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2018 Dissertação Roseane dos Santos Lazzarine.pdf

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO- PPGE/UFF ROSEANE DOS SANTOS LAZZARINE O DESMENTIDO NO ENSINO FUNDAMENTAL PÚBLICO: FACETAS DE UM RACISMO CLIVADO E MASCARADO. NITERÓI 2018
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO-

PPGE/UFF

ROSEANE DOS SANTOS LAZZARINE

O DESMENTIDO NO ENSINO FUNDAMENTAL PÚBLICO: FACETAS

DE UM RACISMO CLIVADO E MASCARADO.

NITERÓI

2018

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO-PPGE/UFF

O DESMENTIDO NO ENSINO FUNDAMENTAL PÚBLICO: FACETAS

DE UM RACISMO CLIVADO E MASCARADO.

ROSEANE DOS SANTOS LAZZARINE

Dissertação apresentada à Faculdade de Educação

da Universidade Federal Fluminense como

requisito parcial à obtenção do Título de Mestre

em Educação.

Orientadora: Profª Drª Marília Etienne Arreguy

Niterói

2018

L432d Lazzarine, Roseane dos Santos

O Desmentido no Ensino Fundamental Público: Facetas de um racismo

clivado e mascarado / Roseane dos Santos Lazzarine ; Marília Etienne

Arreguy, orientadora. Niterói, 2018.

187 f.

Dissertação (mestrado)-Universidade Federal Fluminense, Niterói,

2018.

DOI: http://dx.doi.org/10.22409/POSEDUC.2018.m.09130807727

1. Relações Raciais. 2. Ensino fundamental público. 3. Racismo.

4. Psicanálise. 5. Produção intelectual. I. Título II. Arreguy,

Marília Etienne , orientadora. III. Universidade Federal

Fluminense. Faculdade de Educação.

CDD -

Ficha catalográfica automática - SDC/BCG

Bibliotecária responsável: Angela Albuquerque de Insfrán - CRB7/2318

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO-PPGE/UFF

O DESMENTIDO NO ENSINO FUNDAMENTAL PÚBLICO: FACETAS

DE UM RACISMO CLIVADO E MASCARADO.

Aprovada em: ____/ _____/_______

BANCA EXAMINADORA

Orientadora: Profª. Drª. Marília Etienne Arreguy

Universidade Federal Fluminense (UFF)

Professor Convidado: Profº. Drº. Richard Fonseca

Universidade Federal Fluminense (UFF)

___________________________________________________________________________

Professora Convidada: Profª. Drª. Jô Gondar

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Professor convidado suplente: Profº. Drº. Marcelo Báfica Coelho

Universidade Federal Fluminense (UFF)

NITERÓI

2018.

Dedico essa pesquisa a todos os negros e negras

que passaram suas vidas na penumbra de não

saberem nomear os sentimentos de dor causados

pelo racismo desmentido. Clivados na infância

pela confusão causada por uma branquitude

perversa e privilegiada.

AGRADECIMENTOS

A Deus pela força e oportunidade de estar vivendo essa pesquisa e aprendendo muito a cada

dia.

A Universidade Federal Fluminense por ter oportunizado a realização desse curso.

À minha querida orientadora pela confiança, serenidade e credibilidade em todos os

momentos, mesmo os críticos, e ao apoio e entusiasmo contagiante a cada sugestão,

descobertas e crescimento na pesquisa, sem as quais esse trabalho não seria possível.

À minha avó por ter me criado quando eu não tinha ninguém e me ajudado a ser uma pessoa

com dignidade e responsabilidade para honrar compromissos.

Às minhas filhas Mariana, Thaynara e Ryanna pelo amor, força e compreensão em todas as

etapas de minha formação, as palavras de incentivo e os carinhos oferecidos em momentos de

tensão durante a produção da pesquisa e nas minhas ausências para o estudo.

Ao meu companheiro Cristiano por sempre incentivar, até quando eu estava desanimada e

cansada. Obrigada por acreditar que era possível e pelo orgulho em meu crescimento como

profissional, estudante e em nossa vida juntos.

Agradeço a todos que fizeram parte desse processo. Aos amigos e professores que

contribuíram para essa pesquisa acontecer e se tornar o trabalho da minha vida.

Aos autores Abdias Nascimento, Frantz Fanon, Mbembe, Amauri Mendes, Freud, Ferenczi,

Neuza Souza, Virgínia Bicudo, Jô Gondar entre outros, que, durante o mestrado,

“conviveram” comigo, tornando-se amigos que me presentearam com tanto conhecimento,

empoderamento e o desejo de compartilhar seus ideais, seus modos de compreender a

irracionalidade da sociedade e, especialmente, as possibilidades de cura para a doença que o

racismo disseminou entre nós.

Noites do Norte

A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela

espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi primeira forma

que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse

uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-

lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem

concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte...

É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte.

Caetano Veloso, 2000

RESUMO

Essa pesquisa dedica-se a tentar entender como se constituem as relações raciais na sociedade

e seus reflexos na escola, entre docentes e alunos. Com base em um olhar orientado pela

psicanálise voltada aos processos sociais, possibilitado pelo método psicanalítico cultural,

busca-se compreender os principais desafios dessas relações diante do racismo desmentido e

da falsa harmonia da democracia racial brasileira. Por meio de vinhetas escolares, como

exemplificação, e da análise psicanalítica e filosófica do contexto pesquisado, adentramos no

universo inconsciente das relações escolares e sociais, especialmente no que concernem as

questões raciais no âmbito da educação. Tais desafios esbarram em múltiplos significados que

se conectam, por sua vez, às diferentes configurações no campo político, psicossocial e

subjetivo da população negra.

Palavras-chave: racismo, Desmentido, psicanálise, população negra, subjetividade.

ABSTRACT

This research is dedicated to understand how are race relations in society and your reflexes at

school, between teachers and students. Based on a look at guided by psychoanalysis in social

processes and made possible by the cultural psychoanalytic method, understand the key

challenges of these relationships in the face of racism and false harmony Disclaimer of racial

democracy brazilian. Through vignettes, as examples and psychoanalytic analysis of the

researched context, enter in the universe school relations and social unconscious, especially

concerning the racial issues in the context of education. Such challenges face in multiple

meanings that connect, for your time, the different settings in the political field, subjective and

psycho-social of the black population.

Keywords: racism, retraction, psychoanalysis, black population, subjectivity.

Sumário

INTRODUÇÃO........................................................................................................................11

A Lei Antirracismo...........................................................................................................17

A qualificação docente.............................................................................................................21

O desmentido na escola............................................................................................................25

Raça como conceito sociocultural.............................................................................................28

Procedimentos metodológicos................................................................................................. 30

CAPÍTULO 1

NARCISISMO DAS PEQUENAS DIFERENÇAS: UMA VISÃO PSICANALÍTICA DO

PANORAMA RACIAL..........................................................................................................35

1.1Porque precisamos (urgente) de Fanon?............................................................................. 50

1.2 Outras percepções de racismo e cultura em Fanon............................................................64

1.3 África: potência e exploração.............................................................................................76

1.4 Conceito de raça como instrumento para subalternizar o negro.........................................81

CAPÍTULO 2

O QUE É SER NEGRO NO BRASIL?................................................................................90

2.1 A violência contra a mulher e o feminicídio....................................................................94

2.2 O desejo do negro de ser o outro...................................................................................99

2.3 A Branquitude: silêncio e o privilégio branco...................................................................111

2.4 O ideal do Ego no negro....................................................................................................115

CAPÍTULO 3

O DESMENTIDO COMO CHAVE DE LEITURA PARA A VIOLÊNCIA RACIAL

DISSIMULADA..................................................................................................................126

3.1 As raízes traumáticas do sofrimento do negro................................................................132

3.2 O trauma em Ferenczi como fator social..........................................................................137

3.3 Os docentes e a desordem de uma pedagogia pedante.....................................................142

3.4 Vinhetas escolares: uma confluência entre o desmentido e o preconceito racial contra o

negro.......................................................................................................................................148

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................172

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................178

WEBBLIOGRAFIA..............................................................................................................186

11

INTRODUÇÃO

Atualmente, após 15 anos da promulgação da Lei 10.639/03, tornando obrigatório o

Ensino da História da África e Cultura Afro-brasileira, que alterou a Lei 9.394, de Diretrizes e

Bases da Educação/ LDB, observamos a crescente necessidade de modificar nossos olhares

para os efeitos psicossociais do racismo, com o intuito de exterminar o preconceito nas salas

de aula de todos os níveis da educação e da sociedade.

Percebemos que, ao longo dessa década e meia com a referida Lei, seus expoentes

encontraram dificuldades para transpor as marcas históricas produzidas negativamente pela

sociedade. São barreiras que ainda refletem como as crenças e mitos são vistos em seus

valores simbólicos desiguais e injustos, nos quais enaltecem a branquitude em detrimento do

reconhecimento da população de negros e indígenas.

Incomoda, por sua vez, ver ainda a pouca discussão a respeito das questões raciais em

alguns âmbitos universitários. Contudo, reconhecemos que houve um crescimento do acesso à

discussão sobre essa temática após a promulgação da Lei 10.639/03. Na área da educação, as

pesquisas têm avançado, mas isso não tem sido suficiente para romper com o silêncio

estrutural do racismo em nosso meio social. Embora já tenha passado quinze anos,

observamos lacunas quanto à falta de informação e de formação docente acerca de fontes

históricas que desmascarem e revelem o racismo à moda brasileira, falhas que agravam a

crença na ideologia da “democracia racial”, expressão atribuída a Gilberto Freyre na literatura

acadêmica. Vejamos como Nascimento (2016) entende por democracia racial brasileira:

Devemos compreender “democracia racial” como significando a metáfora perfeita

para designar o racismo estilo brasileiro: não tão óbvio como o racismo dos Estados

Unidos e nem legalizado qual o apartheid \ da África do Sul, mas institucionalizado

de forma eficaz nos níveis oficiais do governo, assim difuso e profundamente

penetrante no tecido social, psicológico, econômico, político e cultural da sociedade

do país. (...) Monstruosa máquina ironicamente designada “democracia racial” que

só concede aos negros um único “privilégio”: aquele de se tornarem brancos, por

dentro e por fora (NASCIMENTO, 2016, p. 111).

Essa inquietante faceta do racismo brasileiro, hoje persiste com o mesmo discurso,

mas, com modelagens diferenciadas. A perversidade desse contexto é vivida nos meios sociais

12

de maneira camuflada, especificamente nas escolas, nas quais crianças ainda são vítimas de

estereótipos racistas, por vezes vindos dos próprios educadores da instituição. A partir desta

percepção, deu-se início ao questionamento sobre minha própria identidade docente e

processo de conscientização que pude enfrentar. A partir disso, surgiu a indagação a respeito

de como os saberes docentes poderiam contribuir na efetivação das relações raciais que

perpassavam em meu trabalho diariamente.

Partindo dessas observações nasce o interesse por pesquisar as relações raciais no

âmbito acadêmicos/escolar, assim como a motivação para melhor compreender como os

saberes docentes se constituem em sala de aula, no processo da dinâmica escolar,

especificamente em situações de conflitos raciais.

Surgiram, portanto, como consequência deste estudo, os seguintes questionamentos:

Como as relações raciais são construídas na sociedade e na escola? Em que medida se pode

trabalhar os saberes docentes de forma problematizadora tornando-os, eles próprios, objeto

de pesquisa? De que maneira os estudantes de cor negra são concebidos e tratados pelos

docentes? Até que ponto os dados históricos das culturas ancestrais dos negros são

contemplados nos currículos, na formação, no discurso e nas práticas dos professores?

Seriam os conhecimentos em psicanálise capazes de contribuir para a compreensão das

relações e conflitos raciais que acontecem na escola e em nosso meio social?

Levando em conta esses questionamentos, a proposta desta pesquisa é trazer por meio

das “vinhetas escolares”1, episódios ocorridos do interior das escolas e através delas, de modo

a compreender atitudes e conhecimentos dos professores, frente às questões e práticas de

preconceito racial no cotidiano escolar. Pretende-se analisar a percepção dos docentes junto

aos conflitos discriminatórios e, além disso, refletir como o campo da psicanálise oportuniza

um novo olhar sobre a configuração das relações raciais na sociedade e na escola.

1 O termo "vinhetas escolares" traz a concepção deste termo em analogia às “vinhetas clínicas”, como

ocorre na construção psicanalítica de casos, fundamentada nas expressões do inconsciente concebendo a

“vinheta” como ficcional. Tal escolha também representa um aporte ético, já que não será dada nenhuma

informação direta sobre pessoas específicas. Os casos serão construídos de modo a explicitar situações típicas e

repetitivas que se expressam nas relações docentes de desconhecimento, indiferença, preconceito e

discriminação e, assim, serão apresentadas formas variadas onde o “racismo desmentido” se apresenta no seio

escolar (GONDAR, 2018).

13

Justifica esse trabalho, além das interrogações precedentes, o fato de me sentir parte

do que aqui proponho investigar. Pretendo familiarizar o leitor com algumas experiências

próprias vividas por mim, que caracterizam o ensejo de aprofundar o tema da pesquisa.

Acredito que as condições desiguais brasileiras são retratadas no cerne das questões raciais

que envolvem minhas vivências, na coletividade e individualmente, no meio social onde me

constituí como mulher negra, pobre e suburbana, estereotipada por minha cor e condição

econômica.

Proponho ao leitor, nas páginas procedentes, reflexões, críticas e episódios acerca das

relações raciais que se confundem propositalmente com as questões de classe. Faremos, a

princípio, um percurso mais panorâmico, até podermos nos concentrar no racismo desmentido

a partir da psicanálise, para poder vislumbrar as características do racismo brasileiro.

O racismo, como sistema pernicioso e excludente, está presente nas principais

civilizações ocidentais, marcando territórios assim como, desintegrando nações inteiras desde

a colonização até à diáspora como fenômeno mundial. Nesse contexto, concordo com

Nascimento (2016) a respeito da gravidade do significado da concepção dilacerante da

escravidão refletida ainda hoje na vida dos descendentes dos negros ao redor do mundo.

Devemos, assim, começar examinando o maior de todos os escândalos, aquele que

ultrapassou qualquer outro na história da humanidade: a escravização dos povos

negro-africanos. No Brasil, é a escravização que define a qualidade, a extensão, e a

intensidade da relação física e espiritual dos filhos de três contingentes que lá se

encontraram: confrontando um ao outro no esforço épico de edificar um novo país,

com suas características próprias, tanto na composição étnica de seu povo quanto na

especificidade do seu espírito (NASCIMENTO, 2016, p. 57).

Ao longo da pesquisa procuramos compreender o processo de constituição do racismo

e suas diversas formas de agir durante séculos, distanciando, manipulando e explorando

pessoas e privilegiando outras. Tais observações definem o papel das escolhas e do olhar do

pesquisador sobre o objeto estudado, visando romper com qualquer crença que possa existir

acerca da existência de uma neutralidade científica. Meu esforço é de apreender o foco da

pesquisa com uma visão específica sobre o tema que, evidentemente, pode se juntar a visão de

outros pesquisadores acerca da mesma temática.

14

Diante da problematização apresentada, cabe ressaltar que a presente pesquisa integra

a linha de pesquisa sobre Diversidade, Desigualdade Social e Educação (DDSE) em parceria

com o Grupo Alteridade Psicanálise e Educação – GAP (E) – do Programa de Pós-Graduação

em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Essa ligação, além de motivar,

justifica o aporte psicanalítico agregado a esse trabalho como propulsor na compreensão do

racismo na sociedade e, especialmente, no âmbito escolar.

Outro motivador para a escolha desse tema foi à participação na realização do IV

Ciclo Internacional de Conferências e Debates com a discussão sobre Racismo, Capitalismo e

Subjetividade: Leituras psicanalíticas e filosóficas, outubro de 2016, sob a idealização,

produção e organização do nosso grupo de pesquisa: GAP(E). O evento contou com o apoio

técnico de bolsistas de graduação e mestrandos, bem como com a presença e participação

de intelectuais que, em mesas redondas, abordaram o tema Racismo, sobretudo investigado à

luz da Psicanálise. Este evento possibilitou uma nova interpretação de meus estudos prévios2

sobre o racismo, logo, despertou meu interesse na visão da Psicanálise acerca das Relações

Raciais. Em uma das falas, intitulada "O racismo desmentido", a Professora Doutora e

psicanalista Jô Gondar (ferencziana e estudiosa da Teoria do Desmentido) trouxe o insight

oportuno para a transformação do projeto de pesquisa do mestrado, ao ponto desta discussão

estar inserida no centro no trabalho agora apresentado.

Parto também, das perspectivas de minha pesquisa3 de conclusão do curso em

Pedagogia realizada em 2014, com orientação do Professor Amílcar Araújo Pereira, na

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nessa pesquisa, minhas inquietações

giravam em torno do possível desconhecimento dos docentes do ensino público fundamental a

respeito da Lei 10.639/03, como tema transversal junto ao currículo e à comunidade escolar.

Esse trabalho abriu caminhos para a inserção da práxis em minha carreira docente,

incentivando-me a prosseguir na pesquisa como docente, atrelando teoria e prática na

compreensão das relações raciais.

2

Os estudos prévios sobre as questões raciais em minha formação acadêmica foram intensificados no

curso de especialização latosensu do Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira (PENESB),

oferecido pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com a coordenação e direção da professora Iolanda

Oliveira, em 2014. Com trabalho de término de curso desta especialização: Práticas da Lei 10.639/03:

Trajetórias de representatividade e identidade negra no cotidiano do Ensino Fundamental, obtive suporte para

pôr em prática o que a lei 10.639/03 determina e para aprofundar em minha prática docente aquilo que preconiza

essa lei como tema transversal na educação. 3

Monografia realizada em 2014, abordando a temática racial no ensino fundamental público, intitulada:

Lei 10.639/03: concepções e práticas docentes em uma escola no município de Nova Iguaçu.

15

Pensar na articulação entre pesquisa e ensino numa perspectiva cultural e psicanalítica

nas relações raciais e ações docentes requer delimitação, para viabilizar a investigação

proposta. Nesse sentido, dois eixos da análise surgiram da confluência entre teoria e prática,

indicando perspectivas pelas quais as reflexões sobre os possíveis sentidos da pesquisa,

psicanaliticamente orientada na subjetividade e nos efeitos psicossociais do racismo, foram

desenvolvidas nesse trabalho.

No primeiro eixo, como objetivo geral, visamos compreender as marcas inconscientes

do racismo na subjetividade do negro. Além disso, buscamos abordar como as ações docentes

se constituem em relação às questões raciais na escola, assim como no âmbito social. Com

uma abordagem sociocultural, a intenção foi analisar como se constituem as relações sociais

e, também, as reações frente aos conflitos raciais em que se mesclam as questões

socioeconômicas, de classes e culturais.

No segundo eixo, como objetivo específico destacamos à interface entre o trauma na

Psicanálise e a Teoria do Desmentido em Ferenczi, em analogia às relações raciais escolares e

seus efeitos inconscientes insidiosos na cultura. O desmentido para Ferenczi ocorre através de

um trauma entendido como negação, desautorização e descrédito por parte do adulto, daquilo

que ouve a criança contar, especificamente, sobre algo abusivo que, de fato, aconteceu com

ela. O fato consolidado na atitude do agressor é de que nada aconteceu, desmentindo a criança

(FAVERO e RUDGE, 2009).

Tendo a psicanálise como lugar de escuta, pretendemos dar voz àqueles que passam

por situações vexatórias e traumatizantes diante de um racismo mascarado. Essa é uma

“herança” brasileira que inibe e silencia crianças e jovens, estereotipados culturalmente e por

sua cor. Também buscamos verificar o paralelo entre a questão da afirmação do negro, os

recalques e clivagens em relação às vivências violentas de discriminações que se constituem

em traumas nas relações raciais, em particular nas práticas docentes ou educacionais.

Para responder a essas questões, a pesquisa estrutura-se em três capítulos. O primeiro

capítulo Narcisismo das Pequenas diferenças: uma visão psicanalista do panorama racial

apresenta a psicanálise através da descoberta do inconsciente por Freud. Sob esse prisma

observamos o sujeito não reconhecido no campo social no qual está inserido e a consequente

ortodoxia que acrescenta na classificação das pessoas por suas diferenças étnicas. Percebemos

16

as especificidades do narcisismo nos tempos atuais e as sutis articulações deste aspecto

potencialmente patogênico na vida psíquica das pessoas que sofrem com preconceito de cor.

O segundo capítulo: O que é ser negro no Brasil?, discute as dificuldades de ser

negro em um país que ainda vive sob a falácia da democracia racial, e finge relações

dicotômicas entre negros e brancos, sugerindo sub-repticiamente que o negro existe para

servir, enquanto o branco se privilegia de sua branquitude intocável. Abordamos os aspectos

sociais, somados a ideologias racistas que corroboram para o falso desejo do negro em ser o

outro-branco. Nesse sentido, vamos ver a alienação e o desejo de embranquecer por parte da

população negra aliciada pela submissão que contribui para a indiferença e para a busca pela

perfeição, falaciosamente ancorada na branquitude. Analisamos esse desejo como algo que,

aos poucos, se torna doloroso e traumatizante, além de corromper a subjetividade da pessoa

negra, alterando sua consciência de cor.

No terceiro capítulo: O desmentido como chave de leitura para a violência racial

dissimulada, analisamos, junto à psicanálise, as contribuições de Sándor Ferenczi acerca da

teoria do desmentido (desautorização ou descrédito) para além da ideia do trauma freudiano,

ou seja, com a intenção de entendê-la a partir da concepção de trauma na violência racial. A

teoria do desmentido embasa nossa pesquisa na observação das consequências traumáticas de

abusos diversos sofridos desde a infância, sobretudo na escola, até a fase adulta dos

indivíduos, com as marcas inconscientes que carregam em si.

Neste capítulo usamos o recurso das vinhetas escolares, cujo interesse é apreendermos

o desenvolvimento das relações raciais em uma possível negligência na área da educação,

entre alunos e professores. As vinhetas são consideradas contribuições para observação crítica

cotidiana, com o intuito de testemunhar as ranhuras na subjetividade negra, causadas por

traumas caracterizados por possível discriminação racial dentro das escolas. Além disso,

buscamos perceber e caracterizar os traços da branquitude como algo que estende privilégios

às pessoas brancas nas instituições escolares.

Conclui, discutindo diversas maneiras de caracterização do racismo e buscando

modos de compreensão desse contexto a partir da psicanálise. Vimos possibilidades para

alcançar caminhos na tentativa de vencer os muros invisíveis que impedem a igualdade no

meio social em que estamos inseridos. Há, finalmente, um chamado com respaldo teórico para

o despertar da alienação imposta pelo racismo inconsciente. A atitude de combate e resistência

17

surge como possibilidade ao nosso alcance e, para tanto, precisamos nos articular o quanto

antes nesse DESPERTAR que nos aguarda para promover a mudança naquilo que nos

consterna e envergonha em nosso país.

A Lei Antirracista

O Movimento Negro4 tem no currículo escolar uma de suas principais reivindicações,

ou seja, a luta pela efetiva implementação da Lei Federal 10.639/035, que altera a Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394/1996, tornando obrigatório o ensino da

História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos da Educação Básica das redes pública

e privada do país. O conteúdo programático da lei 10.639/03 refere-se ao estudo da história do

continente africano e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o

negro na formação da sociedade nacional brasileira.

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e

particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo

da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra

brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do

povo negro nas áreas social, econômica e política pertinente à História do Brasil.

4 Movimento Negro é a luta organizada dos negros na perspectiva de resolver seus problemas na

sociedade; abrange em particular os fenômenos com origem nos preconceitos e discriminações raciais existentes

no mercado de trabalho, no sistema educacional, político, econômico, social e cultural. “Raça para o Movimento

Negro, é o fator determinante de organização dos negros em torno de um projeto comum de ação”. (Domingues,

2006, p. 101-102). Outra definição de movimento negro é aquela atribuída a Joel Rufino em Uma visão de

militância, em que o autor afirma: "(...) todas as entidades, de qualquer natureza, e todas as ações, de qualquer

tempo, [aí compreendidas mesmo aquelas que visavam á autodefesa física e cultural do negro], fundadas e

promovidas por pretos e negros (...), entidades religiosas [como terreiros de candomblé, por exemplo];

assistenciais (como as confrarias coloniais); recreativas (como “clubes de negros”); artísticas (como os inúmeros

grupos de dança, capoeira, teatro, poesia); culturais (como os diversos “centros de pesquisa”); políticas (como o Movimento Negro Unificado); e ações de mobilizações políticas, de protesto antidiscriminatório, de

aquilombamento, de rebeldia armada, de movimentos artísticos, literários, e ‘folclóricos’- toda essa complexa

dinâmica, ostensiva ou encoberta, extemporânea ou cotidiana constitui movimento negro"(RUFINO apud

SANTOS, 1994, p. 157). 5 A Lei 11.645/08 acrescenta a obrigatoriedade dos estudos da História e Cultura Indígena, passando,

portanto, a contemplar aspectos da cultura dos dois grupos raciais, índios e negros, historicamente discriminados,

estigmatizados, mortos e exterminados no Brasil até os dias atuais.

18

§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados

no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e

de Literatura e História Brasileira.

A luta do Movimento Negro, e de seus intelectuais, tem por objetivo a construção de

um referencial positivo do negro, tendo na escola um dos locus privilegiados, onde também se

travam relações de poder produzidas nos mais diversos contextos, entre eles, nos textos das

políticas públicas, cujos resultados de disputas são submetidos a reinterpretações e a novas

seleções6 (FORQUIN, 1993), inclusive produzindo novas disputas ocorridas nas realidades

locais. Essa relação complexa e não linear gera novos embates e exige que a política de

combate à discriminação contra o povo negro seja repensada e reformulada também em outras

contextualizações.

O texto da Lei Federal nº 10.639 institui a temática "História e Cultura Afro-

Brasileira" e a obrigatoriedade da temática para as instituições educacionais dos ensinos

Fundamental e Médio. A inserção da Educação Infantil, não contemplada inicialmente no

texto da referida lei, foi paulatinamente incorporada com a aprovação do Parecer CNE/CP n°

03/2004 que institui “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-

Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”, através da

Resolução CNE/CP n° 01/2004 que regulamenta a lei e o Plano Nacional de Implementação

das Diretrizes, de 2009.

Política alguma, tampouco a Lei nº 10.639, acontece de maneira isolada e, sendo

assim, existe a necessidade de se esclarecer a relação existente entre as leis e a legislação

complementar, pois apenas desta forma é possível o entendimento da obrigatoriedade da lei

que trata sobre o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, assim como da cultura africana

no Ensino Fundamental, tendo sua continuação no Ensino Médio e, assim, complementando o

ciclo básico de Educação.

A Lei de Diretrizes e Base (LDB)/1996, ainda na esfera da legislação para as relações

étnico-raciais na educação, traz outra modificação legal, desta vez na lei nº 12.796,

promulgada em 04 de abril de 2013, que coloca em vigor como princípio do ensino a “(...)

6

A primeira realizada por especialistas/autoridades responsáveis na construção do currículo oficial e

escolha dos conteúdos.

19

consideração com a diversidade étnico-racial”, ampliando essa exigência a todos os níveis de

ensino.

A escola, de acordo com essa legislação, tem a obrigação de inserir no currículo

aspectos da cultura deste grupo racial historicamente excluído no Brasil, cuja história e

cultura nunca fizeram parte do currículo escolar e, quando estavam presentes, eram sempre

relatos e imagens vinculados à escravidão, como se a população africana começasse a existir

apenas desse período em diante.

O processo de historicização da Cultura Afro-Brasileira sempre esteve ligado a

inúmeros estereótipos. Deste modo, a luta do Movimento Negro não era apenas pelo acesso à

educação formal e sim pela mudança desta, devido ao contexto pedagógico onde os negros

eram retratados com inferioridade e, pior ainda, em que há a (re)produção da discriminação

racial contra a população negra e seus descendentes no âmago do sistema de ensino brasileiro.

Diante deste contexto, o movimento social negro, com seus intelectuais e militantes,

passou a incluir em suas agendas de reivindicações, mudanças em relação ao sistema

educacional para que este contemple a história dos negros brasileiros e dos africanos junto ao

Estado Brasileiro. Era uma luta também contra o "(...) dogma mais forte da democracia racial"

(HASENBALG, 1996, p. 237). Esclarece-se também que parte desta reivindicação já estava

contemplada na declaração final do I Congresso do Negro Brasileiro, promovido pelo Teatro

Experimental do Negro (TEN), no Rio de Janeiro entre os dias 26 de agosto e 04 de setembro

de 1950, portanto, há mais de meio século (HASENBALG, 1996), e, também, em outras

conquistas como várias leis que, de maneira geral, versam sobre o mesmo assunto tanto nas

esferas municipais como nas estaduais.

Dialoga-se, para análise dessa legislação, com a “abordagem do ciclo de políticas”

formulada por Stephen Ball (MAINARDES, 2006), que permite pensá-la desde sua

formulação inicial até sua implementação no contexto das práticas e saberes docentes,

abordando inclusive seus efeitos. Essa abordagem é constituída de um ciclo contínuo formado

por três contextos principais que estão inter-relacionados: os contextos de influência, de

produção de texto e o da prática. Estes aspectos não podem ser entendidos como lineares, mas

como arenas de disputas.

20

No “contexto da influência”, lugar onde as políticas públicas geralmente são iniciadas

e os discursos políticos construídos, estão os grupos de interesse como movimentos sociais e

organismos internacionais disputando influências na política, em que “os conceitos adquirem

legitimidade e formam um discurso de base para a política” (Ibidem, p. 51).

A promulgação da Lei Federal nº 10.639/03 representa, de acordo com nosso

entendimento, um grande avanço na política educacional do país, tendo completado mais de

uma década de existência. No entanto, é uma Lei recente para a sociedade brasileira,

principalmente, no que tange às transformações engendradas no contexto da prática de um

sistema educacional complexo, no qual o racismo tanto incide como se sustenta em uma

sociedade racista e excludente que ainda mantém o discurso da “democracia racial”

(GUIMARÃES, 2012) 7.

Para Souza (2006), ainda é espantoso que o ensino das culturas negras tenha que ser

estabelecido por lei. O autor justifica seu espanto ao afirmar a importância desta temática para

a compreensão da nossa sociedade. Entende-se esta constatação como mais um sinal da

intensidade do preconceito contra os negros no Brasil.

7 “

A expressão Democracia Racial, atribuída a Gilberto Freyre na literatura acadêmica, é empregada pela

primeira vez por Charles Wagley. Ela só aparece em Gilberto Freyre a partir de 1950. Antes desse período,

Freyre adjetivou de diversos modos a democracia, mas nunca como “racial”. Ele fugia do termo raça para se

referir aos contatos de pessoas de diferentes etnias, empregando democracia étnica. Freyre utiliza “democracia”

para contrastar com a aristocracia, em que existia rigidez da organização patriarcal e nenhuma flexibilidade das

relações entre senhor/escravizados, e depois passa a fazê-lo para se contrapor ao “fascismo”. Mas, foi Freyre

grandemente responsável pela legitimação científica da afirmação da inexistência de preconceitos e

discriminações raciais no Brasil, quando passou a louvar a “democracia racial” ou “étnica” como prova da

excelência da cultura luso-brasileira, quando a situação polarizou-se na África, com as guerras de libertação, e no

Brasil, com o avanço ideológico da “negritude” e do movimento pelas reformas sociais”. Disponível em:

https://anpocs.com/index.php/encontros/papers/25-encontro-anual-da-anpocs/st-4/st20-3/4678-aguimaraes-

democracia/file. Acesso em 03 de abril de 2018.

21

A qualificação docente

A falta de qualificação docente é um dos obstáculos à efetivação dessa legislação,

principalmente de professores que não tiveram na sua formação inicial a inclusão da História

e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. Segundo Oliveira (2014), a maioria dos docentes que

atuam na educação básica não recebeu a devida formação.

Portanto, realizar investigações sobre as práticas docentes que contemplam as leis nº

10.639/03 e nº 11.645/08 é pesquisar o óbvio, ou seja, levantar, relatar e desconstruir os mitos

racistas socialmente sustentados no senso comum, bem como investigar as lacunas do

conhecimento sobre a história dos negros no discurso dos professores, pois ninguém pode

ensinar o que não sabe. A formação desses profissionais precisa contemplar o legado

sociocultural africano para a História da Humanidade e, especificamente, para a História do

Brasil.

A maioria dos (as) profissionais que atuam ou atuaram nas IES, especialmente em

licenciaturas e cursos de Pedagogia, obteve sua formação em meio a este contexto

histórico e ideológico do qual decorre a forma excludente de se viver e pensar a

sociedade brasileira, e que desconsiderou tanto os conflitos étnico-raciais quanto as

contribuições do grupo social em questões (assim como de outros, a exemplo do

indígena). A escola que formou os (as) profissionais da educação que atuam hoje se

baseou numa perspectiva curricular eurocêntrica, excludente e, por vezes

preconceituosa (BRASIL, 2006, p. 125).

É importante construir um referencial positivo em que os negros sejam protagonistas

da história. Como Negro Cosme, e outros tantos desconhecidos8, assim como oportunizar o

8 “Cosme Bento das Chagas, o negro Cosme, como chefe negro, demonstrou toda sua consciência

política e o valor que dava à liberdade, criou uma escola de ler e de escrever no quilombo de Lagoa-Amarela, na

comarca do Brejo. Liderou cerca de 3 000 mil negros. Defendia a autoridade do Imperador Pedro II, todavia foi

um negro forro e resistente ativo naquela sociedade escravista. Era natural de Sobral, no Ceará, não tinha

domicílio certo e vivia de comandar a tropa de negros com o objetivo de acabar com a escravidão. Situado na

fazenda Lagoa-Amarela, o grande quilombo, próximo ao rio Preto, mantinha piquetes avançados e dirigia grupos

de quilombolas que incentivavam a insurreição nas fazendas da região. Na verdade, em toda a província do

Maranhão eram milhares os negros quilombolas, tornando a insurreição incontrolável e

generalizada”. (SANTOS, Maria Januária Vilela, 1983, p. 74).

9 Pesquisa realizada nos cursos de licenciatura presenciais, 71 de Pedagogia, 32 de Língua Portuguesa,

31 de Matemática e 31 de Ciências Biológicas, distribuídos proporcionalmente em todo o país (GATTI, 2010).

22

conhecimento e valorização das religiões afro-brasileiras. Gatti9 (2010) endossa essa crítica

em pesquisa realizada em diversos cursos de Pedagogia. A autora verificou que apenas 7,5%

do currículo de cada disciplina, nas séries iniciais do Ensino Fundamental, é destinado aos

conteúdos que abordam a Cultura Negra.

Há uma “secundarização” da abordagem dos conhecimentos veiculados pelos

componentes curriculares na política de formação docente, fragilidade que compromete o

trabalho pedagógico e visa desconstruir preconceitos, discriminações e estereótipos, pois falta

a dimensão dos conteúdos. O silenciamento das instituições escolares sobre a questão racial

acontece devido à falta de domínio dos conteúdos específicos dessas disciplinas.

Moreira e Candau (2007) questionam o modo como os professores têm se esforçado

para desestabilizar privilégios e discriminações e, como as diferenças de classe, sexualidade,

cultura e raça têm ‘contaminado’ o currículo formal e o oculto10

, além de apurar quais práticas

pedagógicas podem ser pensadas e que tempo reservamos para discutir essas questões nas

escolas.

Como temos atendido ao que determina a Lei nº 10.639/2003, que torna obrigatório,

nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, o ensino de História e Cultura

Afro-brasileira? De que modo os professores se têm inteirado das lutas e conquistas

dos negros, mulheres, dos homossexuais e de outros grupos minoritários oprimidos?

(MOREIRA e CANDAU, 2007, p. 29).

Para os professores em exercício que não tiveram acesso à universidade, às discussões

acerca da temática racial e à formação continuada, essa formação histórica de base, é ainda

mais necessária. Segundo os dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais

10 Considera-se neste texto o conceito de currículo oculto, apresentado e problematizado por Tomaz

Tadeu da Silva (2009) no livro Documentos de Identidades , especificamente, no capítulo: “Quem escondeu o

currículo oculto?” (p.77). Ali Silva (2009) “define o currículo oculto como uma constituição de todos os aspectos

do ambiente escolar que não fazem parte do currículo oficial, mas que operacionalizam atitudes,

comportamentos, valores e orientações convenientes às estruturas e pautas de funcionamento “harmonioso” da

escola, desde injustiças e atitudes antidemocráticas, até o silenciamento acerca das dimensões da raça, da

sexualidade e do gênero. Esse autor também ressalta que a noção de currículo oculto exerceu forte influência nas

teorias em quase todas as perspectivas críticas iniciais e, devido a isso, o conceito tornou-se desgastado. Segundo

o autor, numa sociedade neoliberal não existe mais muita coisa oculta no currículo, visto que ele é

assumidamente capitalista.” Logo, o racismo é um subproduto, talvez o principal, desse sistema hegemônico

bizarro e cruel. Essa posição é reforçada por Lopes e Macedo (2010).

23

Anísio Teixeira (INEP), ultrapassa dois milhões os profissionais que hoje estão em sala de

aula no Ensino Fundamental e Médio (OLIVEIRA, 2014), o que revela um grande desafio. A

formação necessária para suprir esta lacuna pode ser oferecida por meio de cursos de

aperfeiçoamento, extensão e especialização.

A formação continuada corresponde à metade do total de cursos oferecidos pela

Universidade Aberta do Brasil, sendo a maior parte desta formação dirigida a temas ligados à

diversidade cultural: 91,1% dos cursos de aperfeiçoamento; 80,3% dos de extensão; e 42,8%

dos de especialização. Cursos da Rede de Educação para a Diversidade são direcionados,

especificamente, aos profissionais das redes oficiais de ensino, mas são oferecidos a

educadores, lideranças de movimentos sociais, agentes comunitários, e integrantes de

organizações da sociedade civil que realizam ações ligadas a esses temas (ANDRÉ, 2011).

Essas ações políticas de formação docente do governo federal, dentro do Programa de

Formação para a Diversidade, têm como objetivo estimular os sistemas de ensino a incluir

temas da diversidade nas práticas de ensino das redes públicas estaduais e municipais de

educação básica. Essa rede foi instituída pelo Ministério da Educação (MEC), em parceria

com a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) e

a coordenação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Profissionais do Ensino Superior

(CAPES), junto ao sistema de Ensino Superior à Distância Universidade Aberta do Brasil

(UAB) para a oferta de cursos semipresenciais de formação continuada, prevendo inclusive a

elaboração de material didático específico.

De acordo com Oliveira e Sacramento (2013), as Instituições de Ensino Superior (IES)

precisam ser modificadas através da presença negra e com incorporações da temática negra.

As autoras citam como exemplo as teorias progressistas que, já na década de 70 do século

XX, foram além da questão de classe ao incorporar o patrimônio cultural do negro no

currículo. A pedagogia progressista de George Snyders é caracterizada pela proposta de uma

educação transformadora que incorpora a discussão sobre a diversidade humana em

educação e seus efeitos sobre os grupos deserdados, entre estes a raça, gênero, etnicidade e

sexualidade entre outros (OLIVEIRA, 2014).

A sociedade brasileira é marcada pela insígnia da raça e do racismo. A escravidão

legitimou essa prática e, hoje, é comum ver situações de cunho racista nos mais variados

24

lugares: nas redes sociais, nas ruas, em propagandas comerciais e, inclusive, nas escolas

públicas e privadas.

No centro desta tragédia encontra-se a raça. Em larga medida, a raça é uma moeda

icónica. Aparece em torno do comércio dos olhares. É uma moeda cuja função é

converter o que se vê (ou aquilo que se prefere não ver) em gêneros ou em símbolos

integrados numa economia geral de signos e de imagens que trocamos que circulam,

as quais atribuímos valor, e que autorizam uma série de juízos e de atitudes práticas.

(MBEMBE, 2014, p. 191).

Entretanto, mesmo com o avanço em relação ao aspecto legal sobre a redução da

discriminação por raça/cor, e mesmo que uma parcela da sociedade já se mostre atenta à

questão, o preconceito racial ainda é vivenciado em muitos espaços, inclusive no âmbito

acadêmico/escolar, gerando ações violentas que vão desde as agressões verbais e/ou físicas

até a exclusão de negros e indígenas das atividades escolares e do convívio social.

É preciso ressaltar, igualmente, outra questão recorrente no âmbito escolar, a

resistência, por parte de alguns professores que argumentam não haver uma questão racial e

sim econômica – polêmica bastante discutida em muitas pesquisas da área (VALENTE, 2005).

A partir desse fato é preciso salientar que muitas são as propostas para o enfrentamento do

preconceito racial no ambiente escolar, porém, de nada adianta dispor de uma base legal de

políticas públicas, de materiais de apoio adequados à realidade local da instituição, se o

professor for preconceituoso e não conseguir lidar com as situações de conflito racial em seu

ambiente de trabalho.

Silva (2013) destaca outro aspecto na discussão apresentada: a relação entre conceitos

e poder. Assim, quando se trata de identidade e de diferença, não se fala de conceitos

inocentes, pois a própria definição deles constitui-se em objeto de disputa entre grupos sociais

que estão assimetricamente situados na relação de poder.

O que está em disputa não são apenas os conceitos em si, mas um processo mais

amplo, de luta por outros recursos simbólicos e materiais da sociedade, intrinsecamente

ligados ao poder de definir a identidade e de marcar a diferença. A elaboração das teorias não

está desvinculada dos interesses sociais (CIAMPA, 1977). É preciso problematizar, como

25

ponto de partida, a questão de quem e do que representamos quando falamos, visto que

falamos, sempre, a partir de uma posição histórica e cultural específica (HALL, 2013).

Para Freire (1996, p. 41), “Os homens vivem essa constante relação humanizante e

desumanizante, porém as relações entre opressor e oprimido aprofundam esse processo

desumanizante constituído de violência e falta de liberdade”. Sendo assim, é compreensível

que pesquisas sobre relações raciais não devam ter seu foco somente no preconceito racial e,

sim, discutir e analisar as consequências de quem sofre esses tipos de agressões.

Tratamos nesse trabalho dos diferentes olhares dados no meio social para as relações

raciais. A falta de igualdade e o racismo fazem vítimas nas escolas, nas ruas, em hospitais e

infelizmente, em muitos casos, nas famílias, permitindo haver situações de discriminação,

preconceito ou segregação. Seguimos adiante, com intuito de chamar atenção sobre os

impactos do racismo na formação da criança, e, ainda, como se desenvolve a naturalização

desse ranço ao longo de sua vida e na formação de sua identidade como pessoa invisibilizada

em nossa sociedade desigual.

O desmentido na escola

A pesquisa terá Sandór Ferenczi, psicanalista contemporâneo discípulo de Sigmund

Freud, como referência importante. Serão abordadas as noções de “trauma” e “desmentido”,

em que os autores consideram as atitudes repressivas, por vezes perversas, que corroboram

para resultantes problemáticas no psiquismo da criança. Em Psicanálise e Pedagogia, artigo

escrito em 1908, Ferenczi faz uma crítica contundente à Pedagogia alicerçada em preceitos

rígidos, que impelem a criança “(...) a mentir para si mesma, a negar o que sabe e o que

pensa” (FERENCZI, 1908/2011, p. 40).

Através da análise desses conceitos, retomados nos estudos psicanalíticos em Freud e

Ferenczi, pretende-se compreender como o saber psicanalítico junto às práticas pedagógicas

podem ajudar e/ou modificar as relações raciais na escola. Na medida em que se investiga e

compreende a origem inconsciente dos comportamentos racistas de professores e alunos.

26

O autor considera um dos graves erros da Pedagogia o recalcamento das emoções e

representações, pois, cultiva a negação das emoções e das ideias (ibid., 1908/2011, p. 40). Na

visão ferencziana, a relação que se institui entre o funcionamento psíquico e a Pedagogia

impulsionam conflitos e as neuroses. Ferenczi (1933[1932]) define que a cisão psíquica é

decorrente de um traumatismo que, por sua vez, se encontra associada à iniciativa de ocultar

a percepção do trauma, com o concomitante aparecimento da desorientação psíquica.

A criança pode, após a vivência traumática da sedução [ou de qualquer forma de

violência], portar-se subitamente como um adulto. Esta maturidade adquirida prematuramente

se deve ao esforço da criança de suplantar o sofrimento resultante da agressão. Dessa forma:

A criança que sofreu uma agressão sexual pode, de súbito, sob a pressão da urgência

traumática, manifestar todas as emoções de um adulto maduro, as faculdades

potenciais para o casamento, a paternidade, a maternidade, faculdades virtualmente

pré-formadas nela. Nesse caso, pode se falar simplesmente, para opô-la à regressão

de que falamos de hábito, de progressão traumática (patológica) ou de prematuração

(patológica). Pensa-se nos frutos que ficam maduros e saborosos depressa demais,

quando o bico de um pássaro os fere e na maturidade apressada de um fruto bichado

(FERENCZI, 2011, p.119).

Para o teórico, a consequência imediata do trauma é a fragmentação, que passa a ser

“(...) a única forma que o sujeito encontra de poder suportar uma dor impossível”.

(GONDAR, 2014, p. 3). Uma angústia indizível surge e a defesa contra esse afeto poderoso é

a “fragmentação da consciência”, que origina por sua vez uma condição de desorientação

psíquica. “A clivagem não incide sobre representações inconciliáveis com o eu, como o

recalque; ela age no plano do eu, conduzindo a sua fragmentação e até mesmo à pulverização

do eu” (ibid., 2014, p. 2), ou seja, há uma quebra na integridade do eu na situação traumática.

Em relação aos traumas sucessivos e à consequente fragmentação psíquica, Ferenczi (1933)

afirma que:

Se os choques se sucedem no decorrer do desenvolvimento, o número e a variedade

de fragmentos clivados aumentam, e torna-se rapidamente difícil, sem cair na

confusão, manter contato com esses fragmentos, que se comportam todos como

personalidades distintas que não se conhecem umas às outras (FERENCZI,

1933/2011, p. 120).

27

Este processo traumático de fragmentação do eu encontra-se associado à submissão da

criança a um saber hierárquico e hegemônico por parte dos adultos, professores e educadores,

mas, sobretudo, ao ambiente que se estrutura e propicia a manutenção de relações de poder

fundamentalmente opressoras. Tais relações, no entanto, não ocorrem apenas “de cima para

baixo”, mas se estabelecem nos “micropoderes” difundidos e “capilarizados” nas relações de

poder na escola (FOUCAULT, 2000)11

. O espaço escolar é uma máquina de aprender, mas

também de vigiar, hierarquizar, premiar e punir. Tudo o que foge à norma deve ser corrigido e

eliminado. Trata-se de um saber de tipo pedagógico que normaliza, examina e pune.

Não existe de um lado os que têm o poder e de outro aqueles que se encontram dele

alijados. Rigorosamente falando, o poder não existe; existe sim práticas ou relações

de poder. O que significa dizer que o poder é algo que se exerce, que se efetua que

funciona. E que funciona como uma maquinaria, como uma máquina social que não

está situada em um lugar privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina por toda

estrutura social. Não é um objeto, uma coisa, mas uma relação (FOUCAULT, 1981,

p.16).

Pensar em nós mesmos em relação às questões raciais e educacionais é, portanto,

repensar a educação como um instrumento para descolonizar o pensamento (GALLO &

VEIGA NETO, 2007). É preciso modificar, neste sentido, grande parte da educação como se

apresenta hoje, em uma educação humanitariamente transformadora, ao invés de ser

moldadora de formas e pensamentos a serviço da demanda estatal e/ou das elites econômicas.

Nesse sentido, é essencial investigar a educação como suporte para a construção das

subjetividades, da liberdade e do respeito à diversidade em todas as relações de poder

inexoráveis à vida em coletividade.

11 Foucault (1976/2000) teoriza sobre os aspectos genealógicos das relações de poder que

fundamentam um racismo de extermínio, que entendemos como disfarçado e sorrateiro, já que se baseia nas

franjas da ciência positivista para se justificar. Nas palavras do autor: “(...) relação não militar, guerreira ou

política, mas relação biológica. E, se esse mecanismo pode atuar é porque os inimigos que se trata de suprimir

não são os adversários no sentido político do termo; são os perigos, externos e internos, em relação à população e

para a população. Em outras palavras, tirar a vida, o imperativo da morte, só é admissível, no sistema de

biopoder, se tende não à vitória aos adversários políticos, mas a eliminação do perigo biológico e ao

fortalecimento, diretamente ligado a essa eliminação, da própria espécie ou da raça. A raça, o racismo, é a

condição da aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização. Quando vocês têm uma sociedade de

normalização, quando vocês têm um poder que é, ao menos em toda a sua superfície e em primeira instância, em

primeira linha, um biopoder, pois bem, o racismo é indispensável como condição de poder tirar a vida de alguém,

para poder tirar a vida dos outros. A função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado

funcione no modo do biopoder, pelo racismo” (p. 215).

28

A raça como conceito sociocultural

No Brasil é crescente o número de trabalhos e publicações com enfoque na relação

entre a questão racial e o processo educacional, com o objetivo de favorecer a abertura de

espaços para discussões e a busca de alternativas para minimizar a discriminação racial e o

preconceito nas escolas.

São trabalhos que abordam o tratamento sob o qual os negros estão submetidos aos

processos de exclusão no sistema de educação formal. Isso tem fortalecido o movimento de

pesquisas nessa área (CAVALLEIRO, 2000; MUNANGA, 2008). O trabalho de Sandra Maria

Machado (2015), apresentado na Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em

Educação (ANPED) - que problematiza a implementação da Lei nº 10.639/03 nos currículos e

a importância da formação inicial e continuada de professores para uma mudança na prática

docente e nos currículos escolares - se coaduna com a perspectiva levantada neste projeto de

pesquisa.

Pesquisas de outras vertentes também revelam autores com trabalhos elaborados sobre

os livros didáticos e detectaram a presença de conteúdos estereotipados, discriminatórios e

pejorativos e/ou preconceituosos sobre negros e indígenas. Algumas destas conclusões são

trazidas por Munanga (2008), que faz uma análise nas seguintes proposições:

Nas ilustrações e textos, os negros pouco aparecem e, quando isso acontece, estão

sempre representados em situação social inferior à do branco, estereotipados em seus

traços físicos ou ainda animalizados. 2) Não existem ilustrações relativas às famílias

negras; é como se negros não tivessem famílias. 3) Os textos induzem a criança a

pensar que a raça branca é mais bonita e a mais inteligente. 4) Nos textos sobre a

formação étnica do Brasil são destacados o índio e o negro; o branco não é

mencionado (em alguns casos): já é pressuposto. 5) Índios e negros são mencionados

no passado, como se já não existissem. (MUNANGA, 2008, p. 53).

Os autores mencionados como base teórica neste projeto criticam o processo de

desvalorização da população negra, trazendo uma série de questionamentos e enriquecendo o

desenvolvimento da pesquisa. De acordo com esses autores, entende-se que ser negro no

29

Brasil ainda é sinônimo de estigmas e de questões relativas à raça e ao racismo, que

configuram uma contradição em nossa sociedade.

A questão da raça é um termo presente no senso comum e permeia o imaginário de

grande parte da população. Esse aspecto corrobora com certa intencionalidade de manter o

negro estagnado na sociedade e, assim, manter as diferenças de modo disfarçado.

“Raça” é a categoria analítica indispensável diante da insuficiência da categoria de

“classe”, usada para dar conta da pobreza dos negros no Brasil. Esses aspectos só podem ser

revelados quando se investiga o imaginário racial e quando são explicitadas outras

determinações. Essa crença em classe como uma categoria mestra está relacionada aos

estudos da sociologia brasileira dos anos 1960, nos quais houve predomínio da análise de

classe, momento em que a influência do marxismo se consolidou no Brasil (GUIMARÃES,

2012).

A teoria de Marx não dá conta da complexidade da articulação entre economia, cultura

e política no que tange ao racismo. Contudo, para que os marxistas reconhecessem a

discriminação racial existente na sociedade brasileira, o racismo era atribuído a determinantes

socioeconômicos que desapareceriam com a suplantação da sociedade burguesa (ibid., 2012).

O termo “raça”, descartado por alguns autores (FRY.; GIROY, 1998, 2000) como

imprestável, é utilizado como conceito analítico para pensar o significado de certas

classificações sociais, bem como as normas que orientam a ação social concreta e as

discriminações a sujeitos negros que ainda se baseiam em crenças raciais.

Esse uso conceitual da “raça” não ressuscita a ideia de “raça biológica”, ao contrário,

trata-se, na verdade, de uma reelaboração sociológica do conceito, visto que a categoria

renasceu na luta política pela identificação entre os pares no Movimento Negro. Desse modo,

a noção identitária de “raça” é recuperada pela sociologia contemporânea como “conceito

nominalista” para expressar algo que não existe, de fato, no mundo físico e, sim, apresenta realidade

social efetiva.

O sistema de classificação racial por cor vem sendo paulatinamente modificado no

Brasil à medida que o ideal de embranquecimento vai perdendo sentido. Com efeito, os traços

físicos, a origem familiar, os antepassados, a cultura, a tradição e a posição socioeconômica

são igualmente mobilizados para definir a categoria censitária “cor/raça”. Essa é a

30

interpretação de Guimarães (2012) a partir dos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística - IBGE de 2008. A população branca começa a declinar mais que o esperado pelas

tendências demográficas, enquanto a parda, a preta e a amarela voltam a crescer.

Procedimentos metodológicos

A perspectiva teórico-metodológica deste trabalho possui um cunho psicanalítico

cultural. Textos político-filosóficos também vêm à baila incrementar as construções contidas

nesta dissertação. Assim, utilizar-se-á o enfoque de uma pesquisa teórica destacando a

interpretação dos saberes e práticas docentes, traduzidos através de “vinhetas escolares”.

Termo sugerido pela orientadora deste trabalho como forma de conceber

metodologicamente o conhecimento advindo de minha experiência de oito anos como

professora em escola pública. Essa concepção das “vinhetas escolares” é produzida em

analogia às “vinhetas clínicas”, como ocorre na construção psicanalítica de casos. A “vinheta”

é sempre ficcional, pois é fundamentada nas expressões do inconsciente.

Tal procedimento de criar narrativas de situações escolares, as chamadas “vinhetas”

com base na experiência educacional, toma como premissa a ideia de que o próprio sujeito se

constitui como uma ficção. Tal escolha também traz um aporte ético, pois nenhuma

informação será direta sobre uma pessoa ou outra. As histórias relatadas serão construídas de

modo a explicitar situações inconscientes típicas e repetitivas nas relações de poder na escola,

dando certa generalidade aos casos relatados, de modo que exprimam não só padrões de

discursos, mas padrões inconscientes de uma discursividade racista. Portanto, apresentarei

algumas formas em que o “racismo desmentido” (GONDAR, 2018), conceito fundamental

para a análise deste projeto, se apresenta no seio escolar.

A psicanálise vai nos proporcionar analisar o sujeito e o efeito das relações que

produzem discursos solidificados em falas (Pereira, 2012). A linguagem e o discurso são

prioridades centrais da psicanálise. Essas ações observadas caracterizam as relações sociais,

as trocas nas relações e a singularidade do sujeito. “O trabalho da psicanálise é tentar ler, no

31

sujeito um manuscrito estranho, desbotado, cheio de lacunas, emendas, incoerências e

comentários tendenciosos, escrito não com os significantes convencionais, mas com os que

expressam o mais singular” (PEREIRA, 2012).

Esse trabalho de construção de casos foi fundamentado teoricamente, ponto principal

deste trabalho. A pesquisa bibliográfica muitas vezes é caracterizada como revisão de

literatura. No entanto, é importante partir da concepção de que a revisão de literatura é apenas

um “pré-requisito para a realização de toda e qualquer pesquisa, ao passo que a pesquisa

bibliográfica implica em um conjunto ordenado de procedimentos de busca por soluções,

atento ao objeto de estudo" (LIMA E MISOTO, 2007, p. 38).

Como procedimentos de investigação, em primeiro lugar, foi realizada uma revisão de

literatura sobre relações raciais e saberes docentes. Além disso, paralelamente, foi realizada

análise do material obtido e dos documentos referentes às questões raciais no Ensino

Fundamental. Em seguida, recorreu-se à Psicanálise e às noções de trauma em Freud e em

Ferenczi, buscando suporte ao entendimento da Teoria do Desmentido, tão importante à

compreensão da dinâmica social e psíquica que estrutura o racismo. Apresenta, por fim,

situações-exemplos que ilustram e corroboram a referida teoria. As exemplificações trazidas

têm como fonte o manancial adquirido na prática docente da autora deste trabalho, pois é

repleta de situações em que relações de poder racistas são reproduzidas no cotidiano.

Os trabalhos da psicanalista Jô Gondar fundamentam a importância de Ferenczi como

grande influência na psicanálise moderna. A autora contribui para a compreensão do mal-estar

contemporâneo em relação ao sofrimento narcísico e na estruturação da teoria do desmentido,

especialmente no que concerne à pessoa negra, principal sujeito atingido por uma branquitude

massiva que camufla a falsa democracia racial vivida em nosso país.

A perspectiva aqui utilizada privilegia o enfoque qualitativo de pesquisa. Tal

abordagem qualitativa se destaca na interpretação das ações dos indivíduos, dos grupos ou das

organizações em seu ambiente e contexto social. O viés qualitativo não exclui os dados

quantitativos, posto que se entenda como as duas abordagens estão correlacionadas, no

sentido de auxiliar na compreensão dos objetivos da pesquisa (MINAYO, 2011).

Como vários procedimentos de pesquisa fazem parte da abordagem ou método

qualitativo, fizemos a escolha por alguns que dependem do objetivo traçado. Antes, porém,

trago aqui o conceito de metodologia de pesquisa apresentado por Minayo (2015) a que se

32

refere como sendo “o caminho do pensamento e a prática exercida na abordagem da

realidade” (p. 14).

Para a realização da análise, neste trabalho, foi necessário tecer algumas considerações

sobre determinadas categorias desta escritura. Ressalta-se então que o vocábulo “raça” será

utilizado no sentido dado por Guimarães (2012); Munanga (2003; 2013); Mbembe (2014);

Todorov (1993); Oliveira (2013); Schwarcz (2012) como construção social e conceito

analítico usado para compreender uma sociedade onde as crenças raciais baseadas no viés

biológico ainda orientam os comportamentos e as discriminações.

Utilizamos também como referência os seguintes autores: Frantz Fanon (1983), em

sua análise com base na psiquiatria e, sobretudo, na psicanálise, na busca de compreender a

convivência de negros e brancos na França. Para esse autor, negritude e branquitude são

instrumentos de violência e submissão para o negro, além dessa relação favorecer a alienação

de fatores socioeconômicos e históricos.

Munanga (2003) caracteriza algumas reações do negro em suas relações sociais que

vão desde a assimilação dos valores culturais dos brancos nesse mesmo contexto e até a sua

própria negação enquanto sujeitos, chegando ao desejo do embranquecimento, à falta de

reconhecimento da existência do racismo, e aos mecanismos de iniquidade e de maldade

apresentados nos discursos racialistas historicamente postulados, mas ainda praticados no

tempo presente.

Abdias Nascimento (2016), com rigor e propriedade, é abordado nesta pesquisa de

modo a denunciar a falácia do bem-estar racial que afirmam reinar em nosso país. O autor

realiza um trabalho de desconstrução na formulação intelectual do Brasil branco para explicar

uma realidade negra atual que estabelece como sua preocupação principal e urgente o

genocídio silencioso da população negra, que afeta diretamente a auto definição do negro e o

planejamento do seu futuro.

Além desses autores, retomo Neuza de Souza Santos (1983), em sua brilhante análise

sobre o Ideal do Ego, determinando inconscientemente uma condição que impulsiona o negro

a imaginar e desejar ter a aparência do branco. A autora dá como exemplo os relacionamentos

inter-raciais, ou seja, a procura do negro em se relacionar com pessoas de pele mais clara

revela a necessidade do negro adotar, em sua crença de ascensão social, a possibilidade de

provar que pode, na sociedade, ser semelhante ao branco.

33

O racismo, como uma crença na existência das raças hierarquizadas como inferiores e

superiores, surge como resultado da criação e da expansão das doutrinas raciais e, desse

modo, podemos afirmar o quanto a discriminação racial está arraigada nas práticas sociais e

constitui um sistema que reproduz as desigualdades, no qual a população negra é posta em

situação desvantajosa econômica, política, social e culturalmente (GUIMARÃES, 2009). A

esse processo de exclusão, discriminação e opressão, acrescenta-se a violência psíquica a que

as crianças, jovens e adultos negros são severamente expostos e constituem suas

subjetividades de modo traumático e clivado.

O preconceito é a crença prévia na existência de qualidades morais, intelectuais,

físicas e psíquicas ou estéticas de alguém, baseadas na ideia de raça. A discriminação ocorre

quando esse preconceito se manifesta no comportamento (GUIMARÃES, 2004).

Empregaremos a palavra “negro”, visto que foi o termo escolhido pelo movimento negro na

sua política de construção da identidade racial para designar todos os descendentes de

africanos. Trata-se do segmento racial composto por pessoas que se auto classificam ou foram

classificadas no Censo como de cor preta ou parda. O próprio Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatísticas adota essa definição.

À luz da psicanálise, podemos entender o racismo como uma forma de se esconder em

si para não ver o outro como seu semelhante e, dessa maneira, não temer perder sua própria

identidade. Vejamos a citação a seguir com uma explicação mais abrangente:

O racismo se explicaria por uma projeção daquilo que em nós mesmo está oculto,

mas é ameaçador. O que é direcionado para fora está dentro de si mesmo, seja o

masoquismo moral, sejam as ameaças às amarras identitárias da sexualidade. Isso

esclareceria o porquê de algumas pessoas terem extrema dificuldade de lidar com a

diversidade, enquanto que para outras esse processo é mais tranquilo. A

impossibilidade de lidar com a diversidade “externa”, assim, também passaria por

questões intrapsíquicas. (COELHO &ARREGUY, 2018).

Nesta análise, observamos a insegurança que o racista adquire ao se perceber como o

“outro”: algo que lhe causa profundo estranhamento. No texto Racismo, o estranhamento

familiar: uma abordagem psicanalítica, a autora Miriam Chnaiderman (1996), aponta para a

questão do indivíduo racista ter receio de ver o diferente tornar-se o mesmo, por meio da

perda do contorno próprio. O problema é “ver o outro como muito parecido, e por isso sentir-

se ameaçado na sua identidade” (CHNAIDERMAN apud COELHO & ARREGUY, 2018).

34

A inserção da psicanálise nesse trabalho justifica a investigação de discursos

dissimulados nas relações raciais, fortalecendo a estrutura de uma ideologia racista e

discriminatória do ponto de vista psíquico, institucional e social, como uma violência

silenciosa que perdura ainda hoje.

Os discursos do sujeito, assim como os discursos da instituição, tendem a produzir

repetições, mesmices, pontos de fixação, com o objetivo de conservar o igual,

preservar a rotina e garantir sua automatização. Porém, o próprio discurso, através

da fala de quem o profere, mostra-se fendido, falhado, esburacado. Ele requer

sempre interpretação, pois guarda uma estrutura de significação. É exatamente aí,

nas emergências da falha do discurso que demandam interpretação, que a meu ver a

psicologia e a psicanálise podem encontrar seu lugar. (PEREIRA, 2012. p, 29).

Considerando aspectos macrossociais historicamente construídos pela população

negra, que resultou na equivocada hierarquia da humanidade, através da efabulação a respeito

das características fenotípicas e, também, a partir da diversidade das culturas de diferentes

grupos humanos, procuramos explicitar o caráter totalizante das bases e das relações de

dominação político-pedagógica daquilo que foi produzido num contexto social racista.

Buscamos nessa pesquisa, articular elementos que expliquem a dinâmica das relações

raciais, de um modo abrangente no meio social e psicanalítico, possibilitando a compreensão

do imaginário e, ao mesmo tempo, interferindo nele, em suas formas de comportamento e

rejeição de suas origens, na constituição do campo da subjetividade humana. Preservamos

elementos do enfoque dialético neste trabalho ligado à psicanálise, e assim, procuramos

compreender questões relativas às relações racistas que se evidenciam nos sujeitos presentes

nas escolas públicas.

35

CAPÍTULO 1 – Narcisismo das Pequenas Diferenças

Neste capítulo, vamos enveredar pela psicanálise e os conhecimentos abrangentes no

pensamento ocidental do século XX através da descoberta do inconsciente por Freud. As

teorias sobre a sexualidade inconsciente trouxeram profundo impacto no pensamento

moderno e, com a mesma proporção, no âmbito da educação.

Como educadora e pesquisadora, minha aproximação à psicanálise ocorreu na atual

pesquisa de mestrado. Encantei-me pela teoria freudiana, o encantamento com o aprendizado

psicanalítico tem reformulado minha maneira de ver as relações sociais na escola e fora dela.

Embora, não tenha formação em psicanálise, esse aprendizado tem ressignificado minha

prática docente e o modo de apreender a vida em suas mais sutis nuances.

Não terei tempo suficiente para mergulhar nos aspectos históricos dessa relação tão

profícua entre educação e psicanálise. Sou apenas uma educadora que se debruça na

psicanálise e, a partir dela, minhas percepções e convicções estão sendo modificadas. Meu

objeto de estudo traz consigo a preocupação do desenvolvimento das relações raciais no

Brasil, em particular no âmbito escolar.

A maneira como tratamos ou não esse assunto tão espinhoso do racismo para negros e

mulatos, por um olhar psicanalítico, nos leva a compreender a diferença trágica, que

encaminha a desigualdade em nosso país. Essa diferença escamoteada e fingida traz a

sensação de sermos todos amigos e vivermos em igualdade; mas isso é uma farsa! Na

verdade, há um ódio camuflado em relação ao negro, imposta na seguinte formulação

discursiva, expressa estatisticamente pela quase totalidade dos brasileiros: Eu não sou o

racista, mas, conheço alguém que é (SCHWARCZ, 2012).

Nossa investigação gira em torno do sujeito não reconhecido no campo social e da

consequente relação de ortodoxia fundamentalista que corrobora para a classificação das

pessoas por suas diferenças étnicas, destacando um narcisismo patológico presente na cultura

dominante.

Referindo-me ao processo discriminatório que envolve o racismo e sua atividade

perversa através dos séculos, convido os leitores a adentrar nas especificidades do narcisismo

36

nos tempos atuais e suas sutis articulações na vida psíquica das pessoas atingidas diretamente

pelo preconceito de cor.

A partir do movimento de racialização entre os grupos de cor e suas diferenças,

destaca-se o surgimento de uma Antropologia criminal (COELHO; ARREGUY, 2018) surgida

no século XIX na Europa, difundida e estudada, inclusive implantada com rigor em nosso

país, em academias de polícia. Encontramos doutrinas que estigmatizavam negros e mouros,

por suas características genotípicas, como se isso os tornassem mais predispostos à

criminalidade. Tal doutrina deu espaço para a criação e proliferação de imputações morais,

que subjugam e oprimem povos de outras etnias não ocidentais e não europeias (ibid.).

A antropologia criminal foi criada através dos estudos do médico italiano Cesar

Lombroso (1835), de concepção positivista. Lombroso pesquisava o crime, através da

perspectiva naturalista, mas, seus principais estudos eram sobre o delinquente nato. De acordo

com seus estudos o meio influenciava pouco os criminosos, no entanto, a patologia do crime

nascia com indivíduo, e seria exposta, logo em seguida, em forma de degeneração.

O autor utilizava de características físicas e fenotípicas para exemplificar o perfil de

criminosos, alegava anomalias cranianas, designando o termo “anormal” para o delinquente.

Estudou diversos corpos de prisioneiros a fim de constatar a definição de criminoso nato

(LOMBROSO, 2001). Contudo, as descrições dadas por Lombroso revelam um cunho

segregatório, pois as características dadas por ele se assemelham com as de negros imigrantes

que aportavam na Itália, o que classifica sua teoria como racista, embora tenha sido muito

utilizada ao longo do século XX.

Em paralelo a difusões de teorias racistas, podemos ressaltar outro agravante

histórico: à invenção e disseminação de histórias que massificam a inferioridade de outros

povos. Nesse sentido, a sociedade ocidental bateu recordes de criatividade e manipulação.

Perseguiam, matavam e exploravam as populações de suas grandes terras recém-descobertas,

com o respaldo em alguma narrativa (mesmo que imaginária), embasada em algo como o

“divino” ou a “ciência”, já que essas respectivas ocasiões eram dadas como incontestáveis.

Na maneira de pensar, classificar e imaginar os mundos distantes, o discurso

europeu, tanto o erudito como o popular, foi recorrendo a processos de efabulação12

.

12 Entre intelectuais dos campos dos Estudos Pós-Coloniais e Africanos é consenso que a categoria

raça não passa de uma invenção, de “[...] uma ficção útil, de uma construção fantasista ou de uma projeção

ideológica cuja função é desviar a atenção de conflitos (...) – a luta de classes ou a luta de sexos (...)”

37

Ao apresentar como reais, certos ou exactos, factos muitas vezes inventados foi-lhe

escapando a coisa que tentava apreender, mantendo com esta uma relação

fundamentalmente imaginária, mesmo quando a sua pretensão era desenvolver um

conhecimento destinado a dá-la a conhecer objectivamente. As características

principais desta relação imaginária estão ainda longe de ser esclarecidas, mas os

processos graças aos quais o trabalho de efabulação se avolumou, assim como as

consequências da sua violência, são, actualmente, assaz conhecidos. (MBEMBE,

2014, p. 29).

Na perspectiva deste autor, utilizando como referência a obra Crítica à razão Negra

(MBEMBE, 2014), podemos compreender como os colonizadores interpretavam o negro e

seu ímpeto desbravador consciente de si e de seu povo. Os europeus viviam com o receio de

serem dominados por seus dominadores. Causando delírios neuróticos nos ocidentais, o negro

é aquele que vemos quando nada queremos compreender.

“Esse delírio causado pelo outro, acontece quando há uma perda completa da

capacidade de contenção oferecida pela internalização de um objeto primário suficientemente

bom, o sujeito vem projetar no outro tal insuficiência.” (COELHO & ARREGUY, 2018).

Complementando o pensamento, incluo uma breve contribuição de Mbembe apoiando-se em

Deleuze sobre o “ser negro”: “Há sempre um negro, um judeu, um chinês, um mongol, um

ariano no delírio, pois aquilo que faz fermenta o delírio são, entre outras coisas, as raças.”

(DELEUZE apud MBEMBE, 2004, p. 11).

Observamos como as diferenças movem o racismo, elevam a agressividade, e

produzem não importa qual critério para se manifestar cruelmente. No racismo contra o

negro, podemos perceber o ranço histórico em relação a esses povos, em diversas sociedades.

Contra essa crueldade resta, a luta pela igualdade e empoderamento da pessoa negra.

A violência racista destrói a identidade, a subjetividade e também a história dos

indivíduos. Em termos psíquicos podemos apreender nas obras de Freud (1929), o quanto a

maldade e a perseguição ao Outro, influência às relações e maltrata quem é visto como

diferente. Para esse autor, a “maldade” enquanto expressão recrudescida da agressividade e

das pulsões sádicas é inerente aos seres humanos. Freud (1920) reformulou sua teoria a partir

(MBEMBE, 2014, p. 27). Mbembe (2014) também usa o termo efabulação para referir-se a essa invenção. O

autor se refere ao cerne da questão racial como uma “efabulação”, na verdade, uma invenção, da qual

compreende-se uma nova configuração de mundo (DESIDERIO, 2017, p. 79).

38

da pulsão de morte, quando descobriu que o homem é capaz de fazer do outro não apenas

objeto de sua pulsão sexual, mas, de uma pulsão de crueldade que todos portam em si, além

de tratar o outro como um objeto e, assim, poder maltratá-lo, rebaixá-lo, estuprá-lo, deixando-

o abandonado a sua própria morte até, inclusive, matá-lo. Em suma, fazer do outro objeto de

seu gozo da crueldade. Nas palavras de Freud (1929):

Os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo,

podem defender-se quando atacadas (...) são criaturas entre cujos dotes instintivos

deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o

seu próximo é para eles, não apenas um ajudante potencial ou objeto sexual, mas

também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar

sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu

consentimento, apoderar-se de suas posses (...) (FREUD, 1929, p. 29).

Essa forma pulsional agressiva e, por ventura, cruel, de se apropriar do corpo do outro

e de suas posses é um dos componentes essenciais do racismo. A enunciação desqualificadora

e racista pode ser de cunho religioso, de cor, sexual, de gênero ou orientação sexual, vindo a

reduzir a pessoa somente a uma característica pejorativa, tomando-a para servir sua pulsão de

crueldade. Esse tipo de comportamento se constitui como a base do racismo.

Em termos psicanalíticos, podemos pontuar que Freud (1929) designava em sua obra o

racismo e a intolerância, principalmente em suas reflexões sobre o antissemitismo ao qual

podemos assemelhar à discriminação racial generalizada contra todas as raças. Segundo o

autor, na formação de grupos humanos sempre houve a necessidade de designar inimigos,

classificando quem estiver de fora como inferior. Isso significaria a solução para a pulsão de

destruição existente em cada grupo social.

Fundamentalmente, a intolerância se encontra no cerne das pequenas diferenças.

Nesse caso o ódio se concentra no Outro, como projeção daquilo que lhe é semelhante

(FREUD, 1929).

Em outra ocasião, examinei o fenômeno no qual são precisamente comunidades com

territórios adjacentes, e mutuamente relacionadas também sob outros aspectos, que

se empenham em rixas constantes, ridicularizando-se uma as outras, como os

espanhóis e os portugueses, por exemplo, os alemães do Norte e os alemães do Sul,

os ingleses e os escoceses, e assim por diante. Dei a esse fenômeno o nome de

‘narcisismo das pequenas diferenças’, denominação que não ajuda muito a explicá-

lo. (...) Com respeito a isso, o povo judeu, espalhado por toda parte, prestou os mais

uteis serviços às civilizações. (FREUD apud COELHO & ARREGUY, 2018).

39

Nas palavras irônicas de Freud, essa lógica perversa faz parte da convivência humana,

pois só haverá um grupo coeso, se fora dele houver aqueles para serem odiados, e isso não se

torna um impeditivo para a continuação desse grupamento. Na relação entre o sujeito e o

Outro, há um aumento do narcisismo que corrobora para o crescimento da violência.

Em outras palavras, qualquer insatisfação ou indiferença pode ser considerada como

desamparo social de modo a conduzir o sujeito à violência contra o outro, visto como

ameaçador. Nesse caso, os mecanismos narcísicos ampliados e o sentimento de impotência

aguçado impedem as práticas de solidariedade e compaixão. Esse movimento pulsional de

fundo narcísico aumenta o ódio e a rejeição ao outro, deixando as pequenas diferenças

intoleráveis entre os indivíduos.

Com vistas à compreensão da relação entre a violência e a humanidade (ou a falta

dela), é imperativo observar o crescimento do deslocamento cultural provocado pelo

enfraquecimento de um grupo em prol do engrandecimento de outros grupos. Aquele

violentado pela indiferença é deslocado para o centro de tudo que não convém, e é obrigado a

fazê-lo com consciência de que está sendo expurgado por um capricho ideológico de um

discurso contraditório e mórbido.

O negro tem ciência de que o sujeito branco foi criador de atitudes cruéis contra a

humanidade em benefício próprio, como: o colonialismo, a inquisição, o nazismo, o

antissemitismo, o imperialismo, a escravidão entre outras guerras em busca pelo poder e em

defesa da suposta “superioridade” e “civilização” do branco.

A força da dominação psíquica e social sob o negro era intensa, mas, o que lhe doía

era não poder adentrar profundamente nessa brancura sem se ferir brutalmente, embora esse

desejo de ser branco esteja entranhado em sua consciência como simbolismo de perfeição e

sabedoria. Retomando de forma crítica, porém bastante realista, a proposição falaciosa acerca

da suposta “superioridade” da branquitude, o psicanalista Jurandir Freire Costa (1983), alerta

para essa grande mentira histórica:

O belo, o bom, o justo e o verdadeiro são brancos. O branco é, foi e continua sendo a

manifestação do Espírito, da Ideia, da Razão. O branco, a brancura, são os únicos

artífices e legítimos herdeiros do progresso e desenvolvimento do homem. Eles são

a cultura, a civilização, em uma palavra, a “humanidade” (COSTA, 1983, p. 5).

40

Os ocidentais não se tornaram grandiosos traficantes de seres humanos, escravizando-

os brutalmente por serem racistas, já que havia algo que predominava por trás dessa

irracionalidade. Tornaram-se racistas porque usavam escravos para conseguirem poder e

incomensuráveis lucros através da escravização de não brancos. E, para justificarem suas

atitudes, criaram elementos que camuflavam seus verdadeiros interesses na escravidão, e

escondiam assim que o sistema escravocrata era movido pela economia13

.

Na complexidade dinâmica do racismo contra o negro, observamos historicamente a

consequência de ações desastrosas como a de considerarem nações inteiras como seres

inferiores e que, na sequência, embasaram episódios nefastos no caminho à “civilização”,

com apontamentos perversos endereçados ao outro, ao diferente.

Dessa maneira, se faz necessário categorizar o que é ser diferente e quão tênue é essa

classificação. Podemos afirmar que o diferente, particularmente em nosso cerne de estudo, é o

outro não branco, não descartando questões culturais, religiosas, de orientação sexual e

posições sociais. Mas, em nosso caso, o não branco é visto o tempo todo como ameaça, em

decorrência de toda atrocidade vivenciada por ele no processo pitoresco imposto pela

civilização europeia.

Em O Mal-estar da civilização, Freud (1929) nos traz a reflexão sobre o quanto o

desenvolvimento da civilização trouxe consigo o descontentamento permanente entre as

pessoas “civilizadas”. A fonte social do sofrimento mostra que fracassamos em algo, ou que,

de modo pormenorizado, suspeitamos que na contenção do sofrimento ou no anulamento

deste, seria dada pela incapacidade humana de conquistar uma quantia da natureza a ser

inconquistável. Contudo, esse ímpeto de dominação representa uma parcela de nossa

composição psíquica.

Esse argumento sustenta que o que chamamos de nossa civilização é em grande

parte responsável por nossa desgraça e que seríamos muito mais felizes se a

abandonássemos e retornássemos às condições primitivas. Chamo esse argumento

de espantoso porque seja qual for a maneira por que possamos definir o conceito de

civilização, constitui fato incontroverso que todas as coisas que buscamos a fim de

nos protegermos contra as ameaças oriundas das fontes de sofrimento, fazem parte

dessa mesma civilização(ibid., p. 15).

13 BBC de Londres. “A história do racismo e o escravismo” (2012). Disponível na internet: https: //

www.youtube.com/watch?y=0NQz2mbaAnc. Acesso em 28/10/2017.

41

Da escravização, colonização até o neoliberalismo que defende ferozmente as ideias

consumistas capitalistas, atestamos que a grande massa populacional de não brancos vive a

revelia de serem exterminados historicamente. Um genocídio incomensurável que acontece no

mundo todo seja em guerras civis, desterritorialização de nações inteiras, ditaduras que ainda

perduram ou em países como o Brasil que vive incontroláveis conflitos com o crescente poder

paralelo e a violência escancarada em relação aos habitantes mais pobres, em grande maioria,

afrodescendentes.

A insatisfação em relação à civilização foi motivada por acontecimentos históricos que

modificaram a vida de milhares de centenas de pessoas. Podemos pautar: a vitoriosa ascensão

do cristianismo sobre as demais religiões e a obrigação de catequizar quem dela não

partilhava. Esse fato, por sua vez, conflui com o genocídio dos indígenas que habitavam as

terras ancestrais no continente americano, por exemplo.

Esse episódio elementar deixou profundos rastros de infelicidade na humanidade:

ocorreu com as viagens ultramarinas que descobriram o novo mundo e o contato com

diferentes nações que rapidamente foram degradadas à inferioridade, por levarem uma vida

simples, em consonância com a superioridade atribuída à natureza, e não aos “homens”, o que

a ambição e a superioridade europeia não conseguia compreender e seguir (ibid., 1929, p. 16).

Ao longo desta última, percebemos o quanto as hierarquizações dos diferentes povos

em raças contribuíram para chegarmos à insatisfação civilizatória. Primeiro, vieram às

classificações de animais, da natureza e dos seres humanos, cujo mecanismo preponderou

pelos séculos seguintes, impondo a classificação de raças para a mantença da exploração de

populações oprimidas, em consonância com o racismo.

A violência racial faz com que o encontro com o Outro não seja uma possibilidade de

interação positiva, mas, de uma ameaça em potencial. Trata-se de um fundamentalismo capaz

de renovar cotidianamente o inimigo: o Outro como ladrão, favelado, negro, pobre,

vagabundo, preguiçoso, entre outros codinomes absolutamente pejorativos e infundados.

As questões psíquicas e raciais neste trabalho não podem ser ignoradas, doravante a

infelicidade justificada pelo conhecimento das neuroses que atribulam pessoas de um modo

geral, negras ou não, por não alcançarem suas expectativas. Quando escamoteadas, esses

aspectos psíquicos da classificação do mundo por raças acarretaram frustrações que se

tornavam insuportáveis. Consequentemente, se torna impossível viver diante do julgo da

42

opressão da lei e da ordem coercitiva imposta pela civilização que deveria libertá-los.

Paradoxalmente, livrar-se da dita “civilização” traria a possível felicidade. Mas, como se

libertar dela, depois de aprisionar a todos?

De acordo com Freud (1929), o problema do estado de felicidade e as questões da

dificuldade dos seres humanos em serem felizes, estão vinculados a três fontes de nosso

sofrimento, sendo que as duas primeiras nos remetem às condições frente à natureza, sua

superioridade e nossas limitações e fragilidades em relação ao nosso próprio corpo; essas

condições são insuperáveis e ocasionam, assim, grande desconforto.

Nossa civilização é em grande parte responsável por nossa desgraça e que seríamos

muito felizes se abandonássemos e retornássemos às condições primitivas. Chamo

esse argumento de espantoso porque, seja qual for a maneira por que possamos

definir o conceito de civilização, constitui fato incontroverso que todas as coisas que

buscamos a fim de nos protegermos contra as ameaças oriundas das fontes de

sofrimento, fazem parte dessa mesma civilização (FREUD, 1929, p. 15).

A nossa sociedade é perversa, detratora e preconceituosa. Ao falar mal de alguém eu

estou expondo minhas dores, expondo uma forma de catarse, na qual transfiro minha energia

para este campo, ou seja, falar mal é uma forma de falar do que me dói, do que incomoda e,

por isso, a necessidade de ter cuidado com que falo, pois é quase um “raio-X” da minha alma.

No discurso de um racista está o preconceito daquilo que vejo de mim no outro. No

humor, por exemplo, se retiramos das piadas brasileiras o negro, o pobre, o homossexual e o

nordestino, veremos a ausência de uma proposta humorística, pois, só se torna atrativo quando

degradante ou opressor, atingindo a autoestima de alguém.

O preconceito é um dos elementos que estabelece uma tentativa de aliança entre mim e

o outro. Ele nasce da ignorância e do medo que habita em nós. A falta de conhecimento e a

angústia do medo existente em nós fazem surgir o preconceito, o ódio racial e o pavor de ser

superado pelo outro.

No auge do preconceito está meu desejo. A todo instante, naquilo que eu projeto no

outro, o preconceito é forte e livrar-se dele exige muito. Para que seja superado precisamos de

duas coisas: a educação, a coerção e a lei.

43

Penso que nesta discussão, a conscientização acerca da importância do negro na

constituição da sociedade brasileira no passado e no presente é um assunto que, mesmo em

tempos líquidos (BAUMAN, 2007), ainda é considerado um tabu social. As pessoas

“comuns” não disponibilizam tempo para aprofundar e discutir o problema do racismo.

Podemos pontuar que o conhecimento - como forma legítima de sair da ignorância e não

como um fetiche conteudista - é também adquirido através de um processo doloroso de

encontro com “verdades” intranquilas que precisamos estar dispostos a descobrir.

“O saber dói”, incomoda e nos tira da zona de conforto na qual nos encontramos.

Preferimos na maioria das vezes não pensar sobre as razões que nos fazem ser tão pacíficos

em relação à agressividade gratuita do outro. Como reagir se somos educados de forma

acrítica e amorfa em relação à indiferença que nos cerca?

A concepção acerca da expressão o “saber dói” é originada em Freud (1896). A

compreensão de trauma pairava na perspectiva de que a criança assexuada, ainda não tinha

condições de dar sentido a um evento erótico traumático que, na juventude, ressurgia de

forma acentuada através de neurose. “Nesse contexto, a problemática do trauma implicava,

efetivamente, uma relação do sujeito com o saber: para o adolescente/adulto que sofrera

assédio sexual na infância, saber dói” (KUPPERMAN, 2017, p. 49).

Os meios de comunicação, o entretenimento, nos são oferecidos com o propósito de

nos fazer “repousar em berços esplêndidos” no colo de nossos agressores, ao preço de nos

iludirmos de que ainda vivemos em plena harmonia de uma democracia racial. Situação

elástica que nos silencia, aniquila, imperando na maioria das famílias de classes populares.

Propositalmente essas famílias não possuem garantia de acesso a uma educação de qualidade,

ao lazer e a bens culturais que agucem o desejo de sair da inerte plateia em que se

transformou nossa sociedade brasileira ao longo dos séculos.

A escravidão moderna ainda nos condena, usa de estratégias como a meritocracia, a

competitividade injusta e a divisão de classes e de capital. Afinal até que ponto cada um de

nós atua inconsciente e inconsequentemente no “narcisismo das pequenas diferenças”

absolutamente “identificado com o agressor”? Ora, quem se identifica, em certa medida, é ou

passa a ser, a ocupar esse lugar, tomando o papel de opressor, que se vê como “superior”,

violento apenas se achando arrogantemente acima dos outros.

44

Como pesquisadora e mulher negra, afirmo que ser negro na sociedade brasileira não é

nada fácil. Convivo diariamente com o desafio de ter que me submeter e perceber um mundo

de diferenças, onde o branco é privilegiado em muitas ocasiões. No trabalho docente, observo

a presença de poucos negros e, quando há, vejo que não expressam conhecimento a respeito

de sua negritude, tampouco conversam sobre questões raciais ou sobre a luta pela conquista

de uma educação antirracista. Esse silenciamento me assusta e consterna.

As relações entre docência e questões raciais não são debatidas, mesmo frente a

conflitos raciais entre alunos. Nesse caso, no máximo, a discussão se aproxima da condição de

bullying na escola: outra espécie de “fetiche cientificista” que mais encobre os fatos do

racismo do que os esclarece e descontrói.

Assumir a roupagem da negritude é fundamental quando nos entendemos como

negros em nosso país. Infelizmente, ainda vejo pessoas que se escondem atrás de aparência

para disfarçar sua cor, faltando à percepção de negritude. É preciso reafirmar com orgulho:

não sou morena clara, sou negra!

Quantas vezes no passado me deparei com pensamentos íntimos de que gostaria de ser

branca para encarar alguma situação que, vivida por um negro, é vista como consequência da

cor e não um erro humano. Esse desejo externava o quanto ainda sofria em relação a minha

cor e à condição de ser negra numa sociedade racista e desigual.

O anseio por perder a cor demonstrava o quanto estava sujeita ao imperativo racista,

negando minha identidade. Dou ao outro o direito de definir quem sou, ou introjeto aquilo que

ele, o branco, pensa de mim. Simplesmente me desfaço de quem sou, separo a percepção da

representação psíquica que me constitui, assim, me represento no branco, me desestruturo e

fico à deriva da violência racista, como em uma alucinação negativa (COSTA, 1983).

Busco respostas para o que sentia. Como negra, pobre e suburbana, onde fica meu

lugar nessa sociedade classista e falsamente burguesa que me diz direta e indiretamente que

não pertenço a determinados lugares, a bens de luxo ou uma posição confortável frente aos

brancos? “Até os dias de hoje ele – o negro – tem sido julgado pelo branco, um juiz

completamente tendencioso em seu próprio interesse, certamente mais que parcial e injusto,

quando não flagrantemente criminoso (DZIDZIENYO apud NASCIMENTO, 2016, p. 96).”.

Na psicanálise é recente a discussão racial. A relação dos negros e sua emocionalidade,

principalmente do negro falando por ele mesmo, foi negligenciada por muito tempo, e quando

45

abordada foi aprofundada por poucos (COSTA, 1983; FANON, 1983). Mas, acredito que esse

fato não será um impeditivo para que hoje seja possível dissertar com profundidade sobre o

racismo através da psicanálise, de modo a buscar respostas que caracterizem essa desumana

forma de opressão.

A população negra necessita buscar conhecimentos e referências para constituir um

discurso acerca de sua identidade e, principalmente, de sua afetividade. O que possuímos e

introjetamos no inconsciente é o ideal de ego do branco como alusão de perfeição em todos os

âmbitos sociais e culturais. Assim, o que temos como resultado são negros numa sociedade

branca (SOUZA, 1983, p. 17).

Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade,

confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas

alienadas. Mas é também, e, sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar

sua história e recriar-se em suas potencialidades (ibid., p. 18).

Essa incompletude é vivida por muitas negras brasileiras. Não se empoderar e guardar

consigo o desejo quase eterno de impor-se branco, na imagem, nas ações e principalmente na

ascensão social. Assim, o negro no esforço pela ascensão social, perde sua identidade de

maneira crescente e devastadora. Ignora sua essência, raízes e credo, se identifica com o

branco, com o delírio de tornar-se o outro, seu agressor.

Podemos ler em Mbembe (2014, p. 139) que o discurso negro foi estabelecido por

três acontecimentos históricos: a escravatura, a colonização e o apartheid. Para o autor, esses

três pilares são atualmente a base do discurso negro. Vamos observar com detalhes o que

significam.

(...) a separação de si mesmo, implicou uma perda de familiaridade consigo, que o

sujeito, estranho a si mesmo, foi relegado para a identidade alienada e quase inerte.

Assim, em vez de ser ele mesmo, como seria suposto viver, cresceu numa alteridade

na qual o eu deixou de se reconhecer: o espetáculo da cisão e do desmembramento.

De seguida, a ideia da desapropriação. (...) Por fim, a ideia da degradação: a ideia da

degradação: a condição servil não terá unicamente mergulhado o sujeito negro na

humilhação, no rebaixamento e num sofrimento inominável. No fundo, passou por

uma morte civil caracterizada pela negação da dignidade, pela dispersão e pelo

tormento do exílio (ibid., p. 139-140).

Em outras palavras, Mbembe nos diz que a escravatura, a colonização e o apartheid

formam o núcleo basilar do desejo do negro de “se-saber-ele-mesmo (o momento da

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soberania) e de se-ter-a-si-mesmo no mundo (o movimento de autonomia)”, movimento que

oportunizou o negro a lutar por si e por seus direitos. O discurso do movimento negro deu,

assim, um pontapé inicial para o movimento de libertação e reconhecimento próprio de sua

história como personagem principal.

Para o negro conseguir ter conhecimento de si e autoconfiança é necessário ter

conhecimento de sua história como sujeito de ações positivas. Ter sua representação como

agente livre de uma concepção tradicional que o define ao longo de séculos como socialmente

inferior e incapaz, sem uma visão positiva de si mesmo. Essa falta de representatividade fez o

negro tomar o branco como modelo ideal de identidade.

A emocionalidade do negro foi posta sem foco definido, algo sem importância,

levando-o a se adaptar à realidade imposta pelo branco, e, assim, configurar estereótipos que

sugerem um paralelismo entre cor negra e posição inferior (SOUZA, 1983, p. 19).

Viver com a insígnia da cor negra é um desafio doloroso e cotidiano. Implica em

conviver com a invisibilidade, com a inflexão de alguns grupos que resistem em olhar o negro

como um sujeito do mínimo nível social, que ainda acreditam na incapacidade intelectual de

pessoas negras, e tendem a insistir na destruição da identidade dos negros, impondo a cultura

branca.

Negros e brancos viam-se e entreviam-se através de uma ótica deformada

consequente à persistência dos padrões tradicionalistas das relações sociais. O negro

era paradoxalmente enclausurado na posição de liberto; a ele cabia o papel de

disciplinado – dócil submisso e útil – enquanto o branco agia com o autoritarismo,

por vezes paternalista, que era característico da dominação senhorial. Esse lugar de

inferioridade se espalhava no modo de inserção da população negra no sistema

ocupacional das cidades (SOUZA, 1983, p. 21).

A psicanalista negra, Neuza Santos Souza, em seu livro magistral Tornar-se Negro

(1983) nos convida a compreender a invisibilidade da emocionalidade do negro, de seus

sentimentos e impressões acerca de uma exclusão social camuflada no Rio de Janeiro. A

autora apresenta depoimentos marcantes de pessoas negras que viveram esse processo de

preconceito e incompreensão de sua negritude, sua história e importância na constituição de

suas identidades.

Neste capítulo, Neuza de Souza Santos é muito referendada, primeiramente por me

identificar com seu trabalho e, em seguida, por perceber que faço parte desse processo de me

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tornar negra em todas as implicações necessárias, para entender o desenvolvimento de

formação da minha própria identidade. Contudo, reforçando meu desejo de ascensão social,

determinada em não deixar de ser negra para embranquecer, que configura uma situação de

luta e resistência contra a imposição do embranquecimento.

A ascensão do negro traz consigo o desejo pela brancura, ou o deixar de ser negro, de

estar em trabalhos de brancos, vestir-se como branco, respirar branco (ibid., 1983). Vivemos

em uma estrutura ideológica que massifica o quanto a população negra é vista como

marginalizada, exaltando o branco indiretamente como o exemplo a ser seguido e admirado.

Na história, principalmente de povos colonizados, encontramos diversos exemplos de

violência desmedida e desqualificação do outro enquanto semelhante. Em nossa cultura

ocidental ou reconhecemos no outro um semelhante no qual nos identificamos e atribuímos

nossa humanidade ou o consideramos como diferente, menosprezando e conferindo toda

desumanidade e desprezo, aferindo violência e discriminação.

Freud em (1929) inaugura o conceito “narcisismo das pequenas diferenças”, no qual

postula a possibilidade de uma pessoa se intitular melhor do que outra e, assim, empregar as

características pessoais como instrumento para eleger o outro como inferior. Daí todo o cunho

racista e preconceituoso é justificado com violência por questões de diferenças encontradas no

outro que se torna ameaçador.

A existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e

supor com justiça que ela está presente nos outros, constitui o fator que perturba

nossos relacionamentos com o nosso próximo e força a civilização a um tão elevado

dispêndio (de energia). Em consequência dessa mútua hostilidade primária dos seres

humanos, a sociedade civilizada se vê permanentemente ameaçada de desintegração

(FREUD, 1929, p. 29).

Nesse ponto observamos o quanto o narcisismo é um traço fundamental do ser

humano na constituição cultural, ideológica e social, enfim, nas relações com o outro.

Considerado um facilitador na criação de mitos e crenças, o “narcisismo das pequenas

diferenças” se instaura através do discurso sobre qualquer artifício, a fim de escamotear a

realidade e refletir o simulacro, negar a história e manipulá-la para convencer que

determinados fatos são de ordem natural.

Destacamos o mito negro que, neste caso, foi constituído como a configuração de um

produto psíquico que envolve o princípio do prazer e a ordem do imaginário, incluindo no

48

seio de tantas variáveis a singularidade do problema negro, imposta como a marca da

diferença e da identidade negra. Em contraponto, o mito negro se impõem como um desafio

ao sujeito que nega sua predisposição para a subserviência e combate a reificação, mesmo

com tudo a sua volta confirmando sua condição submissa. Dessa forma, o negro precisa

derrotar cotidianamente o mito para se libertar.

Como Édipo, [o negro] se encontra frente à frente à Esfinge e seu enigma: é vital

apoderar-se do conhecimento, desvendar a resposta e assim destruir o inimigo para

seguir livre. Obviamente, cabe a negros e não negros a consecução desse intento,

mesmo porque o mito negro é feito de imagos fantasmáticas compartilhadas por

ambos. Razão maior para que tal empenho seja comum é o nosso anseio de construir

um mundo onde não mais seja preciso dividi-lo entre negros e brancos (SOUZA,

1983, p. 26).

Para Chnaiderman (1996), a questão principal do racismo não é o medo do diferente,

mas, o horror ao igual. Nesse encontro, o racismo e o exotismo andam juntos para dar

significado ao Outro, e assim, surge o fato de esse indivíduo “outro-igual” ser visto, em

termos da teoria psicanalítica, como nosso horror, nosso “estranho familiar” (FREUD, 1919),

ou seja, aquele que tem acesso aos mesmos direitos que os nossos, disputando na mesma

estrutura de poder e competindo na conquista de privilégios.

Nessa ideologia imposta para subalternizar o “Outro”, o negro, por receio de uma

disputa por direitos e poder, a resistência e a consciência de cor surgem somando forças para o

negro buscar condições de superar-se mais uma vez. Essa articulação com a alteridade como

algo aberto e familiar promove o desejo de conhecer-se como negro e saber de sua história e

descendência, como um de força e orgulho da negritude.

Em suma, a alteridade do negro é admirável. Embora haja tamanha complexidade nas

situações que abortam a esperança e as perspectivas de livrar-se da doença causada pela

disputa ambiciosa de poder vorazmente imposta pelo racismo, o povo negro se desvitimiza,

porque não há espaço para isso. Vivemos em um espaço de luta, mesmo tendo a história, a

sociedade mesquinha e as leis contra nosso pleno desenvolvimento como seres humanos,

sujeitos de nossas vidas e histórias.

As armas para o combate cotidiano são a desalienação e politização de sua situação

como indivíduo simultaneamente único e coletivo. É a luta contra a tradição de discórdia e

49

manipulação da civilização, que fere diretamente o negro em sua subjetividade. As marcas em

seu inconsciente machucam e subtraem os meios de identificação racial.

Não obstante a todos os ataques, o negro resiste à falta de tudo o que lhe foi retirado,

a tudo o que foi proibido e, apesar disso, não tem medo de confiar e recomeçar, buscando

forças “sobrenaturais” para conquistar direitos e sair das armadilhas impostas pelo

“narcisismo das pequenas diferenças”. É necessário, portanto, combater as amarras

inconscientes que enclausuram o Outro em um sofrimento narcísico de dor e rancor. O povo

negro, hoje, nos mostra o quanto somos guerreiros e vitoriosos por nossa grande resistência e

exemplo de vida.

50

1.1Por que precisamos (urgente) de Fanon?

A estrutura do presente trabalho se situa na temporalidade. Todo problema humano

deve ser considerado a partir do tempo, sendo ideal que o presente sirva para

construir o futuro (FANON, 1983, p. 13).

As discussões a respeito de Frantz Fanon não estão acontecendo só na academia, mas

também a partir de uma nova geração de ativistas de grupos antirracistas, mobilizados por

situações do ressurgimento do racismo nesta nova fase do capitalismo global. Fanon é

considerado um despertar coletivo para a desalienação da humanidade frente ao passado

construído na colonização de corpos e mentes.

O pensamento de Fanon no panorama de nossa atualidade tem sido debatido por

muitos que consideram sua obra como elemento central, juntamente com as categorias que

propõe e se apresentam tão apropriadas para combater o racismo, devido à relevância e

profundidade para a compreensão de nossa sociedade (MBEMBE, 2011).

A contribuição fundamental de Fanon, segundo a corrente de estudos culturais ou pós-

coloniais14

, se situa numa perspectiva pós-estruturalista, que propõe uma leitura do

colonialismo como paradigma subentendido à sociedade moderna, desse modo, causadora de

relações racializadas, escamoteadas e não (ou pouquíssimo) discutidas até hoje.

Outra linha de estudos desenvolvida sobre o pensamento de Fanon é a corrente surgida

na América Latina, conhecida como proyeto decolonial ou proyeto de la modernid. Esses

pensadores militantes discutem o autor como forma de análise do capitalismo contemporâneo

de acordo com as apresentações do racismo na perspectiva da América do Sul. Tendo como

alvo a crítica ao pós-modernismo e ao pós-estruturalismo, essa corrente diverge dos Estudos

Pós-Coloniais na ideia de superação do colonialismo que o conceito “Pós” impõe.

14 Os estudos pós-coloniais se caracterizam como uma corrente contemporânea inspirada nos estudos

de Frantz Fanon com influência das áreas da Filosofia, Sociologia, Antropologia, Historiografia e Ciências

políticas. De acordo com Álvares (2000, p. 222): “Os teóricos pós-coloniais se destacam pela ênfase na temática

da alteridade. A Teoria pós-colonial tende a transcender as consequências do colonialismo, servindo como frente

de combate a qualquer grupo que se sinta discriminado em relação à norma prevalente - seja esta técnica, social

ou sexual -, e que procura implementar uma política de identidade através da afirmação da diferença.” Entre os

seus principais teóricos, estão: Hall (1996 e 2009), Bhabha (1998), Said (2004), entre outros.

51

A corrente latino-americana faz crítica ao pós-colonialismo, principalmente por ser um

termo nascido em terras britânicas e americanas. Dessa maneira, fica a desconfiança do termo

“pós” não ter o significado de mudança como se acreditava, tornando-se um conceito vazio

(MIGNOLO, 2003). A banalização do termo “pós” continua a garantir o poder a quem

inaugurou o termo e quem nele ainda acredita (ibid., 2003)

A discussão acerca da descolonização abre espaço para reconstrução da

aprendizagem, numa nova vertente de diálogo com os povos colonizados ou que ainda vivem

sob esta opressão manipuladora de conhecimento. Esse projeto propõe a construção de uma

rede a favor da justiça, igualdade, diversidade social e, prioritariamente, de conhecimento

(GROSFOGUEL, 2009, p. 127).

Em consonância com a atualidade do pensamento de Fanon, essa nova abordagem é

necessária, segundo Gibson (2007), por nos oferecer a compreensão da composição da

violência colonial em nossa sociedade contemporânea. Ele cita exemplos desse movimento

em situações de conflitos na palestina em torno da Primavera Árabe; na insistência da

“barreira de cor” na África do Sul pós-apartheid, e na privatização da água na Bolívia:

aspectos colossais na desigualdade permanente que corroboram as preocupações “fanonianas”

na atualidade.

Para Wallestain, em seu artigo intitulado Ler Fanon no século XXI, a

contemporaneidade de Fanon está além da violência do colonialismo e as consequências na

subjetividade dos colonizados. Suas ideias promovem lutas pela garantia das identidades e a

emancipação humana de um modo mais amplo. Para ele, as lutas de classes estão além do

universo europeu e precisam ser vistas em suas particularidades sociais e históricas dentro do

contexto colonial (WALLESTAIN, 2008).

Para compreendermos a situação do negro como personagem de múltiplos processos

psíquicos na busca de reconhecerem-se como humanos, abordaremos, nesse capítulo, a obra

“Pele negra, máscaras brancas”, fundamental para esse diálogo.

Conhecer Frantz Fanon significa entender a ideologia do embranquecimento, tendo a

raça branca sido considerada como a superior, símbolo de beleza ocidental, restando aos

negros a tendência a introjetar esta ideologia e acreditarem que são inferiores, e, nesse

sentido, passar a buscar o branqueamento como forma de aceitação social.

52

Se de facto existe em Fanon algo que nunca envelhecerá, é exactamente este

projecto de ascensão colectiva em humanidade. Esta irrepreensível e implacável

procura de liberdade necessitava, aos seus olhos, de mobilizar todas as energias da

vida. Empenhava cada pessoa, e cada povo, num incrível trabalho sobre si e numa

luta de morte, sem limites, que devia assumir como tarefa pessoal, sem poder

delegá-la nos outros (MBEMBE, 2014, p. 272).

Em uma sociedade como a nossa, os que negam sua negritude, seu corpo e sua cultura

ou ancestralidade, são os indivíduos que introjetaram a ideologia do branqueamento. A cultura

branca ocidental é enaltecida em detrimento da cultura negra, além de outras, que são

suprimidas, como as dos povos ancestrais americanos, os indígenas.

Nesse sentido, é formada uma espécie de escalonamento no qual seu valor é

determinado pelo quão negro você é. Nas palavras de Fanon (1983): “O negro quer ser

branco. O branco obstina-se a obter a sua condição de homem (...). O branco é escravo da

sua brancura. O negro da sua negrura. É na realidade: os brancos se consideram superiores

aos negros”. (p. 11)

Fanon (ibid.) investiga o racismo em seu modo objetivo e subjetivo. Busca

compreender a consequência do racismo tanto para o opressor quanto para o oprimido;

dialoga com autores como Sartre, Jaspers, Aimé Césaire, Senghor e também com autores de

outras épocas pelos quais foi influenciado, como: Hegel, Marx, Freud.

Os autores de origem marxista nos ajudam a compreender uma relação que

consideramos ainda atual no pensamento “fanoniano”. Trata-se da problematização da

“dialética do senhor e do escravo”, realizada por Hegel. Essa é uma abordagem em

contraposição à perspectiva multiculturalista. Fanon dá ênfase a um humanismo que repõe a

discussão da relação entre indivíduos e humanidade de forma geral, no intuito do indivíduo se

colocar na centralidade e na disputa pela universalidade.

Para Hegel (2007) a consciência dominada se tornaria consciência independente em si

para si, referindo-se à condição do trabalho e da servidão. Fanon discorda veementemente ao

afirmar que o sujeito só conquista a consciência independente quando, desalienado, se entrega

à prova de fogo na guerra. Dessa forma, a consequência será a imposição ao Outro como

sujeito que tem a convicção de “seu próprio valor em verdade objetivo universalmente válido

(FANON, 1968, p. 181)”. Em outras palavras, somente através da luta direta, da desalienação

53

e ativismo político, o colonizado terá condições de se contrapor ao colonialismo e, portanto,

ao neocolonialismo.

Mbembe relembra Hegel justamente por esse intelectual acreditar que os negros

africanos não passavam de “estátuas sem linguagem ou consciência de si”. Mbembe

concorda com Fanon, e se debruça no devir-negro do mundo, através da problematização

acerca do conceito de raça, uma forma constituída para valorizar tudo que seja europeu. O

hemisfério ocidental desejou ser o bairro mais civilizado de todos, só ele deu origem a uma

ideia de ser humano com direitos civis e políticos, permitindo-lhe desenvolver seus poderes

privados e públicos como pessoa, como cidadão que pertence ao gênero humano. Sendo

assim, ao negro restou ser um símbolo acabado do que não agrada, não acrescenta, como um

outro dessemelhante (MBEMBE, 2014).

Por meio de todos esses diálogos com os mais diversos autores, Fanon pretendia

encontrar saídas para a dominação colonial, do ponto de vista do oprimido. A descolonização

vai se dar através de um ato de emancipação econômica das colônias e da emancipação

cultural do negro. Nesse processo, ele se depara com a questão da identidade conflituosa do

negro. Fanon nos exorta a respeito: “Subjetivamente, intelectualmente, o antilhano se

comporta com um branco. Ora, ele é um preto. E só perceberá quando estiver na Europa; e

quando por lá alguém falar de preto, ele saberá que está se referindo tanto a ele quanto ao

senegalês” (FANON, 1983, p.132).

Esta percepção de não reconhecimento em face do branco francês, ou de qualquer

outro branco, exerceu forte influência no pensamento de Fanon. Esse sentimento influenciou

suas obras e a formação de seu pensamento político.

Ao discutir a identidade negra, o autor é cuidadoso para não repetir os estereótipos que

o colonizador criou. Buscou compreender a identidade negra a partir da restituição de uma

humanidade que o colonialismo negou. Uma das estratégias do colonialismo europeu foi

tentar reduzir o negro a estigmas, como à rítmica, à sensualidade, à musicalidade e à religião.

Trata-se da representação de um “exotismo” que passou a ser “colada” a todos os povos não

brancos, tanto negros, nas mais diversas etnias, quanto indígenas, aborígenes e povos

autóctones.

Os estereótipos inerentes ao racismo criaram um complexo de inferioridade no negro.

Frantz Fanon vai confrontá-los, afirmando que o negro é mais do que as imagens caricatas

54

desenhadas por europeus. O negro é racional, consciente e pode ser o que quiser da melhor

forma possível, tão “civilizado” quanto um branco.

Outra estratégia usada pelos colonizadores europeus foi destituir dos povos negros

africanos toda sua história e cultura, de maneira devastadora. Uma das muitas lutas de Fanon

foi provar a importância de o negro reescrever sua própria história e de fazer isso como agente

principal, protagonista, sujeito de sua história na humanidade.

Em uma das faces de reestruturação do racismo, o colonizador até chegou a considerar

a cultura do negro, mas a reboque da história e da cultura do europeu. As estratégias utilizadas

forçaram os negros a uma alienação colonial, um processo perverso que agia na

impossibilidade do negro em se constituir enquanto protagonista da sua própria história.

Desse modo, o negro se situa em uma relação social onde não há a possibilidade de se

constituir como sujeito. Essa situação o torna alienado, mesmo se tiver a consciência do que

está acontecendo e de quem são seus inimigos.

A alienação do negro tem se realizado pela inferiorização, principalmente do seu

corpo, que atinge sua mente, seu espírito, sua história e sua cultura. O processo de

recuperação da identidade tem uma relação análoga com a inferiorização. Inicia-se pela

aceitação dos atributos físicos da negritude, já que o corpo constitui a sede material de todos

os aspectos da identidade, antes de atingir os atributos culturais, mentais, intelectuais, morais

e psicológicos (MUNANGA, 2009).

Para Fanon (1983), não basta que o negro mude sua visão de mundo para que ele deixe

de ser alienado, o negro precisa mudar o mundo. Para ele não há apenas uma luta de ideias,

mas uma luta prática. “Sendo nosso propósito a desalienação dos Negros, queríamos que eles

percebessem, que toda vez que há incompreensão entre eles e o Branco, há ausência de

discernimento” (p. 33).

O negro, assim como todo povo outrora colonizado, tem em sua essência um

complexo de inferioridade, como consequência do fim de todo o significado de sua cultura

que foi tomada pelo dominador. A distância de sua cultura materna torna o negro alienado e o

impulsiona a um processo de aculturação e imersão na cultura do outro.

Quando em contato com a cultura dos brancos, o negro muda de estrutura psíquica e

social independentemente de qualquer reflexão. O que importa é ser como o outro, essa

55

atração, pode ser mais bem explicada através da psicanálise, compreendida através das falhas

que são deixadas como rastro do discurso (FANON, 1983). Discutiremos a respeito da visão

psicanalítica na obra de Fanon mais adiante.

Frantz Fanon vem ao nosso interesse por integrar questões de psicanálise e raça, e

discussões que envolvem representação cultural, identidade negra, desalienação e luta de

oprimidos pelo direito a sua própria história e humanidade; questões que foram, por assim

dizer, “roubadas” pela colonização ocidental.

Em Pele negra, máscaras brancas, Fanon (1983) desenvolve sua tese sobre a relação

da identidade negra com método existencialista de Jean Paul Sartre, demonstrando o desafio

em lidar com as revoluções que efervesciam no terceiro mundo. Fanon (1983) se lança na luta

entre senhor e escravo, e mostra que esta é uma luta por poder, para possuir a exploração e o

lucro do trabalho desumanizado.

A questão de luta por poder interessa muito a Fanon, porque ele compreende

claramente que a relação entre colonizador e colonizado é uma luta de morte e desumanidade.

Em contrapartida, nesta relação ele também observa além da dependência do senhor (branco)

e conclui que há a negação de reconhecimento do escravo e isso se consolida com o fato de o

senhor, o tempo todo, afirmar: “Não enxergo você, você não é nada”.

O negro que viajava para França percebia que o lema “igualdade, fraternidade e

liberdade” não era de fato válido para todos. Igualdade não fazia parte da vida social francesa,

assim como não fazia parte da sociabilidade existente nas colônias europeias. Essa realidade

ainda é duramente percebida na rejeição sistemática de muitos países europeus em acolher

milhares de refugiados vindos da África e do Oriente Médio, que, inúmeras vezes, morrem no

mar mediterrâneo. Não se pode esquecer que a diáspora africana se deve às diversas guerras,

muitas vezes financiadas por países Europeus, quando estes, simplesmente, lucram com a

venda de armas para ditadores.

A verdade é que a civilização dita “europeia”, a civilização “ocidental”, tal como a

modelaram dois séculos de regime burguês, é incapaz de resolver os dois problemas

maiores a que a sua existência deu origem: o problema do proletariado e o problema

colonial; que, essa Europa acusada no tribunal da “razão” como no tribunal da

“consciência”, se vê impotente para se justificar; e se refugia, cada vez mais, numa

hipocrisia tanto mais odiosa quanto menos suscetível de ludibriar. A Europa é

indefensável. (CÉSAIRE, 1965, P. 13).

56

A busca de Fanon era pela conquista de igualdade plena não só na França, mas, em

todos os lugares, independente do preconceito. Esse racismo que fere ilustrado pela cor da

pele e que não pode ser transformado faz o branco temer o negro com toda sua força a ponto

de tentar aniquilá-lo, mas, mantendo-o por perto para ter o controle total de suas vidas.

Poderíamos afirmar que o deslocamento da agressividade do branco para o negro é

fundamentalmente um modo de proteger o branco de si mesmo. Assim, ele deposita sua

agressividade negando a possibilidade de o negro ser um homem capaz de ascender (FANON,

1983). O autor relata seu desejo por estudar a condição do negro e a alienação sofrida na

colonização. Ele próprio sente-se deslocado quando vai para França iniciar seus estudos em

medicina e percebe que sua cor o impedia de ser igual aos seus conterrâneos. Ele entende,

enfim, que, em face do branco, era visto somente como um “preto” e não como um igual.

Fanon encontrou na psiquiatria uma forma de devolver a liberdade àqueles que a

perderam ou fugiam dela (por estarem psicologicamente doentes). Fanon foi um libertador,

viveu e lutou por isso.

Ao iniciar seu trabalho em hospitais psiquiátricos, Fanon tem como referência seu

amigo psiquiatra François Tosquelles15

(1912-1944), do qual se tornou aprendiz. Ele se

inspirou nos estudos de Tosquelles, que transformaram sua concepção sobre a psiquiatria e a

relação da luta política como elemento fundamental para superar as alienações psíquicas

causadas pelo colonialismo.

Pelo viés da psiquiatria, Fanon conseguiu provar o que a violência do racismo causava

na psiquê dos colonizados e colonizadores. Os colonizados incorporavam drasticamente as

alienações coloniais mesmo durante o levante do protesto negro, em direção à descolonização.

Ao tentar aplicar suas percepções sobre o problema dos pacientes em territórios

coloniais, vinculando as enfermidades ao colonialismo. Fanon aceita neste mesmo

ano um contrato com um hospital psiquiátrico na Argélia. Durante sua residência

15 François Tosquelles, psiquiatra espanhol que participou da guerra civil Espanhola, instala-se na

França onde inicia diversos estudos alternativos de psiquiatria em Saint Alban, onde Fanon trabalhou.

Anticolonialista, Tosquelles criou a psicoterapia institucional, que poderia ser traduzida como terapia

comunitária. Influenciado por Freud, Politzer, Reich e Marx, pensava a loucura – alienação psíquica – ou

sofrimento psíquico em sua relação com o meio social em que o doente está inserido. Numa outra perspectiva, a

desalienação psíquica dependeria da reorganização da sociedade e, portanto, as terapias de tratamento

introduziam experimentos alternativos como assembleias democráticas entre profissionais e pacientes, trabalhos

comunitários etc. (RODRIGUES, 2007).

57

neste local os resultados de suas investigações o convenceram das dimensões que o

regime colonial assume e como este regime desarticula a estrutura psíquica das

pessoas (OTO, 2003, p. 219).

Ao pesquisar e discutir as alienações psíquicas vividas pelo negro, Fanon é

influenciado pela psicologia, sociologia e filosofia. Investiga as relações sociais e a maneira

como surgem às alienações psíquicas. Esses estudos fizeram parte da revisão de sua tese de

doutorado em psiquiatria: “Pele negra, máscaras brancas”, rejeitada na academia por ir

contra as correntes positivistas predominantes na área. Mais tarde sua tese seria reconhecida

como referência nos estudos sobre o racismo.

Em seus estudos, explica que a alienação seria a perda – objetiva – de si, da

capacidade de estar em pé por si, ter vontade própria e se autodeterminar. Nessa perspectiva,

Fanon passa a incluir os complexos coloniais com as relações de estruturação da sociedade, e

como resposta a esse mal, não basta uma ruptura de paradigma, pois, se faz necessária uma

transformação social drástica.

Quando os negros abordam o mundo branco, há uma certa ação sensibilizante. Se a

estrutura psíquica se revela frágil, nota-se uma desintegração do Eu. O negro cessa

de se comportar como indivíduo acional. O objetivo de sua ação será o Outro (sob a

forma do Branco), pois só o Outro pode valorizá-lo. Isso no plano ético: valorização

de si mesmo. Mas não é só (FANON, 1983, p. 128).

Observa-se que a preocupação do autor vai além da alienação colonial. O processo de

clivagem psíquica16

ocorre quando um indivíduo sofre um trauma, ou uma sequência de fatos

traumatizantes e, a partir destes, o sujeito é levado a se fragmentar, ou mesmo pulverizar-se

subjetivamente. Na compreensão do autor, esse processo não cessa nesse ponto, o processo de

colonização deixa nos indivíduos marcas insuperáveis que só poderiam ser apagadas com a

“desalienação” constante e a superação do paradigma ocidental.

A alienação colonial se configura através, especialmente, da exploração capitalista. A

característica marcante desse processo aparece na sociedade moderna que incita os

colonizadores e os colonizados (brancos e negros, respectivamente) a viverem e

aprofundarem as disparidades sociais e a falta de humanidade que concernem a cada um.

16 Termo descrito rapidamente acima, ao qual retornaremos ao longo da pesquisa, seguindo as bases

“ferenczianas”.

58

Logo, a racialização e hierarquização do outro, inflam um estranhamento que atinge o

colonizado numa espécie de reificação e, assim, retiram a visibilidade em relação ao valor

inerente à subjetividade do negro e, com ela, a expressão universal do ser humano.

Tendo sua humanidade negada, o colonizado se vê como o outro, reduzido ao

regulamento Negro, em contraposição ao Europeu legitimado como ser humano e universal.

O branco e sua cultura ocidentalizada elevam sua universalidade ao ponto de ser considerada

como referência. Assim, a cultura europeia domina aquilo que passa a ser considerada a

“norma culta do saber”.

Daí a eminência do desejo negro em embranquecer, esse anseio de se tornar branco, ao

ponto de expressar esse desejo através de sonhos e da compulsão à repetição (FREUD, 1920).

O analista conclui que nesses casos o sonho realiza um desejo inconsciente, pois mostra o que

está obscuro, recalcado no inconsciente, em particular. O psicanalista deve ajudar o indivíduo

a se auto conscientizar, mas para isso deve incitá-lo a agir no sentido de uma mudança das

estruturas sociais (FANON, 1983) e não apenas atribuir-lhe um trabalho sobre sua

culpabilidade psíquica.

Essa mistificação do europeu permite-o ser símbolo de universalidade e mantém o

colonizado preso em estereótipos17

criados para depreciar o negro. Espera-se que o negro

esteja sempre o mais próximo da natureza e o mais distante da civilização: ele é o emotivo, o

sensual, o viril, o infantil, o exótico e tido como expressão de tudo o que se aproxima do

“ruim”. Fanon (1983) define essa clivagem depreciativa pregada à subjetividade do negro da

seguinte forma:

Em outras palavras, começo a sofrer por não ser branco, na medida em que o

homem branco me impõe uma discriminação, faz de mim um colonizado, extorque

de mim todo valor, toda originalidade, diz que parasito o mundo, que é preciso que

acompanhe o mais rapidamente possível o mundo do homem branco, que sou um

animal estúpido, que meu povo e eu somos como um esterco ambulante

repugnantemente prometedor de cana macia e de algodão sedoso, que não tenho

nada a ver com o mundo. Então tentarei simplesmente tornar-me branco. (FANON,

1983, p. 82).

17 Segundo Homi Bhabha (1998): “O sujeito do discurso colonial é construído dentro de um aparato de

poder que contém nos dois sentidos da palavra, um “outro” saber - um saber que é retido e fetichista e circula

através do discurso colonial como aquela forma limitada de alteridade que denominei estereótipo (p. 120).” O

fetiche que envolve o estereótipo racial dá um falso sentido à identidade que aliena e aumenta a dominação tanto

quanto na ansiedade ou na autodefesa, porque dessa relação contraditória cresce o sentimento de culpa e de

recusa de si mesmo.

59

Fanon alerta que esta reificação colonial constante tem efeitos catastróficos na

subjetividade do negro, o que pode levar a destruição do ego. Dessa forma, o negro perde a

independência da mente, negando a si mesmo e a sua existência.

Para o pensador francês Le Bon em sua obra bastante conhecida Psychologie des

foules (1855), nas questões de formação de grupos assim em analogia a subjetividade dos

negros colonizados, esta perda do ego pode acontecer através da hipnose, típica na relação

entre o colonizador e colonizado. Vejamos a seguir:

Um indivíduo pode ser colocado numa condição que, havendo perdido inteiramente

sua personalidade consciente (negro colonizado), obedece a todas as sugestões do

operador que o privou dela e comete atos em completa contradição com seu caráter e

hábitos. (...) Um indivíduo imerso por certo lapso de tempo num grupo em ação,

cedo se descobre (...) num estado especial, que se assemelha muito ao estado de

‘fascinação’ em que o indivíduo hipnotizado se encontra nas mãos do hipnotizador.

À vontade e o discernimento se perderam. O pensamento inclina-se determinado

pelo hipnotizador - neste caso do colonizador (grifos meus). (LE BON apud

FREUD, 1921, p. 34).

Embora o autor esteja se referindo à formação de grupos, é possível fazer um link com

a constituição de grupos forjados pela colonização, ao passo que, Le Bon (1855) foi um

importante idealizador das teorias racialistas nascidas na própria Europa e suas observações, à

época, valiam para embasar teorias que camuflavam a perversidade vivida por colonizados.

Observamos que o teórico em questão caracteriza o indivíduo inserido em um grupo como um

bárbaro, uma criatura que age por instinto, dotado de violência que possui a vida mental dos

povos primitivos e de crianças (ibid., p. 40). Assim, coloca o negro colonizado em uma

condição hierárquica, supostamente “natural”, de ser tutelado.

Compreendemos que as coincidências e os preconceitos são permanentes no discurso

de Le Bon(1855), que hipocritamente julga a formação forçada de grupos colonizados,

conforme acontecido em África, como coincidente ao comportamento de seres infantis e

primitivos. Da mesma maneira, Le Bon classificava a população negra como inferior aos

colonizadores europeus.

60

Fanon nos desperta para o fato de que o colonialismo produz no negro o complexo de

inferioridade, mas, na mesma proporção, traz para o branco o complexo de superioridade.

Ambos sofrem de um mal, são alienados em suas realidades.

Os negros considerados como pessoas alienadas de seus países ou de sua cultura em

sua própria terra, tinham sido arrancados de suas referências e não foram adaptados à

realidade colonizadora, eram considerados socialmente mortos, pessoas sem história e

desonradas, propositalmente. Chegou a uma situação em que os negros não tinham nenhum

direito, além de viver um ostracismo social em seu próprio território.

Isso levava a uma insegurança geral, pois na supremacia branca havia o receio da

rebelião dos negros e na suspeita de que a matança de brancos seria reivindicada como

vingança. Os negros em sua “inferioridade” viam no branco seu maior inimigo e o temiam e

odiavam por deterem todo o poder. Assim havia medo configurado entre os dois grupos, e

essa situação levava a constituir o sentimento racial18

.

Neste ponto abordaremos a questão da intolerância física e psíquica que alguns

brancos têm de ficarem próximos ou de tocar em negros. Neste contexto, o branco cria uma

fobia pelo negro. O imaginário racista transforma o negro em um ser animalizado.

No fóbico, há prioridade do afeto em desdém de todo pensamento racional. Como se

vê, um fóbico é um indivíduo que obedece às leis da pré-lógica afetiva: processo

através do pensamento e do sentimento, que relembra a época em que se deu o

acidente, causa da insegurança (FANON, 1983, p. 129).

Em relação à fobia, Fanon exprime sua ambivalência em mulheres e homens brancos.

O discurso expressa irracionalidade, ao passo que as vítimas se diziam “negrofóbicas”, e, no

entanto, eram tão mórbidas quanto o negro. A compreensão desse mecanismo vem numa

forma de continuidade do racismo através dos fenômenos sexuais, afinal, conforme era

atribuído ao negro, tudo se finda no plano genital. Contudo, devemos ressaltar que

constantemente inúmeras proposições negativas são sutilmente depositadas nos indivíduos,

18 Conforme nota de pé de página 14.

61

mantendo o negro como ser demonizado. Segundo essa perspectiva, o negro assim, deve

permanecer.

O estereótipo racial foi uma estratégia utilizada no discurso racista e ainda sobrevive

impregnado no senso comum das massas. Esta manobra funcionou porque conseguiram forjar

seus próprios sujeitos, dando significância ao discurso e criando falsas alteridades.

Frantz Fanon tem, no entanto, razão, ao sugerir que o Negro era uma figura ou ainda

um “objecto” inventado pelo branco e “fixado”, como tal, pelo seu olhar, pelos seus

gestos e atitudes, tendo sido tecido enquanto tal “através” de mil pormenores,

anedotas e relatos. Deveríamos dizer que, por sua vez, o Branco é, a vários respeitos,

uma fantasia da imaginação europeia que o Ocidente se esforçou por naturalizar e

universalizar (MBEMBE, 2014, p. 84).

Esse modo de representar o negro faz parte da imposição e posicionamento de poder

do branco, assim, produzindo um saber suficiente para a construção de uma identificação

ambivalente. Bhabha (1998) nos diz que o discurso colonial ou discurso de estereótipo é uma

forma de saber e poder que leva à produção de seus próprios sujeitos: colonizador branco e

colonizado negro.

Com a ambivalência do estereótipo racial, a constituição da alteridade e da identidade

do sujeito discriminado se torna, ao mesmo tempo, objeto de desejo e de repulsa. A

sensualidade inata da dita “mulata fogosa”, o suposto enorme pênis do “negão”, as

habilidades atribuídas como “inatas” aos negros em geral para atividades emotivas, lúdicas e

corporais, tanto assustam quanto atraem o branco por corresponderem fantasticamente àquilo

que falta a ele neste processo de alienação colonial doentia.

Com a produção de conhecimentos estereotipados, o negro e o branco são medidos por

antíteses. O discurso colonial necessita se embasar em diversas discriminações para

configurar suas práticas discursivas e políticas e, assim, permitir aos brancos se legitimarem

com base nos seus aspectos culturais e na hierarquia racial.

No mundo branco, o “homem de cor” encontra dificuldades na elaboração de seu

esquema corporal (FANON, 1983): “Nasce, então, a dor e a tentativa de forçar o espelho a

reproduzir a imagem branca desejada ou, em caso de impossibilidade, a opacificar-se,

deixando de refletir a imagem negra desprezada” (COSTA, 1983, p. 16).

62

Ainda hoje vivemos sobre o julgo desses estereótipos raciais, que se reestruturam

continuamente pelo discurso e permanecem vivos, ditando comportamentos maniqueístas e

tradicionalmente ocidentalizados. Observamos na sociedade brasileira uma hierarquização da

cor: negros e pobres, de um lado, são hostilizados e falsos brancos, de outro, levam consigo

privilégios e a arrogância; posições que foram definidas desde a colonização, mas que são

contraditórias numa população criada através da miscigenação e da hipocrisia.

Foucault (2002) afirmou que as sociedades criam seus próprios discursos como

verdades articuladas aos interesses dominantes. O poder nas sociedades coloniais se

configurou pela discursividade na diáspora africana produzida na imposição de dominação do

colonizador europeu. Este caracterizou o negro com conhecimentos estereotipados para

identificá-lo. Utilizando como significantes os termos “raça e cor”, o negro teve seu corpo

desconfigurado pelo julgamento de valor associado à cor da pele, e também pelo cabelo

crespo que o reduziram, assim, a uma coisa animalesca e caricata. O discurso colonial foi

criado a partir de um sujeito subjugado, destituído de sua autoestima, cujo fetichismo do

corpo negro o persegue através de um fetichismo racial e de uma inferiorização extrema.

Para Fanon, o discurso do colonialismo e a alienação colonial foram fundamentais

para que se compreendessem seus efeitos na estrutura psíquica de homens e mulheres

colonizados. É com esse contato provocado pela violência colonial que cria forças para que

vivesse a luta anticolonial que se desenvolvia em seu país.

Se o colonialismo ou a alienação colonial não podem ser resumidos a um estado

mental, e mesmo a subjetivação individual só é inteligível no contexto em que

emerge (...) a desalienação só seria possível mediante a superação das condições

sociais alienadoras: veremos que uma outra solução é possível. Ela implica uma

reestruturação do mundo (FANON, 1968, p. 82).

Na busca pela superação desse mal, a resistência sociocultural deve ter como foco não

apenas a simples preservação da cultura retirada pelo processo colonial. O mais importante é a

libertação do povo, de modo que possa se contrapor à cultura colonial, desconsiderando e

eliminando os elementos universais que possam contribuir para o andamento da falácia

chamada “progresso da nação” e “processo civilizatório”.

O autor elucida elementos como os meios de comunicação, a linguagem e os valores

culturais europeus, constantemente utilizados na opressão colonial, os quais podem ser

63

reapropriados no processo de resistência e ressignificado pelos povos em luta, dando suporte e

possibilidades de avançar na busca pela emancipação. Tendo em vista a liberdade do ser

humano e observando que o colonialismo negou a cultura dos povos colonizados

ontologicamente, a resistência está na criticidade e na ressignificação tão necessária da cultura

opressora.

Em analogia ao processo colonial, no modelo neoliberal no qual estamos inseridos na

pós-modernidade, negros, pardos, índios, árabes e tantos outros povos ainda vivem em

profunda opressão ocidental. Atendemos a um padrão estético, econômico e social alienante.

Toda esta especulação em torno do capital, mais ainda do “mercado”, da busca pelo poder e

da assunção do status quo social, responsável pela desigualdade maciça em que vivemos,

pode ser superada se iniciarmos esse processo emancipatório. Iniciando com a ressignificação

da mídia, da cultura opressiva, foi (e é) possível converter esse processo em fator de

resistência (FANON, 1968).

Resistir socialmente não implica, a princípio, a preservação da cultura inicialmente

negada pelo colonialismo. O fato é que para Fanon não havia outra escolha para os povos

colonizados, que não seja a via revolucionária (FANON, 1956).

O processo revolucionário seria, para Fanon, um ato consciente e possivelmente

arriscado que pareceria quase impossível para o colonizado negro da Martinica e, quiçá, para

qualquer outro negro. É na obra Pele negra, máscaras brancas que o autor vê um importante

instrumento de luta para acabar com o colonialismo, objetivamente na psiquê do colonizado e

nas relações sociais vividas pelo colonizado. Da mesma forma, isso daria armas ao colonizado

de modo a se elevar de simples objeto reificado para sujeito de sua própria história e

humanidade.

Então, nas palavras de Frantz Fanon, a luta reconfigura nossa realidade oprimida.

Observamos em suas ideias a atualidade e o reconhecimento para a desalienação

revolucionária do negro, subjugado como pobre inútil e indesejado em tantos espaços

privilegiados aos brancos, que, literalmente, fingem não entender estes fatos “enfadonhos” e

perversos em que circulam as relações sociais brasileiras em todos os ambientes sociais, desde

a educação ao mercado de trabalho, perpassando por incontáveis pormenores da vida

cotidiana em sociedade.

64

1.2. Outras percepções sobre racismo e cultura segundo Fanon

Ao pensarmos como certas culturas são naturalizadas por outros grupos de forma

unilateral, evidenciamos apenas um lado de sua história, seus costumes, modos de viver e

pensar. Precisamos estar atentos para não dar condições a definições egocêntricas e

preconceituosas que estratificam modos de vida e estabelecem hierarquias sociais.

A anulação de determinantes culturais nega a existência de outros modos de vida,

classifica o que é cultura e o que não é, e dicotomiza de um modo estruturante os diferentes

povos, por fim, utilizando-se da “relatividade cultural”. Assim, o que propomos aqui é a

compreensão das disparidades da hierarquização cultural que iniciou a valorização singular e

específica de uma cultura única: a branca, e desprezou todo campo cultural colonizado.

Falamos não apenas de uma realidade, mas de muitas outras vindas de povos que

foram colonizados por europeus e que trazem marcas da miscigenação que os caracterizam.

Por vezes, o que se sabe é um único lado da história, pois se omitem as raízes que distinguem

a diversidade, que desse modo ficam incompreendidas por muitos.

Na tentativa de clarear ideias e elucidar outras facetas dessa história, abordaremos as

sequelas da colonização, dos colonizados e do que restou (e volta repetitivamente) desse

passado genocida. Ou melhor, do rastro que ficou, do que se perdeu e foi reconquistado ao

longo do tempo por essas pessoas que foram duramente colonizadas.

O racismo se projeta tal qual nos é exposto a partir de uma estrutura pré-estabelecida.

Trata-se de um contexto maior de aversão ao diferente, ao desconhecido, ao que é considerado

“estranho”. Em Freud (1919), observamos que “o estranho” provém de algo familiar e foi

reprimido em algum momento. Dessa forma, se algum afeto é reprimido, transforma-se em

ansiedade, passível de amedrontar e mostrar-se violento ao retornar. “O estranho” não seria

algo novo ou diferente, mas, de natureza familiar guardado em nossa mente. Trata-se de algo

que alienou-se de consciência por meio do processo de recalcamento. O recalcado permanece

como algo que deveria ter sido mantido oculto, mas que vem à tona, por exemplo, como um

duplo alucinatório, acabando por desestruturar o sujeito (FREUD, 1919, p. 308).

Para Mbembe (2014), o conceito de “estranho” trata com profundidade dessa questão

da “inquietante estranheza”, inconsciente, posto que se refere a algo “estranhamente familiar”

65

que o sujeito identifica no outro. Ou seja, o colonizador porta em seu estranhamento, o medo,

a rivalidade e a inveja, pois projeta no negro os seus fantasmas mais íntimos. Poderíamos

dizer que, ao invés de um duplo projetado na alucinação, conforme se pode atestar na

sintomatologia delirante, o duplo inconsciente rejeitado de si mesmo pelo branco é projetado

e materializado na corporeidade do negro.

Essa aversão traz o temor da rivalidade e a possível fragilidade de se manter quem é

colonizado na ponta da dominação. Por isso se faz importante relacionar os conceitos de

racismo e cultura em sua perspectiva de reciprocidade.

Se a cultura é o conjunto dos comportamentos motores e mentais nascido do

encontro do homem com a natureza e com o seu semelhante, devemos dizer que o

racismo é sem sombra de dúvida um elemento cultural. Assim, há culturas com

racismo e culturas sem racismo (FANON., 1956, p. 36).

Ao observar a evolução do tempo, percebemos que o racismo, como elemento

cultural, não se tornou ultrapassado. Houve a necessidade de metamorfosear-se e reestruturar-

se. A partir das novas informações que recebia, ia sofrendo modificações para continuar a

existir.

Do racismo vulgar, simplista, cientistas acreditaram, em sua basicidade doutrinária, em

questões biológicas, com grande apelo para comparações de crânios, dimensões das vértebras,

aspectos da epiderme, entre outros absurdos. Todo o esforço foi feito para confirmar o suposto

atraso intelectual e emocional de uma raça inteira. Tudo isso fora feito com supostas

comprovações científicas capazes de promover o convencimento maciço de intelectuais e

sociedade.

Mesmo com esse aparato científico favorecendo a proliferação do racismo racional,

determinado por aspectos genotípicos e fenotípicos, surge uma nova fisionomia do racismo,

transformando-se em racismo cultural apoiado em falsas premissas biologicistas. Aliada a

teorias como as de Lombroso (1876) na antropologia criminal, no qual afirmava que o

criminoso nascia com o determinismo genético predestinado para atuar em uma vida

criminosa, o cienticismo encontrou tendências comuns em “criminosos” encunhando cor da

pele e outros atributos fenótipos.

66

Lombroso encunhava a identidade europeia caucasiana como raça superior, livre do

perfil delinquente. “Lombroso chegou a acreditar que o criminoso nato era um tipo de

subespécie do homem” (ALVARENGA, 2013). Depreciando as classes que viviam às

margens.

O autor afirmava em sua teoria que a maioria dos casos de crimes eram realizados por

negros, e uma série de comportamentos tais como: apatia afetiva, preguiça, falta de senso

moral, usuários de tatuagens entre outros, e de genótipos como: assimetria craniana, ser

canhoto e altos índices de reincidência.

Vemos em Fanon (1956, p. 36) o pensamento que corrobora para essa nova vertente

racial impregnar-se no contexto cultural como uma espécie de verdade incontestável: “O

objeto do racismo já não é o homem particular, mas certa forma de existir. No limite, fala-se

de mensagem, de estilo cultural. ‘Os valores ocidentais’ reúnem-se singularmente ao já

célebre apelo à luta da ‘cruz contra o crescente’”.

Outros fenômenos históricos como o nazismo, a escravidão e o imperialismo europeu,

acarretaram o despertar e a conscientização dos trabalhadores de países colonizadores e

racistas. A evolução dos meios de produção auxiliou para a mudança de fase do racismo.

Afinal, todos esses fatos contribuíram no processo da opressão sistematizada de povos,

considerados diferentes e não-eurocentrados (ibid., 1956).

Não obstante, cabe a nós questionarmos como e por que o povo oprimido, por

diferentes formas de racismo, tratando aqui do racismo contra o negro, se comporta frente a

tanta agressão a sua subjetividade, cedendo a um opressor que atua de forma tão aviltante e

degenerada. Vejamos como se configura esse processo:

A princípio, ocorre à destruição massiva de valores constituintes de toda uma cultura,

uma forma de viver, de ver e sentir o mundo. Tudo entra em um nefasto procedimento de

desvalorização. A colonização e todo seu caráter persuasivo é a peça motriz responsável pelo

confronto de culturas e pela dominação cultural ao fim desse processo. “A guerra (colonial) é

um negócio comercial gigantesco e toda a perspectiva deve ter isto em conta. A primeira

necessidade é a escravização, no sentido mais rigoroso, da população autóctone (ibid., 1956,

p. 37).”

O outro passo é o extermínio de todo o referencial representativo de um povo, o que

chamaremos de “expropriação cultural e identitária”, culminando com o assalto dos esquemas

67

culturais historicamente constituídos. A sociabilidade dos sujeitos é destruída, seus hábitos e

valores são subalternizados e julgados sem valor, compondo um esvaziamento panorâmico e

essencialmente cultural.

Diante desse caos desestruturante, um novo capítulo se prontifica a aparecer: a

fragmentação de um povo inteiro, sem forças e sem ordem para se estabelecer. Toda essa

situação nos leva a pensar que o regime colonial mata para sempre a cultura do colonizado.

Mas, observamos que, historicamente, toda essa pressão na cultura do oprimido é aprisionada

no estatuto colonial, de forma mumificada, perante a paralisia de um povo que sofreu uma

violenta opressão.

A mumificação cultural leva a uma mumificação do pensamento individual. A apatia

tão universalmente apontada dos povos coloniais não é mais do que a consequência

lógica desta operação. A acusação de inércia que constantemente se faz ao indígena

é o acumulo da má-fé. Como se fosse possível que um homem evoluísse de modo

diferente que não no quadro de uma cultura que o reconhece e que ele decide

assumir (FANON, 1956, p. 38).

O racismo se modifica novamente, agora, pelo viés de uma valorização falsa da

cultura do autóctone, funcionando sob a vigilância do opressor, em que se finge respeitar as

especificidades culturais do povo colonizado. Porém, a preocupação afirmada de respeitar a

cultura das populações autóctones, não quer dizer que levam em consideração determinados

valores da cultura desses homens. Na realidade o que se pretende é encaixar e aprisionar

novamente esses sujeitos, mas, de outra forma: simplificando-os até o universalismo de

direitos e deveres, e assim, levando à inexistência de uma confrontação cultural.

E a Europa empanturrada de riquezas concedeu de jure a humanidade a todos os

seus habitantes; entre nós, um homem significa um cúmplice, visto que todos nós

lucramos com a exploração colonial. Este continente gordo e lívido acabou por dar

no que Fanon chama com justeza o “narcisismo”. (...) E a Europa que faz ela? E esse

monstro supereuropeu, a América do Norte? Que tagarelice: liberdade, igualdade,

fraternidade, amor, honra, pátria, que sei eu? Isso não nos impedia de fazermos

discursos racistas, negro sujo, judeu sujo etc. Bons espíritos liberais e ternos,

neocolonialistas em suma - mostravam-se chocados com essa inconsequência; erro

ou má-fé; nada mais consequente, em nosso meio, que um humanismo racista, uma

vez que o europeu só pode fazer-se homem fabricando escravos e monstros

(SARTRE, 1961, p. 17).

68

O tempo também se encarrega de elaborar modificações nos modos de vida social,

econômico e cultural. A primeira fase da dominação colonial se instalou com a afirmação de

uma pseudo superioridade a ser imposta de forma massacrante acima de qualquer um.

Em seguida, subjuga, oprime e desumaniza o grupo social que se tornou alvo desse

processo e continua, junto com a exploração, todos os tipos de tortura, ao ponto de, sem haver

outra maneira para existir, os sujeitos aferidos por esse mecanismo colonizador tornam-se

indecisos, sem razão de ser. O sentimento de culpabilidade é reforçado e se torna mais um

elemento opressor que faz o negro colonizado sentir-se incapaz e culpado por toda tragédia a

qual vive.

O racismo vulgar na sua forma biológica corresponde ao período de exploração

brutal dos braços e das pernas do homem. A perfeição dos meios de produção

provoca fatalmente a camuflagem das técnicas de exploração do homem, logo das

formas de racismo (FANON, 1956, p. 39).

O racismo, além de camuflar-se, também se esconde nos meios de produção e na

exploração da força de trabalho. Os trabalhadores atentam-se para os mecanismos de

exploração ao qual se encontram enraizados e reagem, ou unem forças para fazê-lo. Nesse

momento, o racismo se retém, não totalmente, mas, a fim de remodelar-se na nova conjuntura

social que emerge.

Naturalizar o racismo é algo inadmissível. É necessário procurar sua repercussão em

todos os níveis sociais. Compreender as imagens que estão se configurando do negro na

literatura, no cinema, no folclore e entender seu uso. É preciso analisar se essas imagens são

utilizadas como armas sutis que ainda se mantêm a favor do racismo, afastando o negro, o

judeu, os índios e árabes como temas inesgotáveis de estereótipos ainda manipulados por

brancos.

A evolução das formas de exploração tem como consequência o reaparecimento do

racismo nos homens oprimidos. O rigor do sistema vigente torna desnecessária a afirmação

contínua de uma superioridade branca, pois agora se pode afirmar que as diferenças são

econômicas e sociais, mascarando novamente o racismo.

Assim, podemos observar que a “evolução” e a “falsa medida” do “progresso”

provocou a naturalização do racismo. O interesse dessa evolução está no racismo como tema

explorado e utilizado como técnica publicitária.

69

O racismo avoluma e desfigura o rosto da cultura que o pratica. A literatura, as artes

plásticas, as canções para costureirinhas, os provérbios, os hábitos, os patterns, quer

se proponham fazer-lhe o processo ou banalizá-lo, restituem o racismo. O mesmo é

dizer que um grupo social, um país, uma civilização, não podem ser racistas

inconscientemente. (FANON, 1956 p. 42).

O racismo configura-se com a exploração desavergonhada de um grupo de homens por

outros que chegaram a um estádio de desenvolvimento técnico superior. E, assim, o racismo é

legitimado por leis, e, principalmente, pela opressão econômica, social e militar, que

justificam os horrores impostos às suas vítimas.

O modo de ver o racismo como uma disposição do espírito, como uma tara

psicológica, necessita desaparecer. Seria ideal, neste momento, pensarmos em como o homem

exposto ao racismo, sendo subjugado, explorado e escravizado põe em ação seus mecanismos

de defesa. Quais atitudes descobrimos até aqui? (ibid., p. 42).

Vimos, num primeiro momento, que a dominação se efetivou por argumentos

científicos. Colonizados negaram sua própria raça, tendo-lhes sido retirados todos os direitos.

Ao ser, essencialmente, desumanizado, o grupo social se “desracializa” (FANON, 1983). A

partir de então, partilha com a “raça superior” tudo que lhe diz respeito.

O grupo social colonizado, ao ver de perto toda sua estrutura e história cultural

desaparecer, é manipulado pelo opressor de modo a aceitar a imposição de novas maneiras de

ver e de existir. Nesse ponto, acontece o fenômeno da alienação, também chamada de

assimilação: acontecimento importante que marca a autoridade do colonizador imposta ao

oprimido.

Os oprimidos, sem saída, acreditavam que sua condição de inferioridade nascia de

suas características culturais e raciais, portanto, se culpabilizavam. Os termos inferioridade e

culpabilidade têm intrínseca relação com esses acontecimentos. A dualidade dos termos faz

com que os oprimidos assumam novos modos culturais em sua totalidade, ao mesmo tempo

em que enterram e condenam seu estilo próprio de cultura.

Tendo julgado, condenado, abandonado, as suas formas culturais, a sua linguagem, a

sua alimentação, os seus procedimentos sexuais, a sua maneira de sentar-se, de

repousar, de rir, de divertir-se, o oprimido, com a energia e a tenacidade do

náufrago, arremessa-se sobre a cultura imposta. (ibid., p. 43).

70

Com o advento tecnológico, principalmente nos meios de produção, na dinâmica da

produção industrial, vendo homens de regiões longínquas concentrados nas capitais,

descobrindo a cadeia de montagem em massa, o tempo de produção, em desigualdade com

seu rendimento por hora, o grupo social oprimido vê o absurdo que envolve a manutenção do

racismo e do menosprezo em relação a sua condição de vida (ibid., p. 43).

Embora camuflados por princípios democráticos, de afirmações de igualdade e

irmandade, países coloniais apresentam tendências racistas em suas bases, ainda sim, são

racistas. A inferiorização de homens, sem o menor motivo lógico a não ser de se afirmar, não

é mais do que a explicação emocional e intelectual desta inferiorização. Não há racismo, sem

racistas. É preciso compreender que nesta relação entre “inferiores” e “superiores” há:

Simultaneamente “aculturado” e “desculturado”, o oprimido continua a esbarrar no

racismo. Acha que esta sequela é ilógica. Que o que ele superou é inexplicável, sem

motivo, inexacto. Os seus conhecimentos, a apropriação de técnicas precisas e

complicadas, por vezes a sua superioridade intelectual quanto a um grande número

de racistas, levam-no a qualificar o mundo racista de passional (ibid., p. 44-45).

Sem dúvida alguma, o racismo segue renovando-se em sua estrutura. Torna-se normal

o racismo em um país que vive da exploração de povos diferentes e inferioriza sujeitos. Numa

sociedade não existem diferentes modos de racismo, não há graus. Estas latências circulam e

se dinamizam dentro das relações psico-afetivas e sociais de forma pungente e intrínseca.

Após um longo período de alienação, o inferiorizado desperta e percebe sua posição

inerte diante de tantas atrocidades. Depois dessa fase de desculturação e de “estranhamento”,

ele retorna as suas atitudes originais (ibid., p. 45). Nesse reencontro com sua cultura, antes

vilmente rejeitada, ocorre uma supervalorização da mesma, o que se aproxima ao desejo de se

perdoar.

Quando percebe que sua cultura foi desmontada, o inferiorizado se desaliena e vê a

importância de tudo que perdeu na colonização de sua história. Reencontra a si próprio e sua

tradição como mecanismo defensivo de salvação. Desse sublime reencontro, o colonizado se

arma e decide lutar contra todos os mecanismos de exploração e alienação do colonizador e

reintegra-se à comunidade antes perdida.

71

O fim lógico desta vontade de luta é a libertação total do território nacional. Para

realizar esta libertação, o inferiorizado põe em jogo todos os seus recursos, todas as

suas aquisições. As antigas e as novas, as suas e as do ocupante. A luta é subitamente

total, absoluta. Mas, então já não se vê aparecer o racismo. (FANON, 1968, p. 47).

Na luta pela liberdade territorial e social, o inferiorizado encontra uma relação

paradoxal, pois, os costumes e tradições antes negados e brutalmente silenciados, passam a

ser abruptamente valorizados. O enfrentamento do racismo inicia-se por meio desta

incompreensão.

A partir da desalienação do homem e do início do enfrentamento ante a colonização, o

inferiorizado situa-se em um nível mais humano, e sua cultura se fortalece. Esbarra na

universalidade que, de súbito, traz uma falsa igualdade que neutraliza lutas e conquistas

favorecendo o colonizador. A libertação de homens e sua descolonização é a transição para

uma nova nação. Esse processo substitui antigos e velhos homens por outros que exaltam a

mudança e a desejam mais do que tudo. A descolonização é antes de mais nada a criação de

seres humanos novos.

A identidade negra seria uma das consequências da ideologia do branqueamento que

anula a pessoa negra, o ser negro. Entretanto, quando o negro toma consciência que a solução

não é se tornar branco e, sim, assumir-se como negro, com corpo negro e toda sua história e

destino enquanto negro surge o movimento de resgate subjetivo e cultural que chamamos de

“negritude” ou de “orgulho negro”, surgido em movimentos como o “Black is beautiful”,

iniciado na África do Sul pelo militante Stephe Biko, importante símbolo da resistência negra

no regime Apartheid entre 1960 e 1970 (Pereira, 1985), e, em seguida, pelo movimento

estadunidense que defendia a beleza negra, e a luta política da militância negra que

simbolizava o orgulho da negritude e de tudo que a compunha: a estética, a força e a luta

negra por direitos (VAUGHAN, 2000).

A “negritude” não é como as pessoas pensam que seria um racismo às avessas. Ela

nasce da consciência de um grupo de pessoas portadoras desse apêndice do racismo e que

foram vítimas da história da humanidade. Essas pessoas foram humilhadas, tiveram sua

humanidade negada e foram exploradas. O único caminho era se assumirem coletivamente e

isso somente ocorre quando encontram o caminho da negritude. Nas palavras de Fanon: “(...)

Desde que era impossível livrar-me de um complexo inato, decidi-me afirmar como NEGRO.

72

Desde que o outro hesitava em me reconhecer, só havia uma solução: fazer-me conhecer

(FANON apud SOUZA, 1983, p. 95)”.

A partir desse movimento de desalienação e de constituição de um homem novo,

Fanon afirma que a superação da lógica colonial só seria possível através da violência armada,

por via de uma libertação nacional revolucionária, pensamento expresso com clareza de

detalhes na obra Os Condenados da Terra. Último trabalho do autor e não menos importante,

compreendemos a visão de um Fanon pleno de sua potência e ciente de que a única via para a

libertação é a insurreição armada e, daí, estabelece-se a necessidade de bagunçar as forças

sociais de modo a fazer surgir um novo ser humano, cuja negritude é seu valor inerente.

Em Os Condenados da Terra (1968), compreendemos a importância da Revolução, da

desalienação e da união dos colonizados para a luta ganhar força e seguir adiante de todas as

consequências advindas de seus atos:

Então o colonizado descobre que sua vida, sua respiração, as pulsações de seu

coração são as mesmas do colono (...). Essa descoberta introduz um abalo essencial

no mundo. Dela decorre toda a nova e revolucionária segurança do colonizado. (...)

Não me perturbo mais com sua presença. Na verdade eu o contrario. Não somente

sua presença deixa de me intimidar como também já estou pronto para lhe preparar

tais emboscadas que dentro de pouco tempo não lhe restará outra saída senão a fuga

(FANON, 1968, p. 34).

O que falta para que nosso povo brasileiro, tão castigado pelas injustiças sociais e pela

alienação massiva realizada pelos meios mais fundamentais para o desenvolvimento pleno do

ser humano, para sair de toda esta passividade e reagir, se organizar deliberadamente e contra-

atacar todo esse mecanismo perverso do neocolonialismo no qual estamos submersos?

A educação não corresponde à realidade, a política nos desautoriza, as leis não

respeitam a maior parte da população que é regida pela intolerância e pela violência causada

ao povo preto e pobre das periferias das grandes cidades. Não há igualdade no mercado de

trabalho para todos, há ambulantes em trabalhos precarizados por todo o país, e, na grande

maioria, são de negros e seus descendentes miscigenados que ainda vivem subalternizados,

sem perspectivas de alcançar uma vida melhor.

Por isso, a leitura de Frantz Fanon é necessária com toda sua força e veracidade para

esta discussão em contraponto a nossa modernidade tão eloquente e capitalista. Precisamos

73

dele, precisamos enegrecer o processo de aprendizagem, precisamos enegrecer o modo de ver

o mundo e o compreender a nossa realidade sem ilusionismos, mas com lucidez e

determinação.

Minhas filhas vão para a escola e ainda recebem uma educação alienante, pois na

maioria das escolas não se aborda a realidade cruel de nossa sociedade. Trabalho na área de

educação há nove anos e ainda sou testemunha de situações de conflitos raciais entre alunos e

do “racismo desmentido” até mesmo entre professores, que tentam persuadir a si mesmos da

hipócrita “inexistência” da realidade narcísica de questões de cor e classe social,

determinando estigmatizações cotidianas.

O que mais estamos esperando? O momento é agora, não há o que esperar para nos

descolonizarmos desse jugo pós-moderno de insanidade coletiva nas relações sociais e

desiguais do Brasil. Do que nos orgulhamos em nossa história? Não há o que se orgulhar se

nada realizamos. Isso é um fato!

Como educadora não posso cruzar os braços e fechar meus olhos. Faz-se necessária a

militância para a mudança de paradigmas que nos são impostos desde o nascimento por outros

que desconhecem nossa rotina. Não queremos mais isso! E a libertação do pensamento e do

inconsciente coletivo racista, internalizado como supereu cruel, é o primeiro passo. Tornar-se

consciente, liberar-se profundamente desses traumas impingidos é descolonizar-se; sair de um

gozo masoquista e desejar estar pronto é o início para a superação (ARREGUY& COELHO,

2018).

A descolonização se propõe a mudar a ordem do mundo, é, como se vê, um

programa de desordem absoluta (...) é um processo histórico: isto é, ela só pode ser

comprometida, só tem inteligibilidade, só se torna translúcida para si mesma na

exata medida em que discerne o movimento historicizante que lhe dá forma e

conteúdo. A descolonização é o encontro de suas forças congenitamente antagônicas,

que têm precisamente a sua origem nessa espécie de substancialização que a

situação colonial excreta e alimenta. (...) a descolonização é verdadeiramente a

criação de homens novos. Mas essa criação não recebe a sua legitimidade de

nenhuma potência sobrenatural: a “coisa” colonizada se torna homem no processo

mesmo pelo qual ela se liberta (FANON, 1968, p. 52-3).

Tomando como exemplo a experiência e militância de Fanon, observamos que o autor

nos alerta que até na África o processo de libertação revolucionária nacional não pode

esquecer-se da “entificação” que envolve o capitalismo e os interesses embutidos nas

diferentes classes sociais, principalmente, tendo em vista que a característica dos países

74

coloniais era a de serem dependentes economicamente e subdesenvolvidos na relação

histórica com suas metrópoles usurpadoras. Restava às colônias (e parece ainda restar a

muitos países subalternizados pelo neoliberalismo financista de mercado) a exportação de

bens primários, além da nefasta manutenção de uma população, sobretudo em sua maioria,

analfabeta, que compunha (e ainda compõe) uma classe operária insipiente e uma burguesia

vendida a interesses externos que lhe renderiam (e ainda lhe rendem) gordos lucros.

Assim como aconteceu na África, aconteceu nas Américas Central e Latina, tendo

como nosso foco o Brasil, saqueado pela metrópole até depois de descolonizado, composto

por uma massa populacional mal estruturada e sem grandes referências. A solução é a

autoconsciência e a crítica para entender esta espúria situação para não mais sermos

coniventes com esse atraso ontológico que reserva uma ilusão de bem-estar imaginário.

Vivemos na mais profunda desigualdade social, somos vítimas de uma péssima distribuição

de renda em que os mais pobres financiam a ostentação dos ricos.

Sempre houve lutas contra a opressão e escravidão colonial. Os povos colonizados não

seguiram inertes a todo esse processo e buscaram estratégias de resistência e emancipação. É

o Branco que cria o Negro, mas, o negro cria sua negritude (FANON, 1983). E, assim,

lutando, precisamos nos reafirmar, na luta por um objetivo reconhecido.

O movimento de negritude, para Fanon, assume uma posição na qual o Branco/

europeu é o universal e o Negro/africano o específico. Essa constatação o mantém preso ao

presente pobre e a um futuro sem perspectiva que insiste em afirmar um passado inglório em

vez de desmistificar a ilusão africana e libertar seus descendentes da possibilidade de serem

reconhecidos pela universalidade.

Para livrar-se das armadilhas forjadas pelo colonialismo, segundo Fanon, é necessário

descer aos “verdadeiros infernos”, atravessar a afirmação da identidade historicamente negada

em direção ao genérico do ser humano. Por esse motivo, a desalienação só se completa

mediante a reestruturação do mundo.

Há, portanto, necessidade de poupar forças, de não as lançar de uma só vez na

balança. As reservas do colonialismo são mais ricas, mais importantes que as do

colonizado. A guerra se prolonga. O adversário se defende. A grande explicação não

se dá hoje nem amanhã. De fato, começou desde o primeiro dia e terá fim não

quando houver mais adversário e sim quando este último, por vários motivos, se der

conta de que é de seu interesse terminar essa luta e reconhecer a soberania do povo

colonizado (FANON, 1968, p. 116).

75

Para o autor, a revolução social significava a possibilidade histórica que daria condição

para superação de alienações psicossociais. Compreendia, porém, que as lutas sociais não

poderiam se concretizar sem terem como pontapé inicial a realidade em que surgiam.

Observar o presente incomoda e nos faz perceber toda a injustiça racial na qual

vivemos, além da semelhança às atrocidades do colonialismo contado por Fanon que nos

instiga a questionar: como o autor confrontaria este colonialismo moderno? Um

neocolonialismo implícito nas relações sociais que segregam o negro em suas mazelas advindas

do período escravagista brasileiro. Para Silvério (1999), o racismo ao longo dos anos foi sendo

transformado e renovado, tornando a racialização uma dura realidade disseminada pelo mundo

na sociedade contemporânea globalizada.

Os problemas da modernidade que estamos vivendo são reflexos da hierarquização

cultural e racial, da colonização do pensamento e a neocolonização dos corpos. Fanon nos

alerta que precisamos nos unir e fazer urdir uma revolução, que precisamos refletir sobre a

necessidade de essa revolução ser armada ou não. Descolonizar-nos, reorganizar e reconstituir

nossa história sem eurocentrismo, com a legitimidade que nos define como um povo que luta,

chora e além de tudo é resiliente e dono de sua própria humanidade. Entendemos que Fanon

ainda tem muito a colaborar e elucidar a respeito dos caminhos capazes de serem trilhados por

aqueles que, ainda, presos nas amarras dos colonizadores, estão cansados de não ter voz. Aos

colonizadores de corpos e territórios vem se substituir os neocolonizadores do mercado volátil

e do gozo das almas.

Especialmente na compreensão desalienante, embora se possa esclarecer que as antigas

colônias sejam hoje independentes, a ordem global ainda racial permanece intacta. A

distribuição de riqueza e poder ao redor do mundo não mudou, desde os dias em que as ideias

de hierarquia racial legitimaram as conquistas coloniais, pois instaurou e massificou o status

quo em cujo os brancos são mais ricos e vivem mais, enquanto os não brancos experimentam a

pobreza e as doenças.

Contudo, mesmo sendo desoladora essa realidade pós-moderna, o conhecimento desses

fatos é importante para a população negra se libertar do jugo da ignorância que os alija em

grande parte do território antes colonizado. A informação e a união são instrumentos de luta e

merecem ser considerados e estudados para erradicar esse mal que corrobora para a

inferiorização da população negra.

76

Por estarmos considerando a importância de tais conhecimentos, conduzimos nosso

trabalho junto à origem e ao desenvolvimento da teoria racialista, partindo da compreensão do

termo África e seus significados no imaginário social através do pensamento de autores de

base foucaultiana. Discorremos na contextualização das teorias sobre raça, formuladas

principalmente por intelectuais franceses, centradas nos aspectos fenotípicos para diferenciar

a diversidade humana.

Essas ideias chegam ao Brasil em conjunto com o ideal positivista e determinista na

então presente “sociedade moderna”. A partir desse momento, o modelo de ciência é adotado

nacionalmente e utiliza instituições científicas (faculdades de medicina e direito, museus,

etc.,) que se tornam os principais espaços de propagação dessas teorias racialistas. Veremos

como a propulsão dessas ideias ressignificaram o novo modelo racial e lhe empregaram

particularidades “só nossas” que foram adotadas na sociedade brasileira nos séculos XIX e

XX. Sendo assim, vamos adentrar em questões históricas que embasam nossa realidade atual,

tão desigual e marcada por interesses econômicos e políticos que pré-estabelecem quem nasce

para comandar e quem nasce apenas para obedecer.

1.3 ÁFRICA: potência e exploração

Quando pensamos na população negra africana é comum não refletirmos sobre sua

história e origens e, principalmente, esquecemo-nos do fenômeno da diáspora africana.

Acontecimento que ressignificou a presença da população negra por todo o mundo. Ao

falarmos de África ignoramos suas belezas naturais ou, simplesmente, mencionamos a Savana

e os animais selvagens.

O senso comum, desse modo, explora as mazelas de um povo que morre de fome e

sofre com doenças hediondas e devastadoras como Ebola, AIDS, cólera, malária, entre outras

que, de um modo geral, parecem existir somente naquele território. A imagem que ainda

partilhamos sobre o continente africano é de um lugar longínquo, exótico e dono de mistérios

e lendas obscuras que nos rondam como fantasma.

77

O termo África é o nome que geralmente outorgamos às sociedades consideradas

impotentes, isto é, incapazes de produzir o universal ou de afirma-lo. Um mundo

que é arruinado pela guerra tribal, a dívida, a feitiçaria e a pestilência. É o avesso

negativo do nosso mundo, uma vez que, no essencial, simboliza o gesto errado, a

corrupção do tempo e o seu desregulamento. (MBEMBE, 2014, p. 93) 19

.

Em geral, nossas referências da África são pejorativas e sem profundidade. Esse

conceito é reforçado pelos meios de comunicação que, constantemente, desvalorizam a

cultura, a religião e a forma coletiva dos africanos perceberem o meio que vivem maneira que

difere do modelo hegemônico preconizado, extremamente individualista, capitalista e

neoliberal em que vivemos.

Pretendemos dizer o quanto essa mistificação e distanciamento são algo

propositalmente estabelecido? Divulgado e difamado para manter a África distante de nosso

conhecimento, como um lugar sem nada a oferecer. É possível perceber isso inclusive nos

pacotes de turismo internacional que não convencem nem oferecem com abundância

entretenimento no território africano, como acontece com os Estados Unidos, nos parques de

Orlando ou com as belezas tropicais do mar do Caribe.

As imagens vinculadas à África, ainda hoje, dificilmente mostram seus impérios,

palácios reais ou grandes reinos, nem tampouco apontam os holofotes para as cidades

modernas construídas pelo próprio colonizador. Em geral, só ressaltam uma África dividida e

reduzida em seus aspectos negativos, como a fome, calamidades naturais, etc.

A mídia não parece estar interessada na exibição dos antigos impérios,

exércitos e inclusive das riquezas em ouro, dos impérios de Gana, Mali e outras cidades

economicamente estruturadas, como os reinos do Congo e Benin. Entretanto, existe

atualmente um número considerável de bibliografias que comprovam como em todas as

regiões africanas tiveram sociedades horizontais-não hierarquizadas, que não constituíram

Estados, mas, sociedades políticas e economicamente complexas que se fixavam a outros

reinos para submetê-los ao pagamento de tributos20

.

19

Todas as citações desse autor estão redigidas conforme a tradução original, ou seja, em português de

Portugal.

20

Para entender melhor a respeito da divisão geográfica da África antiga ver: História Geral da África

II. África Antiga, 1983. Disponível em: http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/education/inclusive-

education/general-history-of-africa/. Acesso em 10 de março de 2016.

78

Em Munanga e Gomes (2006/2010), é possível observar momentos de deslumbre e

admiração da terra e do povo africano por outras civilizações:

Até a véspera da era colonial moderna, era comum encontrar imagens positivas a

respeito da África. A natureza era descrita com poesia e entusiasmo; as mulheres

eram consideradas bonitas e respondendo aos cânones da beleza da época, com boca

de cereja e curva excitante (p. 32).

As imagens de uma África autêntica, existente nos testemunhos de viajantes árabes,

alemães, que desvendaram os países da África Ocidental entre os séculos IX até XI, e de

viajantes portugueses em suas navegações no século XV, se aproximavam mais ao sul do

continente africano, revelando sua diversa realidade. Vejamos o testemunho de Leo

Frobeniuns, pesquisador e explorador alemão, a respeito de cidades que visitou em 1906, na

África Central:

Quando penetrei na região do Kassai e do Sankuru, encontrei ainda aldeias cujas

ruas principais tinham quilômetros bordados com fileiras de palmeiras e cujas

residências eram decoradas de maneira fascinante como se fossem obras de arte.

Não vi homens que não carregavam no cinto suntuosas armas de fogo e cobre...

Havia por toda parte tecidos de veludo e seda. Cada taça, cada cachimbo, cada

colher eram uma obra de arte, totalmente dignos de comparação com as criações

europeias (OLIVER e ATMORE, 1970, p. 19).

No entanto, não foi essa a visão que predominou ao longo dos séculos subsequentes.

Um marco no apagamento dessa percepção foi a destruição dessa realidade via colonização,

oficializada na Conferência de Berlim (1885)21

. Essa conferência foi determinante para a

mudança no território africano. A partir desse momento histórico, as referências simpáticas e

harmônicas ao continente africano começaram a sombrear, a imagem da beleza foi

bruscamente distorcida pela imagem de sub-humanos e, assim, passou-se a justificar as

invasões, a manutenção dos processos de colonização e exploração total de continente,

principalmente, na sujeição do povo africano ser obrigado a viver sem história própria.

As belas paisagens descritas por aventureiros desapareceram. A empatia com a beleza

do povo africano também. No lugar disso, se estabeleceu a barbárie, a mesquinharia e o atraso

para introjetar a "missão civilizadora", de responsabilidade dos colonizadores.

21 A Conferência de Berlim definiu a partilha colonial da África entre os países europeus

interessados em explorar política e economicamente esse continente. (PEREIRA, Amauri Mendes. África para

abandonar estereótipos e distorções, 2012).

79

A população negra ficou sem identidade, submersa numa suposta bestialidade

atribuída aos negros por teorias pseudocientíficas22

. Reinos e impérios foram desqualificados

como ignorantes e reduzidos a “tribos primitivas” que viviam em guerras infindas umas

contra as outras em meio à colonização. A exploração e dominação sofridas pelos africanos

exigia uma justificativa para o povo ser considerado bruto, do contrário não se poderia

legitimar a violência e fundamentar os trabalhos forçados. Desse modo, além da negação da

humanidade dos africanos, era preciso bestializar homens e mulheres.

África e Negro – uma relação de coprodução liga estes dois conceitos. Falar de um é

efetivamente evocar o outro (...). No entanto, se África tem um corpo e se ela é um

corpo, um isto, é o negro que o concede - pouco importa onde ele se encontra no

mundo. E se Negro é uma alcunha, se ele é aquilo, é por causa de África. Ambos,

isto e aquilo, remetem para a diferença mais pura e mais radical e para a lei da

separação (...). Os dois são o resultado de um longo processo de produção de

questões de raça (MBEMBE, 2014, p. 75).

As mudanças provocadas pelas invasões e imigrações não apagam as contribuições

de africanos na história de civilizações. Um exemplo da tentativa de apagar o continente

africano da historiografia ocidental colonial aconteceu quando negaram que havia mão-de-

obra negra na civilização egípcia. “Os egípcios eram negros, de lábios grossos, cabelo

crespo e pernas finas(...). Será difícil ignorar ou subestimar a concordância entre os

testemunhos23

apresentados pelos autores de referência a um fato tão evidente quanto à raça

de um povo”? (DIOP, 1983, p. 48).

Todo processo de negação foi uma estratégia politico-ideológica, cujo objetivo era

de rechaçar o negro do processo civilizatório universal, a fim de justificar a colonização e a

22Conforme nota 14.

23Volney, cientista latino, viajou pelo Egito entre 1783-1785, em pleno período de escravidão negra. Ele

fez as seguintes observações sobre os coptas (representantes da verdadeira raça egípcia, aquela que produziu ao

faraós): “Todos eles têm faces balofas, olhos inchados e lábios grossos, em uma palavra, rostos realmente

mulatos. Fiquei tentado a atribuir essas características ao clima, até que, visitando a Esfinge e olhando para ela,

percebi a pista para a solução do enigma. Completando essa cabeça, cujos traços são todos caracteristicamente

negros, lembrei-me da conhecida passagem de Heródoto: ‘De minha parte, considero os Kolchu uma colônia do

Egito porque, como os egípcios, eles têm a pele negra e o cabelo crespo’. Em outras palavras, os antigos egípcios

eram verdadeiramente negros, da mesma matriz racial que os povos autóctones [nativos] da África; a partir desse

dado, pode-se explicar como a raça egípcia depois de séculos de miscigenação com sangue romano e grego,

perdeu a coloração original completamente negra, mas reteve a marca de sua configuração.” ( DIOP, o.

cit.,p.56).

80

exploração econômica das riquezas naturais e da mão-de-obra escrava através da

dominação política. Essa teoria foi planejada a princípio por colonizadores, apoiados pela

religião católica e, em seguida, por intelectuais e cientistas, mostrando definitivamente a

disposição em manter o estigma de raça superior sobre os negros e seus descendentes.

Todorov (1993), em sua obra Nós e os outros, expõe a questão do universal e do

particular e dá ênfase aos conceitos de racismo e racialismo. Segundo o autor, a ideologia

europeia se coloca de forma superior biológica e culturalmente acima de todos os outros

povos, mantendo essa superioridade nas características fenotípicas, em suas produções

culturais, legitimadas num nível universal. Assim, a “raça” branca seria imposta como

referência para hierarquizar os povos de outras partes do planeta.

Enquanto o universalismo tem como referência um modelo universal idealizado ligado

à sociedade na qual pertence, o particular se caracteriza pela abertura para desestabilizar

valores atrelados a sua própria origem como universal, sendo esse universalismo aquele que

os convêm. Da mesma forma, Mbembe (2014, p. 155), em sua análise sobre o universal e o

particular, traz para reflexão o pensamento universal ocidental no qual apresenta a noção de

civilização como uma das imposições do que é necessário para fazer parte dessa

universalidade, como basicamente direito de todos. Segundo Mbembe (ibid):

Ela autoriza a distinção entre o humano e aquilo que não é de todo ou não é ainda

suficientemente humano, mas pode transformar-se nisso através da roupagem

adequada. Pensa-se, então, que os três vetores dessa roupagem são a conversão ao

cristianismo, a introdução à economia de mercado através do trabalho e a adoção de

formas racionais e esclarecidas de governo (MBEMBE, 2014, p. 29).

Pode-se observar nos pensamentos sobre o universal e o particular como transcorrem

as relações humanas. Essa maneira de pensar as relações, mesmo sendo de caráter teórico,

disseminou-se através dos continentes e foi denominada por ambos os autores como

"racialismo", respaldando o racismo que se evidencia por meio de ações excludentes.

Abordando o racismo em particular e a sua inscrição nos mecanismos de Estado e do

poder, Michel Foucault dizia, a este respeito, que qualquer moderno funcionamento

do Estado, a determinado momento, a um certo limite e em certas condições,

passaria pelo racismo. A raça, o racismo, explicava ele, é a condição de

aceitabilidade da condenação à morte numa sociedade de normalização.

(FOUCAULT, apud MBEMBE, 2006-2014, p, 67).

81

Entendo que o pensamento- mundo de Mbembe (2014) está fundamentado no

universal e não no nacional, no particular. O autor defende que o pensamento pós-colonial (ou

defendido por alguns autores como Stuart Hall, (2015) como pensamento pós-moderno) surge

com a “globalização” ou processo de expansão do trânsito e da troca entre povos de diferentes

partes do planeta. Ele elucida o desdobramento, por exemplo, da diáspora africana como

flexão desse movimento.

(...) a época do tráfico atlântico, das migrações em massa, já se constituía como uma

era de grandes experiências planetárias, momento no qual homens afastados da terra,

do sangue e no solo aprendem a imaginar comunidades pra lá dos laços de terra,

abandonando o aconchego da repetição e inventando novas formas de mobilização e

de solidariedades transnacionais (MBEMBE, 2014, p. 71).

Entretanto, o autor afirma que o pensamento pós-colonial é um pensamento do

sonho: sonho de uma nova forma de humanismo, que principalmente assentaria na partilha

daquilo que nos diferencia, aquém dos absolutos. É o sonho de uma pólis universal e

mestiça (ibid., p. 71). Brilhantemente Mbembe representa a possibilidade de a partir das

identidades humanas e sua disseminação, ser possível viver em harmonia e respeitabilidade

dentro de uma nova perspectiva do universal, que de acordo com seu pensamento: a

identidade nasce da multiplicidade e da dispersão; que o retorno a si mesmo só é possível

no entremeio, no interstício entre a demarcação e a desmarcação, na co-constituição (ibid.,

p. 69). O outro faz parte de cada um de nós, com todos seus aspectos de espelhamento,

diferença e estranhamento trazendo a necessidade, em cada um de nós, de compor um olhar

reflexivo diante do ato racista.

1.4 O Conceito de raça usado como instrumento para subalternizar o negro.

No entendimento de Schwarcz (1996), o conceito de “raça” surge no século XVI no

contexto da dominação colonial da Península Ibérica, momento de exploração do Novo

Mundo, categorizando as diferenças humanas em superiores e inferiores, chamando de

“primitivos” os povos recém-encontrados por colonizadores. Então, a partir do olhar

82

europeu houve a cristianização dos seres classificados por “bestializados”, e a ideia de raça

passou a fazer parte das relações sociais.

Como começou então essa história de chamar raças, conjuntos de indivíduos que

têm em comum a mesma cor da pele? No século XV, quando os navegadores

europeus descobriram povos fisicamente diferentes deles, colocou-se a questão de

saber se esses recém-descobertos eram bestas ou seres humanos como europeus.

Para que pudessem ser integrados na categoria humana, era preciso comprovar que

eram, antes de mais nada, também descendentes de Adão como os europeus.(...).

Lembremo-nos que entre os séculos XV e XVII o conhecimento e a explicação da

origem da humanidade estava nas mãos da Igreja, através da Teologia. Nesse

contexto, conseguiu-se demonstrar que os índios e os negros tinham referência na

bíblia e na santa escritura, o que comprovara sua descendência adâmica e,

consequentemente, sua humanidade. Faltava-lhes somente a conversão ao

cristianismo para sair da condição pecaminosa (...). Foi nesse sentido que a

escravidão foi abençoada pela Igreja Católica como o melhor caminho para a

conversão desses povos ao cristianismo, considerado como a sua única salvação.

(MUNANGA, 2013, p.176).

O conceito de raça foi utilizado, desde os seus primórdios, para segregar e legitimar a

hierarquização entre os povos, sendo criado para manter um rastro no decorrer dos séculos

para manter estereótipos raciais nos quais permanecem e são observados, principalmente, no

ambiente tecnológico privado. Hoje em dia, é comum ver a internet servindo de escudo para

camuflar um racismo feroz nas redes sociais. O racismo institucional enquanto forma de

segregação econômica também é evidente no meio do trabalho, com a ausência de negros em

algumas posições de prestígio.

Raça passa a ser um definidor para inferiorização, algo que ainda persiste como uma

representação poderosa e, também, como divisor social, excluindo o diferente, construindo

uma ponte que alicerça hierarquias e discriminações. Para Schwarcz (2012, p. 34) raça é

conceituada da seguinte maneira:

Raça é, pois, uma categoria classificatória que deve ser compreendida como uma

construção local, histórica e cultural, que tanto pertence à ordem das representações

sociais – assim como são as fantasias, mitos e ideologias – como exerce influência

real no mundo, por meio da produção e reprodução de identidades coletivas e

hierarquias sociais politicamente poderosas.

A etimologia da palavra "raça" vem do italiano razza que, por sua vez, tem origem no

latim Ratio que significa sorte, categoria ou espécie. Essa categoria foi utilizada pela primeira

83

vez, atuando nas relações entre classes sociais, nos séculos XVI e XVII (MUNANGA, 2003).

Desde então, o termo "raça" foi relatado como julgamento de valor sobre o outro, e quando os

europeus viajaram à África e para o continente americano, destacou-se o sentimento de

superioridade nas relações com o outro.

O conceito de “raça” passou a ser usado como degradação. O mesmo ocorre com a

possibilidade da mistura entre os povos e, principalmente, com a mistura sanguínea. O temor

da degenerescência a partir da mistura dos povos foi, portanto, mais um motivador na

segregação e no surgimento de mecanismos que massificaram a inferioridade da população

negra no escopo da hierarquia racial.

No processo colonial, os europeus conceberam três formas de perceberem o continente

africano, desfavorecendo a população africana e legando-a a situações adversas: 1) a

descoberta de terras no continente americano, em que a mão-de-obra se tornaria escrava para

trabalhar neste território; 2) o desmantelamento das instituições políticas no continente

africano pelos europeus; 3) o interesse não na cultura, mas nas riquezas naturais das terras

africanas, além da exploração e opressão da população.

Na religião a inferioridade do povo negro foi justificada, a partir da passagem bíblica

da descendência de Cam, filho de Noé. Cam foi amaldiçoado por ver seu pai nu quando

estava embriagado e desrespeitá-lo por rir da situação e não esconder a nudez de seu pai. Noé

expulsou seu filho da família amaldiçoando a ele e a sua descendência. O clero religioso

definiu essa maldição como a modificação da cor da pele de Cam. Seu castigo seria tornar-se

negro, como sinal para não esconder sua vergonha. (MUNANGA, 1988).

Dessa forma, percebemos como os personagens bíblicos cristãos eram utilizados para

justificar a inferioridade do negro em relação ao europeu. O preto e o branco foram, então,

equivocadamente mal interpretados. Os cristãos viam o negro como algo imoral e sujo e o

branco como símbolo de pureza e bondade. Os símbolos religiosos negativos eram

representados nas colônias africanas da seguinte forma: Deus sendo o senhor supremo com

barbas e pele alva e olhos claros, enquanto o diabo com pele negra, rabo e chifres

pontiagudos.

Outro modo de estigmatizar os negros, empregado pelos europeus foi através da

imagem do negro como preguiçoso. Afirmavam que em um clima tropical, os negros

trabalhavam somente até o meio dia, e à tarde tiravam sua sesta embaixo de árvores e não

84

voltavam mais ao trabalho. A preguiça ainda é um estereótipo comum nos ditados populares,

como confirmação do negro propício ao vício em bebidas e jogos, atribuindo a má vontade

para o trabalho, e legitimando a escravidão e as torturas físicas.

Assim os indivíduos da raça branca, por definição, portadores da pele mais clara,

dolicocéfalos etc., foram considerados, em função dessas características, como os

mais inteligentes, mais inventivos, mais honestos, mais bonitos etc. e,

consequentemente, os mais aptos para dirigir e até dominar as populações de raças

não brancas - negra e amarela-, principalmente negra de pele escura que, segundo

pensavam, tornava-as mais estúpidas, menos inteligentes, mais emotivas e,

consequentemente, sujeitas à escravidão, colonização e outras formas de dominação

e exploração. (MUNANGA, 2010, p. 181).

Contudo, se faz necessário mencionar a questão da linguagem, que consistiu em mais

um adendo no sofrimento e opressão vivido pelo negro. Sua língua mãe naquele contexto era

totalmente desqualificada e, quando aprendia a língua do colonizador, sentia-se num conflito

cultural e psíquico, gerando resistência do negro bilíngue em relação à língua do colonizador.

O colonizado insistia em usar sua língua materna, mesmo diante dos espancamentos, para não

esquecer-se dela.

Sobre a resistência negra, Munanga (1988) diz que há um sinal de ruptura do negro na

assimilação dos valores culturais europeus, isso acontecia quando quebravam as barreiras

sociais e culturais, por meio da sua aceitação como negro e de praticar suas tradições e reviver

sua história. O patrimônio cultural do negro, sua linguagem e ancestralidade, não foram de

todo erradicados pelo colonizador europeu, embora a intenção fosse essa. Em alguns vilarejos

e grupos étnicos, havia, no século XX, a preservação de seus costumes e patrimônios

culturais, seja pelo uso da língua, das artes ou dos costumes.

Entre aquelas sociedades da diáspora, o sentimento de negritude era o de “representar

uma contestação à dominação colonial que impõem um dogma da supremacia colonizadora

em relação à cultura do povo dominado” (Ibidem, p. 34).

São diversos os aspectos biológicos que se apresentam inseridos nas relações entre os

grupos humanos. A partir deles tem-se o racismo e o racialismo que são legitimados,

intrinsicamente, nas relações sociais. Em Todorov (1993), racismo é uma prática excludente, e

racialismo advém como teoria produzida por diferenças constatadas, diferenças estas que

85

estão presentes nos campos: linguístico, cultural, biológico e nas diferenças entre diferença e

identidade.

O racismo científico é um desses mecanismos que surgiu a partir da análise do

pensamento francês sobre a diversidade humana, afirmando a existência da hierarquização

dos povos com base biológica, que no fundo era de cunho cultural, ou seja, pressupondo a

sobreposição de uma cultura sobre a outra. A instituição do movimento de ideias a fim de

definir o tipo ideal de ser humano fez com que muitos intelectuais conceituassem o racismo a

partir de algumas situações de disputa na França, por exemplo, acerca das diferenças raciais

entre francos e gauleses, que caracterizavam ancestrais dos aristocratas e do povo,

respectivamente (TODOROV, 1993).

Intelectuais do racismo científico investigaram a definição e a busca de um tipo ideal,

elegendo o homem como seu principal objeto. Entre estes intelectuais destaca-se a figura de

Buffon (1749) que, em sua obra Histoire naturelle, no volume De I’homme , realiza uma

síntese de relatos de viagem entre os séculos XVII e XVIII defendendo a monogênese e

ressaltando como brancos e negros poderiam unir-se a favor de uma única espécie.

O autor propõe ainda a hierarquização na relação entre os animais na natureza. O

teórico defende a ideia de que, além dos homens pertencerem a uma única espécie, estes

podem ser julgados utilizando os mesmos critérios. Essa posição monogenista corrobora com

o caráter determinista entre a diferença e a superioridade entre um grupo e outro. Essa ideia

funde hierarquia e unidade por julgamento de valor: em primeiro lugar, pela observação de

outras características humanas e, e m s e g u n d o , provocada por fecundação mútua.

A primeira grande classificação das raças levada a cabo por Buffon ocorreu num

ambiente em que a linguagem acerca dos mundos outros era construída a partir dos

preconceitos mais ingénuos e sensualistas, e formas de vida extremamente

complexas são trazidas à pura simplicidade dos epítetos. Chamemos a isso o

momento gregário do pensamento ocidental. Nele, o Negro é representado como

protótipo de uma figura pré-humana incapaz de superar a sua animalidade, de se

autoproduzir e de se erguer à altura do seu deus. Fechado nas suas sensações tem

dificuldade em quebrar a cadeia da necessidade biológica, razão pela qual não

chega a moldar o seu mundo e a conceder a si mesmo uma forma verdadeiramente

humana. É nisto que se afasta da normalidade da espécie. (MBEMBE, 2014, P. 38-

39).

86

Buffon (apud TODOROV, 1993) reafirma essa hierarquia através da sociabilidade, na

qual o “homem” se mantém no topo da vida biológica apenas quando comanda a si próprio e

se submete às leis, à ordem estabelecida e à rotina de seus costumes. Então, deste modo, a

racionalidade e a sociabilidade passam a ser consideradas características necessárias a “todos

os homens”, o que possibilitou a Buffon cunhar oposições como polidez e civilização versus

barbárie e selvageria.

A teoria monogenista hierarquiza os povos da seguinte maneira: acima, as nações da

Europa Setentrional; na sequência, os outros europeus abaixo e, por último, as populações da

Ásia e África. As diferenças sociais levaram-no a formular julgamentos de valor acerca dos

demais povos não europeus, valorizando a unidade do gênero humano.

Se ao menos não houvesse para o branco e o negro a possibilidade de “produzir

juntos”, [...] haveria duas espécies bem distintas; o negro seria para o homem o que

o jumento é para o cavalo; ou melhor, se o branco fosse o homem, o negro não seria

mais homem, seria um animal à parte, como o macaco. (BUFFON apud

TODOROV, 1993, p. 116).

A respeito da variedade da espécie humana, o autor propõem três parâmetros, a saber:

a cor da pele, o tamanho do corpo e o costume24

. A determinação da cor da pele tem ligação

com o clima e os costumes, a alimentação e o grau de civilização. De maneira bem simplista,

Buffon define que os civilizados escapam da miséria por decorrência de sua civilidade. Já os

selvagens ficam a própria sorte sofrendo a fome e as intempéries, vivendo como animais. No

entanto, o ideal estético sugerido por Buffon (Ibidem) é rigorosamente etnocêntrico em

relação aos critérios cultural e étnico. Em suas palavras altamente racistas, os negros:

(...) são de todos os seres humanos os que mais se aproximam dos brutos, lugar às

vezes contestado pelo índio da América, que não era mais que um animal de

primeira ordem (...). Os asiáticos “têm olhos pequenos de porco” enquanto os olhos

dos “hotentotes” são como os dos animais”. (BUFFON apud TODOROV, 1993, p.

116).

24 “Os costumes agem por intermédio do clima e da alimentação, aumentando e diminuindo seus

efeitos, e a falta de civilização produz a negritude da pele. Sofrem a comparação entre civilizado e bárbaro, se

vivessem no mesmo clima, os selvagens seriam mais escuros, feios, menores e enrugados” (TODOROV, 1993, p.

118).

87

O intelectual francês, Renan (1823-92), elucida o racialismo a partir da oposição entre

arianos e semitas e aponta uma hierarquização dos sujeitos através da raça, da divisão da

humanidade em formato de grupos raciais estereotipados ao extremo entre brancos, amarelos

e pretos.

O autor elenca uma raça inferior constituída basicamente pelos pretos da África,

aborígenes da Austrália e por Ameríndios, acreditando haver representantes dessas raças por

toda a dimensão da terra e esses seriam gradativamente eliminados por raças superiores,

reafirmando que as raças inferiores são incapazes e não alcançariam o progresso.

Intermediando essas categorias raciais estão os amarelos, representados pelos chineses,

japoneses, tártaros e mongóis, julgados como menos civilizados.

Em sua análise, a língua chinesa apresenta estrutura inorgânica, defeituosa e

incompleta. A raça branca está no topo como a única bela e que é intocável em relação a sua

civilidade e razão. Renan afirmava que o negro tinha uma única serventia: a de realizar tarefas

e desejos dos brancos e em sua teoria afirmava que "(...) se a terra se tornar coberta por eles,

aconteceria uma limitação total gerando uma 'mediocridade geral'." (TODOROV, 1993, p.

125).

Ainda de acordo com Todorov (1993), outro ponto importante defendido por Renan é

a forma como este aborda a cultura e a ciência e o quanto precisam manter-se autônomas,

principalmente, as crenças morais e religiosas que necessitam ficar protegidas dos resultados

da ciência. Assim, o teórico francês rebateu a falta de unidade e a impossibilidade da

igualdade entre as três raças defendidas por ele, pois, ao afastar a ciência e a ética, ele valoriza

os dogmas morais e, consequentemente, os impede de atrapalhar o avanço da ciência. Já que

se não possuem a mesma a humanidade, os povos ditos inferiores não são merecedores de

respeito.

A partir dessa nova concepção, a “raça” passa a ser concebida pela divisão de grupos

da humanidade subdivididos pela língua, pelos costumes, pela religião e pelas leis. O teórico

acredita que raça linguística é um conceito abstrato, não configura uma raça física, e quem a

compõe pode falar diversas línguas no interior de uma única nação, ou, muitas nações podem

falar uma mesma língua. A língua é, portanto, o espírito da nação, o centro de toda a

discussão. O pensamento de Renan e sua definição sobre as raças primitivas/inferiores

88

sustentada pela falsa acusação da incapacidade desses povos em raciocinar, infelizmente,

tornaram-se parâmetros de análise para medir a capacidade de civilização de grupos sociais

distintos.

Gobineau25

, outro intelectual que contribuiu muito com as teorias racialistas, também

merece destaque por seu determinismo, materialismo e fidelidade à ciência. A raça branca é

por ele considerada como a ideal, sendo os europeus o padrão de referência para as demais

raças.

Em relação às capacidades intelectuais, os negros são considerados nulos. Já o povo

amarelo, ainda segundo o autor mencionado, é medíocre, reafirmando a superioridade

europeia. Ainda na visão deste autor, a mistura de sangue significa a degradação de qualquer

espécie. Ele assegura ainda que os povos se degeneram a partir das misturas e na proporção

em que sofrem um processo de degeneração. O termo "degenerado" é então aplicado ao povo

que não possui o sangue genuinamente puro, logo seu valor foi modificado sucessivamente

pela degenerescência a partir da mistura sanguínea.

Outa hierarquia proposta por Gobineau (apud TODOROV, 1993), refere-se ao estatuto

e ao papel do ideal na vida de uma sociedade. Há, da parte de deste intelectual, um grande

desprezo pelos não europeus, mas sua rejeição mais forte se dá contra os brasileiros,

afirmando: “todo mundo é feio aqui, mas incrivelmente feio como macacos” (SKIDMORE,

1976).

Assim, nos séculos XIX e XX, acrescentaram ao critério da cor da pele outras

características morfológicas como o formato do crânio e de cabeça, os lábios,

narizes, queixos etc., e os caracteres genéticos hereditários como os grupos de

sangue, certas doenças hereditárias e raciais. Estes considerados como marcadores

genéticos, constituíram, segundo pensavam, o divisor de águas, que consagraria a

tarefa científica de classificação das raças humanas. (MUNANGA, 2013, p. 177).

Enfim, Le Bon, Renan e Gobineau são intelectuais poligenistas, que possuem como

referência a cor da pele, a forma craniana e sua capacidade. Para esses estudiosos a

humanidade é composta por diferentes espécies, de origens muito diversas. Aqui foram

25 “Não há diferenças qualitativas entre ciência da natureza e ciências do homem, trata-se de fazer a

história entrar na família das ciências naturais. A respeito das qualidades morais do indivíduo, diz que são

determinadas por suas disposições físicas; nesse sentido, mantém-se oposto aos enciclopedistas, que acreditavam

nas virtudes da educação e nos progressos possíveis, tanto do indivíduo quanto da espécie” (apud TODOROV,

1993 p. 137).

89

apresentados alguns posicionamentos que respaldaram o racialismo e o racismo europeu e

espalharam-se pelo mundo gerando, consequentemente, políticas que promoveram a

submissão e o desaparecimento de populações negras no período das últimas décadas do

século XIX e o início do século XX.

No cenário nacional, as influências desses pensadores fundamentaram o racismo à

brasileira, um racismo velado, quieto, aquele que todos têm ou veem, porém é negado

diariamente. Ninguém se percebe como racista, mas, ao mesmo tempo, acusam o vizinho, o

parente e o amigo mais próximo de ser (SCHWARCZ, 2012). O mito da não existência do

racismo no Brasil impera com a falsa harmonia entre os povos, causando um mal estar na

subjetividade da população negra, que sofre com daltonismo acerca de sua história,

ancestralidade e do conhecimento de si como ser humano e cidadão dotado de direitos como

qualquer pessoa, independentemente de sua cor ou situação social.

Ao longo da construção da pesquisa, nosso intuito é entender a configuração do

racismo em nossa sociedade, enfocando as características de um povo “genuinamente”

brasileiro. Antes disso, tratamos dos aspectos psíquicos que se apresentam como motores do

racismo de um modo geral, através da necessidade na atualidade de discutir conceitos trazidos

por Frantz Fanon, em busca de consciência política para lutar e nos estabelecer como sujeitos

de nossa própria história.

Além dessa discussão, vamos refletir sobre o que é ser negro no Brasil. País marcado

pela corrupção desmedida, capaz de sacrificar e marginalizar grande parte da população

negra, responsável pela construção de toda infraestrutura continental brasileira. Esse lugar que

vulgariza as mulheres, sobretudo as mulatas, expondo-as como “produtos” nacionais, e

descaracteriza o homem negro, mantendo-os nos mais baixos escalões sociais, rebaixando-os

a vagabundos e malandros preguiçosos desqualificados.

90

Capítulo 2: O que é ser negro no Brasil?

Melhor seria perguntar quem gosta de ser negro no Brasil? Nosso país tem um

histórico que ainda tenta apagar, um passado escravagista de exploração de muitos para o

enriquecimento de poucos. Situação que reverbera hoje nas desigualdades raciais e sociais que

vigoram em nosso dia a dia.

Quem quer ser negro no Brasil? Nosso país vive uma realidade de perda de direitos e

contradições políticas que geram um paradoxo do que é considerado certo ou errado, ético ou

subversivo. O sentimento de insegurança é presente e desolador.

A população negra sendo a maioria, aqui é caracterizada como “minoria”, na qual

estão as camadas populares, compostas por negros e nordestinos trabalhadores. Estes

personagens são os que sentem com intensidade a brutalidade da ‘nova ordem’ imposta no

país. Corrupção, roubo, violência e desigualdades aviltantes refletem e proliferam no

cotidiano da população que já não sabem lidar com a situação de ausência ou omissão do

Estado.

Ser negro aqui é não ter certeza do respeito e de direitos que, no papel, são garantidos

pela força da Lei a todos sem distinção de raça, cor, credo ou posição social. Mas podemos e

devemos nos questionar: que Lei é essa que mais desampara do que protege?

O sistema carcerário está em eminência de eclosão por sua superlotação. A população

carcerária é, em sua grande maioria, composta por negros. O Sistema de Informações

Estatísticas do Sistema Penitenciário Brasileiro (InfoPen)26

utilizou os dados da Pesquisa de

Amostras por Domicílio (PNAD) realizado pela Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

(IBGE), no qual a raça é autodeclarada pelos entrevistados e comprovou em um relatório de

pesquisa que, de 726, 712 pessoas encarceradas no Brasil no primeiro semestre de 2016, mais

da metade dessa população é de jovens entre 18 a 29 anos e desses, 64% são negros. Em

26 Os interessados podem ler o relatório na íntegra: Levantamento nacional de informações

penitenciárias: INFOPEN atualizado – junho de 2016/ organização, Thandara Santos; colaboração, Marlene Inês

da Rosa (et al.) – Brasília: ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento de Segurança Pública

Nacional, 2017. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-

de-informacoes-penitenciarias-2016. Acesso em 09 de julho de 2018.

91

âmbito nacional a situação é ainda mais crítica. Quando visualizamos essa estatística dividida

por estados, vemos que a discrepância entre o encarceramento entre brancos e negros pode

ultrapassar os 91%. Legitimamente, os negros são alvo de uma lei paralela, obscura, mas

efetiva, que massacra e criminaliza pobres, negros e favelados com apoio do Estado e de parte

da sociedade civil.

Podemos considerar que ser negro é ter o Estado como inimigo velado, com as armas,

a todo tempo, apontadas para você. É o Estado que segrega, no caso da mobilidade social, e

delimita onde o pobre pode morar ou se “esconder” para manter na foto de vitrine do país do

futebol a paisagem da “cidade maravilhosa”. Mas, maravilhosa para quem? Como pobres e

negros, somos marginalizados e não somos bem-vindos em nossa própria morada.

A disposição de apagar a “mancha negra”27

, mesmo depois de séculos, continua de

acordo com a postura de Rui Barbosa ao mandar incendiar diversos documentos que traziam à

tona toda a brutalidade da escravidão no Brasil (NASCIMENTO, 2016).

Aqui a resolução dos problemas é mais simples, na atualidade o que ocorre é um

esvaziamento de dados, de respostas e até de assuntos pertinentes à questão racial e cultural

que se transformou em social e, por fim, econômica. Como diz Hasenbalg (1979), “o Brasil

não é um terreno fértil para o surgimento do orgulho racial, parece também não o ser para o

florescimento do orgulho nacional!”.

O Estado lida “inescrupulosamente” para apagar os problemas que são criados por

aqueles que os dirigem. Os negros foram transfigurados ao grau de serem considerados um

grande problema para as grandes metrópoles do país. Isso é perceptível na esfera social,

ideológica, estrutural e econômica.

Em defesa do progresso ou da modernização, o asfalto é redesenhado e

supervalorizado, assim como seus moradores. Não obstante, nas comunidades cujas moradias

e infraestrutura são erguidas por seus habitantes, o acesso ao conforto está longe de ser

priorizado. Afinal, supõe-se que quem mora nessas comunidades consideradas “carentes” não

27 “A “mancha negra” citada acima faz menção a um acontecimento histórico, no qual Rui Barbosa,

ministro da fazenda de 1889 a 1891, deu ordem à destruição de documentos referentes à escravidão. Desses,

constavam comprovantes de “natureza fiscal que pudessem ser utilizados pelos ex-senhores de escravos para

pleitear indenizações junto ao governo da república”. Esses ex-donos de escravos pretendiam receber uma

“gorda” indenização por suas perdas de escravos e pelo fim da escravidão no país e seus infindáveis prejuízos”.

(LACOMBE, p. 11).

92

precisa de muito para viver. A precariedade está presente nesses lugares desde seu surgimento,

quando negros (ex-escravos e descendentes) subiam os morros e construíam barracos para

morar.

Autoridades governamentais e sociedade dominante se mostraram perfeitamente

satisfeitas com o ato de condenar os africanos “livres” e seus descendentes, a um

novo estado econômico, politico, social e cultural de escravidão em liberdade.

Nutrido no ventre do racismo, o “problema” só podia ser, como de fato era,

cruamente racial : como salvar a raça branca da do sangue negro, considerado de

forma explícita ou implícita como “inferior” (NASCIMENTO, 2016, p. 81).

A citação acima explica muito, acerca do “tratamento” dos governantes dado aos

negros brasileiros. A situação nos dias de hoje ainda inclui descaso e desamparo dessa

população que ainda luta pela conquista de espaço e equidade na sociedade em geral. A

população negra ainda é taxada de favelada, sem cultura e sem educação. Ainda é comum ver

manifestações de violência racial nas redes sociais. O negro quando bem estabelecido e com

sucesso, muitas vezes, ainda incomoda e gera insatisfação ao branco que o vê como ameaça.

Ser negro no Brasil é ser morto e “suspeito” de ser bandido, ladrão ou ter

envolvimento com tráfico de drogas. Não são boatos, os noticiários diariamente “informam”

de forma deformada, de modo a construir uma desqualificação dos negros. A população já

está tão acostumada que parece não perceber que internalizaram esses paralelos: negro-

pobreza negro-criminalização. Essas afirmativas impostas pelos meios de comunicação de

massa viralizam no meio social.

Na busca de novas formas de analisar hierarquias raciais, o que vale não é a verdade

biológica, mas quanto uma afirmação possa atrair a adesão de seu público.

Consideramos aqui que a falsidade da inferioridade de negros e de indígenas é ponto

pacífico, em termos científicos: consideramos também a presunção de sua verdade

continua operando no dia a dia. De igual maneira, o fato biológico de que um

mesmo casal pode ter filhos identificados com brancos e como negros não

inviabiliza o racismo na sociedade: esta situação precisa ser reexaminada em busca

de seu potencial crítico (SOVIK, 2009, p. 17).

A ideia de inferiorização foi implantada, revelando o medo dos brancos em relação ao

negro, para depreciar seu modo de vida. Isso faz parte de uma estratégia para brancos se

manterem acima dos negros nos aspectos mais elementares da vida e na hierarquia social.

Essa falácia se constitui no senso comum, tentando constatar a incapacidade intelectual negra.

93

Esse discurso tem um contexto cotidiano associado ao fato de que, em nosso país, o

negro não sabe se é negro, mulato, pardo ou branco, levando-o a uma crise de identidade em

larga escala com severas consequências. No entanto, a informação necessária a cada indivíduo

brasileiro deveria ser essa: “Aqui ninguém é branco. À maneira que Michael Foucault, o

fraseado trabalha com o jogo da exclusão, ou melhor, com a invisibilidade do óbvio. A

visibilidade do óbvio está na panfletagem e é ideológica, se não ressentida” (SANTIAGO,

2009, p. 12).

Essa “invisibilidade do óbvio” nos chama atenção, primeiro da forma como o racismo

age na estrutura social e psíquica, instaurando sorrateiramente na mentalidade do negro o

desejo de ser branco. Em contrapartida, mantém o branco com os privilégios de sua

branquitude. Vamos aprofundar com mais propriedade o assunto ao longo deste capítulo.

A invisibilidade é mais abrangente, quando estendemos às mulheres negras e mulatas.

Estigmatizadas pela sensualidade da cor sofrem a distinção de sua aparência e a desconfiança

quanto à sua intelectualidade, que é posta à prova no mercado de trabalho. Em um segundo

aspecto, ainda lutam por conquistas de direitos na igualdade de salários e espaço em

empregos de cargos bem remunerados.

A consciência de si e a busca pela ascensão social das mulheres negras no Brasil têm

sido um processo de conquistas e derrotas. Por esse motivo, consideramos a necessidade de

abrir um parêntese para exemplificar mulheres negras que precisam ser lembradas como

representações de luta para conquistar equidade, justiça racial, social bem como pela

universalização dos direitos humanos. É importante relatar alguns fatos, diante dos últimos

acontecimentos no Rio de Janeiro28

, onde mulheres foram assassinadas pela ausência do

Estado, seja por omissão ou responsabilidade por esses óbitos.

28 A morte de mulheres brasileiras tem crescido a cada ano. O feminicídio é um crime de ódio

que mata muitas mulheres em nosso país, quando não morrem as vítimas vivem em profunda depressão e com

medo do convívio social. Embora, exista a Lei do feminicídio desde 2015, criada com base nos estudos da

advogada criminalista Luiza Eluf, ainda vemos mulheres sendo agredidas diariamente por seus companheiros,

outras sofrendo estupros coletivos e sendo ameaças de morte e a de seus familiares, além das muitas que são

sentenciadas cruelmente a morte. Há casos como o de Sâmyla Samara de 19 anos do Ceará, que foi morta a tiros

por seu ex-companheiro e pai de seu filho, apenas a um mês da institucionalização da Lei do Feminicídio. Em

agosto de 2017, na Zona Sul da cidade de São Paulo, Síria Silva foi morta por estrangulamento em mais um caso

de violência doméstica ocasionada por ciúmes de seu companheiro, só que dessa vez com um final trágico: seu

corpo foi encontrado três dias após o crime. Esse e muitos outros acontecem diariamente em nosso país, para

haver tanas incidências concluímos que a uma grande parcela de impunidade e negligência por parte policial e

principalmente do Estado. Ver reportagem na íntegra sobre esses e outros casos de feminicídio no Brasil em: https://www.geledes.org.br › Questões de Gênero › Violência contra Mulher. Acesso em 09 de junho de 2018.

94

Maria Beatriz Nascimento29

, nascida em 1942 em Aracaju, de origem humilde.

Formada em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, iniciava o mestrado em

Comunicação Social pela mesma universidade. Era ativista negra, professora estadual e

historiadora, participou em 1981 de Congressos em que propunha falar da temática racial no

ambiente acadêmico. Seu maior incômodo na academia era a referência ao negro apenas

como escravo. Seu trabalho mais conhecido foi o documentário Orí, escrito e narrado por ela.

Foi assassinada a facadas, ao defender uma amiga de uma violência doméstica. Ana Beatriz

representava na Universidade um grito de resistência, num espaço onde residia a exclusão,

principalmente de mulheres negras.

Esses são apenas dois dos muitos casos de violência contra mulheres, sobretudo

quando ainda menos favorecidas. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) o

Brasil tem a quinta maior taxa de feminicídio do mundo: de 4,8% para 100 mil mulheres. O

número de assassinatos de mulheres negras cresceu de 54%, passando de 1.864 para 2. 875,

sendo que, na maioria dos casos, o crime é cometido por pessoas da própria família da vítima

ou por seu cônjuge ou ex-cônjuge. (GASMAN, 2016) 30

.

2.1 A violência doméstica e o feminicídio

Essas são formas de submeter às mulheres ao domínio e à lógica de dominação

masculina. O feminicídio é crime classificado como hediondo desde 1990, com pena prevista

para homicídio qualificado em regime de reclusão de 12 a 30 anos. Mesmo com aumento de

ocorrências nas delegacias contra os agressores, observamos mulheres sendo agredidas e

mortas com frequência, entendemos que a lei não protege, é apenas simbólica.

29

Para saber mais sobre Maria Beatriz Nascimento, acessar: http:

//diarioconquistense.com.br/2017/ 05/ 03 a-história-do-brasil-e-uma-historia-escrita-por-maos-brancas-

argumenta-historiadora-negra/. Acesso em 20 de março de 2018. Documentário Orí de Maria Beatriz

Nascimento: http:// youtu.be/35H0lbrSGbl. Acesso em 20 de março de 2018.

30 Para mais informações e estatísticas sobre o feminicídio no Brasil consultar: Diretrizes Nacionais

Feminicídio: investigar processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres. Versão

online disponível em: www.onumulheres.org.br Acesso em 09 de junho de 2018.

95

A violência é maior com mulheres negras, de 2003 a 2013 houve um decréscimo de

2,1% no número de vítimas brancas, enquanto para as mulheres negras ocorreram um

aumento considerável de 35%. De acordo com o Mapa da Violência 2015: Homicídios de

mulheres no Brasil, a população negra está no topo da lista de homicídios no país.

O desrespeito à mulher negra foi denunciado corajosamente em 1975 no Manifesto

das Mulheres Negras, no Congresso das Mulheres Brasileiras realizado na Associação

Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro:

As mulheres negras brasileiras receberam uma herança cruel: ser o objeto de prazer

dos colonizadores. O fruto deste covarde cruzamento de sangue é o que agora é

aclamado e proclamado como “o único produto nacional que merece ser exportado:

a mulata brasileira”. Mas se a qualidade do produto é dita ser alta, o tratamento que

ela recebe é extremamente degradante, sujo e desrespeitoso (NASCIMENTO, 2016,

p 74).

Esse tratamento ainda em vigor é dirigido à negra e mulata brasileiras. Somos o

produto que tende a ser barateado, desqualificado da miscigenação. Esse é o lugar delegado a

nós. Querem-nos invisíveis para não desagradar quem nos colocou nessa posição de opressão,

só que não dá mais para tolerar esse lugar que dizem ser nosso, precisamos reagir com

urgência a essas atrocidades.

Outro caso foi o da auxiliar de serviços gerais Cláudia da Silva Ferreira31

, de 38 anos,

moradora do Morro da Congonha no Rio de Janeiro, mãe de quatro filhos e responsável por

quatro sobrinhos.

Domingo pela amanhã Claudia foi à padaria comprar pão, quando foi alvejada por

duas balas perdidas, uma no pescoço e outra nas costas. Ela cai e recebe ajuda de policiais

que faziam uma operação no morro. Colocaram-na no porta-malas do camburão e a levaram

para atendimento no Hospital Carlos Chagas. O “problema adicional” ou descaso maior, para

não dizer escárnio total, foi o porta-malas abrir e arrastar Claudia por volta de 250 metros no

asfalto, com o carro em velocidade.

Imagens do fato estão expostas na Internet32

, que mostram a mulher sendo arrastada

pendurada por uma peça de roupa presa no camburão. Policiais disseram que retiraram

31 Para saber mais sobre a morte de Claudia da Silva Ferreira disponível em: http://

www.youtube.com/watch?v=N4MSUx91im8. Acesso em 19 de março de 2018.

96

Claudia da comunidade ainda com vida, mas ao chegar no hospital estava morta. Quem são os

culpados? Foi vítima por ser moradora de uma comunidade, trabalhadora, negra, pobre e

favelada?

No Brasil a polícia encontra-se no direito de estar acima do bem e do mal. A maneira

como Cláudia foi tratada mostra que sua vida não tinha valor algum (BUTLER, 2016), ao ser

executada a polícia ainda tentou jogar a culpa na vítima dizendo que a mesma tinha

associação com o tráfico de drogas, ou seja, ela era culpada por sua morte. Ser negro aqui é

viver constantemente com a banalização da morte da população pobre e de cor com estímulo

do Estado e a materialização do óbito legitimado pela polícia que mata. Nas palavras de

Butler, 2016:

Se certas vidas não são qualificadas como vidas ou se, desde o começo, não são

concebíveis como vidas de acordo com certos enquadramentos epistemológicos

(mas também políticos, religiosos e de gênero), então essas vidas nunca serão

vividas nem perdidas no sentido pleno dessas palavras (BUTLER, 2016, p. 13).

(...) Aqueles cujas vidas não são consideradas potencialmente lamentáveis e, por

conseguinte, valiosas, são obrigados a suportar a carga de fome, do subemprego, da

privação de direitos legais e da exposição diferenciada à violência e a morte (ibid.,

p. 40).

Assim são vividas as vidas de muitos negros em nossa sociedade, como descrito pela

autora. As mulheres negras periféricas são oprimidas e marginalizadas, a culpabilização da

vítima e sua criminalização são artifícios comuns para silenciar e naturalizar o genocídio de

pessoas negras e, dessa forma, nos tornamos cúmplices dessas mortes por nossa falta de

reação conjunta. Precisamos parar de ignorar as estatísticas e falarmos daqueles que têm

morrido tão precocemente: os negros, pobre e favelados. É necessário retomarmos seus nomes

32 Nas palavras de Renato No (2017) no IV Seminário: Racismo, Capitalismo e Subjetividade:

leituras psicanalíticas e filosóficas: “A vida sem valor algum é um aspecto presente no conceito de necropolítica:

Uma política da morte e de corpos passíveis de serem mortos sem fazer falta”. Nesse caso a população

marginalizada e negra estaria na linha de frente desse genocídio. “O conceito de necropolítica emerge como

subversão da noção de biopolítica foucaultiana, perpassada pelas análises sobre violência em Fanon, entre outras

contribuições teóricas. A necropolítica se manifesta como submissão da vida ao poder da morte, onde máquinas

de guerra dominam populações em espaços de extração de riquezas como minerais e petróleo” (LIPPOLD, 2017,

no prelo).

97

e suas histórias como forma expiar o crime e a vergonha dessa violência histórica num

processo de resgate da memória coletiva brasileira.

Finalizando, o caso que chocou o país e teve repercussão internacional, a “execução”

da vereadora Marielle de Franco33

de 38 anos, no dia 14 de março de 2018. A vereadora

voltava para casa por volta das 21 horas e 30 minutos com seu motorista e a assessora, quando

foi executada com quatro tiros na cabeça e seu motorista foi alvejado por três tiros, a única

sobrevivente foi assessora da vereadora.

Socióloga, administradora, vereadora, mulher, negra, lésbica e ativista do movimento

de negras feministas, foi covardemente assassinada por homens que a menos de dois metros

dispararam tiros tirando sua vida. Ela deixou uma filha de dezoito anos, uma companheira e

um legado em prol da vida e a defesa dos direitos humanos.

A execução de Marielle de Franco é um episódio político limítrofe. Através do fato foi

desnudado um tipo de luta a qual as classes dominantes e a grande mídia manipuladora

temem: a luta antirracista, a luta por direitos fundamentais a todas as pessoas sem distinção e

a luta pelo fim da desigualdade tão ferrenha nos dias de hoje.

No país em que vivemos, o “pobre” e o negro são tratados com descaso e abandono.

Marielle veio desse lugar, no qual as coisas não mudam, os benefícios não chegam para

manter o status quo e os privilégios de poucos. Mas, ela conseguiu sair de uma situação

precária com o compromisso de mudar não só sua realidade como do lugar de onde saiu. Por

que não nos identificarmos com Marielle?

A resposta é: porque incomoda, perturba a paz inerte dos que descansam em suas

mansões, nos castelos de areia em cima da base da pirâmide erguida por trabalhadores, que

como gado, obedecem, fazem tudo para sobreviver. Vivemos num país que só oferece

migalhas para quem sustenta o luxo de uma minoria que manda e desmanda no país, para

manter o capitalismo e as desigualdades avassaladoras que desnutrem seu povo e mata para

manter uma elite com fortes impulsos escravocratas no poder.

Não podemos nos esquecer dessas mulheres, e nem de muitas outras que tiveram suas

trajetórias marcadas pela brutalidade e morte prematura por motivos injustificáveis. Foram

escolhidas por representarem situações que acontecem frequentemente e nem sempre têm

33 Para entender o que motivou o crime contra vereadora Marielle de Franco. Disponível em

http://www.bbc.com/portuguese/brasil-43398815. Acesso em 18 de março de 2018.

98

notoriedade como deveriam. Alguns casos não chegam ao nosso conhecimento, outros, mais

raros como o de Marielle, que era reconhecida por seu trabalho político, transforma-se em

estopim para gerar revoluções. Esse sentimento precisa ser mantido e gerar incômodo em

todos nós.

A morte de Marielle escancara o ódio aos negros e as mulheres negras, sentimento que

não se contenta em matar, é preciso mais. Tem que executar cruelmente, difamar sua luta, sua

memória e sua vida.

Ser brasileira, negra e suburbana é mais complexo do que podemos imaginar. A

intenção aqui é “transplantar” nas palavras o que é ser negro em um país que finge o tempo

todo que estamos bem, obrigada. Quando na verdade o racismo é mascarado e desmentido (ou

desautorizado)34

e doloroso.

Nas palavras de Carone e Bento (2014), precisamos nos questionar, pois: “Não temos

só um problema de perda de identidade negra, mas um problema de nacionalidade: quem quer

ser brasileiro? Como o negro brasileiro se representa e é representado? Como o branco

brasileiro se representa e é representado?” (p. 52).

Em suma, o povo brasileiro é sofrido e guerreiro, tem em sua cor a mestiçagem e a dor

de viver uma falsa harmonia racial. Sobretudo, é um povo atento às manobras dos poderosos

(SOVIK, 2009) dos políticos que governam o Estado, mas, passa como um povo inculto e

despreocupado, estigmatizado como “vagabundo” ou preocupado demais em sobreviver com

o pouco que tem. Em um país de “mamatas” para políticos e grandes empresários e migalhas

para os que, verdadeiramente, sustentam a máquina econômica brasileira, um antro de

corrupção, hipocrisia e letargia.

34 “O entendimento proposto por Ferenczi do trauma oriundo da “desautorização” (Verleugnung) de

uma narrativa de sofrimento nos afastam da formulação psicanalítica do trauma sexual, originando uma

concepção de trauma social. Nesse sentido, a experiência traumática seria sempre relacional, implicando a recusa

do reconhecimento do sujeito que padece por parte do outro” (KUPPERMAN, 2017, p. 47). Assim, a

desautorização ou desmentido seria promovida em situações de discriminação racial contra o negro, que ao

compartilhar sua com alguém de sua confiança, veria negada a gravidade dos fatos, na medida em que o outro

banaliza essa dor, caracterizando o trauma social.

99

2.2 O desejo do negro em ser o outro

É uma tarefa complexa definir quem é negro ou branco em um país tão miscigenado

como o Brasil. Sofremos ainda com a ideologia35

do embranquecimento da população de cor,

a fim de clarear as próximas gerações. Mulheres grávidas em relacionamentos inter-raciais

ficam ansiosas para, enfim, ver seus filhos nascidos, esperando que não herdem o cabelo ou o

nariz grosso da parte negra da família.

O embranquecer está presente desde a colonização e se arrasta até o século XIX, cujo

o objetivo é extinguir progressivamente o segmento negro brasileiro, numa espécie bizarra de

“eugenismo soft”, violentamente mais duro pois inconsciente e traumático, já que amputa a

subjetividade do negro. Deixa seu rastro na atualidade com a ansiedade de ver os filhos mais

claros e sem traços da cor negra. Vejamos a confirmação em Nascimento (2016) a respeito:

O processo de miscigenação, fundamentado na exploração sexual da mulher negra,

foi erguido como um fenômeno de puro e simples genocídio. O “problema” seria

resolvido pela eliminação da população afrodescendente. Com o crescimento da

população mulata, a raça negra iria desaparecendo sob a coação do progressivo

clareamento da população do país. Tal proposta foi recebida com elogios calorosos e

grandes sinais de alívio otimista pela preocupada classe dominante (ibid., p. 84).

Essa situação gerou reflexos e consequências na identidade de negros e mulatos,

quando observamos pessoas negras que não conseguem enxergar sua cor e consideram-se

brancas. O desejo inconsciente de embranquecimento e exclusão da negritude estão

introjetados de tal forma que dificulta mesmo a constituição de sua subjetividade.

35 Preferi utilizar a referência de Neuza Santos de Souza (1983) em relação à ideologia. Ideologia é

aqui entendida como um “sistema de representações, fortemente carregadas de afetos que se manifestem na

subjetividade consciente como vivências, ideias ou imagens e no comportamento objetivo como atitudes,

condutas e discursos. A ideologia é um dispositivo social que serve aos fins de organizar um saber acerca dos

mais diversos aspectos da vida humana, caracterizando-se por ser compartilhada pela comunidade como um

todo, ou por um setor significativo da mesma, oferecendo coerência a seus integrantes em torno de crenças, fins,

meios, valores etc.” (Souza, 1983, p. 74).

100

Vejamos um exemplo disso em Piza e Rosemberg 201436

, mostrando como a

consequência do desejo inconsciente do embranquecimento exclui a negritude no indivíduo

de cor. O episódio ocorreu em um pré–teste com a coleta do quesito cor em uma pesquisa

sobre o perfil racial de alunos de cursos de alfabetização na cidade de São Paulo, em 1950.

As denominações de cores fornecidas aos entrevistados (branco, preto, pardo e amarelo)

causavam desconforto revelando a problemática dos critérios estabelecidos à época.

Durante a realização do pré-teste, uma das pesquisadoras iniciou as entrevistas por

uma das alunas da sala, uma moça de cor preta, cuja pele não demonstrava, para o

olhar da entrevistadora, um único sinal de mestiçagem. Quando perguntada sobre

sua cor, e depois de ouvir as quatro cores nas quais podia se situar, não titubeou em

respondeu – branca! A pesquisadora conteve muito mal seu espanto, porque a

declarante repetiu a resposta enfaticamente. À pesquisadora não coube mais do que

marcar com um X o espaço ao lado da palavra branco e lembrar para sempre o

espanto causado pela resposta da declarante (PIZA, ROSEMBERG, 2014, p.

103).

A partir dessa discussão, abordaremos neste capítulo o desejo negro de ser o outro:

branco. A branquitude e a imposição ideológica nos meios sociais impulsionam o negro a

almejar o ideal de beleza, autonomia e liberdade determinado por brancos.

Pretendemos discutir alguns aspectos sociais, que imbuídos de ideologias racistas

corroboram para o engrandecimento do desejo do negro em ser o outro. Nessa perspectiva

veremos questões ligadas à invisibilidade positiva do negro, a alienação e a atual aliciação e

apego ao consumo que funcionam como submissão que contribuem para as indiferenças e,

logicamente, a busca pelo objeto perfeito: a branquitude que se consolida como modelo.

Em outro momento deste capítulo, pretendemos analisar, sob a lupa da psicanálise, a

anuência do negro em seu desejo de embranquecer e tornar-se o outro. Vamos observar que

esse desejo acontece primeiramente no seio familiar e “depois é a vida na rua, a escola, o

trabalho, os espaços do lazer. Muitas vezes, é nesses lugares segundos, plenos de experiências

36 PIZA, Fúlvia. ROSEMBERG, Fúlvia. “A cor nos censos brasileiros”. In: Psicologia Social do

Racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. / Iray Carone, Maria Aparecida Silva Bento

(organizadoras). Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

101

novas, que o ideal do ego37

– cujas vigas mestras já foram erigidas - encontra ocasião de

reforçar-se, assim adquirindo significado e eficácia de modelo ideal para o sujeito (SOUZA,

p. 36).”

Retomando o primeiro ponto a ser discutido, entendemos que o negro sofre um

esvaziamento de suas referências e de sua memória, ao passo que, negam a ele com

embasamento numa lei perversa, representando o subtexto silencioso e mórbido dos fatos, o

direito legal de autodefesa. Afinal, na constituição do país, todo mundo é brasileiro. De modo

irônico, vemos que o que prega a Lei não condiz com os fatos: “Não há um alívio contra a

injustiça racial, mas, para o grupo discriminado e oprimido, a lei - formal e distante - recolhe

a todos em seu “seio democrático”, de maneira desigual (NASCIMENTO, 1978-2016, p.

94)”.

Ao consultar suas memórias, a pessoa negra percebe a ausência da negritude, e de

personagens que remontem o orgulho de ser negro. Encontramos a falta de representatividade

positiva negra e de visibilidade na estrutura social dominante, principalmente na percepção de

que ainda estamos sob o julgo do “mito da democracia racial”, hoje com “outra roupagem”.

Nas palavras de Abdias Nascimento (2016) podemos compreender o que tal atitude influência

no comportamento do negro frente à participação ativa na sociedade contemporânea:

O mito da “democracia racial” tão corajosamente analisado e desmascarado por

Florestan Fernandes orgulha-se com a proclamação de que o “Brasil tem atingido

um alto grau de assimilação da população de cor dentro do padrão de uma sociedade

próspera”. Muito pelo contrário, a realidade dos afro-brasileiros é aquela de

suportar uma tão efetiva discriminação que, mesmo onde constituem a maioria

da população, existem como minoria econômica, cultural e nos negócios

políticos (NASCIMENTO, p. 98, grifos meus).

Essa situação corrobora para o esvaziamento das memórias diante de um turbilhão de

informações que privilegiam a simbologia do privilégio de ser branco, em um país de

autoridades e sociedade racista. Na obra de Abdias Nascimento, O genocídio do negro

37 “Ideal do ego ou ideal do eu é uma expressão utilizada por Freud no quadro de sua segunda teoria

do aparelho psíquico. Instância da personalidade resultante da convergência do narcisismo (idealização do ego) e

das identificações com os pais, com os seus substitutos e com os ideais coletivos. Enquanto instância

diferenciada, o ideal do ego constitui um modelo a que o sujeito procura conformar-se.” (LAPLANCHE e

PONTALIS, 1988).

102

brasileiro (2016) compreendemos como surge esse esvaziamento do desejo de ser negro,

arraigado de situações que propositalmente em nosso país contribuíram para erradicar a

visibilidade do negro, aumentando a vontade de se tornar branco.

(...) Por via desses expedientes se reitera a erradicação da “mancha negra”, agora

com o uso dos poderes da “magia branca” ou da “justiça branca”. Dessa espécie de

alquimia estatística resulta outro instrumento de controle social e ideológico: o que

deveria ser o espelho de nossas relações de raça se torna apenas um travesti de

realidade. E as informações que os negros poderiam utilizar em busca de dignidade,

identidade e justiça lhes são sonegadas pelos detentores do poder. O processo tem

sua justificativa numa alegação de “justiça social”: todos são brasileiros, seja o

indivíduo negro, branco mulato, índio, ou asiático (ibid., 1978-2016. p. 93).

A partir dessas constatações, vimos o próprio poder público se encarregar de esvaziar-

se da presença física ou histórica do negro, compreendemos que o objetivo principal é o de

negar à população negra o direito de se reconhecer e auto definir-se como cidadão através de

políticas sociais de educação, saúde e cultura, única possibilidade de se igualar a seu opressor

o, branco.

O magistral trabalho de Abdias Nascimento (2016), mesmo depois de quarenta anos

após sua primeira publicação, é bastante atual e dialoga com a situação política, social

econômica da população negra vigente. Infelizmente, nem todos conseguem enxergar essa

realidade. A camada popular, em sua maioria negra e trabalhadora, resiste, mas, não

compreende ao certo contra o que está lutando. A desarticulação política, a necessidade de

manter-se no emprego e ‘engolir sapo’ calado para sobreviver, é mais forte. Nesse ponto,

compreendemos que o negro oculta seus sentimentos do branco, como defesa, desenvolvendo

atitudes de submissão e amabilidade para não desagradá-lo até para manter seu emprego e

sobrevivência (BICUDO, 2010, p. 96).

Em paralelo a esse pensamento podemos perceber que a indiferença social

estabelecida entre negros e brancos, pobres e mais abastados é mantida pela população em um

simulacro de democracia racial ou capital. Contudo, como veremos em ARREGUY (2017)

essa situação vai além do que pensamos ser uma simples situação imutável para sobrevier em

sociedade.

O resultado dessa equação é que o indivíduo comum acaba se alienando, por não se

sentir suficientemente potente para transformar a realidade diante do imperativo de

gozo a que a cultura o submete: “consuma ou não será ninguém”. A alienação que

103

inviabiliza o outro tem suas raízes nos interesses individuais, que devem sempre

estar em primeiro lugar (ARREGUY, 2017, p.124).

A lógica individualista do capital38

ou a falsa democracia do capital, influência

diretamente a sociedade e confirma esse processo de indiferença e alienação ao qual

pertencemos. Vivemos em um estado de produzir a invisibilidade do outro, consequentemente

aquele menos favorecido economicamente (ibid.).

No foco do discurso afetivo sobre a mestiçagem de setores sociais desiguais, no Brasil,

veiculam representações sobre desigualdade e coesão social em um mundo em que a mistura

cultural, étnica e racial, são comuns. Embora, haja as elites multiétnicas em certos setores que

fingem ser brancas por suas condições financeiras, o que persiste é um certo eurocentrismo no

dia a dia da maioria das pessoas.

Grande parte da população negra ainda padece em trabalhos subalternizados e são os

mais atingidos pela vulnerabilidade social, seja por ser mais “humilde”, seja por residirem em

comunidades taxadas como carentes de tudo. Assim, entramos no “labirinto raça-classe-

sociedade” (NASCIMENTO, 2016). Vale o que você possui seus bens de consumo e condição

financeira: exame exigido pelo sistema econômico capitalista no qual estamos inseridos e que

dita às regras de convivência.

Contraditoriamente, não podemos pautar como base desse enredo de indiferença

apenas a questão econômica e social. Não podemos ignorar a sobredeterminação das questões

raciais que historicamente estratificaram os povos por raças e inferioridade cultural. Esses

clichês são repetições e racionalizações de cunho racistas: “pois o fator racial determina a

posição social e econômica na sociedade brasileira (NASCIMENTO, 2016, p. 101)”.

Evidentemente, o fator racial rege em grande parte a posição social da sociedade,

embora, o discurso imperativo seja o contrário disso. Há a defesa de que não é um problema

38 Dufour (2009/2013) demonstra como opera a montagem capitalista da subjetividade, atrelando-a

essencialmente ao desejo de consumir objetos com vistas a extrair o potencial financeiro e dominar as massas.

“(...) Para Dufour, sadismo e liberalismo seriam, conjuntamente, os principais pilares do capitalismo moderno,

na medida em que ambos incitam respectivamente ao gozo ilimitado e à voracidade em relação ao consumo”

(DUFOUR apud ARREGUY, 2017, p. 119).

104

racial, mas, social. Principalmente no Brasil, destacamos alguns intelectuais conservadores

desse pensamento como Gilberto Freyre, Luís Viana Filho, Pierre Verger e Nina Rodrigues.

Essa manipulação do discurso da desigualdade econômica e social disfarça ou esconde

a ideologia racista, invisibiliza as diferenças de cor, tão paulatina e dolorosamente vividas por

quem está à margem da sociedade. Essa dor silenciosa deixa traumas inconscientes que,

acumulados, marcam a vida de pessoas negras cotidianamente, e isso reforça a necessidade de

desejar ser branco. Com o desejo de ser branco, de querer viver como ele, ser ele, o negro

vive com uma dor que corrói e maltrata a subjetividade.

Em seu trabalho de excelência para época e para contemporaneidade, Virgínia Leonel

Bicudo39

em Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo em 1945, traz por meio de

depoimentos e análises a voz de negros e mulatos de classes sociais distintas. A autora retrata

o modo de vida, suas percepções sobre a negritude e a branquitude e como se desenvolvem as

relações entre pretos e brancos em diversas áreas de São Paulo.

Nas entrevistas feitas por essa pioneira nos estudos entre psicanálise e racismo, o

panorama de sofrimento de negros é percebido principalmente pelas “classes intermediárias”,

que apresentavam grau de instrução mais elevado. Esses percebiam com mais clareza a

discriminação e o peso de sua cor nas relações. Enquanto nas “classes inferiores” alguns não

conseguiam sequer diferenciar a discriminação e aceitavam a inferiorização como fardo a ser

carregado.

Bicudo (2010) abre caminho para discussões acerca da discriminação racial entre

negros e brancos em uma época difícil. A violência racial era encoberta com veemência pelo

“mito da democracia racial” e o processo de embranquecimento da população. Como mulher

e negra foi pioneira na forma como colheu e analisou a vida desses personagens, e assim,

39 “Virgínia Leonel Bicudo mulher, parda, paulistana, filha de mãe imigrante italiana pobre com negro

de instrução secundária, funcionário dos Correios. Bicudo formou-se como normalista e fez o curso de

educadores sanitários. Em 1936, iniciou graduação em Ciências Políticas e Sociais da escola Livre de Sociologia

e política (ELSP), vinculada a USP. Enquanto estava no bacharelado conheceu Durval Marcondes, médico e

psicanalista, que implementou o serviço de Higiene Mental Escolar estadual em 1938. Em 1940, Bicudo

começou a ministrar as disciplinas Higiene mental na ELPS e ingressou na primeira turma de mestrado. A partir

disso, iniciou uma carreira de protagonista no campo da Saúde, Ciências Sociais e Psicanálise” (ALMEIDA,

2011, p. 420).

105

pôde trazer o reconhecimento do complexo de inferioridade de pretos e mulatos revelados a

partir de atitudes dos brancos.

Em conclusão, a autora enfatiza os conflitos e diálogos encontrados nos discursos de

cada entrevistado, de modo a compreender a dimensão de subalternidade que ocupavam no

interior das relações raciais. Atenta para a necessidade de retirar desses grupos o problema da

marginalidade social. Vejamos duas passagens que ilustram nosso comentário. O primeiro

caso será de mulatos da “classe inferior”, nomenclatura utilizada por Bicudo para embasar sua

pesquisa entre negros com ganhos, padrões de vida e escolaridade diferenciados.

Minha mãe dizia sempre às filhas que se casassem com homens brancos. Este

conselho decorria da própria experiência, por ter tido um casamento feliz, e pela

observação da irmã, que, casada com um preto, muito sofreu. Foi por influência de

minha mãe que me casei com um homem de branco. Aos 19 anos fui retirada da

fábrica, porque eu gostava de um homem de cor. Minha irmã mais velha, ao

contrário, até hoje se conserva solteira, à espera de um homem branco (BICUDO,

2010, p. 106).

Analisando o trecho da entrevista de uma mulata de 32 anos de idade, casada com um

homem branco, observamos o quanto o peso da ideologia do embranquecimento e o desejo

inconsciente de se tornar branco influenciam nas decisões da escolha de um par, não por

preferência, mas, pela discriminação racial. A introjeção dessa concepção de cor e o seu

significado como fio condutor de que a vida será melhor com um homem branco é taxativa.

Assemelha-se a inconformidade de uma mulata em aceitar-se como é, e a maneira como é

vista pelos outros.

Utilizaremos esse trecho em particular pela proximidade com uma particularidade de

minha juventude por algum tempo. Apresentei resistência em ter relacionamentos com

rapazes negros, minha avó pedia para procurarmos namorar com rapazes brancos. Ela dizia

que não queria ter “netinhos com cabelo de barbante”, e devíamos clarear a família.

Ao ficar mais velha e associar à pressão midiática que mostrava o “rapaz perfeito”

branco, percebi que não aceitava rapazes negros, só “clarinhos”. Uma demonstração que

muitas de nós, mulheres negras, somos contaminadas pelo desejo de ser branca, e apagar

nossa cor, sem perceber. Além da influência no seio familiar, a pressão da mídia e outras

formas de manipulação, somos convencidas que ser branco é o que precisamos nos tornar. Na

concepção de Nascimento (2016):

106

Desde os primeiros tempos de vida nacional aos dias de hoje, o privilégio de decidir

tem ficado unicamente nas mãos dos propagadores e beneficiários do mito da

“democracia racial”. (...) Os brancos controlam os meios de disseminar as

informações; o aparelho educacional; eles formulam os conceitos, as armas e os

valores do país (NASCIMENTO, 2016, p. 54).

Embora, a estrutura ideológica em nossa volta esteja marcada para o convencimento

que nossa negritude não tem valor, todavia, houve movimentos de resistência. Hoje, a internet

dá condições para mudarmos essa concepção e mostrar nossa consciência de cor e orgulho de

quem somos. Surgem comunidades, grupos organizados dispostos a fazerem o movimento

inverso da manipulação da cor, do embranquecimento e do desejo de ser branco. É dar o

primeiro passo para mudança, liberdade de pensamento para buscar o devido reconhecimento

de nossas origens.

Portanto, na promoção de mudanças e atitudes, entendemos através da pesquisa e

análises de Bicudo (2010), sua consciência de cor, e atentamo-nos para seu interesse em

investigar e compreender as causas que levaram outras pessoas de cor a não terem ou

conseguirem conquistar a mesma consciência.

Vejamos outro depoimento que nos ajuda a ver a face da discriminação que não

permite a muitos buscar a consciência de sua cor, impedindo a mobilidade social e realização

pessoal:

A cor motiva grande complexo de inferioridade: a gente se sente inferior ao branco,

feia, diferente, e muitas vezes tem vergonha de si mesma. Consequentemente,

manifesta-se o retraimento, um sentimento de humildade, levando a pessoa a evitar

aparecer. Pelo desprezo, os brancos nos colocam nessa situação. Antigamente, eu

sentia muito mais a atuação daquele complexo, hoje, não tanto, porque procuro

melhorar minha aparência. (...) O que importa é a aparência (grifos meus, ibid.,

p. 110-111).

Essa citação é de outra mulata jovem, da “classe intermediária”, que segundo a autora

tem a percepção deturpada de que é branca, e assim, procura agir e justificar suas opiniões

como se fosse outra pessoa. Ela prefere pensar que compensando com a aparência sua cor vai

desaparecer e sendo vista e aceita como branca em seu meio social.

107

Nas análises, Bicudo revela divergência de pensamentos entre negros e mulatos. Os

mulatos têm maior complexo de inferioridade, procuram fugir da denominação negro e

procuravam evitar contato com pessoas de cor para não serem confundidos com elas. O desejo

de tornar-se branco é intenso. Segundo Bicudo (2010) “(...) os traços físicos refletem, no nível

mental, o pensamento obsessivo de não possuir boa aparência. Este pensamento indica que as

dificuldades de ascensão social estão diretamente ligadas à cor (ibid., p. 120).”

Muitos depoimentos da pesquisa citam a importância da aparência para minimizar a

cor. Os entrevistados dão ênfase nos estudos para ter acesso a lugares e melhores empregos,

embora afirmem que isso não seja garantia, pois o que importa é a “boa aparência”. Os

conhecimentos vindos dos estudos, segundo relatos, são testados várias vezes pelos

empregadores brancos, a fim de provar a capacidade dos negros para assumirem determinados

cargos.

Em nosso país, ter acesso ao meio de vida por um bom emprego é complexo para o

negro. O empregador ainda no século XX declarava em anúncios de jornais que não aceitava

pessoas de cor para vagas em determinados trabalhos, vetando a participação e a visibilidade

do negro na “vitrine social”.

No entanto, ocorreu ao passar dos anos uma “pequena” modificação entre os termos

por uma questão de conduta ética. Hoje são divulgados em anúncios de empregos a exigência

de pessoas com “boa aparência”, outra maneira de excluir pessoas de cor de diversas funções

nas quais, segundo predileções racistas, o perfil do empregador é funcionário branco com

cabelos lisos, magro e bem-vestido (NASCIMENTO, 2016).

No ponto de vista psicológico, compreendemos que essas nuances fazem parte de um

movimento que aumenta o desejo do negro a embranquecer. São as incompatibilidades de

acesso, privilégios de outros e barreiras na ascensão social que se constituem como

impeditivos para o negro provocar mudanças em sua situação social.

A exclusão racial no Brasil fala em duas vozes: uma no privado, sobre o valor da

branquitude e outra, pronunciada em alto e bom som, sobre a noção de que a cor e a

raça são de importância relativa já que a população é mestiça. Assim, a ideia de

“aqui ninguém é branco” e da mestiçagem com valor é uma ideia afetiva, no sentido

de Stuart Hall, que se concretiza a partir da vinculação com uma constelação de

forças sociais (SOVIK, 2009, p. 38).

108

Esse discurso da mestiçagem está presente no senso comum, de uma maneira na qual

os não brancos brasileiros supervalorizam a branquitude mesmo não fazendo parte dela.

Vemos também a partir desse discurso, a diferença encontrada nas pesquisas de Virginia

Bicudo, na relação entre o negro e o mulato que se sente diferente do negro e quer se

aproximar dos brancos como refúgio a negritude.

Bicudo (2010), em sua análise, optou por subdivir grupos de faixa salarial diferente, a

fim de colher impressões que retratassem alterações na consciência de si, através do status de

cada classe. Toda essa estrutura possibilitou a observação de sutilezas no pensamento de suas

atitudes e ações. As angústias, dúvidas, desejos e receios foram revelados e analisados com

respeito e rigor metodológico.

No caso dos negros das classes sociais intermediárias, vejamos como se sentem em

relação a sua cor e seu modo de vida:

(...) demonstram atitudes que revelam sensibilidade ligada à cor. Por um lado,

apresentam-se ressentindo-se com ódio, pela rejeição do branco; do outro,

desanimados e queixosos pela falta de solidariedade entre pretos. Os sentimentos de

mágoa e revolta dirigidos contra o branco não são inconscientes, como parece entre

pretos na classe social “inferior”, mas conscientemente reprimidos pelo medo de

provocar atitudes de rejeição mais acentuada (BICUDO, 2010. p. 122).

A classe intermediária revela mais sensibilidade em relação à cor, ou seja, percebia

rapidamente as discriminações sofridas pelo branco e identificava os mecanismos usados para

isso. Outro ponto importante relatado é a falta de solidariedade e afeto entre negros que

viviam na mesma situação econômica, e a ausência de companheirismo, além de declararem

que o negro não quer ver o outro ascender economicamente, acusando seus vizinhos de

invejosos40

.

40 Nesse trecho é possível fazer analogia ao pensamento de Willie Lynch, um proprietário de escravos

no Caribe (Caraíbas), conhecido por manter seus escravos disciplinados e submissos em sua grande propriedade

em um momento tortuoso de insubordinação para os demais donos de escravos europeus em 1712. Após seu

retorno de uma viagem a Europa e presenciar a crise dos senhores de escravos para domesticá-los, Lynch escreve

uma carta aos seus compatriotas revelando a melhor maneira de lidar com os negros trazidos a força da África:

“Verifiquei que entre os escravos existe uma série de diferenças. Eu tiro partido destas diferenças,

aumentando-as. Eu uso o medo, a desconfiança e a inveja para mantê-los debaixo do meu controle. Eu vos

asseguro que a desconfiança é mais forte que a confiança e a inveja mais forte que a concórdia, respeito ou

admiração.

109

Nas palavras de Bicudo (2010), o negro no convívio com branco passa a assimilar sua

forma de pensar e sentir, inclusive ao que se refere ao próprio negro, a ponto de ter as mesmas

atitudes e sentimentos de desprezo que o branco sente. Nesse contato, o negro desenvolve o

auto ideal de branco, contraditoriamente, ele luta para anular o sentimento de inferioridade

desenvolvido em face das atitudes e restrições do branco.

A saída é tentar conseguir as características de status superior, seja por via do

casamento, do exercício de profissões liberais, do cultivo intelectual e, principalmente, da

“boa aparência”. Essa era uma afirmação constante feita pelos entrevistados das classes

intermediárias, como algo vital para apagar a cor com a aparência. Em seguida, era ressaltada

a urgência dos estudos, sendo usado para mostrar seu valor, sua capacidade intelectual e o

casamento inter-racial com o intuito de embranquecer a família e ganhar o status de ter um

companheiro branco (ibid., 2010).

Com um rigor acadêmico brilhante, Bicudo (2010) nos trouxe uma excelente base dos

sentimentos da população negra e mulata de São Paulo, que a meu ver retrata negros e negras

de todo país. Foi possível capitar as mazelas e ansiedades de pessoas que assim como eu

vivem nessa cortina de fumaça vinda do racismo estrutural enraizada no Brasil, que só

corrobora para a população negra sentir se intensificar do desejo de ser branco.

Para nossa reflexão, vejamos nas palavras de Dzidzienyo, a consideração prestada ao

negro e ao mulato nas esferas determinantes de nosso país: “Não há dispositivos legais que

obriguem ele - o negro - a permanecer em posição desvantajosa; de fato não há necessidade

para isso porque as estruturas econômica, social e política do Brasil, por sua natureza, operam

contra os interesses dos negros (DZIDZIENYO, apud, NASCIMENTO, 2016, p. 112).

Deveis usar os escravos mais velhos contra os escravos mais jovens e os mais jovens contra os mais

velhos. Deveis usar os escravos mais escuros contra os mais claros e os mais claros contra os mais escuros.

Deveis usar as fêmeas contra os machos e os machos contra as fêmeas. Deveis usar os vossos capatazes para

semear a desunião entre os negros, mas é necessário que eles confiem e dependam apenas de nós.

Meus senhores, estas ferramentas são a vossa chave para o domínio, usem-nas. Nunca percam uma

oportunidade. Se fizerdes intensamente uso delas por um ano o escravo permanecerá completamente dominado.

O escravo depois de doutrinado desta maneira permanecerá nesta mentalidade passando-a de geração em

geração”. A carta de Willie Lynch, disponível em: https://www.geledes.org.br/carta-de-willie-lynch/. Acesso em

09 de outubro de 2017.

110

No ponto de vista cognitivo, entendemos que o “racismo à moda brasileira” traz

peculiaridades que mascaram a realidade desigual e desonesta que afasta e exclui muitas

pessoas. Compreende-se que a negação do problema prejudica o entendimento do que se

sente, adia o tratamento e a cura para a dor de quem é discriminado e vive em uma sociedade

partida.

É inegável o brilhantismo de Virgínia Bicudo, seu percurso peculiar e magistral

merece todo reconhecimento pela sua iniciativa de ser a primeira negra em abordar com

propriedade o discurso racial na academia, e tomar a psicanálise como lugar de escuta.

Seu trabalho contribuiu muito para minha pesquisa, deu novo sentido ao modo como

percebemos a anuência de problemas que se renovam nas questões raciais, em particular no

Brasil, que tem desde seu descobrimento o rastro de sangue da escravidão de milhares de

negros que com toda certeza construíram esse país.

Virgínia nos dá a possibilidade de imbuídos da psicanálise dar outro significado a

situações de trauma representadas por este trabalho. Seguiremos na abordagem do Ideal do

Ego do negro utilizando a psicanálise para discutir o caráter do racismo e suas consequências

quando o indivíduo não tem espaço para ser ouvido. Seu silenciamento o devora e destrói sua

subjetividade gerando um sofrimento psíquico que causa negação de si.

Nos caminhos da psicanálise procuraremos encontrar respostas para uma dor invisível,

que merece ser ouvida e compreendida para enfim, trazer a consciência de traumas que

desmentem a realidade da herança de onde viemos e o nosso papel de hoje nessa sociedade

hipócrita e brutal para com toda população negra. É necessário aprender a argumentar com

propriedade, saindo da zona de conforto que nos imobiliza e incutindo o exercício da plena

cidadania em meio a toda a diversidade em que vivemos. É com conhecimento, sobretudo

daquilo que está oculto no inconsciente coletivo do brasileiro, que abriremos portas e

quebraremos barreiras, dessa forma alcançaremos um novo patamar que significa: “a

construção de uma nova identidade, uma identidade que lhe dê feições próprias, fundada,

portanto, em seus interesses, transformadora da história – individual, coletiva e social e

psicológica.” (SOUZA, 1983, p. 78).

111

2.3 A Branquitude: o silêncio e o privilégio do branco

Consideramos aqui além do contexto de ser negro brasileiro, o aspecto do ser branco e

brasileiro. O branco, cujo silêncio proposital mantém a posição a branquitude, privilégios e

coloca em cheque o próprio conceito de raça. O contraponto dessa discussão é a tentativa de

desconstruir o “olhar do opressor, que desde a colonização buscou ocultar suas razões e seus

interesses, desconsiderar ou deturpar as consequências de sua ação condenável, culpando e

desvalorizando o colonizado” (MONTANHÉS apud CARONE e BENTO, 2014, p. 53-54).

Essa afirmação é seguida de nota:

O racismo a despeito de todas as leis antidiscriminatórias e da norma politicamente

correta da indesejabilidade do preconceito na convivência social, apenas sofreu

transformações formais de expressão. Não é posto nem é dito, mas pressuposto nas

representações que exaltam a individualidade e a neutralidade racial do branco – a

branquitude - reduzindo o negro a uma coletividade racializada pela intensificação

artificial da visibilidade da cor e de outros traços fenotípicos aliados a estereótipos

sociais e morais. As consequências são inevitáveis: a neutralidade de cor/raça

protege o indivíduo branco do preconceito e da discriminação raciais na mesma

medida em que a visibilidade aumentada do negro o torna um alvo preferencial de

descargas de frustrações impostas pela vida social (CARONE e BENTO, 2014, p.

23).

Sabemos que estudos sobre os negros possuem um histórico de muitas pesquisas. Os

estudos sobre as relações raciais, no Brasil, são recentes, assim como trabalhos em que

pesquisadores brancos e negros trabalham lado a lado na academia, e fora dela, buscam tratar

as relações raciais sob as perspectivas negras e brancas. Essas pesquisas acontecem com

intuito de estabelecer uma visão ampla e relacional das questões e dos diferentes tratamentos

oferecidos a cada parcela da população, seja nas relações intersubjetivas, no trabalho,

educação ou na construção do bem-estar social.

Modifica-se assim o que estava sendo exposto em estudos antigos sobre relações

raciais, cuja identidade racial e o problema social de negros era estudado como exclusivo da

população negra, e passa-se a buscar um olhar voltado para o silenciamento da branquitude e

a neutralidade racial da população branca.

112

A partir das leituras sobre o estudo da branquitude, compreendemos que a

supervalorização do branco é um fenômeno mundial, calcificado principalmente, em países

colonizados por europeus nos quais vivenciaram a escravidão. Consideramos a branquitude

como um problema que precisa ser estudado com profundidade como elemento para a

contextualização da permanência imutável da hierarquia social do país (SOVIK, 2009).

Uma das referências sobre a branquitude neste trabalho é o livro Psicologia social do

racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil (2009), no qual nos revela

“aspectos importantes da branquitude, como o medo que alimenta a projeção do branco sobre

o negro, os aspectos narcísicos entre os brancos e as conexões possíveis entre ascensão negra

e branqueamento (p. 25)”.

Podemos considerar a branquitude como meio de manter o status quo social, político e

econômico da população negra. Uma barreira invisível capaz de segregar e afetar o senso de

nacionalidade brasileiro, na qual o branco e sua ausência de reflexão racial acerca de seu lugar

nas relações raciais tendem a ser incômodos para ele mesmo. Há um desconforto na

abordagem desse assunto, isentando sua participação na omissão de um tema comum a todos,

no sentido de evitar desmascarar a discriminação racial e seus desdobramentos.

Na verdade, o legado da escravidão para o branco é um assunto que o país não quer

discutir, pois os brancos saíram da escravidão com uma herança simbólica e

concreta extremamente positiva, fruto da apropriação e do trabalho de quatro séculos

de outro grupo. Há benefícios concretos e simbólicos em se evitar caracterizar o

lugar ocupado pelo branco na história do Brasil. Este silêncio e cegueira permitem

não prestar contas, não compensar, não indenizar os negros (CARONE e BENTO,

2014, p. 27).

O silêncio do branco é um dos sustentáculos de seus privilégios, além de sua cor não

ser racializada e não representarem um grupo como os negros, mas, um indivíduo com suas

respeitosas peculiaridades, corroborando para os desdobramentos de sua posição de poder

inominado e ausente do compromisso moral, e do distanciamento afetivo e psicossocial com o

grupo excluído.

A omissão aliada ao silêncio e a falta de comprometimento do branco na situação das

desigualdades raciais em nosso país reforçam um “componente narcísico”, em outras

palavras, o sujeito adota uma postura de autopreservação, que interpela a população branca a

113

agir e pensar como referência para os demais grupos. Isso é mais claro quando identificamos

o quanto:

O homem europeu ganhou, em força e identidade, uma espécie de identidade

substituta, clandestina, subterrânea, colocando-se como o “homem universal” em

comparação com os não europeus. o olhar do europeu transformou os não europeus

em um diferente e muitas vezes ameaçador Outro. Este Outro, construído pelo

europeu, tem muito mais a ver com o europeu do que consigo próprio (ibid., 2014, p.

31).

Embora, o branco mantenha-se “auto preservado”, seu discurso mantém a indiferença

ao Outro, se distanciando dele. Sua branquitude é vivida como um elo no qual expande,

ramifica e cresce com a finalidade de manter-se afastado da ameaça negra. Vejamos a seguir

alguns pontos sobre a branquitude destacados pela autora Edith Piza (2014), estudiosa das

questões raciais, com enfoque no fenômeno da branquitude em seu ensaio: Porta de vidro:

entrada para branquitude:

Algo consciente apenas para pessoas negras; - há um silêncio em torno da raça, não

é um assunto a ser tratado; - a raça é vista não apenas como diferença, mas como

hierarquia; - há, em qualquer classe, um contexto de ideologia e de prática da

supremacia branca; - a capacidade de apreender e aprender com o outro, como um

igual/diferente, fica embotada; - se o negro, nas relações cotidianas, aparece como

igual, a interpretação é de exibicionismo, de querer se mostrar (ibid., 2014, p. 42).

A autora destaca pontos facilmente percebidos no comportamento e pensamento de

brancos e negros identificados sob o julgo do embranquecimento. É uma questão arraigada no

imaginário da sociedade brasileira de forma cristalizada. Trata-se desse assunto

superficialmente, ignorando sintomas visíveis, muitas vezes não verbalizados com intuito de

evitar embates.

Chama a atenção a referência ao exibicionismo, por ser frequente quando uma pessoa

negra se destaca por algum motivo. Comentários ainda comuns como: “Adoram se mostrar”;

“Só podia ser preto mesmo” ou “Só preto faz isso”, ainda fazem parte da reação de pessoas

preconceituosas que não admitem certas situações vividas por negros que ou falam essas

besteiras ou silenciam-se.

Podemos destacar, em particular na sociedade brasileira, o desejo em não falar sobre o

racismo, ao passo de preferirem encarar as desigualdades raciais como um problema

exclusivamente do negro. Problematizar a noção de “privilégio” faz sentido, na medida em

114

que o desvio de um confronto sobre o racismo pode ser substituído pelo discurso de “mérito”

ou “competência de si”, e assim, “encobrir a situação privilegiada revelando como merecem o

lugar social que ocupam” (CARONE e BENTO, 2014, p. 46).

Em termos psicanalíticos, e no intuito de ampliar nossa compreensão sobre essa

manobra usada por parte da sociedade privilegiada, observamos, de acordo com Kaes (1997),

como se organiza o inconsciente numa postura defensiva para manter-se beneficiário da

condição intersubjetiva da qual pertence.

Os produtos do recalque e os conteúdos do recalque e os conteúdos do recalcado são

constituídos por alianças, pactos e contratos inconscientes, por meio dos quais os

sujeitos se ligam uns aos outros e ao conjunto grupal, por motivos e interesses super

determinados. Esse acordo inconsciente ordena que não se dará atenção a um certo

número de coisas: elas devem ser recalcadas, rejeitadas, abolidas, depositadas ou

apagadas. Mas enfatiza que, ao possuir um ar de falsidade, elas possibilitam um

espaço onde o possível pode ser inventado (KAES, apud CARONE e BENTO,

2014, p, 46).

Quando faz parte de um grupo, o sujeito agrega seus desejos e formas de pensar a

uma realidade, concordando em defender e lutar por seus objetivos. Essa identificação

simbólica implica em rejeitar ou aceitar internamente o que lhe é imposto. Esse acordo grupal

em defesa de seus privilégios representa a opção por se abster das discussões raciais, assim

como, se eximir como parte culpada nessa situação, alijando a culpa ao negro, julgado único

responsável por sua situação inferior.

A princípio, o branqueamento foi uma invenção da “elite branca” para enfrentar o

medo do contingente populacional negro, e em seguida contra a “afronta” que significou a

ascensão do negro na sociedade, condição que violou sua personalidade (CARONE e

BENTO. 2014). Sendo assim, estudar e compreender o branqueamento em consonância com a

perda da identidade da população negra integra um processo que avança na luta por uma

sociedade sem desigualdades.

Aliados ao pensamento das relações entre negros e brancos, no qual uns são violados

permanentemente em benefício dos privilégios do outro, podemos, enfim, problematizar essa

situação que se desenrola na manipulação de um único culpado- o negro - que apesar disso,

resiste e encontra mecanismos de defesa e de alteridade para não desistir de alcançar uma

sociedade mais justa e igualitária.

115

2.4 O Ideal do Ego no negro

Sabemos da complexidade envolvida na operacionalização de conceitos do racismo à

luz da psicanálise. Nosso desafio é não deixar de fora o que está inserido na patologia social,

nas práticas vigentes e na história dos sujeitos. Pretendemos apresentar um pouco das

múltiplas visões que espelham parte do que é sentido pelo sujeito em seu inconsciente quanto

à discriminação racial.

Acreditamos que a psicanálise aliada a outros sabres como a psicologia, a sociologia,

antropologia e a história contribuem muito para análise e a compreensão sobre o racismo na

composição psíquica do agressor e da vítima. De uma forma interdisciplinar, as áreas

envolvidas conciliam conhecimentos em suas particularidades e nos auxiliam na compreensão

e na forma de combater essa estrutura.

Vimos, pela definição apresentada anteriormente, na qual o desejo do negro em ser o

outro (branco) impactou o inconsciente do negro se manifestando diante da pressão imposta

pela ideologia do branqueamento que “é um tipo de discurso que atribui aos negros o desejo

de branquear ou de alcançar os privilégios da branquitude por inveja, imitação e falta de

identidade étnica positiva (CARONE e BENTO, 2014, p. 17)”.

Mas, esse desejo transforma-se em dor que traumatiza e corrompe a subjetividade, a

identidade e a consciência da cor do sujeito negro. O nosso anseio é compreender esse

inconsciente que absorve toda a violência e determina a rejeição de si para se dedicar em ser o

outro, o branco.

A distorção que leva ao trauma inicia-se com o ato de identificação: Eu sou um negro!

Quem eu sou? Trata-se de revelar sua identidade, mostrá-la publicamente

(MBEMBE, 2014, p. 255). “Se reconhecer é marcante, mostra o autoconhecimento para si e

para os outros, consequentemente é afirmar sua existência, “eu sou” significa, desde logo, eu

existo (ibid., p. 255)”.

Em Mbembe (2014) veremos a definição de ser negro:

Negro antes de tudo é uma palavra (...). Negro é , sobretudo um nome (...). Negro é

portanto o nome que me foi dado por alguém. Negro não podemos esquecer – é

também uma cor. A cor da escuridão. Deste ponto de vista, o Negro é quem vive a

116

noite, na noite, cuja a vida se transformou em noite (...) O Outro não vê, pois não há

verdadeiramente nada para ver ( p. 256).

No processo de autoconhecimento do negro, o sujeito sente dor, por não ter um

modelo positivo para se constituir e por estar imerso a essa estrutura perversa ideológica que

o faz desejar ser branco, antes de descobrir-se negro. Nesse contexto, é perceptível que o

desejo de ser branco foi assimilado pelo superego41

. O modelo opressor faz parte da formação

de seu Ideal de Ego e o transforma em um sujeito sem identidade, buscando ser quem não é.

O ideal do ego é o produto formado a partir de imagens e palavras, representações e

afetos que circulam incessantemente entre a criança e o adulto, entre o sujeito e a

cultura. Sua função, no caso ideal, é a de favorecer o surgimento de uma identidade

do sujeito, compatível com o investimento erótico de seu corpo e de seu

pensamento, via indispensável a sua relação harmoniosa com os outros e com o

mundo (COSTA, 1983, p. 04).

O ideal do ego está no plano do simbólico, opera na Ordem simbólica e no que

estrutura a Lei. Fundamenta o sujeito psíquico como um elo entre a Lei e a Ordem, ocupando

o lugar do discurso, da fala que orienta as ações e comportamentos. O ideal do ego determina

o caminho a ser seguido como uma exigência, da mesma forma em que o superego impõe

uma certa moral ao ego (SOUZA, 1983, p. 33).

O ego e o ideal do ego vivem em constante tensão, o superego condena o ego a

realizar exigências sem parar com o objetivo de chegar a um ideal dificilmente a ser

alcançado. Entendemos que essas são relações comuns à maioria das pessoas, essa tensão

acontece por uma insatisfação inerente do fracasso de atingir o ideal desejado. Contudo, os

níveis de frustração são considerados na relação entre o ego atual e o ideal do ego. “No negro,

do qual falamos, esta relação caracteriza-se por uma acentuada defasagem traduzida por uma

41 “Superego ou super eu é uma das instâncias da personalidade tal como Freud a descreveu no quadro

da sua segunda teoria do aparelho psíquico: o seu papel é assimilável ao de um juiz ou de um sensor

relativamente ao ego, Freud vê na consciência moral, na auto-observação, na formação de ideais, funções do

superego. Classicamente, o superego é definido como o herdeiro do complexo de Édipo, constitui-se por

interiorização das exigências e das interdições parentais (LAPLANCHE e PONTALIS, 1988). O supereu possui

igualmente uma vertente “sádica” que exige o gozo, tornando essa instância potencialmente violenta para com o

próprio sujeito e o outro, colocando-se “um grau acima”, ou melhor, como certa distorção do “ideal do ego”.

117

dramática insatisfação, a despeito dos êxitos objetivos conquistados pelo sujeito” (ibid., p.

38).

A identidade é o alvo de toda a violência racista. Numa cultura racista existe a

intenção de diluir a identidade do negro, tornando-o infeliz. Assim, precocemente o sujeito

internaliza um projeto identificatório conflitante com sua própria identificação biológica e/ou

fenotípica. Esse desequilíbrio psíquico entre o ego e o ideal impede o negro de respeitar suas

identificações estruturantes. O psiquismo do negro mesmo consciente do racismo vive

iludindo sua felicidade e legando-a ao fardo de atingir o que é desejável pelo ideal de

felicidade do branco.

O negro a quem nos referimos vive uma relação consigo de rejeição, o sujeito tem seu

ideal de ego como do branco. Esse é o modelo transfigurado que o negro se identifica. Na

troca com o outro, ele encontra-se impregnado de uma ideologia que o rejeita.

Na busca por sua identidade, cuja configuração parte do olhar do outro, o negro sofre

influência do branco, que, como vimos anteriormente, o despreza. Esse conflito entre o desejo

de embranquecer, a perda de referências e a negação de si, trazem impactos no inconsciente

do indivíduo, que se fragmenta, recalcando o trauma num ciclo de vicioso que exige uma auto

superação para recomeçar a cada minuto, só que agora como outro.

O negro percebe a irrealidade de muitas proposições que ele considera suas em

relação à atitude subjetiva do branco. (...) Em seguida, há o inconsciente. O drama

racial desenrolando-se à luz do dia, o negro não tem tempo de “inconscientizá-lo”.

Quanto ao Branco, consegue fazê-lo de um certo modo; é que surge um novo

elemento: a culpabilidade. O complexo de superioridade dos negros, seu complexo

de inferioridade ou seu sentimento igualitário são conscientes. Eles os experimentam

a cada instante. Eles vivem seu drama. Não há neles a amnésia afetiva que

caracteriza a neurose típica. (FANON, 1983, p. 126).

As dissonâncias entre negros e brancos, para Fanon (1983), estão inclusive nos

detalhes em que se passam as relações, sobretudo na ótica psicanalítica. O autor alerta para

diferenças no trato de situações vividas por brancos, tratadas com especificidade na

investigação e no trato do problema, geralmente debruçado por teorias complexas. No

entanto, quando o negro é exposto a situação semelhante não há um tratamento similar, o

problema é ignorado, ou tratado à revelia do próprio negro, ou justificado por inferiorização

cultural.

118

A evidência das problemáticas vividas por brancos para Fanon possuem mais

relevância e refinamento em relação aos problemas de negro. Em contrapartida, a presença do

outro (nesse caso o negro) para o branco tem significado ameaçador. Assim, observamos o

quanto o negro foi temido na história das colonizações, fato que justificou a violência imposta

ao colonizado.

Nesse encontro com o outro (em termos psicanalíticos, conhecido como “estranho”

([FREUD, 1919]), o medo se faz inerente, apavora e desnorteia quem se sente ameaçado). O

medo traz a insegurança de perder o simbólico e, assim, não poder representar o vivido. Surge

a figura do que nos é estranho, visto como o irrepresentável, que não será jamais alcançável.

Freud (1919) em seu texto a respeito do “estranho” identifica como o sentimento de

estranheza revela vir de algo que nos seja semelhante. O amor a si mesmo, ou narcisismo,

gera abominação ao que é estranho “é como se o diferente, o estranho, pudesse ser em questão

o normal, o universal exigindo que se modifique, quando se auto preservar remete exatamente

à imutabilidade. Assim, a aversão e a antipatia surgem” (CARONE e BENTO, p. 31).

Liv Sovik (2009) compartilha as diversas maneiras de identificar o “estranho familiar”

segundo Freud (1919), em confirmação de que o estranho está sempre à espreita de todos nós

e vinculado à ideia de semelhante.

Freud relacionou o estranho familiar com uma incerteza em torno da humanidade de

uma figura e dá exemplos de um autômato e uma boneca (...) é ainda, um duplo que

se transformou em visão de terror, por ter relação com o medo da morte. (...) é

associado à repetição involuntária, ao mau olhado, à imputação de inveja do outro

(...) traz à luz o que deveria ter permanecido oculto (...). Freud nota a relativa

abundância de narrativas ficcionais do estranho familiar – na ficção misturamos

facilmente imaginação e realidade – em comparação com a nossa experiência

cotidiana (SOVIK, 2009, p. 47-48).

Assim, podemos observar o número de características existentes em o estranho

familiar desenhado por Freud e a familiaridade com a agressividade e impacto sofrido pelo

outro. Um misto de medo, rejeição, indistinção e inveja, formas negativas de uma semelhança

que se torna contrária. A intensidade dos fenômenos relativos à agressividade pode despontar,

como assinaladas por Freud, uma ambivalência a hostilidade dirigida “contra pessoas que de

outra maneira são amadas” (FREUD, 1921, p. 106). Essa agressividade (ibid., 1921) foi

nomeada pelo autor de amor a si mesmo ou narcisismo, principalmente quando indisfarçáveis

as antipatias a estranhos.

119

Esse amor a si mesmo trabalha para a preservação do indivíduo e comporta-se como

se a ocorrência de qualquer divergência de suas próprias linhas específicas de

desenvolvimento envolvesse uma crítica delas e uma exigência de sua alteração.

Não sabemos por que sensitividade deva dirigir-se exatamente a esses pormenores

de diferenciação, mas é inequívoco que, de uma agressividade cuja fonte é

desconhecida, e à qual se fica tentando a atribuir um caráter elementar. (ibid., p.

106).

O autor procura identificar os fundamentos do sentimento de estranheza que se

inicia diante de pessoas, culturas e outros aspectos. Chama atenção de Freud o fato de o tema

geralmente ter proximidade aos estudos filosóficos da estética, porém este privilegia o estudo

do belo como contrário que produz aflição e repulsa.

A partir de suas reflexões, Freud (1919) nos dá diversos exemplos de situações que

remetem ao aspecto “estranho”, em um aprofundamento do termo em dicionários alemães.

Portanto, “estranho” (Unheimlich) considerado paradoxalmente como familiar (Heimlich)

remonta a uma modificação no sentimento de estranheza quando o percebemos no

pensamento.

Em consonância com os sentimentos repulsivo e estranho, observamos como esses

estranhamentos são compreendidos pelas pessoas, em geral, de forma comum e normal,

embora, nesse contexto, se mantenham as diferenças entre o eu e o outro. Usando as palavras

de Freud (1919) que complementam nosso diálogo:

Em primeiro lugar, se a teoria psicanalítica, está certa ao sustentar que todo afeto

pertence a um impulso emocional, qualquer que seja a sua espécie, transforma-se,

se reprimido, em ansiedade, então, entre os exemplos de coisas assustadoras, deve

haver uma categoria em que o elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo

reprimido que retorna. Essa categoria de coisas assustadoras construiria então o

estranho; (...) esse estranho não é nada novo ou alheio, porém algo que é familiar e

há muito estabelecido na mente (...) estranho como algo que deveria permanecer

oculto, mas, veio à luz (Ibid., p. 256).

Conforme exposto acima, para Freud o “estranho” está no familiar repelido em nós,

ou seja, só estranho em nós por se tornar insuportável a consciência. Podemos assemelhar

esse contexto à hipótese de pulsão de morte através do traumático (FREUD, 1920). O

estranho é aquele que intimida através da repetição compulsiva de ódio sobre tudo o que foge

120

à compreensão e nos impele à renúncia pulsional, processo em que se evidencia uma

afinidade traumática em relação à nossa condição de humanidade.

Nessa desventura, o sujeito em sua estrutura narcísica passa a exprimir seu ódio de

modo a compartilhar por seus pares. A perda da capacidade de contenção oferecida na

internalização do objeto primário vem projetar no outro sua insuficiência. Por vezes, com o

severo estranhamento de si mesmo, o sujeito se encontra em uma condição delirante, ou seja,

numa tentativa de contorno do encontro com o real traumático.

Em paralelo, o racismo se explicaria no reflexo do que em nós está oculto, mas, a

espreita de se tornar forte ameaça ao “estranho” que está por vir. Podemos assemelhar a uma

sociedade aparentemente estabilizada, que se vê a espreita de uma ameaça da

homossexualidade recalcada levando tanto o paranoico quanto o racista á mesma condição

delirante (ARREGUY, 2017).

O que está direcionado para fora está dentro de si mesmo, seja o masoquismo moral,

sejam as ameaças às amarras identitárias da sexualidade. Isso esclareceria o porquê

de algumas pessoas terem extrema dificuldade de lidar com a diversidade, enquanto

que para outras esse processo é mais tranquilo. A impossibilidade de lidar com a

diversidade “externa”, assim, também passaria por questões intrapsíquicas (ibid.,

2017, p. 13).

Segundo Freud (1929, p.120), a inclinação para a agressão aos considerados

diferentes é “relativamente inócua”, por facilitar a coesão de uma comunidade específica. Não

obstante, a agressividade em grupos humanos distintos culturalmente é a culpada por grandes

massacres a diversos povos, e essas catástrofes ocasionadas por agressões são direcionadas

contra negros, judeus, indígenas, etc.

Em contrapartida, a agressividade pode se manifestar também espontaneamente e

revelar o homem como uma besta selvagem (ibid. 1929), o que pode ser um elemento

“facilitador” para aquele que recebe a agressividade, caso tenha tendência a retrucar com o

mesmo ódio e violência recebida.

Essa relação corrobora para a inferiorização e menosprezo do outro. Para o negro fica

a atribuição de um ideal do eu do branco, cujo objeto internalizado pelo ideal do eu do negro

não lhe cabe, imputando na força de um masoquismo estimulado através principalmente da

desqualificação do Outro (ARREGUY& COELHO, 2017). Essa gangorra de intimidação,

121

baixa estima e menosprezo é o resultado de subjugação e hierarquização de pessoas e grupos

em constante exacerbação da emotividade e da violência desenfreada.

Freud (1932) em seus escritos finais não é otimista em relação à humanidade, suas

pesquisas o fizeram perceber o quanto o ser humano em seu processo civilizatório destruiu o

outro e a si mesmo e assevera: “A justiça da comunidade então passa a exprimir graus

desiguais de poder nelas vigentes. As leis são feitas por e para os membros governantes e

deixa pouco espaço para os direitos daqueles que se encontram em estado de sujeição”

(FREUD, 1932, p. 212).

Os que se encontram nesse estado de sujeição são o negro, os pobres e os que vivem à

margem social e, ainda, que são vistos como portadores de disparidades sociais e psíquicas.

Nosso papel como estudiosos das relações raciais é termos clareza que essas disparidades

causam danos que são refletidos em vários aspectos da vida de quem os sofre.

A reflexão proposta por Frantz Fanon (1983), psicanalista e militante negro, faz uma

crítica à ausência na psicanálise por um logo tempo, no tratamento das especificidades

psíquicas vivenciadas por negros oprimidos seja pela colonização, seja pela guerra

imperialista ou pela segregação racial existente nos países ocidentais. Para o autor, houve

negligência por parte da psicanálise na possibilidade de escuta as questões raciais, ao passo

que, ocorreu de forma tardia a preocupação desses especialistas em se debruçarem com mais

rigor sobre o assunto.

Sempre que lemos uma obra de psicanálise, discutimos com nossos professores ou

conversamos com doentes europeus, ficamos impressionados com a indignação

entre os esquemas correspondentes e a realidade do negro. Concluímos,

progressivamente, que há substituição de dialética quando se passa da psicologia do

Branco para aquela do Negro (FANON, 1983, p. 126).

Fanon compartilha sua indignação ao tratamento dado pela psicanálise ao negro. Ele

cita especialistas, desde Freud e Jung, enfatizando a falta de um olhar apurado sobre as

questões raciais especificamente nas demandas psíquicas e consequências traumáticas.

Enquanto na teoria freudiana, o Complexo de Édipo permeava a fase da infância até o

período amadurecido do homem branco, o uso da passagem ao ato justificava o

comportamento tido como neurótico ou demais sintomas que assim se assemelhavam,

122

enquanto para o negro, desapareciam as evidências do complexo edipiano, reduzindo

sintomas e possíveis neuroses à “situação cultural” (ibid., 1983).

Poderíamos assemelhar esse caso à crítica da psicanalista negra, Maria Lúcia da Silva

(2017), que retrata a carência de estudos brasileiros sobre o negro na psicanálise. Esses

estudos voltados para o negro apenas surgem como algo tardio. Ela não desmerece trabalhos

renomados como de Neuza Santos Souza ou Jurandir Freire Costa, como exemplos, mas,

observa o atraso nos estudos da psique do negro nas suas peculiaridades. Foi um retrocesso na

proporção que muitos dados importantes da emocionalidade e sentimentos alijados da história

dos negros poderiam ter auxiliado a compreensão do problema há muito tempo.

O próprio Jurandir Freire Costa assevera essa questão:

A violência racista pode submeter o sujeito negro a uma situação cuja desumanidade

nos desarma e deixa perplexo. (...) Mais difícil ainda, talvez, é entender a flácida

omissão com que a teoria psicanalista tratou até então, este assunto. Pensar que a

psicanálise brasileira, para falar do que nos compete, conviveu tanto tempo com

esses “crimes de paz”, adotando uma atitude cúmplice ou complacente ou, melhor

dos casos, indiferente, deve conduzir-nos a uma outra questão: Que psicanálise é

esta? Que psicanalista somos nós? (COSTA, 1983, p. 16).

Problematizar o papel da psicanálise faz parte de nosso dever como pesquisadores da

temática das relações raciais. Assim como, exaltar trabalhos que abriram o caminho para

estudos grandiosos e de muita visibilidade como das psicanalistas que se seguem.

Neuza Santos Souza (1983) dedicou suas pesquisas à questão das desigualdades

raciais e do desejo de ascender socialmente em pessoas negras. Em uma vertente parecida, a

psicanalista Virgínia Bicudo (1945), também marcou esse pioneirismo com a metodologia de

coletar depoimentos marcantes da trajetória do negro - uma em São Paulo e a outra no Rio de

Janeiro. As análises das entrevistas revelaram enriquecedoras vivências e anseios silenciados

pela discriminação social no século XX.

Essas psicanalistas negras foram responsáveis por darem à psicanálise a chance de

mostrar o quanto o racismo faz adoecer, mas mesmo assim não conhecemos seus textos, e

nem tão pouco ouvimos falar delas como modelo feminino de pioneirismo nos estudos

psicanalíticos raciais no país, pois estes estudos estão invisibilizadas na hipocrisia social em

que vivemos.

123

Nessa mesma linha de pensamento, Maria Lúcia da Silva (2017) compartilha seu

ponto de vista e declara: “O racismo não é reconhecido pela psicanálise42

existe uma procura

por psicólogos e psicanalistas negros para dar atendimento a pacientes negros”. A motivação

para esta procura seria a sensibilidade de um profissional negro em compreender os anseios

de seus pacientes de cor por conhecerem de perto os conflitos enfrentados por eles em seu

cotidiano.

O racismo à brasileira é hoje um crime perfeito. As crenças da democracia racial e

da mestiçagem encobrem e mascaram a brutalidade do cotidiano. As representações

negativas estão enraizadas no imaginário social, e os golpes sofridos no dia a dia por

negros e não brancos frequentemente caem na condição da “não existência”, pelo

desmentido no discurso coletivo (SILVA, 2017, p. 66).

Dar voz à trajetória e desejos da população negra é evidentemente dar paridade e

credibilidade para ouvir o outro lado de uma história. Quando investigamos a psique do negro

detectamos as falhas e os sintomas que, como fios condutores, mostram as consequências de

um narcisismo exacerbado de brancos que causam a perda da equidade e solidariedade que

deveriam fazer parte de toda e qualquer relação humana.

Embora o avanço em relação aos estudos da psique do negro seja tardio, sabemos que

atualmente o interesse em desbravar esse tema tem aumentado e buscado apreender as

questões raciais e as demandas vindas desses indivíduos.

Essa abordagem tem nos levado a novos estudos que enriquecem as pesquisas que já

temos e nos dão a possibilidade de investigar como o ideal do ego negro se estabelece nessa

redoma invisível imposta pelo racismo e pelo narcisismo indigesto na contemporaneidade.

Fanon (1983) compartilha quão nos é necessário “saber se o negro pode superar seu

sentimento de inferioridade, expulsar de sua vida o caráter compulsivo que se parece tanto

com comportamento fóbico (p. 44)”. Em termos psicanalíticos, o autor referência Anna Freud

na descrição do fenômeno de inibição do Ego, que ocorre em situações de fortes frustrações

traumáticas:

42 Declarações da psicanalista Maria Lúcia da Silva foram retiradas da entrevista concedida a revista

eletrônica Brasil de Fato, para mais informações acessar: https//www.brasildefato.com.br/2017/07/31/impactos –

do-racismo-não-são-reconhecidos-pela-psicanalise-afirma-psicóloga/. Acesso em 08/03/2018. É importante

ressaltar que desde 2016 a psicanalista Jô Gondar já havia teorizado sobre a questão do “racismo desmentido”,

como mostraremos posteriormente. GONDAR, 2016 in ARREGUY et al., 2018).

124

Quando um Ego é jovem, plástico, toda decepção sofrida em uma esfera de ação,

pode ser, as vezes, compensada por sucessos perfeitos dos outros. Mas quando o

Ego se tornou rígido ou que já adquiriu uma intolerância ao desprazer pelo que se

atém compulsivamente à reação de fuga, a formação do Ego sofre terríveis

consequências; o Ego, tendo abandonado suas inúmeras posições torna-se unilateral,

perde muitos de seus interesses e só pode apresentar realizações medíocres (A.

FREUD apud FANON, 1983, p. 44).

Em outras palavras, o ego mais jovem é flexível, disposto a uma reação, enquanto, o

Ego rígido se defende com dificuldade e opta por fugir a enfrentar imposições. Por perder

muito, se torna unilateral, escamoteando-se das situações de violência que o atingiram.

Diante do exposto, compreendemos o quanto para o negro há uma barreira que se

constituiu entre ele e sua negritude, quando se encontra no caminho do desconhecimento de

si, essa influência o leva a isolar-se e a buscar ser como o branco, sendo essa sua última saída.

“A inibição do ego como mecanismo de defesa bem-sucedido não é viável para o negro (ibid.,

p. 44)”.

Ora, se o negro não se aceita, seu ideal de ego negro será branco, e o branco na

assunção como modelo pureza e benignidade ostentará seu ideal de ego com profundo

narcisismo, procurando se defender, em sua posição destacada dos demais grupos. Nas

palavras de Fanon (1983) e Santos (1983), a falta de conhecimento de si leva o negro ser

escravo de sua inferioridade, enquanto o branco cego por seu narcisismo passa a ser escravo

de sua superioridade, logo, ambos têm comportamentos neuróticos.

A estrutura neurótica de um indivíduo será justamente a elaboração, a formação, a

eclosão no Eu de nódulos conflituais provenientes em parte do meio ambiente, em

parte da maneira absolutamente pessoal que este indivíduo reage a estas influências

(FANON, 1983, p. 69).

A ação de negros diante de brancos, usualmente pode ser de aspecto delirante, com

propósito de ser aceito e visto como igual pelo branco. Isso justificaria a anulação de si, mas,

consequentemente, deixaria o negro à beira do patológico. Situação que corrobora para a

aniquilação da autoestima do negro e a regressão para o estágio de inferioridade que aumenta

seu anseio por embranquecer.

125

Se fizermos uma analogia entre o pensamento de Fanon sobre o modo delirante do

negro de anulação de si e a obra de Foucault sobre a história da loucura, veremos o quanto o

pensamento clássico e, mais tarde, moderno sobre a loucura coaduna perfeitamente com o

conceito do que é ser negro desde a colonização, produzindo efeitos (subliminarmente) nos

tempos atuais.

Da época clássica até o período da criação e disseminação ocidental das teorias

racialistas europeias (criadas por grandes intelectuais da época como: Kant, Le Bon,

Gobineau entre outros), a concepção amplamente difundida de que o louco - ou em outras

palavras também “o negro” - era considerado um ser desprovido, primeiro de moral, depois na

modernidade, de razão, redundou na lógica vigente de que o louco ou o negro é um ser

delirante, não possuidor de verdade, incapaz de se autogovernar, ou de ser possuidor de bens

considerando sua capacidade intelectual deficitária (OLIVEIRA, 2006-2007, p. 21). Diante de

tantos atributos negativos, não posso deixar de considerar que o negro era comparado

socialmente a um louco por não p se aceitar como é e almejar ser o outro colonizador branco.

Essa é a única insanidade a que, de fato, se submeteu.

Deixando de ser um erro, falsidade, não-ser, exterioridade da razão, outro da razão,

desrazão, como na época clássica, a loucura, agora doença mental diz respeito à

alma humana, penetra em sua interioridade, no sentido em que o homem, em estado

de loucura, não perde mais a verdade, mas sua verdade, sua essência, torna-se,

estrangeiro em relação a si próprio, Alienado (FOUCAULT (1961, p. 31) apud

OLIVEIRA 2006-2007, p. 21).

Embora, possa haver negação desse comportamento delirante, através de uma barreira

psíquica, observamos que se encontra no inconsciente a chave do que será possível libertar. A

barreira psíquica revelada do negro poderá ser superada pelo conhecimento e aceitação de

quem é, e como se constitui como sujeito.

Incansavelmente procuramos neste trabalho, mostrar caminhos que nos levem para

fora da alienação psíquica, política, social e econômica, vivida por negros e qualquer

indivíduo que se encontre em situação de marginalidade na sociedade. Acreditamos que a

psicanálise é um instrumento necessário em todo esse processo perverso, que nos isola, e, ao

mesmo tempo, manipula, conhecido como racismo.

126

3. O DESMENTIDO COMO CHAVE DE LEITURA PARA A VIOLÊNCIA RACIAL

DISSIMULADA

Nossa proposta nesse capítulo é analisar as contribuições de Sándor Ferenczi na teoria

do desmentido (desautorização ou descrédito) para além da ideia de trauma. A intenção é

entendê-la a partir da concepção do trauma na violência racial.

As contribuições de Ferenczi estão presentes nessa pesquisa, devido à ligação entre os

traumas vividos por negros nas relações raciais e na constante negação dos episódios

traumáticos por pessoas próximas do sujeito que desmentiam tais acontecimentos,

dissimulando o evento como menos importante. A partir da teoria do desmentido podemos

observar as consequências traumáticas de abusos diversos, sofridos da infância até a fase

adulta do sujeito.

O desmentido, fundamental para que haja trauma, é entendido como a negação, por

parte do adulto que ouve a criança, de que algo abusivo de fato aconteceu com ela.

Geralmente a atitude do adulto agressor é a de que nada aconteceu, a de que o fato

não tem importância. Quando a criança chega a comentar o fato com um outro

adulto, geralmente a mãe, este toma o relato da criança como fantasia e não um

acontecimento real, desautorizando assim a fala da criança. O próprio desmentido do

adulto irá fazer todo o fato adquirir para a criança um contorno essencialmente

traumático e desestruturante. Isso provoca na criança uma grande confusão: a

confiança que depositava no que percebia, em seus próprios sentidos é destruída

(FERENCZI, 1933(1932/1992) p. 106).

São observadas as sequelas e marcas nos sujeitos, sob essa estrutura perversa que o

leva a sair de sua zona de conforto para ser confrontado com a dúvida do que viveu, e ainda se

sentir culpado pela situação traumática sofrida. Assim, o sujeito vive a negação da realidade.

O trauma para Ferenczi equivale a um “choque” gerado pela decepção com o indivíduo

considerado protetor e pelo sentimento de culpa importado pela criança traumatizada

(FAVERO e RUDGE, 2009).

Junto ao leitor, podemos considerar a partir de estudos contemporâneos da psicanálise

com a vertente ferencziana, que parte das patologias atuais não surgem pelo recalcamento

como operador psíquico principal. Entretanto, é necessário afirmar que, embora em outras

127

circunstâncias haja o recalque, em nosso caso, de racismo desmentido, o recalcamento não é o

principal operador subjetivo. Quando há um trauma, por exemplo, em uma ofensa ou briga

por questões raciais, o operador privilegiado como mecanismo de defesa é a clivagem

psíquica.

Reconhecemos o quanto o racismo está presente nas relações sociais e age como

mecanismo perverso, complexo e defensivo aliado à existência de uma crença silenciada na

branquitude supervalorizada (GONDAR, 2018). O desmentido é um abuso na discriminação

racial, vivido por quem passa pela desautorização de sua palavra diante do outro. A criança

desmentida tem um sofrimento na percepção de sua própria realidade, logo, em sua

subjetividade e autoestima. Ela assume a culpa pelo abuso ou violência sofrida.

Em Ferenczi, o sofrimento causado pelo abuso social nos mais diversos aspectos,

especificado aqui nas relações raciais, acontece a partir de relações políticas e públicas como:

vergonha e humilhações gerando um aniquilamento subjetivo. Nessas situações, a criança ou

sujeito discriminado passam inclusive a duvidar de si (GONDAR, 2018).

A partir da dúvida e do descrédito, o desmentido traumático leva à autodestruição,

associado a uma fragmentação dos conteúdos psíquicos, na tentativa de se desvencilhar da

angústia. O sujeito revela o sintoma e revive o trauma continuamente através do sonho

traumático, da compulsão à repetição conhecida por flashback. Essa repetição de uma cena

clivada significa que, partindo da angústia, se revive o trauma sem, a princípio, reconhecê-lo.

“Já quando se reconstrói o trauma falando dele, muito se compreende, mas os sentidos

correspondentes ficam ausentes” (FAVERO e RUDGE, 2009, p. 176).

Quando o adulto desmente a experiência sexual e/ou violenta, o sentido, o sentido

do acontecimento fica congelado para a criança e só resta a ela se culpar, se auto

recriminar. O que ocorre é que “a representação do agressor é negativamente

alucinada, e o que devia ser acusação, revolta, transgressão, contestação ao outro,

etc., torna-se submissão e sintomas corporais” (COSTA, apud, FÁVERO e BENTO,

2009, p 173).

Sem a proteção de um adulto de confiança, a criança institui uma parte de si

fragmentada, como um guardião em si próprio, substituindo a presença do adulto que a

decepcionou. A partir disso, criança pode assumir atitudes diferenciadas após a experiência

128

traumática, uma postura de maturidade precoce na expectativa de superar o sofrimento da

violência sofrida através da clivagem.

A clivagem do eu é a resposta ao trauma, seja lá que forma assuma: “o agredido,

cujas forças são vencidas, abandona-se de certo modo ao seu destino inelutável e

retira-se para fora de si mesmo, a fim de observar o evento traumático de uma longa

distância” (FERENCZI, 1932/ 1990, p. 19).

A clivagem é o resultado da fragmentação do sujeito. Uma forma do consciente lidar

com fatos dolorosos e ainda não recalcados no inconsciente. Essa nova postura da criança em

assumir atitudes de maturidade, serve com escudo que a protege da insegurança de não poder

confiar em um adulto que, por princípio, deveria protegê-la.

Há casos, como indica Ferenczi, em que a fragmentação é a única forma que o

sujeito encontra de poder suportar uma dor impossível. O abandono de uma

percepção unificada “faz desaparecer, pelo menos, o sofrimento simultâneo de um

desprazer com múltiplas faces. Cada fragmento sofre por si mesmo; a unificação

insuportável de todas as qualidades e quantidades de sofrimento é eliminada

(FERENCZI 1930, p. 248 apud, GONDAR, 2014, p. 04).

Reconhecemos a clivagem como mecanismo necessário para a superação, ou melhor,

para tornar a vida suportável, como uma possível ponte para a alteridade e continuidade da

vida do sujeito. Uma nova abertura a um novo caminho, esse com outra roupagem. “São

modos de funcionamento nos quais a parcialidade, a multiplicidade e a fragmentação

predominam sobre toda tentativa de unidade” (GONDAR, 2014, p. 03).

Em analogia ao trauma em Ferenczi e aos sofrimentos psíquicos observados em

pessoas negras, pretendemos caracterizar as nuances do desmentido no racismo do Brasil.

Aqui, o racismo é sinuoso e complexo, “prevalece o pensamento no qual vivemos um país de

mistura, cordialidade e união afetiva racial, como um projeto nacional possível, em termos

raciais somos uma grande família” (GONDAR, 2018).

Nosso racismo é mais complexo do que o racismo explicitamente segregador, como

o norte-americano, por exemplo; mais complexo e perverso. Quando se tem

fronteiras claras, o outro discriminado fica bem estabelecido. Quando não se tem,

reconhecer a discriminação é mais difícil, porque ele pode estar em toda parte ou em

parte alguma (GONDAR, 2018).

129

Aliás, negamos a realidade, nos acostumamos a não dar nome às coisas, ou melhor, a

não nomear os fatos. O desmentido acontece em meio a essa não identificação, à dúvida que

traz a culpa ou a incerteza acerca dos culpados. Essa negação da realidade de um racismo não

nomeado sem fronteiras claras, “coloca um mecanismo de defesa que não é o recalque. É o

mecanismo da clivagem.” (ibid.).

A clivagem não diz respeito a um elemento nosso, mas a uma dimensão da

realidade. É um mecanismo mais primário e insidioso do que o recalque. Nesse, ao

menos, existem correntes que se conflitam. Mas, Freud fala em clivagem quando

duas atitudes opostas diante da realidade se mantêm sem qualquer conflito, como se

uma não levasse a outra em consideração. Isso não tem nada a ver com recalque,

trata-se de um repúdio da realidade (ibid., 2018).

Freud (1927) estabelece a clivagem como mecanismo típico da perversão fetichista. A

clivagem no racismo brasileiro processa na cultura o sofrimento gerado desde a escravidão no

passado, e a injustiça social intrínseca na atualidade (GONDAR, 2018). Nesse exercício de

negar a realidade, decidimos quem é bem-vindo ou não em determinados lugares, de acordo

com a cor ou situação econômica. O fetiche, por sua vez, se encontra nas situações de

exceção, ocupando o lugar de um rito, porém instaurado como “solução de compromisso”

diante da realidade cotidiana perversa. É no carnaval, no samba e no futebol43

que a

população negra é temporariamente “reconhecida” através da fantasia de uma integração

falsamente concebida. Fora dessas tréguas, a população negra retorna ao seu lugar de

marginalizada, subalternizada e explorada continuamente, de forma consubstancializada com

diferença de classes.

Enquanto involuntariamente mantemos esse sistema excludente, o cerne do problema

vai permanecer sendo a confiança na branquitude, e no silêncio promovido pelo branco.

Nossa referência ainda é a civilização europeia, essa é diretamente copiada ou adaptada a

nossa ideia de identidade. Essa relação paradoxal entre a branquitude copiada e a brancura

43

Damatta em seu livro: “Carnaval, malandros e heróis (1979)” destaca como a exploração ocorre de

forma aviltante na sociedade e mantêm a dualidade maniqueísta que define o pensamento do povo brasileiro.

Assim como, desmonta a desigualdade crônica do país que embalam o movimento do qual o pobre, em sua

maioria, negros, são sufocantemente explorados pela elite brasileira. A elite que se mantêm acima de todos,

usando manobras contraditórias que manipulam a realidade, colocando em dúvida a universalidade da noção de

indivíduo.

130

europeia causa um conflito: admitimos a miscigenação com um discurso orgulhoso, mas não

vivemos uma democracia racial (ibid.).

A valorização do brasileiro mestiço, herança da resistência antropofágica e freyreana

às exigências eurocêntricas permite que, sob certas condições economias e sociais, o

papel social ideal associado a ser branco possa ser desempenhado por não brancos,

enquanto as hierarquias se preservam (SOVIK, 2009, p. 38).

Esse projeto de branquitude afeta diretamente a subjetividade dos negros no Brasil. A

supervalorização do branco deforma o negro ainda na infância, quando passa pelo traumático

desmentido, ao sofrer as primeiras violências racistas. A partir delas, um acúmulo de outros

choques traumáticos o levam à clivagem para conseguir seguir a diante.

O discurso da mestiçagem e/ou miscigenação é outro agravante que esconde o ideal

europeu branco fixado no imaginário social. Para Gondar (2018), o discurso de miscigenação

e a admiração em torno dele, causa uma identificação com o colonizador, então, agressor,

além de incorporar essa ideologia a um conservadorismo, que leva à negação da existência de

um ódio racial. Embora negado, esse ódio é bem real e continua a coexistir nas relações

sociais brasileiras.

Embora Freud também tenha pensado no desmentido em uma perspectiva de quem o

pratica, Ferenczi opta por calcar o desmentido na perspectiva de quem o sofre.

Conhecemos o perfil do agressor, daquele que promove energicamente a indiferença

racial. Nesse momento, mais nos importa a aproximação daquele que sofre o desmentido. Se

uma criança negra passa por um constrangimento ou agressão motivada por sua cor, e aquilo a

destrói, ela vai procurar ajuda, pedir socorro a alguém de sua confiança. Para Ferenczi (1932),

este adulto não quer ou não suporta o que a criança lhe confidencia, sua sentença será a de que

nada aconteceu, ou que a criança está mentindo. “O desmentido pode ser traduzido por

descredito ou desautorização, a situação em que o adulto desmente, mas, a criança está sendo

desmentida” (GONDAR, 2018).

Em termos psíquicos, Ferenczi nos diz que o momento traumático não está no ato da

violência sofrida pela criança, mas no instante vivido com o sujeito que a desmentiu,

deixando-a confusa e desorientada no que acreditar. Esse desmentido impulsiona ao

131

desmoronamento subjetivo e ao trauma (FERENCZI, 1932). A falta de reconhecimento do

evento traumático traz muitas consequências para o sujeito como poderemos ver a seguir.

A memória do acontecimento não é traumática. O que resultará traumático será a

experiência que expõe a dúvida o sistema - até então confiável - de relações,

representações e valores que ataca o self e suas construções, pelo qual nem o si

mesmo nem os outros serão os mesmos (ibid., 128).

O desmentido e o trauma não consentem que a experiência se inscreva

simbolicamente. A percepção do trauma é transfigurada rapidamente a uma eliminação

simbólica que a coloca na compulsão à repetição da pulsão de morte44

. Pensar no racismo

brasileiro é fazer a analogia entre o paradoxo do desmentido no nível subjetivo acoplado a

uma estrutura perversa que se faz totalmente institucionalizada em nosso país.

A situação é institucionalizada quando nossa população é vista com condescendência

por viver com “alegria” em meio a toda injustiça social que não conseguimos combater. O

estereótipo de alegria atravessa a indiferença e a pobreza, revelando o quanto vivemos uma

relação social ilógica e deturpada. Absorvemos a cada instante nas separações raciais e sociais

as distinções que nos levam ao desmentido constantemente. Por isso, “o sujeito que é

desmentido se vê imerso na falta de sentido, têm dúvidas sobre a sua própria percepção da

realidade e do lugar que ele ocupa nessa realidade” (GONDAR, 2018).

Essa desorientação nos cerca dentro desses processos perversos. Nos deixa sem a

noção da realidade na qual vivemos. Nesse papel, negros e mestiços são desmentidos em sua

posição racial e, consequentemente, em seu lugar social. A reviravolta é possível pela

coletividade, como os movimentos sociais negros, que juntos desafiam o ideal de branquitude

e o denunciam.

A psicanálise é uma aliada na construção desse conhecimento, na autoanálise e na

reflexão do nosso lugar na sociedade brasileira, na medida em que denuncia a hipocrisia e

44 “Ferenczi em 1924 já não compartilhava da noção de primazia da pulsão de morte como em Freud,

preferindo uma oscilação entre pulsões de vida e de morte”. Segundo Avello, Ferenczi pensa em variantes da

pulsão de vida que adquirem sua estrutura definitiva no laço com outros e não em pulsões distintas. “(...)

deveríamos abandonar definitivamente o problema do começo e do fim da vida e imaginar todo universo

orgânico e inorgânico como uma oscilação perpétua entre pulsões de vida e pulsões de morte, em que tanto a

vida quanto a morte jamais conseguiria estabelecer sua hegemonia” (FERENCZI, 1924, p. 325 apud, HERZOG

e FERREIRA, 2015, p. 185).

132

procura ver a realidade desmistificada de seus estereótipos. Afinal, a leitura das sutilezas dos

impasses inconscientes na relação com o outro e da forma como isso se reproduz na esfera

social é uma chance potencial de nos livrarmos da manipulação perversa e egoísta que institui

processos de produção de subjetividades racistas específicos em nosso país.

3.1 Raízes traumáticas do sofrimento do negro

Na psicanálise, a palavra trauma significa aquilo que chega ao sujeito vindo de fora

dele, algo externo, que não foi “traduzido” no inconsciente, por algum motivo emocional.

Freud definiu o trauma de acordo com suas pesquisas clínicas, impulsionando diferentes

visões acerca do trauma em sua trajetória. Nas palavras de Kupermann (2017):

(...) primeiro o abuso da criança pelo adulto (teoria da sedução), depois as fantasias

sexuais inconscientes edipianas e, finalmente, a presença silenciosa, porém efetiva,

de uma pulsão de morte no aparelho psíquico - já que indicava que, na construção da

cena traumática, o outro está no lugar de agente provocador (seja no ato, seja em

fantasia) (KUPPERMAN, 2017, p. 48).

O pensamento de Freud sobre o trauma, em sua primeira tópica, se desenvolveu a

partir da teoria da sedução, considerando a situação originária advinda de uma relação

incestuosa envolvendo a sexualidade entre pais e filhos. De acordo com Favero (2009), numa

concepção firmemente ligada à sedução e A neurótica, todos os pais seriam perversos a ponto

de molestarem sexualmente seus filhos, situação que levou Freud abandonar essa vertente de

pensamento e se debruçar em outra perspectiva, a da fantasia, uma vez que o modelo do

trauma passar a vigiar como teoria geral da neurose, desde A Interpretação dos Sonhos

(FREUD, 1900) e dos casos clínicos.

Com o desenvolvimento de seus estudos clínicos, Freud passa a considerar o fato de

que a criança é capaz de criar fantasias inconscientes de caráter edipiano, dando

destaque ao produto das construções da fantasia do sujeito. Assim, o autor abandona

o pensamento de acontecimento traumático pela percepção de fantasia como

determinante no cenário traumático (FAVERO, 2009, p. 31).

133

A segunda teoria de Freud sobre o trauma deriva do pensamento das fantasias infantis,

ou melhor, das realidades psíquicas. A teoria da sedução é abandonada por não se poder

considerar que todos os pais são perversos, dando espaço a fantasia, responsável pela origem

da neurose. Assim, o trauma passa a ser direcionado ao desenvolvimento sexual infantil.

Nesse período a concepção de trauma é relacionada ao desenvolvimento da

sexualidade infantil e é concebido a partir das “fantasias originárias e às angústias da

castração e o complexo de Édipo, nesse período todos os traumas estão associados às fantasias

inconscientes e à realidade psíquica” (FAVERO, 2009, p. 11).

A definição de trauma em Freud está vinculada a ideia de um choque

violento, de uma efração do aparelho psíquico e também das consequências

sobre o conjunto da organização psíquica. (...) O trauma está relacionado a

uma ausência de uma descarga emocional, de um afeto que permanece

estrangulado, na medida em que há uma dissociação das ideias

correspondentes a ele da consciente. Nesse sentido, o afeto estrangulado é

vivenciado como desprazer que economicamente compromete a homeostase

do aparelho (ibid., p. 19).

Freud passou a pensar na histeria em função do conflito de forças e na defesa psíquica,

levando-o à mudança do método catártico pelo da associação livre (FAVERO, p. 29). Nesse

sentido, Freud afirma que o trauma implicava em uma passagem de um acontecimento de

forma passiva pela criança que embora tenha se chocado, não compreendeu o fato, que só

passa a ter sentido mais tarde na adolescência, quando dará outra conotação ao ocorrido e

passará a sentir dor e sofrimento quando percebe o significado do fato, gerando a partir daí o

trauma.

A histeria, modelo clássico do traumatismo freudiano, se formava com uma espécie de

resíduos de traumas psíquicos cujas particularidades desses sintomas eram explicadas através

do encadeamento de cenas traumáticas. O tratamento dado ao trauma se dava pelo método

catártico, removendo as consequências das ideias traumáticas, transferindo-as para o plano da

consciência.

A hipnose é evocada como condição de trazer à tona a consciência de ideias

dissociadas, enquanto o trauma continua atuando no psiquismo de acordo com a primeira

teoria do trauma, como afeto estrangulado (FAVERO, 2009). Aos poucos, Freud abandona as

ideias de estados hipnoides acerca do método catártico, e se debruça em compreender as

134

causas patogênicas já interiorizadas no sujeito, prontas para serem reveladas em associações

aos fatos conscientes com certa resistência, não considerando mais necessário o uso da

hipnose.

Na década de 20, o trauma ganha nova caracterização, dessa vez com rompimento do

escudo defensivo pelo excesso de excitação promovido no psiquismo pelas exigências da

pulsão de morte (FREUD, 1920). O susto passa a ser elemento fundamental na concepção de

trauma. “O trauma seria, assim, inerente à própria constituição do aparelho mental, e

provocado pela dimensão pulsional não inscrita psiquicamente pelos processos de

simbolização” (KUPPERMAN, 2017, p. 50).

A concepção freudiana de trauma vai perdendo força, quando é repensada a partir da

noção de pulsão de morte45

, passando por reformulações. No trauma, o sujeito não consegue

ter reação alguma, e assim não é possível descarregar os sentimentos gerados durante os

acontecimentos, já que as ideias estão afastadas do campo consciente devido à situação

geradora do trauma. Destarte, as memórias do trauma ficam carregadas de uma espécie de

paralisia, pois permanecem incrustadas como algo que não pertence ao psiquismo. Trata-se da

noção de externo-interior: algo que fica fora de significação, ao mesmo tempo em que causa

efeitos sintomáticos na vida do sujeito psiquismo.

Em período semelhante, como veremos no texto de Freud (1919) Introdução a a

psicanálise e as neuroses da guerra, no qual contemplamos a concepção de trauma pós-

guerra, a partir de eventos dolorosos recentes e que nada tinham a ver com a sexualidade. A

situação era constituída pela fixação no período traumático, e na tentativa de superação, os

sonhos repetiam inúmeras vezes, o acidente traumático. Para Favero (2009, p. 36) essa é uma

questão de dominar a excitação. Ligar psiquicamente as somas de excitação que penetraram

por efração para tentar levá-las, em seguida, à liquidação.

Dessa forma, o sonho traumático vem de encontro às lembranças insuportáveis de

traumas, a princípio, insuperáveis, como tentativa do inconsciente em reestabelecer o

princípio do prazer. Nas neuroses traumáticas e de guerra, o Ego consegue se defender das

45 “Pulsões de morte – No quadro da última teoria freudiana das pulsões, designa uma categoria

fundamental de pulsões que se contrapõem às pulsões de vida e que tendem a reconduzir o ser vivo ao estado

anorgânico. Voltadas inicialmente para o interior e tendendo à autodestruição, as pulsões de morte seriam

secundariamente dirigidas para o exterior, manifestando-se então sob a forma da pulsão de agressão ou de

destruição.” (LAPLANCHE e PONTALIS, 2001, p. 624).

135

ameaças externas encontradas na nova forma de configuração do eu, em busca de superação

da violência do trauma (ibid., p. 39).

Kupperman (2017) faz uma reflexão acerca da concepção de trauma no pensamento de

Freud: “(...) Porém, se a guerra é efetivamente uma vicissitude possível – talvez até provável

– da civilização, a hipótese metapsicológica da pulsão de morte não contribui especialmente

para compreensão do contexto histórico-cultural de sua produção.” (p. 50).

Os estudos de Freud sobre as consequências da guerra nos sujeitos o impulsionaram

nas incursões da teoria do princípio do prazer, ao mesmo tempo em que constituiu uma nova

maneira de apreensão da pulsão de morte, da compulsão à repetição e a nova concepção de

trauma (Fávero, 2009, p. 39). O trauma da compulsão à repetição ocorre em decorrência de

circunstancias anteriores ao princípio do prazer46

, e é compreendido como repetição do

acontecimento traumático. Essa repetição indica que algo não atingiu a cadeia associativa,

portanto não se inscreveu nos sistemas da memória. Desse modo, “o trauma seria, assim,

inerente à própria constituição do aparelho mental, e provocado pela dimensão pulsional não

inscrita psiquicamente pelos processos de simbolização” (KUPPERMAN, 2017, p. 50).

Em suma, na década de 20 a psicanálise apontava a concepção de trauma

intrapsíquico, no qual a repetição é uma forma de preparação do trauma, se distanciando do

princípio do prazer. Nesse sentido, a natureza sexual do trauma na infância não pode ser a

única regra, como podemos observar, o sujeito pode ser afetado em outras circunstancias

inclusive na fase adulta.

Comparando as diferentes teorias do trauma em Freud e a retomada da teoria da

sedução em Ferenczi, observamos que o sofrimento traumático do negro acerca de sua cor da

pele, para além do traumático da pulsão de morte que atinge a todos indiscriminadamente, é

acrescido de um fato traumático, de um acontecimento ou de acontecimentos sucessivos que o

acompanham desde a infância, quando é intimidado por sua “aparente diferença”. Ele se vê

46 Princípio do prazer é uma expressão introduzida por Freud em 1911 tem por objetivo proporcionar

prazer e evitar o desprazer, sem entraves e sem limites (como o lactante no seio da mãe, por exemplo)

(ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 603). É um dos dois princípios que, segundo Freud, regem o funcionamento

mental: a atividade psíquica no seu conjunto tem por objetivo evitar o desprazer e proporcionar o prazer. É um

princípio econômico na medida em que o desprazer está ligado ao aumento das quantidades de excitação e o

prazer à sua redução (LAPLANCHE e PONTALIS, 2001, p. 694).

136

persuadido socialmente até encontrar meios para se adaptar em determinados grupos, quando

em sua maioria são brancos. Nessa relação com o outro, o negro se sente solitário,

especialmente em situações que só fazem sentido pra ele, como em comentários racistas sobre

outras pessoas de cor ou piadinhas estereotipadas que o atingem intimamente, mas, que não

são rebatidas pela preocupação de ser mal compreendido.

No pensamento do negro paira a condição da branquitude alheia, realçada pelas

imagens do cotidiano impostas pela mídia e pelos estereótipos enraizados na sociedade,

ferindo sua autoestima, afetando seu modo de perceber sua própria realidade e de se

reconhecer como sujeito.

Inconscientemente, a pessoa negra absorve todas essas informações e sente-se

incomodada, mas ainda não desponta como uma ferida visível. O trauma do racismo é

fomentado no cotidiano, por fatos correntes e dissimulados, que lhe deixam num estado de

confusão quanto à própria capacidade de constituição de sua identidade. Entretanto, após um

espaço de tempo a situação vexatória e/ ou discriminatória passa a fazer sentido causando

uma dor traumática. Essa situação irá se agravar com outras situações semelhantes

envolvendo a cor e os costumes da pessoa negra.

Será através da apresentação inconsciente dos sintomas e falhas no discurso, o meio

possível para compreender e iniciar um modo de amenizar o trauma já transformado em dor.

Os sintomas podem ser identificados como “execução” de um propósito inconsciente,

apresentando-se como perturbações de outros atos intencionais que se escondem sob o

disfarce de um ato desajeitado (FREUD, 1901 p. 201).

O traumático para Freud (1920) se constitui como uma soma de excitação que age

impedindo a agitação psíquica. Essa grande excitação transparece através de angústia, tendo a

necessidade de ser canalizada pelo corpo. Dessa maneira, quanto mais difícil for a realidade

objetiva, mais o traumatizado se afasta dela, ele mesmo vindo a desmentir o ocorrido.

Assim o negro o faz, muitas vezes em silêncio, se afasta por doer, por não

compreender, por não saber nomear o que o ameaça ou o faz chorar. Os efeitos traumáticos no

psiquismo do sujeito que sobrevive calado à intensa dor psíquica decorrente de situações de

violência racial ultrapassam a realidade histórica brasileira.

O abandono social devido ao não acolhimento por parte do outro em seu

estranhamento, acrescido do individualismo típico da sociedade de consumo e da liquidez (no

137

sentido da falta de permanência) dos laços afetivos entre as pessoas, reafirmam as

psicopatologias vindas desse esvaziamento profundo de relações. O mais marcante nesse mal-

estar contemporâneo é o traço profundo da violência, constituída como uma maquinaria de

passagem ao ato. O sofrimento resultante desse estado caótico em que o outro não é

reconhecido em sua diferença, surge como modo de produção de subjetividade sintomático

que, tal como uma descarga psicossomática, é exposto na carne sem nenhum potencial de

levar à simbolização ou à reação.

3.2 O trauma em Ferenczi como fator social

Sándor Ferenczi, psicanalista húngaro, inaugura uma clínica diferenciada de seu

mestre Freud em muitas circunstâncias. Seu conceito de trauma estava centrado nas relações

precoces do Eu, repensando o papel do objeto na constituição psíquica.

Sua influência na psicanálise contemporânea é bastante reconhecida, principalmente

em relação às manifestações da compulsão à repetição que se distanciam da percepção

freudiana no item sobre a pulsão de morte. Ferenczi tem notoriedade por abrir frentes para

refletir questões que fogem ao paradigma da representação, e dos operadores da castração e

do recalque, dessa maneira, ampliou, ou melhor, modificou o campo terapêutico.

Modificações surgidas a partir dos casos clínicos “difíceis” (PINHEIRO, 1995),

levaram Ferenczi a elaborar uma “técnica ativa” na qual utilizava a “neocatarse”47

,

percebendo que as memórias mostravam um retorno do fator traumático primário ou original

das neuroses, anteriormente abandonado por Freud.

47 “Em seu texto Princípio do prazer e neocatarse (1930/2003), Ferenczi retoma a velha catarse de

Breuer e Freud ao entender o valor do recurso, ainda que fosse uma tradição antiga. Fazendo-o, pretendeu

“valorizar o antigo como progresso científico”. Afora a crítica às suas ideias sempre ameaçadoramente

inovadoras, o texto continha a proposta de associar o preceito da frustração recomendada por Freud uma

proposição de uma atitude amistosamente benevolente que propicia o relaxamento a ser incluído à frustração, à

objetividade e à análise do material transferencial. A confiança e a total liberdade que daí advém, facilita o

aparecimento de sintomas recalcados, fruto das manifestações catárticas que revelam traumas primitivos, e

favorece a “economia de sofrimento”. Análise de crianças com adultos (1931/2003), também era um recurso

para suavizar a dureza de uma análise de adultos e permitir o acesso a conteúdos inconscientes de outra forma

não alcançados” (KEZEM, 2010, p. 25).

138

Ferenczi era grande discípulo de Freud. Encontrou na clínica um modo mais

complexo de ultrapassar a compulsão à repetição, dando continuidade ao trabalho analítico

com dedicação exclusiva e enérgica à clínica. Ferenczi destaca o lugar do analista debruçado

em cada peculiaridade de seus casos clínicos. Sua preocupação era, além da prorrogação da

terapia, a cura de seus pacientes e a continuidade da análise do próprio analista como base de

sua intervenção terapêutica.

A atualidade do pensamento de Ferenczi vai atender à necessidade de se refletir

sobre esta sentença de morte que parece se perpetuar nos dias de hoje na crítica

contundente em relação ao método, à intervenção terapêutica e ao arcabouço teórico

da psicanálise. Assim, é que nos deparamos com a denúncia de que o arcabouço

teórico da psicanálise, bem como seu dispositivo clínico, estaria ultrapassado, pois

suas ferramentas não seriam mais eficazes para dar conta das transformações no

modo de se pensar o sujeito na contemporaneidade. Ou seja, hoje não estamos mais

diante de perturbações psíquicas referidas ao modelo de recalque (HERZOG e

FERREIRA, 2015, p. 182-183).

O trauma sexual em Freud condizia a uma operação intrapsíquica, vinda de dentro do

sujeito, mesmo que de forma externa por algum acontecimento violento de forte impacto.

Entretanto, em Ferenczi veremos o trauma social, na forma de uma ruptura gerada nas

relações sociais e políticas. Através dessa modificação de percepções, observamos uma

traumatogênese ferencziana imbuída de instrumentos eficazes para nos fazer refletir sob o

prisma da clínica do testemunho, uma psicanálise da escuta, da reflexão, autorreflexão e

acolhimento pelo outro no percurso tanto da clínica como no aspecto cultural

(KUPPERMAN, 2017).

A traumatogênese ferencziana sugere que todo trauma é, efetivamente, um

retraumatismo - há sempre um segundo tempo traumático muitas vezes mais funesto

ainda que o primeiro -, e perpetuar o silenciamento das vozes capazes de contribuir

para a elaboração psíquica dos episódios sofridos tenderia a eternizar os mecanismos

da desautorização traumática (ibid., p. 53).

Pelo viés da clínica do testemunho, Ferenczi encontra a necessidade de nomear

sentimentos como afeto, pavor e medo. Nesse cenário o trauma entra numa questão nomeada

pelo psicanalista húngaro como confusão de línguas.

139

Em sua formulação derradeira sobre o traumatismo, Ferenczi (1932/1992) postula

que a criança se encontra sob o regime da “linguagem da ternura”, uma linguagem

lúdica, experimental, expansiva, dirigida ao outro, por meio da qual as experiências

produzem sentido para o sujeito. Já o adulto, submetido ao recalque e à culpa,

encontra-se sob o primado da “linguagem da paixão”, veiculadora das palavras de

ordem e dos imperativos sociais aprisionadores (ibid., 2017, p. 50-51).

Desse modo, o trauma é constituído pelo choque de forma inesperada, vinda de uma

experiência real e dolorosa, cuja incompreensão se dá por uma confusão de línguas entre o

adulto e a criança, entre a linguagem da ternura da criança e a linguagem da paixão do adulto.

A linguagem da ternura está na ligação da má compreensão do adulto de alguma

manifestação erótica da criança, tomando-as como semelhantes às manifestações da

sexualidade de um adulto. Daí a confusão, pois enquanto as primeiras permanecem no nível

da ternura unicamente, a interpretação do adulto encontra-se no nível genital ou da paixão

(HERZOG e FERREIRA, 2015).

O trauma se constitui em dois tempos intrínsecos e distintos: O primeiro ocorre no

momento do abuso da criança pelo adulto, motivado por sua posição de poder ou impunidade.

Em seguida, o ato da “desautorização” (desmentido ou descrédito) esse sim, é o definidor da

constituição do trauma.

Desautorização, na traumatogênese de Ferenczi se iguala à “negação”, e, em alemão,

Verleugnung pode ser traduzido, como vimos anteriormente por: desautorização, desmentido

ou descrédito, sendo elemento fundamental na constituição da cena traumática. Em

Kupperman (2017), observamos a preferência do termo “desautorização”, no sentido de

enfatizar a dimensão de desapropriação subjetiva promovida no sujeito em estado de

vulnerabilidade pelo encontro traumático (ibid., p. 51).

Nesse segundo tempo, no qual a confirmação do trauma ocorre na dúvida do

acontecimento traumático, são prejudicadas as percepções internas da criança, gerando uma

paralisia em seus sentimentos, de modo a fixar a subjetividade na unilateralidade dos fatos e

promover uma incapacidade de raciocínio.

A busca por apoio de um adulto, para confirmação ou para dar sentido ao episódio

produz um processo desestruturante, reproduzindo a violação sofrida. Devido ao abandono

forjado à criança que, desamparada, perde suas referências de proteção e da certeza do choque

140

sofrido na ação de outro adulto. Para Ferenczi, o trauma está relacionado a um motivo externo

e real, um elemento exógeno capaz de mexer e modificar o psiquismo (FAVERO, 2009).

Na teoria de Ferenczi, os fatores externos que impõem mudanças no aparelho

psíquico ganham relevo. Em lugar de fatores endógenos, é sobretudo o meio social

que perturba o aparelho psíquico, desorganizando-o. O trauma depende de uma falha

na relação entre o sujeito e o outro. Valorizando a alteridade na constituição do

trauma, Ferenczi se mantem fiel ao que sua clínica lhe revelava: o trauma é

fundamentalmente o resultado da ação de um outro sobre aquele que é traumático

(FAVERO e RUDGE, 2009, p. 170).

O trauma desestruturante, promovido por um fator exógeno, causa modificação do

psiquismo e é um elemento basilar para o sofrimento psíquico. Entra nesse cenário a confusão

de línguas, o desmentido e a clivagem como respostas a uma situação intolerável na relação

com o ambiente e a cena traumática.

Essa configuração traumática em Ferenczi traz o não representável: aquilo que não

pôde ser inscrito, impedindo o recalcamento, pois, através do desmentido, que força a criança

à não simbolização, abre-se o caminho para o empobrecimento do eu (HERZOG e

FERREIRA, 2015). O trauma desestruturante, de origem exógena, portanto, é um mal não

necessário e talvez evitável.

Na clínica, Ferenczi observa que no trauma desestruturante a repetição se daria não

por via representacional, mas, a partir da mudança nas técnicas, cujo paciente teria a

possibilidade de ter acesso à experiência traumática e, assim, a percebê-la e inscrevê-la na

cadeia associativa.

Em 1932, no texto confusão de língua entre adultos e a criança, Ferenczi elabora o

mecanismo de introjeção do agressor em consequência do traumatismo. Isso significa o medo

e a falta de defesas da criança, que se direciona a identificar-se ao seu agressor, fazendo este

desaparecer enquanto realidade externa, transformando-o em algoz intrapsíquico, e portanto,

no processo traumático, a criança segue mantendo a situação de ternura que lhe é peculiar,

justamente para preservar o agressor, muitas vezes, coincidente com uma figura de seu âmbito

íntimo e familiar.

Em analogia ao nosso trabalho, podemos compreender e reafirmar como esse

mecanismo traumático desestruturante vai acontecendo gradualmente desde a infância da

141

criança negra até provavelmente a fase adulta, diante de ataques e violência por sua cor de

pele. Desse modo, o que foi ignorado ou posto em dúvida ganha legitimação mais cedo ou

mais tarde como uma agressão racial injustificada. Entretanto, o desmentido pode se manter

oculto por algum tempo, nesse caso mantendo o traumatizado alienado ou em estado de

negação de si mesmo. No processo de alienação, podemos escolher ter a crença de que

vivemos uma sociedade pós-racista, por exemplo, e essa ilusão pode nos levar a impedir que

vejamos o impacto que a cor da pele tem em determinar nossos destinos.

A necessidade de compreendermos essas configurações traumáticas nos traz

autoconhecimento e reafirma a importância do poder do inconsciente e da influência externa

do trauma como fato social. Ferenczi nos traz uma visão abrangente da composição

traumatizante, compondo de elementos os desdobramentos do trauma e o funcionamento

psíquico diante de uma diversidade de situações possíveis.

Concordando com essa premissa, retomamos a concepção de trauma estruturante em

Ferenczi, na qual considera a existência de uma relação traumática e afetuosa com a mãe,

primeiro objeto de amor da criança. Essa percepção é caracterizada como uma vertente

positiva do trauma da sedução, responsável por dar organicidade psíquica ao sujeito, ou seja,

esse seria um trauma inevitável e, consequentemente, basilar na vida da criança.

Ferenczi (1924) valoriza a vertente estruturante do trauma, já que certa quantidade

de experiências sexuais vividas através de sedução sexual infantil funciona como

“proteção contra os caminhos anormais que o desenvolvimento é suscetível de

adotar” (Ferenczi, 1924/1993, p. 248). No entanto, o trauma de sedução só tem esse

efeito favorável se não ultrapassar “certo ponto ótimo” (Ferenczi, 1924/1993, p.

237). Assim, há um aspecto positivo do trauma, e nem toda experiência sexual

traumática adquire posteriormente um valor patológico para a criança (FAVERO e

RUDGE, 2009, p. 172).

O autor constitui o “trauma estruturante” como necessário e inevitável ao sujeito, por

afirmar que na relação entre mãe e filho – repleta de cuidados elementares para o

desenvolvimento saudável – ela o faz se sentir amado e o centro de tudo. Quando a criança

percebe esse sistema abalado, seja por outras tarefas ou esgotamento da mãe, isso suscita no

bebê sentimentos de prazer e desprazer, que provocam mudanças no seu aparelho psíquico

(FERENCZI, 1913).

142

Sendo assim, os traumas estruturantes, necessários ao desenvolvimento da criança,

seriam aqueles onde não ocorre o desmentido. Enquanto, os traumas desestruturantes teriam o

peso do desmentido como fio condutor do trauma e, consequentemente, a experiência

dolorosa e transfigurante no psiquismo por parte do adulto.

Para finalizar, faço minhas as palavras de Favero e Rudge (2009), em cuja exaltação

da clínica ferencziana, traduzem a importância da obra do psicanalista no cotidiano

contemporâneo. Ferenczi tem na clínica do trauma uma originalidade para o irrepresentável,

ele inova ao valorizar o meio e associar o campo transferencial à experiência traumática.

Responsável por abrir frentes importantes na comparação à situação analítica ao trauma

infantil, no qual “adverte que o analista ocupa o lugar do adulto na cena traumática sempre

que não admite seus erros e não se mostra apto a receber críticas (FAVERO e RUDGE, 2009,

p. 173) ”.

Ainda nessa busca, veremos a seguir o papel da educação diante do desafio de moldar

corpos e mentes em um espaço multicultural e inconscientemente dominado por neuroses e

clivagens causadas pelos processos educacionais. Como a psicanálise, a lei e a pedagogia

podem, em conjunto, favorecer mentes saudáveis e livres dos múltiplos sofrimentos psíquicos

recalcados pela forma de ensinar, muitas vezes, traumática e também racista?

Teremos como fio condutor as relações raciais no ambiente escolar, focando na

observação de como a escola se prepara para favorecer ou não essas relações, valorizando ou

destituindo os conhecimentos dos alunos, e, principalmente, fazendo-os acreditar em uma

realidade cheia de dogmas taxados como suficientes para treiná-los para a vida em sociedade.

3.3 Os docentes e a desordem de uma Pedagogia pedante; ou Os docentes e a

pedagogia da desordem.

A educação recebida na escola nos molda e transplanta regras e modos de convivência

no meio social. Pretendemos problematizar sobre a maneira como nos são passados os

conhecimentos, e quem os transmite, nos indagando como a pedagogia moderna tem guiado

143

as demandas sociais e a flexibilidade ou inflexibilidade das normas de convivência e

tolerância ao outro.

Quais elementos o docente apresenta de sua formação ou, o que faltou nessa formação

para que sua prática seja, no fundo, racista?, Esse processo se impôs como significante natural

que pode originar sofrimentos psíquicos inconscientes devidos aos princípios educativos

impróprios advindos de uma cultura perversa.

(...) muitos sofrimentos psíquicos inúteis podem ser atribuídos a princípios

educativos impróprios; e, sob o efeito dessa mesma ação nociva, a personalidade de

alguns entre nós tornou-se mais ou menos inapta para desfrutar sem inibição dos

prazeres naturais da vida (FERENCZI, 1908, p. 39).

A pedagogia é a arte de guiar aquele que demanda por conhecimento. De forma

sistematizada, organiza e dilui o conhecimento com conta-gotas, veiculando a aprendizagem

em suas múltiplas habilidades, seja oral, escrita sensorial, abstrata ou exata.

Para que isso aconteça, é necessário despertar a curiosidade e o desejo do aluno em

aprender, em contrapartida, frequentemente se despreza o que a criança traz consigo. Esse

processo assemelha-se ao ofício do artesão com o barro, em que, através de seu equipamento,

dá a forma que deseja a seus vasos e adornos.

Segundo Ferenczi (1908), as obras de Freud podem nos convencer que a educação

defeituosa é não só a origem de defeitos de caráter, mas também de doenças que constituem a

base de uma cultura composta por diversas neuroses. Não obstante, a pedagogia é um

instrumento de ensino utilizado por nós, docentes arraigados em nossas próprias neuroses e

nossa cultura. Nesse processo é importante fazermos uma autoanálise para promover, de

maneira equânime, o ato de ensinar com prazer e gerar o mínimo de impacto em quem será

ensinado.

O fio condutor dessa discussão se move em compreendermos como a pedagogia e a

psicanálise podem revelar meios menos traumáticos (não desestruturantes) de educação para o

sujeito. Seus sofrimentos psíquicos, quando oriundos de relações raciais desiguais, podem

encontrar condições de superação, permitindo-os se estabelecerem como indivíduos com

pensamentos libertos do julgo das discriminações raciais e de toda natureza.

144

A pedagogia tradicional à época de Ferenczi (1908) tem como um dos seus erros mais

graves “o recalcamento das emoções e demais representações. Poderíamos dizer que a

pedagogia cultiva a negação das emoções e das ideias” (p. 40). Quando educadores assumem

a postura de detentores exclusivos do saber e não escutam os gritos de dor ou anseios

inconscientes dos outros, a pedagogia se torna um mecanismo de supressão que impõe regras,

com uma postura de podar sonhos, desejos e diversão no que é simples, da natureza infantil

do educando. Essa vertente disciplinar e mais severa da pedagogia ainda é presente em nossos

dias.

É difícil definir o princípio que a rege (a pedagogia). É com a mentira que ela mais

se aparenta. Mas ao passo que os mentirosos e os hipócritas dissimulam as coisas

para os outros ou então apresentam-lhes emoções e ideias inexistentes, a pedagogia

atual obriga a criança a mentir para si mesma, a negar o que sabe, o que pensa (ibid.,

p. 40).

Esse processo assemelha-se, conforme disse anteriormente, ao desprezo do que a

criança traz consigo para moldá-lo à maneira do docente ou das regras disciplinares da escola.

Nessa “mentira” que o reformula, muitos sentimentos são recalcados na trajetória educacional

amontoando-se a outras ideias recalcadas que se escondem no inconsciente e geram um

movimento contraditório interno em relação aos objetivos e as ideias conscientes.

Assim, desde os primórdios, a psicanálise está em desacordo com o método tradicional

coercitivo da educação no qual o recalcamento de ideias e sentimentos predomina, por não ser

considerada a melhor forma de neutralizar ações ou comportamentos reprimidos e não

sociáveis.

Uma educação repressiva e punitiva, como a que conhecíamos com castigos físicos e

vexatórios, engessava a criança e a tornava um adulto reprimido, recalcado e não atuante. O

sujeito fruto desse modo educativo, para Ferenczi (1908, p. 41), sofre de uma “cegueira

introspectiva”, uma vez que se torna alienado em sua própria realidade. Contudo, não só o

sujeito era prejudicado, mas, olhando ao redor percebemos que o agente responsável por

transmitir esse tipo de educação (o docente), sofria do mesmo mal e apenas reproduzia.

Recalque e desmentido, portanto, se combinam na produção de uma educação violenta e

classista.

145

Pensar a atuação docente em uma educação alienante é um contraste com o significado

político e social que ela possui. Se o professor tiver consciência de sua responsabilidade

social, e possuir conhecimento da situação em que vivemos – reféns de nossas frustrações,

neuroses e culpa, de nossa incapacidade de nos sentirmos completos – ele não será somente

um reprodutor de uma educação que nos castra e poda na busca da liberdade.

Freud (1909) acentua que a educação “só assumiu como tarefa sua, até o momento,

o domínio ou, mais precisamente, a repressão dos instintos; o resultado nada exibe

de satisfatório (...) Acaba-se de substituir essa tarefa por uma outra, a de tornar o

indivíduo apto para a cultura socialmente utilizável, pedindo dele o menor sacrifício

possível de suas próprias atividades (CIFALI e IMBERT, 1999, p. 13).

Se o que conhecemos como “educação” e suas normas dogmáticas criou um

paradigma responsável por uma desestabilização psíquica, como penso que subliminarmente

ainda acontece, então, precisamos nos inquietar, problematizar os benefícios desse modo de

educar que não transforma, mas, aliena sujeitos. Se a educação moderna, fruto da “Escola

Nova” e da importante influência libertadora freiriana, por outro lado, é em parte criticada

como permissiva e não tem dado conta de tornar as pessoas mais atuantes, é um sinal de que

ainda necessita ser modificada. Ou, então, hipótese ainda mais pertinente: se a pedagogia

libertária do século 20 denunciou e transformou a pedagogia punitiva de outrora,

infelizmente, esse processo não ocorreu de forma satisfatória, pois a sociedade, em sua

complexidade, não mudou. Se recebemos uma educação sujeita à incapacidade de sustentar-se

como ato libertador, como aceitar o fato da formação docente como eixo principal para

promover “transformação social”? A educação brasileira, até hoje calcada em dogmas morais

e religiosos e esvaziada em sentido, faz do professor, um agente reprodutor do recalcamento

de sentidos e da cultura que desperta neuroses parasitárias nos sujeitos, e, em profundidade,

escamoteia o egoísmo e o narcisismo individual. Esses “princípios”:

(...) pertencem à elite da nossa sociedade atual; é muito simplesmente um exemplo

para mostrar que a educação moral edificada sobre o recalcamento produz em todo

homem saudável um certo grau de neurose e origina as condições sociais em vigor,

em que a palavra de ordem do patriotismo encobre, de maneira muito evidente,

interesses egoístas, em que, sob a bandeira da felicidade social da humanidade,

propaga-se o esmagamento tirânico da vontade individual (...). A neurose e o

egoísmo hipócrita são, portanto, o resultado de uma educação baseada em dogmas

que negligenciam a verdadeira psicologia do homem (...), a hipocrisia, certamente é

146

um dos mais característicos sintomas da histeria do homem civilizado em nossos

dias (FERENCZI, 1908, p. 43).

Para Ferenczi (ibid.), é por via de uma pedagogia dogmática e de seus defensores que

se compõe a elite social. É através de uma tradição exploradora, oligarca e escravocrata

desmentida que estão os agentes que moldam a base de nossa educação e perpetuam a

castração psíquica que aniquila nosso pensamento e nos deixa domesticados.

Diante desses processos históricos, subjetivos e psíquicos agudamente escamoteados e

traumáticos, a psicanálise, no tratamento ou na formação docente, transforma-se em aliada do

cotidiano contra os processos de alienação oriundos do paradigma dogmático. Os

ensinamentos psicanalíticos se calcam na percepção profunda de olhar para si e para o outro.

Embora, a crítica de Freud e Ferenczi em relação à educação se remeta há outro

tempo e espaço, acreditamos que ela ainda seja atual na denúncia de pontos de retrocesso

ainda vividos por nós, educadores. Entendemos que a “pedagógica moderna” da Escola Nova,

piagetiana, freiriana, dentre outras, possuem diferenças importantes em relação à pedagogia

disciplinar, sendo assim, as críticas feitas por Freud e Fereczi possuem diferentes conotações

em relação aos trabalhos no enlace de psicanálise e educação nos dias atuais. Mas, quando

observamos as desigualdades existentes no ambiente escolar e a falta de sensibilidade de

alguns docentes, ainda permitida e incentivada em algumas escolas, castrando, alienando e

“castigando” a subjetividade, sentimos a necessidade de aproximar essas reflexões

psicanalítica e pedagógica, talvez, em um futuro trabalho. A escola é símbolo do nosso

primeiro desligamento com a família, por isso sua relevância no tipo de relações a serem

construídas, principalmente as de cunho racial e social, contando com a diversidade que lhe é

necessária.

As relações raciais no dia a dia das escolas têm ocorrido de maneira irreflexiva,

causando sofrimentos psíquicos no decorrer da vida adulta, com consequências graves para

quem as sofre. A falta de sensibilidade e de percepção do mal originário pela discriminação de

gênero, raça e social reverbera no silenciamento ou na revolta de sujeitos que encontram na

desautorização (desmentido) de situações traumáticas causadas seja pelo descaso ou pelo

despreparo docente.

147

De acordo com Carone e Bento (2014), podemos observar as situações e causas

complexas dos flagrantes vividos de racismo por crianças negras, principalmente nos espaços

escolares.

As professoras entrevistadas dizem se sentir muito desconfortáveis no momento de

abordar as questões raciais. Não compreendem a queixa ou tentam amortecer o

impacto da ofensa, para o aluno queixoso. Não se sentem à vontade para ensinar

fatos ligados às relações raciais: escravidão, discriminação, diferenças raciais

(CARONE e BENTO, 2014, p. 86-87).

Observamos a dificuldade de entendimento de que é possível a igualdade na diferença.

A percepção do diferente nem sequer é avaliada na maioria dos discursos docentes, que

pretendem modular as crianças da mesma maneira. “A posição racial não nomeada pode

excluir a possibilidade de alguém reconhecer-se e reconhecer o outro em termos de igual-

semelhante, igual-igual e igual-diferente” (ibid., p. 87).

A educação moderna e os docentes que nela estão, quando imbuídos de

autoconhecimento e consciência de sua personalidade, têm maiores condições de se

transformar. Segundo Freud: “o recalcamento de ideias é substituído pelo julgamento

consciente”, em outras palavras, o modo de apreensão da realidade pode ser modificado.

Segundo o autor: “incita igualmente a dominar entre os seus desejos aqueles cuja satisfação

poderia ofender os direitos de outrem, e a vigiá-los atentamente, sem negar a existência deles”

(ibid., p 44).

Ferenczi compartilha com convicção o quanto a sociedade é neurótica e assevera o

peso da contribuição da pedagogia na constituição dessa esfera doente da modernidade, na

qual estamos imersos. Egoísmo, hipocrisia, histeria, desconhecimento de si e indiferença são

afetos arraigados na sociedade. Esses fatores são perceptíveis desde a fase escolar e são

refletidos com ainda mais intensidade na vida adulta. Como é transferido de geração em

geração, acaba sendo aperfeiçoado com perversidade brutal ao longo do tempo.

(...) A educação numa posição estratégica determinante: ela age no próprio cerne da

contradição entre a “pulsão” e a cultura. Disso resulta ter a educação a

responsabilidade de assistir à “renúncia pulsional” que constitui o fundamento da

civilização e de avaliar por inteiro os efeitos destrutivos – neutralizantes – de uma

148

“limitação pulsional” excessiva de ideias culturais demasiado pesadas que levam as

pessoas a viver, “em termos psicológicos, acima de suas possibilidades”, numa

“espécie de hipocrisia” (CIFALI e IMBERT, 1999, p. 12).

Nas instituições escolares as desigualdades se encontram no currículo oculto e nas

relações entre crianças e adultos. O desconhecimento ou o descaso docente frente a situações

discriminatórias sob o prisma da violência no cotidiano, revela a influência de uma formação

docente taxativa na defesa da moral (ou mentira) social inibidora das satisfações pessoais.

À guisa de conclusão, nossa reflexão vai de encontro a uma possibilidade para

mudança de perspectiva e conhecimento si em contraste com a nossa realidade castradora e

hipócrita, adoecida pelo recalcamento de sentimentos, que, atrofiados, refletem uma

insatisfação interior identificada por múltiplos sofrimentos psíquicos nos sujeitos.

Usando as palavras de Sándor Ferenczi (1908) na Conferência no Congresso dos

Psicanalistas em Salzburgo, acerca de uma possível “cura” de nossa sociedade caracterizada

por ele mesmo como doente devido a uma cultura que dissemina diversas neuroses: “(...) o

remédio para essa doença da sociedade só pode ser a exploração da personalidade verdadeira

e completa do indivíduo, em particular, do laboratório da vida psíquica inconsciente que hoje

deixou de ser totalmente incessível, e o meio preventivo: Uma pedagogia fundada na

compreensão e na eficácia e não em dogmas” (p. 44).

3.4 Vinhetas escolares: a confluência entre o desmentido e o preconceito racial contra

o negro

Neste subcapítulo final, vamos abordar alguns episódios da vida cotidiana escolar que

envolvem as relações raciais e o debate dessa pesquisa acerca da dimensão dos encontros e

desencontros nessas relações. A análise desses episódios será realizada à luz da psicanálise

entorno da sua especificidade na traumatogênese ferencziana.

Antes vamos compreender o significado das vinhetas escolares, termo por vezes

entreposto nessa pesquisa, com intuito de ser utilizado como recurso para apreendermos o

desenvolvimento das relações raciais em uma possível “negligência” na área da educação,

seja entre alunos e/ou professores.

149

As vinhetas escolares foram pensadas especificamente nessa pesquisa para

exemplificar as relações raciais no campo da educação. Essa educação da qual sou fruto e

passei muito tempo sendo espectadora e personagem do descaso ou desconhecimento docente

em minha defesa ou na defesa de alguém. O tempo passou, me tornei uma atriz nesse cenário,

cujo desafio maior é se deparar com os elementos que contém todo ranço do racismo que vi

de perto, em minha infância e trajetória de vida, perpetuar o que um dia foi responsável por

me frustrar tanto.

Nos episódios e comentários expostos, podemos observar o quanto os casos não são

isolados. Haja vista a quantidade de trabalhos, pesquisas, manuais e trocas de experiências nas

quais se destacam episódios de racismo, preconceito racial e silenciamento envolvendo

configurações de traumas sociais sob a égide das questões raciais.

As vinhetas serão consideradas como contribuições à observação crítica cotidiana,

refletindo as funções à frente da carreira docente, cuja narrativa ora é escrita em primeira

pessoa, ora em terceira, justamente para enriquecer as descrições com os sentimentos vividos

e sofridos que as experiências suscitaram em mim como professora-pesquisadora.

Nossa intenção é mostrar esses casos diante da experiência profissional que possuo

nesses quase 10 anos de docência. Fatos presenciados, experienciados como testemunha ou

protagonista, que se tornaram índices motivadores para essa pesquisa.

Buscamos compartilhar esses fatos ficcionalizados com o intuito de contorná-los e

dominá-los, apontando falhas, acertos, desejos e possibilidades de ressignificação. Não mais

sozinha, divido essas memórias com o leitor cujo papel aqui é testemunhar as ranhuras na

subjetividade negra, e na fixação da branquitude que se estende com seus privilégios e

possibilidades de ascensão ilimitadas, por sua raça, cor e hipocrisia.

Com o intuito de ampliar nosso conhecimento, tomaremos como referência o trabalho

de Marcelo Pereira intitulado: A psicanálise escuta a educação: 10 anos depois, como um

norteador nesse caminho catártico de escuta e análise, que vai permear as vinhetas escolares

divididas com o leitor.

Em Pereira (2010), observamos as modificações atravessadas pela psicologia

educacional em diversos momentos da história da educação moderna, sua importância, no

início, quando a escola era frequentada por crianças de uma classe social única. Com a

150

abertura da escola para “todos”, a situação tomou proporções diferenciadas e abalou as

relações entre os alunos atingindo diretamente as questões culturais e sociais daqueles grupos.

Em analogia a situação educacional contemporânea, podemos compreender o quanto

esse contraste cultural, social e racial ainda abala a estrutura da comunidade escolar.

Profissionais despreparados, alunos com uma diversidade de problemas desde o tráfico de

drogas à fome, incluindo as novas configurações familiares, desmantelam os profissionais da

educação que parecem ter se formado em uma caixinha de tijolo milimetricamente esculpida e

despreparada para encarar o diferente.

A psicologia e/ou a psicanálise são aliados (ARREGUY, 2014) nos ambientes

escolares. Em vez de serem retirados da escola, os profissionais “psi”, sobremaneira de

orientação psicanalítica, deveriam ser valorizados e ter mais espaço. Observamos que as

grandes escolas particulares, em sua maioria, mantêm esses profissionais, que integram e

participam do planejamento e práticas escolares.

No ensino público brasileiro, psicólogos são praticamente inexistentes (ARREGUY,

2014). Quem sabe isso acontece por que os demais profissionais temeram o desafio de terem

que incluir as diferenças e compreendê-las em vez de excluí-las? Ou o poder público em sua

fábrica de cortar custos na educação e nos setores fundamentais ao cidadão, por má vontade

política decretaram a saída desses profissionais da escola por considerarem dispensáveis e

sem utilidade nenhuma?

Como o psicólogo poderia participar de toda essa mudança se o que lhe

demandavam era tão somente que testasse, diagnosticasse, discriminasse, tratasse ou

excluísse os indesejáveis? Eis o que se pode chamar uma demanda à “polícia

médica”. Quanto ao problema da ética, como o psicólogo poderia participar das

querelas educacionais, da vida da escola, das transformações sociais em torno dela

com os poucos instrumentos, métodos e práticas que a psicologia lhe oferecia ou,

pelo menos, com os instrumentos com que estava habituado a trabalhar? Eis o que

podemos chamar de impasse ético - que não deixa também de ser político

(PEREIRA, 2010, p, 28).

Nesse ponto faremos um parêntese acerca da configuração das relações internas na

escola. Crianças que se separam de suas famílias pela primeira vez e encontram-se ao lado de

“estranhos”, nesse encontro, cruzam suas culturas e vivências em um ambiente impessoal.

Além disso, não raro, a escola é composta por profissionais que, em determinadas

151

circunstâncias, mostram resistência em receber e compreender o novo, preferindo lidar com o

aluno ideal, e negar o real em sua frente.

O psicólogo seria um intermediário capaz de trazer para reflexão o que há de oculto

em meio às relações díspares e complexas na escola. Além de cultivar o elo entre escola e

família, devem atuar sem o receio de muitos gestores que se omitem em situações difíceis ou

de desconforto com alunos e seus familiares. A psicologia e psicanálise podem agir no seu

lugar de direito, no discurso, nas falas e nas relações que constituem as palavras, essas

merecedoras de análises e compreensão necessárias na relação com o outro, no âmbito

educacional.

Então, o discurso, as palavras e as falas – e não os comportamentos ou as sinapses -

- passam a ser alvo de análise desse sujeito, efeito das múltiplas relações sociais ou,

dito de outro modo, efeito do outro que o habita. Os discursos do sujeito, assim

como o discurso das instituições, tendem a produzir repetições, mesmices, pontos de

fixação, com o objetivo de conservar o igual, preservar a rotina e garantir sua

automatização. Porém o próprio discurso, através da fala de quem o profere, mostra-

se fendido, falhado, esburacado. Isso quer dizer que o próprio discurso não consegue

cristalizar-se. Ele requer sempre interpretação, pois guarda uma estrutura de

significação. É exatamente aí, nas emergências da falha do discurso que demandam

interpretação, que a meu ver a psicologia e a psicanálise podem encontrar seu lugar

(PEREIRA, 2010, p, 29).

O raciocínio de Pereira (2010) nos conduz à reflexão: se a escola é um lugar de fala e

discursos a todo instante, nada mais justo psicanálise ali estar como aliada em situações de

múltiplos conflitos tanto nas relações entre docentes e alunos quanto entre alunos e alunos. A

análise se materializa nos atos de fala e revela algo para além da rotina mecânica do ambiente

escolar, que encobre as falhas do discurso. “O trabalho da psicanálise é tentar ler, no sujeito,

um manuscrito estranho, desbotado, cheio de lacunas e comentários tendenciosos escrito não

com os significantes convencionais, mas com os que expressam o mais singular” (ibid., p,

29).

Vejamos situações cuja fala é redimensionada como uma falha de discurso capaz de

traduzir o efeito das múltiplas relações sociais e o que tem dentro dela, escamoteado por

repetições, pontos de fixação que camuflam uma significação por vezes preconceituosa,

racista e incômoda na relação com o outro.

152

EPISÓDIO 1: Uma escola pública em uma comunidade do Rio de Janeiro com cerca

de 250 alunos. O corpo docente é composto por duas professoras negras e as demais não

negras. Uma turma de primeiro ano do ensino fundamental, com 28 alunos, de idade entre

sete a oito anos, mista, multirracial e em sua maioria de meninas. A convivência parecia ser

tranquila. Não havíamos percebido, até então, diferenças entre as crianças que promovessem

desentendimentos, a não ser por disputa de lugares para sentar, ser o primeiro da fila ou

brincadeiras fora de hora em sala. Já era por volta do mês de maio e a turma aparentemente

formava laços fraternos e de companheirismo.

Em um momento de descontração, duas professoras conversavam na sala, enquanto as

crianças conversavam e brincavam umas com as outras em suas cadeiras. Havia sumido um

pertence de uma criança que começou a chorar na sala. A menina era negra com cabelos

crespos e estava sentada próxima a outra com semelhança nordestina de cor mais clara e

cabelos lisos. As professoras observaram e se aproximaram das meninas, quando a nordestina

gritou na sala entre as professoras para a menina que estava a chorar: “Ah para de chorar,

fecha essa sua boca preta e cala essa boca”. As professoras se entreolharam sem ação

nenhuma por alguns instantes, perplexas não sabiam o que falar ou fazer naquele momento

tão intenso e revelador.

A menina parou de chorar inesperadamente e a outra nos olhou sem receio de ter feito

algo errado, se calou e agiu normalmente como se não tivesse dito nada a sua colega de turma.

As professoras desconcertadas, depois de alguns instantes repreenderam a menina, mas sem

explicar a complexidade de sua fala. Aquele assunto não voltou mais à tona e a menina negra

desapareceu no enredo da história, não foi consolada, não conversaram com ela sobre o

ocorrido, não perguntaram como se sentia, não foi ouvida por ninguém.

COMENTÁRIO: A situação não foi questionada, nem problematizada, foi um “fato

apenas” que desapareceu no cenário daquela tarde. Assim como outros, abafados na escola,

que ecoam nos corredores e permanecem mascarados, seja na infância, adolescência ou na

fase adulta. A indiferença em relação a esse tipo de agressão gera adultos preconceituosos que

não refletem sobre suas ações e não ponderam seu discurso na relação com o outro. Outras

falhas virão e a consequência acaba sendo a transmissão desses matizes racistas para outros

membros da família e, assim, perpetua-se um ciclo discriminatório e desrespeitoso. “Fecha

153

essa sua boa preta”, parece ser uma falha na fala da aluna, mostra a indiferença que sente na

relação com a menina negra. O silêncio das professoras mostra o despreparo para a situação

que envolve as relações raciais.

Não reconhecer ou identificar o racismo na escola, contribui para a afirmação desse

fato como um problema específico dos alunos negros, e não como um problema

social que precisa ser derrotado por meio de práticas educativas direcionadas a

modificar esta mentalidade social e racial. Mais do que seguir práticas

discriminatórias, o que se verifica é uma insistente omissão da instituição escolar em

confrontar a questão (LAZZARINE, 2014, p. 45).

A partir disso, nos questionamos: - A escola se prepara para a resolução dessas

situações? Nos centros de estudos ou reuniões docentes, é debatida a temática das relações

raciais e sociais dentro da escola, em caso de conflitos entre os alunos? Seria o silêncio o

norteador mais propício nessa situação? E o aniquilamento do ocorrido entre todos os

envolvidos? Não seria esse o melhor momento para abordar esse problema e junto com as

crianças que vivenciaram a cena chegarem à conclusão do melhor desfecho para esse fato?

Quanto à psicanálise, provavelmente um profissional na escola poderia conduzir a

situação por outros caminhos, saindo da perplexidade e do silenciamento. Acredito que o

olhar para esse caso seria diferente. As professoras como intermediárias poderiam ter outra

conduta diante das crianças. Sabemos que as crianças nos surpreendem sempre, mas, como

profissionais é importante estarmos preparadas. O conhecimento da psicanálise pelo próprio

professor, na falta de um profissional específico, poderia auxiliar na compreensão da situação

delicada que se passou naquele momento, assim como outros que poderiam surgir.

EPISÓDIO 2: Era um Centro Integrado de Educação Pública (CIEP) situado na

Baixada Fluminense, uma turma de 35 alunos do sexto ano do ensino fundamental 2. O aluno

em questão estava na escola desde a educação infantil, era querido e conhecido por todos por

seu carisma e prestatividade. Há tempos sofria com xingamentos dos alunos mais velhos por

sua cor e forma física, um pouco acima do peso, mas, ele manteve o fato em segredo, talvez

por vergonha, ou por estar conseguindo lidar com a situação.

A diretora ficou sabendo das agressões ao menino bem mais tarde. Chamavam o

menino de “tolete” e ele estava muito constrangido com isso, pois o mal-estar já tinha

154

transpassado os muros da escola. A diretora questionou por que ele não procurou por ela ou

por um adulto antes para se queixar dos meninos que o xingavam, e ele nada respondeu.

Estava ali naquele momento, não sabíamos se ele já tinha falado com alguém e nada

foi feito. Naquele momento a diretora foi até a sala reuniu os meninos responsáveis pelo

constrangimento e brigou com eles. Disse que isso não era certo, perguntou por que eles

estavam tratando o menino assim, obrigou-os a pedir desculpas e os ameaçou: caso

acontecesse novamente, chamaria os pais na escola para resolver ou suspenderia os alunos.

O menino ficou em silêncio, assim como os meninos que o humilharam. Então, a

diretora liberou a todos para retornarem a suas salas. Nada mais foi falado, não conversaram

com o menino, nem perguntaram como estava se sentindo ou se mais tarde as coisas

melhoraram, apenas não tocaram no assunto.

No ano seguinte, todos se mantinham na escola e o caso parecia superado por todos.

Por volta do meio do ano, a mãe de uma menina negra, também aluna da escola, apareceu na

escola muito nervosa com a filha que estava com cara de choro. A menina estava no sétimo

ano, era o primeiro ano dela na escola. Passou por mim e outras pessoas que estavam no

corredor.

A diretora rapidamente recebeu as duas em sua sala, a diretora adjunta e a orientadora

educacional foram chamadas para a reunião, ficaram lá por um longo tempo, mandaram

chamar o menino que no ano anterior havia sofrido com xingamentos por alunos mais velhos

e a reunião se estendeu ainda mais.

Precisei voltar para minha sala, não observei o final da reunião e o desfecho dela. Uma

semana depois, em nosso conselho de classe soube que a mãe e a menina vieram pedir a

diretora a transferência da escola ou a resolução imediata daquele problema, pois sua filha não

queria frequentar mais a escola, já que estava muito constrangida. Estava sendo ridicularizada

na escola e na rua sendo chamada de “tolete e toletinho” onde ela estivesse, inclusive sendo

seguida até a sua casa por um menino que insistentemente permanecia com os xingamentos à

garota.

Não ficamos surpresos por esse fato, sabíamos que eram frequentes casos de racismo

naquela escola e nada era feito a respeito. Nossa surpresa foi descobrir as ações partiam do

menino que um ano e meio antes sofria com o mesmo xingamento.

155

O menino que conheceu de perto a dor do escárnio por sua cor, agora “revidava”

fazendo o mesmo com uma menina negra, que também não suportou o preconceito racial na

escola. Segundo a diretora, o menino foi duramente advertido, e lembrado que passou por

situação semelhante na frente da mãe e da menina. Como na situação anterior, o silêncio da

menina e do menino imperaram. A mãe saiu da escola com a certeza dada pela diretora que o

fato não iria se repetir, e as coisas voltaram ao “normal”.

COMENTÁRIO: Podemos observar o quanto o silêncio se torna comum nesse tipo

de situação. A gestão, os professores, os alunos se silenciam, como se esse fosse o remédio

para a resolução dos problemas raciais na escola, situação rotineira, parece não incomodar. “O

silêncio e a omissão sobre a questão étnica parecem apagar o problema. É como se a

discussão sobre ele fosse capaz de afetar a vida. E só existisse a partir do momento em que

dele se falasse” (CAVALLEIRO, 2000, p. 56).

Esse modo de agir incomoda e persiste nas escolas, deixando dúvidas nas crianças e

adolescentes que esbarram no silêncio. Os adultos não conseguem lidar com o problema e a

solução é ignorar, não dar margem para discussão e esclarecimento sobre o assunto, pois as

pessoas “pensam” que aquilo vai passar sem deixar sequelas psíquicas nos envolvidos.

O comportamento dos adultos em relação à criança que sofreu o traumatismo faz

parte do modo de ação de psíquica do trauma. Eles dão em geral, e num elevado

grau, prova de incompreensão aparente. A criança é punida, o que, entre outras

coisas, age também sobre a criança pela enorme injustiça que representa. A

expressão húngara que serve para as crianças, “katonadolog” (a sorte do soldado),

exige da criança um grau de heroísmo de que ela ainda não é capaz. Ou então os

adultos reagem com um silêncio de morte que torna a criança tão ignorante quanto

se lhe pede que seja (FERENCZI, 1934, p. 127. grifos meus).

O silêncio não acontece por acaso: é um elemento que fundamenta o trauma e torna

cúmplices aqueles em volta que não defendem a criança ou a manipulam mentindo para ela,

entoando pouca gravidade ao fato. Essa negligência consolida o trauma desestruturante na

criança. As consequências são o desprazer e a confusão psíquica que ficam na criança por não

encontrar explicação na situação.

156

A contribuição da psicanálise reitera a necessidade de analisar e apreender os

discursos não com julgamentos, mas na observação das lacunas das falas e até na ausência

delas. Pereira (2010) complementa: “A fenda do discurso não pode passar despercebida pelo

psicólogo orientado pela psicanálise (...). É visível como a escola precisa expiar sua falha,

individualizando uma conduta” (p. 30).

Em relação à situação da escola exige-se debate, intervenção e projeto de trabalho no

qual incluam os professores, a gestão, os alunos e a família. Não dá para ignorar o problema

com o silêncio apenas. Não basta reprimir severamente em um dia e esquecer o assunto no

outro. É preciso dar outro sentido, em palavras, para o racismo desmentido. Problematizar o

porquê de o aluno, após ser tratado de forma ofensiva, passa a tratar o outro com a mesma

violência, por exemplo, é uma das grandes questões que pode desmontar pensamentos e ações

arraigados em estereótipos e estigmas racistas.

EPISÓDIO 3: Ainda num CIEP na grande periferia do Rio de Janeiro, onde havia em

torno de 650 alunos. Uma diversidade incomensurável e nós, professores, muitas vezes sem

refletir em como podíamos melhorar a relação entre os alunos e amenizar as diferenças em

choque ali; algo que também nos desestabilizava quase que diariamente.

A diretora atua nessa escola há 27 anos, entrou como professora e foi galgando

diversos cargos até o posto atual. Ela é uma mulher negra muito bonita, solteira e dedicada ao

trabalho. A questão intrigante é o fato de não aceitar sua cor da pele, pois esconde-se na

aparência impecável que cultiva e na emblemática máscara da negra que se supera na

perfeição: precisa estar, continuamente, provando a todos que é a melhor em tudo.

Em sua equipe extraclasse (orientadores, coordenadores e secretaria), não admitia

negros, preferia pessoas de cor clara. Para estar ao seu lado na direção da escola como adjunta

tinha que ser loira (ela mesma dizia), na gestão em três mandatos já passaram três. Ela

costumava dizer que: “É bom ver e ouvir dizer que “no meio de tantas branquelas e loiras,

quem manda na verdade é uma preta”. Em outras situações, como reuniões ou momentos de

descontrações entre professores e equipe, ela dizia que a coordenadora e braço direito dela era

uma dama de companhia ao inverso, agora é a branquela que serve a negra (e sorria

orgulhosa).

157

Não achava aquelas “brincadeiras” de bom tom e comecei a interpretar aquilo de

outras maneiras, enquanto o restante do grupo reunido ria daquela fala, sem pensar a respeito,

aquilo me incomodava.

Lembro-me bem, em uma Páscoa, ela tinha o costume de pegar uma cesta, como as de

café da manhã, e colocava as lembrancinhas dos professores e ia de sala em sala nos dar um

mimo, no fim do dia. Certa vez, uma professora a comparou a uma camponesa com aquela

cesta andando pela escola. Foi um péssimo comentário: a diretora sentiu-se ofendida dizendo

que “nunca seria possível ela preta ser uma camponesa. E por acaso existiu alguma

camponesa negra” e demonstrou desconforto com a comparação.

Ela sempre se auto-afirmava acima de alguém, era uma exímia julgadora de valores,

inclusive aqueles fora do profissional e mais próximos à aparência e próximos ao senso

comum, como: “mulher gorda, porque não faz um regime”, “que ridícula, é tão velha para

usar o cabelo desse tamanho”, “quem precisa dela, tá se achando muito importante”, todos

esses comentários dirigidos às pessoas da comunidade escolar.

A maior parte do corpo docente da escola tinha histórias e desavenças pessoais com a

gestora. O desconforto era constante nas relações interpessoais, de modo geral, na escola.

Chegou ao ponto de parte do corpo docente refletir e decidir se continuaríamos compactuando

com as sandices da diretora ou se seguiríamos caminhos diferentes em outras escolas, a

procura de respeito.

COMENTÁRIO: Ética, respeito e práxis parecem perdidos ao longo dos anos e nas

passagens de cargo dessa profissional. Costumava olhar cada professora de cima a baixo

diariamente, reparando a vestimenta e a possível comparação ao look usado por ela. Teria que

se certificar que reinaria mais bem-vestida que os outros, além de fazer comentários absurdos

sobre as mães e até alunos. Com desprezo, colocava-se sempre acima de qualquer um, em

defesa de seu ego narcísico exagerado e desmedido.

Compreender o comportamento dessa gestora está longe de ser fácil. Ela parece sofrer

de algo do qual nem mesmo ela percebe. Mais uma vez, buscamos na psicanálise uma

maneira de rever a questão sob um prisma abrangente. A análise de suas falas revelam fendas

que deixam à mostra algo desregulado entre suas ações e subjetividade. Pereira (2010) nos

elucida o quanto se faz necessário pensar nas fendas discursivas, e nos atos da fala como

158

verdades sobrepostas. As intenções estranhas, entre outras situações incógnitas, cuja

fragilidade expõe as subjetividades como efeito de tais discursos.

De acordo com Gondar (2014, p. 01) os padecimentos mais frequentes na

contemporaneidade são os ligados à frágil composição do narcisismo, vindo de situações

“traumáticas primitivas”. Essa composição narcísica deficiente encadeia os “sofrimentos

narcísicos”:

Existe nesses sujeitos algum contorno, alguma unificação do corpo, mas essa

unificação não tem muita consistência; o contorno egóico é frágil e pode se

desvanecer com facilidade. É justamente essa inconsistência ou tendência ao

desvanecimento que está sendo apontada como característica do sofrimento

narcísico. (...) a esses sujeitos faltaria algo - um contorno, uma identidade, uma

unidade - e devido a isso eles padecem (GONDAR, ibid., p. 1).

Nessa perspectiva, observamos que o motivador do mau humor da diretora, pode vir

de um sofrimento narcísico, no qual ela precisaria de suporte subjetivo e emocional para

equilibrar suas relações interpessoais na escola e na vida. De fato, ela se queixava de não ter

amigos e que se sentia solitária. Quando não estava na escola, ligava para algumas pessoas de

sua equipe para conversar sobre trabalho e acabava por criticar quem ela podia. Assim era o

discurso de quem recebia seus telefonemas: diziam como era horrível ver a diretora

incomodá-los para falar mal de outros profissionais até fora da escola. Embora, a gestão das

escolas hoje seja eleita pela comunidade escolar, essa diretora vem de um tempo onde o cargo

era realizado por indicação de vereadores que detinham demarcações de escolas por bairros.

Cada bairro ou bairros era área de um vereador e ali certos sujeitos mandavam e

desmandavam, ajudando a perpetuar o racismo e outros derivados.

Os indícios do discurso são maiores se apontarmos para a aceitação de seu

pertencimento racial. Ser negra, nesse caso, pode revelar algumas situações traumáticas

antigas que deixaram marcas difíceis de esquecer, e que ainda são reproduzidas por seus atos

de agressividade e cobrança de si mesma para ser a melhor, ou ainda, atestam o enrijecimento

de sua personalidade indicando uma fragmentação derivada da clivagem.

A clivagem não incide sobre representações inconciliáveis com o eu, como o

recalque; ela age no plano do eu, conduzindo a sua fragmentação e até mesmo a

159

pulverização do eu. Como indica Ferenczi, há casos em que “a fragmentação” é a

única forma que o sujeito encontra de poder suportar uma dor impossível de ser

suportada, pois cada fragmento sofre por si mesmo; e a unificação insuportável de

todas as qualidades e quantidades de sofrimento são eliminadas (FERENCZI (1992,

p. 248) apud GONDAR, 2014, p. 2).

Isso explicaria o cerne da mudança de humor da gestora, que ora sorri e brinca

com uns e ora maltrata e ignora outros. O apoio de uma análise ou compreensão do problema

seria de muita valia para as relações na escola e consigo mesma. Esse caso poderia ter outro

final se a personagem aceitasse sua cor com orgulho e procurasse ajuda para livrar-se dos

fantasmas que carrega, devido às possíveis experiências traumáticas que possui.

EPISÓDIO 4: Em uma turma de segundo ano do fundamental um, havia duas alunas

em particular que dividiam muito a atenção da professora. Uma loira (única da sala) e outra

negra (como a grande maioria da turma, e da escola, composta por negros e pardos) num

contexto diverso.

O ponto central estava nas comparações e privações que ocorriam dentro da sala entre

as duas crianças em questão. A regra da turma seria que as crianças só podiam ir beber água

quando terminassem a primeira parte do exercício, isso deveria valer para todos da sala.

O problema surge quando a criança loira pedia para sair da sala, seja para ir o banheiro

ou beber água, ela não conhecia a palavra não, tinha acesso liberado. Enquanto, as outras

crianças conheciam bem a negação e, algumas nem tentavam, só pediam quando terminavam

o que foi determinado pela professora.

Entretanto, a menina negra sentia na pele a diferença de tratamento e predileção da

professora, pois, quando pedia para ir ao banheiro, a professora negava, mesmo se em seguida

a criança loira fosse, enquanto ela não. A situação piorava quando a professora dizia para a

menina negra assim: “Você já terminou seu dever? Claro que não né, você não é como ela (a

menina loira) e nunca vai ser. Você só vai poder sair se terminar tudo, entendeu? Não só

quando acabar a primeira parte como os outros”.

A professora enfatizava que a menina negra não era como a loira, contudo, não dizia à

menina negra em que sentido ela tinha que ser como a outra. Seja por causa da aparência, ou

160

pelo fato de fazer todo dever, as crianças sabiam que a menina loira podia sair mesmo quando

não terminava os exercícios.

A menina loira tinha acesso à mesa da professora por qualquer motivo, mexia em seu

estojo, em seus cabelos e parecia gostar do privilégio de estar ali quando desejasse. As demais

crianças mal podiam chegar à mesa: a professora perguntava o queriam e já os mandavam

sentar. Diferentemente da menina negra, quando solicitava a professora, ouvia assim: “O que

você quer? Desencosta logo da minha mesa, chega pra lá, você não sabe responder? Como, se

já te expliquei, se você fosse como ela, saberia”.

A professora auxiliava a menina loira nos exercícios com muita paciência, parecia

uma professora particular da menina. O restante da turma recebia uma explicação coletiva, ou

ela pedia a algum aluno que já havia terminado para auxiliar o outro com dificuldade. Via-se o

quanto aquilo era doloroso para a turma, embora, a menina negra parecesse ser a que mais

sentia a discriminação. Seu olhar denunciava o quanto se sentia inferior e confusa naquela

situação.

COMENTÁRIO: Como aprender algo se não desejava nem estar ali? Essa é questão

dominante nessa vinheta. A criança não consegue aprender porque ela não esquece os fatos

ruins que vive, infelizmente, decorrentes de sua cor. Quantas coisas as crianças apresentam

como lapsos como consequência do racismo?

Sim, são essas lembranças que futuramente estarão submersas no inconsciente dessa

criança. Provavelmente ela não se lembrará de forma tão dolorosa desses acontecimentos ou

essas lembranças vão doer tanto que, propositalmente, serão lembranças infantis encobertas

por outras mescladas ao sonho e em um nevoeiro sem alta definição, como um sensor de

autodefesa no inconsciente.

Para entendermos melhor, vejamos em Freud (1901) como se constituem as

lembranças infantis e as lembranças encobridoras na psique de um adulto em relação às suas

memórias de infância.

Vai igualmente contra todas as minhas experiências admitir que, nos acontecimentos

em que ela (a criança) é autora ou testemunha, a atenção da criança se dirija a si

mesma em lugar de se concentrar nas impressões vindas de fora. Isso tudo nos

161

obriga a admitir que tudo isso que encontramos nas assim chamadas recordações da

primeira infância não são apenas vestígios dos acontecimentos reais mas elaboração

posterior desses vestígios, que foi forçada a efetuar-se sob a influência de diversas

forças psíquicas que passaram a intervir a seguir. É desse modo que nossas

“recordações infantis” adquirem, em geral, a significação de “lembranças

encobridoras”, adquirindo semelhança digna de nota com as lembranças da infância

dos povos, preservadas nas lendas e nos mitos (FREUD, 1901, p. 56).

Essas lembranças, embora dolorosas fazem parte desse sujeito, o constituem como o

são. Escondidas ou encobertas por outras vivências, essas lembranças compõem a

subjetividade e as características de uma pessoa marcada, por exemplo, pelo racismo

estrutural ou institucional que ao longo de sua existência tem maltratado tantos sujeitos com

uma cruel frieza capaz de traumatizar.

As meninas dessa vinheta seguiram suas vidas, supostamente, uma com lembranças

doces de uma professora que a queria bem e a protegia e, a outra, ou as outras, com

lembranças que o tempo tratou de soterrar para não fazer sofrer.

E a professora como será que acabou para ela? Será que checou a consciência em sua

atitude preconceituosa com aquela turma e muitas outras? O que pensar de um profissional

que trata assim crianças que nem sequer sabem quem são e que ainda estão constituindo sua

subjetividade e seu modo de ver e entender o mundo que as cerca. Essas crianças se deparam

com uma realidade frustrante que paralisa e silencia diante do preconceito racial em uma

instituição escolar.

Que essa experiência sirva de exemplo para refletir como educadores, que tipo de

profissionais desejamos ser. E o quanto tendemos apenas a reproduzir as desigualdades que

vivenciamos como uma realidade única, nesse sistema hipócrita e tendencioso no qual

estamos cegos pelas aparências, segundo o impulso mórbido de expelir as diferenças como

um mal a ser banido de nosso meio.

O desencantamento no olhar de muitos alunos que sofrem com a discriminação nas

escolas - seja por sua cor, condição social ou gênero - é desencadeado nas condições

estruturais precárias e nas patologias de nossa Educação. Um dos fatores mais incisivos para

esse estado de coisas é o ambiente em que se estuda. Em Freire (2011, p. 68) podemos

entender a dimensão da importância da postura docente diante dos educandos: “Como

professor preciso me mover com clareza na minha prática. Preciso conhecer as diferentes

162

dimensões que caracterizam a essência da prática o que me pode tornar mais seguro no meu

próprio desempenho”.

Desse modo, chegamos à conclusão do óbvio, se fossemos educados para pensar

criticamente em nossas escolas de educação básica, buscaríamos com mais esperança novas

oportunidades. Vivemos conformados com o que o Estado nos oferece: somente migalhas. A

grande massa populacional mal sai da escola e assumem subempregos. A oferta é escassa e a

necessidade de um trabalho qualquer não deixa termos muitas escolhas. Uma educação de

qualidade com políticas públicas que garantissem uma boa formação e o acesso garantido a

todos os níveis de formação, ainda é um sonho. O que vemos é uma luta ideológica para

desmantelar a educação, com parlamentares defendendo o fim da Universidade Pública, do

investimento em pesquisa, buscando privatizar e pré-formatar toda a educação, de modo a

impedir do avanço da massa à condição de criticidade. O Brasil, de fato, nunca foi um país

voltado ao bem comum. A educação por aqui nunca foi universal. Lidamos com a pobreza e

vulnerabilidade de nossos alunos, com a evasão, com o trabalho precoce e a alienação política

e econômica.

A percepção que o aluno tem de mim não resulta exclusivamente de como atuo, mas

também de como o aluno entende como atuo. (...) Mas, devo estar atento à leitura

que fazem de minha atividade com eles. Precisamos aprender a compreender a

significação de um silêncio, ou de um sorriso ou de uma retirada da sala. O tom

menos cortês com que foi feita uma pergunta. Afinal, o espaço pedagógico é um

texto a ser constantemente “lido”, “interpretado”, “escrito” e “reescrito”. Nesse

sentido, quanto mais solidariedade exista entre o educador e educandos no “trato”

deste espaço, tanto mais possibilidades de aprendizagem democrática se abrem na

escola (FREIRE, 2011, p. 95).

Cada dia mais crianças e adolescentes levam seus anseios para a escola. Não existe

manual para educá-los ou e uma receita pronta. Entretanto, o papel do educador é crucial para

um ensino de qualidade e com equidade, especialmente quando se trata de atributos que

estabeleçam uma Educação cidadã. Não se faz isso sem formação humana.

A complexidade trazida pelos desafios de nosso tempo, nos mostra como é necessário

aprender os predicados invisíveis e visíveis que nos tornam mais preparados para nossa vida e

aqueles em nossa volta. É extremamente importante aprender o que é preciso saber, mas é

fundamental aprender o que é preciso.

163

EPISÓDIO 5: Em uma escola municipal de educação infantil em um bairro da zona

norte do Rio de Janeiro, as turmas eram compostas por 25 crianças, uma professora de

educação infantil e uma auxiliar de creche que servia de apoio aos cuidados das crianças

pequenas, em seu asseio e higiene.

O corpo docente era relativamente pequeno em relação ao composto de auxiliares. As

divergências se iniciavam pela desproporção entre professores e auxiliares e, principalmente,

pelas diferenças salariais que mantinham tais classes em constantes conflitos interpessoais.

Em uma das equipes, a professora da turma era negra e sua auxiliar uma mulher clara

e bem articulada. Do corpo docente, essa era a única negra. Para as crianças não havia

diferença de tratamento, ambas profissionais eram bem requisitadas pelos educandos sem

nenhum problema.

A situação mudava em relação aos pais das crianças, e até em relação aos demais

profissionais da instituição, que não reconheciam a professora como necessariamente

responsável pela turma. Como as crianças tinham entre três e quatro anos e demandavam

muitos cuidados, era muito comum a comunicação diária com os pais que tinham

recomendações a respeito dos filhos que passavam o dia inteiro na escola.

A questão surge a partir do momento em que os responsáveis pelas crianças não

procuravam a professora para falar sobre seus filhos. A procura na hora da entrada ou saída

era pela auxiliar que, nesse jogo, percebia o quanto os pais a requisitavam em detrimento da

professora da turma. A professora usava de toda sua educação e atenção aos pais, a auxiliar se

aproximava da conversa que observava e, automaticamente, a mãe da criança se direcionava à

auxiliar desprezando a presença da professora que se esforçava para manter-se no diálogo, em

vão.

Os pais não reconheciam a professora em seu papel e demonstravam falta de confiança

e indiferença na constituição da relação entre escola e família. Foi um período angustiante

para a docente que se sentia como coadjuvante nessa trama. Ela confidenciava conosco

(professores mais próximos a ela) suas preocupações, aborrecimentos nessa situação e

frustrações, dizia sentir-se impotente. A auxiliar de creche seguia com a mesma postura, e

mantinha-se à frente no pedagógico, tinha iniciativas que ultrapassavam o planejado feito pela

professora nas aulas e não mostrava interesse em trocar ideias e somar, ou seja, dialogar,

164

planejar juntas e serem parceiras; quando convidada a participar, se negava. Parecia preferir

ser o fator surpresa das aulas para os pais e alunos.

COMENTÁRIO: O que acontecia ali, era a existência de um papel social pré-

determinado para aquela professora. Sua cor a deixava em um lugar preestabelecido no qual

sua posição não era de destaque, mas, de subordinação a alguém. A branquitude se

fundamenta nesse princípio da aparência da cor, que lhe abre portas invisíveis capazes de, sem

esforço, dar acesso a condições favoráveis nas relações.

Para entendermos ainda melhor o conceito de branquitude, vejamos as considerações

em Liv Sovik (2009):

A branquitude é atributo de quem ocupa um lugar social no alto da pirâmide, é uma

prática social e o exercício de uma função que reforça e reproduz instituições, é um

lugar de fala para o qual uma certa aparência é condição suficiente. A branquitude

mantém uma relação complexa com a cor da pele, formato do nariz e tipo de cabelo.

Complexa porque ser mais ou menos branco não depende simplesmente da genética,

mas do estatuto social. (...) a branquitude é um ideal estético herdado do passado e

faz parte do teatro de fantasias da cultura do entretenimento (SOVIK, 2009, p. 50).

O lugar da subserviência, do negro subalternizado em afazeres e trabalhos, mantém a

cegueira que podemos observar nas pessoas envolvidas no caso descrito acima. As pessoas

não veem na professora a competência de ser o que é. Com formação adequada para o cargo,

sua capacidade de realizar bem seu trabalho não é considerada, pois ela é vista apenas pela

cor e os atributos estereotipados nela.

Trata-se de atributos massificados pelos meios de comunicação e pelo senso comum,

que reproduzem duramente a discriminação racial nos meios sociais. O valor da branquitude

se realiza na hierarquia e na desvalorização do negro, até mesmo quando “raça” não é

mencionada (SOVIK, 2009).

São esses papéis determinados, esses lugares existentes para o negro que o

aprisionam. A atitude para mudança tem que partir de nós, pessoas negras que não podem

mais aceitar com resignação o que está sendo imposto. A postura, a palavra tem que ser outra,

de empoderamento, alteridade e luta, sempre na luta.

165

À professora em questão, faltou atitude. Não podemos nos permitir passar por isso em

silêncio. A luta é contra esse silêncio. O discurso não precisa ser apenas em defesa de si, mas,

em obstinação contra os abusos de uma branquitude que se silencia em beneficio próprio.

Ter sido testemunha ou protagonista dessas vinhetas me fez ser o que sou e pensar

como penso. Não possuo profundo conhecimento da psicanálise para servir como base de

minhas ações, mas, posso refletir sobre esses acontecimentos antes e depois do contado. As

mudanças na percepção dos fatos, o ato da escuta em cada situação problematizada e,

principalmente, perceber as fendas que denunciam algo fora do lugar, que está desconcertante

em ambos os lados e incomoda, foi a coisa mais importante nesta pesquisa.

Entendemos o quanto, na contemporaneidade, problemas como os sofrimentos

narcísicos estão cada vez mais crescentes. Eles desencadeiam manifestações de

enclausuramento ou tendências coletivas em busca de “organicidade” dos que pensam ser a

causa de suas neuroses modernas, o fenômeno denominado por Freud de “narcisismo das

pequenas diferenças”.

A mídia divulga manifestações, em países como os Estados Unidos, do ressurgimento

de movimentos defensores da segregação racial, à custa de um contínuo genocídio da

população negra e do retorno ao apartheid declarado e autenticado na busca de legitimação

através de movimentos reacionários.

Movimentos como Alt-right48

, defensores da extrema direita, vêm se expandindo na

América do Norte e Europa; eles se articulam, sobretudo pela internet, não sendo necessária a

filiação formal. Agem através da provocação e debocham do “politicamente correto”, além de

seguirem o atual presidente americano Donald Trump, conhecido por sua posição de extrema

direita, em que abomina imigrantes, negros, pobres e a comunidade de lésbicas, gays,

bissexuais e transexuais (LGBT), ou seja, tudo que para ele reflita como ameaça ou

incomodo, estranheza ou o mais puro racismo.

48 Informações retiradas do site da BBC, em uma matéria do dia 23 de agosto de 2017, na qual reporta

as manifestações em Charlottesville. Onde ocorreram ataques de grupos de extrema direita ao movimento

antirracista m manifestação pública no bairro universitário onde pretendiam defender a retirada do campus

universitário de uma estátua de um general pró-escravidão que lutou na Guerra civil americana. A reportagem

faz um lumping pelos movimentos americanos que defendem a supremacia branca nos Estados Unidos e sua

expansão pelas redes sociais na atualidade, como um movimento assustadoramente em ascensão. Disponível em:

http://www.bbc.com/portuguese/internacional-40916727. Acesso em 25 de abril de 2018.

166

O Ku Kux Klan49

é outro movimento perverso que ainda predomina em 32 dos 50

países americanos e continua com um crescente número de adeptos. Surgiu nos Estados

Unidos ao final da guerra da Secessão (1861-65). Esse movimento foi instaurado por um

grupo de conservadores do Sul dos Estados Unidos revoltados pela derrota da guerra e o fim

da segregação entre negros e brancos no país, por defenderem veementemente a escravidão.

Agem como grupos paramilitares e lutam para negar os direitos civis a todos que sejam

considerados diferentes deles.

E, surpreendentemente, ainda podemos ver a proliferação desmedida do movimento

neonazista. Seus participantes se autodeclaram de extrema direita, eles se sentem seguros por

se apoiarem na Primeira Emenda da Constituição americana de 179150

na qual tem garantia à

liberdade de expressão política através de não importa qual discurso: seja liberal,

conservador, comunista ou até mesmo nazista, direito este amparados por resoluções judiciais

da Corte americana.

Partidos nazistas americanos se expandem nos Estados Unidos e unem forças com

seus milhares de adeptos fortalecendo o grupo na defesa de seus egos inflados e cheios de

insegurança, pois realmente acreditam ser dignos de tudo, enquanto para os demais, todas as

outras pessoas consideradas diferentes, ficam de fora, sem direito algum, a não ser servir e ser

exploradas, ou mesmo descartadas e assassinadas pelo aparelho de Estado.

Mais uma vez nos deparamos com a “branquitude” tentando de todas as maneiras

manter seus privilégios e o direito de serem “brancos” e livres, distantes em todos os sentidos,

dos seres de cor. Acreditam estarem certos e possuírem a “verdade absoluta”, defendendo sua

autoproclamada “superioridade” ao ponto de se sentirem invadidos em seu íntimo pela

presença de negros, indígenas, judeus, gays entre outros “indesejados” que possam aparecer

em seus “territórios”, de modo geral.

49 Conforme nota 48.

50 Primeira Emenda Da Constituição Americana - “O Congresso não legislará no sentido de

estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de

imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a reparação de

seus agravos.”. Disponível em: www.uel.br/pessoal/jneto/gradua/.../ConstituicaoEUARecDidaPESSOALJNETO.

Acesso em junho de 2018.

167

De acordo com o documentário Eu não sou seu negro51

que retrata a vida e a obra de

James Baldwin (2017), compreendemos como o direito de igualdade foi sendo conquistado

através de muita luta e ainda é, embora saibamos que esse direito não foi plenamente

conquistado. Isso constitui a maior vergonha da América em seu histórico escravagista: a

negação dos direitos civis às comunidades negras.

No Brasil os negros não foram integrados à sociedade após a escravidão, e isso gerou

uma exclusão constitutiva do capitalismo colonial, sendo perpetuada de geração em geração

até os dias de hoje. O documentário de Baldwin traz à tona toda a truculência de uma história

inacabada, com vontade de retornar e manter a desigualdade, quando observamos o avanço

desses movimentos pró-segregacionistas. Em termos globais, trata-se do retorno do racismo

recalcado que se repete compulsivamente num âmbito político e econômico de dimensões

planetárias (ARREGUY et al., 2018).

A realidade atemporal mostrada no documentário remonta à dor em nossas memórias

não esquecidas com o tempo. Em uma dissimulada democracia que tenta legalmente uma

possível, mas longínqua aceitação, negros e negras continuam morrendo e sabemos que

nossos algozes só descansam quando o combate se encerra com nosso decesso. Baldwin

(2017) também sabia disso, porém, como ele próprio dizia e, a partir dele, também defendo

esse pensamento e digo: “Não posso ser pessimista, porque estou vivo. Sou obrigado a ser

otimista”.

Embora, saibamos quão difícil tem sido viver em uma sociedade capitalista e desigual

ao extremo, observamos que o avanço de nossas perspectivas para uma melhora tem nos feito

agarrar a mais tênue linha da utopia e esperança na humanidade. Em MV Bill (et al., 2005)

temos uma passagem que reforça essa necessidade: “Utopias são tipos ideais regulatórios,

irreais, inexistentes, porém úteis como bússolas, que nos ajudam a descobrir para onde

apontar nossos desejos” (p. 85).

Temos em James Baldwin e em tantos outros militantes e intelectuais negros

comprometidos com a abominação desastrosa do racismo e da injustiça mundial, o ânimo que

51 Magistral documentário Eu não sou seu negro (2017), retrata a vida e obra de James Baldwin,

reconhecido romancista, ensaísta, dramaturgo e militante negro e sua obra inacabada o livro: Remember This

House, no qual relata a vida e a morte de três amigos de Baldwin: Medgar Evers, Malcon X e Martin Luther

King, realizado pelo diretor Raoul Peck lançado em 2017. Disponível em: https://youtu.be/Nt1qqzVhhBM.

Acesso em 23 de agosto de 2017.

168

nos faz buscar forças para continuar na luta do povo negro em novos movimentos sociais

contemporâneos. Complemento o raciocínio seguido de nota:

Se para mim, a um certo momento colocou-se a necessidade de ser efetivamente

solidário com um determinado passado, fi-lo na medida em que me comprometi

comigo mesmo e o meu próximo em um combate com todo o meu ser, com toda a

minha força, para que nunca mais existam povos oprimidos na terra. (...) A desgraça

e a desumanidade do branco consistem em ter matado o homem em algum lugar.

Consiste, ainda hoje, em organizar racionalmente essa desumanização. Mas, eu,

homem de cor, na medida em que me é possível existir absolutamente, não tenho o

direito de me enquadrar em um mundo de reparações retroativas. Eu, homem de cor,

só quero uma coisa: Que jamais o instrumento domine o homem. Que cesse para

sempre a servidão do homem pelo homem. Ou seja, de mim por um outro. Que me

seja permitido descobrir e querer bem ao homem, onde quer que ele se encontre. O

preto não é. Não mais que o branco. Todos os dois têm de se afastar das vozes

desumanas de seus ancestrais respectivos, a fim de que nasça uma autêntica

comunicação (FANON, 1983, p. 186-189).

E, então, vemos o quanto o desejo de aniquilar esse mal interposto pelo sistema

capitalista, tão massacrante e indigesto entre nós, foi ganhando força. Embora não tenha tanta

visibilidade midiática e aceitação pela branquitude, a constituição de novos movimentos

comprometidos com os ideais como já pregados por Fanon, Aimé Cesaire Baldwin, Steve

Biko, Luther King, Malcon X, Angela Davis, Abdias Nascimento, Mbembe, entre tantos

outros, se unem a uma juventude capaz de mostrar o quanto estão dispostos a lutar pelo fim

do racismo e do apartheid irracional.

Por sua vez, no sentido de compreender essa renovação da luta antirracista, veremos

como exemplificação o movimento norte-americano Black Lives Matter52

(As vidas dos

negros importam), fundado em 2013 durante um protesto contra a soltura de um vigilante

(branco) de bairro que assassinou um jovem negro de 17 anos nos Estados Unidos.

Desde então, o movimento cresceu e seus ativistas buscam manter o movimento vivo,

convocando manifestações em todo o país. O grupo se declara como movimento negro de

esquerda, fundado por três ativistas sindicais negras, Alicia Garza (diretora da Aliança

Nacional de Trabalhadoras Domésticas), Patrisse Cullors (diretora da Coligação contra a

52 Para maiores informações sobre o movimento negro Black Lives Matter acessar:

https://www.geledes.org.br/o-movimento-black-lives-matter-organiza-se-e-procura-definir-se-politicamente/.

Acesso em 26 de maio de 2018.

169

Violência Policial em Los Angeles) e Opal Tometti (ativista pelos direitos dos imigrantes),

que com muita garra e obstinação lutam contra injustiças raciais e de gênero.

As reivindicações vão além da denúncia contra a repressão policial a negros, mas

também, pelas modificações do modo de vida da população negra e contra a privação dessa

parcela da sociedade que ainda tem negadas as condições básicas para sua sobrevivência e

dignidade. Assim, o movimento avança e continua lançando campanhas de combate às

injustiças raciais.

Seu alcance vai além do território norte-americano, devido à ampla divulgação e

aderência através das redes sociais, tornando o movimento acessível e possível de acordo com

as disposições internacionais, principalmente nas mídias alternativas. O objetivo central é a

defesa da vida dos negros em seu mais amplo aspecto. É pelo fim da banalização do genocídio

do povo negro e a confirmação de que tudo isso ainda acontece com legitimação da violência

de Estado.

O movimento é dirigido por pessoas que conhecem a história do movimento negro

americano e internacional. Estão preparadas com teoria e prática para lidar com autoridades

que manifestam injustiças contra negros e pessoas em situação de vulnerabilidade. As

fundadoras estão especialmente engajadas em multiplicar seus saberes e envolver mais

pessoas nessa causa dando visibilidade e alertando o valor da vida da população negra.

No Brasil, o movimento negro tem uma trajetória aliada à influência do movimento

negro dos Estados Unidos com um intenso histórico de lutas e conquistas. A resistência contra

o racismo esteve sempre presente e as articulações contra a enraizada desigualdade racial

contou com expoentes desde a colonização.

A diferença brasileira é o fato de que o Estado desvia as questões raciais para as

sociais, em uma tentativa de inibir uma discussão mais profunda. Falar de racismo brasileiro

incomoda e transforma quem fala em insolente. A intenção seria mascarar e camuflar ao

máximo essa ideia, e, para isso, a grande mídia lobbista é um trunfo poderoso usado pelo

Estado brasileiro.

Até hoje, o Brasil fala sem pudor das diferenças abissais entre classes. São

constantes as denúncias relativas às desigualdades socioeconômicas, ainda que não

se faça nada a respeito. A mídia as acolhe sem maiores problemas. Mas ai de quem

ousar mencionar a cor da desigualdade. A cor é o não dito, tanto quanto o gênero

havia sido durante séculos. “Nós não somos como os Estados Unidos”, dizem os que

reagem às tentativas de colocar as cartas da cor na mesa. Denunciar o racismo é

170

quase ser antibrasileiro, é quase impatriótico. Há, sim, racismo, admitem, mas é

diferente, completam, o que exige políticas também diferentes, concluem. (...) Como

não haveríamos de ser diferentes, ainda que o argumento da diferença não falha em

outros campos, como o econômico? (...) dessa diferença parecem dizer que se

caracteriza pela docilidade, pela moderação. Ou seja, teríamos uma espécie de

racismo doce, cordial (ATHAYDE, [et al.], 2005, p. 87).

A interferência do Estado instaurou um sistema paternalista tão degradante na

sociedade brasileira capaz de refletir esse sentimento a respeito do negro: a cordialidade e a

resiliência em relação aos maus-tratos raciais sofridos em seu cotidiano por séculos (vide

PEREIRA, 2018). Essa é mais uma tentativa de “domesticação” da população negra no amplo

contexto da sociedade brasileira.

Entretanto, como mencionei anteriormente, as resistências dos movimentos sociais

ultrapassaram barreiras e despertaram gigantes no século 20, como Abdias Nascimento e

Florestan Fernandes, entre outros militantes que reconfiguraram a posição do negro brasileiro.

Nas palavras de Nascimento:

Não percebem que os negros brasileiros não necessitam de permissão dos brancos

para exercer seu inalienável e intransferível direito e obrigação não só de protestar,

mas de lutar contra todas as formas e disfarces do racismo, sinônimo de exploração,

opressão e desumanização (NASCIMENTO, 2016, p. 151).

A preocupação de cada dirigente de movimentos negros não era de agir somente, mas

a de “formar uma consciência negra” (PEREIRA, 2013). Utilizar a teoria com referências

africanas, americanas e até latinas, permitiu um empoderamento coletivo que atualmente

germina e se multiplica em nosso país. Intelectuais e militantes não se calaram desde então.

Enfrentam a invisibilidade que tem sido superada pelas redes sociais e os contatos em rede

que se multiplicam velozmente.

Hoje podemos ver grupos de mulheres e homens cada vez mais atentos às discussões e

organização de encontros, rodas de conversa e debates acerca das questões raciais,

problematizando situações cotidianas, que se tornaram cansativas demais para carregarem

sozinhos. A intencionalidade não é somente desabafar, mas encontrar meios para mudança,

digo, transformação de uma realidade que embora pareça translúcida, esconde a ponta afiada

da dor do preconceito e da segregação mascarada.

171

Essa pesquisa é uma dessas ramificações do movimento em busca por mudanças. A

determinação e o desejo de discorrer sobre a realidade de um racismo desmentido e

camuflado nas escolas e na vida de crianças e professores na atualidade é uma forma de

resistência. Não há espaço para o silêncio. Não mais. Esse é um espaço de luta. E luta

compartilhada para promover a transformação.

172

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nós lutamos por integração ou separação. Lutamos para sermos reconhecidos como seres

humanos. Malcom X (1925-1965).

A presente pesquisa discutiu as diversas maneiras da caracterização do racismo,

especialmente o brasileiro, cuja aparência, mutável e polivalente, possibilita-o ser único. O

contexto social do racismo foi analisado em uma variedade de aspectos, com o foco

especialmente no ambiente educacional.

O objetivo não foi de generalizar resultados, pelo próprio caráter específico do estudo,

mas, procurar identificar componentes e impactos do racismo brasileiro no âmbito da

educação de modo a confrontar tanto o contexto da formação docente quanto o cotidiano dos

educandos que sofrem algum tipo de preconceito ou discriminação racial nas escolas.

Especificamente, nosso trabalho se deu sob a perspectiva psicanalista e buscou modos

de compreensão do racismo a partir desse olhar. A psicanálise possibilitou um novo

significado ao racismo a partir da noção de “desmentido”, modificando a maneira de

entendimento e o modo como se constitui a dor sentida na discriminação racial. Dor tão aguda

que nos transforma, silencia e trava nossas reações.

A psicanálise nos ajudou a enxergar como as vicissitudes do cotidiano nos fazem

estigmatizar pessoas, situações e lugares. Conceitos como: narcisismo das pequenas

diferenças, ideal do ego e super ego, teoria do Desmentido, o estranhamento familiar e

alteridade, focalizaram o racismo sob outro ângulo, mostrando um mecanismo perverso e

seguro da destruição da subjetividade humana e das consequências traumáticas que dilaceram

o sujeito, deformam a imagem e a percepção da realidade.

Para entender o racismo referendamos muitos autores da psicanálise que atravessaram

os estudos sobre esse tema. Esses teóricos foram fundamentais para chegarmos a percepção

do racismo na cultura brasileira e percebe-lo através do paradoxo das especificidades do

desmentido: ao mesmo tempo que entendido como algo institucionalizado, o racismo

permanece em um grau como não reconhecido, considerado um assunto a não ser abordado

ou inexistente. Criando verdadeiras barreiras que a psicanalise durante a pesquisa nos ajudou

a transpor.

173

Falamos aqui de muros, ora invisíveis, mas presentes no cotidiano, ora sólidos como

barreiras aparentemente intransponíveis para a população negra e pobre. Vivemos sob a égide

do muro do racismo clivado e mascarado em nosso país, e nesse muro também nos

escondemos de quem somos por não reconhecer o valor de nossa cor. Observamos como

vivemos à sombra do muro, por ainda sermos separados como negros e brancos, pobres e

ricos. Assim como mencionam Athayde et al,. (2005, p. 85):

Eis o muro, antes casmurro e sintoma da incomunicabilidade étnica, agora

convertido como peça decorativa. Teríamos estilizado o silêncio. Estetizado o

deserto. Funcionalizado o obstáculo. Esterilizado a tragédia. Não é esse o destino de

tantas ideias incomodas? Cuidado, portanto. Conservemos o muro, muro, seja para

extrair-lhe as consequências e compreender-lhe as causas, seja para que não

percamos de vista a urgência de derrubá-lo. (...) O muro é estranho como são entre si

estranhos os que ele separa com sua soberba.

Os muros precisam ser derrubados como sugere a nota acima. Nosso objetivo nessa

pesquisa foi tentar encontrar caminhos que nos auxiliem a derrubá-lo. A psicanálise é

importante nesse processo de mudança da condição da população brasileira, que vai do “gozo

ao sofrimento associado à submissão”, embora ainda seja usado o preconceito para diferenciar

os estereótipos da mulher, do negro e do índio (SOVIK, 2009).

Nossa condição de educadores e pesquisadores se constitui no esforço para “derrubar o

muro” e com isso produzir a desalienação. Sabemos o quanto esse processo vai além do

respeito e da valorização adquirida pelo branco durante a convivência com o negro. Vimos em

Fanon (1983) que: “só há uma solução, a luta, a luta”. Essa luta vamos empreender e

conduzir, “não após uma análise marxista ou idealista mas porque, simplesmente, ele só

poderá conceber a sua existência através de um combate contra a exploração, a miséria e a

fome” (p. 183, grifos meus).

Fanon ressalta o motivo concreto que nos leva a luta. Ele toca na ferida e retrata o que

o estado e a sociedade reservaram para a população negra mal alfabetizada, discriminada e

afastada pela favelização, destino ao qual foi endereçada na organização territorial das novas e

grandes cidades.

Por esse motivo toda forma de luta individual e coletiva compensa. O processo de

conscientização de si impacta os outros, seja nas ações ou na postura, quando nos colocamos a

174

favor da equidade. Isso se constitui em força e autoestima, empoderamento e conhecimento

que podem ser passados para os outros. Mas, para contestar, é preciso primeiramente

conhecer.

Esse também se constitui um dos objetivos dessa pesquisa, buscar meios de

reconhecer o estado de alienação em que muitas vezes nos encontramos inconscientemente. E

a partir da compreensão desse estado alienante, encontrar elementos que deem base para

nossa libertação. Em nosso caso, acreditamos que a psicanálise nos fornece um elo para

fundar nossa percepção da realidade e, portanto, que nos auxilie na mudança.

A alienação intelectual é uma criação da sociedade burguesa. Considero sociedade

burguesa aquela que se esclerosa em formas determinadas, proibindo qualquer

evolução, qualquer descoberta. Considero sociedade burguesa aquela enclausurada

onde não é bom viver, onde o ar é pútrido, as ideias e as pessoas em putrefação. E

creio que um homem que se posiciona contra essa morte, é de certo modo,

revolucionário (FANON, 1983, p.184).

O estado de alienação nos foi imposto desde a colonização. Por isso, a necessidade de

lutarmos contra ela precisa estar viva e presente nos momentos em que expandimos o

aprendizado de nossa história para contagiarmos outros e continuar na luta. A recusa da

privação intelectual, social e econômica faz parte do processo desalienatório de nossa maneira

de viver frente ao racismo.

Privavam-me da objetividade científica pois o alienado, o neurótico era meu irmão,

era minha irmã, era meu pai. Sempre tentei revelar ao Negro que, de certo modo, ele

se anormaliza; ao Branco, que ele é, ao mesmo tempo, mistificador e mistificado

(ibid., 1983, p. 184).

Desse modo, observamos o paradoxo vivido pela população negra, que ora não

reconhece a si e sua história e conquistas, e em outro momento, vai buscar adquirir

autoconhecimento de seu corpo e sua cor. Assim como é necessário ao negro se reconhecer

como sujeito de direitos como qualquer um. Tenho como pessoa humana o direito de conhecer

minha ancestralidade, e descobrir o outro lado da história, não só o lado eurocentrado que me

é oferecido. Para tanto, preciso ter acesso às minhas raízes, minha origem e formação como

pessoa.

175

Esse direito me foi desconsiderado e retirado quando colonizaram minha vivência pela

cor. Não viram em mim qualidades ou características psicossociais ou minha emocionalidade,

viram somente minha negritude. A mesma inventada pelo branco europeu que criou o negro e

o africano enquanto sujeito escravizado.

Consequentemente, muito nos foi negado, ao longo de séculos. Sobretudo não

podemos nos acomodar em permanecer nessa situação. Por isso, o primeiro passo foi dado:

estar aqui já é o começo. Ameaçar o reinado eurocêntrico a tanto petrificado no ócio da

sabedoria canonizada branca é um ato subversivo e precioso.

Uma vez mais, Fanon (1983) nos faz lembrar das premissas que constituem nossa luta

pela conquista pela dignidade negra, que vão além da dicotomia imposta pela branquitude.

Para nós, negros, a luta contra o racismo transpõe o que alguns podem rotular como vingança

aos brancos. O racismo nos toca não na cor, mas, na condição de seres humanos e toda sua

significação inconsciente que nos faz ter a necessidade de conviver com o outro para crescer.

Descubro-me no mundo e me reconheço com um único direito: aquele de exigir do

outro um comportamento humano. Um único dever. Aquele de nunca renegar minha

liberdade através de minhas escolhas. (...) Não há mundo branco. Não há ética

branca, nem tampouco inteligência branca. Devo me lembrar, a cada instante, que o

verdadeiro salto consiste em introduzir à criação na existência. No mundo para o

qual me encaminho eu me renovo continuamente. Sou Solidário do Ser na medida

em que o ultrapasso (FANON, 1983, p. 187-188).

Quando nos despertamos para nossa cor e toda bravura e resistência contida nela, o

orgulho renasce e preenche o vazio da falsa noção de inferioridade ou superioridade.

Queremos ser e permanecer acima de tais estereótipos e mitos que circundam nossa existência

como uma doença vil e pegajosa.

Desejamos o fim desse muro entre a ideia equivocada de raça. Nossa proposta é a

atitude para mudança, social, racial, política e em diferentes ambientes, sejam eles: na

educação em geral, no interior das escolas, na relação entre alunos e professores, na saúde na

relação médico-paciente. Especificamente, contra a violência obstétrica e na falta de atenção

ao paciente que traz consigo uma medicina alternativa de seus ancestrais e é ridicularizado ou

ignorado pelos médicos, em um racismo institucional. Na segurança pública quando agem

com truculência contra negros e pardos nas “batidas” policiais, livrando a cara de brancos

176

com boa aparência, que possuem influência e usam a frase feita: Sabe com quem você está

falando?

E, finalmente, na política, quando silenciam aqueles dispostos em fazer a equidade e

acabam por impedir a eliminação da injustiça racial e social. Como no caso da vereadora

Marielle de Franco e seu motorista53

, covardemente assassinados em pleno centro do Rio de

Janeiro, “cidade maravilhosa”, em meio aos seus compromissos com a população que nela

acreditava, na defesa dos direitos humanos, sobretudo de negros, pobres, jovens. Até o

presente momento (quase dois meses após o homicídio) não encontraram o autor ou mandante

do crime. É sobre a “atitude” contra a morbidez de nossa cidade que estamos discorrendo este

trabalho. Atitude usada por Mv Bill (ATHAYDE et al., 2005, p. 84), homem periférico, que na

pobreza se formou e com atitude vinda do hip hop hoje exalta: Atitude é o avesso da

violência. Mesmo sendo mais abrangente que a linguagem verbal, incorporando as

modulações da coreografia e do grafismo criativo, a atitude cultua a oratória pública e a

riqueza lexical das rimas pontuada pelo ritmo.

Virgínia Bicudo (1945), em sua pesquisa visionária ainda no século XX, também

exaltou a palavra atitude como um dos expoentes de seu trabalho.

A atitude é um elemento da personalidade adequado para o estudo de relações

raciais. Sendo atitude determinada pela natureza original do homem e pelas

condições sociais em que vive, é necessário distinguir entre atitudes individuais e

atitudes sociais. (...) As atitudes, representam os aspectos estáveis e organizados da

personalidade e tendem a persistir enquanto funcionar bem e permitir a conduta para

proceder de um modo satisfatório. Evidencia-se a profunda significação das atitudes

no processo de interação social. Não menos significativo é o estudo das atitudes

sociais para a investigação de mudança social. Consoante as observações de Park

(1931, p. 17), as mudanças sociais começam com as mudanças nas atitudes

condicionadas pelos indivíduos, operando-se posteriormente mudanças nas

instituições (BICUDO, 1945, p. 63-64).

Por nossa vez, como norma para confrontar os desafios implícitos nas situações

descritas nas páginas precedentes, evocamos a “atitude” como chave mestra para a

53 Sobre o caso do assassinato da vereadora Marielle de Franco e o seu motorista Anderson no Rio de

Janeiro, ver nota de imprensa disponível em: http://www.jb.com.br/rio/noticias/2018/03/15/policia-suspeita-que-

vereadora-marielle-franco-do-psol-tenha-sido-executada/ . Acesso em 23 de março de 2018.

177

transformação social possível a nós. Que a alteridade permeie nossas atitudes para

alcançarmos a equidade em nossa sociedade até agora tão injusta e fugas.

Em suma, dito isso, esta pesquisa contribui para uma reflexão sobre o racismo no

Brasil e as formas em que é possível combatê-lo. Preencherá uma ambição essencial na sua

elaboração, principalmente, se alcançar pessoas distantes do âmbito universitário e espaços

institucionais de atuação de pessoas que lutam para transformar a realidade apresentada de

forma vil na educação escolar das crianças e jovens e representada nas estatísticas.

As mesmas estatísticas que descrevem a vida de negros mortos em conflitos urbanos,

ou quando não são bem-vindos em lugares frequentados majoritariamente por brancos, e

tantos outros índices, em que os negros, por falta de oportunidades oferecidas por um

mercado de trabalho caracterizado por um perfil excludente, oscilam do comércio ambulante

ao tráfico de drogas: fatos observados de perto por mim na comunidade em que vivo.

As autoras e autores mencionados nesta pesquisa nos deram elementos suficientes para

despertar e continuar nesse caminho, para, coletivamente e individualmente, buscar a

mudança que tanto procuramos em nós e no outro. Espero que este trabalho auxilie o leitor

nesse profícuo encontro do não nomeado ao significado do que nos toca inconscientemente, e

por vezes preferimos manter guardado com receio de não saber o que fazer.

Tal horizonte procura fomentar, de modo coerente com esse campo de estudos,

ponderações que possam configurar-se como caminho a ser mais explorado, desafiado e

instigante no combate ao racismo nas escolas, Uma leitura que possa propiciar a outros

professores, pesquisadores e pessoas interessadas por esse tema, processos de reflexão que

permitam construir uma escola (e sociedade) mais justa e equânime, coadunada com a

realidade multiétnica e cultural brasileira.

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