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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO-
PPGE/UFF
ROSEANE DOS SANTOS LAZZARINE
O DESMENTIDO NO ENSINO FUNDAMENTAL PÚBLICO: FACETAS
DE UM RACISMO CLIVADO E MASCARADO.
NITERÓI
2018
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO-PPGE/UFF
O DESMENTIDO NO ENSINO FUNDAMENTAL PÚBLICO: FACETAS
DE UM RACISMO CLIVADO E MASCARADO.
ROSEANE DOS SANTOS LAZZARINE
Dissertação apresentada à Faculdade de Educação
da Universidade Federal Fluminense como
requisito parcial à obtenção do Título de Mestre
em Educação.
Orientadora: Profª Drª Marília Etienne Arreguy
Niterói
2018
L432d Lazzarine, Roseane dos Santos
O Desmentido no Ensino Fundamental Público: Facetas de um racismo
clivado e mascarado / Roseane dos Santos Lazzarine ; Marília Etienne
Arreguy, orientadora. Niterói, 2018.
187 f.
Dissertação (mestrado)-Universidade Federal Fluminense, Niterói,
2018.
DOI: http://dx.doi.org/10.22409/POSEDUC.2018.m.09130807727
1. Relações Raciais. 2. Ensino fundamental público. 3. Racismo.
4. Psicanálise. 5. Produção intelectual. I. Título II. Arreguy,
Marília Etienne , orientadora. III. Universidade Federal
Fluminense. Faculdade de Educação.
CDD -
Ficha catalográfica automática - SDC/BCG
Bibliotecária responsável: Angela Albuquerque de Insfrán - CRB7/2318
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO-PPGE/UFF
O DESMENTIDO NO ENSINO FUNDAMENTAL PÚBLICO: FACETAS
DE UM RACISMO CLIVADO E MASCARADO.
Aprovada em: ____/ _____/_______
BANCA EXAMINADORA
Orientadora: Profª. Drª. Marília Etienne Arreguy
Universidade Federal Fluminense (UFF)
Professor Convidado: Profº. Drº. Richard Fonseca
Universidade Federal Fluminense (UFF)
___________________________________________________________________________
Professora Convidada: Profª. Drª. Jô Gondar
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
Professor convidado suplente: Profº. Drº. Marcelo Báfica Coelho
Universidade Federal Fluminense (UFF)
NITERÓI
2018.
Dedico essa pesquisa a todos os negros e negras
que passaram suas vidas na penumbra de não
saberem nomear os sentimentos de dor causados
pelo racismo desmentido. Clivados na infância
pela confusão causada por uma branquitude
perversa e privilegiada.
AGRADECIMENTOS
A Deus pela força e oportunidade de estar vivendo essa pesquisa e aprendendo muito a cada
dia.
A Universidade Federal Fluminense por ter oportunizado a realização desse curso.
À minha querida orientadora pela confiança, serenidade e credibilidade em todos os
momentos, mesmo os críticos, e ao apoio e entusiasmo contagiante a cada sugestão,
descobertas e crescimento na pesquisa, sem as quais esse trabalho não seria possível.
À minha avó por ter me criado quando eu não tinha ninguém e me ajudado a ser uma pessoa
com dignidade e responsabilidade para honrar compromissos.
Às minhas filhas Mariana, Thaynara e Ryanna pelo amor, força e compreensão em todas as
etapas de minha formação, as palavras de incentivo e os carinhos oferecidos em momentos de
tensão durante a produção da pesquisa e nas minhas ausências para o estudo.
Ao meu companheiro Cristiano por sempre incentivar, até quando eu estava desanimada e
cansada. Obrigada por acreditar que era possível e pelo orgulho em meu crescimento como
profissional, estudante e em nossa vida juntos.
Agradeço a todos que fizeram parte desse processo. Aos amigos e professores que
contribuíram para essa pesquisa acontecer e se tornar o trabalho da minha vida.
Aos autores Abdias Nascimento, Frantz Fanon, Mbembe, Amauri Mendes, Freud, Ferenczi,
Neuza Souza, Virgínia Bicudo, Jô Gondar entre outros, que, durante o mestrado,
“conviveram” comigo, tornando-se amigos que me presentearam com tanto conhecimento,
empoderamento e o desejo de compartilhar seus ideais, seus modos de compreender a
irracionalidade da sociedade e, especialmente, as possibilidades de cura para a doença que o
racismo disseminou entre nós.
Noites do Norte
A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela
espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi primeira forma
que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse
uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-
lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem
concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte...
É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte.
Caetano Veloso, 2000
RESUMO
Essa pesquisa dedica-se a tentar entender como se constituem as relações raciais na sociedade
e seus reflexos na escola, entre docentes e alunos. Com base em um olhar orientado pela
psicanálise voltada aos processos sociais, possibilitado pelo método psicanalítico cultural,
busca-se compreender os principais desafios dessas relações diante do racismo desmentido e
da falsa harmonia da democracia racial brasileira. Por meio de vinhetas escolares, como
exemplificação, e da análise psicanalítica e filosófica do contexto pesquisado, adentramos no
universo inconsciente das relações escolares e sociais, especialmente no que concernem as
questões raciais no âmbito da educação. Tais desafios esbarram em múltiplos significados que
se conectam, por sua vez, às diferentes configurações no campo político, psicossocial e
subjetivo da população negra.
Palavras-chave: racismo, Desmentido, psicanálise, população negra, subjetividade.
ABSTRACT
This research is dedicated to understand how are race relations in society and your reflexes at
school, between teachers and students. Based on a look at guided by psychoanalysis in social
processes and made possible by the cultural psychoanalytic method, understand the key
challenges of these relationships in the face of racism and false harmony Disclaimer of racial
democracy brazilian. Through vignettes, as examples and psychoanalytic analysis of the
researched context, enter in the universe school relations and social unconscious, especially
concerning the racial issues in the context of education. Such challenges face in multiple
meanings that connect, for your time, the different settings in the political field, subjective and
psycho-social of the black population.
Keywords: racism, retraction, psychoanalysis, black population, subjectivity.
Sumário
INTRODUÇÃO........................................................................................................................11
A Lei Antirracismo...........................................................................................................17
A qualificação docente.............................................................................................................21
O desmentido na escola............................................................................................................25
Raça como conceito sociocultural.............................................................................................28
Procedimentos metodológicos................................................................................................. 30
CAPÍTULO 1
NARCISISMO DAS PEQUENAS DIFERENÇAS: UMA VISÃO PSICANALÍTICA DO
PANORAMA RACIAL..........................................................................................................35
1.1Porque precisamos (urgente) de Fanon?............................................................................. 50
1.2 Outras percepções de racismo e cultura em Fanon............................................................64
1.3 África: potência e exploração.............................................................................................76
1.4 Conceito de raça como instrumento para subalternizar o negro.........................................81
CAPÍTULO 2
O QUE É SER NEGRO NO BRASIL?................................................................................90
2.1 A violência contra a mulher e o feminicídio....................................................................94
2.2 O desejo do negro de ser o outro...................................................................................99
2.3 A Branquitude: silêncio e o privilégio branco...................................................................111
2.4 O ideal do Ego no negro....................................................................................................115
CAPÍTULO 3
O DESMENTIDO COMO CHAVE DE LEITURA PARA A VIOLÊNCIA RACIAL
DISSIMULADA..................................................................................................................126
3.1 As raízes traumáticas do sofrimento do negro................................................................132
3.2 O trauma em Ferenczi como fator social..........................................................................137
3.3 Os docentes e a desordem de uma pedagogia pedante.....................................................142
3.4 Vinhetas escolares: uma confluência entre o desmentido e o preconceito racial contra o
negro.......................................................................................................................................148
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................172
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................178
WEBBLIOGRAFIA..............................................................................................................186
11
INTRODUÇÃO
Atualmente, após 15 anos da promulgação da Lei 10.639/03, tornando obrigatório o
Ensino da História da África e Cultura Afro-brasileira, que alterou a Lei 9.394, de Diretrizes e
Bases da Educação/ LDB, observamos a crescente necessidade de modificar nossos olhares
para os efeitos psicossociais do racismo, com o intuito de exterminar o preconceito nas salas
de aula de todos os níveis da educação e da sociedade.
Percebemos que, ao longo dessa década e meia com a referida Lei, seus expoentes
encontraram dificuldades para transpor as marcas históricas produzidas negativamente pela
sociedade. São barreiras que ainda refletem como as crenças e mitos são vistos em seus
valores simbólicos desiguais e injustos, nos quais enaltecem a branquitude em detrimento do
reconhecimento da população de negros e indígenas.
Incomoda, por sua vez, ver ainda a pouca discussão a respeito das questões raciais em
alguns âmbitos universitários. Contudo, reconhecemos que houve um crescimento do acesso à
discussão sobre essa temática após a promulgação da Lei 10.639/03. Na área da educação, as
pesquisas têm avançado, mas isso não tem sido suficiente para romper com o silêncio
estrutural do racismo em nosso meio social. Embora já tenha passado quinze anos,
observamos lacunas quanto à falta de informação e de formação docente acerca de fontes
históricas que desmascarem e revelem o racismo à moda brasileira, falhas que agravam a
crença na ideologia da “democracia racial”, expressão atribuída a Gilberto Freyre na literatura
acadêmica. Vejamos como Nascimento (2016) entende por democracia racial brasileira:
Devemos compreender “democracia racial” como significando a metáfora perfeita
para designar o racismo estilo brasileiro: não tão óbvio como o racismo dos Estados
Unidos e nem legalizado qual o apartheid \ da África do Sul, mas institucionalizado
de forma eficaz nos níveis oficiais do governo, assim difuso e profundamente
penetrante no tecido social, psicológico, econômico, político e cultural da sociedade
do país. (...) Monstruosa máquina ironicamente designada “democracia racial” que
só concede aos negros um único “privilégio”: aquele de se tornarem brancos, por
dentro e por fora (NASCIMENTO, 2016, p. 111).
Essa inquietante faceta do racismo brasileiro, hoje persiste com o mesmo discurso,
mas, com modelagens diferenciadas. A perversidade desse contexto é vivida nos meios sociais
12
de maneira camuflada, especificamente nas escolas, nas quais crianças ainda são vítimas de
estereótipos racistas, por vezes vindos dos próprios educadores da instituição. A partir desta
percepção, deu-se início ao questionamento sobre minha própria identidade docente e
processo de conscientização que pude enfrentar. A partir disso, surgiu a indagação a respeito
de como os saberes docentes poderiam contribuir na efetivação das relações raciais que
perpassavam em meu trabalho diariamente.
Partindo dessas observações nasce o interesse por pesquisar as relações raciais no
âmbito acadêmicos/escolar, assim como a motivação para melhor compreender como os
saberes docentes se constituem em sala de aula, no processo da dinâmica escolar,
especificamente em situações de conflitos raciais.
Surgiram, portanto, como consequência deste estudo, os seguintes questionamentos:
Como as relações raciais são construídas na sociedade e na escola? Em que medida se pode
trabalhar os saberes docentes de forma problematizadora tornando-os, eles próprios, objeto
de pesquisa? De que maneira os estudantes de cor negra são concebidos e tratados pelos
docentes? Até que ponto os dados históricos das culturas ancestrais dos negros são
contemplados nos currículos, na formação, no discurso e nas práticas dos professores?
Seriam os conhecimentos em psicanálise capazes de contribuir para a compreensão das
relações e conflitos raciais que acontecem na escola e em nosso meio social?
Levando em conta esses questionamentos, a proposta desta pesquisa é trazer por meio
das “vinhetas escolares”1, episódios ocorridos do interior das escolas e através delas, de modo
a compreender atitudes e conhecimentos dos professores, frente às questões e práticas de
preconceito racial no cotidiano escolar. Pretende-se analisar a percepção dos docentes junto
aos conflitos discriminatórios e, além disso, refletir como o campo da psicanálise oportuniza
um novo olhar sobre a configuração das relações raciais na sociedade e na escola.
1 O termo "vinhetas escolares" traz a concepção deste termo em analogia às “vinhetas clínicas”, como
ocorre na construção psicanalítica de casos, fundamentada nas expressões do inconsciente concebendo a
“vinheta” como ficcional. Tal escolha também representa um aporte ético, já que não será dada nenhuma
informação direta sobre pessoas específicas. Os casos serão construídos de modo a explicitar situações típicas e
repetitivas que se expressam nas relações docentes de desconhecimento, indiferença, preconceito e
discriminação e, assim, serão apresentadas formas variadas onde o “racismo desmentido” se apresenta no seio
escolar (GONDAR, 2018).
13
Justifica esse trabalho, além das interrogações precedentes, o fato de me sentir parte
do que aqui proponho investigar. Pretendo familiarizar o leitor com algumas experiências
próprias vividas por mim, que caracterizam o ensejo de aprofundar o tema da pesquisa.
Acredito que as condições desiguais brasileiras são retratadas no cerne das questões raciais
que envolvem minhas vivências, na coletividade e individualmente, no meio social onde me
constituí como mulher negra, pobre e suburbana, estereotipada por minha cor e condição
econômica.
Proponho ao leitor, nas páginas procedentes, reflexões, críticas e episódios acerca das
relações raciais que se confundem propositalmente com as questões de classe. Faremos, a
princípio, um percurso mais panorâmico, até podermos nos concentrar no racismo desmentido
a partir da psicanálise, para poder vislumbrar as características do racismo brasileiro.
O racismo, como sistema pernicioso e excludente, está presente nas principais
civilizações ocidentais, marcando territórios assim como, desintegrando nações inteiras desde
a colonização até à diáspora como fenômeno mundial. Nesse contexto, concordo com
Nascimento (2016) a respeito da gravidade do significado da concepção dilacerante da
escravidão refletida ainda hoje na vida dos descendentes dos negros ao redor do mundo.
Devemos, assim, começar examinando o maior de todos os escândalos, aquele que
ultrapassou qualquer outro na história da humanidade: a escravização dos povos
negro-africanos. No Brasil, é a escravização que define a qualidade, a extensão, e a
intensidade da relação física e espiritual dos filhos de três contingentes que lá se
encontraram: confrontando um ao outro no esforço épico de edificar um novo país,
com suas características próprias, tanto na composição étnica de seu povo quanto na
especificidade do seu espírito (NASCIMENTO, 2016, p. 57).
Ao longo da pesquisa procuramos compreender o processo de constituição do racismo
e suas diversas formas de agir durante séculos, distanciando, manipulando e explorando
pessoas e privilegiando outras. Tais observações definem o papel das escolhas e do olhar do
pesquisador sobre o objeto estudado, visando romper com qualquer crença que possa existir
acerca da existência de uma neutralidade científica. Meu esforço é de apreender o foco da
pesquisa com uma visão específica sobre o tema que, evidentemente, pode se juntar a visão de
outros pesquisadores acerca da mesma temática.
14
Diante da problematização apresentada, cabe ressaltar que a presente pesquisa integra
a linha de pesquisa sobre Diversidade, Desigualdade Social e Educação (DDSE) em parceria
com o Grupo Alteridade Psicanálise e Educação – GAP (E) – do Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Essa ligação, além de motivar,
justifica o aporte psicanalítico agregado a esse trabalho como propulsor na compreensão do
racismo na sociedade e, especialmente, no âmbito escolar.
Outro motivador para a escolha desse tema foi à participação na realização do IV
Ciclo Internacional de Conferências e Debates com a discussão sobre Racismo, Capitalismo e
Subjetividade: Leituras psicanalíticas e filosóficas, outubro de 2016, sob a idealização,
produção e organização do nosso grupo de pesquisa: GAP(E). O evento contou com o apoio
técnico de bolsistas de graduação e mestrandos, bem como com a presença e participação
de intelectuais que, em mesas redondas, abordaram o tema Racismo, sobretudo investigado à
luz da Psicanálise. Este evento possibilitou uma nova interpretação de meus estudos prévios2
sobre o racismo, logo, despertou meu interesse na visão da Psicanálise acerca das Relações
Raciais. Em uma das falas, intitulada "O racismo desmentido", a Professora Doutora e
psicanalista Jô Gondar (ferencziana e estudiosa da Teoria do Desmentido) trouxe o insight
oportuno para a transformação do projeto de pesquisa do mestrado, ao ponto desta discussão
estar inserida no centro no trabalho agora apresentado.
Parto também, das perspectivas de minha pesquisa3 de conclusão do curso em
Pedagogia realizada em 2014, com orientação do Professor Amílcar Araújo Pereira, na
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nessa pesquisa, minhas inquietações
giravam em torno do possível desconhecimento dos docentes do ensino público fundamental a
respeito da Lei 10.639/03, como tema transversal junto ao currículo e à comunidade escolar.
Esse trabalho abriu caminhos para a inserção da práxis em minha carreira docente,
incentivando-me a prosseguir na pesquisa como docente, atrelando teoria e prática na
compreensão das relações raciais.
2
Os estudos prévios sobre as questões raciais em minha formação acadêmica foram intensificados no
curso de especialização latosensu do Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira (PENESB),
oferecido pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com a coordenação e direção da professora Iolanda
Oliveira, em 2014. Com trabalho de término de curso desta especialização: Práticas da Lei 10.639/03:
Trajetórias de representatividade e identidade negra no cotidiano do Ensino Fundamental, obtive suporte para
pôr em prática o que a lei 10.639/03 determina e para aprofundar em minha prática docente aquilo que preconiza
essa lei como tema transversal na educação. 3
Monografia realizada em 2014, abordando a temática racial no ensino fundamental público, intitulada:
Lei 10.639/03: concepções e práticas docentes em uma escola no município de Nova Iguaçu.
15
Pensar na articulação entre pesquisa e ensino numa perspectiva cultural e psicanalítica
nas relações raciais e ações docentes requer delimitação, para viabilizar a investigação
proposta. Nesse sentido, dois eixos da análise surgiram da confluência entre teoria e prática,
indicando perspectivas pelas quais as reflexões sobre os possíveis sentidos da pesquisa,
psicanaliticamente orientada na subjetividade e nos efeitos psicossociais do racismo, foram
desenvolvidas nesse trabalho.
No primeiro eixo, como objetivo geral, visamos compreender as marcas inconscientes
do racismo na subjetividade do negro. Além disso, buscamos abordar como as ações docentes
se constituem em relação às questões raciais na escola, assim como no âmbito social. Com
uma abordagem sociocultural, a intenção foi analisar como se constituem as relações sociais
e, também, as reações frente aos conflitos raciais em que se mesclam as questões
socioeconômicas, de classes e culturais.
No segundo eixo, como objetivo específico destacamos à interface entre o trauma na
Psicanálise e a Teoria do Desmentido em Ferenczi, em analogia às relações raciais escolares e
seus efeitos inconscientes insidiosos na cultura. O desmentido para Ferenczi ocorre através de
um trauma entendido como negação, desautorização e descrédito por parte do adulto, daquilo
que ouve a criança contar, especificamente, sobre algo abusivo que, de fato, aconteceu com
ela. O fato consolidado na atitude do agressor é de que nada aconteceu, desmentindo a criança
(FAVERO e RUDGE, 2009).
Tendo a psicanálise como lugar de escuta, pretendemos dar voz àqueles que passam
por situações vexatórias e traumatizantes diante de um racismo mascarado. Essa é uma
“herança” brasileira que inibe e silencia crianças e jovens, estereotipados culturalmente e por
sua cor. Também buscamos verificar o paralelo entre a questão da afirmação do negro, os
recalques e clivagens em relação às vivências violentas de discriminações que se constituem
em traumas nas relações raciais, em particular nas práticas docentes ou educacionais.
Para responder a essas questões, a pesquisa estrutura-se em três capítulos. O primeiro
capítulo Narcisismo das Pequenas diferenças: uma visão psicanalista do panorama racial
apresenta a psicanálise através da descoberta do inconsciente por Freud. Sob esse prisma
observamos o sujeito não reconhecido no campo social no qual está inserido e a consequente
ortodoxia que acrescenta na classificação das pessoas por suas diferenças étnicas. Percebemos
16
as especificidades do narcisismo nos tempos atuais e as sutis articulações deste aspecto
potencialmente patogênico na vida psíquica das pessoas que sofrem com preconceito de cor.
O segundo capítulo: O que é ser negro no Brasil?, discute as dificuldades de ser
negro em um país que ainda vive sob a falácia da democracia racial, e finge relações
dicotômicas entre negros e brancos, sugerindo sub-repticiamente que o negro existe para
servir, enquanto o branco se privilegia de sua branquitude intocável. Abordamos os aspectos
sociais, somados a ideologias racistas que corroboram para o falso desejo do negro em ser o
outro-branco. Nesse sentido, vamos ver a alienação e o desejo de embranquecer por parte da
população negra aliciada pela submissão que contribui para a indiferença e para a busca pela
perfeição, falaciosamente ancorada na branquitude. Analisamos esse desejo como algo que,
aos poucos, se torna doloroso e traumatizante, além de corromper a subjetividade da pessoa
negra, alterando sua consciência de cor.
No terceiro capítulo: O desmentido como chave de leitura para a violência racial
dissimulada, analisamos, junto à psicanálise, as contribuições de Sándor Ferenczi acerca da
teoria do desmentido (desautorização ou descrédito) para além da ideia do trauma freudiano,
ou seja, com a intenção de entendê-la a partir da concepção de trauma na violência racial. A
teoria do desmentido embasa nossa pesquisa na observação das consequências traumáticas de
abusos diversos sofridos desde a infância, sobretudo na escola, até a fase adulta dos
indivíduos, com as marcas inconscientes que carregam em si.
Neste capítulo usamos o recurso das vinhetas escolares, cujo interesse é apreendermos
o desenvolvimento das relações raciais em uma possível negligência na área da educação,
entre alunos e professores. As vinhetas são consideradas contribuições para observação crítica
cotidiana, com o intuito de testemunhar as ranhuras na subjetividade negra, causadas por
traumas caracterizados por possível discriminação racial dentro das escolas. Além disso,
buscamos perceber e caracterizar os traços da branquitude como algo que estende privilégios
às pessoas brancas nas instituições escolares.
Conclui, discutindo diversas maneiras de caracterização do racismo e buscando
modos de compreensão desse contexto a partir da psicanálise. Vimos possibilidades para
alcançar caminhos na tentativa de vencer os muros invisíveis que impedem a igualdade no
meio social em que estamos inseridos. Há, finalmente, um chamado com respaldo teórico para
o despertar da alienação imposta pelo racismo inconsciente. A atitude de combate e resistência
17
surge como possibilidade ao nosso alcance e, para tanto, precisamos nos articular o quanto
antes nesse DESPERTAR que nos aguarda para promover a mudança naquilo que nos
consterna e envergonha em nosso país.
A Lei Antirracista
O Movimento Negro4 tem no currículo escolar uma de suas principais reivindicações,
ou seja, a luta pela efetiva implementação da Lei Federal 10.639/035, que altera a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394/1996, tornando obrigatório o ensino da
História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos da Educação Básica das redes pública
e privada do país. O conteúdo programático da lei 10.639/03 refere-se ao estudo da história do
continente africano e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o
negro na formação da sociedade nacional brasileira.
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e
particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo
da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra
brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do
povo negro nas áreas social, econômica e política pertinente à História do Brasil.
4 Movimento Negro é a luta organizada dos negros na perspectiva de resolver seus problemas na
sociedade; abrange em particular os fenômenos com origem nos preconceitos e discriminações raciais existentes
no mercado de trabalho, no sistema educacional, político, econômico, social e cultural. “Raça para o Movimento
Negro, é o fator determinante de organização dos negros em torno de um projeto comum de ação”. (Domingues,
2006, p. 101-102). Outra definição de movimento negro é aquela atribuída a Joel Rufino em Uma visão de
militância, em que o autor afirma: "(...) todas as entidades, de qualquer natureza, e todas as ações, de qualquer
tempo, [aí compreendidas mesmo aquelas que visavam á autodefesa física e cultural do negro], fundadas e
promovidas por pretos e negros (...), entidades religiosas [como terreiros de candomblé, por exemplo];
assistenciais (como as confrarias coloniais); recreativas (como “clubes de negros”); artísticas (como os inúmeros
grupos de dança, capoeira, teatro, poesia); culturais (como os diversos “centros de pesquisa”); políticas (como o Movimento Negro Unificado); e ações de mobilizações políticas, de protesto antidiscriminatório, de
aquilombamento, de rebeldia armada, de movimentos artísticos, literários, e ‘folclóricos’- toda essa complexa
dinâmica, ostensiva ou encoberta, extemporânea ou cotidiana constitui movimento negro"(RUFINO apud
SANTOS, 1994, p. 157). 5 A Lei 11.645/08 acrescenta a obrigatoriedade dos estudos da História e Cultura Indígena, passando,
portanto, a contemplar aspectos da cultura dos dois grupos raciais, índios e negros, historicamente discriminados,
estigmatizados, mortos e exterminados no Brasil até os dias atuais.
18
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados
no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e
de Literatura e História Brasileira.
A luta do Movimento Negro, e de seus intelectuais, tem por objetivo a construção de
um referencial positivo do negro, tendo na escola um dos locus privilegiados, onde também se
travam relações de poder produzidas nos mais diversos contextos, entre eles, nos textos das
políticas públicas, cujos resultados de disputas são submetidos a reinterpretações e a novas
seleções6 (FORQUIN, 1993), inclusive produzindo novas disputas ocorridas nas realidades
locais. Essa relação complexa e não linear gera novos embates e exige que a política de
combate à discriminação contra o povo negro seja repensada e reformulada também em outras
contextualizações.
O texto da Lei Federal nº 10.639 institui a temática "História e Cultura Afro-
Brasileira" e a obrigatoriedade da temática para as instituições educacionais dos ensinos
Fundamental e Médio. A inserção da Educação Infantil, não contemplada inicialmente no
texto da referida lei, foi paulatinamente incorporada com a aprovação do Parecer CNE/CP n°
03/2004 que institui “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”, através da
Resolução CNE/CP n° 01/2004 que regulamenta a lei e o Plano Nacional de Implementação
das Diretrizes, de 2009.
Política alguma, tampouco a Lei nº 10.639, acontece de maneira isolada e, sendo
assim, existe a necessidade de se esclarecer a relação existente entre as leis e a legislação
complementar, pois apenas desta forma é possível o entendimento da obrigatoriedade da lei
que trata sobre o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, assim como da cultura africana
no Ensino Fundamental, tendo sua continuação no Ensino Médio e, assim, complementando o
ciclo básico de Educação.
A Lei de Diretrizes e Base (LDB)/1996, ainda na esfera da legislação para as relações
étnico-raciais na educação, traz outra modificação legal, desta vez na lei nº 12.796,
promulgada em 04 de abril de 2013, que coloca em vigor como princípio do ensino a “(...)
6
A primeira realizada por especialistas/autoridades responsáveis na construção do currículo oficial e
escolha dos conteúdos.
19
consideração com a diversidade étnico-racial”, ampliando essa exigência a todos os níveis de
ensino.
A escola, de acordo com essa legislação, tem a obrigação de inserir no currículo
aspectos da cultura deste grupo racial historicamente excluído no Brasil, cuja história e
cultura nunca fizeram parte do currículo escolar e, quando estavam presentes, eram sempre
relatos e imagens vinculados à escravidão, como se a população africana começasse a existir
apenas desse período em diante.
O processo de historicização da Cultura Afro-Brasileira sempre esteve ligado a
inúmeros estereótipos. Deste modo, a luta do Movimento Negro não era apenas pelo acesso à
educação formal e sim pela mudança desta, devido ao contexto pedagógico onde os negros
eram retratados com inferioridade e, pior ainda, em que há a (re)produção da discriminação
racial contra a população negra e seus descendentes no âmago do sistema de ensino brasileiro.
Diante deste contexto, o movimento social negro, com seus intelectuais e militantes,
passou a incluir em suas agendas de reivindicações, mudanças em relação ao sistema
educacional para que este contemple a história dos negros brasileiros e dos africanos junto ao
Estado Brasileiro. Era uma luta também contra o "(...) dogma mais forte da democracia racial"
(HASENBALG, 1996, p. 237). Esclarece-se também que parte desta reivindicação já estava
contemplada na declaração final do I Congresso do Negro Brasileiro, promovido pelo Teatro
Experimental do Negro (TEN), no Rio de Janeiro entre os dias 26 de agosto e 04 de setembro
de 1950, portanto, há mais de meio século (HASENBALG, 1996), e, também, em outras
conquistas como várias leis que, de maneira geral, versam sobre o mesmo assunto tanto nas
esferas municipais como nas estaduais.
Dialoga-se, para análise dessa legislação, com a “abordagem do ciclo de políticas”
formulada por Stephen Ball (MAINARDES, 2006), que permite pensá-la desde sua
formulação inicial até sua implementação no contexto das práticas e saberes docentes,
abordando inclusive seus efeitos. Essa abordagem é constituída de um ciclo contínuo formado
por três contextos principais que estão inter-relacionados: os contextos de influência, de
produção de texto e o da prática. Estes aspectos não podem ser entendidos como lineares, mas
como arenas de disputas.
20
No “contexto da influência”, lugar onde as políticas públicas geralmente são iniciadas
e os discursos políticos construídos, estão os grupos de interesse como movimentos sociais e
organismos internacionais disputando influências na política, em que “os conceitos adquirem
legitimidade e formam um discurso de base para a política” (Ibidem, p. 51).
A promulgação da Lei Federal nº 10.639/03 representa, de acordo com nosso
entendimento, um grande avanço na política educacional do país, tendo completado mais de
uma década de existência. No entanto, é uma Lei recente para a sociedade brasileira,
principalmente, no que tange às transformações engendradas no contexto da prática de um
sistema educacional complexo, no qual o racismo tanto incide como se sustenta em uma
sociedade racista e excludente que ainda mantém o discurso da “democracia racial”
(GUIMARÃES, 2012) 7.
Para Souza (2006), ainda é espantoso que o ensino das culturas negras tenha que ser
estabelecido por lei. O autor justifica seu espanto ao afirmar a importância desta temática para
a compreensão da nossa sociedade. Entende-se esta constatação como mais um sinal da
intensidade do preconceito contra os negros no Brasil.
7 “
A expressão Democracia Racial, atribuída a Gilberto Freyre na literatura acadêmica, é empregada pela
primeira vez por Charles Wagley. Ela só aparece em Gilberto Freyre a partir de 1950. Antes desse período,
Freyre adjetivou de diversos modos a democracia, mas nunca como “racial”. Ele fugia do termo raça para se
referir aos contatos de pessoas de diferentes etnias, empregando democracia étnica. Freyre utiliza “democracia”
para contrastar com a aristocracia, em que existia rigidez da organização patriarcal e nenhuma flexibilidade das
relações entre senhor/escravizados, e depois passa a fazê-lo para se contrapor ao “fascismo”. Mas, foi Freyre
grandemente responsável pela legitimação científica da afirmação da inexistência de preconceitos e
discriminações raciais no Brasil, quando passou a louvar a “democracia racial” ou “étnica” como prova da
excelência da cultura luso-brasileira, quando a situação polarizou-se na África, com as guerras de libertação, e no
Brasil, com o avanço ideológico da “negritude” e do movimento pelas reformas sociais”. Disponível em:
https://anpocs.com/index.php/encontros/papers/25-encontro-anual-da-anpocs/st-4/st20-3/4678-aguimaraes-
democracia/file. Acesso em 03 de abril de 2018.
21
A qualificação docente
A falta de qualificação docente é um dos obstáculos à efetivação dessa legislação,
principalmente de professores que não tiveram na sua formação inicial a inclusão da História
e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. Segundo Oliveira (2014), a maioria dos docentes que
atuam na educação básica não recebeu a devida formação.
Portanto, realizar investigações sobre as práticas docentes que contemplam as leis nº
10.639/03 e nº 11.645/08 é pesquisar o óbvio, ou seja, levantar, relatar e desconstruir os mitos
racistas socialmente sustentados no senso comum, bem como investigar as lacunas do
conhecimento sobre a história dos negros no discurso dos professores, pois ninguém pode
ensinar o que não sabe. A formação desses profissionais precisa contemplar o legado
sociocultural africano para a História da Humanidade e, especificamente, para a História do
Brasil.
A maioria dos (as) profissionais que atuam ou atuaram nas IES, especialmente em
licenciaturas e cursos de Pedagogia, obteve sua formação em meio a este contexto
histórico e ideológico do qual decorre a forma excludente de se viver e pensar a
sociedade brasileira, e que desconsiderou tanto os conflitos étnico-raciais quanto as
contribuições do grupo social em questões (assim como de outros, a exemplo do
indígena). A escola que formou os (as) profissionais da educação que atuam hoje se
baseou numa perspectiva curricular eurocêntrica, excludente e, por vezes
preconceituosa (BRASIL, 2006, p. 125).
É importante construir um referencial positivo em que os negros sejam protagonistas
da história. Como Negro Cosme, e outros tantos desconhecidos8, assim como oportunizar o
8 “Cosme Bento das Chagas, o negro Cosme, como chefe negro, demonstrou toda sua consciência
política e o valor que dava à liberdade, criou uma escola de ler e de escrever no quilombo de Lagoa-Amarela, na
comarca do Brejo. Liderou cerca de 3 000 mil negros. Defendia a autoridade do Imperador Pedro II, todavia foi
um negro forro e resistente ativo naquela sociedade escravista. Era natural de Sobral, no Ceará, não tinha
domicílio certo e vivia de comandar a tropa de negros com o objetivo de acabar com a escravidão. Situado na
fazenda Lagoa-Amarela, o grande quilombo, próximo ao rio Preto, mantinha piquetes avançados e dirigia grupos
de quilombolas que incentivavam a insurreição nas fazendas da região. Na verdade, em toda a província do
Maranhão eram milhares os negros quilombolas, tornando a insurreição incontrolável e
generalizada”. (SANTOS, Maria Januária Vilela, 1983, p. 74).
9 Pesquisa realizada nos cursos de licenciatura presenciais, 71 de Pedagogia, 32 de Língua Portuguesa,
31 de Matemática e 31 de Ciências Biológicas, distribuídos proporcionalmente em todo o país (GATTI, 2010).
22
conhecimento e valorização das religiões afro-brasileiras. Gatti9 (2010) endossa essa crítica
em pesquisa realizada em diversos cursos de Pedagogia. A autora verificou que apenas 7,5%
do currículo de cada disciplina, nas séries iniciais do Ensino Fundamental, é destinado aos
conteúdos que abordam a Cultura Negra.
Há uma “secundarização” da abordagem dos conhecimentos veiculados pelos
componentes curriculares na política de formação docente, fragilidade que compromete o
trabalho pedagógico e visa desconstruir preconceitos, discriminações e estereótipos, pois falta
a dimensão dos conteúdos. O silenciamento das instituições escolares sobre a questão racial
acontece devido à falta de domínio dos conteúdos específicos dessas disciplinas.
Moreira e Candau (2007) questionam o modo como os professores têm se esforçado
para desestabilizar privilégios e discriminações e, como as diferenças de classe, sexualidade,
cultura e raça têm ‘contaminado’ o currículo formal e o oculto10
, além de apurar quais práticas
pedagógicas podem ser pensadas e que tempo reservamos para discutir essas questões nas
escolas.
Como temos atendido ao que determina a Lei nº 10.639/2003, que torna obrigatório,
nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, o ensino de História e Cultura
Afro-brasileira? De que modo os professores se têm inteirado das lutas e conquistas
dos negros, mulheres, dos homossexuais e de outros grupos minoritários oprimidos?
(MOREIRA e CANDAU, 2007, p. 29).
Para os professores em exercício que não tiveram acesso à universidade, às discussões
acerca da temática racial e à formação continuada, essa formação histórica de base, é ainda
mais necessária. Segundo os dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
10 Considera-se neste texto o conceito de currículo oculto, apresentado e problematizado por Tomaz
Tadeu da Silva (2009) no livro Documentos de Identidades , especificamente, no capítulo: “Quem escondeu o
currículo oculto?” (p.77). Ali Silva (2009) “define o currículo oculto como uma constituição de todos os aspectos
do ambiente escolar que não fazem parte do currículo oficial, mas que operacionalizam atitudes,
comportamentos, valores e orientações convenientes às estruturas e pautas de funcionamento “harmonioso” da
escola, desde injustiças e atitudes antidemocráticas, até o silenciamento acerca das dimensões da raça, da
sexualidade e do gênero. Esse autor também ressalta que a noção de currículo oculto exerceu forte influência nas
teorias em quase todas as perspectivas críticas iniciais e, devido a isso, o conceito tornou-se desgastado. Segundo
o autor, numa sociedade neoliberal não existe mais muita coisa oculta no currículo, visto que ele é
assumidamente capitalista.” Logo, o racismo é um subproduto, talvez o principal, desse sistema hegemônico
bizarro e cruel. Essa posição é reforçada por Lopes e Macedo (2010).
23
Anísio Teixeira (INEP), ultrapassa dois milhões os profissionais que hoje estão em sala de
aula no Ensino Fundamental e Médio (OLIVEIRA, 2014), o que revela um grande desafio. A
formação necessária para suprir esta lacuna pode ser oferecida por meio de cursos de
aperfeiçoamento, extensão e especialização.
A formação continuada corresponde à metade do total de cursos oferecidos pela
Universidade Aberta do Brasil, sendo a maior parte desta formação dirigida a temas ligados à
diversidade cultural: 91,1% dos cursos de aperfeiçoamento; 80,3% dos de extensão; e 42,8%
dos de especialização. Cursos da Rede de Educação para a Diversidade são direcionados,
especificamente, aos profissionais das redes oficiais de ensino, mas são oferecidos a
educadores, lideranças de movimentos sociais, agentes comunitários, e integrantes de
organizações da sociedade civil que realizam ações ligadas a esses temas (ANDRÉ, 2011).
Essas ações políticas de formação docente do governo federal, dentro do Programa de
Formação para a Diversidade, têm como objetivo estimular os sistemas de ensino a incluir
temas da diversidade nas práticas de ensino das redes públicas estaduais e municipais de
educação básica. Essa rede foi instituída pelo Ministério da Educação (MEC), em parceria
com a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) e
a coordenação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Profissionais do Ensino Superior
(CAPES), junto ao sistema de Ensino Superior à Distância Universidade Aberta do Brasil
(UAB) para a oferta de cursos semipresenciais de formação continuada, prevendo inclusive a
elaboração de material didático específico.
De acordo com Oliveira e Sacramento (2013), as Instituições de Ensino Superior (IES)
precisam ser modificadas através da presença negra e com incorporações da temática negra.
As autoras citam como exemplo as teorias progressistas que, já na década de 70 do século
XX, foram além da questão de classe ao incorporar o patrimônio cultural do negro no
currículo. A pedagogia progressista de George Snyders é caracterizada pela proposta de uma
educação transformadora que incorpora a discussão sobre a diversidade humana em
educação e seus efeitos sobre os grupos deserdados, entre estes a raça, gênero, etnicidade e
sexualidade entre outros (OLIVEIRA, 2014).
A sociedade brasileira é marcada pela insígnia da raça e do racismo. A escravidão
legitimou essa prática e, hoje, é comum ver situações de cunho racista nos mais variados
24
lugares: nas redes sociais, nas ruas, em propagandas comerciais e, inclusive, nas escolas
públicas e privadas.
No centro desta tragédia encontra-se a raça. Em larga medida, a raça é uma moeda
icónica. Aparece em torno do comércio dos olhares. É uma moeda cuja função é
converter o que se vê (ou aquilo que se prefere não ver) em gêneros ou em símbolos
integrados numa economia geral de signos e de imagens que trocamos que circulam,
as quais atribuímos valor, e que autorizam uma série de juízos e de atitudes práticas.
(MBEMBE, 2014, p. 191).
Entretanto, mesmo com o avanço em relação ao aspecto legal sobre a redução da
discriminação por raça/cor, e mesmo que uma parcela da sociedade já se mostre atenta à
questão, o preconceito racial ainda é vivenciado em muitos espaços, inclusive no âmbito
acadêmico/escolar, gerando ações violentas que vão desde as agressões verbais e/ou físicas
até a exclusão de negros e indígenas das atividades escolares e do convívio social.
É preciso ressaltar, igualmente, outra questão recorrente no âmbito escolar, a
resistência, por parte de alguns professores que argumentam não haver uma questão racial e
sim econômica – polêmica bastante discutida em muitas pesquisas da área (VALENTE, 2005).
A partir desse fato é preciso salientar que muitas são as propostas para o enfrentamento do
preconceito racial no ambiente escolar, porém, de nada adianta dispor de uma base legal de
políticas públicas, de materiais de apoio adequados à realidade local da instituição, se o
professor for preconceituoso e não conseguir lidar com as situações de conflito racial em seu
ambiente de trabalho.
Silva (2013) destaca outro aspecto na discussão apresentada: a relação entre conceitos
e poder. Assim, quando se trata de identidade e de diferença, não se fala de conceitos
inocentes, pois a própria definição deles constitui-se em objeto de disputa entre grupos sociais
que estão assimetricamente situados na relação de poder.
O que está em disputa não são apenas os conceitos em si, mas um processo mais
amplo, de luta por outros recursos simbólicos e materiais da sociedade, intrinsecamente
ligados ao poder de definir a identidade e de marcar a diferença. A elaboração das teorias não
está desvinculada dos interesses sociais (CIAMPA, 1977). É preciso problematizar, como
25
ponto de partida, a questão de quem e do que representamos quando falamos, visto que
falamos, sempre, a partir de uma posição histórica e cultural específica (HALL, 2013).
Para Freire (1996, p. 41), “Os homens vivem essa constante relação humanizante e
desumanizante, porém as relações entre opressor e oprimido aprofundam esse processo
desumanizante constituído de violência e falta de liberdade”. Sendo assim, é compreensível
que pesquisas sobre relações raciais não devam ter seu foco somente no preconceito racial e,
sim, discutir e analisar as consequências de quem sofre esses tipos de agressões.
Tratamos nesse trabalho dos diferentes olhares dados no meio social para as relações
raciais. A falta de igualdade e o racismo fazem vítimas nas escolas, nas ruas, em hospitais e
infelizmente, em muitos casos, nas famílias, permitindo haver situações de discriminação,
preconceito ou segregação. Seguimos adiante, com intuito de chamar atenção sobre os
impactos do racismo na formação da criança, e, ainda, como se desenvolve a naturalização
desse ranço ao longo de sua vida e na formação de sua identidade como pessoa invisibilizada
em nossa sociedade desigual.
O desmentido na escola
A pesquisa terá Sandór Ferenczi, psicanalista contemporâneo discípulo de Sigmund
Freud, como referência importante. Serão abordadas as noções de “trauma” e “desmentido”,
em que os autores consideram as atitudes repressivas, por vezes perversas, que corroboram
para resultantes problemáticas no psiquismo da criança. Em Psicanálise e Pedagogia, artigo
escrito em 1908, Ferenczi faz uma crítica contundente à Pedagogia alicerçada em preceitos
rígidos, que impelem a criança “(...) a mentir para si mesma, a negar o que sabe e o que
pensa” (FERENCZI, 1908/2011, p. 40).
Através da análise desses conceitos, retomados nos estudos psicanalíticos em Freud e
Ferenczi, pretende-se compreender como o saber psicanalítico junto às práticas pedagógicas
podem ajudar e/ou modificar as relações raciais na escola. Na medida em que se investiga e
compreende a origem inconsciente dos comportamentos racistas de professores e alunos.
26
O autor considera um dos graves erros da Pedagogia o recalcamento das emoções e
representações, pois, cultiva a negação das emoções e das ideias (ibid., 1908/2011, p. 40). Na
visão ferencziana, a relação que se institui entre o funcionamento psíquico e a Pedagogia
impulsionam conflitos e as neuroses. Ferenczi (1933[1932]) define que a cisão psíquica é
decorrente de um traumatismo que, por sua vez, se encontra associada à iniciativa de ocultar
a percepção do trauma, com o concomitante aparecimento da desorientação psíquica.
A criança pode, após a vivência traumática da sedução [ou de qualquer forma de
violência], portar-se subitamente como um adulto. Esta maturidade adquirida prematuramente
se deve ao esforço da criança de suplantar o sofrimento resultante da agressão. Dessa forma:
A criança que sofreu uma agressão sexual pode, de súbito, sob a pressão da urgência
traumática, manifestar todas as emoções de um adulto maduro, as faculdades
potenciais para o casamento, a paternidade, a maternidade, faculdades virtualmente
pré-formadas nela. Nesse caso, pode se falar simplesmente, para opô-la à regressão
de que falamos de hábito, de progressão traumática (patológica) ou de prematuração
(patológica). Pensa-se nos frutos que ficam maduros e saborosos depressa demais,
quando o bico de um pássaro os fere e na maturidade apressada de um fruto bichado
(FERENCZI, 2011, p.119).
Para o teórico, a consequência imediata do trauma é a fragmentação, que passa a ser
“(...) a única forma que o sujeito encontra de poder suportar uma dor impossível”.
(GONDAR, 2014, p. 3). Uma angústia indizível surge e a defesa contra esse afeto poderoso é
a “fragmentação da consciência”, que origina por sua vez uma condição de desorientação
psíquica. “A clivagem não incide sobre representações inconciliáveis com o eu, como o
recalque; ela age no plano do eu, conduzindo a sua fragmentação e até mesmo à pulverização
do eu” (ibid., 2014, p. 2), ou seja, há uma quebra na integridade do eu na situação traumática.
Em relação aos traumas sucessivos e à consequente fragmentação psíquica, Ferenczi (1933)
afirma que:
Se os choques se sucedem no decorrer do desenvolvimento, o número e a variedade
de fragmentos clivados aumentam, e torna-se rapidamente difícil, sem cair na
confusão, manter contato com esses fragmentos, que se comportam todos como
personalidades distintas que não se conhecem umas às outras (FERENCZI,
1933/2011, p. 120).
27
Este processo traumático de fragmentação do eu encontra-se associado à submissão da
criança a um saber hierárquico e hegemônico por parte dos adultos, professores e educadores,
mas, sobretudo, ao ambiente que se estrutura e propicia a manutenção de relações de poder
fundamentalmente opressoras. Tais relações, no entanto, não ocorrem apenas “de cima para
baixo”, mas se estabelecem nos “micropoderes” difundidos e “capilarizados” nas relações de
poder na escola (FOUCAULT, 2000)11
. O espaço escolar é uma máquina de aprender, mas
também de vigiar, hierarquizar, premiar e punir. Tudo o que foge à norma deve ser corrigido e
eliminado. Trata-se de um saber de tipo pedagógico que normaliza, examina e pune.
Não existe de um lado os que têm o poder e de outro aqueles que se encontram dele
alijados. Rigorosamente falando, o poder não existe; existe sim práticas ou relações
de poder. O que significa dizer que o poder é algo que se exerce, que se efetua que
funciona. E que funciona como uma maquinaria, como uma máquina social que não
está situada em um lugar privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina por toda
estrutura social. Não é um objeto, uma coisa, mas uma relação (FOUCAULT, 1981,
p.16).
Pensar em nós mesmos em relação às questões raciais e educacionais é, portanto,
repensar a educação como um instrumento para descolonizar o pensamento (GALLO &
VEIGA NETO, 2007). É preciso modificar, neste sentido, grande parte da educação como se
apresenta hoje, em uma educação humanitariamente transformadora, ao invés de ser
moldadora de formas e pensamentos a serviço da demanda estatal e/ou das elites econômicas.
Nesse sentido, é essencial investigar a educação como suporte para a construção das
subjetividades, da liberdade e do respeito à diversidade em todas as relações de poder
inexoráveis à vida em coletividade.
11 Foucault (1976/2000) teoriza sobre os aspectos genealógicos das relações de poder que
fundamentam um racismo de extermínio, que entendemos como disfarçado e sorrateiro, já que se baseia nas
franjas da ciência positivista para se justificar. Nas palavras do autor: “(...) relação não militar, guerreira ou
política, mas relação biológica. E, se esse mecanismo pode atuar é porque os inimigos que se trata de suprimir
não são os adversários no sentido político do termo; são os perigos, externos e internos, em relação à população e
para a população. Em outras palavras, tirar a vida, o imperativo da morte, só é admissível, no sistema de
biopoder, se tende não à vitória aos adversários políticos, mas a eliminação do perigo biológico e ao
fortalecimento, diretamente ligado a essa eliminação, da própria espécie ou da raça. A raça, o racismo, é a
condição da aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização. Quando vocês têm uma sociedade de
normalização, quando vocês têm um poder que é, ao menos em toda a sua superfície e em primeira instância, em
primeira linha, um biopoder, pois bem, o racismo é indispensável como condição de poder tirar a vida de alguém,
para poder tirar a vida dos outros. A função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado
funcione no modo do biopoder, pelo racismo” (p. 215).
28
A raça como conceito sociocultural
No Brasil é crescente o número de trabalhos e publicações com enfoque na relação
entre a questão racial e o processo educacional, com o objetivo de favorecer a abertura de
espaços para discussões e a busca de alternativas para minimizar a discriminação racial e o
preconceito nas escolas.
São trabalhos que abordam o tratamento sob o qual os negros estão submetidos aos
processos de exclusão no sistema de educação formal. Isso tem fortalecido o movimento de
pesquisas nessa área (CAVALLEIRO, 2000; MUNANGA, 2008). O trabalho de Sandra Maria
Machado (2015), apresentado na Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Educação (ANPED) - que problematiza a implementação da Lei nº 10.639/03 nos currículos e
a importância da formação inicial e continuada de professores para uma mudança na prática
docente e nos currículos escolares - se coaduna com a perspectiva levantada neste projeto de
pesquisa.
Pesquisas de outras vertentes também revelam autores com trabalhos elaborados sobre
os livros didáticos e detectaram a presença de conteúdos estereotipados, discriminatórios e
pejorativos e/ou preconceituosos sobre negros e indígenas. Algumas destas conclusões são
trazidas por Munanga (2008), que faz uma análise nas seguintes proposições:
Nas ilustrações e textos, os negros pouco aparecem e, quando isso acontece, estão
sempre representados em situação social inferior à do branco, estereotipados em seus
traços físicos ou ainda animalizados. 2) Não existem ilustrações relativas às famílias
negras; é como se negros não tivessem famílias. 3) Os textos induzem a criança a
pensar que a raça branca é mais bonita e a mais inteligente. 4) Nos textos sobre a
formação étnica do Brasil são destacados o índio e o negro; o branco não é
mencionado (em alguns casos): já é pressuposto. 5) Índios e negros são mencionados
no passado, como se já não existissem. (MUNANGA, 2008, p. 53).
Os autores mencionados como base teórica neste projeto criticam o processo de
desvalorização da população negra, trazendo uma série de questionamentos e enriquecendo o
desenvolvimento da pesquisa. De acordo com esses autores, entende-se que ser negro no
29
Brasil ainda é sinônimo de estigmas e de questões relativas à raça e ao racismo, que
configuram uma contradição em nossa sociedade.
A questão da raça é um termo presente no senso comum e permeia o imaginário de
grande parte da população. Esse aspecto corrobora com certa intencionalidade de manter o
negro estagnado na sociedade e, assim, manter as diferenças de modo disfarçado.
“Raça” é a categoria analítica indispensável diante da insuficiência da categoria de
“classe”, usada para dar conta da pobreza dos negros no Brasil. Esses aspectos só podem ser
revelados quando se investiga o imaginário racial e quando são explicitadas outras
determinações. Essa crença em classe como uma categoria mestra está relacionada aos
estudos da sociologia brasileira dos anos 1960, nos quais houve predomínio da análise de
classe, momento em que a influência do marxismo se consolidou no Brasil (GUIMARÃES,
2012).
A teoria de Marx não dá conta da complexidade da articulação entre economia, cultura
e política no que tange ao racismo. Contudo, para que os marxistas reconhecessem a
discriminação racial existente na sociedade brasileira, o racismo era atribuído a determinantes
socioeconômicos que desapareceriam com a suplantação da sociedade burguesa (ibid., 2012).
O termo “raça”, descartado por alguns autores (FRY.; GIROY, 1998, 2000) como
imprestável, é utilizado como conceito analítico para pensar o significado de certas
classificações sociais, bem como as normas que orientam a ação social concreta e as
discriminações a sujeitos negros que ainda se baseiam em crenças raciais.
Esse uso conceitual da “raça” não ressuscita a ideia de “raça biológica”, ao contrário,
trata-se, na verdade, de uma reelaboração sociológica do conceito, visto que a categoria
renasceu na luta política pela identificação entre os pares no Movimento Negro. Desse modo,
a noção identitária de “raça” é recuperada pela sociologia contemporânea como “conceito
nominalista” para expressar algo que não existe, de fato, no mundo físico e, sim, apresenta realidade
social efetiva.
O sistema de classificação racial por cor vem sendo paulatinamente modificado no
Brasil à medida que o ideal de embranquecimento vai perdendo sentido. Com efeito, os traços
físicos, a origem familiar, os antepassados, a cultura, a tradição e a posição socioeconômica
são igualmente mobilizados para definir a categoria censitária “cor/raça”. Essa é a
30
interpretação de Guimarães (2012) a partir dos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística - IBGE de 2008. A população branca começa a declinar mais que o esperado pelas
tendências demográficas, enquanto a parda, a preta e a amarela voltam a crescer.
Procedimentos metodológicos
A perspectiva teórico-metodológica deste trabalho possui um cunho psicanalítico
cultural. Textos político-filosóficos também vêm à baila incrementar as construções contidas
nesta dissertação. Assim, utilizar-se-á o enfoque de uma pesquisa teórica destacando a
interpretação dos saberes e práticas docentes, traduzidos através de “vinhetas escolares”.
Termo sugerido pela orientadora deste trabalho como forma de conceber
metodologicamente o conhecimento advindo de minha experiência de oito anos como
professora em escola pública. Essa concepção das “vinhetas escolares” é produzida em
analogia às “vinhetas clínicas”, como ocorre na construção psicanalítica de casos. A “vinheta”
é sempre ficcional, pois é fundamentada nas expressões do inconsciente.
Tal procedimento de criar narrativas de situações escolares, as chamadas “vinhetas”
com base na experiência educacional, toma como premissa a ideia de que o próprio sujeito se
constitui como uma ficção. Tal escolha também traz um aporte ético, pois nenhuma
informação será direta sobre uma pessoa ou outra. As histórias relatadas serão construídas de
modo a explicitar situações inconscientes típicas e repetitivas nas relações de poder na escola,
dando certa generalidade aos casos relatados, de modo que exprimam não só padrões de
discursos, mas padrões inconscientes de uma discursividade racista. Portanto, apresentarei
algumas formas em que o “racismo desmentido” (GONDAR, 2018), conceito fundamental
para a análise deste projeto, se apresenta no seio escolar.
A psicanálise vai nos proporcionar analisar o sujeito e o efeito das relações que
produzem discursos solidificados em falas (Pereira, 2012). A linguagem e o discurso são
prioridades centrais da psicanálise. Essas ações observadas caracterizam as relações sociais,
as trocas nas relações e a singularidade do sujeito. “O trabalho da psicanálise é tentar ler, no
31
sujeito um manuscrito estranho, desbotado, cheio de lacunas, emendas, incoerências e
comentários tendenciosos, escrito não com os significantes convencionais, mas com os que
expressam o mais singular” (PEREIRA, 2012).
Esse trabalho de construção de casos foi fundamentado teoricamente, ponto principal
deste trabalho. A pesquisa bibliográfica muitas vezes é caracterizada como revisão de
literatura. No entanto, é importante partir da concepção de que a revisão de literatura é apenas
um “pré-requisito para a realização de toda e qualquer pesquisa, ao passo que a pesquisa
bibliográfica implica em um conjunto ordenado de procedimentos de busca por soluções,
atento ao objeto de estudo" (LIMA E MISOTO, 2007, p. 38).
Como procedimentos de investigação, em primeiro lugar, foi realizada uma revisão de
literatura sobre relações raciais e saberes docentes. Além disso, paralelamente, foi realizada
análise do material obtido e dos documentos referentes às questões raciais no Ensino
Fundamental. Em seguida, recorreu-se à Psicanálise e às noções de trauma em Freud e em
Ferenczi, buscando suporte ao entendimento da Teoria do Desmentido, tão importante à
compreensão da dinâmica social e psíquica que estrutura o racismo. Apresenta, por fim,
situações-exemplos que ilustram e corroboram a referida teoria. As exemplificações trazidas
têm como fonte o manancial adquirido na prática docente da autora deste trabalho, pois é
repleta de situações em que relações de poder racistas são reproduzidas no cotidiano.
Os trabalhos da psicanalista Jô Gondar fundamentam a importância de Ferenczi como
grande influência na psicanálise moderna. A autora contribui para a compreensão do mal-estar
contemporâneo em relação ao sofrimento narcísico e na estruturação da teoria do desmentido,
especialmente no que concerne à pessoa negra, principal sujeito atingido por uma branquitude
massiva que camufla a falsa democracia racial vivida em nosso país.
A perspectiva aqui utilizada privilegia o enfoque qualitativo de pesquisa. Tal
abordagem qualitativa se destaca na interpretação das ações dos indivíduos, dos grupos ou das
organizações em seu ambiente e contexto social. O viés qualitativo não exclui os dados
quantitativos, posto que se entenda como as duas abordagens estão correlacionadas, no
sentido de auxiliar na compreensão dos objetivos da pesquisa (MINAYO, 2011).
Como vários procedimentos de pesquisa fazem parte da abordagem ou método
qualitativo, fizemos a escolha por alguns que dependem do objetivo traçado. Antes, porém,
trago aqui o conceito de metodologia de pesquisa apresentado por Minayo (2015) a que se
32
refere como sendo “o caminho do pensamento e a prática exercida na abordagem da
realidade” (p. 14).
Para a realização da análise, neste trabalho, foi necessário tecer algumas considerações
sobre determinadas categorias desta escritura. Ressalta-se então que o vocábulo “raça” será
utilizado no sentido dado por Guimarães (2012); Munanga (2003; 2013); Mbembe (2014);
Todorov (1993); Oliveira (2013); Schwarcz (2012) como construção social e conceito
analítico usado para compreender uma sociedade onde as crenças raciais baseadas no viés
biológico ainda orientam os comportamentos e as discriminações.
Utilizamos também como referência os seguintes autores: Frantz Fanon (1983), em
sua análise com base na psiquiatria e, sobretudo, na psicanálise, na busca de compreender a
convivência de negros e brancos na França. Para esse autor, negritude e branquitude são
instrumentos de violência e submissão para o negro, além dessa relação favorecer a alienação
de fatores socioeconômicos e históricos.
Munanga (2003) caracteriza algumas reações do negro em suas relações sociais que
vão desde a assimilação dos valores culturais dos brancos nesse mesmo contexto e até a sua
própria negação enquanto sujeitos, chegando ao desejo do embranquecimento, à falta de
reconhecimento da existência do racismo, e aos mecanismos de iniquidade e de maldade
apresentados nos discursos racialistas historicamente postulados, mas ainda praticados no
tempo presente.
Abdias Nascimento (2016), com rigor e propriedade, é abordado nesta pesquisa de
modo a denunciar a falácia do bem-estar racial que afirmam reinar em nosso país. O autor
realiza um trabalho de desconstrução na formulação intelectual do Brasil branco para explicar
uma realidade negra atual que estabelece como sua preocupação principal e urgente o
genocídio silencioso da população negra, que afeta diretamente a auto definição do negro e o
planejamento do seu futuro.
Além desses autores, retomo Neuza de Souza Santos (1983), em sua brilhante análise
sobre o Ideal do Ego, determinando inconscientemente uma condição que impulsiona o negro
a imaginar e desejar ter a aparência do branco. A autora dá como exemplo os relacionamentos
inter-raciais, ou seja, a procura do negro em se relacionar com pessoas de pele mais clara
revela a necessidade do negro adotar, em sua crença de ascensão social, a possibilidade de
provar que pode, na sociedade, ser semelhante ao branco.
33
O racismo, como uma crença na existência das raças hierarquizadas como inferiores e
superiores, surge como resultado da criação e da expansão das doutrinas raciais e, desse
modo, podemos afirmar o quanto a discriminação racial está arraigada nas práticas sociais e
constitui um sistema que reproduz as desigualdades, no qual a população negra é posta em
situação desvantajosa econômica, política, social e culturalmente (GUIMARÃES, 2009). A
esse processo de exclusão, discriminação e opressão, acrescenta-se a violência psíquica a que
as crianças, jovens e adultos negros são severamente expostos e constituem suas
subjetividades de modo traumático e clivado.
O preconceito é a crença prévia na existência de qualidades morais, intelectuais,
físicas e psíquicas ou estéticas de alguém, baseadas na ideia de raça. A discriminação ocorre
quando esse preconceito se manifesta no comportamento (GUIMARÃES, 2004).
Empregaremos a palavra “negro”, visto que foi o termo escolhido pelo movimento negro na
sua política de construção da identidade racial para designar todos os descendentes de
africanos. Trata-se do segmento racial composto por pessoas que se auto classificam ou foram
classificadas no Censo como de cor preta ou parda. O próprio Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatísticas adota essa definição.
À luz da psicanálise, podemos entender o racismo como uma forma de se esconder em
si para não ver o outro como seu semelhante e, dessa maneira, não temer perder sua própria
identidade. Vejamos a citação a seguir com uma explicação mais abrangente:
O racismo se explicaria por uma projeção daquilo que em nós mesmo está oculto,
mas é ameaçador. O que é direcionado para fora está dentro de si mesmo, seja o
masoquismo moral, sejam as ameaças às amarras identitárias da sexualidade. Isso
esclareceria o porquê de algumas pessoas terem extrema dificuldade de lidar com a
diversidade, enquanto que para outras esse processo é mais tranquilo. A
impossibilidade de lidar com a diversidade “externa”, assim, também passaria por
questões intrapsíquicas. (COELHO &ARREGUY, 2018).
Nesta análise, observamos a insegurança que o racista adquire ao se perceber como o
“outro”: algo que lhe causa profundo estranhamento. No texto Racismo, o estranhamento
familiar: uma abordagem psicanalítica, a autora Miriam Chnaiderman (1996), aponta para a
questão do indivíduo racista ter receio de ver o diferente tornar-se o mesmo, por meio da
perda do contorno próprio. O problema é “ver o outro como muito parecido, e por isso sentir-
se ameaçado na sua identidade” (CHNAIDERMAN apud COELHO & ARREGUY, 2018).
34
A inserção da psicanálise nesse trabalho justifica a investigação de discursos
dissimulados nas relações raciais, fortalecendo a estrutura de uma ideologia racista e
discriminatória do ponto de vista psíquico, institucional e social, como uma violência
silenciosa que perdura ainda hoje.
Os discursos do sujeito, assim como os discursos da instituição, tendem a produzir
repetições, mesmices, pontos de fixação, com o objetivo de conservar o igual,
preservar a rotina e garantir sua automatização. Porém, o próprio discurso, através
da fala de quem o profere, mostra-se fendido, falhado, esburacado. Ele requer
sempre interpretação, pois guarda uma estrutura de significação. É exatamente aí,
nas emergências da falha do discurso que demandam interpretação, que a meu ver a
psicologia e a psicanálise podem encontrar seu lugar. (PEREIRA, 2012. p, 29).
Considerando aspectos macrossociais historicamente construídos pela população
negra, que resultou na equivocada hierarquia da humanidade, através da efabulação a respeito
das características fenotípicas e, também, a partir da diversidade das culturas de diferentes
grupos humanos, procuramos explicitar o caráter totalizante das bases e das relações de
dominação político-pedagógica daquilo que foi produzido num contexto social racista.
Buscamos nessa pesquisa, articular elementos que expliquem a dinâmica das relações
raciais, de um modo abrangente no meio social e psicanalítico, possibilitando a compreensão
do imaginário e, ao mesmo tempo, interferindo nele, em suas formas de comportamento e
rejeição de suas origens, na constituição do campo da subjetividade humana. Preservamos
elementos do enfoque dialético neste trabalho ligado à psicanálise, e assim, procuramos
compreender questões relativas às relações racistas que se evidenciam nos sujeitos presentes
nas escolas públicas.
35
CAPÍTULO 1 – Narcisismo das Pequenas Diferenças
Neste capítulo, vamos enveredar pela psicanálise e os conhecimentos abrangentes no
pensamento ocidental do século XX através da descoberta do inconsciente por Freud. As
teorias sobre a sexualidade inconsciente trouxeram profundo impacto no pensamento
moderno e, com a mesma proporção, no âmbito da educação.
Como educadora e pesquisadora, minha aproximação à psicanálise ocorreu na atual
pesquisa de mestrado. Encantei-me pela teoria freudiana, o encantamento com o aprendizado
psicanalítico tem reformulado minha maneira de ver as relações sociais na escola e fora dela.
Embora, não tenha formação em psicanálise, esse aprendizado tem ressignificado minha
prática docente e o modo de apreender a vida em suas mais sutis nuances.
Não terei tempo suficiente para mergulhar nos aspectos históricos dessa relação tão
profícua entre educação e psicanálise. Sou apenas uma educadora que se debruça na
psicanálise e, a partir dela, minhas percepções e convicções estão sendo modificadas. Meu
objeto de estudo traz consigo a preocupação do desenvolvimento das relações raciais no
Brasil, em particular no âmbito escolar.
A maneira como tratamos ou não esse assunto tão espinhoso do racismo para negros e
mulatos, por um olhar psicanalítico, nos leva a compreender a diferença trágica, que
encaminha a desigualdade em nosso país. Essa diferença escamoteada e fingida traz a
sensação de sermos todos amigos e vivermos em igualdade; mas isso é uma farsa! Na
verdade, há um ódio camuflado em relação ao negro, imposta na seguinte formulação
discursiva, expressa estatisticamente pela quase totalidade dos brasileiros: Eu não sou o
racista, mas, conheço alguém que é (SCHWARCZ, 2012).
Nossa investigação gira em torno do sujeito não reconhecido no campo social e da
consequente relação de ortodoxia fundamentalista que corrobora para a classificação das
pessoas por suas diferenças étnicas, destacando um narcisismo patológico presente na cultura
dominante.
Referindo-me ao processo discriminatório que envolve o racismo e sua atividade
perversa através dos séculos, convido os leitores a adentrar nas especificidades do narcisismo
36
nos tempos atuais e suas sutis articulações na vida psíquica das pessoas atingidas diretamente
pelo preconceito de cor.
A partir do movimento de racialização entre os grupos de cor e suas diferenças,
destaca-se o surgimento de uma Antropologia criminal (COELHO; ARREGUY, 2018) surgida
no século XIX na Europa, difundida e estudada, inclusive implantada com rigor em nosso
país, em academias de polícia. Encontramos doutrinas que estigmatizavam negros e mouros,
por suas características genotípicas, como se isso os tornassem mais predispostos à
criminalidade. Tal doutrina deu espaço para a criação e proliferação de imputações morais,
que subjugam e oprimem povos de outras etnias não ocidentais e não europeias (ibid.).
A antropologia criminal foi criada através dos estudos do médico italiano Cesar
Lombroso (1835), de concepção positivista. Lombroso pesquisava o crime, através da
perspectiva naturalista, mas, seus principais estudos eram sobre o delinquente nato. De acordo
com seus estudos o meio influenciava pouco os criminosos, no entanto, a patologia do crime
nascia com indivíduo, e seria exposta, logo em seguida, em forma de degeneração.
O autor utilizava de características físicas e fenotípicas para exemplificar o perfil de
criminosos, alegava anomalias cranianas, designando o termo “anormal” para o delinquente.
Estudou diversos corpos de prisioneiros a fim de constatar a definição de criminoso nato
(LOMBROSO, 2001). Contudo, as descrições dadas por Lombroso revelam um cunho
segregatório, pois as características dadas por ele se assemelham com as de negros imigrantes
que aportavam na Itália, o que classifica sua teoria como racista, embora tenha sido muito
utilizada ao longo do século XX.
Em paralelo a difusões de teorias racistas, podemos ressaltar outro agravante
histórico: à invenção e disseminação de histórias que massificam a inferioridade de outros
povos. Nesse sentido, a sociedade ocidental bateu recordes de criatividade e manipulação.
Perseguiam, matavam e exploravam as populações de suas grandes terras recém-descobertas,
com o respaldo em alguma narrativa (mesmo que imaginária), embasada em algo como o
“divino” ou a “ciência”, já que essas respectivas ocasiões eram dadas como incontestáveis.
Na maneira de pensar, classificar e imaginar os mundos distantes, o discurso
europeu, tanto o erudito como o popular, foi recorrendo a processos de efabulação12
.
12 Entre intelectuais dos campos dos Estudos Pós-Coloniais e Africanos é consenso que a categoria
raça não passa de uma invenção, de “[...] uma ficção útil, de uma construção fantasista ou de uma projeção
ideológica cuja função é desviar a atenção de conflitos (...) – a luta de classes ou a luta de sexos (...)”
37
Ao apresentar como reais, certos ou exactos, factos muitas vezes inventados foi-lhe
escapando a coisa que tentava apreender, mantendo com esta uma relação
fundamentalmente imaginária, mesmo quando a sua pretensão era desenvolver um
conhecimento destinado a dá-la a conhecer objectivamente. As características
principais desta relação imaginária estão ainda longe de ser esclarecidas, mas os
processos graças aos quais o trabalho de efabulação se avolumou, assim como as
consequências da sua violência, são, actualmente, assaz conhecidos. (MBEMBE,
2014, p. 29).
Na perspectiva deste autor, utilizando como referência a obra Crítica à razão Negra
(MBEMBE, 2014), podemos compreender como os colonizadores interpretavam o negro e
seu ímpeto desbravador consciente de si e de seu povo. Os europeus viviam com o receio de
serem dominados por seus dominadores. Causando delírios neuróticos nos ocidentais, o negro
é aquele que vemos quando nada queremos compreender.
“Esse delírio causado pelo outro, acontece quando há uma perda completa da
capacidade de contenção oferecida pela internalização de um objeto primário suficientemente
bom, o sujeito vem projetar no outro tal insuficiência.” (COELHO & ARREGUY, 2018).
Complementando o pensamento, incluo uma breve contribuição de Mbembe apoiando-se em
Deleuze sobre o “ser negro”: “Há sempre um negro, um judeu, um chinês, um mongol, um
ariano no delírio, pois aquilo que faz fermenta o delírio são, entre outras coisas, as raças.”
(DELEUZE apud MBEMBE, 2004, p. 11).
Observamos como as diferenças movem o racismo, elevam a agressividade, e
produzem não importa qual critério para se manifestar cruelmente. No racismo contra o
negro, podemos perceber o ranço histórico em relação a esses povos, em diversas sociedades.
Contra essa crueldade resta, a luta pela igualdade e empoderamento da pessoa negra.
A violência racista destrói a identidade, a subjetividade e também a história dos
indivíduos. Em termos psíquicos podemos apreender nas obras de Freud (1929), o quanto a
maldade e a perseguição ao Outro, influência às relações e maltrata quem é visto como
diferente. Para esse autor, a “maldade” enquanto expressão recrudescida da agressividade e
das pulsões sádicas é inerente aos seres humanos. Freud (1920) reformulou sua teoria a partir
(MBEMBE, 2014, p. 27). Mbembe (2014) também usa o termo efabulação para referir-se a essa invenção. O
autor se refere ao cerne da questão racial como uma “efabulação”, na verdade, uma invenção, da qual
compreende-se uma nova configuração de mundo (DESIDERIO, 2017, p. 79).
38
da pulsão de morte, quando descobriu que o homem é capaz de fazer do outro não apenas
objeto de sua pulsão sexual, mas, de uma pulsão de crueldade que todos portam em si, além
de tratar o outro como um objeto e, assim, poder maltratá-lo, rebaixá-lo, estuprá-lo, deixando-
o abandonado a sua própria morte até, inclusive, matá-lo. Em suma, fazer do outro objeto de
seu gozo da crueldade. Nas palavras de Freud (1929):
Os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo,
podem defender-se quando atacadas (...) são criaturas entre cujos dotes instintivos
deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o
seu próximo é para eles, não apenas um ajudante potencial ou objeto sexual, mas
também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar
sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu
consentimento, apoderar-se de suas posses (...) (FREUD, 1929, p. 29).
Essa forma pulsional agressiva e, por ventura, cruel, de se apropriar do corpo do outro
e de suas posses é um dos componentes essenciais do racismo. A enunciação desqualificadora
e racista pode ser de cunho religioso, de cor, sexual, de gênero ou orientação sexual, vindo a
reduzir a pessoa somente a uma característica pejorativa, tomando-a para servir sua pulsão de
crueldade. Esse tipo de comportamento se constitui como a base do racismo.
Em termos psicanalíticos, podemos pontuar que Freud (1929) designava em sua obra o
racismo e a intolerância, principalmente em suas reflexões sobre o antissemitismo ao qual
podemos assemelhar à discriminação racial generalizada contra todas as raças. Segundo o
autor, na formação de grupos humanos sempre houve a necessidade de designar inimigos,
classificando quem estiver de fora como inferior. Isso significaria a solução para a pulsão de
destruição existente em cada grupo social.
Fundamentalmente, a intolerância se encontra no cerne das pequenas diferenças.
Nesse caso o ódio se concentra no Outro, como projeção daquilo que lhe é semelhante
(FREUD, 1929).
Em outra ocasião, examinei o fenômeno no qual são precisamente comunidades com
territórios adjacentes, e mutuamente relacionadas também sob outros aspectos, que
se empenham em rixas constantes, ridicularizando-se uma as outras, como os
espanhóis e os portugueses, por exemplo, os alemães do Norte e os alemães do Sul,
os ingleses e os escoceses, e assim por diante. Dei a esse fenômeno o nome de
‘narcisismo das pequenas diferenças’, denominação que não ajuda muito a explicá-
lo. (...) Com respeito a isso, o povo judeu, espalhado por toda parte, prestou os mais
uteis serviços às civilizações. (FREUD apud COELHO & ARREGUY, 2018).
39
Nas palavras irônicas de Freud, essa lógica perversa faz parte da convivência humana,
pois só haverá um grupo coeso, se fora dele houver aqueles para serem odiados, e isso não se
torna um impeditivo para a continuação desse grupamento. Na relação entre o sujeito e o
Outro, há um aumento do narcisismo que corrobora para o crescimento da violência.
Em outras palavras, qualquer insatisfação ou indiferença pode ser considerada como
desamparo social de modo a conduzir o sujeito à violência contra o outro, visto como
ameaçador. Nesse caso, os mecanismos narcísicos ampliados e o sentimento de impotência
aguçado impedem as práticas de solidariedade e compaixão. Esse movimento pulsional de
fundo narcísico aumenta o ódio e a rejeição ao outro, deixando as pequenas diferenças
intoleráveis entre os indivíduos.
Com vistas à compreensão da relação entre a violência e a humanidade (ou a falta
dela), é imperativo observar o crescimento do deslocamento cultural provocado pelo
enfraquecimento de um grupo em prol do engrandecimento de outros grupos. Aquele
violentado pela indiferença é deslocado para o centro de tudo que não convém, e é obrigado a
fazê-lo com consciência de que está sendo expurgado por um capricho ideológico de um
discurso contraditório e mórbido.
O negro tem ciência de que o sujeito branco foi criador de atitudes cruéis contra a
humanidade em benefício próprio, como: o colonialismo, a inquisição, o nazismo, o
antissemitismo, o imperialismo, a escravidão entre outras guerras em busca pelo poder e em
defesa da suposta “superioridade” e “civilização” do branco.
A força da dominação psíquica e social sob o negro era intensa, mas, o que lhe doía
era não poder adentrar profundamente nessa brancura sem se ferir brutalmente, embora esse
desejo de ser branco esteja entranhado em sua consciência como simbolismo de perfeição e
sabedoria. Retomando de forma crítica, porém bastante realista, a proposição falaciosa acerca
da suposta “superioridade” da branquitude, o psicanalista Jurandir Freire Costa (1983), alerta
para essa grande mentira histórica:
O belo, o bom, o justo e o verdadeiro são brancos. O branco é, foi e continua sendo a
manifestação do Espírito, da Ideia, da Razão. O branco, a brancura, são os únicos
artífices e legítimos herdeiros do progresso e desenvolvimento do homem. Eles são
a cultura, a civilização, em uma palavra, a “humanidade” (COSTA, 1983, p. 5).
40
Os ocidentais não se tornaram grandiosos traficantes de seres humanos, escravizando-
os brutalmente por serem racistas, já que havia algo que predominava por trás dessa
irracionalidade. Tornaram-se racistas porque usavam escravos para conseguirem poder e
incomensuráveis lucros através da escravização de não brancos. E, para justificarem suas
atitudes, criaram elementos que camuflavam seus verdadeiros interesses na escravidão, e
escondiam assim que o sistema escravocrata era movido pela economia13
.
Na complexidade dinâmica do racismo contra o negro, observamos historicamente a
consequência de ações desastrosas como a de considerarem nações inteiras como seres
inferiores e que, na sequência, embasaram episódios nefastos no caminho à “civilização”,
com apontamentos perversos endereçados ao outro, ao diferente.
Dessa maneira, se faz necessário categorizar o que é ser diferente e quão tênue é essa
classificação. Podemos afirmar que o diferente, particularmente em nosso cerne de estudo, é o
outro não branco, não descartando questões culturais, religiosas, de orientação sexual e
posições sociais. Mas, em nosso caso, o não branco é visto o tempo todo como ameaça, em
decorrência de toda atrocidade vivenciada por ele no processo pitoresco imposto pela
civilização europeia.
Em O Mal-estar da civilização, Freud (1929) nos traz a reflexão sobre o quanto o
desenvolvimento da civilização trouxe consigo o descontentamento permanente entre as
pessoas “civilizadas”. A fonte social do sofrimento mostra que fracassamos em algo, ou que,
de modo pormenorizado, suspeitamos que na contenção do sofrimento ou no anulamento
deste, seria dada pela incapacidade humana de conquistar uma quantia da natureza a ser
inconquistável. Contudo, esse ímpeto de dominação representa uma parcela de nossa
composição psíquica.
Esse argumento sustenta que o que chamamos de nossa civilização é em grande
parte responsável por nossa desgraça e que seríamos muito mais felizes se a
abandonássemos e retornássemos às condições primitivas. Chamo esse argumento
de espantoso porque seja qual for a maneira por que possamos definir o conceito de
civilização, constitui fato incontroverso que todas as coisas que buscamos a fim de
nos protegermos contra as ameaças oriundas das fontes de sofrimento, fazem parte
dessa mesma civilização(ibid., p. 15).
13 BBC de Londres. “A história do racismo e o escravismo” (2012). Disponível na internet: https: //
www.youtube.com/watch?y=0NQz2mbaAnc. Acesso em 28/10/2017.
41
Da escravização, colonização até o neoliberalismo que defende ferozmente as ideias
consumistas capitalistas, atestamos que a grande massa populacional de não brancos vive a
revelia de serem exterminados historicamente. Um genocídio incomensurável que acontece no
mundo todo seja em guerras civis, desterritorialização de nações inteiras, ditaduras que ainda
perduram ou em países como o Brasil que vive incontroláveis conflitos com o crescente poder
paralelo e a violência escancarada em relação aos habitantes mais pobres, em grande maioria,
afrodescendentes.
A insatisfação em relação à civilização foi motivada por acontecimentos históricos que
modificaram a vida de milhares de centenas de pessoas. Podemos pautar: a vitoriosa ascensão
do cristianismo sobre as demais religiões e a obrigação de catequizar quem dela não
partilhava. Esse fato, por sua vez, conflui com o genocídio dos indígenas que habitavam as
terras ancestrais no continente americano, por exemplo.
Esse episódio elementar deixou profundos rastros de infelicidade na humanidade:
ocorreu com as viagens ultramarinas que descobriram o novo mundo e o contato com
diferentes nações que rapidamente foram degradadas à inferioridade, por levarem uma vida
simples, em consonância com a superioridade atribuída à natureza, e não aos “homens”, o que
a ambição e a superioridade europeia não conseguia compreender e seguir (ibid., 1929, p. 16).
Ao longo desta última, percebemos o quanto as hierarquizações dos diferentes povos
em raças contribuíram para chegarmos à insatisfação civilizatória. Primeiro, vieram às
classificações de animais, da natureza e dos seres humanos, cujo mecanismo preponderou
pelos séculos seguintes, impondo a classificação de raças para a mantença da exploração de
populações oprimidas, em consonância com o racismo.
A violência racial faz com que o encontro com o Outro não seja uma possibilidade de
interação positiva, mas, de uma ameaça em potencial. Trata-se de um fundamentalismo capaz
de renovar cotidianamente o inimigo: o Outro como ladrão, favelado, negro, pobre,
vagabundo, preguiçoso, entre outros codinomes absolutamente pejorativos e infundados.
As questões psíquicas e raciais neste trabalho não podem ser ignoradas, doravante a
infelicidade justificada pelo conhecimento das neuroses que atribulam pessoas de um modo
geral, negras ou não, por não alcançarem suas expectativas. Quando escamoteadas, esses
aspectos psíquicos da classificação do mundo por raças acarretaram frustrações que se
tornavam insuportáveis. Consequentemente, se torna impossível viver diante do julgo da
42
opressão da lei e da ordem coercitiva imposta pela civilização que deveria libertá-los.
Paradoxalmente, livrar-se da dita “civilização” traria a possível felicidade. Mas, como se
libertar dela, depois de aprisionar a todos?
De acordo com Freud (1929), o problema do estado de felicidade e as questões da
dificuldade dos seres humanos em serem felizes, estão vinculados a três fontes de nosso
sofrimento, sendo que as duas primeiras nos remetem às condições frente à natureza, sua
superioridade e nossas limitações e fragilidades em relação ao nosso próprio corpo; essas
condições são insuperáveis e ocasionam, assim, grande desconforto.
Nossa civilização é em grande parte responsável por nossa desgraça e que seríamos
muito felizes se abandonássemos e retornássemos às condições primitivas. Chamo
esse argumento de espantoso porque, seja qual for a maneira por que possamos
definir o conceito de civilização, constitui fato incontroverso que todas as coisas que
buscamos a fim de nos protegermos contra as ameaças oriundas das fontes de
sofrimento, fazem parte dessa mesma civilização (FREUD, 1929, p. 15).
A nossa sociedade é perversa, detratora e preconceituosa. Ao falar mal de alguém eu
estou expondo minhas dores, expondo uma forma de catarse, na qual transfiro minha energia
para este campo, ou seja, falar mal é uma forma de falar do que me dói, do que incomoda e,
por isso, a necessidade de ter cuidado com que falo, pois é quase um “raio-X” da minha alma.
No discurso de um racista está o preconceito daquilo que vejo de mim no outro. No
humor, por exemplo, se retiramos das piadas brasileiras o negro, o pobre, o homossexual e o
nordestino, veremos a ausência de uma proposta humorística, pois, só se torna atrativo quando
degradante ou opressor, atingindo a autoestima de alguém.
O preconceito é um dos elementos que estabelece uma tentativa de aliança entre mim e
o outro. Ele nasce da ignorância e do medo que habita em nós. A falta de conhecimento e a
angústia do medo existente em nós fazem surgir o preconceito, o ódio racial e o pavor de ser
superado pelo outro.
No auge do preconceito está meu desejo. A todo instante, naquilo que eu projeto no
outro, o preconceito é forte e livrar-se dele exige muito. Para que seja superado precisamos de
duas coisas: a educação, a coerção e a lei.
43
Penso que nesta discussão, a conscientização acerca da importância do negro na
constituição da sociedade brasileira no passado e no presente é um assunto que, mesmo em
tempos líquidos (BAUMAN, 2007), ainda é considerado um tabu social. As pessoas
“comuns” não disponibilizam tempo para aprofundar e discutir o problema do racismo.
Podemos pontuar que o conhecimento - como forma legítima de sair da ignorância e não
como um fetiche conteudista - é também adquirido através de um processo doloroso de
encontro com “verdades” intranquilas que precisamos estar dispostos a descobrir.
“O saber dói”, incomoda e nos tira da zona de conforto na qual nos encontramos.
Preferimos na maioria das vezes não pensar sobre as razões que nos fazem ser tão pacíficos
em relação à agressividade gratuita do outro. Como reagir se somos educados de forma
acrítica e amorfa em relação à indiferença que nos cerca?
A concepção acerca da expressão o “saber dói” é originada em Freud (1896). A
compreensão de trauma pairava na perspectiva de que a criança assexuada, ainda não tinha
condições de dar sentido a um evento erótico traumático que, na juventude, ressurgia de
forma acentuada através de neurose. “Nesse contexto, a problemática do trauma implicava,
efetivamente, uma relação do sujeito com o saber: para o adolescente/adulto que sofrera
assédio sexual na infância, saber dói” (KUPPERMAN, 2017, p. 49).
Os meios de comunicação, o entretenimento, nos são oferecidos com o propósito de
nos fazer “repousar em berços esplêndidos” no colo de nossos agressores, ao preço de nos
iludirmos de que ainda vivemos em plena harmonia de uma democracia racial. Situação
elástica que nos silencia, aniquila, imperando na maioria das famílias de classes populares.
Propositalmente essas famílias não possuem garantia de acesso a uma educação de qualidade,
ao lazer e a bens culturais que agucem o desejo de sair da inerte plateia em que se
transformou nossa sociedade brasileira ao longo dos séculos.
A escravidão moderna ainda nos condena, usa de estratégias como a meritocracia, a
competitividade injusta e a divisão de classes e de capital. Afinal até que ponto cada um de
nós atua inconsciente e inconsequentemente no “narcisismo das pequenas diferenças”
absolutamente “identificado com o agressor”? Ora, quem se identifica, em certa medida, é ou
passa a ser, a ocupar esse lugar, tomando o papel de opressor, que se vê como “superior”,
violento apenas se achando arrogantemente acima dos outros.
44
Como pesquisadora e mulher negra, afirmo que ser negro na sociedade brasileira não é
nada fácil. Convivo diariamente com o desafio de ter que me submeter e perceber um mundo
de diferenças, onde o branco é privilegiado em muitas ocasiões. No trabalho docente, observo
a presença de poucos negros e, quando há, vejo que não expressam conhecimento a respeito
de sua negritude, tampouco conversam sobre questões raciais ou sobre a luta pela conquista
de uma educação antirracista. Esse silenciamento me assusta e consterna.
As relações entre docência e questões raciais não são debatidas, mesmo frente a
conflitos raciais entre alunos. Nesse caso, no máximo, a discussão se aproxima da condição de
bullying na escola: outra espécie de “fetiche cientificista” que mais encobre os fatos do
racismo do que os esclarece e descontrói.
Assumir a roupagem da negritude é fundamental quando nos entendemos como
negros em nosso país. Infelizmente, ainda vejo pessoas que se escondem atrás de aparência
para disfarçar sua cor, faltando à percepção de negritude. É preciso reafirmar com orgulho:
não sou morena clara, sou negra!
Quantas vezes no passado me deparei com pensamentos íntimos de que gostaria de ser
branca para encarar alguma situação que, vivida por um negro, é vista como consequência da
cor e não um erro humano. Esse desejo externava o quanto ainda sofria em relação a minha
cor e à condição de ser negra numa sociedade racista e desigual.
O anseio por perder a cor demonstrava o quanto estava sujeita ao imperativo racista,
negando minha identidade. Dou ao outro o direito de definir quem sou, ou introjeto aquilo que
ele, o branco, pensa de mim. Simplesmente me desfaço de quem sou, separo a percepção da
representação psíquica que me constitui, assim, me represento no branco, me desestruturo e
fico à deriva da violência racista, como em uma alucinação negativa (COSTA, 1983).
Busco respostas para o que sentia. Como negra, pobre e suburbana, onde fica meu
lugar nessa sociedade classista e falsamente burguesa que me diz direta e indiretamente que
não pertenço a determinados lugares, a bens de luxo ou uma posição confortável frente aos
brancos? “Até os dias de hoje ele – o negro – tem sido julgado pelo branco, um juiz
completamente tendencioso em seu próprio interesse, certamente mais que parcial e injusto,
quando não flagrantemente criminoso (DZIDZIENYO apud NASCIMENTO, 2016, p. 96).”.
Na psicanálise é recente a discussão racial. A relação dos negros e sua emocionalidade,
principalmente do negro falando por ele mesmo, foi negligenciada por muito tempo, e quando
45
abordada foi aprofundada por poucos (COSTA, 1983; FANON, 1983). Mas, acredito que esse
fato não será um impeditivo para que hoje seja possível dissertar com profundidade sobre o
racismo através da psicanálise, de modo a buscar respostas que caracterizem essa desumana
forma de opressão.
A população negra necessita buscar conhecimentos e referências para constituir um
discurso acerca de sua identidade e, principalmente, de sua afetividade. O que possuímos e
introjetamos no inconsciente é o ideal de ego do branco como alusão de perfeição em todos os
âmbitos sociais e culturais. Assim, o que temos como resultado são negros numa sociedade
branca (SOUZA, 1983, p. 17).
Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade,
confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas
alienadas. Mas é também, e, sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar
sua história e recriar-se em suas potencialidades (ibid., p. 18).
Essa incompletude é vivida por muitas negras brasileiras. Não se empoderar e guardar
consigo o desejo quase eterno de impor-se branco, na imagem, nas ações e principalmente na
ascensão social. Assim, o negro no esforço pela ascensão social, perde sua identidade de
maneira crescente e devastadora. Ignora sua essência, raízes e credo, se identifica com o
branco, com o delírio de tornar-se o outro, seu agressor.
Podemos ler em Mbembe (2014, p. 139) que o discurso negro foi estabelecido por
três acontecimentos históricos: a escravatura, a colonização e o apartheid. Para o autor, esses
três pilares são atualmente a base do discurso negro. Vamos observar com detalhes o que
significam.
(...) a separação de si mesmo, implicou uma perda de familiaridade consigo, que o
sujeito, estranho a si mesmo, foi relegado para a identidade alienada e quase inerte.
Assim, em vez de ser ele mesmo, como seria suposto viver, cresceu numa alteridade
na qual o eu deixou de se reconhecer: o espetáculo da cisão e do desmembramento.
De seguida, a ideia da desapropriação. (...) Por fim, a ideia da degradação: a ideia da
degradação: a condição servil não terá unicamente mergulhado o sujeito negro na
humilhação, no rebaixamento e num sofrimento inominável. No fundo, passou por
uma morte civil caracterizada pela negação da dignidade, pela dispersão e pelo
tormento do exílio (ibid., p. 139-140).
Em outras palavras, Mbembe nos diz que a escravatura, a colonização e o apartheid
formam o núcleo basilar do desejo do negro de “se-saber-ele-mesmo (o momento da
46
soberania) e de se-ter-a-si-mesmo no mundo (o movimento de autonomia)”, movimento que
oportunizou o negro a lutar por si e por seus direitos. O discurso do movimento negro deu,
assim, um pontapé inicial para o movimento de libertação e reconhecimento próprio de sua
história como personagem principal.
Para o negro conseguir ter conhecimento de si e autoconfiança é necessário ter
conhecimento de sua história como sujeito de ações positivas. Ter sua representação como
agente livre de uma concepção tradicional que o define ao longo de séculos como socialmente
inferior e incapaz, sem uma visão positiva de si mesmo. Essa falta de representatividade fez o
negro tomar o branco como modelo ideal de identidade.
A emocionalidade do negro foi posta sem foco definido, algo sem importância,
levando-o a se adaptar à realidade imposta pelo branco, e, assim, configurar estereótipos que
sugerem um paralelismo entre cor negra e posição inferior (SOUZA, 1983, p. 19).
Viver com a insígnia da cor negra é um desafio doloroso e cotidiano. Implica em
conviver com a invisibilidade, com a inflexão de alguns grupos que resistem em olhar o negro
como um sujeito do mínimo nível social, que ainda acreditam na incapacidade intelectual de
pessoas negras, e tendem a insistir na destruição da identidade dos negros, impondo a cultura
branca.
Negros e brancos viam-se e entreviam-se através de uma ótica deformada
consequente à persistência dos padrões tradicionalistas das relações sociais. O negro
era paradoxalmente enclausurado na posição de liberto; a ele cabia o papel de
disciplinado – dócil submisso e útil – enquanto o branco agia com o autoritarismo,
por vezes paternalista, que era característico da dominação senhorial. Esse lugar de
inferioridade se espalhava no modo de inserção da população negra no sistema
ocupacional das cidades (SOUZA, 1983, p. 21).
A psicanalista negra, Neuza Santos Souza, em seu livro magistral Tornar-se Negro
(1983) nos convida a compreender a invisibilidade da emocionalidade do negro, de seus
sentimentos e impressões acerca de uma exclusão social camuflada no Rio de Janeiro. A
autora apresenta depoimentos marcantes de pessoas negras que viveram esse processo de
preconceito e incompreensão de sua negritude, sua história e importância na constituição de
suas identidades.
Neste capítulo, Neuza de Souza Santos é muito referendada, primeiramente por me
identificar com seu trabalho e, em seguida, por perceber que faço parte desse processo de me
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tornar negra em todas as implicações necessárias, para entender o desenvolvimento de
formação da minha própria identidade. Contudo, reforçando meu desejo de ascensão social,
determinada em não deixar de ser negra para embranquecer, que configura uma situação de
luta e resistência contra a imposição do embranquecimento.
A ascensão do negro traz consigo o desejo pela brancura, ou o deixar de ser negro, de
estar em trabalhos de brancos, vestir-se como branco, respirar branco (ibid., 1983). Vivemos
em uma estrutura ideológica que massifica o quanto a população negra é vista como
marginalizada, exaltando o branco indiretamente como o exemplo a ser seguido e admirado.
Na história, principalmente de povos colonizados, encontramos diversos exemplos de
violência desmedida e desqualificação do outro enquanto semelhante. Em nossa cultura
ocidental ou reconhecemos no outro um semelhante no qual nos identificamos e atribuímos
nossa humanidade ou o consideramos como diferente, menosprezando e conferindo toda
desumanidade e desprezo, aferindo violência e discriminação.
Freud em (1929) inaugura o conceito “narcisismo das pequenas diferenças”, no qual
postula a possibilidade de uma pessoa se intitular melhor do que outra e, assim, empregar as
características pessoais como instrumento para eleger o outro como inferior. Daí todo o cunho
racista e preconceituoso é justificado com violência por questões de diferenças encontradas no
outro que se torna ameaçador.
A existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e
supor com justiça que ela está presente nos outros, constitui o fator que perturba
nossos relacionamentos com o nosso próximo e força a civilização a um tão elevado
dispêndio (de energia). Em consequência dessa mútua hostilidade primária dos seres
humanos, a sociedade civilizada se vê permanentemente ameaçada de desintegração
(FREUD, 1929, p. 29).
Nesse ponto observamos o quanto o narcisismo é um traço fundamental do ser
humano na constituição cultural, ideológica e social, enfim, nas relações com o outro.
Considerado um facilitador na criação de mitos e crenças, o “narcisismo das pequenas
diferenças” se instaura através do discurso sobre qualquer artifício, a fim de escamotear a
realidade e refletir o simulacro, negar a história e manipulá-la para convencer que
determinados fatos são de ordem natural.
Destacamos o mito negro que, neste caso, foi constituído como a configuração de um
produto psíquico que envolve o princípio do prazer e a ordem do imaginário, incluindo no
48
seio de tantas variáveis a singularidade do problema negro, imposta como a marca da
diferença e da identidade negra. Em contraponto, o mito negro se impõem como um desafio
ao sujeito que nega sua predisposição para a subserviência e combate a reificação, mesmo
com tudo a sua volta confirmando sua condição submissa. Dessa forma, o negro precisa
derrotar cotidianamente o mito para se libertar.
Como Édipo, [o negro] se encontra frente à frente à Esfinge e seu enigma: é vital
apoderar-se do conhecimento, desvendar a resposta e assim destruir o inimigo para
seguir livre. Obviamente, cabe a negros e não negros a consecução desse intento,
mesmo porque o mito negro é feito de imagos fantasmáticas compartilhadas por
ambos. Razão maior para que tal empenho seja comum é o nosso anseio de construir
um mundo onde não mais seja preciso dividi-lo entre negros e brancos (SOUZA,
1983, p. 26).
Para Chnaiderman (1996), a questão principal do racismo não é o medo do diferente,
mas, o horror ao igual. Nesse encontro, o racismo e o exotismo andam juntos para dar
significado ao Outro, e assim, surge o fato de esse indivíduo “outro-igual” ser visto, em
termos da teoria psicanalítica, como nosso horror, nosso “estranho familiar” (FREUD, 1919),
ou seja, aquele que tem acesso aos mesmos direitos que os nossos, disputando na mesma
estrutura de poder e competindo na conquista de privilégios.
Nessa ideologia imposta para subalternizar o “Outro”, o negro, por receio de uma
disputa por direitos e poder, a resistência e a consciência de cor surgem somando forças para o
negro buscar condições de superar-se mais uma vez. Essa articulação com a alteridade como
algo aberto e familiar promove o desejo de conhecer-se como negro e saber de sua história e
descendência, como um de força e orgulho da negritude.
Em suma, a alteridade do negro é admirável. Embora haja tamanha complexidade nas
situações que abortam a esperança e as perspectivas de livrar-se da doença causada pela
disputa ambiciosa de poder vorazmente imposta pelo racismo, o povo negro se desvitimiza,
porque não há espaço para isso. Vivemos em um espaço de luta, mesmo tendo a história, a
sociedade mesquinha e as leis contra nosso pleno desenvolvimento como seres humanos,
sujeitos de nossas vidas e histórias.
As armas para o combate cotidiano são a desalienação e politização de sua situação
como indivíduo simultaneamente único e coletivo. É a luta contra a tradição de discórdia e
49
manipulação da civilização, que fere diretamente o negro em sua subjetividade. As marcas em
seu inconsciente machucam e subtraem os meios de identificação racial.
Não obstante a todos os ataques, o negro resiste à falta de tudo o que lhe foi retirado,
a tudo o que foi proibido e, apesar disso, não tem medo de confiar e recomeçar, buscando
forças “sobrenaturais” para conquistar direitos e sair das armadilhas impostas pelo
“narcisismo das pequenas diferenças”. É necessário, portanto, combater as amarras
inconscientes que enclausuram o Outro em um sofrimento narcísico de dor e rancor. O povo
negro, hoje, nos mostra o quanto somos guerreiros e vitoriosos por nossa grande resistência e
exemplo de vida.
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1.1Por que precisamos (urgente) de Fanon?
A estrutura do presente trabalho se situa na temporalidade. Todo problema humano
deve ser considerado a partir do tempo, sendo ideal que o presente sirva para
construir o futuro (FANON, 1983, p. 13).
As discussões a respeito de Frantz Fanon não estão acontecendo só na academia, mas
também a partir de uma nova geração de ativistas de grupos antirracistas, mobilizados por
situações do ressurgimento do racismo nesta nova fase do capitalismo global. Fanon é
considerado um despertar coletivo para a desalienação da humanidade frente ao passado
construído na colonização de corpos e mentes.
O pensamento de Fanon no panorama de nossa atualidade tem sido debatido por
muitos que consideram sua obra como elemento central, juntamente com as categorias que
propõe e se apresentam tão apropriadas para combater o racismo, devido à relevância e
profundidade para a compreensão de nossa sociedade (MBEMBE, 2011).
A contribuição fundamental de Fanon, segundo a corrente de estudos culturais ou pós-
coloniais14
, se situa numa perspectiva pós-estruturalista, que propõe uma leitura do
colonialismo como paradigma subentendido à sociedade moderna, desse modo, causadora de
relações racializadas, escamoteadas e não (ou pouquíssimo) discutidas até hoje.
Outra linha de estudos desenvolvida sobre o pensamento de Fanon é a corrente surgida
na América Latina, conhecida como proyeto decolonial ou proyeto de la modernid. Esses
pensadores militantes discutem o autor como forma de análise do capitalismo contemporâneo
de acordo com as apresentações do racismo na perspectiva da América do Sul. Tendo como
alvo a crítica ao pós-modernismo e ao pós-estruturalismo, essa corrente diverge dos Estudos
Pós-Coloniais na ideia de superação do colonialismo que o conceito “Pós” impõe.
14 Os estudos pós-coloniais se caracterizam como uma corrente contemporânea inspirada nos estudos
de Frantz Fanon com influência das áreas da Filosofia, Sociologia, Antropologia, Historiografia e Ciências
políticas. De acordo com Álvares (2000, p. 222): “Os teóricos pós-coloniais se destacam pela ênfase na temática
da alteridade. A Teoria pós-colonial tende a transcender as consequências do colonialismo, servindo como frente
de combate a qualquer grupo que se sinta discriminado em relação à norma prevalente - seja esta técnica, social
ou sexual -, e que procura implementar uma política de identidade através da afirmação da diferença.” Entre os
seus principais teóricos, estão: Hall (1996 e 2009), Bhabha (1998), Said (2004), entre outros.
51
A corrente latino-americana faz crítica ao pós-colonialismo, principalmente por ser um
termo nascido em terras britânicas e americanas. Dessa maneira, fica a desconfiança do termo
“pós” não ter o significado de mudança como se acreditava, tornando-se um conceito vazio
(MIGNOLO, 2003). A banalização do termo “pós” continua a garantir o poder a quem
inaugurou o termo e quem nele ainda acredita (ibid., 2003)
A discussão acerca da descolonização abre espaço para reconstrução da
aprendizagem, numa nova vertente de diálogo com os povos colonizados ou que ainda vivem
sob esta opressão manipuladora de conhecimento. Esse projeto propõe a construção de uma
rede a favor da justiça, igualdade, diversidade social e, prioritariamente, de conhecimento
(GROSFOGUEL, 2009, p. 127).
Em consonância com a atualidade do pensamento de Fanon, essa nova abordagem é
necessária, segundo Gibson (2007), por nos oferecer a compreensão da composição da
violência colonial em nossa sociedade contemporânea. Ele cita exemplos desse movimento
em situações de conflitos na palestina em torno da Primavera Árabe; na insistência da
“barreira de cor” na África do Sul pós-apartheid, e na privatização da água na Bolívia:
aspectos colossais na desigualdade permanente que corroboram as preocupações “fanonianas”
na atualidade.
Para Wallestain, em seu artigo intitulado Ler Fanon no século XXI, a
contemporaneidade de Fanon está além da violência do colonialismo e as consequências na
subjetividade dos colonizados. Suas ideias promovem lutas pela garantia das identidades e a
emancipação humana de um modo mais amplo. Para ele, as lutas de classes estão além do
universo europeu e precisam ser vistas em suas particularidades sociais e históricas dentro do
contexto colonial (WALLESTAIN, 2008).
Para compreendermos a situação do negro como personagem de múltiplos processos
psíquicos na busca de reconhecerem-se como humanos, abordaremos, nesse capítulo, a obra
“Pele negra, máscaras brancas”, fundamental para esse diálogo.
Conhecer Frantz Fanon significa entender a ideologia do embranquecimento, tendo a
raça branca sido considerada como a superior, símbolo de beleza ocidental, restando aos
negros a tendência a introjetar esta ideologia e acreditarem que são inferiores, e, nesse
sentido, passar a buscar o branqueamento como forma de aceitação social.
52
Se de facto existe em Fanon algo que nunca envelhecerá, é exactamente este
projecto de ascensão colectiva em humanidade. Esta irrepreensível e implacável
procura de liberdade necessitava, aos seus olhos, de mobilizar todas as energias da
vida. Empenhava cada pessoa, e cada povo, num incrível trabalho sobre si e numa
luta de morte, sem limites, que devia assumir como tarefa pessoal, sem poder
delegá-la nos outros (MBEMBE, 2014, p. 272).
Em uma sociedade como a nossa, os que negam sua negritude, seu corpo e sua cultura
ou ancestralidade, são os indivíduos que introjetaram a ideologia do branqueamento. A cultura
branca ocidental é enaltecida em detrimento da cultura negra, além de outras, que são
suprimidas, como as dos povos ancestrais americanos, os indígenas.
Nesse sentido, é formada uma espécie de escalonamento no qual seu valor é
determinado pelo quão negro você é. Nas palavras de Fanon (1983): “O negro quer ser
branco. O branco obstina-se a obter a sua condição de homem (...). O branco é escravo da
sua brancura. O negro da sua negrura. É na realidade: os brancos se consideram superiores
aos negros”. (p. 11)
Fanon (ibid.) investiga o racismo em seu modo objetivo e subjetivo. Busca
compreender a consequência do racismo tanto para o opressor quanto para o oprimido;
dialoga com autores como Sartre, Jaspers, Aimé Césaire, Senghor e também com autores de
outras épocas pelos quais foi influenciado, como: Hegel, Marx, Freud.
Os autores de origem marxista nos ajudam a compreender uma relação que
consideramos ainda atual no pensamento “fanoniano”. Trata-se da problematização da
“dialética do senhor e do escravo”, realizada por Hegel. Essa é uma abordagem em
contraposição à perspectiva multiculturalista. Fanon dá ênfase a um humanismo que repõe a
discussão da relação entre indivíduos e humanidade de forma geral, no intuito do indivíduo se
colocar na centralidade e na disputa pela universalidade.
Para Hegel (2007) a consciência dominada se tornaria consciência independente em si
para si, referindo-se à condição do trabalho e da servidão. Fanon discorda veementemente ao
afirmar que o sujeito só conquista a consciência independente quando, desalienado, se entrega
à prova de fogo na guerra. Dessa forma, a consequência será a imposição ao Outro como
sujeito que tem a convicção de “seu próprio valor em verdade objetivo universalmente válido
(FANON, 1968, p. 181)”. Em outras palavras, somente através da luta direta, da desalienação
53
e ativismo político, o colonizado terá condições de se contrapor ao colonialismo e, portanto,
ao neocolonialismo.
Mbembe relembra Hegel justamente por esse intelectual acreditar que os negros
africanos não passavam de “estátuas sem linguagem ou consciência de si”. Mbembe
concorda com Fanon, e se debruça no devir-negro do mundo, através da problematização
acerca do conceito de raça, uma forma constituída para valorizar tudo que seja europeu. O
hemisfério ocidental desejou ser o bairro mais civilizado de todos, só ele deu origem a uma
ideia de ser humano com direitos civis e políticos, permitindo-lhe desenvolver seus poderes
privados e públicos como pessoa, como cidadão que pertence ao gênero humano. Sendo
assim, ao negro restou ser um símbolo acabado do que não agrada, não acrescenta, como um
outro dessemelhante (MBEMBE, 2014).
Por meio de todos esses diálogos com os mais diversos autores, Fanon pretendia
encontrar saídas para a dominação colonial, do ponto de vista do oprimido. A descolonização
vai se dar através de um ato de emancipação econômica das colônias e da emancipação
cultural do negro. Nesse processo, ele se depara com a questão da identidade conflituosa do
negro. Fanon nos exorta a respeito: “Subjetivamente, intelectualmente, o antilhano se
comporta com um branco. Ora, ele é um preto. E só perceberá quando estiver na Europa; e
quando por lá alguém falar de preto, ele saberá que está se referindo tanto a ele quanto ao
senegalês” (FANON, 1983, p.132).
Esta percepção de não reconhecimento em face do branco francês, ou de qualquer
outro branco, exerceu forte influência no pensamento de Fanon. Esse sentimento influenciou
suas obras e a formação de seu pensamento político.
Ao discutir a identidade negra, o autor é cuidadoso para não repetir os estereótipos que
o colonizador criou. Buscou compreender a identidade negra a partir da restituição de uma
humanidade que o colonialismo negou. Uma das estratégias do colonialismo europeu foi
tentar reduzir o negro a estigmas, como à rítmica, à sensualidade, à musicalidade e à religião.
Trata-se da representação de um “exotismo” que passou a ser “colada” a todos os povos não
brancos, tanto negros, nas mais diversas etnias, quanto indígenas, aborígenes e povos
autóctones.
Os estereótipos inerentes ao racismo criaram um complexo de inferioridade no negro.
Frantz Fanon vai confrontá-los, afirmando que o negro é mais do que as imagens caricatas
54
desenhadas por europeus. O negro é racional, consciente e pode ser o que quiser da melhor
forma possível, tão “civilizado” quanto um branco.
Outra estratégia usada pelos colonizadores europeus foi destituir dos povos negros
africanos toda sua história e cultura, de maneira devastadora. Uma das muitas lutas de Fanon
foi provar a importância de o negro reescrever sua própria história e de fazer isso como agente
principal, protagonista, sujeito de sua história na humanidade.
Em uma das faces de reestruturação do racismo, o colonizador até chegou a considerar
a cultura do negro, mas a reboque da história e da cultura do europeu. As estratégias utilizadas
forçaram os negros a uma alienação colonial, um processo perverso que agia na
impossibilidade do negro em se constituir enquanto protagonista da sua própria história.
Desse modo, o negro se situa em uma relação social onde não há a possibilidade de se
constituir como sujeito. Essa situação o torna alienado, mesmo se tiver a consciência do que
está acontecendo e de quem são seus inimigos.
A alienação do negro tem se realizado pela inferiorização, principalmente do seu
corpo, que atinge sua mente, seu espírito, sua história e sua cultura. O processo de
recuperação da identidade tem uma relação análoga com a inferiorização. Inicia-se pela
aceitação dos atributos físicos da negritude, já que o corpo constitui a sede material de todos
os aspectos da identidade, antes de atingir os atributos culturais, mentais, intelectuais, morais
e psicológicos (MUNANGA, 2009).
Para Fanon (1983), não basta que o negro mude sua visão de mundo para que ele deixe
de ser alienado, o negro precisa mudar o mundo. Para ele não há apenas uma luta de ideias,
mas uma luta prática. “Sendo nosso propósito a desalienação dos Negros, queríamos que eles
percebessem, que toda vez que há incompreensão entre eles e o Branco, há ausência de
discernimento” (p. 33).
O negro, assim como todo povo outrora colonizado, tem em sua essência um
complexo de inferioridade, como consequência do fim de todo o significado de sua cultura
que foi tomada pelo dominador. A distância de sua cultura materna torna o negro alienado e o
impulsiona a um processo de aculturação e imersão na cultura do outro.
Quando em contato com a cultura dos brancos, o negro muda de estrutura psíquica e
social independentemente de qualquer reflexão. O que importa é ser como o outro, essa
55
atração, pode ser mais bem explicada através da psicanálise, compreendida através das falhas
que são deixadas como rastro do discurso (FANON, 1983). Discutiremos a respeito da visão
psicanalítica na obra de Fanon mais adiante.
Frantz Fanon vem ao nosso interesse por integrar questões de psicanálise e raça, e
discussões que envolvem representação cultural, identidade negra, desalienação e luta de
oprimidos pelo direito a sua própria história e humanidade; questões que foram, por assim
dizer, “roubadas” pela colonização ocidental.
Em Pele negra, máscaras brancas, Fanon (1983) desenvolve sua tese sobre a relação
da identidade negra com método existencialista de Jean Paul Sartre, demonstrando o desafio
em lidar com as revoluções que efervesciam no terceiro mundo. Fanon (1983) se lança na luta
entre senhor e escravo, e mostra que esta é uma luta por poder, para possuir a exploração e o
lucro do trabalho desumanizado.
A questão de luta por poder interessa muito a Fanon, porque ele compreende
claramente que a relação entre colonizador e colonizado é uma luta de morte e desumanidade.
Em contrapartida, nesta relação ele também observa além da dependência do senhor (branco)
e conclui que há a negação de reconhecimento do escravo e isso se consolida com o fato de o
senhor, o tempo todo, afirmar: “Não enxergo você, você não é nada”.
O negro que viajava para França percebia que o lema “igualdade, fraternidade e
liberdade” não era de fato válido para todos. Igualdade não fazia parte da vida social francesa,
assim como não fazia parte da sociabilidade existente nas colônias europeias. Essa realidade
ainda é duramente percebida na rejeição sistemática de muitos países europeus em acolher
milhares de refugiados vindos da África e do Oriente Médio, que, inúmeras vezes, morrem no
mar mediterrâneo. Não se pode esquecer que a diáspora africana se deve às diversas guerras,
muitas vezes financiadas por países Europeus, quando estes, simplesmente, lucram com a
venda de armas para ditadores.
A verdade é que a civilização dita “europeia”, a civilização “ocidental”, tal como a
modelaram dois séculos de regime burguês, é incapaz de resolver os dois problemas
maiores a que a sua existência deu origem: o problema do proletariado e o problema
colonial; que, essa Europa acusada no tribunal da “razão” como no tribunal da
“consciência”, se vê impotente para se justificar; e se refugia, cada vez mais, numa
hipocrisia tanto mais odiosa quanto menos suscetível de ludibriar. A Europa é
indefensável. (CÉSAIRE, 1965, P. 13).
56
A busca de Fanon era pela conquista de igualdade plena não só na França, mas, em
todos os lugares, independente do preconceito. Esse racismo que fere ilustrado pela cor da
pele e que não pode ser transformado faz o branco temer o negro com toda sua força a ponto
de tentar aniquilá-lo, mas, mantendo-o por perto para ter o controle total de suas vidas.
Poderíamos afirmar que o deslocamento da agressividade do branco para o negro é
fundamentalmente um modo de proteger o branco de si mesmo. Assim, ele deposita sua
agressividade negando a possibilidade de o negro ser um homem capaz de ascender (FANON,
1983). O autor relata seu desejo por estudar a condição do negro e a alienação sofrida na
colonização. Ele próprio sente-se deslocado quando vai para França iniciar seus estudos em
medicina e percebe que sua cor o impedia de ser igual aos seus conterrâneos. Ele entende,
enfim, que, em face do branco, era visto somente como um “preto” e não como um igual.
Fanon encontrou na psiquiatria uma forma de devolver a liberdade àqueles que a
perderam ou fugiam dela (por estarem psicologicamente doentes). Fanon foi um libertador,
viveu e lutou por isso.
Ao iniciar seu trabalho em hospitais psiquiátricos, Fanon tem como referência seu
amigo psiquiatra François Tosquelles15
(1912-1944), do qual se tornou aprendiz. Ele se
inspirou nos estudos de Tosquelles, que transformaram sua concepção sobre a psiquiatria e a
relação da luta política como elemento fundamental para superar as alienações psíquicas
causadas pelo colonialismo.
Pelo viés da psiquiatria, Fanon conseguiu provar o que a violência do racismo causava
na psiquê dos colonizados e colonizadores. Os colonizados incorporavam drasticamente as
alienações coloniais mesmo durante o levante do protesto negro, em direção à descolonização.
Ao tentar aplicar suas percepções sobre o problema dos pacientes em territórios
coloniais, vinculando as enfermidades ao colonialismo. Fanon aceita neste mesmo
ano um contrato com um hospital psiquiátrico na Argélia. Durante sua residência
15 François Tosquelles, psiquiatra espanhol que participou da guerra civil Espanhola, instala-se na
França onde inicia diversos estudos alternativos de psiquiatria em Saint Alban, onde Fanon trabalhou.
Anticolonialista, Tosquelles criou a psicoterapia institucional, que poderia ser traduzida como terapia
comunitária. Influenciado por Freud, Politzer, Reich e Marx, pensava a loucura – alienação psíquica – ou
sofrimento psíquico em sua relação com o meio social em que o doente está inserido. Numa outra perspectiva, a
desalienação psíquica dependeria da reorganização da sociedade e, portanto, as terapias de tratamento
introduziam experimentos alternativos como assembleias democráticas entre profissionais e pacientes, trabalhos
comunitários etc. (RODRIGUES, 2007).
57
neste local os resultados de suas investigações o convenceram das dimensões que o
regime colonial assume e como este regime desarticula a estrutura psíquica das
pessoas (OTO, 2003, p. 219).
Ao pesquisar e discutir as alienações psíquicas vividas pelo negro, Fanon é
influenciado pela psicologia, sociologia e filosofia. Investiga as relações sociais e a maneira
como surgem às alienações psíquicas. Esses estudos fizeram parte da revisão de sua tese de
doutorado em psiquiatria: “Pele negra, máscaras brancas”, rejeitada na academia por ir
contra as correntes positivistas predominantes na área. Mais tarde sua tese seria reconhecida
como referência nos estudos sobre o racismo.
Em seus estudos, explica que a alienação seria a perda – objetiva – de si, da
capacidade de estar em pé por si, ter vontade própria e se autodeterminar. Nessa perspectiva,
Fanon passa a incluir os complexos coloniais com as relações de estruturação da sociedade, e
como resposta a esse mal, não basta uma ruptura de paradigma, pois, se faz necessária uma
transformação social drástica.
Quando os negros abordam o mundo branco, há uma certa ação sensibilizante. Se a
estrutura psíquica se revela frágil, nota-se uma desintegração do Eu. O negro cessa
de se comportar como indivíduo acional. O objetivo de sua ação será o Outro (sob a
forma do Branco), pois só o Outro pode valorizá-lo. Isso no plano ético: valorização
de si mesmo. Mas não é só (FANON, 1983, p. 128).
Observa-se que a preocupação do autor vai além da alienação colonial. O processo de
clivagem psíquica16
ocorre quando um indivíduo sofre um trauma, ou uma sequência de fatos
traumatizantes e, a partir destes, o sujeito é levado a se fragmentar, ou mesmo pulverizar-se
subjetivamente. Na compreensão do autor, esse processo não cessa nesse ponto, o processo de
colonização deixa nos indivíduos marcas insuperáveis que só poderiam ser apagadas com a
“desalienação” constante e a superação do paradigma ocidental.
A alienação colonial se configura através, especialmente, da exploração capitalista. A
característica marcante desse processo aparece na sociedade moderna que incita os
colonizadores e os colonizados (brancos e negros, respectivamente) a viverem e
aprofundarem as disparidades sociais e a falta de humanidade que concernem a cada um.
16 Termo descrito rapidamente acima, ao qual retornaremos ao longo da pesquisa, seguindo as bases
“ferenczianas”.
58
Logo, a racialização e hierarquização do outro, inflam um estranhamento que atinge o
colonizado numa espécie de reificação e, assim, retiram a visibilidade em relação ao valor
inerente à subjetividade do negro e, com ela, a expressão universal do ser humano.
Tendo sua humanidade negada, o colonizado se vê como o outro, reduzido ao
regulamento Negro, em contraposição ao Europeu legitimado como ser humano e universal.
O branco e sua cultura ocidentalizada elevam sua universalidade ao ponto de ser considerada
como referência. Assim, a cultura europeia domina aquilo que passa a ser considerada a
“norma culta do saber”.
Daí a eminência do desejo negro em embranquecer, esse anseio de se tornar branco, ao
ponto de expressar esse desejo através de sonhos e da compulsão à repetição (FREUD, 1920).
O analista conclui que nesses casos o sonho realiza um desejo inconsciente, pois mostra o que
está obscuro, recalcado no inconsciente, em particular. O psicanalista deve ajudar o indivíduo
a se auto conscientizar, mas para isso deve incitá-lo a agir no sentido de uma mudança das
estruturas sociais (FANON, 1983) e não apenas atribuir-lhe um trabalho sobre sua
culpabilidade psíquica.
Essa mistificação do europeu permite-o ser símbolo de universalidade e mantém o
colonizado preso em estereótipos17
criados para depreciar o negro. Espera-se que o negro
esteja sempre o mais próximo da natureza e o mais distante da civilização: ele é o emotivo, o
sensual, o viril, o infantil, o exótico e tido como expressão de tudo o que se aproxima do
“ruim”. Fanon (1983) define essa clivagem depreciativa pregada à subjetividade do negro da
seguinte forma:
Em outras palavras, começo a sofrer por não ser branco, na medida em que o
homem branco me impõe uma discriminação, faz de mim um colonizado, extorque
de mim todo valor, toda originalidade, diz que parasito o mundo, que é preciso que
acompanhe o mais rapidamente possível o mundo do homem branco, que sou um
animal estúpido, que meu povo e eu somos como um esterco ambulante
repugnantemente prometedor de cana macia e de algodão sedoso, que não tenho
nada a ver com o mundo. Então tentarei simplesmente tornar-me branco. (FANON,
1983, p. 82).
17 Segundo Homi Bhabha (1998): “O sujeito do discurso colonial é construído dentro de um aparato de
poder que contém nos dois sentidos da palavra, um “outro” saber - um saber que é retido e fetichista e circula
através do discurso colonial como aquela forma limitada de alteridade que denominei estereótipo (p. 120).” O
fetiche que envolve o estereótipo racial dá um falso sentido à identidade que aliena e aumenta a dominação tanto
quanto na ansiedade ou na autodefesa, porque dessa relação contraditória cresce o sentimento de culpa e de
recusa de si mesmo.
59
Fanon alerta que esta reificação colonial constante tem efeitos catastróficos na
subjetividade do negro, o que pode levar a destruição do ego. Dessa forma, o negro perde a
independência da mente, negando a si mesmo e a sua existência.
Para o pensador francês Le Bon em sua obra bastante conhecida Psychologie des
foules (1855), nas questões de formação de grupos assim em analogia a subjetividade dos
negros colonizados, esta perda do ego pode acontecer através da hipnose, típica na relação
entre o colonizador e colonizado. Vejamos a seguir:
Um indivíduo pode ser colocado numa condição que, havendo perdido inteiramente
sua personalidade consciente (negro colonizado), obedece a todas as sugestões do
operador que o privou dela e comete atos em completa contradição com seu caráter e
hábitos. (...) Um indivíduo imerso por certo lapso de tempo num grupo em ação,
cedo se descobre (...) num estado especial, que se assemelha muito ao estado de
‘fascinação’ em que o indivíduo hipnotizado se encontra nas mãos do hipnotizador.
À vontade e o discernimento se perderam. O pensamento inclina-se determinado
pelo hipnotizador - neste caso do colonizador (grifos meus). (LE BON apud
FREUD, 1921, p. 34).
Embora o autor esteja se referindo à formação de grupos, é possível fazer um link com
a constituição de grupos forjados pela colonização, ao passo que, Le Bon (1855) foi um
importante idealizador das teorias racialistas nascidas na própria Europa e suas observações, à
época, valiam para embasar teorias que camuflavam a perversidade vivida por colonizados.
Observamos que o teórico em questão caracteriza o indivíduo inserido em um grupo como um
bárbaro, uma criatura que age por instinto, dotado de violência que possui a vida mental dos
povos primitivos e de crianças (ibid., p. 40). Assim, coloca o negro colonizado em uma
condição hierárquica, supostamente “natural”, de ser tutelado.
Compreendemos que as coincidências e os preconceitos são permanentes no discurso
de Le Bon(1855), que hipocritamente julga a formação forçada de grupos colonizados,
conforme acontecido em África, como coincidente ao comportamento de seres infantis e
primitivos. Da mesma maneira, Le Bon classificava a população negra como inferior aos
colonizadores europeus.
60
Fanon nos desperta para o fato de que o colonialismo produz no negro o complexo de
inferioridade, mas, na mesma proporção, traz para o branco o complexo de superioridade.
Ambos sofrem de um mal, são alienados em suas realidades.
Os negros considerados como pessoas alienadas de seus países ou de sua cultura em
sua própria terra, tinham sido arrancados de suas referências e não foram adaptados à
realidade colonizadora, eram considerados socialmente mortos, pessoas sem história e
desonradas, propositalmente. Chegou a uma situação em que os negros não tinham nenhum
direito, além de viver um ostracismo social em seu próprio território.
Isso levava a uma insegurança geral, pois na supremacia branca havia o receio da
rebelião dos negros e na suspeita de que a matança de brancos seria reivindicada como
vingança. Os negros em sua “inferioridade” viam no branco seu maior inimigo e o temiam e
odiavam por deterem todo o poder. Assim havia medo configurado entre os dois grupos, e
essa situação levava a constituir o sentimento racial18
.
Neste ponto abordaremos a questão da intolerância física e psíquica que alguns
brancos têm de ficarem próximos ou de tocar em negros. Neste contexto, o branco cria uma
fobia pelo negro. O imaginário racista transforma o negro em um ser animalizado.
No fóbico, há prioridade do afeto em desdém de todo pensamento racional. Como se
vê, um fóbico é um indivíduo que obedece às leis da pré-lógica afetiva: processo
através do pensamento e do sentimento, que relembra a época em que se deu o
acidente, causa da insegurança (FANON, 1983, p. 129).
Em relação à fobia, Fanon exprime sua ambivalência em mulheres e homens brancos.
O discurso expressa irracionalidade, ao passo que as vítimas se diziam “negrofóbicas”, e, no
entanto, eram tão mórbidas quanto o negro. A compreensão desse mecanismo vem numa
forma de continuidade do racismo através dos fenômenos sexuais, afinal, conforme era
atribuído ao negro, tudo se finda no plano genital. Contudo, devemos ressaltar que
constantemente inúmeras proposições negativas são sutilmente depositadas nos indivíduos,
18 Conforme nota de pé de página 14.
61
mantendo o negro como ser demonizado. Segundo essa perspectiva, o negro assim, deve
permanecer.
O estereótipo racial foi uma estratégia utilizada no discurso racista e ainda sobrevive
impregnado no senso comum das massas. Esta manobra funcionou porque conseguiram forjar
seus próprios sujeitos, dando significância ao discurso e criando falsas alteridades.
Frantz Fanon tem, no entanto, razão, ao sugerir que o Negro era uma figura ou ainda
um “objecto” inventado pelo branco e “fixado”, como tal, pelo seu olhar, pelos seus
gestos e atitudes, tendo sido tecido enquanto tal “através” de mil pormenores,
anedotas e relatos. Deveríamos dizer que, por sua vez, o Branco é, a vários respeitos,
uma fantasia da imaginação europeia que o Ocidente se esforçou por naturalizar e
universalizar (MBEMBE, 2014, p. 84).
Esse modo de representar o negro faz parte da imposição e posicionamento de poder
do branco, assim, produzindo um saber suficiente para a construção de uma identificação
ambivalente. Bhabha (1998) nos diz que o discurso colonial ou discurso de estereótipo é uma
forma de saber e poder que leva à produção de seus próprios sujeitos: colonizador branco e
colonizado negro.
Com a ambivalência do estereótipo racial, a constituição da alteridade e da identidade
do sujeito discriminado se torna, ao mesmo tempo, objeto de desejo e de repulsa. A
sensualidade inata da dita “mulata fogosa”, o suposto enorme pênis do “negão”, as
habilidades atribuídas como “inatas” aos negros em geral para atividades emotivas, lúdicas e
corporais, tanto assustam quanto atraem o branco por corresponderem fantasticamente àquilo
que falta a ele neste processo de alienação colonial doentia.
Com a produção de conhecimentos estereotipados, o negro e o branco são medidos por
antíteses. O discurso colonial necessita se embasar em diversas discriminações para
configurar suas práticas discursivas e políticas e, assim, permitir aos brancos se legitimarem
com base nos seus aspectos culturais e na hierarquia racial.
No mundo branco, o “homem de cor” encontra dificuldades na elaboração de seu
esquema corporal (FANON, 1983): “Nasce, então, a dor e a tentativa de forçar o espelho a
reproduzir a imagem branca desejada ou, em caso de impossibilidade, a opacificar-se,
deixando de refletir a imagem negra desprezada” (COSTA, 1983, p. 16).
62
Ainda hoje vivemos sobre o julgo desses estereótipos raciais, que se reestruturam
continuamente pelo discurso e permanecem vivos, ditando comportamentos maniqueístas e
tradicionalmente ocidentalizados. Observamos na sociedade brasileira uma hierarquização da
cor: negros e pobres, de um lado, são hostilizados e falsos brancos, de outro, levam consigo
privilégios e a arrogância; posições que foram definidas desde a colonização, mas que são
contraditórias numa população criada através da miscigenação e da hipocrisia.
Foucault (2002) afirmou que as sociedades criam seus próprios discursos como
verdades articuladas aos interesses dominantes. O poder nas sociedades coloniais se
configurou pela discursividade na diáspora africana produzida na imposição de dominação do
colonizador europeu. Este caracterizou o negro com conhecimentos estereotipados para
identificá-lo. Utilizando como significantes os termos “raça e cor”, o negro teve seu corpo
desconfigurado pelo julgamento de valor associado à cor da pele, e também pelo cabelo
crespo que o reduziram, assim, a uma coisa animalesca e caricata. O discurso colonial foi
criado a partir de um sujeito subjugado, destituído de sua autoestima, cujo fetichismo do
corpo negro o persegue através de um fetichismo racial e de uma inferiorização extrema.
Para Fanon, o discurso do colonialismo e a alienação colonial foram fundamentais
para que se compreendessem seus efeitos na estrutura psíquica de homens e mulheres
colonizados. É com esse contato provocado pela violência colonial que cria forças para que
vivesse a luta anticolonial que se desenvolvia em seu país.
Se o colonialismo ou a alienação colonial não podem ser resumidos a um estado
mental, e mesmo a subjetivação individual só é inteligível no contexto em que
emerge (...) a desalienação só seria possível mediante a superação das condições
sociais alienadoras: veremos que uma outra solução é possível. Ela implica uma
reestruturação do mundo (FANON, 1968, p. 82).
Na busca pela superação desse mal, a resistência sociocultural deve ter como foco não
apenas a simples preservação da cultura retirada pelo processo colonial. O mais importante é a
libertação do povo, de modo que possa se contrapor à cultura colonial, desconsiderando e
eliminando os elementos universais que possam contribuir para o andamento da falácia
chamada “progresso da nação” e “processo civilizatório”.
O autor elucida elementos como os meios de comunicação, a linguagem e os valores
culturais europeus, constantemente utilizados na opressão colonial, os quais podem ser
63
reapropriados no processo de resistência e ressignificado pelos povos em luta, dando suporte e
possibilidades de avançar na busca pela emancipação. Tendo em vista a liberdade do ser
humano e observando que o colonialismo negou a cultura dos povos colonizados
ontologicamente, a resistência está na criticidade e na ressignificação tão necessária da cultura
opressora.
Em analogia ao processo colonial, no modelo neoliberal no qual estamos inseridos na
pós-modernidade, negros, pardos, índios, árabes e tantos outros povos ainda vivem em
profunda opressão ocidental. Atendemos a um padrão estético, econômico e social alienante.
Toda esta especulação em torno do capital, mais ainda do “mercado”, da busca pelo poder e
da assunção do status quo social, responsável pela desigualdade maciça em que vivemos,
pode ser superada se iniciarmos esse processo emancipatório. Iniciando com a ressignificação
da mídia, da cultura opressiva, foi (e é) possível converter esse processo em fator de
resistência (FANON, 1968).
Resistir socialmente não implica, a princípio, a preservação da cultura inicialmente
negada pelo colonialismo. O fato é que para Fanon não havia outra escolha para os povos
colonizados, que não seja a via revolucionária (FANON, 1956).
O processo revolucionário seria, para Fanon, um ato consciente e possivelmente
arriscado que pareceria quase impossível para o colonizado negro da Martinica e, quiçá, para
qualquer outro negro. É na obra Pele negra, máscaras brancas que o autor vê um importante
instrumento de luta para acabar com o colonialismo, objetivamente na psiquê do colonizado e
nas relações sociais vividas pelo colonizado. Da mesma forma, isso daria armas ao colonizado
de modo a se elevar de simples objeto reificado para sujeito de sua própria história e
humanidade.
Então, nas palavras de Frantz Fanon, a luta reconfigura nossa realidade oprimida.
Observamos em suas ideias a atualidade e o reconhecimento para a desalienação
revolucionária do negro, subjugado como pobre inútil e indesejado em tantos espaços
privilegiados aos brancos, que, literalmente, fingem não entender estes fatos “enfadonhos” e
perversos em que circulam as relações sociais brasileiras em todos os ambientes sociais, desde
a educação ao mercado de trabalho, perpassando por incontáveis pormenores da vida
cotidiana em sociedade.
64
1.2. Outras percepções sobre racismo e cultura segundo Fanon
Ao pensarmos como certas culturas são naturalizadas por outros grupos de forma
unilateral, evidenciamos apenas um lado de sua história, seus costumes, modos de viver e
pensar. Precisamos estar atentos para não dar condições a definições egocêntricas e
preconceituosas que estratificam modos de vida e estabelecem hierarquias sociais.
A anulação de determinantes culturais nega a existência de outros modos de vida,
classifica o que é cultura e o que não é, e dicotomiza de um modo estruturante os diferentes
povos, por fim, utilizando-se da “relatividade cultural”. Assim, o que propomos aqui é a
compreensão das disparidades da hierarquização cultural que iniciou a valorização singular e
específica de uma cultura única: a branca, e desprezou todo campo cultural colonizado.
Falamos não apenas de uma realidade, mas de muitas outras vindas de povos que
foram colonizados por europeus e que trazem marcas da miscigenação que os caracterizam.
Por vezes, o que se sabe é um único lado da história, pois se omitem as raízes que distinguem
a diversidade, que desse modo ficam incompreendidas por muitos.
Na tentativa de clarear ideias e elucidar outras facetas dessa história, abordaremos as
sequelas da colonização, dos colonizados e do que restou (e volta repetitivamente) desse
passado genocida. Ou melhor, do rastro que ficou, do que se perdeu e foi reconquistado ao
longo do tempo por essas pessoas que foram duramente colonizadas.
O racismo se projeta tal qual nos é exposto a partir de uma estrutura pré-estabelecida.
Trata-se de um contexto maior de aversão ao diferente, ao desconhecido, ao que é considerado
“estranho”. Em Freud (1919), observamos que “o estranho” provém de algo familiar e foi
reprimido em algum momento. Dessa forma, se algum afeto é reprimido, transforma-se em
ansiedade, passível de amedrontar e mostrar-se violento ao retornar. “O estranho” não seria
algo novo ou diferente, mas, de natureza familiar guardado em nossa mente. Trata-se de algo
que alienou-se de consciência por meio do processo de recalcamento. O recalcado permanece
como algo que deveria ter sido mantido oculto, mas que vem à tona, por exemplo, como um
duplo alucinatório, acabando por desestruturar o sujeito (FREUD, 1919, p. 308).
Para Mbembe (2014), o conceito de “estranho” trata com profundidade dessa questão
da “inquietante estranheza”, inconsciente, posto que se refere a algo “estranhamente familiar”
65
que o sujeito identifica no outro. Ou seja, o colonizador porta em seu estranhamento, o medo,
a rivalidade e a inveja, pois projeta no negro os seus fantasmas mais íntimos. Poderíamos
dizer que, ao invés de um duplo projetado na alucinação, conforme se pode atestar na
sintomatologia delirante, o duplo inconsciente rejeitado de si mesmo pelo branco é projetado
e materializado na corporeidade do negro.
Essa aversão traz o temor da rivalidade e a possível fragilidade de se manter quem é
colonizado na ponta da dominação. Por isso se faz importante relacionar os conceitos de
racismo e cultura em sua perspectiva de reciprocidade.
Se a cultura é o conjunto dos comportamentos motores e mentais nascido do
encontro do homem com a natureza e com o seu semelhante, devemos dizer que o
racismo é sem sombra de dúvida um elemento cultural. Assim, há culturas com
racismo e culturas sem racismo (FANON., 1956, p. 36).
Ao observar a evolução do tempo, percebemos que o racismo, como elemento
cultural, não se tornou ultrapassado. Houve a necessidade de metamorfosear-se e reestruturar-
se. A partir das novas informações que recebia, ia sofrendo modificações para continuar a
existir.
Do racismo vulgar, simplista, cientistas acreditaram, em sua basicidade doutrinária, em
questões biológicas, com grande apelo para comparações de crânios, dimensões das vértebras,
aspectos da epiderme, entre outros absurdos. Todo o esforço foi feito para confirmar o suposto
atraso intelectual e emocional de uma raça inteira. Tudo isso fora feito com supostas
comprovações científicas capazes de promover o convencimento maciço de intelectuais e
sociedade.
Mesmo com esse aparato científico favorecendo a proliferação do racismo racional,
determinado por aspectos genotípicos e fenotípicos, surge uma nova fisionomia do racismo,
transformando-se em racismo cultural apoiado em falsas premissas biologicistas. Aliada a
teorias como as de Lombroso (1876) na antropologia criminal, no qual afirmava que o
criminoso nascia com o determinismo genético predestinado para atuar em uma vida
criminosa, o cienticismo encontrou tendências comuns em “criminosos” encunhando cor da
pele e outros atributos fenótipos.
66
Lombroso encunhava a identidade europeia caucasiana como raça superior, livre do
perfil delinquente. “Lombroso chegou a acreditar que o criminoso nato era um tipo de
subespécie do homem” (ALVARENGA, 2013). Depreciando as classes que viviam às
margens.
O autor afirmava em sua teoria que a maioria dos casos de crimes eram realizados por
negros, e uma série de comportamentos tais como: apatia afetiva, preguiça, falta de senso
moral, usuários de tatuagens entre outros, e de genótipos como: assimetria craniana, ser
canhoto e altos índices de reincidência.
Vemos em Fanon (1956, p. 36) o pensamento que corrobora para essa nova vertente
racial impregnar-se no contexto cultural como uma espécie de verdade incontestável: “O
objeto do racismo já não é o homem particular, mas certa forma de existir. No limite, fala-se
de mensagem, de estilo cultural. ‘Os valores ocidentais’ reúnem-se singularmente ao já
célebre apelo à luta da ‘cruz contra o crescente’”.
Outros fenômenos históricos como o nazismo, a escravidão e o imperialismo europeu,
acarretaram o despertar e a conscientização dos trabalhadores de países colonizadores e
racistas. A evolução dos meios de produção auxiliou para a mudança de fase do racismo.
Afinal, todos esses fatos contribuíram no processo da opressão sistematizada de povos,
considerados diferentes e não-eurocentrados (ibid., 1956).
Não obstante, cabe a nós questionarmos como e por que o povo oprimido, por
diferentes formas de racismo, tratando aqui do racismo contra o negro, se comporta frente a
tanta agressão a sua subjetividade, cedendo a um opressor que atua de forma tão aviltante e
degenerada. Vejamos como se configura esse processo:
A princípio, ocorre à destruição massiva de valores constituintes de toda uma cultura,
uma forma de viver, de ver e sentir o mundo. Tudo entra em um nefasto procedimento de
desvalorização. A colonização e todo seu caráter persuasivo é a peça motriz responsável pelo
confronto de culturas e pela dominação cultural ao fim desse processo. “A guerra (colonial) é
um negócio comercial gigantesco e toda a perspectiva deve ter isto em conta. A primeira
necessidade é a escravização, no sentido mais rigoroso, da população autóctone (ibid., 1956,
p. 37).”
O outro passo é o extermínio de todo o referencial representativo de um povo, o que
chamaremos de “expropriação cultural e identitária”, culminando com o assalto dos esquemas
67
culturais historicamente constituídos. A sociabilidade dos sujeitos é destruída, seus hábitos e
valores são subalternizados e julgados sem valor, compondo um esvaziamento panorâmico e
essencialmente cultural.
Diante desse caos desestruturante, um novo capítulo se prontifica a aparecer: a
fragmentação de um povo inteiro, sem forças e sem ordem para se estabelecer. Toda essa
situação nos leva a pensar que o regime colonial mata para sempre a cultura do colonizado.
Mas, observamos que, historicamente, toda essa pressão na cultura do oprimido é aprisionada
no estatuto colonial, de forma mumificada, perante a paralisia de um povo que sofreu uma
violenta opressão.
A mumificação cultural leva a uma mumificação do pensamento individual. A apatia
tão universalmente apontada dos povos coloniais não é mais do que a consequência
lógica desta operação. A acusação de inércia que constantemente se faz ao indígena
é o acumulo da má-fé. Como se fosse possível que um homem evoluísse de modo
diferente que não no quadro de uma cultura que o reconhece e que ele decide
assumir (FANON, 1956, p. 38).
O racismo se modifica novamente, agora, pelo viés de uma valorização falsa da
cultura do autóctone, funcionando sob a vigilância do opressor, em que se finge respeitar as
especificidades culturais do povo colonizado. Porém, a preocupação afirmada de respeitar a
cultura das populações autóctones, não quer dizer que levam em consideração determinados
valores da cultura desses homens. Na realidade o que se pretende é encaixar e aprisionar
novamente esses sujeitos, mas, de outra forma: simplificando-os até o universalismo de
direitos e deveres, e assim, levando à inexistência de uma confrontação cultural.
E a Europa empanturrada de riquezas concedeu de jure a humanidade a todos os
seus habitantes; entre nós, um homem significa um cúmplice, visto que todos nós
lucramos com a exploração colonial. Este continente gordo e lívido acabou por dar
no que Fanon chama com justeza o “narcisismo”. (...) E a Europa que faz ela? E esse
monstro supereuropeu, a América do Norte? Que tagarelice: liberdade, igualdade,
fraternidade, amor, honra, pátria, que sei eu? Isso não nos impedia de fazermos
discursos racistas, negro sujo, judeu sujo etc. Bons espíritos liberais e ternos,
neocolonialistas em suma - mostravam-se chocados com essa inconsequência; erro
ou má-fé; nada mais consequente, em nosso meio, que um humanismo racista, uma
vez que o europeu só pode fazer-se homem fabricando escravos e monstros
(SARTRE, 1961, p. 17).
68
O tempo também se encarrega de elaborar modificações nos modos de vida social,
econômico e cultural. A primeira fase da dominação colonial se instalou com a afirmação de
uma pseudo superioridade a ser imposta de forma massacrante acima de qualquer um.
Em seguida, subjuga, oprime e desumaniza o grupo social que se tornou alvo desse
processo e continua, junto com a exploração, todos os tipos de tortura, ao ponto de, sem haver
outra maneira para existir, os sujeitos aferidos por esse mecanismo colonizador tornam-se
indecisos, sem razão de ser. O sentimento de culpabilidade é reforçado e se torna mais um
elemento opressor que faz o negro colonizado sentir-se incapaz e culpado por toda tragédia a
qual vive.
O racismo vulgar na sua forma biológica corresponde ao período de exploração
brutal dos braços e das pernas do homem. A perfeição dos meios de produção
provoca fatalmente a camuflagem das técnicas de exploração do homem, logo das
formas de racismo (FANON, 1956, p. 39).
O racismo, além de camuflar-se, também se esconde nos meios de produção e na
exploração da força de trabalho. Os trabalhadores atentam-se para os mecanismos de
exploração ao qual se encontram enraizados e reagem, ou unem forças para fazê-lo. Nesse
momento, o racismo se retém, não totalmente, mas, a fim de remodelar-se na nova conjuntura
social que emerge.
Naturalizar o racismo é algo inadmissível. É necessário procurar sua repercussão em
todos os níveis sociais. Compreender as imagens que estão se configurando do negro na
literatura, no cinema, no folclore e entender seu uso. É preciso analisar se essas imagens são
utilizadas como armas sutis que ainda se mantêm a favor do racismo, afastando o negro, o
judeu, os índios e árabes como temas inesgotáveis de estereótipos ainda manipulados por
brancos.
A evolução das formas de exploração tem como consequência o reaparecimento do
racismo nos homens oprimidos. O rigor do sistema vigente torna desnecessária a afirmação
contínua de uma superioridade branca, pois agora se pode afirmar que as diferenças são
econômicas e sociais, mascarando novamente o racismo.
Assim, podemos observar que a “evolução” e a “falsa medida” do “progresso”
provocou a naturalização do racismo. O interesse dessa evolução está no racismo como tema
explorado e utilizado como técnica publicitária.
69
O racismo avoluma e desfigura o rosto da cultura que o pratica. A literatura, as artes
plásticas, as canções para costureirinhas, os provérbios, os hábitos, os patterns, quer
se proponham fazer-lhe o processo ou banalizá-lo, restituem o racismo. O mesmo é
dizer que um grupo social, um país, uma civilização, não podem ser racistas
inconscientemente. (FANON, 1956 p. 42).
O racismo configura-se com a exploração desavergonhada de um grupo de homens por
outros que chegaram a um estádio de desenvolvimento técnico superior. E, assim, o racismo é
legitimado por leis, e, principalmente, pela opressão econômica, social e militar, que
justificam os horrores impostos às suas vítimas.
O modo de ver o racismo como uma disposição do espírito, como uma tara
psicológica, necessita desaparecer. Seria ideal, neste momento, pensarmos em como o homem
exposto ao racismo, sendo subjugado, explorado e escravizado põe em ação seus mecanismos
de defesa. Quais atitudes descobrimos até aqui? (ibid., p. 42).
Vimos, num primeiro momento, que a dominação se efetivou por argumentos
científicos. Colonizados negaram sua própria raça, tendo-lhes sido retirados todos os direitos.
Ao ser, essencialmente, desumanizado, o grupo social se “desracializa” (FANON, 1983). A
partir de então, partilha com a “raça superior” tudo que lhe diz respeito.
O grupo social colonizado, ao ver de perto toda sua estrutura e história cultural
desaparecer, é manipulado pelo opressor de modo a aceitar a imposição de novas maneiras de
ver e de existir. Nesse ponto, acontece o fenômeno da alienação, também chamada de
assimilação: acontecimento importante que marca a autoridade do colonizador imposta ao
oprimido.
Os oprimidos, sem saída, acreditavam que sua condição de inferioridade nascia de
suas características culturais e raciais, portanto, se culpabilizavam. Os termos inferioridade e
culpabilidade têm intrínseca relação com esses acontecimentos. A dualidade dos termos faz
com que os oprimidos assumam novos modos culturais em sua totalidade, ao mesmo tempo
em que enterram e condenam seu estilo próprio de cultura.
Tendo julgado, condenado, abandonado, as suas formas culturais, a sua linguagem, a
sua alimentação, os seus procedimentos sexuais, a sua maneira de sentar-se, de
repousar, de rir, de divertir-se, o oprimido, com a energia e a tenacidade do
náufrago, arremessa-se sobre a cultura imposta. (ibid., p. 43).
70
Com o advento tecnológico, principalmente nos meios de produção, na dinâmica da
produção industrial, vendo homens de regiões longínquas concentrados nas capitais,
descobrindo a cadeia de montagem em massa, o tempo de produção, em desigualdade com
seu rendimento por hora, o grupo social oprimido vê o absurdo que envolve a manutenção do
racismo e do menosprezo em relação a sua condição de vida (ibid., p. 43).
Embora camuflados por princípios democráticos, de afirmações de igualdade e
irmandade, países coloniais apresentam tendências racistas em suas bases, ainda sim, são
racistas. A inferiorização de homens, sem o menor motivo lógico a não ser de se afirmar, não
é mais do que a explicação emocional e intelectual desta inferiorização. Não há racismo, sem
racistas. É preciso compreender que nesta relação entre “inferiores” e “superiores” há:
Simultaneamente “aculturado” e “desculturado”, o oprimido continua a esbarrar no
racismo. Acha que esta sequela é ilógica. Que o que ele superou é inexplicável, sem
motivo, inexacto. Os seus conhecimentos, a apropriação de técnicas precisas e
complicadas, por vezes a sua superioridade intelectual quanto a um grande número
de racistas, levam-no a qualificar o mundo racista de passional (ibid., p. 44-45).
Sem dúvida alguma, o racismo segue renovando-se em sua estrutura. Torna-se normal
o racismo em um país que vive da exploração de povos diferentes e inferioriza sujeitos. Numa
sociedade não existem diferentes modos de racismo, não há graus. Estas latências circulam e
se dinamizam dentro das relações psico-afetivas e sociais de forma pungente e intrínseca.
Após um longo período de alienação, o inferiorizado desperta e percebe sua posição
inerte diante de tantas atrocidades. Depois dessa fase de desculturação e de “estranhamento”,
ele retorna as suas atitudes originais (ibid., p. 45). Nesse reencontro com sua cultura, antes
vilmente rejeitada, ocorre uma supervalorização da mesma, o que se aproxima ao desejo de se
perdoar.
Quando percebe que sua cultura foi desmontada, o inferiorizado se desaliena e vê a
importância de tudo que perdeu na colonização de sua história. Reencontra a si próprio e sua
tradição como mecanismo defensivo de salvação. Desse sublime reencontro, o colonizado se
arma e decide lutar contra todos os mecanismos de exploração e alienação do colonizador e
reintegra-se à comunidade antes perdida.
71
O fim lógico desta vontade de luta é a libertação total do território nacional. Para
realizar esta libertação, o inferiorizado põe em jogo todos os seus recursos, todas as
suas aquisições. As antigas e as novas, as suas e as do ocupante. A luta é subitamente
total, absoluta. Mas, então já não se vê aparecer o racismo. (FANON, 1968, p. 47).
Na luta pela liberdade territorial e social, o inferiorizado encontra uma relação
paradoxal, pois, os costumes e tradições antes negados e brutalmente silenciados, passam a
ser abruptamente valorizados. O enfrentamento do racismo inicia-se por meio desta
incompreensão.
A partir da desalienação do homem e do início do enfrentamento ante a colonização, o
inferiorizado situa-se em um nível mais humano, e sua cultura se fortalece. Esbarra na
universalidade que, de súbito, traz uma falsa igualdade que neutraliza lutas e conquistas
favorecendo o colonizador. A libertação de homens e sua descolonização é a transição para
uma nova nação. Esse processo substitui antigos e velhos homens por outros que exaltam a
mudança e a desejam mais do que tudo. A descolonização é antes de mais nada a criação de
seres humanos novos.
A identidade negra seria uma das consequências da ideologia do branqueamento que
anula a pessoa negra, o ser negro. Entretanto, quando o negro toma consciência que a solução
não é se tornar branco e, sim, assumir-se como negro, com corpo negro e toda sua história e
destino enquanto negro surge o movimento de resgate subjetivo e cultural que chamamos de
“negritude” ou de “orgulho negro”, surgido em movimentos como o “Black is beautiful”,
iniciado na África do Sul pelo militante Stephe Biko, importante símbolo da resistência negra
no regime Apartheid entre 1960 e 1970 (Pereira, 1985), e, em seguida, pelo movimento
estadunidense que defendia a beleza negra, e a luta política da militância negra que
simbolizava o orgulho da negritude e de tudo que a compunha: a estética, a força e a luta
negra por direitos (VAUGHAN, 2000).
A “negritude” não é como as pessoas pensam que seria um racismo às avessas. Ela
nasce da consciência de um grupo de pessoas portadoras desse apêndice do racismo e que
foram vítimas da história da humanidade. Essas pessoas foram humilhadas, tiveram sua
humanidade negada e foram exploradas. O único caminho era se assumirem coletivamente e
isso somente ocorre quando encontram o caminho da negritude. Nas palavras de Fanon: “(...)
Desde que era impossível livrar-me de um complexo inato, decidi-me afirmar como NEGRO.
72
Desde que o outro hesitava em me reconhecer, só havia uma solução: fazer-me conhecer
(FANON apud SOUZA, 1983, p. 95)”.
A partir desse movimento de desalienação e de constituição de um homem novo,
Fanon afirma que a superação da lógica colonial só seria possível através da violência armada,
por via de uma libertação nacional revolucionária, pensamento expresso com clareza de
detalhes na obra Os Condenados da Terra. Último trabalho do autor e não menos importante,
compreendemos a visão de um Fanon pleno de sua potência e ciente de que a única via para a
libertação é a insurreição armada e, daí, estabelece-se a necessidade de bagunçar as forças
sociais de modo a fazer surgir um novo ser humano, cuja negritude é seu valor inerente.
Em Os Condenados da Terra (1968), compreendemos a importância da Revolução, da
desalienação e da união dos colonizados para a luta ganhar força e seguir adiante de todas as
consequências advindas de seus atos:
Então o colonizado descobre que sua vida, sua respiração, as pulsações de seu
coração são as mesmas do colono (...). Essa descoberta introduz um abalo essencial
no mundo. Dela decorre toda a nova e revolucionária segurança do colonizado. (...)
Não me perturbo mais com sua presença. Na verdade eu o contrario. Não somente
sua presença deixa de me intimidar como também já estou pronto para lhe preparar
tais emboscadas que dentro de pouco tempo não lhe restará outra saída senão a fuga
(FANON, 1968, p. 34).
O que falta para que nosso povo brasileiro, tão castigado pelas injustiças sociais e pela
alienação massiva realizada pelos meios mais fundamentais para o desenvolvimento pleno do
ser humano, para sair de toda esta passividade e reagir, se organizar deliberadamente e contra-
atacar todo esse mecanismo perverso do neocolonialismo no qual estamos submersos?
A educação não corresponde à realidade, a política nos desautoriza, as leis não
respeitam a maior parte da população que é regida pela intolerância e pela violência causada
ao povo preto e pobre das periferias das grandes cidades. Não há igualdade no mercado de
trabalho para todos, há ambulantes em trabalhos precarizados por todo o país, e, na grande
maioria, são de negros e seus descendentes miscigenados que ainda vivem subalternizados,
sem perspectivas de alcançar uma vida melhor.
Por isso, a leitura de Frantz Fanon é necessária com toda sua força e veracidade para
esta discussão em contraponto a nossa modernidade tão eloquente e capitalista. Precisamos
73
dele, precisamos enegrecer o processo de aprendizagem, precisamos enegrecer o modo de ver
o mundo e o compreender a nossa realidade sem ilusionismos, mas com lucidez e
determinação.
Minhas filhas vão para a escola e ainda recebem uma educação alienante, pois na
maioria das escolas não se aborda a realidade cruel de nossa sociedade. Trabalho na área de
educação há nove anos e ainda sou testemunha de situações de conflitos raciais entre alunos e
do “racismo desmentido” até mesmo entre professores, que tentam persuadir a si mesmos da
hipócrita “inexistência” da realidade narcísica de questões de cor e classe social,
determinando estigmatizações cotidianas.
O que mais estamos esperando? O momento é agora, não há o que esperar para nos
descolonizarmos desse jugo pós-moderno de insanidade coletiva nas relações sociais e
desiguais do Brasil. Do que nos orgulhamos em nossa história? Não há o que se orgulhar se
nada realizamos. Isso é um fato!
Como educadora não posso cruzar os braços e fechar meus olhos. Faz-se necessária a
militância para a mudança de paradigmas que nos são impostos desde o nascimento por outros
que desconhecem nossa rotina. Não queremos mais isso! E a libertação do pensamento e do
inconsciente coletivo racista, internalizado como supereu cruel, é o primeiro passo. Tornar-se
consciente, liberar-se profundamente desses traumas impingidos é descolonizar-se; sair de um
gozo masoquista e desejar estar pronto é o início para a superação (ARREGUY& COELHO,
2018).
A descolonização se propõe a mudar a ordem do mundo, é, como se vê, um
programa de desordem absoluta (...) é um processo histórico: isto é, ela só pode ser
comprometida, só tem inteligibilidade, só se torna translúcida para si mesma na
exata medida em que discerne o movimento historicizante que lhe dá forma e
conteúdo. A descolonização é o encontro de suas forças congenitamente antagônicas,
que têm precisamente a sua origem nessa espécie de substancialização que a
situação colonial excreta e alimenta. (...) a descolonização é verdadeiramente a
criação de homens novos. Mas essa criação não recebe a sua legitimidade de
nenhuma potência sobrenatural: a “coisa” colonizada se torna homem no processo
mesmo pelo qual ela se liberta (FANON, 1968, p. 52-3).
Tomando como exemplo a experiência e militância de Fanon, observamos que o autor
nos alerta que até na África o processo de libertação revolucionária nacional não pode
esquecer-se da “entificação” que envolve o capitalismo e os interesses embutidos nas
diferentes classes sociais, principalmente, tendo em vista que a característica dos países
74
coloniais era a de serem dependentes economicamente e subdesenvolvidos na relação
histórica com suas metrópoles usurpadoras. Restava às colônias (e parece ainda restar a
muitos países subalternizados pelo neoliberalismo financista de mercado) a exportação de
bens primários, além da nefasta manutenção de uma população, sobretudo em sua maioria,
analfabeta, que compunha (e ainda compõe) uma classe operária insipiente e uma burguesia
vendida a interesses externos que lhe renderiam (e ainda lhe rendem) gordos lucros.
Assim como aconteceu na África, aconteceu nas Américas Central e Latina, tendo
como nosso foco o Brasil, saqueado pela metrópole até depois de descolonizado, composto
por uma massa populacional mal estruturada e sem grandes referências. A solução é a
autoconsciência e a crítica para entender esta espúria situação para não mais sermos
coniventes com esse atraso ontológico que reserva uma ilusão de bem-estar imaginário.
Vivemos na mais profunda desigualdade social, somos vítimas de uma péssima distribuição
de renda em que os mais pobres financiam a ostentação dos ricos.
Sempre houve lutas contra a opressão e escravidão colonial. Os povos colonizados não
seguiram inertes a todo esse processo e buscaram estratégias de resistência e emancipação. É
o Branco que cria o Negro, mas, o negro cria sua negritude (FANON, 1983). E, assim,
lutando, precisamos nos reafirmar, na luta por um objetivo reconhecido.
O movimento de negritude, para Fanon, assume uma posição na qual o Branco/
europeu é o universal e o Negro/africano o específico. Essa constatação o mantém preso ao
presente pobre e a um futuro sem perspectiva que insiste em afirmar um passado inglório em
vez de desmistificar a ilusão africana e libertar seus descendentes da possibilidade de serem
reconhecidos pela universalidade.
Para livrar-se das armadilhas forjadas pelo colonialismo, segundo Fanon, é necessário
descer aos “verdadeiros infernos”, atravessar a afirmação da identidade historicamente negada
em direção ao genérico do ser humano. Por esse motivo, a desalienação só se completa
mediante a reestruturação do mundo.
Há, portanto, necessidade de poupar forças, de não as lançar de uma só vez na
balança. As reservas do colonialismo são mais ricas, mais importantes que as do
colonizado. A guerra se prolonga. O adversário se defende. A grande explicação não
se dá hoje nem amanhã. De fato, começou desde o primeiro dia e terá fim não
quando houver mais adversário e sim quando este último, por vários motivos, se der
conta de que é de seu interesse terminar essa luta e reconhecer a soberania do povo
colonizado (FANON, 1968, p. 116).
75
Para o autor, a revolução social significava a possibilidade histórica que daria condição
para superação de alienações psicossociais. Compreendia, porém, que as lutas sociais não
poderiam se concretizar sem terem como pontapé inicial a realidade em que surgiam.
Observar o presente incomoda e nos faz perceber toda a injustiça racial na qual
vivemos, além da semelhança às atrocidades do colonialismo contado por Fanon que nos
instiga a questionar: como o autor confrontaria este colonialismo moderno? Um
neocolonialismo implícito nas relações sociais que segregam o negro em suas mazelas advindas
do período escravagista brasileiro. Para Silvério (1999), o racismo ao longo dos anos foi sendo
transformado e renovado, tornando a racialização uma dura realidade disseminada pelo mundo
na sociedade contemporânea globalizada.
Os problemas da modernidade que estamos vivendo são reflexos da hierarquização
cultural e racial, da colonização do pensamento e a neocolonização dos corpos. Fanon nos
alerta que precisamos nos unir e fazer urdir uma revolução, que precisamos refletir sobre a
necessidade de essa revolução ser armada ou não. Descolonizar-nos, reorganizar e reconstituir
nossa história sem eurocentrismo, com a legitimidade que nos define como um povo que luta,
chora e além de tudo é resiliente e dono de sua própria humanidade. Entendemos que Fanon
ainda tem muito a colaborar e elucidar a respeito dos caminhos capazes de serem trilhados por
aqueles que, ainda, presos nas amarras dos colonizadores, estão cansados de não ter voz. Aos
colonizadores de corpos e territórios vem se substituir os neocolonizadores do mercado volátil
e do gozo das almas.
Especialmente na compreensão desalienante, embora se possa esclarecer que as antigas
colônias sejam hoje independentes, a ordem global ainda racial permanece intacta. A
distribuição de riqueza e poder ao redor do mundo não mudou, desde os dias em que as ideias
de hierarquia racial legitimaram as conquistas coloniais, pois instaurou e massificou o status
quo em cujo os brancos são mais ricos e vivem mais, enquanto os não brancos experimentam a
pobreza e as doenças.
Contudo, mesmo sendo desoladora essa realidade pós-moderna, o conhecimento desses
fatos é importante para a população negra se libertar do jugo da ignorância que os alija em
grande parte do território antes colonizado. A informação e a união são instrumentos de luta e
merecem ser considerados e estudados para erradicar esse mal que corrobora para a
inferiorização da população negra.
76
Por estarmos considerando a importância de tais conhecimentos, conduzimos nosso
trabalho junto à origem e ao desenvolvimento da teoria racialista, partindo da compreensão do
termo África e seus significados no imaginário social através do pensamento de autores de
base foucaultiana. Discorremos na contextualização das teorias sobre raça, formuladas
principalmente por intelectuais franceses, centradas nos aspectos fenotípicos para diferenciar
a diversidade humana.
Essas ideias chegam ao Brasil em conjunto com o ideal positivista e determinista na
então presente “sociedade moderna”. A partir desse momento, o modelo de ciência é adotado
nacionalmente e utiliza instituições científicas (faculdades de medicina e direito, museus,
etc.,) que se tornam os principais espaços de propagação dessas teorias racialistas. Veremos
como a propulsão dessas ideias ressignificaram o novo modelo racial e lhe empregaram
particularidades “só nossas” que foram adotadas na sociedade brasileira nos séculos XIX e
XX. Sendo assim, vamos adentrar em questões históricas que embasam nossa realidade atual,
tão desigual e marcada por interesses econômicos e políticos que pré-estabelecem quem nasce
para comandar e quem nasce apenas para obedecer.
1.3 ÁFRICA: potência e exploração
Quando pensamos na população negra africana é comum não refletirmos sobre sua
história e origens e, principalmente, esquecemo-nos do fenômeno da diáspora africana.
Acontecimento que ressignificou a presença da população negra por todo o mundo. Ao
falarmos de África ignoramos suas belezas naturais ou, simplesmente, mencionamos a Savana
e os animais selvagens.
O senso comum, desse modo, explora as mazelas de um povo que morre de fome e
sofre com doenças hediondas e devastadoras como Ebola, AIDS, cólera, malária, entre outras
que, de um modo geral, parecem existir somente naquele território. A imagem que ainda
partilhamos sobre o continente africano é de um lugar longínquo, exótico e dono de mistérios
e lendas obscuras que nos rondam como fantasma.
77
O termo África é o nome que geralmente outorgamos às sociedades consideradas
impotentes, isto é, incapazes de produzir o universal ou de afirma-lo. Um mundo
que é arruinado pela guerra tribal, a dívida, a feitiçaria e a pestilência. É o avesso
negativo do nosso mundo, uma vez que, no essencial, simboliza o gesto errado, a
corrupção do tempo e o seu desregulamento. (MBEMBE, 2014, p. 93) 19
.
Em geral, nossas referências da África são pejorativas e sem profundidade. Esse
conceito é reforçado pelos meios de comunicação que, constantemente, desvalorizam a
cultura, a religião e a forma coletiva dos africanos perceberem o meio que vivem maneira que
difere do modelo hegemônico preconizado, extremamente individualista, capitalista e
neoliberal em que vivemos.
Pretendemos dizer o quanto essa mistificação e distanciamento são algo
propositalmente estabelecido? Divulgado e difamado para manter a África distante de nosso
conhecimento, como um lugar sem nada a oferecer. É possível perceber isso inclusive nos
pacotes de turismo internacional que não convencem nem oferecem com abundância
entretenimento no território africano, como acontece com os Estados Unidos, nos parques de
Orlando ou com as belezas tropicais do mar do Caribe.
As imagens vinculadas à África, ainda hoje, dificilmente mostram seus impérios,
palácios reais ou grandes reinos, nem tampouco apontam os holofotes para as cidades
modernas construídas pelo próprio colonizador. Em geral, só ressaltam uma África dividida e
reduzida em seus aspectos negativos, como a fome, calamidades naturais, etc.
A mídia não parece estar interessada na exibição dos antigos impérios,
exércitos e inclusive das riquezas em ouro, dos impérios de Gana, Mali e outras cidades
economicamente estruturadas, como os reinos do Congo e Benin. Entretanto, existe
atualmente um número considerável de bibliografias que comprovam como em todas as
regiões africanas tiveram sociedades horizontais-não hierarquizadas, que não constituíram
Estados, mas, sociedades políticas e economicamente complexas que se fixavam a outros
reinos para submetê-los ao pagamento de tributos20
.
19
Todas as citações desse autor estão redigidas conforme a tradução original, ou seja, em português de
Portugal.
20
Para entender melhor a respeito da divisão geográfica da África antiga ver: História Geral da África
II. África Antiga, 1983. Disponível em: http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/education/inclusive-
education/general-history-of-africa/. Acesso em 10 de março de 2016.
78
Em Munanga e Gomes (2006/2010), é possível observar momentos de deslumbre e
admiração da terra e do povo africano por outras civilizações:
Até a véspera da era colonial moderna, era comum encontrar imagens positivas a
respeito da África. A natureza era descrita com poesia e entusiasmo; as mulheres
eram consideradas bonitas e respondendo aos cânones da beleza da época, com boca
de cereja e curva excitante (p. 32).
As imagens de uma África autêntica, existente nos testemunhos de viajantes árabes,
alemães, que desvendaram os países da África Ocidental entre os séculos IX até XI, e de
viajantes portugueses em suas navegações no século XV, se aproximavam mais ao sul do
continente africano, revelando sua diversa realidade. Vejamos o testemunho de Leo
Frobeniuns, pesquisador e explorador alemão, a respeito de cidades que visitou em 1906, na
África Central:
Quando penetrei na região do Kassai e do Sankuru, encontrei ainda aldeias cujas
ruas principais tinham quilômetros bordados com fileiras de palmeiras e cujas
residências eram decoradas de maneira fascinante como se fossem obras de arte.
Não vi homens que não carregavam no cinto suntuosas armas de fogo e cobre...
Havia por toda parte tecidos de veludo e seda. Cada taça, cada cachimbo, cada
colher eram uma obra de arte, totalmente dignos de comparação com as criações
europeias (OLIVER e ATMORE, 1970, p. 19).
No entanto, não foi essa a visão que predominou ao longo dos séculos subsequentes.
Um marco no apagamento dessa percepção foi a destruição dessa realidade via colonização,
oficializada na Conferência de Berlim (1885)21
. Essa conferência foi determinante para a
mudança no território africano. A partir desse momento histórico, as referências simpáticas e
harmônicas ao continente africano começaram a sombrear, a imagem da beleza foi
bruscamente distorcida pela imagem de sub-humanos e, assim, passou-se a justificar as
invasões, a manutenção dos processos de colonização e exploração total de continente,
principalmente, na sujeição do povo africano ser obrigado a viver sem história própria.
As belas paisagens descritas por aventureiros desapareceram. A empatia com a beleza
do povo africano também. No lugar disso, se estabeleceu a barbárie, a mesquinharia e o atraso
para introjetar a "missão civilizadora", de responsabilidade dos colonizadores.
21 A Conferência de Berlim definiu a partilha colonial da África entre os países europeus
interessados em explorar política e economicamente esse continente. (PEREIRA, Amauri Mendes. África para
abandonar estereótipos e distorções, 2012).
79
A população negra ficou sem identidade, submersa numa suposta bestialidade
atribuída aos negros por teorias pseudocientíficas22
. Reinos e impérios foram desqualificados
como ignorantes e reduzidos a “tribos primitivas” que viviam em guerras infindas umas
contra as outras em meio à colonização. A exploração e dominação sofridas pelos africanos
exigia uma justificativa para o povo ser considerado bruto, do contrário não se poderia
legitimar a violência e fundamentar os trabalhos forçados. Desse modo, além da negação da
humanidade dos africanos, era preciso bestializar homens e mulheres.
África e Negro – uma relação de coprodução liga estes dois conceitos. Falar de um é
efetivamente evocar o outro (...). No entanto, se África tem um corpo e se ela é um
corpo, um isto, é o negro que o concede - pouco importa onde ele se encontra no
mundo. E se Negro é uma alcunha, se ele é aquilo, é por causa de África. Ambos,
isto e aquilo, remetem para a diferença mais pura e mais radical e para a lei da
separação (...). Os dois são o resultado de um longo processo de produção de
questões de raça (MBEMBE, 2014, p. 75).
As mudanças provocadas pelas invasões e imigrações não apagam as contribuições
de africanos na história de civilizações. Um exemplo da tentativa de apagar o continente
africano da historiografia ocidental colonial aconteceu quando negaram que havia mão-de-
obra negra na civilização egípcia. “Os egípcios eram negros, de lábios grossos, cabelo
crespo e pernas finas(...). Será difícil ignorar ou subestimar a concordância entre os
testemunhos23
apresentados pelos autores de referência a um fato tão evidente quanto à raça
de um povo”? (DIOP, 1983, p. 48).
Todo processo de negação foi uma estratégia politico-ideológica, cujo objetivo era
de rechaçar o negro do processo civilizatório universal, a fim de justificar a colonização e a
22Conforme nota 14.
23Volney, cientista latino, viajou pelo Egito entre 1783-1785, em pleno período de escravidão negra. Ele
fez as seguintes observações sobre os coptas (representantes da verdadeira raça egípcia, aquela que produziu ao
faraós): “Todos eles têm faces balofas, olhos inchados e lábios grossos, em uma palavra, rostos realmente
mulatos. Fiquei tentado a atribuir essas características ao clima, até que, visitando a Esfinge e olhando para ela,
percebi a pista para a solução do enigma. Completando essa cabeça, cujos traços são todos caracteristicamente
negros, lembrei-me da conhecida passagem de Heródoto: ‘De minha parte, considero os Kolchu uma colônia do
Egito porque, como os egípcios, eles têm a pele negra e o cabelo crespo’. Em outras palavras, os antigos egípcios
eram verdadeiramente negros, da mesma matriz racial que os povos autóctones [nativos] da África; a partir desse
dado, pode-se explicar como a raça egípcia depois de séculos de miscigenação com sangue romano e grego,
perdeu a coloração original completamente negra, mas reteve a marca de sua configuração.” ( DIOP, o.
cit.,p.56).
80
exploração econômica das riquezas naturais e da mão-de-obra escrava através da
dominação política. Essa teoria foi planejada a princípio por colonizadores, apoiados pela
religião católica e, em seguida, por intelectuais e cientistas, mostrando definitivamente a
disposição em manter o estigma de raça superior sobre os negros e seus descendentes.
Todorov (1993), em sua obra Nós e os outros, expõe a questão do universal e do
particular e dá ênfase aos conceitos de racismo e racialismo. Segundo o autor, a ideologia
europeia se coloca de forma superior biológica e culturalmente acima de todos os outros
povos, mantendo essa superioridade nas características fenotípicas, em suas produções
culturais, legitimadas num nível universal. Assim, a “raça” branca seria imposta como
referência para hierarquizar os povos de outras partes do planeta.
Enquanto o universalismo tem como referência um modelo universal idealizado ligado
à sociedade na qual pertence, o particular se caracteriza pela abertura para desestabilizar
valores atrelados a sua própria origem como universal, sendo esse universalismo aquele que
os convêm. Da mesma forma, Mbembe (2014, p. 155), em sua análise sobre o universal e o
particular, traz para reflexão o pensamento universal ocidental no qual apresenta a noção de
civilização como uma das imposições do que é necessário para fazer parte dessa
universalidade, como basicamente direito de todos. Segundo Mbembe (ibid):
Ela autoriza a distinção entre o humano e aquilo que não é de todo ou não é ainda
suficientemente humano, mas pode transformar-se nisso através da roupagem
adequada. Pensa-se, então, que os três vetores dessa roupagem são a conversão ao
cristianismo, a introdução à economia de mercado através do trabalho e a adoção de
formas racionais e esclarecidas de governo (MBEMBE, 2014, p. 29).
Pode-se observar nos pensamentos sobre o universal e o particular como transcorrem
as relações humanas. Essa maneira de pensar as relações, mesmo sendo de caráter teórico,
disseminou-se através dos continentes e foi denominada por ambos os autores como
"racialismo", respaldando o racismo que se evidencia por meio de ações excludentes.
Abordando o racismo em particular e a sua inscrição nos mecanismos de Estado e do
poder, Michel Foucault dizia, a este respeito, que qualquer moderno funcionamento
do Estado, a determinado momento, a um certo limite e em certas condições,
passaria pelo racismo. A raça, o racismo, explicava ele, é a condição de
aceitabilidade da condenação à morte numa sociedade de normalização.
(FOUCAULT, apud MBEMBE, 2006-2014, p, 67).
81
Entendo que o pensamento- mundo de Mbembe (2014) está fundamentado no
universal e não no nacional, no particular. O autor defende que o pensamento pós-colonial (ou
defendido por alguns autores como Stuart Hall, (2015) como pensamento pós-moderno) surge
com a “globalização” ou processo de expansão do trânsito e da troca entre povos de diferentes
partes do planeta. Ele elucida o desdobramento, por exemplo, da diáspora africana como
flexão desse movimento.
(...) a época do tráfico atlântico, das migrações em massa, já se constituía como uma
era de grandes experiências planetárias, momento no qual homens afastados da terra,
do sangue e no solo aprendem a imaginar comunidades pra lá dos laços de terra,
abandonando o aconchego da repetição e inventando novas formas de mobilização e
de solidariedades transnacionais (MBEMBE, 2014, p. 71).
Entretanto, o autor afirma que o pensamento pós-colonial é um pensamento do
sonho: sonho de uma nova forma de humanismo, que principalmente assentaria na partilha
daquilo que nos diferencia, aquém dos absolutos. É o sonho de uma pólis universal e
mestiça (ibid., p. 71). Brilhantemente Mbembe representa a possibilidade de a partir das
identidades humanas e sua disseminação, ser possível viver em harmonia e respeitabilidade
dentro de uma nova perspectiva do universal, que de acordo com seu pensamento: a
identidade nasce da multiplicidade e da dispersão; que o retorno a si mesmo só é possível
no entremeio, no interstício entre a demarcação e a desmarcação, na co-constituição (ibid.,
p. 69). O outro faz parte de cada um de nós, com todos seus aspectos de espelhamento,
diferença e estranhamento trazendo a necessidade, em cada um de nós, de compor um olhar
reflexivo diante do ato racista.
1.4 O Conceito de raça usado como instrumento para subalternizar o negro.
No entendimento de Schwarcz (1996), o conceito de “raça” surge no século XVI no
contexto da dominação colonial da Península Ibérica, momento de exploração do Novo
Mundo, categorizando as diferenças humanas em superiores e inferiores, chamando de
“primitivos” os povos recém-encontrados por colonizadores. Então, a partir do olhar
82
europeu houve a cristianização dos seres classificados por “bestializados”, e a ideia de raça
passou a fazer parte das relações sociais.
Como começou então essa história de chamar raças, conjuntos de indivíduos que
têm em comum a mesma cor da pele? No século XV, quando os navegadores
europeus descobriram povos fisicamente diferentes deles, colocou-se a questão de
saber se esses recém-descobertos eram bestas ou seres humanos como europeus.
Para que pudessem ser integrados na categoria humana, era preciso comprovar que
eram, antes de mais nada, também descendentes de Adão como os europeus.(...).
Lembremo-nos que entre os séculos XV e XVII o conhecimento e a explicação da
origem da humanidade estava nas mãos da Igreja, através da Teologia. Nesse
contexto, conseguiu-se demonstrar que os índios e os negros tinham referência na
bíblia e na santa escritura, o que comprovara sua descendência adâmica e,
consequentemente, sua humanidade. Faltava-lhes somente a conversão ao
cristianismo para sair da condição pecaminosa (...). Foi nesse sentido que a
escravidão foi abençoada pela Igreja Católica como o melhor caminho para a
conversão desses povos ao cristianismo, considerado como a sua única salvação.
(MUNANGA, 2013, p.176).
O conceito de raça foi utilizado, desde os seus primórdios, para segregar e legitimar a
hierarquização entre os povos, sendo criado para manter um rastro no decorrer dos séculos
para manter estereótipos raciais nos quais permanecem e são observados, principalmente, no
ambiente tecnológico privado. Hoje em dia, é comum ver a internet servindo de escudo para
camuflar um racismo feroz nas redes sociais. O racismo institucional enquanto forma de
segregação econômica também é evidente no meio do trabalho, com a ausência de negros em
algumas posições de prestígio.
Raça passa a ser um definidor para inferiorização, algo que ainda persiste como uma
representação poderosa e, também, como divisor social, excluindo o diferente, construindo
uma ponte que alicerça hierarquias e discriminações. Para Schwarcz (2012, p. 34) raça é
conceituada da seguinte maneira:
Raça é, pois, uma categoria classificatória que deve ser compreendida como uma
construção local, histórica e cultural, que tanto pertence à ordem das representações
sociais – assim como são as fantasias, mitos e ideologias – como exerce influência
real no mundo, por meio da produção e reprodução de identidades coletivas e
hierarquias sociais politicamente poderosas.
A etimologia da palavra "raça" vem do italiano razza que, por sua vez, tem origem no
latim Ratio que significa sorte, categoria ou espécie. Essa categoria foi utilizada pela primeira
83
vez, atuando nas relações entre classes sociais, nos séculos XVI e XVII (MUNANGA, 2003).
Desde então, o termo "raça" foi relatado como julgamento de valor sobre o outro, e quando os
europeus viajaram à África e para o continente americano, destacou-se o sentimento de
superioridade nas relações com o outro.
O conceito de “raça” passou a ser usado como degradação. O mesmo ocorre com a
possibilidade da mistura entre os povos e, principalmente, com a mistura sanguínea. O temor
da degenerescência a partir da mistura dos povos foi, portanto, mais um motivador na
segregação e no surgimento de mecanismos que massificaram a inferioridade da população
negra no escopo da hierarquia racial.
No processo colonial, os europeus conceberam três formas de perceberem o continente
africano, desfavorecendo a população africana e legando-a a situações adversas: 1) a
descoberta de terras no continente americano, em que a mão-de-obra se tornaria escrava para
trabalhar neste território; 2) o desmantelamento das instituições políticas no continente
africano pelos europeus; 3) o interesse não na cultura, mas nas riquezas naturais das terras
africanas, além da exploração e opressão da população.
Na religião a inferioridade do povo negro foi justificada, a partir da passagem bíblica
da descendência de Cam, filho de Noé. Cam foi amaldiçoado por ver seu pai nu quando
estava embriagado e desrespeitá-lo por rir da situação e não esconder a nudez de seu pai. Noé
expulsou seu filho da família amaldiçoando a ele e a sua descendência. O clero religioso
definiu essa maldição como a modificação da cor da pele de Cam. Seu castigo seria tornar-se
negro, como sinal para não esconder sua vergonha. (MUNANGA, 1988).
Dessa forma, percebemos como os personagens bíblicos cristãos eram utilizados para
justificar a inferioridade do negro em relação ao europeu. O preto e o branco foram, então,
equivocadamente mal interpretados. Os cristãos viam o negro como algo imoral e sujo e o
branco como símbolo de pureza e bondade. Os símbolos religiosos negativos eram
representados nas colônias africanas da seguinte forma: Deus sendo o senhor supremo com
barbas e pele alva e olhos claros, enquanto o diabo com pele negra, rabo e chifres
pontiagudos.
Outro modo de estigmatizar os negros, empregado pelos europeus foi através da
imagem do negro como preguiçoso. Afirmavam que em um clima tropical, os negros
trabalhavam somente até o meio dia, e à tarde tiravam sua sesta embaixo de árvores e não
84
voltavam mais ao trabalho. A preguiça ainda é um estereótipo comum nos ditados populares,
como confirmação do negro propício ao vício em bebidas e jogos, atribuindo a má vontade
para o trabalho, e legitimando a escravidão e as torturas físicas.
Assim os indivíduos da raça branca, por definição, portadores da pele mais clara,
dolicocéfalos etc., foram considerados, em função dessas características, como os
mais inteligentes, mais inventivos, mais honestos, mais bonitos etc. e,
consequentemente, os mais aptos para dirigir e até dominar as populações de raças
não brancas - negra e amarela-, principalmente negra de pele escura que, segundo
pensavam, tornava-as mais estúpidas, menos inteligentes, mais emotivas e,
consequentemente, sujeitas à escravidão, colonização e outras formas de dominação
e exploração. (MUNANGA, 2010, p. 181).
Contudo, se faz necessário mencionar a questão da linguagem, que consistiu em mais
um adendo no sofrimento e opressão vivido pelo negro. Sua língua mãe naquele contexto era
totalmente desqualificada e, quando aprendia a língua do colonizador, sentia-se num conflito
cultural e psíquico, gerando resistência do negro bilíngue em relação à língua do colonizador.
O colonizado insistia em usar sua língua materna, mesmo diante dos espancamentos, para não
esquecer-se dela.
Sobre a resistência negra, Munanga (1988) diz que há um sinal de ruptura do negro na
assimilação dos valores culturais europeus, isso acontecia quando quebravam as barreiras
sociais e culturais, por meio da sua aceitação como negro e de praticar suas tradições e reviver
sua história. O patrimônio cultural do negro, sua linguagem e ancestralidade, não foram de
todo erradicados pelo colonizador europeu, embora a intenção fosse essa. Em alguns vilarejos
e grupos étnicos, havia, no século XX, a preservação de seus costumes e patrimônios
culturais, seja pelo uso da língua, das artes ou dos costumes.
Entre aquelas sociedades da diáspora, o sentimento de negritude era o de “representar
uma contestação à dominação colonial que impõem um dogma da supremacia colonizadora
em relação à cultura do povo dominado” (Ibidem, p. 34).
São diversos os aspectos biológicos que se apresentam inseridos nas relações entre os
grupos humanos. A partir deles tem-se o racismo e o racialismo que são legitimados,
intrinsicamente, nas relações sociais. Em Todorov (1993), racismo é uma prática excludente, e
racialismo advém como teoria produzida por diferenças constatadas, diferenças estas que
85
estão presentes nos campos: linguístico, cultural, biológico e nas diferenças entre diferença e
identidade.
O racismo científico é um desses mecanismos que surgiu a partir da análise do
pensamento francês sobre a diversidade humana, afirmando a existência da hierarquização
dos povos com base biológica, que no fundo era de cunho cultural, ou seja, pressupondo a
sobreposição de uma cultura sobre a outra. A instituição do movimento de ideias a fim de
definir o tipo ideal de ser humano fez com que muitos intelectuais conceituassem o racismo a
partir de algumas situações de disputa na França, por exemplo, acerca das diferenças raciais
entre francos e gauleses, que caracterizavam ancestrais dos aristocratas e do povo,
respectivamente (TODOROV, 1993).
Intelectuais do racismo científico investigaram a definição e a busca de um tipo ideal,
elegendo o homem como seu principal objeto. Entre estes intelectuais destaca-se a figura de
Buffon (1749) que, em sua obra Histoire naturelle, no volume De I’homme , realiza uma
síntese de relatos de viagem entre os séculos XVII e XVIII defendendo a monogênese e
ressaltando como brancos e negros poderiam unir-se a favor de uma única espécie.
O autor propõe ainda a hierarquização na relação entre os animais na natureza. O
teórico defende a ideia de que, além dos homens pertencerem a uma única espécie, estes
podem ser julgados utilizando os mesmos critérios. Essa posição monogenista corrobora com
o caráter determinista entre a diferença e a superioridade entre um grupo e outro. Essa ideia
funde hierarquia e unidade por julgamento de valor: em primeiro lugar, pela observação de
outras características humanas e, e m s e g u n d o , provocada por fecundação mútua.
A primeira grande classificação das raças levada a cabo por Buffon ocorreu num
ambiente em que a linguagem acerca dos mundos outros era construída a partir dos
preconceitos mais ingénuos e sensualistas, e formas de vida extremamente
complexas são trazidas à pura simplicidade dos epítetos. Chamemos a isso o
momento gregário do pensamento ocidental. Nele, o Negro é representado como
protótipo de uma figura pré-humana incapaz de superar a sua animalidade, de se
autoproduzir e de se erguer à altura do seu deus. Fechado nas suas sensações tem
dificuldade em quebrar a cadeia da necessidade biológica, razão pela qual não
chega a moldar o seu mundo e a conceder a si mesmo uma forma verdadeiramente
humana. É nisto que se afasta da normalidade da espécie. (MBEMBE, 2014, P. 38-
39).
86
Buffon (apud TODOROV, 1993) reafirma essa hierarquia através da sociabilidade, na
qual o “homem” se mantém no topo da vida biológica apenas quando comanda a si próprio e
se submete às leis, à ordem estabelecida e à rotina de seus costumes. Então, deste modo, a
racionalidade e a sociabilidade passam a ser consideradas características necessárias a “todos
os homens”, o que possibilitou a Buffon cunhar oposições como polidez e civilização versus
barbárie e selvageria.
A teoria monogenista hierarquiza os povos da seguinte maneira: acima, as nações da
Europa Setentrional; na sequência, os outros europeus abaixo e, por último, as populações da
Ásia e África. As diferenças sociais levaram-no a formular julgamentos de valor acerca dos
demais povos não europeus, valorizando a unidade do gênero humano.
Se ao menos não houvesse para o branco e o negro a possibilidade de “produzir
juntos”, [...] haveria duas espécies bem distintas; o negro seria para o homem o que
o jumento é para o cavalo; ou melhor, se o branco fosse o homem, o negro não seria
mais homem, seria um animal à parte, como o macaco. (BUFFON apud
TODOROV, 1993, p. 116).
A respeito da variedade da espécie humana, o autor propõem três parâmetros, a saber:
a cor da pele, o tamanho do corpo e o costume24
. A determinação da cor da pele tem ligação
com o clima e os costumes, a alimentação e o grau de civilização. De maneira bem simplista,
Buffon define que os civilizados escapam da miséria por decorrência de sua civilidade. Já os
selvagens ficam a própria sorte sofrendo a fome e as intempéries, vivendo como animais. No
entanto, o ideal estético sugerido por Buffon (Ibidem) é rigorosamente etnocêntrico em
relação aos critérios cultural e étnico. Em suas palavras altamente racistas, os negros:
(...) são de todos os seres humanos os que mais se aproximam dos brutos, lugar às
vezes contestado pelo índio da América, que não era mais que um animal de
primeira ordem (...). Os asiáticos “têm olhos pequenos de porco” enquanto os olhos
dos “hotentotes” são como os dos animais”. (BUFFON apud TODOROV, 1993, p.
116).
24 “Os costumes agem por intermédio do clima e da alimentação, aumentando e diminuindo seus
efeitos, e a falta de civilização produz a negritude da pele. Sofrem a comparação entre civilizado e bárbaro, se
vivessem no mesmo clima, os selvagens seriam mais escuros, feios, menores e enrugados” (TODOROV, 1993, p.
118).
87
O intelectual francês, Renan (1823-92), elucida o racialismo a partir da oposição entre
arianos e semitas e aponta uma hierarquização dos sujeitos através da raça, da divisão da
humanidade em formato de grupos raciais estereotipados ao extremo entre brancos, amarelos
e pretos.
O autor elenca uma raça inferior constituída basicamente pelos pretos da África,
aborígenes da Austrália e por Ameríndios, acreditando haver representantes dessas raças por
toda a dimensão da terra e esses seriam gradativamente eliminados por raças superiores,
reafirmando que as raças inferiores são incapazes e não alcançariam o progresso.
Intermediando essas categorias raciais estão os amarelos, representados pelos chineses,
japoneses, tártaros e mongóis, julgados como menos civilizados.
Em sua análise, a língua chinesa apresenta estrutura inorgânica, defeituosa e
incompleta. A raça branca está no topo como a única bela e que é intocável em relação a sua
civilidade e razão. Renan afirmava que o negro tinha uma única serventia: a de realizar tarefas
e desejos dos brancos e em sua teoria afirmava que "(...) se a terra se tornar coberta por eles,
aconteceria uma limitação total gerando uma 'mediocridade geral'." (TODOROV, 1993, p.
125).
Ainda de acordo com Todorov (1993), outro ponto importante defendido por Renan é
a forma como este aborda a cultura e a ciência e o quanto precisam manter-se autônomas,
principalmente, as crenças morais e religiosas que necessitam ficar protegidas dos resultados
da ciência. Assim, o teórico francês rebateu a falta de unidade e a impossibilidade da
igualdade entre as três raças defendidas por ele, pois, ao afastar a ciência e a ética, ele valoriza
os dogmas morais e, consequentemente, os impede de atrapalhar o avanço da ciência. Já que
se não possuem a mesma a humanidade, os povos ditos inferiores não são merecedores de
respeito.
A partir dessa nova concepção, a “raça” passa a ser concebida pela divisão de grupos
da humanidade subdivididos pela língua, pelos costumes, pela religião e pelas leis. O teórico
acredita que raça linguística é um conceito abstrato, não configura uma raça física, e quem a
compõe pode falar diversas línguas no interior de uma única nação, ou, muitas nações podem
falar uma mesma língua. A língua é, portanto, o espírito da nação, o centro de toda a
discussão. O pensamento de Renan e sua definição sobre as raças primitivas/inferiores
88
sustentada pela falsa acusação da incapacidade desses povos em raciocinar, infelizmente,
tornaram-se parâmetros de análise para medir a capacidade de civilização de grupos sociais
distintos.
Gobineau25
, outro intelectual que contribuiu muito com as teorias racialistas, também
merece destaque por seu determinismo, materialismo e fidelidade à ciência. A raça branca é
por ele considerada como a ideal, sendo os europeus o padrão de referência para as demais
raças.
Em relação às capacidades intelectuais, os negros são considerados nulos. Já o povo
amarelo, ainda segundo o autor mencionado, é medíocre, reafirmando a superioridade
europeia. Ainda na visão deste autor, a mistura de sangue significa a degradação de qualquer
espécie. Ele assegura ainda que os povos se degeneram a partir das misturas e na proporção
em que sofrem um processo de degeneração. O termo "degenerado" é então aplicado ao povo
que não possui o sangue genuinamente puro, logo seu valor foi modificado sucessivamente
pela degenerescência a partir da mistura sanguínea.
Outa hierarquia proposta por Gobineau (apud TODOROV, 1993), refere-se ao estatuto
e ao papel do ideal na vida de uma sociedade. Há, da parte de deste intelectual, um grande
desprezo pelos não europeus, mas sua rejeição mais forte se dá contra os brasileiros,
afirmando: “todo mundo é feio aqui, mas incrivelmente feio como macacos” (SKIDMORE,
1976).
Assim, nos séculos XIX e XX, acrescentaram ao critério da cor da pele outras
características morfológicas como o formato do crânio e de cabeça, os lábios,
narizes, queixos etc., e os caracteres genéticos hereditários como os grupos de
sangue, certas doenças hereditárias e raciais. Estes considerados como marcadores
genéticos, constituíram, segundo pensavam, o divisor de águas, que consagraria a
tarefa científica de classificação das raças humanas. (MUNANGA, 2013, p. 177).
Enfim, Le Bon, Renan e Gobineau são intelectuais poligenistas, que possuem como
referência a cor da pele, a forma craniana e sua capacidade. Para esses estudiosos a
humanidade é composta por diferentes espécies, de origens muito diversas. Aqui foram
25 “Não há diferenças qualitativas entre ciência da natureza e ciências do homem, trata-se de fazer a
história entrar na família das ciências naturais. A respeito das qualidades morais do indivíduo, diz que são
determinadas por suas disposições físicas; nesse sentido, mantém-se oposto aos enciclopedistas, que acreditavam
nas virtudes da educação e nos progressos possíveis, tanto do indivíduo quanto da espécie” (apud TODOROV,
1993 p. 137).
89
apresentados alguns posicionamentos que respaldaram o racialismo e o racismo europeu e
espalharam-se pelo mundo gerando, consequentemente, políticas que promoveram a
submissão e o desaparecimento de populações negras no período das últimas décadas do
século XIX e o início do século XX.
No cenário nacional, as influências desses pensadores fundamentaram o racismo à
brasileira, um racismo velado, quieto, aquele que todos têm ou veem, porém é negado
diariamente. Ninguém se percebe como racista, mas, ao mesmo tempo, acusam o vizinho, o
parente e o amigo mais próximo de ser (SCHWARCZ, 2012). O mito da não existência do
racismo no Brasil impera com a falsa harmonia entre os povos, causando um mal estar na
subjetividade da população negra, que sofre com daltonismo acerca de sua história,
ancestralidade e do conhecimento de si como ser humano e cidadão dotado de direitos como
qualquer pessoa, independentemente de sua cor ou situação social.
Ao longo da construção da pesquisa, nosso intuito é entender a configuração do
racismo em nossa sociedade, enfocando as características de um povo “genuinamente”
brasileiro. Antes disso, tratamos dos aspectos psíquicos que se apresentam como motores do
racismo de um modo geral, através da necessidade na atualidade de discutir conceitos trazidos
por Frantz Fanon, em busca de consciência política para lutar e nos estabelecer como sujeitos
de nossa própria história.
Além dessa discussão, vamos refletir sobre o que é ser negro no Brasil. País marcado
pela corrupção desmedida, capaz de sacrificar e marginalizar grande parte da população
negra, responsável pela construção de toda infraestrutura continental brasileira. Esse lugar que
vulgariza as mulheres, sobretudo as mulatas, expondo-as como “produtos” nacionais, e
descaracteriza o homem negro, mantendo-os nos mais baixos escalões sociais, rebaixando-os
a vagabundos e malandros preguiçosos desqualificados.
90
Capítulo 2: O que é ser negro no Brasil?
Melhor seria perguntar quem gosta de ser negro no Brasil? Nosso país tem um
histórico que ainda tenta apagar, um passado escravagista de exploração de muitos para o
enriquecimento de poucos. Situação que reverbera hoje nas desigualdades raciais e sociais que
vigoram em nosso dia a dia.
Quem quer ser negro no Brasil? Nosso país vive uma realidade de perda de direitos e
contradições políticas que geram um paradoxo do que é considerado certo ou errado, ético ou
subversivo. O sentimento de insegurança é presente e desolador.
A população negra sendo a maioria, aqui é caracterizada como “minoria”, na qual
estão as camadas populares, compostas por negros e nordestinos trabalhadores. Estes
personagens são os que sentem com intensidade a brutalidade da ‘nova ordem’ imposta no
país. Corrupção, roubo, violência e desigualdades aviltantes refletem e proliferam no
cotidiano da população que já não sabem lidar com a situação de ausência ou omissão do
Estado.
Ser negro aqui é não ter certeza do respeito e de direitos que, no papel, são garantidos
pela força da Lei a todos sem distinção de raça, cor, credo ou posição social. Mas podemos e
devemos nos questionar: que Lei é essa que mais desampara do que protege?
O sistema carcerário está em eminência de eclosão por sua superlotação. A população
carcerária é, em sua grande maioria, composta por negros. O Sistema de Informações
Estatísticas do Sistema Penitenciário Brasileiro (InfoPen)26
utilizou os dados da Pesquisa de
Amostras por Domicílio (PNAD) realizado pela Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), no qual a raça é autodeclarada pelos entrevistados e comprovou em um relatório de
pesquisa que, de 726, 712 pessoas encarceradas no Brasil no primeiro semestre de 2016, mais
da metade dessa população é de jovens entre 18 a 29 anos e desses, 64% são negros. Em
26 Os interessados podem ler o relatório na íntegra: Levantamento nacional de informações
penitenciárias: INFOPEN atualizado – junho de 2016/ organização, Thandara Santos; colaboração, Marlene Inês
da Rosa (et al.) – Brasília: ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento de Segurança Pública
Nacional, 2017. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-
de-informacoes-penitenciarias-2016. Acesso em 09 de julho de 2018.
91
âmbito nacional a situação é ainda mais crítica. Quando visualizamos essa estatística dividida
por estados, vemos que a discrepância entre o encarceramento entre brancos e negros pode
ultrapassar os 91%. Legitimamente, os negros são alvo de uma lei paralela, obscura, mas
efetiva, que massacra e criminaliza pobres, negros e favelados com apoio do Estado e de parte
da sociedade civil.
Podemos considerar que ser negro é ter o Estado como inimigo velado, com as armas,
a todo tempo, apontadas para você. É o Estado que segrega, no caso da mobilidade social, e
delimita onde o pobre pode morar ou se “esconder” para manter na foto de vitrine do país do
futebol a paisagem da “cidade maravilhosa”. Mas, maravilhosa para quem? Como pobres e
negros, somos marginalizados e não somos bem-vindos em nossa própria morada.
A disposição de apagar a “mancha negra”27
, mesmo depois de séculos, continua de
acordo com a postura de Rui Barbosa ao mandar incendiar diversos documentos que traziam à
tona toda a brutalidade da escravidão no Brasil (NASCIMENTO, 2016).
Aqui a resolução dos problemas é mais simples, na atualidade o que ocorre é um
esvaziamento de dados, de respostas e até de assuntos pertinentes à questão racial e cultural
que se transformou em social e, por fim, econômica. Como diz Hasenbalg (1979), “o Brasil
não é um terreno fértil para o surgimento do orgulho racial, parece também não o ser para o
florescimento do orgulho nacional!”.
O Estado lida “inescrupulosamente” para apagar os problemas que são criados por
aqueles que os dirigem. Os negros foram transfigurados ao grau de serem considerados um
grande problema para as grandes metrópoles do país. Isso é perceptível na esfera social,
ideológica, estrutural e econômica.
Em defesa do progresso ou da modernização, o asfalto é redesenhado e
supervalorizado, assim como seus moradores. Não obstante, nas comunidades cujas moradias
e infraestrutura são erguidas por seus habitantes, o acesso ao conforto está longe de ser
priorizado. Afinal, supõe-se que quem mora nessas comunidades consideradas “carentes” não
27 “A “mancha negra” citada acima faz menção a um acontecimento histórico, no qual Rui Barbosa,
ministro da fazenda de 1889 a 1891, deu ordem à destruição de documentos referentes à escravidão. Desses,
constavam comprovantes de “natureza fiscal que pudessem ser utilizados pelos ex-senhores de escravos para
pleitear indenizações junto ao governo da república”. Esses ex-donos de escravos pretendiam receber uma
“gorda” indenização por suas perdas de escravos e pelo fim da escravidão no país e seus infindáveis prejuízos”.
(LACOMBE, p. 11).
92
precisa de muito para viver. A precariedade está presente nesses lugares desde seu surgimento,
quando negros (ex-escravos e descendentes) subiam os morros e construíam barracos para
morar.
Autoridades governamentais e sociedade dominante se mostraram perfeitamente
satisfeitas com o ato de condenar os africanos “livres” e seus descendentes, a um
novo estado econômico, politico, social e cultural de escravidão em liberdade.
Nutrido no ventre do racismo, o “problema” só podia ser, como de fato era,
cruamente racial : como salvar a raça branca da do sangue negro, considerado de
forma explícita ou implícita como “inferior” (NASCIMENTO, 2016, p. 81).
A citação acima explica muito, acerca do “tratamento” dos governantes dado aos
negros brasileiros. A situação nos dias de hoje ainda inclui descaso e desamparo dessa
população que ainda luta pela conquista de espaço e equidade na sociedade em geral. A
população negra ainda é taxada de favelada, sem cultura e sem educação. Ainda é comum ver
manifestações de violência racial nas redes sociais. O negro quando bem estabelecido e com
sucesso, muitas vezes, ainda incomoda e gera insatisfação ao branco que o vê como ameaça.
Ser negro no Brasil é ser morto e “suspeito” de ser bandido, ladrão ou ter
envolvimento com tráfico de drogas. Não são boatos, os noticiários diariamente “informam”
de forma deformada, de modo a construir uma desqualificação dos negros. A população já
está tão acostumada que parece não perceber que internalizaram esses paralelos: negro-
pobreza negro-criminalização. Essas afirmativas impostas pelos meios de comunicação de
massa viralizam no meio social.
Na busca de novas formas de analisar hierarquias raciais, o que vale não é a verdade
biológica, mas quanto uma afirmação possa atrair a adesão de seu público.
Consideramos aqui que a falsidade da inferioridade de negros e de indígenas é ponto
pacífico, em termos científicos: consideramos também a presunção de sua verdade
continua operando no dia a dia. De igual maneira, o fato biológico de que um
mesmo casal pode ter filhos identificados com brancos e como negros não
inviabiliza o racismo na sociedade: esta situação precisa ser reexaminada em busca
de seu potencial crítico (SOVIK, 2009, p. 17).
A ideia de inferiorização foi implantada, revelando o medo dos brancos em relação ao
negro, para depreciar seu modo de vida. Isso faz parte de uma estratégia para brancos se
manterem acima dos negros nos aspectos mais elementares da vida e na hierarquia social.
Essa falácia se constitui no senso comum, tentando constatar a incapacidade intelectual negra.
93
Esse discurso tem um contexto cotidiano associado ao fato de que, em nosso país, o
negro não sabe se é negro, mulato, pardo ou branco, levando-o a uma crise de identidade em
larga escala com severas consequências. No entanto, a informação necessária a cada indivíduo
brasileiro deveria ser essa: “Aqui ninguém é branco. À maneira que Michael Foucault, o
fraseado trabalha com o jogo da exclusão, ou melhor, com a invisibilidade do óbvio. A
visibilidade do óbvio está na panfletagem e é ideológica, se não ressentida” (SANTIAGO,
2009, p. 12).
Essa “invisibilidade do óbvio” nos chama atenção, primeiro da forma como o racismo
age na estrutura social e psíquica, instaurando sorrateiramente na mentalidade do negro o
desejo de ser branco. Em contrapartida, mantém o branco com os privilégios de sua
branquitude. Vamos aprofundar com mais propriedade o assunto ao longo deste capítulo.
A invisibilidade é mais abrangente, quando estendemos às mulheres negras e mulatas.
Estigmatizadas pela sensualidade da cor sofrem a distinção de sua aparência e a desconfiança
quanto à sua intelectualidade, que é posta à prova no mercado de trabalho. Em um segundo
aspecto, ainda lutam por conquistas de direitos na igualdade de salários e espaço em
empregos de cargos bem remunerados.
A consciência de si e a busca pela ascensão social das mulheres negras no Brasil têm
sido um processo de conquistas e derrotas. Por esse motivo, consideramos a necessidade de
abrir um parêntese para exemplificar mulheres negras que precisam ser lembradas como
representações de luta para conquistar equidade, justiça racial, social bem como pela
universalização dos direitos humanos. É importante relatar alguns fatos, diante dos últimos
acontecimentos no Rio de Janeiro28
, onde mulheres foram assassinadas pela ausência do
Estado, seja por omissão ou responsabilidade por esses óbitos.
28 A morte de mulheres brasileiras tem crescido a cada ano. O feminicídio é um crime de ódio
que mata muitas mulheres em nosso país, quando não morrem as vítimas vivem em profunda depressão e com
medo do convívio social. Embora, exista a Lei do feminicídio desde 2015, criada com base nos estudos da
advogada criminalista Luiza Eluf, ainda vemos mulheres sendo agredidas diariamente por seus companheiros,
outras sofrendo estupros coletivos e sendo ameaças de morte e a de seus familiares, além das muitas que são
sentenciadas cruelmente a morte. Há casos como o de Sâmyla Samara de 19 anos do Ceará, que foi morta a tiros
por seu ex-companheiro e pai de seu filho, apenas a um mês da institucionalização da Lei do Feminicídio. Em
agosto de 2017, na Zona Sul da cidade de São Paulo, Síria Silva foi morta por estrangulamento em mais um caso
de violência doméstica ocasionada por ciúmes de seu companheiro, só que dessa vez com um final trágico: seu
corpo foi encontrado três dias após o crime. Esse e muitos outros acontecem diariamente em nosso país, para
haver tanas incidências concluímos que a uma grande parcela de impunidade e negligência por parte policial e
principalmente do Estado. Ver reportagem na íntegra sobre esses e outros casos de feminicídio no Brasil em: https://www.geledes.org.br › Questões de Gênero › Violência contra Mulher. Acesso em 09 de junho de 2018.
94
Maria Beatriz Nascimento29
, nascida em 1942 em Aracaju, de origem humilde.
Formada em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, iniciava o mestrado em
Comunicação Social pela mesma universidade. Era ativista negra, professora estadual e
historiadora, participou em 1981 de Congressos em que propunha falar da temática racial no
ambiente acadêmico. Seu maior incômodo na academia era a referência ao negro apenas
como escravo. Seu trabalho mais conhecido foi o documentário Orí, escrito e narrado por ela.
Foi assassinada a facadas, ao defender uma amiga de uma violência doméstica. Ana Beatriz
representava na Universidade um grito de resistência, num espaço onde residia a exclusão,
principalmente de mulheres negras.
Esses são apenas dois dos muitos casos de violência contra mulheres, sobretudo
quando ainda menos favorecidas. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) o
Brasil tem a quinta maior taxa de feminicídio do mundo: de 4,8% para 100 mil mulheres. O
número de assassinatos de mulheres negras cresceu de 54%, passando de 1.864 para 2. 875,
sendo que, na maioria dos casos, o crime é cometido por pessoas da própria família da vítima
ou por seu cônjuge ou ex-cônjuge. (GASMAN, 2016) 30
.
2.1 A violência doméstica e o feminicídio
Essas são formas de submeter às mulheres ao domínio e à lógica de dominação
masculina. O feminicídio é crime classificado como hediondo desde 1990, com pena prevista
para homicídio qualificado em regime de reclusão de 12 a 30 anos. Mesmo com aumento de
ocorrências nas delegacias contra os agressores, observamos mulheres sendo agredidas e
mortas com frequência, entendemos que a lei não protege, é apenas simbólica.
29
Para saber mais sobre Maria Beatriz Nascimento, acessar: http:
//diarioconquistense.com.br/2017/ 05/ 03 a-história-do-brasil-e-uma-historia-escrita-por-maos-brancas-
argumenta-historiadora-negra/. Acesso em 20 de março de 2018. Documentário Orí de Maria Beatriz
Nascimento: http:// youtu.be/35H0lbrSGbl. Acesso em 20 de março de 2018.
30 Para mais informações e estatísticas sobre o feminicídio no Brasil consultar: Diretrizes Nacionais
Feminicídio: investigar processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres. Versão
online disponível em: www.onumulheres.org.br Acesso em 09 de junho de 2018.
95
A violência é maior com mulheres negras, de 2003 a 2013 houve um decréscimo de
2,1% no número de vítimas brancas, enquanto para as mulheres negras ocorreram um
aumento considerável de 35%. De acordo com o Mapa da Violência 2015: Homicídios de
mulheres no Brasil, a população negra está no topo da lista de homicídios no país.
O desrespeito à mulher negra foi denunciado corajosamente em 1975 no Manifesto
das Mulheres Negras, no Congresso das Mulheres Brasileiras realizado na Associação
Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro:
As mulheres negras brasileiras receberam uma herança cruel: ser o objeto de prazer
dos colonizadores. O fruto deste covarde cruzamento de sangue é o que agora é
aclamado e proclamado como “o único produto nacional que merece ser exportado:
a mulata brasileira”. Mas se a qualidade do produto é dita ser alta, o tratamento que
ela recebe é extremamente degradante, sujo e desrespeitoso (NASCIMENTO, 2016,
p 74).
Esse tratamento ainda em vigor é dirigido à negra e mulata brasileiras. Somos o
produto que tende a ser barateado, desqualificado da miscigenação. Esse é o lugar delegado a
nós. Querem-nos invisíveis para não desagradar quem nos colocou nessa posição de opressão,
só que não dá mais para tolerar esse lugar que dizem ser nosso, precisamos reagir com
urgência a essas atrocidades.
Outro caso foi o da auxiliar de serviços gerais Cláudia da Silva Ferreira31
, de 38 anos,
moradora do Morro da Congonha no Rio de Janeiro, mãe de quatro filhos e responsável por
quatro sobrinhos.
Domingo pela amanhã Claudia foi à padaria comprar pão, quando foi alvejada por
duas balas perdidas, uma no pescoço e outra nas costas. Ela cai e recebe ajuda de policiais
que faziam uma operação no morro. Colocaram-na no porta-malas do camburão e a levaram
para atendimento no Hospital Carlos Chagas. O “problema adicional” ou descaso maior, para
não dizer escárnio total, foi o porta-malas abrir e arrastar Claudia por volta de 250 metros no
asfalto, com o carro em velocidade.
Imagens do fato estão expostas na Internet32
, que mostram a mulher sendo arrastada
pendurada por uma peça de roupa presa no camburão. Policiais disseram que retiraram
31 Para saber mais sobre a morte de Claudia da Silva Ferreira disponível em: http://
www.youtube.com/watch?v=N4MSUx91im8. Acesso em 19 de março de 2018.
96
Claudia da comunidade ainda com vida, mas ao chegar no hospital estava morta. Quem são os
culpados? Foi vítima por ser moradora de uma comunidade, trabalhadora, negra, pobre e
favelada?
No Brasil a polícia encontra-se no direito de estar acima do bem e do mal. A maneira
como Cláudia foi tratada mostra que sua vida não tinha valor algum (BUTLER, 2016), ao ser
executada a polícia ainda tentou jogar a culpa na vítima dizendo que a mesma tinha
associação com o tráfico de drogas, ou seja, ela era culpada por sua morte. Ser negro aqui é
viver constantemente com a banalização da morte da população pobre e de cor com estímulo
do Estado e a materialização do óbito legitimado pela polícia que mata. Nas palavras de
Butler, 2016:
Se certas vidas não são qualificadas como vidas ou se, desde o começo, não são
concebíveis como vidas de acordo com certos enquadramentos epistemológicos
(mas também políticos, religiosos e de gênero), então essas vidas nunca serão
vividas nem perdidas no sentido pleno dessas palavras (BUTLER, 2016, p. 13).
(...) Aqueles cujas vidas não são consideradas potencialmente lamentáveis e, por
conseguinte, valiosas, são obrigados a suportar a carga de fome, do subemprego, da
privação de direitos legais e da exposição diferenciada à violência e a morte (ibid.,
p. 40).
Assim são vividas as vidas de muitos negros em nossa sociedade, como descrito pela
autora. As mulheres negras periféricas são oprimidas e marginalizadas, a culpabilização da
vítima e sua criminalização são artifícios comuns para silenciar e naturalizar o genocídio de
pessoas negras e, dessa forma, nos tornamos cúmplices dessas mortes por nossa falta de
reação conjunta. Precisamos parar de ignorar as estatísticas e falarmos daqueles que têm
morrido tão precocemente: os negros, pobre e favelados. É necessário retomarmos seus nomes
32 Nas palavras de Renato No (2017) no IV Seminário: Racismo, Capitalismo e Subjetividade:
leituras psicanalíticas e filosóficas: “A vida sem valor algum é um aspecto presente no conceito de necropolítica:
Uma política da morte e de corpos passíveis de serem mortos sem fazer falta”. Nesse caso a população
marginalizada e negra estaria na linha de frente desse genocídio. “O conceito de necropolítica emerge como
subversão da noção de biopolítica foucaultiana, perpassada pelas análises sobre violência em Fanon, entre outras
contribuições teóricas. A necropolítica se manifesta como submissão da vida ao poder da morte, onde máquinas
de guerra dominam populações em espaços de extração de riquezas como minerais e petróleo” (LIPPOLD, 2017,
no prelo).
97
e suas histórias como forma expiar o crime e a vergonha dessa violência histórica num
processo de resgate da memória coletiva brasileira.
Finalizando, o caso que chocou o país e teve repercussão internacional, a “execução”
da vereadora Marielle de Franco33
de 38 anos, no dia 14 de março de 2018. A vereadora
voltava para casa por volta das 21 horas e 30 minutos com seu motorista e a assessora, quando
foi executada com quatro tiros na cabeça e seu motorista foi alvejado por três tiros, a única
sobrevivente foi assessora da vereadora.
Socióloga, administradora, vereadora, mulher, negra, lésbica e ativista do movimento
de negras feministas, foi covardemente assassinada por homens que a menos de dois metros
dispararam tiros tirando sua vida. Ela deixou uma filha de dezoito anos, uma companheira e
um legado em prol da vida e a defesa dos direitos humanos.
A execução de Marielle de Franco é um episódio político limítrofe. Através do fato foi
desnudado um tipo de luta a qual as classes dominantes e a grande mídia manipuladora
temem: a luta antirracista, a luta por direitos fundamentais a todas as pessoas sem distinção e
a luta pelo fim da desigualdade tão ferrenha nos dias de hoje.
No país em que vivemos, o “pobre” e o negro são tratados com descaso e abandono.
Marielle veio desse lugar, no qual as coisas não mudam, os benefícios não chegam para
manter o status quo e os privilégios de poucos. Mas, ela conseguiu sair de uma situação
precária com o compromisso de mudar não só sua realidade como do lugar de onde saiu. Por
que não nos identificarmos com Marielle?
A resposta é: porque incomoda, perturba a paz inerte dos que descansam em suas
mansões, nos castelos de areia em cima da base da pirâmide erguida por trabalhadores, que
como gado, obedecem, fazem tudo para sobreviver. Vivemos num país que só oferece
migalhas para quem sustenta o luxo de uma minoria que manda e desmanda no país, para
manter o capitalismo e as desigualdades avassaladoras que desnutrem seu povo e mata para
manter uma elite com fortes impulsos escravocratas no poder.
Não podemos nos esquecer dessas mulheres, e nem de muitas outras que tiveram suas
trajetórias marcadas pela brutalidade e morte prematura por motivos injustificáveis. Foram
escolhidas por representarem situações que acontecem frequentemente e nem sempre têm
33 Para entender o que motivou o crime contra vereadora Marielle de Franco. Disponível em
http://www.bbc.com/portuguese/brasil-43398815. Acesso em 18 de março de 2018.
98
notoriedade como deveriam. Alguns casos não chegam ao nosso conhecimento, outros, mais
raros como o de Marielle, que era reconhecida por seu trabalho político, transforma-se em
estopim para gerar revoluções. Esse sentimento precisa ser mantido e gerar incômodo em
todos nós.
A morte de Marielle escancara o ódio aos negros e as mulheres negras, sentimento que
não se contenta em matar, é preciso mais. Tem que executar cruelmente, difamar sua luta, sua
memória e sua vida.
Ser brasileira, negra e suburbana é mais complexo do que podemos imaginar. A
intenção aqui é “transplantar” nas palavras o que é ser negro em um país que finge o tempo
todo que estamos bem, obrigada. Quando na verdade o racismo é mascarado e desmentido (ou
desautorizado)34
e doloroso.
Nas palavras de Carone e Bento (2014), precisamos nos questionar, pois: “Não temos
só um problema de perda de identidade negra, mas um problema de nacionalidade: quem quer
ser brasileiro? Como o negro brasileiro se representa e é representado? Como o branco
brasileiro se representa e é representado?” (p. 52).
Em suma, o povo brasileiro é sofrido e guerreiro, tem em sua cor a mestiçagem e a dor
de viver uma falsa harmonia racial. Sobretudo, é um povo atento às manobras dos poderosos
(SOVIK, 2009) dos políticos que governam o Estado, mas, passa como um povo inculto e
despreocupado, estigmatizado como “vagabundo” ou preocupado demais em sobreviver com
o pouco que tem. Em um país de “mamatas” para políticos e grandes empresários e migalhas
para os que, verdadeiramente, sustentam a máquina econômica brasileira, um antro de
corrupção, hipocrisia e letargia.
34 “O entendimento proposto por Ferenczi do trauma oriundo da “desautorização” (Verleugnung) de
uma narrativa de sofrimento nos afastam da formulação psicanalítica do trauma sexual, originando uma
concepção de trauma social. Nesse sentido, a experiência traumática seria sempre relacional, implicando a recusa
do reconhecimento do sujeito que padece por parte do outro” (KUPPERMAN, 2017, p. 47). Assim, a
desautorização ou desmentido seria promovida em situações de discriminação racial contra o negro, que ao
compartilhar sua com alguém de sua confiança, veria negada a gravidade dos fatos, na medida em que o outro
banaliza essa dor, caracterizando o trauma social.
99
2.2 O desejo do negro em ser o outro
É uma tarefa complexa definir quem é negro ou branco em um país tão miscigenado
como o Brasil. Sofremos ainda com a ideologia35
do embranquecimento da população de cor,
a fim de clarear as próximas gerações. Mulheres grávidas em relacionamentos inter-raciais
ficam ansiosas para, enfim, ver seus filhos nascidos, esperando que não herdem o cabelo ou o
nariz grosso da parte negra da família.
O embranquecer está presente desde a colonização e se arrasta até o século XIX, cujo
o objetivo é extinguir progressivamente o segmento negro brasileiro, numa espécie bizarra de
“eugenismo soft”, violentamente mais duro pois inconsciente e traumático, já que amputa a
subjetividade do negro. Deixa seu rastro na atualidade com a ansiedade de ver os filhos mais
claros e sem traços da cor negra. Vejamos a confirmação em Nascimento (2016) a respeito:
O processo de miscigenação, fundamentado na exploração sexual da mulher negra,
foi erguido como um fenômeno de puro e simples genocídio. O “problema” seria
resolvido pela eliminação da população afrodescendente. Com o crescimento da
população mulata, a raça negra iria desaparecendo sob a coação do progressivo
clareamento da população do país. Tal proposta foi recebida com elogios calorosos e
grandes sinais de alívio otimista pela preocupada classe dominante (ibid., p. 84).
Essa situação gerou reflexos e consequências na identidade de negros e mulatos,
quando observamos pessoas negras que não conseguem enxergar sua cor e consideram-se
brancas. O desejo inconsciente de embranquecimento e exclusão da negritude estão
introjetados de tal forma que dificulta mesmo a constituição de sua subjetividade.
35 Preferi utilizar a referência de Neuza Santos de Souza (1983) em relação à ideologia. Ideologia é
aqui entendida como um “sistema de representações, fortemente carregadas de afetos que se manifestem na
subjetividade consciente como vivências, ideias ou imagens e no comportamento objetivo como atitudes,
condutas e discursos. A ideologia é um dispositivo social que serve aos fins de organizar um saber acerca dos
mais diversos aspectos da vida humana, caracterizando-se por ser compartilhada pela comunidade como um
todo, ou por um setor significativo da mesma, oferecendo coerência a seus integrantes em torno de crenças, fins,
meios, valores etc.” (Souza, 1983, p. 74).
100
Vejamos um exemplo disso em Piza e Rosemberg 201436
, mostrando como a
consequência do desejo inconsciente do embranquecimento exclui a negritude no indivíduo
de cor. O episódio ocorreu em um pré–teste com a coleta do quesito cor em uma pesquisa
sobre o perfil racial de alunos de cursos de alfabetização na cidade de São Paulo, em 1950.
As denominações de cores fornecidas aos entrevistados (branco, preto, pardo e amarelo)
causavam desconforto revelando a problemática dos critérios estabelecidos à época.
Durante a realização do pré-teste, uma das pesquisadoras iniciou as entrevistas por
uma das alunas da sala, uma moça de cor preta, cuja pele não demonstrava, para o
olhar da entrevistadora, um único sinal de mestiçagem. Quando perguntada sobre
sua cor, e depois de ouvir as quatro cores nas quais podia se situar, não titubeou em
respondeu – branca! A pesquisadora conteve muito mal seu espanto, porque a
declarante repetiu a resposta enfaticamente. À pesquisadora não coube mais do que
marcar com um X o espaço ao lado da palavra branco e lembrar para sempre o
espanto causado pela resposta da declarante (PIZA, ROSEMBERG, 2014, p.
103).
A partir dessa discussão, abordaremos neste capítulo o desejo negro de ser o outro:
branco. A branquitude e a imposição ideológica nos meios sociais impulsionam o negro a
almejar o ideal de beleza, autonomia e liberdade determinado por brancos.
Pretendemos discutir alguns aspectos sociais, que imbuídos de ideologias racistas
corroboram para o engrandecimento do desejo do negro em ser o outro. Nessa perspectiva
veremos questões ligadas à invisibilidade positiva do negro, a alienação e a atual aliciação e
apego ao consumo que funcionam como submissão que contribuem para as indiferenças e,
logicamente, a busca pelo objeto perfeito: a branquitude que se consolida como modelo.
Em outro momento deste capítulo, pretendemos analisar, sob a lupa da psicanálise, a
anuência do negro em seu desejo de embranquecer e tornar-se o outro. Vamos observar que
esse desejo acontece primeiramente no seio familiar e “depois é a vida na rua, a escola, o
trabalho, os espaços do lazer. Muitas vezes, é nesses lugares segundos, plenos de experiências
36 PIZA, Fúlvia. ROSEMBERG, Fúlvia. “A cor nos censos brasileiros”. In: Psicologia Social do
Racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. / Iray Carone, Maria Aparecida Silva Bento
(organizadoras). Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
101
novas, que o ideal do ego37
– cujas vigas mestras já foram erigidas - encontra ocasião de
reforçar-se, assim adquirindo significado e eficácia de modelo ideal para o sujeito (SOUZA,
p. 36).”
Retomando o primeiro ponto a ser discutido, entendemos que o negro sofre um
esvaziamento de suas referências e de sua memória, ao passo que, negam a ele com
embasamento numa lei perversa, representando o subtexto silencioso e mórbido dos fatos, o
direito legal de autodefesa. Afinal, na constituição do país, todo mundo é brasileiro. De modo
irônico, vemos que o que prega a Lei não condiz com os fatos: “Não há um alívio contra a
injustiça racial, mas, para o grupo discriminado e oprimido, a lei - formal e distante - recolhe
a todos em seu “seio democrático”, de maneira desigual (NASCIMENTO, 1978-2016, p.
94)”.
Ao consultar suas memórias, a pessoa negra percebe a ausência da negritude, e de
personagens que remontem o orgulho de ser negro. Encontramos a falta de representatividade
positiva negra e de visibilidade na estrutura social dominante, principalmente na percepção de
que ainda estamos sob o julgo do “mito da democracia racial”, hoje com “outra roupagem”.
Nas palavras de Abdias Nascimento (2016) podemos compreender o que tal atitude influência
no comportamento do negro frente à participação ativa na sociedade contemporânea:
O mito da “democracia racial” tão corajosamente analisado e desmascarado por
Florestan Fernandes orgulha-se com a proclamação de que o “Brasil tem atingido
um alto grau de assimilação da população de cor dentro do padrão de uma sociedade
próspera”. Muito pelo contrário, a realidade dos afro-brasileiros é aquela de
suportar uma tão efetiva discriminação que, mesmo onde constituem a maioria
da população, existem como minoria econômica, cultural e nos negócios
políticos (NASCIMENTO, p. 98, grifos meus).
Essa situação corrobora para o esvaziamento das memórias diante de um turbilhão de
informações que privilegiam a simbologia do privilégio de ser branco, em um país de
autoridades e sociedade racista. Na obra de Abdias Nascimento, O genocídio do negro
37 “Ideal do ego ou ideal do eu é uma expressão utilizada por Freud no quadro de sua segunda teoria
do aparelho psíquico. Instância da personalidade resultante da convergência do narcisismo (idealização do ego) e
das identificações com os pais, com os seus substitutos e com os ideais coletivos. Enquanto instância
diferenciada, o ideal do ego constitui um modelo a que o sujeito procura conformar-se.” (LAPLANCHE e
PONTALIS, 1988).
102
brasileiro (2016) compreendemos como surge esse esvaziamento do desejo de ser negro,
arraigado de situações que propositalmente em nosso país contribuíram para erradicar a
visibilidade do negro, aumentando a vontade de se tornar branco.
(...) Por via desses expedientes se reitera a erradicação da “mancha negra”, agora
com o uso dos poderes da “magia branca” ou da “justiça branca”. Dessa espécie de
alquimia estatística resulta outro instrumento de controle social e ideológico: o que
deveria ser o espelho de nossas relações de raça se torna apenas um travesti de
realidade. E as informações que os negros poderiam utilizar em busca de dignidade,
identidade e justiça lhes são sonegadas pelos detentores do poder. O processo tem
sua justificativa numa alegação de “justiça social”: todos são brasileiros, seja o
indivíduo negro, branco mulato, índio, ou asiático (ibid., 1978-2016. p. 93).
A partir dessas constatações, vimos o próprio poder público se encarregar de esvaziar-
se da presença física ou histórica do negro, compreendemos que o objetivo principal é o de
negar à população negra o direito de se reconhecer e auto definir-se como cidadão através de
políticas sociais de educação, saúde e cultura, única possibilidade de se igualar a seu opressor
o, branco.
O magistral trabalho de Abdias Nascimento (2016), mesmo depois de quarenta anos
após sua primeira publicação, é bastante atual e dialoga com a situação política, social
econômica da população negra vigente. Infelizmente, nem todos conseguem enxergar essa
realidade. A camada popular, em sua maioria negra e trabalhadora, resiste, mas, não
compreende ao certo contra o que está lutando. A desarticulação política, a necessidade de
manter-se no emprego e ‘engolir sapo’ calado para sobreviver, é mais forte. Nesse ponto,
compreendemos que o negro oculta seus sentimentos do branco, como defesa, desenvolvendo
atitudes de submissão e amabilidade para não desagradá-lo até para manter seu emprego e
sobrevivência (BICUDO, 2010, p. 96).
Em paralelo a esse pensamento podemos perceber que a indiferença social
estabelecida entre negros e brancos, pobres e mais abastados é mantida pela população em um
simulacro de democracia racial ou capital. Contudo, como veremos em ARREGUY (2017)
essa situação vai além do que pensamos ser uma simples situação imutável para sobrevier em
sociedade.
O resultado dessa equação é que o indivíduo comum acaba se alienando, por não se
sentir suficientemente potente para transformar a realidade diante do imperativo de
gozo a que a cultura o submete: “consuma ou não será ninguém”. A alienação que
103
inviabiliza o outro tem suas raízes nos interesses individuais, que devem sempre
estar em primeiro lugar (ARREGUY, 2017, p.124).
A lógica individualista do capital38
ou a falsa democracia do capital, influência
diretamente a sociedade e confirma esse processo de indiferença e alienação ao qual
pertencemos. Vivemos em um estado de produzir a invisibilidade do outro, consequentemente
aquele menos favorecido economicamente (ibid.).
No foco do discurso afetivo sobre a mestiçagem de setores sociais desiguais, no Brasil,
veiculam representações sobre desigualdade e coesão social em um mundo em que a mistura
cultural, étnica e racial, são comuns. Embora, haja as elites multiétnicas em certos setores que
fingem ser brancas por suas condições financeiras, o que persiste é um certo eurocentrismo no
dia a dia da maioria das pessoas.
Grande parte da população negra ainda padece em trabalhos subalternizados e são os
mais atingidos pela vulnerabilidade social, seja por ser mais “humilde”, seja por residirem em
comunidades taxadas como carentes de tudo. Assim, entramos no “labirinto raça-classe-
sociedade” (NASCIMENTO, 2016). Vale o que você possui seus bens de consumo e condição
financeira: exame exigido pelo sistema econômico capitalista no qual estamos inseridos e que
dita às regras de convivência.
Contraditoriamente, não podemos pautar como base desse enredo de indiferença
apenas a questão econômica e social. Não podemos ignorar a sobredeterminação das questões
raciais que historicamente estratificaram os povos por raças e inferioridade cultural. Esses
clichês são repetições e racionalizações de cunho racistas: “pois o fator racial determina a
posição social e econômica na sociedade brasileira (NASCIMENTO, 2016, p. 101)”.
Evidentemente, o fator racial rege em grande parte a posição social da sociedade,
embora, o discurso imperativo seja o contrário disso. Há a defesa de que não é um problema
38 Dufour (2009/2013) demonstra como opera a montagem capitalista da subjetividade, atrelando-a
essencialmente ao desejo de consumir objetos com vistas a extrair o potencial financeiro e dominar as massas.
“(...) Para Dufour, sadismo e liberalismo seriam, conjuntamente, os principais pilares do capitalismo moderno,
na medida em que ambos incitam respectivamente ao gozo ilimitado e à voracidade em relação ao consumo”
(DUFOUR apud ARREGUY, 2017, p. 119).
104
racial, mas, social. Principalmente no Brasil, destacamos alguns intelectuais conservadores
desse pensamento como Gilberto Freyre, Luís Viana Filho, Pierre Verger e Nina Rodrigues.
Essa manipulação do discurso da desigualdade econômica e social disfarça ou esconde
a ideologia racista, invisibiliza as diferenças de cor, tão paulatina e dolorosamente vividas por
quem está à margem da sociedade. Essa dor silenciosa deixa traumas inconscientes que,
acumulados, marcam a vida de pessoas negras cotidianamente, e isso reforça a necessidade de
desejar ser branco. Com o desejo de ser branco, de querer viver como ele, ser ele, o negro
vive com uma dor que corrói e maltrata a subjetividade.
Em seu trabalho de excelência para época e para contemporaneidade, Virgínia Leonel
Bicudo39
em Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo em 1945, traz por meio de
depoimentos e análises a voz de negros e mulatos de classes sociais distintas. A autora retrata
o modo de vida, suas percepções sobre a negritude e a branquitude e como se desenvolvem as
relações entre pretos e brancos em diversas áreas de São Paulo.
Nas entrevistas feitas por essa pioneira nos estudos entre psicanálise e racismo, o
panorama de sofrimento de negros é percebido principalmente pelas “classes intermediárias”,
que apresentavam grau de instrução mais elevado. Esses percebiam com mais clareza a
discriminação e o peso de sua cor nas relações. Enquanto nas “classes inferiores” alguns não
conseguiam sequer diferenciar a discriminação e aceitavam a inferiorização como fardo a ser
carregado.
Bicudo (2010) abre caminho para discussões acerca da discriminação racial entre
negros e brancos em uma época difícil. A violência racial era encoberta com veemência pelo
“mito da democracia racial” e o processo de embranquecimento da população. Como mulher
e negra foi pioneira na forma como colheu e analisou a vida desses personagens, e assim,
39 “Virgínia Leonel Bicudo mulher, parda, paulistana, filha de mãe imigrante italiana pobre com negro
de instrução secundária, funcionário dos Correios. Bicudo formou-se como normalista e fez o curso de
educadores sanitários. Em 1936, iniciou graduação em Ciências Políticas e Sociais da escola Livre de Sociologia
e política (ELSP), vinculada a USP. Enquanto estava no bacharelado conheceu Durval Marcondes, médico e
psicanalista, que implementou o serviço de Higiene Mental Escolar estadual em 1938. Em 1940, Bicudo
começou a ministrar as disciplinas Higiene mental na ELPS e ingressou na primeira turma de mestrado. A partir
disso, iniciou uma carreira de protagonista no campo da Saúde, Ciências Sociais e Psicanálise” (ALMEIDA,
2011, p. 420).
105
pôde trazer o reconhecimento do complexo de inferioridade de pretos e mulatos revelados a
partir de atitudes dos brancos.
Em conclusão, a autora enfatiza os conflitos e diálogos encontrados nos discursos de
cada entrevistado, de modo a compreender a dimensão de subalternidade que ocupavam no
interior das relações raciais. Atenta para a necessidade de retirar desses grupos o problema da
marginalidade social. Vejamos duas passagens que ilustram nosso comentário. O primeiro
caso será de mulatos da “classe inferior”, nomenclatura utilizada por Bicudo para embasar sua
pesquisa entre negros com ganhos, padrões de vida e escolaridade diferenciados.
Minha mãe dizia sempre às filhas que se casassem com homens brancos. Este
conselho decorria da própria experiência, por ter tido um casamento feliz, e pela
observação da irmã, que, casada com um preto, muito sofreu. Foi por influência de
minha mãe que me casei com um homem de branco. Aos 19 anos fui retirada da
fábrica, porque eu gostava de um homem de cor. Minha irmã mais velha, ao
contrário, até hoje se conserva solteira, à espera de um homem branco (BICUDO,
2010, p. 106).
Analisando o trecho da entrevista de uma mulata de 32 anos de idade, casada com um
homem branco, observamos o quanto o peso da ideologia do embranquecimento e o desejo
inconsciente de se tornar branco influenciam nas decisões da escolha de um par, não por
preferência, mas, pela discriminação racial. A introjeção dessa concepção de cor e o seu
significado como fio condutor de que a vida será melhor com um homem branco é taxativa.
Assemelha-se a inconformidade de uma mulata em aceitar-se como é, e a maneira como é
vista pelos outros.
Utilizaremos esse trecho em particular pela proximidade com uma particularidade de
minha juventude por algum tempo. Apresentei resistência em ter relacionamentos com
rapazes negros, minha avó pedia para procurarmos namorar com rapazes brancos. Ela dizia
que não queria ter “netinhos com cabelo de barbante”, e devíamos clarear a família.
Ao ficar mais velha e associar à pressão midiática que mostrava o “rapaz perfeito”
branco, percebi que não aceitava rapazes negros, só “clarinhos”. Uma demonstração que
muitas de nós, mulheres negras, somos contaminadas pelo desejo de ser branca, e apagar
nossa cor, sem perceber. Além da influência no seio familiar, a pressão da mídia e outras
formas de manipulação, somos convencidas que ser branco é o que precisamos nos tornar. Na
concepção de Nascimento (2016):
106
Desde os primeiros tempos de vida nacional aos dias de hoje, o privilégio de decidir
tem ficado unicamente nas mãos dos propagadores e beneficiários do mito da
“democracia racial”. (...) Os brancos controlam os meios de disseminar as
informações; o aparelho educacional; eles formulam os conceitos, as armas e os
valores do país (NASCIMENTO, 2016, p. 54).
Embora, a estrutura ideológica em nossa volta esteja marcada para o convencimento
que nossa negritude não tem valor, todavia, houve movimentos de resistência. Hoje, a internet
dá condições para mudarmos essa concepção e mostrar nossa consciência de cor e orgulho de
quem somos. Surgem comunidades, grupos organizados dispostos a fazerem o movimento
inverso da manipulação da cor, do embranquecimento e do desejo de ser branco. É dar o
primeiro passo para mudança, liberdade de pensamento para buscar o devido reconhecimento
de nossas origens.
Portanto, na promoção de mudanças e atitudes, entendemos através da pesquisa e
análises de Bicudo (2010), sua consciência de cor, e atentamo-nos para seu interesse em
investigar e compreender as causas que levaram outras pessoas de cor a não terem ou
conseguirem conquistar a mesma consciência.
Vejamos outro depoimento que nos ajuda a ver a face da discriminação que não
permite a muitos buscar a consciência de sua cor, impedindo a mobilidade social e realização
pessoal:
A cor motiva grande complexo de inferioridade: a gente se sente inferior ao branco,
feia, diferente, e muitas vezes tem vergonha de si mesma. Consequentemente,
manifesta-se o retraimento, um sentimento de humildade, levando a pessoa a evitar
aparecer. Pelo desprezo, os brancos nos colocam nessa situação. Antigamente, eu
sentia muito mais a atuação daquele complexo, hoje, não tanto, porque procuro
melhorar minha aparência. (...) O que importa é a aparência (grifos meus, ibid.,
p. 110-111).
Essa citação é de outra mulata jovem, da “classe intermediária”, que segundo a autora
tem a percepção deturpada de que é branca, e assim, procura agir e justificar suas opiniões
como se fosse outra pessoa. Ela prefere pensar que compensando com a aparência sua cor vai
desaparecer e sendo vista e aceita como branca em seu meio social.
107
Nas análises, Bicudo revela divergência de pensamentos entre negros e mulatos. Os
mulatos têm maior complexo de inferioridade, procuram fugir da denominação negro e
procuravam evitar contato com pessoas de cor para não serem confundidos com elas. O desejo
de tornar-se branco é intenso. Segundo Bicudo (2010) “(...) os traços físicos refletem, no nível
mental, o pensamento obsessivo de não possuir boa aparência. Este pensamento indica que as
dificuldades de ascensão social estão diretamente ligadas à cor (ibid., p. 120).”
Muitos depoimentos da pesquisa citam a importância da aparência para minimizar a
cor. Os entrevistados dão ênfase nos estudos para ter acesso a lugares e melhores empregos,
embora afirmem que isso não seja garantia, pois o que importa é a “boa aparência”. Os
conhecimentos vindos dos estudos, segundo relatos, são testados várias vezes pelos
empregadores brancos, a fim de provar a capacidade dos negros para assumirem determinados
cargos.
Em nosso país, ter acesso ao meio de vida por um bom emprego é complexo para o
negro. O empregador ainda no século XX declarava em anúncios de jornais que não aceitava
pessoas de cor para vagas em determinados trabalhos, vetando a participação e a visibilidade
do negro na “vitrine social”.
No entanto, ocorreu ao passar dos anos uma “pequena” modificação entre os termos
por uma questão de conduta ética. Hoje são divulgados em anúncios de empregos a exigência
de pessoas com “boa aparência”, outra maneira de excluir pessoas de cor de diversas funções
nas quais, segundo predileções racistas, o perfil do empregador é funcionário branco com
cabelos lisos, magro e bem-vestido (NASCIMENTO, 2016).
No ponto de vista psicológico, compreendemos que essas nuances fazem parte de um
movimento que aumenta o desejo do negro a embranquecer. São as incompatibilidades de
acesso, privilégios de outros e barreiras na ascensão social que se constituem como
impeditivos para o negro provocar mudanças em sua situação social.
A exclusão racial no Brasil fala em duas vozes: uma no privado, sobre o valor da
branquitude e outra, pronunciada em alto e bom som, sobre a noção de que a cor e a
raça são de importância relativa já que a população é mestiça. Assim, a ideia de
“aqui ninguém é branco” e da mestiçagem com valor é uma ideia afetiva, no sentido
de Stuart Hall, que se concretiza a partir da vinculação com uma constelação de
forças sociais (SOVIK, 2009, p. 38).
108
Esse discurso da mestiçagem está presente no senso comum, de uma maneira na qual
os não brancos brasileiros supervalorizam a branquitude mesmo não fazendo parte dela.
Vemos também a partir desse discurso, a diferença encontrada nas pesquisas de Virginia
Bicudo, na relação entre o negro e o mulato que se sente diferente do negro e quer se
aproximar dos brancos como refúgio a negritude.
Bicudo (2010), em sua análise, optou por subdivir grupos de faixa salarial diferente, a
fim de colher impressões que retratassem alterações na consciência de si, através do status de
cada classe. Toda essa estrutura possibilitou a observação de sutilezas no pensamento de suas
atitudes e ações. As angústias, dúvidas, desejos e receios foram revelados e analisados com
respeito e rigor metodológico.
No caso dos negros das classes sociais intermediárias, vejamos como se sentem em
relação a sua cor e seu modo de vida:
(...) demonstram atitudes que revelam sensibilidade ligada à cor. Por um lado,
apresentam-se ressentindo-se com ódio, pela rejeição do branco; do outro,
desanimados e queixosos pela falta de solidariedade entre pretos. Os sentimentos de
mágoa e revolta dirigidos contra o branco não são inconscientes, como parece entre
pretos na classe social “inferior”, mas conscientemente reprimidos pelo medo de
provocar atitudes de rejeição mais acentuada (BICUDO, 2010. p. 122).
A classe intermediária revela mais sensibilidade em relação à cor, ou seja, percebia
rapidamente as discriminações sofridas pelo branco e identificava os mecanismos usados para
isso. Outro ponto importante relatado é a falta de solidariedade e afeto entre negros que
viviam na mesma situação econômica, e a ausência de companheirismo, além de declararem
que o negro não quer ver o outro ascender economicamente, acusando seus vizinhos de
invejosos40
.
40 Nesse trecho é possível fazer analogia ao pensamento de Willie Lynch, um proprietário de escravos
no Caribe (Caraíbas), conhecido por manter seus escravos disciplinados e submissos em sua grande propriedade
em um momento tortuoso de insubordinação para os demais donos de escravos europeus em 1712. Após seu
retorno de uma viagem a Europa e presenciar a crise dos senhores de escravos para domesticá-los, Lynch escreve
uma carta aos seus compatriotas revelando a melhor maneira de lidar com os negros trazidos a força da África:
“Verifiquei que entre os escravos existe uma série de diferenças. Eu tiro partido destas diferenças,
aumentando-as. Eu uso o medo, a desconfiança e a inveja para mantê-los debaixo do meu controle. Eu vos
asseguro que a desconfiança é mais forte que a confiança e a inveja mais forte que a concórdia, respeito ou
admiração.
109
Nas palavras de Bicudo (2010), o negro no convívio com branco passa a assimilar sua
forma de pensar e sentir, inclusive ao que se refere ao próprio negro, a ponto de ter as mesmas
atitudes e sentimentos de desprezo que o branco sente. Nesse contato, o negro desenvolve o
auto ideal de branco, contraditoriamente, ele luta para anular o sentimento de inferioridade
desenvolvido em face das atitudes e restrições do branco.
A saída é tentar conseguir as características de status superior, seja por via do
casamento, do exercício de profissões liberais, do cultivo intelectual e, principalmente, da
“boa aparência”. Essa era uma afirmação constante feita pelos entrevistados das classes
intermediárias, como algo vital para apagar a cor com a aparência. Em seguida, era ressaltada
a urgência dos estudos, sendo usado para mostrar seu valor, sua capacidade intelectual e o
casamento inter-racial com o intuito de embranquecer a família e ganhar o status de ter um
companheiro branco (ibid., 2010).
Com um rigor acadêmico brilhante, Bicudo (2010) nos trouxe uma excelente base dos
sentimentos da população negra e mulata de São Paulo, que a meu ver retrata negros e negras
de todo país. Foi possível capitar as mazelas e ansiedades de pessoas que assim como eu
vivem nessa cortina de fumaça vinda do racismo estrutural enraizada no Brasil, que só
corrobora para a população negra sentir se intensificar do desejo de ser branco.
Para nossa reflexão, vejamos nas palavras de Dzidzienyo, a consideração prestada ao
negro e ao mulato nas esferas determinantes de nosso país: “Não há dispositivos legais que
obriguem ele - o negro - a permanecer em posição desvantajosa; de fato não há necessidade
para isso porque as estruturas econômica, social e política do Brasil, por sua natureza, operam
contra os interesses dos negros (DZIDZIENYO, apud, NASCIMENTO, 2016, p. 112).
Deveis usar os escravos mais velhos contra os escravos mais jovens e os mais jovens contra os mais
velhos. Deveis usar os escravos mais escuros contra os mais claros e os mais claros contra os mais escuros.
Deveis usar as fêmeas contra os machos e os machos contra as fêmeas. Deveis usar os vossos capatazes para
semear a desunião entre os negros, mas é necessário que eles confiem e dependam apenas de nós.
Meus senhores, estas ferramentas são a vossa chave para o domínio, usem-nas. Nunca percam uma
oportunidade. Se fizerdes intensamente uso delas por um ano o escravo permanecerá completamente dominado.
O escravo depois de doutrinado desta maneira permanecerá nesta mentalidade passando-a de geração em
geração”. A carta de Willie Lynch, disponível em: https://www.geledes.org.br/carta-de-willie-lynch/. Acesso em
09 de outubro de 2017.
110
No ponto de vista cognitivo, entendemos que o “racismo à moda brasileira” traz
peculiaridades que mascaram a realidade desigual e desonesta que afasta e exclui muitas
pessoas. Compreende-se que a negação do problema prejudica o entendimento do que se
sente, adia o tratamento e a cura para a dor de quem é discriminado e vive em uma sociedade
partida.
É inegável o brilhantismo de Virgínia Bicudo, seu percurso peculiar e magistral
merece todo reconhecimento pela sua iniciativa de ser a primeira negra em abordar com
propriedade o discurso racial na academia, e tomar a psicanálise como lugar de escuta.
Seu trabalho contribuiu muito para minha pesquisa, deu novo sentido ao modo como
percebemos a anuência de problemas que se renovam nas questões raciais, em particular no
Brasil, que tem desde seu descobrimento o rastro de sangue da escravidão de milhares de
negros que com toda certeza construíram esse país.
Virgínia nos dá a possibilidade de imbuídos da psicanálise dar outro significado a
situações de trauma representadas por este trabalho. Seguiremos na abordagem do Ideal do
Ego do negro utilizando a psicanálise para discutir o caráter do racismo e suas consequências
quando o indivíduo não tem espaço para ser ouvido. Seu silenciamento o devora e destrói sua
subjetividade gerando um sofrimento psíquico que causa negação de si.
Nos caminhos da psicanálise procuraremos encontrar respostas para uma dor invisível,
que merece ser ouvida e compreendida para enfim, trazer a consciência de traumas que
desmentem a realidade da herança de onde viemos e o nosso papel de hoje nessa sociedade
hipócrita e brutal para com toda população negra. É necessário aprender a argumentar com
propriedade, saindo da zona de conforto que nos imobiliza e incutindo o exercício da plena
cidadania em meio a toda a diversidade em que vivemos. É com conhecimento, sobretudo
daquilo que está oculto no inconsciente coletivo do brasileiro, que abriremos portas e
quebraremos barreiras, dessa forma alcançaremos um novo patamar que significa: “a
construção de uma nova identidade, uma identidade que lhe dê feições próprias, fundada,
portanto, em seus interesses, transformadora da história – individual, coletiva e social e
psicológica.” (SOUZA, 1983, p. 78).
111
2.3 A Branquitude: o silêncio e o privilégio do branco
Consideramos aqui além do contexto de ser negro brasileiro, o aspecto do ser branco e
brasileiro. O branco, cujo silêncio proposital mantém a posição a branquitude, privilégios e
coloca em cheque o próprio conceito de raça. O contraponto dessa discussão é a tentativa de
desconstruir o “olhar do opressor, que desde a colonização buscou ocultar suas razões e seus
interesses, desconsiderar ou deturpar as consequências de sua ação condenável, culpando e
desvalorizando o colonizado” (MONTANHÉS apud CARONE e BENTO, 2014, p. 53-54).
Essa afirmação é seguida de nota:
O racismo a despeito de todas as leis antidiscriminatórias e da norma politicamente
correta da indesejabilidade do preconceito na convivência social, apenas sofreu
transformações formais de expressão. Não é posto nem é dito, mas pressuposto nas
representações que exaltam a individualidade e a neutralidade racial do branco – a
branquitude - reduzindo o negro a uma coletividade racializada pela intensificação
artificial da visibilidade da cor e de outros traços fenotípicos aliados a estereótipos
sociais e morais. As consequências são inevitáveis: a neutralidade de cor/raça
protege o indivíduo branco do preconceito e da discriminação raciais na mesma
medida em que a visibilidade aumentada do negro o torna um alvo preferencial de
descargas de frustrações impostas pela vida social (CARONE e BENTO, 2014, p.
23).
Sabemos que estudos sobre os negros possuem um histórico de muitas pesquisas. Os
estudos sobre as relações raciais, no Brasil, são recentes, assim como trabalhos em que
pesquisadores brancos e negros trabalham lado a lado na academia, e fora dela, buscam tratar
as relações raciais sob as perspectivas negras e brancas. Essas pesquisas acontecem com
intuito de estabelecer uma visão ampla e relacional das questões e dos diferentes tratamentos
oferecidos a cada parcela da população, seja nas relações intersubjetivas, no trabalho,
educação ou na construção do bem-estar social.
Modifica-se assim o que estava sendo exposto em estudos antigos sobre relações
raciais, cuja identidade racial e o problema social de negros era estudado como exclusivo da
população negra, e passa-se a buscar um olhar voltado para o silenciamento da branquitude e
a neutralidade racial da população branca.
112
A partir das leituras sobre o estudo da branquitude, compreendemos que a
supervalorização do branco é um fenômeno mundial, calcificado principalmente, em países
colonizados por europeus nos quais vivenciaram a escravidão. Consideramos a branquitude
como um problema que precisa ser estudado com profundidade como elemento para a
contextualização da permanência imutável da hierarquia social do país (SOVIK, 2009).
Uma das referências sobre a branquitude neste trabalho é o livro Psicologia social do
racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil (2009), no qual nos revela
“aspectos importantes da branquitude, como o medo que alimenta a projeção do branco sobre
o negro, os aspectos narcísicos entre os brancos e as conexões possíveis entre ascensão negra
e branqueamento (p. 25)”.
Podemos considerar a branquitude como meio de manter o status quo social, político e
econômico da população negra. Uma barreira invisível capaz de segregar e afetar o senso de
nacionalidade brasileiro, na qual o branco e sua ausência de reflexão racial acerca de seu lugar
nas relações raciais tendem a ser incômodos para ele mesmo. Há um desconforto na
abordagem desse assunto, isentando sua participação na omissão de um tema comum a todos,
no sentido de evitar desmascarar a discriminação racial e seus desdobramentos.
Na verdade, o legado da escravidão para o branco é um assunto que o país não quer
discutir, pois os brancos saíram da escravidão com uma herança simbólica e
concreta extremamente positiva, fruto da apropriação e do trabalho de quatro séculos
de outro grupo. Há benefícios concretos e simbólicos em se evitar caracterizar o
lugar ocupado pelo branco na história do Brasil. Este silêncio e cegueira permitem
não prestar contas, não compensar, não indenizar os negros (CARONE e BENTO,
2014, p. 27).
O silêncio do branco é um dos sustentáculos de seus privilégios, além de sua cor não
ser racializada e não representarem um grupo como os negros, mas, um indivíduo com suas
respeitosas peculiaridades, corroborando para os desdobramentos de sua posição de poder
inominado e ausente do compromisso moral, e do distanciamento afetivo e psicossocial com o
grupo excluído.
A omissão aliada ao silêncio e a falta de comprometimento do branco na situação das
desigualdades raciais em nosso país reforçam um “componente narcísico”, em outras
palavras, o sujeito adota uma postura de autopreservação, que interpela a população branca a
113
agir e pensar como referência para os demais grupos. Isso é mais claro quando identificamos
o quanto:
O homem europeu ganhou, em força e identidade, uma espécie de identidade
substituta, clandestina, subterrânea, colocando-se como o “homem universal” em
comparação com os não europeus. o olhar do europeu transformou os não europeus
em um diferente e muitas vezes ameaçador Outro. Este Outro, construído pelo
europeu, tem muito mais a ver com o europeu do que consigo próprio (ibid., 2014, p.
31).
Embora, o branco mantenha-se “auto preservado”, seu discurso mantém a indiferença
ao Outro, se distanciando dele. Sua branquitude é vivida como um elo no qual expande,
ramifica e cresce com a finalidade de manter-se afastado da ameaça negra. Vejamos a seguir
alguns pontos sobre a branquitude destacados pela autora Edith Piza (2014), estudiosa das
questões raciais, com enfoque no fenômeno da branquitude em seu ensaio: Porta de vidro:
entrada para branquitude:
Algo consciente apenas para pessoas negras; - há um silêncio em torno da raça, não
é um assunto a ser tratado; - a raça é vista não apenas como diferença, mas como
hierarquia; - há, em qualquer classe, um contexto de ideologia e de prática da
supremacia branca; - a capacidade de apreender e aprender com o outro, como um
igual/diferente, fica embotada; - se o negro, nas relações cotidianas, aparece como
igual, a interpretação é de exibicionismo, de querer se mostrar (ibid., 2014, p. 42).
A autora destaca pontos facilmente percebidos no comportamento e pensamento de
brancos e negros identificados sob o julgo do embranquecimento. É uma questão arraigada no
imaginário da sociedade brasileira de forma cristalizada. Trata-se desse assunto
superficialmente, ignorando sintomas visíveis, muitas vezes não verbalizados com intuito de
evitar embates.
Chama a atenção a referência ao exibicionismo, por ser frequente quando uma pessoa
negra se destaca por algum motivo. Comentários ainda comuns como: “Adoram se mostrar”;
“Só podia ser preto mesmo” ou “Só preto faz isso”, ainda fazem parte da reação de pessoas
preconceituosas que não admitem certas situações vividas por negros que ou falam essas
besteiras ou silenciam-se.
Podemos destacar, em particular na sociedade brasileira, o desejo em não falar sobre o
racismo, ao passo de preferirem encarar as desigualdades raciais como um problema
exclusivamente do negro. Problematizar a noção de “privilégio” faz sentido, na medida em
114
que o desvio de um confronto sobre o racismo pode ser substituído pelo discurso de “mérito”
ou “competência de si”, e assim, “encobrir a situação privilegiada revelando como merecem o
lugar social que ocupam” (CARONE e BENTO, 2014, p. 46).
Em termos psicanalíticos, e no intuito de ampliar nossa compreensão sobre essa
manobra usada por parte da sociedade privilegiada, observamos, de acordo com Kaes (1997),
como se organiza o inconsciente numa postura defensiva para manter-se beneficiário da
condição intersubjetiva da qual pertence.
Os produtos do recalque e os conteúdos do recalque e os conteúdos do recalcado são
constituídos por alianças, pactos e contratos inconscientes, por meio dos quais os
sujeitos se ligam uns aos outros e ao conjunto grupal, por motivos e interesses super
determinados. Esse acordo inconsciente ordena que não se dará atenção a um certo
número de coisas: elas devem ser recalcadas, rejeitadas, abolidas, depositadas ou
apagadas. Mas enfatiza que, ao possuir um ar de falsidade, elas possibilitam um
espaço onde o possível pode ser inventado (KAES, apud CARONE e BENTO,
2014, p, 46).
Quando faz parte de um grupo, o sujeito agrega seus desejos e formas de pensar a
uma realidade, concordando em defender e lutar por seus objetivos. Essa identificação
simbólica implica em rejeitar ou aceitar internamente o que lhe é imposto. Esse acordo grupal
em defesa de seus privilégios representa a opção por se abster das discussões raciais, assim
como, se eximir como parte culpada nessa situação, alijando a culpa ao negro, julgado único
responsável por sua situação inferior.
A princípio, o branqueamento foi uma invenção da “elite branca” para enfrentar o
medo do contingente populacional negro, e em seguida contra a “afronta” que significou a
ascensão do negro na sociedade, condição que violou sua personalidade (CARONE e
BENTO. 2014). Sendo assim, estudar e compreender o branqueamento em consonância com a
perda da identidade da população negra integra um processo que avança na luta por uma
sociedade sem desigualdades.
Aliados ao pensamento das relações entre negros e brancos, no qual uns são violados
permanentemente em benefício dos privilégios do outro, podemos, enfim, problematizar essa
situação que se desenrola na manipulação de um único culpado- o negro - que apesar disso,
resiste e encontra mecanismos de defesa e de alteridade para não desistir de alcançar uma
sociedade mais justa e igualitária.
115
2.4 O Ideal do Ego no negro
Sabemos da complexidade envolvida na operacionalização de conceitos do racismo à
luz da psicanálise. Nosso desafio é não deixar de fora o que está inserido na patologia social,
nas práticas vigentes e na história dos sujeitos. Pretendemos apresentar um pouco das
múltiplas visões que espelham parte do que é sentido pelo sujeito em seu inconsciente quanto
à discriminação racial.
Acreditamos que a psicanálise aliada a outros sabres como a psicologia, a sociologia,
antropologia e a história contribuem muito para análise e a compreensão sobre o racismo na
composição psíquica do agressor e da vítima. De uma forma interdisciplinar, as áreas
envolvidas conciliam conhecimentos em suas particularidades e nos auxiliam na compreensão
e na forma de combater essa estrutura.
Vimos, pela definição apresentada anteriormente, na qual o desejo do negro em ser o
outro (branco) impactou o inconsciente do negro se manifestando diante da pressão imposta
pela ideologia do branqueamento que “é um tipo de discurso que atribui aos negros o desejo
de branquear ou de alcançar os privilégios da branquitude por inveja, imitação e falta de
identidade étnica positiva (CARONE e BENTO, 2014, p. 17)”.
Mas, esse desejo transforma-se em dor que traumatiza e corrompe a subjetividade, a
identidade e a consciência da cor do sujeito negro. O nosso anseio é compreender esse
inconsciente que absorve toda a violência e determina a rejeição de si para se dedicar em ser o
outro, o branco.
A distorção que leva ao trauma inicia-se com o ato de identificação: Eu sou um negro!
Quem eu sou? Trata-se de revelar sua identidade, mostrá-la publicamente
(MBEMBE, 2014, p. 255). “Se reconhecer é marcante, mostra o autoconhecimento para si e
para os outros, consequentemente é afirmar sua existência, “eu sou” significa, desde logo, eu
existo (ibid., p. 255)”.
Em Mbembe (2014) veremos a definição de ser negro:
Negro antes de tudo é uma palavra (...). Negro é , sobretudo um nome (...). Negro é
portanto o nome que me foi dado por alguém. Negro não podemos esquecer – é
também uma cor. A cor da escuridão. Deste ponto de vista, o Negro é quem vive a
116
noite, na noite, cuja a vida se transformou em noite (...) O Outro não vê, pois não há
verdadeiramente nada para ver ( p. 256).
No processo de autoconhecimento do negro, o sujeito sente dor, por não ter um
modelo positivo para se constituir e por estar imerso a essa estrutura perversa ideológica que
o faz desejar ser branco, antes de descobrir-se negro. Nesse contexto, é perceptível que o
desejo de ser branco foi assimilado pelo superego41
. O modelo opressor faz parte da formação
de seu Ideal de Ego e o transforma em um sujeito sem identidade, buscando ser quem não é.
O ideal do ego é o produto formado a partir de imagens e palavras, representações e
afetos que circulam incessantemente entre a criança e o adulto, entre o sujeito e a
cultura. Sua função, no caso ideal, é a de favorecer o surgimento de uma identidade
do sujeito, compatível com o investimento erótico de seu corpo e de seu
pensamento, via indispensável a sua relação harmoniosa com os outros e com o
mundo (COSTA, 1983, p. 04).
O ideal do ego está no plano do simbólico, opera na Ordem simbólica e no que
estrutura a Lei. Fundamenta o sujeito psíquico como um elo entre a Lei e a Ordem, ocupando
o lugar do discurso, da fala que orienta as ações e comportamentos. O ideal do ego determina
o caminho a ser seguido como uma exigência, da mesma forma em que o superego impõe
uma certa moral ao ego (SOUZA, 1983, p. 33).
O ego e o ideal do ego vivem em constante tensão, o superego condena o ego a
realizar exigências sem parar com o objetivo de chegar a um ideal dificilmente a ser
alcançado. Entendemos que essas são relações comuns à maioria das pessoas, essa tensão
acontece por uma insatisfação inerente do fracasso de atingir o ideal desejado. Contudo, os
níveis de frustração são considerados na relação entre o ego atual e o ideal do ego. “No negro,
do qual falamos, esta relação caracteriza-se por uma acentuada defasagem traduzida por uma
41 “Superego ou super eu é uma das instâncias da personalidade tal como Freud a descreveu no quadro
da sua segunda teoria do aparelho psíquico: o seu papel é assimilável ao de um juiz ou de um sensor
relativamente ao ego, Freud vê na consciência moral, na auto-observação, na formação de ideais, funções do
superego. Classicamente, o superego é definido como o herdeiro do complexo de Édipo, constitui-se por
interiorização das exigências e das interdições parentais (LAPLANCHE e PONTALIS, 1988). O supereu possui
igualmente uma vertente “sádica” que exige o gozo, tornando essa instância potencialmente violenta para com o
próprio sujeito e o outro, colocando-se “um grau acima”, ou melhor, como certa distorção do “ideal do ego”.
117
dramática insatisfação, a despeito dos êxitos objetivos conquistados pelo sujeito” (ibid., p.
38).
A identidade é o alvo de toda a violência racista. Numa cultura racista existe a
intenção de diluir a identidade do negro, tornando-o infeliz. Assim, precocemente o sujeito
internaliza um projeto identificatório conflitante com sua própria identificação biológica e/ou
fenotípica. Esse desequilíbrio psíquico entre o ego e o ideal impede o negro de respeitar suas
identificações estruturantes. O psiquismo do negro mesmo consciente do racismo vive
iludindo sua felicidade e legando-a ao fardo de atingir o que é desejável pelo ideal de
felicidade do branco.
O negro a quem nos referimos vive uma relação consigo de rejeição, o sujeito tem seu
ideal de ego como do branco. Esse é o modelo transfigurado que o negro se identifica. Na
troca com o outro, ele encontra-se impregnado de uma ideologia que o rejeita.
Na busca por sua identidade, cuja configuração parte do olhar do outro, o negro sofre
influência do branco, que, como vimos anteriormente, o despreza. Esse conflito entre o desejo
de embranquecer, a perda de referências e a negação de si, trazem impactos no inconsciente
do indivíduo, que se fragmenta, recalcando o trauma num ciclo de vicioso que exige uma auto
superação para recomeçar a cada minuto, só que agora como outro.
O negro percebe a irrealidade de muitas proposições que ele considera suas em
relação à atitude subjetiva do branco. (...) Em seguida, há o inconsciente. O drama
racial desenrolando-se à luz do dia, o negro não tem tempo de “inconscientizá-lo”.
Quanto ao Branco, consegue fazê-lo de um certo modo; é que surge um novo
elemento: a culpabilidade. O complexo de superioridade dos negros, seu complexo
de inferioridade ou seu sentimento igualitário são conscientes. Eles os experimentam
a cada instante. Eles vivem seu drama. Não há neles a amnésia afetiva que
caracteriza a neurose típica. (FANON, 1983, p. 126).
As dissonâncias entre negros e brancos, para Fanon (1983), estão inclusive nos
detalhes em que se passam as relações, sobretudo na ótica psicanalítica. O autor alerta para
diferenças no trato de situações vividas por brancos, tratadas com especificidade na
investigação e no trato do problema, geralmente debruçado por teorias complexas. No
entanto, quando o negro é exposto a situação semelhante não há um tratamento similar, o
problema é ignorado, ou tratado à revelia do próprio negro, ou justificado por inferiorização
cultural.
118
A evidência das problemáticas vividas por brancos para Fanon possuem mais
relevância e refinamento em relação aos problemas de negro. Em contrapartida, a presença do
outro (nesse caso o negro) para o branco tem significado ameaçador. Assim, observamos o
quanto o negro foi temido na história das colonizações, fato que justificou a violência imposta
ao colonizado.
Nesse encontro com o outro (em termos psicanalíticos, conhecido como “estranho”
([FREUD, 1919]), o medo se faz inerente, apavora e desnorteia quem se sente ameaçado). O
medo traz a insegurança de perder o simbólico e, assim, não poder representar o vivido. Surge
a figura do que nos é estranho, visto como o irrepresentável, que não será jamais alcançável.
Freud (1919) em seu texto a respeito do “estranho” identifica como o sentimento de
estranheza revela vir de algo que nos seja semelhante. O amor a si mesmo, ou narcisismo,
gera abominação ao que é estranho “é como se o diferente, o estranho, pudesse ser em questão
o normal, o universal exigindo que se modifique, quando se auto preservar remete exatamente
à imutabilidade. Assim, a aversão e a antipatia surgem” (CARONE e BENTO, p. 31).
Liv Sovik (2009) compartilha as diversas maneiras de identificar o “estranho familiar”
segundo Freud (1919), em confirmação de que o estranho está sempre à espreita de todos nós
e vinculado à ideia de semelhante.
Freud relacionou o estranho familiar com uma incerteza em torno da humanidade de
uma figura e dá exemplos de um autômato e uma boneca (...) é ainda, um duplo que
se transformou em visão de terror, por ter relação com o medo da morte. (...) é
associado à repetição involuntária, ao mau olhado, à imputação de inveja do outro
(...) traz à luz o que deveria ter permanecido oculto (...). Freud nota a relativa
abundância de narrativas ficcionais do estranho familiar – na ficção misturamos
facilmente imaginação e realidade – em comparação com a nossa experiência
cotidiana (SOVIK, 2009, p. 47-48).
Assim, podemos observar o número de características existentes em o estranho
familiar desenhado por Freud e a familiaridade com a agressividade e impacto sofrido pelo
outro. Um misto de medo, rejeição, indistinção e inveja, formas negativas de uma semelhança
que se torna contrária. A intensidade dos fenômenos relativos à agressividade pode despontar,
como assinaladas por Freud, uma ambivalência a hostilidade dirigida “contra pessoas que de
outra maneira são amadas” (FREUD, 1921, p. 106). Essa agressividade (ibid., 1921) foi
nomeada pelo autor de amor a si mesmo ou narcisismo, principalmente quando indisfarçáveis
as antipatias a estranhos.
119
Esse amor a si mesmo trabalha para a preservação do indivíduo e comporta-se como
se a ocorrência de qualquer divergência de suas próprias linhas específicas de
desenvolvimento envolvesse uma crítica delas e uma exigência de sua alteração.
Não sabemos por que sensitividade deva dirigir-se exatamente a esses pormenores
de diferenciação, mas é inequívoco que, de uma agressividade cuja fonte é
desconhecida, e à qual se fica tentando a atribuir um caráter elementar. (ibid., p.
106).
O autor procura identificar os fundamentos do sentimento de estranheza que se
inicia diante de pessoas, culturas e outros aspectos. Chama atenção de Freud o fato de o tema
geralmente ter proximidade aos estudos filosóficos da estética, porém este privilegia o estudo
do belo como contrário que produz aflição e repulsa.
A partir de suas reflexões, Freud (1919) nos dá diversos exemplos de situações que
remetem ao aspecto “estranho”, em um aprofundamento do termo em dicionários alemães.
Portanto, “estranho” (Unheimlich) considerado paradoxalmente como familiar (Heimlich)
remonta a uma modificação no sentimento de estranheza quando o percebemos no
pensamento.
Em consonância com os sentimentos repulsivo e estranho, observamos como esses
estranhamentos são compreendidos pelas pessoas, em geral, de forma comum e normal,
embora, nesse contexto, se mantenham as diferenças entre o eu e o outro. Usando as palavras
de Freud (1919) que complementam nosso diálogo:
Em primeiro lugar, se a teoria psicanalítica, está certa ao sustentar que todo afeto
pertence a um impulso emocional, qualquer que seja a sua espécie, transforma-se,
se reprimido, em ansiedade, então, entre os exemplos de coisas assustadoras, deve
haver uma categoria em que o elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo
reprimido que retorna. Essa categoria de coisas assustadoras construiria então o
estranho; (...) esse estranho não é nada novo ou alheio, porém algo que é familiar e
há muito estabelecido na mente (...) estranho como algo que deveria permanecer
oculto, mas, veio à luz (Ibid., p. 256).
Conforme exposto acima, para Freud o “estranho” está no familiar repelido em nós,
ou seja, só estranho em nós por se tornar insuportável a consciência. Podemos assemelhar
esse contexto à hipótese de pulsão de morte através do traumático (FREUD, 1920). O
estranho é aquele que intimida através da repetição compulsiva de ódio sobre tudo o que foge
120
à compreensão e nos impele à renúncia pulsional, processo em que se evidencia uma
afinidade traumática em relação à nossa condição de humanidade.
Nessa desventura, o sujeito em sua estrutura narcísica passa a exprimir seu ódio de
modo a compartilhar por seus pares. A perda da capacidade de contenção oferecida na
internalização do objeto primário vem projetar no outro sua insuficiência. Por vezes, com o
severo estranhamento de si mesmo, o sujeito se encontra em uma condição delirante, ou seja,
numa tentativa de contorno do encontro com o real traumático.
Em paralelo, o racismo se explicaria no reflexo do que em nós está oculto, mas, a
espreita de se tornar forte ameaça ao “estranho” que está por vir. Podemos assemelhar a uma
sociedade aparentemente estabilizada, que se vê a espreita de uma ameaça da
homossexualidade recalcada levando tanto o paranoico quanto o racista á mesma condição
delirante (ARREGUY, 2017).
O que está direcionado para fora está dentro de si mesmo, seja o masoquismo moral,
sejam as ameaças às amarras identitárias da sexualidade. Isso esclareceria o porquê
de algumas pessoas terem extrema dificuldade de lidar com a diversidade, enquanto
que para outras esse processo é mais tranquilo. A impossibilidade de lidar com a
diversidade “externa”, assim, também passaria por questões intrapsíquicas (ibid.,
2017, p. 13).
Segundo Freud (1929, p.120), a inclinação para a agressão aos considerados
diferentes é “relativamente inócua”, por facilitar a coesão de uma comunidade específica. Não
obstante, a agressividade em grupos humanos distintos culturalmente é a culpada por grandes
massacres a diversos povos, e essas catástrofes ocasionadas por agressões são direcionadas
contra negros, judeus, indígenas, etc.
Em contrapartida, a agressividade pode se manifestar também espontaneamente e
revelar o homem como uma besta selvagem (ibid. 1929), o que pode ser um elemento
“facilitador” para aquele que recebe a agressividade, caso tenha tendência a retrucar com o
mesmo ódio e violência recebida.
Essa relação corrobora para a inferiorização e menosprezo do outro. Para o negro fica
a atribuição de um ideal do eu do branco, cujo objeto internalizado pelo ideal do eu do negro
não lhe cabe, imputando na força de um masoquismo estimulado através principalmente da
desqualificação do Outro (ARREGUY& COELHO, 2017). Essa gangorra de intimidação,
121
baixa estima e menosprezo é o resultado de subjugação e hierarquização de pessoas e grupos
em constante exacerbação da emotividade e da violência desenfreada.
Freud (1932) em seus escritos finais não é otimista em relação à humanidade, suas
pesquisas o fizeram perceber o quanto o ser humano em seu processo civilizatório destruiu o
outro e a si mesmo e assevera: “A justiça da comunidade então passa a exprimir graus
desiguais de poder nelas vigentes. As leis são feitas por e para os membros governantes e
deixa pouco espaço para os direitos daqueles que se encontram em estado de sujeição”
(FREUD, 1932, p. 212).
Os que se encontram nesse estado de sujeição são o negro, os pobres e os que vivem à
margem social e, ainda, que são vistos como portadores de disparidades sociais e psíquicas.
Nosso papel como estudiosos das relações raciais é termos clareza que essas disparidades
causam danos que são refletidos em vários aspectos da vida de quem os sofre.
A reflexão proposta por Frantz Fanon (1983), psicanalista e militante negro, faz uma
crítica à ausência na psicanálise por um logo tempo, no tratamento das especificidades
psíquicas vivenciadas por negros oprimidos seja pela colonização, seja pela guerra
imperialista ou pela segregação racial existente nos países ocidentais. Para o autor, houve
negligência por parte da psicanálise na possibilidade de escuta as questões raciais, ao passo
que, ocorreu de forma tardia a preocupação desses especialistas em se debruçarem com mais
rigor sobre o assunto.
Sempre que lemos uma obra de psicanálise, discutimos com nossos professores ou
conversamos com doentes europeus, ficamos impressionados com a indignação
entre os esquemas correspondentes e a realidade do negro. Concluímos,
progressivamente, que há substituição de dialética quando se passa da psicologia do
Branco para aquela do Negro (FANON, 1983, p. 126).
Fanon compartilha sua indignação ao tratamento dado pela psicanálise ao negro. Ele
cita especialistas, desde Freud e Jung, enfatizando a falta de um olhar apurado sobre as
questões raciais especificamente nas demandas psíquicas e consequências traumáticas.
Enquanto na teoria freudiana, o Complexo de Édipo permeava a fase da infância até o
período amadurecido do homem branco, o uso da passagem ao ato justificava o
comportamento tido como neurótico ou demais sintomas que assim se assemelhavam,
122
enquanto para o negro, desapareciam as evidências do complexo edipiano, reduzindo
sintomas e possíveis neuroses à “situação cultural” (ibid., 1983).
Poderíamos assemelhar esse caso à crítica da psicanalista negra, Maria Lúcia da Silva
(2017), que retrata a carência de estudos brasileiros sobre o negro na psicanálise. Esses
estudos voltados para o negro apenas surgem como algo tardio. Ela não desmerece trabalhos
renomados como de Neuza Santos Souza ou Jurandir Freire Costa, como exemplos, mas,
observa o atraso nos estudos da psique do negro nas suas peculiaridades. Foi um retrocesso na
proporção que muitos dados importantes da emocionalidade e sentimentos alijados da história
dos negros poderiam ter auxiliado a compreensão do problema há muito tempo.
O próprio Jurandir Freire Costa assevera essa questão:
A violência racista pode submeter o sujeito negro a uma situação cuja desumanidade
nos desarma e deixa perplexo. (...) Mais difícil ainda, talvez, é entender a flácida
omissão com que a teoria psicanalista tratou até então, este assunto. Pensar que a
psicanálise brasileira, para falar do que nos compete, conviveu tanto tempo com
esses “crimes de paz”, adotando uma atitude cúmplice ou complacente ou, melhor
dos casos, indiferente, deve conduzir-nos a uma outra questão: Que psicanálise é
esta? Que psicanalista somos nós? (COSTA, 1983, p. 16).
Problematizar o papel da psicanálise faz parte de nosso dever como pesquisadores da
temática das relações raciais. Assim como, exaltar trabalhos que abriram o caminho para
estudos grandiosos e de muita visibilidade como das psicanalistas que se seguem.
Neuza Santos Souza (1983) dedicou suas pesquisas à questão das desigualdades
raciais e do desejo de ascender socialmente em pessoas negras. Em uma vertente parecida, a
psicanalista Virgínia Bicudo (1945), também marcou esse pioneirismo com a metodologia de
coletar depoimentos marcantes da trajetória do negro - uma em São Paulo e a outra no Rio de
Janeiro. As análises das entrevistas revelaram enriquecedoras vivências e anseios silenciados
pela discriminação social no século XX.
Essas psicanalistas negras foram responsáveis por darem à psicanálise a chance de
mostrar o quanto o racismo faz adoecer, mas mesmo assim não conhecemos seus textos, e
nem tão pouco ouvimos falar delas como modelo feminino de pioneirismo nos estudos
psicanalíticos raciais no país, pois estes estudos estão invisibilizadas na hipocrisia social em
que vivemos.
123
Nessa mesma linha de pensamento, Maria Lúcia da Silva (2017) compartilha seu
ponto de vista e declara: “O racismo não é reconhecido pela psicanálise42
existe uma procura
por psicólogos e psicanalistas negros para dar atendimento a pacientes negros”. A motivação
para esta procura seria a sensibilidade de um profissional negro em compreender os anseios
de seus pacientes de cor por conhecerem de perto os conflitos enfrentados por eles em seu
cotidiano.
O racismo à brasileira é hoje um crime perfeito. As crenças da democracia racial e
da mestiçagem encobrem e mascaram a brutalidade do cotidiano. As representações
negativas estão enraizadas no imaginário social, e os golpes sofridos no dia a dia por
negros e não brancos frequentemente caem na condição da “não existência”, pelo
desmentido no discurso coletivo (SILVA, 2017, p. 66).
Dar voz à trajetória e desejos da população negra é evidentemente dar paridade e
credibilidade para ouvir o outro lado de uma história. Quando investigamos a psique do negro
detectamos as falhas e os sintomas que, como fios condutores, mostram as consequências de
um narcisismo exacerbado de brancos que causam a perda da equidade e solidariedade que
deveriam fazer parte de toda e qualquer relação humana.
Embora o avanço em relação aos estudos da psique do negro seja tardio, sabemos que
atualmente o interesse em desbravar esse tema tem aumentado e buscado apreender as
questões raciais e as demandas vindas desses indivíduos.
Essa abordagem tem nos levado a novos estudos que enriquecem as pesquisas que já
temos e nos dão a possibilidade de investigar como o ideal do ego negro se estabelece nessa
redoma invisível imposta pelo racismo e pelo narcisismo indigesto na contemporaneidade.
Fanon (1983) compartilha quão nos é necessário “saber se o negro pode superar seu
sentimento de inferioridade, expulsar de sua vida o caráter compulsivo que se parece tanto
com comportamento fóbico (p. 44)”. Em termos psicanalíticos, o autor referência Anna Freud
na descrição do fenômeno de inibição do Ego, que ocorre em situações de fortes frustrações
traumáticas:
42 Declarações da psicanalista Maria Lúcia da Silva foram retiradas da entrevista concedida a revista
eletrônica Brasil de Fato, para mais informações acessar: https//www.brasildefato.com.br/2017/07/31/impactos –
do-racismo-não-são-reconhecidos-pela-psicanalise-afirma-psicóloga/. Acesso em 08/03/2018. É importante
ressaltar que desde 2016 a psicanalista Jô Gondar já havia teorizado sobre a questão do “racismo desmentido”,
como mostraremos posteriormente. GONDAR, 2016 in ARREGUY et al., 2018).
124
Quando um Ego é jovem, plástico, toda decepção sofrida em uma esfera de ação,
pode ser, as vezes, compensada por sucessos perfeitos dos outros. Mas quando o
Ego se tornou rígido ou que já adquiriu uma intolerância ao desprazer pelo que se
atém compulsivamente à reação de fuga, a formação do Ego sofre terríveis
consequências; o Ego, tendo abandonado suas inúmeras posições torna-se unilateral,
perde muitos de seus interesses e só pode apresentar realizações medíocres (A.
FREUD apud FANON, 1983, p. 44).
Em outras palavras, o ego mais jovem é flexível, disposto a uma reação, enquanto, o
Ego rígido se defende com dificuldade e opta por fugir a enfrentar imposições. Por perder
muito, se torna unilateral, escamoteando-se das situações de violência que o atingiram.
Diante do exposto, compreendemos o quanto para o negro há uma barreira que se
constituiu entre ele e sua negritude, quando se encontra no caminho do desconhecimento de
si, essa influência o leva a isolar-se e a buscar ser como o branco, sendo essa sua última saída.
“A inibição do ego como mecanismo de defesa bem-sucedido não é viável para o negro (ibid.,
p. 44)”.
Ora, se o negro não se aceita, seu ideal de ego negro será branco, e o branco na
assunção como modelo pureza e benignidade ostentará seu ideal de ego com profundo
narcisismo, procurando se defender, em sua posição destacada dos demais grupos. Nas
palavras de Fanon (1983) e Santos (1983), a falta de conhecimento de si leva o negro ser
escravo de sua inferioridade, enquanto o branco cego por seu narcisismo passa a ser escravo
de sua superioridade, logo, ambos têm comportamentos neuróticos.
A estrutura neurótica de um indivíduo será justamente a elaboração, a formação, a
eclosão no Eu de nódulos conflituais provenientes em parte do meio ambiente, em
parte da maneira absolutamente pessoal que este indivíduo reage a estas influências
(FANON, 1983, p. 69).
A ação de negros diante de brancos, usualmente pode ser de aspecto delirante, com
propósito de ser aceito e visto como igual pelo branco. Isso justificaria a anulação de si, mas,
consequentemente, deixaria o negro à beira do patológico. Situação que corrobora para a
aniquilação da autoestima do negro e a regressão para o estágio de inferioridade que aumenta
seu anseio por embranquecer.
125
Se fizermos uma analogia entre o pensamento de Fanon sobre o modo delirante do
negro de anulação de si e a obra de Foucault sobre a história da loucura, veremos o quanto o
pensamento clássico e, mais tarde, moderno sobre a loucura coaduna perfeitamente com o
conceito do que é ser negro desde a colonização, produzindo efeitos (subliminarmente) nos
tempos atuais.
Da época clássica até o período da criação e disseminação ocidental das teorias
racialistas europeias (criadas por grandes intelectuais da época como: Kant, Le Bon,
Gobineau entre outros), a concepção amplamente difundida de que o louco - ou em outras
palavras também “o negro” - era considerado um ser desprovido, primeiro de moral, depois na
modernidade, de razão, redundou na lógica vigente de que o louco ou o negro é um ser
delirante, não possuidor de verdade, incapaz de se autogovernar, ou de ser possuidor de bens
considerando sua capacidade intelectual deficitária (OLIVEIRA, 2006-2007, p. 21). Diante de
tantos atributos negativos, não posso deixar de considerar que o negro era comparado
socialmente a um louco por não p se aceitar como é e almejar ser o outro colonizador branco.
Essa é a única insanidade a que, de fato, se submeteu.
Deixando de ser um erro, falsidade, não-ser, exterioridade da razão, outro da razão,
desrazão, como na época clássica, a loucura, agora doença mental diz respeito à
alma humana, penetra em sua interioridade, no sentido em que o homem, em estado
de loucura, não perde mais a verdade, mas sua verdade, sua essência, torna-se,
estrangeiro em relação a si próprio, Alienado (FOUCAULT (1961, p. 31) apud
OLIVEIRA 2006-2007, p. 21).
Embora, possa haver negação desse comportamento delirante, através de uma barreira
psíquica, observamos que se encontra no inconsciente a chave do que será possível libertar. A
barreira psíquica revelada do negro poderá ser superada pelo conhecimento e aceitação de
quem é, e como se constitui como sujeito.
Incansavelmente procuramos neste trabalho, mostrar caminhos que nos levem para
fora da alienação psíquica, política, social e econômica, vivida por negros e qualquer
indivíduo que se encontre em situação de marginalidade na sociedade. Acreditamos que a
psicanálise é um instrumento necessário em todo esse processo perverso, que nos isola, e, ao
mesmo tempo, manipula, conhecido como racismo.
126
3. O DESMENTIDO COMO CHAVE DE LEITURA PARA A VIOLÊNCIA RACIAL
DISSIMULADA
Nossa proposta nesse capítulo é analisar as contribuições de Sándor Ferenczi na teoria
do desmentido (desautorização ou descrédito) para além da ideia de trauma. A intenção é
entendê-la a partir da concepção do trauma na violência racial.
As contribuições de Ferenczi estão presentes nessa pesquisa, devido à ligação entre os
traumas vividos por negros nas relações raciais e na constante negação dos episódios
traumáticos por pessoas próximas do sujeito que desmentiam tais acontecimentos,
dissimulando o evento como menos importante. A partir da teoria do desmentido podemos
observar as consequências traumáticas de abusos diversos, sofridos da infância até a fase
adulta do sujeito.
O desmentido, fundamental para que haja trauma, é entendido como a negação, por
parte do adulto que ouve a criança, de que algo abusivo de fato aconteceu com ela.
Geralmente a atitude do adulto agressor é a de que nada aconteceu, a de que o fato
não tem importância. Quando a criança chega a comentar o fato com um outro
adulto, geralmente a mãe, este toma o relato da criança como fantasia e não um
acontecimento real, desautorizando assim a fala da criança. O próprio desmentido do
adulto irá fazer todo o fato adquirir para a criança um contorno essencialmente
traumático e desestruturante. Isso provoca na criança uma grande confusão: a
confiança que depositava no que percebia, em seus próprios sentidos é destruída
(FERENCZI, 1933(1932/1992) p. 106).
São observadas as sequelas e marcas nos sujeitos, sob essa estrutura perversa que o
leva a sair de sua zona de conforto para ser confrontado com a dúvida do que viveu, e ainda se
sentir culpado pela situação traumática sofrida. Assim, o sujeito vive a negação da realidade.
O trauma para Ferenczi equivale a um “choque” gerado pela decepção com o indivíduo
considerado protetor e pelo sentimento de culpa importado pela criança traumatizada
(FAVERO e RUDGE, 2009).
Junto ao leitor, podemos considerar a partir de estudos contemporâneos da psicanálise
com a vertente ferencziana, que parte das patologias atuais não surgem pelo recalcamento
como operador psíquico principal. Entretanto, é necessário afirmar que, embora em outras
127
circunstâncias haja o recalque, em nosso caso, de racismo desmentido, o recalcamento não é o
principal operador subjetivo. Quando há um trauma, por exemplo, em uma ofensa ou briga
por questões raciais, o operador privilegiado como mecanismo de defesa é a clivagem
psíquica.
Reconhecemos o quanto o racismo está presente nas relações sociais e age como
mecanismo perverso, complexo e defensivo aliado à existência de uma crença silenciada na
branquitude supervalorizada (GONDAR, 2018). O desmentido é um abuso na discriminação
racial, vivido por quem passa pela desautorização de sua palavra diante do outro. A criança
desmentida tem um sofrimento na percepção de sua própria realidade, logo, em sua
subjetividade e autoestima. Ela assume a culpa pelo abuso ou violência sofrida.
Em Ferenczi, o sofrimento causado pelo abuso social nos mais diversos aspectos,
especificado aqui nas relações raciais, acontece a partir de relações políticas e públicas como:
vergonha e humilhações gerando um aniquilamento subjetivo. Nessas situações, a criança ou
sujeito discriminado passam inclusive a duvidar de si (GONDAR, 2018).
A partir da dúvida e do descrédito, o desmentido traumático leva à autodestruição,
associado a uma fragmentação dos conteúdos psíquicos, na tentativa de se desvencilhar da
angústia. O sujeito revela o sintoma e revive o trauma continuamente através do sonho
traumático, da compulsão à repetição conhecida por flashback. Essa repetição de uma cena
clivada significa que, partindo da angústia, se revive o trauma sem, a princípio, reconhecê-lo.
“Já quando se reconstrói o trauma falando dele, muito se compreende, mas os sentidos
correspondentes ficam ausentes” (FAVERO e RUDGE, 2009, p. 176).
Quando o adulto desmente a experiência sexual e/ou violenta, o sentido, o sentido
do acontecimento fica congelado para a criança e só resta a ela se culpar, se auto
recriminar. O que ocorre é que “a representação do agressor é negativamente
alucinada, e o que devia ser acusação, revolta, transgressão, contestação ao outro,
etc., torna-se submissão e sintomas corporais” (COSTA, apud, FÁVERO e BENTO,
2009, p 173).
Sem a proteção de um adulto de confiança, a criança institui uma parte de si
fragmentada, como um guardião em si próprio, substituindo a presença do adulto que a
decepcionou. A partir disso, criança pode assumir atitudes diferenciadas após a experiência
128
traumática, uma postura de maturidade precoce na expectativa de superar o sofrimento da
violência sofrida através da clivagem.
A clivagem do eu é a resposta ao trauma, seja lá que forma assuma: “o agredido,
cujas forças são vencidas, abandona-se de certo modo ao seu destino inelutável e
retira-se para fora de si mesmo, a fim de observar o evento traumático de uma longa
distância” (FERENCZI, 1932/ 1990, p. 19).
A clivagem é o resultado da fragmentação do sujeito. Uma forma do consciente lidar
com fatos dolorosos e ainda não recalcados no inconsciente. Essa nova postura da criança em
assumir atitudes de maturidade, serve com escudo que a protege da insegurança de não poder
confiar em um adulto que, por princípio, deveria protegê-la.
Há casos, como indica Ferenczi, em que a fragmentação é a única forma que o
sujeito encontra de poder suportar uma dor impossível. O abandono de uma
percepção unificada “faz desaparecer, pelo menos, o sofrimento simultâneo de um
desprazer com múltiplas faces. Cada fragmento sofre por si mesmo; a unificação
insuportável de todas as qualidades e quantidades de sofrimento é eliminada
(FERENCZI 1930, p. 248 apud, GONDAR, 2014, p. 04).
Reconhecemos a clivagem como mecanismo necessário para a superação, ou melhor,
para tornar a vida suportável, como uma possível ponte para a alteridade e continuidade da
vida do sujeito. Uma nova abertura a um novo caminho, esse com outra roupagem. “São
modos de funcionamento nos quais a parcialidade, a multiplicidade e a fragmentação
predominam sobre toda tentativa de unidade” (GONDAR, 2014, p. 03).
Em analogia ao trauma em Ferenczi e aos sofrimentos psíquicos observados em
pessoas negras, pretendemos caracterizar as nuances do desmentido no racismo do Brasil.
Aqui, o racismo é sinuoso e complexo, “prevalece o pensamento no qual vivemos um país de
mistura, cordialidade e união afetiva racial, como um projeto nacional possível, em termos
raciais somos uma grande família” (GONDAR, 2018).
Nosso racismo é mais complexo do que o racismo explicitamente segregador, como
o norte-americano, por exemplo; mais complexo e perverso. Quando se tem
fronteiras claras, o outro discriminado fica bem estabelecido. Quando não se tem,
reconhecer a discriminação é mais difícil, porque ele pode estar em toda parte ou em
parte alguma (GONDAR, 2018).
129
Aliás, negamos a realidade, nos acostumamos a não dar nome às coisas, ou melhor, a
não nomear os fatos. O desmentido acontece em meio a essa não identificação, à dúvida que
traz a culpa ou a incerteza acerca dos culpados. Essa negação da realidade de um racismo não
nomeado sem fronteiras claras, “coloca um mecanismo de defesa que não é o recalque. É o
mecanismo da clivagem.” (ibid.).
A clivagem não diz respeito a um elemento nosso, mas a uma dimensão da
realidade. É um mecanismo mais primário e insidioso do que o recalque. Nesse, ao
menos, existem correntes que se conflitam. Mas, Freud fala em clivagem quando
duas atitudes opostas diante da realidade se mantêm sem qualquer conflito, como se
uma não levasse a outra em consideração. Isso não tem nada a ver com recalque,
trata-se de um repúdio da realidade (ibid., 2018).
Freud (1927) estabelece a clivagem como mecanismo típico da perversão fetichista. A
clivagem no racismo brasileiro processa na cultura o sofrimento gerado desde a escravidão no
passado, e a injustiça social intrínseca na atualidade (GONDAR, 2018). Nesse exercício de
negar a realidade, decidimos quem é bem-vindo ou não em determinados lugares, de acordo
com a cor ou situação econômica. O fetiche, por sua vez, se encontra nas situações de
exceção, ocupando o lugar de um rito, porém instaurado como “solução de compromisso”
diante da realidade cotidiana perversa. É no carnaval, no samba e no futebol43
que a
população negra é temporariamente “reconhecida” através da fantasia de uma integração
falsamente concebida. Fora dessas tréguas, a população negra retorna ao seu lugar de
marginalizada, subalternizada e explorada continuamente, de forma consubstancializada com
diferença de classes.
Enquanto involuntariamente mantemos esse sistema excludente, o cerne do problema
vai permanecer sendo a confiança na branquitude, e no silêncio promovido pelo branco.
Nossa referência ainda é a civilização europeia, essa é diretamente copiada ou adaptada a
nossa ideia de identidade. Essa relação paradoxal entre a branquitude copiada e a brancura
43
Damatta em seu livro: “Carnaval, malandros e heróis (1979)” destaca como a exploração ocorre de
forma aviltante na sociedade e mantêm a dualidade maniqueísta que define o pensamento do povo brasileiro.
Assim como, desmonta a desigualdade crônica do país que embalam o movimento do qual o pobre, em sua
maioria, negros, são sufocantemente explorados pela elite brasileira. A elite que se mantêm acima de todos,
usando manobras contraditórias que manipulam a realidade, colocando em dúvida a universalidade da noção de
indivíduo.
130
europeia causa um conflito: admitimos a miscigenação com um discurso orgulhoso, mas não
vivemos uma democracia racial (ibid.).
A valorização do brasileiro mestiço, herança da resistência antropofágica e freyreana
às exigências eurocêntricas permite que, sob certas condições economias e sociais, o
papel social ideal associado a ser branco possa ser desempenhado por não brancos,
enquanto as hierarquias se preservam (SOVIK, 2009, p. 38).
Esse projeto de branquitude afeta diretamente a subjetividade dos negros no Brasil. A
supervalorização do branco deforma o negro ainda na infância, quando passa pelo traumático
desmentido, ao sofrer as primeiras violências racistas. A partir delas, um acúmulo de outros
choques traumáticos o levam à clivagem para conseguir seguir a diante.
O discurso da mestiçagem e/ou miscigenação é outro agravante que esconde o ideal
europeu branco fixado no imaginário social. Para Gondar (2018), o discurso de miscigenação
e a admiração em torno dele, causa uma identificação com o colonizador, então, agressor,
além de incorporar essa ideologia a um conservadorismo, que leva à negação da existência de
um ódio racial. Embora negado, esse ódio é bem real e continua a coexistir nas relações
sociais brasileiras.
Embora Freud também tenha pensado no desmentido em uma perspectiva de quem o
pratica, Ferenczi opta por calcar o desmentido na perspectiva de quem o sofre.
Conhecemos o perfil do agressor, daquele que promove energicamente a indiferença
racial. Nesse momento, mais nos importa a aproximação daquele que sofre o desmentido. Se
uma criança negra passa por um constrangimento ou agressão motivada por sua cor, e aquilo a
destrói, ela vai procurar ajuda, pedir socorro a alguém de sua confiança. Para Ferenczi (1932),
este adulto não quer ou não suporta o que a criança lhe confidencia, sua sentença será a de que
nada aconteceu, ou que a criança está mentindo. “O desmentido pode ser traduzido por
descredito ou desautorização, a situação em que o adulto desmente, mas, a criança está sendo
desmentida” (GONDAR, 2018).
Em termos psíquicos, Ferenczi nos diz que o momento traumático não está no ato da
violência sofrida pela criança, mas no instante vivido com o sujeito que a desmentiu,
deixando-a confusa e desorientada no que acreditar. Esse desmentido impulsiona ao
131
desmoronamento subjetivo e ao trauma (FERENCZI, 1932). A falta de reconhecimento do
evento traumático traz muitas consequências para o sujeito como poderemos ver a seguir.
A memória do acontecimento não é traumática. O que resultará traumático será a
experiência que expõe a dúvida o sistema - até então confiável - de relações,
representações e valores que ataca o self e suas construções, pelo qual nem o si
mesmo nem os outros serão os mesmos (ibid., 128).
O desmentido e o trauma não consentem que a experiência se inscreva
simbolicamente. A percepção do trauma é transfigurada rapidamente a uma eliminação
simbólica que a coloca na compulsão à repetição da pulsão de morte44
. Pensar no racismo
brasileiro é fazer a analogia entre o paradoxo do desmentido no nível subjetivo acoplado a
uma estrutura perversa que se faz totalmente institucionalizada em nosso país.
A situação é institucionalizada quando nossa população é vista com condescendência
por viver com “alegria” em meio a toda injustiça social que não conseguimos combater. O
estereótipo de alegria atravessa a indiferença e a pobreza, revelando o quanto vivemos uma
relação social ilógica e deturpada. Absorvemos a cada instante nas separações raciais e sociais
as distinções que nos levam ao desmentido constantemente. Por isso, “o sujeito que é
desmentido se vê imerso na falta de sentido, têm dúvidas sobre a sua própria percepção da
realidade e do lugar que ele ocupa nessa realidade” (GONDAR, 2018).
Essa desorientação nos cerca dentro desses processos perversos. Nos deixa sem a
noção da realidade na qual vivemos. Nesse papel, negros e mestiços são desmentidos em sua
posição racial e, consequentemente, em seu lugar social. A reviravolta é possível pela
coletividade, como os movimentos sociais negros, que juntos desafiam o ideal de branquitude
e o denunciam.
A psicanálise é uma aliada na construção desse conhecimento, na autoanálise e na
reflexão do nosso lugar na sociedade brasileira, na medida em que denuncia a hipocrisia e
44 “Ferenczi em 1924 já não compartilhava da noção de primazia da pulsão de morte como em Freud,
preferindo uma oscilação entre pulsões de vida e de morte”. Segundo Avello, Ferenczi pensa em variantes da
pulsão de vida que adquirem sua estrutura definitiva no laço com outros e não em pulsões distintas. “(...)
deveríamos abandonar definitivamente o problema do começo e do fim da vida e imaginar todo universo
orgânico e inorgânico como uma oscilação perpétua entre pulsões de vida e pulsões de morte, em que tanto a
vida quanto a morte jamais conseguiria estabelecer sua hegemonia” (FERENCZI, 1924, p. 325 apud, HERZOG
e FERREIRA, 2015, p. 185).
132
procura ver a realidade desmistificada de seus estereótipos. Afinal, a leitura das sutilezas dos
impasses inconscientes na relação com o outro e da forma como isso se reproduz na esfera
social é uma chance potencial de nos livrarmos da manipulação perversa e egoísta que institui
processos de produção de subjetividades racistas específicos em nosso país.
3.1 Raízes traumáticas do sofrimento do negro
Na psicanálise, a palavra trauma significa aquilo que chega ao sujeito vindo de fora
dele, algo externo, que não foi “traduzido” no inconsciente, por algum motivo emocional.
Freud definiu o trauma de acordo com suas pesquisas clínicas, impulsionando diferentes
visões acerca do trauma em sua trajetória. Nas palavras de Kupermann (2017):
(...) primeiro o abuso da criança pelo adulto (teoria da sedução), depois as fantasias
sexuais inconscientes edipianas e, finalmente, a presença silenciosa, porém efetiva,
de uma pulsão de morte no aparelho psíquico - já que indicava que, na construção da
cena traumática, o outro está no lugar de agente provocador (seja no ato, seja em
fantasia) (KUPPERMAN, 2017, p. 48).
O pensamento de Freud sobre o trauma, em sua primeira tópica, se desenvolveu a
partir da teoria da sedução, considerando a situação originária advinda de uma relação
incestuosa envolvendo a sexualidade entre pais e filhos. De acordo com Favero (2009), numa
concepção firmemente ligada à sedução e A neurótica, todos os pais seriam perversos a ponto
de molestarem sexualmente seus filhos, situação que levou Freud abandonar essa vertente de
pensamento e se debruçar em outra perspectiva, a da fantasia, uma vez que o modelo do
trauma passar a vigiar como teoria geral da neurose, desde A Interpretação dos Sonhos
(FREUD, 1900) e dos casos clínicos.
Com o desenvolvimento de seus estudos clínicos, Freud passa a considerar o fato de
que a criança é capaz de criar fantasias inconscientes de caráter edipiano, dando
destaque ao produto das construções da fantasia do sujeito. Assim, o autor abandona
o pensamento de acontecimento traumático pela percepção de fantasia como
determinante no cenário traumático (FAVERO, 2009, p. 31).
133
A segunda teoria de Freud sobre o trauma deriva do pensamento das fantasias infantis,
ou melhor, das realidades psíquicas. A teoria da sedução é abandonada por não se poder
considerar que todos os pais são perversos, dando espaço a fantasia, responsável pela origem
da neurose. Assim, o trauma passa a ser direcionado ao desenvolvimento sexual infantil.
Nesse período a concepção de trauma é relacionada ao desenvolvimento da
sexualidade infantil e é concebido a partir das “fantasias originárias e às angústias da
castração e o complexo de Édipo, nesse período todos os traumas estão associados às fantasias
inconscientes e à realidade psíquica” (FAVERO, 2009, p. 11).
A definição de trauma em Freud está vinculada a ideia de um choque
violento, de uma efração do aparelho psíquico e também das consequências
sobre o conjunto da organização psíquica. (...) O trauma está relacionado a
uma ausência de uma descarga emocional, de um afeto que permanece
estrangulado, na medida em que há uma dissociação das ideias
correspondentes a ele da consciente. Nesse sentido, o afeto estrangulado é
vivenciado como desprazer que economicamente compromete a homeostase
do aparelho (ibid., p. 19).
Freud passou a pensar na histeria em função do conflito de forças e na defesa psíquica,
levando-o à mudança do método catártico pelo da associação livre (FAVERO, p. 29). Nesse
sentido, Freud afirma que o trauma implicava em uma passagem de um acontecimento de
forma passiva pela criança que embora tenha se chocado, não compreendeu o fato, que só
passa a ter sentido mais tarde na adolescência, quando dará outra conotação ao ocorrido e
passará a sentir dor e sofrimento quando percebe o significado do fato, gerando a partir daí o
trauma.
A histeria, modelo clássico do traumatismo freudiano, se formava com uma espécie de
resíduos de traumas psíquicos cujas particularidades desses sintomas eram explicadas através
do encadeamento de cenas traumáticas. O tratamento dado ao trauma se dava pelo método
catártico, removendo as consequências das ideias traumáticas, transferindo-as para o plano da
consciência.
A hipnose é evocada como condição de trazer à tona a consciência de ideias
dissociadas, enquanto o trauma continua atuando no psiquismo de acordo com a primeira
teoria do trauma, como afeto estrangulado (FAVERO, 2009). Aos poucos, Freud abandona as
ideias de estados hipnoides acerca do método catártico, e se debruça em compreender as
134
causas patogênicas já interiorizadas no sujeito, prontas para serem reveladas em associações
aos fatos conscientes com certa resistência, não considerando mais necessário o uso da
hipnose.
Na década de 20, o trauma ganha nova caracterização, dessa vez com rompimento do
escudo defensivo pelo excesso de excitação promovido no psiquismo pelas exigências da
pulsão de morte (FREUD, 1920). O susto passa a ser elemento fundamental na concepção de
trauma. “O trauma seria, assim, inerente à própria constituição do aparelho mental, e
provocado pela dimensão pulsional não inscrita psiquicamente pelos processos de
simbolização” (KUPPERMAN, 2017, p. 50).
A concepção freudiana de trauma vai perdendo força, quando é repensada a partir da
noção de pulsão de morte45
, passando por reformulações. No trauma, o sujeito não consegue
ter reação alguma, e assim não é possível descarregar os sentimentos gerados durante os
acontecimentos, já que as ideias estão afastadas do campo consciente devido à situação
geradora do trauma. Destarte, as memórias do trauma ficam carregadas de uma espécie de
paralisia, pois permanecem incrustadas como algo que não pertence ao psiquismo. Trata-se da
noção de externo-interior: algo que fica fora de significação, ao mesmo tempo em que causa
efeitos sintomáticos na vida do sujeito psiquismo.
Em período semelhante, como veremos no texto de Freud (1919) Introdução a a
psicanálise e as neuroses da guerra, no qual contemplamos a concepção de trauma pós-
guerra, a partir de eventos dolorosos recentes e que nada tinham a ver com a sexualidade. A
situação era constituída pela fixação no período traumático, e na tentativa de superação, os
sonhos repetiam inúmeras vezes, o acidente traumático. Para Favero (2009, p. 36) essa é uma
questão de dominar a excitação. Ligar psiquicamente as somas de excitação que penetraram
por efração para tentar levá-las, em seguida, à liquidação.
Dessa forma, o sonho traumático vem de encontro às lembranças insuportáveis de
traumas, a princípio, insuperáveis, como tentativa do inconsciente em reestabelecer o
princípio do prazer. Nas neuroses traumáticas e de guerra, o Ego consegue se defender das
45 “Pulsões de morte – No quadro da última teoria freudiana das pulsões, designa uma categoria
fundamental de pulsões que se contrapõem às pulsões de vida e que tendem a reconduzir o ser vivo ao estado
anorgânico. Voltadas inicialmente para o interior e tendendo à autodestruição, as pulsões de morte seriam
secundariamente dirigidas para o exterior, manifestando-se então sob a forma da pulsão de agressão ou de
destruição.” (LAPLANCHE e PONTALIS, 2001, p. 624).
135
ameaças externas encontradas na nova forma de configuração do eu, em busca de superação
da violência do trauma (ibid., p. 39).
Kupperman (2017) faz uma reflexão acerca da concepção de trauma no pensamento de
Freud: “(...) Porém, se a guerra é efetivamente uma vicissitude possível – talvez até provável
– da civilização, a hipótese metapsicológica da pulsão de morte não contribui especialmente
para compreensão do contexto histórico-cultural de sua produção.” (p. 50).
Os estudos de Freud sobre as consequências da guerra nos sujeitos o impulsionaram
nas incursões da teoria do princípio do prazer, ao mesmo tempo em que constituiu uma nova
maneira de apreensão da pulsão de morte, da compulsão à repetição e a nova concepção de
trauma (Fávero, 2009, p. 39). O trauma da compulsão à repetição ocorre em decorrência de
circunstancias anteriores ao princípio do prazer46
, e é compreendido como repetição do
acontecimento traumático. Essa repetição indica que algo não atingiu a cadeia associativa,
portanto não se inscreveu nos sistemas da memória. Desse modo, “o trauma seria, assim,
inerente à própria constituição do aparelho mental, e provocado pela dimensão pulsional não
inscrita psiquicamente pelos processos de simbolização” (KUPPERMAN, 2017, p. 50).
Em suma, na década de 20 a psicanálise apontava a concepção de trauma
intrapsíquico, no qual a repetição é uma forma de preparação do trauma, se distanciando do
princípio do prazer. Nesse sentido, a natureza sexual do trauma na infância não pode ser a
única regra, como podemos observar, o sujeito pode ser afetado em outras circunstancias
inclusive na fase adulta.
Comparando as diferentes teorias do trauma em Freud e a retomada da teoria da
sedução em Ferenczi, observamos que o sofrimento traumático do negro acerca de sua cor da
pele, para além do traumático da pulsão de morte que atinge a todos indiscriminadamente, é
acrescido de um fato traumático, de um acontecimento ou de acontecimentos sucessivos que o
acompanham desde a infância, quando é intimidado por sua “aparente diferença”. Ele se vê
46 Princípio do prazer é uma expressão introduzida por Freud em 1911 tem por objetivo proporcionar
prazer e evitar o desprazer, sem entraves e sem limites (como o lactante no seio da mãe, por exemplo)
(ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 603). É um dos dois princípios que, segundo Freud, regem o funcionamento
mental: a atividade psíquica no seu conjunto tem por objetivo evitar o desprazer e proporcionar o prazer. É um
princípio econômico na medida em que o desprazer está ligado ao aumento das quantidades de excitação e o
prazer à sua redução (LAPLANCHE e PONTALIS, 2001, p. 694).
136
persuadido socialmente até encontrar meios para se adaptar em determinados grupos, quando
em sua maioria são brancos. Nessa relação com o outro, o negro se sente solitário,
especialmente em situações que só fazem sentido pra ele, como em comentários racistas sobre
outras pessoas de cor ou piadinhas estereotipadas que o atingem intimamente, mas, que não
são rebatidas pela preocupação de ser mal compreendido.
No pensamento do negro paira a condição da branquitude alheia, realçada pelas
imagens do cotidiano impostas pela mídia e pelos estereótipos enraizados na sociedade,
ferindo sua autoestima, afetando seu modo de perceber sua própria realidade e de se
reconhecer como sujeito.
Inconscientemente, a pessoa negra absorve todas essas informações e sente-se
incomodada, mas ainda não desponta como uma ferida visível. O trauma do racismo é
fomentado no cotidiano, por fatos correntes e dissimulados, que lhe deixam num estado de
confusão quanto à própria capacidade de constituição de sua identidade. Entretanto, após um
espaço de tempo a situação vexatória e/ ou discriminatória passa a fazer sentido causando
uma dor traumática. Essa situação irá se agravar com outras situações semelhantes
envolvendo a cor e os costumes da pessoa negra.
Será através da apresentação inconsciente dos sintomas e falhas no discurso, o meio
possível para compreender e iniciar um modo de amenizar o trauma já transformado em dor.
Os sintomas podem ser identificados como “execução” de um propósito inconsciente,
apresentando-se como perturbações de outros atos intencionais que se escondem sob o
disfarce de um ato desajeitado (FREUD, 1901 p. 201).
O traumático para Freud (1920) se constitui como uma soma de excitação que age
impedindo a agitação psíquica. Essa grande excitação transparece através de angústia, tendo a
necessidade de ser canalizada pelo corpo. Dessa maneira, quanto mais difícil for a realidade
objetiva, mais o traumatizado se afasta dela, ele mesmo vindo a desmentir o ocorrido.
Assim o negro o faz, muitas vezes em silêncio, se afasta por doer, por não
compreender, por não saber nomear o que o ameaça ou o faz chorar. Os efeitos traumáticos no
psiquismo do sujeito que sobrevive calado à intensa dor psíquica decorrente de situações de
violência racial ultrapassam a realidade histórica brasileira.
O abandono social devido ao não acolhimento por parte do outro em seu
estranhamento, acrescido do individualismo típico da sociedade de consumo e da liquidez (no
137
sentido da falta de permanência) dos laços afetivos entre as pessoas, reafirmam as
psicopatologias vindas desse esvaziamento profundo de relações. O mais marcante nesse mal-
estar contemporâneo é o traço profundo da violência, constituída como uma maquinaria de
passagem ao ato. O sofrimento resultante desse estado caótico em que o outro não é
reconhecido em sua diferença, surge como modo de produção de subjetividade sintomático
que, tal como uma descarga psicossomática, é exposto na carne sem nenhum potencial de
levar à simbolização ou à reação.
3.2 O trauma em Ferenczi como fator social
Sándor Ferenczi, psicanalista húngaro, inaugura uma clínica diferenciada de seu
mestre Freud em muitas circunstâncias. Seu conceito de trauma estava centrado nas relações
precoces do Eu, repensando o papel do objeto na constituição psíquica.
Sua influência na psicanálise contemporânea é bastante reconhecida, principalmente
em relação às manifestações da compulsão à repetição que se distanciam da percepção
freudiana no item sobre a pulsão de morte. Ferenczi tem notoriedade por abrir frentes para
refletir questões que fogem ao paradigma da representação, e dos operadores da castração e
do recalque, dessa maneira, ampliou, ou melhor, modificou o campo terapêutico.
Modificações surgidas a partir dos casos clínicos “difíceis” (PINHEIRO, 1995),
levaram Ferenczi a elaborar uma “técnica ativa” na qual utilizava a “neocatarse”47
,
percebendo que as memórias mostravam um retorno do fator traumático primário ou original
das neuroses, anteriormente abandonado por Freud.
47 “Em seu texto Princípio do prazer e neocatarse (1930/2003), Ferenczi retoma a velha catarse de
Breuer e Freud ao entender o valor do recurso, ainda que fosse uma tradição antiga. Fazendo-o, pretendeu
“valorizar o antigo como progresso científico”. Afora a crítica às suas ideias sempre ameaçadoramente
inovadoras, o texto continha a proposta de associar o preceito da frustração recomendada por Freud uma
proposição de uma atitude amistosamente benevolente que propicia o relaxamento a ser incluído à frustração, à
objetividade e à análise do material transferencial. A confiança e a total liberdade que daí advém, facilita o
aparecimento de sintomas recalcados, fruto das manifestações catárticas que revelam traumas primitivos, e
favorece a “economia de sofrimento”. Análise de crianças com adultos (1931/2003), também era um recurso
para suavizar a dureza de uma análise de adultos e permitir o acesso a conteúdos inconscientes de outra forma
não alcançados” (KEZEM, 2010, p. 25).
138
Ferenczi era grande discípulo de Freud. Encontrou na clínica um modo mais
complexo de ultrapassar a compulsão à repetição, dando continuidade ao trabalho analítico
com dedicação exclusiva e enérgica à clínica. Ferenczi destaca o lugar do analista debruçado
em cada peculiaridade de seus casos clínicos. Sua preocupação era, além da prorrogação da
terapia, a cura de seus pacientes e a continuidade da análise do próprio analista como base de
sua intervenção terapêutica.
A atualidade do pensamento de Ferenczi vai atender à necessidade de se refletir
sobre esta sentença de morte que parece se perpetuar nos dias de hoje na crítica
contundente em relação ao método, à intervenção terapêutica e ao arcabouço teórico
da psicanálise. Assim, é que nos deparamos com a denúncia de que o arcabouço
teórico da psicanálise, bem como seu dispositivo clínico, estaria ultrapassado, pois
suas ferramentas não seriam mais eficazes para dar conta das transformações no
modo de se pensar o sujeito na contemporaneidade. Ou seja, hoje não estamos mais
diante de perturbações psíquicas referidas ao modelo de recalque (HERZOG e
FERREIRA, 2015, p. 182-183).
O trauma sexual em Freud condizia a uma operação intrapsíquica, vinda de dentro do
sujeito, mesmo que de forma externa por algum acontecimento violento de forte impacto.
Entretanto, em Ferenczi veremos o trauma social, na forma de uma ruptura gerada nas
relações sociais e políticas. Através dessa modificação de percepções, observamos uma
traumatogênese ferencziana imbuída de instrumentos eficazes para nos fazer refletir sob o
prisma da clínica do testemunho, uma psicanálise da escuta, da reflexão, autorreflexão e
acolhimento pelo outro no percurso tanto da clínica como no aspecto cultural
(KUPPERMAN, 2017).
A traumatogênese ferencziana sugere que todo trauma é, efetivamente, um
retraumatismo - há sempre um segundo tempo traumático muitas vezes mais funesto
ainda que o primeiro -, e perpetuar o silenciamento das vozes capazes de contribuir
para a elaboração psíquica dos episódios sofridos tenderia a eternizar os mecanismos
da desautorização traumática (ibid., p. 53).
Pelo viés da clínica do testemunho, Ferenczi encontra a necessidade de nomear
sentimentos como afeto, pavor e medo. Nesse cenário o trauma entra numa questão nomeada
pelo psicanalista húngaro como confusão de línguas.
139
Em sua formulação derradeira sobre o traumatismo, Ferenczi (1932/1992) postula
que a criança se encontra sob o regime da “linguagem da ternura”, uma linguagem
lúdica, experimental, expansiva, dirigida ao outro, por meio da qual as experiências
produzem sentido para o sujeito. Já o adulto, submetido ao recalque e à culpa,
encontra-se sob o primado da “linguagem da paixão”, veiculadora das palavras de
ordem e dos imperativos sociais aprisionadores (ibid., 2017, p. 50-51).
Desse modo, o trauma é constituído pelo choque de forma inesperada, vinda de uma
experiência real e dolorosa, cuja incompreensão se dá por uma confusão de línguas entre o
adulto e a criança, entre a linguagem da ternura da criança e a linguagem da paixão do adulto.
A linguagem da ternura está na ligação da má compreensão do adulto de alguma
manifestação erótica da criança, tomando-as como semelhantes às manifestações da
sexualidade de um adulto. Daí a confusão, pois enquanto as primeiras permanecem no nível
da ternura unicamente, a interpretação do adulto encontra-se no nível genital ou da paixão
(HERZOG e FERREIRA, 2015).
O trauma se constitui em dois tempos intrínsecos e distintos: O primeiro ocorre no
momento do abuso da criança pelo adulto, motivado por sua posição de poder ou impunidade.
Em seguida, o ato da “desautorização” (desmentido ou descrédito) esse sim, é o definidor da
constituição do trauma.
Desautorização, na traumatogênese de Ferenczi se iguala à “negação”, e, em alemão,
Verleugnung pode ser traduzido, como vimos anteriormente por: desautorização, desmentido
ou descrédito, sendo elemento fundamental na constituição da cena traumática. Em
Kupperman (2017), observamos a preferência do termo “desautorização”, no sentido de
enfatizar a dimensão de desapropriação subjetiva promovida no sujeito em estado de
vulnerabilidade pelo encontro traumático (ibid., p. 51).
Nesse segundo tempo, no qual a confirmação do trauma ocorre na dúvida do
acontecimento traumático, são prejudicadas as percepções internas da criança, gerando uma
paralisia em seus sentimentos, de modo a fixar a subjetividade na unilateralidade dos fatos e
promover uma incapacidade de raciocínio.
A busca por apoio de um adulto, para confirmação ou para dar sentido ao episódio
produz um processo desestruturante, reproduzindo a violação sofrida. Devido ao abandono
forjado à criança que, desamparada, perde suas referências de proteção e da certeza do choque
140
sofrido na ação de outro adulto. Para Ferenczi, o trauma está relacionado a um motivo externo
e real, um elemento exógeno capaz de mexer e modificar o psiquismo (FAVERO, 2009).
Na teoria de Ferenczi, os fatores externos que impõem mudanças no aparelho
psíquico ganham relevo. Em lugar de fatores endógenos, é sobretudo o meio social
que perturba o aparelho psíquico, desorganizando-o. O trauma depende de uma falha
na relação entre o sujeito e o outro. Valorizando a alteridade na constituição do
trauma, Ferenczi se mantem fiel ao que sua clínica lhe revelava: o trauma é
fundamentalmente o resultado da ação de um outro sobre aquele que é traumático
(FAVERO e RUDGE, 2009, p. 170).
O trauma desestruturante, promovido por um fator exógeno, causa modificação do
psiquismo e é um elemento basilar para o sofrimento psíquico. Entra nesse cenário a confusão
de línguas, o desmentido e a clivagem como respostas a uma situação intolerável na relação
com o ambiente e a cena traumática.
Essa configuração traumática em Ferenczi traz o não representável: aquilo que não
pôde ser inscrito, impedindo o recalcamento, pois, através do desmentido, que força a criança
à não simbolização, abre-se o caminho para o empobrecimento do eu (HERZOG e
FERREIRA, 2015). O trauma desestruturante, de origem exógena, portanto, é um mal não
necessário e talvez evitável.
Na clínica, Ferenczi observa que no trauma desestruturante a repetição se daria não
por via representacional, mas, a partir da mudança nas técnicas, cujo paciente teria a
possibilidade de ter acesso à experiência traumática e, assim, a percebê-la e inscrevê-la na
cadeia associativa.
Em 1932, no texto confusão de língua entre adultos e a criança, Ferenczi elabora o
mecanismo de introjeção do agressor em consequência do traumatismo. Isso significa o medo
e a falta de defesas da criança, que se direciona a identificar-se ao seu agressor, fazendo este
desaparecer enquanto realidade externa, transformando-o em algoz intrapsíquico, e portanto,
no processo traumático, a criança segue mantendo a situação de ternura que lhe é peculiar,
justamente para preservar o agressor, muitas vezes, coincidente com uma figura de seu âmbito
íntimo e familiar.
Em analogia ao nosso trabalho, podemos compreender e reafirmar como esse
mecanismo traumático desestruturante vai acontecendo gradualmente desde a infância da
141
criança negra até provavelmente a fase adulta, diante de ataques e violência por sua cor de
pele. Desse modo, o que foi ignorado ou posto em dúvida ganha legitimação mais cedo ou
mais tarde como uma agressão racial injustificada. Entretanto, o desmentido pode se manter
oculto por algum tempo, nesse caso mantendo o traumatizado alienado ou em estado de
negação de si mesmo. No processo de alienação, podemos escolher ter a crença de que
vivemos uma sociedade pós-racista, por exemplo, e essa ilusão pode nos levar a impedir que
vejamos o impacto que a cor da pele tem em determinar nossos destinos.
A necessidade de compreendermos essas configurações traumáticas nos traz
autoconhecimento e reafirma a importância do poder do inconsciente e da influência externa
do trauma como fato social. Ferenczi nos traz uma visão abrangente da composição
traumatizante, compondo de elementos os desdobramentos do trauma e o funcionamento
psíquico diante de uma diversidade de situações possíveis.
Concordando com essa premissa, retomamos a concepção de trauma estruturante em
Ferenczi, na qual considera a existência de uma relação traumática e afetuosa com a mãe,
primeiro objeto de amor da criança. Essa percepção é caracterizada como uma vertente
positiva do trauma da sedução, responsável por dar organicidade psíquica ao sujeito, ou seja,
esse seria um trauma inevitável e, consequentemente, basilar na vida da criança.
Ferenczi (1924) valoriza a vertente estruturante do trauma, já que certa quantidade
de experiências sexuais vividas através de sedução sexual infantil funciona como
“proteção contra os caminhos anormais que o desenvolvimento é suscetível de
adotar” (Ferenczi, 1924/1993, p. 248). No entanto, o trauma de sedução só tem esse
efeito favorável se não ultrapassar “certo ponto ótimo” (Ferenczi, 1924/1993, p.
237). Assim, há um aspecto positivo do trauma, e nem toda experiência sexual
traumática adquire posteriormente um valor patológico para a criança (FAVERO e
RUDGE, 2009, p. 172).
O autor constitui o “trauma estruturante” como necessário e inevitável ao sujeito, por
afirmar que na relação entre mãe e filho – repleta de cuidados elementares para o
desenvolvimento saudável – ela o faz se sentir amado e o centro de tudo. Quando a criança
percebe esse sistema abalado, seja por outras tarefas ou esgotamento da mãe, isso suscita no
bebê sentimentos de prazer e desprazer, que provocam mudanças no seu aparelho psíquico
(FERENCZI, 1913).
142
Sendo assim, os traumas estruturantes, necessários ao desenvolvimento da criança,
seriam aqueles onde não ocorre o desmentido. Enquanto, os traumas desestruturantes teriam o
peso do desmentido como fio condutor do trauma e, consequentemente, a experiência
dolorosa e transfigurante no psiquismo por parte do adulto.
Para finalizar, faço minhas as palavras de Favero e Rudge (2009), em cuja exaltação
da clínica ferencziana, traduzem a importância da obra do psicanalista no cotidiano
contemporâneo. Ferenczi tem na clínica do trauma uma originalidade para o irrepresentável,
ele inova ao valorizar o meio e associar o campo transferencial à experiência traumática.
Responsável por abrir frentes importantes na comparação à situação analítica ao trauma
infantil, no qual “adverte que o analista ocupa o lugar do adulto na cena traumática sempre
que não admite seus erros e não se mostra apto a receber críticas (FAVERO e RUDGE, 2009,
p. 173) ”.
Ainda nessa busca, veremos a seguir o papel da educação diante do desafio de moldar
corpos e mentes em um espaço multicultural e inconscientemente dominado por neuroses e
clivagens causadas pelos processos educacionais. Como a psicanálise, a lei e a pedagogia
podem, em conjunto, favorecer mentes saudáveis e livres dos múltiplos sofrimentos psíquicos
recalcados pela forma de ensinar, muitas vezes, traumática e também racista?
Teremos como fio condutor as relações raciais no ambiente escolar, focando na
observação de como a escola se prepara para favorecer ou não essas relações, valorizando ou
destituindo os conhecimentos dos alunos, e, principalmente, fazendo-os acreditar em uma
realidade cheia de dogmas taxados como suficientes para treiná-los para a vida em sociedade.
3.3 Os docentes e a desordem de uma Pedagogia pedante; ou Os docentes e a
pedagogia da desordem.
A educação recebida na escola nos molda e transplanta regras e modos de convivência
no meio social. Pretendemos problematizar sobre a maneira como nos são passados os
conhecimentos, e quem os transmite, nos indagando como a pedagogia moderna tem guiado
143
as demandas sociais e a flexibilidade ou inflexibilidade das normas de convivência e
tolerância ao outro.
Quais elementos o docente apresenta de sua formação ou, o que faltou nessa formação
para que sua prática seja, no fundo, racista?, Esse processo se impôs como significante natural
que pode originar sofrimentos psíquicos inconscientes devidos aos princípios educativos
impróprios advindos de uma cultura perversa.
(...) muitos sofrimentos psíquicos inúteis podem ser atribuídos a princípios
educativos impróprios; e, sob o efeito dessa mesma ação nociva, a personalidade de
alguns entre nós tornou-se mais ou menos inapta para desfrutar sem inibição dos
prazeres naturais da vida (FERENCZI, 1908, p. 39).
A pedagogia é a arte de guiar aquele que demanda por conhecimento. De forma
sistematizada, organiza e dilui o conhecimento com conta-gotas, veiculando a aprendizagem
em suas múltiplas habilidades, seja oral, escrita sensorial, abstrata ou exata.
Para que isso aconteça, é necessário despertar a curiosidade e o desejo do aluno em
aprender, em contrapartida, frequentemente se despreza o que a criança traz consigo. Esse
processo assemelha-se ao ofício do artesão com o barro, em que, através de seu equipamento,
dá a forma que deseja a seus vasos e adornos.
Segundo Ferenczi (1908), as obras de Freud podem nos convencer que a educação
defeituosa é não só a origem de defeitos de caráter, mas também de doenças que constituem a
base de uma cultura composta por diversas neuroses. Não obstante, a pedagogia é um
instrumento de ensino utilizado por nós, docentes arraigados em nossas próprias neuroses e
nossa cultura. Nesse processo é importante fazermos uma autoanálise para promover, de
maneira equânime, o ato de ensinar com prazer e gerar o mínimo de impacto em quem será
ensinado.
O fio condutor dessa discussão se move em compreendermos como a pedagogia e a
psicanálise podem revelar meios menos traumáticos (não desestruturantes) de educação para o
sujeito. Seus sofrimentos psíquicos, quando oriundos de relações raciais desiguais, podem
encontrar condições de superação, permitindo-os se estabelecerem como indivíduos com
pensamentos libertos do julgo das discriminações raciais e de toda natureza.
144
A pedagogia tradicional à época de Ferenczi (1908) tem como um dos seus erros mais
graves “o recalcamento das emoções e demais representações. Poderíamos dizer que a
pedagogia cultiva a negação das emoções e das ideias” (p. 40). Quando educadores assumem
a postura de detentores exclusivos do saber e não escutam os gritos de dor ou anseios
inconscientes dos outros, a pedagogia se torna um mecanismo de supressão que impõe regras,
com uma postura de podar sonhos, desejos e diversão no que é simples, da natureza infantil
do educando. Essa vertente disciplinar e mais severa da pedagogia ainda é presente em nossos
dias.
É difícil definir o princípio que a rege (a pedagogia). É com a mentira que ela mais
se aparenta. Mas ao passo que os mentirosos e os hipócritas dissimulam as coisas
para os outros ou então apresentam-lhes emoções e ideias inexistentes, a pedagogia
atual obriga a criança a mentir para si mesma, a negar o que sabe, o que pensa (ibid.,
p. 40).
Esse processo assemelha-se, conforme disse anteriormente, ao desprezo do que a
criança traz consigo para moldá-lo à maneira do docente ou das regras disciplinares da escola.
Nessa “mentira” que o reformula, muitos sentimentos são recalcados na trajetória educacional
amontoando-se a outras ideias recalcadas que se escondem no inconsciente e geram um
movimento contraditório interno em relação aos objetivos e as ideias conscientes.
Assim, desde os primórdios, a psicanálise está em desacordo com o método tradicional
coercitivo da educação no qual o recalcamento de ideias e sentimentos predomina, por não ser
considerada a melhor forma de neutralizar ações ou comportamentos reprimidos e não
sociáveis.
Uma educação repressiva e punitiva, como a que conhecíamos com castigos físicos e
vexatórios, engessava a criança e a tornava um adulto reprimido, recalcado e não atuante. O
sujeito fruto desse modo educativo, para Ferenczi (1908, p. 41), sofre de uma “cegueira
introspectiva”, uma vez que se torna alienado em sua própria realidade. Contudo, não só o
sujeito era prejudicado, mas, olhando ao redor percebemos que o agente responsável por
transmitir esse tipo de educação (o docente), sofria do mesmo mal e apenas reproduzia.
Recalque e desmentido, portanto, se combinam na produção de uma educação violenta e
classista.
145
Pensar a atuação docente em uma educação alienante é um contraste com o significado
político e social que ela possui. Se o professor tiver consciência de sua responsabilidade
social, e possuir conhecimento da situação em que vivemos – reféns de nossas frustrações,
neuroses e culpa, de nossa incapacidade de nos sentirmos completos – ele não será somente
um reprodutor de uma educação que nos castra e poda na busca da liberdade.
Freud (1909) acentua que a educação “só assumiu como tarefa sua, até o momento,
o domínio ou, mais precisamente, a repressão dos instintos; o resultado nada exibe
de satisfatório (...) Acaba-se de substituir essa tarefa por uma outra, a de tornar o
indivíduo apto para a cultura socialmente utilizável, pedindo dele o menor sacrifício
possível de suas próprias atividades (CIFALI e IMBERT, 1999, p. 13).
Se o que conhecemos como “educação” e suas normas dogmáticas criou um
paradigma responsável por uma desestabilização psíquica, como penso que subliminarmente
ainda acontece, então, precisamos nos inquietar, problematizar os benefícios desse modo de
educar que não transforma, mas, aliena sujeitos. Se a educação moderna, fruto da “Escola
Nova” e da importante influência libertadora freiriana, por outro lado, é em parte criticada
como permissiva e não tem dado conta de tornar as pessoas mais atuantes, é um sinal de que
ainda necessita ser modificada. Ou, então, hipótese ainda mais pertinente: se a pedagogia
libertária do século 20 denunciou e transformou a pedagogia punitiva de outrora,
infelizmente, esse processo não ocorreu de forma satisfatória, pois a sociedade, em sua
complexidade, não mudou. Se recebemos uma educação sujeita à incapacidade de sustentar-se
como ato libertador, como aceitar o fato da formação docente como eixo principal para
promover “transformação social”? A educação brasileira, até hoje calcada em dogmas morais
e religiosos e esvaziada em sentido, faz do professor, um agente reprodutor do recalcamento
de sentidos e da cultura que desperta neuroses parasitárias nos sujeitos, e, em profundidade,
escamoteia o egoísmo e o narcisismo individual. Esses “princípios”:
(...) pertencem à elite da nossa sociedade atual; é muito simplesmente um exemplo
para mostrar que a educação moral edificada sobre o recalcamento produz em todo
homem saudável um certo grau de neurose e origina as condições sociais em vigor,
em que a palavra de ordem do patriotismo encobre, de maneira muito evidente,
interesses egoístas, em que, sob a bandeira da felicidade social da humanidade,
propaga-se o esmagamento tirânico da vontade individual (...). A neurose e o
egoísmo hipócrita são, portanto, o resultado de uma educação baseada em dogmas
que negligenciam a verdadeira psicologia do homem (...), a hipocrisia, certamente é
146
um dos mais característicos sintomas da histeria do homem civilizado em nossos
dias (FERENCZI, 1908, p. 43).
Para Ferenczi (ibid.), é por via de uma pedagogia dogmática e de seus defensores que
se compõe a elite social. É através de uma tradição exploradora, oligarca e escravocrata
desmentida que estão os agentes que moldam a base de nossa educação e perpetuam a
castração psíquica que aniquila nosso pensamento e nos deixa domesticados.
Diante desses processos históricos, subjetivos e psíquicos agudamente escamoteados e
traumáticos, a psicanálise, no tratamento ou na formação docente, transforma-se em aliada do
cotidiano contra os processos de alienação oriundos do paradigma dogmático. Os
ensinamentos psicanalíticos se calcam na percepção profunda de olhar para si e para o outro.
Embora, a crítica de Freud e Ferenczi em relação à educação se remeta há outro
tempo e espaço, acreditamos que ela ainda seja atual na denúncia de pontos de retrocesso
ainda vividos por nós, educadores. Entendemos que a “pedagógica moderna” da Escola Nova,
piagetiana, freiriana, dentre outras, possuem diferenças importantes em relação à pedagogia
disciplinar, sendo assim, as críticas feitas por Freud e Fereczi possuem diferentes conotações
em relação aos trabalhos no enlace de psicanálise e educação nos dias atuais. Mas, quando
observamos as desigualdades existentes no ambiente escolar e a falta de sensibilidade de
alguns docentes, ainda permitida e incentivada em algumas escolas, castrando, alienando e
“castigando” a subjetividade, sentimos a necessidade de aproximar essas reflexões
psicanalítica e pedagógica, talvez, em um futuro trabalho. A escola é símbolo do nosso
primeiro desligamento com a família, por isso sua relevância no tipo de relações a serem
construídas, principalmente as de cunho racial e social, contando com a diversidade que lhe é
necessária.
As relações raciais no dia a dia das escolas têm ocorrido de maneira irreflexiva,
causando sofrimentos psíquicos no decorrer da vida adulta, com consequências graves para
quem as sofre. A falta de sensibilidade e de percepção do mal originário pela discriminação de
gênero, raça e social reverbera no silenciamento ou na revolta de sujeitos que encontram na
desautorização (desmentido) de situações traumáticas causadas seja pelo descaso ou pelo
despreparo docente.
147
De acordo com Carone e Bento (2014), podemos observar as situações e causas
complexas dos flagrantes vividos de racismo por crianças negras, principalmente nos espaços
escolares.
As professoras entrevistadas dizem se sentir muito desconfortáveis no momento de
abordar as questões raciais. Não compreendem a queixa ou tentam amortecer o
impacto da ofensa, para o aluno queixoso. Não se sentem à vontade para ensinar
fatos ligados às relações raciais: escravidão, discriminação, diferenças raciais
(CARONE e BENTO, 2014, p. 86-87).
Observamos a dificuldade de entendimento de que é possível a igualdade na diferença.
A percepção do diferente nem sequer é avaliada na maioria dos discursos docentes, que
pretendem modular as crianças da mesma maneira. “A posição racial não nomeada pode
excluir a possibilidade de alguém reconhecer-se e reconhecer o outro em termos de igual-
semelhante, igual-igual e igual-diferente” (ibid., p. 87).
A educação moderna e os docentes que nela estão, quando imbuídos de
autoconhecimento e consciência de sua personalidade, têm maiores condições de se
transformar. Segundo Freud: “o recalcamento de ideias é substituído pelo julgamento
consciente”, em outras palavras, o modo de apreensão da realidade pode ser modificado.
Segundo o autor: “incita igualmente a dominar entre os seus desejos aqueles cuja satisfação
poderia ofender os direitos de outrem, e a vigiá-los atentamente, sem negar a existência deles”
(ibid., p 44).
Ferenczi compartilha com convicção o quanto a sociedade é neurótica e assevera o
peso da contribuição da pedagogia na constituição dessa esfera doente da modernidade, na
qual estamos imersos. Egoísmo, hipocrisia, histeria, desconhecimento de si e indiferença são
afetos arraigados na sociedade. Esses fatores são perceptíveis desde a fase escolar e são
refletidos com ainda mais intensidade na vida adulta. Como é transferido de geração em
geração, acaba sendo aperfeiçoado com perversidade brutal ao longo do tempo.
(...) A educação numa posição estratégica determinante: ela age no próprio cerne da
contradição entre a “pulsão” e a cultura. Disso resulta ter a educação a
responsabilidade de assistir à “renúncia pulsional” que constitui o fundamento da
civilização e de avaliar por inteiro os efeitos destrutivos – neutralizantes – de uma
148
“limitação pulsional” excessiva de ideias culturais demasiado pesadas que levam as
pessoas a viver, “em termos psicológicos, acima de suas possibilidades”, numa
“espécie de hipocrisia” (CIFALI e IMBERT, 1999, p. 12).
Nas instituições escolares as desigualdades se encontram no currículo oculto e nas
relações entre crianças e adultos. O desconhecimento ou o descaso docente frente a situações
discriminatórias sob o prisma da violência no cotidiano, revela a influência de uma formação
docente taxativa na defesa da moral (ou mentira) social inibidora das satisfações pessoais.
À guisa de conclusão, nossa reflexão vai de encontro a uma possibilidade para
mudança de perspectiva e conhecimento si em contraste com a nossa realidade castradora e
hipócrita, adoecida pelo recalcamento de sentimentos, que, atrofiados, refletem uma
insatisfação interior identificada por múltiplos sofrimentos psíquicos nos sujeitos.
Usando as palavras de Sándor Ferenczi (1908) na Conferência no Congresso dos
Psicanalistas em Salzburgo, acerca de uma possível “cura” de nossa sociedade caracterizada
por ele mesmo como doente devido a uma cultura que dissemina diversas neuroses: “(...) o
remédio para essa doença da sociedade só pode ser a exploração da personalidade verdadeira
e completa do indivíduo, em particular, do laboratório da vida psíquica inconsciente que hoje
deixou de ser totalmente incessível, e o meio preventivo: Uma pedagogia fundada na
compreensão e na eficácia e não em dogmas” (p. 44).
3.4 Vinhetas escolares: a confluência entre o desmentido e o preconceito racial contra
o negro
Neste subcapítulo final, vamos abordar alguns episódios da vida cotidiana escolar que
envolvem as relações raciais e o debate dessa pesquisa acerca da dimensão dos encontros e
desencontros nessas relações. A análise desses episódios será realizada à luz da psicanálise
entorno da sua especificidade na traumatogênese ferencziana.
Antes vamos compreender o significado das vinhetas escolares, termo por vezes
entreposto nessa pesquisa, com intuito de ser utilizado como recurso para apreendermos o
desenvolvimento das relações raciais em uma possível “negligência” na área da educação,
seja entre alunos e/ou professores.
149
As vinhetas escolares foram pensadas especificamente nessa pesquisa para
exemplificar as relações raciais no campo da educação. Essa educação da qual sou fruto e
passei muito tempo sendo espectadora e personagem do descaso ou desconhecimento docente
em minha defesa ou na defesa de alguém. O tempo passou, me tornei uma atriz nesse cenário,
cujo desafio maior é se deparar com os elementos que contém todo ranço do racismo que vi
de perto, em minha infância e trajetória de vida, perpetuar o que um dia foi responsável por
me frustrar tanto.
Nos episódios e comentários expostos, podemos observar o quanto os casos não são
isolados. Haja vista a quantidade de trabalhos, pesquisas, manuais e trocas de experiências nas
quais se destacam episódios de racismo, preconceito racial e silenciamento envolvendo
configurações de traumas sociais sob a égide das questões raciais.
As vinhetas serão consideradas como contribuições à observação crítica cotidiana,
refletindo as funções à frente da carreira docente, cuja narrativa ora é escrita em primeira
pessoa, ora em terceira, justamente para enriquecer as descrições com os sentimentos vividos
e sofridos que as experiências suscitaram em mim como professora-pesquisadora.
Nossa intenção é mostrar esses casos diante da experiência profissional que possuo
nesses quase 10 anos de docência. Fatos presenciados, experienciados como testemunha ou
protagonista, que se tornaram índices motivadores para essa pesquisa.
Buscamos compartilhar esses fatos ficcionalizados com o intuito de contorná-los e
dominá-los, apontando falhas, acertos, desejos e possibilidades de ressignificação. Não mais
sozinha, divido essas memórias com o leitor cujo papel aqui é testemunhar as ranhuras na
subjetividade negra, e na fixação da branquitude que se estende com seus privilégios e
possibilidades de ascensão ilimitadas, por sua raça, cor e hipocrisia.
Com o intuito de ampliar nosso conhecimento, tomaremos como referência o trabalho
de Marcelo Pereira intitulado: A psicanálise escuta a educação: 10 anos depois, como um
norteador nesse caminho catártico de escuta e análise, que vai permear as vinhetas escolares
divididas com o leitor.
Em Pereira (2010), observamos as modificações atravessadas pela psicologia
educacional em diversos momentos da história da educação moderna, sua importância, no
início, quando a escola era frequentada por crianças de uma classe social única. Com a
150
abertura da escola para “todos”, a situação tomou proporções diferenciadas e abalou as
relações entre os alunos atingindo diretamente as questões culturais e sociais daqueles grupos.
Em analogia a situação educacional contemporânea, podemos compreender o quanto
esse contraste cultural, social e racial ainda abala a estrutura da comunidade escolar.
Profissionais despreparados, alunos com uma diversidade de problemas desde o tráfico de
drogas à fome, incluindo as novas configurações familiares, desmantelam os profissionais da
educação que parecem ter se formado em uma caixinha de tijolo milimetricamente esculpida e
despreparada para encarar o diferente.
A psicologia e/ou a psicanálise são aliados (ARREGUY, 2014) nos ambientes
escolares. Em vez de serem retirados da escola, os profissionais “psi”, sobremaneira de
orientação psicanalítica, deveriam ser valorizados e ter mais espaço. Observamos que as
grandes escolas particulares, em sua maioria, mantêm esses profissionais, que integram e
participam do planejamento e práticas escolares.
No ensino público brasileiro, psicólogos são praticamente inexistentes (ARREGUY,
2014). Quem sabe isso acontece por que os demais profissionais temeram o desafio de terem
que incluir as diferenças e compreendê-las em vez de excluí-las? Ou o poder público em sua
fábrica de cortar custos na educação e nos setores fundamentais ao cidadão, por má vontade
política decretaram a saída desses profissionais da escola por considerarem dispensáveis e
sem utilidade nenhuma?
Como o psicólogo poderia participar de toda essa mudança se o que lhe
demandavam era tão somente que testasse, diagnosticasse, discriminasse, tratasse ou
excluísse os indesejáveis? Eis o que se pode chamar uma demanda à “polícia
médica”. Quanto ao problema da ética, como o psicólogo poderia participar das
querelas educacionais, da vida da escola, das transformações sociais em torno dela
com os poucos instrumentos, métodos e práticas que a psicologia lhe oferecia ou,
pelo menos, com os instrumentos com que estava habituado a trabalhar? Eis o que
podemos chamar de impasse ético - que não deixa também de ser político
(PEREIRA, 2010, p, 28).
Nesse ponto faremos um parêntese acerca da configuração das relações internas na
escola. Crianças que se separam de suas famílias pela primeira vez e encontram-se ao lado de
“estranhos”, nesse encontro, cruzam suas culturas e vivências em um ambiente impessoal.
Além disso, não raro, a escola é composta por profissionais que, em determinadas
151
circunstâncias, mostram resistência em receber e compreender o novo, preferindo lidar com o
aluno ideal, e negar o real em sua frente.
O psicólogo seria um intermediário capaz de trazer para reflexão o que há de oculto
em meio às relações díspares e complexas na escola. Além de cultivar o elo entre escola e
família, devem atuar sem o receio de muitos gestores que se omitem em situações difíceis ou
de desconforto com alunos e seus familiares. A psicologia e psicanálise podem agir no seu
lugar de direito, no discurso, nas falas e nas relações que constituem as palavras, essas
merecedoras de análises e compreensão necessárias na relação com o outro, no âmbito
educacional.
Então, o discurso, as palavras e as falas – e não os comportamentos ou as sinapses -
- passam a ser alvo de análise desse sujeito, efeito das múltiplas relações sociais ou,
dito de outro modo, efeito do outro que o habita. Os discursos do sujeito, assim
como o discurso das instituições, tendem a produzir repetições, mesmices, pontos de
fixação, com o objetivo de conservar o igual, preservar a rotina e garantir sua
automatização. Porém o próprio discurso, através da fala de quem o profere, mostra-
se fendido, falhado, esburacado. Isso quer dizer que o próprio discurso não consegue
cristalizar-se. Ele requer sempre interpretação, pois guarda uma estrutura de
significação. É exatamente aí, nas emergências da falha do discurso que demandam
interpretação, que a meu ver a psicologia e a psicanálise podem encontrar seu lugar
(PEREIRA, 2010, p, 29).
O raciocínio de Pereira (2010) nos conduz à reflexão: se a escola é um lugar de fala e
discursos a todo instante, nada mais justo psicanálise ali estar como aliada em situações de
múltiplos conflitos tanto nas relações entre docentes e alunos quanto entre alunos e alunos. A
análise se materializa nos atos de fala e revela algo para além da rotina mecânica do ambiente
escolar, que encobre as falhas do discurso. “O trabalho da psicanálise é tentar ler, no sujeito,
um manuscrito estranho, desbotado, cheio de lacunas e comentários tendenciosos escrito não
com os significantes convencionais, mas com os que expressam o mais singular” (ibid., p,
29).
Vejamos situações cuja fala é redimensionada como uma falha de discurso capaz de
traduzir o efeito das múltiplas relações sociais e o que tem dentro dela, escamoteado por
repetições, pontos de fixação que camuflam uma significação por vezes preconceituosa,
racista e incômoda na relação com o outro.
152
EPISÓDIO 1: Uma escola pública em uma comunidade do Rio de Janeiro com cerca
de 250 alunos. O corpo docente é composto por duas professoras negras e as demais não
negras. Uma turma de primeiro ano do ensino fundamental, com 28 alunos, de idade entre
sete a oito anos, mista, multirracial e em sua maioria de meninas. A convivência parecia ser
tranquila. Não havíamos percebido, até então, diferenças entre as crianças que promovessem
desentendimentos, a não ser por disputa de lugares para sentar, ser o primeiro da fila ou
brincadeiras fora de hora em sala. Já era por volta do mês de maio e a turma aparentemente
formava laços fraternos e de companheirismo.
Em um momento de descontração, duas professoras conversavam na sala, enquanto as
crianças conversavam e brincavam umas com as outras em suas cadeiras. Havia sumido um
pertence de uma criança que começou a chorar na sala. A menina era negra com cabelos
crespos e estava sentada próxima a outra com semelhança nordestina de cor mais clara e
cabelos lisos. As professoras observaram e se aproximaram das meninas, quando a nordestina
gritou na sala entre as professoras para a menina que estava a chorar: “Ah para de chorar,
fecha essa sua boca preta e cala essa boca”. As professoras se entreolharam sem ação
nenhuma por alguns instantes, perplexas não sabiam o que falar ou fazer naquele momento
tão intenso e revelador.
A menina parou de chorar inesperadamente e a outra nos olhou sem receio de ter feito
algo errado, se calou e agiu normalmente como se não tivesse dito nada a sua colega de turma.
As professoras desconcertadas, depois de alguns instantes repreenderam a menina, mas sem
explicar a complexidade de sua fala. Aquele assunto não voltou mais à tona e a menina negra
desapareceu no enredo da história, não foi consolada, não conversaram com ela sobre o
ocorrido, não perguntaram como se sentia, não foi ouvida por ninguém.
COMENTÁRIO: A situação não foi questionada, nem problematizada, foi um “fato
apenas” que desapareceu no cenário daquela tarde. Assim como outros, abafados na escola,
que ecoam nos corredores e permanecem mascarados, seja na infância, adolescência ou na
fase adulta. A indiferença em relação a esse tipo de agressão gera adultos preconceituosos que
não refletem sobre suas ações e não ponderam seu discurso na relação com o outro. Outras
falhas virão e a consequência acaba sendo a transmissão desses matizes racistas para outros
membros da família e, assim, perpetua-se um ciclo discriminatório e desrespeitoso. “Fecha
153
essa sua boa preta”, parece ser uma falha na fala da aluna, mostra a indiferença que sente na
relação com a menina negra. O silêncio das professoras mostra o despreparo para a situação
que envolve as relações raciais.
Não reconhecer ou identificar o racismo na escola, contribui para a afirmação desse
fato como um problema específico dos alunos negros, e não como um problema
social que precisa ser derrotado por meio de práticas educativas direcionadas a
modificar esta mentalidade social e racial. Mais do que seguir práticas
discriminatórias, o que se verifica é uma insistente omissão da instituição escolar em
confrontar a questão (LAZZARINE, 2014, p. 45).
A partir disso, nos questionamos: - A escola se prepara para a resolução dessas
situações? Nos centros de estudos ou reuniões docentes, é debatida a temática das relações
raciais e sociais dentro da escola, em caso de conflitos entre os alunos? Seria o silêncio o
norteador mais propício nessa situação? E o aniquilamento do ocorrido entre todos os
envolvidos? Não seria esse o melhor momento para abordar esse problema e junto com as
crianças que vivenciaram a cena chegarem à conclusão do melhor desfecho para esse fato?
Quanto à psicanálise, provavelmente um profissional na escola poderia conduzir a
situação por outros caminhos, saindo da perplexidade e do silenciamento. Acredito que o
olhar para esse caso seria diferente. As professoras como intermediárias poderiam ter outra
conduta diante das crianças. Sabemos que as crianças nos surpreendem sempre, mas, como
profissionais é importante estarmos preparadas. O conhecimento da psicanálise pelo próprio
professor, na falta de um profissional específico, poderia auxiliar na compreensão da situação
delicada que se passou naquele momento, assim como outros que poderiam surgir.
EPISÓDIO 2: Era um Centro Integrado de Educação Pública (CIEP) situado na
Baixada Fluminense, uma turma de 35 alunos do sexto ano do ensino fundamental 2. O aluno
em questão estava na escola desde a educação infantil, era querido e conhecido por todos por
seu carisma e prestatividade. Há tempos sofria com xingamentos dos alunos mais velhos por
sua cor e forma física, um pouco acima do peso, mas, ele manteve o fato em segredo, talvez
por vergonha, ou por estar conseguindo lidar com a situação.
A diretora ficou sabendo das agressões ao menino bem mais tarde. Chamavam o
menino de “tolete” e ele estava muito constrangido com isso, pois o mal-estar já tinha
154
transpassado os muros da escola. A diretora questionou por que ele não procurou por ela ou
por um adulto antes para se queixar dos meninos que o xingavam, e ele nada respondeu.
Estava ali naquele momento, não sabíamos se ele já tinha falado com alguém e nada
foi feito. Naquele momento a diretora foi até a sala reuniu os meninos responsáveis pelo
constrangimento e brigou com eles. Disse que isso não era certo, perguntou por que eles
estavam tratando o menino assim, obrigou-os a pedir desculpas e os ameaçou: caso
acontecesse novamente, chamaria os pais na escola para resolver ou suspenderia os alunos.
O menino ficou em silêncio, assim como os meninos que o humilharam. Então, a
diretora liberou a todos para retornarem a suas salas. Nada mais foi falado, não conversaram
com o menino, nem perguntaram como estava se sentindo ou se mais tarde as coisas
melhoraram, apenas não tocaram no assunto.
No ano seguinte, todos se mantinham na escola e o caso parecia superado por todos.
Por volta do meio do ano, a mãe de uma menina negra, também aluna da escola, apareceu na
escola muito nervosa com a filha que estava com cara de choro. A menina estava no sétimo
ano, era o primeiro ano dela na escola. Passou por mim e outras pessoas que estavam no
corredor.
A diretora rapidamente recebeu as duas em sua sala, a diretora adjunta e a orientadora
educacional foram chamadas para a reunião, ficaram lá por um longo tempo, mandaram
chamar o menino que no ano anterior havia sofrido com xingamentos por alunos mais velhos
e a reunião se estendeu ainda mais.
Precisei voltar para minha sala, não observei o final da reunião e o desfecho dela. Uma
semana depois, em nosso conselho de classe soube que a mãe e a menina vieram pedir a
diretora a transferência da escola ou a resolução imediata daquele problema, pois sua filha não
queria frequentar mais a escola, já que estava muito constrangida. Estava sendo ridicularizada
na escola e na rua sendo chamada de “tolete e toletinho” onde ela estivesse, inclusive sendo
seguida até a sua casa por um menino que insistentemente permanecia com os xingamentos à
garota.
Não ficamos surpresos por esse fato, sabíamos que eram frequentes casos de racismo
naquela escola e nada era feito a respeito. Nossa surpresa foi descobrir as ações partiam do
menino que um ano e meio antes sofria com o mesmo xingamento.
155
O menino que conheceu de perto a dor do escárnio por sua cor, agora “revidava”
fazendo o mesmo com uma menina negra, que também não suportou o preconceito racial na
escola. Segundo a diretora, o menino foi duramente advertido, e lembrado que passou por
situação semelhante na frente da mãe e da menina. Como na situação anterior, o silêncio da
menina e do menino imperaram. A mãe saiu da escola com a certeza dada pela diretora que o
fato não iria se repetir, e as coisas voltaram ao “normal”.
COMENTÁRIO: Podemos observar o quanto o silêncio se torna comum nesse tipo
de situação. A gestão, os professores, os alunos se silenciam, como se esse fosse o remédio
para a resolução dos problemas raciais na escola, situação rotineira, parece não incomodar. “O
silêncio e a omissão sobre a questão étnica parecem apagar o problema. É como se a
discussão sobre ele fosse capaz de afetar a vida. E só existisse a partir do momento em que
dele se falasse” (CAVALLEIRO, 2000, p. 56).
Esse modo de agir incomoda e persiste nas escolas, deixando dúvidas nas crianças e
adolescentes que esbarram no silêncio. Os adultos não conseguem lidar com o problema e a
solução é ignorar, não dar margem para discussão e esclarecimento sobre o assunto, pois as
pessoas “pensam” que aquilo vai passar sem deixar sequelas psíquicas nos envolvidos.
O comportamento dos adultos em relação à criança que sofreu o traumatismo faz
parte do modo de ação de psíquica do trauma. Eles dão em geral, e num elevado
grau, prova de incompreensão aparente. A criança é punida, o que, entre outras
coisas, age também sobre a criança pela enorme injustiça que representa. A
expressão húngara que serve para as crianças, “katonadolog” (a sorte do soldado),
exige da criança um grau de heroísmo de que ela ainda não é capaz. Ou então os
adultos reagem com um silêncio de morte que torna a criança tão ignorante quanto
se lhe pede que seja (FERENCZI, 1934, p. 127. grifos meus).
O silêncio não acontece por acaso: é um elemento que fundamenta o trauma e torna
cúmplices aqueles em volta que não defendem a criança ou a manipulam mentindo para ela,
entoando pouca gravidade ao fato. Essa negligência consolida o trauma desestruturante na
criança. As consequências são o desprazer e a confusão psíquica que ficam na criança por não
encontrar explicação na situação.
156
A contribuição da psicanálise reitera a necessidade de analisar e apreender os
discursos não com julgamentos, mas na observação das lacunas das falas e até na ausência
delas. Pereira (2010) complementa: “A fenda do discurso não pode passar despercebida pelo
psicólogo orientado pela psicanálise (...). É visível como a escola precisa expiar sua falha,
individualizando uma conduta” (p. 30).
Em relação à situação da escola exige-se debate, intervenção e projeto de trabalho no
qual incluam os professores, a gestão, os alunos e a família. Não dá para ignorar o problema
com o silêncio apenas. Não basta reprimir severamente em um dia e esquecer o assunto no
outro. É preciso dar outro sentido, em palavras, para o racismo desmentido. Problematizar o
porquê de o aluno, após ser tratado de forma ofensiva, passa a tratar o outro com a mesma
violência, por exemplo, é uma das grandes questões que pode desmontar pensamentos e ações
arraigados em estereótipos e estigmas racistas.
EPISÓDIO 3: Ainda num CIEP na grande periferia do Rio de Janeiro, onde havia em
torno de 650 alunos. Uma diversidade incomensurável e nós, professores, muitas vezes sem
refletir em como podíamos melhorar a relação entre os alunos e amenizar as diferenças em
choque ali; algo que também nos desestabilizava quase que diariamente.
A diretora atua nessa escola há 27 anos, entrou como professora e foi galgando
diversos cargos até o posto atual. Ela é uma mulher negra muito bonita, solteira e dedicada ao
trabalho. A questão intrigante é o fato de não aceitar sua cor da pele, pois esconde-se na
aparência impecável que cultiva e na emblemática máscara da negra que se supera na
perfeição: precisa estar, continuamente, provando a todos que é a melhor em tudo.
Em sua equipe extraclasse (orientadores, coordenadores e secretaria), não admitia
negros, preferia pessoas de cor clara. Para estar ao seu lado na direção da escola como adjunta
tinha que ser loira (ela mesma dizia), na gestão em três mandatos já passaram três. Ela
costumava dizer que: “É bom ver e ouvir dizer que “no meio de tantas branquelas e loiras,
quem manda na verdade é uma preta”. Em outras situações, como reuniões ou momentos de
descontrações entre professores e equipe, ela dizia que a coordenadora e braço direito dela era
uma dama de companhia ao inverso, agora é a branquela que serve a negra (e sorria
orgulhosa).
157
Não achava aquelas “brincadeiras” de bom tom e comecei a interpretar aquilo de
outras maneiras, enquanto o restante do grupo reunido ria daquela fala, sem pensar a respeito,
aquilo me incomodava.
Lembro-me bem, em uma Páscoa, ela tinha o costume de pegar uma cesta, como as de
café da manhã, e colocava as lembrancinhas dos professores e ia de sala em sala nos dar um
mimo, no fim do dia. Certa vez, uma professora a comparou a uma camponesa com aquela
cesta andando pela escola. Foi um péssimo comentário: a diretora sentiu-se ofendida dizendo
que “nunca seria possível ela preta ser uma camponesa. E por acaso existiu alguma
camponesa negra” e demonstrou desconforto com a comparação.
Ela sempre se auto-afirmava acima de alguém, era uma exímia julgadora de valores,
inclusive aqueles fora do profissional e mais próximos à aparência e próximos ao senso
comum, como: “mulher gorda, porque não faz um regime”, “que ridícula, é tão velha para
usar o cabelo desse tamanho”, “quem precisa dela, tá se achando muito importante”, todos
esses comentários dirigidos às pessoas da comunidade escolar.
A maior parte do corpo docente da escola tinha histórias e desavenças pessoais com a
gestora. O desconforto era constante nas relações interpessoais, de modo geral, na escola.
Chegou ao ponto de parte do corpo docente refletir e decidir se continuaríamos compactuando
com as sandices da diretora ou se seguiríamos caminhos diferentes em outras escolas, a
procura de respeito.
COMENTÁRIO: Ética, respeito e práxis parecem perdidos ao longo dos anos e nas
passagens de cargo dessa profissional. Costumava olhar cada professora de cima a baixo
diariamente, reparando a vestimenta e a possível comparação ao look usado por ela. Teria que
se certificar que reinaria mais bem-vestida que os outros, além de fazer comentários absurdos
sobre as mães e até alunos. Com desprezo, colocava-se sempre acima de qualquer um, em
defesa de seu ego narcísico exagerado e desmedido.
Compreender o comportamento dessa gestora está longe de ser fácil. Ela parece sofrer
de algo do qual nem mesmo ela percebe. Mais uma vez, buscamos na psicanálise uma
maneira de rever a questão sob um prisma abrangente. A análise de suas falas revelam fendas
que deixam à mostra algo desregulado entre suas ações e subjetividade. Pereira (2010) nos
elucida o quanto se faz necessário pensar nas fendas discursivas, e nos atos da fala como
158
verdades sobrepostas. As intenções estranhas, entre outras situações incógnitas, cuja
fragilidade expõe as subjetividades como efeito de tais discursos.
De acordo com Gondar (2014, p. 01) os padecimentos mais frequentes na
contemporaneidade são os ligados à frágil composição do narcisismo, vindo de situações
“traumáticas primitivas”. Essa composição narcísica deficiente encadeia os “sofrimentos
narcísicos”:
Existe nesses sujeitos algum contorno, alguma unificação do corpo, mas essa
unificação não tem muita consistência; o contorno egóico é frágil e pode se
desvanecer com facilidade. É justamente essa inconsistência ou tendência ao
desvanecimento que está sendo apontada como característica do sofrimento
narcísico. (...) a esses sujeitos faltaria algo - um contorno, uma identidade, uma
unidade - e devido a isso eles padecem (GONDAR, ibid., p. 1).
Nessa perspectiva, observamos que o motivador do mau humor da diretora, pode vir
de um sofrimento narcísico, no qual ela precisaria de suporte subjetivo e emocional para
equilibrar suas relações interpessoais na escola e na vida. De fato, ela se queixava de não ter
amigos e que se sentia solitária. Quando não estava na escola, ligava para algumas pessoas de
sua equipe para conversar sobre trabalho e acabava por criticar quem ela podia. Assim era o
discurso de quem recebia seus telefonemas: diziam como era horrível ver a diretora
incomodá-los para falar mal de outros profissionais até fora da escola. Embora, a gestão das
escolas hoje seja eleita pela comunidade escolar, essa diretora vem de um tempo onde o cargo
era realizado por indicação de vereadores que detinham demarcações de escolas por bairros.
Cada bairro ou bairros era área de um vereador e ali certos sujeitos mandavam e
desmandavam, ajudando a perpetuar o racismo e outros derivados.
Os indícios do discurso são maiores se apontarmos para a aceitação de seu
pertencimento racial. Ser negra, nesse caso, pode revelar algumas situações traumáticas
antigas que deixaram marcas difíceis de esquecer, e que ainda são reproduzidas por seus atos
de agressividade e cobrança de si mesma para ser a melhor, ou ainda, atestam o enrijecimento
de sua personalidade indicando uma fragmentação derivada da clivagem.
A clivagem não incide sobre representações inconciliáveis com o eu, como o
recalque; ela age no plano do eu, conduzindo a sua fragmentação e até mesmo a
159
pulverização do eu. Como indica Ferenczi, há casos em que “a fragmentação” é a
única forma que o sujeito encontra de poder suportar uma dor impossível de ser
suportada, pois cada fragmento sofre por si mesmo; e a unificação insuportável de
todas as qualidades e quantidades de sofrimento são eliminadas (FERENCZI (1992,
p. 248) apud GONDAR, 2014, p. 2).
Isso explicaria o cerne da mudança de humor da gestora, que ora sorri e brinca
com uns e ora maltrata e ignora outros. O apoio de uma análise ou compreensão do problema
seria de muita valia para as relações na escola e consigo mesma. Esse caso poderia ter outro
final se a personagem aceitasse sua cor com orgulho e procurasse ajuda para livrar-se dos
fantasmas que carrega, devido às possíveis experiências traumáticas que possui.
EPISÓDIO 4: Em uma turma de segundo ano do fundamental um, havia duas alunas
em particular que dividiam muito a atenção da professora. Uma loira (única da sala) e outra
negra (como a grande maioria da turma, e da escola, composta por negros e pardos) num
contexto diverso.
O ponto central estava nas comparações e privações que ocorriam dentro da sala entre
as duas crianças em questão. A regra da turma seria que as crianças só podiam ir beber água
quando terminassem a primeira parte do exercício, isso deveria valer para todos da sala.
O problema surge quando a criança loira pedia para sair da sala, seja para ir o banheiro
ou beber água, ela não conhecia a palavra não, tinha acesso liberado. Enquanto, as outras
crianças conheciam bem a negação e, algumas nem tentavam, só pediam quando terminavam
o que foi determinado pela professora.
Entretanto, a menina negra sentia na pele a diferença de tratamento e predileção da
professora, pois, quando pedia para ir ao banheiro, a professora negava, mesmo se em seguida
a criança loira fosse, enquanto ela não. A situação piorava quando a professora dizia para a
menina negra assim: “Você já terminou seu dever? Claro que não né, você não é como ela (a
menina loira) e nunca vai ser. Você só vai poder sair se terminar tudo, entendeu? Não só
quando acabar a primeira parte como os outros”.
A professora enfatizava que a menina negra não era como a loira, contudo, não dizia à
menina negra em que sentido ela tinha que ser como a outra. Seja por causa da aparência, ou
160
pelo fato de fazer todo dever, as crianças sabiam que a menina loira podia sair mesmo quando
não terminava os exercícios.
A menina loira tinha acesso à mesa da professora por qualquer motivo, mexia em seu
estojo, em seus cabelos e parecia gostar do privilégio de estar ali quando desejasse. As demais
crianças mal podiam chegar à mesa: a professora perguntava o queriam e já os mandavam
sentar. Diferentemente da menina negra, quando solicitava a professora, ouvia assim: “O que
você quer? Desencosta logo da minha mesa, chega pra lá, você não sabe responder? Como, se
já te expliquei, se você fosse como ela, saberia”.
A professora auxiliava a menina loira nos exercícios com muita paciência, parecia
uma professora particular da menina. O restante da turma recebia uma explicação coletiva, ou
ela pedia a algum aluno que já havia terminado para auxiliar o outro com dificuldade. Via-se o
quanto aquilo era doloroso para a turma, embora, a menina negra parecesse ser a que mais
sentia a discriminação. Seu olhar denunciava o quanto se sentia inferior e confusa naquela
situação.
COMENTÁRIO: Como aprender algo se não desejava nem estar ali? Essa é questão
dominante nessa vinheta. A criança não consegue aprender porque ela não esquece os fatos
ruins que vive, infelizmente, decorrentes de sua cor. Quantas coisas as crianças apresentam
como lapsos como consequência do racismo?
Sim, são essas lembranças que futuramente estarão submersas no inconsciente dessa
criança. Provavelmente ela não se lembrará de forma tão dolorosa desses acontecimentos ou
essas lembranças vão doer tanto que, propositalmente, serão lembranças infantis encobertas
por outras mescladas ao sonho e em um nevoeiro sem alta definição, como um sensor de
autodefesa no inconsciente.
Para entendermos melhor, vejamos em Freud (1901) como se constituem as
lembranças infantis e as lembranças encobridoras na psique de um adulto em relação às suas
memórias de infância.
Vai igualmente contra todas as minhas experiências admitir que, nos acontecimentos
em que ela (a criança) é autora ou testemunha, a atenção da criança se dirija a si
mesma em lugar de se concentrar nas impressões vindas de fora. Isso tudo nos
161
obriga a admitir que tudo isso que encontramos nas assim chamadas recordações da
primeira infância não são apenas vestígios dos acontecimentos reais mas elaboração
posterior desses vestígios, que foi forçada a efetuar-se sob a influência de diversas
forças psíquicas que passaram a intervir a seguir. É desse modo que nossas
“recordações infantis” adquirem, em geral, a significação de “lembranças
encobridoras”, adquirindo semelhança digna de nota com as lembranças da infância
dos povos, preservadas nas lendas e nos mitos (FREUD, 1901, p. 56).
Essas lembranças, embora dolorosas fazem parte desse sujeito, o constituem como o
são. Escondidas ou encobertas por outras vivências, essas lembranças compõem a
subjetividade e as características de uma pessoa marcada, por exemplo, pelo racismo
estrutural ou institucional que ao longo de sua existência tem maltratado tantos sujeitos com
uma cruel frieza capaz de traumatizar.
As meninas dessa vinheta seguiram suas vidas, supostamente, uma com lembranças
doces de uma professora que a queria bem e a protegia e, a outra, ou as outras, com
lembranças que o tempo tratou de soterrar para não fazer sofrer.
E a professora como será que acabou para ela? Será que checou a consciência em sua
atitude preconceituosa com aquela turma e muitas outras? O que pensar de um profissional
que trata assim crianças que nem sequer sabem quem são e que ainda estão constituindo sua
subjetividade e seu modo de ver e entender o mundo que as cerca. Essas crianças se deparam
com uma realidade frustrante que paralisa e silencia diante do preconceito racial em uma
instituição escolar.
Que essa experiência sirva de exemplo para refletir como educadores, que tipo de
profissionais desejamos ser. E o quanto tendemos apenas a reproduzir as desigualdades que
vivenciamos como uma realidade única, nesse sistema hipócrita e tendencioso no qual
estamos cegos pelas aparências, segundo o impulso mórbido de expelir as diferenças como
um mal a ser banido de nosso meio.
O desencantamento no olhar de muitos alunos que sofrem com a discriminação nas
escolas - seja por sua cor, condição social ou gênero - é desencadeado nas condições
estruturais precárias e nas patologias de nossa Educação. Um dos fatores mais incisivos para
esse estado de coisas é o ambiente em que se estuda. Em Freire (2011, p. 68) podemos
entender a dimensão da importância da postura docente diante dos educandos: “Como
professor preciso me mover com clareza na minha prática. Preciso conhecer as diferentes
162
dimensões que caracterizam a essência da prática o que me pode tornar mais seguro no meu
próprio desempenho”.
Desse modo, chegamos à conclusão do óbvio, se fossemos educados para pensar
criticamente em nossas escolas de educação básica, buscaríamos com mais esperança novas
oportunidades. Vivemos conformados com o que o Estado nos oferece: somente migalhas. A
grande massa populacional mal sai da escola e assumem subempregos. A oferta é escassa e a
necessidade de um trabalho qualquer não deixa termos muitas escolhas. Uma educação de
qualidade com políticas públicas que garantissem uma boa formação e o acesso garantido a
todos os níveis de formação, ainda é um sonho. O que vemos é uma luta ideológica para
desmantelar a educação, com parlamentares defendendo o fim da Universidade Pública, do
investimento em pesquisa, buscando privatizar e pré-formatar toda a educação, de modo a
impedir do avanço da massa à condição de criticidade. O Brasil, de fato, nunca foi um país
voltado ao bem comum. A educação por aqui nunca foi universal. Lidamos com a pobreza e
vulnerabilidade de nossos alunos, com a evasão, com o trabalho precoce e a alienação política
e econômica.
A percepção que o aluno tem de mim não resulta exclusivamente de como atuo, mas
também de como o aluno entende como atuo. (...) Mas, devo estar atento à leitura
que fazem de minha atividade com eles. Precisamos aprender a compreender a
significação de um silêncio, ou de um sorriso ou de uma retirada da sala. O tom
menos cortês com que foi feita uma pergunta. Afinal, o espaço pedagógico é um
texto a ser constantemente “lido”, “interpretado”, “escrito” e “reescrito”. Nesse
sentido, quanto mais solidariedade exista entre o educador e educandos no “trato”
deste espaço, tanto mais possibilidades de aprendizagem democrática se abrem na
escola (FREIRE, 2011, p. 95).
Cada dia mais crianças e adolescentes levam seus anseios para a escola. Não existe
manual para educá-los ou e uma receita pronta. Entretanto, o papel do educador é crucial para
um ensino de qualidade e com equidade, especialmente quando se trata de atributos que
estabeleçam uma Educação cidadã. Não se faz isso sem formação humana.
A complexidade trazida pelos desafios de nosso tempo, nos mostra como é necessário
aprender os predicados invisíveis e visíveis que nos tornam mais preparados para nossa vida e
aqueles em nossa volta. É extremamente importante aprender o que é preciso saber, mas é
fundamental aprender o que é preciso.
163
EPISÓDIO 5: Em uma escola municipal de educação infantil em um bairro da zona
norte do Rio de Janeiro, as turmas eram compostas por 25 crianças, uma professora de
educação infantil e uma auxiliar de creche que servia de apoio aos cuidados das crianças
pequenas, em seu asseio e higiene.
O corpo docente era relativamente pequeno em relação ao composto de auxiliares. As
divergências se iniciavam pela desproporção entre professores e auxiliares e, principalmente,
pelas diferenças salariais que mantinham tais classes em constantes conflitos interpessoais.
Em uma das equipes, a professora da turma era negra e sua auxiliar uma mulher clara
e bem articulada. Do corpo docente, essa era a única negra. Para as crianças não havia
diferença de tratamento, ambas profissionais eram bem requisitadas pelos educandos sem
nenhum problema.
A situação mudava em relação aos pais das crianças, e até em relação aos demais
profissionais da instituição, que não reconheciam a professora como necessariamente
responsável pela turma. Como as crianças tinham entre três e quatro anos e demandavam
muitos cuidados, era muito comum a comunicação diária com os pais que tinham
recomendações a respeito dos filhos que passavam o dia inteiro na escola.
A questão surge a partir do momento em que os responsáveis pelas crianças não
procuravam a professora para falar sobre seus filhos. A procura na hora da entrada ou saída
era pela auxiliar que, nesse jogo, percebia o quanto os pais a requisitavam em detrimento da
professora da turma. A professora usava de toda sua educação e atenção aos pais, a auxiliar se
aproximava da conversa que observava e, automaticamente, a mãe da criança se direcionava à
auxiliar desprezando a presença da professora que se esforçava para manter-se no diálogo, em
vão.
Os pais não reconheciam a professora em seu papel e demonstravam falta de confiança
e indiferença na constituição da relação entre escola e família. Foi um período angustiante
para a docente que se sentia como coadjuvante nessa trama. Ela confidenciava conosco
(professores mais próximos a ela) suas preocupações, aborrecimentos nessa situação e
frustrações, dizia sentir-se impotente. A auxiliar de creche seguia com a mesma postura, e
mantinha-se à frente no pedagógico, tinha iniciativas que ultrapassavam o planejado feito pela
professora nas aulas e não mostrava interesse em trocar ideias e somar, ou seja, dialogar,
164
planejar juntas e serem parceiras; quando convidada a participar, se negava. Parecia preferir
ser o fator surpresa das aulas para os pais e alunos.
COMENTÁRIO: O que acontecia ali, era a existência de um papel social pré-
determinado para aquela professora. Sua cor a deixava em um lugar preestabelecido no qual
sua posição não era de destaque, mas, de subordinação a alguém. A branquitude se
fundamenta nesse princípio da aparência da cor, que lhe abre portas invisíveis capazes de, sem
esforço, dar acesso a condições favoráveis nas relações.
Para entendermos ainda melhor o conceito de branquitude, vejamos as considerações
em Liv Sovik (2009):
A branquitude é atributo de quem ocupa um lugar social no alto da pirâmide, é uma
prática social e o exercício de uma função que reforça e reproduz instituições, é um
lugar de fala para o qual uma certa aparência é condição suficiente. A branquitude
mantém uma relação complexa com a cor da pele, formato do nariz e tipo de cabelo.
Complexa porque ser mais ou menos branco não depende simplesmente da genética,
mas do estatuto social. (...) a branquitude é um ideal estético herdado do passado e
faz parte do teatro de fantasias da cultura do entretenimento (SOVIK, 2009, p. 50).
O lugar da subserviência, do negro subalternizado em afazeres e trabalhos, mantém a
cegueira que podemos observar nas pessoas envolvidas no caso descrito acima. As pessoas
não veem na professora a competência de ser o que é. Com formação adequada para o cargo,
sua capacidade de realizar bem seu trabalho não é considerada, pois ela é vista apenas pela
cor e os atributos estereotipados nela.
Trata-se de atributos massificados pelos meios de comunicação e pelo senso comum,
que reproduzem duramente a discriminação racial nos meios sociais. O valor da branquitude
se realiza na hierarquia e na desvalorização do negro, até mesmo quando “raça” não é
mencionada (SOVIK, 2009).
São esses papéis determinados, esses lugares existentes para o negro que o
aprisionam. A atitude para mudança tem que partir de nós, pessoas negras que não podem
mais aceitar com resignação o que está sendo imposto. A postura, a palavra tem que ser outra,
de empoderamento, alteridade e luta, sempre na luta.
165
À professora em questão, faltou atitude. Não podemos nos permitir passar por isso em
silêncio. A luta é contra esse silêncio. O discurso não precisa ser apenas em defesa de si, mas,
em obstinação contra os abusos de uma branquitude que se silencia em beneficio próprio.
Ter sido testemunha ou protagonista dessas vinhetas me fez ser o que sou e pensar
como penso. Não possuo profundo conhecimento da psicanálise para servir como base de
minhas ações, mas, posso refletir sobre esses acontecimentos antes e depois do contado. As
mudanças na percepção dos fatos, o ato da escuta em cada situação problematizada e,
principalmente, perceber as fendas que denunciam algo fora do lugar, que está desconcertante
em ambos os lados e incomoda, foi a coisa mais importante nesta pesquisa.
Entendemos o quanto, na contemporaneidade, problemas como os sofrimentos
narcísicos estão cada vez mais crescentes. Eles desencadeiam manifestações de
enclausuramento ou tendências coletivas em busca de “organicidade” dos que pensam ser a
causa de suas neuroses modernas, o fenômeno denominado por Freud de “narcisismo das
pequenas diferenças”.
A mídia divulga manifestações, em países como os Estados Unidos, do ressurgimento
de movimentos defensores da segregação racial, à custa de um contínuo genocídio da
população negra e do retorno ao apartheid declarado e autenticado na busca de legitimação
através de movimentos reacionários.
Movimentos como Alt-right48
, defensores da extrema direita, vêm se expandindo na
América do Norte e Europa; eles se articulam, sobretudo pela internet, não sendo necessária a
filiação formal. Agem através da provocação e debocham do “politicamente correto”, além de
seguirem o atual presidente americano Donald Trump, conhecido por sua posição de extrema
direita, em que abomina imigrantes, negros, pobres e a comunidade de lésbicas, gays,
bissexuais e transexuais (LGBT), ou seja, tudo que para ele reflita como ameaça ou
incomodo, estranheza ou o mais puro racismo.
48 Informações retiradas do site da BBC, em uma matéria do dia 23 de agosto de 2017, na qual reporta
as manifestações em Charlottesville. Onde ocorreram ataques de grupos de extrema direita ao movimento
antirracista m manifestação pública no bairro universitário onde pretendiam defender a retirada do campus
universitário de uma estátua de um general pró-escravidão que lutou na Guerra civil americana. A reportagem
faz um lumping pelos movimentos americanos que defendem a supremacia branca nos Estados Unidos e sua
expansão pelas redes sociais na atualidade, como um movimento assustadoramente em ascensão. Disponível em:
http://www.bbc.com/portuguese/internacional-40916727. Acesso em 25 de abril de 2018.
166
O Ku Kux Klan49
é outro movimento perverso que ainda predomina em 32 dos 50
países americanos e continua com um crescente número de adeptos. Surgiu nos Estados
Unidos ao final da guerra da Secessão (1861-65). Esse movimento foi instaurado por um
grupo de conservadores do Sul dos Estados Unidos revoltados pela derrota da guerra e o fim
da segregação entre negros e brancos no país, por defenderem veementemente a escravidão.
Agem como grupos paramilitares e lutam para negar os direitos civis a todos que sejam
considerados diferentes deles.
E, surpreendentemente, ainda podemos ver a proliferação desmedida do movimento
neonazista. Seus participantes se autodeclaram de extrema direita, eles se sentem seguros por
se apoiarem na Primeira Emenda da Constituição americana de 179150
na qual tem garantia à
liberdade de expressão política através de não importa qual discurso: seja liberal,
conservador, comunista ou até mesmo nazista, direito este amparados por resoluções judiciais
da Corte americana.
Partidos nazistas americanos se expandem nos Estados Unidos e unem forças com
seus milhares de adeptos fortalecendo o grupo na defesa de seus egos inflados e cheios de
insegurança, pois realmente acreditam ser dignos de tudo, enquanto para os demais, todas as
outras pessoas consideradas diferentes, ficam de fora, sem direito algum, a não ser servir e ser
exploradas, ou mesmo descartadas e assassinadas pelo aparelho de Estado.
Mais uma vez nos deparamos com a “branquitude” tentando de todas as maneiras
manter seus privilégios e o direito de serem “brancos” e livres, distantes em todos os sentidos,
dos seres de cor. Acreditam estarem certos e possuírem a “verdade absoluta”, defendendo sua
autoproclamada “superioridade” ao ponto de se sentirem invadidos em seu íntimo pela
presença de negros, indígenas, judeus, gays entre outros “indesejados” que possam aparecer
em seus “territórios”, de modo geral.
49 Conforme nota 48.
50 Primeira Emenda Da Constituição Americana - “O Congresso não legislará no sentido de
estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de
imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a reparação de
seus agravos.”. Disponível em: www.uel.br/pessoal/jneto/gradua/.../ConstituicaoEUARecDidaPESSOALJNETO.
Acesso em junho de 2018.
167
De acordo com o documentário Eu não sou seu negro51
que retrata a vida e a obra de
James Baldwin (2017), compreendemos como o direito de igualdade foi sendo conquistado
através de muita luta e ainda é, embora saibamos que esse direito não foi plenamente
conquistado. Isso constitui a maior vergonha da América em seu histórico escravagista: a
negação dos direitos civis às comunidades negras.
No Brasil os negros não foram integrados à sociedade após a escravidão, e isso gerou
uma exclusão constitutiva do capitalismo colonial, sendo perpetuada de geração em geração
até os dias de hoje. O documentário de Baldwin traz à tona toda a truculência de uma história
inacabada, com vontade de retornar e manter a desigualdade, quando observamos o avanço
desses movimentos pró-segregacionistas. Em termos globais, trata-se do retorno do racismo
recalcado que se repete compulsivamente num âmbito político e econômico de dimensões
planetárias (ARREGUY et al., 2018).
A realidade atemporal mostrada no documentário remonta à dor em nossas memórias
não esquecidas com o tempo. Em uma dissimulada democracia que tenta legalmente uma
possível, mas longínqua aceitação, negros e negras continuam morrendo e sabemos que
nossos algozes só descansam quando o combate se encerra com nosso decesso. Baldwin
(2017) também sabia disso, porém, como ele próprio dizia e, a partir dele, também defendo
esse pensamento e digo: “Não posso ser pessimista, porque estou vivo. Sou obrigado a ser
otimista”.
Embora, saibamos quão difícil tem sido viver em uma sociedade capitalista e desigual
ao extremo, observamos que o avanço de nossas perspectivas para uma melhora tem nos feito
agarrar a mais tênue linha da utopia e esperança na humanidade. Em MV Bill (et al., 2005)
temos uma passagem que reforça essa necessidade: “Utopias são tipos ideais regulatórios,
irreais, inexistentes, porém úteis como bússolas, que nos ajudam a descobrir para onde
apontar nossos desejos” (p. 85).
Temos em James Baldwin e em tantos outros militantes e intelectuais negros
comprometidos com a abominação desastrosa do racismo e da injustiça mundial, o ânimo que
51 Magistral documentário Eu não sou seu negro (2017), retrata a vida e obra de James Baldwin,
reconhecido romancista, ensaísta, dramaturgo e militante negro e sua obra inacabada o livro: Remember This
House, no qual relata a vida e a morte de três amigos de Baldwin: Medgar Evers, Malcon X e Martin Luther
King, realizado pelo diretor Raoul Peck lançado em 2017. Disponível em: https://youtu.be/Nt1qqzVhhBM.
Acesso em 23 de agosto de 2017.
168
nos faz buscar forças para continuar na luta do povo negro em novos movimentos sociais
contemporâneos. Complemento o raciocínio seguido de nota:
Se para mim, a um certo momento colocou-se a necessidade de ser efetivamente
solidário com um determinado passado, fi-lo na medida em que me comprometi
comigo mesmo e o meu próximo em um combate com todo o meu ser, com toda a
minha força, para que nunca mais existam povos oprimidos na terra. (...) A desgraça
e a desumanidade do branco consistem em ter matado o homem em algum lugar.
Consiste, ainda hoje, em organizar racionalmente essa desumanização. Mas, eu,
homem de cor, na medida em que me é possível existir absolutamente, não tenho o
direito de me enquadrar em um mundo de reparações retroativas. Eu, homem de cor,
só quero uma coisa: Que jamais o instrumento domine o homem. Que cesse para
sempre a servidão do homem pelo homem. Ou seja, de mim por um outro. Que me
seja permitido descobrir e querer bem ao homem, onde quer que ele se encontre. O
preto não é. Não mais que o branco. Todos os dois têm de se afastar das vozes
desumanas de seus ancestrais respectivos, a fim de que nasça uma autêntica
comunicação (FANON, 1983, p. 186-189).
E, então, vemos o quanto o desejo de aniquilar esse mal interposto pelo sistema
capitalista, tão massacrante e indigesto entre nós, foi ganhando força. Embora não tenha tanta
visibilidade midiática e aceitação pela branquitude, a constituição de novos movimentos
comprometidos com os ideais como já pregados por Fanon, Aimé Cesaire Baldwin, Steve
Biko, Luther King, Malcon X, Angela Davis, Abdias Nascimento, Mbembe, entre tantos
outros, se unem a uma juventude capaz de mostrar o quanto estão dispostos a lutar pelo fim
do racismo e do apartheid irracional.
Por sua vez, no sentido de compreender essa renovação da luta antirracista, veremos
como exemplificação o movimento norte-americano Black Lives Matter52
(As vidas dos
negros importam), fundado em 2013 durante um protesto contra a soltura de um vigilante
(branco) de bairro que assassinou um jovem negro de 17 anos nos Estados Unidos.
Desde então, o movimento cresceu e seus ativistas buscam manter o movimento vivo,
convocando manifestações em todo o país. O grupo se declara como movimento negro de
esquerda, fundado por três ativistas sindicais negras, Alicia Garza (diretora da Aliança
Nacional de Trabalhadoras Domésticas), Patrisse Cullors (diretora da Coligação contra a
52 Para maiores informações sobre o movimento negro Black Lives Matter acessar:
https://www.geledes.org.br/o-movimento-black-lives-matter-organiza-se-e-procura-definir-se-politicamente/.
Acesso em 26 de maio de 2018.
169
Violência Policial em Los Angeles) e Opal Tometti (ativista pelos direitos dos imigrantes),
que com muita garra e obstinação lutam contra injustiças raciais e de gênero.
As reivindicações vão além da denúncia contra a repressão policial a negros, mas
também, pelas modificações do modo de vida da população negra e contra a privação dessa
parcela da sociedade que ainda tem negadas as condições básicas para sua sobrevivência e
dignidade. Assim, o movimento avança e continua lançando campanhas de combate às
injustiças raciais.
Seu alcance vai além do território norte-americano, devido à ampla divulgação e
aderência através das redes sociais, tornando o movimento acessível e possível de acordo com
as disposições internacionais, principalmente nas mídias alternativas. O objetivo central é a
defesa da vida dos negros em seu mais amplo aspecto. É pelo fim da banalização do genocídio
do povo negro e a confirmação de que tudo isso ainda acontece com legitimação da violência
de Estado.
O movimento é dirigido por pessoas que conhecem a história do movimento negro
americano e internacional. Estão preparadas com teoria e prática para lidar com autoridades
que manifestam injustiças contra negros e pessoas em situação de vulnerabilidade. As
fundadoras estão especialmente engajadas em multiplicar seus saberes e envolver mais
pessoas nessa causa dando visibilidade e alertando o valor da vida da população negra.
No Brasil, o movimento negro tem uma trajetória aliada à influência do movimento
negro dos Estados Unidos com um intenso histórico de lutas e conquistas. A resistência contra
o racismo esteve sempre presente e as articulações contra a enraizada desigualdade racial
contou com expoentes desde a colonização.
A diferença brasileira é o fato de que o Estado desvia as questões raciais para as
sociais, em uma tentativa de inibir uma discussão mais profunda. Falar de racismo brasileiro
incomoda e transforma quem fala em insolente. A intenção seria mascarar e camuflar ao
máximo essa ideia, e, para isso, a grande mídia lobbista é um trunfo poderoso usado pelo
Estado brasileiro.
Até hoje, o Brasil fala sem pudor das diferenças abissais entre classes. São
constantes as denúncias relativas às desigualdades socioeconômicas, ainda que não
se faça nada a respeito. A mídia as acolhe sem maiores problemas. Mas ai de quem
ousar mencionar a cor da desigualdade. A cor é o não dito, tanto quanto o gênero
havia sido durante séculos. “Nós não somos como os Estados Unidos”, dizem os que
reagem às tentativas de colocar as cartas da cor na mesa. Denunciar o racismo é
170
quase ser antibrasileiro, é quase impatriótico. Há, sim, racismo, admitem, mas é
diferente, completam, o que exige políticas também diferentes, concluem. (...) Como
não haveríamos de ser diferentes, ainda que o argumento da diferença não falha em
outros campos, como o econômico? (...) dessa diferença parecem dizer que se
caracteriza pela docilidade, pela moderação. Ou seja, teríamos uma espécie de
racismo doce, cordial (ATHAYDE, [et al.], 2005, p. 87).
A interferência do Estado instaurou um sistema paternalista tão degradante na
sociedade brasileira capaz de refletir esse sentimento a respeito do negro: a cordialidade e a
resiliência em relação aos maus-tratos raciais sofridos em seu cotidiano por séculos (vide
PEREIRA, 2018). Essa é mais uma tentativa de “domesticação” da população negra no amplo
contexto da sociedade brasileira.
Entretanto, como mencionei anteriormente, as resistências dos movimentos sociais
ultrapassaram barreiras e despertaram gigantes no século 20, como Abdias Nascimento e
Florestan Fernandes, entre outros militantes que reconfiguraram a posição do negro brasileiro.
Nas palavras de Nascimento:
Não percebem que os negros brasileiros não necessitam de permissão dos brancos
para exercer seu inalienável e intransferível direito e obrigação não só de protestar,
mas de lutar contra todas as formas e disfarces do racismo, sinônimo de exploração,
opressão e desumanização (NASCIMENTO, 2016, p. 151).
A preocupação de cada dirigente de movimentos negros não era de agir somente, mas
a de “formar uma consciência negra” (PEREIRA, 2013). Utilizar a teoria com referências
africanas, americanas e até latinas, permitiu um empoderamento coletivo que atualmente
germina e se multiplica em nosso país. Intelectuais e militantes não se calaram desde então.
Enfrentam a invisibilidade que tem sido superada pelas redes sociais e os contatos em rede
que se multiplicam velozmente.
Hoje podemos ver grupos de mulheres e homens cada vez mais atentos às discussões e
organização de encontros, rodas de conversa e debates acerca das questões raciais,
problematizando situações cotidianas, que se tornaram cansativas demais para carregarem
sozinhos. A intencionalidade não é somente desabafar, mas encontrar meios para mudança,
digo, transformação de uma realidade que embora pareça translúcida, esconde a ponta afiada
da dor do preconceito e da segregação mascarada.
171
Essa pesquisa é uma dessas ramificações do movimento em busca por mudanças. A
determinação e o desejo de discorrer sobre a realidade de um racismo desmentido e
camuflado nas escolas e na vida de crianças e professores na atualidade é uma forma de
resistência. Não há espaço para o silêncio. Não mais. Esse é um espaço de luta. E luta
compartilhada para promover a transformação.
172
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nós lutamos por integração ou separação. Lutamos para sermos reconhecidos como seres
humanos. Malcom X (1925-1965).
A presente pesquisa discutiu as diversas maneiras da caracterização do racismo,
especialmente o brasileiro, cuja aparência, mutável e polivalente, possibilita-o ser único. O
contexto social do racismo foi analisado em uma variedade de aspectos, com o foco
especialmente no ambiente educacional.
O objetivo não foi de generalizar resultados, pelo próprio caráter específico do estudo,
mas, procurar identificar componentes e impactos do racismo brasileiro no âmbito da
educação de modo a confrontar tanto o contexto da formação docente quanto o cotidiano dos
educandos que sofrem algum tipo de preconceito ou discriminação racial nas escolas.
Especificamente, nosso trabalho se deu sob a perspectiva psicanalista e buscou modos
de compreensão do racismo a partir desse olhar. A psicanálise possibilitou um novo
significado ao racismo a partir da noção de “desmentido”, modificando a maneira de
entendimento e o modo como se constitui a dor sentida na discriminação racial. Dor tão aguda
que nos transforma, silencia e trava nossas reações.
A psicanálise nos ajudou a enxergar como as vicissitudes do cotidiano nos fazem
estigmatizar pessoas, situações e lugares. Conceitos como: narcisismo das pequenas
diferenças, ideal do ego e super ego, teoria do Desmentido, o estranhamento familiar e
alteridade, focalizaram o racismo sob outro ângulo, mostrando um mecanismo perverso e
seguro da destruição da subjetividade humana e das consequências traumáticas que dilaceram
o sujeito, deformam a imagem e a percepção da realidade.
Para entender o racismo referendamos muitos autores da psicanálise que atravessaram
os estudos sobre esse tema. Esses teóricos foram fundamentais para chegarmos a percepção
do racismo na cultura brasileira e percebe-lo através do paradoxo das especificidades do
desmentido: ao mesmo tempo que entendido como algo institucionalizado, o racismo
permanece em um grau como não reconhecido, considerado um assunto a não ser abordado
ou inexistente. Criando verdadeiras barreiras que a psicanalise durante a pesquisa nos ajudou
a transpor.
173
Falamos aqui de muros, ora invisíveis, mas presentes no cotidiano, ora sólidos como
barreiras aparentemente intransponíveis para a população negra e pobre. Vivemos sob a égide
do muro do racismo clivado e mascarado em nosso país, e nesse muro também nos
escondemos de quem somos por não reconhecer o valor de nossa cor. Observamos como
vivemos à sombra do muro, por ainda sermos separados como negros e brancos, pobres e
ricos. Assim como mencionam Athayde et al,. (2005, p. 85):
Eis o muro, antes casmurro e sintoma da incomunicabilidade étnica, agora
convertido como peça decorativa. Teríamos estilizado o silêncio. Estetizado o
deserto. Funcionalizado o obstáculo. Esterilizado a tragédia. Não é esse o destino de
tantas ideias incomodas? Cuidado, portanto. Conservemos o muro, muro, seja para
extrair-lhe as consequências e compreender-lhe as causas, seja para que não
percamos de vista a urgência de derrubá-lo. (...) O muro é estranho como são entre si
estranhos os que ele separa com sua soberba.
Os muros precisam ser derrubados como sugere a nota acima. Nosso objetivo nessa
pesquisa foi tentar encontrar caminhos que nos auxiliem a derrubá-lo. A psicanálise é
importante nesse processo de mudança da condição da população brasileira, que vai do “gozo
ao sofrimento associado à submissão”, embora ainda seja usado o preconceito para diferenciar
os estereótipos da mulher, do negro e do índio (SOVIK, 2009).
Nossa condição de educadores e pesquisadores se constitui no esforço para “derrubar o
muro” e com isso produzir a desalienação. Sabemos o quanto esse processo vai além do
respeito e da valorização adquirida pelo branco durante a convivência com o negro. Vimos em
Fanon (1983) que: “só há uma solução, a luta, a luta”. Essa luta vamos empreender e
conduzir, “não após uma análise marxista ou idealista mas porque, simplesmente, ele só
poderá conceber a sua existência através de um combate contra a exploração, a miséria e a
fome” (p. 183, grifos meus).
Fanon ressalta o motivo concreto que nos leva a luta. Ele toca na ferida e retrata o que
o estado e a sociedade reservaram para a população negra mal alfabetizada, discriminada e
afastada pela favelização, destino ao qual foi endereçada na organização territorial das novas e
grandes cidades.
Por esse motivo toda forma de luta individual e coletiva compensa. O processo de
conscientização de si impacta os outros, seja nas ações ou na postura, quando nos colocamos a
174
favor da equidade. Isso se constitui em força e autoestima, empoderamento e conhecimento
que podem ser passados para os outros. Mas, para contestar, é preciso primeiramente
conhecer.
Esse também se constitui um dos objetivos dessa pesquisa, buscar meios de
reconhecer o estado de alienação em que muitas vezes nos encontramos inconscientemente. E
a partir da compreensão desse estado alienante, encontrar elementos que deem base para
nossa libertação. Em nosso caso, acreditamos que a psicanálise nos fornece um elo para
fundar nossa percepção da realidade e, portanto, que nos auxilie na mudança.
A alienação intelectual é uma criação da sociedade burguesa. Considero sociedade
burguesa aquela que se esclerosa em formas determinadas, proibindo qualquer
evolução, qualquer descoberta. Considero sociedade burguesa aquela enclausurada
onde não é bom viver, onde o ar é pútrido, as ideias e as pessoas em putrefação. E
creio que um homem que se posiciona contra essa morte, é de certo modo,
revolucionário (FANON, 1983, p.184).
O estado de alienação nos foi imposto desde a colonização. Por isso, a necessidade de
lutarmos contra ela precisa estar viva e presente nos momentos em que expandimos o
aprendizado de nossa história para contagiarmos outros e continuar na luta. A recusa da
privação intelectual, social e econômica faz parte do processo desalienatório de nossa maneira
de viver frente ao racismo.
Privavam-me da objetividade científica pois o alienado, o neurótico era meu irmão,
era minha irmã, era meu pai. Sempre tentei revelar ao Negro que, de certo modo, ele
se anormaliza; ao Branco, que ele é, ao mesmo tempo, mistificador e mistificado
(ibid., 1983, p. 184).
Desse modo, observamos o paradoxo vivido pela população negra, que ora não
reconhece a si e sua história e conquistas, e em outro momento, vai buscar adquirir
autoconhecimento de seu corpo e sua cor. Assim como é necessário ao negro se reconhecer
como sujeito de direitos como qualquer um. Tenho como pessoa humana o direito de conhecer
minha ancestralidade, e descobrir o outro lado da história, não só o lado eurocentrado que me
é oferecido. Para tanto, preciso ter acesso às minhas raízes, minha origem e formação como
pessoa.
175
Esse direito me foi desconsiderado e retirado quando colonizaram minha vivência pela
cor. Não viram em mim qualidades ou características psicossociais ou minha emocionalidade,
viram somente minha negritude. A mesma inventada pelo branco europeu que criou o negro e
o africano enquanto sujeito escravizado.
Consequentemente, muito nos foi negado, ao longo de séculos. Sobretudo não
podemos nos acomodar em permanecer nessa situação. Por isso, o primeiro passo foi dado:
estar aqui já é o começo. Ameaçar o reinado eurocêntrico a tanto petrificado no ócio da
sabedoria canonizada branca é um ato subversivo e precioso.
Uma vez mais, Fanon (1983) nos faz lembrar das premissas que constituem nossa luta
pela conquista pela dignidade negra, que vão além da dicotomia imposta pela branquitude.
Para nós, negros, a luta contra o racismo transpõe o que alguns podem rotular como vingança
aos brancos. O racismo nos toca não na cor, mas, na condição de seres humanos e toda sua
significação inconsciente que nos faz ter a necessidade de conviver com o outro para crescer.
Descubro-me no mundo e me reconheço com um único direito: aquele de exigir do
outro um comportamento humano. Um único dever. Aquele de nunca renegar minha
liberdade através de minhas escolhas. (...) Não há mundo branco. Não há ética
branca, nem tampouco inteligência branca. Devo me lembrar, a cada instante, que o
verdadeiro salto consiste em introduzir à criação na existência. No mundo para o
qual me encaminho eu me renovo continuamente. Sou Solidário do Ser na medida
em que o ultrapasso (FANON, 1983, p. 187-188).
Quando nos despertamos para nossa cor e toda bravura e resistência contida nela, o
orgulho renasce e preenche o vazio da falsa noção de inferioridade ou superioridade.
Queremos ser e permanecer acima de tais estereótipos e mitos que circundam nossa existência
como uma doença vil e pegajosa.
Desejamos o fim desse muro entre a ideia equivocada de raça. Nossa proposta é a
atitude para mudança, social, racial, política e em diferentes ambientes, sejam eles: na
educação em geral, no interior das escolas, na relação entre alunos e professores, na saúde na
relação médico-paciente. Especificamente, contra a violência obstétrica e na falta de atenção
ao paciente que traz consigo uma medicina alternativa de seus ancestrais e é ridicularizado ou
ignorado pelos médicos, em um racismo institucional. Na segurança pública quando agem
com truculência contra negros e pardos nas “batidas” policiais, livrando a cara de brancos
176
com boa aparência, que possuem influência e usam a frase feita: Sabe com quem você está
falando?
E, finalmente, na política, quando silenciam aqueles dispostos em fazer a equidade e
acabam por impedir a eliminação da injustiça racial e social. Como no caso da vereadora
Marielle de Franco e seu motorista53
, covardemente assassinados em pleno centro do Rio de
Janeiro, “cidade maravilhosa”, em meio aos seus compromissos com a população que nela
acreditava, na defesa dos direitos humanos, sobretudo de negros, pobres, jovens. Até o
presente momento (quase dois meses após o homicídio) não encontraram o autor ou mandante
do crime. É sobre a “atitude” contra a morbidez de nossa cidade que estamos discorrendo este
trabalho. Atitude usada por Mv Bill (ATHAYDE et al., 2005, p. 84), homem periférico, que na
pobreza se formou e com atitude vinda do hip hop hoje exalta: Atitude é o avesso da
violência. Mesmo sendo mais abrangente que a linguagem verbal, incorporando as
modulações da coreografia e do grafismo criativo, a atitude cultua a oratória pública e a
riqueza lexical das rimas pontuada pelo ritmo.
Virgínia Bicudo (1945), em sua pesquisa visionária ainda no século XX, também
exaltou a palavra atitude como um dos expoentes de seu trabalho.
A atitude é um elemento da personalidade adequado para o estudo de relações
raciais. Sendo atitude determinada pela natureza original do homem e pelas
condições sociais em que vive, é necessário distinguir entre atitudes individuais e
atitudes sociais. (...) As atitudes, representam os aspectos estáveis e organizados da
personalidade e tendem a persistir enquanto funcionar bem e permitir a conduta para
proceder de um modo satisfatório. Evidencia-se a profunda significação das atitudes
no processo de interação social. Não menos significativo é o estudo das atitudes
sociais para a investigação de mudança social. Consoante as observações de Park
(1931, p. 17), as mudanças sociais começam com as mudanças nas atitudes
condicionadas pelos indivíduos, operando-se posteriormente mudanças nas
instituições (BICUDO, 1945, p. 63-64).
Por nossa vez, como norma para confrontar os desafios implícitos nas situações
descritas nas páginas precedentes, evocamos a “atitude” como chave mestra para a
53 Sobre o caso do assassinato da vereadora Marielle de Franco e o seu motorista Anderson no Rio de
Janeiro, ver nota de imprensa disponível em: http://www.jb.com.br/rio/noticias/2018/03/15/policia-suspeita-que-
vereadora-marielle-franco-do-psol-tenha-sido-executada/ . Acesso em 23 de março de 2018.
177
transformação social possível a nós. Que a alteridade permeie nossas atitudes para
alcançarmos a equidade em nossa sociedade até agora tão injusta e fugas.
Em suma, dito isso, esta pesquisa contribui para uma reflexão sobre o racismo no
Brasil e as formas em que é possível combatê-lo. Preencherá uma ambição essencial na sua
elaboração, principalmente, se alcançar pessoas distantes do âmbito universitário e espaços
institucionais de atuação de pessoas que lutam para transformar a realidade apresentada de
forma vil na educação escolar das crianças e jovens e representada nas estatísticas.
As mesmas estatísticas que descrevem a vida de negros mortos em conflitos urbanos,
ou quando não são bem-vindos em lugares frequentados majoritariamente por brancos, e
tantos outros índices, em que os negros, por falta de oportunidades oferecidas por um
mercado de trabalho caracterizado por um perfil excludente, oscilam do comércio ambulante
ao tráfico de drogas: fatos observados de perto por mim na comunidade em que vivo.
As autoras e autores mencionados nesta pesquisa nos deram elementos suficientes para
despertar e continuar nesse caminho, para, coletivamente e individualmente, buscar a
mudança que tanto procuramos em nós e no outro. Espero que este trabalho auxilie o leitor
nesse profícuo encontro do não nomeado ao significado do que nos toca inconscientemente, e
por vezes preferimos manter guardado com receio de não saber o que fazer.
Tal horizonte procura fomentar, de modo coerente com esse campo de estudos,
ponderações que possam configurar-se como caminho a ser mais explorado, desafiado e
instigante no combate ao racismo nas escolas, Uma leitura que possa propiciar a outros
professores, pesquisadores e pessoas interessadas por esse tema, processos de reflexão que
permitam construir uma escola (e sociedade) mais justa e equânime, coadunada com a
realidade multiétnica e cultural brasileira.
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