade de perceber o outro faz da esté-tica uma atividade de resposta.

10. O objeto estético entendido como resposta ématerial sensível revestido de sentido social, que deveser entendido pela dinâmica das relações autoria/re-cepção; pelo conteúdo temático (fragmento da vida) euma forma artística.

Como se vê, estamos muito longe de adentrarmosnuma discussão estética situada numa zona difusa doespírito. Cada vez mais, o topos de nossa questões seavizinha da consciência, lugar das tensas relações dohomem com o mundo. Relações essas centralizadas porum núcleo que em Bakhtin é muito claro e preciso: asrelações de sentido. A “unidade interior de sentido”é condição da criação de uma imagem de totalidade departes em correlação. Essa é a noção que abre o estudo

4 M.M. Bakhtin, 1992: 414.5 Luis B. Almería, 1994: 59.

A estética darespondibilidade

Diríamos que as formulações de Bakhtin sobre aestética se inserem na concepção geral de “ciência dapercepção”, ou seja, como conhecimento através dossentidos. Entenda-se: sentidos, como rede de percep-ções físicas ou sistema de idéias; percepção, comorefração na ótica de uma unidade que agrega muitospontos de vista. Com isso, a estética em Bakhtin nãose desvincula do sujeito. Se a percepção é uma açãode um indivíduo em sua relação com os outros, a esté-tica só pode ser percepção entre outros. Na lei da per-cepção humana, examina-se como um eu é levado aperceber a si próprio na categoria do outro. Contudo,não queremos dizer que as formulações estéticas deBakhtin sejam orientadas totalmente pela doutrina deKant. Há distinções significativas que precisam ser con-sideradas. Os valores a que se refere Bakhtin na suaestética geral filosófica não dizem respeito ao belo, aofeio, ao expressivo, ao verdadeiro e todos os demaisvalores que se consagraram como valores estéticos.Valor é sentido e, como tal, é construído; não é absolu-to, não é dado, não é definitivo. A advertência contra orisco de tal formulação foi dada pelo próprio Bakhtinno final de seu livro sobre a estética da criação verbal,cujo ensaio é uma reflexão sobre a metodologia emciências humanas: “não há nada morto de maneiraabsoluta. Todo sentido festejará um dia seurenascimento”4. Os valores dependem das relaçõesentre os indivíduos no interior da cultura humana. Comisso, o objeto estético não está desvinculado das ou-tras formas fundamentais da vida humana: o conheci-mento e a ética. Ciência, ética e estética sãoinseparáveis.

Para Bakhtin, a estética é juízo de valor inserido noconjunto da cultura humana. Foi pensada do ponto de

Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 6-13, jan./jun., 1997.

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Arte e respondibilidade6. Por quea compreensão do que propicia aimagem da totalidade é tão impor-tante? Porque o artista é um homemque está na vida, mas o objeto cria-do não é a vida, como geralmentedefendem muitas teorias. Bakhtinentende que, “quando o homem seencontra na arte, ele não está navida e vice-versa”. Com isso eleentende que a relação entre arte evida é uma relação responsiva: “eudevo responder com minha vidapor aquilo que vivi e compreendina arte, para que tudo o que foi vivido e compreen-dido não permaneça sem ação na vida”7. O artistanão cria a vida, ele cria arte, cria signos, que devem ter,para o outro, significação. Não estamos no campo damimesis nem da retórica aristotélica que não conside-rou a relação autor-receptor nem, conseqüentemente, adimensão subjetiva do gênero como visão de acabamentodo objeto estético.

Ao se distanciar da metafísica, a estética de Bakhtinaproxima-se da semiótica que considera o objeto esté-tico como veículo de comunicação. Mas trata-se deuma estética semiótica em que a concepção de signonão se desgarra da teoria dos valores. Signo é aquiloque significa.

· Estética da criação verbal(Autor e personagem na atividade esté-

tica, 1920-24; O autor e o herói; O proble-ma dos gêneros discursivos; O problema dotexto na lingüística, filologia e outras ciênciashumanas: ensaio de análise filosófica e Res-posta à pergunta feita pela revista Nov Mir)· Discurso na vida e discurso napoesia, assinado por ValentinVolochinov

Nesses textos, existe uma preo-cupação teórica com o exame dosprocedimentos estéticos, dos fenô-menos e correlações que comandamo ato da criação através da pala-

vra. Conceber o processo criativo como um ato signi-fica, antes de mais nada, situá-lo na dinâmica dainteratividade de sujeitos e consciências e não nos li-mites da individualidade. A questão estética é igual-mente uma questão ética: não se trata assim de encer-rar os procedimentos estéticos no campo dos princípi-os construtivos mas, sobretudo, entendê-los como jul-gamento de valor. Tudo depende da posição que o ar-tista criador exprime com relação ao mundo. E, comoafirma Bakhtin num de seus escritos, o lugar que oindivíduo e o artista ocupam no mundo é único, masele nunca está sozinho. Nesse sentido, já podemos per-ceber a importância das relações interativas no ato dacriação que produz o objeto estético.

Diríamos, assim, que o conceito-chave formulado porBakhtin para a compreensão de todos os tipos de rela-ções na obra de arte e no processo criativo é o conceitode extraposição. Para Bakhtin, somente na arte a vidapode ser representada, isto é, ser uma forma estetica-mente significante segundo o valor que anima o contex-to das relações sociais. O artista está na vida e não foradela. Nada é criado fora da vida. Paradoxalmente, suacriação não é vida, é um signo. Para criar o signo, oartista constrói um ponto de vista que se projeta comum certo distanciamento. O artista olha para a vida comose estivesse fora dela. Constrói, assim, um ponto de vis-ta extraposto. O que está fora, repetimos, é o ponto devista, não o sujeito-criador. Este está no mundo, ocupaseu lugar e dele tem acesso a um campo de visão aoqual ninguém mais tem acesso. A partir desse ponto,elabora o acabamento que fornece a obra de arte comoum todo fechado. A noção de extraposição é funda-mental para entender o conceito de posicionamento, desentido, de dialogia cultural, de texto, de gênero, deenunciação, de signo e, principalmente, a noção de au-toria, um dos temas complexos da estética que mereceuma focalização isolada. Em torno desse conceito,Bakhtin desenvolveu os principais tópicos de sua estéti-ca da criação verbal, como:

6 M.M. Bakhtin, “ Arte y responsabilidad”, 1989: 11-12.7 M. M. Bakhtin, “Arte y responsabilidad”, 1989: 11.

Textos e tópicos daestética da criação verbalBakhtin insere seus estudos referentes aos proble-

mas da criação através da palavra na disciplina queele denomina Estética Geral Filosófica, cujo objetivo éfocalizar o objeto estético na unidade da cultura huma-na, em sua relação com o ético e o cognitivo. ParaBakhtin, no domínio da cultura humana, o conhecimento,a ética e a arte são regiões fronteiriças; nãocorresponde, portanto, a um terreno fechado em suaspossibilidades. Nele, tudo vive sobre fronteiras. Umavez que a forma estética orienta-se sobre um valoralém do material, é impossível definir o objeto estéticofora da cultura humana.

Dentre os estudos de Bakhtin, aqueles que procura-ram dar um tratamento teórico aos problemas funda-mentais da estética geral filosófica foram os trabalhosescritos, com raras exceções, nos anos 20. São eles:· Arte e respondibilidade· Acerca da filosofia do ato· Problemas do conteúdo, do material e da forma nacriação literária

Ao se distanciarda metafísica,

a estética de Bakhtinaproxima-se dasemiótica que

considera o objetoestético como veículo

de comunicação.

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* objeto estético como resultado de uma visãoextraposta* relação entre ética e estética na unidade da culturahumana* relação ética entre autor e personagem como deter-minação estética* o ser expressivo e falante como objeto das ciênciashumanas e o conceito de texto* a noção de ato cultural dialógico como texto* o texto como enunciação: fronteiras lingüísticas, an-tropológicas, filosóficas e literárias* a noção de gênero como memória criadora e, conse-qüentemente, como categoria estética da cultura literária* revisão das formas da linguagem através dos gêne-ros e das atuações discursivas do cotidiano* o enunciado-enunciação como objeto dametalingüística* metalingüística e o caráter extralingüístico da pala-vra-discurso* o signo ideológico e os processos de representação esignificação responsiva* a expressão como matéria plena de sentido ou comosentido materializado

criação. Signo é, portanto, transformação da quantida-de em qualidade. É essa passagem que nos permite ver,por exemplo, a representação e o objeto representado,a voz e a escritura, enfim, os homens e as idéias.

Evidentemente, se estamos definindo o signo deacordo com as leis do processo dialético ¾ ainda quede forma simplificada, mas de uma simplificação ne-cessária ¾ é porque nos interessa valorizar o processode luta que, a um só tempo, reflete e refrata a experi-ência. É esse o caráter sígnico que define, para nós, anatureza da literatura que vamos examinar no conto,O retrato oval de Edgar Allan Poe, com o objetivo delevantar os problemas conceituais que estão implica-dos no estudo da natureza da literatura enquanto fenô-meno estético.

Para melhor compreender a dinâmica da repre-sentação enquanto signo, tal como foi elaborada porPoe, vamos destacar alguns momentos do conto. Ini-cialmente trata-se de uma narrativa em que um indi-víduo ferido e seu criado procuram um abrigo. Essaseria a situação que acreditamos ser o suporte darepresentação. Mas, assim que o homem ferido seacomoda, delirando em febre, a profunda meia-noitesurge e, por acaso, ao virar o candelabro, sua visãodescobre o quadro e, em seguida, um livro com a nar-rativa da maravilha que se lhe ofereceu ao olhar. Apartir daí a situação inicial é interrompida e somosconduzidos pela leitura do personagem: a história dopintor e de sua genial transformação da beleza físicada mulher em sua obra-prima. A narrativa que o per-sonagem ferido lê é a transformação da mulher, es-posa dedicada, amorosa, em signo visual, o quadroque o ferido encontra, mas que nos é dada pela lite-ratura, nossa leitura da leitura.

Essa é a passagem que define o conto enquantoobjeto estético, ou seja, enquanto signo. Os formalistasrussos identificavam o arranjo estético a partir da or-ganização da trama de motivos de uma determinadafábula fornecida pela experiência. A trama seria oconjunto a que chamamos signo. Estamos diante deum processo complexo de representação que vai aoencontro da própria natureza desconcertante da litera-tura como sistema simbólico. A narrativa inicial não sefecha e foi anulada pela história do quadro. Nos limi-tes do conto literário ocorrem transformações em ca-deia, visto que uma situação gera uma outra e, no final,ficamos diante de um quadro, não visual, mas de or-dem estética, cultural, filosófica, dadas as questões quese abrem a partir da narrativa: as leis do processocriativo, os limites da vida e da arte, a morte comocondição da vida, a situação e o jogo, os limites darepresentação, enfim, o mundo como fruto de uma lei-tura. Afinal, quem escreveu a história que lemos atra-vés dos olhos do ferido? Essa é uma questão grandio-sa que nos obriga a voltar sempre a esse conto quandose trata de compreender a literatura como sistema designos. O que lemos, é a leitura do personagem, ou

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O objeto estético esuas fronteiras

A transformação da experiência em signoAnálise do conto

O retrato Oval, de Edgar Allan PoeNo conto O retrato oval de E.A. Poe, estão re-

presentados pontos cruciais da problemática relaçãoarte/vida. Nele o objeto estético, criado a partir da vida,mostra não ser vida. Exatamente por desconhecer osmecanismos do efeito de real na totalidade da ima-gem, confunde arte com vida. Além disso, o espaço decriação, tomado como um espaço alheio à turbulênciada vida mostra o quanto a inspiração é irresponsável.Para a compreensão das dimensões do objeto estéti-co, segundo as formulações de Bakhtin, devemos com-preender, na leitura do conto, o seguinte:* o efeito de real como decorrente da visão de totali-dade própria da arte, não da vida* a criação não é vida, mas arte* como arte, a criação é signo que produz sentidos quese oferecem à leitura* compreensão da literatura como um sistema de sig-nos graças às relações dinâmicas que comandam oprocesso criativo quando da passagem de uma dimen-são a outra, ou seja, quando a experiência se transfor-ma em atividade estética.

No âmbito dessa abordagem, estamos considerandosigno como um processo de representação em que osdados da experiência se transformam dialeticamente em

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melhor, de uma mente febril. Essa é uma outra ques-tão que diz respeito ao nosso assunto.

Imaginário e leitura são instâncias igualmente in-quietantes da natureza da literatura. A literatura, comotodo signo, é algo que significa, que se oferece à leitu-ra, à compreensão. Se, por um lado, essa é uma ques-tão desconcertante, por outro, essa é uma poten-cialidade da literatura, da criação, da cultura humanaque difere dos fenômenos naturais. Aprendemos comM. Bakhtin, que “quando estudamos o homem, bus-camos e encontramos signos, signos em toda partee tratamos de compreender sua significação”8. Oimaginário não está fora desse processo, pelo contrá-rio, desde La Fontaine o imaginário é espaço de cria-ção. Evidentemente, tais questões são problemas com-plexos que vamos apenas deixar esboçados, visto queé necessário considerar o processo histórico que acre-ditamos determinar no processo de significação do signoe, conseqüentemente, da literatura.

capaz de esclarecer com precisão a duplicidadeparadoxal do signo como algo que é, a um só tem-po, ele mesmo e um outro”10. O signo é sempre umaresposta: “entender é uma resposta para um signocom signos”, diz Volochinov11.

Para compreender a problemática da definiçãodo signo, Lúcia Santaella recorre ao mito de Narcisoque ela considera paradigmático, visto que nele não háa duplicação, a vida se confunde com a imagem numúnico fenômeno, a vida só existe na representação sedeixar de existir na própria vida: na história do mitonão há dialética, não há passagem de uma dimensão aoutra. Não houve possibilidade de resposta, de interaçãoentre as diferenças. “Narciso se esquece de si por-que confunde sua imagem, um signo do eu, com opróprio eu. Aliena-se no signo, toma a imagem porrealidade e desvanece como objeto, isto é, comorealidade que, fora da imagem, determina a ima-gem. Perde-se de si por não perceber a fenda, abrecha da diferença entre o próprio eu, este queavança no fluxo da vida, e a imagem (representa-ção) do eu”, entende Lúcia Santaella12.

O mito de Narciso é o mito do não-signo; mas, aomesmo tempo, aponta para uma definição imagéticado processo de luta para a constituição do signo. Semo concurso de grandezas distintas, não existe a mínimapossibilidade de se constituir o signo ou, como afirmaVolochinov: “Os signos emergem, assim, somente noprocesso da interação entre a consciência indivi-dual e outra. E a própria consciência individual écarregada de signos. A consciência torna-se cons-ciência somente quando ela é preenchida com con-teúdo ideológico (semiótico), conseqüentemente,somente no processo da interação social”13. Talprocesso possui um caráter responsivo, fundamentalpara o surgimento da obra de arte e para a definiçãodo objeto estético.

O grande desafio, porém, está no fato de o homemser signo. Está no corpo do homem um dos signos maiscaros a todo processo criativo que é a palavra. A pre-sença da palavra é a força maior na definição do homossemioticus: “não há nada no animal que se asse-melhe à maquinaria combinatória dos fonemas querege a complexidade de organização das línguashumanas, nem há, em qualquer animal, a capaci-dade projetiva e simuladora do cérebro apta paraestabelecer novas combinações e associações cri-adoras que, aliadas à sutilezas da mão e do corpo,permitem ao homem produzir linguagem para fora

A dialéticada representaçãono signo dialógico

Se o homem está na vida ele não está na arte.Eis nossa primeira lição de estética segundo a aborda-gem de Bakhtin. São muitas as implicações teóricas epráticas que tal conceito nos apresenta. O objeto esté-tico é, para Bakhtin, um processo de representaçãopor isso a noção de imagem atravessa toda sua formu-lação. Arte é representação cujo objeto é uma ima-gem. Não se pode avançar nesse terreno sem antescompreender o conceito de signo dialógico formuladopor V.N. Volochinov nos anos vinte, quando Bakhtintrabalhava teoricamente os problemas de estética ge-ral filosófica.

A representação é, para Volochinov, um processode significação. Signo é definido assim, como algo queestá no lugar de alguma coisa: entender o signo e, igual-mente, o processo de representação como coisa é en-tender o signo como materialidade. Diz Volochinov: “Umsigno não simplesmente existe como parte da reali-dade ¾ ele reflete e refrata uma outra realidade”9.Ou seja, o signo tem uma dimensão semiótica. Orien-tada pelos estudos dos teóricos russos, a professora esemioticista Lúcia Santaella entende que Volochinov“forneceu-nos do signo uma definição imagética

8 M.M. Bakhtin, 1992: 341.9 V. N. Volochinov, Marxismo e Filosofia da Linguagem, 1979:17.10 Lúcia Santaella, “O signo à luz do espelho (uma releitura do mito de Narciso)”, 1996: 60-68.11 idem, ibidem, p. 11.12 Lúcia Santaella, 1996, cit. pp. 67-8.13 V.N. Volochinov, cit., p. 20.

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do corpo e do cérebro, isto é, povoar o mundo designos”14. Por isso, Volochinov define a palavra como“signo neutro”, com isso, quer dizer o seguinte: “cadaespécie de material semiótico se destina a um de-terminado campo da criatividade ideológica. Cadacampo possui seu próprio material ideológico e for-mula signos e símbolos específicos para si próprioe inaplicáveis a outros campos. Nesses casos, o sig-no é criado para atender a uma função ideológicaprecisa da qual permanece inseparável. A pala-vra, contrariamente, é neutra em relação a qual-quer função ideológica específica”15. No signo lite-rário se processa a dialética da representação que odefine como objeto estético, ou seja, a dialogia entrearte e vida. O homem é signo, mas o signo literário nãoé o homem, mas sim a sua linguagem, ou melhor, aimagem de sua linguagem (a obraz iaziká, como po-demos ler nos escritos de Bakhtin).

mente nova. Isso fica claro porque na arte nós sabemostudo, nós lembramos de tudo, ao passo que no conheci-mento não sabemos nada. Por isso na arte o elementode novidade, originalidade, de imprevisto, de liberdadeassume papel decisivo. O ato e o conhecimento são pri-mordiais, criam o objeto pela primeira vez. O ato é vivoapenas pelo que ainda não existe: aqui tudo é novo des-de o início, portanto, não há novidade, tudo é ex-originepor isso mesmo sem originalidade16. Por que o pintor,protagonista do conto de Edgar Allan Poe, fica horrori-zado quando termina sua composição? Porque, emboraele afirme ter criado a própria vida, o que ele tem diantede si não é a vida. O estranhamento fica por conta dasemelhança aparente da vida.

Para Bakhtin, o conteúdo é a dimensão do conheci-mento e da ética da ação humana indispensável à cons-tituição do objeto estético que ao artista compete criare à análise estética revelar. Diz Bakhtin, “em primeirolugar a análise estética deve revelar a composiçãodo conteúdo, imanente ao objeto estético, em nadasaindo dos limites desse objeto, tal qual ele se rea-liza pela criação e pela composição”17. É essa ca-pacidade de revelação que nos parece ser o motor cri-ador do objeto estético. O que se entende por revela-ção? Entendemos que a revelação do objeto estéticonasce da análise de seus processos construtivos, porisso Bakhtin centralizou sua discussão em torno dasquestões do gênero.

14 Lúcia Santaella, 1996, cit. p. 165.15 V.N. Volochinov, cit. p. 22.16 M. Bakhtin, 1988, “O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária”, pp. 33-4.17 M. Bakhtin, 1988, cit. p. 40.

A atividade estética:o ato estético

e o ato cognitivoA singularidade da atividade estética reside na sua

condição de signo: embora considere o mundo da ex-periência e faça dele a realidade pré-existente ao pro-cesso criativo, o objeto estético não se confunde comele. A criação é um ato, mas o ato da atividade estéti-ca não se confunde com o ato da atividade cognitiva.Entender a diferença entre ato cognitivo e ato estéticofoi uma das tarefas de Bakhtin em sua estética geral efilosófica. No estudo “O problema do conteúdo, daforma e do material na atividade estética”, Bakhtinsitua o campo das diferenças entre estética e conheci-mento onde buscamos orientação para compreender adialética da representação no signo.

A relação entre a atividade estética e o mundo darealidade material é dinâmica, responsiva; ao passo queo ato de conhecimento relaciona-se de modo puramen-te negativo com a realidade pré-existente. Quer dizer, oato cognitivo cria seu objeto pela primeira vez. A ativi-dade estética é um fenômeno cultural e, enquanto tal,vive num sistematismo concreto: cada fenômeno cultu-ral é concreto e sistemático na medida em que ocupauma posição substancial qualquer em relação à realida-de pré-existente de outras atitudes culturais e por issomesmo participa da unidade da cultura prescrita. A es-tética se diferencia do conhecimento e do ato porqueacolhe a realidade pré-existente ao conhecimento e aoato. A atividade estética não cria uma realidade inteira-

A noção de gênero e aobra estética na unidade

dialógica da culturaO processo de significação que situamos na natu-

reza do signo literário nos leva à definição da literatu-ra, e o objeto estético que ela pressupõe, em sua fun-ção histórica: a compreensão, bem como a significa-ção, não acontece fora do espaço-tempo da cultura.A significação adquire um caráter cronotópico. Comisso queremos dizer o seguinte: a literatura é fenô-meno complexo e multifacético elaborado pelas épo-cas remotas e vive um grande tempo, que extrapolaos limites da contemporaneidade. Aprendemos comM. Bakhtin que a literatura é parte inalienável dacultura humana e não pode ser compreendida fora docontexto de toda a cultura de uma época dada. Eaqui não podemos deixar de citar Flaubert: “uma obrasó tem importância em virtude de sua eternidade,isto é, quanto mais ela representar a humanidadede todos os tempos, mas ela será bela”. “...eu es-

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18 Gustave Flaubert, 1975: 223; 239.19 Antônio Candido, 1975: 30.

crevo não para o leitor de hoje, mas para todosos leitores que poderão vir, enquanto a língua vi-ver. Minha mercadoria portanto não pode serconsumida agora, pois não é feita exclusivamen-te para meus contemporâneos. Meu serviço ficaportanto indefinido e, em conseqüência, sem pa-gamento”18. A condição estética revela-se grandio-sa quanto maior for sua capacidade de ser traduzidapelas épocas históricas, no grande tempo da cultura,como afirma Bakhtin.

Situar o processo de significação dentro do grandetempo significa para nós definir a função histórica daliteratura. Segundo o crítico A. Candido “...o pontode vista histórico é um dos modos legítimos de seestudar literatura, pressupondo que as obras searticulam no tempo, de modo a se poder discerniruma certa determinação na maneira por que sãoproduzidas e incorporadas no patrimônio de umacivilização”19 (A. Candido, 1975: 30). Antônio Candidocoloca o tema como o elo de retomada pelas geraçõessucessivas através do tempo. No sentido de situar afunção histórica da literatura, tal como o formulou M.Bakhtin, é preciso considerar a noção de gênero. ParaBakhtin, o gênero é o elo de vinculação entre as obras,visto que, para ele, os gêneros, literários e discursivos,durante os séculos de sua existência, acumulam for-mas de visão e compreensão de determinados aspec-tos do mundo. A função histórica da literatura podeser compreendida a partir dos gêneros e das visões demundo ou temas que neles [nos gêneros] estão impli-cados na evolução cultural.

E aqui voltamos ao conto de Poe. Como entender oconceito de função histórica a partir desse conto?

Em primeiro lugar pelo fato de Poe recuperar te-mas e formas que são consideradas verdadeiros patri-

mônios de nossa cultura. Ao situar a dialética da re-presentação no confronto vida e morte, arte e vida,vida e eternidade, O retrato oval integra-se a umsistema de obras onde se inclui a questão da represen-tação no confronto de Poe, em sua função históricatanto da perspectiva do gênero como da perspectivado tema, visto que dentro do gêneros estão formas devisão de mundo, sistemas de idéias e valores que nãopodem ser desconsiderados quando se trata de preci-sar a natureza da obra literária. Vejamos. Acaso atemática da dialética da representação da vida pelaarte não estava presente na lenda que mobilizou a ca-pacidade criativa de Goethe, T. Mann e outros? Tam-bém não é esse o tema de Oscar Wilde no romance Oretrato de Dorian Gray que, por sua vez, nos leva aomito de Narciso? Também não é como fábula que opersonagem lê e oferece à nossa leitura a história doquadro ovalado?

Na verdade, os temas são sistemas de idéias queos gêneros acumulam ao longo das épocas históricascolocando as culturas num confronto dialógico. A fun-ção histórica assim compreendida é animada pela di-mensão paródica, quer dizer, as diferentes culturas nãose fundem, nem se mescalm, mas ambas se enrique-cem mutuamente.

Entendemos assim que a função histórica da litera-tura é um impulso dialético do processo de evolução,entendido como luta (I. Tinianov). O processo de com-binação e mistura dos gêneros é fundamental para seconhecer a natureza da literatura e o diálogo culturaldeterminado pela função histórica que se desenrola aolongo de sua existência. Esse é o procedimento atra-vés do qual a obra estética é considerada na unidadedialógica da cultura onde ética e estética jamais seseparam.

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Bibliografia selecionadaALMERÍA, Luis B. “Ideología y estética en el pensamiento de Bajtín”. CASTILLO, José R. e outros.Bajtín y la literatura. Actas del IV Seminário Internacional del Instituto de Semiótica Literaria y Teatral. Madrid, Visor, 1994, pp. 53-66.BAKHTIN, M.M. Estética da criação verbal. São Paulo, Martins Fontes, 1992._______. “Arte e responsabilidad”. Estética de la creación verbal. México, Siglo Veintiuno._______. “O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária”. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo, HUCITEC-UNESP,1988, pp. 13-70._______. Toward a Philosophy of the Act (trad. Vadim Liapunov). Austin, University of Texas Press, 1993.BERNARD-DONALS, M. F. Mikhail Bakhtin between Phenomenology and Marxism. Cambridge University Press, 1994.CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. São Paulo, Itatiaia, 1975, vol 1.COSTA, Iná Camargo. “O marxismo neo-kantiano do primeiro Bakhtin”. BRAIT, Beth (org.). Bakhtin, Dialogismo e construção do sentido. Campinas, Editora da UNICAMP,1997, pp. 293-302.FLAUBERT, Gustave. Cartas exemplares (trad. Duda Machado). Rio de Janeiro, Imago, 1993.HOLQUIST, Michael. “Existence as dialogue”. Dialogism: Bakhtin and his world. New York, Routledge, 1990, pp. 14-39.VOLOCHINOV, V.N. “Le discours dans la vie et le discours dans la poésie”. TODOROV, T. Mikhail Bakhtine le principe dialogique. Paris, Seuil, 1981._______. “Estudos das ideologias e filosofia da linguagem”. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, HUCITEC, 1979.MACHADO, Irene A. “A estética idealista contra a estética material”. Analogia do dissimilar: Bakhtin e o Formalismo Russo. São Paulo, Perspectiva, 1989, pp. 117-141._______. O romance e a voz: a prosaica dialógica de M. Bakhtin. Rio de Janeiro, Imago, 1994._______. “Os gêneros e o corpo do acabamento estético”. BRAITH, Beth (org.)., cit., pp. 141-158._______. “Os gêneros e a ciência dialógica do texto”. FARACO, Carlos Alberto e outros (orgs.). Diálogos com Bakhtin. Curitiba, Editora da UFPR, 1996, pp. 225-271._______. “Texto como enunciação: a abordagem de Mikhail Bakhtin”. Língua e Literatura, n° 2, 1996:89-105.SANTAELLA, Lúcia. “As estéticas filosóficas”, Estética de Platão a Peirce. São Paulo, Experimento, 1994, pp. 19-101._______. “O signo à luz do espelho (uma releitura do mito de Narciso)”. Cultura das mídias. São Paulo, Experimento, 1996, pp. 59-69.

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Este ensaio propõe uma reflexão sobre o modernismo,enfocando seu surgimento, ambiência, repercussões, valo-res estéticos e político-sociais que vão redesenhar o pensa-mento ocidental.

Palavras-chave:Modernismo, valor estético

This essay proposes a reflection about modernism,starting with its origins, ambiance, repercussions,aesthetic, political and social values, which willreconfigure western thought.

Key-words:Modernism, aesthetic values

* Paulo Sérgio Nolascodos Santos é professor deTeoria Literária eLiteratura Comparada doCEUD da UniversidadeFederal de Mato Grossodo Sul, Doutor emLiteratura Comparadapela UFMG.

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Sob a égide do processo criativo no contexto domundo contemporâneo patenteia-se, não raramente, umsentimento de perplexidade a envolver o processo de re-novação e revitalização por que passam, de um lado,asformas narracionais e, de outro, o próprio leitor de lite-ratura. Explorando e confrontando os dois pólos - o cri-ador e o ato de leitura - , ou tornando ambos centro deuma mesma problemática - o processo criativo - , assis-timos a algo como uma ''paralisia'' no âmbito da literatu-ra no modernismo.

Apontando, como eixo de referência histórico-literá-rio da literatura moderna, a obra do irlandês James Joycecom sua batalha travada no Ulisses e a mencionar, ainda,a empresa analítico-interpretativa de Marcel Proust emsua Recherche, a literatura começa a processar-se emtermos de crise e metamorfose. Com isso quer-se dizerque, deixando de ocupar-se dos ''reveses da sorte, daboa ou da má fortuna'', ou ''do conflito das paixões, doscaracteres'', no dizer de André Gide, a literatura de nos-sos dias expõe-se a si mesma enquanto fascinada peloser da linguagem.

Se é necessário determinar um ponto de partida doque se pode chamar de renovação na criação literária,isso visa a, antes de tudo, considerar com mais proprie-dade o que acontece a partir desse ponto, em termos derenovação das formas narracionais. Para tanto, é preci-so por em relevância o próprio conceito de criação lite-rária, ou antes, considerar com propriedade a renovaçãodo processo criativo no advento do modernismo.

Na verdade, à medida que se estreita o foco de análi-se e se aumenta a pressão para identificar aquele acon-tecimento fulcral - a obra realmente importante para sebuscar o annus morabili do modernismo - , pode-se cairnuma posição extrema, só confirmada pela ousadia, con-siderando-se a divergência de opiniões ou mesmo decertezas que acabe num constrangimento pouco supor-tável e nada convincente.

Nesse sentido, Malcolm Bradbury1 torna-se um doscríticos a que recorremos enfaticamente, quer seja porsua vasta e importante produção no que se refere àsquestões do modernismo ''stricto sensu'', quer seja, ede modo mais criterioso, pelo fato de o ensaísta adotarem sua crítica em método pluralista, ou seja, mais ''co-erente com o relativismo e perspectivismo do moder-nismo''. Os textos de M. Bradbury, bem como os tex-tos de outros críticos do modernismo que integram acoletânea Modernismo: Guia Geral (na maioria, pro-fessores que trabalham esse tema na Universidade deEast Anglia) refletem uma sutil consciência de que aliteratura em análise continua a ser desconcertante e,por isso, as discussões críticas sobre essa literaturadevem ser vistas ainda em estágio embrionário.

Haja vista que o que está em germe na reação daliteratura, no fim do século passado, reação conhecidana França por simbolismo, é o complexo de um movi-mento que conhecemos por modernismo. O simbolismo- que despertou uma sensibilidade diretamente ligadaà palavra e ao verso doadores de imagens cambiantes

MODERNISMOGERME OU SENTIMENTO

EM IRRADIAÇÃO

Paulo Sérgio Nolasco dos Santos*

1 Cf. BRADBURY, McFARLANE. Modernismo: guia geral, editado em 1989; BRADBURY. O mundo moderno: dez grandes escrito-res, também de 1989 e BRADBURY. O romance americano moderno, de 1991.

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( - Ó pântanos de Mim - jardim estagnado!...) - algumasvezes apressadamente considerado de puro hermetismo,em outras vezes louvado apoteoticamente, entretece fiosmuito estreitos com a poética modernista. Com efeito, onão compreender a estética simbolista constitui sérioentrave para se compreender toda a literatura imaginati-va, e, no bojo, as revoltas modernistas que se seguiramao final do século.

Deste ponto de vista, o simbolismo poderia ser vistocomo uma bola lançada de uma época à outra. EdmundWilson2 estende-o ao longo de linhas tão amplas que écapaz de incluir os romances de Joyce e de Proust, asininteligibilidades de Gertrud Stein e dos dadaístas, emsua ampla definição, que diz:

''O simbolismo pode ser definido como uma tentativade comunicar, mediante meios cuidadosamente estuda-dos - uma complicada associação de idéias, representa-da por uma mistura de metáforas - , os sentimentos pes-soais e únicos.''3

Malcolm Bradbury, em ensaio dedicado ao nome e ànatureza do modernismo,4 alertando para a natureza oblí-qua desse movimento, dedicou especial atenção à difíciltarefa de situá-lo ou datá-lo com precisão. Faz notar ocrítico o quanto as opiniões divergem dentre os demaisespecialistas. Entretanto, ao registrar a fala e a causaadvogadas, a partir de interesses tão diversos e objetivosquase sempre diferentes, pôde ele oferecer uma sínteseque permitiu fixar não o momento, mas a origem domodernismo. Assinala, ainda, que a face oposta do mo-dernismo ''consiste em seu caráter internacional'' e queo próprio lexema ''moderno'' pode ser assim identificávelà primeira vista.

Se inúmeros são os ensaios de críticos que se debru-çaram na tentativa de identificar o início do modernismo,resta uma concenso segundo o qual quem o busca deveprocurá-lo nos primeiros trinta anos deste século, perío-do em que, para A. Alvarez, encontrar-se-ão Pound, Eliot,Joyce e Kafka no epicentro da mudança5.

Para Virginia Woolf, o ano de 1910 marca no mundouma revolução nas idéias e na vida, pela enorme trans-formação cultural que se deu, num breve intervalo detempo. No ensaio ''Mr. Bennet and Mrs. Brow'', VirginiaWoolf faz observar:

''Em ou por volta de dezembro de 1910, a naturezahumana mudou. (...) Todas as relações humanas se mo-dificaram - entre patrões e empregados, maridos e mulhe-res, pais e filhos. E, quando as relações humanas mudam,

há ao mesmo tempo uma mudança na religião, no com-portamento, na política e na literatura.''6

Já em O Mundo Moderno, Malcolm Bradbury chamaa atenção para o fato de 1922 ter sido, sem sombra dedúvidas, o ano de grande importância para o modernis-mo. Nesse ano T. S. Eliot publicou A Terra Estéril, JamesJoyce lançou Ulisses e Marcel Proust morreu. É dessemesmo ano a publicação do terceiro romance de Mrs.Woolf, O Quatro de Jacob, que, por ser a obra maisexperimental que lançara até então, vai merecer da auto-ra o juízo de que finalmente descobrira ''como começar(aos quarenta anos) a dizer algo com minha própria voz''.7Com efeito, dois grandes eventos podem corroborar osacontecimentos do ano de 1922. Por um lado, foi justa-mente a criação da Hogart Press, editora de propriedadedos Woolfs, que publicou a edição britânica de A TerraEstéril, lançado já no mesmo ano nos Estados Unidos.Por outro, instalada e em plena atividade, essa editora,depois de publicar o livro de ensaios de Virginia Woolfintitulado O Leitor Comum e O Bosque Sagrado, de T.S. Eliot, publicou uma das obras mais importantes domodernismo, inicialmente um conto intitulado ''Mrs.Dalloway em Bond Street''. Neste conto já se encontraem germe a obra que vai consolidar-se mais tarde, sob otítulo de Mrs. Dalloway, projeto que ocuparia a mentede sua autora durante todo o ano de 1992.

Neste rastreamento de acontecimentos decisivos, ummarco irradiador do estado de efervescência das novasidéias culturais no modernismo desponta com a organi-zação da famosa exposição pós-impressionista feita porRoger Fry na Grafton Gallery, ainda em 1910, e que seregistra como evento do grupo de Bloomsbury. Muito jáse falou sobre os importantes movimentos artísticos edas idéias fundamentais que o espírito da Bloomsburydefendia tenazmente para a criação literária. O ''grupo deBloomsbury'', assim chamado, reunia artistas, críticos,jornalistas, escritores, filósofos; suas figuras centraisforam a própria Virginia Woolf, E. M. Forster, o biógra-fo Litton Strachey, Clive Bell e John Maynard Keynes, ogrande economista do século. O grupo de Bloomsburynotabilizou-se por seu caráter irônico e seu agnosticismoradical, porquanto seus integrantes não perdoavam nada,nem a si mesmos, e por suas atividades inovadoras, podeser visto, ao mesmo tempo, ''como revolta contra o 'sis-tema' e como um novo 'sistema', principalmente maispara o final dos anos 20, quando (...) assumiu uma posi-ção central na vida literária e artística, no mundo edito-

2 WILSON. O castelo de Axel.3 Ibidem. p. 23.4 BRADBURY, McFARLANE. O nome e a natureza do modernismo, p. 23-42.5 Para D.H. Lawrence parecerá que foi "em 1915 que o velho mundo se acabou", data da morte do rei Eduardo. Richard Ellmann, vai

estender sua repercussão por todo o período eduardiano, sugerindo que "1900 é um ano mais apropriado e mais preciso do que o 1910de Virginia Woolf", Cf. Id. Ibidem.

6 WOOLF. Character in Fiction, p. 422. Cf. também, WOOLF. Diário. Primeiro volume - 1915-1916, p. 213.7 Cf. BRADBURY. Virginia Woolf, p. 197-124.

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rial, na opinião crítica e na influênciasocial''.8 Quanto ao que caracteriza o''espírito de Bloomsbury'', como seconvencionou denominar, voltare-mos, no intuito de demonstrar oquestionamento que opera sobre a fic-ção moderna, relacionando-o à noçãode realidade vista mais como umaquestão estética e metafísica.

Na delicada tarefa de fixar o pon-to de intensidade das atividades mo-dernistas, alguns críticos preferemtransferir tal foco de intensidade paraos anos posteriores à Primeira Gran-de Guerra. Do escritor e ensaísta Julio Cortázar pode-secolher um testemunho valioso quando enfatiza que a re-ação ao passadismo se estende pelas três primeiras dé-cadas do século. O século inicia-se sob o impacto dafilosofia bergsoniana, cuja correspondência instantânease reflete na obra de Marcel Proust, o que levará Cortázara indicar o período de 1910 a 1930 como sendo odescortinar-se do esperado e requerido pelos romancis-tas que buscavam deliberadamente ''uma nova metafísica,não já ingênua como a inicial, e uma gnosiologia, não jáanalítica, mas de contato''.9 Com o soar do sino da novafilosofia bergsoniana e também com a de G. E. Moore(filósofo de Cambridge que, naquela Universidade, in-fluenciou o círculo de amigos mais tarde conhecido comoo Grupo de Bloomsbury), 1910 e 1930 será, paraCortázar, o grande período a ''conceder o primeiro planoa uma atmosfera ou a uma orientação manifestamenteirracional''.10 Isso se pode traduzir numa despreocupa-ção com os modelos e convenções, haja vista a consci-ência exacerbada de que os modelos não são imutáveis,atitude responsável pela grande abertura do modernismorumo à série de pesquisas de conteúdo e de pesquisas deforma. A pesquisa formal representa para o modernis-mo a preocupação maior e a procura da expressão ade-quada para dizer, sem nenhum preconceito vocabular,exatamente o que estava acontecendo com os sentimen-tos e com a vida íntima.

Essas considerações preliminares acerca do nome eda natureza do modernismo apontam para um movimentoque é, decerto, marcado por um caráter de contradi-ções, fruto da vontade, do espírito e do gosto por umanova ordem. Tentar marcar o início de todo o élan que éo modernismo, resultaria em parcos frutos, só justificá-veis pela obsessão e capricho pessoais. Em seu guia ge-

ral do modernismo, MalcolmBradbury, orientando-se por um no-tável senso de prudência, alertou,logo na prefácio, para a imperiosanecessidade de tratar o modernismosob um método pluralista que, em simesmo, fosse ''bastante coerentecom o relativismo e perspectivismodo modernismo''. Com efeito, dian-te disso o que resta são diferentesformas de abordar um tema, juntocom a consciência de que qualquerintervenção nesse movimento de ta-manha complexidade, qualquer cor-

te na série, qualquer seccionamento, violentaria o todo,que tenta subsistir na complexidade e, nesta, encerra suaresistência. Trata-se, enfim, de percorrer um trajeto so-bre o qual sabe-se de antemão que, durante seurastreamento, vai-se deparar com uma área de estudos''cuja demarcação é controversa'', justamente pelos di-versos cruzamentos que a pervagam.

Se o modernismo pode ser definido pela ''derrubadadas tradicionais fronteiras em questões literárias e cultu-rais'', um de seus traços mais importantes, duas ques-tões parecem aí imbricar-se, cada uma com seu ramopróprio e alastrar-se, mas complementando-se naqueletraço definidor.

A primeira questão diz respeito ao seu caráter cosmo-polita, de ressonância em escala cada vez mais universal,favorecido pelos intercâmbios de um modo geral e tendocomo pano de fundo grandes conflitos mundiais como asduas grandes guerras e o período de entreguerras; enfim,foi todo um contexto de irradiação e circulação de idéias ecostumes novos que acabaram por reduzir o globo à es-cala do homem. Assim, a palavra ''moderno'' encontrasua força quando associada a um sentimento específico etipicamente contemporâneo, a saber:

''a sensação historicista de que vivemos em tempostotalmente novos, de que a história contemporânea é afonte de nossa significação, de que somos derivados nãodo passado, mas da trama ou do ambiente circundante eenvolvente, de que a modernidade é uma consciêncianova, uma condição recente da mente humana - condi-ção que a arte moderna explorou, vivenciou e à qualpor vezes se opôs''.11

Desta forma, o modernismo caracteriza-se sobretu-do sob o signo de um nome e o de uma corrente queatravessam as culturas ocidentais como um movimento

8 Cf. BRADBURY. Virginia Woolf, p. 197-124.9 CORTÁZAR. Situação do romance, p. 72.10 Júlio Cortázar também registra as conquistas de Joyce e Proust, mas celebra as de Gide, D.H. Laurence, Kafka, William Faulkner.

Faulkner que, buscando "a metafisica da guerra de 14 com olhos de alucinado", deslumbrara Cortázar e sua geração. Cortázar tambémmenciona Thomas Mann, Fedin, Hermann Brach e Virginia Woolf. Esta blomsburyana que lhe parecerá a "flor perfeita desta árvorepoética do romance, sua última Thule, a prova refinada de sua grandeza e também de sua fraqueza". Cf. Id. Ibidem.

11 BRADBURY, McFARLANE. O nome e a natureza do modernismo, p.16.

Na delicada tarefade fixar o ponto

de intensidade dasatividades modernistas,alguns críticos preferem

transferir tal focopara os anos

posteriores à PrimeiraGrande Guerra.

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vigoroso e internacional. Sustentando para cada obra umaidéia de estrutura própria e de criação voltada para o seucaráter de linguagem enquanto representação, que passaa subsistir mais por seus ''constituintes autotélicos'' doque pelo referencial, o modernismo, enquanto movimentorevolucionário, caracterizado por uma insatisfação radi-cal para com o passado antigo, confirma efetivamentesua tendência cosmopolita. É ''um movimento de natu-reza internacional, marcado por um volume de idéias,formas e valores principais que se difundiram de paíspara país e veio a se converter na linha mestra da tradi-ção ocidental''.

Uma outra questão que se pode apresentar diz respeitoà geografia do modernismo. O conceito de modernismopõe em aberto nuances de diferença de acordo com asmetrópoles que lhe advogam a origem, ou as que lhe que-rem caracterizar sob a ótica de uma recepção peculiar, ouainda, daquelas metrópoles que advogam para si ambosos atributos. Essa atitude se respalda na impertinênciamesma de se tentar datar um movimento de expansãometeórica. Nesse sentido, observa M. Bradbury o quantoo conceito de modernismo prendeu a atenção de algumascidades do modernismo, como Viena, Oslo, Zurique, emesmo da Alemanha entre os anos de 1890 e 1891, ob-sessão atenuada noutras metrópoles. Na Inglaterra, porexemplo, registra-se a relativa indiferença pelo termo "mo-derno", que "raramente é usado em qualquer acepçãoprogramática".

Como salientamos, nossa tentativa de caracterizaçãodo modernismo deparou-se com a vitalidade de um mo-vimento de dificil delimitação. Falamos da geografia domodernismo no sentido da circulação dos ideiais moder-nistas no além-fronteiras de um país específico. No en-tanto, sob a perspectiva do modernismo brasileiro parecerelevante traçar a ambiência de um movimento já marca-do historicamente, pelo ano de 1922: data que nos remeteà Semana de Arte Moderna. Ter ciência dos aconteci-mentos e do espírito renovador da Semana não significadesconhecer a envergadura de um movimento que, noBrasil, vinha sendo preparado antes de 22 e que continuoua sofrer evoluções ao longo daquele ano e até nossos dias.Vale dizer que os critérios estéticos que se colocavam emgerme na Semana de 22 foram evoluindo cronologica-mente.

Não retomaríamos, aqui, a revisão dos diversosavatares do modernismo brasileiro. Revisão que, nitida-mente, foi feita pela história literária, inclusive reconhe-cendo no modernismo o nosso movimento maior no sen-tido de fazer balanço do que é a realidade brasileira,imbuído que foi de uma orientação eminentemente críti-ca, de modo a substituir o falso e o superado pelo au-

têntico e atual. Na ambiência do modernismo brasileiroé visível a intenção dos expoentes modernistas que sedebateram entre uma cultura altamente europeizada e odesejo, a necessidade vicária, de dar forma e feição a umpensamento artístico que correspondesse à cultura na-cional. Assim, é notável o fato desses mesmos expoen-tes, recém chegados da Europa, empenharam-se em re/visitar o Brasil através das célebres viagens pelo interi-or, recuperando o elemento nacional que vai do folcloreàs estátuas do Aleijadinho e todo o Barroco mineiro12.

Buscar as raízes da nacionalidade foi razão do grandeprojeto criador de Oswald e Mário de Andrade, que in-corporaram à literatura o índio, o negro, e o imigrante.Nesse intento, a "rapsódia" Macunaíma, de Mário, de1928, representa um dos maiores esforços já elaboradosna construção daquele projeto inicial - o mapeamento donacional -, cuja realização só se torna possível com oquestionamento da linguagem literária que passa a assu-mir na própria ruptura do código - metalinguagem - oreflexo e a síntese de uma destruição que é então cons-trução do nacional - da realidade. É preciso dizer que aindagação sobre a linguagem e a gramática não deixa deestar conectada aos propósitos maiores do movimentomodernista lato sensu, e que Mário de Andrade, na céle-bre conferência O movimento modernista, traz uma sín-tese essencial:

"O que caracteriza esta realidade que o movimentomodernista impôs é a fusão de três princípios funda-mentais: o direito permanente à pesquisa estética: a atu-alização da inteligência artística brasileira; e a estabiliza-ção de uma consciência crítica nacional."13

Com efeito, há que se assinalar que o grande méritodo livro de Mário de Andrade, Macunaíma, está na sub-versão e reconstituição do material lingüistico. Ao tornarpossível a convivência das inúmeras formas lingüísticas- produto de um país de dimensões continentais, deconstrastes múltiplos - Macunaíma realiza uma sínteseque abole a linguagem estritamente regionalista paradesregionalizar o mais possível a criação.

Eneida Maria de Souza ressalta que essadesregionalização corresponde à língua desgeografizadaque busca, icônica e isomorficamente, mesclar no pla-no da invenção verbal o nacional e o estrangeiro - espé-cie de sincretismo, próprio do modernismo no sentidolato14. Assim articulado com o todo da vida nacional,Macunaíma elabora criticamente um jogo da escrita co-mandado por fragmentos de discursos e retalhos de tex-tos que resultam numa obra representativa dos valoresestéticos do modernismo apontados por M. Bradbury.

Sublinhando o "direito à pesquisa estética", Máriode Andrade pôs em prospecção uma das marcas mais

12 Cf. BELLUZZO. Os surtos modernistas, p. 13-29.13 ANDRADE. O movimento modernista, citado por IGLÉSIAS. Modernismo: uma reverificação da inteligência nacional, p.7.14 SOUZA. A pedra mágica do discurso.

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lidade, já apontava , em seu tempo, uma desarticulaçãoda linguagem literária que se volta para a elipse, litotese paradoxos resgatados no humor e na descrença doescritor.16

A "rapsódia" de Mário de Andrade, elaborando a paró-dia da história brasileira, e querendo marcar osdesajustamentos entre indivíduo e historia, torna comple-xas as articulações entre realidade e representação. Tam-bém os 163 fragmentos que compõem o livro MemóriasSentimentais de João Miramar, espécie de continuumBrasil-Europa-Brasil, acentuam sempre o princípio da com-posição como meio fundante da representação.

Do que se acaba de expor, breve traço da ambiênciado modernismo brasileiro, releva observar que um movi-mento tão significativo para a vida nacional - a Semana daArte Moderna, com seus desdobramentos e articulações- requer uma abordagem pluralista, inclusive pelas avalia-ções e estudos ainda em desenvolvimento. Portanto, exi-ge-se acuidade do analista que vive e participa de um mo-vimento ao qual está ligado pelo fenômeno da pertença,que o sobreavisa do risco das sínteses e desaconselhatotalizações. Ressalte-se , sobretudo, o caráter de acon-tecimento e de renovação desses movimentos - a Sema-na de Arte Moderna, em São Paulo, e o Grupo deBloomsbury, em Londres - que, por si sós, tiveram o mé-rito de defender a ferro e fogo os ideais do novo e darenovação, e que, com o trabalho decisivo de seus expo-entes, mudou a direção de pelo menos uma parte do pen-samento ocidental.

características do modernismo: o ethos lúdico dos mo-dernos se afirma tanto no plano da forma quanto no doconteúdo. O jogo das formas e das técnicas substanciaum projeto que leva à proliferação e à fragmentação dasescolas e movimentos na frenética sucessão de ismosde vanguarda , sobretudo o futurismo, o dadaísmo e osurrealismo que, na época, exerceram um considerávelimpacto no Brasil.

Simultaneamente ao otimismo da forma, o moder-nismo brasileiro acentuou a natureza problemática damímese.15 Pois, somente a partir da reflexão acercadas relações entre realidade e reapresentação, essas duasnoções de base, é que se pode exercer a tomada deconsciência ao nível de intervenção cultural - tarefaque vai ser assumida pelo modernismo brasileiro que,assim, conecta-se ao movimento moderno, em seu idealmais amplo e de bases universais que já significava aproblematização dos valores literários.

É a desconfiança do ajuste entre representação erealidade que torna inevitável a crise de representação,sempre acoplada à crítica das articulações. Isso cons-titui o traço recorrente nos escritores modernistas bra-sileiros conscientes de que é sempre preciso adaptar oque se recebe à realidade. Foi essa consciênciaagudizada dos mecanismos ficcionais que levou os es-critores Machado de Assis e Mário de Andrade a trans-formarem o cânon do romance, de tal forma que é comdificuldade que falamos de romance nesses casos. Ma-chado, marcando o descompasso entre escritor e rea-

15 Sobre a problemática realidade vs. representação, cf. BARBOSA. A modernidade do romance, p. 119-131 e MERQUIOR. Omodernismo brasileiro, p. 122-134.

16 A importância da obra machadiana na configuração do modernismo brasileiro foi de tal impacto que a critica, atônita, em 1889, faziaobservar: "Talvez daqui a mais de um século os literatos ainda discutam a que escola pertence. Machado de Assis". Cf. REVISTAVEJA, ano 20, n.37, p. 105, 20 nov. 1989.

Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 14-19, jan./jun., 1997.

Referências BibliográficasBARBOSA, João Alexandre. A leitura do intervalo. São Paulo: Iluminuras, 1990. 141p. Capítulo IV: “A modernidade do romance”, p. 119-131.BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. (Org.). Modernidade: vanguardas artísticas na América Latina. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina/Editora Unesp,

1990. P.13-29: Os surtos modernistas. (Caderno de Cultura,1)BRADBURY, Malcolm. O mundo moderno: dez grandes escritores. Trad. Paulo Henriques Brito. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 247p. P.119-137: Marcel Proust;

197-214: Virginia Woolf.BRADBURY, Malcolm, FLETCHER, John. (Org.). Modernismo: guia geral. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 556p. Segunda Parte. Capítulo 6: “O romance de

introversão”, p. 322-339.BRADBURY, Malcolm, MCFARLANE, James. (Org.). Modernismo: guia geral. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 556p. Primeira Parte.

Capítulo 1: “O nome e a natureza do modernismo”, p. 13-42; Capítulo 6: “O romance modernista”, p. 321-394.BRADBURY, Malcolm. O romance americano moderno. Trad. Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991. 220p.BRADBURY, Malcolm. O mundo moderno - dez grandes escritores. Trad. Paulo Henriques Britto. São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, 247p. p. 197-214:

Virginia Woolf.CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. Trad., sel. org. Davi Arrigucci Junior. São Paulo: Perspectiva, 1974. 257p. Capítulo 17: “Do conto breve e seus arredores”, p. 227-

237; Capítulo 6: “Alguns aspectos do conto”, p. 147-163; Capítulo 3: “Situação do romance”, p. 61-83.IGLÉSIAS, Francisco. Modernismo: uma reverificação da inteligência nacional. (s.n.t.). (mimeogr.)MERQUIOR, José Guilherme. O fantasma romântico e outros ensaios. Petrópolis: Vozes, 1980. Capítulo VI: “O modernismo brasileiro”, p. 122-134.SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1988. 135p.WILSON, Edmund. O castelo de Axel. Trad. José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, (s.d.). 220p.WOOLE, Virginia. Diário. Segundo volume. 1927-1941. Trad. Maria José Jorge. Lisboa: Bertrand, 1987. 563p.WOOLE, Virginia. The essays of Virginia Woolf. Volume 3: 1919-1924. London. The Hogart Press. 1988. 551p. (ed. Andrew McNeillie). p. 420-438. Character in fiction.

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Esse ensaio procura redefinir o lugar do sujeito ficcionala partir do questionamento da subjetividade por parte denarradores e personagens da literatura contemporrânea.

Palavras-chave:Narrador, subjetividade,

literatura contemporrânea

In this essay I attempt to re-define the standing ofthe fictional character based on the questionning ofcontemporary literature's characters and narrators ofthe subjetivity.

Key-words:Narrator, subjectivity;

contemporary literature

* Texto apresentadodurante o Seminário Artee Subjetividade naUFMS, em 05.12.96.** Maria AdéliaMenegazzo é professorade Teoria da Literatura ede História da Arte doCCHS da UniversidadeFederal de Mato Grossodo Sul. Doutora emTeoria Literária eLiteratura Comparadapela UNESP de Assis.

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O título desse pequeno ensaio revela de antemãoao menos dois limites: 1. iremos compreender a subje-tividade do ponto de vista lingüístico, enquanto a capa-cidade do falante de se posicionar como sujeito; 2. osujeito de que trataremos será sempre aquele ficcionalou ficcionalizado, que terá sua autoridade discursivaauto-questionada ou contestada por algum outro su-jeito também ficcional.

O questionamento da noção de sujeito e da subjeti-vidade apresenta uma freqüência razoável na literatu-ra e na teoria literária contemporâneas e as razõesdesse fato podem ir da esquizofrenia ao capitalismomultinacional, dependendo do olhar de quem tentaexplicá-las. Mas sabemos que o respaldo da subjetivi-dade narrativa é dado pelo ponto de vista ou foco-nar-rativo. E é este mecanismo que sofrerá ajustes edesajustes a partir do final do século XIX, mais pro-priamente a partir do romance Madame Bovary deGustave Flaubert.

As múltiplas posições do narrador de MB podemser lidas não como uma negação do episódico, mascomo uma argumentação em favor da objetividadenarrativa1. Flaubert altera a representação literária aoacentuar a palavra enquanto material narrativo (e nãomais meramente descritivo), introduzindo uma novaforma de apresentação do tempo ao multiplicar e so-brepor o ponto de vista (a famosa cena dos comíciosagrícolas), eliminando ou deixando quase imperceptí-veis as fronteiras entre o ideal e a realidade, além dequebrar a coerência e a função do narrador.

Flaubert dá ao leitor a oportunidade de se defron-tar com a ambivalência do olhar narrativo, (e portantocom sujeitos ambivalentes) e com uma novatemporalidade racionalizada para reforçar a presençade um mundo ficcional. Assim, os múltiplos narrado-res de MB criam vazios no texto - porque não se sabequem fala ou pensa, quem vê ou sonha - descrevendominimamente, quase em silêncio (não podemos esque-cer o desejo de um "livro sobre nada"), impressões vi-suais de superficie a partir das quais o leitor poderáolhar o que é apresentado como aparente exposiçãode fatos.

A partir do modernismo, o desafio é aquele impostona educação do gosto pelo mesmo. A arte encontrana auto-reflexidade uma das possibilidades dedesestimular o leitor a procurar correspondências en-tre texto e realidade e de levá-lo a refletir sobre arealidade do texto. É este o recurso que será acentu-ado pela arte contemporânea.

Assim, a auto-reflexividade da literatura atual nãorepresenta um novo paradigma, mas um modo deacentuar a provisoriedade dos modos de expressão,de romper as noções "naturais" do realismo factual,seus limites e possibilidades discursivas.

O questionamento da subjetividade levado a efeitopela literatura contemporânea, desafia as noções tra-dicionais de ponto de vista, uma vez que já não se podesupor que o sujeito que olha e percebe seja alguémimbuído do propósito de produzir imagens e significa-dos coerentes.

Maria Adélia Menegazzo**

A SUBJETIVIDADE POSTA EMQUESTÃO POR NARRADORES

E PERSONAGENS*

1 Cf. LLOSA, Mario Vargas. A orgia perpétua. Flaubert e Madame Bovary. Trad. Remy Gorga, Filho. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.

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2 CALVINO, Ítalo. Se um viajante numa noite de inverno. Trad. Margarida Salomão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.3 SANTIAGO, Silviano. Stella Manhattan. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.4 Em SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Ítalo Calvino, por exemplo, utiliza recursos do pró-prio realismo para estruturar seus romances, ao mes-mo tempo em que põe em evidência o caráter conven-cional desses recursos. O romance Se um viajantenuma noite de inverno2 é exemplar desse tipo deenunciação auto-reflexiva. Quando diz:

Ocorreu-me a idéia de escrever um romance feitototalmente de inícios de romances. O protagonistapoderia ser um Leitor que se vê continuamenteinterrompido. O Leitor adquire o novo romance Ado autor Z. Mas o exemplar é defeituoso, contémexclusivamente o início... O Leitor retorna à livra-ria para trocar seu exemplar... (p. 239)Revela exatamente o que o romance irá apresentar

como narrativa ao leitor. Calvino opta pelo desvio en-quanto autor, narrador e leitor, levantando as possibili-dades desses elementos se posicionarem dentro dotexto literário. Mas o faz através do descentramentoe da negação da semelhança, entendida comoproblematização das normas tradicionais da narrativa,por meio da desconstrução e/ou da superexposiçãodessas normas para serem quebradas e do olhar irôni-co sobre as teorias a esse respeito.

(...) as frases continuam a se mover noindeterminado, no cinzento, em uma espécie deno man's land da experiência reduzida a seumínimo denominador comum. Presta atenção:esta é certamente uma técnica para te seduzirsem que te dês conta. Uma armadilha. Outalvez o autor esteja indeciso, como de resto tumesmo, Leitor, não estás certo do que mais teagradaria ler: (...) (p.19)Através do processo auto-reflexivo, Calvino se apro-

xima do leitor expondo as possibilidades de ludibriá-lo.Se esse é um autor exemplar da literatura que questi-ona a enunciação totalizante, que vai da produção àrecepção do texto literário, alguns escritores brasilei-ros contemporâneos também merecem serreferenciados: Silviano Santiago, Zulmira RibeiroTavares, Chico Buarque de Holanda, João GilbertoNoll e Sergio Sant'Anna, entre outros.

A necessidade de ruptura com paradigmastotalizantes levou estes escritores à expansão da refle-xão metadiscursiva, uma vez que há uma disseminaçãodo provisório e do heterogêneo contaminando todas astentativas organizadas de unificação e coerência, sejamelas formais ou temáticas, impossibilitando visões ho-mogêneas do mundo ficcional, que poderiam atuar comoelementos de dissolução da ficção.

O que se percebe na obra desses autores brasilei-ros é um descentramento de valores no sujeito (narrador

ou personagem) e um descentramento da individuali-dade na construção do espaço tempo da ficção. Istonão implica necessariamente ausência de sentido, masa presença de uma lógica particular de cada discurso,de cada sujeito.

A pluralidade dos olhares narrativos implica a re-cusa do absoluto e estabelece uma nova relação como leitor, na percepção do recorte do mundo dadoficcionalmente. Mas essa ótica simultânea de narra-dores, personagens e mundos, não pressupõe uma con-vivência pacífica; é antes de tudo conflitual e fecunda.

Conflito evidente no romance Stella Manhattan3

de Silviano Santiago, onde se apresenta um encontroentre o narrador e o leitor através de um recorteensaístico incorporado ao romance sem qualquer ex-plicação: COMEÇO: O NARRADOR.

A certa altura, a disputa entre leitor e narrador chegaao máximo com o leitor afirmando:

Você, com remorso, já está disposto a me salvarda morte,Vira-se para mim e diz que na verdade sou euquem tem razão e que você realmente não gostade narrativas autobiográficas. Ficção é fingi-mento blablablá, o poeta quem diria? é umfingidor. El poeta quaquaquaquá es un jodedor,eso si. A fucker. A motherfucker. (...) (p. 74)O narrador afasta desse modo qualquer tentativa de

identificação biográfica, de favorecimento de experiên-cias subjetivas. Esse diálogo entre narrador e leitor con-tinuará intercalado por páginas do romance em proces-so de construção, páginas que vão sendo submetidas aoleitor por vontade do escritor ou por intromissão daque-le que está o tempo todo lendo por trás dos ombros donarrador e que pode ainda afirmar:

Você continua a rir de mim e eu pensando comosão falsos os romances que só transmitem adescontinuidade da ação, mas nunca transmi-tem a descontinuidade da criação. (p.86)Demonstra, assim, ao leitor que o que é lido em

seqüência não é construído na mesma ordem. Que otempo da leitura é diferente do tempo da escritura que,por sua vez, é diferente do tempo da enunciação, em-bora todos estejam fartos de o saber.

No ensaio "O narrador pós-moderno"4, SilvianoSantiago afirma que "na pobreza da experiência deambos se revela a importância do personagem na fic-ção contemporânea; narrador e leitor se definem comoespectadores de uma ação alheia que os empolga,emociona e seduz." (p.44)

Narradores hesitantes, personagens difusos e, aomesmo tempo, múltiplos, imagens que se filtram atra-

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vés de recortes temporais e espa-ciais, histórias não concluídas, sãoalguns traços enunciados problema-ticamente pela literatura contempo-rânea que, auto-reflexiva, não temcomo objetivo negar as verdades daficção e da realidade, mas simcontestá-las de dentro.

Na exposição do mundo pelo ro-mance tradicional, o leitor podia en-contrar aquele olhar realista, minu-cioso, já esquematizado, que não lhepermitia qualquer dúvida sobre oespelho, identificação aparentemen-te incontestável do já visto, do que não permite ambi-güidades. No entanto, quando se defronta hoje com omundo ficcional, ele está obscenamente exposto em-bora não nitidamente visível. Investe-se no olharcomo o sentido capaz de inventariar o visível, o jávisto, o ainda não visto.

Assim, em O nome do bispo, de Zulmira RibeiroTavares, o narrador trata de descobrir quem é o ou-tro para quem se fala? Se se tratasse de um narradorcomum, o outro seria o leitor. Mas esse narrador é, aomesmo tempo, porta voz de uma personagem alta-mente indecisa, que passa por situações constrange-doras e sempre inacabadas. Não é capaz de decidirsozinha quem é o outro para quem deveria contar oque acontecera.

Problematizar o sujeito ficcional pode levar, então,à indeterminação da voz que narra e dos papéis narra-tivos. Imagine-se um romance que narra a história depersonagens criadas para representarem o papel depersonagens que simulam situações reais. Metaficçãoao quadrado? Mas é o que acontece no romance Si-mulacros5 de Sérgio Sant'Anna.

Ao contrário do que ocorre em Seis personagensà procura de uma autor6, de Luigi Pirandello, as per-sonagens simulacro revoltam-se contra seu autor, ma-tam-no e o enterram no fundo do quintal. Um romanceque se apresenta como metaficção experimental,ficcionalmente frustrada e também como uma refle-xão paródica sobre a "morte do autor", reafirmando aautoridade do eu que narra.

Já nos romances de João Gilberto Noll, ainda queas personagens sejam os narradores, essa fusão nãoimplica identidade ou identificação do sujeito nar-rativo. O narrador prefere ficar escondido, afirman-do "aqui ninguém me vê". Mas ao mesmo tempo não

sabe onde está, pois indaga "ondeé aqui?", nem quando as coisasacontecem: "por que o meu atra-so diante desta duração?". Isto sig-nifica que a subjetividade, aparen-temente expressa no eu que nar-ra, não se afirma, impedindo quese refaçam percursos, porque re-presenta seres suspensos no tem-po e no espaço. Em O quieto ani-mal da esquina7, o narrador-per-sonagem pergunta:De qualquer maneira, se eu ten-tasse sanar o atraso, se virasse

a memória pelo avesso para reconstruir estetempo, quem iria avalizar a minha perícia?(p.52)A pergunta final reforça o jogo com o inesperado e

a ausência de regras na construção do sentido de umapossível história pessoal. As narrativas de Noll têm apropriedade de, ao mesmo tempo, propor percursosde formação ou de busca de identidade para suas per-sonagens e de destruir estes mesmos percursos dete-riorando as imagens em sua materialidade, restandoao leitor recortes sombrios, esgotados e irônicos emseu significado sempre subtraído. Nada, nenhuma his-tória se conclui.

Esses são alguns meios utilizados pela literaturacontemporânea para redefinir o ponto de vista, ou olharnarrativo que parte de um sujeito, aprofundando suaspossibilidades de ruptura com paradigmas anteriores,quando a subjetividade limitava-se à presença aflitivado Eu e sua relativa unidade. Nos romances contem-porâneos pós-modernistas, o sujeito que narra ou é ex-tremamente singular, mesmo quando indeterminado, oué escandalosamente plural, ainda que centrado em umúnico narrador.

O papel atribuído ao leitor - uma sombra por trás donarrador - permite que se acentue a desarrumação daonisciência, da onipotência e ubiqüidade do sujeito nar-rativo, portanto, a desfocalização da subjetividade quepode se apresentar super-dimensionada, multíplice,dirigida ou manipulada e, ainda, indeterminada ou hesi-tante.

O questionamento da subjetividade, enquanto re-curso retórico da narrativa contemporânea, assume aproblematização da ausência de paradigmas estrutu-rais e temáticos da linguagem da arte, criando a ne-cessidade de auto-consciência e reflexão.

5 SANT'ANNA, Sergio. Simulacros. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992.6 PIRANDELLO, Luigi. Seis personagem à procura de um autor. Trad. Brutus Pedreira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.7 NOLL, João Gilberto. O quieto animal da esquina. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

Nos romancescontemporâneospós-modernistas,o sujeito que narraou é extremamente

singular, ou éescandalosamente

plural.

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Este pequeno trabalho pretende ser uma primeira tenta-tiva de leitura das grandes imagens de bichos, pintadas nasparedes dos prédios da cidade de Campo Grande nos últi-mos anos, e financiadas por empresas, bancos, e órgãos dogoverno estadual. Podem ser entendidas como um discursoecológico promovido por aqueles que , há pouco tempo, nãotinham a mínima simpatia pelo movimento ecológico? Ondeestá o referente desse “bicharéu” monumental?

Palavras-chave:Campo Grande

imaginário - ecologia

This small essay intends to be a first attemp tointerpret the huge paintings of animals which have beenappearing on the sides of different buildings in the cityof Campo Grande in these recent years financed byCompanies. Banks and State Agencies. Can they beunderstood as an ecological discourse promoted bythose who, very recently, hadn't the slightest empathywith the ecological movements? Where is the referenceto this "animalistic" monument?

Keywords:Campo Grande

imaginary - ecology

* No momento em queeste texto é publicado, asimagens de bichos daentrada da cidade deCampo Grande já nãoexistem mais. Naseleições de 96, ospolíticos encobriram-nascom imagens decampanha eleitoral.** J. Genésio Fernandesé artista Plástico e prof.ºde Teoria Literária doDepto Letras da UFMS.Mestre em Teoria daLiteratura pela UFPE edoutorando pela USP.

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II

Nos tempos atuais, não sei se para maior riqueza oupobreza da produção acadêmica, não temos mais os

mestres do pensamento, grandes intelectuais de referên-cia de algumas décadas atrás, verdadeiras escolas, e pou-cas, que emprestavam segurança e rumo para aqueles quese dispunham ao estudo de determinado assunto. O queexiste é um número enorme e disperso de estudiosos. Sóo tempo e um trabalho futuro de apuração dirá o que foimais produtivo. Na falta deles, e no bojo da crise atual deparadigmas, parece compreensível que a maioria das pu-blicações e das teses universitárias sejam uma selva decitações, como que para compensar o vazio de segurançae rumo para pensar. “Já não se ousa dizer nada com con-vicção; e para dissimular as incertezas, as pessoas refugi-am-se nos diversos graus de citação: já não falamos senãoentre aspas” diz Todorov1. Talvez se possa encontrar aíexplicação para o fato de que é bem mais comum encon-trar estudiosos mais à vontade e em maior número dis-postos a se debruçar sobre as produções culturais que jáforam honradas com uma palavra alheia de prestígio nainstituição literária ou nos domínios da disciplina.

Nos cursos de letras, por exemplo, é muito maior ointeresse por aquelas obras do passado que já merece-ram o aval da crítica ou o selo das relações curriculares.Os alunos, e nós todos que também somos herdeirosdesse tipo de ensino, aprendemos a nos sentir mais en-corajados a opinar sobre aquilo que já conta com umaorientação de leitura, com o prestígio ou o reconheci-mento da instituição literária. O procedimento é, quasesempre: primeiro ler os textos críticos sobre determina-

da obra e, só depois, ler a obra mesma. Escrever sobreas peças teatrais apresentadas na cidade, sobre tal ouqual exposição de pintura ou sobre as obras e os fenô-menos que vão surgindo a nossa porta, nem pensar! Aprática leitora dos departamentos de letras não tem olhospara o que acontece no seu arredor, em sua própria re-gião. Romper esses receios, cumprir nosso papel de lei-tores críticos no campo cultural mais restrito é, tam-bém, muito importante e pode ser caminho capaz de re-vigorar a prática docente de um curso de letras e detornar atraentes as obras do passado. Bakhtin ocupouespaço nas duas últimas semanas de letras, mas nemmesmo vendo o inacabamento constitutivo de seus tex-tos e de suas reflexões, nos encorajamos a produzir nossaspróprias leituras, correndo os riscos de vê-las incomple-tas, inacabadas.

Dirão, e bem, que falar é mais fácil. Assim, tentareiaqui praticar e, creiam, não sem os titubeios e certo de-samparo daquele que se põe a falar daquelas produçõeshumanas ainda em processo, aquelas que aqui e ali, numaesquina ou noutra, surpreendem o cotidiano do passante,a caminho de casa, da escola ou do serviço.

Neste pequeno trabalho, e ainda em vias de desen-volvimento, tomei um assunto que nos diz

respeito,que surgiu e ainda está em processo de consti-tuição no cotidiano da vida da Cidade de Campo Grande:as imagens de bichos2 que encobrem a pele de cimentoda cidade, competindo com a altura dos prédios, e que amaioria louva e justifica, crendo que elas significam ape-

I

UM PARAÍSO IMAGINÁRIOOU A BICHARADA

NO CIMENTO*

J. Genésio Fernandes* *

1 Tzvetan Todorov in prefácio a Estética da Criação Verbal, de Bakhtin, Martins Fontes, 19922 Fernandes, José Genésio. Imagens de Bichos nos prédios da cidade de Campo Grande: fotografias e slides. Biblioteca particular.

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nas o gesto bom e bem intencionado de uma campanhaecológica.

Sem poder contar com o conforto de uma palavraalheia que ampare o meu texto com algum aval oucontraponto, corro humildemente os risco, confortadoapenas pelo fato de que estou tentando produzir sentidosobre objeto que habita o cotidiano da platéia e sobre oque ela pode, também, produzir leitura durante essa cur-ta exposição3 . Isso posto, sigam um viajante.

Para aquele que viaja pelo interior do Estado, o nome“Mato Grosso” não deixa de causar um certo mal-

estar: não se vê mais nem mesmo mato fino. Milhares dehectares de terra pronta para o plantio mecânico ou trans-formados em pastagens estendem-se a perder de vista e,não raro, sem um pé de árvore, sem uma fonte de água.

Na rodovia Campo Grande-Dourados, às margensdo asfalto incandescente, um índio meio curvado para aestrada agita um papagainho maltrapilho empoleirado emum pedaço de pau, sem saber bem que trejeitos, queriso, que olhar poderia atrair um comprador motorizado.Do outro lado, três índias com o filho a tiracolo agitamos braços e antecipam festejos quando os carros dimi-nuem a velocidade.

Esse é o quadro: a paisagem devastada, os ídios semrumo e, mais à frente, também à margem da rodovia ossem-terra em seus barracos cobertos de plásticos ne-gros. Envolvendo tudo, um ar extremamente seco, umcalor insuportável. Os jornais tecem comentários sobreo racionamento do fornecimento de água e anunciam osmaiores índices de desmatamento e de queimadas. Tudoresultado de um processo de exploração da natureza queseguiu e segue à risca o pensamento de Francis Bacon,que orientou o processo de desenvolvimento técnico in-dustrial do mundo e cujo objetivo era a libertação huma-na de sua indigência física, de seu estado econômico deescassez. Digo segue, porque o meu vizinho chegou

IIIIV

ontem do interior onde, desde janeiro de l991, tratoresdos mais potentes, unidos por correntes enormes, fa-zem o vai-e-vem interminável de destruição irracional doresto das matas.

Diante desse quadro, o viajante não deixa de experi-mentar o mal-estar do vazio semântico do nome do Es-tado e de slogans como, “tudo é um mato só”, “gigantepela própria natureza”, e “santuário ecológico mun-dial”, presentes em material de divulgação política e cul-tural da capital4. Onde está o referente desses dis-cursos?

Mas nem bem o viajante se refaz desse mal-estar,eis que topa com a cidade: se o interior não é um

mato só, nem mato grosso e nem mesmo mato fino, osoutdoors da entrada anunciam o contrário, que tudo énatureza pura, uma bicharada só, um paraíso só.

Logo na entrada da cidade, uma onça pintada lambesuavemente um homem que lhe dá o rosto dentro dasmargens de um outdoor. Fora dessas margens, atrás eao lado, a casa de vender toros de madeira de porte mé-dio. Nesse contexto as imagens adquirem um tom deelegia. Tuiuius, antas, capivaras, jacarés e garças de vôosdelicados seguem o viajante que chega à cidade pela ave-nida dupla de traçado técnico, racional, moderna. O ima-ginário, o mítico irrompe ali mesmo onde parece nãohaver mais lugar para ele5 .

O viajante adentra a capital. No centro, o museu ima-ginário se completa: uma arara azul candidata ao GuinnessBook parece querer desprender-se da pele de cimentodo Exceler Plaza Hotel e pousar na árvore próxima. Epousaria, não fossem os argumentos presentes nos arti-fícios que a tecem, e que conspiram contra a possibili-dade de seu real. A técnica hiper-realista apresenta-acomo num close do seu todo, inviabiliza-a para a árvorereal ali próxima, aponta a inexistência de seu referenteou mesmo estabelece a substituição deste.

Esse imaginá-rio multiplicou-

se nesses últimosanos na mesma pro-porção em que omovimento ecológi-co foi perdendo ovigor depois doboom que teve coma morte de liderescomo Chico Mendesno Acre e Marçal deSouza no MatoGrosso do Sul, e namesma proporção daonda do discurso daglobalização.

Financiado porbancos, por empre-sas e pelos postos go-

V

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Arara Azul, foto de J. Genésio Fernandes: provavelmente a maior pinturade uma “Anodorhynchus hyacinthinus” do mundo. Veja reprodução colorida na última capa.

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vernamentais locais, esse discursoicônico não se instaurou num vaziodiscursivo, como alguém que falassea partir do nada e para ninguém, e apeso de ouro6 . Somente Adão míticoemitiu palavra num mundo virgem ver-balmente não dito. Esse enunciadoicônico, enunciado no sentidobakhtiniano, é produto da percepçãoque essas entidades tiveram do que vaino discurso do outro, das massas: autopia de um mundo mais natureza,mas uma utopia na qual elas não maisacreditam e da qual não querem lan-çar mão.7 Assim, o oferecimento des-sa topografia imaginária de encher os olhos vai de parcom o crescimento dos voyeurs. Para as empresas e parao poder governamental, não há perigo em inflacionar osolhos dos citadinos, pois, inativos, se contentam em ver,em buscar, em imagens e em ficção, aquilo que mais lhesfalta. E o que lhes falta parece cada dia mais distante.

Essa utopia de voyeurs, na qual não se crê mais, masda qual não se quer lançar mão, parece estar configura-da, também, nos textos de um Leonardo Boff. Lá umaterra mais natureza como que sobe para as nuvens. Dizele. “Recusamo-nos a rebaixar à Terra a um conjunto derecursos naturais ou a um reservatório físico-químicode matérias-primas. Ela possui uma identidade e autono-mia como um organismo extremamente dinâmico e com-plexo. Ela fundamentalmente se apresenta como a Gran-de Mãe que nos nutre e nos carrega. É a grande genero-sa Pacha Mama (Grande Mãe) das culturas andinas ouum superorganismo vivo, a Gaia, da mitologia Grega eda moderna cosmologia. Queremos sentir a terra em pri-meira mão. Sentir o vento em nossa pele, mergulhar naságuas da montanha, penetrar na floresta virgem e captaras expressões da biodiversidade8.” E ele remata assim

esse lance de pintura de uma topo-grafia imaginária: “Ressurge uma ati-tude de encantamento, desponta umanova sacralidade...”

A beleza dos projetos e de tododiscurso governamental que trata daquestão ecológica, a construção deum parque das nações indígenas li-gando a cidade ao Parque dos Pode-res e a olimpíada indígena9, tudo issotambém configura para nós somen-te a topografia imaginária de uma ter-ra mais natureza, paradisíaca, poisnão há convicção de que se possareavê-la e, consequentemente, ne-

nhuma ação nesse sentido. A metáfora dessa falta que não crê mais suprida

foi, para o colonizador europeu, o tipo de coleção co-nhecida como Gabinetes de Curiosidades e; para nós, éo bicharéu empalhado do Museu Dom Bosco, coleçãodos troféus de caça do caçador Jovani Magrin e cartãode visita da capital10. Tal qual o colonizador, fomosespoliadores de nossa própria natureza e, nossa utopiaem reavê-la é capaz apenas de nos levar a passeio poruma topografia imaginária em expansão: a das imagensde uma natureza paradisíaca nos prédios, nos cartazes,no museu, na tela dos pintores, nos cartões que circu-lam de mão em mão, nas grandes esculturas que to-mam as áreas de lazer, como aquelas da Cabeça de Boi.Todos tecem, insistem nesse imaginário paradisíaco,menos os artistas índios, Conceição dos Bugres, seufilho Iltom Silva e o poeta Manoel de Barros, o que dá oque pensar11.

O que mais temos nos olhos é o que mais nos faltana vida. Estaríamos na caverna de Platão, indecisos,impotentes para dizer se as sombras podem ter ummundo?

O que mais temos nosolhos é o que maisnos falta na vida.

Estaríamos nacaverna de Platão,

indecisos, impotentespara dizer se as

sombras podem terum mundo?

Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 24-27, jan./jun., 1997.

3 Este texto foi apresentado na Semana de Letras-96 do Departamento de Letras da UFMS.4 Frases presentes em material de propaganda política e de divulgação de Instituições Culturais e Administrativas do Estado do MatoGrosso do Sul em 1984, 85 e 86.

5 Certeau, Michel de. A Cultura no Plural. São Paulo, Papirus, 1995.6 Lembremos que, no tempo de Marçal de Souza e de Chico Mendes, as empresas e o governo estiveram sempre dispostos a dar fim àsfaixas e outdoors que veiculavam mensagens ecológicas - e hoje, em Campo Grande, são os bancos, as empresas privadas e os órgãosgovernamentais que financiam ou apoiam a cobertura da cidade com esse material.

7 Bakhtin diz que o discurso nasce sempre a partir de um outro discurso, de uma outra palavra, refletindo e refratando essa outra palavra.Não há discurso adâmico. Bakhtin, Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, Hucitec, 1992.

8 Boff, Leonardo. Ecologia: Grito da Terra, Grito dos Pobres. São Paulo, Papirus, 1995.9 Os governantes de Mato Grosso do Sul sobem e descem do poder, criticam-se mutuamente pelas suas obras, mas insistem todos namesma tecla de uma terra só natureza. Um teve o cuidado de dar a entender que o poder é verde com a construção do Parque dos Poderesnuma área muito bem conservada e que destoa dos campos devastados do resto do Estado. Outro inventou o Parque das NaçõesIndígenas como um elo de ligação entre a cidade e o Parque dos Poderes, uma espécie de cimento simbólico entre o cidadão branco e opoder governamental. O último, criticando a megalomania de seu antecessor, tentou mudar o nome do Parque das Nações Indígenas paraParque do Rio Prosa, mas, por fim, insistiu na mesma tecla de um Estado natureza pura: promoveu a Primeira Olimpíada Indígena ealardeou um convênio com franceses para promover a natureza.

10 Quase ninguém sabe, mas a bicharada empalhada do Museu Dom Bosco é troféu de caça de Giovani Magrin, um caçador de Goiânia. Olote de bichos empalhados foi adquirido pelo Museu Dom Bosco e pela Universidade Federal.

11 Os artistas plásticos do Mato Grosso do Sul, na sua maioria, insistem no tema de uma terra natureza plena, pintando uma bicharada emtons naturalistas, menos os artistas índios ou descendentes. Os bugrinhos da artista Conceição do Bugres, por exemplo, em nada separecem com a temática e a linguagem praticada pelos demais artistas dedicados à exaltação de um paraíso imaginário.

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Este ensaio analisa determinados aspectos da cidade deMoscou dos anos 20, pós-revolução, pelo prisma do filósofoalemão Walter Benjamin. É possível depreender, atravésdo olhar do filósofo-artista, os potenciais de uma nova cida-de que se traduz em um novo imaginário urbano construídopelo leitor da cidade moderna. A leitura que faz Benjaminde Moscou dialoga criticamente com a sua própria práticaintelectual que, mais que reproduzir mimeticamente o cená-rio em que flanea, o recria poeticamente, imaginariamente.

Palavras-chave:Cidade, imaginário, subjetividade

This essay analyses certain aspects of the city ofMoscow during the twenties post-revolutionary periodunder a philosophical view of the German Walter Ben-jamin. It is possible to infer, through the point of view ofthe German philosopher and artist, the potential of anew city, which leads to a new imaginary urbanenvironment constructed by the reader of the moderncity. The interpretation Benjamin makes of Moscowinteracts critically with his own intellectual practicewhich, more than just reproducing mimetically thescenario through which he drifts, recreates it poetically,imaginarily.

Keywords:City, imaginary, subjectivity

* Ronaldo Assunção éprofessor de LiteraturaLatino-Americana eEspanhola do Depto deLetras da UniversidadeFederal de Mato Grossodo Sul. Mestre em TeoriaLiterária e LiteraturaBrasileira pela UFSC.

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Todo artista, como assinala César Vallejo, é inevita-velmente um sujeito político. Assim, a literatura podeser concebida como uma atividade crítica profundamenteinterligada com o contexto em que surge; como expres-são cultural que tem um modo próprio de entender eexpressar as mais complexas e simples relações de serhumano consigo mesmo, com os outros e com a natu-reza.

Entre as infinitas questões alocadas pela literatura e aarte de modo geral, pode-se apontar uma que vem medesafiando há algum tempo. Refiro-me à questão da ci-dade moderna e suas representações que afloram no pro-cesso de escritura do artista.

A cidade incere-se como o cenário por excelência damodernidade; o lugar de experiências inusitadas e centrode aventuras vertiginosas. Ao atuar não apenas enquan-to espectador da cena citadina, mas também persona-gem da mesma, o artista busca traduzir, através da lin-guagem, a sua rede de sentidos, donde podemos conce-ber o cenário urbano moderno como um texto discursivoe aberto que permite a atuação do leitor num jogo duplode escritura e leitura.

Ler a cidade enquanto texto, e o texto sobre a cidadecomo ''o relato das formas de ver a cidade'', é a tentativade aproximar-se mais da complexidade cultural que a

cidade moderna engendra. O desafio a que me proponhoneste trabalho é o de buscar demarcar e entender osprocessos de construção de representações sobre e dacidade moderna a partir da experiência do filósofo/artis-ta Walter Benjamin em Moscou, capital da revoluçãosocialista e que tem sido um dos autores que mais temcontribuído para o debate em torno da modernidade e dacidade.

Benjamin passeia pelo cenário moscovita entre de-zembro de 1926 e janeiro de 1927. De sua viagem saiu oDiário de Moscou, livro fascinante e chave para se co-nhecer não só as suas impressões da Rússia de então,mas um período muito particular da sua vida, que surgedespojada de qualquer tipo de censura por parte do au-tor. O texto nasce no instante da vivência, com riquezade detalhes sobre seus problemas, angústias e emoções.Moscou aparece aqui e ali, ao estilo de Benjamin, frag-mentariamente.1

De acordo com Gershom Scholem, os motivos quelevaram Benjamin a Moscou são, num primeiro momen-to, afetivos, pois lá estava Asja Lacis, por quem o filóso-fo nutria um forte sentimento amoroso. Por outro ladotambém desejava conhecer de perto a situação russa etalvez decidir definitivamente seu ingresso no Partido Co-munista Alemão. E, finalmente, para ter uma idéia da

CIDADE REAL, CIDADE FICCIONALIZADA

WALTER BENJAMINPASSEIA PELO CENÁRIO

MOSCOVITARonaldo Assunção*

1 Num momento posterior, Benjamin sistematiza esta experiência em Moscou através de artigos escritos para revistas. Entre estes,encontra-se ''Moscou'', escrito logo após o seu retorno, em 1927, para ser publicada na revista alemã Die Kreatur. Esse artigo foi incluídono livro Rua de mão única, edição brasleira, em Obras escolhidas II. Trad. de Rubens R. T. Filho. São Paulo. Brasiliense. 1987. pp. 155-187. Esse trabalho foi aludido pelo próprio Benjamin, em carta escrita a Sieafried Kracauer, em 23 de fevereiro de 1927, onde declara:''tenho também a intenção de escrever uma síntese de Moscou. Porém, como costuma suceder tratando-se de mim, esta ficará fracionadaem notas especialmente pequenas e díspares, e dependerá do leitor tirar o maior proveito''. Em: BENJAMIN, Walter. Diario de Moscú.(trad. esp.). Buenos Aires, Taurus. 1990. p. 160. No presente trabalho lançarei mão ora do Diário, ora de ''Moscou'' .

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cidade de Moscou, como se vivianela e qual a sua ''fisionomia''.2 Evi-dentemente esses três aspectos secruzam e se confundem ao longo dotexto, mas é possível, no caso parti-cular deste trabalho, ver como a lei-tura que Benjamin faz de Moscou de-termina a leitura que faz da revolu-ção e outros aspectos da políticabolchevique, da arte, dos problemasque afetavam o mundo e de si pró-prio.

Um dos primeiros aspectos docenário moscovita a atrair o olhar deBenjamin é a sua arquitetura:

O estilo arquitetônico da cidade se caracteriza pelasnumerosas casas de um e de dois andares. Essas lhe dãoa aparência de uma cidade de hotelzinhos de verão(...). Com freqüência se encontram pinceladas de corestênues: vermelho principalmente: mas também há azul,amarelo e (...) verde. As calçadas são surpreendente-mente estreitas (...). Com muita freqüência se vêm cor-dões diante das lojas estatais: para comprar manteiga eoutros artigos é preciso fazer fila. (...) [Há] abundân-cia de pães e de outros tipos de bolos: pãezinhos detodos os tamanhos, rosquinhas e, nos cafés, tortas sun-tuosas. Com banho de açúcar fazem construções ou flo-res fantásticas.3O olhar do passeante parte do geral, o estilo

arquitetônico, o traçado das ruas, até se fixar nos deta-lhes; detalhes que são revelações de segredos, a ''cida-de de hotelzinhos de verão'', coloridos. As imagens mo-bilizadas não se reduzem a meras descrições; estão, naverdade, carregadas de sentidos. São objetos alegóri-cos que tramam com o seu leitor uma idéia de cidadedenunciando o seu ''imaginário social'', seu modo deser e viver, a sua tradução. Pode-se dizer que a cidadese deixa falar pelo discurso do seu leitor, tem sua pró-pria voz; é o que Noé Jitrik chama de discurso da cida-de e não apenas sobre a cidade. A cidade se configuracomo um mosaico que permite ao leitor, ao seu bel-prazer, dar significações infinitas, o que, em última aná-lise, significa ficcionar. Os edifícios coloridos, o ba-nho de açúcar, a neve, os mendigos, os vendedoresambulantes, etc., são elementos que configuram o ima-ginário do artista que trama com a cidade uma escritapossível.

Moscou é um cenário enigmático e árido. Benjamin,como quem vai ao encontro de um desconhecido, trazmuitas expectativas. A primeira impressão é reveladora:

''tudo se dispersa logo que busconomes. Tenho de ir-me embora... Noprincípio, não há nada a ver excetoneve.''4 A cidade brinca de esconde-esconde, propondo, assim, um jogolúdico e inocente: ''logo com a che-gada se inicia a fase infantil. Deve-seaprender novamente a andar sobre oespesso regelo dessas ruas. A selvade prédios é tão impenetrável que oolhar só distingue aquilo que brilhadeslumbrantemente.''5 Ler a cidade étambém deixar-se reeducar por ela,colocar em suspenso conceitos pré-

fixados. Neste jogo, a cidade desafia o visitante a encon-trar o seu ''rio'', o seu espírito. O processo de constru-ção textual de Benjamin se afasta, pouco a pouco, dosmoldes do ''realismo socialista'', que se afirmava na lite-ratura e arte de modo geral na Rússia. Seu olhar se con-funde com o cenário misterioso e feérico dessa cidademilenar; cenário de uma nova experiência social e estéti-ca. Desse modo, o filósofo declara:

Antes de ter descoberto a real paisagem de Moscou,de ter visto seu verdadeiro rio, antes de ter achadoseus verdadeiros pátios, cada calçada já se transfor-mou em mim num rio litigioso, cada prédio num si-nal trigonométrico, cada uma de suas gigantescaspraças num lago. Só que cada passo é dado aqui emlogradouros. E, então, no lugar que recebe um dessesnomes, num piscar de olhos, a fantasia constrói emtorno desse som um bairro inteiro que, ainda por muitotempo, vai teimar contra a realidade posterior e nelase fincar quebradiço como muro de vidro. Nesses pri-meiros tempos a cidade tem ainda centenas de fron-teiras. No entanto, um belo dia, o portal, a igrejaque eram fronteiras de um lugar, de improviso, sãomeio. Agora, a cidade se transforma num labirintopara o principiante.6

Benjamin não lê a cidade na tentativa de expressar oseu aspecto real, concreto. Fugindo da reprodução sim-ples e banal, o leitor atua como se pintasse um quadrono qual constrói uma cidade ficcional, imaginária. Oprocedimento não é o de reproduzir mimeticamente,mas o de construir imaginariamente, de modo que sepermita o acréscimo e subtração de elementos, de for-ma dinâmica, cambiante, ''quebradiça como muro devidro'', e ao mesmo tempo poder a fantasia construir,num piscar de olhos, ''um bairro inteiro''. Como indicaRenato Cordeiro Gomes, ''ler a cidade é escrevê-la, nãoreproduzí-la, mas construí-la, fazendo circular o jogo

O estilo arquitetônicoda cidade

caracteriza-se pelasnumerosas casas deum e dois andares.

Essas lhes dãoaparência de uma

cidade de hotelzinhosde verão.

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2 SCHOLEM, Gershom. ''Prólogo''. Em: Diario de Moscú, cit., p.8.3 Diario de Moscú, cit., pp.23-24.4 BENJAMIN, Walter, ''Moscou''. Em: Obras escolhidas II, cit., p.156.5 Ibid., p. 157.6 Ibid., p. 157.

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das significações''.7 Nesse exercícioconstrutivo, dialógico, a cidade temseus códigos secretos, que para oartista são reveladores; são signosdo inusitado e um desafio. Assim, oviajante percebe que ''a cidade gran-de se defende contra ele, se masca-ra, foge, faz intrigas, seduz, até con-fundir à exaustão seus círculos.''8Seu traçado, suas ruas e habitanteso envolvem num jogo lúdico de se-dução:

As ruas de Moscou são um caso àparte: nelas a aldeia russa brincade se esconder. Quando se atravessa qualquer umdos grandes portões - com freqüência podem ser fe-chados com grades de ferro batido, mas nunca en-contrei nenhum fechado - parece que se está no limi-ar de uma provocação espaçosa. Lá se abre ampla eatraente, uma quinta ou uma aldeia, o solo é irregu-lar, crianças andam de trenó.9

Moscou vai, pouco a pouco, traduzindo-se e remode-lando-se a partir do olhar do filósofo-artista. Ela passa aconfundir-se com ele. A cidade é poetizada, ou, comoqueria Borges, ''literaturizada'', fundindo-se com o eu líri-co na sua forma poética, nas suas imagens poéticas:

Pedestres ecoam entre carros e cavalos rebeldes. Longasérie de trenós nos quais se despacha neve. Cavalei-ros solitários. Bandos mudos de corvos estão pousa-dos na neve. Os olhos estão infinitamente mais ocu-pados que os ouvidos. As cores proclamam o seu ex-tremo contra o fundo branco. O mais ínfimo trapocolorido cintila ao ar livre. Livros de figuras jazemsobre a neve; chineses vendem artísticos leques depapel e, ainda mais freqüentemente pipas na formade exóticos peixes de águas profundas. Todos os diasse organizam festas infantis. Há vendedores com ces-tos cheios de brinquedos e pás; os carrinhos são ama-relos e vermelhos.10

O ponto culminante do olhar de Benjamin está nosdetalhes. Como ele mesmo escreveu, ''sem ao menosuma compreensão intuitiva da vida do detalhe através daestrutura, a inclinação pelo belo é um devaneio vazio. A

7 GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade. Literatura e experiência urbana. Prefácio de Eneida Maria de Souza. Rio deJaneiro. Rocco. 1994; p. 57.

8 ''Moscou'', cit., p.157.9 Ibid., pp. 181-182.10 Ibid., p. 158.11 BENJAMIN, Walter, Origem do drama barroco alemão. Trad. de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo. Brasiliense. 1984. p.204.12 BOLLE, Willi. ''Viagem a Moscou: o mito das revoluções''. Em: Revista da USP, nº 5. São Paulo, mar-abr-mai. 1990. p.129. Esse artigo

foi incluído posteriormente no livro de Bolle. Fisiognomia da metrópole moderna. Representação da história em Walter Benjamin. SãoPaulo. EDUSP. 1994, cap. IV. O livro aprofunda, de forma exemplar, a leitura da cidade moderna pelo prisma de Benjamin. Un textofundamental para o estudo em torno da modernidade e da cidade moderna, temas constantes no universo crítico de Benjamin.

13 ''Moscou'', cit., p.158.14 Diario de Moscú, cit., p.76.

estrutura e o detalhe em última aná-lise estão sempre carregados de his-tória.11 Dessa forma, o crítico retirados detalhes da vida cotidiana cita-dina o valor dialético que está ador-mecido. Constrói, como acertada-mente observou Willi Bolle (que, naesteira de Benjamin, depreende naleitura deste os componentes de umanarrativa feérica), ''um conto de fadapara cabeças dialéticas''.12 De modoque, em uma manhã de um dia qual-quer, ele descobre ''casinhas jamaisvistas, com janelas lampejantes e

uma cerca em torno da estrada: brinquedos de madeirade Província de Vladimir.13 Ou vê, na dinâmica do coti-diano das ruas, as construções alegóricas dos vendedo-res ambulantes:

Gostaria de escrever sobre flores em Moscou, refe-rindo-me não somente às heróicas rosas de Natal,mas também às imensas malva-rosas das pupilas daslâmpadas que os vendedores transportam pela cida-de, orgulhosamente alçadas. E dos doces adornos deaçúcar das tortas. Ainda que haja também tortas queparecem cornucópias e das que saem em trompatriquitraques ou bombons envoltos em papel colori-do. Tortas em forma de lira. O confiteiro dos velhoslivros juvenis parece sobreviver ainda em Moscou.Somente aqui se encontram figuras feitas exclusiva-mente de açúcar fiado (...). Também teria que falarde tudo o que o orvalho sugere aqui; dos lenços dascomponesas, cujos bordados, costurados com lã azul,reproduzem as rosetas de gelo das janelas. O inven-tário das ruas é inesgotável.14

Benjamin não é mais o teórico da alegoria, mas opróprio alegorista, mobilizando os objetos e atribuindo-lhes novos sentidos.

Ao ver os vendedores ambulantes como vendedoresde fantasias e sonhos, Benjamin desvela um novo imagi-nário social e poético. Esse imaginário está determinadopor fatores estranhos, diferentes dos de outras socieda-des. Mas o que há de novo nesse cenário? Que lições oartista retira desse plexo cultural? Creio ser possível in-

Moscou vai,pouco a pouco,traduzindo-se e

remodelando-se apartir do olhar dofilósofo-artista.

Ela passa aconfundir-se com ele.

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ferir, a partir dessas leituras, que asimagens mobilizadas do cenáriomoscovita remetem a uma convivên-cia social que, apesar de sua desarti-culação, materializa-se a partir depráticas culturais novas, predominan-do as relações de liberdade, de auto-nomia e solidariedade. Essa organi-zação se articula fora de um centroinstitucional unificador. Ou seja, onovo não surge de uma ordemestabelecida, do consenso hegemô-nico, que determina o caminho a serseguido. Nasce justamente das prá-ticas alternativas, espontâneas, livres e criativas, deter-minando seu caráter experimental, destrutivo-construti-vo. Essa é a dialética que se manifesta na leitura de Ben-jamin em Moscou, e desponta, para usar uma rica ex-pressão de Rafael Gutiérrez Girardot, como ''un motorpurificador de la política y de la praxis política que comotal pierde su fuerza cuando sigue el camino que indica.15

Ainda que Benjamin esteja atento para o debate ideo-lógico da época, não é aí que encontra um terreno fértilpara a sua crítica. A esse respeito Willi Bolle observa que''enquanto na capital da URSS de1926/1927 as lideran-ças políticas e intelectuais estão comprometidas com aluta pelo poder, pelo qual garimpam dia e noite (...), ointelectual Walter Benjamin, em suas solitárias andançaspelas ruas da cidade, não tem nada melhor a fazer doque comprar tangerinas, nozes e doces para a mulherque ama, ou escolher, com carinho, brinquedos artesanaispara o filho. Tal comportamento, a um passo do idílico edo subjetivismo total, tem algo de frágil e sublime que otranscende. Enquanto na cúpula do império socialista seplaneja o futuro da humanidade, o protagonista e autordo Diário de Moscou também toca no futuro, em suaforma mais imediata, concreta, palpável''.16 Bolle confir-ma, de certa forma, o que vínhamos desenvolvendo atéaqui, mas é importante não tomar a atitude de Benjamincomo sendo uma espécie de cegueira amorosa que lheimpede ou dificulta interessar-se por outros problemas.Ao contrário, a relação com Asja Lacis e seus passeiospelas ruas, museus, etc., são elementos que consti-tuemum procedimentos de leitura profundamente relacionadadentro de um contexto mais geral, pois Benjamin estáem constante diálogo com artistas, políticos, amigos,bem como com suas atividades intelectuais (tradução de

Proust, ensaio sobre Goethe, cartas,leituras, debates, reflexões sobre seufuturo, etc.).

O que é revelador, de fato, é vercomo o movimento das ruas produzuma dinâmica profundamente criati-va para Benjamin. Este se atém aobservar, por exemplo, um dos per-sonagens freqüentes nesse cenário:os mendigos. Para o crítico, elesconstróem uma ''sábia organização'',formam uma ''coorporação de mori-bundos''. ''Eis um mendigo que dáinício a um choro baixo e persistente

toda vez que dele se aproxima alguém de quem esperaobter alguma coisa; esse choro se dirige a estrangeirosque não sabem russo.17 O choro é o seu códigolingüístico, um meio alternativo de comunicação que temum único objetivo: fazer aflorar a piedade burguesa doestrangeiro. Mas não são somente os mendigos os filhoslegítimos das ruas; juntam-se a eles os vagabundos, asprostitutas, os vendedores. Fora da ordem estabelecida,eles só encontram proteção e abrigo no seio da grandemãe, a cidade:

''Sabem num tempo certo de um canto ao lado daestrada de certa loja onde lhes é pertinente se aque-cer por dez minutos; sabem onde podem ir buscar, emdeterminado dia da semana, numa hora certa, cros-tas de pão, e onde existe vaga para dormir em tubulõesamontoados uns sobre os outros. Com centenas deesquemas e variantes transformam a miséria numagrande arte''.18

Se o socialismo não havia ainda chegado às ruas, nasua forma oficial, esta, livre do controle direto daquele,organiza-se a seu modo e de forma criativa. Em con-traste, nos espaços onde o controle estatal se faz pre-sente, o processo é distinto. Ali tudo é transitório, deacordo com as novas funções que lhe são atribuídas.Assim, em nome do socialismo e do progresso desen-freado, perdem-se os potenciais criativos e a subjetivi-dade das pessoas. ''O bolchevismo aboliu a vida priva-da. A natureza dos serviços públicos, a atividade políticae a imprensa são tão poderosos que não sobra tempopara interesses que não confluam com elas.19 E comple-ta no seu Diário, ''ser comunista num Estado sob o do-mínio do proletariado supõe renunciar completamente àindependência pes-soal. O indivíduo, por assim dizer,

Nos espaços onde ocontrole estatal se faz

presente tudo étransitório. Em nome

do socialismo e doprogresso desenfreado

perdem-se ospotenciais criativos

das pessoas.

15 GUTIÉRREZ GIRARDOT, Rafael. ''César Vallejo y Walter Benjamin''. Em: Cuadernos Hispanoamericanos, nº 520. Madri, out. 1993.Instinto de Cooperación Iberoamericana. p.69.

16 ''Viagem a Moscou: o mito das revoluções'', cit., p.129.17 ''Moscou'', cit., p.163.18 Ibid., p.163.19 Ibid, p.166.

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delega ao Partido a tarefa de organi-zar a própria vida.20 Condição esta nãoaceita por Benjamin e que o leva, en-tre outras coisas, a não ingressar noPartido Comunista Alemão. O filóso-fo questiona a viabilidade de levar adi-ante seu trabalho científico, que temcomo base os estudos formais emetafísicos, dentro de um sistemacujo materialismo científico é a basede todo conhecimento.

Para Rafael Gutiérrez Girarbot,Benjamin é um filósofo-poeta, defi-nido pelo próprio Benjamin como umaconjugação ''Denkbilder'', isto é, ''pensamento-imagens''ou ''pensamento em imagens'' e ''imagens em pensamen-to''; que em definitivo são construções alegóricas. O fi-lósofo buscou articular essa noção com o marxismo-leninismo, mas a união entre alusão e dogmatismo nãosurtiu efeito positivo.

Não estranha, então, as críticas que faz aos intelec-tuais e artistas dentro da própria Rússia. Estes não seopõem a nada, estão do lado do poder, quando não são opróprio poder. ''O intelectual é - observa Benjamin - an-tes de mais nada, funcionário, trabalha no departamentode Censura, de Justiça, de Finanças, onde não cai emdecadência, sócio do trabalho - mas, na Rússia, isso sig-nifica sócio do poder. É membro da classe dominante.(...) Também no campo da produção intelectual ele seconfessa afim com o pensamento da ditadura''.21 É pre-ciso observar que a leitura crítica de Benjamin desvendanão só as contradições que se gestavam no interior dacúpula revolucionária do Partido, mas, também, o cará-ter passageiro da própria revolução, retendo suas ener-gias não no espaço privado, centralizador e hierarquizado,mas no espaço público, aberto e descentrado. A leituracrítica que Benjamin faz da revolução, em 1927, a partirde Moscou, confirma a idéia de que o filósofo pensa acidade como pluralidade e a revolução como espetáculo;a cidade como o cenário onde se ensaia um possívelmodo de ser e viver diferente, independente do fracassoou do êxito em si do processo revolucionário.

A experiência de Benjamin em Moscou propiciou,talvez como o fator mais fecundo, conhecer, mais doque a própria Moscou e o socialismo, a si mesmo. Asrelações que mantém com intelectuais russos, com AsjaLacis, com seu amigo Bernhard Reich e com Moscou,

permitiram ao crítico olhar para sipróprio e sua prática intelectual. Demodo que, ao falar de Moscou, estáfalando de si e de sua cidade, comodeclara:

Por meio de Moscou se aprendea ver Berlim mais rapidamente quea própria Moscou. Para quem re-gresse da Rússia, a cidade está comoque recém-lavada. Não há sujeira,mas tampouco há neve. As ruas afi-guram-se-lhe na realidade tãoinconsolavelmente limpas e varridascomo os desenhos de Grosz. E tam-

bém a naturalidade de seus tipos lhe é mais evidente.O que acontece com a imagem da cidade e das pes-soas não é diferente do que com as condições espiri-tuais: a nova ótica que desta se ganha é o produtomais incontestável de uma estada na Rússia - o quese aprende é a observar e a julgar a Europa com osaber consciente do que sucede na Rússia.22

Para Benjamin, na Rússia somente os decididos po-dem ver. Ver não qual das realidades (a da Rússia ououtra) é a melhor, mas ''qual das realidades se tornaintrinsecamente convergente com a verdade? Qual dasverdades se prepara para convergir intrinsecamente como real? Só é objetivo quem nesse ponto dá uma respos-ta clara. Não perante seus contemporâneos (isso não éo mais importante). Mas perante os acontecimentosatuais (isso é decisivo). Só quem, na decisão, fez como mundo a sua paz dialética pode apreender o concre-to'' .23 Benjamin não só vê, como depreende os fatosconcretos que demarcaram a crise do seu tempo e asua condição de intelectual. Em Moscou, o filósofo ale-mão, com seu aguçado espírito crítico, faz um diag-nóstico bastante crítico da revolução socialista. Se porum lado comulga com o marxismo a necessidade de seconstruir uma nova sociedade socialista, por outro, des-carta a interpretação marxista do processo histórico quefunde racionalismo linear e progressista com um pro-cedimento centralizador e autoritário.

Nessa leitura dialética, o papel de Moscou como ima-gem alegórica é inquestionável e decisório enquanto expe-riência e amadurecimento de um filósofo inquieto e refi-nado que alcança ver, na sobreposição de imagens, Berlimem Moscou e nelas a si próprio e, em decorrência, a crisejá latente dos paradigmas civilizatórios existentes.

Na Rússia somente osdecididos podem ver.

Ver não qual dasrealidades é a melhor

mas qual se tornaintrinsicamente

convergente com averdade?

20 Diario de Moscú, cit., p.94.21 ''Moscou'', cit., p.177.22 Ibid., p.155.23 Ibid., p.155.

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A fotografia de Sebastião Salgado é debitária, implícitaou explicitamente, da pintura renascentista e serve-se emprofusão da ambigüidade, recurso próprio à poesia, no sen-tido literário do termo. Desta forma, sua fotografia não podeser lida como simples registro do real, pois oferece ao leitoruma multiplicidade de leituras possíveis e grande númerode referências intertextuais a serem decodificadas em situ-ação de análise.

Palavras-chave:Fotografia, intertexto,

Sebastião Salgado

The pictures taken by Sebastian Salgado owes much,implicitly as well as explicitly, to the renaissance painting.He resorts to the profusion of ambiguity in poetry itself.Thus, his pictures cannot be read simply as theregistering of day to day for it supplies the reader witha multiplicity of possible understandings and a greatnumber of intertextual references to be decodified in ananalytical situation.

Key-words:Photography, intertextuality ,

Sebastião Salgado

* Marcelo Marinho élicenciado em LetrasModernas e emLiteratura Geral eComparada pelaSorbonne Nouvelle; émestre e doutorando emLiteratura Geral eComparada pela mesmauniversidade; éprofessor de TeoriaLiterária e LiteraturaBrasileira naUniversidade CatólicaDom Bosco,Campo Grande.

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“Inúmeros traços poéticos relacionam-se não ape-nas com as Ciências da Linguagem, mas com a Teoriados Signos em seu conjunto; em outros termos, com asemiologia (ou semiótica) geral”, afirma Jakobson1 .Ora, traços poéticos são aqueles que caracterizam apoesia como arte da linguagem (escrita ou não) expri-mindo ou sugerindo idéias ou sentimentos através doritmo, da harmonia e da imagem. Assim, a poesia podese manifestar (e é essencial) em qualquer obra de arte(literatura, pintura, escultura, cinema, fotografia, etc.)e ligar-se-á, de maneira extremamente coesa, à lin-guagem conotativa e, por conseqüente, à ambigüida-de. O conceito “poesia”, é notório, poderá igualmentedesignar certas propriedades de seres ou objetos quedespertam no homem um estado poético (estado oníricoou de devaneio).

Cumpre portanto buscar os traços poéticos na obrade Sebastião Salgado, hoje considerado como um dosmaiores fotógrafos vivos do planeta. Em sua dimen-são poética, esta fotografia não poderá ser submetidaa uma qualquer prova de verdade. Ela não saberia ofe-recer-se como um simples registro da realidade, comopropõem tantos e mais detratores da arte fotográfica,imagem unívoca, obediente a normas e hábitos, previ-sível, transparente, dotada de automatismo, buscandoapenas e tão somente informação objetiva - caracte-rísticas, como sabemos, da linguagem comum, não dalinguagem poética -. Por esta razão, consideraremoscomo central o aspecto ficcional, imaginário,desconsiderando para tanto a dimensão documental da

Marcelo Marinho*

imagem fotografada. Nesta perspectiva, lançaremosum olhar sobre a fotografia intitulada “Nômades atra-vessam o Lago Faguibin, ressecado”, composição as-saz despojada e paradoxalmente repleta de elementosde reflexão sobre a arte fotográfica e o estatutoontológico do homem.

Para tanto, buscaremos inicialmente traços signifi-cativos na composição fotográfica (desde a escolha dosuporte até o agenciamento das formas, luminosidade,cores e texturas), traços que instauram aquela “forme-sens” da qual fala Henri Meschonnic, e por cujo inter-médio a obra de arte grava-se na memória, incorpora-se às experiências vividas pelo homem, ao contrário dasinformações jornalísticas, cujas pretensa objetividade,brevidade, univocidade ou clareza e, sobretudo, ausên-cia de correlação, de solução de continuidade entre asinformações, diminuem as chances de incorporação deacontecimentos exteriores à experiência pessoal do serhumano, pois o bombardeio de fatos não atinge ainterioridade privada de quem os decodifica. Nesta pers-pectiva, chamaremos leitor-decodificador, ou apenase tão somente leitor, ao destinatário da fotografia. Comvistas à decodificação da mensagem (no sentidolingüístico do termo), veremos com Jakobson que, “paraser operante, a mensagem requer inicialmente um con-texto ao qual ela remete, (...) contexto passível de cap-tação pelo destinatário, contexto que será ou verbal, oususcetível de ser verbalizado.”2 Cumpre portanto, naseqüência, verbalizar o contexto de produção e leiturada fotografia analisada.

AMBIGÜIDADE, POÉTICA E INTERTEXTO

A FOTOGRAFIA DESEBASTIÃO SALGADO

1 Roman Jakobson, Essais de Linguistique Générale, p. 210.2 Ibid., p. 213.

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Contudo, para retomar noções propostas porJakobson, diremos que, considerado nosso objetivo decontribuir ao debate científico, nos situamos na ver-tente oposta àquela dos debates políticos, e, desta fei-ta, não buscamos nem podemos buscar o consenso,assim como não podemos fazer recurso ao voto e aoveto, pois “o desacordo desvela antinomias e tensõesno interior do campo estudado; ele é pretexto para no-vas explorações”3 , como escreve o lingüista. Visare-mos, portanto, ter lançado, ao término de nossa análi-se, bases para novas explorações, chaves para novase múltiplas leituras.

Como sói ser em obras de superior valor estético,inúmeras são as referências (conscientes ou inconcien-tes) intertextuais trazidas a efeito nesta composiçãofotográfica. Assim, podemos inicialmente ver que, talqual em composições pictóricas do períodorenascentista, os nômades retratados por Salgado tra-zem sobre si tecidos drapeados e esvoaçantes, soltosao vento, tecidos apenas atados sobre o corpo e semcosturas, cujas dobras são sublinhadas por uma certaluminosidade diáfana, etérea. A título de ilustração,estas são características que poderemos observar nasreproduções em anexo, a saber, Nascimento de Vênus,de Botticelli (1444-1510), A Sagrada Família, deMichelângelo (1475-1564) e Madonna, de Rafael(1483-1520).

Poucas não serão as semelhanças entre a Nôma-de de Salgado e certas Madonnas dos períodos me-dieval - aquelas de Cimabue (1240-1302) ou Giotto(1267-1337), por exemplo - e renascentista - Michelangelo, Peruggino, Rafael, entre outros -. As-sim, tal qual a Madonna de Rafael (ver reprodução),a Nômade traz consigo duas crianças (figura 2, per-sonagens 2 e 3), em quem as dobras adiposas rever-tem-se em sulcos inter-ósseos, retratos inversos derotundos, bem nutridos e quase arianos Cristo e SãoJoão em companhia da Virgem, africanos Cristo eSão João esqueléticos e famintos, símbolos de um pro-vável Cristo pouco louro e com olhos nada azuis ig-norado pelos homens em sua manjedoura, local ondealimentam-se animais. Através do recurso à regrarenascentista dos três terços (Le Nombre d’Or), Sal-gado acentua dois pontos simétricos em cuja direçãoserá carreado o olhar: ombros descarnados e nus damulher famélica, nádegas nuas e descarnadas da des-nutrida criança, fato que realça o contraste entre asimagens aqui comparadas, que dá relevo a persona-gens angulosos e distantes das rotundidades daque-les levados à tela pelos pintores renascentistas - note-se coincidentemente aqui a moldura circular da A Sa-grada Família, de Michelângelo -. Por outro lado,

vemos que a famélica criança (figura 2, personagem2) traz fechada sua mão, e nas representações sa-cras as mão encontram-se, na maior parte do casos,ostensivamente abertas, como para receber a graçaou misericórdia Divinas. Aqui, nada se espera. Nes-ta perspectiva, observaremos que as mãos dos ou-tros personagens encontram-se escondidas, ou pen-dem inertes rumo ao solo. Este mesmo pequeno per-sonagem (nº 2) esconde seu rosto e faz pensar noInferno da Capela Sistina, pintado por Michelângelo;igualmente, o pequeno leva seus olhos fechados emsugestão de desamparo, de recusa à situação vivida,ao momento atravessado.

Ao fundo, na pintura de Michelângelo, A SagradaFamília, vemos anjos guardiões desnudos cujas figu-ras, em Salgado, serão substituídas pelos garota e ga-rotos semi-desnudos (figura 2, personagens 4, 5 e 6),

Nômades atravessam o lago Faguibin, ressecado. Mali, 1985.Foto de Sebastião Salgado.

3 Ibid., p. 210.4 Georges Péninou, “Física e metafísica da imagem publicitária”, inChristian Metz, A Análise das imagens, Petrópolis, Vozes, 1973)

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anjos esgotados e vencidos pelosreveses, seres que, entretanto, per-manecem anjos, posto que, tal qualvige no simbolismo do imagináriocristão, conduzem e protegem a ca-minhada deste grupo de nômades.Ademais, na vertente oposta às con-vencionais Madonnas medievais ourenascentistas apresentadas frontal-mente ao espectador-leitor, aMadonna de Salgado é mãe que,como seus anjos protetores, volta asespaldas ao público, busca retirar-se, escapar ao olharhumano. É mãe que está a meio termo de tornar-sePietà, figura que traz à cena o tema cristão da mãedesamparada (stabat mater lacrimosa, dolorosa) - tema carreado à expressão musical por Pergolese

(1710-1736) ou Anton DvoÍák(1841-1904), entre outros - diantedas agruras sofridas por seu reben-to, mas também diante daquelas so-fridas por si mesma.

As espaldas voltadas ao públi-co podem fazer emergir as noçõespropostas por G. Péninou em re-lação à fotografia, notadamente pu-blicitária. Péninou afirma que “seos olhos baixam, fixam um detalhedo objeto [anunciado em publicida-

de] ou fogem, oblíquos, para longe, a mensagemconativa se apaga”4 Ora, nesta fotografia de Sebas-tião Salgado não há olhar em direção ao espectador,logo aplaina-se a função conativa, cuja etimologia (la-tim conatio, tentativa, esforço) indica impulsão no sen-

Como as composiçõesrenascentistas,os nômades deSalgado trazem

tecidos soltos ao ventocom luminosidade

diáfana.

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tido de determinar um ato,um esforço, tendênciaconsciente para atuar.Ainda uma vez, lembre-mos das mãos fechadasou braços pendentes dascrianças retratadas, sím-bolos de uma total deses-perança na providênciahumana ou divina. Nestaperspectiva, pensemosnaqueles intrigantes per-sonagens das pinturas deNicolas Poussin (1594-1665) que, a partir de umponto qualquer do quadro,contemplam por vezes, di-retamente e em posiçãofrontal, o lugar onde de-verá situar-se o especta-dor, como a chamá-lo aparticipar da situação representada, a completar o qua-dro, obra aberta, situação diametralmente oposta àquelados nômades no Lago Faguibin.

Esta fotografia de Salgado pode igualmente ser vistacomo reconstrução às avessas do célebre Nascimen-to de Vênus, de Botticelli (1444-1510), retrato inversoonde esvai-se o elemento líquido, como indica a legen-da, onde encontra-se ausente a água, símbolo de locusamoenus, de alegria do retorno ao aprazível líquidouterino. Em Salgado, não haverá ninfa primavera, comsua veste ormamentada de flores e seu manto protetorem tons pastel; tampouco haverá vegetação à esperadesta desidratada Vênus africana. Ademais, estaVênus caminha da direita para a esquerda, sentidocontrário àquele indicado pelo movimento esboçadopela Vênus de Botticelli, cuja perna direita avança so-bre a esquerda como se fosse iniciar um movimentona direção da margem direita da composição. Obser-ve-se ainda que, coincidentemente, a nascente Vênuse sua antípoda Nômade trajando o escurecido mantoda Morte - símbolo do embate entre Eros e Tanatos,pulsões de vida e morte - ocupam a mesma posição namise en page destas composições respectivamentepictórica e fotográfica, cujas estruturas em pirâmidetêm como vértice o ápice das cabeças das figuras cen-trais das situações representadas (figuras 1 e 3). Esteembate entre Eros (Vênus) e Tanatos simboliza aspulsões bipolares que regem a caminhada do ser hu-mano, e da comparação entre a Vênus de Botticelli ea Nômade de Salgado poderemos abstrair paresantinômicos tais como alto x baixo; miséria x riqueza;vida x morte; cerimônia de vida (festa) x cerimônia demorte (féretro e sepultamento); júbilo x dor; dinamis-mo x estatismo.

Não obstante, notemos que a composição pirami-dal é moeda corrente entre artistas plásticos como Fra

Angelico (1400-1455), Leonardo Da Vinci (1452-1519),Rafael (1483-1520), entre tantos outros, e nela pode-mos observar a presença, em termos implícitos, daSantíssima Trindade. Na composição do fotógrafo bra-sileiro, os limites do manto, a inclinação e o alto dacabeça da mulher adulta, o olhar da garota e o alinha-mento das cabeças do garoto e da garota (figura 2,personagens 1, 4 e 5) completam a pirâmide. Este étambém um triângulo que aponta para o céu e que trazem si a oposição entre alto e baixo, com suasconotações valorativas antropomórficas (os pés, planoinferior, em oposição à inteligência, plano superior).Igualmente, poderemos observar uma segunda pirâ-mide, reduzida, contudo, à sua metade, e ligeiramenteinclinada, tal como poderíamos perceber uma eventualpirâmide que se deslocasse com velocidade relativa-mente alta (figura 1), imagem também presente emBotticelli.

Ambas as Vênus - a da vida e a da morte - ofere-cem a mesma elegância em seu delgado movimentoondulante. Entretanto, as ondulantes madeixas ruivasde Vênus de Boticelli transformam-se, nas mãos deSalgado, em bem sólidas e fixas tranças negras, tran-ças às quais o sopro do Zéfiro do quadro inicial nãoconseguirá dar movimento. Igualmente, o Zéfiro deBotticelli sopra no sentido sugerido pelo movimento deVênus, movimento que é favorecido pelo vigor dasforças eólicas; por sua vez, a descarnada Vênus deSalgado deve ainda, ademais de seus reveses, enfren-tar vento contrário a seu movimento, como observa-mos no balançar de suas vestes.

As indicações étnica (vestuário, pigmentação dapele, cor dos cabelos) e geográfica efetuadas por Sal-gado realçam a contradição entre o padrão de vida decertas camadas da população do planeta - simboliza-das pelo Museu do Ofício, em Florença, onde encon-

Figura 1

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Figura 3

ais logradas em um planeta que, afinal, a todos per-tence. A função conativa eliminada pela ausência doolhar em direção ao espectador é assim recuperadaatravés de um jogo especular que traz à tona a ima-gem do espectador diante de si mesmo, diante de suasreferências culturais transmutadas em pálido quadrodo oeste africano.

Por outro lado, podemos ver, pelo descentramentotemático encontrado na fotografia de Sebastião Sal-gado, a modernidade anunciada na literatura porGuillaume Apollinaire (1880-1918) e Manuel Bandei-ra (1886-1968), levada a efeito na fotografia de RobertDoisneau (nascido em 1912) e Henri Cartier-Bresson(nascido em 1908), temática que pode ser lida como

transposição intertextualdaquele Enterrement àOrnans, de GustaveCourbet (1819-1877), quetanto chocou o públicofrancês pelo tema realis-ta e pela inusitada extra-ção social dos persona-gens. Na mesma perspec-tiva, a fotografia de cunhosocial exclusivamente empreto e branco de Salga-do pode ser lida como su-gestão de um certopassadismo, de uma cer-ta recusa a um presenteindigno de seres humanos,retrato sobre papel foto-gráfico daquela “lit-térature engagée” preco-nizada por Sartre5. Tería-mos portanto uma rever-são, em termos de com-promisso social, do temacristão da caminhada(Maria e José, o bomSamaritano), da peregri-nação, procissão sem ima-gens, sem ídolos, sem ve-nerações, tema que podefazer pensar também na-queles retirantes do nor-deste brasileiro e, por estavertente, relacionar-se,sob uma ópticaintertextual, com a poesiade João Cabral de Mello

tra-se a Vênus em meio a formidável acervorenascentista - e o padrão de outras totalmentedesmunidas e desamparadas, como este grupo da Áfri-ca do oeste. Os primeiros, aqueles que abandonam (es-pectadores impassíveis), estão assim sugeridos nestasimagens que podemos ler como referências à culturaocidental (aqui entendida como cultura dos países in-dustrializados). As altas formas de abstração atingi-das por estas sociedades do Norte (e colocadas emexercício nesta composição fotográfica) somente atra-vés das lentes de um poeta da imagem como Sebas-tião Salgado poderão dar expressão (e contradição) àrealidade cotidiana de sociedades inteiras que vivem,ao Sul, à margem das conquistas materiais e intelectu-

5 Régis Debray declara: “deve-mos a Salgado a reconciliaçãodo estético com a militância”(Veja, 12/03/97, p. 80).

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Figura 2

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Neto e inúmeras outras manifesta-ções da cultura brasileira.

Incontáveis são, portanto, os ele-mentos conduzindo a uma leituramúltipla e ambígua desta fotogra-fia. Entre as questões diretamenteacessíveis e ostensivamente maisabertas, poderíamos sublinhar: amulher leva as crianças (persona-gens 2 e 3) pelas mãos ou estas aseguem por si próprias, abandona-das à própria sorte? A garota (per-sonagem 4) ri ou franze o rosto? Sefranze o rosto, seria por efeito daação do vento ou pela predominância da luzesbranquiçada? Qual a posição da fonte de luz? A mu-lher encontra-se grávida ou seu manto está abauladopela ação do vento? A criança (personagem 2) choraou protege-se do vento e da areia? Qual é o objetocarregado pela mulher? Este objeto encontra-se à mãoou a tiracolo? A garota (personagem 4) traz um galhoà mão, o galho encontra-se cravado no solo ou trata-se de um pedaço de tecido de sua roupa? Qual é aidade aproximada das crianças? Os laços que os unemsão de parentesco ou de amizade? O percurso é de idaou de retorno?

Nesta perspectiva, podemos ver que a luz provémnão se sabe bem de onde, pois o sombreamento dovestuário da mulher parece indicar uma fonte lumino-sa do outro lado do véu, em contraluz, no lado opostoao espectador (e ao fotógrafo - é notória a predileçãode Sebastião Salgado por construções em contraluz6 ).Igualmente, podemos lembrar que, quando temos àfrente uma espessa barreira de neblina, ou neve, ouareia muito clara, o reflexo da luz pode ser tão fortequanto a intensidade da fonte luminosa que porventuraencontra-se em nossa retaguarda.

Assim, esta fotografia parece reger-se pelo princí-pio da incerteza: idade, sexo das crianças, gravidez,mãos do garoto, mãos da mulher, grupo ou família, sor-riso ou careta da menina, galho ou farrapo de tecido,destino da caminhada, objetivos, objeto levado a tira-colo pela mulher, tantos serão por conseqüente os ele-mentos dúbios na composição. Esta dualidade pode que-rer-se imagem especular da modernidade, da era dohomem binário (1,0,1,0,sim,não), do princípio da incer-teza da física quântica e da fratura dos pilaresepistêmicos levada ao paroxismo. Seja como for, po-demos dizer, com Louis Marin, que a ambigüidade sótende a agregar valor à obra de arte. Com efeito, ao

analisar o quadro Paysage avec unhomme tué par un serpent, deNicolas Poussin, L. Marin observa,a partir de leituras em aparência con-traditórias propostas por Fénelon,Félibien e pelo autor de um catálo-go, que a superposição destas leitu-ras distintas - unicamente possíveisem função da ambigüidade, dadualidade existente na representa-ção de Poussin - “libera um come-ço de sentido”7 , e, ademais,“dualidade que é o sentido e nãovariação sobre um tema oculto”; em

outros termos, a dualidade seria a chave de acesso ao“conjunto aberto das leituras possíveis”, para retomarpalavras do crítico8 que fazem eco à noção propostapor W.H. Auden.

Em que pese a ambigüidade presente em inúmeroselementos da foto, é patente o estado de sofrimento eprivação em que encontram-se os personagens, que ca-minham olhando para o chão, cabisbaixos, pensativos.O olhar alcança apenas e tão somente o espaço defini-do pelo próximo passo, feito que sublinha uma certa au-sência de perpectivas. Assim, caminham como autô-matos, abúlicos, indiferentes à própria sorte, sem desti-no seguro, pois nada há no horizonte da paisagem retra-tada. Nesta perspectiva, torna-se impensável saber, apartir dos elementos apresentados, se os personagensestão indo ou voltando, e estes não trazem consigo quais-quer objetos que indiquem objetivo (por exemplo, umaânfora vazia, objetos para venda, objetos adquiridos ourecebidos, bagagens, um livro, alimentos). Ademais, ca-minham da direita para a esquerda, movimento que ex-perimentamos como retrocesso, pois dá-se em sentidocontrário ao da leitura na cultura ocidental. Basta colo-car-se a fotografia em contraluz e observá-la invertida,com seu dorso voltado aos olhos, para perceber-se queo movimento fará aquisição de valores positivos, serápercebido como avanço, não retrocesso.

A roupagem parece ser um fardo difícil a transpor-tar, um fardo de grande volume, pesando sobre osombros apesar de apresentarem-se esvoaçantes sob abrisa soprada por Zéfiro. As tranças figuram-se para-lelas às margens verticais que, por sua vez, encon-tram-se solidamente soldadas às margens horizontaisda pouco maleável moldura. As tranças tombam retase rígidas em direção ao solo, como peso fixando-se àterra de origem, como recusa à terra de destino, comorecusa ao movimento, recusa à própria vida. A cena é

Incontáveissão os elementos

conduzindo auma leitura múltipla

e ambígua dafotografia.

6 Salgado afirma: “É claro que eu tenho de trabalhar contra a luz. A minha cidade, Aimorés, tinha um sol incrível. A gente vivia na sombra.Eu sempre olhei meu pai chegando em casa na contraluz. Eu na sombra, ele vindo do sol. Numa fração de segundo, eu restituo tudo isso”(Veja, 12/03/97, p. 81).

7 Louis Marin, “A descrição da imagem: a propósito de uma paisagem de Poussin”, in Christian Metz, A Análise das imagens, p. 85.8 Ibid., p. 105.

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A SagradaFamília, deMichelângelo

Nascimento de Vênus,

de Botticelli

var esta fotografia. No entanto, a idéia que permane-ce é a de ida em direção a algo, pois o espaço é maisvazio à frente dos caminhantes do que à sua retaguar-da. Em situação inversa (espaço mais vazio à reta-guarda), a ação de abandonar um local estaria sugeridacom mais propriedade que a ação de buscar um local(ou algo).

O grupo parece caminhar por entre a luz (tudo éesbranquiçado, como um véu translúcido), em um es-paço indefinido entre o céu e a terra, e nota-se a au-sência de sombras bem definidas, como se a fonte de

paisagem lunar que nada inclui e muito contribui paraa expressão de uma vida em vacuidade, indigna deseres humanos. O agenciamento dos elementos de com-posição fotográfica sugere que o prolongamento doolhar em direção à esquerda ou à direita, acima ouabaixo do enquadramento, somente revelaria o vazio,o nada, uma luminosidade opaca que nada pode ilumi-nar nem conter. Mais ninguém encontra-se noenquadramento, e a ausência de água e de vida vege-tal é total, elementos que contribuem para criar a im-pressão de desamparo que experimentamos ao obser-

Madonna,de Rafael

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luz fosse tão somente um halo. Aindefinição da sombra projetada nosolo arenoso também sugere seresimpalpáveis, imater iais, fan-tasmagóricos, seres do além. A im-pressão de desamparo é reforça-da pela fragilidade dos famélicoscorpos, sem condições físicas paracaminhar, como o garoto que temsua perna arqueada pelo esforçofísico levado ao paroxismo.Malgrado a brisa, o véu da mulherarrasta-se pelo chão, assim comoseus pés.

Os pequenos logram, com seus curtos passos,acompanhar a caminhada, que deverá portanto fa-zer-se lenta; todos os caminhantes têm seus pés fi-xados pela fotografia no instante em que encontra-vam-se colados ao chão, como se estivessem para-dos (lembremos que, em fotos de cunho esportivo -ocasião em que celebra-se a força, a velocidade, avitalidade -, os pés flutuarão no ar, suspensos numpresente atemporal que é também o tempo do mito),imagem do esgotamento, do cansaço, lassidão; o pe-queno (nº 2) somente levanta um dos pés após apoiaro outro completamente no solo; o passo do garoto dafrente (nº 5), não obstante sua estatura relativamentesuperior, é tão ou mais curto que aquele das criançasque seguem atrás (nº 2 e 3).

Os personagens parecem caminhar em círculo,pois a direção sugerida pelos três personagens daretaguarda é diferente daquela sugerida pelos queestão à frente da marcha (figura 2). Contudo, trata-se de ilusão de óptica que pode se desfazer na aná-lise da composição do grupo anterior. Em outra pers-pectiva, vemos que o garoto da frente (personagem5) anda em direção à linha do horizonte, mas, comonão há distinção entre céu e terra, e como ele estáligeiramente desfocado como por efeito do véutranslúcido de luminosidade - mas em realidade porum sábio efeito de exploração da profundidade decampo -, temos a sensação de que o garoto vai atra-vessar (ou já começou a atravessar) a folha, o pa-pel fotográfico, e escapar ao nosso olhar (logo, àsnossas vidas). Igualmente, na medida em está sain-do do campo focal, está escapando ao alcance daslentes do fotógrafo, ao seu/nosso olhar, temos a im-pressão de estarmos perdendo para sempre a suaimprovável companhia.

Malgrado os reveses, e apesar de cabisbaixas emeditabundas, as pessoas do grupo caminham ligei-ramente inclinadas para frente, altivas, fazendo pro-va de persistência em seu destino, de resistência auma ventania imaginária que sopra em sentido con-trário - não estaria o garoto (nº 2) protegendo seusolhos contra a ventania? - a seu movimento em dire-ção ao nada. E neste movimento, serão crianças os

que abrem a marcha, conduzem ogrupo, incentivam à caminhada:convite à persistência, à esperan-ça, formulado por estes guias pue-ris e desprovidos da descrença queé o lote próprio de adultos em mo-mentos de reveses. Neste sentido,seria igualmente plausível ver que,se por um lado a eventual gravi-dez da mulher (nº 1) poderia suge-rir o advento de mais um ser fada-do ao sofrimento, por outro ladopoderia simbolizar a renovação, oeterno renascimento próprio ao ci-

clo vital.Os dois grupos que podemos observar na com-

posição fotográfica formarão um conjunto indivisível,cujo laço será o olhar que a garota (nº 4) lança paratrás como se esperasse ou verificasse o ponto emque os personagens (nº 1, 2 e 3) encontram-se emsua marcha, o que cria um elo de ligação entre osdois grupos e demonstra a carga de materialidadeque podemos encontrar no olhar. Ademais, os ci-clos da vida estarão igualmente implícitos neste ins-tante de passagem, iniciático, instante de amadure-cimento representado por este olhar protetor, de ve-rificação, de preocupação que a garota (nº 4), serdesprotegido em relação à mulher adulta (nº 1), lan-ça à retaguarda. A criança toma portanto a si a fun-ção de proteção que a mulher adulta parece nãopoder assumir no momento, tal como poderíamos verem um certo abandono à própria sorte sugerido peloavanço em relação aos pequenos (nº 2 e 3) que ob-servamos em seu deslocamento. Notemos ainda quea garota parece puerilmente arrastar um galho pelaareia, lúdico alheamento ao sofrimento através dejogos infantis, e sutil sugestão de permanência noestatuto de entidade humana malgrado a perda dosbenefícios que o homem pode encontrar em suaexistência sobre a Terra.

Por outro lado, a total ausência de personagensmasculinos adultos no enquadramento sugere força esolidão de mãe protegendo filhos. Esta ausência tor-na incompleta a figuração da cena, pois nossos hábi-tos pictóricos e nosso imaginário solicitam comple-mento no sentido de aproximar o quadro (fotográfi-co) de, por exemplo, A Sagrada Família. Assim Se-bastião Salgado parece jogar com a função protetorado animal macho e a função nutricional do animalfêmea, tal como estas apresentam-se ao imaginárioocidental. Apesar dessa ausência, o grupo prosseguedemonstrando força, demonstrando dignidade, e astrabalhosas tranças das mulheres, se por um lado in-dicam vaidade, por outro mostram que, apesar dosinfortúnios, estão ali fotografados seres que mantêm-se em sua qualidade de humanos pois não desvelamsobre sua própria aparência.

A total ausência depersonagens

masculinos adultosno enquadramento daimagem sugere força e

solidão de mãeprotegendo filhos.

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“Seus humildes são gigantes”, es-creve Dorrit Harazim9 . Com efeito,as pessoas fotografadas por Salgadoocupam grande espaço na folha, emrelação a outros elementos da com-posição. Na fotografia em tela, nadahá além de pessoas, e o ângulo esco-lhido por Salgado situa o olhar do lei-tor em um plano inferior àquele ondesitua-se o olhar (presumível) dos per-sonagens fotografados, pois a máqui-na fotográfica estaria ao nível da cin-tura da mulher adulta; deste feito, oleitor experimenta a impressão deobservar um personagem agigantado, desproporcional,efeito criado pelas lentes do fotógrafo.

A universalidade buscada por Salgado é sugerida,no caso desta fotografia, pela ausência de rostos. En-tretanto, o monopólio da presença humana é patente,pois o fundo da composição encontra-se desguarnecido.Veremos aqui, portanto, mensagens do ser, que fun-dam sua autoridade na sobriedade, no laconismo, nosilêncio ou na solidão: busca da essência, não de aci-dentes. A situação é caracterizada por seu estatutoontológico, o ser em primeiro plano. Não há pretextopara narração de um qualquer evento particular. A iden-tidade formal entre personagens provém do vestuário,pigmentação da pele, estado físico, traçosfisionômicos10 , e a unidade ou solução de continuida-de entre os elementos da fotografia provém de ele-mentos como idênticas roupas (ou sua ausência), arei-as, repetição do mesmo personagem em tamanhos dis-tintos, símbolos de uma enumeração ad infinitum, di-ferentes e idênticas etapas da vida diante de mal fada-das condições de sobrevivência. Nesta mesma pers-pectiva, Sebastião Salgado coloca em cena uma situa-ção desprovida de qualquer indício temporal, marcadapela ausência de datação, suspensa no tempo, um tem-po que será indeterminado e vago, carregado de

atemporalidade, de imprecisão tem-poral, tendendo à generalização enão à individualização, à universali-dade e não à particularidade. Ora,como afirma Arrigucci Jr., “a emo-ção poética se distingue da emoçãobanal por nos dar uma sensação deuniverso”11 , e, acrescentamos, portornar-se revelação do instanteepifânico. Entre tantas maneiras, apoesia pode revelar-se também nacapacidade humana de manter adignidade mesmo em situações ex-tremamente adversas, pois traz à

tona um certo espaço onírico, tempo de sonhos e de-vaneios.

Parafraseando Guimarães Rosa, diremos que a fo-tografia de Sebastião Salgado “pode valer pelo muitoque nela não deveu caber”. De fato, a questão davaloração da obra artística residiria no número de suasinterpretações potenciais, como afirmam W.H. Audene Rolland Barthes, entre tantos outros. Para tanto, porvezes será necessário reverter a perspectiva de análi-se e definir o processo de leitura, com G. Rosa, a par-tir de uma definição proposta por Augusto dos Anjospara “rede”: “uma porção de buracos, amarrados combarbante...”

Poderemos então dizer que, a partir de material, emprincípio, não poético; de destino singular de pobres coi-tados nômades; de retrato da contraditória realidade in-ternacional, Sebastião Salgado visa a operar a sínteseda experiência humana. Se esta é uma entre as múlti-plas leituras possíveis de sua obra fotográfica, cremoslançar aqui bases para um “início de sentido”, conformea expressão de Barthes, sentido a ser reconstruído apartir das noções propostas por Schopenhauer: “daí, pois,como já se disse, exigir a primeira leitura paciência, fun-dada na certeza que na segunda, muita coisa ou tudo, seentenderá sob luz inteiramente outra.”12

A universalidadebuscada por Salgado

é sugerida pelaausência de rostos.

Entretanto,o monopólio da

presença humana épatente.

BibliografiaARRIGUCCI JR., Davi. Humildade, paixão e morte. Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1996.DUCROT, Oswald e TODOROV, Tzvetan. Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage. Paris, Seuil, 1972.HARRAZIM, Dorrit. “O Fotógrafo da luz”, in Veja, nº 1486, 12/03/97, p. 70-87.JAKOBSON, Roman. Essais de Linguistique Générale. Paris, Les Éditions de Minuit, 1963.PAGEAUX, Daniel-Henri. La Littérature Générale et Comparée. Paris, Armand Colin, 1994.METZ, Christian et alii. A Análise das imagens. Petrópolis, Vozes, 1973.PRAZ, Mario. Literatura e Artes Visuais. São Paulo, EDUSP/Cultrix, 1982.ROSSI, Filippo. The Uffizzi and Pitti. Londres, Thames and Hudson, 1966.SALGADO, Sebastião. Trabalhadores. Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1996.______. Sebastião Salgado. Paris, Centro Nacional da Fotografia, 1993.______. “Nômades atravessam o Lago Faguibin ressecado. Mali, 1985”, in Veja, nº 1486, 12/03/97, p. 78.

9 Veja, 12/03/97, p. 80.10 Quando Salgado afirma, por exemplo, “um rosto dessas caravanas pode revelar toda uma história, a culturade um povo” (Veja, 12/03/

97, p. 73), é possível dizer que “um”, na maior parte das vezes, representa toda uma série de repetições, e os traços fisionômicosindividuais, particulares, não terão grande importância. Assim, a ausência de rostos ou sua repetição tem a mesma função na construçãodo sentido, pois trata-se de rostos sem identidade com intuito de despersonalização, generalização.

11 Davi Arrigucci Jr., Humildade, paixão e morte, p. 137.12 Citado por Guimarães Rosa, em epígrafe a Tutaméia.

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Este trabalho pretende mostrar que, segundo UmbertoEco, existem critérios para delimitar a interpretação de umtexto.

Palavras-chave:Interpretação,

superinterpretação, história.

This paper aims at showing that, according toUmberto Eco, there are criteria to delimit aninterpretation of a text.

Key-words:Interpretation,

super interpretation, history

* Maria Emília BorgesDaniel é professora deLíngua Portuguesa doDepartamento de Letrasda Universidade Federalde Mato Grosso do Sul.Mestre em LingüísticaAplicada na UNICAMP.Doutoranda emLingüística eSemiótica na USP.

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UMA LEITURADE UMBERTO ECO

Cambridge, sob o título de Introdução: interpreta-ção terminável e interminável.

Inclui também os textos revistos das ConferênciasTanner/1990 de Eco - 1. Interpretação e história; 2.Superinterpretando textos; 3. Entre autor e texto.Apresenta ainda os artigos dos três participantes doseminário: - 4. A trajetória do pragmatista (RichardRorty, catedrático de Humanidades na Universidadede Virgínia); 5. Em defesa da superinterpretação(Jonathan Culler, catedrático de Inglês e LiteraturaComparada e diretor da Sociedade das Humanidadesda Universidade Cornell); 6. História palimpsesta(Christine Brooke-Rose, ex-catedrática de Literaturana Universidade de Paris VIII). E, finalmente, a Ré-plica (Umberto Eco).

Ao escolher o tema Interpretação eSuperinterpretação3 para suas conferências, Ecocomprometia-se a definir sua posição sobre a nature-za do significado, as possibilidades e os limites da in-terpretação. Nos anos 60 e 70, dedicou-se ao estudodo papel do leitor no processo de "produzir" significa-do. Em sua obra mais recente (The Limits ofInterpretation)4 mostra-se apreensivo em relação àforma pela qual importantes correntes do pensamentocrítico contemporâneo, sobretudo a crítica americanainspirada em Derrida, autodenominada "Descons-

Maria Emília Borges Daniel*

ECO, Umberto. Interpretação eSuperinterpretação. São Paulo, 1993,

Martins Fontes, 1993, 183 p.

A obra em referência deriva das Conferências edo Seminário Tanner de Clare Hall, Universidade deCambridge, 1990. O objetivo de tais Conferências, re-alizadas anualmente, é "favorecer e refletir sobre osaber acadêmico e científico relativo a avaliações evalores humanos".1

Ao aceitar o convite para ser o conferencistaTanner de 1990, Umberto Eco propôs o tema "Inter-pretação e Superinterpretação", aliás, bem apropria-do para o objetivo das Conferências. Escolher a no-ção de interpretação como objeto de atenção e es-tudo favorece a reflexão justamente sobre o "saberacadêmico e científico relativo a avaliações e valo-res humanos", considerando que, embora a noção deinterpretação "seja mais relevante para as ciênciasda linguagem, ela está presente no exercício das ci-ências humanas, em particular, e de qualquer ciência,em geral".2

O livro em epígrafe inclui uma introdução às Con-ferências e aos Seminários, feita por Stephan Collini,professor de Inglês e membro de Clare Hall,

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1 Apud COLLINI, Stephan. ''Introdução: interpretação terminável e interminável''. In: ECO, U. Interpretação e Superinterpretação. SãoPaulo, Martins Fontes, 1993, p.1.

2 ORLANDI, Eni P. Interpretação. Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis. Vozes, 1996, p.9.3 Superinterpretação: uma leitura que, segundo Eco, excede os ''limites da interpretação legítima''.4 No prelo.

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trução" associada particularmenteao trabalho de Paul de Man e J.Hillis Miller, parecem dar licen-ça ao leitor de produzir um fluxoilimitado e incontrolável de "lei-turas."5

Por não concordar com tal tipode "semiótica ilimitada", que consi-dera um "apropriação perversa",Eco busca descobrir, em suas con-ferências, algumas possibilidades delimitar o alcance de interpretaçõesadmissíveis e, em decorrência, declassificar determinadas leiturascomo "superinterpretações".

Neste texto, vou ater-me apenas à primeira Confe-rência de Eco em que ele aborda questões relaciona-das ao tema Interpretação e História.

rindo-se certamente a Austin, 9

acrescenta "Se bem me lembro, foiaqui na Inglaterra que alguém su-geriu, anos atrás, que é possível fa-zer coisas com palavras. Interpre-tar um texto significa explicar porque essas palavras podem fazervárias coisas (e não outras) atravésdo modo pelo qual são interpreta-das''. Exemplificando: se Jack, oEstripador, alegasse que fez o quefez baseado em sua interpretaçãodo Evangelho de São Lucas, muitoscríticos voltados para o leitor ten-

deriam a pensar que ele havia lido São Lucas de umaforma inadequada. Os críticos não voltados para o lei-tor afirmariam que Jack, o Estripador, ''estava com-pletamente louco.''

Confessa Eco que concordaria, muito a contragos-to, com o fato de que Jack, o Estripador, precisava decuidados médicos e supõe também que mesmo odesconstrucionista mais radical concordaria(?). Em-bora reconheça que seu exemplo é um tanto forçado,julga que até um argumento parodoxal como esse pre-cisa ser levado a sério, pois

Ele prova que existe pelo menos um caso em queé possível dizer que uma determinada interpre-tação é ruim. Segundo os termos da teoria depesquisa científica de Popper, isso é o suficien-te para refutar a hipótese de que a interpreta-ção não tem critérios públicos (ao menos em ter-mos estatísticos). (p.29)A única alternativa a uma teoria radical da inter-

pretação voltada para o leitor é a assumida pelos de-fensores da idéia segundo a qual a única interpretaçãoválida é a que pretende descobrir a intenção originaldo autor. Quanto a essa objeção, Eco diz:

Em alguns dos meus escritos recentes, sugeri queentre a intenção do autor (muito difícil de des-cobrir e freqüentemente irrelevante para a in-terpretação de um texto) e a intenção do intér-prete que (para citar Richard Rorty) simplesmen-te "desbasta o texto até chegar a uma formaque sirva a seu propósito" existe a intenção dotexto. (p.29)A seguir, propõe-se a relatar a história das raízes

arcaicas do debate contemporâneo sobre o significadode um texto, apagando, inicialmente, a distinção tantoentre textos literários e textos comuns quanto entre

Interpretação eHistória

Iniciando a primeira Conferência, Eco explica que,em Obra Aberta6 (1962), "estava estudando a dialéticaentre os direitos dos textos e os direitos de seus intér-pretes" e lhe parece que os direitos dos intérpretestêm sido exagerados nas décadas mais recentes.

Embora tenha elaborado, em suas últimas obras7, aidéia peirceana da semiótica ilimitada, procurou mos-trar8 que tal concepção não leva à conclusão de que ainterpretação não tenha critérios:

Dizer que a interpretação (enquanto caracte-rística básica da semiótica) é potencialmente ili-mitada não significa que a interpretação nãotenha objeto e que corra por conta própria.Dizer que um texto potencialmente não tem fimnão significa que todo ato de interpretação pos-sa ter um final feliz. (p.28)Mas os críticos contemporâneos defensores do po-

der exagerado do leitor chegam a considerar que aexistência de um texto é dada somente pela cadeia derespostas que suscita e que, conforme observouTodorov, maliciosamente, "um texto é apenas um pi-quenique onde o autor entra com as palavras e os lei-tores com o sentido".

Ao rebater tal posição, Eco argumenta que as pala-vras do autor constituem uma unidade de evidênciasmateriais que o leitor não pode desconsiderar. Refe-

Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 44-51, jan./jun., 1997.

5 COLLINI, S. ''Introdução: interpretação terminável e interminável''. In: ECO, U. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo,Martins Fontes, 1993, p. 9.

6 (Trad. bras). São Paulo, Perspectiva, 1967, Debates 4.7 A Theory of Semiotics, The Role of the Reader e Semiotics and the Philosophy of Language8 Dissertação apresentada no Congresso Internacional Peirce, na Universidade de Harvard (setembro de 1989)9 AUSTIN, J. L. 1962. How to do Things with Words, Oxford, Clarendon (trad. para o italiano sob o título Quando dire è fare, 2ª ed.,Turim, Marietti, 1975).

Dizer que ainterpretação épotencialmente

ilimitada não significaque a interpretação

não tenha objeto e quecorra por conta

própria.

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rantem ao menos um contratosocial. O racionalismo latinoadota os princípios doracionalismo grego, mas ostransforma e enriquece num sen-tido legal e contratual. O mode-lo legal é modus, mas o modus étambém o limite, a fronteira.(pp.31-32)

Esse modelo do racionalismogrego e latino ainda domina a ma-temática, a lógica, a ciência e a pro-gramação de computadores, masnão esgota a história do que cha-

mamos herança grega.No mito de Hermes, em torno do qual os gregos

construíram a idéia de metamorfose contínua, encon-tra-se a negação do princípio de identidade, de não-contradição e do terceiro excluído, e os nexos causaisenrolam-se sobre si mesmos em espirais: "o ‘depois’precede o ‘antes’, o deus não conhece limites espaci-ais e pode, em diferentes formas, estar em diferenteslugares ao mesmo tempo". Essa concepção de Hermesdata do século II depois de Cristo, um período de or-dem política e paz, e o império aparentemente une poruma língua e uma cultura todos os povos que domina.É o século em que se define o conceito de educaçãogeral, cujo objetivo era produzir um tipo de homemcompleto, versado em todas as disciplinas. Isso, no en-tanto, pressupõe um mundo perfeito, coerente, enquantoo mundo do século II é uma mistura de raças e lín-guas; um encruzilhamento de povos e idéias e dos maisdiferentes tipos de deuses.

É bastante conhecida a lenda do califa que mandoudestruir a biblioteca de Alexandria, justificando-se como argumento segundo o qual os livros diziam a mesmacoisa que o Corão e, nesse caso, eram supérfluos, ouentão diziam coisa diferente e, nesse caso, eram erra-dos e perniciosos. "O califa conhecia a verdade e jul-gou os livros com base nessa verdade". Por outro lado,o hermetismo do século II caracteriza-se pela buscade uma verdade que não conhece e dispõe apenas delivros os quais espera que sirvam para confirmar-semutuamente e nos quais imagina encontrar uma cen-telha de verdade.

Nesta dimensão sincrética, um dos princípios dosmodelos racionalistas gregos, o do terceiro ex-cluído, entra em crise. É possível muitas coisasserem verdadeiras ao mesmo tempo, mesmo quese contradigam. Mas, se os livros falam a ver-dade, mesmo quando se contradizem, então cadauma de suas palavras deve ser uma alusão, umaalegoria. Estão dizendo algo diferente do queparecem dizer. (...) Assim a verdade passa a iden-tificar-se com o que não é dito ou com o que édito de forma obscura e deve ser compreendidoalém ou sob a superfície de um texto. (p.35)

textos "enquanto imagens do mun-do e o mundo natural como (segun-do uma tradição venerável) umGrande Texto a ser decifrado".

O objetivo do relato é demons-trar que, ao contrário do que sepressupõe, a maior parte da teoriacontemporânea ligada ao chamadopensamento "pós-moderno" parece-rá uma retomada de movimentosmuito antigos.

Em 1987, ao fazer uma palestraintrodutória na Feira de Frankfurt,sobre o irracionalismo moderno, co-meçou a sua reflexão esclarecendo ser difícil definir"irracionalismo" sem dispor de um conceito filosóficode "razão":

Infelizmente, toda a história da filosofia ociden-tal serve para provar que tal definição é muitocontrovertida. Qualquer forma de pensar sem-pre é vista como irracional pelo modelo históricode outra forma de pensar, que vê a si mesmo comoracional. A lógica de Aristóteles não é a mesmaque a de Hegel; Ratio, Ragione, Raison, Reasone Vernunft não significam a mesma coisa.Uma maneira de entender conceitos filosóficosé, com freqüência, voltar ao senso comum dosdicionários. (p.30)A noção latina de modus, ou seja, "dentro dos limi-

tes e das medidas", foi muito relevante, se não paraestabelecer a diferença entre racionalismo eirracionalismo ("algo que vai além de um limite estabe-lecido por um padrão"), pelo menos para determinarduas atitudes básicas, isto é:

duas formas de decifrar o texto como um mundoou o mundo como um texto. Para o racionalismogrego, de Platão a Aristóteles e outros, conhecersignificava entender as causas. Assim, definirDeus significava definir uma causa, além da qualnão poderia haver nenhuma outra causa. Parase conseguir definir o mundo em termos de cau-sas, é necessário desenvolver a idéia de uma ca-deia unilinear: se um movimento vai de A para B,então não há força na terra capaz de fazê-lo irde B para A. Para se conseguir justificar a natu-reza unilinear da cadeia causal, é necessárioprimeiro supor uma série de princípios: o princí-pio de identidade (A = A), o princípio da não-contradição (é impossível algo ser A e não ser Aao mesmo tempo) e o princípio do terceiro exclu-ído (ou A é verdadeiro ou A é falso e tertium nomdatur) A partir desses princípios, derivamos omodelo típico de pensamento do racionalismoocidental, o modus ponens: "se p então q: mas p:portanto q".Embora esses princípios não garantam o reco-nhecimento de uma ordem física do mundo, ga-

Ao contrário do que sepressupõe, a maior

parte da teoriacontemporânea ligadaao pensamento "pós-moderno" pareceráuma retomada demovimentos muito

antigos.

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Vale observar que, nessa época,uma coisa verdadeira era principal-mente algo que não podia ser expli-cado, enquanto para o racionalismogrego uma coisa era verdade quan-do podia ser explicada. Agora, é asuposta gagueira do estrangeiro quese transforma na língua sagrada,enquanto no racionalismo clássicoidentificavam-se os estrangeiroscomo bárbaros, isto é, aqueles quenem sequer conseguem falar cor-retamente ("o que gagueja" é a ver-dadeira etimologia de bárbaro).

Considerando essa nova situação, se a procura deuma verdade diferente surgiu da desconfiança da he-rança grega clássica, então, conclui Eco,

todo verdadeiro conhecimento teria de ser maisarcaico. Encontra-se entre os resíduos de civili-zações que os pais do racionalismo grego igno-raram. A verdade é algo com que temos vividodesde o começo dos tempos, só que a esquece-mos. (p.36)A propósito, Jung explicou que sentimos necessi-

dade de nos voltar para imagens de outras civilizações,porque só os símbolos exóticos podem manter uma aurade sacralidade. Assim, uma imagem divina perde seumistério, quando se torna muito familiar para nós. Noséculo II, o conhecimento secreto teria estado, portan-to, com os druidas, com os sacerdotes celtas, ou comos sábios do Oriente, que falavam línguas incompre-ensíveis.

A opinião geral era que os sacerdotes bárbarospossuíam um conhecimento misterioso sobre os elossecretos que ligavam o mundo espiritual ao mundo as-tral que, por sua vez, ligava-se ao mundo sublunar. Osignificado disso era que as ações sobre uma plantapodiam influenciar a trajetória das estrelas; a trajetóriadas estrelas repercutia no destino dos seres terrestres;as operações mágicas com a imagem de um deus po-deriam obrigá-lo a realizar nossos desejos. O universoassemelha-se, pois, a um grande espelho em que cadaobjeto individual reflete e significa todos os outros. Oque existe na terra também existe no céu.

Nessas condições, o princípio da não-contradição érejeitado, pois tal visão do universo resulta de umaemanação divina no mundo em cuja origem está o "Umincognoscível, que é a sede da própria contradição".Enquanto o pensamento cristão neoplatônico10 busca

explicar que não podemos definirDeus em termos muito precisosdevido à inadequação de nossa lín-gua, o pensamento hermético11 as-sume que nossa língua, quanto maisambígua e polivalente, quanto maisse valer de símbolos e metáforas,tanto mais será especialmente ade-quada para designar a Unidade naqual se realiza a coincidência dosopostos e da qual resulta o colapsodo princípio da identidade.

Em conseqüência, a procura deum significado final inatingível re-

sulta em ''uma interminável oscilação ou deslocamen-to de significado'' e a interpretação é imprecisa. Porexemplo, uma planta não é definida com base em suascaracterísticas morfológicas e funcionais, mas de acor-do com sua semelhança mesmo que parcial com outroelemento do cosmos. O pensamento hermético reduztudo a um fenômeno lingüístico, mas, ao mesmo tem-po, nega à linguagem qualquer poder de comunicação.

Após referir-se aos textos básicos dessa linha depensamento, Eco esclarece que os pensadores da Re-nascença demonstraram que o Corpus Hermeticumnão era um produto da cultura grega, mas que haviasido escrito antes de Platão. Após ressurgir em Flo-rença, no início do chamado mundo moderno e serreelaborado pelo neoplatonismo da Renascença e pelocabalismo cristão, o pensamento hermético continuoufundamentando uma grande parcela da cultura moder-na, da magia à ciência.

O modelo hermético defendia a idéia de que a or-dem do universo descrita pelo racionalismo grego po-deria ser subvertida e que novas conexões e rela-ções poderiam ser descobertas no universo, as quaisteriam permitido ao homem tanto agir sobre a natu-reza quanto mudar seu curso. Propunha ainda que omundo deveria ser descrito de acordo com uma lógi-ca quantitativa e não em termos de uma lógica quali-tativa. Portanto, o modelo hermético, paradoxalmen-te, colabora para o surgimento de seu novo oponente,o racionalismo científico moderno. Além disso, Ecoexplica que:

O novo irracionalismo hermético oscila, por umlado, entre místicos e alquimistas e, por outro,entre poetas e filósofos, de Goethe a Gérard deNerval e Yeats, de Schelling a Franz von Baader,de Heidegger a Jung. E em muitos conceitos

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10 Relativo ao neoplatonismo. Filos. Corrente doutrinária fundada por Amonio Sacas (séc. II), em Alexandria (...). Caracterizava-se pelasteses de absoluta transcendência do ser divino, da emanação (...) e do retorno do mundo a Deus pela interiorização progressiva dohomem. (Dicionário Aurélio).

11 Relativo ao hermetismo (...) Filos. Doutrina ligada ao gnosticismo (...), surgida no Egito no séc. I, atribuída ao Deus Thot, chamado pelosgregos Hermes Trismegisto, e formada principalmente pela associação de elementos doutrinários orientais e neoplatônicos. Cristalizou-se num ensinamento secreto em que se misturam filosofia e alquimia. (Dicionário Aurélio).

Sentimos necessidadede nos voltar paraimagens de outras

civilizações, porque sóos símbolos exóticospodem manter umaaura de sacralidade.

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pós-modernos de crítica não édifícil reconhecer a idéia docontínuo deslocamento do sig-nificado. A idéia expressa porPaul Valéry, de que il n’y a pasde vrai sens d’un texte, é umaidéia hermética.Em um de seus livros, Sciencede l’homme et tradition - extre-mamente questionável pelo en-tusiasmo irrestrito de seu au-tor, embora não lhe faltem ar-gumentos persuasivos -,Gilbert Durand vê o conjuntodo pensamento contemporâneo, emcontraposição ao paradigma mecanicista dopositivismo, passar pelo sopro vivificante deHermes, e a lista de personalidades que identi-fica convida à reflexão: Spengler, Dilthey,Scheler, Nietzsche, Husserl, Kerényi, Plank,Pauli, Oppenheimer, Einstein, Bachelard,Sorokin, Lévi-Strauss, Foucault, Derrida,Barthes, Todorov, Comsky, Greimas, Deleuze.(p.40)Outra convicção que caracteriza o modelo hermé-

tico é a de que a verdade é sempre secreta e nenhumquestionamento dos símbolos e enigmas jamais poderárevelar a verdade última e só deslocará o segredo paraoutro lugar. Se a condição humana é assim, então omundo surgiu de um erro. Por isso o homem do séculoII desenvolveu uma consciência neurótica do seu pa-pel num mundo incompreensível. A expressão culturaldesse estado psicológico denomina-se gnose12.

Gnose significava verdadeiro conhecimento da exis-tência, na tradição do racionalismo grego. Tal conhe-cimento podia ser tanto coloquial quanto dialético, emcontraposição à simples percepção (aisthesis) ou opi-nião (doxa). Entretanto, nos primeiros séculos cris-tãos, gnose passou a significar conhecimento metar-racional, intuitivo, um dom divino capaz de salvar quemo atinja.

Eco sugere uma ligação entre a herança gnóstica13

e muitos aspectos da cultura moderna e contemporâ-nea. O amor cortês, por exemplo, visto como uma re-lação puramente espiritual, como renúncia, como per-da do ser amado, revela uma origem gnóstica.

Tanto a herança hermética quanto a gnóstica pro-duzem a síndrome do segredo. O modelo herméticolevou o iniciado, que entende o segredo cósmico, àconvicção de que o poder consiste em fazer outros

acreditarem que ele tem um segre-do político.

A seguir, Eco passa a sugerir emque sentido os resultados de sua in-cursão às raízes da herança hermé-tica podem ser interessantes paracompreender um pouco mais da te-oria contemporânea de interpreta-ção textual. Enumera então uma lis-ta das principais características da-quilo que ele gostaria de chamaruma abordagem hermética dos tex-tos, na qual descobriu algumas idéi-as similares em muitas teorias con-

temporâneas:1.Um texto é um universo aberto em que o intér-

prete pode descobrir infinitas interconexões.2. A linguagem é incapaz de apreender um signifi-

cado único e preexistente: ao contrário, o papel da lin-guagem é mostrar que aquilo de que se pode falar éapenas a coincidência dos opostos.

3. A linguagem reflete a inadequação do pensa-mento: "nosso ser-no-mundo nada mais é do que serincapaz de encontrar qualquer significadotranscendental.

4. Qualquer texto que pretenda dizer algo inequívo-co, é um "universo abortado, ou seja, a obra de umDemiurgo desastrado."

5. O gnosticismo textual contemporâneo é, porém,bastante generoso: "toda pessoa, desde que ansiosa porimpor a intenção do leitor sobre a intenção inatingível doautor, pode tornar-se o Übermensch (super-homem deNietzsche) que realmente entende a verdade, qual seja,que o/a autor/a não sabia o que estava realmente dizen-do, porque a língua falou em seu lugar".

6. Para salvar o texto - ou seja, para fazê-lo passarde uma ilusão de significado à percepção de que osignificado é infinito - o leitor deve desconfiar de quecada linha esconde um outro significado secreto; aspalavras, ao invés de dizer, escondem o não-dito; aglória do leitor é descobrir que um texto pode dizertudo, menos o que o seu autor queria que dissesse;assim que se anuncia a descoberta de um suposto sig-nificado, temos certeza de que não é o verdadeiro.

7. O leitor real é aquele que compreende que osignificado de um texto é seu vazio.

Sobre a inter-relação apresentada, Eco co-menta:

Sei que fiz uma caricatura das teorias mais ra-dicais de interpretação voltadas para o leitor.

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12 Gnose (do gr. Gnôsis) S. f. 1. Conhecimento, sabedoria. 2. Hist. Fil. Conhecimento esotérico e perfeito da divindade e que se transmitepor meio da tradição e mediante ritos de iniciação.

13 Relativa ao gnosticismo. (De gnóstico + -ismo) S. m. Hist. Filos. 1. Ecletismo filosófico-religioso surgido nos primeiros séculos da nossaera e diversificado em numerosas seitas, e que visava a conciliar todas as religiões e a explicar-lhes o sentido mais profundo por meio dagnose. (São dogmas do gonosticismo: a emanação, a queda, a redenção e a mediação, exercida por inúmeras potências celestes, entre adivindade e os homens. Relaciona-se o gnosticismo com a cabala, o neoplatonismo e as religiões orientais). Dicionário Aurélio.

No modelo herméticoa verdade é sempresecreta e nenhum

questionamento dossímbolos e enigmas

poderá revelara verdade última.

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Além disso, penso que as ca-ricaturas são muitas vezesbons retratos não do casocomo ele é, mas pelo menos dopoderia vir a ser o caso, se su-puséssemos que alguma coisafosse o caso.O que quero dizer aqui é queexistem critérios para limitar ainterpretação.(...) Sei que há textos poéticoscujo objetivo é mostrar que ainterpretação pode ser infini-ta. Sei que Finnegans Wake foiescrito para um leitor ideal afetado por uma in-sônia ideal. Mas sei também que, embora toda aobra do Marquês de Sade tenha sido escrita paramostrar o que o sexo poderia ser, a maioria denós é mais moderada. (p.46)Para demonstrar o que afirmou sobre os critériosexistentes para limitar a interpretação, apresenta ocomeço de Mercury; Or, the Secret and SwiftMessenger (1641), em que John Wilkins14 conta aseguinte história:O quanto essa Arte de Escrever pareceu estra-nha quando da sua Invenção primeira é algo quepodemos imaginar pelos Americanos recém-des-cobertos, que ficavam espantados ao ver Homensconversarem com Livros, e não conseguiam acre-ditar que um papel pudesse falar...Há um relato excelente a este Propósito, refe-rente a um Escravo Índio; que, ao ser mandadopor seu Senhor com uma Cesta de Figos e umaCarta, comeu durante o Percurso uma grandeParte de seu Carregamento, entregando o Res-tante à Pessoa a quem se destinava; que, ao lera Carta e não encontrando a Quantidade deFigos correspondente ao que se tinha dito, acu-sa o Escravo de comê-los, dizendo-lhe que aCarta afirmara aquilo contra ele. Mas o Índio(apesar dessa Prova) negou o Fato com a mai-or segurança, acusando o Papel de ser umaTestemunha falsa e mentirosa.Depois disso, sendo mandado de novo com umCarregamento semelhante e uma Carta expres-sando o Número exato de Figos que deviam serentregues, ele, mais uma vez, de acordo com suaPrática anterior, devorou uma grande Parte de-les durante o Percurso; mas, antes de comer oprimeiro (para evitar as Acusações que se segui-riam), pegou a Carta e a escondeu sob uma gran-de Pedra, assegurando-se de que, se ela não ovisse comer os Figos, nunca poderia acusá-lo;mas, sendo agora acusado com muito mais rigor

do que antes, confessou a Falta,admirando a Divindade do Papele, para o futuro, promete realmen-te toda a sua Fidelidade em cadaTarefa. (pp.47-48)

Ao ser separado de seu autor (etambém da intenção desse autor) edas circunstâncias concretas de suacriação (e, portanto, de seu referen-te intencionado) um texto paira, decerta forma, no vácuo de uma sérievirtualmente infinita de interpreta-ções possíveis. No relato citado, seuautor, Wilkins, poderia ter alegado

que o destinatário tinha certeza de que a cesta referi-da na carta era a mesma levada pelo escravo. Que oescravo, mensageiro da carta, era o mesmo a quemseu amigo dera a cesta. Que havia uma relação entrea expressão "30" mencionada na carta e a quantidadede figos contida na cesta.

Entretanto, vamos supor que, ao longo do caminho,o escravo original tivesse sido assassinado e outra pes-soa o tivesse substituído. Que os trinta figos originaistivessem sido substituídos por outros figos. Que a ces-ta tivesse sido levada a um destinatário diferente. Queo novo destinatário não soubesse de nenhum amigodesejoso de lhe mandar figos.

Ainda assim seria possível concluir o que a cartaestava dizendo. Mas temos direito de presumir que areação do novo destinatário seria algo como "Alguém, eDeus sabe quem, mandou-me uma quantidade de figosmenor que o número mencionado na carta que os acom-panha" (p.48).

Poderíamos supor também que não apenas o mensa-geiro tivesse sido morto, mas também que seus assas-sinos tivessem comido os figos, destruído a cesta, pos-to a carta numa garrafa e atirado a garrafa ao mar. Eque, setenta anos depois, Robinson Crusoé encontras-se a tal garrafa e, dentro dela, somente a carta, é claro(sem cesta, sem escravo, sem figos). Mesmo assim,Eco aposta que "a primeira reação de Robinson Crusoéteria sido: "Onde estão os figos?"

Poderíamos ainda imaginar que a mensagem da gar-rafa fosse encontrada por uma pessoa mais sofisticada,um estudioso de lingüística, hermenêutica ou semiótica,que poderia levantar outras hipóteses, entre as quais:

1. Atualmente, podemos entender figos num senti-do retórico em expressões como to be in good fig[estar em boa forma], to be in full fig [estar emplena forma], to be in poor fig [estar em más con-dições], e a mensagem poderia admitir uma interpre-tação diferente. Ainda assim, o destinatário estariaprivilegiando interpretações possíveis de figo, e nãode maçã ou gato.

14 John Wilkins, Mercury; Or, the Secret and Swiftt Messenger, 3ª ed. (Londres, Nicholson, 1707) pp. 3-4.

Ao ser separadode seu autor um texto

paira no vácuo deuma série

virtualmente infinitade interpretações

possíveis.

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2. A mensagem é uma alegoria(seqüência de metáforas), escritapor um poeta: o destinatário, seguin-do determinados indícios, procurana mensagem "um segundo sentidooculto baseado num código poéticoprivado, válido apenas para aqueletexto". Sendo assim, é possível queo destinatário chegasse a várias hi-póteses contraditórias. Entretanto,para legitimar a hipótese escolhida,provavelmente ele faria

certas hipóteses prévias sobreo possível remetente e o possí-vel período histórico em que o texto foi produzi-do. Isso nada tem a ver com a pesquisa sobre asintenções do remetente, mas certamente tem aver com a pesquisa do quadro cultural da men-sagem original. (pp.50-51)Por isso, Eco afirma que acredita "piamente" na

existência de "certos critérios ‘econômicos’ com basenos quais certas hipóteses serão mais interessantes queoutras".

A provável conclusão desse intérprete sofisticadoseria que a carta encontrada na garrafa havia feitoreferência, em algum tempo e em algum lugar, a figosde verdade e a um certo escravo. Havia sido enviadapor um determinado remetente para um dado destina-tário. Mas agora havia perdido essa referência.

Por outro lado, concluiria também que a mensagemcontinuará sendo um texto que com certeza poderiaser usado para enviar incontáveis cestas e outros tan-tos figos, mas certamente não para enviar maçãs ouunicórnios.

O destinatário poderia ainda imaginar, o remeten-te, o escravo e o destinatário desaparecidos, envolvi-dos, de modo ambíguo, com a mudança de coisas emsímbolos, por exemplo, usar figos para fazer uma in-sinuação misteriosa. Nesse caso, o nosso destinatá-rio poderia usar aquela carta como uma mensagemanônima, para testar uma série de significados e re-ferentes.

Após ter levantado todas essas possibilidades deinterpretação, seria possível então o destinatário dizerque a mensagem pode significar muitas coisas, masnão que ela pode significar qualquer coisa. Ela diz,"com certeza, que era uma vez uma cesta cheia defigos. Nenhuma teoria voltada para o leitor pode evitaruma restrição como essa".

Ao finalizar a Conferência sobre Interpretação eHistória, Eco conclui:

Há certamente uma diferença en-tre discutir a carta de Wilkins ediscutir Finnegans Wake.Finnegans Wake pode nos aju-dar a colocar em dúvida até osuposto bom senso do exemplo deWilkins. Mas não podemosdesconsiderar o ponto de vista doescravo que testemunhou pelaprimeira vez o milagre dos textose de sua interpretação. Se há algoa ser interpretado, a interpreta-ção deve falar de algo que deveser encontrado em algum lugar,

e de certa forma respeitado. Assim, pelo menosno decorrer de minha próxima conferência, mi-nha proposta é: vamos primeiro assumir o lugardo escravo. É a única maneira de nos tornar-mos, se não os senhores, ao menos os servosrespeitosos da semiótica.Umberto Eco tem razão ao propor "vamos assu-

mir o lugar do escravo. É a única maneira de nostornarmos, se não os senhores, ao menos os servosrespeitosos da semiótica". Porque, na primeira vezem que o destinatário da carta e dos figos acusou-ode ter comido grande parte dos figos e alegou que acarta afirmara isso contra ele, o escravo não acredi-tou que ela tivesse o poder de dizer isso. Mesmo ten-do comido os figos, negou o fato com a maior segu-rança, acusando a carta de ser uma testemunha fal-sa e mentirosa.

Na segunda vez, embora tivesse tido o cuidadode, antes de comer os figos, esconder a carta sobuma grande pedra, para impedir que presenciasse acena e evitar que o acusasse depois, ainda assim, elateve o poder de provar que mais uma vez ele haviacometido aquela falta. O escravo-mensageiro, então,como diz Eco, testemunhou pela primeira vez omilagre dos textos e de sua interpretação. Desco-briu que havia algo naquela carta que ele devia en-contrar e, de certa forma, respeitar. E foi o que fez,confessando a falta e passando a admirar a "Divin-dade do Papel".

O leitor está na moda,15 mas existe algo no textoque ele - como o "escravo" da história de Wilkins -não pode deixar de aceitar e, de certa forma, respei-tar. Considero que Eco conseguiu ''tocar''16 o leitor nosentido de fazê-lo compreender que17 entre a inten-ção do autor e o propósito do intérprete existe aintenção do texto e que um texto pode ter muitas lei-turas, mas não pode ter18 qualquer leitura.

Entre a intençãodo autor e o propósito

do intérprete existea intenção do texto e

um texto pode termuitas leituras

mas não qualquerleitura.

Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 44-51, jan./jun., 1997.

15 Possenti, Sírio. ''A leitura errada existe''. In: Leitura: Teoria & Prática. Campinas, SP, Faculdade de Educação UNICAMP, nº 15, p.12-16, jun. 1990.

16 Idem, ib.17 ECO, Umberto. (1993:29).18 Idem, ib.

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O objeto deste artigo é a análise de palavras usadaspara designar o Diabo em Grande Sertão: veredas,objetivando verificar alguns traços de arcaismos nestes sig-nos lingüísticos e também examinar como estes signos re-fletem a visão de mundo e a realidade histórica e culturalde um grupo social.

Palavras-chave:lexicologia, realidade

sócio-cultural

The object of this paper is the analysis of words used todesignate the devil in Grande Sertão: veredas, in orderto verify some archaic nature in these linguistic signs andalso to examine how these signs reflect the representationof the world and the historical and cultural reality in a socialcommunity.

Key-words:lexicology, social

and cultural reality

* Ana Maria P. Pires deOliveira é professora deLíngua Portuguesa doDepartamento de Letrasda Universidade Federalde Mato Grosso do Sul.Mestre em Lingüística eLíngua Portuguesa pelaUNESP - Araraquara-SP.Doutoranda emLingüística e LínguaPortuguesa na UNESP -Araraquara-SP.

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DESIGNATIVOS DO VOCÁBULO‘‘DIABO’’ EM

‘‘GRANDE SERTÃO: VEREDAS’’UM ESTUDO SÓCIO-ETNOLINGÜÍSTICO

As relações existentes entre língua, cultura e so-ciedade se manifestam, principalmente, com respeito aomodo como o sistema lingüístico pode refletir a visão demundo de uma cultura. Nessa linha de pensamento, alíngua pode ser vista como um indicador cultural, o quenos possibilita crer que a história da língua e a história dacultura percorrem trilhas paralelas.

Sapir1 reforça que a língua não existe desligada dacultura, ou seja, de um conjunto socialmente herdado depráticas e crenças que norteiam o cotidiano de cada co-munidade.

Desse modo, cada sociedade recorta e recria, a suamaneira, a realidade. O homem partilha, com os elemen-tos de seu grupo, de princípios comuns transmitidoscoletivamente e, assim, os diferentes grupos sociais es-tabelecem seus valores, seus costumes e crenças e, tam-bém, os assuntos que serão legados ao silêncio, isto é,que serão tabu.

Embora tenha um caráter universal e seja um fenô-meno encontrado em todos os tempos, o tabu lingüísticonão apresenta uma uniformidade. Ele varia de comuni-dade para comunidade, podendo, ainda, ser temporário,ou seja, vigorar até o tempo em que persistir o estigmado tabu. Os vocábulos tabu não chegam a desaparecertotalmente; de um modo geral, são mantidos, algumasvezes sob formas variantes, outras vezes, apresentamalterações em sua estrutura.

Toda língua, através do universo vocabular que a ligaao mundo exterior, reflete a cultura da sociedade à qualserve de meio de expressão e interação social. E como o

usuário da língua vai constituindo seu vocabulário aolongo da vida, podemos dizer que o léxico se configuracomo o somatório das experiências próprias de uma so-ciedade e de sua cultura.

Como vimos, todo sistema léxico representa o resulta-do das experiências acumuladas de uma sociedade e dacultura através dos tempos. Como agentes no processode criação e mesmo de perpetuação lexical, os membrosque integram esta sociedade, vão continuamente, recrian-do ou perpetuando o vocabulário de sua língua. Esse con-tínuo processo de desenvolvimento e de criação determi-na a expansão lexical, motivada pelas mudanças sociais eculturais. Pode ocorrer, também, que vocábulos caídosem desuso sejam resgatados e voltem à baila, geralmentecom nova acepção, após receber interferência de lexiaspertencentes à mesma esfera de significação.

Estas formas variantes proporcionam um matiz re-novador e evidenciam claramente o espírito criador dalíngua. Em vista disso, podemos assinalar que a variaçãoe a mudança são fatos inerentes à própria essência dalíngua e que a língua não é dinâmica porque muda, masela muda por que sua natureza é dinâmica. Ainda nessalinha de raciocínio observa Coseriu que:

"la lengua cambia sin cesar, pero lo cambio no ladestruye y no la afecta en su "ser lengua", que semantiene siempre intacta. Ello, sin embargo, no sig-nifica que el ser sistema sería independiente del cam-bio, sino todo lo contrario, porque el cambio en lalengua no es "alteración" o "deterioro", como se diceen terminología naturalista, sino reconstrucción,

Ana Maria P. Pires de Oliveira*

1 SAPIR, E. ''Língua, raça e cultura''. In A linguagem: introdução ao estudo da fala. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1971.

Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 52-56, jan./jun., 1997.

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renovación del sistema y asegurasu continuidad y su funciona-miento."2

Temos, assim, as mudanças evariações inevitáveis em qualquer lín-gua que, embora, possam variar deacordo com suas particularidadeshistóricas, com fatores de naturezaextra-lingüística e, também, devidoao contato com outros idiomas nomesmo espaço geográfico, aceleramou contraem esta naturalefervescência lingüística. Dessemodo, se considerarmos a naturezadinâmica da língua e, ainda, a antigüidade dos fenôme-nos de variação e mudança lingüística somos levados apensar que o estado natural de toda língua, por maisreduzida que seja sua área geográfica, deverá ser o esta-do de mutabilidade, ou seja, toda língua exibe sempreuma feição polimórfica.

Assim, podemos perceber que o léxico é o nívellingüístico que revela com mais transparência o ambien-te físico e social dos falantes. O nível lexical é, portanto,o que melhor testemunha a atuação de forças sociaismodeladoras da vida e do pensamento de uma comuni-dade.

No presente trabalho procuramos analisar osdesignativos do vocábulo diabo, na obra Grande Ser-tão: veredas, de Guimarães Rosa.3 Foi nossa intençãoverificar não apenas as possíveis marcas arcaizantespresentes nestes signos lingüísticos, mas também a ma-neira pela qual essas lexias refletem a visão de mundo ea realidade histórico-cultural de um grupo social.

Embora inventariássemos os inúmeros designativosda lexia diabo existentes na obra em questão, seleciona-mos, para este estudo, apenas algumas dessas formaslingüísticas, dado os limites do presente trabalho. As-sim, agrupamos os designativos em cinco campos léxi-cos4, considerando-se a presença de traços semânticoscomuns a determinados grupos de nomes. Deste modo,os dados foram reunidos em torno dos seguintessintagmas que encabeçam cada campo:

1 - Designativos formados com nomes de animais:Cão, Cão-tinhoso, Cão-extremo, Cão-miúdo, Bode-preto.2 - Designativos que denotam sisudez:O Que-nunca-se-ri, o Que-não-ri, o Muito-sério, o

Sempre-sério, o Sem-gracejos, o Severo-mor, o Mal-en-carado, o Austero

3 - Designativos que denotamtamanho:

Satanazim5, Romãozinho, Mor-cegão, Grão-tinhoso, Cão-miúdo,Anhangão, Satanão, Demonião, Di-abinho, Dioguim.

4 - Designativos que sofreramalteração fonética:

Demo, Diá, Dê, Canho, Xu,Drão, Dião.

5 - Designativos que incorpo-ram a idéia de cor:

Bode-preto, Pé-preto, Das-trevas,Tisnado, Carocho.

6 - Designativos de caráter genérico:O Indivíduo, o Cujo, o Ele, o Coisa, o Aquele, o

Dito, a Figura, o Outro, o Tal, o O.7 - Designativos consagrados pela tradição judai-

co-cristã:Satanás, Demônio, Lúcifer, Belzebu.Para a análise dos dados consideramos, além das rela-

ções língua/cultura/sociedade, os aspectos sócio-culturaiscaracterísticos do sertão mineiro e de sua gente- vaquei-ros, jagunços, homem do campo em geral - e as caracte-rísticas físicas e geográficas desta região.

A análise das lexias arroladas no primeiro campo léxi-co - designativos formados com nomes de animais - mos-tra a preferência por animais como o cão e o bode, utiliza-dos no processo de denominação. A tradição popular temapresentado o diabo em variadas formas animais, entreelas a de porco, bode, veado, cão, mosca e touro. Entre-tanto, a denominação a partir da figura do cão e do bodedestacou-se na narrativa de Riobaldo, tendo sido motiva-da, possivelmente, por reflexos da herança sócio-cultural,uma vez que, segundo a tradição popular, acredita-se se-rem esses animais portadores de presságios.

A tradição cristã faz referência ao bode como ele-mento relacionado ao mal e, segundo crença dissemina-da no meio rural, esse animal é conhecido pelos estragosque causa às plantações e às colheitas. A figura do cãovinculada à idéia de diabo é encontrada em Nogueira,segundo o qual, no século XIX, "nos Países Baixos, eracostume expulsar os cães das igrejas e inscrever à porta:Os cães, fora do templo do Senhor"6 Ao que parece, atradição secular de vincular a figura do diabo a de certosanimais manteve-se forte no léxico do sertanejo, retra-tando, assim, a imagem do homem rústico, aferrado àssuperstições, crenças e tradições.

O léxico é o nívellingüístico que revela

com maistransparência o

ambiente físico e socialdos falantes.

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2 Citado por LOPE-BLANCH, J. M. Investigaciones sobre dialectología mexicana. México: Instituto de Investigaciones Filológicas,1990, p.13.

3 ROSA, J. Guimarães. Grande Sertão: veredas, 26 ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.4 Neste estudo, adotarmos o conceito de campo léxico apresentando por Dubois, ou seja, o conjunto de palavras que designam os aspectosdiversos de uma técnica, uma relação, uma idéia etc.''

5 Nos exemplos utilizados para este trabalho, - im é um sufixo irregular, de uso popular, também usado entre os habitantes do sertão mineiro.6 NOGUEIRA, C. R. F. O diabo no imaginário cristão. São Paulo: Ática, 1986, p.60

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Influenciados porlendas e superstições,os falantes deixam de

pronunciar osdesignativos de diabocom receio de que algo

de ruim possaacontecer-lhes.

As unidades lexicais agrupadas nocampo léxico referente aosdesignativos que denotam sisudez re-metem ao aspecto circunspecto como qual o diabo é apresentado. Paraexpressá-lo, o autor utilizou-se, namaioria das vezes, de lexias compos-tas como, o Que nunca-se-ri, o Sem-pre-sério, o Muito-sério, o Sem-gra-cejos, o Severo-mor, o Austero, o Mal-encarado, entre outras, evidencian-do, assim, a força do sobrenatural ma-nifestada na crença ferrenha, espa-lhada entre o homem do campo, deque o diabo tem aspecto sóbrio e enfezado. Tal convic-ção é resquício de uma sociedade agrária conservadoraem virtude da estagnação cultural, e do isolacionismoexistente em áreas rurais ainda hoje isoladas geografi-camente.

Os itens lexicais arrolados no campo léxico -designativos que denotam tamanho - expressam a cren-dice de que o sertão é cheio de mistérios, de buscas edescobertas constantes, um contínuo caminhar pelas ve-redas onde habita o Grão-tinhoso ou o Cão-miúdo, oSatanão, o Satanazim, o Dioguim, o Diabinho ou oRomãozinho. O traço semântico tamanho, observado nes-ses exemplos, deixa transparecer a crença enraizada noíntimo do sertanejo, de que ali convivem um diabo meni-no que faz estripulias, travessuras e um diabo adulto, sem-pre ativo, espreitando os espíritos mais simples e rudes. Areferência a esses dois estágios em que o diabo pode semanifestar deixa transparecer o poder que o sobrenaturalexerce sobre a população do meio rural. Essas supersti-ções, mitos e crenças persistem ainda, nessas áreas, ali-mentadas pela distância existente entre uma propriedaderural e outra e, principalmente, pelo isolamento que seencontram dos grandes centros culturais. É o ermo queimpera entre as propriedades rurais do sertão.

Já as unidades lexicais reunidas no campo léxico -designativos que sofreram alterações fonéticas - são re-sultantes das mudanças fonéticas ocorridas nas lexias,Demônio, Diabo, Canhoto, Xuxo (ou Exu), Dragão eDiabão, donde resultaram as formas variantes Demo ouDê, Diá, Canho, Xu, Drão e Dião. E importante assinalarque a conduta lingüística pode, por vezes, ser influencia-da pela noção de poder. Parece-nos pertinente mencionarque o poder, entendido como algo que tem que ser acata-do ou, ao mesmo tempo, como algo que se deva oporresistência, exerce influência considerável na seleção lin-güística dos falantes.

Desse modo, influenciados por lendas e superstiçõesexistentes na comunidade, os falantes deixam de pro-nunciar os designativos de diabo com receio de que algode ruim possa acontecer-lhes. Utilizam-se, então, dasformas reduzidas, um modo alternativo, segundo a crençapopular, de referir-se ao diabo sem invocá-lo, ou seja,sem correr o risco dele fazer-se presente. Importa re-

gistrar que o fanatismo religioso, aquestão do tabu e a ignorância acer-ca de questões de ordem religiosaexistente em muitas comunidadesrurais do Brasil influenciam, consi-deravelmente, a escolha lexical dosfalantes

Os itens lexicais reunidos nocampo léxico - designativos que in-corporam a idéia de cor - registrama preferência pela cor escura, pre-ta , encontrada nos váriosdenominativos de diabo. A tradiçãojudaico-cristã refere-se ao diabo

como o Príncipe das Trevas o qual, por desobediênciaa Deus foi precipitado ao reino das trevas, da escuri-dão. Assim, quer se apresente na forma humana ouanimal, é, freqüentemente, representado por figura decor preta, ou por expressões que remetem à cor escura- tisnado (requeimado, tostado, enegrecido), carocho(que tem a cor escura, trigueira), trevas (escuridão ab-soluta), como atestam os exemplos Bode-preto, Pé-preto, Das-trevas, Tisnado e Carocho.

A tendência conservadora que caracteriza a vida dopovo rude e humilde do interior do Brasil que, ainda,vive mergulhado no passado e norteia suas vidas con-forme preceitos de tradição judaico-cristã permea-dospor crenças de vertentes indígena e africana, acaba pormanter a tradição, isto é, a preferência por certas lexiasjá consagradas na comunidade na qual se inserem.

As unidades lexicais que compõem o campo léxico -designati-vos de caráter genérico - evidenciam o uso determos generalizantes que, na linguagem de Riobaldo seespecializam deixando, assim, de designar um ser qual-quer, cujo nome não se quer ou não se pode declinar, paranomear, especificamente, o diabo. Essas lexias estão, namaioria das vezes, antecedidas do artigo definido, o quelhes confere o caráter individualizador. Temos, assim, uni-dades lexicais como o Indivíduo, o Cujo, o Ele, a Coisa,o Aquele, o Dito, a Figura, o Outro, o Tal, o O. Valelembrar que encontramos, com freqüência, na fala popu-lar, expressões com termos genéricos: o dito cujo, comodiz o outro, aquele um, empregados quando não se podeou não se quer proferir o nome de alguém. O emprego deEle, por exemplo, como designativo de diabo remete ànão-pessoa.

O uso do designativo O representa, certamente, umatentativa de expressar "o fim" das dúvidas que atormen-tam o cotidiano de Riobaldo. Representa essedenominativo o símbolo do temor sobrenatural que im-pede as pessoas de pronunciarem o nome nefando, nocaso, o do diabo. Processa-se, nesse caso, a concentra-ção do máximo de significado no mínimo de significante.

A crença no poder sobrenatural, disseminada entre amaior parte das comunidades rurais do sertão, populari-zou o hábito de que não se deve proferir o nome deentidades vinculadas ao mal, para que nada de nefando

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venha acontecer. Portanto, utilizam-se dos designativos de caráter geral,quando necessitam referir-se a essasentidades.

Já as unidades lexicais arroladasno último campo léxico -designativos consagrados pela tra-dição judaico-cristã - formam cor-po com toda essa múltipla nomea-ção de uma mesma figura. Entre-tanto, a baixa ocorrência dessesdesignativos talvez seja justificadapelo fato de tratar-se de vocábulosde origem erudita.

Entre as unidades lexicais reunidas nesse campo -Satanás, Demônio, Lúcifer e Belzebu - apenas a lexiaBelzebu apresenta formas variantes, quais sejam,Berzebu, Berzabum, Berzabu e, ainda, Barzabu, lexiaresgatada da fala de Riobaldo. Outras duas lexias que seagrupam neste campo - Satanás e Demônio - apresen-tam as formas reduzidas Satã e Demo.

A análise dos dados testemunha a presença, bastantefreqüente, na fala do homem do meio rural, de lexias decaráter popular como Capeta, Tinhoso, Coisa-ruim, etc.,em detrimento das formas ortodoxas como Satanás, De-mônio, Lúcifer e Belzebu.

À guisa de conclusão foi-nos possível observar queo emprego de arcaísmos associa-se ao de regionalis-mos, na medida em que, muitos deles, são formas emdesuso nas áreas mais desenvolvidas do país. Entre-tanto parecem continuar subsistindo em certas regiõesrurais não afetadas, ainda, pelo desenvolvimento oriundoda civilização moderna. O isolamento, característicodessas áreas em relação a outras no país, é devido,sobretudo, à precariedade dos meios de comunicação eà falta de contato intenso com outros grupos sociais, oque justifica o fato de seus habitantes conservarem tra-ços de linguagem representativos de outros períodosda história da língua.

Em seus estudos sobre o português do Brasil, SilvaNeto7 menciona a importância dos regionalismos para ahistória da língua e para a pesquisa etimológica. Assinalao autor que os regionalismos, embora geograficamenteconfinados e socialmente desprestigiados, seriam me-lhor tratados se enfocados sob uma perspectiva históri-ca. Segundo o autor, antes da constituição da língua co-mum temos apenas os regionalismos das diferentes par-tes do País que fornecerão a matéria-prima para a confi-guração do léxico da língua comum. Atenta, ainda, esseestudioso para o fato de que uma correta interpretação

do léxico comum de uma língua sóserá possível à luz dos regionalismos.

A grande e diversificada sinonímiautilizada na obra para fazer referên-cia ao diabo representa importantecontribuição da cultura popular parao léxico da língua portuguesa. Tal fatoparece consolidar-se na crença de queo nome do espírito do mal não deveser pronunciado, o que faria com queele se tornasse presente. Essa cren-dice popular parece concentrar-se nofato de que é menos "pecado" profe-rir os seus diferentes designativos,

denominados por Riobaldo nomes de rebuço.Estes itens lexicais, ainda produtivos na cadeia do

léxico comum pela força da tradição religiosa na memó-ria popular, definem-se para o usuário como formas quepermitem encobrir, disfarçar ou abrandar o que não podeou não deve ser proferido, uma vez que reconstituem aimagem de seu portador imediato, deixando, também,transparecer aspectos inerentes à fé e à devoção de umgrupo social.

A análise dos dados permitiu-nos observar a existên-cia de unidades do léxico que assumiram matizes espe-ciais configurando-se como brasileirismos/regionalismos.Por outro lado, o usuário da língua, motivado por fato-res de natureza geográfica, física e sócio-cultural, criavocábulos específicos a partir de elementos pertencen-tes ao sistema, atribuindo-lhes "cor local". O estudo pornós efetuado permitiu-nos verificar a presença do socialatuando no processo de representação da realidade, oque reforça o pensamento sapiriano, segundo o qual "fa-tores físicos só se refletem na língua, na medida em queatuarem sobre eles fatores sociais."8

Vale reiterar que o estudo do léxico utilizado por umgrupo social leva-nos a inferências acerca do ambientesócio-cultural de seus integrantes. Por fim, assinalamosque a análise realizada neste trabalho possibilitou-nos,portanto, reforçar a idéia de que

"usos e costumes, tradições, mitos e lendas, hábitos elinguajar retratam profunda feição arcaizante, pró-pria de população segregada. O insulamento e o anal-fabetismo explicam a permanência dessa herançasecular. Quanto mais se penetra no sertão, maior é afisionomia arcaizante."9

Foi precisamente aspectos dessa fisionomia arcaizantemanifestos na língua que tentamos demonstrar atravésda análise dos designativos de diabo, recolhidos da falade Riobaldo.

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7 SILVA NETO, S. História da língua portuguesa. São Paulo: Ática, 1986, p.307.8 ''Língua, raça e cultura'', cit., p.45.9 ARROYO, L. A cultura popular em Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio Editorial/INL, 1984, p.7.

A grande ediversificada sinonímiautilizada na obra para

fazer referência aodiabo representa

importantecontribuição da cultura

popular para o léxicoda língua portuguesa.


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