IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 7
IS Working Papers
3.ª Série, N.º 7
Cidades como sonhos: um
estudo comparativo sobre a
liquidez da Rua Miguel
Bombarda Rodrigo Almeida Vítor Massa
Porto, dezembro de 2015
IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 7
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Cidades como sonhos: um estudo comparativo
sobre a liquidez da Rua Miguel Bombarda
Rodrigo Almeida
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
E-mail: [email protected]
Vítor Massa
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
E-mail: [email protected]
Submetido para avaliação: novembro de 2015/ Aprovado para publicação: dezembro de 2015
Resumo
A cidade do Porto surge hoje como uma referência para o turismo. Os poderes públicos
e a iniciativa privada encontram-se num processo de significativa atenção e mobilização,
no sentido de maximizar as potencialidades do património urbano. Tendo como
referência o conceito de cidade liquida, tem sido pretensão tornar o espaço um factor de
integração, de grande sociabilidade, onde tudo pode acontecer e onde todos têm lugar.
Focando esta iniciativa, e tendo por noção a Rua Miguel Bombarda (RMB procuramos,
neste artigo, debruçar-nos sobre a evolução e sedimentação das representações urbanas
dos actores sociais acerca da rua, do comércio, da habitação e da cultura citadina. Este
trabalho resulta de uma observação directa de aproximadamente cinco meses, bem como
da aplicação de entrevistas semidirectivas. A relevância desta nossa vontade pretende,
para além da complexidade desta abordagem, ser uma reflexão crítica, sustentada e
analítica, que seja um instrumento para a coesão, com vista a minimizar as
permeabilidades sociais dos indivíduos, fomentar a equidade relacional na cidade e
apontar caminhos para o fortalecimento da malha urbana.
Palavras-chave: cidade liquida, galerias de arte, gentrificação, recomposição sócio-económica, hibridismo.
Abstract
Today, the city of Porto has become a landmark in terms of tourism. Public policy and
private interest have turned their eyes towards the potential of urban heritage, using the
concept of ‘liquid city’ as a basis for urban development. This has shown an implicit
desire to turn the spatiality of the city towards an increase in sociability, integration, and
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to allow for ‘everything to take place anywhere’. Focusing on this framework, and taking
into consideration the case of Rua Miguel Bombarda, we sought in this article to analyse
the evolution, dissemination and urban representations of the social actors of the street
in terms of business, living conditions and city culture. Stemming from a 5 month direct
observation work, as well as from semi-directive interviews to key actors of the street,
these are some of the polarities that we analyse throughout this text, reporting to the
recent concerns facing the centrality of the cities and the much-needed attempt to bring
together urban citizens. With it, besides approaching with a critical lens much of what
has been said about this particular street as well as about Porto’s downtown, we intend
to create a framework that allows for a more socially cohesive analysis of the social-
relational space, towards the future.
Keywords: liquid city, art galleries, cultural hegemony, gentrification, hybridism.
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1. O Porto como Cidade Líquida
Na sua “Crítica da Vida Quotidiana”, Lefebvre constata que “tudo o que é grande e
esplêndido foi baseado no poder e na riqueza. Estas são as bases da beleza” (1991: 232).
Apesar de ser uma afirmação controversa, alicerçada num entendimento de uma classe
dominante de um regime pré-moderno, claramente podemos identificar no seu estudo
o contraste entre a beleza tradicional e o ímpeto modernista e modernizador que marcou
o século XX. No entanto, talvez esta citação precise de algum contexto e relativização,
para ser hoje bem entendida – especialmente quando tomamos em conta os novos
processos de integração cultural nos centros da cidade. Em particular, podemos ver isto
nos esquemas de retromania, e hipsterismo (ver, a título de exemplo, Reynolds, 2011, ou
a propósito do Porto, no caso da indústria do vinil, Guerra, 2011) de uma população que
chega recentemente aos centros da cidade (Rodrigues, 1992).
Este artigo visa, então, as mudanças territoriais dos espaços de fruição cultural na cidade
do Porto, procurando-se elaborar uma antropologia do espaço cultural, entender as suas
pertenças, e perspectivar caminhos de desenvolvimento urbano, no sentido de uma
formação cultural mais inclusiva, e que sintetize, na sua essência, a produção social do
espaço1 – isto é, produzindo um thirdspace de inclusão permanente, que se coadune com
a modernidade fluída que hoje vivemos (Soja, 1996). Com efeito, pudemos encontrar
alguns trabalhos acerca dos processos de mudança na Rua Miguel Bombarda, pondo-se
a tónica nos processos de gentrificação que os autores compreenderam como existindo
nesta rua. Um facto curioso que desde logo notámos, foi que dos dois trabalhos acerca
deste tema, que até agora levantámos, todas datam de 2009 – ano em que foi inaugurada
a zona pedonal, e na qual conseguimos identificar o maior volume de presença na
comunicação social da rua (Dias, 2009; Lourenço, 2009). No entanto, passados sete anos
desde 2008, data que focam, à luz dos projectos que se têm apresentado no sentido de
expandir esta zona pedonal para englobar, de certo modo, toda a rua, voltamos a
questionar-nos, houve gentrificação na rua? Será este um núcleo de indústrias criativas
e um pólo de atracção cultural directamente vocacionado para as artes plásticas?
As perspectivas de política cultural camarária têm tendido no sentido de construir uma
apropriação do espaço urbano que tende para as visões de Zygmunt Bauman de
modernidade líquida, onde as pertenças e as associações são imputadas a indivíduos
livres (desafiliados das instituições sociais ‘tradicionais’ no sentido que o autor lhe
imputa), com vista a uma produção explícita – uma ‘cidade líquida’, que será o mesmo
que falar de uma cidade inclusiva, que transcende as barreiras institucionais para
1 Este texto resulta de um trabalho académico de investigação na Unidade Curricular Sociologia da Cidade do 3.º ano da
licenciatura em Sociologia, no ano de 2014/2015, sob a regência e orientação da Professora Doutora Paula Guerra na
Faculdade de letras da Universidade do Porto.
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promover a mobilidade e a ascensão social (ideias que remontam, aliás, a Park et. al.
1967). Notoriamente, a defesa do vereador do Pelouro da Cultura da Câmara Municipal
do Porto (CMP) acerca da capacidade de “tudo poder acontecer em todo o lado” (2013),
foi o mote que nos levou a procurar encontrar até que ponto a cidade consegue realmente
conseguir essa liquidez, ou antes, em que sentido se está a elaborar este tipo de
alterações. Simultaneamente, as perspectivas tomadas pelas iniciativas privadas, como
é o caso de um galerista icónico da rua, levam-nos a relativizar e questionar o papel deste
tipo de iniciativa pública, bem como o papel integrado da educação e promoção da
cultura urbana numa rua guiada por elementos de oferta privada.
Em síntese, podemos perguntar-nos com Lefebvre se é pelo conhecimento “que o povo
se liberta e supracede a sua condição” (1991: 144) e assim sendo, de que maneira isto
acontece na cidade, que conhecimento é este que é imposto às populações, e de que
maneira a integração na rua tem sido feita, por um caminho teórico alternativo às visões
da gentrificação.
2. Cidade, modernidade e microterritorialidades
Os outros embaixadores avisam-me de fomes, de peculatos, de conjuras, ou referem-
me minas de turquesas novamente descobertas, preços vantajosos das peles de
marta, propostas de fornecimento de lâminas adamascadas. E tu? – Perguntou a
Polo o Grão Khan. – Voltas de países igualmente remotos e tudo o que sabes dizer-
me são os pensamentos que vêm à ideia de quem apanha fresco à tardinha sentado
à soleira da porta. (Calvino, 2011: 35).
Quando Marco Polo apresenta os seus relatos citadinos a Kublai Khan, contra os relatos
da urbanidade a que este está habituado, o explorador apresenta-lhe pormenores,
fragmentos, pequenos pontos que se relacionam com certos aspectos. Na estrutura do
livro de Calvino, isto é de resto visível: memória, desejo, sinais, subtis, trocas, olhos, céu,
mortos, ocultas, contínuas, são apenas algumas das descrições que o autor dá aos
extensos relatos que faz das cidades que visita. No próprio conteúdo podemos encontrar
uma preocupação específica não com a maneira como a cidade é, mas com aquilo que a
caracteriza e torna pessoal – aquilo que a define enquanto cidade. E mais do que tudo,
podemos encontrar uma preocupação no livro com a apropriação que cada indivíduo
faz da cidade enquanto tal.
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ILUSTRAÇÃO 1 Relevo nas colunas de prédio habitacional, na zona expandida que liga a RMB à R. de Cedofeita
Fonte: Rua Miguel Bombarda (2015).
Esta preocupação com o sentido que os indivíduos imprimem na cidade é um que está
patente em toda a sociologia urbana clássica, e um dos focos principais das origens da
disciplina. Em estudos sociológicos clássicos (Weber, 1969; Simmel, 1997; Benjamin,
2002; Thrasher, 1927; Whyte, 1993), uma preocupação em entender de que modo os
actores sociais compreendem e são compreendidos pela vida citadina. No entanto, e
como nos aponta Fortuna (2015), grande parte destes estudos focam-se essencialmente
no modo como funcionam as grandes cidades europeias, as metrópoles; ou como a
Escola de Chicago nos aponta, o funcionamento de centros metropolitanos fervilhantes
americanos. Mais ainda, como nos aponta o mesmo autor, as cidades são marcadas pelas
suas desigualdades constitutivas. Este autor nota como as microterritorialidades
(Fortuna, 2015) se marcam por uma recusa em ser recusados, uma procura de um modo
de vida alternativo e identitário específico, e a procura de “outros espaços” urbanos,
marcados pelas Bünde (Fortuna, 2012: 201): assim emergem as comunidades afectivas e
núcleos de expressão do self – uma reacção contra a atitude blasé, do indivíduo flâneur
que Simmel (Fortuna; 2011:379) aponta, e um contraste vincado com este. E isto parece-
nos algo indistinguível dos processos de formação identitária sedimentar que se
observam na cidade do Porto, caso que iremos abordar.
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ILUSTRAÇÃO 2 Arte de Rua na mais recente zona pedonal, em frente a diversas Galerias de arte, Março de 2015
Fonte: Rua Miguel Bombarda (2015).
De novo contra as noções de Simmel (Fortuna, 2011: 381) – ou pelo menos contra a visão
situacional do autor - o indivíduo recusa-se a aceitar a sua pertença desintegrada na
cidade, e procura dar um sentido intrínseco à tremenda quantidade de informação com
que é confrontado (no consenso de todos os autores, completamente excessiva para os
sentidos). Na Rua Miguel Bombarda, objecto do nosso estudo, podemos observar
palacetes renascentistas, casas de século XIX, habitações industriais do início de século
XX, arquitectura brutalista do pós-guerra, reconstruções, reinterpretações, edificação em
cima de edificação. Falar de uma rua, de uma cidade, é falar não de uma singularidade,
mas de uma multiplicidade, de maneiras tão diversas que se cria um quase inventário-
abismo de sentidos: na sua essência, a cidade como um palimpsesto, que carrega em si
todas as marcas do passado e das suas vivências. Esta descrição – análogas às de Calvino
– podem ser lidas como uma memória colectiva, e oferecem mais do que tudo um sentido
específico para as comunidades Bünde, e serve o propósito de alimentar pequenos
grupos de resistência urbana. De maneira análoga a Marco Polo, somos forçados a
compreender o espaço social urbano como uma malha, focando determinadas
características em detrimento de outras. Construir estas cidades mentais implica, de tal
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modo, um esforço de selecção de fragmentos que procuramos reorganizar e com-
preender de modo a entender a panorâmica urbana – seguindo as linhas investigativas
de Fortuna (2012, 2015) e Guerra (2003).
No entanto, o sentido destas cidades invisíveis dá-se de um modo específico: numa
estruturação política contraditória, marcada por um processo que se visa eminentemente
‘cosmopolita’ e uma permanência do nacional enquanto foco de acção social (Sassen,
2002), na busca de uma globalização citadina intensa (Sassen, 2005), ao mesmo tempo
que há uma permanência das características locais e autóctones (Guerra, 2002).
Notavelmente, a cidade de bairro, visível ainda no Porto, é desmantelada em detrimento
de uma cidade unificada onde, nas palavras de Paulo Cunha e Silva (2013) “tudo pode
acontecer em todo o lado”. Esta desagregação tem um propósito urbano tremendo, e
passa exactamente por uma luta contra a segregação bairrista, a desigualdade citadina e
a potenciação cultural de camadas consideradas pouco receptivas. A faceta
inerentemente positiva deste tipo de projecto, vê por outro lado o seu lado negativo no
modo como, muitas vezes, a cultura urbana dominante apropria os identitários
simbólicos do bairro, os símbolos e história tradicionais, e os comodifica na forma de
produtos turistificados, designificados, e em muitos aspectos “um pouco iguais a tudo o
resto” – nas palavras de uma das nossas entrevistadas. A questão aqui complexifica-se
mais ainda: como se pode intervir no sentido de tornar o património apelativo, sem no
processo o retirar à população autóctone? Que consequências tem este tipo de políticas
para a apreensão da cultura quer tradicional quer moderna? Este processo de
homogeneização e mobilização dos espaços urbanos para determinados usos específicos
consegue efectivamente esbater as desigualdades culturais e processos de exclusão
social, ou constrói novas barreiras invisíveis e espaços de legitimidade?
Esta questão traz-nos para o conceito central da nossa abordagem à cidade. A
constituição destas comunidades socio-afectivas que Fortuna aponta, necessita de uma
contextualização sociopolítica específica: é necessário compreender que a modernidade
com que somos deparados é distinta da modernidade “sólida” que o início do século XX
apresentava. Marca distintiva de muito do discurso académico sobre o capitalismo e
modernidade, bem como algumas reflexões filosóficas, modernidade líquida ou tardia
(termos de Bauman (2003) e Giddens (2003), respectivamente) aparece como um
contexto específico do pós-guerra ocidental europeu. Marcada por grande pessimismo,
a literatura sociológica preocupada com a ontologia da vida citadina e social descreveu
extensivamente o modo como a vida social se unidimensionalizou na produção e
consumo (Marcuse, 1975), tornou-se pública (Habermas, 1989), e se tornou desagregada,
cansada, e partida (Adorno, 2001). Contrapondo a esta noção, a visão estruturo-
funcionalista apontava para um funcionamento quasi-mecânico do ser humano, no qual
as variáveis se comportavam com previsibilidade intervalar, dando lugar à irreal crença
nos modelos de comportamento racional económico. No entanto, autores como
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Zygmunt Bauman (2003) procuraram articular um pouco destas compreensões,
estruturando a modernidade num determinado sentido. No decorrer do seu trabalho,
este autor procurou entender o modo como a racionalidade se foi estruturando na vida
moderna, e como as tentativas de organização e racionalização da vida humana se
mostraram em muitos casos frágeis ou passíveis de obter excepções.
Como tal, a cidade que pensamos encontrar no Porto na rua Miguel Bombarda, é uma
cidade que vive esta modernidade líquida, fluída, na qual encontramos distintas
pertenças a determinados gostos (no sentido bourdeusiano), bens culturais e gastronó-
micos, pertenças modernas e tradicionais. No decorrer das nossas incursões empíricas
podemos identificar uma história da rua que se marca por esta liquidez: uma rua mar-
cadamente residencial, alterada entre 1833 e 1839, onde a rua se expandiu para unir com
a rua de Cedofeita, tradicional rua de comércio portuense. A expansão das suas casas
fez-se da actual zona de galerias para a rua de Cedofeita, e foi notavelmente marcada
por armazéns, mercearias e comércio tradicional. Podemos notar três tipos de
comercialização nesta rua: comércio tradicional, herdeiro destas formas clássicas de
troca capitalista, o comércio urbano, extremamente utilitário e focado na produção e
consumo moderno, e o comércio cultural, vocacionado para pertenças afectivas e
líquidas, notavelmente associado a determinados objectos identitários e simbólicos que
se herdam quer da cidade quer da rua. Este último é o que mais proximamente podemos
associar com a noção que temos de cidade e modernidade líquida, e é aquele que
queremos comparar com três visões que iremos operacionalizar para compreender a
verdadeira liquidez da cidade do Porto usando como caso de estudo a rua Miguel
Bombarda: Será o Porto uma cidade líquida? Se sim, que implicações sociais tem esta
liquidez nas populações locais? Será que todas as populações se enquadram nesta
liquidez de igual forma?
Igualmente importante nesta questão está o centro fulcral de liquidez que podemos
imputar na Rua – as aberturas de galerias, ocorrendo sensivelmente de mês e meio em
mês e meio. Estes momentos consistem na abertura da rua, num ambiente de festival, à
população em geral, promovendo-se cultura, gastronomia, e consumo dos bens da rua.
Este contexto de festivalização da cultura (Bennett et al., 2014) levanta mais uma questão
a propósito da pertença urbana dos indivíduos: haverá algum paralelismo entre a
vivência da rua e do bairro no quotidiano, e a vivência da rua festivalizada? Esta questão,
sobre a qual não nos iremos debruçar em profundidade por constrições de tempo, tem
na literatura pós-subcultural algumas respostas – quer na visão de Maffesoli, com a sua
noção de “Zona autónoma temporal”, pautada pelas suas próprias regras e momentos
(Maffesoli, 1996); quer na visão de Bennett et al (2014), onde o festival é visto como um
móbil para a apropriação de significados políticos, económicos, religiosos e sociais, para
além de servir como um instrumento de sedimentação local e global.
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No contexto de um objecto empírico complexo como é este, e tendo em conta que uma
das nossas linhas de pesquisa parte da necessidade de compreender as percepções dos
indivíduos da rua, iremos fazer uso da perspectiva situacionista na construção dos
nossos itinerários urbanos. Mais concretamente, iremos procurar operacionalizar nas
nossas incursões empíricas o conceito de urbanismo unitário, e derive (Debord, 1958) –
no qual o lazer, a arte e o prazer são indistinguíveis dos contextos pragmáticos e
industriais/produtivos da cidade moderna – por modo a compreender, a partir de um
conceito virado para a praxis urbanista, se os esforços de recuperação e recontextualiza-
ção urbana que a Rua Miguel Bombarda tem sido alvo desde 1993 tem afectado a relação
dos indivíduos com o espaço e a sua capacidade de enquadramento urbano. Cremos que
esta abordagem, preocupada com a integração da cultura no tecido urbano, e
vocacionada para a experiência sensorial da rua, permitirá aceder a um conjunto de
realidades concretas que poderão não ser imediatamente aparentes, no cruzamento entre
arte urbana, habitação e comércio. Para além do mais, procurando perceber as
percepções específicas da rua, procurámos construir um mapa psicogeográfico da rua e
dos seus espaços (ver Anexo 2).
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ILUSTRAÇÃO 3 A Cidade na Rua em 3 momentos temporais, Março de 2 015
Fonte: Rua Miguel Bombarda (2015).
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3. A Rua como unitário urbano
A literatura acerca da rua Miguel Bombarda tem-se vindo a focar num grupo restrito de
fenómenos de recomposição urbana: gentrificação, hibridismo e hegemonia cultural. No
entanto, entender a rua como um todo parece-nos necessário, num primeiro momento,
para depois podermos estruturar as suas divisões internas. Nesse sentido, procedemos
a levantamento2 de todas as casas comerciais da rua, à semelhança do operado por Joana
Dias (2009), podendo verificar, em comparação com este trabalho, algumas alterações na
composição social, cultual, económica e artística da rua.
A loja Matéria Prima, considerada fulcral na rua, mudou-se para a rua da Picaria. O
edifício Artes em Partes, para a rua do Rosário, sendo hoje muito menos referenciado. A
Mundano Objecto deslocou-se para a rua Santos Pousada, enquanto a Miau Frou Frou
deslocaliza-se do Porto para Lisboa. Entretanto há tantas outras lojas e galerias que
abrem, e outras mais que saem da rua. Este parece-nos um primeiro ponto de inquirição:
estas lojas, consideradas fulcrais e icónicas na rua, procedem no espaço de seis anos a
direccionarem-se para outras zonas da cidade e mesmo do país, mas não fecham, sendo
ainda possível encontrar os seus adereços nos meios online. Por seu turno, e em seu lugar,
vários pequenos espaços com outros interesses surgem, mas, como nos diz Viviana, 46
anos, Comércio tradicional “são quase tudo cafés, faz falta aqui qualquer coisa que
anime isto”.
Podemos, assim, ver que a relação com a rua é dinâmica, activada, e marcada
simbolicamente em determinados espaços que se afirmaram, após um momento inicial
(2009) de grande tribulação, como casas comerciais fixas na rua Miguel Bombarda. As
pertenças relativas e psicogeográficas dos indivíduos, detalhadas na ilustração quatro,
mostram-nos alguns locais que se afirmaram como marcos centrais: Rota do Chá, CCB,
as galerias e os hostels. As visões desta rua tendem portanto para um grande
desequilíbrio na importância atribuída às várias casas comerciais, havendo confluência
em torno destes quatro marcos. Mais do que isto, pudemos no processo identificar que
cerca de 68% dos indivíduos que trabalham na rua não frequentam ou consideram
relevante qualquer espaço na rua, com esse número subindo para 92% quando se fala só
de galeristas. Falar-se de rua Miguel Bombarda é portanto falar-se de uma desigualdade
a priori: não são os seus residentes que fazem a fruição dos espaços, algo que pudemos
desde logo verificar na observação e contacto com os agentes sociais, mas também não
são os indivíduos que trabalham na rua, fechados dentro das suas lojas e com pouco
contacto uns com os outros.
2 Cf. Anexo 1
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ILUSTRAÇÃO 4 - Pertenças relativas e psicogeográficas dos indivíduos 3.
Fonte: Inquirição informal a transeuntes, mapa cons truído pelos autores em Google Maps (2015).
Viviana apresenta-nos uma resposta: “Turistas vêem-se muito. O turismo é que anima.
Mais ao fim do dia o movimento que nós temos é de turistas, que vão para os hotéis e
para os hostels e compram muita coisa.” Para esta actriz social, os transeuntes e os
comerciantes estão deslocados da maior parte da vida da rua, e não lhe “dizem muito”.
Do mesmo modo Manuela, 62 anos, comerciante de comércio alternativo, nos diz que “é
com grande pena que são hoje os turistas quem mais procura a sua casa”.
De resto, é possível ver uma rua altamente diferencial na sua vivência, especialmente
nas clivagens quotidiano/abertura de galerias, e manhã/tarde/noites. Nas nossas
observações, respeitando ao dia 18 de Abril de 2015, Sábado, um dia ameno de sol,
suportadas por elementos audiovisuais de vídeo, pudemos ver uma manhã com 23
pessoas, 24 carros, frequentando os indivíduos o Centro Comercial Bombarda (CCB),
com uma pequena quantidade destes comprando na mercearia na esquina com a Rua
Adolfo Casais Monteiro. Já na tarde, este número sobe para 100 pessoas, 82 das quais a
frequentarem a rua, mas sem mudando os espaços de frequência: algumas pessoas junto
à loja de Ana Vasconcelos, outras na garagem, e uma grande parcela no CCB.
Contraporíamos isto com a nossa visão da rua num dia de abertura de galerias, onde
estimamos pelo menos 850 indivíduos, numa contagem parcial, a passear na rua num
dado momento.
A visão do urbanismo unitário que os situacionistas prescreviam era a de uma cidade
onde a função e o lazer se fundiam e associavam em modelos holísticos (Debord, 1958).
No entanto, as microterritorialidades que Fortuna (2012: 201) nos apresenta são de certo
modo mais próximas da realidade da rua Miguel Bombarda. Ou ainda, para nos
referirmos ao nosso ponto de foco não-científico, são as várias ruas que se sobrepõem,
inerentes à vivência de cada um dos seus actores sociais, invisíveis aos outros, que se
3 Anexo B – imagem ampliada.
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mostram nesta rua. Estas relações estão profundamente patentes no discurso dos actores
sociais.
Com vista à análise de algumas temáticas que consideramos centrais na estruturação da
vivência da rua Miguel Bombarda, aplicámos a técnica de photovoice em alguns
elementos da rua, dois indivíduos de comércio alternativo, dois de comércio urbano e
utilitário, e um de comércio tradicional. Apresentámos cinco fotos com vista a procurar
as suas opiniões acerca de cinco eixos de estruturação social da rua e da cidade:
1) A vivência quotidiana da rua/a vivência dos dias de abertura de exposição (que
transporta implicitamente o ‘peso’ das galerias na estruturação social da rua);
2) A rua enquanto espaço de transitoriedade/a rua enquanto espaço de residência;
3) O papel do comércio tradicional/O papel do comércio artístico-cultural na vida social
da rua;
4) O contexto urbano de fruição dos consumos na rua/O contexto cultural de fruição dos
consumos da rua; e
5) A degradação urbana/A regeneração urbana.
Procurámos explorar os nossos objectivos, informados por uma noção de modernidade
líquida de Zygmunt Bauman, na qual se perspectiva uma individualização nodular no
espaço moderno, e na nossa visão, do espaço urbano (Bauman, 2003). Concretamente, os
nossos objectivos passam por entender de que maneira os indivíduos consideram a
integração da rua num contexto de cultura artística nacional e internacional como um
factor de regeneração urbana com implicações positivas para a vivência da rua em todos
os seus aspectos, bem como um modelo de desenvolvimento adequado à realidade
portuense.
Vemos hoje uma defesa da gentrificação demográfica e económica, cujos processos
morosos na cidade do Porto têm sido alvo de várias análises (Guerra, 2003). Mais ainda,
assistimos à prescrição muitas vezes normativa da criatividade como caminho de dina-
mização económico, cultural e social – patentes nas análises de Florida (2005) – e que tem
vindo a ser aplicada copiosamente no Porto como noutras cidades (ver, a título de
exemplo, o caso de Adelaide, no Canadá, Adelaide City Council, n.d), apesar de, como
nos diz Antónia “esses conceitos estarem a ser repensados”. Esta noção de cidade líquida
procura integrar os vários indivíduos no tecido urbano, operando a especificidade
territorial, e tomando como fulcral a envolvência dos actores sociais específicos, do
modo que Antónia nos fala, na sua vivência da rua de “ [uma] participação muito
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grande, até das pessoas menos envolvidas, na decoração das montras e assim, havia
muita sensibilidade”.
Investigando a vivência quotidiana versus a vivência dos dias “extraordinários” de
abertura de exposições, confrontámos dois actores sociais distintos: Deolinda, com os
seus 60 anos, dona de um café tradicional na rua há mais de 40 anos, e Joaquina, por
volta dos seus 40 e alguns anos, dona de uma galeria-livraria aberta há pouco mais de
sete anos. Apresentados com as mesmas questões, pudemos notar que os focos foram
directamente pessoalizados e apropriados para os casos particulares.
Já no que toca ao eixo da transitoriedade versus residência na rua, socorremo-nos de
novo de Deolinda, bem como de Miguelina, com pouco mais de 30 anos, dona de uma
loja de comércio urbano moderno. De novo, a perspectiva de Deolinda focou-se no modo
como a rua envelheceu, e se tornou num espaço de fruição de determinados indivíduos
mais escolarizados e mais preocupados com questões de cultura, contrastando estes com
as duas senhoras à janela, que nas palavras da entrevistada “deviam estar a olhar para
isto tudo porque já não há mais nada a fazer não é?”. Para esta actriz social a rua Miguel
Bombarda sofreu um processo de degradação da sua vida quotidiana, fruto do
fechamento das oficinas e lojas, e isso trouxe consequências graves que a sua
institucionalização enquanto rua de galeria só conseguiu amenizar parcialmente. Já
Miguelina vê esta animação da rua como um factor de integração social, dizendo-nos
“Geralmente a terceira idade sente-se um pouco sozinha e eu acho que é uma forma de
também terem motivo de conversa, não é? É isso que eu vejo aqui”. A sua perspectiva é
uma de que a vivência da rua tem consequências na integração dos indivíduos residentes
relativamente isolados na vida social da rua Miguel Bombarda, promovendo a
experiência da liquidez cultural a todos os níveis, sendo esta reinterpretada e
reapropriada consoante os casos particulares. Miguelina adiantou-nos, porém, que
tendo aberto a sua loja há pouco mais de um mês ainda ia experimentar pela primeira
vez o evento da abertura das galerias enquanto comerciante.
Acerca da diferença entre comércio tradicional e comércio cultural-artístico, Miguelina
falou-nos de como a diversificação da rua nos seus vários tipos de vivência era uma que
tinha grande valor, pondo a tónica na valorização dos espaços por meio do contacto com
a realidade cultural e artística, mostrando-se até entusiasmada com a possibilidade de
lojas como a sua (lavandaria) poderem albergar uma exposição de arte. Isto mostra-nos
uma abertura incondicional à vida cultural, mas demonstra igualmente uma liquidez
hegemónica, em que as realidades artísticas são impostas ao comércio tradicional e
urbano, integrando-o numa lógica cultural, sem que haja qualquer forma de
reciprocidade. Já Octávia, lojista de uma loja de roupas no CCB, com os seus 20 e poucos
anos, apresentou uma perspectiva diferente, aproximando o comércio de galeria com o
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de mercearia, e distanciando-o do comércio mais hipster das lojas do centro comercial.
Na sua visão a rua tem uma pertença relativamente homogénea, na qual as lojas do CCB
se destacam pela sua diferença fulcral de pertenças, apropriações, e continuidade no
tempo. Nas palavras da autora “isto de vez em quando na rua toda a gente sai à rua, mas
aqui [no centro comercial], compra-se as mesmas coisas, e as pessoas são mais
constantes”. Isso indica-nos de novo as questões de transitoriedade da rua, da celebração
incessante, mas pondo a tónica na continuidade, e, como tal, notando que tanto as
galerias como o comércio tradicional sofre com esta inconstância.
Quanto à recuperação urbana, Claudine faz alusão às recuperações urbanas que têm
vindo a ser feitas em muitos casos no Porto, aludindo ao mercado do Bom Sucesso como
um caso de sucesso, dado que “mantém o que havia, e ainda assim dá-lhe outro sentido”.
Na sua visão, a rua evoluiu de maneira algo desorganizada, dando-se pouca importância
à visão unitária da rua, e, mais ainda, aos propósitos que os vários espaços
arquitectónicos têm para cada indivíduo. Joaquina, por outro lado, pôs o enfoque na
desorganização versus ordem que a rua transmite, e que se reflecte na vivência que os
indivíduos fazem dessa mesma rua, com os processos de degradação e recuperação
transparecendo no seu discurso como duas faces da mesma moeda. Mais ainda, a actriz
social aponta como este tipo de vivência é menos localizada na Rua Miguel Bombarda,
e espalha-se um pouco por todo o Porto: “Eu acho que não remeto para a questão daquilo
que representa a Rua Miguel Bombarda, porque isto é uma realidade da cidade. Vemos
também outras ruas, como a Rua das Flores, com edifícios belíssimos e recuperados, e
outros abandonados. Portanto, isto é uma vivência. Apesar de tudo a Rua Miguel
Bombarda até nem é das piores. Convivo bem com essa situação, não me parece que haja
um caos aqui implantado”. Estas noções de defesa de um unitário urbano mostram-se
extremamente importantes para a vivência urbana dos indivíduos, e reflecte-se no modo
como esta actriz social encara a rua em questão.
Alguns aspectos que surgiram também destas interacções, e que notamos, é uma relação
muito mais estrita entre os actores sociais que vivenciam a rua, contra aqueles que
trabalham nela. Notavelmente, no caso das duas lojistas do Centro Comercial Bombarda,
Octávia e Claudine, pudemos notar a sua hesitação na identificação de alguns espaços
comerciais, bem como um conhecimento parcelar da rua. Podemos questionar-nos sobre
se isto é resultado de uma dificuldade particular das fotos, ou de uma amostra
demasiado pouco representativa – mas como nos diz Octávia, a vivência do centro
comercial é relativamente separada da rua.
Isto leva-nos a outra questão transversal às nossas respostas: uma noção de concentração
da vida cultural e activa da rua num espaço restrito, na zona pedonal que corta a rua. À
luz das propostas que têm surgido informalmente sobre a pedonalização total da rua –
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17
como proclamado várias vezes em entrevista por Fernando Santos, dono de uma galeria,
podemos questionar-nos até que ponto a liquidez da rua se pode obter quando se
formam centros e nódulos que se sobressaem de um todo coeso. Este factor é ainda mais
complicado por aquilo que Joaquina nos aponta, acerca de se tratar de uma cultura que
se procura de massas, não sendo directamente vocacionada para estas. Nas suas
palavras: “se calhar o que nós temos de fazer é repensar também este conceito de cultura
e aproxima-lo mais às massas, se queremos e é isso que queremos, tornando a cultura
numa ideia de cultura mais acessível e mais aberta às pessoas”. Ou seja, o que vemos
aqui patente é uma opinião crítica sobre a globalização da cultura artística que vigora
nas políticas culturais urbanas, e que releva um factor importante: que se trata de um
público específico, localizado, que vive uma cultura que não é necessariamente a que se
pretende impor-lhe.
Saber apelar a este público, num apelo à diversidade, é outra das questões que Joaquina
nos lança, notando quão perigoso pode ser um rótulo como “rua das galerias”. Na sua
visão, este tipo de associação simbólica pode causar o afastamento de indivíduos que
não se consideram enquadrados com a cultura que se pretende transmitir, ou indivíduos
que procuram fazer uso do seu tempo de maneira vocacionada para o lazer ou o
consumo. Um desafio que nos é assim colocado é apelar à vivência líquida da rua, ou
seja, promover a diversidade com intuito de se tornar um espaço de identificação
identitário comum, e não limitado a determinados segmentos etários ou urbanos.
Uma última ideia que nos parece transversal prende-se com a relação comercial e urbana
de recuperação urbana. As ideias que antes apresentámos de concentração específica
associam-se aqui a uma ideia, como nos apresenta Deolinda, de se abrir os espaços
fechados, algo que Octávia ecoa na sua descrição dos “espaços estranhos” e “escuros”.
Esta percepção de uma rua inerentemente desigual e desorganizada, patente no discurso
de Joaquina acerca da ordem e caos que lhe transmitiam as imagens de uma regeneração
urbana, associa-se também com aquilo que já pudemos observar acerca do traçado
arquitectónico da rua, bem como da sua evolução dos últimos anos. Um facto por último
interessante será o de esta entrevistada associar a noção de graffiti com a desordem e
caos, algo que contrasta com uma rua que contém participações de arte urbana de um
valor muito elevado.
Por fim, conseguimos observar que as perspectivas, ainda que relativamente
inesperadas, seguem uma lógica de posicionamento perto das clivagens tradicio-
nal/urbano/cultural que originalmente assumimos, e podemos ver diferentes posições
quanto a estas questões. Mais ainda, de notar que a idade aparenta aqui servir um factor
de posicionamento crítico, sendo que foram não só os entrevistados mais velhos que se
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comprometeram mais nas respostas, mas também os que apresentaram visões mais
críticas e concisas acerca da vida social da rua.
Aplicámos, ainda, três entrevistas semi-estruturadas a actores chave da constituição da
rua Miguel Bombarda, com uma dupla função: em primeiro lugar, notar de que modo
estes indivíduos entendem a rua de hoje na sua diversidade ou falta dela, tentando
esclarecer como é que indivíduos do comércio tradicional, alternativo e de arte entendem
as mudanças que se têm sentido. Em seguida, e com uma índole comparativa,
poderemos analisar de que maneira o discurso dos actores comuns mudou no espaço de
seis anos que separa este trabalho da literatura desenvolvida acerca da rua Miguel
Bombarda.
Podemos primeiro que tudo identificar que nos nossos entrevistados, as diferenças de
nível de perspectiva das suas intervenções e discursos ligam-se fortemente com o tipo
de comércio que exercem: nomeadamente, encontramos um comércio tradicional e
urbano ligado ao micro, ao directamente envolvente, e preocupado mais fortemente com
as questões económicas. O comércio alternativo exibe preocupações de nível meso,
englobando a rua como um todo, e tomando algumas definições acerca dos pontos
importantes da rua. Por fim, o comércio de galeria afigura-se como sendo micro e meso,
com a excepção de um notável galerista, Gilberto (nome fictício), que mostra
preocupações a nível da integração da rua no espaço urbano do Porto, e que procura
integrar a rua na vida cultural da cidade.
O outro factor que nos parece fulcral é a noção de falso consenso, hierarquizado por esta
lógica de visão de nível variado, que se aparenta na rua. Pudemos notar uma forte
tendência dos entrevistados de comércio alternativo, e de Gilberto, de assumirem que as
suas visões são partilhadas pelos comerciantes de toda a rua. Notavelmente, naquilo que
este último fala de se preparar um projecto de integração da rua, podemos ver algo
significativo: trata-se da rua dos agentes culturais, que não visa integrar nas suas
dinâmicas os habitantes e comerciantes autóctones.
Para lhe falar com franqueza, eu converso muito pouco com as pessoas porque o
meu tempo é pouquíssimo. Não é que eu não goste de falar, porque adoro falar, e
dou-me lindamente com todos os vizinhos, acho-os a todos encantadores, mas na
realidade não sei bem a opinião que eles têm sobre a rua. Penso que será um
bocadinho idêntica à minha, não sei. Manuela, 66 anos, Comércio Alternativo.
O que podemos ver como claro é a noção do comércio tradicional de as galerias se terem
provado infrutíferas. Viviana, 46 anos, dona de uma loja deste tipo de comércio, mostra
no seu discurso uma grande insatisfação com as galerias, mostrando na sua postura
corporal defensiva uma noção de que este tipo de comércio de arte foi um engano
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implicado aos residentes. Na sua visão, o turismo procura os hostels, o centro comercial,
e o comércio alternativo, enquanto as galerias servem como um foco de atracção que
raramente está aberto, e que não promove um público consumidor dos seus produtos.
As galerias não deram, agora, o turismo deu muita coisa, muito
movimento. Viviana, 46 anos, Comércio Tradicional.
Por outro lado, a posição de Gilberto marca-se pela proacção. O seu discurso afirma uma
continuidade com aquele que se identifica, como um dos fundadores da dinâmica de
movimentação social e cultural da rua. Continuando a tentar dinamizar a rua, o actor
social defende no entanto que “bem, eu queria que os meus colegas nesta rua tratassem
de certos projectos. Continuo a querer dinamizá-la, mas já não me quero envolver tanto,
porque no fundo o que sou é um galerista”. Também aqui podemos ver um certo
desencanto com o rumo tomado, com a deslocalização de muitas das lojas, e com a fraca
competitividade comercial que as galerias trouxeram para a rua, mas igualmente pode-
se ver uma defesa da necessidade de promover a cultura, e ser esse um dos focos mais
importantes – enquanto deixa igualmente entender a necessidade de atrair público mais
novo e dinâmico para promover a vida da rua.
Dos oito entrevistados, com duas excepções no caso do photovoice, todos mostraram um
certo pessimismo e desencanto com a rua, remetendo para um tempo anterior onde as
coisas “eram melhores. Hoje também é bom, mas se comparar como era há…” (Deolinda,
63 anos, Comércio Tradicional). Os outros grandes focos, tributários de um unitário entre
todos os indivíduos, são as pessoas, a rua e as consequências de uma cidade que se
liquidifica em vários espaços, várias ruas, mas que no entanto se foca num tipo ideal de
cultura, segregando os indivíduos que não se enquadram nessa lógica, e tendendo de
novo para um desencanto citadino clássico da sociologia urbana – o individualismo.
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ILUSTRAÇÃO 5 - Percepções simbólicas da Rua Miguel Bo mbarda, obtidas através de contagem de palavras nas entrevistas
Fonte: Entrevistas, word cloud feito em Wordle (201 5).
Quando antes o grande ponto central parecia ser a vida da rua, a tendência actual é para
uma descrença na capacidade de real atracção da rua Miguel Bombarda, tendo-se esta
tornado numa entre tantas outras. O que podemos ver em baixo é uma simplificação das
posições acerca destes processos.
TABELA 1 - Ambivalências da Rua Miguel Bombarda
Fonte: Análise de Posições das Entrevistas, dados pro cessados em NVivo, 2015.
Tradicional Urbano Alternativo
As galerias têm vantagem sociocultural na rua 0,38 0,13 0,50
As galerias não têm vantagens a nível económico 0,83 0,17 0,00
As galerias não servem de elemento de integração 0,25 0,00 0,75
As galerias não são importantes na vida sociocultural 0,40 0,00 0,60
As galerias integram os residentes na vida da cidade 0,29 0,43 0,29
As galerias atraem pessoas ao comércio da rua 0,00 0,67 0,33
As galerias festivalizam a cultura 0,00 0,67 0,33
Comécrcio distribuição de actividade
Questões
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Deste modo, podemos ver que, comparativamente às perspectivas optimistas dos
estudos de Sara Joana Dias (2009) ou Mafalda Lourenço (2009), a ambivalência acerca
dos vários aspectos da rua é mais patente. As variáveis dicotómicas, sobre simplificadas,
procuram englobar todas as posições intermédias que se inclinam mais para uma
desaprovação do papel integrador, social ou económico, ou para a oposta aprovação, e
estão aqui apresentadas com percentagens em linha, podendo ler-se as perspectivas que
temos vindo a focar. Podemos ver como os factores económicos se mostram par-
ticularmente notáveis no comércio tradicional, sendo percentualmente o tipo de co-
mércio que mais questiona a influência das galerias na economia da rua. Mais do que
isso, nota-se que o comércio alternativo tem também uma perspectiva algo céptica, e
autocentrada, como podemos observar nos vários apelos à diversidade: é aquilo que
falta na rua, e não se pode deixar que esta se torne na rua das galerias, pelo estigma social
que isso poderia trazer a certos públicos. Neste processo, o comércio urbano-utilitário,
mais fortemente desligado da vivência da rua, parece ser o que mantém uma perspectiva
mais positiva e optimista acerca do papel integrador e social da rua Miguel Bombarda.
4. Um sólido não-newtoniano: a gentrificação e a modernidade
na Rua Miguel Bombarda
Um factor que cedo se torna claro para quem investiga esta rua, é que a sua vivência é
profundamente desigual: tanto a nível dos dias das aberturas das galerias, como no dia-
a-dia, podemos ver uma diferenciação muito marcada dos públicos de frequência; quer
nos discursos de necessidade de renovar a rua, como nos da inutilidade das galerias,
vemos oposições claras entre o comércio tradicional e o comércio artístico-cultural. Na
prática, no entanto, o que é mais visível é que o processo de gentrificação que se aplaudia
em 2009 como sendo quase certo (Dias, 2009; Lourenço, 2009), não se parece verificar. A
nível residencial, a perspectiva de Manuela mostra-nos que os residentes da rua são
maioritariamente estudantes, Erasmus nomeadamente, cuja permanência é sempre
instável e tributária de oportunidades de emprego, uma perspectiva que concorda com
Antónia, que nos fala de um espaço urbano “já bastante cheio, e que começou a espalhar-
se para outras zonas da cidade”. Viviana também nos fala de como o público novo ainda
não se habituou ao comércio na rua, tratando-se de indivíduos que consomem produtos
urbanos (nomeadamente, do Minipreço e outras cadeias massificadas), e não produtos
locais. Estas noções, que envolvem uma profunda globalização do espaço, contra as
visões de glocalização que estão inerentes à gentrificação, juntam-se ao facto notável de
podermos encontrar vários moradores na rua que lá permanecem há mais de 30 anos, e
no facto de nenhum dos negócios de comércio alternativo pertencer a indivíduos que
residam na rua, no nosso levantamento.
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A gentrificação também dificilmente se verifica em relação às actividades económicas
presentes: o comércio híbrido e efervescente que se pode observar na rua Miguel
Bombarda tende para uma coabitação entre os vários estabelecimentos, com alguns casos
sendo relativamente fixos, mas com a maior parte dos espaços de comércio alternativo
marcando-se por um rápido surgimento e deslocalização para outra zona da cidade, da
maneira que Lourenço (2009) descrevia a propósito do fluxo para fora da Miguel
Bombarda. Enquanto isto, não se consegue, como visível pela comparação do
levantamento de Joana Dias e o nosso, identificar uma tendência de desaparecimento de
lojas de comércio tradicional, com a manutenção dos espaços mais antigos na rua. Mais
ainda, Antónia fala de um processo de fluxo, no qual a Rua Miguel Bombarda aparece
como um primeiro espaço de grande dinamização, cuja atractividade estava
essencialmente nas baixas rendas, mas que cedo deu lugar a outros centros (nomea-
damente, no seu entendimento, os Clérigos e a Rua das Flores), e cuja representação
simbólica é hoje a grande responsável pela continuada importância da rua.
Em súmula, podemos dizer com relativa certeza que a gentrificação desta rua é mais um
resultado, em 2009, do surgimento de uma rua como a Miguel Bombarda na cidade do
Porto, que ainda não havia passado por processos vagamente semelhantes, do que uma
realidade sistémica que esteja a decorrer. No entanto, isso não implica que essa realidade
aparente não se transmita para as notícias: a imprensa demonstra uma forte crença na
rua Miguel Bombarda como uma rua gentrificada, fruto de um contacto estrito com o
galerista Gilberto, e uma reportagem de outras reportagens.
Voltamos então à questão original – é a rua Miguel Bombarda um caso de liquidez
urbana, como defendido nas políticas municipais (visível no programa da CMP “Cidade
Líquida”, bem como nos objectivos professados pelo vereador da cultura). Cremos que
a solução a isto se encontra na maneira como a cidade do Porto tem evoluído nos últimos
anos. Com a criação de outras ruas modernas e alternativas, vocacionadas para um
comércio cultural e alternativo, e com o desenvolvimento de outros pólos de atracção
das camadas mais jovens, a rua Miguel Bombarda tornou-se um espaço de vivência das
galerias, de mês e meio em mês e meio, ainda que, como nos diz Manuela “já não há
aquela animação que havia, aí há uns cinco anos, sabem?”. Dividindo a sua importância
com vários outros espaços culturais na cidade, a liquidez do Porto tornou a rua Miguel
Bombarda num espaço menos relevante, mais segmentário. E nesse sentido a noção de
Bauman mantém-se: o sentido que se dá à cidade é múltiplo e deriva dos indivíduos que
a constroem (2003). Mas isso levanta outra questão, quem são estes indivíduos? Se, como
na Miguel Bombarda, partirmos de uma noção de cultura urbana que está associada a
uma classe alta, com alto contexto cultural e grande fechamento, segmentária, aplicadora
de um arbitrário cultural dominante, então o caminho que se toma é de “onde tudo
poder acontecer em todo o lado”, como Cunha e Silva defende (2013), mas apenas para
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alguns indivíduos. Lado a lado com estas ruas, e estes prédios, surgem assim múltiplas
cidades invisíveis que se sobrepõem, veiculando os desejos da população real, confron-
tada com um cunho simbólico que pertence a uma população desejada.
Questionamos por fim: de que maneira estão hoje a ser integradas as populações na
cidade? Até que ponto é a cidade líquida realmente inclusiva? E mais ainda, qual o papel
que as classes dominantes têm tomado na constituição destes processos? Procuraremos
aprofundar este tipo de dinâmicas em trabalhos subsequentes, focando nomeadamente
a constituição das lógicas discursivas sobre as ‘cidades criativas’, a busca pela
sustentabilidade do desenvolvimento urbano, e a coexistência do tradicional no
moderno – com particular ênfase nas transformações da habitação social e camarária, as
identidades associadas a esta, e a relação com a cultura citadina patente na Miguel
Bombarda.
5. As cidades (pouco) visíveis
Inserida num contexto portuense que difere do seu momento de partida comparativo,
2009, onde foi analisada por várias fontes académicas e declarada um caso de
gentrificação residencial e comercial. A nossa visão é que a rua Miguel Bombarda exibe
um comportamento pautado pela microterritorialidade, afectiva em muitos casos, com
os indivíduos a construírem a sua lógica territorial na base do invisível – ou seja, da sua
memória colectiva da rua, remetendo para momentos vários que cada grupo de actores
considera ideal ou melhor.
A nossa visão sobre este assunto, passa pela necessidade da comunicação e integração
simbólica e cultural destes indivíduos, com vista a transformar o arbitrário cultural da
rua em algo que respeite a todos os indivíduos que nela trabalham e vivem. Assim,
cremos que a responsabilidade partilhada a nível social, cultural e económico, podem
integrar por fim um conjunto de contributos de residentes e trabalhadores que conhecem
a rua com grande pormenor, e que podem direccionar os esforços para um público mais
abrangente do que o ideal-tipo das cidades criativas. Em súmula, cremos na
possibilidade de integrar a população da Miguel Bombarda para adaptar os processos
de liquidez e gentrificação da rua a um caso portuense – uma forma de desenvolvimento
que se afigura hoje, mais do que nunca, necessária para a sustentabilidade urbana.
IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 7
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ANEXO 1: Levantamento de todas as casas comerciais d a rua TABELA 1 - Ocupação dos espaços na Rua Miguel Bombar da
Fonte: Rua Miguel Bombarda (2015).
1ª 2ª 3ª 4ª 17 Galerias de arte 8 5 3 1
3 Restaurantes 1 - 2 -
1 Take Way - 1 - -
1 Restaurador de mobiliário 1 - - -
1 Igreja 1 - - - Salão das Testemunhas de Jeová
1 Confeitaria fina 1 - - - por encomenda 1 Livraria-galeria 1 - - - Infantil
1 Gab. Arquitectura e Design interiores 1 - - -
10 Lojas fechadas 2 3 4 1
1 Comércio calçado c/ design - 1 - -
1 talho - 1 - -
3 comércio pronto-a-vestir c/ design - 3 - -
2 Mercearia tradicional - 1 1 -
1 comércio de candeeiros - 1 - - prédio 3 pisos acima do solo
1 bar- Casa de chá - 1 - -
4 cabeleireiros - 1 2 1 só o instalado na 4ª parte é para homens e mulheres
1 comércio de artesanato contemporâneo- 1 - -
3 dormidas - 1 2 - Guest House- Hostel(à venda) -Pensão tradicional
2 Serviços públicos - 1 1 - Seg. Social- Centro de saúde
3 Parques de estacionamento - 1 2 -
4 Cafés tradicionais - - 4 - 1 c/ "sala" de jogos
1 Comércio de chás e especiarias - - 1 -
1 Mercearia de cadeia de distribuição - - 1 - Minipreço
2 Creches/infantários - - 2 -
1 A.T.L. - - 1 -
1 Centro Comercial - - 1 - 20 lojas
1 Máquina Multibanco - - 1 -
1 Comercio de produtos ortopédicos - - 1 -
1 Lavandaria - - 1 - Self-service
1 Gabiente de Design gráfico - - 1 -
1 Clinica - - 1 - Saúde estética intensiva
73 Total 16 22 32 3
Distribuição por
partes de rua Tipo de negócioQuantidade Observações
"Divisão" da Rua:
1ª parte- Da R. da Boa nova ao cruzamento com a R. de Adolfo Casais Monteiro; 2ª parte- Do cruzamento com a R. de Adolfo Casais Monteiro ao cruzamento com a R. do Rosário;
3ª parte- Do cruzamento com a R. do Rosário ào cruzamento com a R. de Diogo Brandão; e
4º parte- Do cruzamento com a R. de Diogo Brandão à R. de Cedofeita.
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ANEXO 2: Pertenças relativas e psicogeográficas dos indivíduos (imagem Ampliada)
ILUSTRAÇÃO 4 - Pertenças relativas e psicogeográfic as dos indivíduos
Fonte: Inquirição informal a transeuntes, mapa cons truído pelos autores em Google Maps (2015).
IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 7
IS Working Papers
3.ª Série/3 rd Series
Editora/Editor: Paula Guerra
Comissão Científica/ Scientific Committee: João Queirós, Maria Manuela Mendes,
Sofia Cruz
Uma publicação seriada online do
Instituto de Sociologia da Universidade do Porto
Unidade de I&D 727 da Fundação para a Ciência e a Tecnologia
IS Working Papers are an online sequential publication of the
Institute of Sociology of the University of Porto
R&D Unit 727 of the Foundation for Science and Technology
Disponível em/Available on: http://isociologia.pt/publicacoes_workingpapers.aspx
ISSN: 1647-9424
IS Working Paper N.º 7
Título/Title “Cidades como sonhos: um estudo comparativo sobre a liquidez da Rua Miguel Bombarda”
Autores/Authors Rodrigo Almeida
Vítor Massa
Os autorores, titulares dos direitos desta obra, publicam-a nos termos da licença Creative Commons
“Atribuição – Uso Não Comercial – Partilha” nos Mesmos Termos 2.5 Portugal
(cf. http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/2.5/pt/).