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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS INSTITUTO DE …§ão... · ANTENOR DA SILVA FERREIRA Euclides da...

Date post: 04-Dec-2018
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA ANTENOR DA SILVA FERREIRA Euclides da Cunha: Integração, Paisagem e Topofilia MANAUS 2016
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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E LETRAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA

    ANTENOR DA SILVA FERREIRA

    Euclides da Cunha: Integrao, Paisagem e Topofilia

    MANAUS

    2016

  • ANTENOR DA SILVA FERREIRA

    Euclides da Cunha: Integrao, Paisagem e Topofilia

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    em Sociologia da Universidade Federal do Amazonas,

    como requisito parcial para a obteno do ttulo de

    Mestre em Sociologia.

    rea de concentrao: Pensamento Social na Amaznia

    Orientador: Prof. Dr. Odenei de Souza Ribeiro

    MANAUS

    2016

  • iii

    Ficha Catalogrfica

    (Catalogao realizada pela Biblioteca Central da UFAM)

    Ferreira, Antenor da Silva

    F383e Euclides da Cunha: Integrao, Paisagem e Topofilia / Antenor

    da Silva Ferreira. 2016

    123 f.: 31 cm.

    Orientador: Prof. Dr. Odenei de Souza Ribeiro

    Dissertao (Mestrado em Sociologia) Universidade Federal do

    Amazonas.

    1. Integrao Regional. 2. Paisagem. 3. Sentimento Topoflico. 4.

    Experincia. I. Ribeiro, Prof. Dr. Odenei de Souza II. Universidade

    Federal do Amazonas III. Ttulo

  • iv

    ANTENOR DA SILVA FERREIRA

    Euclides da Cunha: Integrao, Paisagem e Topofilia

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia do Departamento de

    Cincias Sociais da Universidade Federal do Amazonas, como requisito parcial para a

    obteno do ttulo de Mestre em Sociologia pela Comisso Julgadora composta pelos

    membros:

    ______________________________________________

    Prof. Dr. Odenei de Souza Ribeiro

    Presidente

    Universidade Federal do Amazonas - UFAM

    ______________________________________________

    Prof Dr. Ernesto Renan Melo de Freita Pinto

    Universidade Federal do Amazonas - UFAM

    ______________________________________________

    Prof. Dr. Marco Aurlio Coelho Paiva Universidade Federal do Amazonas - UFAM

    Aprovada em: 30 de Maio de 2016

    Local de Defesa: Bloco Mrio Ypiranga Monteiro ICHL, Sala 11.

  • v

    DEDICATRIA

    Dedico este trabalho in memoriam de Antonio Lopes Ferreira dos

    Santos, meu pai, caboclo do beirado que experimentou muito da

    realidade aqui exposta.

  • vi

    AGRADECIMENTOS

    A realizao de um trabalho cientfico sempre um compartilhamento de um bem

    pblico, o conhecimento, cuja apropriao privada se d em meio ao esforo coletivo. Sou

    imensamente grato a todos que contriburam direta e indiretamente para a realizao deste

    trabalho, dentre eles, cabe ressaltar os seguintes. Ao Departamento de Polcia Metropolitana

    da Polcia Civil do Estado do Amazonas pela flexibilizao dos meus horrios de trabalho,

    possibilitando a assistncia tranquila das aulas. Ao Programa de Ps-Graduao em

    Sociologia pelo empenho em tornar possvel o sonho de consolidar no Amazonas a produo

    cientfica no campo da Sociologia.

    Especial agradecimento devido ao Professor Dr. Odenei de Souza Ribeiro, meu

    orientador, que foi o responsvel pelo insight do trabalho, conduzindo-me s leituras devidas.

    Ao Professor Dr. Marco Aurlio de Paiva pelo exame franco e sincero da primeira

    sistematizao da proposta do trabalho, ao lado do Professor Dr. Marcelo Bastos Serfico,

    cujas contribuies foram todas incorporadas. Ao Professor Dr. Renan Freitas Pinto pelo

    despertar do interesse pela temtica da Amaznia de Euclides da Cunha. Ao Professor Dr.

    Aldenor da Silva Ferreira que mesmo distncia funcionou como coorientador, interlocutor

    de todas as horas, produzindo incontornvel contribuio, sem a qual este trabalho no se teria

    realizado.

    Especialssimo agradecimento a Rosemary da Silva Santos, meu arrimo de afeto,

    companheira de todas as horas, que retirando de mim responsabilidades e preocupaes que

    tornaram os dias dela muito mais agitados e carregados de tarefas do que de costume, me

    possibilitaram a tranquilidade necessria para a escrita deste trabalho. Aos meus filhos, Yuri

    Ren, Iorhan Vincius e Amanda Sofia, pela alegria de t-los como ddiva dos cus, de onde

    recebo toda a graa na pessoa de Jesus, o majestoso Cristo.

  • vii

    EPGRAFE

    Devemos, por tantas e fortes razes, exumar de sua tumba recoberta

    no de musgos e ciprestes, mas de traas e poeira, os nossos mortos de

    melhor memria, para que venham ajudar os vivos a encontrar

    caminhos claros e firmes. (HILDON ROCHA, 2000).

  • viii

    Euclides da Cunha: Integrao, Paisagem e Topofilia

    RESUMO

    Este trabalho constitui-se num exerccio exegtico das obras Os Sertes e Margem

    da Histria, de Euclides da Cunha. Busca-se realizar uma comparao direta entre as duas

    obras no mbito dos temas Integrao Regional, Paisagem e Topofiliao. Os objetivos foram

    identificar como o autor entende e prope a integrao das regies Nordeste e Norte nao

    brasileira, e ainda, compreender como o autor classifica a paisagem, as gentes e os espaos do

    Nordeste e da Amaznia. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliogrfica, realizando-se

    um exame dos escritos de interesse da pesquisa, sem negligenciar os demais escritos do autor,

    bem como de fontes secundrias, extraindo-se subsdios para a construo do trabalho.

    Euclides da Cunha vivenciou grande parte dos eventos histricos mais marcantes da histria

    do Brasil, no bojo da mudana de regime poltico do Imprio Repblica Presidencialista em

    1889. Desde as primeiras letras o autor preocupou-se em escrever para interferir na realidade

    social em que vivia, increvendo-se na galeria dos autores que procuraram definir o Brasil. A

    temtica da integrao regional a sua grande contribuio, sendo pioneiro em relao

    integrao da Amaznia. Euclides descreve minuciosamente a paisagem para valorizar a luta

    do sertanejo contra a natureza, evidenciando-lhe a bravura, trao psicolgico que o faz

    triunfar sobre um ambiente hostil e que proposto pelo autor como modelo para a nao. No

    trato com a paisagem, ainda, o autor deixou-se perceber francamente desgostoso com a

    paisagem amaznica. Neste trabalho se buscou explicar esse estranhamento expresso de um

    sentimento topoflico, provocado pelo confronto do autor com uma paisagem diferente do

    modelo topogrfico que evoca os seus sentimentos de belo e aprazvel, configurados pela sua

    ambientao em regio montanhosa.

    Palavras Chave: Integrao regional, Paisagem, Sentimento Topoflico, Experincia.

  • ix

    Euclides da Cunha: Integration, Landscape and Topophilia

    ABSTRACT

    This work constitutes an Exegetical exercise about Os Sertes and Margem da

    Histria, by Euclides da Cunha. The aim is to carry out a direct comparison between the two

    works in the context of Regional Integration issues, Landscape and Topophilia. The

    objectives were to identify how the author understands and proposes the integration of

    Northeast and North to the Brazilian nation, and yet, understand how the author classifies the

    landscape, people and spaces of the Northeast and Amazon. The methodology used was the

    bibliographical research, performing an examination of research interest books, without

    neglecting the other writings of the author, as well as secondary sources, extracting subsidies

    for the construction of the work. Euclides da Cunha experienced many of the most remarkable

    historical events in the history of Brazil, in the midst of the change of political regime of the

    Empire to the presidential Republic in 1889. Since the first letters the author concerned in

    writing to interfere with the social reality in which he lived, enrolling in the Gallery of the

    authors who sought to define the Brazil. The subject of regional integration is their great

    contribution, being pioneer in relation to the integration of the Amazon. Euclides describes

    thoroughly the landscape to highlight the struggle of backcountry against nature, showing his

    bravery, psychological trait that makes him triumphing over a hostile environment and that is

    proposed by the author as a model for the nation. In dealing with the landscape, the author left

    see frankly disgusted with the Amazonian landscape. In this work sought to explain that

    strangeness expression of a topophilic feeling, caused by the author's confrontation with a

    different landscape topographic model that evokes feelings of beautiful and pleasant,

    configured for his ambiance in mountainous region.

    Key Words: Regional Integration, Landscape, Topophilic feeling, Experience.

  • x

    SUMRIO

    INTRODUO.. 11

    CAPTULO 1 Euclides da Cunha e a conscincia de seu tempo: sanitarismo,

    positivismo, evolucionismo, republicanismo uma contextualizao....................... ....21

    1.1 Sanitarismo. 27

    1.2 Positivismo, Evolucionismo e Republicanismo. 34

    1.3 O Euclides vingador.. 42

    CAPTULO 2 Da terra seca terra molhada: o Nordeste e a Amaznia de Euclides da

    cunha ............................................................................................................................54

    2.1 O elo Nordeste-Amaznia.. 54

    2.2 A integrao do Nordeste - uma necessidade cultural.. . 61

    2.3 A integrao da Amaznia - uma questo de soberania nacional. 70

    2.3.1 Leis sociais justas como sinal da presena do Estado. 72

    2.3.2 O povoamento e a luta contra o deserto.. 77

    2.3.3 Obras de Infraestrutura como elemento fomentador do progresso. 79

    CAPTULO 3 Paisagem e filiao: a janela por onde Euclides olha o mundo.........84

    3.1 Fundamentos conceituais ... 84

    3.2 A paisagem como elemento norteador... 97

    3.2.1 A paisagem em Os Sertes. 97

    3.2.2 A paisagem em Margem da Histria ................................................................102

    3.3. A Paisagem como literatura em misso...........................................................................104

    3.3.1 No texto Os Sertes.......................................................................................................104

    3.3.2 No texto Margem da Histria....................................................................................106

    2.10 Consideraes finais.....................................................................................................110

    REFERNCIAS ..................................................................................................................120

  • 11

    INTRODUO

    Euclides da Cunha um autor clssico do pensamento social brasileiro. Um intelectual

    comprometido com as transformaes sociais e empenhado de forma integral na construo

    de um projeto de identidade nacional, fato que o tornou incontornvel. Como uma bigorna a

    desgastar seguidos martelos, h sempre o que dizer sobre os seus escritos, ou sobre a sua vida.

    Sobre os seus escritos amaznicos uma questo inicial nos chamou a ateno. Indagvamos,

    inicialmente, at que ponto Euclides da Cunha poderia contribuir para a compreenso do atual

    estado de coisas na relao regio-nao entre a Amaznia e o restante do pas. Guivamos

    pelo ensino do historiador Hildon Rocha (2000) de que preciso estudar o passado para tornar

    menos penoso o entendimento do presente, exumando os mortos de sua poeira para que

    venham ajudar os vivos na sua luta pela compreenso da realidade. Ainda mais se a aparente

    realidade a de que pouca coisa mudou desde que Euclides navegou pelas guas amaznicas

    e lanou sobre ela seu olhar de poeta e de cientista. Mais de um sculo se passou e aquilo que

    Euclides percebeu com seu olhar de estrangeiro ainda vivenciado pelo homem amaznico,

    onde pouca coisa mudou em relao ao isolamento espacial das comunidades ribeirinhas, por

    exemplo, permanecendo o homem amaznico escravisado ao rio, como nos falou Euclides.

    Na nossa trajetria de exame do autor, desprovido de temores e de preconceitos,

    apoiado pela vigilncia do mtodo sociolgico, identificamos uma preocupao recorrente

    tanto no livro Os Sertes, quanto no livro Margem da Histria, a saber, o tema da

    construo da nacionalidade pelo vis da integrao regional. Independente da validade ou

    no das propostas de Euclides da Cunha nessa questo, pareceu-nos importante entender que

    tipo de integrao regional proposta nesses textos, uma vez que tanto o sertanejo nordestino,

    quanto o caboclo amaznico, noutras palavras, tanto o Nordeste, quanto a Amaznia,

    aparecem nesses escritos alijados das preocupaes governamentais da federao, como filhos

    enjeitados da nao.

    Encontrado no texto como pessoa dotada de uma viso de mundo peculiar, de uma

    trajetria social singular, Euclides da Cunha aparece como autor engajado, digno de ser

    revisitado, habilitado a continuar nos falando, como nos ensina Hildon Rocha (2000), pela

    maneira incisiva com que props a interveno do Estado na construo de uma infraestrutura

    necessria para o desenvolvimento da regio, que possibilitasse a ela o fim de seu isolamento.

    Estamos certos de que Euclides da Cunha continua nos falando, mesmo aps um sculo de

    seu falecimento. Afirmamos isso porque entendemos que no h distncia segura entre a vida

  • 12

    pretrita e a vida presente da Amaznia. Visto que, percorridas quase duas dcadas do sculo

    XXI, a regio ainda no conseguiu superar problemas das mais diversas ordens, originados

    em sculos anteriores, problemas que se multiplicam e se complexificam com o passar dos

    anos, como por exemplo, o avano da pecuria, da produo de soja, a explorao

    desequilibrada de madeira, a minerao clandestina, o crescimento desordenado de suas

    cidades, os conflitos fundirios, a questo indgena no resolvida completamente, o atraso

    educacional, a infraestrutura precria das telecomunicaes, das rodovias, das hidrovias, dos

    portos e aeroportos, dentre outros. Essas questes, so dados de realidade que atestam que

    vivemos numa continuidade espacial, temporal e cultural, de certa forma j descrita por

    Euclides. Entendemos que a morte de Euclides da Cunha, tratando-se da sua influncia, s

    ocorreria se de fato vivssemos em uma realidade to radicalmente nova na Amaznia que

    no guardasse qualquer vnculo com as coisas primeiras. No parece ser o caso, visto que a

    regio historicamente vive realidades sociais e econmicas marcadas por avanos e

    retrocessos, como bem definiu Schneider et al. (2000) a Amaznia vive de boom colapso, ou

    seja, um perodo de grande prosperidade econmica boom seguido de forte declnio e

    estagnao colapso. As rupturas so tnues, a ponto de no haver sempre continuidades.

    Nesse sentido, a questo da integrao regional brasileira um dos assuntos em aberto, tanto

    que ainda movimenta milhes nos oramentos pblicos nacionais anualmente, com resultados

    prticos incipientes, principalmente na regio Nordeste e a sua secular indstria da seca.

    Nessa perspectiva, o exame de um autor como Euclides da Cunha sempre poder ser valioso,

    ainda que seja como ponto de referncia para novas utopias.

    Ao elegermos como tema deste trabalho a integrao regional proposta por Euclides

    da Cunha, trabalhvamos com a perspectiva de traz-lo mais uma vez tona, pois embora nos

    falando da distncia de um sculo, temos a confirmao do seu poder meio proftico, quando

    soube indicar com veemncia o caminho de nossas regies abandonadas (ROCHA, 2000),

    isso em razo de que o isolamento, elemento principal notado por Euclides, ainda perdura.

    Com efeito, algum pode objetar-me e dizer que a palavra isolamento relacionado

    Amaznia um anacronismo, visto que com o advento da telefonia celular e internet isso no

    mais possvel. Falando especificamente do estado do Amazonas, de fato, algumas melhorias

    ocorreram, fundamentalmente no que tange ao transporte fluvial. Algumas dcadas atrs, se

    deslocar at a capital ou sede do municpio mais prximo era uma epopeia. Atualmente, h

    uma rede de barcos e lanchas velozes que mantm linhas dirias e/ou semanais at as sedes

    municipais ou mesmo para a capital. Uma viagem do municpio de Parintins at Manaus

  • 13

    (distncia de 450 km em linha reta) que antes durava 24 horas, pode ser feita hoje em 8 horas,

    quando realizada em lanchas velozes. Ainda assim o isolamento permanece, vrios tipos de

    isolamento. Apenas para antecipar um, o Amazonas isolado do ponto de vista da telefonia

    celular. De acordo com a Agncia Nacional de Telecomunicaes (Anatel) nem todas as

    operadoras de telefonia celular do pas atuam em todos os municpios amazonenses. Quatro

    das cinco principais operadoras do Brasil no alcanam sequer 50% das cidades do estado. A

    m prestao de servio de telefonia mvel no Amazonas j foi alvo de uma Comisso

    Parlamentar de Inqurito (CPI) na Assembleia Legislativa do Amazonas (ALEAM), em

    agosto de 2013. A comisso teve como objetivo apurar as razes da m qualidade do servio

    de telefonia fixa, mvel e de Internet no Estado. O resultado da CPI obrigou as empresas de

    telefonia a comprometerem-se, por meio de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), a

    melhorar o servio e a realizar um grande mutiro no Amazonas1. Os problemas ligados ao

    isolamento inviabilizam muitos negcios do prprio Polo Industrial de Manaus. Lopez (2013)

    afirma que no percurso de instalao das plantas industriais para a fabricao de tablets em

    Manaus a empresa taiwanesa Foxconn chegou a namorar a Zona Franca, mas rompeu o

    namoro denunciando o atraso de sua logstica, a frequncia do apago energtico e a banda

    larga precria e cara.

    Portanto, estudar Euclides da Cunha, verificar suas propostas, seus diagnsticos e

    prognsticos, traz-lo para o palco da compreenso de ns mesmos, amaznidas, gente de

    carne e osso que vive e trabalha nesse mosaico de terras, florestas e guas. trabalhar com

    um autor que nos conheceu no de ouvir falar, nem nos sondou distncia, em um gabinete,

    mas experimentou nossos dramas, um autor que pode auxiliar na escolha de novos rumos

    diante de uma temtica que, como mencionado, continua em aberto. Neste sentido, este

    trabalho tem como objetivo compreender como Euclides da Cunha entende e prope a

    integrao das regies Norte e Nordeste nao brasileira, numa anlise comparativa entre as

    obras Os Sertes e Margem da Histria, considerando um exame direto dos textos. Parece-

    nos evidente que o autor disps-se a escrever no sentido de propor a integrao de ambas as

    regies nao, uma preocupao que permeava a intelectualidade dos seus dias e que obteve

    a ateno de muitos outros autores. Por outro lado, o acurado exame dos escritos amaznicos

    de Euclides nos levou a indagar o que teria levado o autor a se expressar com tamanho

    1 SANTOS, Izabel. Amazonas tem somente uma operadora de celular presente em todos os municpios.

    Disponvel em: http://www.portalamazonia.com/noticias. Acesso em: 01 abr. 2016.

  • 14

    estranhamento em relao regio, a ponto de manifestar descontentamento em relao

    paisagem amaznica. Numa anlise mais atenta dos escritos arrolados no livro Margem da

    Histria pareceu-nos claro que o autor se propunha a apresentar a Regio Amaznica como

    parte da nao brasileira, e apresentar o caboclo, tipo humano apontado pelo autor como o

    desbravador do deserto, como uma referncia para o restante do pas. Logo, pareceu-nos

    incongruentes as afirmaes to francas de desagrado em relao paisagem amaznica.

    Na busca de compreender essa possvel contradio, enveredamos numa perspectiva

    de localizar o autor no seu tempo, combinando trajetria de vida e conscincia social, de

    modo a alcan-lo no ambiente em que os escritos foram dados ao conhecimento do pblico.

    Comparado com o Margem da Histria, o lugar e a paisagem do Nordeste descrita no livro

    Os sertes aparecem impregnados de sentimento inverso ao expressado em relao plancie

    amaznica. Evidenciou-se que em Os Sertes h uma nica expresso de descontentamento

    com a paisagem, e isto se d somente quando a paisagem do serto se apresenta regular,

    rasteira e monocromtica. Desse achado delineou-se a seguinte hiptese para o nosso

    trabalho: h uma relao entre a regularidade monocromtica e topogrfica da paisagem

    amaznica com o descontentamento de Euclides da Cunha em relao a ela. Tal como a

    monocromia da caatinga e a estrutura rasteira daquele tipo de vegetao lhe causou

    descontentamento, assim tambm, a paisagem amaznica com a sua caracterstica de

    adensamento desde a barranca do rio, a regularidade de sua cor, a pouca visibilidade do

    horizonte que propicia porque se constitui num achatamento de plancie e a pouca distino

    de caracteres para um olhar inexperto, causou no visitante Euclides da Cunha o mesmo

    descontentamento. Nestes termos, o tema Paisagem e Filiao se insinua no texto de Euclides

    da Cunha e sempre esteve ali, como que aguardando uma leitura que o dignificasse. Esse

    achado, no entanto, s foi possvel por uma questo pessoal da nossa parte, a partir da

    identificao de um anseio que partilhado com o autor, qual seja, o anseio por contemplar

    em profundidade horizontes infindos. Percebido esse anseio em Euclides da Cunha, coube-nos

    investigar suas origens a partir de uma conceituao que fizesse jus s expresses espontneas

    do autor em ambas as obras. Por outro lado, examinar um autor do passado a partir de

    conceituao mais recente s se faz possvel e vlida se for para lhe dar oportunidade de se

    defender frente ao vertiginoso desgaste do tempo, do contrrio cai-se em anacronismo. Ao

    aplicarmos a Euclides da Cunha o conceito de Topofiliao s poderamos faz-lo se fosse

    para dar-lhe uma oportunidade de se explicar diante da acusao de contraditrio e

    preconceituoso por conta da maneira franca com que relatou o seu descontentamento com a

  • 15

    paisagem da regio amaznica. Estamos certos de que a acusao de preconceito para com a

    regio amaznica no se sustenta quando comparada com o propsito expresso pelo prprio

    autor de integrar esta regio nacionalidade, apresentando-a como um dado precioso a ser

    tratado pelos governos.

    No entanto, no resta dvida de que os textos de desagrado esto a como uma

    realidade. Em Margem da Histria encontramos um Euclides descontente e contrariado

    com a viso que se lhe apresenta da plancie amaznica. O autor reclama da regularidade

    enfadonha da paisagem. Tal descontentamento, no nosso entendimento, s poder ser

    explicado a partir de uma razo anterior aos fatos do seu contato com a regio, o que se

    poder achar na sua ambientao de infncia, examinando os elementos de sua topofiliao.

    Nesse sentido, nosso segundo objetivo compreender como Euclides da Cunha classifica a

    paisagem, as gentes e os espaos do Nordeste e da Amaznia a partir de sua relao pessoal

    com a natureza, naquilo que temos chamado de sua experincia topoflica. Nossa hiptese a

    de que a ambientao de infncia do autor em regio montanhosa foi elemento importante na

    verbalizao de estranhamento e descontentamento com o lugar e a paisagem amaznica.

    Assim, o tema geral proposto Integrao, paisagem e filiao tornam este estudo

    relevante no sentido de que, em primeiro lugar, permite que Euclides da Cunha continue entre

    ns, a nos falar a partir de seu lugar privilegiado na galeria dos mortos de saudosa memria

    (ROCHA, 2000). inegvel a presena do autor em inmeros trabalhos acadmicos recentes,

    para os quais nos damos por escusado em comentar devido ao limitado espao deste trabalho,

    mas que so a prova de que a realidade amaznica e acadmica continuam a ser alcanadas

    por seus escritos. Em segundo lugar, com a temtica da topofiliao temos a pretenso de

    tornar este trabalho relevante no sentido de permitir um outro olhar sobre o autor, talvez capaz

    de retirar de sobre ele a pecha de preconceituoso e permitir que a sua real preocupao

    sobressaia do seu prprio texto, a sua preocupao com o isolamento e o seu desejo de ver a

    regio amaznica integrada ao restante do pas, mas no meramente num mapa de tratados

    polticos, e sim como parte dele; e no como as gentes adoidadas a tm tratado, isto , como

    mero depsito de riqueza, sem o interesse de pertencimento e fixao ao solo. Descolado da

    imagem de preconceituoso, fato que advm desse descontentamento topoflico, Euclides pode

    ainda nos falar da razo do despovoamento do interior, ou da nossa dependncia extremada de

  • 16

    suprimentos, dos quais 70%2 so importados de outros estados brasileiros e de outros pases,

    da ausncia de polticas pblicas realmente inclusivas e abrangentes etc.

    As estratgias de investigao do objeto proposto nesta pesquisa perpassaram,

    primeiramente, por uma consistente reviso da literatura do autor, naquilo que podemos

    chamar de uma exegese de seus escritos, principalmente os escritos principais, isto , aqueles

    contidos no objeto da pesquisa, Os Sertes e Margem da Histria, sem contudo

    negligenciar os demais escritos como as poesias e as cartas emitidas a partir de Manaus,

    quando o autor aqui esteve na misso de fronteira de que participou como Comissrio da

    Repblica Brasileira. Atento questo do uso de fontes secundrias, visto que elas podem

    trazer concepes pessoais acerca de determinados objetos e que muitas vezes podem ser

    influenciadas pela conjuntura poltica, econmica, cultural e social do momento vivido,

    procurei localizar textos pertinentes e avaliar a sua credibilidade, bem como a sua

    representatividade no que tange a obra de Euclides da Cunha, fiz um acurado exame dos

    comentadores do autor, no intuito de compreender sua contribuio e auxiliar na consolidao

    da nossa proposta de trabalho, especificamente a de demonstrar a relevncia de Euclides da

    Cunha para os dias de hoje. Em seguida foram lidas as obras correlacionadas com o autor,

    dentre as quais, vrios artigos acadmicos, livros de autores locais e nacionais, biografias do

    autor, tudo sempre em paralelo aos estudos tericos para aprimoramento dos conceitos chave

    a serem empregados no trabalho. Em seguida procedeu-se a releituras das obras em anlise,

    dessa vez, para os recortes propostos pelo trabalho, nos dois temas abordados, integrao e

    topofilia. A pretenso de utilizar essas duas categorias surgiu a partir de dilogos em sala de

    aula, principalmente a partir do desafio lanado pelo Prof. Dr. Ernesto Renan Freitas Pinto,

    acerca da necessidade de releitura dos clssicos da literatura amaznica, no intuito de resgatar

    as origens do pensamento social na regio, bem como a partir de uma inquietao pessoal

    causada por algumas passagens dos textos de Euclides, fundamentalmente, a que trata da

    questo da solido do caboclo amaznico. Nesse ponto houve uma identificao imediata da

    nossa parte, motivada certamente pelo fato de sermos enraizados na vida socioeconmica e

    cultural ribeirinha. Essa identificao produziu uma simpatia intelectual que, por sua vez,

    2 Em entrevista ao site new.d24am.com, publicada no dia 26 de fevereiro de 2015, o diretor do Sindicato dos

    Feirantes do Estado do Amazonas, Deuticilan Barreto, fez a seguinte declarao: 70% dos alimentos vm de

    fora. Todos ns sabemos que a nossa produo no atende a nossa demanda. Varejistas de Manaus temem

    ficar sem alimentos por conta de protestos: paralisao de caminhoneiros nas estradas ameaa abastecimento de

    produtos para o estado. Disponvel em: http://new.d24am.com/noticias/economia/varejistas-manaus-

    tememficar-alimentos/129583. Acesso em: 22 dez. 2015.

  • 17

    produziu um insight agradvel, no que tange ao estranhamento do autor com a paisagem e,

    mesmo reconhecendo os limites desse empreendimento, ficou claro que deveramos escrever

    uma defesa de Euclides sobre esse ponto especfico.

    A pesquisa empreendida para a confeco deste trabalho bibliogrfica, uma vez que

    ainda no manuseamos documentos oficiais inditos sobre o tema. Oliveira (2007, p. 69) faz

    uma importante distino entre a modalidade de pesquisa documental e bibliogrfica. Essa

    distino importante, pois apesar de serem cotidianamente entendidas como sinnimas, pois

    ambas tm no documento a principal fonte de investigao, elas so diferentes. Para a autora,

    a pesquisa bibliogrfica uma modalidade de estudo e anlise de documentos de domnio

    cientfico tais como livros, peridicos, enciclopdias, ensaios crticos, dicionrios e artigos

    cientficos. Como caracterstica diferenciadora ela pontua que um tipo de estudo direto em

    fontes cientficas, sem precisar recorrer diretamente aos fatos/fenmenos da realidade

    emprica. Argumenta ainda que o principal objetivo da pesquisa bibliogrfica proporcionar

    aos pesquisadores o contato direto com obras, artigos ou documentos que tratem do tema ao

    qual esto dedicando a sua ateno. Segundo ela o mais importante para quem faz opo pela

    pesquisa bibliogrfica ter a certeza de que as fontes a serem pesquisadas j so

    reconhecidamente do domnio cientfico (p. 69).

    Com relao pesquisa documental Oliveira (2007) afirma que: a pesquisa

    documental caracteriza-se pela busca de informaes em documentos que no receberam

    nenhum tratamento cientfico, como relatrios, reportagens de jornais, revistas, cartas, filmes,

    gravaes, fotografias, entre outras matrias de divulgao (p. 69). fato que a pesquisa

    documental anda ao lado da pesquisa bibliogrfica. De acordo com Gonsalves (2003), por

    serem muito parecidas, o elemento diferenciador est na natureza das fontes: a pesquisa

    bibliogrfica remete para as contribuies de diferentes autores sobre o assunto, atentando

    para as fontes secundrias, enquanto a pesquisa documental recorre a materiais que ainda no

    receberam tratamento analtico, ou seja, as fontes primrias. No entanto, preciso dizer que:

    na pesquisa documental, o trabalho do pesquisador ou pesquisadora requer uma anlise mais

    cuidadosa, visto que os documentos no passaram antes por nenhum tratamento cientfico.

    Nesse ponto, tanto para o pesquisador iniciante quanto para os mais experimentados

    fundamental a distino entre fontes primrias e fontes secundrias. As fontes primrias so

    os dados originais, a partir dos quais o pesquisador tem uma relao direta com os fatos a

    serem analisados, ou seja, ele quem analisa, observa, por exemplo, uma fotografia, uma

  • 18

    imagem, um som. ele quem ouve o relato de experincias vivenciadas por outrem. Por

    fontes secundrias compreende-se a pesquisa de dados de segunda mo, ou seja, informaes

    que foram trabalhadas por outros estudiosos e, por isso, j so de domnio cientfico, o

    chamado estado da arte do conhecimento (OLIVEIRA, 2007).

    No de somenos importncia observar que, quanto ao uso de fontes documentais, a

    simples publicao de um texto no o torna automaticamente cientfico. H que se considerar

    uma terceira situao, ou seja, o reexame de codumentos j manuseados, analisados e

    interpretados por interessados ou estudiosos da obra, mas de quem discordamos, muitas vezes

    por j conhecermos suas posies polticas, seus compromissos ideolgicos e mesmo suas

    percepes preconceituosas sobre assuntos relacionados com o autor estudado. Muitos

    estudos so correntemente questionados por outros pesquisadores equipados com instrumental

    terico mais consistente.

    Entendendo que a pesquisa bibliogrfica, propomo-nos uma leitura das obras Os

    Sertes e Margem da Histria que se entenda como uma leitura externalista, isto , a partir

    do resultado final do texto e aquilo que efetivamente chegou a ns por meio do impresso, mas

    que, ao mesmo tempo, se constitua numa leitura internalista, visto que nos propomos

    averiguar a Experincia por trs das letras, o contexto e limites daquele que escreveu.

    Entendemos que somente uma combinao equilibrada entre estas duas maneiras de atuar

    sobre a obra seria capaz de nos conduzir a resultados razoveis, pois como nos ensina Maia

    (2008), ambos os enfoques trazem definies importantes. A leitura externalista vem

    privilegiar as condies sociais de produo das obras e a rede de vinculaes que envolvem

    os autores, sem as quais o texto no poderia ser decifrado no mbito da experincia concreta.

    Neste sentido, a reconstruo do ambiente social da obra capaz de localiz-la no tempo,

    impedindo o seu uso contaminado pelo anacronismo e generalizaes. Por seu turno, a leitura

    internalista procura decifrar a lgica interna dos textos e seus significados inscritos na prpria

    escrita. Nesta abordagem considera-se a realidade do texto como um dado, o qual pode ser

    examinado a partir de sua prpria existncia, e avaliado naquilo que de fato diz por meio da

    escrita. Entendemos que ambos os enfoques precisam complementar-se, alimentando-se do

    outro, posto que a trajetria social do autor no pode, por si s, definir a cifragem da

    fraseologia do texto, e tampouco uma fraseologia trar em si mesma a segurana de seu

    significado, se estiver deslocada do seu contexto.

  • 19

    Atendendo ao disposto acima apresentamos no Captulo 1 Euclides da Cunha e a

    conscincia de seu tempo uma contextualizao das linhas de pensamento mais em voga no

    perodo vivido por Euclides da Cunha, final do sculo XIX e incio do XX. O ambiente

    poltico no Brasil nesse perodo era de mudanas profundas, quando se processou a troca do

    regime monrquico pelo regime republicano. Portanto, o republicanismo um dos elementos

    que permearam a formao e a trajetria social de Euclides da Cunha. Como consequncia da

    derrubada do regime monrquico, e com ele o arcabouo cultural do Imprio, surge a

    necessidade de redefinio do Brasil, ou a definio do vir-a-ser da nova nao. A conscincia

    social que animava, portanto, no apenas Euclides da Cunha, mas outros autores seus

    contemporneos, era a de que o Brasil era um pas por definir-se enquanto povo, enquanto

    nao, advindo dessa preocupao diferentes propostas e diagnsticos. Euclides da Cunha ir

    propor a integrao regional como elemento condicionante da definio da nacionalidade,

    fundamentado no positivismo comteano e posteriormente no evolucionismo spenceriano.

    Positivismo e Evolucionismo Social eram as teorias sociais mais modernas de ento. Euclides

    lanou mo delas, embora tenha procurado super-las, conforme procuramos demonstrar

    neste trabalho. No mesmo contexto de mudanas sociais so encontrados os avanos

    tecnolgicos que possibilitaram novos conhecimentos das etiologias das doenas, o que ir

    impulsionar o movimento sanitarista, este mesmo em grande medida constitudo em agente de

    tais mudanas sociais e de exerccio do poder. Terminamos o captulo abordando um aspecto

    da trajetria pessoal de Euclides da Cunha que, no nosso entendimento, fator preponderante

    no resultado final do seu engajamento social e poltico. Trata-se do fator orfandade ainda na

    infncia. Propusemos a identificao da propenso de Euclides da Cunha em tomar partido do

    oprimido, naquilo que alguns autores denominaram de quixotismo euclidiano com um trao

    de personalidade desenvolvido a partir de suas perdas.

    No Captulo 2 Da Terra Seca Terra Molhada: o Nordeste e a Amaznia de

    Euclides da Cunha apresentamos uma resenha do tema integrao regional encontrado nas

    duas obras em estudo, Os Sertes e Margem da Histria. Verifica-se que, no entendimento

    de Euclides da Cunha, tanto o Nordeste, quanto a Amaznia so vitais para o projeto de nao

    e integr-las ao restante do pas uma questo de soberania nacional. O elemento humano

    encontrado nessas regies, o sertanejo, o elemento dotado da moris buscada por Euclides

    para uma nao que est por realizar-se e que est plantada numa parte do globo onde a

    natureza se mostra portentosa e hostil ao elemento humano. Nosso entendimento que a

  • 20

    bravura sertaneja, sua fibra moral que suplanta os reveses naturais o elemento psquico

    buscado e proposto por Euclides como o elo capaz de fomentar a unidade nacional.

    O Captulo 3 Paisagem e Filiao: a janela por onde Euclides olha o mundo

    uma proposta de interpretao do tratamento dado por Euclides da Cunha ao elemento

    paisagem tanto no livro Os Sertes, quanto no livro Margem da Histria. Nosso argumento

    que Euclides da Cunha lana mo do elemento Paisagem para fazer uso dela como

    contraponto da luta do sertanejo pela sobrevivncia, de modo a enaltecer a sua bravura. A

    hostilidade natural descrita para realar o elemento humano sertanejo, este sim de maior

    interesse para o autor. No bojo desse trato com a paisagem se encontra o estranhamento

    pessoal de Euclides com a paisagem amaznica, a qual se lhe apresenta desprovida de

    encantos e chatamente rebatida no plano. Nesse aspecto propusemos uma anlise baseada

    nos impulsos pessoais do autor, dentro do conceito de experincia topoflica, quando

    concluimos que o estranhamento expresso por Euclides da Cunha em relao paisagem

    amaznica se deve sua ambientao de infncia numa regio montanhosa, de modo que as

    definies de belo e aprazvel na mente do autor se consolidaram com as formas onduladas de

    morros e de montanhas, e em contraste a estes os vales profundos de longa vista desimpedida,

    situao que no ocorre na paisagem amaznica.

    Por fim, cabe dizer que este trabalho se props revisitar um autor influente para o

    pensamento social na Amaznia no intuito de encontrar nele um ponto de partida, uma

    referncia de exame dos nossos dias. A concluso a que chegamos a de que Euclides da

    Cunha continua atual, talvez no pela sua genialidade, mas porque os nossos problemas

    sociais, polticos e econmicos so recorrentes, de modo a divergir a nossa vida hoje pouca

    coisa daquilo que Euclides descreveu h cem anos. O que se verifica que Euclides da Cunha

    foi proftico em relao aos nossos destinos, ao identificar na floresta aquilo que definimos

    por analogia como o caminho de Ssifo a que parece que estamos condenados. Apesar de todo

    o esforo dispendido por governos, pensadores, poetas etc., ainda aguardamos o dia de

    superar as anlises euclidianas em relao Amaznia. Ainda aguardamos o dia em que

    poderemos declar-lo inadequado, visto que, pelo menos do ponto de vista do diagnstico dos

    nossos problemas, seus escritos ainda so aquilo que Arthur Csar Ferreira Reis (2000)

    declarou: Euclides um dos raros exegetas da formao e da realidade brutal de nossa vida.

  • 21

    CAPTULO 1 EUCLIDES DA CUNHA E A CONSCINCIA DE SEU TEMPO:

    Sanitarismo, Positivismo, Evolucionismo, Republicanismo Uma Contextualizao

    No exagero dizer que o estreito ambiente rural de sua

    infncia solitria passada perto do angico da Fazenda

    So Joaquim, de onde fazia arengas ao gado, alargou-se

    como ondas num lago para finalmente engolfar no

    abrao de sua paixo todo o Brasil do Centro, do

    Nordeste e do Norte. E como acabou enlanguescendo no

    Rio modernizado, depois de ficar isolado dos desertos

    da Natureza brasileira! (FREDERIC AMORY, 2009).

    Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha, ou simplesmente Euclides da Cunha, se insere

    entre os pensadores brasileiros mais influentes no mbito do grande debate acerca da

    nacionalidade brasileira. Figura na galeria onde esto tambm Gilberto Freyre, Srgio

    Buarque de Holanda, Oliveira Viana, Nina Rodrigues, apenas para citar alguns nomes de

    relevo da histria do pensamento social brasileiro. Tem, no entanto, para si, o mrito de ter

    contribudo para a insero da Amaznia na questo da formao nacional por meio no

    apenas de leituras distncia, mas por ter experimentado de modo direto o ambiente

    amaznico, por meio de viagem realizada ao Rio Purus.

    Pinto (2012) define o trabalho de Euclides da Cunha sobre a Amaznia como o

    primeiro a realizar uma reviso crtica da produo literria acerca da regio. O autor diz isso

    valendo-se das prprias palavras de Euclides, para quem os escritos de autores anteriores a ele

    acerca da Amaznia so monografias desconexas entre si, profundamente impregnadas pelo

    fascnio e fantasia frente ao exotismo, grandeza e perigos da regio, de modo a no escapar

    do xtase frente ao maravilhoso, ao surpreendente, e pouco producentes para a conceituao

    cientfica da regio, cuja existncia est ainda no mbito do misterioso. Com a contribuio

  • 22

    de Euclides da Cunha, ele passa a se constituir em divisor de guas no pensamento social da

    Amaznia, conforme nos diz Pinto (2012):

    Isso se torna evidente quando atentamos para o fato de que, depois de

    Euclides da Cunha, se inaugura um novo modo de perceber a histria social

    do povo brasileiro e, em referncia Amaznia, dificilmente os que lhe

    sucederam conseguiram pensar a regio sem tomar em considerao o corpo

    principal das ideias com as quais construiu sua interpretao da sociedade

    brasileira nesta sua parcela colocada "a margem da histria". Um outro

    aspecto que sobressai de sua obra o fato de que ela resulta de uma leitura

    cuidadosa e extensa dos autores que lhe antecederam e sobre os quais

    empreende um rigoroso trabalho de recuperao crtica (PINTO, 2012, p.

    200).

    Comparamos os escritos de Euclides com as anlises feitas por Lepenies (1996),

    acerca do processo de consolidao da Sociologia na Europa, e acreditamos ter havido no

    Brasil uma situao social semelhante quele processo. Tambm aqui se desenvolveu uma

    luta entre a Sociologia e a Literatura pela primazia no poder de definir a realidade social. Os

    escritos de Euclides da Cunha, a nosso ver, so esboos de uma anlise sociolgica nascente,

    ainda a meio caminho entre a expresso literria e o rigor cientfico, semelhante situao

    alem, francesa e inglesa, citadas por Lepenies (1996). V-se isso claramente em Os Sertes,

    onde a anlise da realidade social local de Canudos e mesmo a realidade nacional aparecem

    como anlise sociolgica embutida numa racionalidade literria marcante. Essa indefinio

    entre escritos sociolgicos ou literrios ainda mais ntida quando se verifica as questes

    tratadas durante o perodo de publicao de Os Sertes e mesmo de outros perodos bem

    prximos, em que a Antropogeografia e o Evolucionismo se fazem literariamente, cujas

    figuras mais centrais passam por Friedrich Hatzel (1844-1904) e Herbert Spencer (1820-

    1903).

    Compreender a contribuio euclidiana no mbito do Pensamento Social e, mais

    especificamente, a sua contribuio para a compreenso da Amaznia um exerccio

    necessrio a todos que impem a si mesmos a tarefa de ombrear a luta pela legitimidade e

    poder de definir, classificar e localizar a Amaznia no debate contemporneo. Isso em razo

    de que, como acreditamos, no possvel contornar os escritos de Euclides da Cunha.

    Podemos pensar com ele, atravs dele, ou contra ele, mas nunca sem ele, em decorrncia da

    forma marcante como se posicionou frente aos problemas encontrados na regio e dos

    caminhos apontados em seus estudos.

  • 23

    Euclides da Cunha se auto intitula o vingador. V-se que ao dar voz aos sertanejos de

    Canudos, de onde resultou a sua obra Os Sertes, de fato ele surge como contraponto ao

    consenso que a grande imprensa havia consolidado, o de que Canudos era uma ameaa

    Repblica3. Esse consenso, alis, ainda existe em Corporaes como a Polcia Militar do

    Amazonas que ainda faz meno de sua participao na luta em Canudos como um feito

    heroico. Na viso de Euclides, no entanto, o que houve em Canudos foi um massacre. O autor

    toma partido dos sertanejos exaltando suas qualidades heroicas e tecendo crticas mordazes

    Repblica. Deixa claro que o anacronismo religioso de Antnio Conselheiro foi combatido

    com excessivo furor. O que se v no ambiente circundante, a partir das linhas de Os Sertes

    o orgulho ferido da Repblica, com a sua mquina militar sendo rechaada por jagunos

    desarmados e malnutridos, fazendo parecer que havia uma guerra, quando na verdade, na

    viso de Euclides, o que houve em Canudos foi um extermnio. O sertanejo forte resistiu at o

    ltimo homem e a obra Os Sertes seria a proclamao da verdade contra a euforia

    generalizada de uma imprensa e uma sociedade desinformada, que tratou sertanejos

    empobrecidos como um risco para a soberania da nao.

    Ao se deparar com a Amaznia, Euclides da Cunha revive momentos de intensa crise

    interna, incluindo frustraes, contentamento, sentimentos ambivalentes que aos poucos vo

    se conduzindo para um estado de percepo capaz de lhe indicar a necessidade de um novo

    livro vingador (grifo meu). Este livro que no chegou a ser escrito, teria a pretenso de vingar

    a regio das gentes adoidadas que a maculam desde o sculo XVII, conforme suas palavras.

    Obviamente, esse novo livro se referiria em parte aos escritos anteriores aos seus, em parte

    aos tipos humanos que adentraram a Amaznia pelos diferentes motivos e, em parte ao

    distanciamento que a Regio evidenciava em relao Repblica, tanto poltica quando

    economicamente. Todavia, Euclides da Cunha um ser humano. Como tal, ele dotado de

    uma histria social incorporada, inserido que est num contexto histrico, poltico e social.

    Nele se encontram representaes sociais e disposies duradouras que norteiam seus atos e

    suas percepes. Como afirma Morin (1982), a complexidade humana s pode ser

    compreendida se tivermos em conta as dimenses biolgica e sociocultural do indivduo, pois

    para o autor, todo o ato humano , ao mesmo tempo, totalmente biolgico e totalmente

    cultural, isso implica dizer que o comportamento do indivduo ou a constituio de seu ser

    3 O prprio Euclides da Cunha, antes de ter contato direto com a regio de Canudos, escreveu artigos para a

    imprensa paulista confirmando esse ponto de vista.

  • 24

    social resultante das caractersticas biolgicas e da influncia dos contextos sociais e

    culturais em que ele se insere. Nesse sentido, a anlise das condies sociohistricas

    fundamental para a compreenso do modo de pensar e de agir de um indivduo. Nestes

    termos, um breve exame dos principais movimentos do perodo em que viveu Euclides, como

    o sanitarismo, o positivismo, o evolucionismo e o republicanismo podero nos conceder uma

    melhor compreenso de seus escritos.

    A histria social de Euclides da Cunha inclui a orfandade de me, a criao na

    segunda infncia em companhia de tias, a formao numa escola militar, uma crise conjugal

    que findou por lhe tirar a vida, bem como duas importantes viagens, uma como

    correspondente jornalstico e outra como Comissrio da Repblica. Todos esses dados

    conduzem ao homem total, Euclides da Cunha, poeta, gegrafo, historiador, jornalista,

    socilogo, engenheiro de obras pblicas e servidor pblico.

    Parece-nos evidente que Euclides da Cunha, como intelectual de seu tempo foi

    defensor, direta ou indiretamente, dos ideais do Sanitarismo, do Positivismo e do

    Republicanismo. lcito afirmar que fazia parte do Habitus cientfico (BOURDIEU, 1989)

    daquele tempo no Brasil, a crena no Progresso, o melhoramento do ambiente fsico como

    melhoramento das condies do homem e que tais crenas se fariam em melhores condies

    numa sociedade republicana.

    evidente nos escritos euclidianos que ele inicia sua idade adulta como entusiasta da

    Repblica, mas logo se decepciona com ela, passando a se constituir em um dos seus crticos.

    A obra Os Sertes pode ser definida em parte como uma crtica rspida Repblica, o mesmo

    ocorrendo em relao Amaznia, cujas propostas de integrao da regio nao

    denunciam, de algum modo, o alijamento da regio em relao ao restante do pas, mesmo

    num contexto republicano. Tal como ocorrera em sua viagem ao serto baiano, cujo carter

    era de correspondente de um jornal importante do Sul do pas, gozando da proteo da

    Repblica, por meio da mquina militar que assediava o arraial dos jagunos, a viagem

    Amaznia tem os mesmos aspectos de oficialidade, agora como Comissrio do Estado, em

    misso de fronteira. Em ambas as viagens, Euclides da Cunha contraria o senso comum e se

    revela um partidrio dos oprimidos de ambas as regies. Na Bahia o jaguno, designado

    como o Sertanejo Forte, que castigado pelo sol, pela sede, pela fome, que surge no texto

    como aquele que defende o seu lar e que suplanta seus agressores pela astcia e inteligncia.

    Na Amaznia o sertanejo designado como Caboclo Titnico, que surge no texto como

  • 25

    aquele que supera a natureza que lhe hostil, que oprimido por um sistema de aviamento

    que o escravizava, e que mesmo assim, avana sobre o deserto e o suplanta.

    Tanto o jaguno sertanejo, quanto o caboclo amaznico aparecem alijados do Brasil de

    fato, o Brasil litorneo, concentrado no Rio de Janeiro e So Paulo e que sequer tem notcia da

    existncia de ambos. Para Euclides da Cunha impossvel se pensar em nacionalidade sem a

    incluso desses dois tipos humanos, ou destas duas regies, no debate nacional e s prprias

    regies Nao brasileira. Para alm do plano social mais aparente da anlise euclidiana em

    Os Sertes e em Margem da Histria, a leitura dos dois livros, comparados um com o outro

    deixa transparecer um estranhamento franco do autor em relao paisagem amaznica.

    ntido que aquilo que o autor v na Amaznia no lhe agrada, muito embora procure

    perscrut-la como cientista. Euclides deixa-se ver desnudo em seu desapontamento. Tal

    postura diante da paisagem, do clima, e at mesmo diante do homem nativo, leva-o a

    acrescentar crticas ao desenvolvimento da regio, embora tenha elogiado a cidade de Belm

    no Par como uma cidade moderna e bela.

    Examinado pela luneta do tempo, v-se que, sociologicamente, Euclides da Cunha

    aparece como Autor fundamental do que chamamos hoje de Pensamento Social e

    incontornvel quando se trata do Pensamento Social na Amaznia. Tal fato se d em funo

    de que grande parte de suas teses ainda vigoram at hoje, como nos falou Artur Csar Ferreira

    Reis, Euclides um dos raros exegetas da formao e da realidade brutal de nossa vida [...]

    (REIS, 2000. p. 5). Da ento que este captulo tem o objetivo de situar brevemente o Autor

    no ambiente histrico do seu tempo, de modo a nos permitir que Euclides nos fale novamente.

    Desejamos, no entanto, que esta fala seja contextualizada nas limitaes dadas ao seu tempo,

    de modo a no nos atermos nos seus erros, os quais se traduzem apenas como a cincia

    possvel dos seus dias, para que a sua contribuio nos alcance. nossa convico que a

    atualidade temtica de Euclides da Cunha importantssima. E por que uma contextualizao

    breve? Isto se d porque o contexto histrico vivido por Euclides da Cunha e outras figuras

    igualmente importantes j est razoavelmente esclarecido em obras de maior flego, no

    permitindo-se o escopo deste trabalho nada alm de uma referncia que atenda a funo de

    situar o leitor minimamente.

    Os dias que antecederam a vida adulta de Euclides da Cunha podem ser denominados

    como o fim do sculo revolucionrio, como se expressou Gomes (2013). A sensao que se

    tem ao olhar-se a lista de acontecimentos a de que o mundo esteve adormecido por sculos e

  • 26

    de repente acordou. O processo de mudana tecnolgica acelerou-se de tal forma que em meio

    sculo a face do mundo estava mudada. Euclides chega idade adulta na virada do regime

    monrquico para o republicano e, como no podia deixar de ser, foi um dos entusiastas do

    regime republicano. Havia aprendido o fervor republicano a partir de seu professor Benjamin

    Constant, mas logo aps instalado o novo regime, Euclides verificou que a realidade cruel da

    nao no se modificaria pela simples mudana de regime, posto que a Repblica que se fez,

    pouco se distinguira da monarquia que se desfez.

    O Brasil do imprio era socialmente miservel, segundo dados levantados por Gomes

    (2013). Apenas quinze de cada cem brasileiros sabiam ler. A cada seis crianas, apenas uma

    frequentava a escola. Apenas oito mil pessoas possuam diploma de nvel superior. O

    intercmbio entre as regies era quase inativo, de modo que as gentes do Norte no tinham

    contato com as do Sul. O primeiro evento histrico que havia aproximado um pouco mais o

    Brasil de si mesmo foi a Guerra do Paraguai. Nesse obscuro episdio de violncia externa,

    pela primeira vez, brancos, negros e mestios lutaram juntos, surgindo da um leve sentimento

    de unidade nacional. A sociedade era conservadora e patriarcal e a aristocracia rural exercia o

    domnio poltico. A escravido tinha o seu elemento tpico e nico na histria: aqui se

    escravizava pela cor.

    Em contraste com esse Brasil miservel existia um Brasil opulento, concentrado no

    Rio de Janeiro e em So Paulo, conforme registra Sevcenko (2003). Nesses estados haviam

    ilhas de riquezas, com elites agrrias e urbanas possuindo vnculos sociais e culturais mais

    com a Europa e os Estados Unidos do que com o Brasil, e que procuravam de forma

    mimtica, reproduzir a poltica, a economia e a cultura dessas naes no trpico mido. Era

    um transplante da sociedade europeia para os trpicos. Era a cultura da imitao. Esse Brasil

    no se dava ao trabalho de examinar-se, de conhecer-se. Com a proclamao da Repblica e o

    desfazimento das instituies monrquicas, a mscara social desse Brasil caiu, revelando um

    pas por fazer-se. As definies da nacionalidade at ali tinham falhado duramente, como

    sumariza Gomes (2013):

    Os artistas enviados para a Europa de l voltavam repletos de modelos

    artsticos e iconogrficos que pouco tinham a ver com a realidade brasileira.

    Os quadros de Victor Meirelles e Pedro Amrico, as peras de Carlos Gomes

    e os romances aucarados de Jos de Alencar refletiam o que se fazia na

    Europa e no dura realidade tropical brasileira. O romantismo, fonte na qual

    bebiam, buscava redescobrir as razes da nacionalidade brasileira, mas a

    matria-prima eram modelos europeus (GOMES, 2013, p. 103).

  • 27

    Surge ento, na transio do Imprio Repblica, no campo intelectual, a necessidade

    de se compreender o Brasil, mas no apenas isso. Surge tambm a necessidade de se fazer o

    Brasil, um novo Brasil, visto que o Brasil real estava sendo desnudado pelo desmantelo de

    suas instituies. Compreender para indicar rumos. desse contexto que surgem os autores

    que se atribuem como misso o ato de escrever para mudar a realidade, da qual Sevcenko

    (2003) indica com maestria as obras de Euclides da Cunha e Lima Barreto. As anlises que

    so feitas, como no podiam deixar de ser, lanam mo da cincia do momento. Como

    sumarizou Gomes (2013), o sculo XIX viu florescer uma lista de ideologias, que incluem o

    liberalismo, o capitalismo, o socialismo e comunismo, o nacionalismo, o imperialismo, o

    positivismo, todas prometendo uma nova sociedade e indicando a receita para atingi-la.

    As grandes ideologias do sculo XIX tinham em comum a noo de que era

    possvel reformar as sociedades e o Estado para acelerar o progresso humano

    rumo a uma era de maior prosperidade e felicidade geral. Acreditava-se que a

    cincia e a tecnologia seriam capazes de conduzir os seres humanos a um

    novo patamar de desenvolvimento, conforto e autorrealizao (GOMES,

    2013, p. 142).

    Os autores desse perodo estavam amplamente influenciados pelo esprito progressista

    da poca, um momento de franco desenvolvimento do capitalismo, a chamada belle poque

    (1871-1914). Sabe-se que esse foi um perodo de profunda inovao tecnolgica, de

    mudanas sociais e econmicas, de efervescncia cultural e intelectual, que trouxe ao mundo

    novos modos de pensar e agir cotidianamente. Perodo de culto ao triunfo da Cincia e do

    Progresso e, do qual, as elites do Sul e do Sudeste desfrutavam com toda a sofisticao e

    glamour, mesmo com a crise cafeeira, sua principal fonte de poder econmico e poltico,

    rondando seus espaos.

    1.1 Sanitarismo

    A Revoluo Industrial ocorrida na Europa provocou grandes deslocamentos de

    populaes naquele continente, resultando disso o inchao das cidades, razo pela qual se

    fizeram necessrias medidas de conteno da proliferao de doenas. Datam do perodo

    preocupaes governamentais com a limpeza pblica, controle de gua e esgoto, fiscalizao

    e controle da atividade comercial, principalmente a referente ao comrcio de alimentos e o

    controle porturio. Para imprimir esses controles todos e mudar comportamentos coletivos,

    ocorreram na Europa mudanas estruturais no exerccio do poder. Foucault (2002) esclarece

    que nesse novo momento, o indivduo notado e de tal modo, que deve ser disciplinado para

  • 28

    o bem dos demais. A sade passou a ser uma questo social. O poder soberano de vida ou

    morte do Estado sobre os sditos agora exercido sutilmente sobre o indivduo para a vida,

    pois o trabalho e a produo requerem que ele esteja so e a cidade esteja livre de epidemias.

    Novas estruturas, novos saberes so organizados com o fim de tornar os corpos disponveis e

    dceis. o advento da Disciplina.

    A partir da chegada da Famlia Real em 1808, dentre outras mudanas, o Brasil foi

    includo no Comrcio Exterior com outras naes e no mais apenas com a Metrpole, o que

    impulsionou aes de melhoramentos da salubridade pblica. O Sanitarismo, conjunto de

    medidas governamentais j em profundo avano na Europa, atravessa o oceano e aporta no

    Brasil embalado pela abertura dos portos brasileiros s naes amigas. Era preciso garantir

    que os navios que aportassem no Brasil no fossem veculos de disseminao das inmeras

    doenas que varriam o pas, dentre as quais a mortal Febre-amarela, quando retornassem

    Europa, bem como criar aceitao dos produtos brasileiros no exterior, (PONTE, 2007). Para

    isso se fazia necessrio elevar o Brasil, pelo menos o Brasil porturio, a nveis modernos de

    higiene. No entanto, com a inaugurao da Repblica que o Sanitarismo como movimento

    ganha fora e assume papel de vanguarda no Brasil.

    Neste sentido, o Sanitarismo como movimento surge ancorado em duas vertentes. A

    primeira a necessidade de atender o interesse do Capital. A segunda derivada da primeira e

    por via desta, e so os novos Saberes no campo da Cincia, mais notadamente no campo da

    tecnologia. Xavier (2006) faz meno do aparecimento do Microscpico como o grande feito

    que ir revolucionar de fato o mundo. At o aparecimento dessa tecnologia ptica, o

    entendimento que se tinha a respeito das doenas que elas estavam ligadas s condies

    ambientais. A Malria tem esse nome em funo da ideia de que era derivada das condies

    do ambiente, do solo, da rea, do ar, Mal-aria, da as providncias de se procurar melhores

    ares para o tratamento dos enfermos para todas as doenas. Expresses como mudana de

    ares, advm da ideia de que havia climas mais ou menos propcios para a vida. Era o tempo

    da hegemonia da teoria dos miasmas, que postulava que as doenas eram resultado de estados

    atmosfricos (ROSEN, 1994). Com o aparecimento do Microscpio e o seu contnuo

    aprimoramento, descobre-se o mundo dos microorganismos e, dentre eles, as Bactrias. Com

    esse conhecimento em mos, surge a teoria do Contgio e as aes de governo, ou de sade

    pblica se voltam agora para o indivduo. No campo do poder, o Bacteriologista se reveste de

    autoridade, passando a reivindicar o poder de dirigir aes pblicas de saneamento e

  • 29

    organizao da vida coletiva. O Sanitarismo salta das condies atmosfricas para os agentes

    transmissores, mudando-se o controle sanitrio para a Entomologia e a Bacteriologia e,

    finalmente, para a Imunologia, j bem mais tarde, na era das vacinas (XAVIER, 2006) e o

    cientista mdico galga posio hegemnica, sendo cooptado pelo Estado burgus, ou

    diretamente produzido por ele, para exercer o domnio nos rumos da nova sociedade. No

    raro, no Brasil, mdicos ligados ao Movimento Sanitarista chegaram a cargos polticos,

    resultantes do status obtido nas lutas pela sade pblica.

    No Brasil o Sanitarismo no se deu de modo diferente do europeu quanto aos seus

    motivos engendradores. No entanto revestiu-se de aspectos inerentes ao ambiente brasileiro,

    mais notadamente o aspecto autoritrio, resultante da forma de governo que aqui se fez desde

    a colnia. Tambm notria a sua insero no campo das tentativas de definies da

    nacionalidade brasileira. No bojo do que temos chamado de construo da nacionalidade, o

    Sanitarismo brasileiro chega mesmo a influenciar e modificar a estrutura de poder estatal. A

    relao entre o poder central e o poder regional foi grandemente afetada, com prejuzo

    poltico para este ltimo, marcadamente oligrquico, e que findou por perder influncia, haja

    vista que o poder central, escudado no discurso sanitarista, inicia um processo de unificao,

    ou centralizao das aes governamentais, pela instalao, apoio e consolidao de rgos

    pblicos federais destinados a imprimir nas populaes os ditames do novo modelo de

    homem brasileiro, o homem higinico, retirando das prefeituras locais o poder de dirigir as

    aes de sade4.

    Neste sentido os Sanitaristas acreditavam piamente que era possvel curar o Brasil de

    suas enfermidades endmicas, retirando-o do atraso em que se encontrava em relao

    Europa no que se refere sade pblica (ROSEN, 1994). E no esforo em mapear as

    enfermidades, diagnosticaram tambm o isolamento em que viviam as populaes regionais e

    rurais, sem qualquer noo de nacionalidade. A nica faceta que lhes transmitia alguma

    unidade eram suas crendices comuns, conforme alertaram Belisrio Penna e Arthur Neiva em

    seu famoso Relatrio de 19165. Sade e Educao passavam a fazer parte das preocupaes

    4 CPDOC. FGV - Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil. Disponvel em:

    www.cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/QuestaoSocial/MovimentoSanitarista. Consultado em

    13.03.2016.

    5 FIOCRUZ. BRASILIANA. A Divulgao Cientfica Do Brasil. Disponvel em:

    www.museudavida.fiocruz.br/brasiliana/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid. Consultado em 13.03.2016.

  • 30

    governamentais muito em funo do movimento Sanitarista que enxergava nessas atividades o

    nico meio de sanear a populao das doenas mais corriqueiras.

    Na sua luta pela hegemonia, o movimento Sanitarista brasileiro transcendeu suas

    preocupaes com a sade pblica, passando a desejar interferir no processo de formao de

    um novo Brasil, um novo povo brasileiro. Nesse sentido, Euclides da Cunha, com a obra Os

    Sertes, publicada em 1902, tem influncia fundamental, porque contribuiu para o descrdito

    da velha explicao para o atraso do Brasil como uma resultante da mestiagem. O Sertanejo

    Forte tambm isolado, adoecido, mas no inferior em funo de sua raa. O discurso

    Sanitarista se casa com esta nova viso do interior do Brasil e passa a postular a cura do Brasil

    pelo estabelecimento de novas condies de sade pblica para os sertes, engendrando

    mesmo um novo projeto de Nao (PONTE, 2007).

    Neste sentido, o termo civilizado tem a conotao de higienizado, educado. Por estes

    termos, era preciso ento, civilizar o Brasil, e os parmetros estabelecidos vinham da Europa.

    Iniciou-se pelo Rio de Janeiro, a Capital Federal e principal porto do Pas, que deveria se

    tornar a referncia nacional de moderna urbanizao. Em 1903, ano em que Euclides da

    Cunha ingressa na Academia Brasileira de Letras, o Sanitarista Oswaldo Cruz foi designado

    pelo presidente da Repblica Francisco de Paula Rodrigues Alves, ou simplesmente

    Rodrigues Alves, para ser o chefe do recm-criado Departamento Nacional de Sade Pblica,

    precursor do atual Ministrio da Sade. Suas aes combinaram autoritarismo militar e saber

    cientfico. Guiado pela moderna Cincia da Bacteriologia, mas ainda crente no saneamento

    como medida profiltica, suas aes incluem a derrubada de velhos casares e cortios no Rio

    de Janeiro, aterramentos de pntanos com o intuito de melhorar as condies sanitrias pela

    eliminao dos focos de doenas. O aspecto militar de suas aes surge nos termos usados

    para design-las: luta, campanha, brigada etc., dando ao Sanitarismo brasileiro o sobrenome

    de Campanhista. Por trs desse interesse pblico de sade, no entanto, estava a consolidao

    das novas elites que galgavam a posio de dominantes, cuja fantasia era tornar o Rio de

    Janeiro e outras cidades, uma extenso da Paris de todos os sonhos, ou como lecionou

    Sevcenko (2003), torn-las belle ou chic e para que isso ocorresse era preciso abrir largas

    avenidas e praas, passeios pblicos, preparando o lugar para o embelezamento da cidade no

    padro burgus.

    Examinando o material euclidiano, encontramo-lo em Margem da Histria se

    utilizando desta linguagem sanitarista. Embora Engenheiro de formao, suas anlises da

  • 31

    regio se fazem mediante a cincia do seu tempo, pelo que notrio que o seu olhar sobre as

    condies do homem amaznico, notadamente sobre a precariedade de sua alimentao, o

    coloca dentro do Discurso Sanitarista, ainda que no propositadamente. Euclides se constitui

    em grande municiador de argumentos a favor do Sanitarismo Campanhista. Ao defender que

    o clima amaznico aviltado quando acusado de ser inapropriado para a vida, Euclides

    assim se expressa:

    Em todas as latitudes foi sempre gravssima nos seus primrdios a afinidade

    eletiva entre a terra e o homem. Salvam-se os que melhor balanceiam os

    fatores do clima e os atributos pessoais. O aclimado surge de um binrio de

    foras fsicas e morais que vo, de um lado, dos elementos mais sensveis,

    trmicos ou higromtricos, ou baromtricos, s mais subjetivas impresses

    oriundas dos aspectos da paisagem; e de outro, da resistncia vital da clula

    ou dos tnus muscular, s energias mais complexas e refinadas do carter

    (CUNHA, 1999, p. 35, grifo meu).

    V-se que Euclides se mantm fiel sua tese de que o Sertanejo Forte, transmudado

    em Caboclo Titnico, vence no serto nordestino e vence na Amaznia por uma questo de

    fibra moral, ou de um binrio de foras fsicas e morais, conforme se v acima. Se

    primeira vista as populaes amaznicas aparecem desprovidas de nimo, como a viram os

    cronistas Frei Joo de So Jos, Bispo do Gro-Par em 1762 e Russel Wallace cem anos

    depois, no o caso agora. Com Euclides da Cunha o novo homem que se refaz na luta, se

    aclima e alarga a ptria como um domador do deserto. Mesmo em pssimas condies de

    salubridade o Caboclo Titnico triunfa. Sobre a sua alimentao Euclides diz:

    A alimentao, que a base mais firme da higiene tropical, no lhe fornece,

    durante largos anos, a mais rudimentar cultura. Constitui-se, ao revs de

    todos os preceitos, adstrita aos fornecimentos escassos de todas as conservas

    suspeitas e nocivas, com o derivativo aleatrio das caadas (CUNHA, 1999,

    p. 36, grifo meu).

    Em mos de Sanitaristas como Belisrio Penna e Arthur Neiva que percorreram em

    1912 os sertes do Nordeste, tal como fez Euclides, ou em mos de Carlos Chagas que

    percorreu o Rio Negro no Amazonas em 1913, esse discurso euclidiano traduz-se em discurso

    sanitarista, para quem a reconstruo do Brasil a partir de seu prprio povo uma

    possibilidade real, bastando que as condies sanitrias melhorassem. Desse ponto de vista o

    discurso sanitarista se apresenta como uma progresso da tese levantada por Euclides de que o

    homem sertanejo um forte, e o que lhe falta integrao aos nveis mais elevados de

    civilizao. Essa ideia prospera e vem a se consolidar mais tarde em medidas governamentais

    de melhoramento da sade rural. J em 1918 o Sanitarismo havia alcanado nveis elevados

    de influncia de modo a mover o Governo para aes mais centralizadas e organizadas de

  • 32

    combate s doenas. O Servio de Profilaxia Rural, subordinado Inspetoria de Profilaxia,

    rgo do Governo Federal passa a atuar a partir desse ano6. Tratando das aes dos

    Sanitaristas como aes de um projeto de Nao, Ponte (2007) assim resume:

    Os sanitaristas trouxeram de suas expedies uma viso de nossos sertes

    diversa da que prevalecera at ento, romntica e ufanista. O retrato do Brasil

    era pintado com pinceladas fortes e mostrava um povo doente e analfabeto,

    abandonado pelo Estado e entregue prpria sorte. Para eles, era urgente

    integrar essas populaes nos marcos da nacionalidade e da cidadania,

    conferindo-lhes condies de lutar pela melhoria da prpria vida (PONTE,

    2007, p. 76).

    Coube ao movimento Sanitarista a constatao de que, afastado das metrpoles, o

    povo brasileiro era completamente abandonado prpria sorte. A medicina do povo era

    aquela aprendida no ambiente familiar e repassada de gerao a outra, que consistia em

    garrafadas, leos, chs, etc. Ou quando no, era mstica, por meio de curandeiros, dada a

    ausncia de mdicos fora dos grandes centros urbanos.

    Na Amaznia, o Sanitarismo a orientao que ir conduzir ao embelezamento das

    principais cidades da regio, Belm e Manaus nos mesmos moldes do que se passava na

    Capital Federal, Rio de Janeiro (RIBEIRO, 2012). O Autor menciona os Cdigos de Postura

    dessas cidades, editados naquele perodo, como os registros fidedignos dessa orientao,

    destacando que o Sanitarismo se apresenta como movimento de modernidade, como fora

    indutora de mudanas:

    Nesse espectro de mudanas, os sucessivos Cdigos de Postura do municpio

    aprovados e a criao da Intendncia de Sade e Higiene constituem meios

    que regulamentam o modo como os indivduos podem dispor do espao

    urbano. A partir do modelo de embelezamento da cidade, define-se o que

    proibido no permetro urbano: casas cobertas de palha, criar porcos e outras

    formas tradicionais, tpicas do estilo de vida dos trabalhadores nativos; toda e

    qualquer enfermidade devem ser comunicadas pelos enfermos ou seus

    familiares Intendncia, aqueles que no fizerem ficam sujeitos pena de

    multa, o que obriga os familiares de qualquer pessoa doente a registrar a

    enfermidade na Intendncia de Sade (RIBEIRO, 2012, p. 35).

    Tal como ocorrera na Capital Federal, Manaus e Belm ganharam atmosfera de mini

    Paris dos trpicos. V-se, portanto, que na Amaznia ocorre da mesma forma a cultura de

    emprstimo denunciada por Euclides da Cunha em referncia ao Brasil litorneo, manifestada

    tambm pela imitao do modelo europeu. Nota-se que estamos tratando de um Cdigo de

    6 FUNASA. Cronologia Histrica da Sade Pblica. Disponvel em: http://www.funasa.gov.br/site/museu-da-

    funasa/cronologia-historica-da-saude-publica/. Acesso em: maro de 2016.

    http://www.funasa.gov.br/site/museu-da-funasa/cronologia-historica-da-saude-publica/http://www.funasa.gov.br/site/museu-da-funasa/cronologia-historica-da-saude-publica/

  • 33

    Postura de 1892, portando, j na era Republicana, mas que ainda reproduz uma atmosfera

    cultural mais aproximada cultura do Imprio.

    A orientao Sanitarista na Amaznia encontra um marco em Jos Francisco de

    Arajo Lima (1884-1945), ou simplesmente Arajo Lima. Em sua obra Amaznia, a terra e o

    homem de 1931, Arajo Lima procura desmistificar a propaganda imperialista que indicava a

    impossibilidade de uma civilizao moderna na Amaznia em decorrncia de um clima

    inapropriado, fato que Euclides da Cunha j havia refutado, mas em Arajo Lima que essa

    refutao alcana status de cientfica. Vejamos o resumo dessa refutao nas palavras de

    Ribeiro (2012, p. 55):

    Amaznia: a terra e o homem, livro de Arajo Lima, lanado em 1931,

    sintetiza as posies de grande parte dos intelectuais locais na luta contra os

    estigmas imputados regio. Arajo Lima munido de um acervo de

    informaes e com base no que havia de mais avanado na medicina, na

    fsica, na geografia, na histria, na economia e na antropologia refutou e deu

    um duro golpe nas teses que apontavam o clima e o meio fsico como fator

    que impediria o desenvolvimento da civilizao moderna na Amaznia.

    Imediatamente o livro Amaznia, a terra e o homem tornou-se referncia para

    os que buscavam uma explicao cientfica para o atraso da regio, longe dos

    estigmas e preconceitos difundidos por uma literatura incapaz de

    compreender a problemtica amaznica em sua integridade.

    devido ao uso intensivo do que havia de mais moderno no pensamento cientfico

    poca, principalmente no campo da medicina que Arajo Lima ganhou da parte de Leandro

    Tocantins o ttulo de Primeiro Cientista Social da Amaznia. Tal como Euclides da Cunha j

    havia denunciado, Arajo Lima ir denunciar as pssimas condies de nutrio em que se

    encontrava a populao amaznica, firmando em definies mdicas modernas para refutar

    autores famosos como Frederico Ratzel e La Blache e seus determinismos. Diz-nos Arajo

    Lima:

    O meio fsico ou csmico no age diretamente, no age exteriormente, mas

    sim por intermdio do meio interno, fisiolgico ou psicolgico. A ao faz-se

    exercer, atravs do aparelho vegetativo e do sensorial, sobre as funes do

    organismo. So os alimentos, os txicos, introduzidos no seio da economia

    viva; so as impresses sensitivas, recebidas pelas terminaes nervosas

    perifricas e recolhidas aos rgos centrais do sistema nervoso, onde se

    projetam sob a forma de sensaes para a elaborao do pensamento. o

    po; o veneno; a ideia. A vida funo do meio interno lquido, que

    embebe todas as clulas, todos os tecidos; o plasma intersticial, o plasma

    nutritivo, de cuja composio depende o equilbrio metablico. As

    deficincias nutritivas (as avitaminoses) e as perverses alimentares (as

    intoxicaes) so outros tantos elementos comprometedores, ou corruptores

    do organismo humano, independendo do clima, do meio csmico, dos fatores

    ambientais (LIMA, 1975, p. 16).

  • 34

    Arajo Lima ir afirmar um deslocamento conceitual no entendimento do que vem a

    ser o meio influente. No mais o meio fsico domina o homem, mas sim o meio humano. O

    meio fsico dominvel pelos recursos mentais que capacitam o homem a se desviar das

    aes do meio. , portanto, o meio humano que deve ser considerado, pois o elemento

    humano constitudo em sociedade, Lima (1975). Portanto, o problema a ser resolvido na

    Amaznia ainda o mesmo denunciado por Euclides da Cunha, o isolamento (trataremos

    deste assunto no captulo 2 com mais vagar). Eis o que nos diz Arajo Lima:

    O que constitui realmente o elemento humano a sociedade. Os homens s

    valem pela associao. O isolamento, a segregao, o afastamento, a que so

    eles condenados pela disperso ou pela disseminao, tiram-lhe os predicados

    e as caractersticas. A sociedade o meio humano, o ambiente em que age o

    homem em face da natureza (LIMA, 1975, p. 17).

    Para no nos alongarmos muito mais, importante dizer que Arajo Lima ir propor o

    saneamento da terra por meio da cincia moderna como forma de torn-la propcia

    civilizao, convicto de que, obstadas as condies de vida dos insetos vetores, a vida humana

    se prolifera em qualquer quadrante do planeta. Qual o elemento principal? A Educao.

    Mirando-se no exemplo japons, Arajo Lima ir dizer que a elevao dos nveis culturais de

    um povo o elemento fundamental para tornar o ambiente habitvel. Neste sentido, ento,

    Arajo Lima se revela o Sanitarista tpico, firmando-se no combate s doenas e na preveno

    delas por meio da educao higinica, conforme visto acima.

    1.2 Positivismo, Evolucionismo e Republicanismo

    O Positivismo avanou sobre o Brasil a partir do prprio Isidore Auguste Marie

    Franois Xavier Comte, ou simplesmente Augusto Comte, posto que est estabelecido que

    muitos brasileiros foram seus alunos em Paris (SGA, 2004). Mais do que mesmo a Frana,

    bero do Positivismo, o Brasil se tornou a ptria do Positivismo na Amrica, posto que aqui

    suas marcas foram mais profundas, encontrando-se estampado at mesmo no pavilho

    nacional. Se hoje, a palavra Positivismo tem outra conotao e remete geralmente a uma

    situao negativa, principalmente no campo das Cincias Sociais, no sculo XIX, era o

    principal instrumento terico e analtico da realidade social. Significava o coroamento da

    cincia e remetia naturalmente a ideia de progresso e de ordem como forma de garantir o

    desenvolvimento/evoluo da sociedade. Essa corrente filosfica representava o que havia de

    melhor no pensamento cientfico, embalado pelo progresso tecnolgico que encurtava as

    distncias com a inveno de velocssimos novos meios de transporte, que vencia as doenas

  • 35

    com a descoberta de suas etiologias, que aproximava pessoas pelo uso de novos meios de

    comunicao etc. Como dito anteriormente, a face do mundo havia mudado tanto em

    cinquenta anos que parecia mesmo impossvel qualquer regresso. O Progresso, seja ele

    tecnolgico ou humano, parecia inevitvel e a cincia se credenciava pelos seus avanos a

    tomar o lugar de Deus. Foi nessa f que o Positivismo se desenvolveu, constituindo-se

    mesmo numa forma de religio no seu ramo ortodoxo.

    Sga (2004), e outros, lecionam que o Positivismo cientfico se tornou visvel no

    Brasil a partir de 1850, iniciando na Escola Militar, depois no Colgio Pedro II, prosseguindo

    s demais escolas, a da Marinha, a de Medicina e a Politcnica. J a vertente religiosa s

    chegou em 1881, por meio de Miguel Lemos e Raimundo Teixeira, tratando-se do Apostolado

    Positivista, uma espcie de igreja da humanidade (GOMES, 2013). Como corrente de

    pensamento, o Positivismo brasileiro uma reao ao catolicismo romanista, ento ainda

    imperante no pas. Tal influncia romanista se d mais por ausncia de outras correntes do

    que mesmo por seus mritos, posto que nesse perodo a Igreja Romana estava subordinada ao

    Imperador e tinha pouca expresso, pois o seu clero estava preso ao Monarca, naquilo que

    ficou conhecido como regalismo, e era ignorado pelos intelectuais de vis racionalista

    (SILVA, 2013).

    A especificidade do Positivismo brasileiro fica por conta do casamento entre suas teses

    e os anseios locais pela implantao da Repblica. Desde a sua chegada ao Brasil, Repblica e

    Positivismo iniciam uma caminhada que finda por se misturarem, a ponto de serem quase

    sinnimos por volta de 1889. Contribuiu para esse quadro o enfraquecimento da ala

    positivista monarquista, decorrente do prprio enfraquecimento da Monarquia. A

    intelectualidade gestada nos anos finais do Imprio possua, em sua maioria, tendncia

    Positivista, porque essa corrente filosfica havia alcanado o status de teoria geral, ensinado

    regularmente nas escolas como verdade absoluta. Desse modo, at mesmo a carolice da

    Princesa Isabel era motivo de preocupao, posto que a atitude carola da Princesa dava sinais

    de que a Monarquia no estava altura dos novos tempos (GOMES, 2013). Mas o

    Positivismo Republicanista que ir alcanar a hegemonia j nos anos 1880, a partir da atuao

    de Positivistas nas escolas militares, com destaque para o republicano Benjamin Constant

    Botelho de Magalhes (1833-1891), ou simplesmente Benjamin Constant, entusiasta da

    Revoluo Francesa e fiel seguidor dos preceitos Comteanos (GOMES, 2013). Benjamin

    Constant se encarregou de incutir na mente daqueles jovens oficiais das escolas militares a

  • 36

    sensao de viverem sob a gide de uma misso histrica de grandes propores. De acordo

    com Sga (2004):

    A atividade doutrinria bem no interior da massa pensante das foras

    armadas brasileiras foi fundamental para criar um esprito de corpo na

    caserna, pois boa parte da oficialidade se achou imbuda do destino histrico

    de implantar um regime republicano que fosse fundamentado na razo e na

    cincia positivista (SGA, 2004, p. 1).

    O Positivismo teria avanado muito mais no Brasil se as condies aqui no fossem as

    piores para a propagao de uma ideia. Como dito, apenas quinze entre cem brasileiros

    estavam aptos a ler um jornal. Pouqussimas crianas estavam na escola. Em condies como

    as tais, o Positivismo ficou restrito s camadas letradas, principalmente nos meios militares,

    razo pela qual se impregnou na sua doutrina o vis autoritrio, prprio da caserna. Tal fato se

    verifica no quadro de perfeita harmonia entre a ideia de Repblica e Ditadura Militar, que

    perdurou nos primeiros anos da Repblica. Por seu turno o Evolucionismo Social, embora

    parta de uma base comum ao Positivismo comteano, qual seja, a rejeio do sobrenatural

    como explicao da realidade, desenvolve-se a partir do Sculo XIX com a aplicao, no

    campo das cincias sociais, dos enunciados de Charles Darwin para o campo da biologia. O

    nome de referncia o de Herbert Spencer (1820-1903), inclusive no Brasil. O evolucionismo

    de Spencer apresentou-se no Brasil como uma espcie de maturidade intelectual,

    principalmente em razo do "fracasso" da repblica positivista, a qual no conseguiu cumprir

    as promessas feitas. Alm das questes prticas o Evolucionismo Social tambm apresentava

    consistncia terica maior do que o positivismo comteano com a sua Lei dos Trs Estados e a

    sua proposta de religio da humanidade. Ambos tinham em comum a rejeio da Metafsica e

    toda e qualquer divagao que no pudesse ser verificado por anlise de causas naturais. A

    resultante mais breve da aplicao s sociedades da conceituao darwiniana foi a ideia de

    que as sociedades so regidas pelas mesmas foras propostas por Darwin para o campo da

    Biologia, resultando disso que estas, as sociedades, assim como as raas que a compem, se

    encontram tambm em processo evolutivo, logo algumas so superiores a outras e na luta

    entre as sociedades as mais fortes prevalecem sobre as menos aptas. Da para o surgimento do

    preconceito de raa foi questo de tempo, onde o mestio passou a ser olhado como um ser

    inferior em razo dos cruzamentos inter-raciais.

    Apesar das divergncias conceituais e proposicionais entre Positivismo e

    Evolucionismo, ambos, separadamente, ou em forma de sntese constituram-se em Senso

    Comum Douto (BOURDIEU, 1989) no Brasil em fins do sculo XIX e incio do XX. No

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    difcil encontrar nos autores brasileiros do perodo a crena no Progresso, a ideia de leis da

    histria, a f na cincia, etc. AMORY (2009) indica que Euclides da Cunha fez a transio

    do Positivismo para o Evolucionismo pela rejeio do primeiro em favor do segundo em

    razo de que o Positivismo no encontrava adequao diante das novas ideias evolucionistas

    introduzidas por Darwin, Alfred Wallace e Spencer (AMORY, 2009, p. 19). Segundo este

    autor, Euclides da Cunha prosseguiu a vida intelectual carregando em si as duas escolas

    filosficas em formato de sntese, mantendo o rigor cientfico do Positivismo e as dedues

    conceituais do Evolucionismo Social.

    Na ltima dcada do sculo XIX, a intelectualidade brasileira sofreu uma

    mudana, passou do paradigma cientfico de Comte para Darwin e os

    evolucionistas ingleses, ou de uma reforma positivista da sociedade brasileira

    para a ideologia capitalista do darwinismo social. Euclides teve de fazer

    esquecer em certos locais a reputao de ser um positivista permanente, mas,

    como outros intelectuais brasileiros, procurava em Spencer outro credo social

    e cientfico que fosse mais consoante com as incipientes industrializao e

    urbanizao do Brasil do que com o velho positivismo de Comte (AMORY,

    2009, p. 78).

    No entanto, como se ver mais frente, Euclides da Cunha parece ter transcendido

    tambm o Evolucionismo, chegando a limites muito prximos do interacionismo

    (TOCANTINS, 1978), que ir ser defendido por Arajo Lima (1975). Apesar desse esforo

    pessoal de chegar sua prpria sntese, h evidncias documentais de que Euclides da Cunha

    no superou inteiramente o senso intelectual do seu tempo, mantendo ideias tanto positivistas,

    quanto evolucionistas em suas propostas de interveno da realidade, com certa prevalncia

    do evolucionismo.

    Antes de adentrar em maiores detalhes a respeito do Republicanismo brasileiro, cabe

    ressaltar que o termo Republicanismo aqui usado deve-se unicamente ao desejo de alguns

    brasileiros de derrubarem o imprio e seu regime centralizador. O regime monrquico

    brasileiro, dito Monarquia Constitucional era, de fato, um arremedo de Monarquia

    Constitucional, pois o Imperador controlava tudo, do comrcio Igreja, da vida civil

    poltica, apoiado por uma nica camada da populao, a aristocracia agrria que mandava em

    tudo (GOMES, 2013 p. 78). Esse centralismo gerava descontentamentos, mas somente isso.

    Nunca houve no Brasil uma Repblica, ousa dizer Florenzano (2004). Ou pelo menos uma

    Repblica nos moldes das atuais conceituaes, onde Republicanismo surge em separado das

    formas de governo. Os republicanos brasileiros no chegaram sofisticao de discutirem as

    questes profundas da liberdade, da representatividade, da participao individual e coletiva

    de modo a agregar o contingente populacional que vivia margem da prpria aristocracia de

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    onde provinham a maioria deles. Portanto, o termo Republicanismo aqui refere-se unicamente

    ao movimento positivista brasileiro que atentou contra a Monarquia e a derrubou mediante um

    golpe militar.

    Sga (2004) e Gomes (2013), lecionam que o Republicanismo brasileiro comea

    oficialmente em 1870 com o Manifesto Republicano e em 1873 naquilo que ficou conhecida

    como a Conveno de Itu, que foi a reunio de partidrios da repblica que fundaram o PRP

    Partido Republicado Paulista. Para ambos autores, desde o seu incio o movimento

    republicano prossegue com duas alas, uma inspirada no Republicanismo americano, que

    naqueles dias estava j comemorando os seus cem anos de fundao, e outra Positivista, como

    dissemos, de vis autoritrio, que pretendia uma Repblica Ditatoria


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