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\"MEMÓRIA-Nona Ilha\" UMA UNIÃO DE FACTO NUM PARAÍSO FUSTIGADO PELA GUERRA

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Imagem: hp://neville-chipulina.blogspot.pt/2006/10/1940-barreiros-madeira.html 03 Projeto "MEMÓRIA-Nona Ilha" VIEIRA, Alberto GIBRALTAR E MADEIRA. 1940-1944 UMA UNIÃO DE FACTO NUM PARAÍSO FUSTIGADO PELA GUERRA Cadernos de divulgação do CEHA. Projeto “Memória-Nona Ilha”/DRC/SRETC, N.º 03. VIEIRA, Alberto, Gibraltar e Madeira. 1940-1944. Uma união de facto num paraíso fusgado pela guerra. Funchal. Junho de 2016.
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Imagem: http://neville-chipulina.blogspot.pt/2006/10/1940-barreiros-madeira.html

03Projeto

"MEMÓRIA-Nona Ilha"

VIEIRA, Alberto

GIBRALTAR E MADEIRA. 1940-1944UMA UNIÃO DE FACTO NUM PARAÍSO FUSTIGADO PELA GUERRA

Cadernos de divulgação do CEHA.

Projeto “Memória-Nona Ilha”/DRC/SRETC, N.º 03.

VIEIRA, Alberto, Gibraltar e Madeira. 1940-1944. Uma união de facto num paraíso fustigado pela guerra.

Funchal. Junho de 2016.

2CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA

GIBRALTAR E MADEIRA. 1940-1944UMA UNIÃO DE FACTO NUM PARAÍSO FUSTIGADO PELA GUERRA

ALBERTO VIEIRA*

CEHA-SRETC-MADEIRA

ALBERTO VIEIRA. N.1956. S. Vicente Madeira. Títulos Académicos e Situação Profissional: 2016- Coordenador do CEHA e de projetos de investigação; 2013-2015: Diretor de Serviços do CEHA; 2008- Presidente do CEHA, 1999 - Investigador Coordenador do CEHA; 1991-Doutor em História (área de História dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa), na Universidade dos Açores; 1980. Licenciatura em História pela Universidade de Lisboa. ACTIVIDADE CIENTÍFICA. Pertence a várias academias da especialidade e intervém com consultor científico em publicações periódicas especializadas. É Investigador-convidado do CLEPUL-Lisboa. Membro da Cátedra Infante Dom Henrique/Universidade Aberta.Desenvolveu trabalhos de investigação nos domínios da História do Meio Ambiente e Ecológica, História da Ciência e da Técnica, O Mundo das Ilhas e as Ilhas do Mundo, História da Autonomia, História da Ciência e da Tecnologia, História da Escravatura, História da Vinha e do Vinho, História das Instituições Financeiras, História do Açúcar. Atualmente desenvolveu estudos e coordena projetos sobre Historia Oral /Autobiográfica, com os projetos: MEMORIAS das Gentes que fazem a História; NONA ILHA- as Mobilidades Madeirenses; AUTONOMIA. Memorias e testemunhos.PUBLICAÇÕES. Tem publicado diversos estudos, em livros e artigos de revistas e atas de colóquios, sobre a História da Madeira, dos espaços insulares atlânticos, da Nissologia/Nesologia e sobre os temas de investigação referidos acima.

Informação curricular desenvolvida em:https://app.box.com/s/248a0h637wi5llm26o66o9bbw2kd182z

Gibraltar e Madeira. 1940-1944Uma união de facto num paraíso fustigado pela guerra

3CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA

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Gibraltar e Madeira. 1940-1944Uma união de facto num paraíso fustigado pela guerra

O presente texto foi preparado para uma breve apresentação no jantar Tribute to the Evacuees to Ma-deiraira. A partir desta iniciativa, de Gibraltar Productions, no âmbito do Gibraltar World Music Festival, o CEHA decidiu dedicar-lhe a edição de setembro da Newsletter do Projeto Memória e publicar um livro sobre o mesmo assunto. Ambas as edições serão bilingues.

Agradecemos à Gibraltar Productions, por esta feliz iniciativa e por todo o apoio dado ao nosso trabalho, no quadro do Projeto “Memórias das gentes que fazem a História”.

4CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA

Paraíso

“Marilu !

que lindo nome tens tu!

que doce é pronunciá-lo!

. . .Passaria a vida inteira

junto da tua lareira

silabando. . .

sem nunca, nunca, gastá-lo:

Ma. . .ri. . .lu. . .

Oh ! Marilu ! Marilu!

Cinge-te a fronte risonha

duma beleza ancestral,

a grinalda com que sonha a bonita e a tristonha:

um diadema Real !

(...)És a Rainha das flores

do a “bouquet”, de Gibraltar,

e na corbelha de amores,

irradiando exemplares,

tens o primeiro lugar. . . “

(Porto da Cruz, 1953: 278-279).

Este poema de António Braz Garcez dedicado à gibraltina Marilu Schiappe, a quem chama rainha de Gibraltar, é um dos muitos testemunhos que existem na memória da ilha sobre a presença dos gibraltinos, no período de 2 de julho de 1940 a 28 de maio de 1944.

Na década de quarenta do século XX, a guerra foi um momento difícil para a Madeira. No entanto, a presença dos gibraltinos, a partir do verão de 1940, foi um elemento revivificador da sociedade e econo-mia funchalenses.

A sua presença, guardada na memória coletiva da cidade, reveste-se de grande importância para a História da ilha do século XX. Insiste-se, quase sem-pre, no impacto económico desta situação, apesar de as verdadeiras mudanças causadas por esta comuni-dade se centrarem, sobretudo na sociabilidade dos madeirenses, com a valorização do papel da mulher.

Ao contrário do que sucedeu com outras co-munidades, mesmo de língua inglesa, os gibraltinos foram recebidos de braços abertos e as gibraltinas transformaram-se num foco de atenção, pela sua postura e atitude social, pela forma de vestir e pelo cuidado com a imagem. Não obstante alguns olhares críticos, a nova imagem e o protagonismo da mulher acabaram por cativar a sociedade funchalense.

Em nenhum outro momento da História da Ma-deira, uma comunidade estrangeira foi tão bem rece-bida e transformou tanto as mentalidades. Daí este nosso tributo, que se junta a tantos outros.

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A Segunda Guerra Mundial foi um momento muito complicado para a Madeira. O facto de a Eu-ropa estar a braços com mais um conflito mundial, gerava limitações na navegação oceânica e, por con-sequência, dificultava os contactos da ilha com o exterior, impossibilitando o turismo e trazendo pro-blemas ao abastecimento do mercado local. Desta forma, os hotéis estavam encerrados porque não ha-via turistas. Em agosto de 1940, tudo vai ser alterado, com a chegada dos refugiados gibraltinos. Encheram--se os hotéis e pensões e as ruas da cidade ganharam movimento e animação, lembrando os dias em que chegavam navios. O comércio e a restauração ganha-ram nova clientela.

Para além deste impacto positivo, um outro veio influenciar a sociedade madeirense, criando condi-ções para uma maior abertura social, nomeadamen-te do sexo feminino.

Hoje, recordamos este momento singular da História da Madeira de 1940 a 1944, em que a ilha foi um território de encontro positivo de refugiados, vindos da Europa, fugidos da guerra. Para os funcha-lenses, foi uma rara oportunidade para reavivar a economia e a possibilidade de convívio prolongado com outras gentes, usos e costumes. Para os gibralti-nos, a ilha foi um destino seguro, num recanto a que muitos chamam “paraíso” e que lhes permitiu viver em segurança, alheios aos horrores da guerra. Esta

situaço é, sem dúvida, um episódio memorável da nossa História comum, por aquilo que tem de positi-vo e negativo, que importa, agora, recordar e exaltar, num momento em que, na Europa, se coloca de novo o problema de refugiados de guerra.

Os madeirenses tiveram a oportunidade de in-teragir com estes forasteiros, de residência temporá-ria, verificando-se que são algo distintos dos outros ingleses com quem privavam desde o século XVII. Trata-se de refugiados e, embora oriundos dum en-clave/rochedo, parecem ter-se identificado facilmen-te com o lugar; deram valor à receção apoteótica que tiveram e olharam, de forma aberta, para a nova realidade social a que tiveram de se habituar e onde viveriam alguns anos.

Em termos sociais e económicos, a situação da ilha não era a de um paraíso e rapidamente os gibral-tinos assumem um papel na sociedade madeirenses no sentido de minorar as dificuldades existentes. É a retribuição e gratidão a forma efusiva do acolhimen-to que tiveram.

Estamos perante um caso raro no contexto das mobilidades humanas, que se torna mais relevante, se tivermos em conta a época em que aconteceu. É certo que a presença dos gibraltinos assume uma situação distinta de qualquer outra mobilidade po-pulacional, mas não podemos esquecer a singulari-dade do sistema de inter-relações e convívio que se

Baia do Funchal

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estabeleceu e que ainda é recordado com orgulho de ambas as partes.

Atente-se que, normalmente, para o madeiren-se, no plano comportamental individual ou de grupo, tudo passa pela não aceitação ou recusa do outro e da sua cultura. O outro, neste caso o gibraltino, era um intruso, o desconhecido, no nosso quadro de re-ferência intergrupal. No princípio, há a desconfiança, o medo de que o outro nos roube a nossa identidade, ou madeirensidade acumulada no tempo, de que nos roube o espaço do poio que define o nosso mundo, porque há dificuldade em aceitar a existência de ou-tros poios ou a dificuldade extrema em conseguir a partilha do nosso reduzido pedaço de terra. Daí as expressões que se manifestam em palavras e com-portamentos, de xenofobia, ou mais propriamente de racismo e uma incapacidade de aceitar o outro na sua presença e na sua expressão cultural. Com a che-gada destes gibraltinos, em 1940, porém, esta reali-dade parece ter sido esquecida.

O madeirense tem uma noção clara do seu es-paço e do registo histórico das suas limitações, ten-do dificuldade em aceitar a presença do outro, até mesmo do próprio irmão que partiu para construir o seu próprio poio fora da ilha e que, por qualquer motivo, é forçado a retornar. O ilhéu também tem di-ficuldade na convivência com o que vem de fora, que pode estar na origem de manifestações de racismo e xenofobia.

Neste caso, esqueceram-se os medos, porque, afinal, estes gibraltinos vinham preencher o lugar dos turistas que não chegavam e ocupar os hotéis e pen-sões que lhes eram reservados.

Há a ideia de que o Funchal, como cidade por-tuária e de turismo, foi e é uma cidade intercultural, aberta ao exterior e ao mundo envolvente, como um espaço de permanente encontro e cruzamento de pessoas, culturas e visuais distintos. Mas sucede que esta interação implica uma atuação consciente de ambas as partes, o que raramente vemos no olhar do visitante, o que não sucede com os gibraltinos.

A primeira ideia que perpassa em todos nós é a de que o Funchal sempre se apresentou como uma cidade aberta ao mundo exterior. O facto de dispor de um porto oceânico, que embora não oferecesse grandes condições à navegação era muito frequen-tado por força do papel que a cidade desempenhou

no processo de expansão e de domínio dos novos es-paços de ocupação europeia, primeiro para os portu-gueses e, depois, para os ingleses, é um elemento im-portante desta permanência de abertura ao mundo exterior. Primeiro, foram as grandes viagens oceâni-cas e de ocupação ou subjugação de outros espaços. Depois, foi o comércio de produtos entre os vários portos e mercados. E, finalmente, a assiduidade dos cientistas, curiosos pela descoberta da ilha ou de ou-tras paragens, e os turistas, por questões de doença ou lazer.

Perante este protagonismo da ilha, este diferen-te olhar e diálogo deveria ser encontrado na relação do madeirense com o estrangeiro que, por diversas situações, reside ou está de passagem e de visita à ilha. A tradição regista a presença de uma multidão de forasteiros em diversas condições, como merca-dores, marinheiros, soldados, cientistas, e, por fim, os doentes da tísica pulmonar que se transformaram, depois, em turistas. Cada qual, tendo em conta a sua origem, é portador de determinados padrões cultu-rais, que se expressam em atitudes e comportamen-tos diversos e que orientam o seu olhar para os ma-deirenses e a realidade local. É certo que diferentes culturas e posturas conduzem a diversos olhares e comportamentos, mas é evidente por parte de quem chega da Europa essa postura eurocêntrica do pro-gresso e das vivências sociais e culturais do mundo dito civilizado e avançado. Para o caso dos britânicos, a crença religiosa de rutura orienta, claramente, o olhar para comportamentos e as situações relacio-nados com o papel da igreja católica e das crenças dos madeirenses. Nada disto acontece à chegada e durante o momento de estância dos gibraltinos entre 1940 e 1944.

O Funchal teve todas as condições históricas para ser um espaço de convívio e fusão de culturas, podendo-se afirmar como um espaço intercultural, mas como nenhum dos interlocutores conseguiu ver o outro, na sua verdadeira dimensão, isto é, o princí-pio da alteridade esteve quase sempre ausente. Com a situação dos gibraltinos, de 1940 a 1944, pergun-ta-se: Terá havido, por parte dos madeirenses e visi-tantes, a dimensão da alteridade tão necessária para a aceitação do outro e para o entabular de um diálo-go?, Com a estância de quatro anos dos gibraltinos, vimos pela primeira vez , esta situação, na Madeira.

Em julho, o primeiro grupo de gibraltinos foi re-

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cebido no Porto do Funchal pelas entidades oficiais madeirenses. Os madeirenses dispensaram uma re-ceção calorosa aos refugiados de Gibraltar, que foram saudados com salvas de palmas, tendo os evacuados manifestado grande alegria ao pisarem a terra ma-deirense.

Os diversos testemunhos e manifestações públi-cas dos gibraltinos que passaram por esta experiên-cia de estância na Madeira parecem ser reveladores de uma outra situação particular, em que a conjun-tura de ambos os lados terá obrigado a uma mútua aceitação. Rapidamente se dissolveram as distâncias e o espaço público passou a ser partilhado por locais e gibraltinos. Segundo o Diário de Noticias ,”o mesmo mar azul da sua cidade mediterrânica, o mesmo céu de sol maravilhoso, a mesma alma e o mesmo afecto da gente do sul. (...). Estavam aqui, há algumas sema-nas já, sem ninguém quase dar por eles, entregues à sua vida, mas fazendo já parte do aspecto habitual da cidade” (Diário de Notícias, 24-8-1940, nº 19928)

No dia seguinte à sua chegada, um grupo im-portante manifestou, publicamente, na redação do “Diário de Notícias”, o seu agradecimento à popula-ção madeirense pela maneira como foram recebidos. E a partir daqui os gibraltinos sentem-se integrados na sociedade funchalense, começando a surgir nas “Notas Mundanas” da imprensa, ao lado dos madei-renses. No dia 24 de outubro de 1940, noticia-se o nascimento de duas crianças gibraltinas, os primeiros gibraltinos-madeirenses.

Aas gibraltinas constituíram fundações, normal-mente de benemerência, e fundaram associações com esse cariz ou de recreio, como o “Sefton Spor-ting Club” a “Gilbraltar Women Guild organização de “Laddy Liddel’s Guild”, “Women’s Relief Work Orga-nization”, a “Gibraltar Union”. Alem disso, fundou-se “The British School for Gibraltar Children”, nos Arri-fes, tendo o colégio uma camioneta particular para deslocações dos alunos.

Com o tempo, os gibraltinos integram-se na so-

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ciedade madeirense. Dario Flores foi um colaborador, nas récitas da época, da colónia gibraltina. Depois, há um gesto singelo de Mr. Thomas Picardo que oferece a sua valiosa coleção de selos, que conseguira resga-tar e da qual se desfazia, para a ser leiloada, rever-tendo o produto para a “Assistência aos Pobres”

A par disso, estes gibraltinos cedo ganharam a simpatia dos madeirenses pela forma como inter-vêm. Estão cientes das dificuldades da ilha e querem que a sua estância não seja um problema para as populações pobres locais. A senhora Mackintosh en-tregou ao Governador Civil um cheque de 4.950$00, que foi encaminhado para os cofres da Assistência da Madeira. E outra senhora, que preferiu manter o anonimato, deu quantia de 100$00 para ajuda a um casal de S. Martinho que perdera os filhos e todos os seus haveres num incêndio.

E a ter em conta as insistentes manifestações de gratidão por estes gibraltinos, temos de afirmar que esta foi uma rara oportunidade de aceitação e afir-mação da alteridade. Atente-se que, para a maioria dos gibraltinos que foram obrigados a este refúgio for,çado no Funchal, a palavra sempre presente é a gratidão. Assim, de entre a comunidade gibraltina tivemos dois compositores que expressaram essa gratidão musicalmente, como sucedeu com Mr. Cabv foi o autor da marcha “Gratidão”, tocada pela Banda Distrital do Funchal, nas cerimónias que antecedem a despedida

A 26 de maio de 1944, na hora da despedida, houve festa no Jardim Municipal em que - e pela pri-meira vez - foi tocada a aludida marcha “Gratidao” e a Câmara Municipal do Funchal ofereceu pés de plan-tas, sobretudo cardeais brancos e vermelhos que fo-ram transplantados para os jardins de Gibraltar.

HISTÓRIA DAS RELAÇÕES DA ILHA E GIBRALTAR

Habitualmente, entende-se que o historial das relações da Madeira com Gibraltar se esgota no epi-sódio da evacuação dos gibraltinos para a Madeira, no período de 1940 a 1944. Este é, sem dúvida, um dos momentos mais marcantes da sociedade funcha-lense da primeira metade do século XX e que teve um desusado impacto no quotidiano do burgo funcha-lense e de muitas gerações de jovens madeirenses,

do sexo masculino.

Mas,a História das relações entre estes dois espaços não se resume a este episódio, pois, desde tempos antigos que Gibraltar é uma presença ativa na documentação e história da ilha, pela sua função charneira nas relações com o mundo mediterrâneo e a sua proximidade com a costa marroquina a que a Madeira estava ligada. Por outro lado, esta relação tornar-se-á mais estreita, a partir do momento em que o rochedo é ocupado pelos ingleses, em 1704, altura em que se estabelece uma ponte mais estreita com a Madeira, onde os ingleses tinham já assenta-do uma colónia, a partir do século XVII. Gibraltar e Funchal fazem parte duma estratégia inglesa de dar segurança à presença inglesa no espaço atlântico e à circulação com o Mediterrâneo.

Gibraltar e Madeira foram os pilares fundamen-tais da estratégia de afirmação dos ingleses no Me-diterrâneo e no Atlântico. E é em torno destas situa-ções que se deverá entender as relações económicas e sociais que se estabelecem entre os portos de Gi-braltar e Funchal, como deste episódio que acontece na década de quarenta do século XX, com a Madeira a abrir as suas portas ao acolhimento dos refugiados gibraltinos.

A partir do século XVII e, de forma especial da centúria seguinte, os ingleses adquiriram uma posi-ção privilegiada nestas áreas, com ações de corso e atividade comercial. Daí o seu natural interesse pelo domínio do Estreito que passam a controlar, a partir de 1709. Atente-se ainda que a Madeira era um pon-to central do traçado das rotas coloniais inglesas e passa a ter, a partir de agora, uma conexão assídua. Todas as embarcações inglesas, por questões de se-gurança e abastecimento, tocavam o Funchal, na ida e nos retorno.

Há uma assiduidade das embarcações inglesas rumo a Gibraltar no porto do Funchal. E nesse circui-to e escala acontecem algumas relações comerciais com o vinho, em 1790, 1792, de 1835 a 1843 e na década de cinquenta, após o retorno dos gibraltinos à sua terra.

No século XIX, a Madeira e Gibraltar funciona-ram, muitas vezes, como centros de contrabando. Muito daquele que se fazia com tabaco ou aguarden-te europeia tinha como protagonistas mercadores ingleses, que atuavam, muitas vezes, a partir da pos-

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sessão inglesa de Gibraltar. Em 1841, por exemplo, foi apreendido em Machico o patacho Bernarda, de Gibraltar, sendo arrematado em hasta pública, pas-sando a navegar com o Nome de Zargo1.

A circulação de pessoas era constante entre os dois portos e permitia aos madeirenses, em momen-tos de instabilidade política no século XIX, procurar abrigo em Gibraltar, pois muitas das embarcações inglesas rumo a Gibraltar, escalavam quase sempre a Madeira. Assim, a Revolução Liberal de 1821, no-meadamente em 1828, obrigou muitos madeirenses a exilarem-se em Inglaterra ou Gibraltar, por força da facilidade destas rotas marítimas existentes.

Mas foi o século XX o grande momento de apro-ximação entre a Madeira e Gibraltar. Assim, em 1908, houve um movimento muito ativo de comércio pro-piciado por judeus residentes em Gibraltar, conhe-cidos como os “hebreos marroquinos”. Certamente que a comunidade judaica madeirense desta época é resultado desta situação. E o cemitério judaico ainda

1 Cf., Ribeiro, João, 2001, Machico. Subsídios para a História do seu concelho, Machico, pp.122-123. O Defensor (nº.125, de 21 de maio de 1845, p.1) anuncia que a 23 de maio era posto à venda o barco em que se fez o contrabando da Bernarda.

visível na ilha é resultado desse movimento.

O chamado cemitério dos judeus, no Funchal, construído em 1851, tem a ver com as ligações da co-munidade judaica de Gibraltar à Madeira. No perío-do de evacuação dos gibraltinos, o cemitério voltou a ganhar importância, tendo-se enterrado nove destes, dos quais quatro foram depois trasladados para Gi-braltar. Note-se que, de entre os gibraltinos que a ilha acolheu, tivemos cerca de 200 judeus.

MEMÓRIAS E TESMUNHOS. 1940-1944

Há registos documentais, jornalísticos, literários e de testemunhos orais sobre a década de quarenta da Madeira. Foi um momento difícil para a população madeirense pelas dificuldades geradas em termos do relacionamento com o exterior, que fez perigar o acesso aos mercadores abastecedores dos produtos de subsistência, como de escoamento da produção interna, seja o vinho, os bordados ou os vimes.

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O FUNCHAL DAS DÉCADAS DE TRINTA E QUARENTA

O movimento desusado de passageiros em trânsito e turistas obrigou as autoridades a cuidar das ruas e praças da cidade. Primeiro, com o calce-tamento das ruas principais e, depois, com a melho-ria dos espaços públicos que foram ganhando fama. Assim, nas proximidades do cais, tínhamos as Praças da Rainha (em frente ao Palácio de S. Lourenço), da Constituição (hoje parte do espaço da Restauração) e Académica (hoje Campo de Almirante Reis). O qua-dro completava-se com os cafés e restaurantes, lojas comerciais, quiosques. De acordo com um roteiro de 1910, as ruas do Aljube e Praças da Constituição e da Rainha reuniam o maior número de cafés, restauran-tes e lojas de vendas de artefactos da ilha. A entrada da cidade era, assim ,servida pelo café do Rio, Móna-co, Golden Gate e Restaurante Central, que estavam de portas abertas para receber todos os que desem-barcavam no cais.

O Café Golden Gate era um ponto de encontro e ficou imortalizado por Ferreira de Castro como a esquina do Mundo. “Aquele ângulo do Funchal era entre as esquinas do Mundo, um dos mais dobrados pelo espírito cosmopolita do século. Em viagem de recreio ou em trânsito para as África e Américas, da-vam volta ao cunhal do Golden Gate, diariamente, homens e mulheres de numerosas raças, a passo va-garoso, o nariz no ar, as mãos carregadas de cestos, de garrafas e de bordados da Madeira.”

À animação e movimento de rua que acontecia de forma calendarizada ou eventual e que concentra-va as atenções, temos ainda a considerar aquela que acontecia em recintos fechados e que não permitiam a entrada de todos. Neste caso, temos a considerar as representações dramáticas, os espetáculos, saraus dançantes e consertos de música.

A música tinha uma expressão elitista nos con-certos à porta fechada e nos bailes dos casinos e quintas, e outra popular através de filarmónicas que desfilam ou tocam em espaços públicos.

O Funchal do primeiro quartel do século XX per-petua-se nas décadas seguintes2. Apenas a instabili-dade das duas guerras mundiais alterou os quadros

2 Num estudo de Abel Marques Caldeira (1964) temos uma ideia da realidade funchalense no primeiro quartel do século XX.

do quotidiano funchalense. Desta forma, para retra-tar o Funchal das décadas de trinta e quarenta, por-que nos faltam descrições mais adequadas, socorre-mo-nos de alguns textos anteriores.

Em 1924, Raul Brandão visitou as ilhas, deixan-do-nos um testemunho pitoresco da cidade do Fun-chal. Há uma ideia generalizada de que o Funchal está dominado pelos ingleses e pelo movimento diá-rio dos vapores, ingleses ou não, no porto: “Esta ilha é um cenário e pouco mais – cenário deslumbrante com pretensões a vida sem realidade e desprezo ab-soluto por tudo que lhe não cheira a inglês. Letreiros em inglês, tabuletas em inglês e tudo preparado e maquinado para inglês ver e abrir a bolsa. Eles saem dos paquetes – e logo o Funchal se arma como um teatro – secos, graves, dominadores; elas saem do mar vestidas de noiva, de bengala na mão e blusa de croché, passeando a sua importância e as suas libras esterlinas em terreno conquistado. O inglês é talvez o povo mais nobre do mundo – mas não tem o sentimento do grotesco. Sentado à porta do Golden Gate, ouço o apito do vapor, e já sei o que se vai pas-sar: muda a armação como um cenário de mágica. Surgem homens com grandes chapéus de palha para vender bordados, colares falsos de coral, cestos de fruta; iluminam de repente as lojas, e segue o desfile de tipos – pretas de Cabo Verde com foulards verme-lhos na cabeça, mulheres planturosas, alemães maci-ços, portugueses esverdeados e febris que regressam das colónias, velhas inglesas horríveis que vêm não sei donde e partem não sei para onde, desaparecen-do para sempre no mistério insondável do mar; cria-turas inverosímeis que rodam a toda a força nos au-tomóveis num frenesi que dura momentos e se passa na única rua onde há um café que transborda de luz. Mas as máquinas de bordo dão o sinal e uma hora depois esta vida fictícia desapareceu e tudo reen-tra no isolamento e no silêncio. Apagam-se as luzes, correm-se os taipais e os vendedores mergulham na pacatez da vida quotidiana. O quadro está sempre a repetir-se com a chegada e a partida dos grandes transatlânticos.” (BRANDÃO, sd. 86)

Em 1927, o Marques de Jácome Correia, numa descrição da ilha refere o ambiente social da ilha, onde primava a influência inglesa e a disponibilidade e aceitação a estes em trânsito ou de permanência temporária. “(...) e no Funchal, n’essa existencia am-phibia anglo-portugueza, partilhada entre o turismo

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e a economia particular, é que essa sociedade nos apparece flagrante e mais distincta do que n’outro qualquer meio provinciano ou insular, porque em ne-nhuma outra parte se dá com a mesma intensidade a lucta pela melhora das condicções da existencia.

A carestia da vida necessaria pela frequencia dos extrangeiros, as exigencias de decoro social que o contacto com os povos das grandes nações mais bem providas dos elementos civilisados impõem ao madeirense, são talvez os principaes factores d’essa lucta que se manifesta na vida fictícia dos casinos, dos hoteis, dos cafés, obrigada, pela convivencia com o estranho de passagem, d’onde talvez se espera o embrião da carreira elevadora das condicções so-ciaes.” (CORREIA, 1927:237).

Foi com este quadro que os gibraltinos se de-pararam em julho e agosto de 1940, à sua chegada ao Funchal. Aquilo que os separava dos demais turis-tas é que vinham para uma estância mais demorada que lhes possibilitaria entender o modo de vida dos locais e interagir com eles, nos diversos aspetos do quotidiano. Os gibraltinos não são turistas, procura-vam abrigo e, por esse motivo se sentem agradecidos pelo acolhimento concedido. O bom acolhimento de-

ve-se ao facto de terem contribuído para animar a in-dústria hoteleira e o comércio, as esplanadas e salões dançantes ou de diversão. A uma estranheza inicial, sucede uma empatia e familiaridade. Por outro lado, a língua e os ingleses não eram estranhos para os ma-deirenses. Nestes novos forasteiros, porém, parece existir outra disponibilidade que gera essa empatia social que não existia com a comunidade britânica residente.

Já no século XVIII, a Madeira firmara a sua voca-ção atlântica, contribuindo para isso o facto de os in-gleses não dispensarem o porto do Funchal e o vinho madeirense na sua estratégia colonial. As diversas actas de navegação (1660, 1665), corroboradas pe-los tratados de amizade, como o de Methuen (1703), foram área de influência do mundo inglês. A presen-ça e importância da feitoria inglesa, no século XVIII, é uma realidade. A Madeira funcionava para os in-gleses como uma colónia que desempenhou um pa-pel fundamental entre a metrópole e as possessões norte-americanas das Índias Ocidentais e orientais, assumindo a dupla função de porto de apoio para o corso e abastecedor de vinho às embarcações e coló-nias. A presença de armadas inglesas no Funchal era

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constante e o relacionamento com as autoridades lo-cais amistoso, sendo recebidos pelo governador com toda a hospitalidade.

Este protagonismo inglês e a forte presença bri-tânica faziam da ilha um espaço quase familiar para estes gibraltinos. Mas distinto era o viver e o quoti-diano do mundo rural e alguns aspetos relacionados com a alimentação. Segundo a imprensa da época o milho era, então, o principal alimento.

O milho era servido de diversas formas na mesa rural madeirense: papas de milho, milho escaldado e estraçoado. Com a farinha, faziam-se as papas de milho e com o milho pilado faziam um caldo com cebo de carneiro ou boi, ou então umas papas com leite. No “Diário de Noticias” de 4 de setembro de 1941, dizia-se: - “o milho é, há muitos anos, um ele-mento fundamental da alimentação das nossas clas-ses menos remediadas. Barato, de fácil preparação e de forte poder alimentar, nenhum produto da terra o pode substituir ou sequer igualar”. Deverá ter daí re-sultado a expressão popular: “Vai-se ganhando para o milhinho...”. O milho era o alimento das classes po-bres e a sua falta atingia principalmente estes, por isso o articulis ta do D.N. apelava, em agosto de 1943, às classes mais abastadas, que lhe reservassem este privilégio: - “O milho é o alimento das classes pobres, das classes populares (...) o milho, repetimos, é o ali-mento dos pobres: assim aqueles que o podem dis-pensar, deixem-no aos pobres -porque para as almas bem formadas, deve constituir amargura, provocar, impensadamente, as faltas de alimentação nos lares onde o dinheiro não abunda”. Mais tarde, no inverno de 1945, em face de novas dificuldades, as páginas do mesmo jornal abriram-se para expres sar o grito plangente ecoado por todos os madeirenses em sur-dina.

A guerra também afastou os turistas da cidade. A aposta do Funchal como estância turística perde--se nos tempos da História, mas foi no século XVIII que a ilha assumiu um desusado protagonismo, pela sua função enquanto porto de passagem ou de es-tância de turismo pelas suas qualidades terapêuticas. Primeiro, os ingleses, depois, os alemães procuram esta estância e criam aqui, vínculos fortes. A primeira Guerra Mundial fez sair os primeiros, mas os ingleses continuaram como agentes, empresários e turistas. Uma vez mais, a guerra fez com que os hotéis ficas-sem vazios, mas esta medida incentivada pelas auto-

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ridades locais, nomeadamente o presidente da Junta Geral, João Abel de Freitas, veio resolver o problema.

A área hoteleira divide-se entre o espaço urbano até à Ponte do Ribeiro Seco e o Monte. Dos vários ho-téis e pensões da cidade, tivemos os seguintes como morada temporária destes gibraltinos: Savoy, Pensão Santos, Hotel Atlantic, Hotel Victoria, Hotel Bella Vis-ta, Pensão Phoenix, Pensão Voga, Hotel Universal, Pensão Avenida, Pensão Santa Clara, Pensão Vista Alegre, Hotel Montecarlo, New English Hotel, Pensão Boa Vista, Hotel Golden Gate e Hotel Belmonte.

A MADEIRAE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

A 1 de setembro de 1939, a Alemanha invadiu a Polónia dando assim, início à II Guerra Mundial. Por-tugal manteve-se neutral, mas não impediu que se fizesse sentir alguns dos seus efeitos. A Madeira foi o território português mais afetado, tendo em conta a posição geográfica, a influência inglesa na economia e navegação e a sua dependência ao exterior. A guer-ra prejudicou a navegação marítima atlântica e por consequência o turismo, uma das principais fontes de receita da economia madeirense. A frota mercan-te inglesa era a que mais contribuía para o movimen-to do porto do Funchal, tendo desaparecido, com o evoluir da conjuntura.

A especulação dos produtos de primeira ne-cessidade foi um dos principais problemas para as autoridades distritais. Por isso, o Governador Civil da Madeira de então, José Nosolini, numa nota oficiosa, dirigida essencialmente aos vendedores de arma-zém, estabelecia as condições a que estavam sujeitas as vendas “por grosso” de uma extensa lista de géne-ros alimentares de primeira necessidade, proibindo a venda aos retalhistas em quantidades superiores às médias que lhes tinham fornecido no primeiro semestre do ano. Ao mesmo tempo, a 3 de setem-bro, convocou as autoridades do Distrito para uma reunião, no Palácio de S. Lourenço, onde fez sentir a necessidade urgente de se intensificar e desenvolver as plantações de produtos mais comuns à alimenta-ção, acautelando-se, deste modo, as dificuldades que podiam advir. Depois, em outubro, o Governador es-tabeleceu outras medidas de longo alcance, que visa-vam o equilíbrio possível da economia madeirense.

No dia 2, foi publicado o Decreto Lei nº 29917, que facilitava a emigração para o Brasil para os de fracos recursos económicos, isentando-os do pagamento de taxas e licenças militares e, no dia seguinte, co-meçaram os sorteios das passagens gratuitas para os que queriam emigrar. A 8 de novembro, foi nomeada uma Comissão de Socorros e, a 22 do mesmo mês, inaugurou-se, na Praça de Tenerife, o Albergue Noc-turno para atender às necessidades imediatas da população mais pobre. A sopa dos pobres alargou-se também às freguesias suburbanas do Monte, Santo António, S. Martinho.

Por decreto-lei nº 28 899 de 5 de agosto de 1938, foi constituída a Junta de Importação dos Ce-reais e do Café na Madeira, com o objetivo de ga-rantir o abastecimento e de fixar os preços de venda ao público. A delegação da Madeira foi instalada em janeiro de 1939. A Junta, extinta pelo decreto-lei nº 43 874 de 24 de agosto de 1961, exerceu um papel importante no abastecimento e distribuição do mi-lho, base de alimentação madeirense, no período da guerra.

No decurso da guerra, a ação das autoridades locais foi no sentido de garantir o abastecimento de milho, socorrendo-se ao armazenamento, controlo de preços e ao racionamento e fiscalização dos locais de venda, de forma a impedir o açambarcamento e especulação. A Madeira consumia mensalmen-te mais de mil toneladas, estando o racionamento dependente do volume das importações e das exis-tências em armazém. Mesmo assim, viveram-se momentos de aflição com a rotura das reservas, em 1941 e 1943, socorrendo-se do cereal destinado à ali-mentação das aves. Em 1949, o fim da guerra trouxe a normalização das importações terminando as res-trições ao comércio de milho.

Desta forma, podemos afirmar que a década de 40 se inicia sob os piores auspícios. A paz era o va-lor mais desejado e, neste sentido, promoveram-se algumas peregrinações ao Terreiro da Luta. A econo-mia regional ressentiu-se e a pobreza era cada vez maior. A navegação estrangeira abandonou o porto do Funchal; o turismo sofreu uma completa paralisa-ção. As dificuldades de transporte criaram sérios em-baraços aos sectores vitais da economia madeirense. A mendicidade aumentava, os pobres eram reprimi-dos, afastados e presos, para não incomodarem as pessoas. Esta conjuntura foi agravada com os efeitos

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nefastos das intempéries. No fim do ano de 1939 e princípios do seguinte, a Madeira foi fustigada por in-tempéries que causaram prejuízos incalculáveis em várias freguesias rurais, causando prejuízos de mais de 7000 contos. Perante este quadro, a solução era sempre a mesma: a emigração. Esta era a voz cor-rente na imprensa e no discurso dos políticos que in-sistiam na emigração era a única saída possível para este crescimento demográfico desenfreado.

A guerra atingiu, de forma direta, alguns merca-dos concorrentes do bordado, na Europa e no Pacífi-co, deixando espaço aberto para o da Madeira. Mas os efeitos do conflito mundial foram devastadores para esta indústria. Em agosto de 1939, era já eviden-te a situação, como refere o Governador Civil José Nosolini. Desta forma, tomaram-se medidas, no sen-tido da sua defesa, através de isenções na importa-ção dos materiais, pano e linhas. Em 1936, a Madeira continuava a exportar o bordado para vários desti-nos, como a Inglaterra, Estados Unidos da América, Austrália, Canadá, França, União Sul-africana, Brasil,

Alemanha, Bélgica, Holanda, Peru, Malta, Noruega, Singapura.

A pressão da guerra foi tão forte na sociedade madeirense que ela se desmultiplicou em diversas manifestações de fé. Assim, em S. Vicente, a popu-lação juntou-se em 1946, para construir a capela de Nossa Senhora de Fátima, no Pico da Cova, como ma-nifestação de alegria pelo fim da 2ª Guerra Mundial.

A CONJUNTURA MADEIRENSE

E A CHEGADA DOS GIBRALTINOS

Enquanto as autoridades madeirenses incenti-vavam a emigração dos madeirenses para o Brasil, eis que aparece uma medida revivificadora da eco-nomia regional, com a chegada dos gibraltinos, que são acolhidos de braços abertos. Assim, a Segunda Guerra Mundial reavivou as relações entre a Madeira e Gibraltar, com a utilização da Madeira, por parte do Governo inglês, como refugio temporário de mui-

Fonte: http://madeiratraveller.blogspot.com

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ta da população residente em Gibraltar. Não temos dados seguros sobre o número de gibraltinos que a ilha acolheu, mas, pelas notícias da imprensa, sabe-mos que, em julho de 1940, o Funchal recebeu um primeiro grupo de 734 súbditos ingleses; em agosto, outros 1248. Estes gibraltinos permaneceram na ilha até 1944, começando a regressar à origem, a partir de 28 de maio.

O turismo, apesar das guerras mundiais, con-tinuará a ser um objetivo dos madeirenses no post Segunda Guerra Mundial. A guerra fez parar o movi-mento de visitantes, obrigando os hotéis a encerrar as portas. O anúncio do fim da guerra foi o prenúncio da nova era para o turismo madeirense. A Madeira afirmara-se como a estância de turismo da época in-vernal. Os turistas que chegam à ilha continuam a ser os mesmos europeus. Na década de trinta, insiste-se na aposta e no investimento no turismo, alardean-do-se o slogan da ilha como terra de turismo ou afir-mando-se a ideia do turismo como a mais importan-te riqueza do arquipélago. Em 1938, o turismo dava importante animação à cidade, fazendo recordar as primeiras décadas da centúria, mas, entretanto, a Se-gunda Guerra Mundial veio retirar todo este brio e movimento à cidade.

A chegada dos gibraltinos no verão de 1940 foi muito favorável para a hotelaria e comércio funcha-lense, para além do impacto que teve na sociedade madeirense. Mereceu especial atenção dos jovens madeirenses a forma de apresentação das gibralti-nas, usando minissaias e decotes ousados3. Era algo incomum, numa sociedade tradicional como a fun-chalense, onde as mulheres e as jovens quase só viviam no recato da casa e usavam vestimentas que escondiam o corpo.

A postura das mulheres jovens e adultas que-bra o formalismo e tradicionalismo da sociedade madeirense. Na ilha, as mulheres e jovens do sexo feminino, quase não saíam do seu meio familiar e

3 Vários testemunhos escritos e orais indica algumas atitudes ousadas dos refugiados gibraltinos do sexo feminino: Os rapazes madeirenses sempre tiveram um fraquinho pelas estrangeiras. Quando na guerra de 1939-45 vieram as gibraltinas, muitos foram os nossos conter-râneos de várias classes sociais que casaram com as raparigas de Gibraltar.“ (GOUVEIA, Horácio, Bento de, Margareta, Funchal, CMF, 1989, p. 314); “Lá na cidade, já se vêem coisas do arco da velha ... - As inglesas, e as gibraltinas especialmente, andam a pôr os olhos dos homens em bico ... - Tal é o descaramento de andarem com as saias curtas, quase pelo joelho ... - E os decotes, quase que deixam ver os cor-petes à mostra!” (Francisco Gomes da Silva, 2010. Baía da Saudade. Romance, Lisboa, UVRE/Ana Paula Faria -Editora, 2010, p.274).

não frequentavam espaços públicos, como cafés e esplanadas. Apenas a sua presença era notada nos domingos e dias santos para a missa católica e na al-tura dos arraiais. Por outro lado, a mulher gibraltina diferencia-se e ganha fama e notoriedade pela forma de vestir e cuidados com a estética. Realizaram-se, então, muitos casamentos com madeirenses, outros foram desfeitos e surgiram novas relações com estas jovens de Gibraltar.

A presença da mulher gibraltina que se passeia pelas ruas da cidade e frequenta os cafés veio alterar os costumes dos madeirenses e, certamente, abrir a porta para que algumas jovens madeirenses lhes co-piassem os hábitos e assumissem uma posição no es-paço público, que até então lhes estava vedado. Até então, muitas destas tinham o seu espaço de lazer aos salões de baile e, acima de tudo, às torres-avista--navios e as chamadas casas de prazer, onde passa-vam o tempo em permanente “coscuvilhice” esprei-tando, por entre as persianas, os transeuntes, na rua.

A presença inglesa na ilha não era novidade, mas as relações destes com os madeirenses eram quase inexistentes. Os gibraltinos, no período de pre-sença na ilha, iniciam uma nova fase de convivência mútua entre as duas comunidades. Assim, frequen-tam as esplanadas, estão presentes nos salões de convívio noturno. Parece existir uma outra empatia, que não havia antes com os forasteiros ou comunida-de britânica residente.

REAVER E REAVIVAR A MEMÓRIA

São evidentes os laçoss que ligam a Madeira a Gtibraltar e que são relevados pela História. Mas uma maior ligação foi presente com o episódio dos refugiados de 1940 a 1944, altura que contribuiu para um maior estreitamento desses laços. E, não será por acaso que, em 1947, foi lançado um cabo submarino que enlaçou os portos do Funchal e Gibraltar.

Para recordar este episódio da evacuação dos gibraltinos no século XX, foi celebrado a 3 de maio de 2009, um protocolo entre os municípios de Gibraltar e a Madeira, ao mesmo tempo que foram erguidos monumentos em ambos os lugares evocativos da si-tuação.

Daí o presente momento que recordamos este episódio singular. Os anos de 1940 a 1944 foram mo-

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mentos tão singulares para a Madeira como para Gi-braltar. Para os Funchalense, foi uma rara oportuni-dade para reavivar a indústria hoteleira e comércio urbano. Para muitos dos gibraltinos, foi uma opção segura, num recanto a que muitos chamam “paraí-so”.

Este episódio que se prolongou por quatro anos e que hoje pertence ao passado não se apaga da me-mória dos ainda sobreviventes e dos seus descen-dentes, faz parte da memória histórica de ambos os lugares e nada nem ninguém o conseguirá apagar da memória coletiva. Fugitivos de uma “ilha” rochedo, são acolhidos num rochedo ilha e fizeram um casa-mento feliz que se perpetuou no tempo e que a His-tória testemunha.

Hoje, passados mais de setenta anos, recorda-mos este momento especial da presença dos gibral-tinos no Funchal, que foi um raro momento de en-tusiasmo face às dificuldades das guerras europeias. Virou-se, num lapso de tempo, uma página na vida económica e social do burgo e reforçaram-se as rela-ções entre a Madeira e Gibraltar.

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Centro Estudos de História do Atlântico (CEHA)

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marino que enlaçou os portos do Funchal e Gibraltar.

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Projeto "MEMÓRIA - Nona ilha"


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