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As Marionetes do Diabo: As representações de Satã no corpo na Idade Moderna

Date post: 27-Feb-2023
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1 As Marionetes do Diabo: As representações de Satã no corpo na Idade Moderna. José Lucas Cordeiro Fernandes (UFC) * [email protected] Resumo: Devido a uma série de discursos o Diabo se tornava forte, se inserido em nossa mentalidade, e através disso se inserindo em nossos corpos, dominando os nossos sentidos e criando um medo que assolava a população medieval e renascentista, onde através de um olhar, de “humores errados” o Diabo poderia possuir seu corpo, criando cordas que nos guiavam para o mal, controlando os corpos, assolando os mesmos com doenças, possuindo e tomando total controle sobre as mentes e os corpos. Como se fomentou tais discursos que povoaram o imaginário “renascentista” com esta presença diabólica? Quais foram os discursos médicos que comprovaram essa diabolização do corpo? A proposta do trabalho é analisar estes questionamentos e a inserção do diabo no corpo e nos sentidos, analisando os discursos médicos e teológicos, compreendendo a cristalização do medo do Diabo sobre o corpo. Palavras-chave: Corpo; Diabo; Idade Moderna. “Vitorioso na liça do paraíso terrestre, Satã despojou Adão de seu domínio e atribuiu-se o poder e o império do mundo que estava destinado ao homem desde seu nascimento, do qual usa o título desde essa usurpação. E incessantemente ele o persegue por tentação, não deixando sua alma tranqüila enquanto ela está nos limites do império que ele conquistou e usurpou de nós. Ele até mesmo invade seu próprio corpo algumas vezes, de modo que, como antes do pecado, incorporou-se na serpente, agora se incorpora dentro do homem.” Bérulle 1 * Graduando em História pela UFC. O presente trabalho é orientado pelo Ms. Pedro Airton Queiroz, professor efetivo da disciplina de História Medieval da UFC. 1 P. de Bérulle, Traité des anges énergumènes, Paris, 1599, cap. 2. In: DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente (1300 – 1800). São Paulo, SP: Companhia de bolso, 2009. p.372.
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1As Marionetes do Diabo: As representações de Satã no corpo na Idade Moderna.

José Lucas Cordeiro Fernandes (UFC) *

[email protected]

Resumo: Devido a uma série de discursos o Diabo se tornava forte, se inserido em nossa

mentalidade, e através disso se inserindo em nossos corpos, dominando os nossos

sentidos e criando um medo que assolava a população medieval e renascentista, onde

através de um olhar, de “humores errados” o Diabo poderia possuir seu corpo, criando

cordas que nos guiavam para o mal, controlando os corpos, assolando os mesmos com

doenças, possuindo e tomando total controle sobre as mentes e os corpos. Como se

fomentou tais discursos que povoaram o imaginário “renascentista” com esta presença

diabólica? Quais foram os discursos médicos que comprovaram essa diabolização do

corpo? A proposta do trabalho é analisar estes questionamentos e a inserção do diabo no

corpo e nos sentidos, analisando os discursos médicos e teológicos, compreendendo a

cristalização do medo do Diabo sobre o corpo.

Palavras-chave: Corpo; Diabo; Idade Moderna.

“Vitorioso na liça do paraíso terrestre, Satã despojou Adão de seu domínio e

atribuiu-se o poder e o império do mundo que estava destinado ao homem

desde seu nascimento, do qual usa o título desde essa usurpação. E

incessantemente ele o persegue por tentação, não deixando sua alma

tranqüila enquanto ela está nos limites do império que ele conquistou e

usurpou de nós. Ele até mesmo invade seu próprio corpo algumas vezes, de

modo que, como antes do pecado, incorporou-se na serpente, agora se

incorpora dentro do homem.”

Bérulle 1

* Graduando em História pela UFC. O presente trabalho é orientado pelo Ms. Pedro Airton Queiroz, professor efetivo da disciplina de História Medieval da UFC. 1 P. de Bérulle, Traité des anges énergumènes, Paris, 1599, cap. 2. In: DELUMEAU, Jean. História do

medo no Ocidente (1300 – 1800). São Paulo, SP: Companhia de bolso, 2009. p.372.

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O mundo fora criado como um paraíso, onde o homem e a mulher viviam em

harmonia com Deus, até que Satã possuindo a serpente convence Eva a comer o fruto

proibido, esta que convence Adão a fazer o mesmo, decretando o fim do paraíso

terrestre, e o início dos pecados e de um mundo que é regido pelo Diabo, o “príncipe

deste mundo”.

Este novo mundo era aberto às tentações diabólicas, pois Lúcifer poderia

interferir nas coisas do mundo, já que a queda do homem foi uma ascensão do poder de

Lúcifer, pois agora ele poderia tentar a humanidade, apesar de que ele, como querubim

de Deus sofreu a sua própria queda. O paraíso terrestre era controlado e assegurado por

Deus, já o mundo fora do éden era livre, ou seja, o pecado original foi o símbolo da

permissão de Deus para as tentações do Diabo sobre nós, como uma forma de nos

testar2. Logo, podemos ver que a função do Diabo é nos levar a tentação, fazer nós

infligirmos à ordem, ceder aos pecados, entregar as nossas almas para o inferno, nos

afastando de Deus, para isso ele cria o corpo como sua ferramenta de corrupção.

Mas antes de compreendermos a criação do corpo pelo Diabo temos que

compreender, mesmo que de forma sucinta, a própria “invenção” do Satã, esta que vai

perpassar por vários períodos históricos, “resistindo” até os dias atuais. As grandes

influências no imaginário da população da Idade Moderna advêm do período medieval,

logo, a imagem do demônio moderno é uma continuidade desse personagem que cresce

tão violentamente na Idade Média. Jacob Burckhardt traz uma ideia muito equivocada

sobre a mentalidade medieval e do dito renascimento, ele obscurece a importância da

Idade Média e sua influencia para os moldes renascentistas, além do fato de mostrar que

houve toda uma “ascensão” e uma mudança na mentalidade. Vemos na obra de Jean

Delumeau, História do Medo no Ocidente, um grande elemento de crítica a ideia de

renascimento, pois na verdade, o mais correto seria uma continuidade do medievo. As

influências medievais na mentalidade moderna é um grande exemplo de como o

medievo ainda se mantêm dentro das estruturas imagéticas modernas, representando

2O Diabo age com a permissão de Deus, para tentar o nosso livre arbítrio nos levando sempre para o mal.

Mas os teólogos identificavam isso como uma permissão pela queda do homem, já que Lúcifer foi o

primeiro a usar sua força de escolha para o mal, já que Deus o havia criado no bem. Ou seja, o Diabo está

com a permissão de Deus para nos tentar, nós assim como ele, criados no bem, e assim como ele é o

nosso livre arbítrio que nos leva para o mal.

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claramente uma continuidade e não uma brusca ruptura, ao oposto do que cita

Burckhardt. Satã é grande exemplo para percebermos essa progressão da mentalidade

medieval, pois os medos das ações sobrenaturais existentes na Idade Média vão

continuar existindo.

Imagem I

Cernunnus, o deus cornudo celta, figura incorporada a iconografia do Diabo. Detalhe do caldeirão de

Gundestrup, século I ou II a.C.

Satã é uma figura construída historicamente, onde observamos suas primeiras

representações imagéticas no século VI, mas ele é uma figura muito mais antiga, já que

observamos citações sobre o mesmo nas obras de Clemente, Justino, Tertuliano e outros

já no período da antiguidade. Lúcifer e seus demônios passam para a Idade Média

realizando uma série de apropriações. Os deuses de culturas contrárias ao cristianismo

serão demonizados, os representantes divinos de outras culturas se tornaram os

representantes profanos do cristianismo, se tornando os servos do Diabo e o próprio um

mosaico de várias culturas. Cernunnos (ver imagem I), deus celta, conhecido como o

deus chifrudo vai ser de grande influência na imagem do Diabo, lhe emprestando os

chifres e algumas características animalescas, assim como Pã (ver imagem II), um deus

muito conhecido da mitologia grega3. Loki, deus nórdico também terá muita influência

3 Luther Link comenta que a força de Pã na imagética do Diabo não foi tão grande quanto se comenta, já que existem inúmeras representações medievais que não utilizam tal figura grega. Já Russel demonstra a importância da figura de Pã na imagética do Diabo. Ambos estão certos, pois de certa forma existe e não existe uma tradição imagética do Diabo, pois identificamos várias representações, diferente do que ocorre

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e semelhança com o antagonista cristão, principalmente no momento de cristianização

dos reinos Vikings. Estes são grandes exemplos de como a imagem de Lúcifer vai se

modificar com essas apropriações, mas existiram inúmeras outras, assim como muitos

se tornaram demônios, como: Leviatã, Moloc, Asmodeus, Ba’al e etc. Um caso

interessante de modificação que essas apropriações faziam é o de Bes:

“[...] era considerado uma divindade menor no panteão dos deuses egípcios,

porém seus ídolos foram encontrados em mais casas do que qualquer outro

deus. Bes não era uma deidade exclusiva do Egito. Sua figura pôde ser

encontrada na Mesopotâmia, Cartago e Fenícia. Sua caracterização e seus

atributos sempre foram feios. Sua face assustadora não foi, contudo,

associada a promover ou estar relacionada com a concepção de mal entre os

egípcios. Na verdade, Bes era um deus de proteção contra maus espíritos.”

(ALMEIDA, 2008, P.28)

O nível de adoração de Bes fez com que houvesse um foco em mudar a sua

imagem e torna - lá maligna, ele simplesmente adquiriu um função totalmente oposta a

que tinha no Egito, antes protegia contra os maus espíritos agora ela ingressava ao

panteão que outrora combatia.

Imagem II

com Jesus (que tende a ser representado de maneira semelhante), mas também observamos alguns padrões nesse estudo, como a representação do Diabo pequeno e negro da baixa Idade Média. Ou seja, podemos observar a dificuldade que é perceber a imagem do Diabo nas pinturas e na tradição escrita, deixando clara a existência de várias influências e tipos nessa representação diabólica.

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“Pã e o bode, século I a.C., estatueta de Herculano: uma fonte clássica para os chifres, a barba, nariz

achatado, orelhas pontudas e parte inferior do corpo peluda do Diabo. Museo Nazionale, Nápoles.”

(LINK, 1998, p. 54)

Essas inúmeras mudanças na imagem do Diabo, o tornou o monstro horrendo

como é comumente representado, mas essa influencia imagética propiciou uma maior

cristalização dele, permitindo uma penetração em várias culturas, substituindo e se

tornando o exemplo de mal, alimentando um medo do Diabo e dos seus servos, que

apesar das suas diferenças, persiste até hoje. Quando algo ganha mais divulgação, tende

a se tornar maior e mais poderoso, o que não foi diferente com o príncipe das trevas,

pois essa mudança e aumento da representação de Lúcifer só aumentaram e muito seu

poder. Os teólogos, pintores, juristas, médicos e literatos vão se preocupar com o Diabo,

aumentando a presença do mesmo em diversos discursos, logo, quando algo é muito

presente nos discursos das camadas que regem a sociedade, ele tende a se tornar o

pensamento da sociedade, uma fomentação do imaginário através do discurso4·. Nessa

penetração no imaginário é que o Diabo passa a penetrar nos corpos.

Michael Psellos (1018 – 1078), conselheiro influente da tribuna imperial e

grande líder do renascimento na universidade do século XI e grande professor de

filosofia. Ele trazia os moldes da hierarquia demoníaca, mostrando claramente como no

inferno há uma organização, um corpo profano voltado para nos atormentar. O posto

mais alto era os leliouria, da esfera do ar rarefeito além da lua. Depois os aeria,

demônios do ar abaixo da lua; o chthonia, que habitavam a terra; o hydrara ou enalia,

que vive na água; o hypochthonia, que vive sobre a terra; e mais abaixo, os misophaes,

aqueles que são fotos fóbicos e cegos, nos mais profundo do inferno.5 Estas castas

existiam em todos os lugares com o intuito de acabar e destruir os planos de Deus. “Os demônios mais altos agem diretamente sobre os sentidos humanos e

indiretamente sobre o intelecto; usando sua ‘ação imaginativa’,

‘phantastikos’, provocam imagens em nossas mentes. Os demônios mais

3 Ver: BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. 4 Ver: RUSSEL, Jeffrey Burton. Lúcifer: o Diabo na Idade Média. Editora Masdra, 2003. p. 37-38. 5 Nome usado para representar o Diabo antes da queda, já que continha o sufixo El, que significa divino, nome comum na linguagem do bogomilismo.

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baixos têm mentes como a dos animais. Estes espíritos [...] precipitam-se

cruelmente sobre nós, causando doenças e acidentes fatais, e nos possuindo.

É por isso que as pessoas possuídas freqüentemente exibem um

comportamento animal.” (RUSSEL, 2003, p. 38)

Outra ação do Satã sobre corpo é observada e trabalhada pelos textos heréticos

do Bogomilismo, heresia do século X, por volta de 950, fundada na Bulgária por

Bogomil. “A diabologia era o pensamento central de Bogomil”, pois ela era uma heresia

de cunho dualista, ou seja, da existência de duas forças conflitantes, o bem e o mal,

sendo essa maldade representada por Satã. Eles apresentam Satanael6 como criador do

universo que vivemos, “é o Deus Criador do Antigo Testamento, e uma entidade

perversa o bastante, pois, para criar este mundo material com sua grosseria, miséria e

sofrimento, deve ser má.” (RUSSEL, 2003, p.42). A criação do mundo material teria

sido obra de Satanael, este que é apontado como o filho mais velho de Deus, o segundo

seria Jesus Cristo. Essa criação é total, Adão seria criação do Diabo, esta que aborreceu

Satã pelos seus defeitos, por isso ele pede auxílio ao seu inimigo, Deus, para ajudar a

criar a humanidade, em troca ele permitiria a entrada de Deus nesse mundo e a divisão

do poder. Vemos que a criação do mundo material em si já é ruim por afastar a alma do

caminho correto, por isso, é criação do Diabo, assim como corpo: “[...] a alma humana,

uma criação do verdadeiro bom Deus, é aprisionada no corpo humano que é uma

criação de Satabael, o falso deus, que enganou Deus, que o ajudou e agora mantém a

alma prisioneira em um corpo repugnante e sujo.” (RUSSEL, 2003, p.42). O

bogomilismo mesmo sendo uma heresia irá influenciar alguns textos, assim como, a

própria experiência da Bogomil já vem de textos anteriores, ou seja, tal heresia serve

para mostrar como era vista a figura do Diabo sobre o corpo e como os processos

históricos perpetuaram esses discursos, já que a própria existência de uma heresia com

esse dogma prova isso.

O bogomilismo também comentava acerca da força dos demônios sobre os

corpos e as mentes. Para eles os demônios agiam sobre a ordem do Diabo, e atacavam

com cautela devido ao medo do exorcismo ou da derrota, por isso eles se escondem tão

bem dentro do indivíduo. Enquanto estão nos corpos os demônios vão iniciar a

corrupção dos mesmos, vão torná-los doentes, vão agredi-los, e usaram os corpos para

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provocar desastres e até a morte do possuído, Russel comenta que uma morte que os

demônios adoravam praticar era jogando os corpos em um abismo, ou quando os

possuíam, ou quando assumia uma forma física capaz de empurrar o ser humano para a

morte. Mas a corrupção do corpo não se compara a corrupção da alma, pois eles forçam

o possuído a pecarem, eles causam o pecado, assim como são atraídos por ele. O

humanista Hans Sachs faz uma afirmação em volta dessa mesma ideia: “Saco de vícios,

o corpo masculino, podia ser facilmente invadido pelo demônio quando o indivíduo

bebia em excesso, o que levava uma horda de diabos a aí se desencadearem.”

(MUCHEMBLED, 2001, p. 118). O pecado seja ele qual for era sempre apresentado

como uma aproximação do Diabo a condenação das almas pelos pecados cometidos

pelo corpo, comprovando que a criação do mesmo por Lúcifer era para usá-lo como

uma ferramenta de tentação das virtudes humanas. (ver imagem III)

Imagem III

Hieronymus Bosch sobre os tormentos infernais. Alma de um viciado sendo atormentada no inferno.

A possessão é maior prova da influência do Diabo sobre o corpo humano, a

entrada do diabo poderia ser para nos testar, ou já atraído pelos nossos pecados ou até

por não ter fé ou pelo simples azar de engolir um demônio que estava no alimento, ou

em uma tentativa do demônio de impedir o homem de se aproximar de Deus, ou seja, o

demônio poderia possuir os corpos de várias formas e controlá-los. O Martelo das

Feiticeiras, de Del Rio relata da seguinte forma a confissão de um padre possuído:

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“Estou privado do uso da razão unicamente quando quero dedicar-me à

oração ou visitar lugares santos [...]. [Então o demônio] dispõe de todos os

meus membros e órgãos – meu pescoço, minha língua, meus pulmões – para

falar e gritar quando lhe apraz. Ouço, sem dúvida, as palavras, mas não

posso absolutamente resistir; e quando ardentemente eu gostaria de

entregar-me a alguma oração, ele me assalta mais violentamente, soltando

minha língua com mais força.” (DELUMEAU, 2009, p. 359-360).

A possessão era temida e muito vista na Idade Moderna, André Celichius,

escrevia em 1595 sobre os casos de possessão: “Quase em toda parte, perto ou longe de

nós e tão considerável que se fica surpreso e afligido, e essa talvez a verdadeira praga

pela qual nosso Egito e todo o mundo caduco que o habita estão condenados a perecer.”

(DELUMEAU, 2009, p. 362). Lutero também comentava sobre as possessões:

“Somos corpos e sujeitos ao Diabo, e estrangeiros, hóspedes, no mundo no

qual o Diabo é o príncipe e o deus. O pão que comemos, a bebida que

bebemos, as roupas que usamos, ainda mais o ar que respiramos e tudo que

pertence à nossa vida na carne é portanto seu império.”(DELUMEAU, 2009,

p. 372).

A afirmação de Lutero serve para observamos alguns elementos. Primeiro, o

Diabo está em todo lugar que se liga ao material, tudo que é material a ele pertence.

Segundo, o corpo é do Diabo e tudo que fazemos que seja puramente carnal é, por

conseguinte, elemento do Diabo.

A porta para invasão dos demônios são os próprios pecados, assim como a

entrada de doenças é pela atração de humores estranhos no corpo do ser humano, logo o

pecado era um humor errado e um atrativo para as doenças7. A teoria dos humores, de

Hipócrates, assim como os estudos de Eduardo Galeno, servirão de grande inspiração

para os médicos da Idade Moderna, estes que souberam muito bem associá-los as forças

diabólicas. Se o corpo era um envoltório de humores, como esses poderiam ser

alterados? Poderia ocorrer naturalmente, como através de muito trabalho, ou até

pensamentos negativos e impuros poderiam alterar o humor. Eles poderiam ser

mudados por forças alheias, poderiam ser contaminados por humores de outras pessoas 7Na bíblia vemos várias passagens que se comenta que a causa das doenças são os demônios, como por

exemplo: Mateus 17: 14-20 ou Mateus 10: 5-8.

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ou do ambiente. O “[...] princípio do contágio, ele foi, a nosso ver, o vetor principal de

uma visão mágica do corpo, cuja parte sombria foi a de contribuir para dar crédito às

teses demonológicas e para desencadear perseguições em massa às feiticeiras.”

(MUCHEMBLED, 2001, p. 95). Em mundo onde a ciência médica evoluía, mas não

possuía um conhecimento físico e matemático avançado, estas não propiciaram uma

quebra dos mitos diabólicos, mas sim um aumento. O ar contaminado, era devido às

forças diabólicas, como comenta Ambroise Paré, esse ar estava cada vez mais associado

ao Sabá, as bruxas e as forças luciferinas, possibilitando uma diabolização dos sentidos.

Os demônios usavam todos os nossos sentidos, através da possessão podiam

mudar nossa visão, nos fazer ouvir coisas. Usam truques ilusórios, mexendo com a

mente e os sentidos para nos enganar, nos matar. Os sentidos humanos eram brinquedos

dos demônios que tinham toda a capacidade de manipulá-los para o mal e para os

pecados. Dentre todos os sentidos, sem dúvida, o olfato foi o mais diabolizado, já que

tinha o aparato dos médicos e da Igreja. O ar pestilento continha uma “malignidade

oculta e indizível”, como cita Ambroise Paré em 1568. Logo, para ele, um conhecido

cirurgião, o ar da peste não era mais putrefato, como para Hipócrates e Galeno, mas sim

venenoso, por isso que os médicos da peste (ver imagem IV) usavam as máscaras com

aqueles longos bicos, cheios de aromas, para impedir a entrada desses gases venenosos.

Imagem IV

Paul Fürst, Der Doctor Schnabel von Rom, 1656.

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Outra porta de entrada do Diabo em nosso corpo era a prática sexual. O sexo era

pregado pela Igreja como uma prática voltada apenas para a multiplicação dos homens,

e que deveria ser feita apenas após o casamento. O sexo desregrado ou com propósitos

voltados para o prazer era um grave pecado que poderia ser um atrativo para os

demônios, tanto que era comum dizer que as feiticeiras do Sabá praticavam sexo para

atrair o Diabo, assim como faziam como ele, beijando o seu ânus (gesto símbolo de

devoção a Lúcifer). No “De planctu ecclesia de 1330 se afirmava: “não há nenhuma

imundice para qual a luxúria não conduza”, ou como Vilém Flusser comenta em sua

História do Diabo: ‘O maior dos pecados é a luxúria, pois ela leva a todos os outros. ”’

(FERNANDES, 2012, p.3). A luxúria é o maior pecado de todos, é o maior pecado do

corpo, por isso, é tão próximo a Lúcifer, este que através da leitura do Enoque, livro

retirado da bíblia teve como o motivo de sua queda a luxúria e não o orgulho8, como

comumente nós vemos.

O Diabo durante toda a Idade Moderna esta intimamente ligada às práticas

culturais associadas ao corpo. Vimos fontes teológicas e médicas e como essas se

juntaram para fomentar um discurso imagético sobre Lúcifer, permitindo que as

doenças, os vícios, as práticas sexuais, a vaidade, e praticamente tudo que é material e

corporal entrasse no domínio do Diabo. Ele em cada fase histórica se alterou e mudou

com o intuito de permanecer, e é a Igreja que possibilitou isso, acabando com os cultos

agrários, lutando contra a reforma protestante, e acusando o Diabo como o responsável

por heresias e pedras no caminho da Igreja. Hoje ele não mais resiste, ele cresce com a

divulgação de quadrinhos, filmes, com o aumento da Igreja Satânica. O corpo ainda lhe

pertence (mesmo que de forma bem menor e diferente), pois vemos diariamente na

televisão espetáculos de sua expulsão, espetáculos de cura com a saída do “encosto”

diabólico. Nesses estudos sobre o Diabo, vendo sua carreira dentro das sociedades, só

me fez perceber que ele passa por crises e ápices, mas que as suas representações e

força que ele adquiriu o tornaram eterno.

8Ver: LINK, Luther. O Diabo: Uma máscara sem rosto. Companhia das letras, 1998. p.33-37.

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