RASTROS DO SENSÍVEL: O SÍTIO DA ÍNDIA DO POETA ALBERTO PORFÍRIO E A
PAISAGEM URBANA DE QUIXADÁ-CE
Maria Vládia dos Santos Lima1
Marcos José Diniz Silva2
Resumo:
O presente artigo tenciona refletir sobre a ação de se apropriar e deixar registrado na paisagem urbana
rastros sensíveis (manifestação exterior íntima, individual ou coletiva), tomando como objeto de
análise um espaço conhecido como Sítio da Índia, criado pelo poeta Alberto Porfírio da Silva, na
paisagem urbana de Quixadá/CE. No Sítio, as rochas, marcante elemento paisagístico local, foram
usadas como suporte para suas esculturas de santos, personalidades, orações e poemas presentes
também em sua obra literária. Essa apropriação social do suporte rochoso, percebida também em
vários pontos da cidade, em monumentos como a Pedra do Cruzeiro, o Chalé da Pedra, assim como
o conjunto paisagístico que faz parte do Açude do Cedro, são guardiões da memória e história local
e, em se tratando do Sítio da Índia, nos permite acessar as memórias construídas por Alberto Porfírio
sobre si e os seus, ou seja, sobre os poetas e cantadores populares que fizeram parte do contexto
sociocultural em que viveu a partir da década de 1940 (quando assumiu a profissão de cantador).
Palavras Chaves: Sítio da Índia; Sensibilidade; Paisagem.
1. Paisagem e sensibilidade: o olhar de um poeta em Quixadá
Estudos voltados para a História das paisagens, nos quais tem lugar a paisagem urbana,
pesquisadores compartilham do entendimento de que ela é considerada reflexo da relação entre os
indivíduos e a natureza, o modo como é apropriada reflete a cultura, assim como a identidade dos
diferentes indivíduos/grupos que habitam os territórios que fazem parte do contexto urbano.
(MENEGUETTI, REGO, PELLEGRINO, 2005). Conforme Silva (1997), essa compreensão vem
sendo construída desde o final do século XVIII e boa parte do século XIX, quando ocorre uma forte
tendência de pensar a natureza em oposição ao homem ou à cultura:
Particularmente o idealismo e o romantismo alemães, no século XIX, forçaram uma
distância absoluta entre Natur e Kultur, tal visão contaminou fortemente a história,
como as demais ciências sociais, de forma a estabelecer uma periodização em que
ambos os termos aparecessem como pontas opostas de um processo. (SILVA, 1997,
p. 298)
A abordagem histórica por um longo tempo continuou a concordar com essa oposição,
afirmando que somente a paisagem cultural era objeto do historiador. Silva (1997) esclarece que
ficava cada vez mais difícil distinguir ambos os campos, uma tarefa considerada prejudicial pela
antropologia, por acreditar que uma distinção iria limitar um entendimento mais amplo dessa relação3.
1Mestranda no Mestrado Acadêmico em História (MAHIS), Universidade Estadual do Ceará-UECE.
[email protected]. 2 Professor do Curso de História (CH), e do Mestrado Acadêmico em História (MAHIS), da Universidade Estadual do
Ceará-UECE. [email protected]. 3 A ideia de uma paisagem “natural”, sem intervenção humana, é apontada como decorrente de uma ideologia de
civilizadores sonhadores de um mundo diferente do seu, que veem “as forças da natureza” como externo ao processo
histórico. A antropologia traz a percepção de um continumm na paisagem, produto de dois conjuntos de fatores: as técnicas
Esse pensamento defendido pela antropologia influenciou outras disciplinas, como a história,
direcionando o olhar para o conjunto, para os múltiplos elementos que fazem parte das paisagens. É
desse modo que o historiador que lança o olhar para a paisagem urbana deve ser capaz de identificar
“marcas de historicidade deixadas pelos homens de um outro tempo... de buscar a palavra onde há
silêncio, de encontrar o gesto onde se registra a ausência. [...] precisa ter filigranas no olhar para ver,
neste espaço transformado, destruído, desgastado, renovado pelo tempo, a cidade do passado”
(PESAVENTO, 2004 p. 25-26).
Na cidade de Quixadá, Sertão Central do Ceará, a 167 km da capital Fortaleza, essa relação e
interação natureza/cultura, de início já é percebida no significado do topônimo: “pedra da ponta
curvada”, “quintal de rocha”, “curral de pedras” (SOUSA, 1927). Apesar das controvérsias quanto à
filiação linguística, que de acordo com Sousa (1927), em alguns documentos é atribuído aos Tupi-
Guarani, em outros aos Tapuias (Cariri, Kanindé, Trarairu) que habitaram a região, interessa chamar
a atenção para a pedra, elemento captado na paisagem e utilizado para situar, fazer referência a um
lugar. Atualmente, uma forma muito comum de se referir a Quixadá é como “cidade dos monólitos”,
“sertão de pedras” ou ainda “terra da galinha choca”, em alusão ao gigantesco inselberg que aparenta
a forma dessa ave.
Pesavento afirma que a paisagem desperta múltiplos olhares lançados por alguém descrito
como “[…] sensível, tocado em suas emoções e sentimentos, pelo espetáculo da natureza, que o
impeliu a traduzi-la em objeto estético (PESAVENTO, 2004, p. 2). Fotografias, romances, crônicas,
pinturas, são representações desses olhares, que em Quixadá se apropriaram das montanhas de pedras
que circundam e integram o cenário urbano, assim como da sua vegetação caracterizada pela presença
de cactos e de árvores baixas que em períodos de estiagem permanecem longos meses despidas de
folhagens.
O poeta quixadaense Alberto Porfírio da Silva4, nascido em 1926 na Serra do Estevão,
Quixadá, além de representar essa paisagem em sua obra literária como o fizeram os escritores Rachel
de Queiroz e Jader de Carvalho, transformou uma estilha da cidade, composta por um aglomerado de
monólitos localizados no bairro São João, em um espaço conhecido como Sítio da Índia, no qual as
rochas foram usadas como suportes para suas esculturas de santos, personalidades, poemas e orações
moldadas em cimento e aplicadas na pedra.
e o direito. Através de exemplificações que demonstram a ação humana em áreas consideradas “naturais”, demonstra a
dificuldade de se estabelecer limites entre os campos, e mostra a importância de ampliar o olhar num dado contexto
(SILVA, 1997). 4 Alberto Porfírio faleceu em 23 de setembro de 2009 em decorrência de um AVC.
Escultura de Padre Cícero e conjunto rochas que fazem parte do Sítio da Índia. Fonte: Vládia Lima - 2011
Percorrendo as ruas de Quixadá podem ser vistos outros espaços/monumentos que assim como
o Sítio da Índia trazem como característica a apropriação do suporte rochoso, como por exemplo o
Chalé da Pedra, edificado em 1919; a Pedra do Cruzeiro, que teve a cruz fixada em 1934, o conjunto
paisagístico do Açude do Cedro (1884-1906), dentre outras estruturas que demonstram uma prática
que vem transformando a paisagem urbana de Quixadá, deixando rastros do sensível em
materialidades guardiãs da memória, história e cultura local.
Chalé da Pedra construído em 1919, localizada no Centro da cidade. Fonte: Michel Van Berh - 2007
Ao buscar informações que permitissem refletir sobre a historicidade dessa prática, a partir da
existência desses monumentos na cidade, percebeu-se que a apropriação da paisagem natural,
principalmente dos monólitos, pode estar relacionada com uma tradição local, algo que pode ser
percebido no conjunto paisagístico que compõe Açude do Cedro, obra considerada responsável pelo
desenvolvimento urbano de Quixadá5.
5 Com o início das obras do Açude do Cedro, Sousa afirma que o crescimento da vila de Quixadá foi impulsionado, “[…]
intensificou-se o comércio com a abertura de novos estabelecimentos; comboios sucessivos transportavam sem cessar
mercadorias e gêneros alimentícios; máquinas e material de construção atulhavam os depósitos improvisados; rasgavam-
se estradas de penetração e em procura do litoral… a bisonha sociedade começou a receber a influência dos numerosos
elementos categorizados da “Comissão do Açude”… Já então o termo judiciário havia elevado a comarca (1885) e a vila
não tardou em ser promovida a cidade (1889). (SOUSA, 1997, p. 54)
Apesar de se tratar de uma obra emergencial criado por D. Pedro II, com o objetivo de resolver
o problema de armazenamento e distribuição de água na região, o projeto tomou uma dimensão
arquitetônica que demorou vinte dois anos para ser concluído. O resultado da obra demonstra que a
paisagem natural foi captada, influenciou e foi influenciada pela ação daqueles que pensaram para
além do objetivo real do Açude. Essa relação humano/natureza que resultou no monumento que
marcou uma nova etapa na história de Quixadá, é ressaltada por Eudes Costa:
Não sabemos se fascinado pela beleza arquitetônica ou se procurando entender como a arte
humana conseguiu engajar-se tão bem com a obra que a natureza ali construiu, quase todos
que visitam o Açude do Cedro ficam estarrecidos com o belíssimo panorama de arte.
Absortos, esquecem de avaliar a importância daquela barragem para a cidade que a espia
como se velasse agradecida ao seu grande benfeitor. (COSTA, 2002, p. 53)
Assim como Eudes Costa, Bonifácio de Sousa, ao dizer que o Açude trouxe “[…] um destino
maior de beleza e padrão que de utilidade e eficiência” (SOUSA, 1997, p.17), também reconhece que
existiu a intenção de embelezar, de unir natureza e saber técnico no mesmo espaço. Os monólitos,
assim como construção do Açude do Cedro, os campos de algodão, os currais do gado, a rede
ferroviária, são destacados por Sousa como elementos que fazem parte da construção histórica de
Quixadá:
Teus monólitos e fazendas que contornando esse imenso sertão. Assim começou a história de
Quixadá! Entre os 'arranhas céus de pedras' e a coreografia dos monólitos, vamos encontrar
como paisagem predominante, no coração do Ceará, os capuchos das plumas ao lado do
mungir do gado nos vales e nos campos de Quixadá até o início dos anos 80... Primeiro
comandado era o chiar dos carros de bois e, depois, as usinas algodoeiras comandavam, com
o apito do trem e os braços 112 dos trabalhadores do campo e da fábrica, sob o financiamento
do Banco do Nordeste (BNB) e do banco do Brasil (BB), o desempenho da atividade
econômica algodoeira cearense (SOUSA, 1997, p. 80)
É desse modo que a cidade nasce trazendo em sua história uma relação de identidade com sua
paisagem natural. Ela vai sendo transformada, apropriada de acordo com o olhar lançado. Alberto
Porfírio lançou o seu olhar e fazendo uso da sua habilidade artesanal criou o que dizia ser o seu lugar.
O Sítio da Índia representa a continuidade de uma tradição que reconhece os monólitos de Quixadá
como suporte de arte, comunicação, uma prática/representação que conduz a diferentes
temporalidades num simples flerte com algum dos monumentos espalhados pelas ruas da cidade.
2. Quem foi esse homem que inventou um “lugar para si” na paisagem urbana de Quixadá?
O Sítio da Índia pode ser considerado um lugar de memória ou ainda uma memória de si,
criado pela ação de um homem que interferiu num lugar, para transformá-lo no seu lugar. Gomes
(2004), explica que as práticas de produção de si englobam um diversificado conjunto de ações que
incluem desde aquelas ligadas à escrita – autobiografias, diários, cartas – até aquelas realizadas pelo
recolhimento de objetos materiais. Segundo a autora, em todos os exemplos “os indivíduos e os
grupos evidenciam a relevância de dotar o mundo que os rodeia de significados especiais,
relacionados com suas próprias vidas, que de forma alguma precisam ter qualquer característica
excepcional para serem dignas de ser lembradas” (GOMES, 2004, p. 11).
Alberto Porfírio ao criar o Sítio da Índia desejou ser lembrado, uma intenção evidenciada em
uma frase registrada no Sítio que diz: Quando não mais existir, me procure aqui. As esculturas, os
versos, poemas, orações distribuídos no espaço, foram selecionados pelo poeta, trazem significados
que remetem a sua trajetória de vida e ao contexto social e cultural no qual viveu. Marc Bloch em sua
abordagem sobre a história, o homem e o tempo, declara que
Por trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem, [os artefatos ou as máquinas] por trás
dos escritos aparentemente mais insípidos e as instituições aparentemente mais desligadas
daqueles que as criaram, são os homens que a história quer capturar. Quem não conseguir
isso será apenas, no máximo, um serviçal da erudição. Já o bom historiador se parece com o
ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça. (BLOCH, 2001, p. 21)
Os rastros deixados podem parecer imperceptíveis, como sugere Bloch (2001), entretanto, se
existe algo que desperta a atenção, que o intriga, inquieta, as chances de uma captura aumentam
significativamente. É assim que a historicidade da ação de um homem sobre um espaço conectado ao
emaranhado urbano de Quixadá, gera inquietações, que de início se volta para a sua figura. Quem foi
esse homem que dedicou anos da sua vida à construção de um espaço repleto de imagens e no qual
registrou “quando não mais existir, me procure aqui”? Que relação pode ser estabelecida entre o
representado por Alberto Porfírio no Sítio da Índia, sua trajetória de cantador e dos cantadores que
vivenciaram esse universo cultural em sua época?
Refletir sobre a racionalidade de um ausente, sem dúvida não é tarefa fácil. Muitos elementos
se intercruzam, revelando traços de trajetórias. O Sítio da Índia foi organizado pela memória do poeta,
uma memória seletiva, que construiu uma identidade de si através das suas lembranças. Essa
construção também pode ser encontrada no seu último livro, Autobiografia: sua vida e sua obra em
prosa e versos (1926-2006).
Gomes explica que, na análise das produções de si, importa ao historiador “a ótica assumida pelo
registro e como seu autor a expressa. Isto é, o documento não trata de “dizer o que houve”, mas de
dizer o que o autor diz que viu, sentiu e experimentou, retrospectivamente, em relação a um
acontecimento” (GOMES, 2004, p. 15).
Seus outros livros Poetas Populares e Cantadores de Ceará (1978); Livro da Cantoria, Me-
todologia do repente (1997); Livro Canta Brasil 2000 (2000) e As Noites de Viola na Casa de Juvenal
Galeno (2003), são obras que apresentam pelejas, versos e informações biográficos de poetas e can-
tadores cearenses, tais como do quixadaense Zé Porfírio, Xico do Buriti, de Quixeramobim, Cego
Aderaldo que fez fama em Quixadá, e muitos outros poetas e cantadores, conhecidos do grande pú-
blico e anônimos, que percorreram o Ceará realizando cantorias e, assim como Porfírio vivenciaram
a partir da década de 1950 um momento de transição em suas trajetórias de cantadores.
Porfírio revela em uma entrevista a pesquisadora Simone Castro, que a partir dos anos 50 os
cantadores passaram a se fazer presentes nos centros urbanos, seguindo o seu público que migrava
do sertão para as cidades. Castro explica que nessa época “a cantoria figurava ainda no campo da
desordem e o cantador de viola aparecia nos discursos de grandes proprietários, delegados e parte da
população, como vagabundos, desordeiros, boêmios e cachaceiros” (CASTRO, 2013, p. 6).
Essa situação, segundo a autora, estava relacionada a transformações no cenário nacional,
momento em que a industrialização no Brasil emergia para uma nova etapa, um dos fatores que im-
pulsionou a migração para as cidades. Como não atendiam ao modelo do trabalhador da época, os
cantadores eram considerados um mau exemplo para os demais. Foi assim que em 1951 foi criado a
Associação dos Cantadores do Nordeste, com sede em Fortaleza, que tinha por objetivo legitimar a
profissão, instituição da qual Alberto Porfírio foi presidente (CASTRO, 2013). Porfírio também par-
ticipou da fundação da Casa do Poeta Brasileiro, em Brasília, sendo escolhido como corresponde do
Ceará, no entanto, relata em sua autobiografia que pouco pôde fazer pela entidade por ter ficado
enfermo (SILVA, 2010). Sobre as mudanças na trajetória dos cantadores cearenses, Alberto Porfírio
escreve:
Nos anos de 40, 50 e parte dos anos 60 o Ceará viveu a Era do Ouro dos cantadores de viola,
que nós optamos por chamar aquele período de a Era Rogaciano Leite, por ter sido primeiro
cantador intelectual que esteve em nossa região. Antes a cultura era outra. Os cantadores
podiam ganhar dinheiro e fama mesmo sendo analfabetos. Depois dos anos 60, quando o
progresso marcou todas as frentes, a cultura mudou. O público ficou exigente. [...] hoje or-
ganizam-se em associações, são contratados para cantar em clubes e eventos culturais impor-
tantes, disputando prêmios e troféus (SILVA, 2003, p. 7).
Podemos observar que a trajetória de Alberto Porfírio se inscreve em um momento de transição
vivido pelos cantadores quixadaenses e cearenses a partir da década de 19506, trajetórias que foram
registradas em livros publicados em paralelo a construção do Sítio, que iniciado em 1994 e que seguiu
por oito anos, segundo familiares do poeta.
Relacionando as imagens do Sítio da Índia com as imagens descritas em sua poesia e em narrativas
que faz sobre a trajetória de poetas populares de sua época, observamos que existe uma
correspondência de sentidos. Por exemplo, em seus versos e poemas fala das romarias a Juazeiro do
Norte, no Sítio vemos a escultura de Padre Cícero; o Vaqueiro no poema Fenômeno Sertanejo é
homem ousado e valente, no Sítio surge em cima de um cavalo tentando laçar um boi; no poema a
Casinha do Alto o poeta descreve a moradia dos seus sonhos. No Sítio em um dos pontos mais altos,
vemos uma casinha pequena e branquinha que se assemelha com o representado na poesia. Essa
relação nos leva a pensar que pode ter ocorrido o que chamamos de uma transposição do sensível
para o concreto.
No Sítio, vemos ainda em um lugar de destaque cercada por poemas moldados falando sobre o
sertanejo, a escultura da escritora Rachel de Queiroz. Em um outro local, fixado em um matacão
próximo a escultura da Índia Guerreira ou Iracema, que deu nome ao Sítio, ver-se o jogador de futebol
Bebeto, que foi colocado lado das esculturas de Nossa Senhora Aparecida e Santo Antônio; logo
6 Cantadores atualmente transitam no urbano e no rural, sendo predominantemente urbano. (CASTRO, 2013)
abaixo, no mesmo paredão rochoso, podemos ver a face do Jacinto de Sousa e uma pequena escultura
da Virgem Maria com o menino Jesus. Outras esculturas como Rei Leão, Dom Pedro I, Nossa Senhora
Rainha do Sertão e Padre Cícero se encontram distribuídas por todo o espaço7
Esculturas da escritora N.S. Aparecida, Santo Antônio, Bebeto. Fonte: Vládia Lima – 2016
Essa ação que transforma um lugar em um espaço, como fez Porfírio no Sítio da Índia, ocorre
a partir do momento em que indivíduos exercem dinâmicas de movimento através do uso
(CERTEAU, 2014). Quando apropriado, o lugar passa a “ser de alguém”, passando à condição de
espaço. Nesse caso, segundo Certeau (2014, p.185), “existem tantos espaços quantas experiências
espaciais distintas”.
A trajetória dessa ação também pode ser acessada através dos relatos daqueles que fizeram
parte da sua vida e guardaram na memória momentos compartilhados com o poeta. Os relatos,
conforme Certeau, conduzem, revelam, transformam, “são feituras de espaço” (CERTEAU, 2014,
p.189), reúnem fragmentos diversos das lembranças com o intuito de produzir sentido a determinado
local.
3. Relatos de um lugar praticado
Na fala da sobrinha do poeta Alberto Porfírio, Genésia da Silva Lima8, o primeiro contato com
o lugar que seria transformado no Sítio da Índia se deu na ocasião de uma visita. Ao se deparar com
local o poeta ficou maravilhado, vindo em seguida com uma proposta:
No dia que ele chegou aqui, foi olhar, subiu, viu o ambiente… ele disse [Alberto Porfírio]
minha filha eu vou te contar uma coisa, você acredita? Eu tive um sonho fazendo um lazer
pra mim num local desse, idêntico aqui e era aqui… o local foi esse aqui… meu tio esse local
aqui não é meu, mas o dono já me ofereceu pra comprar, se de todo caso o senhor queira, nós
chega junto, vamos na casa dele, o senhor compra e constrói. (LIMA, 2011)
7 Estão distribuídas um total de 22 esculturas (10 religiosas; 4 de personalidades; 8 variadas). Em meio as esculturas 9
poemas/versos e 4 orações. É interessante destacar que na distribuição espacial Alberto Porfírio entrelaçou os significados,
ou seja, as esculturas que remetem ao sagrado foram distribuídas dentre as que fogem a essa dimensão. 8 LIMA, Genésia da Silva. Quixadá/CE. Celular (60 minutos), 2011.
Quando os sentimentos, desejos e sonhos, encontram onde se manifestar, ocorre o que
Bachelard (2008) chama de devaneio poético, traduzido no dicionário de termos Bachelardianos
como “um produto do cogito de um sonhador e tem como ponto de partida alguma coisa do passado
ou do presente. […] para que encontre sua matéria, é preciso que um elemento material lhe dê sua
própria substância, sua própria regra, sua poética específica”. (FERREIRA, 2013, p. 57)
O devaneio, portanto, representa o despertar diante da condição material daquilo que habita
na memória, no imaginário do agente sonhador. Segundo Genésia Lima, Alberto Porfírio reconheceu
na paisagem a imagem poética que habitava nos seus sonhos, e a partir daquele momento buscou
meios de concretizá-lo.
No Sítio da Índia está registrado na casinha do alto o ano de 1994, que de acordo com relatos
de parentes e amigos demarca o início da “construção” do Sítio. Genésia conta que se realizava a cada
primeiro de janeiro missa e depois cantoria, momentos rememorados na fala do senhor Fernandes
Domingos9, amigo do poeta e morador do bairro São João:
“Essa data que tem lá, de 1994 foi quando ele começou… por que veja bem, primeiramente
ele fez a casa. Fez a casa pra que? pra quando vinher ter a casa onde ficar. Ficar pra que? pra
trabalhar nas estátuas… depois do Sítio montado muita gente veio fazer entrevista, conhecer
o Sítio da Índia, aí foi aumentando cada vez mais a população, o povo gostava de vim muito
a tarde depois que a sombra dava, por que tem essa serra muito grande, né? O sol vira logo,
aí muitas pessoas iam pra lá, ele passou alguns vez, que ele fez festa, aquela festa familiar,
vamos dizer, mas convite para todo mundo, muita gente, ia até umas horas da noite, tudo
tranquilo, numa boa mesmo, com aquele respeito a ele, né? (DOMINGOS, 2016)
Alberto Porfírio, de acordo com Fernandes Domingos, apesar de ser quixadaense, era uma
figura pouco conhecida na cidade, exceto pelos cantadores e o público ouvinte das cantorias, ao seu
ver foi a partir do Sítio da Índia que o nome do poeta passou a ser conhecido.
“Vinha gente que não sabia nem quem era o Alberto, e muita gente veio sem o Alberto tá aí,
tava em Fortaleza. Quando tava, ele tinha aquele prazer em receber aquele pessoal que vinha
visitar, tirava muito foto, filmava, é como digo a você, a história dele é uma história boa do
começo ao fim”. (DOMINGOS, 2016)
Pode-se perceber que o Sítio da Índia influenciou a dinâmica do bairro, pessoas da cidade e
de outros lugares passaram a frequentar, visitar o espaço. Nogueira (2015), ao refletir sobre as
práticas, usos, apropriações e sentidos atribuídos à espaços do bairro Benfica, em Fortaleza, afirma
que “paisagem urbana foi se delineando e ganhando visibilidade à medida que, na dinâmica do
cotidiano, os usos de tais espaços por diferentes sujeitos dotaram-na de identidade, conferida pelo seu
potencial de um referencial ligado às atividades culturais e de localização” (NOGUEIRA, 2015, p.47).
Esse dinamismo observado no bairro Benfica faz refletir sobre lugar assumido pelo Sítio da
Índia na paisagem urbana de Quixadá, a visibilidade trazida para o bairro São João, os usos, práticas,
apropriações que conferiram uma identidade ao local, ou seja, despertaram uma nova sensação de
9 DOMINGOS, José Nacélio Fernandes. Quixadá/CE. Celular (40 minutos), 2016.
pertencimento. Segundo Pesavento “a identidade é uma construção imaginária que produz a coesão
social, permitindo a identificação da parte com o todo, do indivíduo frente a uma coletividade, e
estabelece a diferença” (PESAVENTO, 2008, p. 90). Esse processo de construção identitária que tem
o Sítio da Índia como elemento diferenciador, é algo fundamental para entender a influência cultural
e social trazida para bairro São João através do Sítio.
A diversidade de esculturas/representações gera apropriações de acordo com a identificação
com a imagens representadas. É assim que um leitor de Rachel de Queiroz, ao ver sua escultura,
provavelmente lembrará de algum livro interessante da escritora, da mulher Cearense que conseguiu
seu espaço no meio acadêmico. Já um conhecedor da história e do trabalho de Jacinto de Sousa, como
o monumento ao trabalho, erguido na popularmente conhecida praça da estação, em Quixadá, na certa
irá lembrar-se do papel que o mesmo exerceu na luta dos trabalhadores Quixadaenses. Esses olhares
mesmo que fujam da intenção do poeta, são responsáveis pela dinâmica que dar vida ao espaço.
Tereza Silva10, amiga do poeta Alberto Porfírio, volta ao tempo em que as esculturas estavam
sendo construídas e distribuídas no espaço e conta: “...muitas vez eu vi tio Alberto, era assim que eu
chamava ele, sentado numa cadeira que ele fez, no meio das pedra, olhando os buracos, vendo onde
ia butar cada estátua” (SILVA, 2011). A distribuição espacial, resultante desses momentos de
devaneio, desperta curiosidade, e o desejo de entender o olhar do poeta, os sentimentos envoltos na
montagem, no ato de representar suas memórias nesse espaço.
4. Percepção, apropriação, ressignificação: o olhar da cidade para o Sítio da Índia
Assim como o poeta Alberto Porfírio lançou seu olhar e identificou na paisagem urbana de
Quixadá o seu lugar, a cidade direcionou seus múltiplos olhares para o Sítio da Índia, conectando o
espaço a vida urbana através das práticas. Para Chartier “[...] as representações criam práticas e as
práticas criam representações. As representações sociais sobre determinado objeto, ou sujeito, criam
práticas sobre o objeto, ou sujeito; de tal modo, que as representações passam a ser a própria
realidade” (CHARTIER, 1990, p.25). Refletindo, entende-se o Sítio da Índia como uma representação
guardiã de representações, responsáveis pela constante transformação do Sítio em um lugar praticado.
Esse lugar experimentado/vivido, deixa de representar a identidade de uma pessoa e passa representar
individualidades coletivas.
Nesse processo em que o universo material é socialmente apropriado por diferentes sujeitos,
de acordo com Nogueira (2005, p.41), os sentidos vão construindo os lugares, as territorialidades e
as imagens da cidade. O autor continua dizendo que “são essas relações e atribuições de sentidos que
significam o lugar – uma configuração instantânea de posições – que para Certeau (1994, p. 201)
implica uma indicação de estabilidade” (NOGUEIRA, 2005, p. 42).
10
LIMA, Terezinha Nascimento Silva. Quixadá/CE. Arquivo mp3 (30 minutos), 2011.
No Sítio da Índia, em um primeiro momento, percebeu-se essas atribuições de sentidos no
que chamou-se vestígios de apropriações, que são as velas, terços, fitas e flores, encontrados junto
aos Santos. Esses vestígios de imediato chamou atenção para a existência de práticas religiosas no
espaço: seriam o pagamento de uma promessa? O Sítio é visto como um espaço sagrado? Genésia
Lima ao ser indagada sobre essa presença material, relata:
… tem gente que vem pedir favor pra os santo, uma dia uma mulher aqui tava sentido uma
dor cabeça muito grande, aí ela veio atrás da Nossa Senhora Aparecida pedindo a virgem que
curasse a dor. Poucos dias depois veio agradecer a santa, ascendeu vela e rezou um terço nos
pés da Nossa Senhora… já aconteceu também, de gente pedi favor a índia… um dia um
homem tava doente da perna, uma ferida feia, que não curava com remédio. Ele viu a índia
e pediu a ela, ficou curado e veio agradecer. (LIMA, 2011)
Existe uma predominância de esculturas que remetem a dimensão sagrada, que além de
despertar práticas direcionadas para os santos do catolicismo, tem-se relatos de práticas possivelmente
voltadas para a umbanda, uma ligação feita por Alberto Porfírio (intencional ou não) e refletida no
olhar (apropriação) dos indivíduos que visitam o espaço.
Do mesmo modo que a Pedra do Cruzeiro, o Chalé da Pedra, o Açude do Cedro, entre outros,
o Sítio da Índia também é considerado um ponto turístico, um uso destacado nas páginas do jornal
Diário do Nordeste em 2012:
Localizado numa das muitas e imensas formações rochosas espalhadas pela cidade, no bairro
São João, se transformou em mais uma atração para estudantes e turistas. As visitas são
constantes, mas o lugar poderá virar ruínas se não receber incentivo para sua preservação. O
alerta é feito pela sobrinha do mestre Alberto Porfírio, Maria Genézia da Silva. […] Quem já
teve a oportunidade de visitar o Sítio reconhece que o lugar é interessante. Das esculturas de
Rachel de Queiroz, aos poemas em letras de cimento realçadas nas rochas, a arte se funde
com a natureza. Aliás, uma das preocupações de Alberto Porfírio era com a preservação do
meio ambiente11. (DIÁRIO DO NORDESTE, 2012)
Na reportagem é mencionado como ocorrem as visitações, geralmente orientadas pela
sobrinha do poeta, Genésia Lima. Fala-se também do interesse da família em transformar o espaço
em um museu, e do esforço por parte da ex secretária da Fundação Cultural de Quixadá, Sandra
Venância, na elaboração de um projeto visando a restauração das esculturas do Sítio. Verificou-se que
essa foi a primeira reportagem sobre o Sítio da Índia, trazendo um texto que convida o leitor a
conhecer as esculturas na rocha do poeta Alberto Porfírio e a contribuir com a preservação do espaço.
Em 2015, novamente uma reportagem sobre o Sítio no Diário do Nordeste, dessa vez o título
trazia uma denúncia: Sítio da Índia - Recanto cultural está abandonado e esquecido em Quixadá.
Quixadá, terra dos monólitos, dos esportes de aventura e do abandono. Essa é a observação
de quem tem sensibilidade e se interessa pelas riquezas naturais e culturais de Quixadá,
considerada uma das mais belas cidades do Ceará e do Brasil, elogiada e versos pelo escultor,
xilógrafo e poeta popular Alberto Porfírio no recanto especialmente criado por ele ao longo
de décadas, o Sítio da Índia12. (DIÁRIO DO NORDESTE, 2012)
11
Jornal “Diário do Nordeste”, 01/09/2012, REGIONAL-CE. p. 3 12
Jornal “Diário do Nordeste”, 03/05/2015, REGIONAL-CE. p. S/N
Essa matéria começa dizendo que a reportagem anterior (2012) despertou o interesse das
pessoas em visitar o Sítio, no entanto, o estado de conservação das esculturas deixou triste alguns
visitantes. Nela é ressaltada a importância do espaço enquanto recanto guardião da cultura local e
como tal, precisa de cuidados para continuar encontrando ressonância junto a população.
Estudantes de escolas, universidades de Quixadá, são levados constantemente por seus
professores ao Sítio. Nessas visitas (aulas de campo), os professores usam as esculturas, poemas e
orações nas rochas como instrumentos didáticos, estimulando os alunos a refletir a cultura a partir do
representado no Sítio. É percebível que existe um natural interesse em conhecer a trajetória e as
motivações daquele que inventou o espaço.
O Sítio da Índia, como pode ser observado, se conecta à vida urbana através dos sentidos
conferidos ao espaço. Considerando que o habitante vive a cidade de forma fragmentar, “é através do
uso que o cidadão se relaciona com o lugar e com o outro, os lugares ganham sentido à medida que
são vividos e percebidos e vão ganhando significados” (MENEGUETTI, REGO, PELLEGRINO,
2005). A paisagem urbana guarda rastros sensíveis dessas trajetórias que vão se apropriando,
modificando pelo uso o tecido urbano. A historicidade dessa ação em Quixadá, pode ser refletida
através do Sítio da Índia, um trabalho em fase de construção com qual pretende-se contribuir com os
estudos voltados para as práticas culturais na paisagem urbana.
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