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O JUSTO E O BOM NA TEORIA DA JUSTIÇA IGUALITARIA DE
JOHN RAWLS E A CRÍTICA COMUNITARISTA
THE FAIRNESS AND THE GOOD IN JOHN RAWLS’THEORY OF
EGALITARIAN JUSTICE AND THE COMUNINITARISM CRITICISM
Letícia Garcia Ribeiro DYNIEWICZ1
RESUMO: Este artigo tem como objetivo apresentar uma reflexão sobre duas
correntes da filosofia política contemporânea que dialogam a respeito da resolução de
conflitos morais latentes nas sociedades atuais: o liberalismo igualitário e o
comunitarismo. Essa discussão tem origem com a obra de John Rawls, Teoria da
Justiça, publicada em 1971. Tendo esse pano de fundo, esse trabalho analisa as
concepções de justo e de bem propostas pelo autor, para em um segundo momento
compará-la com o comunitarismo. Palavras-chaves: Justo. Bem. John Rawls. Comunitaristas.
ABSTRACT: This paper aims to present a reflection about two contemporary
political philosophy conceptions. Both of them – egalitarian liberalism and
communitarianism - try to solve the problem of moral conflicts in nowadays societies.
This debate started in Theory of Justice written by John Rawls and published in 1971.
Taking into account this scenario, this article analysis, firstly, the conceptions of
fairness and the good that Rawls develops in his piece. In the second part, his view
will be compared to communitarianism.
Key words: Fairness: Good. John Rawls. Communitarianism.
INTRODUÇÃO
Dentro de um debate político moral cada vez mais acirrado na
contemporaneidade, em que as diferenças culturais presentes em todo mundo estão
1 Professora no Curso de Direito da FAE. Mestre em Direito- UFSC. Doutora em Direito – PUC-Rio.
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cada vez mais próximas devido à globalização, a compreensão do debate que teve
início com a Teoria da Justiça de John Rawls em 1971 é imprescindível para o Direito.
Assim, a proposta deste pequeno texto é compreender a diferença entre e o justo e o
bem na teoria rawlsiana, colocando-a em diálogo com a teoria comunitarista.
Teoria da Justiça é a obra de John Rawls lançada em 1971 nos Estados
Unidos, que inaugura um novo debate teórico em relação às diferentes concepções
do justo. O intuito do autor era de dar coerência a uma série de artigos seus
anteriormente publicados defendendo uma concepção de justiça contratualista para
sociedades bem ordenadas, criticando o utilitarismo - principal corrente teórica da
época. A partir dessa obra, inaugura-se um grande debate dentro da filosofia política
acerca das diversas concepções de justiça. Muitos foram os autores dentro da
tradição anglo-saxã que criticaram e adotaram posturas diferentes de Rawls. Dentre
eles, os trabalhos de Charles Taylor, Alaisdair Mac Intyre e Michael Sandel. Mesmo
na tradição continental, a discussão repercutiu, principalmente, na figura Jürgen
Habermas. Atualmente, o debate ainda ressoa, por exemplo, na Teoria do
Reconhecimento de Nancy Fraser e Axel Honneth. Além disso, o próprio autor revisou
dez anos depois sua obra, o que resultou em seu livro Liberalismo Político.
Apesar das muitas nuances que este debate apresenta - não se quer aqui
reduzi-las, inicialmente, de forma bastante caricatural ou polarizada -, podemos
separar estes autores em dois grandes grupos. Em um deles, encontram-se aqueles
que de alguma forma apostam na teoria rawlsiana, ou seja, na prevalência do justo
sobre o bem. Em outras palavras, em uma concepção deontológica de justiça para a
ordenação social. Enquanto que, os críticos de Rawls, comunitaristas, filiam-se a uma
tradição teleológica, na qual o próprio Estado, pautado na narrativa que o constitui,
promove uma concepção de bem (perfeccionismo moral), que acredita ser virtuosa e,
portanto, deve ser seguida por seus cidadãos (BERTEN, 1997).
Com opiniões bastante divergentes sobre o bem e o justo e de como estes
dois valores se coadunam, há algo que liga este grupo de autores em torno deste
debate: o reconhecimento da pluralidade nas sociedades contemporâneas. Isto quer
dizer que há inúmeras concepções individuais ou coletivas de bem, justiça e
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democracia partilhadas pelos indivíduos dentro de uma sociedade. Desta forma,
deparam-se com este horizonte empírico e dedicam-se a refletir modelos normativos,
dentro dos quais, universal e particular possam se compatibilizar. Essa tentativa tem
como intuito a possibilidade da construção de um discurso público democrático que
legitime e torne possível a coexistência destas visões dentro de instituições públicas
(LOIS, 2005).
Essa caricatura inicial será aos poucos delineada durante este trabalho
quando as concepções de bem e justo dos autores forem apresentadas. Assim,
primeiramente, pretende-se expor como estes dois conceitos são desenvolvidas na
Teoria da Justiça de John Rawls em oposição ao utilitarismo. Em um segundo
momento, as críticas e as posições de Charles Taylor serão abordadas, comparando-
as com o que postula Rawls. Finalmente, tratar-se-á de Alasdair MacIntyre no que
tange a esses dois aspectos.
1. O Bem e o Justo em John Rawls
John Rawls, em A Teoria da Justiça, desenvolve uma doutrina ética que
denomina de justiça como equidade. Essa doutrina faz parte da teoria da escolha
racional, ou da racionalidade prática, que se dedica a estudar como os indivíduos
avaliam suas escolhas. O autor a situa dentro da tradição contratualista, pois propõe
algo similar ao estado de natureza, a posição original. Nesta situação inicial, –
absolutamente hipotética, portanto, não histórica – os indivíduos escolherão os
princípios de justiça que irão reger suas condutas na sociedade.
Contratualista também porque se filia a esta tradição teórica, seguindo,
principalmente Kant. Além disso, Rawls afirma que o termo contrato se coaduna com
vários pontos de sua teoria, tais como: a crença na racionalidade dos indivíduos, ou
seja, estes são capazes de explicar e justificar suas escolhas; uma pluralidade de
vontades que serão conciliadas através da colaboração social; e, por último, a
publicidade dos princípios de justiça que foram nessa situação acordadas. No entanto,
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alerta para o fato de que sua teoria não é totalmente contratualista, já que só trata da
justiça, sem considerar outras virtudes presentes nas relações morais.
Como já afirmado no parágrafo anterior, a principal influência contratualista de
Rawls é a da Kant. Dentre algumas razões porque Rawls segue dois postulados
kantianos bastante importantes: o pressuposto de que os seres humanos são dotados
de uma racionalidade moral e de que o justo deve preceder ao bem. Entender o
indivíduo como um ser racional moral significa compreendê-lo como um ser capaz de
originar e fundamentar suas escolhas de forma autônoma. Esta personalidade moral,
em Rawls, compõe-se de duas aptidões: a capacidade de escolher uma concepção
de bem e um senso de justiça.
A filiação de Rawls a uma tradição deontológica em relação à justiça, ou seja,
sua formulação de princípios de justiça formal que precedem o bem, também é
kantiana. Berten aproxima estes argumentos (BERTEN, 1997, p.27-8) ao demonstrar
que Kant defende a escolha de um princípio formal que determine todas as ações,
que obrigue os indivíduos a agir de forma que a finalidade da ação, o objetivo a ser
alcançado, não seja o fundamento do agir. Se a ação for pautada pela sua finalidade,
agiríamos pela mera satisfação dos nossos desejos, o bem, que se caracteriza pela
constante mutabilidade. Isso não nos permitiria uma atitude moral, já que não haveria
parâmetros para hierarquizar a importância daquilo que desejamos. Além disso, a
escolha de um princípio material nos aproxima das motivações empíricas, nossos
afetos e emoções. Só ao rompermos com este tipo de motivação, seremos autônomos
e capazes de não agir apenas segundo a ordem natural.
Assim, da mesma forma que Kant, Rawls, na justiça como equidade, pressupõe
que na posição original, os princípios de justiça sejam escolhidos independentemente
daquilo que se considera o bem e portanto, possam ser universalizáveis. Este se
define como a escolha racional que os indivíduos tomam a respeito dos seus planos
de vida. Racional porque são capazes de adotar os meios mais eficientes para
alcançar determinados fins, ou seja, aquilo que cada um irá buscar de acordo com
sua vontade, sua concepção de bem. Também os considera racionais no sentido de
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que não farão acordos que não possam cumprir ou mesmo muito difíceis de se
manterem.
O processo lógico racional formulado por Rawls para se atingir os princípios de
justiça exige alguns conceitos, que já foram aqui citados, mas precisam ser
aprofundados, como a posição original e o véu da ignorância. Rawls supõe um artifício
hipotético para pensar a posição original – portanto, não é algo histórico ou empírico
– em que as partes estejam em uma situação de igualdade de dignidade e de
representação, na qual seja possível acordar sobre o justo e o injusto com
neutralidade. Nesta posição, os indivíduos estão cobertos pelo véu da ignorância, que
não os permite conhecer sua classe, seu status, sua sorte, seus dotes e habilidades
naturais, inteligência, força, propensões psicológicas e concepções de bem. Não
conhecem as circunstâncias particulares da sociedade onde vivem, como o grau de
cultura e civilização, nem mesmo a geração a que pertencem.
Todos estão na mesma condição de igualdade e sob o véu da ignorância para
garantir que seus princípios de justiça sejam formulados de maneira que as partes
não tenham condições de fazer juízos probabilísticos que as beneficiem, nem
condicionados por condições arbitrárias ou pelo acaso natural. A pureza
procedimental, adotada por Rawls, objetiva que os princípios escolhidos sejam
aceitáveis de um ponto de vista moral. Sendo assim, as partes devem fazer escolhas
razoáveis capazes de serem justificadas publicamente perante os outros, inclusive
perante seus descendente, que serão afetados pela concepção de justiça aqui
acordada.
Essa concepção de justiça como equidade defendida por Rawls se destina a
distribuir direitos, deveres, benefícios e encargos da vida social dentro da estrutura
básica da sociedade, ou seja, “a ordenação das principais instituições em um
esquema de ponderação” (RAWLS, 2002, p. 57). Para isso, o autor formulou, os
princípios da justiça, que acredita seriam escolhidos na posição original, da seguinte
forma:
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Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema
de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema
semelhante de liberdades para todos.
Segundo:
As desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo
que, ao mesmo tempo:
(a) tragam o maior benefício possível para os menos favorecidos,
obedecendo às restrições do princípio da poupança justa, e
(b) sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de
igualdade equitativa de oportunidades (RAWLS, 2002, p. 333)
O autor nomeia o primeiro deles como princípio da liberdade igual, já o
segundo, da diferença. Esta redação dos princípios obedece a uma ordem serial ou
lexical, no qual o primeiro obrigatoriamente antecede o segundo, já que não se pode
violar o primeiro em nome de maiores vantagens econômicas. As liberdades básicas,
para Rawls, constituem um sistema único aplicável a todos os indivíduos, portanto,
devem ser distribuídas de modo que “permitam a mais abrangente liberdade
compatível com uma igual liberdade para todos” (RAWLS, 2002, p. 68). Só podem ser
limitadas entre elas no caso de uma interferir na circunscrição da outra, já que cada
uma das liberdades não é um absoluto em si e devem formar um sistema único.
Já o segundo princípio, o da diferença, pressupõe que o primeiro princípio
assim como a igualdade equitativa de oportunidades já estejam satisfeitos, e só
admite como justa a situação em que se aumente as melhores expectativa dos mais
favorecidos caso estas funcionem melhorando as expectativas dos menos
favorecidos. Esse princípio, segundo Rawls, segue o princípio da eficiência, pois não
há nenhuma outra situação em que a classe desfavorecida estaria em melhor
situação. Esse ponto ideal favorece a todos mais do que se a renda fosse distribuída
igualmente entre todos2.
2 Importante lembrar que estes dois princípios pressupõe uma estrutura básica justa. O princípio da eficiência só pode ser aplicado nesta situação. Caso isso não ocorra, admite-se que se altere as expectativas de alguns que estão em melhores situação para beneficiar aqueles que não tem seu conjunto de direitos e liberdades básicas atendidos.
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Dessa forma, a liberdade é priorizada pelos princípios de justiça, “tanto porque
é comum a todos na posição original, como porque é o que possibilita a igualdade
entre os cidadãos depois de escolhidos os princípios” (SILVA, 2005, p.52). Assim, o
principal objetivo da justiça como equidade é a satisfação das liberdades básicas para
que os homens possam escolher suas concepções de bem. A crítica que pode ser
feita é que, dessa forma, Rawls acaba substancializando sua teoria formal da
igualdade, pois a liberdade passa a ser o bem maior a ser protegido para a garantia
da pluralidade3, já que a justiça não é um valor em si, mas sim um valor que tem como
fim a liberdade.
Como citado inicialmente, toda teoria de Rawls é uma crítica ao princípio da
utilidade, que dominava na época o debate público anglo-saxão. Ao contrário da sua
teoria, onde o justo sempre precede o bem, garantindo que todos realizem seus planos
de vida, no utilitarismo, o bem precede o justo. Sendo assim, a principal crítica de
Rawls é a de que o utilitarismo não respeita os homens como fins em si mesmos,
admitindo que alguns sejam tratados como meio para a realização dos planos de vida
de terceiros. No contratualismo, só se cumpre a condição de tratar os homens como
fins em si mesmos, minimamente, quando todos são tratados de acordo com os
princípios que consentiram. Daí a importância da posição original e do véu da
ignorância, já que somente a partir dessas condições é possível alcançar a
unanimidade de uma concepção de justiça, que represente genuinamente uma
conciliação de interesses.
Além disso, racionalmente, consideradas as circunstâncias da justiça – as
condições normais da sociedade implicam, ao mesmo tempo, em identidade e conflito
de interesses, já que cada indivíduo tem sua própria concepção de bem –, as partes
só se implicarão verdadeiramente se houver uma identidade de interesses
representada na concepção de justiça, de cooperação social, se esta “possibilitar para
todos uma vida melhor do que qualquer um teria se tentasse viver apenas por seus
próprios esforços” (RAWLS, 2002, p. 136). Essa cooperação social não é uma espécie
de solidariedade, já que o indivíduo não está preocupado com a realização dos planos
3 Essa crítica será retomada mais tarde a partir dos autores que serão analisados.
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de vida alheio. Apenas centra-se no seu plano e não obstaculiza os planos alheios
porque reconhece que estes possibilitarão a realização do seu próprio bem (SILVA,
2005).
Enquanto que, o princípio da utilidade exige um sacrifício das expectativas, já
que os menos afortunados são obrigados a aceitar as maiores vantagens dos outros
em nome de um bem comum maior. Uma concepção de justiça como esta não é
estável, exige do ser humano virtudes como benevolência e compreensão, enquanto
a justiça como equidade apenas requer que os seres humanos não sejam invejosos.
Por isso, na posição original, onde os indivíduos estão dotados de uma
racionalidade pura, sua mente não lhes conduziria a escolha do princípio da utilidade.
Ao imaginar que pode, na sociedade, estar no lugar do ser o menos afortunado,
rejeitaria uma concepção de justiça que colocasse em risco o cumprimento de seus
projetos pessoais, já que poderia ter suas liberdades básicas desrespeitadas em prol
da máxima realização do bem coletivo. Assim as partes rejeitariam o princípio da
utilidade e aceitariam uma concepção de justiça mais realista em relação aos
sacrifícios pessoais.
2 O bem e o justo na tradição comunitarista
A principal crítica feita a Rawls pelos teóricos comunitários consiste no fato de
que estes não acreditam na possibilidade de uma concepção totalmente formal de
justiça, na qual os indivíduos sejam desvinculados da narrativa histórica da sociedade
a que pertencem. Em outras palavras, não se pode definir a justiça em uma
determinada sociedade sem que se leve em conta os valores, a tradição, o modo de
vida daquelas pessoas. Além disso, a tradição comunitária acredita que essa moral
pautada apenas na liberdade individual não promoveria nenhum valor comum, o que
não seria suficiente para manter a unidade da sociedade e das instituições.
No entanto, essa tradição teórica é bastante heterogênea. Cada um dos
autores representantes do comunitarismo desenvolve seus próprios conceitos.
Segundo Berten, o que os une são convergências pontuais em relação à desconfiança
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em uma moral abstrata, uma simpatia com uma ética de virtudes e uma concepção
de política que valoriza a história e a tradição (BERTEN, 1997, p.6). Ademais, seguem
uma corrente epistemológica de tradição aristotélica e republicana do Renascimento,
segundo as quais a polis precede o indivíduo. Assim não se pode afirmar a existência
de um pensamento comunitarista mas, apenas, uma corrente de pensamento que
compartilha alguns fundamentos. Para tanto, essa seção demonstrará algumas das
diferenças dessa corrente em relação a Rawls, bem como entre alguns de seus
pensadores.
Charles Taylor, ao se posicionar nesse debate, aponta algumas das críticas
de Michael Sandel a Rawls, das quais compartilha. A primeira delas estaria em um
equívoco rawlsiano em relação ao sujeito engajado nessa sociedade liberal. Taylor
afirma que para o cumprimento do princípio da diferença rawlsiano, segundo o qual
os talentos individuais de cada um são parte constitutiva da igualdade e, portanto,
devem ser respeitados de forma a gerar cooperação social, só seria de fato seguido
se houvesse um alto grau de solidariedade entre as partes. No entanto, como já
explicitado aqui, Rawls não admite sua adesão a esse valor, apontando como única
premissa da psicologia social do seu indivíduo a não inveja, o desinteresse.
Esse compromisso desejado por Rawls só seria atingido por indivíduos
tocados por um “forte sentido de comunidade” (TAYLOR, 2000, p. 200) e não sujeitos
mutuamente indiferentes como propõe o autor liberal. Os indivíduos, da teoria da
justiça como equidade, não podem ao escolher o princípio de justiça da sociedade,
vinculá-lo a uma concepção de bem, pois isso levaria a discriminação. Isto que dizer
que apenas a concepção de vida boa de alguns seria endossada por toda a sociedade.
Existiria, portanto, uma minoria não representada e, portanto, não receberia igual
tratamento.
Para que exista uma sociedade livre, a coerção que em sociedades não
democráticas é realizada por uma única pessoa ou por um grupo delas, que escolhe
o justo e bom para todos, deve ser substituída por outro mecanismo. Taylor afirma
que esse mecanismo seria a identificação dos indivíduos com a polis, ou seja, os
indivíduos devem reconhecer que as leis a que se obrigam e suas instituições são
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expressão de suas vontades. Segundo o autor, isso só é possível quando há um
sentimento que propicie que estes indivíduos se reconheçam dentro da ordem pública.
Esse sentimento, o patriotismo, é uma virtude que exige mais do que a não inveja,
algo que vai além do egoísmo. Nas palavras do autor:
[...] o patriotismo se baseia numa identificação com os outros num empreendimento comum específico. Não me dedico a defender a liberdade de qualquer um, mas sinto o vínculo da solidariedade com meus compatriotas em nossa empresa comum, a expressão comum de nossa respectiva dignidade. (TAYLOR, 2000, p. 204).
Dessa forma, Taylor aposta na liberdade dos antigos. Na crença antiga de que
o cidadão é livre ao participar da vida pública, bem como no fato de ter sua voz ouvida
na tomada de decisões que irá pautar a vida na coletividade. Nessa situação, o
indivíduo se engaja na vida pública porque se sente motivado pelo patriotismo a
cumprir às ordens. Aqui nesse regime participativo, há a escolha de uma concepção
de bem comum que irá reger aquela determinada sociedade. Há a proteção de uma
liberdade bastante significativa, que seria a dignidade dos cidadãos.
Essa dignidade só será compreendida dentro de um conjunto histórico, das
tradições, que constituem uma determinada sociedade. MacIntyre, em Is Patriotism a
Virtue (2003) também afirma que a nação é construída pela ideia de uma história
compartilhada, bem como ao apelo pelos mesmos cânones. Assim que cada uma das
nações centrais, por exemplo, tem seu marco em uma grande obra literária, bem como
na exaltação de seus heróis. Constroem-se identidades coletivas a partir dessas
narrativas de características particulares, de méritos e conquistas, mesmo que a
história não tenha ocorrido exatamente desta forma. Seria o patriotismo a virtude para
a realização do bem de uma determinada comunidade.
Para Rawls, o apelo ao patriotismo seria inadmissível frente ao primeiro
princípio, da liberdade igual, pois esse bem comum poderia implicar em restrição de
um determinado plano de vida individual. O Estado e suas instituições, no liberalismo
igualitário, devem ser neutros em relação às concepções individuais. O
questionamento feito pelos comunitaristas, nesse sentido, é como tomar uma decisão
que não tome um posicionamento moral, ou seja, que não eleja bens superiores uns
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aos outros. Essa escolha, tal como Rawls afirma, deve ser justificada publicamente. A
justificativa que se daria dentro da teoria rawlsiana é que ela não viola a pluralidade
da sociedade. Então, o valor moral que legitima politicamente as decisões em Rawls
é o pluralismo, portanto, seria incoerente sustentar uma teoria do justo que negue seu
fundamento em um bem.
Taylor afirma que ao se afirmar o direito x de uma pessoa, isto não é feito
meramente para não intervenção da sociedade no que diz respeito a pessoa em
realizar a conduta x. Segundo o autor, um determinado direito é protegido porque a
sociedade acredita que x é um valor ou uma conduta que deve ser mantida e
transmitida às futuras gerações. Assim, afirmar o direito de B em realizar a conduta x,
em si já é uma escolha por um determinado valor considerado relevante em
determinada sociedade. Dessa forma, não se pode afirmar o puro procedimentalismo
da teoria rawlsiana ao tentar delimitar apenas formalmente o justo.
O autor canadense também se pergunta o porquê de considerarmos razoável
uma teoria política que prima pelos direitos individuais não reconhecendo a condição
social do homem, ou seja, o homem como animal político. Acredita que isso se deve
a uma concepção atomista da condição humana. O atomismo seria característico do
contratualismo e de algumas formas de utilitarismo. Geralmente, aqueles que
sobrepõem o interesse e direitos do indivíduo sobre a sociedade ou que a entendem
como um mero instrumento. Essa seria a ontologia humana da teoria de Rawls –
funda a autoridade política nos direitos individuais – que não se coaduna com a teoria
normativa social que postula (TAYLOR, 1990).
A viabilidade de uma sociedade que atenda ao que Rawls chama de justo
antes do bem, só ocorreria nos Estados Unidos, e quem sabe na Inglaterra, segundo
Taylor. Isso porque estas sociedades liberais se constituíram de forma que sua ética
é “antes uma ética do direito do que do bem” (TAYLOR, 1990, p. 202-3). Seus
princípios foram formulados de forma a responder e arbitrar à concorrência entre os
indivíduos. Esta forma de organização permite que não se defina primeiramente que
bens esta sociedade irá promover, “mas antes como ela vai determinar os bens a ser
promovidos, as aspirações e exigências dos indivíduos que a compõe” (TAYLOR,
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1990, p. 203). Por isso, acusa a teoria rawlsiana de etnocêntrica e irreal, pois o que
se percebe nas entrelinhas é uma valorização da liberdade, do altruísmo e do
universalismo. Estes são valores centrais à modernidade ocidental e não universais
(TAYLOR, 2005).
Taylor diante dessa discussão introduz o argumento aristotélico da phrônesis
para definir sua concepção de justo. Phrônesis representa uma noção de prudência,
que estimularia a participação pública, fortalecendo as diversas concepções
comunitárias, reconhecendo a pluralidade de valores. Permite que os diversos grupos,
já que se fala aqui de sociedades plurais, reclamem politicamente seus direitos sem
que por isso estabeleçam a priori um valor, o que poderia originar um totalitarismo
comunitário. Essa teria valor por não ser totalmente abstrata e por respeitar os
elementos da tradição. Rawls negaria esse princípio por haver algo de irracional nele,
algo que não está previamente determinado, além de reconhecer a ética de
determinados grupos, não individualmente.
Para o autor canadense, a filosofia moderna se tornou cega a virtudes como
essa, prezando unicamente uma razão universal e abstrata, negando que esta
também serve a um fim, portanto, não é totalmente neutra. A ideia de liberdade
desengajada provém dessa noção de racionalidade. A phronesis, traduzida aqui como
prudência, não nega nem liberalismo, nem culturalismo, pois consiste em uma intuição
sobre o particular pautada na experiência, no mundo sensível, capaz de se adaptar a
todas as situações sem perder de vista o fim bom. Sendo assim Berti afirma:
Enquanto conhecimento do particular, a prudência pressupõe uma certa
experiência, não no senso do empirismo inglês (sensação, percepção, ideia),
mas no sentido aristotélico de ser especialista, de ter vivido muitas
experiências, de conhecer casos de vida; porque é mais fácil encontrar nas
pessoas idosas, ou de outra forma maduras, que nos jovens (os quais, às
vezes, brilham na matemática, onde, aparentemente, depois dos trinta anos
não conseguem produzir mais nada de novo). (BERTI, 2012, p. 03)
Essa é a forma encontrada por Taylor para pensar conflitos entre o justo e o
bem nas sociedades pluralistas. Isso porque não acredita que princípios gerais e
abstratos acomodarão todas as respostas para conflitos futuros. Considera, portanto,
o fato de a vida em sociedade se caracterizar pela contingência, pela constante
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aparição de elementos novos, que originam o conflito. A racionalidade pura e abstrata
acaba por neutralizar esse elemento, que é essencial à política, o conflito.
Alainsdair MacIntyre segue a mesma tradição comunitarista de Taylor, inclusive
no que diz respeito à aproximação com Aristóteles. Isso quer dizer que não crê em
um valor abstrato que poderia ser encontrado em valores metaéticos, mas sim no bem
como algo concreto, construído historicamente. Por isso também não acredita que um
rol de princípios previamente fixados são suficientes para resolver, muitas vezes,
casos particulares. Princípios gerais e abstratos, como são os Direitos Humanos,
podem colidir com práticas tradicionais e familiares, a moral. Assim afirma que não
nega totalmente o liberalismo, mas que em seu trabalho indica alguns pontos fracos
desta teoria.
Como já citado anteriormente, também acredita que o bem do indivíduo não
pode ser separado do bem da comunidade. Dessa forma, do mesmo modo que Taylor,
rompe com a noção liberal de Rawls de que a ideia de justiça precede o bem, já que
considera o bem comum o fim das atividades compartilhadas. determinados que
resolva o caso concreto (MacIntyre, 1998). Por esse motivo menciona que a própria
ideia a respeito da racionalidade (MacIntyre, 1990) deve ser assumida publicamente
por toda a sociedade, já que esta varia de acordo com as práticas de um determinado
grupo. A partir disso, uma noção de bem comum pode ser institucionalizada na
comunidade. Por isso, da mesma forma que Taylor, o autor valoriza a virtude da
justiça, que não pode ser tão abstrata, tão longe de um compromisso com o bem
comum, como é em Rawls.
Outra crítica que o autor dirige a Rawls aponta para o fato de que a teoria da
justiça como equidade é permeada por um subjetivismo ético ao trabalhar com a ideia
de um Estado neutro no que tange aos valores morais. Seria uma sociedade em que
a expressão e identificação dos interesses individuais antecedem qualquer tipo de
laço social ou moral. Inclusive, de certa forma, acusa Rawls de utilitarista, já que o
este defende uma sociedade na qual os indivíduos cooperam para sustentar a ordem
social com o único objetivo de atingir seus fins particulares.Nesse sentido, a
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associação dos indivíduos passa a ser um mero instrumento da realização dos fins
individuais.
Inclusive para o autor, essa noção de moralidade abstrata universal entra em
choque com o patriotismo, que é definido como “um tipo de lealdade com uma nação
particular, que só aqueles que possuem aquela nacionalidade podem a exibir”
(MacIntyre, 2003, p. 298). Esse sentimento de lealdade, pré-requisito para o
patriotismo e, portanto, para uma vida em comunidade faz com que o indivíduo se
sinta pertencente à comunidade e, por isso, aja também para atingir o bem comum
desta. A moralidade liberal não pode considerar o patriotismo uma virtude, já que seria
um bem particular. No entanto, acredita que essa noção de moralidade é datada do
pós renascimento na cultura ocidental, principalmente ligada ao liberalismo político e
ao individualismo social, portanto, não pode ser generalizada.
Assim, por exemplo, à pergunta, sobre o lugar que os bens de cada prática
realizada por um determinado indivíduo, não pode ser respondida em todo o mundo
da mesma forma. A resposta a esta questão pode ser individual, mas será influenciada
determinantemente pela sociedade da qual esse faz parte. Em outras palavras, a
determinação da concepção do bem comum individual é inseparável da identificação
do bem comum da comunidade. As práticas dentro de uma sociedade são ordenadas
de acordo com a relevância que cada uma delas terá para aquele determinado grupo
de pessoas, por isso não pode ser descolada dos hábitos, tradições e cultura do local.
CONCLUSÃO
Após leitura e análise destes três autores, da tentativa de alinhavar o debate
liberais x comunitários, a pergunta sobre o que se fazer diante do conflito, diante do
novo, do contingente, daquilo que não pode ser capturado pelas normas, ainda é
respondida de maneira bastante incipiente. Isso porque, ao considerarmos o sujeito
abstrato rawlsiano, que se submete às regras na posição original, sob o véu da
ignorância, percebe-se a existência de um momento pré-político, de um momento em
que todos estariam em condições puramente racionais para escolher uma opção de
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justiça, ou de política, porque em “condições humanas”, onde vivemos sob nossos
apetites, desejos e paixões, não conseguiríamos alcançar tal decisão.
Por outro lado, os sujeitos marcados pela tradição, que respeitam o laço cívico
da nacionalidade, que se compreendem como partícipes da vida pública, apesar das
diferenças, seriam capazes de acordar sobre um bem comum que se sobreporia ao
bem individual. Elimina-se também desta forma o conflito. O elemento aristotélico da
phrônesis, recuperado por Taylor de certa forma demonstra que esse existe, que o
contingente pode colocar em conflito o bem particular com o bem comum, ou mesmo
o bem comum com algum valor universal.
Essa discussão, como apontada inicialmente, tem um caráter teórico normativo,
mas que mira à realidade, os conflitos cotidianos, o modo como as sociedades se
organizam constitucionalmente. Assim, mesmo que a phrônesis possa representar um
passo além, no cotidiano das questões de justiça, os conflitos práticos parecem
insolúveis. Como atribuir direitos a um membro da religião testemunha de Jeová, que
ao receber sangue, será banido da comunidade? Ao mesmo tempo, se não receber
terá seu direito à saúde, à integridade física, que devem ser garantidos pelo Estado,
violados.
O sujeito racional rawlsiano violaria a identidade de indivíduos que se sentem
pertencente a grupos, enquanto que esse sujeito comunitário pode, em alguns casos,
querer se desvincular de sua cultura para seguir valores diferentes daquela
comunidade, mas que não são os valores universais do liberalismo. Conclui-se,
portanto, que ambas as teorias, embora bastante engajadas nessas discussões, não
são suficientes para regular relações nas sociedades plurais contemporâneas, onde
os indivíduos querem “pular fora” de sua comunidade, mas também sentem ter seus
direitos violados por uma concepção universalista da justiça como a de John Rawls.
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