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VANDENBERGHE - O Real é Relacional

Date post: 05-Sep-2015
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real é relacional
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Reitor: Rena l do Tadeu Pena Vice-Reitora: Helo i sa Maria Murgel Starling EDITORA UFMG Diretor: \.'Vander Melo Miranda Vice-Diretora: Silvana C6ser CONSELHO EDITORIAL Wander Melo Miranda (presidente) Carlos Antonio Leite Brandao Juarez Rocha Guimaraes Mii rcio Gomes Soares Maria das Gr:v;:as Santa Barbara Mar ia Helena Damascene e Silva Megale Paulo Sergio Lacerda Beirao Silvana C6ser r. . J l 1 FREDERIC VANDENBERGHE TEOR IA SOCIAL R EALISTA UM DI A LOGO FRANCO-BRITANICO Belo Horizonte Editora UFMG 2010 Rio de J aneiro IUPERJ
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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

    Reitor: Rena ldo Tadeu Pena

    Vice-Reitora: Helo isa Maria Murgel Starling

    EDITORA UFMG

    Diretor: \.'Vander Melo Miranda

    Vice-Diretora: Silvana C6ser

    CONSELHO EDITORIAL

    Wander Melo Miranda (presidente)

    Carlos Antonio Leite Brandao

    Juarez Rocha Guimaraes

    Mii rcio Gomes Soares

    Maria das Gr:v;:as Santa Barbara

    Maria Helena Damascene e Silva Megale

    Paulo Sergio Lacerda Beirao Silvana C6ser r. .

    J l

    1

    FREDERIC VANDENBERGHE

    TEORIA SOCIAL REALISTA UM DIALOGO FRANCO-BRITANICO

    Belo Horizonte Editora UFMG

    2010

    Rio de J aneiro IUPERJ

  • !!:> 2010, f'red(;ric Vandenberghe

    2010, Editora UFMG

    Este Jivro ou parte dele nao podc scr reproduzido por qunlqucr meio scm nutoriut~iio cscrita do Editor.

    Vandenberghe, Fn! deric. V227t Teoria social rcalistn : l tm di~logo francobriti\nico I

    Frederic Vandenberghe. Belo Iiol"izontc : Eclitora UFMG ; Rio de Janeiro : IUPERJ, 2010. 365 p. : - (1-Iumanitas)

    Colctilnea de anigos do autor sobrc o assunto.

    lnclui bibl iograna. !SON: 978-85-7041 -809-8 (Ecl itora UFMG) ISBN: 978-8598272 21-4 (IUPEI\))

    1. Sociologi:t - Franp. 2. Sociologia - lnglatcrra I. T itulo. II. Scric.

    Elaborada pcla Oln"I - Sctor d e Trat:tmento dn lnformac;ito Oiblioteca Univcrsit:hia da Uf'MG

    DIRETORA DA COLEc;:AO: He loi s:~ Maria Mu.-gel Starling

    ASSISTENCIA EDITORIAL: El ianc Sous:~ e Eucliclia Macedo EDITORAc;:AO DE Tf:.XTOS: Maria do Cnrmo Leite Ribeio

    REVISAO E NORMALIZAc;:i\0: 1\lexandre Vasconcelos de Mclo

    COD: 301.944 CDU: 316(41)

    REVISAO DE PROVAS: Ueatriz Trindade, Cl~udia Campos, Danivia Wolff e Heloisa Silva

    PROJETO GRAFICO: Gloria Campos - Mangd

    FORMATAc;:i\o E CAPA: Thiago Campos a partir cia foto "Autumn scene",

    de Dusan Gavenda

    PRODUc;:A.o GRAFICA: Warren Marilac

    EDITORA UFMG Av. Antonio Carlos, 6.627 - Aln

  • que sugeriu o titulo "Teoria social realista", e Marcus Figueiredo, o diretor de divulga~ao cientffica (bern como AI Heimer, seu assistente), tamb~m merecem uma mencao especial. Quero agra-deccr, a lem disso, a Claudia Boccia pela edi~ao do manuscrito e a Felipe Dutra pela organiza~ao da bibliografia. Sou gra.to a jesse Souza, a quem considero urn dos melhores soci6logos da minha gera~ao, por escrever a "orelha" deste livro. Por fim, fui mais do que af01tunado com os tradutores. Enquanto Estela Abreu e Ana Liesi Thurler traduziram do frances com dedica~ao, diligencia e competencia, meu amigo Gabriel Peter$, que e tambem meu assistente de pesquisa, traduziu do ingles'e revisou o Jivro inteiro com um senso notavel de perfei(:ao. Este livro e, liLeralmenLe, nosso livro, embora eu assuma total responsabilidade pelo seu conteudo.

    Tradu~iio de Gabn"e/ Peters

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    CAPITULO

    I

    110 REAL E RELACIONAL11

    UMA ANALISE EPISTEMOLOGICA DO ESTRUTURALISMO GERATIVO DE PIERRE BOURDIEU

    Por meio de conceitos e simbolos, buscamos fazer com que uma ordem temporal de palavras corresponda a uma ordem

    relacional de coisas.

    S. Langer. Philosophy in a new key.

    "Entidades do mundo-relacionai-vos!" (Emirbayer, 1997: 312). Esse poderia ser o lema de uma sociologia relacional. 1 Bourdieu optou por urn outro, que contem uma ironica referencia a Hegel, ao inves de Marx. Em Meditafoes pasca#anas, uma medita~ao sociol6gica sobre as filosofias do nosso tempo (de Searle a Habermas e Rawls), Bourdieu descreveu a si mesmo como urn pascaiien (Bourdieu , 1997a: 9). No entanto, acredito que, na meclida em que seu "estruturalismo gerativo"2 (Harker; Mahar; Wilkes, 1991: 3) pode ser mais bern compreendido como uma tentativa de transpor sistematicamente a concep(:ao relacional das ciencias naturais "para o terrene das ciencias sociais - uma tentativa que toma a forma de uma sintese original entre a sociologia (Weber; Marx; Durkheim; Mauss [Brubaker, 1985: 747-749), mas tambem Elias, Mannheim e Goffman), a fenome-nologia (Husserl, Heidegger, Mei"leau-Ponty), a filosofia linguistica (Wittgenstein e Austin) e, por ultimo, mas nao menos-irnportante, a epistemologia racionalista neokantiana (Bachelard e Cassire r,

  • mas Lambem Panofsky e Levi-Strauss) -. poderfamos tambcm, e talvez de modo ainda mais adequaclo, clescreve-lo como um bacbelardien.3 Ainda que a influencia de Gaston Bachela rcl sobre Bourclieu tenha frequentemen te escapade a aten~ao dos academicos anglo-americanos, os quais nao estao bem informados a respeito cia tracli9ao frnncesa de hist6ria e ftlosofia cia ciencia, podendo tc r encontrado os nomes de l3achclarcl, Koyre, Canguilhem ou Cavailh~s apenas incliretamente, atraves de seu inte resse em AJthusser, Foucault ou Kuhn - cujo famoso livro A estrutura das reuolufoes cientificas (Kuhn, 1970) foi direta-mente influenciado por Bachelarcl -. pretendo voltar aos anos formativos do soci6logo frances (final dos anos 1960 e infcio dos 1970, quando suas ideias seminais estavam em gesta~ao) para mostrar que a sua tcoria social pode ser mais bcm entendicla como uma tentmiva de transpor, de modo sistematico, o "racionalismo aplicaclo" de Bachelard do reino das ciencias naturais para o domlnio das c iencias humanas.4

    Entretanto, o foco sobre Bachelard nao dcve obscurecer o quanta Bourdieu deve as analises protoestruturalistas do prindpio relacional nas ciencias modernas (da matematica a ffs ica e a lingulstica) rcalizadas por Ernst Cassirer.5 De fato, o "nucleo duro" (Lakatos) melacientlfico e nao fa lseavel do programa progressive de pesqu isa de Bourdieu e formado por uma sofisticada sfntese entre o racionalismo de Bachelard c o rclacionismo de Cassire r. Juntas, tais perspectivas formam a metateoria do conhecimento sociol6gico que fundamenta e gera a teoria sociol6gica dos campos de produ9ao, circula9ao e consume de bens culturais. Essa metateoria estruturalista do co nhecimento e naturalista, mas nao positivista. Assim como representantes contemporaneos do realismo crltico (Harre, Bhaskar, Arche r e tc.), Bourdieu aclvoga uma i nterpreta~ao nao positivista da epistemologia das ciencias naturais, reformula nclo-a sistematicamente de modo tal que uma cie ncia social naturalista se torne p osslve l.6 Apesa r de seus ataques nominais a filosofias realistas (empiricistas) e substan-cia listas (nao relaciona is) cia c iencia, as quais nao levam a cabo a ruptura epistemol6gica com as concep~oes espontaneas cia realiclade,7 gostaria de mostrar que sua metaciencia sociol6gica representa uma versao racionalista do realismo crftico.

    Ainda que eu seja, de modo geral, simpatico a abordagem de Bourdie u, gostaria de formu la r uma crftica positiva do

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    racionalismo e tentar argumentar a favor da necessidade de uma conve rsao filos6fica do racionalismo para o realismo na apropria9ao da obra desse autor. Uma vez que a base filos6fica esteja esclarecida, passare i a uma reconstru~ao sistematica cia conccp~ao relacional que forma o nuclco do estruturalismo gerativo, de modo a investigar em maio r de talhe corno, na trilha de Bachelard, Bourdieu cliz adieu a relates empiricistas da ciencia e conquista, constr6i e verifica os fatos cientlficos. Nesse contexte, tambem exporei o famoso conceito de habitus -: o qual, ao atualizar as estruturas, relaciona os campos 1'\s a9oes e estabelece a media~ao entre ambos _ como uma tentativa bache-lardiana de transcender antinomias filos6ficas, tentando conferir a este conceito luna inflexao voluntarista mais alinhada a inten9ao politica e moral que anima a teoria critica bourdieusiana. Partindo desta analise metate6rica da teoria do conhecimento sociol6gico. ana lisa re i em seguida a teo ria geral dos campos de Bourdieu como uma aplica~ao do modo relacional de pensamento, apresentando um relato altamente formalizado dos prindpios e proprieclades gerais dos campos e subcampos. Para ilustrar como a sua teoria clos campos representa uma aplica~ao sociol6gica cia conjun~ao entre as metateorias racionalista e relacionista das ciencias naturais de Bachela rd e Cassirer respectivame nte, reconstruire i os primeiros estuclos dos campos re ligiose e cientifico realizados por Bourdie u, examinanclo suas ressonancias weberianas e mannheimianas. Finalmente, concluirei com uma avalia~ao gernl do programa de pesquisa do Centro de Sociologia Europeia e uma questao final sobre etica .

    A POSSIBILIDADE DO NATURALISMO

    Em que medicla a socieclade pocle ser estudada cia mesma forma que a natureza? Sem exagero, e possfvel afi rmar que a questao acerca cia possibiliclade do naturalismo nas ciencias sociais constitui o problema central da filosofia das cicncias sociais (Bhaskar, 1989). Oesde a dupla funda9ao da sociologia por Auguste Comte e Whilhelm Dilthey, a hist6ria deste assunto te m sido polarizada em torno de uma disputa entre duas tracli96es, geranclo respostas rivais ao e nigma. Uma tradi~o naturalista, cujos antecedentes filos6ficos imediatos estao nos trabalhos de Hume,

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  • Comle, Mill, Mach e do Clrculo de Viena, defende que as ciencias estao (efetiva ou idealmente) unificadas na sua concordancia com os prindpios positivistas, baseados, em ultima instancia, na no~ao humiana de lei como a sucessao regular de clois. eventos observaveis. Em oposi~ao ao positivismo, uma tracli~ao antinatu-ralista, que encontra sua ancestraliclacle filos6fica em Vico, Kant, Hege_l, Dilthey, Husser! e Wittgenstein, postulou uma clivagem de metoda entre as ciencias naturais e sociais, funclacla em uma diferencia~ao de seus objetos. Para esta tradi~ao hermeneutica, o dominic de investiga~ao das ciencias socials consistc essencial-mente em objetos significativos, senclo seu objetivo a elucida~ao do significado de tais objetos. 0 grande erro que une esses clois amagonistas e, como afirma Bourclieu, sua "falsa representa~ao cia episremologia das ciencias naturais" (Bourdieu; Chamboderon; Passeron, 1973: 18), i.e., a aceita~ao de um retrato essencialmente positivista das ciencias cia natureza, ou, pelo menos, de uma onto-logia empiricista. De fato, clesenvolvimentos recentcs na filosofia da ciencia, em parricular aqueles exemplificaclos no trabalho de Rom Harre (1970), os quais Roy Bhaskar (1978) sistematizou sob o titulo de "realismo transcendental", demonstraram convincen-temente que a ciencia efetivamente praticada pelos cientistas e reflexivamente reconstrufda pela epistemologia nao e conforme o dinone positivista.8

    As ciencias nao pretenclem chegar a leis universais por meio cia generaliza~ao indutiva cia sucessao regular de fenomenos observaveis, mas antes inteligir o que esta "por tras" ou "alem" clos fenomenos revelaclos pela experiencia sensorial, de modo a oferecer-nos conhecimentos das "estrururas numenicas" (Bachelard) ou "mecanismos gerativos" (Harre) que, de algum modo, necessitam esses fenomenos. Nessa perspectiva anti-humiana, as leis nao mais se referem a conjun~ao regular de eventos, mas sao analisadas em tcrmos disposicionais, i.e., como poderes causais ou, mais precisamente, tenclencias causais de mecanismos gerativos subjacentes. As tendencias combinadas dessas estruturas "profundas" e mecanismos transfactuais podem gera r eventos passfveis de observa~ao, mas os eventos podem ocorrer indepe ndentemente de haver ou nao alguem para observa-los, sendo que as tenclencias das estruturas numenicas permanecem as mesmas mesmo quando se contrapoem umas as outras de modo tal a nao produzirem qualquer mudan~a

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    observ{tvel na realidade. No Iugar da ontologia da experiencia e de eventos atomfsticos constamemente conjugados, o realismo tnmscendental estabelece, assim, uma ontologia de poderes e mecanismos causais nao observaveis. De modo semelhante, no Iugar de uma analise de leis como conjun~oes constantes de eventos, esta perspectiva analisa leis em te rmos das tendencias dos mecanismos subjacentes que geram os e ventos, os quais podem otl nao ser percebidos. "Tendencias podem ser possufdas, mas nao exercidas; exercidas, m4s nao realizadas; realizadas, mas nao percebidas (ou detectadas) pelos homens"9 (Bhaskar, 1978: 184).

    De modo a combater o retrato humiano das cH!ncias e superar sua fixa~ao empiricista na percep~ao e nos dados sensoriais, Bhaskar (1978: 56-62) propoe a substitui~ao d:.t "ontologia plana" clos empiricistas por uma visao mais estratiflcacla d~ realidade , capaz de distinguir e ntre os clomfnios sobrepostos do real, do atual e do empfrico. Se o domfnio do real e composto de mecanismos e estruturas gerativas transfactuais que normal-mente escapam a observa~ao direta, os domfnios do atual e do empfrico abarcam, respectivamente, padroes de eventos que sao gerados por esses mecanismos e estruturas e as experiencias an-aves das quais aqueles padroes sao apreendidos. Dado que o dominio do real nao pode ser reduzido ao dominic do empfrico, o bispo Berkeley e os realistas empiricos estao simplesmente enados: ser nao e ser percebido. 0 faro de que a realidade existe indepenclentemente das observa~oes e descri~oes que possufmos acerca deJa nao significa, e ntretanto, que possamos conhecer a realiclade inclepenclenremente de tais observa~oes e (re)descri~oes. A realidade s6 pode ser conhecida g1-a~as a inter-ven~ao de categorias, teorias e quadros conceituais, mas -pace Kuhn, Foucault e Rorty - eles nao determinam a estrutura do mundo. Obsetva~oes sao sempre sobredeterminadas pela teoria, e as teorias sao sempre subdeterminadas pelas observa~oes, mas, se quisermos evitar a "falacia epistemica" (Bhaskar, 1978: 36-38) que consiste na redu~ao de questoes omol6gicas a questoes epistemol6gicas, temos de distinguir categoricamente entre os "objetos transitivos" e os "obfetos intransitivos cia ciencia" (Bhaskar, 1978: 17): entre nossas categorias, teorias e quadros conceituais, de um !ado, e as entidades, mecanismos, estruturas e reht~oes reais que compoem o mundo natural e social, de ourro.

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  • Sem esta clistin~ao entre o nivel epistemico (ou transitive) e o nlvel 6ntico (ou intransitive) do conhecimento, nos arriscamos a projetar nosso conhecimento s6cio-historicamcnte cleterminado clos objctos nos pr6prios objetos do conhecimento, substitu inclo estes por aquele e tomando o objeto projetaclo pela coisa em si, com o resultado de que o mundo torna-se literalmente (a reifi-cat;ao cia) mjnha vontade e representat;ao. 10

    Uma vez superaclo o retrato essencialmente positivista das ciencias naturais, companilhado tanto pelos defensores positi-v istas do naturalismo quanto pelos seus crfticos hermeneutas, a questao concernente a possibilidacle do naturalismo nas ciencias sociais pode ser levantada de modo refrescantcmente novo. Agora que o positiv ismo foi recusaclo e refutado, as contribuit;oes das tradic;:oes hermeneuticas e fenomenol6gicas poclem ser apropriadas e, assim, pode ser explorada a possibilidade de uma tcrceira posic;:ao ou (com as clevidas clesculpas a Giddens) uma "terceira via", nomcadamente, aquela de urn naturalismo nao positivista qualificado, fenomcnologicamente informado e hem1eneuticamenre sensfvel. 11 Como outros soci6logos e fil6sofos franceses cia sua gera

  • quanto o emptnCISrno ingenuo das caracteriza~oes positJVIstas das ciencias. A epistemologia de Bachelard e sintetica, ou, como ele mesmo diz, "dialetica" e "discursiva". E dialetica, nao porque proceda de modo hegeliano em clire~o a uma totalidade. fechada que abarque tudo, mas porque o movimemo do pensamemo e visto . como urn infindavel "movimento de englobamento" (mouvement d'enveloppement; Bachelard, 1988: 137), no qual as limila~oes de um quadro conceitual particular sao descobertas, superadas e integradas em urn qua9ro rnais amplo que inclui o aspecto previameme exclufdo.

    Na mesma vda dialetica, Bachelard busca mostrar que a 16gica pratica do cientista imerso em seu trabalho transcende naturalmente as oposi\;oes filos6ficas entre o racionalismo iclealista e o realismo enlpiricista. 13 Cientistas praticantes nao sao incornoclaclos por disputas e antinomias filos6ficas. Espon-tanea e ecleticarnente, eles combinam a imagina~ao construtiva dos iclealistas (racionalismo) com a experiencia instrufda dos empiricistas (realismo), as quais os fil6sofos tendem a separar, declaranclo-as incompatfveis. Assim, a filosofia sintetica com base na qual eles agem, e que combina a teoria abstrata (racionalismo) e a pesquisa concreta (empiricismo), e aquela que Bachelard denomina "racionalismo aplicado" (Bachelard, 1986) ou "materialismo racional" (Bachelard, 1990). Eles nao coletarn fatos simplesmente, mas constroem elaborados modelos te6ricos abstratos de estruturas numenicas que necessitam os fatos feno-menicos, montando experimentos que "realizam" tecnicamente e tornam concretamente manifesto o fenomeno que a teoria aponta hipoteticamente como urn efeito possfvel das estruturas numenicas. Portanto, instrufclo pela teoria abstrata e aplicanclo a "fenomenotecnica", o cientista cria ou "realiza" tecnicamente o fenomeno. De modo a acentuar a ruptura com o realismo ingenuo dos empiricistas, entretanto, e essencial clestacar que Bachelard nao deixa cluvicla quanto a "dire~ao do vetor episte-mol6gico", que vai do "racional ao real" e "nao do real ao geral" (Bachelard, 1991: 8), como tem siclo professado portodos os fll6sofos desde Arist6teles ate Bacon. A primazia e clara mente concedida a reflexao te6rica e a constru~ao do objeto te6rico, nao a "percep-\;UO imaculada" (Nietzsche) dos empiricistas. Sendo a "realiza~ao" cia teoria (Bachelard, 1991: 98), o real e, assim, para todos os efeitos, racionalizado. Paradoxalmente, e para tornar o contato

    so

    com a realidade mais preciso e peneu-ame que a ciencia e for~ada a realizar, como Gilles-Gaston G1-anger diz de modo tao belo, "urn clesvio pelo rei no da abstra~ao" (Granger, citado por Hamel, 1997: 16). Na medicla em que os fatos nao sao imediatamente dados, mas consistem, propriamente falanclo, no resultaclo mediado cia realiza~ao tecnica cia reoria, o realismo de Bachelarcl pode ser caracterizaclo como urn "rcalismo de segunda posi~ao, um realismo que reage contra a realidade usual, urn realismo fe ito de razao realizada e experimentada" (Bachelard, 1991: 9).

    Se este realismo de segunda posi~ao fo r comparado com o realismo transcendental de Bhaskar (pam uma comparn~ao, ver Bhaskar, 1989: 41-48), podemos ver claramente quP. ambos rejeitam e reagem cont1

  • de que o scr pode ser analisado em termos do conhecimento do ser, de que e suficiente para a filosofia "tratar apenas da rede e nao do que a rede clescre ve" (Wittgenstein, 1961: 6.35), resu lta na d issoluc;ao de um munclo indepenclente cia cicncia .- como pode ser visto, por exemplo, no problematico enunciado de Kuhn segundo o qual "quando os paradigmas mudam, o pr6prio munclo mucla com eles" (Kuhn, 1970: 111).

    Nao obstante o pesado investime nto de Bourclieu na pesquisa empfrica e o fato de que objetos sociais nao cxistem inclependen-temente clas ciencias sociais, poclenclo aincla ser causalmente afetaclos por elas, penso que ele comete a mesma falacia epistemica. Como seus predecessores estruturalistas (Levi-Strauss, Althusser e Foucau lt), entretanto, e le tende a se situar ambiguamente entre uma interpreta~ao realista e uma interpreta~ao convencionalista cia ciencia.> Ainda que Bourdieu sugira algumas vezes que as re presentat;oes cientificas cia realiclade tenham seu fundamen-tum in re, a dire~ao principal de seus argumentos epistemol6-gicos aponta para a aclo~ao de uma posi~ao mais racionalista, na qual as representac;oes cientlficas nao est.ao tanto fundadas na realidacle, mas a "realidade" e que esta fundada nelas (como indicado pelo fato de que palavras como "real", "realidade" e "realiza~ao" sao sempre colocadas entre aspas). Neste ponte, gostaria de notar que minha crltica ao racionalismo de Bourd ieu nao pretende ser uma acusac;~to final a sua metaciencia, mas um convite para a retomada do "movimento de englobamento" clialetico do pensamento na dire~ao do realismo critico. Em outras palavras, gostaria que Bourdieu tivesse abanclonaclo seu ceticismo a respe ito cia existencia de um mundo indepencle nre de teoria e aceitado a icle ia de que o mundo, o qual de fato s6 pode ser conheciclo atraves de difcre mes (re)descric;oes, existe, na vercladc, indepenclenteme nte de tais (re)descric;oes; ou, melhor ainda, que estas (re)descric;oes alternativas do munclo oferecem retratos alternatives do mesmo mundo. Esse convite e mais do que u ma escaramuc;a filos6fica. Dado que a pressuposi~ao realista segundo a qual as (re)descric;oes da realidade refere m--se ao mesmo munclo e uma preconclic;ao necessa ria para a compa rac;ao racional e ntre teorias e, assim, para uma escolha racional de teoria, a ideia de desenvolvimento cientffico depende eventualmente (a Iongo prazo) cia superac;ao do racionalismo cientlfico. Em uma fonnu lac;:ao algo paradoxal, poderfamos

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    dizer que a racionalidade cia ciencia pressupoe o abanclono do "su rracio nalismo" cientifico (Bachelard, 1988: 28).

    Em 0 estruturalismo e a teoria do conhecimento sociol6gico, Bourdieu clesenvolve uma teoria estruturalista do social na qual a realidade empirica e concebicla como urn reflexo anal6gico das rclac;oes entre elementos que formam, segundo postula o modele te6rico, uma estrutura hipotetica, porem invisfvel. "A teoria, como um sistema de signos o rganizados de modo a re presentar, auaves clas suas pr6prias relac;oes, as relat;oes e ntre os objetos, e uma tracluc;ao, ou mclhor, um sfmbolo articulado aquilo que e lc simboliza por meio de uma le i de analogia" (Bourclieu, 1968: 689). Assim, na medida e m que as rela~oes reais entre os e lementos sao, de certo modo, recluzidas a un~ reflexo ai1al6gico cbs relac;oes te6ricas estabelecidas entre os elementos da estrutura te6rica, a ontologia do mundo e, de fato, derivada de uma epistemologia estrutural do munclo. Entretanto, como e le esta ciente do risco cia ontologizac;ao de proposic;oes epistemol6gicas, Bourclieu muda de dire~ao no (dtimo memento e recorre a estrategia kantiana de imunizac;ao pelo recurso ao ficciona lismo analrtico: "Todas as proposi~oes do cliscurso sociol6gico deveriam ser precedidas por urn signo que poderia ser lido como 'tudo se passa como se ... "' (Bourdieu, 1972: 173; Bourdieu , 1980: 49).16 Como resultaclo deste estratagema convencionalista, as proposic;:oes socio l6gicas nao sao mais ticlas como capazes de apreender o mundo tal como e le e, mas ceticamente reduzidas ao status de (re)descric;oes da "realiclacle" que nao pocleriam ser nunca mais do que artiffcios heurfsticos desenvolvidos para representar ou "salvar" analogi-camente os fenomenos.

    Grac;:as a esta vigilfmcia e pistemol6gica, Bourd ie u evita o risco da reificac;:ao cia teoria, mas apenas ao prec;o da covardia onto16gica, se eu pucler ousar me expressar nesses termos. 0 movimento reificador do modele cia realidacle para a realidade do mocle lo e efetivamente evitado, mas, como resultado clesta inflexao convencionalista, a relac;:ao referendal entre o modele e a realidade torna-se o nto logicamente obscura. Quando o movimento referencial do modelo cia realidacle para a realidade do mode le, ou do significance para o significado, e rejeitaclo a priori e denunciaclo como urn movimento re ificaclor que vai cia hip6tese a hip6stase, nao c mais possfvel testar racionalmente as pretensoes ontol6gicas do mode le. Em nome de urn medo

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  • "ontof6bico" cia "fa lacia cia falsa concretude" (White head, 1930: 65), nao e mais pennitida a investiga~ao das possibili-dades de que o modelo efctivamente refira-se a realidade e a capture ou , ao contn1rio, apenas !eve a sua reifica~a9. Nesse sentido, uma interpreta~o realista coloca em jogo do que uma convenciona lista, pois, se o cientista possui o conceito de um re ino ontol6gico d istimo das suas reivindica~oes correntes de conhecimento, sua pesquisa pode efetivamente mosrrar que sua hip6tese sobre a coisa real era, na r~alidade, apenas uma hip6s-tase real cia coisa . 0 pragmatismo epistemol6gico, por ourro lado, evita o risco da reifica~ao, mas apenas ao pre~o do re larivismo e pisremico, po is, se a conexao entre os nfveis ontol6gico e e pistemol6gico e elastica, i.e., se utilizamos modelos anal6gicos cia realiclacle sem produzir afirma~oes acerca da realidade, chegamos, do ponto de vista 16gico, a uma situacio anarco-daclafsra em que "vale tudo" (Feyerabend, 1978: 28, 186, 296). Com Bhaskar, penso que uma teoria tern de ser ontologicamente ousada, ma is do que e pistemologicameme cautelosa (Outhwaite, 1987: 19-44).17

    Ao inves de fazermos afirma~oes convencionalistas a respe iro de necessiclades conceituais ou clas caracterfsticas que precisamos necessa riamente atribuir as coisas, clevemos utilizar defini~oes rea is das coisas e tenta r captar sua estrutura real. Ace itamos o faro (quiniano) de que a realidade s6 pode ser conhecida au-aves de diferentes descri~oes, mas, na ausencia de uma teoria cia cones-pondencia entre o modelo e a realidade, nao podemos averiguar o que a realidade e e rerminamos na absurda situa~ao em que existem ramos mundos quantas sejam as clescri~oes sob as quais a realidaclc pode ser conhecida. Com o realismo crftico, podemos conclui r, assim, que e apenas se possuirmos o conceito de um re ino onrol6gico distinro de nossas reivinclica~oes correnres de conhecimento que poderemos pensar na possibilidade cia crltica racio nal de nossas afirma\=Oes.

    REMOVENDO OBSTACULOS EPISTEMOL6GICOS

    Re tornando das grandiosas alturas da crftica fi los6fica, podemos proceder a uma analise cia transposi~ao da episte-mologia bache lardiana para o reino do social realizada por Bourclieu. Como Bachelard, Bourdieu recomenda a "vigilancia epistemol6gica". A ciencia precede apenas por meio de e nos, cia corre\=ao de enos. 0 primeiro erro e o erro empiricista do

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    realista ingenue que toma os fatos como dados e nao como um resultado, como algo a ser conquistado e sistematicamente construfdo. Com Bachelard, Bourdieu afirma, em suas "pre li-tninares epistemol6gicas" a sociologia, que 0 "fato cientifico e conquistado, construldo (e) verificado" (conquis, construit, constat(}, Bourdieu; Chamboderon; Passeron, 1973: 24, 81). Consequentementc, a hierarquia epistemol6gica dos atos cien-tificos suborclina a verifica~ao do faro a sua constru~ao e sua constn.1~ao a ruptura com as concep~oes espontaneas do social.

    0 "primeiro obstaculo epistemol6gico" (Bachelard,1993: 23-54) a ser supe rado, caso a sociologia pretenda ser uma

    . ciencia rigorosa, e a adesao_ espontanea do soci6logo a "experiencia d6xica" imediata do senso corilum e as explica\=oes senso-comunais (comon-sensica l explanations) do social avan-~adas por teorias sociol6gicas traclicionais. 18 Na medida em que a obje tividadc cie ntlfica s6 e posslvel se rompennos com 0 objeto imediato, 0 primeiro impe rative da sociologia e a "ruptut-a epistemol6gica" (Bachelard, 1986: 104) e ntre a concepr;ao de senso comum (doxa) e a concep~ao cientifica (episteme) do social.19 A partir desra perspecriva, o "postulado de adequa~ao" de Schutz, que estipula que conceitos cientificos (de segunda ordem) devem sempre permanecer entrela~ados aos conceitos do senso comum (de prime it-a ordem) e ser traduzlveis para estes (Schutz, 1974: 289, 324 et seq.; Schutz, 1962: 44), deve ser categoricamente rejeitaclo.20 Na opiniao de Bourdieu, uma ciencia s6 pode ser cienrifica se aplica, do inicio ao fun, o prindpio determinista da "razao suficiente". Transposto para o dominic da sociologia, o prindpio do determinismo toma a forma do "prindpio da nao cons_ciencia" durkheimiano (Bourdie u; Chamboderon; Passeron, 1973: 31): a vida social tern de ser explicada nao pelas concepr;oes clos seus parricipanres, mas por causas estruturais que escapam ~~ sua consciencia, explicando e necessitando os fenomenos observados. Toda vez que nos referimos a explica~oes psicol6-gicas ou inte racionistas de fatos sociais, poclemos estar certos de que invertemos as causas e os e feitos. Bourdieu nao deixa duvidas a respeito clisso: "E a estrutura das rela~oes que constituem o espar;o do campo o que coma~da a forma assumicla pelas rela~oes vislve is de interar;ao" (Bou rclieu, 1982a: 42)_21

    Os fatos sociais s6 podem, portanto, ser explicados por fatos sociais (Durkheim, 1977: 109), deveoclo estes ser sistematicamente

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  • construfdos contra o sense comum, bem como objetivados em um sistema de relac;;oes de modo ta l que as relac;;oes estrutura is objetivas entre os elementos fenomenicos necessitem e expliquem o comportamento dos elementos cia rela9ao construlcla entre os elementos.22 A analise estatistica das rela~oes numericas entre os elem_entos e (Jtil na medida em que permite ao soci6logo romper com as redes ilus6rias de relar;.:oes que sao espontane-amente teciclas na vida cotidiana, mas estas rela~oes numericas sao apenas um primeiro passe e rem de ser inseridas em uma rede relacional de ordem mais elevada, capaz de garantir uma explicac;;ao racional das relac;;oes estatfsticas observaclas.23 A rcsistencia que a c iencia socio l6gica gera quando priva a experiencia imecliata de seu privilegio gnosiol6gico e inspirada por uma filosofia humanista da a.\o social, que toma o sujeito como referenda ontol6gica ultima sem notar que o sistema objetivo, embora invislvel, de relac;;oes entre os indivfcluos tern "mais realidade" do que os sujeitos que ele articula. Ou, dizenclo o mesmo na linguagem escolastica tao cara a Bourdieu: nao sao os indivlduos visfveis, mas e o espac;;o invisfvel de relac;;oes entre i ndivlduos o ens realissim.um (Bourdieu, 1994: 53). No entanto, este sistema real de rela~oes, embora invisfvel, nao flutua simplesmente no ar clas ideias platonicas. Ele nao cxiste em si mesmo, mas, similarmente aos "habitantes" do "mundo 3" de Popper Co "mundo dos sistemas te6ricos"), s6 se manifesta empiricamente no mundo real ("mundo 1", o mundo clos eventos observaveis, cujas regulariclacles objetivas sao sistemati-camente capruradas por dados estatlsticos) grac;;as a intervenc;;ao do babitus, que pertence ao "mundo 2" ("o mundo dos estados de consciencia, ou dos estados menta is, ou talvez de disposi~oes comportamentais"), mas estabelece a mediac;;ao entre o mundo 3 e o munclo 1, "realizando" assim o sistema te6rico das relay6es construfdas (ver Popper, 1979: 106-90).

    A PRIMAZIA DAS RELA

  • conceito nao mais descarta desdenhosameme os particulares que especificam os conteudos que ele subsume, mas, ao contdirio, busca clescobrir a necessiclacle da manifesta~ao c a conexao dos pr6prios particulares. 0 que o conceito propoe, assin~. e uma regra universal que nos permite compor e combinar o elememo particular em pessoa" (Cassirer, 1994: 25) .27

    Por exemplo, para tomannos uma ilustra~ao do campo da geometria: inicianclo por uma f6rmula matematica geral, podemos formar as figu ras geometricas particulares do d rculo, cia e lipse e assim po r cliante, apenas moclificanclo os parametres qu e constituem a figura, de tal maneira que ela descreva e atravesse uma serie continua de valores. Tomanclo um exemplo mais sociol6gico, consistentemente desenvolviclo em A distinfiio (a obra-prima de Bourdieu que ja e um ch1ssico cia sociologia (Bou rdieu, 1979al): come~ando porum volume e uma estrutura particulares de capital, podemos variar os pa rametres e proceder conti nuamente cia regiao mais e levacla do espa~o construfdo de posi~oes sociais, constitufda pela fra~ao dominante da classe dominante (a burguesia industrial), p assando pela regiao inter-mediaria, constituida pela fra~ao dominacla cia classe dominante (profissionais liberais e academicos) e pela fra~ao dominante cia classe dominada (os come rciantes e artesaos), ate a regiao mais baixa , constitufcla pela fra~ao clominacla cia classe clominacla (camponeses, trabalhadores manuais nao qualificados e excluf-clos28). Como resultado da aplica~ao do modo de pensamento re lacional, "os conceitos cientificos nao mais aparecem como imita~oes de existencias coisificaclas, mas como sfmbolos repre-semanclo orclens e articula~oes funcionais presentes na realiclacle" (Cassire r, 1971: 3). Na medida em que a realidade dos objetos se dissolve u em um muncie de re lac;oes racionais, poclemos de fate clizer, com Bachelarcl e Hegel, que "o real e racional" (Hegel, 1971: 24), bern como, com Cassire r e Bourclieu, que "o real e relacional" (Bourdieu, 1987b: 3; Bourclieu; Wacquant, 1992: 72, 203; Bourclieu, 1994: 17).

    RELACIONISMO APLICADO

    Embora o objeto pare~ preceder o ponto de vista, Bourclieu compartilha cia pressuposi~ao construtivista de Saussure, segundo a qual, na verclade, e "o ponto de vista (que) cria o

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    objeto" (Saussure, 1985: 23). A clelimita~o do campo e, po11anto, analftica.29 Grac;as a constru~ao metodol6gica de urn sistema fechado, aut6nomo c auto rreferencial de rel:lc;oes internas e ntre conceitos, um mocle lo coerente cia realidade pode ser criado c tomaclo comq estruturalmente hom61ogo a mesma. Como vimos acima, entretanto, Bourdieu nao deseja avan~ar urn argumento ontol6gico sobre a realiclade; afirmando que "fun~oes sociais sao ficc;oes" (Bourdieu 1982a: 49), ele recorre em ultima instancia ao gesto convencionalista do "como se". Para construir o sistema de re lac;oes e ntrelac;aclas, cluas coisas sao importances: em primeiro Iugar, o sistema te rn de ser complete, 1'. e., tocla a popula~ao de e lementos re levances tern de ser levada em considera~ao; em segundo, os elementos tern de estar ligadosuns aos outros por meio de relac;oes internas, ou seja, de tal modo que nao possam ser definidos independentemente uns dos outros, portanto de maneiJa que estejam mC1tua e conceitualmente implicados uns nos outros. A escala musical e as melodias oferecem bons exemplos de sistemas paradigm~ticos e sintagmaticos de relac;oes internas, ou, para falar como Saussure, de diferen~as arbitrarias, porem intcrnamente relacionadas: as notas formam um sistema para-digm{ttico complete, o valor de cacla uma sendo rigorosamente cletenninaclo pela posi~ao de todas as outras; a meloclia, por sua vez, que reordena sintagmaticamenre as notas, nao e nada senao a realiza~ao contingente de uma serie inte rnamente re lacionada de possibilidades musicais. Outra boa ilustra~ao e a descri~ao do ciclo econ6mico por Marx (Marx, 1973: 81-11): proclu~ao, consumo, distlibui~dO e troca de bens econ6micos estao mutua-mente implicados em um silogismo dialetico. Como "membros cia tot~liclade", representam apenas "distin

  • quanto ao faco de que a ciencia scmpre almeja o conhecimento do oculto (l3achelard, 1986: 38; Bourdieu, 1996: 16). De modo a descobrir o que est.a encoberto, a ciencia tem de construir "modelos anal6gicos" do mundo social, ou, dito talvez. de uma melhor forma, do espa\=O social, modelos que "recuperem os prindpios ocultos subjacentes as realiclades que eles interpretam" (Bourdieu; Chamboredon; Passeron, 1973: 76). A constru~ao de um modele icleal-tfpico do espac;o de re lac;oes estruturais entre as rela\=oes fenomenicas permite _que tratemos as cliferentes fo rmas sociais como varias realizacoes distintas da mesma funcao (simb6lica). Nessa perspectiva, "oreal" aparece, como diz Bachelard e gosta de repetir Bourclieu, como "um caso particular do possfvel" (Bachelard, 1991: 62), o que pressupoe, e clare, que o caso particular seja relacionaclo as propriedacles mais gerais clns quais e le e uma fun\=ao. Assim, para tomar um exemplo do campo academico, quando sabemos a posic;ao exata de urn "indi-vfduo epistemico" (Bourdieu, 1984a: 36), definida pela totalidacle das propriedades re lcvantes - como trajet6ria, volume e estru-tura dos cliferentes tipos de capital (economico, cultural, social, simb6Uco etc.), -que podem ser atribufdas a eta e que sao tomadas como eficazes na explica\=ao cia varia\=ao das posic;oes no campo, nao importa realmente se consideramos diferentes "individuos empiricos" como Levi-Strauss, Braude! ou Foucault, pois, do ponto de vista do analista que considera-os como "realizac;oes do possfvel" (ou "personificac;oes" de estruturas, como diria Marx), eles apenas representam "casos similares do posslvel", sendo, como tais, quase indistingufveis. Uma vez que as propriedades invariantes (illusio, interesses, !uta pelo monop61io cia autoriclade, volume e estrutura do capital, oposic;ao entre fra\=oes dominantes e dorninaclas das cliferentes classes, estmtegias de conservac;ao e subversao etc.) de um dado campo de praticas sejam conheci-das, e uma vez que os prindpios gerativos e unificadores de um sistema de relac;oes estejam codificados e formalizados no modele te6rico, tal modele pode ser transposto para, e comparado com, outros campos de praticas, visando-se a descobetta de homologias estruturais e fu ncionais.

    Esta transposic;ao de moclelos de urn campo a outro nao implica, no entanto, que Bourdieu nao reconhe\=a a diferencia-;ao funcional que caracteriza a socieclade moderna (Bohn, 1991: 133-139; Alexander, 1992J57-164).__Embora os campos tenham

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    emergido historicamente e adquirido certa autonomia, eles estao interconectados de maneiras complexas, e a aplica\=ao comparativa cia f6rmula gerativa de sua estrutura e funcao mostra precisamente como a invariancia "formal" ou estrutural e a varia\=ao "material" ou empfrica podem ser pensadas conjuntamente, de modo que a tendencia em dire~ao a redu-;ao de urn campo a outre, casu quoao campo economico, possa ser evitada.31 Entretanto, mesmo que o reducionismo cia infame "ultima instancia" possa ser evitaclo dcste modo, o problema do reclucionismo reemerge sob uma outra forma, qual seja, como uma "cspecie de reducionismo de campo" (Swartz, 1997: 293) no qual os produtores culturais tenclem a ser vistos como emanac;oes cia 16gica do campo intelecrual, sendo seus produtos concebidos como varies epifenomenos etas respectivas posi~oes que ocupam naquele. Como um te6rico--pesquisador de campo(s), Bourdieu multiplicou sua pesquisa comparativa em diferentcs campos cia pratica (haute couture, lite-ratura, atte, esporte, filosofia, politica, mercados imobiliarios e, por ultimo, mas nao menos importante, a midia [Bourdieu, 19961 e a economia [Bourdieu, 1997bD, chegando a anunciar a publicacao de um livre, em que estava aparentemente trabalhando, acerca da teoria geral dos campos, obra que, entretanto, nao foi publicada.

    RACIONALISMO APLICADO

    Agora que analisamos como o faro cientffico e conquistado contra o sense comum e sistematicamente construfclo como urn efeito relacional cia teoria, podemos proceder a analise do processo de ver.ificac;ao cia teoria. Contra o dogma empiricista cia percep\=ao imaculacla, Bourclicu enfatiza uma vez mais que os fatos sao sempre e necessariamente sobredeterminados pela teoria. Na medida em que os instrumentos e tecnicas cia pesquisa empfrica sao, como disse Bachelard certa vez, "teoremas realmente re ificaclos" (Bache lard, 1971c: 137), todas as opcra~oes cia pesquisa sociol6gica, cia formula~ao de urn questionario a sua codifica-;ao e analise estatfstica, tern de ser consideradas como "varias teorias em ac;ao" (Bourdieu; Chamboredon; Passeron, 1973: 59). Urn conhecimento acurado daquilo que se faz sobre e com OS fatos, bern como do que OS fates podem OU nao fazer, e, portanto, o p rimeiro requisite cia pesquisa sociol6gica. Por exemplo, a tecnica cia analise multivariacla, que parece apli-cavel a todos os tipos de relac;oes quantificaveis, pressupoe a

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  • independencia das vanaveis dependentes e independentes. E os soci6logos, que rotineiramente aplicam (;:SSe modo linear de pensamento sem pensar muito a respeito, nao estao nem mesmo atentos ao faro de que as variaveis estao internamente .ligadas e s6 assumem seu valo r numerico, bern como sao o que sao, gra~as a sua posi~ao e fun~ao em uma figura~ao estrumral (Elias, 1985: 234). Alem disso, dado que nao pensam em termos de causalidade estrurural, eles se agarram a identidade nominal de suas variaveis, assumindo que seus efeitos sao puramenre lineares e nao perce-bendo que, em cada uma das variaveis,a rede de rela~oes entrelayadas exerce sua eficacia atraves de todas as outras (Bourdieu, 1979a: 113-122, 512-514).32 0 resultaclo cia aplica

  • subjetivismo unidimensional, representado (por razoes peclag6gicas) por Schutz, Blumer, Garfinkel e OLrtros. Foi apenas quando as limita~oes do objetivismo e do subjetivismo foram ambas acentua-das que a possibilidadc de uma a rticula~ao sintetica cr~tre micro e macro eventualmente emerg iu nos a nos 1980 (Alexander et at., 1987c). Ainda que nosso fil6sofo-lornaclo-antrop6logo houvesse desenvolvido o principal esbor;o de sua tentativa de transcender a "bipolaridacle" dos e rros subjetivista e objctivista ja no inkio dos a nos 1970 (Bourdieu, 1972), sua tcoria cia pracica e clarame nte parte de um movimento "estruturista" mais amplo na teoria social, movimento que adquire sua inspirar;ao nas Teses sabre Feuerbach, de Marx, e do qual Sartre, Berger, Luckmann, Habermas, Giddens, Bhaskar eo Castoriaclis tardio sao provavelmente os reprcsentantes mais bem conhecidos (Vandenberghe, 1998: 322-339).

    Movendo-nos de consiclerar;6es epistemol6gicas para discussoes ma is metateoricas, podemos agora apresenta r a te n tativa bour-dieusiana de supera r a oposi~ao e ntre subjetivismo e objeti-vismo por meio cia introdu~ao de uma relar;ao suplemenrar: urn relacionarncnto vertical que estabelece a media~o entre o sistema de posir;oes objetivas e as disposir;oes subjetivas. Este e, evide nce-mente, o momento em que aparece na cena o velho e vene rflve l conceito a ristotelico de hexis, que Boecio e Tomas de Aquino traduziram como habitus e que o etnoft!6sofo frances transformou e m urn de seus conce itos centrais.38 Como e bern conhecido agora, Bourdieu utiliza o conceito de habitus- sempre ente ndiclo como habiluscle classe e clefinido como urn sistema de "clisposir;6es clu-raveis e transponfve is, estruturas estJuturaclas predisposras a fundo-narcomo estruturas estruturantes" (Bourdieu, 1972: 155; Bourdieu , 1980: 88-89) - como uma especie de "ope rador te6rico" que, ao conferir uma coercncia formal a ar;oes que sao cxtremamente diferentes materialmente, estabelece a media~ao entre o sistema invisfve l de re lac;oes estruturadas (pelas quais as a~oes sao mocle-laclas) e as ac;oes vislveis dos mores (que estruturam as rela~oes-19). Como urn constJuto 16gico "irredutfvel as suas rnanifestar;oes" (Bourdieu, 1974: 31), o habitus em si nao pode ser observaclo, mas, tal como as instancia~oes p raticas clas cstruturas virtuais de Giddens (G iddens, 1979: 53-76; Giddens, 1984: 16-28), pocle ser detectaclo nas suas arualiza~oes, quando uma "condir;ao permis-siva" (o estado do campo, do mercaclo etc.) forncce a ocasiao apropriad~l para a clisposi

  • E cerro que o habitus e o produto de estruturas sociais, mas, se pararmos aqui, podemos cai1 na armadilha da leitura deter-minista pura e esquecer que, como principio gerador de ac;oes, avaliac;oes e percep

  • para formar um todo organtco, Bollldieu sempre pensou no campo como um campo de lutas, ou, como diz Elias, de "tensao" (Elias, 1984: 127). Desde o inicio, sua concep~ao relacional do campo estava combinada a uma visao altamente conflitual do mundo como uma arena de batalha por poder, prestigio e toda especie de capital, arena em que a distin

  • intclectual, por exemplo, ocupa uma poSi\;ao dominada no campo do poder, que esta ele mesmo situado no polo dominance do campo das re la.;oes de classe. Em qualquer momento no tempo, 0 campo inte lectual e 0 locus de lutas entre dois prindpios de hierarquiza~ao: urn crite rio heteronomo (o sucesso, tal como medido pela venda de livros) que trabalha em beneffcio claqueles que dominam o campo economica e politicameme (as pessoas "de terno" que distribuem os recursos, integram os comites decis6rios e clecidem sobre o potencial mercadol6gico dos livros); e urn criterio autonomo (a qualidade, tal .como medida pelo reconhe-cimento dos pares), que favorece os "verdacleiros intelectuais".

    Em segundo Iugar, cleve-se descobrir a estrutura objetiva de rclac;oes entre as posic;oes ocupadas no campo pelos agentes ou institui.;oes em competic;ao uns com os outros no seu interio r. Aqui, o prop6sito eo de revelar a hierarquia dos produtos e clos produtores, baseada na oposic;ao entre o "campo cia procluc;ao restril:a", em que os proclutores procluzem para outros produtores, e o "campo da produc;ao para audH~ncia de massa", que e s im-bolicamente exclufdo e desqualificado (Bourdieu, 197lc: 54-55). Finalmente, a analise do campo tambem deve incluir investigac;oes detalhadas das tra jet6rias e das disposic;oes dos produtores em competic;ao uns com os outros no seu ambito. Compreencler as p ralicas dos produtores e os seus produtos implica compreender que eles sao o resultado da hist6ria das posic;oes que ocupam e da hist6ria de suas disposic;oes. Quando o ageme e introduzido no campo, pode-se dinamizar esse retrato e analisar a d ialetica entre posic;oes objetivas e disposic;oes subjetivas, explicando assim as posturas (prises de positions) dos produtores de urn dado campo.S6

    0 modelo generalizaclo do campo de produc;ao cultural apre-semado acima e o resultado de uma longa serie de estudos de campos particulares que Bourdieu iniciou nos anos 1960 com uma analise do campo intelectual, de Flaubert e o Nouveau Roman ate o jazz eo cinema (Bourdieu, 1966),57 urn modelo cujo quaclro conceitual e , em larga medida, inspirado em uma brilhante e o riginal reinterpre tac;ao do capftulo de Webe r sobre a religiao em Economia e sociedade (Weber, 1972: 245-381) nos termos da sua teoria geral do conhecimento sociol6gico (Bourdieu, 1971a; Bourdieu, 1971b).58 Na medida em que sua interpreta.;ao confere uma inflexao marxiana as no.;oes de bens ideais e interesses ideais de Weber, ela tambem lanc;a as bases de uma

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    teoria geral da economia clos bens simb6licos que, ao estender a l6gica do calculo economiCO a todos OS bens, materiais assim como simb6licos, sem distin~ao, inte nta demonstra r que ha uma economia politica dos bens culturais. Como resultado dessa le itura ostensivamcnte materialista de \Veber, que gera uma especie de perspectiva supermarxista antecipada por Mannhe im, uma interprctac;ao economica de setores nao economicos e ate antieconomicos (como o re ligiose, por exemplo) torna-se possfvel, interpreta~ao que consistentemente mostra que um clesinteresse bem-intencionado e consplcuo por recompensas materiais sempre gera lucro de urn. modo ou de outro, mesmo que este lucro nao seja conscientemente intencionado pelo agen-te. Quando a "a.;ao estrategica" sem calculo estrategico explicito ou a "ac;ao tradicional" com prop6sito racional sao descobertas em toclo Iugar, surge a suspeita de reducionismo economico e hiperutilitarismo a la Ga1y Becker, reducionismo que detecta o egoismo inconsciente no altrufsmo conscie nce, levando assim , inevitave lme nte (e, ate certo ponto, justificavelmente), ao oxi-moro do "calculo inconscie nte" (ver Joppke, 1986; Honneth, 1990; Caille, 1992; Alexander, 1995).

    0 eixo central de variac;ao entre os campos eo seu grau de autonomia . Campos a ltamente autonomos, como o cientifico, seguem o c6digo bimirio do verdadeiro e falso; campos altamente heteronomos, como o politico, o c6cligo schmittiano do amigo e inimigo (Bourdieu, 1986: 10) . Primeiramente, consideraremos o campo re ligiose, que esta aberto a determina~oes externas e cuja "verdade" nao e nada alem da imposi

  • teoria da autonomia relativa do campo rcligioso que o permite transcender a oposi~ao entre uma teoria (estruturalista) que interpreta o conteudo mutavel das mensagens religiosas em termos das leis imanentes do espiri to e uma teoria (ma rx_ista) que concebe tais mensagens como urn reflexo direto cia infraestrutura material cia socicdade, cometendo assim o e rro do curto-circuito. 0 problerna com Weber e duplo. Em primeiro Iugar, ele penna-neceu preso ao modo substancialista de pensamento. Ao inves de rel ~tcionar sistematicamente os protagonistas cia

  • apari~ao deve ser explicada em rela

  • E contra este pano de fundo mannheimiano cia relac;ao social gcral de competi

  • pennanentes e crescentemente despidas de efeiros politicos. Em suma, o campo cientffico se torna mais autonomo e, conforme se tacna mais autonoma e auto rregulada, a razao cientlfica progl'ide e eventualmente a "for~a eta razao" (Kant) torna-se a (mica forma de for\=a reconhecida e legitimamente utilizacla no campo. Neste pomo, Bourdieu se junta a Ape! c Habermas, mas com essa diferen~a notavel: a razao nao e mais considerada como um universal trans-hist6rico, mas como o resultado hist6 rico da progressiva institucionalizat;ao de cliscussoes racionais no campo cia ciencia (Bourclieu, 1997a: 111-151)61 e, o que e passive! e desej{lvel, tambem no mundo mais amplo - embora isso dependa da institudonalizat;ao das condit;5es de discussao 1

  • sociologia a sua propria sociologia desmascara sua posi\=ao epis-temol6gica como uma posic;ao iclcol6gica e, assim, como um movimento interno ao proprio campo. E, de faro, rudo se passa como sc Dourdieu estivcsse apenas reintroduzindo no campo cia sociologia uma versao reelaborada cia distinc;ao ideol6gica de Althusser entre ciencia e iclcologia, de maneira a transcender a oposic;ao entre a sociologia radical e a orrocloxa. E, ate mesmo mais problematicamente, se esse movimento nao e polemico, mas reflexive, nao "dnico", mas "c;lfnico" (Bourdieu, 1996: 68), entao a questao permanecc sendo: como pocle ele rer acesso a j)OSi\=aO de "espectador imparcial", observando suas pr6prias observac;oes e aquelas dos outros, vendo o que eles nao veem e talvez ate o que ele nao vc?l'3 Com efeito, este parcce ser o ponto em que a sociologia bourdicusiana torna-se algo divino - "socio-logia bourdivina". Ainda que Bourdieu fosse tentado as vezes a total izar e fechar seu pr6prio esquema totali zante, ele esrava, de fmo, alerta aos problemas deste tipo de proceclimento, como pocle ser inferido de sua altamente reflexiva aula inaugural sabre a aula no College de France, em que ele alerta explicitamente comra as tentac;oes plat6nicas e hegelianas da "intelligentsia livremente flutuante" ao notar que "nao se deve espcrar de urn pensamento sabre os limires que de acesso a urn pensamento sem Jimites" (Bourdieu, 1982a: 23).

    Bourdieu sempre foi urn intellectuel engage (e tambem enrage). Embora ele tenha tendido a manter alguma separac;ao residual entre ciencia e polltica, a natureza polftica das suas empreitadas cientificas tornou-se clara, ao final de sua carreira, nao apenas para os leitores de Liberation, o suplemento polftico internacional a Actes de Ia Recherche en Sciences Sociales, mas tambem para a aucliencia mais ampla de leitores de Liberation, Le Monde e Le Monde Diplomatique.rA No verdadeiro espfrito do Esclarecimento, avan~ando a ciencia em nome cia eman-cipac;ao e a emancipac;ao em nome da ciencia, o mais famoso soci6logo cia Franc;a escolheu intervir como urn agitador politico na esfera publica para dar voz aos exclufdos (os desempregados e os pobres, os gays e as lesbicas, os intelectuais argelinos e os imigrantes ilegais na Pranc;a etc.) e subverter a hegemonia neoliberal . De fa to, desde a greve de clezembro de 1995 ( ver Duval eta!., 1998), Bourdieu multiplicou suas intervenc;oes "por uma esquerda na esquerda" (Bourdieu, 1998c) - e nao por uma

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    "esquerda cia esqucrda", como seus inimigos gostavam de mal interpreta-lo - , analisou criticamente e atacou os intelecruais m idiaticos e OLttros fast thinkers por sua cumplicidade con1 as classes d!Jnlinantes (Bourdieu, 1996), propos uma seric de poderosos argumentos para se contrapor ao ataque ao Estado de bem-estar social e a polltica global cia "flexplora\=ao" com uma proposta para urn estado social europeu (Bourdieu, 1998a) e, pOr ultimo, mas nao menos importante, Jan\=OU uma serie bem-sucedida de pequcnos l ivros financciramente acesslveis, bern clocumentaclos e Iegfveis, cujo formate lembra o clos Kleine Politiscbe Scbriften de Habermas e que eram "animados pela vontade militante de difundir 0 conhecimento indispens{tvel a reflexao e a ac;ao pollticas em uma clemocracia ("Preambulo" para Halimi, 1997).65 Como o principal porta-voz de urn "intelectua l coletivo aut6nomo", Bourdieu, com sua estrategia metapolltica de tipo gramsciano que buscava subverter a hegemonia cul tu ral do neoliberal ismo (tanto na d ireita como na esquerda- "a troika jospin-Blair-Schroder"), foi tao bem-sucedido que teve de negar publicamente as especulac;oes selvagens de que criaria urn novo partido politico e se apresemaria como candidato nas eleic;oes de 1999 para o Parlamento Europeu ("0 candidato Bourdieu nao existe", Liberation, 27 /8/1998).

    CONCLUSAO: DA CRITICA A RECONSTRU\=AO

    No fim das contas, o estrururalismo gerativo de Bourdieu pode ser vista como uma reflexao sociofilos6fica e variac;ao empfrico-te6rica sobre o tema do pensamento relacional, as quais penni"tem que ele "deixe as categorias dan~ar", como disse Marx em outro contexto, "ao som de suas pr6prias melodias polfticas". De fato, movendo-nos progressivamente, e rio abaixo, ao Iongo do continuum das abstra~oes cientfficas, partindo de reflexoes filos6ficas, epistemol6gicas e metate6ricas sabre uma teoria social relacional ate chegarmos a suas implementac;oes te6ricas, metoclol6gicas e empfricas em uma socio logia dos campos, vimos como o argumento de Bourd ieu pode ser internamente rccons-trufdo como uma transposic;ao sistematica, das ciencias natura is as ciencias sociais, da reformulac;5o bachclardiana e cassireriana do ulcrajame enundado de Hegelsegundo o qual o "real c racional"

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  • e o "racional real". A centralidade do modo de pensamento relacional para o projeto de Bourdieu esta provada pelo faro de que as duas preocupac;:oes metassociol6gicas centrais que guiaram seu programa de pesquisa durante quarer;ta a nos - nomeadame nte , a substituic;:ao de uma concepc;:ao substancialista por uma concepc;:ao re lacio nal da realidade social e a tra nscen-dencia cia antinomia fundamental entre abordagens subjetivistas e objetivisras no estudo cia vida societaria - podem ser respec-tivame nte interpretadas como uma aplicac;:ao horizontal e uma aplicac;:ao vertical deste modo relacional de produc;:ao imelectual. Sea primeira preocupa

  • pretende oferecer armas eficientes de contra-atua~ao sobre essas esuutmas e mecanismos coativos e contribuir com a consecu~i'io de uma margem d e liberdade em rela~i'io aos mesmos (Peters, 2006: 135-136; Peters, 2008: 26).66

    Tardiamente, nos seus humorcs rna is militantes e apelos politicos a uma Realpolitik da Razao (Bourdieu, 1992; Bourclieu, 1994; Bourdieu, 1997a), Bourdieu reconheceu a cspontaneidadc cia a-;ao e a eficacia clas icleias. Mais recentemente, e le ate cleixou de !ado suas criticas te6ricas do Estaclo e dos seus assim chamaclos "apara tos ideol6gicos" para defender o valo r universal da educa~ao (Areser, 1997) eo Estado de bem-estar social (Bourdicu, 1998a: 34-50, 66-75) contra seus detratores monetaristas; mas estas concessoes polfticas ainda precisavam encontrar expressao te6rica no seu corpus cientifico.

    E, finalmcnte, uma questao: Por que nao ir mais Ionge, perfa-zenclo o caminho clesde uma teoria crftica da domina~ao ate uma teoria polltica cia emancipa~ao, e claf para uma tcoria normativa da etica? Sc uma sociologia crftica pressupoe nao apenas uma analise das for-;as da clomina~ao social, mas tambem uma analise das fon;as sociais cia emancipa~ao, bem como a possibiliclade de uma polftica transformativa cmancipat6ria, entao e la tambem pressupoc uma etica, ou, ao menos, alguma formula~ao de criterios normativos de julgamcntos marais e alguma inclica


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