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PERSOI 1 AGENS ANJO -Barqueiro do Paraíso DIABO -Barqueiro do Inferno

Date post: 02-Feb-2023
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PERSOI 1 AGENS ANJO - Barqueiro do Paraíso DIABO - Barqueiro do Inferno Companheiro do DIABO FIDALGO PAJEM do Fidalgo ONZENEIRO, Agiota PARVO, Bobo SAPATEIRO FRADE FLORENÇA, Companheira do Frade BRÍSIDA VAZ, Alcoviteira JUDEU CORREGEDOR PROCURADOR ENFORCADO Quatro CAVALEIROS No presente auto, se imagina que, no momento em que acabamos de expirar, chegamos subitamente a um rio que, por [orça, devemos cruzar em uma das duas barcas que naquele porto estão. Uma delas leva ao Paraíso; a outra, ao Inferno. Cada barca tem um barqueiro na proa: a do Paraíso, um anio; a da Inferno, um diabo e seu companheiro. O primeiro que surge é um Fidalgo, que chega com um pajem que Lhesegura a longa cauda do manto e carrega uma cadeira. E começa o barqueiro do Inferno, antes que o Fidalgo chegue. DIABO - (ao companheiro) À barca, à barca! Vamos lá! Que é muito boa a maré! Puxa a vela para cá! A versão modernizada apresentada CI: seguir é uma adaptação que obedece fielmente à sequência da peça. sem compromcter seu conteúdo.. Mantivemos o wo das rimas e a medida dos versos (redondilhas maiores) c romamos a liberdade de parafrasear algumas passagens pm torná-Ias mais compreensíveis ao leitor de hoje. Com este trabalho didãtico, procuramos facilitar o entendimento da obra, acriu.lá quase quinhentos anos, e também oferecer um texto acessível ao público, no caso de uma represcnnção teatral.
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PERSOI1AGENS

ANJO - Barqueiro do ParaísoDIABO - Barqueiro do InfernoCompanheiro do DIABOFIDALGOPAJEM do FidalgoONZENEIRO, AgiotaPARVO, BoboSAPATEIROFRADEFLORENÇA, Companheira do FradeBRÍSIDA VAZ, AlcoviteiraJUDEUCORREGEDORPROCURADORENFORCADOQuatro CAVALEIROS

No presente auto, se imagina que, no momento em que acabamos de expirar,chegamos subitamente a um rio que, por [orça, devemos cruzar em uma das duasbarcas que naquele porto estão. Uma delas leva ao Paraíso; a outra, ao Inferno.Cada barca tem um barqueiro na proa: a do Paraíso, um anio; a da Inferno, umdiabo e seu companheiro.

Oprimeiro que surge é um Fidalgo, que chega com um pajem que Lheseguraa longa cauda do manto e carrega uma cadeira.

E começa o barqueiro do Inferno, antes que o Fidalgo chegue.

DIABO - (ao companheiro)À barca, à barca! Vamos lá!Que é muito boa a maré!Puxa a vela para cá!

A versão modernizada apresentada CI: seguir é uma adaptação que obedece fielmente à sequência da peça. sem compromcter seu conteúdo..Mantivemos o wo das rimas e a medida dos versos (redondilhas maiores) c romamos a liberdade de parafrasear algumas passagens pmtorná-Ias mais compreensíveis ao leitor de hoje. Com este trabalho didãtico, procuramos facilitar o entendimento da obra, acriu.láquase quinhentos anos, e também oferecer um texto acessível ao público, no caso de uma represcnnção teatral.

COMPA.NHE1RO Feito! Fito!DlABO - Vai para a ilha danada

e há de partir sem demora.

DIABO - Be:n está!

Vai ali e, sem demora,

estica bem aquela corda

e libera aquele banco

para a gente que virá.

FIDALGO Para lá vai a... senhora?

À barca, à barca, uuh!

Depressa! Temos que ir!

N_! Bom tempo de partir!

Louvores a Belzebu!

DIABO - (corrigàldo, irritado)Senhor!. .. A vosso serviço.

FIDALGO - Isso parece um cortiço.

DIABO Porque olhais lá de fora.

FIDALGO Porém, a que terra passais?

Ora, pois, que fazes tu?

Desocupa esse espaço!DIABO Para o inferno, senhor.

COMPANHEIRO É pra já! Pronto, está feiro!FIDALGO - (irônico)

Hum! terra bem sem sabor!

DIABO - Abaixa logo esse rabo!

Deixa preparado o cabo

e ajeita a corda de içar.

DIABO Quê?! Também aqui zornbaisi

FIDALGO - E passageiros achaispara tal embarcação?

COMPANHEIRO - Vamos lá! Içar, içar!

DIABO - Oh! que caravela esta!

Põe bandeiras, que é festa!

(vendo um Fidalgo que se aproxima)Oh! poderoso dom Henrique!

Vós aqui? Que coisa é esta?

DIABO - Pois eu vos vejo à feição

para ir ao nosso cais.

FIDALGO Parece-te mesmo assim?

DIABO Onde esperas salvação?

Vem o FIDALGO acompanhado de um pajrm com uma cadeira. Chegando à barcado Inferno, diz:

FIDALGO - Eu deixo na outra vidaquem reze sempre por mim.

DIABO - Quem reze sempre por ti?Hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi.

FIDALGO - Esta barca, que sai agora,

Tu viveste a teu prazer

pensando aqui ter perdão

porque lá rezam por ti?

Embarca já! - ou ... embarcai,

Esta é a hora derradeira.

Mandai meter a cadeiraque assim passou vosso pai.

Que bestcsl ... Não me entendem ...Pensam que uma gralha eu sou?

ANJO - (aproximando-se)Que mandais?

FIDALGO - (apavorado)Quê?! É assim que a coisa vai?

FIDALGO - Que me digais,pois parti tão sem aviso,

se a barca do paraíso

é esta em que navegais.

DIABO - A boa vida que levastes!

ANJO É esta. Que desejais?DIABO - (impaciente)

Embarcai! Embarcai logo!Segundo o que lá plantastesagora aqui recebereis.E como a morte já passastes,passai agora este rio.

FIDALGO - Que me deixeis embarcar.

Sou fidalgo de solare é bom que me recolhais.

FIDALGO Não há aqui outro navio?ANJO - Não se embarca tirania

nesta barca divinal.

DIABO - Não, senhor, que este fretastes,pois tão logo expirastestínheis me dado O sinal.

FIDALGO - Não sei por que achais malque entre minha senhoria.

FIDALGO - (confuso, sem compreender nada)Sinal? Qual foi o sinal?

ANJO - Para vossa fantasiabem pequena é esta barca.

FIDALGO - (dirigintÚJ-seàbarca do Paralso)A esta outra barca me vou.(gritando para oAnjo que está na barca)Olá! Pra onde partis?(o Anjo não responde)6 barqueiro, não me ouvis?! ANJO - (com firmeza e autoridade)Respondei-rnel Olá! Hou!... Não vindes vós de maneira

Por Deus, mal arranjado estou... para entrar neste navio.Mas isto agora é pior... (apontando para a barca do Infemo)

~--~ ._~==~~~----~------~

FIDALGO - Para um senhor com minha marca

não há aqui mais cortesia?

(an-ogante)Venha prancha e tudo o mais,

levai-me desta ribeira!

Esse outro vai mais vazio. DIABO - Ernbarcuc vossa doçuraA cadeira entrará, que cá DOS entenderemos ...

(apontando a cauda do manto Tornareis um par de remos,

do Fidalgo) veremos como rernars,e chegando ao nosso cais,e o rabo caberá ...todos bem vos serviremos.

E todo o vosso senhorio.

Ireis lá mais espaçoso, FIDALGO - Mas esperai-me aqui!vós e... vossa senhoria, Tornarei à outra vidapensando na tirania ver minha dama querida

do pobre povo queixoso. que quer se matar por mim!

E porque, de generoso,DIABO Q ·;>1

desprezastes os pequenos, ue quer se ma~ar por ti: ....

agora sereis tanto menosFIDALGO Bem certo disso estou eu.

quanto mais fostes pretensioso.

DIABO - Tolo amante! ... Endoideceu.DIABO- À barca, à barca, senhores! Um louco assim nunca vi!

Oh! Que maré tão jeitosa!

Uma brisa bem gostosa FIDALGO - Era tanto o seu querer!e valentes remadores! Todo dia me escrevia.

(cantarolando)DIABO- Quantas mentiras que lias!Virão todos às minhas mãos,

Às minhas mãos todos virão.E morrias de prazer!

FIDALGO - E por que escarnecer,FIDALGO - (tristemente conformado) se era um grande querer bem?

Ao inferno, todavia!

Inferno é o que há para mim?! DIABO - (com ironia)

O triste! enquanto vivi Então vivas assim - amém!

não pensei que ele existia, Pois que vivas iludidocomo o amor te fez viver ...

pensei que era fantasia.

Gostava de ser adorado,FIDALGO Isto quanto ao que eu conheço ...

confiei em meu estado,

Ie não vi que me perdia. DIABO- Pois quando tu expiravas,Venha essa prancha e encaremos ela já se requebravaesta barca de tristura. com outro de menos preço.

FlDALGO - Dá-me licença, te peço,para ir ver minha mulher.

DIABO - E ela, pra não te ver,se jogará de cabeçano fundo de um precipício ...Quanto ela hoje rezou,entre seus gritos e gritas,dando graças infinitas,pois de ti se libertou.

FIDALGO Pois ela muito chorou ...

DIABO Não há choro de alegria?!

FIDALGO E as lástimas que dizia?

DIABO - Sua mãe lhe ensinou.(impaciente)Entrai, meu senhor, entrai!(ao companheiro)Venha a prancha!(aofidalgo)Ponde o pé!

FIDALGO Entremos, pois que assim é...

DIABO - Ora, agora descansai,passeai e suspirai,enquanto chega mais gente.

FIDALGO - 6 barca, como és ardente,maldito quem aqui vai!

DIABO - (ao pajem com a cadeira)Tu não entras! Sai daqui!

Que essa cadeira é demais.Coisa que estevena igrejanão se há de embarcar aqui.(apontando o Fidalgo}Ele uma outra terá,uma outra de marfim,toda enfeitada de dores,com tantos e tais primoresque estará fora de si...(animado)À barca! à barca, boa gente!Hora de levantar vela!A ela, vamos fi ela!Oh! que barca tão valente!

Carregando uma bolsa, vem um ONZENEIRO, isto é, um agiota, alguém queexplora comjuros abusiuos aqueles que precisam de dinheiro emprestado. Aproxima_-se da barca do Inferno e diz:

ONZENEIRO Para onde embarcais?

DIABO - Oh! A que horas chegais,onzeneiro, meu parente!Como demoraste tanto?

ONZENEIRO - Mais quisera eu demorar ...Mas na hora de lucrar,de o dinheiro recolher,aconteceu-me ... morrer!

DIABO - Ora, que muito me espantonão vos salvar o dinheiro ...

ONZENEIRO - Pois nem para o barqueironão me deixaram um tanto.

DIABO - Ora, entrai, entrai aqui!

0, 'ZE1\:EIRO Aí não hei de embarcar! ONZENElRO Por quê?

DIABO - (com ironia) ANJO - (apontando pam a bolsa)Oh! Que gracioso receio! Porque essebolsãoE que estranho para mim! tomará todo o navio.

ONZENEIRO - Inda agora faleci. ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio!Deixai-me escolher batel.

ANJO Mas não o teu coração.DIABO- Mas por João Pimentel!

Por que não irás aqui? ONZENEIRO - (lamentando-se)E lá deixei, com a confusão,

ONZENEIRO E para onde é a viagem? a minha rigu~za... e alheia.

DIABO - Para onde deves ir.ANJO - 6 ganância, como és feia,

(impaciente)e filha de maldição!

Estamos para partir,não gastes a tua linguagem.

ONZENEIRO - (voltando li barca do Inferno)

ONZENEIRO Mas pra onde é a passagem?Olá!Ó demo barqueiro!Ainda tenho uma esperança,

DIABO Para a infernal comarca. quero lá tornar ao mundoe trazer o meu dinheiro,

ONZENEIRO - Pois eu não vou nessa barca! pois o outro marinheiro

Essa outra tem mais vantagem. (referindo-seao Anjo)

(dirige-se li barca do Anjo) ao me ver chegar sem nada

6 da barca! Olá! Hou! me insulta e me dá pancada.

Está na hora de partir?DIABO - Entra, entra e remarás!

ANJO E aonde queres ir? Não percamos mais maré!

ONZENEIRO Eu pro paraíso vou. ONZENEIRO Todavia...

ANJO - Pois sim! Não pense que eu estou DIABO- O que é?a fim de aqui te levar. Querendo ou não, entrarás!Essa outra te levará. Irásservir Satanás,Vai lá com quem te enganou! pois sempre ele te ajudou.

ONZENEIRO - (desesprrado)

Oh! Triste, quem me cegou?!

DIABO - Cala-te! Aqui chorarás.

ONZENEIRO - (entrando, vê o Fidalgo e diz,

tirando o gon·o.)

Santa Joana de ValdêslAqui, vossa senhoria]!

FIDALGO - (raivoso)

Dá ao demo a cortesia!

DIABO - (interferindo abruptamente

na conversa)

O quê? Sede mais cortês!Vós, fidalgo, o que pensais?Que estais em vossapousada?Vos darei tanta pancadaque então, sim, voszangareis!

Vem[oane, um PARVO, isto é, um homem tolo, sem malícia. Aproxima-se da barca

do Inferno e diz ao DIABO:

PARVO - Hou, hou, da barca!

DIABO - Quem é?

PARVO - Sou eu. Esta barca é nossa?

DIABO - De quem?

PARVO - Dos tolos.

DIABO - É. vossa. Entrai.

PARVO - Como? De pulo ou de voo?Oh! Pesar de meu avô!Enfim, eu adoeci .,e por azar... eu morno

DIABO De que morreste?

PARVO - De queAcho que de caganeira.

DIABO De quê?

PARVO - De caga-merdêira!

DIABO Entra, põe o pé na madeira.

PARVO - Olá, que não vire a barca!

DIABO - Entra, seu tolo, embarca!Ou perdemos a maré!

PARVO - Aguardai, aguardai, olá!E onde vamos nos meter!

DIABO - No porto de Lúcifer.

PARVO O quê?!

DIABO - No inferno, entra cá.

PARVO - No inferno? Sai pra lá!Hu! Hu! Barca do cornudo!O que é que há, seu beiçudo?!Seu cara de carrapato!Hu! Hu! Caga no sapato,filho de uma mentirosa!

Tua mulher é tinhosa

e há de parir um sapo

grudado no guardanapo!

Excomungado nas igrejas,

seu burrão, cornudo sejas!

Toma o pão que te caiu,

a mulher que te fugiu,

o demo que te pariu!

Hu! Hu! Hu~ Cara amarela!

Hu! Hu! Hu! Caga na vela!

(dirige-seà barcado Anjo e diz:)Ó da barca!

DIABO - Quem está aí?Santo sapateiro honrado!Como vens tão carregado!

SAPATEIRO - Mandaram-se vir assim ...Mas para onde é a viagem?

DlABO - Para o lago dos danados.

SAPATEIRO - E os que morrem-confessadosonde têm a sua entrada?

DIABO - Quê?! Sem c0n,versa fiada,que esta é tua barca, esta!

ANJO O que queres?

ANJO Quem és tu?

SAPATEIRO - Não quero saber da festa,nem da barca nem do embarque!

Como pode isso ser?Morri como se deve morrer,

confessado e comungado!

PARVO - Quereis me passar além?

PARVO - Não sou ninguém.

ANJO - Tu passarás, se quiseres,

porque em todos teus fazeres

por malícia não erraste.

Tua simplicidade baste

para gozar dos prazeres.

Mas espera por aí,

veremos se vem alguém,

merecedor de tal bem,

que deva entrar aqui.

DIABO - Tu morreste excomungado,

e não quiseste dizer.

Esperavas de viver.Calaste dez mil enganose roubaste bem trinta anos

o povo com teu ofício.

(Impaciente)Embarca já, infeliz!Que há muito que te espero!

SAPATEIRO - Pois eu não quero, não quero!

VemJoão Antão, um SAPATEIRO, carregando o avental, as flrminhas e os'nstrumentosde trabalho. Aproxima-se da barca doInferno e diz:

DIABO - E eu digo que sim, que sim!

SAPATEIRO - Ó da barca!

SAPATEIRO - Quantas missas eu ouvi!Elas não vão me ajudar?

DIABO - Ouvir missa, mas ... roubar?É caminho para aqui.

SAPATEIRO - E as esmolas e as ofertas?As preces pelos finados?Tudo isso não vale, não?

DIABO - Mas do dinheiro roubadoNão deste satisfação!...

SAPATEIRO - Mas que grande confusão!Não quero saber de nada!É uma puta trapalhadaem que se vê aqui João Antão!Ora juro a Deus que é graça!(vai à barca do Anjo e diz:)6 da santa caravela,podereis levar-me nela?

ANJO - (apontando para as coisasque ele carrega)Tua carga te embaraça.

SAPATEIRO - Mas não há favor de Deus?Isto em qualquer canto irá.

ANJO - (apontando a barca do Inferno)É a barca que lá estáque leva ladrão descarado!O almas embaraçadas!

SAPATEIRO - (irritado)Ora, pra que tanta históriacom essas forrninhas casadas

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que podem ir amontoadas

ANJO - Tivesses vivido direito,já estariam embarcadas.

SAPATEIRO - (angustiado)Pois então determinaisque eu vá cozinhar no inferno?!

ANJO - (severo)Teu nome está no cadernodos registros infernais.

SAPATEIRO - (voltando resif!U!doà barcados condenados)6 barqueiros!Que aguardais?Vamos, venha a prancha logoe levai-me àquele fogo!Não nos detenhamos mais!

Vem um FRADE trazendo pela mão uma Moça chamada FLorença. Na outra mão,carrega um pequeno escudo e uma espada. Por baixo do capuz, tem um capacetedecombate. Vem todo alegre, fozendo passos de dança e cantarolando.

FRADE - Tai-rai-rai-rã! Tai-ra-rálTai-rai-rai-rãl Tai-ra-rá'Tai-ra-ra-rim-rim-ta-rál

DIABO - (aproximando-se)Que é isso, padre? Que vai lá? .'~

FRADE - Deo grafias'.Sou cortesão! f

DIABO - E sabeis também cantare dançar lá num salão?

D1ABO - Pois, entrai! Eu tocarei

E faremos um festão.

(olhando pam a Moça queacompanha o Frade)Essa dama, ela é vossa?

FRADE - Por minha a tenho eu

e sempre a tive de meu.

DIABO - Fizestes bem, que é um encanto!

E ninguém vos censurava

no vosso convento santo?

FRADE - Pois se eles fazem outro tanto ...

DIABO - Que coisa tão preciosa!

(fazendo uma reverência irônica)Entrai, padre reverendo!

FRADE - Para onde levais gente?

DIABO - Para aquele fogo ardente

que não ternestes vivendo.

FRADE - Juro a Deus que não te entendo!

(apontando para a roupa)E este hábito, não me vale?

DIABO - 6 gentil padre mundano,

a Belzebu vos encomendo!

FRADE - (surpreso)Corpo de Deus consagrado!

Pela fé de Jesus Cristo

que eu não posso entender isto!p" hp; ,lp <pr ron,lpn:lr1o'

Um padre apaixonado

e tanto dado à virtude!

Que Deus me dê em saúde

quanto estou maravilhado!

DIABO - Mas chega de fazer hora!Embarcai e partiremos.

Tornareis um par de remos ...

FRADE - Não ficou isso acenado ...

DIABO - Pois já está dada a sentença!

FRADE - Por Deus! Essa seria ela?Não vai nessa caravela

minha senhora Florença ...

Como?! Por ser namorado

e folgar com uma mulher,

um frade há de se perder,

com tanto salmo rezado?!

DJABO - Ora, estás bem arranjado!

FRADE - E tu estás bem servido!

DIABO - Devoto padre e marido,haveis de ser castigado,

pois com gordura fervente

haveis de ser bem pingado ...

oFRADE descobre a cabeça e, tirando o capuz' aparece o capacete. Diz ele:

FRADE _ Mantenha Deus esta coroa!

DIABO - 6 padre Frei Capacete,Pensei que tínheis barrete!

FRADE - Sabei: fui grande pessoa:

Esta espada é muito boa,

e este escudo é dos bons!

DIABO - Reverência, dê lição

de esgrima, que é coisa boa.

rmeça o FRADE 11 dar lição de esgrima com a espada e o escudo, mostrando golpes

dizendo:

FRADE - (entusiasmado)Esgrimar! Isso me agrada!

Então vamos logo, sus!

E outro golpe, ora sus!

Esta é a primeira levada.

Levante bem a espada!

Metei o diabo na cruz

como eu agora o pus ...

Saio agora com a espada

e que fique anteparada.

Golpe largo, um revés,

e logo pegar os pés,

que todo o resto não é nada.

Quando o recuo se tarda

o ferir não é prudente.

Eia, sus, valentemente,

cortai na segunda guarda.

Guarde-me Deus de espingarda

ou de varão denodado,

mas aqui estou bem guardado

como a palha na almofada.

Saio com meia espada ...

Olá! Guardai as queixadas!

FRADE - Isto ainda não é nada ...Vamos, mais uma avançada!

Um contra! Agora, um Iendente!E cortando largamente

eis a nova estocada.

Daqui se sai com uma guia

e um revés da primeira.Esta é a quinta verdadeira.

Oh! Quantos daqui eu feria!

E padre com tal mestriano inferno há de padecer?

Oh, não, não pode isto ser!

Tamanha descortesia!

Para com a esgrima e toma a Moça Florença pela mão, dizendo:

Vamos à barca da Glória!

Dançando e cantarolando, o FRADE e a Moça vão até a barca do Anjo.

FRADE - (ao Anjo)Deo gratias! Há lugar

para minha reverência?

E a senhora Florença,

por ser minha, pode entrar?

PARVO - (aproximando-se)Chegastes em hora má!

Furtaste este facão, frade?

FRADE - (desesperançado, pois o Anjonem responde)Acho, senhora, em verdade,

que o caso perdido está.

Vamos aonde temos de ir.

Não quer Deus esta ribeira!

Não vejo outra maneira

senão enfim ... desistir!

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DIABO - (de longe, chamnnd«)

Padre, haveis logo de vir?

FRADE - Sim, passai-me lá Florença

e cumpramos a sentença.

É a hora de partir.

)epois que o FRADE embarcou, vem BRÍSIDA l-'l1Z, uma Alcoviteira, isto é, umaiulher que vivia da prostituição de moças. Chegando à barca do lnftrno, diz:

BRÍSIDA - Olá da barca, olá!

DIABO Quem chama?

BRÍSIDA - Brísida Vazo

DIABO - (dirigindo-se a Brisida)Entrai vós e rernareis.

BRÍSIDA - Não quero eu entrar lá!

DIABO - (irônico)Que medinho saboroso! ...

BRÍs IDA Não é nesta barca que embarco.

DIABO E trazeis vós muito fardo?

BRÍSIDA - O que me convém levar.

DIABO - O que é que haveis de embarcar?

BRíSIDA - Muitas falsas virgindades

e três arcas de feitiços,

arcas tão carregadinhas

que mais não podem levar.

lrés armários de menti!

e cinco cofres de enleios,

e alguns furros alheios,

assim em joias de vestir,

e guarda-roupa de encobrir.

Enfim - casa movediça,

um estrado de cortiça,

com almofadas de iludir.

Mas a maior carga é

essas moças que vendia.

E dessa mercadoria

trago eu muito, pois é!

DIABO - (mostrando a barca)Ora, ponde aqui o pé.

BRÍSIDA - Quê?! Vou para o paraíso!

DIABO - E quem te disse a ti isso?

BRÍSIDA - Lá hei de ir nesta maré,

pois uma mártir sou eu.

Açoites tenho levado,

e tormentos suportados,

que não há ninguém como eu.

Fosseeu ao fogo infernal,

então iria todo o mundo!

A esta outra barca, no fundo,

me vou eu, que é mais real.

Chegando à barca da Glória, diz {LO ANJO:

BRÍSIDA - Barqueiro, mano, meu velho,

prancha a Brísida Vaz!

ANJO - Não sei quem é que te traz.

fIr,

I

iI!l

II

BRíSJl)A Eu vo: peço de joelhos!

Pensais que tr3g0 piolhos,

Anjo de Deus, minha rosa?

Sou Brísida, a preciosa,

que dava moças aos montes,

Vulta BRÍSIDA \ij1Z à barca do lnjeruo, dizeJido:

. .a que cnava as meninas

para os cônegos da Sé...

Passai-me, por vossa fé,

meu amor, minha florzinha,

olhos de perolazinha!

Pois eu sou apostolada,

angelada, martirizada,

e fiz obras bem divinas.

Santa Úrsula não converteu

tantas donzelas como eu,

e todas salvas por mim,

que nenhuma se perdeu.

E quis Aquele do Céu

que todas achassem dono.

Pensais que eu dormia sono?

Nada, nada se perdeu!

BRlSIDA - Ó bargueiros de má hora,

ponde a prancha que eu me vou.O destino me marcou

e maJ me sinto aqui fora.

DIABO - Ora, entrai, minha senhora,

e sereis bem recebida ...Se vivestessanta vida ,vós o sentireis agora.

Assim que BRfSIDA VAZ embarcou, vem um JUDE,U com um bode às costas.Chegando ao batel dos danados, diz ao DIABO: '

ANJO - (apontando a outra barca)Ora vai lá embarcar!

Não fiques me importunando.

]UDEU- Que vailá, ó marinheiro?

DIABO- Em quemá hora chegaste!

]UDEU- Que barcaé esta que arrumasre?

DIABO- Esta barcaé do barqueiro.

]UDEU- PasSli-me,tenho dinheiro.

DIABO- O ~ também há de vir?

JUDEU- O I:..t também há de ir.

DIABO - (co7liBnia)

Oh!9Ifhonrado passageiro! ...

JUDEU- Semble, como irei lá?

DIABO- Po~ não passo cabrões!

JUDEU- Eis,& quatro tostões

BRÍSIDA - Pois eu estou explicando

por que me haveis de levar.

ANJO - (comfirmeza)Para de me importunar,

que não podes ir aqui!

BRÍSIDA - (desesperançada)Em que má hora eu servi!

Pois não me há de aproveitar!

e mais poderei p3.garse me passais o cabrão.

Quereis mais outro tostão?

DlABO - (apontando a outra barca)Judeu, lá te levarão,Que vão mais descarregados.

DIABO - Pois nem tu vais embarcar. PARVO - E ele mijou, nos finados,Na igreja de São Gião!Comeu carne da panelano dia de Nosso Senhor!

JUDEU - (olhando para dentro da barca)Por que não irá o judeu aondevai Brísida Vaz?(Fala ao Fidalgo)O senhor fidalgo quer?Então, senhor, irei eu?

DJABO - (forioso)E ao fidalgo quem lhe deuo mando deste navio?

DIABO - (impaciente)Ora, sus! Vamos! À vela!Judeu, vós sois má pessoa.Ireis então a r;boque.Levai o cabrão na trela.

Vem um CORREGEDOR, isto é, um juiz, carreyado de autos eprocessose com umavara na mão. Chegando à barca do Inferno diz:

JUDEU - (ao Fidalgo)Corregedor, coronel,castigai este imbecil!(ao Diabo)Desgraça, pedra miúda,lodo, pramo, fogo, lenha,caganeira que te venha,diarreia que te acuda!E por Deus, que te sacudacom a barca nos focinhos!Fazes troça dos meirinhos?Dize, filho da cornuda!

CORREGEDOR- 6 da barca!

DIABO - Que quereis?

CORREGEDOR- Está aqui o senhor juiz.

DIABO - 6 amigo de ganhar perdiz,que bela carga trazeis!

CORREGEDOR- Mas por minha cara vereisque não é ela do meu jeito.

DIABO - Como vai lá o Direito?PARVO (aproximando-se da barca,

foÚl ao Judeu)Furtaste a cabra, cabráo?V ósme pareceis, maroto,um grande dum gafanhoto.

CORREGEDOR - Nestes autos o vereis.

DIABO - Ora, pois, entrai. Veremoso que diz esse papel...

CORJU:GEDOR - E aonde vai esse batel? CORREGEDOR - Oh! Videtis quzjetrltú.'Vede só o que reclamais!

DIABO- No inferno vos poremos. Acima da lei estais?

CORREGEDOR - (indignado) DIABO - Quando éreis ouvidorComo?! À terra dos demos non accepistis propina?há de ir um corregedor?! Pois agora é vossa sina,

seguir-me aonde eu for.DlABO- (com ironia) (olhando para osprocessos

Santo "descorregedor", do Corregedor)embarcai e remaremos! =.

Oh! Que isca é esse papelOra, entrai, já que viestes.

para um fogo que eu conh-

CORREGEDOR - Isto não é justo, não!CORREGEDOR - Meu Deus, lembra-te de rrNão é de regulae juris, não!

Domine, memento mei!

DIABO - Sim, sim, ita, ita! Dai cá a mão!

Remareis um remo destes. DIABO - Tempo não há, bacharel!

Faz de conta que nascestes Non es tempus, bacharel!

para nosso companheiro. Imbarquemini in batel,(para o assistente) pois julgastes com malícia.E tu, preguiçoso, ora essa!

Manda a prancha bem depressa! CORREGEDOR - Sempre agi com justiça,

Semper; semper in justitiaCORREGEDOR - Oh! Recuso essa viagem

e quem me há de levar!DIABO- E o dinheiro dos judeus

Há cá um oficial do mar?que vossa mulher pegava? -

DIABO - Não tenho essa costumagem.CORREGEDOR - Com isso não me ocupava

CORREGEDOR - Não entendo esta barcagem, não eram problemas meus

nem isso não pode ser, Não são, pois, meus pecad

Hoc nonpotest esse. Non sunt peccatus meus,esses pecados são dela.

DIABO - E agora vos pareceque não sei outra linguagem?! DIABO- E vós pecastes com ela,Entrai, entrai, corregedor! não temestes nem a Deus, -=-

e muito enriquecestes

com o sangue dos lavradores,

ignorantes pecadores.

Por que não os atendestes?

PROCURADOR - (ao Corregedor)E ainda zomba este barqueiro?{ao Diabo}E brincais de zombador?

E essa gente que aí estápara onde a levais?CORREGEDOR - (irônico)

Vós nunca lestes, barqueiro,

que move pedras o dinheiro?

O direito então se cala

e a justiça nada fala ...

DIABO - Para as terras infernais.

DIABO - (raivoso)Pois juntai-vos aos condenados!

Ireis ao lago dos cães

e vereis os escrivães

como estão tão prosperados ...

PROCURADOR - Pois eu não vou para lá.

Outro navio aqui está

muito melhor preparado.

DIABO - Ora estais bem arranjado! ...

Entrai agora, entrai já!

CORREGEOOR - (ao Procurador)Confessaste-vos, doutor?

CORREGEDOR - E vamos à terra dos danados,

nós, os novos evangelistas?

DIABO - Os mestres das fraudes vistas

lá estão bem castigados.

PROCURADOR - Bacharel sou ... Por meu mal

não pensei que era fatalou de morte minha dor.

E vós, senhor corregedor?

PROCURADOR - Beijo-vos as mãos, juiz!

Que diz o barqueiro, que diz?

CORREGEDOR - Eu bem que me confessei,

mas tudo quanto roubei

escondi do confessor. ..

Aproxima-se nesse instante um PROCURADOR da justiça carregado de livros, e

diz o CORREGEDOR a ele:

CORREGEDOR - O senhor procurador!PROCURADOR - Porque sem devolução,

não querem absolver,

e é muito ruim devolveraquilo que temos na mão.

DIABO - (zombando)Que sereis bom remador.

Entrai, bacharel doutor,

que ajudareis ligeiro.

DIABO - Pois por que não embarcais?

CORREGEDOR - Porque esperamos em Deus ...

Quia speramus in Deo.

DIABO - (zomlmeiro)lmbarquemini in barco meo,para que esperatis mais?

Vão ambos li barcada Glória e, chegando, diz o CORREGEDOR aoANJO:

CORREGEDOR - Barqueiro dos gloriosos,

passai-nos nesse batel.

ANJO - (olhando osprocessose os livros que eles trazem)Oh! Pragas para papel,

para homens odiosos!

Como vindes preciosos,

sendo filhos da ciência!

CORREGEDOR - Oh, habeatisclemênciae passai-nos como vossos.

PARVO - (que estápor perto)6 homens dos man uais,

rapinastis coelhorumet pernis perdiguitorume nos campanários mijais!

CORREGEDOR - Oh, não nos sejais contrários,

Pois não temos outra ponte!

PARVO - (como seprocurasse alguém)Onde estão os beleguins

para levar esses dois?

Beleguinis ubi sunt?(Gosto desses latinários ... )

ANJO - A justiça divina!

vos manda vir carregados

porqu sereis embarcadosnaquela barca infernal.

CORREGEDOR - Oh! Livrai-nos São Marçalde tal ribeira e tal rio!Julga o mundo desvariohaver cá tamanho mal.(Ao Diabo)Venha a negra prancha já!Vamos ver esse segredo.

PROCURADOR - Diz um texto do Degredo ...

DIABO - (interrompendo-o bruscamente)Entrai, que cá se dirá! ...

Entram no batel dos condenados e diz o CORREGEDOR ao ver BRÍSIDA VAZ,porque a conhecia:

CORREGEDOR - Ora, ora, aqui está,senhora Brísida Vaz!

BRfSIDA - Nem aqui eu tenho paz! ...Lá, sempre por vós vigiada,toda hora sentenciada:"Manda a justiça fazer. .."

CORREGEDOR- E vós ... sempre a tecere a tramar outra meada.

BRfSIDA - (olhando ao longe)Senhor juiz, dizei-me vós,vem lá Pera de Lisboa?Vamos levá-Ia ... essa é boa!aqui bem junto de nós.

Vem um ENFORCADO e, chegando ao batel dos mal-aventurados, é 1'ecebidopelo

barqueiro, que lhe diz:

~' ....---=

DlABO- Em boa hora, enforcado!guardava tão santa gente

Que diz lá Garcia Monizicomo este Afonso Valen te,que agora é carcereiro.

ENFORCADO- Eu vos direi o que ele diz:Dava-te consolação

que fui bem-aventurado,DIABO-

isto, ou algum reforço?que, pelos furtos que fiz,

sou santo canonizado,ENFORCADO - Com a corda no pescoço

pois morri dependurado pouco serve a pregação,como morre uma perdiz. e quem há de balançar

DIABO - Entra cá, governarásnão quer saber de sermão.

até as portas do inferno. DIABO - Entra, entra TI? batel,

que para o interno hás de ir.ENFORCADO - (surpreso)

Não é essa nau que governo ... ENFORCADO - E o Moniz há de mentir?Disse-me: - "Com São Miguel

DIABO- Mando-te eu: aqui irás! irás comer pão e mel~

quando fores enforcado".ENFORCADO - Oh! não! não! Por Barrabás! Ora, já cumpri meu fado,

Se Garcia Moniz diz agora não sei o que é isso.que os que morrem como eu fiz Não me falou em ribeira,

são livres de Satanás! ... nem barqueiro, nem barqueira,

E disse quisera Deus mas apenas em paraíso!

fosse ele o enforcado! E isso em bom juízo,

E fosse louvado Deus, I e que era santo o meu laço ...Ique em boa hora eu nascera I mas não sei o que aqui faço,

e que o Senhor me escolhera, I onde está o paraíso? -e por meu bem me vi assim, Ipreso, com muito latim, I DIABO - Falou-te do purgatório?

como se eu latim soubera ... iE na hora derradeira I ENFORCt\DO - Disse que era a prisão, ~

me disse nos meus ouvidos que também por nós se rogas:

que o lugar dos escolhidosnaquele sermão derradeiro.

E que era bem notório_..._...

era a forca e a prisão,

isso era coisa certeira,que os castigos aplicados

pois nem guarda de mosteirovaliam preces de finados

-.-


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