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A República de Weimar e as manifestações do processo civilizatório

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Faculdades de Campinas Curso de Ciências Econômicas A REPÚBLICA DE WEIMAR E AS MANIFESTAÇÕES DAS TENSÕES DO PROCESSO CIVILIZATÓRIO: HITLER COMO CONSTRUÇÃO SOCIAL. Renan Enrique dos Santos Carla Cristiane Lopes Corte Campinas, 21 de novembro de 2012
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Faculdades de Campinas

Curso de Ciências Econômicas

A REPÚBLICA DE WEIMAR E AS MANIFESTAÇÕES

DAS TENSÕES DO PROCESSO CIVILIZATÓRIO:

HITLER COMO CONSTRUÇÃO SOCIAL.

Renan Enrique dos Santos

Carla Cristiane Lopes Corte

Campinas, 21 de novembro de 2012

Ficha Catalográfica

Elaborada pela Biblioteca da Facamp

Santos, Renan Enrique dos. Sa59r A república de Weimar e as manifestações do processo civilizatório: Hitler como construção social. / Renan Enrique dos Santos. - Campinas: [s.n.], 2012. 21f. Orientador: Carla Cristiane Lopes Corte. Monografia – Faculdades de Campinas, Curso de Economia.

1. República de Weimar (1918-1933). 2. Alemanha - História - 1918-1933. 3. Nazismo - Alemanha. I. Corte, Carla Cristiane Lopes. II. Faculdades de Campinas. Curso de Economia. III. Título.

CDD: 320.943

2

A REPÚBLICA DE WEIMAR E AS MANIFESTAÇÕES DAS TENSÕES DO

PROCESSO CIVILIZATÓRIO: HITLER COMO CONSTRUÇÃO SOCIAL.1

Renan Enrique dos Santos

Resumo

O presente trabalho objetiva demonstrar como a ascensão de Hitler e o nazismo na Alemanha

decorre de uma crise que não é apenas econômica ou política, mas em larga medida de caráter

cultural. Para tanto, é necessário tanto apreender como a formação do Estado alemão leva à

transformação de seu habitus (a segunda natureza de um povo), bem como analisar as

imposições do Tratado de Paz de Versalhes sobre a Alemanha e a configuração da República

de Weimar. Com efeito, o processo de formação do Estado Alemão e sua transformação em

uma das principais potências europeias ao longo do século XIX causam a sedimentação de

elementos importantes em seu habitus, o que gradativamente modifica o espaço que a

formação cultural ocupava naquela sociedade. Ao lado da humilhação imposta pelo Tratado

de Versalhes, tal mudança do ponto de vista cultural é crucial para a compreensão da crise que

eclode no período entreguerras (1919 – 1939), sendo possível considerar, enfim, que o

Nazismo e a crise da República de Weimar sejam resultado de uma crise cultural.

Palavras-chave

Alemanha; Habitus; Bildung; Kultur; Guerra Mundial; Nazismo.

Abstract

The following paperwork aims to present how Hitler and the Nazism’s ascension in Germany

results from a crisis not only economic or politic, but also cultural. In order to show that, on

one hand, it is needed to apprehend how the German State formation comes to transform the

German habitus (one people’s second nature); on the other hand, it is essential to analyze

many impositions of the Treaty of Versailles over Germany, redesigning it onto the Weimar

1 Artigo submetido à apreciação de banca examinadora do Curso de Ciências Econômicas das Faculdades de

Campinas, como exigência parcial para a obtenção do grau de bacharel em Ciências Econômicas, elaborado sob

a orientação da Profª Drª Carla Cristiane Lopes Corte.

3

Republic. Therefore, the German State formation process and its projection as one of the main

European powers throughout the nineteenth century come to cement important elements on

the German habitus – a phenomenon that gradually modifies the cultural formation role in that

society. Along with the humiliation imposed by the Treaty of Versailles, this cultural change

is pivotal as so as to comprehend the crisis outbreak taken place in the interwar period (1919 –

1939), what makes it possible to assume that the Nazism and the Weimar Republic’s crisis are

due to a cultural breakdown.

Key-words

Germany; Habitus; Bildung; Kultur; World War; Nazism.

Introdução

Dentre o sem número de qualificações das quais se pode lançar mão para caracterizar a

República de Weimar, talvez as mais bem colocadas sejam as mais amplas que se pode

encontrar – amplas, mas não desmesuradas. Consequência direta de sua derrota na Primeira

Grande Guerra, a transfiguração da Alemanha na República de Weimar tem muitos

significados2.

Entre eles, poder-se-ia sublinhar que tal transformação consistia no constrangimento

territorial e econômico da potente e pujante Alemanha, prescrito em 1919 no Tratado de

Versalhes. Com efeito, todo o ônus da guerra pesou sobre a Alemanha, escolhida como a

grande culpada do conflito mundial principiado em 1914. Não obstante, a República de

Weimar era retrato da humilhação que os países aliados impunham sobre o derrotado,

alienando-lhe o exército, a frota marítima e as anexações territoriais. O novo Estado era a

configuração da instabilidade política, social e econômica.

Enquanto irrigada pelos capitais vindos dos Estados Unidos no bojo dos programas de

auxílio e reconstrução após a guerra, a República de Weimar viveu um período de moderada

estabilidade e crescimento econômico. Tão logo a crise de 1929 se abateu sobre o mundo

todo, a então ‘nova Alemanha’ mergulhou numa crise profunda, quando se observa que, no

limite, a humilhação redigida no Tratado de Paz de Versalhes emergiu como crise de

2 Às ideias que me foram dadas a respeito deste trabalho e ao estímulo ao estudo mais aprofundado deste tema,

agradeço imensamente à professora Carla Corte.

4

confiança tanto no Estado construído em 1919 quanto no marco alemão, o que punha em

cheque a estabilidade proporcionada e a sociabilidade na Alemanha, fenômenos cujo expoente

foi a crise de hiperinflação (BELLUZZO, 2009; MAZZUCCHELLI, 2009). No entanto, a

República – que existiu de 1919 até 1933 – era mais complexa do que a imagem opaca da

derrota.

O construto erigido pela Paz de Versalhes era verdadeiramente frágil, porquanto

instalava no coração da Europa um edifício insustentável: dadas as imposições do Tratado,

jamais a Alemanha poderia sobreviver, quanto mais coexistir pacificamente com seus algozes.

Contudo, ao mesmo tempo em que a nação derrotada vivia sobre uma frágil construção

repleta de tensões, pôde-se assistir ao expoente da cultura alemã, edificado no

desenvolvimento científico, literário e, sobretudo, artístico (GAY, 1978). Até o ano de 1933, a

República de Weimar gestou não só convulsões políticas e sociais, mas também a ebulição de

movimentos culturais de vanguarda, marcos na História da Arte, a exemplo do

expressionismo alemão e do estilo desenvolvido na casa de construção estatal idealizada e

fundada por Walter Gropius, a Bauhaus.

Destarte, a qualificação que melhor vem a descrever a República de Weimar é

manifestação de tensões, fossem elas tensões políticas (entre a esquerda radical e a extrema-

direita cada vez mais presente) ou sociais. A economia, em última instância, denuncia de

forma pronunciada as várias crises provocadas na República de Weimar, o que sugere o

objetivo maior deste artigo: demonstrar que a crise econômica – alemã, em específico, no

entreguerras – é o reflexo de uma crise de cunho cultural; crise tal que conduz à ascensão do

Nazismo em 1933.

Assim sendo, o estudo que se segue pretende contornar a construção da efêmera e

turbulenta República de Weimar, de modo a localizar tanto as crises que gesta quanto as

manifestações do chamado espírito alemão, que vem a se apresentar como se num último

sopro de vida. Para compreender tal espírito, vê-se necessário analisar a formação do povo

alemão e três conceitos importantes para a compreensão de sua forma de pensamento:

habitus, Bildung e Kultur.3

3 Vale registrar a imensa contribuição do professor Renato Brolezzi, cujos esclarecimentos foram essenciais para

a compreensão de conceitos tão singulares e complexos, indispensáveis para a redação desse trabalho.

5

Apesar de sua vida curta, a República de Weimar manifesta um sem número de

tensões. As convulsões políticas e econômicas, nesse sentido, não são senão sintomas e

desdobramentos de uma crise que, no crítico momento do entreguerras, pode-se provar mais

profunda do que aparenta. As páginas que se seguem buscam mostrá-lo.

1. A evolução do habitus alemão no pré-guerras e os conceitos de Kultur e Bildung

Se história e cultura formam o homem, também se faz razoável assumir que

configuram a sociedade enquanto ela é e se transforma no tempo. Não se trata, aqui, de fixar

alguma relação de determinação do homem para a sociedade ou vice-versa, mas de observá-

los, ambos, como causa e consequência um do outro. As relações sociais podem, assim, ser

contempladas com maior complexidade, mas que não se esgota aí: se o homem pode mudar a

sociedade (e a sociedade pode transformar o homem), também o passado pode transformar o

presente, ou determiná-lo como continuidade.

Ao mesmo tempo em que esse considerável número de relações implica uma

dificuldade sensível para o estudo de quaisquer fenômenos sociais, confere também maior

propriedade à sua análise, que, com efeito, pode ser conduzida à luz do conceito de habitus: a

“segunda natureza” de um povo; ou ainda, o “saber social incorporado” nele (ELIAS, 1997).

O conceito reflete a sedimentação de elementos na natureza de uma nação, a qual compreende

o modo como um povo age e reage a estímulos os mais variados. Cada povo, cada nação tem

um habitus próprio e singular, que remonta às transformações que sofre ao longo da história e

à sedimentação de características em seu modo de agir. Os diversos habitus podem ser

semelhantes, mas não idênticos. Segundo Norbert Elias (1997: 16),

o habitus nacional de um povo não é biologicamente fixado de uma vez por todas;

antes, está intimamente vinculado ao processo particular de formação do Estado a

que foi submetido. À semelhança das tribos e dos Estados, um habitus nacional

desenvolve-se e muda ao longo do tempo.

No que se refere à formação do Estado alemão, Elias (1997) observa que a história

daquele povo lhe mostra quais as conquistas que se pode alcançar com a subordinação a um

Estado forte, direcionador das forças políticas e econômicas. No limite, o intenso – e atrasado

– processo de unificação da Alemanha fora fruto do comando forte do Estado da Prússia, que,

antes mesmo de se configurar em 1871 como a Alemanha unificada, empenhava a chamada

“política de potência e bem estar” (BRAGA, 1999). Tal política compreendia que as forças

6

econômicas seriam conduzidas segundo os interesses materiais do estado, quais fossem

direcionados à modernização e à industrialização.

Nesse sentido, é possível destacar alguns anos cruciais para o desenvolvimento alemão

pautado nessa diretriz política. Em 1834, cria-se a União Aduaneira (Zollverein), conferindo

união econômica ao que viria a ser a Alemanha; em 1840, tem-se uma expressiva expansão

ferroviária que “proporcionou o meio pelo qual foi possível exercer pressões competitivas e

expulsar as empresas ineficientes, antes protegidas pela distância e a topografia” (LANDES,

1994: 204); e, em 1846, centraliza-se a emissão monetária com o advento do Banco da

Prússia, o que coroa qual série de eventos que permitiu à Alemanha “desatar as forças

propulsoras do capitalismo” (BRAGA, 1999: 197). A essas mudanças, somam-se ainda as

transformações territoriais do Estado da Prússia, que derrota a Áustria em 1866 (expulsando-a

da Confederação Germânica do Norte) e a França em 1870 (alienando-lhe a Alsácia-Lorena).

Em 1871, resulta a unificação política e territorial da Alemanha.

Desse modo, ao longo dos anos que precedem a unificação do país, não só se assiste

ao desenvolvimento de uma nova potência industrial, mas observa-se também a cristalização

de elementos subjetivos no povo alemão. Assim, o ano de 1871 pode ser contemplado como

um ponto crítico na história alemã, tanto do ponto de vista político quanto do cultural. Em

outras palavras, não só se configura naquele ano um novo Estado, como também se

caracteriza um fator crucial para a evolução do habitus alemão.

Elias (1997) elenca diversos elementos no período pré-unificação que influenciaram

sobremaneira o habitus alemão. Naturalmente, o local onde um povo se estabelece e prospera

muito tem a dizer sobre sua formação cultural per si; mas também é importante considerar as

relações que se estabelecem entre os povos de determinada região. O processo de formação do

Estado alemão é repleto de rupturas (diferentemente da formação do Estado francês, por

exemplo), ante o que os laços entre o passado medieval alemão e a formação de seu Estado

são frágeis, permitindo assim a mais intensa transformação do habitus. Assim, como destaca

Elias, as lutas de eliminação4 às quais o povo alemão fora submetido no séc. XVII (e os

4 “No final do século XVII, foram as tropas de Luís XIV que travaram batalhas pela supremacia contra as tropas

imperiais em solo alemão. (...) No século XIX, os exércitos revolucionários de Napoleão invadiram a Alemanha

em sua tentativa de unificar a Europa sob a soberania francesa. Uma vez mais, era demonstrada a fraqueza da

Alemanha em comparação com os Estados vizinhos mais eficazmente centralizados” (ELIAS, 1997: 20).

7

conflitos internos ao Estado da Prússia, antes disso5) ajudam a compreender sua formação,

especialmente no que tange a sedimentação do caráter violento e militarista em seu saber

social. Ou seja,

A fragilidade estrutural do Estado alemão, a qual tentava constantemente as tropas

estrangeiras de países vizinhos a invadir seu território, produziu uma reação entre os

alemães que levou a conduta militar e as ações bélicas a serem altamente respeitadas

e, com freqüência, idealizadas (ELIAS, 1997: 20).

É de maneira semelhante que a vitória do Estado da Prússia sobre a Áustria e a França

reserva às décadas de 1860 e 1870 o papel essencial para explicar a evolução do habitus

alemão nesse período. São essas as conquistas que, acima de qualquer outra, levam à

cristalização definitiva do respeito e da idealização às condutas militares no habitus alemão,

que vem a completar uma fase de sua evolução. Tanto não se dá simplesmente porque, a partir

de então, o povo alemão como um todo passa a enxergar na política de potência e bem-estar a

força para a realização do Estado e de seu sucesso. Sem desprezar qual efeito generalizado, a

chave para a intensidade desse movimento reside na inclinação de uma classe específica em

direção aos interesses do Estado e às ideias nele vigentes – classe que, avessa à política,

idealizava a cultura e o chamado espírito alemão. A esse propósito, cabem algumas

considerações relevantes.

A intelligentsia6

alemã estava representada na classe média, que se opunha

deliberadamente ao que se irradiava da corte francesa como “civilização”: na França, algo que

estava atrelado à vida na corte e a modos floreados e superficiais. Uma vez que a França

desponta como potência no cenário europeu, seu modo de civilização é posto em evidência e,

por conseguinte, mimetizado por outros países em ascensão. Tanto não foi diferente na

Alemanha. Ao longo do século XIX, os padrões da corte francesa foram assimilados pela

nobreza imperial de Guilherme II. A classe média, burguesa, opunha-se a essa civilização, por

sua vez enaltecendo a cultura; ou ainda, Kultur7.

Tida em alta conta pelas classes médias alemãs, Kultur era mais do que o espaço que

apreende as manifestações artísticas em sua vasta pluralidade, mas é o mundo onde o homem

5 “Muito claramente, as lutas eram em torno da hegemonia dentro das fronteiras do antigo império alemão”

(ELIAS, 1997: 18).

6 Por intelligentsia, entende-se a parte de uma nação que aspira à atividade intelectual; ou ainda, a classe da

sociedade a qual se julga possuir cultura e iniciativa política.

7 Em virtude da apreensão e gênese singular dada ao termo ‘cultura’ pelo povo alemão, vale designá-lo como

Kultur.

8

se pode encontrar, compreender e libertar com a criação artística8. Ainda, é o espaço que

permite ao homem observar a beleza ao invés dos costumes e, de modo análogo, realizar quais

sejam suas necessidades morais em oposição às físicas. Em última instância, a cultura é onde

são criadas “obras da livre escolha”; ao contrário da realidade sensível, onde se cria “obras da

privação”, frutos da necessidade (SCHILLER, 2011). É nesse sentido que o conceito de

cultura para os alemães é muito diferente do que a cultura para os franceses. Ao passo que

para estes a cultura era compreendida com o formalismo e a superficialidade da corte9, os

alemães acreditavam que Kultur era, destarte, “menos lustrosa e mais profunda que a [cultura]

estrangeira” (LIRA, 2003: 76). Ademais, ao mesmo tempo em que era espaço de emancipação

do homem, Kultur contemplava a humanidade inteira à medida que o avanço cultural

significava o avanço da humanidade. Em suma,

Desde o final do século XIX, Kultur passara a simbolizar, na própria Alemanha, a

defesa dos valores pré-industriais contra o processo de racionalização e

secularização da vida social sob o capitalismo industrial (...) [aludindo] ao racional e

universal por oposição ao instintivo, ao autóctone, ao particular (LIRA, 2003: 76,

grifo nosso).

Nas palavras de Elias,

Pode-se dizer que no significado do termo alemão “Kultur” estava embutida uma

predisposição não-política, e talvez mesmo antipolítica, sintomática do freqüente

sentimento entre as elites da classe média alemã de que a política e os assuntos do

Estado representavam a área de sua humilhação e da falta de liberdade, ao passo que

a cultura representava a esfera de sua liberdade e de seu orgulho (ELIAS, 1997:

122).

Ainda assim, a identificação de Kultur como o espaço de emancipação do homem não

basta para compreender o ideário presente na intelligentsia alemã. É importante, também,

pensar o modo de se alcançar tal espaço de libertação – algo refletido no conceito de Bildung.

8 A cultura alemã – assim oposta à cultura “da corte” francesa – ganha envergadura com o movimento pré-

romântico, conhecido como Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto), cujos expoentes são Caspar David

Friedrich (na pintura), o jovem Goethe e Friedrich Schiller (na literatura), entre outros. É a fase romântica,

contudo, que projeta à cultura alemã mais evidentemente. Com efeito, é o movimento romântico aquele que

contesta a “civilização industrial” e a propulsão das forças capitalistas.

9 Tal qual a alcunha do movimento pré-romântico – Tempestade e Ímpeto –, também soa retumbante a sentença

de Schiller, que exemplifica bem sua oposição aos modos da nobreza: “O egoísmo fundou o seu sistema em

pleno seio da sociabilidade mais refinada, e experimentamos todas as infecções e todos os tormentos da

sociedade, sem que daí surja um coração sociável. Submetemos nosso livre juízo à sua opinião despótica, nosso

sentimento aos seus usos bizarros, nossa vontade às suas seduções; contra seus direitos sagrados afirmamos

apenas o nosso arbítrio” (SCHILLER, 2011: 34).

9

Em meio às muitas significações da palavra10

, Bildung alude à formação do homem,

sua educação. Assim, admitindo-se Kultur como um espaço de emancipação e liberdade,

Bildung é como o processo de libertação do homem, à medida do qual se desprende das

amarras da realidade sensível para alcançar um ambiente – na Ideia – em que se pode

desenvolver a razão. A educação estética do homem está para Bildung, ao passo que Kultur é

o domínio da moral.

Com efeito, nos séculos XVIII e XIX, a intelligentsia alemã é, então, uma parte da

sociedade que não apenas enaltece Kultur como um espaço de manifestação artística,

exercício da razão e liberdade; mas também idealiza a formação do homem (Bildung) para sua

realização em Kultur. É essa classe da sociedade alemã que dá existência e voz ao espírito

alemão, algo que abarca um modo de pensar singularmente profundo, talvez de assimilação

tão difícil quanto assumir que já houve um tempo em que não se vivia ao compasso do

relógio. Enfim, é quando esse modo de pensar é definitivamente solapado que o habitus

alemão completa uma fase de sua evolução. Tal fenômeno não é fortuito, e está intimamente

ligado com a formação do Estado alemão.

Assim, os eventos que permeiam a história alemã até a unificação tardia de seu Estado

em 1871 sugerem que uma concepção de Kultur que atravessou os séculos XVIII e XIX foi

colocada de lado tão logo as diretrizes políticas e econômicas do Estado vigente capturam a

classe que, em última instância, sustentava até então qual espírito alemão, intimamente ligado

ao ideal humanista de Kultur. A solidificação do Estado alemão cimenta no habitus a

idealização às condutas militares e a violência, o que se dá, enfim, quando aqueles que outrora

defenderam a realização moral do homem na cultura como espaço de liberdade se voltam para

o ideário nacionalista vigente no Estado instituído. Em outras palavras, grande fração das

elites da classe média alemã deixa o ideal humanista e o transforma em nacionalista11

; passa a

atribuir o desenvolvimento do homem não à sua imagem (enquanto homem), mas à imagem

do país, da nação. Dá-se, por outras palavras,

10 Bildung, do alemão, tem muitos significados, sendo formada a partir de Bild, substantivo que (dentre outras

tantas palavras em português) pode ser traduzida como quadro, imagem, retrato e (em sentido figurado) ideia.

Bildung, por sua vez, pode ser expressada como formação, ou educação; no limite, tendo em vista as ideias

contidas em Bild, a palavra sugere o processo de formação que é necessário ao ingresso no espaço dado pela

cultura (Kultur).

11 O fenômeno se trata, de acordo com Elias (1997), de uma transferência de paixões do ideal humanista para o

nacionalista; respectivamente, do futuro para o passado. O ideal humanista refletido em Kultur descansava na

paixão ao futuro da humanidade (na direção da liberdade); ao passo que o ideal nacionalista transfere tal paixão

ao passado, à heroicização das conquistas da nação.

10

uma modificação de prioridade dos ideais e valores humanistas e morais aplicáveis

às pessoas em geral para os ideais nacionalistas que colocaram uma imagem ideal do

país e da nação acima dos ideais humanos e morais na escala de valores de cada

indivíduo (ELIAS, 1997: 128).

A partir de 1871 e até o princípio da I Grande Guerra, então, parece haver maior

conformidade entre os ideais da nobreza e da classe média em ascensão em função do ideal

nacionalista. Ao mesmo tempo, o habitus alemão completa uma fase de sua evolução.

Alemanha, unificada e modernizante, caminha a passos firmes para a deflagração da Guerra

em 1914, fruto do ímpeto expansionista alemão e da propulsão de forças capitalistas.

2. Entre 1871 e 1914: breves considerações sobre os últimos anos do pré-Guerras

O Império unificado em 1871 pelo Kaiser Guilherme II e o chanceler Bismarck era

uma construção potente. O Estado edificado e a política de potência e bem-estar punha a

Alemanha nos trilhos do desenvolvimento industrial, ao passo que gestava relevante ímpeto

expansionista – fenômeno que também, e em grande medida, objetivava minimizar a

influência da França no continente europeu (MAZZUCCHELLI, 2009). Nas palavras de

Braga,

O período iniciado em 1871-73 e que se estende até 1914 pode ser compreendido

como aquele em que se ergue o poder industrial germânico, com força suficiente

para, tragicamente, vir a ser protagonista da primeira grande guerra de extensão

mundial. A chamada Grande Depressão de 1873-96, que afetou a Europa (...) não

chega a perturbar a performance alemã, que havia ingressado no auge de seu

crescimento econômico exatamente na mesma época (BRAGA, 1999: 198, grifo do

autor).

Qual pujante desempenho alemão até as vésperas da I Guerra Mundial é amplamente

devido à integração entre as grandes empresas alemãs e seus bancos, um fenômeno que

também foi guiado e orientado pelo Estado. De fato, impulsionada por medidas protecionistas

desde 1879, assiste-se à Alemanha atingir autossuficiência industrial; a associação do capital

bancário às empresas alemãs que se projetavam nacional e internacionalmente12

, por sua vez,

é essencial não só para “ampliar o raio de manobra monetário-financeiro” das indústrias

“frente ao padrão ouro gerido pelos ingleses” (BRAGA, 1999: 200), mas também para

compreender a expansão das relações capitalistas nesse momento. Na mesma toada, por volta

12 Segundo Braga (1999), a produção alemã consegue até concorrer com a britânica em alguns setores; e, mesmo

quando a competição não se realiza por conta do baixo volume de produção, como no caso da indústria de

componentes químicos, David Landes (1994, p.194) observa que o patrimônio tecnológico da indústria alemã era

mais avançado.

11

de 1910, o Estado Alemão unificado orienta a formação de cartéis entre grandes empresas

alemãs13

objetivando conferir-lhes maior projeção no cenário europeu (HENDERSON, 1975

apud BRAGA, 1999, p. 201).

Com efeito, as forças capitalistas são desacorrentadas à medida que o capital

financeiro (enquanto associação entre o capital dos bancos e o capital da indústria) permite

não só o aumento potencial da capacidade de maximização do capital, mas expande a própria

relação capital. Em outras palavras, o desenvolvimento do capital financeiro é não mais que a

consumação de uma determinação do capital no sentido de sua valorização

(MAZZUCCHELLI, 2009).

A Alemanha que aporta em 1914, portanto, é uma importante potência industrial cujo

sucesso se deve a três fatores principais – seu poder naval; sua exploração de ferro e carvão; e

seu sistema de transporte ferroviário (KEYNES, 2002) – associados à direção dada pelo

Estado unificado, que permite o desenvolvimento da indústria e das empresas nacionais. Mais

que isso, entre 1871 e 1914, a Alemanha desponta como uma das grandes potências

industriais europeias, de modo que disputa com as outras não apenas fatias de mercado já

capturadas, mas, em verdade, novos mercados que serviriam à expansão da acumulação

capitalista. Para Mazzucchelli (2009: 48-49),

A competição pelo poder entre as nações, a exacerbação do nacionalismo e a rigidez

do sistema de alianças revelavam a precariedade do equilíbrio internacional. A

perspectiva de um confronto de maiores proporções lançou as nações envolvidas em

uma corrida militar (...) [de modo que] as condições para a paz tornavam-se cada vez

mais débeis.

Os conflitos que sucedem da região dos Bálcãs refletem, desse modo, o intenso

confronto gestado no coração da Europa entre as principais potências da época. Trata-se, no

limite, do embate entre movimentos de rivalidade e expansão, bem como das contradições

impostas pelo próprio capital que, de modo a expandir-se e conquistar novos espaços de

valorização, nutre e provoca crises. É no bojo desse contexto que a Alemanha industrializante

caminha para a guerra em 1914 – e é tragicamente derrotada.

13 Lastreadas sobre a aprovação do cartel compulsório pelo parlamento.

12

3. A Paz de Versalhes e a frágil configuração da República de Weimar

Quando analisa o futuro da Europa após a assinatura do Tratado de Paz de Versalhes,

em 1919, Keynes (2002) afirma que as considerações a esse respeito precisam ser pessimistas.

Em suas palavras,

O Tratado de Paz não contém qualquer disposição orientada para a reabilitação

econômica da Europa – nada que transforme as Potências Centrais derrotadas em

bons vizinhos, nada que permita dar estabilidade aos novos Estados europeus, nada

para salvar a Rússia; não promove de nenhuma forma um pacto de solidariedade

econômica entre os próprios aliados (KEYNES, 2002: 157).

O excerto deixa claro o que era turvo às potências vencedoras do conflito mundial:

uma Europa do pós-I Guerra somente gozaria de estabilidade e paz se o que tivesse sido

concordado nos Palácios de Versalhes firmasse, ao contrário da humilhação dos derrotados, a

cooperação entre os países europeus (e, também, “o Novo Mundo”). Subjugar a Alemanha, no

coração da Europa, e humilhá-la14

perante o mundo não fora sábio, ainda que compreensível à

luz do contexto internacional da época: claramente, o Tratado de Paz assinado entre os aliados

e a Alemanha observava o vácuo de poder que se instalava. Apesar de sua participação na

Guerra e sua projeção no cenário internacional, os Estados Unidos não assumiram o papel de

poder hegemônico que já se lhes apontava – quer por falta de capacidade ou de vontade. Tal

vazio de liderança (MAZZUCCHELLI, 2009) deixado pela Inglaterra, não mais hegemônica,

não instigava às potências senão a esmagar a Alemanha, que apresentara desenvolvimento tão

rápido e intenso ao longo do século XVIII e da primeira década do XIX.

Destarte, o período entre 1919 e 1939 é marcado em larga medida pela crise da

hegemonia inglesa. O padrão de conversibilidade entre o ouro e a libra esterlina, chamado na

literatura econômica de Padrão-Ouro clássico (ou Padrão Ouro-Libra), fora completamente

desestruturado pela Primeira Guerra Mundial e, uma vez que a Inglaterra se via severamente

abalada pelo esforço e os resultados da Guerra, bem como todo o resto da Europa, não era

mais factível tentar retornar ao padrão. O status quo ante bellum havia sido completamente

modificado. Assim sendo, a libra esterlina não tinha a mesma posição de outrora no cenário

internacional porquanto não mais imperava como meio de troca preponderante no comércio

14 O artigo 231 do Tratado de Versalhes, destacado por Henig (1991a: 49) e também Keynes (2002), explicita

que a culpa da Guerra fora declarada e sumariamente atribuída à Alemanha: “Os governos aliados e associados

afirmam, e a Alemanha aceita a responsabilidade da Alemanha e de seus aliados em causar todas as perdas e

danos a que os governos aliados e associados e seus cidadãos foram submetidos em consequência da guerra a

eles imposta pela agressão da Alemanha e seus aliados”.

13

entre países; tampouco inspirava confiança o suficiente para denominar contratos15

. É nesse

contexto caótico que a Paz de Versalhes fora redigida pelas delegações francesa, inglesa e

estadunidense, ante as quais os alemães pouco puderam fazer para anuviar as imposições do

Tratado que construiria a frágil e peculiar República de Weimar.

O Tratado de Paz de Versalhes impunha à Alemanha todo o ônus da guerra: seria de

sua responsabilidade o pagamento de todas as reparações, algo em si impraticável. Não

obstante, o Tratado lhe desferia também restrições à produção industrial e ao desenvolvimento

militar, bem como a limitava territorialmente. Desse modo, a Paz de Versalhes não apenas

obrigava a Alemanha a pagar um preço impossível pela guerra, como lhe alienava as próprias

capacidades de honrar com tais compromissos.

A esse propósito, as linhas do Tratado desmantelavam sistematicamente os três

principais alicerces sobre os quais a Alemanha se desenvolvera no período pré-guerra: o poder

naval; a exploração de ferro e carvão; e seu sistema de transporte ferroviário (KEYNES,

2002). Em primeiro lugar, desarticula-se o poder marítimo da Alemanha a fim de isolá-la

comercialmente: os aliados lhe confiscam toda a frota mercante e alienam-lhe todo direito a

respeito das possessões no ultramar. Em segundo lugar, tomam-lhe as reservas de carvão do

Sarre e o distrito da Alta Silésia, além de exigirem um pagamento anual à França em relação à

suas perdas em carvão durante a guerra; ademais, “as importâncias devidas a título de

reparação devem ser pagas parcialmente em produtos em vez de dinheiro” (KEYNES, 2002,

p. 58). Finalmente, e em terceiro lugar, desarticula-se o sistema aduaneiro da Alemanha à

medida que são impostas medidas que privilegiam as nações Aliadas no que diz respeito à

tarifação, vigendo para eles o princípio da nação mais favorecida.

Dessa maneira, percebe-se que a despeito de o pagamento de reparações de guerra ser

observado como uma tradição nos conflitos europeus, o Tratado de Paz de Versalhes era

bastante peculiar: além de impor à Alemanha o pagamento de um preço impossível pela

guerra, eram-lhe sistematicamente destruídas as possibilidades de gerar riqueza e porventura

arcar com as imposições. Portanto, é também compreensível que as promessas de pagamento

tenham sido suspensas no ano de 1922 (SCHACHT, 1999), o que de modo algum suaviza o

15 Na segunda metade da década de 1920, a Inglaterra tentou restabelecer o padrão-ouro clássico, o que não foi

possível. A maior parte das reservas de ouro do mundo concentrava-se nos Estados Unidos e a tentativa de

vincular novamente a Libra (desvalorizada, no entreguerras) ao ouro foi percebida como uma empreitada

artificial de supervalorização da moeda inglesa, assim alimentando expectativas de que, num dado momento

futuro, a moeda se precipitaria a desvalorizar. Essa aposta contra a libra frustrou definitivamente a tentativa de

retorno ao padrão-ouro clássico, além de evidenciar a crise da hegemonia inglesa.

14

peso das imposições de Versalhes. De maneira emblemática, a relação mais íntima entre a

assinatura do Tratado de Paz pelos alemães e a fragilidade do entreguerras, edificada na

República de Weimar, estava sustentado num componente psicológico, abstrato, e não na real

quantia a ser paga.

Grosso modo, a Grande Guerra pouco resolvera. Não mitigou as tensões que nela

resultaram. No tocante à Alemanha, a Guerra fez despertar novos (e velhos) anseios naquele

povo, bem como provocou uma série de fenômenos que desembocariam na II Guerra

Mundial. Assume-se, aqui, que a Segunda Guerra Mundial é um desdobramento direto da

Primeira, e que a República de Weimar é, então, resultado da Primeira Guerra e também

determinante da Segunda.

A breve e frágil existência da República de Weimar (1919 – 1933) foi marcada por

muitos altos e baixos, mas concebendo turbulências no plano político desde seu nascimento

(HENIG, 1991a; MAZZUCCHELLI, 2009). A democracia parlamentar instituída se

caracterizou pela ascensão do SPD ao poder (Sozialdemokratische Partei Deutschlands, um

partido de cunho socialista), o que suscitou o apoio da esquerda, de um lado, e a

movimentação da direita (e, em especial, a extrema-direita), de outro, no espectro político –

cenário no qual os partidos de centro (como o Zentrum) participavam cada vez menos,

esvaziando-se paulatinamente até 1933. Os embates entre as frentes políticas eram frequentes,

e os levantes de mais larga envergadura eram suprimidos pelo governo16

.

A ebulição no cenário político da República de Weimar estava alinhada, também, a

uma série de outros fatores que geravam constante instabilidade. Ao longo de seus primeiros

anos, até o fim de 1922 (quando da suspensão do pagamento das reparações), a pressão

exercida pelos vencedores da Primeira Guerra gerava uma densa atmosfera de incerteza, o que

conhecidamente afeta a dimensão econômica de qualquer Estado. As contas públicas da

Alemanha naquele período sofriam com o ônus da guerra, de modo que o sintoma mais

visível e dramático da crise econômica de larga escala era, possivelmente, o desemprego. Em

1920, 3,8% dos alemães se encontravam desempregados. Em 1923, o desemprego acometia

9,6% da população (MAZZUCCHELLI, 2009: 144), tendo crescido, então, cerca de duas

vezes e meia. No entanto, a manifestação mais emblemática da crise econômica alemã no

16 A exemplo da destruição da Liga Spartacus, grupo político de extrema-esquerda. Lideranças espartaquistas na

República de Weimar, como Rosa Luxemburgo, foram assassinadas logo em 1919.

15

período é a hiperinflação, o que consiste na instabilidade da moeda enquanto reserva de valor,

ao passo que o nível geral de preços se eleva rápida e intensamente.

Na Alemanha do imediato pós-I Guerra, a hiperinflação teve proporções alarmantes.

Valendo-se do entendimento da moeda como, sobretudo, uma convenção fundada na

confiança (MAZZUCCHELLI, 2009), suas funções básicas são apenas válidas se os agentes

econômicos nelas acreditam17

. A partir de 1919, percebia-se uma crise global de confiança em

relação ao marco alemão, dada a incontestável instabilidade da República de Weimar nos

planos político, social e econômico. A desconfiança em relação à moeda nacional implicava

numa preferência por moedas estrangeiras (como o dólar), traduzida por uma fuga do marco e

a consequente dolarização da riqueza na Alemanha, em primeira instância, e também por

pressões sobre o câmbio, que se ia desvalorizando. Por conseguinte, a desvalorização cambial

empurrava o nível geral de preços para cima, não só os preços de bens importados, mas

também os de bens domésticos, já que “a valoração da riqueza e dos produtos, assim como a

denominação dos contratos, se fazia, progressivamente, na moeda estrangeira”

(MAZZUCCHELLI, 2009: 149), o que repunha a inflação global para os limites internos.

Sendo assim, ao passo que a fuga para o dólar se transforma num fenômeno generalizado –

pressionando o câmbio –, o processo inflacionário se transforma em hiperinflação.

A crise hiperinflacionária alemã só é suavizada por entre os anos de 1923 e 1928,

período em que se percebe crescimento econômico e relativa estabilidade na República de

Weimar, o que se deve em grande parte à entrada de capitais promovida pelo Plano Dawes

(SCHACHT, 1999). Contudo, tão logo cessa o fluxo de capitais, a República mergulha

novamente em crise.

Com efeito, tal é a República de Weimar recém construída: extremamente frágil do

ponto de vista político e também econômico. Ainda assim, é essa mesma construção que se

mostra capaz de gerar movimentos sociais e culturais que parecem resgatar no povo alemão

algo que persiste em sua cultura ao longo dos séculos. A fortaleza teria nascido da própria

fragilidade. Tal ímpeto criativo, aparentemente solapado pela Guerra e a derrota, mas

reedificado na República de Weimar, é o objeto de estudo da próxima seção.

17 O poder estatal, aí, deve desempenhar papel crucial na medida em que é responsável por afirmar a

confiabilidade da moeda e lançar as bases necessárias para tanto. O que se verifica no bojo da economia nazista,

no limite, é a inegável maximização do Estado, inclusive no tocante ao seu papel de agente econômico. Por vias

do poder Estatal e da coordenação por ele engendrada, o regime nazista pôde não só re-estabilizar a moeda

quanto dinamizar a economia.

16

4. Cultura e barbárie na República de Weimar

Impotência política; barbárie; convulsão social: muito é atribuído aos momentos finais

da República de Weimar, mas pouco é observado em função de tudo quanto fora gerado de

virtuoso ao longo de sua curta existência. Entre 1919 e 1933, a Alemanha não conheceu

apenas um período de intensa instabilidade política e econômica. Pelo contrário: justamente

porque instável, o país gestou ebulições culturais de ampla diversidade, tanto nas artes quanto

na ciência – a exemplo do desenvolvimento da física quântica. Ao mesmo tempo em que

lideranças políticas de esquerda eram exterminadas, a exemplo da Liga Spartacus (liderada

por Rosa Luxemburgo), o cenário cultural na Alemanha vivia um período intenso.

Como se num repentino sopro de vida, o espírito alemão outrora enaltecido pelas elites

da classe média no pré-guerras logra manifestações no coração da República de Weimar

(GAY, 1978; RICHARD, 1993); uma delas, o movimento expressionista alemão, que de

modo singular intenta não apenas contestar a desordem social e política que se instalava na

Alemanha, mas também denunciá-la18

. Apesar de genuinamente rebeldes ante a instituição

política da República de Weimar, não havia união ou coordenação entre os expressionistas, de

modo que não existia também conteúdo programático de modo a canalizar sua manifestação

em direção a alguma mudança na realidade.

Destaca-se, ainda, outra manifestação artística de grande projeção na República de

Weimar: a Bauhaus. Fundada por Walter Gropius, a casa de construção estatal veio a se

tornar uma das maiores e mais influentes escolas de arquitetura, design e urbanismo do

mundo, tendo criado seu estilo próprio – muito evidente em seus projetos arquitetônicos e nas

criações tipográficas. Tal qual o expressionismo, a Bauhaus é uma das mais importantes

heranças culturais deixadas pela República de Weimar, mas talvez venha a evidenciar com

ainda mais clareza qual resgate do espírito alemão que sua idealização suscita. Segundo

Gropius (apud LIRA, 2003), a Bauhaus não somente se lançava à educação artística, mas

serviria – em sua concepção – ao exercício da “grande virtude socialista”, de sua

“responsabilidade social como arquiteto” (GAY, 1978: 22). Ainda assim, do mesmo modo

como o expressionismo, apesar de haver um propósito à criação da Bauhaus, este não teve

força ou engajamento político o bastante. “Se é mesmo plausível a acusação de envolvimento

18 A título de referência, um dos primeiros roteiros cinematográficos tidos como expressionista, O gabinete do

Dr. Caligari, alude à completa deturpação da política e da ordem na Alemanha do entreguerras. Cf. GAY, 1978:

120 et seq.

17

de seus mestres com a política socialista ou revolucionária, ao que tudo indica o nexo

universalista fundamental da escola deixava-se impregnar de certo pathos de neutralidade”

(LIRA, 2003: 74).

É cabível, no entanto, assumir que a idealização de Gropius, a concepção fundamental

da Bauhaus e seu propósito emparelham-se tanto com a educação estética do homem – tal

como colocada nas cartas de Schiller (2011) – quanto com o que se evidenciava como o

espaço de Kultur e seu apelo humanista e universalista nos anos que antecederam a

unificação alemã. Com efeito, a Bauhaus não pretendia ser apenas um centro de formação

técnica, mas realizar criações que servissem à humanidade (GAY, 1978; LIRA, 2003). Ainda

que separados por quase um século, Schiller e a Bauhaus comungam de mais ideais do que

sua distância no tempo sugeriria – o que, por sua vez, de um lado pode sugerir que algo no

pensamento alemão tenha sobrevivido através das décadas; ou, de outro, que o projeto da

Bauhaus (e também a força do expressionismo) resgate no homem alemão algo que há muito

havia sido solapado e, então, em tempos de crise e convulsão social, volta a emergir como

contestação.

Contudo, mais uma assunção é necessária: ainda que a intensidade do período

entreguerras venha a gestar movimentos de contestação ou oposição à ordem vigente na

República de Weimar, é notório que lhes faltara fôlego, não por conta da pressão das forças

políticas vigentes, mas – talvez – por conta da relegação ao segundo plano da velha acepção

de Kultur do pré-guerras e, portanto, da solidificação do habitus como se dera em 1871.

Com efeito, as intempéries nos planos político e econômico alemães19

na verdade

catalisam – e não determinam – a barbárie que é gestada no interior da configuração da

República de Weimar e que enfim eclode como uma força que não encontra barreiras sólidas

o bastante no próprio povo alemão ante seu avanço20

.

Assim, as proporções até então inimagináveis tomadas pela crise de hiperinflação e

pela taxa de desemprego na Alemanha ao longo do período entreguerras vem a emoldurar

uma crise de contornos econômicos, mas cujo cerne está, no limite, na destruição da confiança

na capacidade de o Estado chancelar sua própria moeda. Analogamente, a crise política vivida

19 Como abordadas no item anterior.

20 “E o verão de 1932 foi marcado por choques sangrentos entre comunistas e nazistas e socialistas e nazistas”

(GAY, 1978: 181).

18

em Weimar também é fruto de questões mais profundas. O ganho de cada vez mais cadeiras

pelo partido nazista nas eleições parlamentares da República denuncia a degradação crescente

de qualquer ordem social naquele período, ao mesmo tempo em que demonstra a força do

habitus alemão, imbuído dos ideais militaristas e violentos nele cristalizados quando de 1871.

Por mais que Hitler tenha sido nomeado chanceler da República em 1933 e apenas

posteriormente dado cabo a toda sua estrutura para construir seu inventado III Reich, ele e seu

partido dominavam o parlamento já em julho de 1932.

Nesse sentido, a vitória de Hitler, do nazismo, e sua própria possibilidade são

resultantes de qual soma de forças. O momentum do entreguerras, naturalmente, contribui

para gerar as instabilidades que nele se percebem, mas a permissividade da barbárie pelo povo

alemã se deve a uma transformação de caráter cultural cristalizada mesmo antes da Primeira

Guerra Mundial. A crise, contudo, é projetada dramaticamente na República de Weimar; ela

é, enfim, um reflexo da evolução do habitus alemão como se dera até então. No limite, ela é a

morte da República de Weimar e de todas as suas manifestações culturais, a despeito das

instabilidades que gestara.

Considerações Finais

“Se até agora [a verdade] não comprovou sua força vitoriosa, isso não se deve ao

entendimento que não soube revelá-la, mas ao coração que a ela se fechou e ao

impulso que por ela não agiu” (SCHILLER, 2011: 45).

Longe de ser um mero nome à unidade política que antecederia o II Reich nazista, a

República de Weimar (1919 – 1933) se configura não apenas como cenário de instabilidades

econômicas, políticas e sociais, mas também como o berço de manifestações artísticas de

vanguarda que se projetam no mundo todo, para a posteridade. Se a física quântica, a Bauhaus

e o expressionismo são heranças da “cultura de Weimar” (GAY, 1978), tanto se deve

justamente a fragilidade daquele construto político porquanto é ela que permite a contestação.

Tal contestação pode ser identificada não apenas como um movimento fortuito, mas

também como a recuperação de algo no povo alemão que parecia ter sido soterrado pelo

ímpeto expansionista do II Reich, pela transformação do habitus e pela I Grande Guerra. Com

efeito, o espírito alemão teria subsistido, dado um sopro de vida no constrito e humilhado

coração da Europa. Pois então, se subsistira qualquer alusão à antiga idealização de Kultur em

sua acepção mais humanista e universalista, talvez ela tenha sido esmagada no entreguerras.

19

Assim, muito embora a fragilidade econômica e política forneça combustível à barbárie, a

permissividade de um povo ante a ela deve ter causas mais associadas a uma crise cultural.

Em verdade, a importância em se observar o que ocorrera na Alemanha do

entreguerras não reside apenas em sua relevância para compreender os alemães ou o

pensamento alemão. O entendimento da crise que pulsa na República de Weimar porventura

acende luzes sobre toda e qualquer crise na sociedade capitalista. (BELLUZZO; ALMEIDA,

2002). As contradições estão postas, afinal. O ímpeto expansionista das nações – e do capital

– no pré-guerras não é senão o resultado das contradições postas pelo próprio sistema

capitalista que, à medida que destrói sua base de valorização – o trabalho vivo – necessita

conquistar mais e mais espaços de valorização, porquanto não é ordenado. De modo análogo,

a ascensão do nazismo é, de um lado, a vingança do político sobre o econômico

(BELLUZZO, 2009), um resgate desesperado, frustrado e contraditório de um ideal

nacionalista como se ele fosse servir a mitigação da crise – quando, na verdade, é só o

sintoma de outra.

A leitura que se pretende fazer, contudo, é de que as crises na sociedade capitalista não

residem apenas na compreensão das forças econômicas, mas também na compreensão de que

a sociedade se transformara, assim como os conceitos de cultura e civilização. Tal como na

República de Weimar, onde a Bauhaus e o expressionismo alemão foram projeções de um

resquício de cultura, humanismo e universalismo num movimento fragmentado e sem

unidade, é hoje mesmo perceptível a falta de tais valores – e unidade – nas sociedades

capitalistas; e, à medida que as contradições da relação capital se tornam mais evidentes, essa

falta é tanto mais notável.

Quaisquer transformações sociais, enfim, não decorrem apenas de mudanças do ponto

de vista material, mas muito devem à história da cultura. Ao mesmo tempo, se o capital

esconde as relações sociais, é necessário compreender que a sociedade como é organizada

permite fissuras por entre as quais a relação capital penetra; fissuras estas devidas não apenas

às forças econômicas, mas à crise de valores.

20

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