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A forma de Dziga Vertov

Date post: 22-Jan-2023
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Ricardo M. Geraldes – Aluno nº 34420 1 História do Cinema – 1º Semestre 2013/2014 Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa A Forma de Dziga Vertov – Uma Breve Análise de O Homem da Câmara de Filmar Curso: Ciências da Comunicação Cadeira: História do Cinema Docente: José Manuel Costa Discente: Ricardo Martins Geraldes, Aluno nº: 34420
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Ricardo M. Geraldes – Aluno nº 34420 1

História do Cinema – 1º Semestre 2013/2014 Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa

A Forma de Dziga Vertov – Uma Breve Análise de O Homem da Câmara de Filmar

Curso: Ciências da Comunicação

Cadeira: História do Cinema

Docente: José Manuel Costa

Discente: Ricardo Martins Geraldes, Aluno nº: 34420

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Este trabalho escrito foi realizado no âmbito da unidade curricular História do

Cinema e nele iremos compor uma análise cinematográfica à obra O Homem da

Câmara de Filmar (1929), do cineasta e teórico russo Dziga Vertov, ensaiando uma

montagem teórica em torno do contexto histórico e técnico que o enquadra. Tendo

como linha de desenvolvimento, colocamos a seguinte questão: O que está no

intervalo de cada imagem de O Homem da Câmara de Filmar?

A Revolução Russa de 1917 agitou as estruturas da indústria cinematográfica

soviética. No ano de 1919, o cinema é nacionalizado e passa a estar sujeito à máquina

de propaganda do Regime que se instalava. A produção de filmes será considerada

como um meio de educação do povo num país onde cerca de 70% da população era

analfabeta. É assim que o cinema passa ter o propósito de agitar e de difundir a

propaganda. Para a propaganda, propagar é essencial1.

O Agit-Train, o comboio de propaganda que circulava de cidade em cidade, é

exemplo disso mesmo, de que o cinema posto em movimento funcionava como

mecanismo ideológico do próprio regime soviético. Foi neste contexto, político e

técnico, que se edificou a Escola de Cinema Russa.

A Escola Soviética, que tem por base uma concepção de dialéctica2, e teve

como alicerces diversos aspectos fundamentais. Podemos considerar como um

aspecto principal o teórico-prático, que abrange a montagem. A montagem é um

elemento essencial para o enquadramento sociopolítico 3 já que é através da

conceptualização da montagem que o cinema é visto, em termos práticos, como um

medium de emancipação do espectador. A sua intenção era fazer o espectador “saltar”

da cadeira em contestação ao cinema burguês americano, que tinha como finalidade o

lucro e o entretenimento. Outro aspecto da Escola Russa é o seu plano político-social,

que visava passar a mensagem política do regime. No plano teórico-estético, o

cinema é tido como um objecto novo que procura, como as outras artes, criticar os

1 O conceito tem origem na ideia da propagação de fé - propaganda fide (Virilio, 1988: 13). 2 «Dialética não era só uma palavra para os cineastas soviéticos. Era, ao mesmo tempo, a prática e a teoria da montagem.» (Deleuze, 1983: 50) 3 Eisenstein afirma o seguinte em Da Revolução à Arte, Da Arte à Revolução (1974): «Sabe-se que foi a MONTAGEM o meio fundamental (e único) que conduziu o cinema a tão alto grau de eficácia. [...] O sucesso dos filmes soviéticos nas telas de todo o mundo deve-se, em grande parte, a um certo número de princípios de montagem que fomos os primeiros a descobrir e consolidar.» (Eisenstein, 1974: 34)

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sistemas tradicionais de representação. E é através desta concepção dialéctica que

surgem os cineastas Sergei Eisenstein, Dziga Vertov, Vsevolod Pudovkin, entre

outros. Ademais, há que notar a emergência do Formalismo Russo – uma escola de

pensamento que defendia um método científico para o estudo da linguagem poética e

que preconizava a forma pela forma – O cinema, sob esta estrutura, é elevado ao

plano de Discurso4 e será organizado pela lógica de imagens-conceito, imagens que

traduzem ideias. A dimensão formalista da arte está sempre associada à sua dimensão

estética: a relação de um determinado objecto e a sua função, que será sempre estética

antes de tudo.

A Escola Soviética opunha-se ao cinema orgânico burguês, cujo mentor,

segundo Gilles Deleuze, fora D.W. Griffith. Mas, no entanto, há a destacar duas

tendências dentro da própria escola soviética, particularmente entre Sergei Eisenstein

e Dziga Vertov. Eisenstein acusava Vertov de não aplicar na montagem o conflito5. O

conflito era para Eisenstein um elemento essencial e que se define num sentido, que

não está nas imagens mas que decorre delas. Quando o conflito se combina com a

Montagem das Atracções6 irrompe o pathos do espectador. Sucintamente, a atracção

desponta como que uma entidade lógica, paralelismo de lugares e de tempos e que se

traduz numa terceira ideia que não está lá. Para Roland Barthes, o Terceiro Sentido é

esta ideia ou imagem, deduzida pelo espectador, que não é nem informativa, nem

simbólica, mas uma obliquidade que não é descritível. Ou seja, não é imediatamente

denotativa, nem imediatamente simbólico: «[...] o terceiro, aquele que vem «a mais»,

como um suplemento que a minha intelecção não consegue absorver bem, ao mesmo

tempo teimoso e fugidio, liso e esquivo, proponho chamar-lhe o sentido obtuso.»

(Barthes: 1982) em O Óbvio e Obtuso. Montagem por conflito, imagens que se atraem

umas às outras e através delas a criação do pathos ou o patético. O que aparentemente

está ausente no trabalho de Vertov, segundo a lógica de Eisenstein, é o conflito na

lógica eisensteiniana, ou seja, não há uma ideia – o necessário era um cine-punho e

não milhões de cine-olhos (Deleuze: 1983). Mas em defesa de Vertov, como iremos 4 Por Discurso recorremos às palavras de Michel Foucault em A Ordem do Discurso (1999), “o discurso […] não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objecto do desejo; o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”. Observamos que o discurso é elementar no que respeita à nossa actividade comunicacional 5 Vertov criticava os outros grande autores da Escola soviética de continuarem a reboque de Griffith e «[...] de um cinema a americana ou de um idealismo burguês.» Vertov pertendia que no intervalo houvesse uma espécie de fusão entre o todo e o conjunto infinito da matéria. (Deleuze: 1983)

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reforçar mais à frente, O Homem da Câmara de Filmar (1929) está para além de uma

centrifugação de imagens-retrato do quotidiano sem qualquer direcção aparente. Com

efeito, O Homem da Câmara de Filmar é um manifesto da visualidade maquínica

através da própria montagem. É a própria percepção visual e o estabelecimento de um

ponto de vista que se constituí numa meta-narrativa fragmentada. Para além de Kino-

eye (1924), que está mais direccionado à lógica da propaganda, a experiência sobre a

própria forma plástica do filme irriga toda a obra de Vertov e remete para uma ideia

de montagem, mas também uma certa visualidade, um formalismo essencial – Vertov

poderá ser assim inserido na vanguardas experimentalistas, já que pretendia romper

com o principio da composição orgânica do cinema clássico americano. Vejamos

agora em maior detalhe a obra O Homem da Câmara de Filmar.

O Homem da Câmara de Filmar (1929), é uma deslumbrante meta-narrativa

que celebra os trabalhadores soviéticos e o cinema. O filme usa técnicas de edição

radicais e uma espécie de pirotecnia cinematográfica para retratar a quotidaneidade

das terras russas, do amanhecer ao anoitecer. Mas a intenção de Vertov não é o puro

registo, mas a exposição do olho-cinema. A imagética de Dziga Vertov confronta-nos

directamente com as nossas limitações visuais. A percepção humana não consegue

por si só apreender a totalidade da vida e do trabalho.

Vertov, sendo um artista da classe trabalhadora desejava vincular os

trabalhadores às máquinas – e tal era uma declaração futurista. O seu filme começa,

por isso, com um manifesto: uma série de intertítulos nos informam que este filme é

uma “experiência”, preconizando a busca por uma “linguagem absoluta”, que tem por

base a separação total da linguagem, da literatura e do teatro. Este manifesto ecoa na

crítica postulada por Vertov em 1923, onde condena os filmes (antigos), ao ponto de

os considerar “leprosos”, aconselhando mesmo o afastamento de tais obras. Cópias de

cópias, filmes excessivamente endividados para novelas e convenções teatrais. O

cineasta russo desejava criar um cinema que tivesse o seu próprio ritmo, o ritmo

natural das coisas. A ênfase dada ao psicológico poderia interferir com o desejo que o

trabalhador tinha na sua relação de parentesco com a máquina (Vertov: 1923). A

exploração sensorial do mundo, através do filme, é o ponto de partida. E através da

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acção e do trabalho, e do kino-olho que vive e se move no tempo e no espaço, Dziga

Vertov sentiu que o cinema deveria contagiar de alegria criativa todo o trabalho

mecânico, incitando e mobilizando novos trabalhadores. Essa excitação dos sentidos

pela técnica é a essência d’O Homem da Câmara de Filmar.

Dividido em nove movimentos de orquestra - numa orquestração que desvela

uma dimensão poética, na sua pura combinação de elementos numa sinfonia cósmica

que procura a universalidade - são usadas técnicas de edição, como trucagens

delirantes (o piscar os olhos com as cortinas do obturador) e várias exposições de

trabalhadores com máquinas, simultaneamente em reverência e celebração. Alavancas

e rodas que giram, engrenagens também compostas por trabalhadores, que numa

espécie de bailado “gravitam” em sintonia com os elementos maquínicos.

Vertov é de tal forma contagiado pelo ritmo dos trabalhadores e das máquinas

que, também ele, sente a necessidade de mostrar a fabricação inerente à composição

visual que a projecção do filme apresenta. A sequência começa com uma mise-an-

abyme que regista a câmara frente a um espelho, que salta depois para uns sapatos

engraxados, segue-se uma mulher no cabeleireiro, unhas polidas, filmando por fim

Elizaveta Svilova (esposa de Dziga Vertov), a operária do kino-eye, que revela o

processo de montagem desta meta-narrativa. É uma analogia que desponta: da

cosmética humana de embelezamento do corpo à cosmética mecânica de

embelezamento a visão do mundo. Eis a montagem: cosmética da máquina, do

movimento e da velocidade, cosmética até do espaço e do tempo.

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Para além de celebrar os trabalhadores, as máquinas e o cinema, constituinte

da realidade soviética – e também aquilo que podemos considerar como uma tessitura

visual do que iria estruturar visualmente o resto do mundo – Vertov utiliza o cine-

olho de modo a transcender a própria realidade que ele celebra. No seu manifesto WE:

Variant of a Manifesto, iniciado em 1919, Vertov escreveu:

«I am kino-eye. I am a builder. I have placed you, whom I’ve created today, in an

extraordinary room which did not exist untill just now when I also created it. [...] I am

kino-eye. I create a man more perfect than Adam. I create thousands of diferent people

in accordance with preliminar blue-prints and diagrams of diferent kinds. I am kino-

eye. From one person I take the hands, the strongest and most dexterous; from another I

take the legs, the swiffest and most shapely; from a third, the most beautiful and

expressive head – and through montage I create a new, perfect man. [...] I am kino-eye,

I am a mechanical eye. I, a machine, show you the world as only I can see it. Now and

forever, I free myself from human immobility, I am in constant motion, [...]. »

Em Guerra e Cinema, Paul Virilio estabelece uma analogia que marcará toda a

logística da percepção, isto é, que para o homem de guerra a função da arma é a

função do olho. E é atrás de câmara que o olho se desembaraça da imobilidade – Eu

sou o cine-olho, eu sou a máquina que mostra o mundo como apenas eu o sou capaz

de o ver. Diversos autores da época tomam esta questão como o núcleo central do seu

trabalho e é curioso o comentário de Virilio ao entusiasmo de Vertov, que aqui

reproduzimos:

«These film-makers, who seemed to ‘hijack’ the image as the surrealists

hijacked language, were themselves merely being hijacked by war. On the

battlefield not only did they become warriors, they thought that like airmen

they formed part of a kind of technological elite. It was a final privilege of

their art that the First World War showed them military technology in action,

and interestingly enough this technological surprise triggered a potent

fusion/confusion in ‘avant-garde’ productions of the immediate post-war

period.» (Virilio, 1984: 26)

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Pelas palavras do seu manifesto, que apelam ao movimento e ao nascimento

de uma nova ordem, de uma nova ordem conceptual do homem à imagem da

máquina, ou melhor, à imagem da câmara de filmar, Dziga Vertov acaba por

inscrever uma noção profética – algo que vai ao encontro do que William S.

Burroughs considerou como um risco na utilização das técnicas cut-up’s, isto é, o

carácter profético que certas técnicas de montagem poderiam atingir. Este filme

inovador traz à fruição aquilo que o cinema deveria ser. E fá-lo também apontando

para um horizonte que o cinema potencialmente traz ao homem. Uma nova percepção

do mundo que, apenas a máquina poderia decifrar – um mundo desconhecido até

então. Nas mãos de Mikhail Kaufman, a câmara nunca é estática, e desloca-se por

onde nenhum olho humano tinha chegado – nas chaminés, nos carris do comboio, de

ângulos inusitados, no alto das pontes, etc. Por meio de explosões contínuas e de

artifícios cinematográficos – velocidades de câmara variáveis, efeitos split-screen, uso

de lentes prismáticas e montagem firmemente estruturada – O Homem da Câmara de

Filmar move-se fora do storytelling de Hollywood e coloca-se mais perto de uma

linguagem absoluta do cinema. É um caleidoscópio de imagens que, através da

montagem, esquarteja a realidade. Não há já nada dentro de um plano que tenha

princípio meio e fim, tudo é: puro movimento.

Porém a montagem, aqui regressamos, é o verdadeiro protagonista no filme de

Vertov – não se captam gestos mas fragmentos, e constrói-se aquilo que Roland

Barthes designou de terceiro sentido. Não estamos já diante do território do real, mas

no território da arte e do inconsciente óptico. A Walter Benjamin se deve a ideia de

inconsciente óptico, que desenvolve em «Pequena História da Fotografia» (1931).

Veja-se como o define:

«É uma natureza diferente a que fala à câmara ou aos olhos; diferente

principalmente na medida que em vez de um espaço impregnado de

consciência pelos homens, surge um outro embrenhado pelo

inconsciente. [...] A fotografia com os seus meio auxiliares, o

retardador, as ampliações, permite-lho. Deste inconsciente óptico só se

tem conhecimento através da fotografia, da mesma forma que só

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através da psicanálise se tem conhecimento do inconsciente instintivo.»

(Benjamin: 1931, 119).

O que Vertov nos apresenta é o que havia de inconsciente à óptica natural do

homem, propalando uma percepção amplificada dos sentidos que apenas poderia ser

apresentada e compreendida por meio da câmara. O propósito não era entreter o

espectador, e também não se pretendia acordá-lo através de um cine-punho (Deleuze,

1983). Mas mostrar o mundo pela máquina, mostrar toda a potência da câmara de

filmar. Não no sentido de uma sinfonia cosmética de uma cidade e de um tempo7 mas

a exacerbação mágica do que uma miríade de kino-olhos podem dar a ver.

Mas prossigamos a nossa análise. Vertov oferece constantemente uma

viagem, que não se fica apenas por aquilo que se vê, mas como se vê. É uma espécie

de meta-realismo que coloca em abismo, mas onde o “toque” de arte é dado pelo

potencial da máquina e não pelo homem – imagens saltam entre a câmara que filma

uma família viajando na sua charrete, e as imagens da câmara que filma a câmara, a

filmar família no seu meio de transporte8.

7 Contrapondo com a obra de Walter Ruttmann: Berlin: A Sinfonia de uma Cidade (1927) que exibe uma visão citadina onde a câmara se coloca à distância dos seus sujeitos, como que predador envergonhado da sua própria condição natural: capturar imagens. 8 intercalado com imagens de um comboio em movimento – uma composição visual da Modernidade, onde o comboio como símbolo da era moderna é aqui colocado em cena basilar

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Mais à frente somos confrontados com a linguagem absoluta do cine-olho. A

sequência começa com um ângulo contrapicado de um semáforo que vira. De seguida,

o cine-olho é colocado em cena para mostrar a sua direcção objectivada. E corta para

um casal feliz, que se dirige ao balcão para assinar o seu registo de casamento. O

cine-olho vê tudo. Retornamos à vista da máquina, para no momento seguinte, sermos

colocados no mesmo cenário: o semáforo; o notário; e um casal, mas desta vez não

para assinar os seus votos de matrimónio, mas o divórcio. Nesta sequência é clara a

intenção de Dziga Vertov em mostrar as ambivalências da vida, tendo sempre em

vista o movimento e a interacção – a rede mediática capturada pela câmara de filmar.

Suspenda-se agora a leitura do filme para procurar o substrato teórico da

corrente futurista que irriga a obra de Vertov. O futurismo é a arte da máquina que se

opõe ao espírito heróico romântico, donde que o cine-olho intelectual apele ao pathos

do espectador longe do encantamento da escola americana. Poder-se-á mesmo

considerar O Homem da Câmara de Filmar como a consubstanciação do manifesto

Futurista, apesar das distintas tendências ideológicas, já que o manifesto de Marinetti

desencadeou o próprio fascismo italiano.

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Sobre o fazer da guerra fascista, ou a propósito desta mobilização total, a fúria

futurista de Marinetti, na ubiquidade e paixão pelo maquínico, demonstra o

alastramento da técnica a todos os domínios mas como algo que é controlado pelo

homem. E da esteticização da política, cujas exigências no que toca à velocidade se

evidenciam, eis o fascismo:

«a guerra é bela porque fundamenta o domínio do homem sobre a maquinaria

subjugada, graças às máscaras de gás, aos megafones assustadores, aos lança-

chamas e tanques. A guerra é bela porque inaugura a sonhada metalização do

corpo humano. A guerra é bela porque enriquece um prado florescente de

orquídeas de fogo das metralhadoras. A guerra é bela porque reúne numa

sinfonia o fogo das espingardas, dos canhões, dos cessar-fogo, os perfumes e

os odores da putrefacção. A guerra é bela porque cria novas arquitecturas,

como a dos grandes tanques, a da geometria de aviões em formação, a das

espirais de fumo de aldeias a arder, e muitas outras... poetas e artistas do

futurismo... lembrai-vos destes fundamentos de uma estética da guerra, para

que a vossa luta possa iluminar uma nova poesia e uma nova escultura!»

(Marinetti, citado por Benjamin 1939, 112)

Em O Homem da Câmara de Filmar, usa-se uma linguagem verdadeiramente

global: a imagem e a técnica, e os propagandistas do início do século XX

compreenderam isso bem. A epistemologia visual de Vertov, mostra um mundo em

movimento. Segundo Lev Manovich, Vertov coloca-se entre dois mundos, entre a

flanêrie baudelairiana e o data cowboy de Gibson, traçando uma epistemologia visual

à sua passagem:

«Na sua pesquisa sobre o que se pode chamar “interface kino-eye”, Vertov

tentou sistematicamente várias formas de ultrapassar o que ele julgava serem os

limites da visão humana. Montou câmaras no telhado de prédios e em

automóveis em movimento; diminuiu e aumentou a velocidade do filme;

sobrepôs imagens no mesmo tempo e no mesmo espaço (montagem temporal e

montagem no interior do plano). O Homem da Câmara de Filmar não é só uma

base de dados da vida urbana dos anos 20, uma base de dados de técnicas de

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filmagem e uma base de dados de novas operações de epistemologia visual, é

também uma base de dados de novas operações de interface que, no seu

conjunto, procuram ir muito além da simples navegação humana através do

espaço físico.» (Manovitch: 2005, 132)

O Homem com uma câmara de filmar é um manifesto escrito em

película. Vertov invoca a mobilização pela técnica que se respirava no dealbar do

século XX. Vertov, atento ao mundo que o rodeava, fixou a aceleração que muitos se

recusavam a ver, que muitos ainda procuram ignorar. O mundo nunca mais parou,

tudo fora posto em movimento, e Vertov compreendeu-o bem.

Finalize-se este trabalho arrolando um argumento inicial. O que está patente

em O Homem com uma câmara de filmar é a era do trabalho e da mobilização total

pela técnica. Ancoremos esta ideia a um plano inicial que permite distinguir o nome

de um cineteatro: O proletário.

Tendo por leitmotiv o nome do cineteatro, o proletário, não poderemos deixar

de aduzir o repto que, poucos anos depois, Walter Benjamin lançaria no paradigma do

«Autor como Produtor». Partindo da relação entre autoridade artística e política

cultural, em «Autor como Produtor» (1934) Benjamin reflecte sobre as possibilidades

de uma arte política assente na necessidade dos artistas assumirem o seu lugar ao lado

do proletariado refuncionalizando com isso a sua posição no processo produtivo.

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Benjamin inicia a discussão do paradigma do «autor como produtor» com a ideia da

autonomia do poeta, e da tendência e qualidade como características da obra de arte.

Para Benjamin não existe relação entre estas grandezas, mas estabelece a premissa:

«[…] uma obra que apresente a tendência correcta tem, necessariamente, que

apresentar todas as outras qualidades», não escondendo que «[…] a tendência política

correcta de uma obra implica a sua qualidade literária, porque engloba a sua tendência

literária» (Benjamin 1934, 138). A suposição benjaminiana apresenta como condições

concretas o escritor «operante», como Sergei Tretiakov, ou seja, o escritor que luta e

intervém activamente num movimento social. O artista deverá assumir-se, portanto,

como um mecenas ideológico – um lugar impossível (Benjamin 1934, 145). O artista,

o cineasta, o escritor, deverá assumir-se enquanto intelectual de um movimento

social, um parceiro de legitimação, e que reclama a libertação dos meios de produção.

Os argumentos de Benjamin, a solidariedade na prática material e atitude política

presente na obra de arte, encontram-se anos antes patentes na obra de Vertov.

Sublinhe-se que o papel das vanguardas Russas foi determinante para a concepção

benjaminiana do papel do autor.

Mas acresce ao movimento do proletário o papel da mobilização total que a

Primeira Guerra Mundial pudera a descoberto.

É um ano antes de Ernst Jünger escrever A Mobilização Total (1930), que

Vertov compõem em película aquilo que o escritor alemão dispõem no papel. Ernst

Jünger trabalhou a capacidade de revelação da técnica moderna e, superando os

nacionalismos que demarcam as guerras, encadeou um pensamento verdadeiramente

global:

«Perhaps we can best identify the special nature of this great catastrophe by

the assertion that in it, the genius of war was penetrated by the spirit of

progress. This was not only the case for the fighting among the different

countries; it was also true for the civil war that gathered a rich second harvest

in many of them. These two phenomena, world war and world revolution, are

much more closely interrelated than a first glance would indicate. They are

two sides of an event of cosmic significance, whose outbreak and origins are

interdependent in numerous respects.» (Jünger: 1930, 123)

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Guerra e revolução amotinam-se num único movimento, e são para o escritor

acontecimentos absolutamente dependentes e idênticos na forma como rebentam no

mundo. Mas ainda estará por vir o verdadeiro entendimento do que está encoberto na

ideia de progresso, ainda estarão por compreender os «finos arames que realizam

movimentos tão subtis» (Jünger 1930, 124). Pela mobilização total, a guerra ganha o

aspecto de um gigantesco processo laboral9. Não existe qualquer movimento, do

comércio ao transporte, até ao trabalho no domicílio longe dos olhares de todos, que

não esteja já ligado entre si.

O que está no intervalo de cada imagem de O Homem da Câmara de Filmar?

Uma mobilização total do mundo através das imagens. A regência de uma captura de

imagens para a construção de um álbum de família global. A premente necessidade e

esforço colectivo numa mobilização geral auto-enfatiza-se na técnica moderna. Tudo

será recrutado, mesmo que esteja à distância, porque a técnica toca já tudo à distância.

9 Recuperemos as palavras de Jünger: «In the same way, the image of war as armed combat merges into the more extended image of a gigantic labour process [Arbeitsprozesses]. In addition to the armies that meet on the battlefields, originate the modern armies of commerce and transport, foodstuffs, the manufacture of armaments the army of labour in general.» (Jünger 1930, 126)

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Referências Bibliográficas:

Benjamin, W. [1931] 1992. «Pequena História da Fotografia». In Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Trad. Maria Luz Moita. pp. 115-135. Lisboa: Relógio D’Água. _______. [1936-39] 1992. «A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade técnica». In Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Trad. Maria Luz Moita. pp. 71-113. Lisboa: Relógio D’Água. _______. [1934] 1992. «O Autor como Produtor». In Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. trad. Maria Luz Moita. pp. 137-156. Lisboa: Relógio d’Água. Deleuze, G. [1983] 2009. A Imagem-Movimento: Cinema 1. Trad. Sousa Dias. Lisboa: Assírio & Alvim Eisenstein, S.M. 1974, Da Revolução à Arte, Da Arte à Revolução, trad. C. Braga e I. Canelas. Porto: Editorial Presença

Foucault, M. 1999, A Ordem do Discurso, São Paulo: Edições Loyola

Manovitch, L. 2005. «Espaço Navegável». In Revista de Comunicação e Linguagens, 34 e 35, pp. 101-141. Lisboa: Relógio de Água. Virilio, P. [1984] 1989. War and Cinema – The Logistics of Perception. trad. Patrick Camiller. London-New York: Verso. _______. [1988] 1994b. The Vision Machine. trad. Julie Rose. Bloomington: Indiana University Press. Outras Fontes: Visualização de O Homem da Câmara de Filmar Manifesto de Dziga Vertov – «WE: Variant of a Manifesto»: disponível em http://artsites.ucsc.edu/faculty/gustafson/FILM%20161.F06/readings/vertov.pdf


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