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Universidade Federal do Rio de JaneiroCentro de Filosofia e Ciências HumanasEscola de Serviço SocialPrograma de Pós-Graduação em Serviço Social
MARIELA NATALIA BECHER
“Sonhos (des)comunais em tempos de descomposição social
Mariátegui y Cinaio Prado Jr., fonte do marxismo latino americano”.
RIO DE JANEIRO2011
MARIELA NATALIA BECHER
“Sonhos (des)comunais em tempos de descomposição social.
Mariátegui y Caio Prado Jr., fonte do marxismo latino americano”
Tese de Doutorado, apresentada ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Orientador: Professor Doutor Marildo Menegat.
RIO DE JANEIRO2011
MARIELA NATALIA BECHER
“Sonhos (des)comunais em tempos de descomposição social.
Mariátegui y Caio Prado Jr., fonte do marxismo latino americano”
Tese de Doutorado, apresentada ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Aprovada em
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________.Professor Doutor Marildo Menegat (orientador)
Universidade Federal do Rio de Janeiro
___________________________________________________.Professora Doutora Dilma Andrade de Paula
Universidade Federal de Uberlândia
___________________________________________________.Professora Doutora Elaine Rossetti Behring
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
___________________________________________________.Professora Doutora Roberta Lobo
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
___________________________________________________.Professor Doutor Luis Acosta Acosta
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Sumário
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 1
I. MARIÁTEGUI E CAIO PRADO NO PENSAMENTO CRÍTICO LATINO-AMERICANO ........................................................................................................................... 7
1. Introdução ao Pensamento Crítico Latinoamericano ......................................................... 7 1.1 Particularidade do pensamento marxista de Caio Prado e Mariátegui ...................... 11 1.2 Antecedentes de uma geração. Como se constrói um pensador periférico? .............. 17 1.3 A III Internacional e sua Stalinização – América Latina ........................................... 45 1.4 Mariátegui e a III Internacional ................................................................................. 51 1.5 Caio Prado Jr. e o Partido Comunista Brasileiro ....................................................... 58
2. José Carlos Mariátegui ..................................................................................................... 62 2.1 Lutas sociais no começo do século XX ..................................................................... 62 2.2 A Comuna Incaica ...................................................................................................... 66 2.3 A figura do mito e da utopia andina ........................................................................... 77
3. Caio Prado Jr. ................................................................................................................... 84 3.1 Povoamento da colônia .............................................................................................. 84 3.2 Lutas sociais no Brasil ............................................................................................... 87 3.3 Acumulação Primitiva-Empresa Comercial .............................................................. 90 3.4 Entre a originalidade os limites desse pensamento crítico. ...................................... 99
II. OS CAMINHOS E DERROTAS DA ESQUERDA LATINO-AMERICANA ........... 106 1. Política de “conciliação de classe” ................................................................................ 108 2. 1960: Acumulação e Revolução na América Latina ....................................................... 114
2.1 “Novo momento de acumulação”: as ditaduras latino-americanas ......................... 114 2.2 Marxismo Nacionalista ............................................................................................ 123
3. Cuba e a luta armada ...................................................................................................... 128 3.1 A revolução cubana e o guevarismo ....................................................................... 130
4. Chile e o Estado democrático-burguês ........................................................................... 149 4.1 A forma política da Unidad Popular ........................................................................ 155
5. A Frente Sandinista de Libertação Nacional e o fim da era “guevarista” ...................... 163 6. 1980: a via eleitoral e o partido de massas ..................................................................... 165
III. REVOLTA SOCIAL NA CRISE ................................................................................... 172 1. Acumulação Primitiva – “Desenvolvimento Civilizatório” ........................................... 172 2. Comuna e Comunismo ................................................................................................... 178
2.1 A “Comuna” dos sovietes ........................................................................................ 185 3. Comuna e Crise Estrutural ............................................................................................ 188
3.1 Revolta Social na Crise ............................................................................................ 197 3.2 A forma política da revolta ...................................................................................... 199
CONCLUSÃO: SONHOS (DES) COMUNAIS EM TEMPOS DE CRISE .................... 214
BIBLIOGRAFÍA ................................................................................................................... 218
RESUMO
O presente trabalho analisa a interpretação de José Carlos Mariátegui e Caio Prado Jr
sobre a formação sócio-histórica de América Latina. Se tenta mostrar como as ideias de esses
autores, considerados os precursores do marxismo latino americano, foram incorporadas pelos
diferentes marxismos que se desenvolveram na América Latina, e as consequências de estas
leituras nos processos revolucionários que aconteceram nos anos '60-'70 do século XX,
particularmente a experiência cubana e chilena. Se abordam as lutas sociais que se
desenvolveram a partir dos anos '90, reavivando o debate sobre aquelas interpretações, e se
analisam as particularidades de essas lutas no marco da crise estrutural do capital, e os
desafios que elas apresentam para a teoria marxista.
PALAVRAS-CHAVE: José Carlos Mariátegui - Caio Prado Jr.- América Latina -
Marxismo latinoamericano – Formação sócio-histórica – Comuna.
Agradecimentos
Às funcionarias e funcionários, professoras e professores da Escola de Serviço Social da
UFRJ, por acolhe-me.
Ao CNPq, CAPES, FAPERJ pelas bolsas, sem às quais teria sido impossível este trabalho.
Pelas contribuições, diálogos que as diferentes professoras e professores aportaram nos
momentos de avaliação de este trabalho. E a aqueles que foram parte de longas conversas com
a intenção de estimular minhas ideias, me mostrar o mundo e suas (im)possibilidades. Entre
eles devo uma menção especial a Andre Villar, que com seu pensamento libre e criativo, me
possibilitou viajar a lugares impensados por minha imaginação.
Aos diferentes amigos e amigas que me ajudarão com a busca de material para esta
investigação, recolhidos em vários países de América Latina, sem os quais o trabalho não teria
sido possível.
As amigas e amigos que formam meus jardins mais prezados, nos quais me refugiou para
me sentir humanamente viva. A elas e eles que cozinham, dançam, pintam, escrevem, pensam,
correm, nadam, cantam, fazem música, amam, que se distribuem por terras e mares, devo-lhes
a possibilidade de aprender a compartir a vida os sonhos.
Entre estas flores, quero realizar uma homenagem especial a Mariana, por ser um exemplo
de vida, alegria e humanidade. E a través de ela, a sua mãe Graciela e seu pai Osvaldo,
desaparecidos na última ditadura militar Argentina, por ter deixado tão bela flor entre nós,
inspirando sonhos.
A Marcia, pelo carinho, o cuidado e o trabalho conjunto.
A minha mãe Mirta, pelo amor, generosidade e simpleza. Por que aprendi de uma quase
analfabeta, a liberdade que podia estar escondida nos livros. A meu pai Mario, pelo amor e as
boas histórias que sempre alimentaram minha imaginação e fantasia. A meu irmão Heber, por
ter me ensinado a ler e escrever, sem o cual este trabalho não poderia ter sido possível. A meu
irmão Diego, por compartilhar a vida comigo. A meus sobrinhos, Cristian e Matias, por
encher-me de alegria e me deixar entrar no seu mundo.
A Marildo Menegat, com muito carinho, quero lhe agradecer ter-me passado o impulso e a
necessidade de buscar a liberdade, nas suas diversas formas e conteúdos.. Seu trabalho
intelectual e humano me servirão como faro para não me perder no meio de tanto desastre.
Por seu cuidado, amizade e por ter confiado em mim.
Finalmente a Javier, pelo seu amor e música tão generosa que me dão um motivo para
acordar cada manhã com a ilusão de ouvir cada nota, cada acorde, cada melodia. Seu cuidado,
respeito, confiança foram o território fértil onde germinarão estos sonhos.
1
INTRODUÇÃO
O pensamento marxista latino-americano se construiu durante a primeira metade do século
XX tendo como base a influência do debate teórico-político existente nos países europeus e na
União Soviética. Este fato trouxe, por um lado, a riqueza acumulada durante várias décadas
pelo debate marxista, socialista e anarquista; mas, por outro lado, com estas idéias também
veio inclusa a dificuldade de pensar a particularidade do território americano, enquanto lugar
diverso, em virtude de sua história anterior a conquista e sua constituição como colônia
européia.
Caio Prado Junior é um dos primeiros autores latino-americanos a assinalar o caráter
desagregador da colonização, a qual viria a construir territórios que proporcionariam a
matéria-prima necessária para garantir a “acumulação primitiva” do capital1 que se encontrava
em plena formação, como também construiria territórios populacionais sem conexão, sem o
vinculo orgânico necessário para o desenvolvimento de uma vida social, em um todo
orgânico. Esse processo faz parte do que ele chama do “sentido da colonização”, a qual só se
propôs a ser uma vasta empresa comercial (PRADO JR., 2000 pág. 19-20).
Por outro lado, José Carlos Mariátegui observa que anterior à conquista, as formas sociais
existentes na parte andina da América, mantinham “nexos” que outorgavam uma unidade a
esse conglomerado social, tanto em suas relações sociais, com a natureza e, portanto, com a
produção. Por esta razão, as populações indígenas na América cumpririam um papel
fundamental nas lutas sociais desde a conquista até os dias atuais, na tentativa de recuperar
tanto os territórios expropriados como outros tipos de relações sociais e de produção.
A partir destas ideias pioneiras tanto de Caio Prado quanto de Mariátegui, cujo
1 Marx demonstra que no processo de “acumulação primitiva” do capital, toda a população que foi violentamente expropriada de suas terras, também será maltratada, torturada e tratada por diferentes legislações como vadiagem até submetê-los ao “sistema de trabalho assalariado” (2004, pág. 918. Tomo I-vol 3). Parte dessa população foi enviada nas embarcações para a América durante o processo colonizador e será parte do processo de perseguição as populações indígenas para a submissão ao sistema de trabalho de exploração em grande escala. A acumulação primitiva que se realizou ao longo de vários séculos significou a expulsão violenta, realizada de maneiras bárbaras, dos tradicionais “produtores diretos” na maioria camponeses, de seus meios de produção, sendo torturados e forçados a aceitar o status moderno de trabalhadores assalariados, o qual é exigido pelo sistema de mercadorias moderno como status das grandes massas.
2
pensamento foi construído baseado nessa realidade, é que se começou a pensar a
particularidade destas regiões, com uma perspectiva crítica.
Após a Segunda Guerra Mundial essas ideias começaram a ser tratadas de diversas
maneiras devido a diferentes fatos político-históricos, é possível observar que as mesmas
acabam sendo esquematizadas em um determinado caminho de análise. Assim os eixos
marcados por estes autores, como representantes de uma geração que introduziu o pensamento
marxista na América Latina, que pretendeu pensar a natureza da Revolução, o Sujeito
revolucionário e as formas de organização, a partir de uma perspectiva teórico-política
sustentada em uma análise da periferia, perdem sentido, força, submetendo esse pensamento a
um processo de readequação da realidade a teoria, esta é uma tentativa de reproduzir de
maneira universal estratégias revolucionárias, baseadas em pressupostos interpretativos
importados da Europa, URSS, Revolução Chinesa, que acabaram padronizando novamente os
processos, perdendo a riqueza da heterogeneidade de suas lutas abertas naquele momento.
A América Latina passará neste período histórico por alguns processos revolucionários
importantes, que abrirão a possibilidade de repensar e reelaborar essa teoria revolucionária,
que logo será interrompida por processos ditatoriais, fundamentalmente, mas também por uma
incapacidade do pensamento marxista de dar conta da realidade próxima.
Os processos revolucionários que tiveram maior impacto nos movimentos de esquerda
desses anos foram a Revolução Cubana e a Unidade Popular no Chile. Essas duas
experiências serão utilizadas para analisar as formas políticas de organização usadas pelas
mesmas, numa tentativa de realizar um balanço histórico que nos permita pensar o presente.
A chegada do neoliberalismo nos anos 80, acentuando o conflito social que instalará em
1989 com o Caracazo2 e abre a porta para uma série de manifestações sociais em toda a
américa latina. Neste mesmo ano se realizam grandes protestos na região, como no Peru,
produto dos chamados “Paquetazos” do governo Alan Garcia, a população sai às ruas.
Destacam-se também os levantes do Equador e Bolívia, constituindo-se estes, junto a rebeldia
urbana das grandes cidades, na expressão dos “novos movimentos sociais na América Latina”,
próprios da década de 80, que se caracterizaram por um forte “protagonismo do movimento
2 O “Caracazo”. Assim foi denominado o dia em que na capital da Venezuela, Caracas, se realizou uma onda de protestos e saques em resposta ao ajuste neoliberal decretado pelo então presidente Carlos Andrés Pérez, o qual respondeu com um massacre. Isto ocorreu em 27 de fevereiro de 1989.
3
indígena” frente às reformas neoliberais e para a queda de diversos governos (CAMPANHA
OCAMPO e HOETMER, 2007:9).
As rebeliões suscitadas nestes anos são produto de um processo de violenta regressão
social, que resultou num aumento massivo de populações “sobrantes”, que ao não encontrar
lugar no mercado de trabalho, nem no território, nem junto ao Estado começam a evidenciar a
violência que significou, e significa não ter mais um espaço dentro da forma social capitalista.
Os mesmos, em suas lutas de rebeldia, começam a pensar em outras formas sociais de
produção e reprodução social. Os limites e alcances de suas lutas estão demarcados em um
processo de crise estrutural do capital3.
Diante desse panorama a esquerda “tradicional”, que deixou de lado a centralidade de
algumas ideias colocadas nos primeiros 30 anos do século XX, se enfrenta com a inadequação
de sua teoria em relação à natureza da revolução, o sujeito revolucionário e as formas de
organização, em um novo panorama social o qual marca a necessidade de repensar e
reelaborar a crítica em torno dos mesmos. Assim, debates sobre a territorialização da luta,
autonomia dos movimentos sociais, a autodeterminação dos povos, a luta antiestatal,
anticapitalista, uma outra relação com a natureza, a necessidade de criar outras formas de
relações sociais e de produção, passam a demandar um diálogo inevitável com a teoria social
crítica.
As lutas sociais que surgem nos anos 90, como produto desse momento de regressão
social, junto com a impossibilidade de análise e resposta do pensamento marxista, marcam a
ausência de uma teoria social-crítica que permita entender essas realidades, como também,
remetem a perda de seu lugar no debate das questões trazidas por Caio Prado e Mariátegui
na segunda metade do século XX.
A proposta deste trabalho é pensar na forma política da Comuna como uma chave para
entender estas experiências que se expandiram a partir dos anos 90 e que chegam a 2010 com
3 Não será tema desta tese explicar o funcionamento da crise do sistema capitalista, mas sim se tentará analisar o produto dessa forma social em seu processo de dissolução, e quais são as experiências que se criaram e recriaram a partir da dita regressão. Para a análise desta crise e como ela se desenvolve pode-se consultar autores como Robert Kurz, Anselm Jappe, Paulo Arantes, Marildo Menegat, entre outros.
4
um processo ao mesmo tempo de acumulação de práticas, reflexões e por outro lado, um
desgaste importante tanto em suas práticas cotidianas, como em sua capacidade de
enfrentamento da crise estrutural do capital, da qual surge a necessidade de refletir sobre uma
práxis emancipatória que permita fortalecer e dar um lugar a esta experiência política
coletiva produto desta crise.
A ideia desta tese não é realizar um estudo histórico sobre o marxismo latino-americano,
mas uma tentativa de mostrar os caminhos que foi adotando um determinado pensamento
crítico sobre a periferia, e a partir da periferia, sem que isto signifique um processo endógeno
de elaboração, de uma teoria autoreferenciada, e sim que mostre a particularidade que o
mesmo adquire no processo de expansão do capital.
O grau de autonomia que os capítulos desta tese contêm se fundam na intenção de pensar
estes três momentos históricos diferentes, não como uma simples realização de etapas, e sim
como um processo muito mais complexo que guarda relações com o passado e interações com
o presente, porém fora de uma visão linear, e sim, em um caminho repleto de encontros e
desencontros destes processos históricos com uma certa teoria marxista latino-americana.
O capítulo I apresenta a pertinência da radicalidade das interpretações realizadas por
Mariátegui e Caio Prado na primeira metade do século XX como expressão de um debate
realizado por toda uma geração. Assim poderemos ver a intenção desses intelectuais de dar
andamento ao processo de pensar uma práxis que fosse a expressão destas novas
interpretações sobre a formação das colônias, em um contexto social regressivo como era a
Primeira Guerra Mundial, o surgimento do fascismo, e, ao mesmo tempo, a esperança trazida
com a Revolução Soviética.
No capítulo II observaremos que essas interpretações elaboradas entre as décadas de
1920-1940, acabaram sendo instrumentalizadas pelo marxismo oficial perdendo a riqueza e
criatividade que permitiriam dar continuidade a este pensamento crítico.
A renovação do marxismo nos anos 1960 recuperará o movimento expresso por estas
interpretações, buscando pensar novamente a particularidade da América Latina e a
importância desta chave de análise para caracterizar os diferentes processos revolucionários.
Estes debates acabarão sendo hegemonizados por aqueles grupos que baseavam suas análises
5
nos pressupostos do desenvolvimento e subdesenvolvimento, como base para entender a
formação das colônias. Tudo isso demarcado por um novo padrão de acumulação capitalista e
no contexto da Guerra Fria. As duas principais experiências, expressão destes debates, são: A
Revolução Cubana e A Unidade Popular do Chile. Nelas será possível ver como o velho
debate sobre “Reforma ou revolução?” voltará com força à cena dos programas políticos.
O objetivo deste ensaio é mostrar como baseados nesses pressupostos de interpretação
sobre o desenvolvimento da América Latina será difícil para um determinado marxismo
colocar em questão a forma política do Estado como caminho para o processo revolucionário.
Assim, estas experiências deixarão um saldo de derrotas, ao mesmo tempo, que diversos
debates que neste momento acabaram sendo truncados, hoje se recolocam. Depois dessas
experiências, o marxismo entrará em baixa e acabará perdendo a possibilidade de um diálogo
mais oxigenado com as lutas de massas.
Finalmente no capítulo III tenta-se resgatar por que as interpretações de Mariátegui e Caio
Prado Junior perderam sua vigência para entender a realidade atual, porém, ao mesmo tempo,
continuam sendo clássicos da compreensão da formação da América Latina. Destas
interpretações surgiram ao menos dois caminhos: por um lado aquelas análises centradas em
entender a regressão do progresso, e as consequências do projeto civilizatório para a
América Latina, que trouxe consigo a proposta de modernização retardataria aprofundando
um processo de(s)composição/desagregação social; e, por outro lado, ver este
desenvolvimento apenas como uma forma particular que adquire a expansão capitalista
na periferia, e de superar o problema de haver ingressado a modernidade por um caminho
não clássico, explicava os problemas de nossas revoluções, através do necessário
desenvolvimento para dar um salto até a nivelação às economias centrais. A proposta de este
trabalho é aprofundar as leituras que abriu o primeiro caminho de análise, sobre as regressões
da modernidade e os desafios que este pressuposto coloca.
Frente a crise estrutural instalada nos anos 1990, os desafios do projeto emancipatório
colocado por estas lutas sociais e seu divórcio com o pensamento marxista tradicional, re-
atualizam a forma política da Comuna, como uma forma de enfrentar um contexto de
decomposição social, e o campo de possibilidades que estas lutas abrem para ajudar a pensar
6
uma perspectiva teórico-política crítica ancorada na reflexão das realidades periféricas.
O desafio, finalmente, é pensar uma teoria da periferia que permita não só resgatar a
particularidade de cada realidade nacional, senão a existência de certa unidade na
heterogeneidade desses grupos dada pelo produto da crise estrutural do capital, e a
necessidade de potencializar uma práxis emancipatória gestada por dentro destas experiências,
que permita pensar um salto para fora da formação burguesa.
7
I. MARIÁTEGUI E CAIO PRADO NO PENSAMENTO CRÍTICO LATINO-AMERICANO
1. Introdução ao Pensamento Crítico Latinoamericano
"7 ensaios de interpretação da realidade peruana" (1928) e "Evolução política do Brasil.
Ensaios de interpretação materialista da história brasileira" (1933) marcam o começo de uma
forma original de entender a América Latina. Tanto José Carlos Mariátegui quanto Caio Prado
Jr. marcam um ponto de partida para uma forma de leitura diferente da realizada até aquele
momento, mantendo o marxismo como referência.
Decerto, até 1930 não são esses autores que realizam a introdução de uma visão marxista
na América Latina. Na mesma época, atuavam Recabarren no Chile, Codovilla e Ponce na
Argentina, Mella em Cuba, Astrojildo Pereira no Brasil, e as primeiras idéias marxistas já
haviam começado a circular antes, em pequenos círculos, no México, através de Rhodakanaty,
entre outros. Vale perguntar, então, por que, quando todos os demais só poderiam ser estudos
sobretudo por razões meramente históricas, Mariátegui e Caio Prado continuam atuais. Por
que, não obstante as insuficiências e incongruências de seu pensamento, ocupam ainda um
lugar decisivo em nosso debate atual?
Se tanto Mariátegui quanto Caio Prado foram capazes de deixar uma obra na qual os
revolucionários da América Latina e de outros países podem ainda encontrar e reconstruir
uma matriz de fecundidade indiscutível para as tarefas de hoje, isso se deve sobretudo ao fato
de terem sido, entre todos os que contribuíram à implantação do marxismo na América Latina
de seu tempo, os que conseguiram, mais profundamente, e de forma mais acertada, apropriar-
se – e, nesse caso, não importa se de maneira mais intuitiva ou sistemática – daquilo que
confere um valor autenticamente revolucionário ao marxismo. Ao invés de limitarem-se à
"'aplicação' do aparato conceitual marxista como um molde classificatório e nominador,
temperado de retórica ideológica, sobre uma realidade social, da mesma forma que os
herdeiros da visão eurocentrista ou os seguidores da 'ortodoxia' da burocracia oficial do
movimento comunista, depois de Lênin" (Quijano, 2007: LX), as análises daqueles autores
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focaram-se sobretudo nas lutas mais expressivas do momento, bem como àquelas que
representaram, na formação da América, o eixo principal de enfrentamento com o projeto
colonizador.
A tensão constante do próprio processo histórico, situado ao mesmo tempo entre um
realizar-se e um impedir-se, constituem o vigor da obra de cada um deles. Assim, o debate
sobre a questão indígena não é um acidente no pensamento maritaguiano: é a própria
expressão das lutas que estavam sucedendo no momento (e que sucederam durante 500 anos).
A discussão sobre o feudalismo-capitalismo em Caio Prado tampouco constitui acaso em seu
percurso, nem mera incompatibilidade política com a linha do Partido Comunista do
momento: é o próprio centro de sua obra, porque forma parte da leitura e da prática política
por ele defendidas, inovando na maneira de abordar a interpretação do capitalismo e da
colônia, e as complexidades produzidas pelo imperialismo, a partir de um enfoque marxista.
Para Mariátegui, tanto o "comunismo inca" quanto o "mito" são formas "concretas" de
respostas ao desenvolvimento "civilizatório" impulsionado pelo capitalismo. Não constituem,
em nenhum momento, apelo "ideal" ou "místico" (no sentido espiritualista do termo), mas
respostas concretas que não são recuperadas em seu estado puro, mas desde a perspectiva de
suas possibilidades no mundo atual, as quais se articulam com as lutas sociais do momento.
Em essa análise sobre os elementos propostos por Mariátegui, corre-se o risco de perder a
riqueza e a radicalidade de sua proposta frente à "forma social burguesa".
A "Revista Amuata" e a "Revista Brasiliense" são dois marcos de referência para a
esquerda, onde se encontram condensados o debate social, político, cultura do Peru e do
Brasil. "Amauta" inaugura uma nova intelectualidade no Peru, e a "Revista Brasiliense" marca
o debate vigente nos anos 1950 e princípios dos 1960 no Brasil. São dois mundos que
confluem nessas revistas, que permitiram dar curso às discussões inovadoras e heterodoxas
desses dois intelectuais. Tanto "Amauta" quanto "Brasiliense" tem como fundo de discussão a
construção de uma nacionalidade, do nacionalismo que, como veremos, significava um
projeto "necessário" que permitiria uma determinada "unidade" nesse conglomerado social
desagregado.
9
Segundo Quijano, a escritura mariateguiana exibe, exatamente, essa capacidade de
percorrer o tempo, produzindo, em cada época, uma relação nova com o mundo e, assim,
leituras novas. Essa capacidade parece prover de um modo de pensar, indagar e conhecer que
se constitui pela "unidade tensa entre dois paradigmas que a cultura dominante – o modo
eurocêntrico da modernidade – desune e opõe como irreconciliáveis: o logos e o mito. Essa
tensão está ativa na intersubjetividade latino-americana desde o começo; é parte de sua
especificidade histórica, o rastro de cultural original na América Latina que impregna, cada
vez mais, a arte, a narração, a poesia, o imaginário quotidiano dos dominados. Mas é só com
Mariátegui que essa tensão se estabelece, intelectualmente, como uma questão central de todo
um período histórico". Isso, segundo o mesmo autor, explica a vigorosa "autonomia
intelectual mariateguiana", e sua diferenciada presença no debate socialista –
particularmente marxista – de seu tempo. Pois essa diferença não se reduz unicamente, ou
principalmente, a um matiz de alguma das tendências previamente dadas. O tempo a vai
destilando como matriz alternativa às opções eurocêntricas de investigação e revolução da
sociedade (Quijano; 1991: IX).
Assim como a ação é o que guia o pensamento e as preocupações mariateguianas,
veremos que, em Caio Prado, é algo muito semelhante que se condensa no A Revolução
Brasileira. Anterior a esse livro, que é um verdadeiro programa em que estabelece algumas
teses que deveriam ser pensadas diante do fracasso de 1964, Caio Prado tem a preocupação de
realizar uma leitura rigorosa e pormenorizada sobre a formação social brasileira. É verdade
que, diferentemente de Mariátegui, Caio não explicita uma preocupação maior pela região
latino-americana, mas vai enfrentando indiretamente esses debates na medida que estabelece
uma nova forma de pensar o desenvolvimento da colônia na América Latina. Nesse sentido,
seria possível pensar também que as idéias de Mariátegui com relação ao problema do índio
estão reduzidas à região andina mas, na verdade, sua análise transcende o setor geográfico,
enriquecendo as esferas de análise e interpretação da particularidade latino-americana. O
mesmo se passa com Caio Prado, e é impossível pensar hoje dentro da teoria social crítica,
sem a contribuição fundamental sobre o sentido da colônia, e o significado que teve, na
expansão capitalista, a conquista espanhola e a conquista portuguesa.
10
É possível encontrar em Caio Prado uma preocupação com a análise sobre a formação
brasileira, que, posteriormente, não pode ser refletida em uma reflexão sobre a práxis,
diferentemente do que ocorre com Mariátegui, cuja preocupação está centrada na práxis
revolucionária, para a qual dirige toda sua atenção e análise.
A intervenção na vida pública é uma característica tanto de Mariátegui quanto de Caio
Prado, que marcaram o debate de uma época histórica, e que continuam com a relevância
própria de uma pensamento sobre uma realidade que ainda não foi superada. O que se vê
neles não é um pensamento individual: eles conseguiram dar expressão a um pensamento
coletivo, de uma crítica que começava a surgir na América Latina.
Tanto Mariátegui quanto Caio Prado devolvem ao marxismo uma práxis que rechaçava o
fechamento em preconceitos, o fracionamento em seitas que se confundiam entre si à medida
que perdiam sua capacidade de intervenção. Devolvem-no a uma práxis revolucionária ao
chamar a atenção sobre outras tradições teóricas e lutas sociais que se vinham ensaiando por
diferentes caminhos.
O marxismo consegue, com isso, vincular-se a outros sujeitos, trajetórias, com novas
apostas e oportunidades para voltar à tarefa pendente: a revolução, a qual deve ser vinculada
às experiências de lutas passadas que gravitam ainda no imaginário dos povos.
Voltar a Mariátegui e a Caio Prado não é voltar às suas respostas, mas às suas perguntas,
aos debates que se organizara ao redor delas, sobre as intuições e suspeitas que superaram as
tarefas do marxismo latino-americano e que tornaram mais complexo e contraditório o
socialismo na América Latina. Atentar a tudo isso coloca em debate, novamente, três pilares
da discussão do marxismo: a natureza da revolução, o sujeito revolucionário e as formas de
organização das massas. Desafios e preocupações ainda atuais.
11
1.1 Particularidade do pensamento marxista de Caio Prado e Mariátegui
José Carlos Mariátegui e Caio Prado Jr. inauguram na América Latina o desenvolvimento
de um pensamento crítico próprio da periferia, marcado basicamente por alguns elementos
que condensaram um debate iniciado décadas antes pela chamada "geração modernista", e que
se amadureceram nas idéias desses autores.
Por um lado, falar da unidade do pensamento de Mariátegui e de Caio Prado Jr. não
significa perguntar pela validade do seu marxismo, e tampouco se trata necessariamente de
encontrar os marxismos presentes em cada um deles, senão de buscar os elementos potenciais
para pensar e entender as realidades atuais na América Latina. Assim, uma das
particularidades desse pensamento foi a tentativa de pensar o marxismo na periferia.
Por outro lado, partir da realidade concreta de cada país foi o marco que eleito por ambos
os pensadores, reconhecendo essa realidade como ponto de partida do pensamento e da ação.
É assim que, por exemplo, a questão agrária no Peru se cruza com a questão indígena. No
Brasil, com a grande exploração agrária, esse problema se coloca como parte da problemática
dos trabalhadores rurais. O pensamento da particularidade de cada realidade nacional como
base de ação pode fundamentar uma unidade entre Mariátegui, Caio Prado e o italiano
Gramsci, pois nos três casos se vê nitidamente a necessidade de vincular a prática com as
realidades locais.
A maneira como Caio Prado e Mariátegui inauguram e desenvolvem essas idéias reflete ao
mesmo tempo a trajetória histórica do marxismo na América Latina – seus encontros e
desencontros – e sua tentativa de colocar o problema de como pensar a América Latina a
partir do marxismo.
Um dos elementos importantes nas idéias dos dois é a necessidade de pensar a partir do
sistema colonial, o significado desse sistema como constituição periférica do capital, e a
forma que tal sistema adquiriu como "empresa capitalista".
Pensar desde as realidades nacionais significou, para esses autores, a compreensão de que
12
a forma própria de ser da América Latina envolvia zonas de modernidade e zonas de atraso. A
tensão existente é colocada nesse duplo movimento simultâneo de atraso e progresso, e está
posta, também, a necessidade de entender suas conseqüências para as lutas sociais.
A periferia começa a ser percebida como unidade de elementos atrasados e modernos
justapostos antes de Mariátegui e Caio Prado. Entretanto, esses autores têm a originalidade
de colocar essa idéia dentro do pensamento crítico latino-americano e mundial. Ao mesmo
tempo, entendem essa unidade da América Latina como forma própria da constituição das
colônias, o que faz com que seu caminho seja diferente do processo histórico europeu.
Quando se fala de periferia como unidade, se faz referência a essa unidade que significa
atraso e progresso, essa forma de ser da periferia, essa conjunção insolúvel que a periferia
adquire sob o capitalismo. Assim, o atraso tem uma existência indissociável do moderno, e
vice-versa. É Caio Prado o primeiro a sugerir a idéia da não-existência de restos feudais na
américa-latina, e a conquista como própria expansão do capital4.
Essa realidade "inclassificável" para o marxismo existente nesse momento mostrou para a
teoria crítica os limites para a caracterização da América Latina5. Essa realidade contém uma
unidade que está dada não penas por um fato geográfico: ela pode ser compreendida e
explicada graças à presença de um substrato histórico comum e, portanto, único. As próprias
características adquiridas pela expansão do capital na América Latina, que aparecia como um
"enorme esforço de europeização" da região, processo que levaria a um "conquista do
progresso e da cultura", escondia, na realidade, uma distorção da sociedade global, uma
diferenciação crescente das estruturas econômico-sociais, que fragmentavam as sociedades
4 Ángel Rama assinala que "ao cruzar o Atlântico, não apenas se passava de um continente velho a outro presumivelmente novo, mas se atravessava o muro do tempo, e se ingressava no capitalismo expansivo e ecumênico, ainda carregado da aversão à mudanças típica do pensamento medieval" (Rama, 1984: 2).
5 Jorge Myers mostra que a história da região, a qual, depois de um processo lento e contraditório veio a se chamar "América Latina", "não começou com a chegada dos europeus, e isso é hoje um ponto de partida inegável para qualquer historiador. A textura particular adquirida por aquela ruptura entre o universo cultural habitado pelos povos indígenas – com suas formas políticas, religiosas, econômicas próprias, com suas línguas, seus hábitos e suas crenças também próprias – e o novo universo cultural conformado pela imposição de formas políticas, religiosas, econômicas ou culturais originadas na região ibérica da Europa foi e continua sendo um tema de controvérsia. Quanto de novo e quanto de continuidade teve lugar, pois, apesar dos genocídios, exploração e guerras, as populações indígenas continuam habitando na região" (Myers, 2008: 28-30).
13
nacionais em "zonas de modernidade e zonas de atraso" (Aricó, 1989: 420). E assim, o que
seria um caminho em direção ao progresso, levou também à construção de uma vasta área de
desagregação social.
Diferentemente de Mariátegui e Caio Prado, o pensamento dualista marca essas duas
formas como sendo uma antecedente da outra, o que propiciou, durante muitos anos, dentro
do marxismo – e, ainda hoje, em alguns setores da esquerda – uma leitura sobre a constituição
da América Latina que gerava uma lógica etapista para entender a "evolução" da região,
chamando de "feudal ou semifeudal uma parte do país considerada 'arcaica', a qual era preciso
modernizar através de uma revolução burguesa que ainda estaria faltando" (Arantes, 1992:
28).
Na "modernização" da periferia, "o 'arcaico' se reproduz em lugar de se extinguir, de
modo que a coexistência do antigo com o novo é um fato geral de todas as sociedades
capitalistas" e de muitas outras também. Porém, nos países colonizados, essa forma é central,
já que "esses países foram incorporados ao mercado mundial (...) na qualidade de econômica
e socialmente atrasados, de fornecedores de matéria-prima e trabalho barato. A sua ligação ao
novo se faz através, estruturalmente através de seu atraso social, que se reproduz em lugar de
se extinguir” (Schwarz, 2005: 34). O que não se pensou com esse processo modernizador
foram as conseqüências não intencionais desse moderno sistema produtor de mercadorias, que
ocultava – em sua fase de ascensão histórica – o conteúdo negativo com elementos positivos:
"Enquanto cumpria essa 'missão civilizatória' (Marx), esse sistema funcionava perfeitamente,
vencendo todas as relações de reprodução estamentais estáticas, pré-modernas. As crises eram
apenas interrupções em seu processo de ascensão e pareciam, a princípio, superáveis” (Kurz,
1993: 29).
Foi a análise das transformações no sistema de produção da colônia que levou Caio Prado
a explicar o "sentido da colônia", que não registra a existência de restos feudais, mas mostra a
grande exploração que teve lugar na colônia, percebendo como "a grande propriedade, o
trabalho escravo e a produção voltada para o mercado externo se articulam organicamente"
(Ricupero, 2000: 157).
14
Em "A Revolução Brasileira" (1966), Caio Prado chama a atenção para a impossibilidade
dentro do Partido Comunista de reconhecer uma investigação mais "herege", a qual não podia
se sobrepor a convicções tão profundamente implantadas, "pois os próprios fatos passariam a
ser considerados unicamente através das fortes lentes deformadoras daquelas falsas
convicções", o que fez com que, até então, se respeitasse ainda o velho esquema tradicional
desenvolvido na Europa, o qual foi tomado como "lei geral da moderna fase evolutiva de
todas e quaisquer sociedades humanas, continuo-se a falar no Brasil naquela revolução
democrático-burguesa destinada a eliminar os 'restos feudais' supostamente presente em nosso
país” (Prado Jr, 1972: 28).
A passagem do feudalismo para o capitalismo é uma marca que, segundo Caio Prado, não
teve registro nas colônias americanos. Com isso, tenta mostrar, a partir de parâmetros
marxistas, que a particularidade do capitalismo adquiriu novas formas em sua expansão
marítimo-comercial na realidade brasileira. No país, não se vive no estilo europeu, mas
segundo formas próprias da periferia.
A constituição da colônia sub esse perspectiva abriu a possibilidade de outras formulações
que pensassem a relação entre o nacional e o internacional como uma linha difusa em relação
aos parâmetros dos países colonizadores. Assim, a colônia passava a ser uma entidade que
dependia da Europa até em sua maneira de se pensar, com o que se convertia em um mero
apêndice reprodutor do comércio e das matérias primas.
Aos olhos de Mariátegui, a realidade nacional é um sistema mais amplo do pensamento
até o momento, o que implica pensar estratégias que contemplam a ruptura com esse sistema.
A relação entre marxismo e nação é uma tensão permanente no pensamento mariateguiano.
Assim, em determinadas situações prima o marxismo enquanto, em outras, prima a nação. A
partir de sua peculiar relação entre marxismo e nação, acaba elaborando uma "maneira
específica – peruana, indo-americana, andina – de pensar Marx" (Flores Galindo, 1989: 22). A
maneira específica está marcada pela tentativa de entender esse limite difuso entre o dentro e
o fora da realidade nacional e internacional.
15
Junto com a constituição da colônia e, particularmente, no que diz respeito à forma de ser
da periferia, Mariátegui assinala outro elemento que dá particularidade a essa realidade, e que
será de importância fundamental para as lutas sociais: o problema do Índio. Em seus "Sete
ensaios de interpretação sobre a realidade peruana", coloca pela primeira vez a necessidade e
a potencialidade da incorporação das comunidades indígenas nas filas do marxismo.
Esse problema faz com que Mariátegui se enfrente com a incapacidade do marxismo
desenvolvido até o momento para pensar esse sujeito das lutas sociais, e também,
internamente, com o debate extenso mantido durante muitos anos dentro de diferentes
movimentos latino-americanos. A forma em que aborda o problema do índio marca a
originalidade do pensamento mariateguiano. O índio é deslocado de seu lugar de vítima, e
colocado como sujeito da política emancipadora. A inovação está dada pelo apego
conseqüente de sua análise e de sua imaginação política a essa realidade.
A tarefa do "socialismo indo-americano" formulada por Mariátegui era, assim, a formação
da classe proletária que unificasse tanto os trabalhadores quanto os indígenas. Sem esses
últimos, o socialismo seria impossível no Peru. Ao incorporar a idéia dos indígenas como
parte da classe proletária, está tratando dos indígenas e dos negros como trabalhadores, com
um papel econômico-produtivo dentro da sociedade capitalista, de modo que a classe
proletária congregaria todos esses setores. Os índios necessitavam de um vínculo nacional,
seus protestos sempre haviam sido regionais, o que contribuía em grande medida para suas
derrotas. "Um povo de quatro milhões de homens, consciente de seu número, enquanto
permaneça uma massa inorgânica, uma multidão dispersa, é incapaz de decidir seu rumo
histórico" (Mariátegui, 1994a: 23). Nesses momentos, apresenta-se com força a idéia de nação
em Mariátegui, mas como um chamado a uma integração que havia sido quebrada pela
conquista. Com a chegada da colônia e a introdução de outros habitantes (escravos negros e
imigrantes brancos), produziu-se uma ruptura no vínculo, no "nexo" social necessário para a
formação social integrada. Esse nexo passará a ser dado pelo traço econômico-produtivo, com
o que se tornava difícil pensar tal conglomerado heterogêneo como a unidade que realmente
era. Potencializar essas massas e introduzi-las em um projeto emancipador era a necessidade
colocada pelas realidades nacionais.
16
De onde surgem pensadores como Mariátegui e Caio Prado na periferia? Influências
intelectuais recebidas, tanto locais como européias, marcam sua formação. Mariátegui é um
pensador fortemente marcado pela sua relação com Croce, Sorel, o movimento surrealista, o
que lhe propiciou um complemento importante a seu marxismo, e lhe deu a possibilidade de
pensar a América Latina a partir desse conhecimento da realidade européia. Para Caio Prado
Jr., a dificuldade em sua leitura do marxismo estava posta na recepção das idéias marxistas no
Brasil, a qual foi marcada pela combinação do stalinismo com o positivismo, as quais fizeram
desse marxismo uma interpretação esquemática da realidade brasileira. É assim que, no
Brasil, nas três primeiras décadas do século XX, o pensamento político avançado, na medida
em que conseguia encaminhar sua fundamentação filosófica, "sofria a influência profunda do
'cientificismo'", especialmente do "evolucionismo" (Herbert Spencer) e do "positivismo"
(Augusto Comte). As demais correntes filosóficas definidas que atuavam na vida cultural
brasileira eram menos influentes na perspectiva dos intelectuais progressistas (Konder, 1988:
180).
A decadência da civilização ocidental como marco para o que seriam as revoluções do século XX
é uma linha permanente no pensamento iniciado por esses autores, assinalando que estamos assistindo
à "desagregação, a agonia de uma sociedade caduca, senil, decrépita" (Mariátegui, 1994j: 853-849),
mas advertindo qual será o papel do proletariado nesse contexto frente a essa decadência: "e que o
proletariado se pergunte se vale a pena reconstruir a sociedade burguesa, para que, dentro de quarenta
ou cinqüenta anos, talvez antes, volte uma nova conflagração estoure no mundo, e se produza uma
nova carnificina"6.
O primeiro desafio enfrentado pelo marxismo latino-americano é pensar qual seria a
natureza da revolução, o que inclui uma certa análise sobre as formações sociais latino-
americanas, sendo este o ponto de partida para a formulação de estratégias e táticas políticas
(Cf. Löwy, 2006a: 9).
O debate apresentado dentro do movimento socialista internacional sobre a particularidade
da América Latina enfrentou esse corpo teórico7 com os próprios limites que tinha para pensar
6 Mariátegui o enuncia em 1923, dezesseis anos antes do início da Segunda Guerra Mundial (1939) (Idem).7 Quartim de Moraes, em uma análise sobre a influência de Stalin no comunismo brasileiro, fala sobre a idéia
17
uma realidade até certo ponto "inclassificável" (Aricó, 1980: 39) nas formulações realizadas
até o momento pelo marxismo.
O problema da natureza da revolução se relacionava, em última instância, com questões
teóricas e metodológicas sobre como aplicar o marxismo à América Latina. É assim que o
marxismo latino-americano se vê tentado por duas tendências opostas: o "excepcionalismo
indo-americano" (Aricó, 1980: 39), baseado na absolutização da especificidade da América
Latina, e o "eurocentrismo" (Löwy, 2006a: 10) que tentava transplantar mecanicamente para a
América Latina os modelos de desenvolvimento sócio-econômico que explicam a evolução da
Europa. Löwy (2006a: 9-10) distinguiu pelo menos três desses períodos: "1) um período
revolucionário que vai dos anos 20 até meados dos anos 30, cuja expressão teórica mais
profunda é Mariátegui; nesse período a tendência era caracterizar a revolução latino-
americana como, simultaneamente, socialista, democrática e anti-imperialista; 2) um segundo
período stalinista, de meados da década de 1930 até 1959, durante o qual a interpretação
soviética do marxismo foi hegemônica, e, portanto, o que predomina é a teoria da revolução
por etapas, de Stalin, definindo a etapa presente da América Latina como nacional-
democrática; e 3) o novo período revolucionário, depois da Revolução Cubana, que vê a
ascensão de correntes mais radicais, cujos pontos de referência são a natureza socialista da
revolução e a legitimação, em certas situações, da luta armada."
1.2 Antecedentes de uma geração. Como se constrói um pensador periférico?
O final do século XII e o início do século XX são o marco de gestação de uma geração
que começa a questionar as oligarquias colonialistas surgidas dos processos idependentistas e
consolidadas na República. Esse processo se dá como parte de uma modernização acelerada,
de teoria desenvolvida por Stalin e apropriada pelos Partidos Comunistas da III Internacional (todos eles na América Latina). Segundo Stalin, "é revolucionário o partido que se guia pela teoria revolucionária (de vanguarda) e é revolucionária a teoria que guia o partido revolucionário". Assim, na "prática confundiam-se a elaboração da teoria e a direção do partido em uma única e mesma instância (...) No essencial, Stalin reduziu a teoria a uma técnica de análise de situações e de conjunturas (...) de modo que tática e teoria ficavam justapostas" (1991: 53-54), o que significava ou uma supervalorização da primeira ou uma subestimação da segunda. Essa concepção trazia, como conseqüência, não apenas a redução da teoria, mas também a formulação do etapismo como passos necessários para a revolução.
18
intensificada em alguns lugares, como na Argentina, Brasil, México, Chile, e mais lento em
outros, tais como Bolívia e Peru. Com uma inflexão sobre seu passado colonial, "atrasado",
essa geração começa a questionar as oligarquias tradicionalistas, atribuindo-lhes um certo
impedimento na conquista da modernização, do progresso que resolveria, na América Latina,
os problemas causados pelos restos arcaicos ainda presentes. Também era parte da reflexão a
necessidade de resgatar e gerar intelectuais e artistas que pensassem a particularidade dessa
realidade. Assim, é marcada uma divisão de águas na cultura desses países: em literatura,
teoria social, pintura, escultura e outros âmbitos, essa questão começa a receber inúmeras
miradas e reflexões. Tanto os grupos das revistas "Colónida" e "Nuestra Época", no Peru,
como "Claridad", "Sagitario", "La vida literaria", "Córdoba", "Valoraciones", na Argentina,
quanto a "Semana de Arte Moderna", em 1922, no Brasil, convertem-se em espaços onde se
vai refletindo todo esse movimento que a sociedade está vivendo.
A década de 1920 vê surgir uma nova intelectualidade Latino-Americana, da qual
Mariátegui não seria apenas um dos personagens mais destacados. Era uma intelectualidade
tomada por uma inquietude profunda, um mal-estar: seus membros sentiam-se como que
suspendidos no vazio, pairando entre o sentimento de frustração despertados pelas autoridades
oligárquicas nativas e a atração exercida pelas intermináveis "massas de ofendidos e
humilhados". É uma intelectualidade forjada através de um processo de "continentalização de
suas aspirações sociais e políticas" (Aricó apud Tarcus, 2001: 23). Essa efervescência
formava parte das práticas quotidianas e do imaginário coletivo dos intelectuais e políticos
latino-americanos dos anos 1920 e 1930, um vínculo que consegue continentalizar as relações
através de cartas, envio de livros, intercâmbio de revistas, viagens, exílios. Isso é
demonstrado, por exemplo, pela forte e importante relação estabelecida entre Mariátegui e
Glusberg, propiciando, para Mariátegui, a possibilidade de conhecer amplamente outras
realidades: não só a Argentina, mas também os países do Cone Sul e sua relação com Waldo
Frank, narrador e ensaísta estadunidense. Tudo isso lhe permitiu uma potencialização de suas
idéias e o conhecimento de outras que estavam fora do espectro do marxismo naquele
momento na América Latina.
Duas figuras importantes que antecederam o movimento modernista são José Martí e
19
Ruben Darío. Trata-se de um movimento que se constitui como o "primeiro movimento
literário articulado" concretamente entre os artistas de todo o âmbito hispano-americano, o
qual consegue igual projeção na Espanha mediante encontros, revistas, artigos dos escritores
uns sobre os outros, etc. Ambos encarnam a passagem de uma atividade intelectual que muda
de centro, deixa de privilegiar o "político" (para Martí, a independência de Cuba) para afirmar
a "autonomia do saber e da arte", sustentado por Rubén Darío como único respaldo para
intervir no mundo das idéias. Darío instala a polêmica do intelectual artista, marcando "o
trabalho intelectual como fundado em todas as possibilidades da palavra" (Zanetti, 2008:
523). Os modernistas são responsáveis, não exclusivamente, mas em grande medida, por uma
nova configuração do trabalho intelectual na América Latina.
Grupos de intelectuais e artistas se formam em diferentes revistas, diários, publicações, e
o foi o projeto "Amauta" que congregou Mariátegui e vários intelectuais com os quais se
construiu essa revista que foi uma grande "tarefa coletiva" (Flores Galindo, 1976: 76). Foi
onde se conseguiu refletir uma tarefa artística e uma tarefa política. É no "Amauta" que
Mariátegui desenvolve mais profundamente suas tarefas de jornalista, escritor, com um forte
rechaço ao academicismo, e dando lugar ao ensaio através do qual podia falar da vida
quotidiana sobre os acontecimentos nacionais e mundiais. É em "Amauta" que consegue
enfrentar as tensões existentes no Peru na formação de um movimento, partido de massas: por
um lado, estava a preocupação indígena que era parte necessária dessas lutas e, por outros
lado, um proletariado incipiente, o qual devia, quase por obrigação, ser protagonista dessas
lutas.
As novas configurações que sofre a sociedade peruana, devido às transformações do
capital e a ruptura com a herança colonialista, geram dentro desse movimento de vanguarda
debates que eram colocados pela própria realidade peruana, que respondia a lutas indígenas e
de trabalhadores do período, e que exigiram dos modernistas a necessidade de relacionar seus
debates estético-literários com os problemas políticos. Melis (1999: 145) assinala que a
convergência do indigenismo político e as inovações artísticas vanguardistas é um dos
aspectos mais singulares do campo cultural peruano durante os anos vinte, ao que contribui,
de maneira decisiva, a capacidade aglutinadora da revista "Amauta", e nela o papel de
20
Mariátegui.
O período de 1894-1930, nascimento e morte de Mariátegui, foi excepcionalmente
importante na história peruana, já que, nele, se conjugam os elementos da herança colonial,
apenas modificados superficialmente desde meados do século XIX, e os novos elementos que,
com a implantação dominante do capital monopolista, de controle imperialista, vão
produzindo uma reconfiguração das bases econômicas, sociais e políticas da estrutura da
sociedade peruana (Quijano, 2007: XI).
Em 1888, seis anos antes do nascimento de Mariátegui, Gonzales Prada realiza uma série
de intervenções na sociedade peruana, resgatando um liberalismo inexistente até o momento
no Peru. Primeiramente, com seu discurso do Politeama, começa dizendo que "os que pensam
o limiar da vida se juntam hoje para dar uma lição aos que se aproximam das portas do
sepulcro (...) os velhos devem tremer diante das crianças, porque a geração que se levanta é
sempre acusadora e juiz da geração que decai". Ataca duramente os proprietários de terra, a
corrupção da classe dominante e do seu instrumento militar, e a submissão dos camponeses à
ignorância e à servidão. Meses depois, no Teatro Olimpo, chama a todos os pertencentes ao
Círculo Literário a "romper com o pacto infame de falar a meia-voz". No fim do mesmo ano,
publica "Propaganda e Ataque", onde sentencia: "em resume, hoje Peru é um organismo
doente: onde quer que se coloque o dedo, jorra pus" (Gonzales Prada, 1965: 61, 38, 154),
advertindo que o fundamento da nação são as massas indígenas, que precisam ter um lugar
dentro do Estado para que este possa realizar uma mudança substantiva no país. Assim como
o tema do índio, e com ele as questões centrais da terra, sua incorporação à vida política, tudo
na ordem oligárquica estava em debate. Tudo isso foi aprofundado pela derrota frente ao
Chile8, que havia posto à mostra de que modo a dominação dos proprietários de terra é uma
característica do regime de "colonialismo interno" (Quijado, 2007: XXVI), que era o
fundamento da falta de integração nacional, falta essa que, por sua vez, tinha sido decisiva
8 Trata-se da chamada "Guerra do Pacífico" ou "Guerra do Salitre", na qual Chile invadiu parte do território boliviano e parte do território peruano e saiu vencedor. Desenvolveu-se entre os anos 1879-1884 e consistiu, basicamente, numa guerra de disputa pelo guano e, posteriormente, pelo salitre, várias jazidas do qual foram encontradas no deserto de Atacama. O final da guerra significou o fechamento do acesso marítimo da Bolívia ao oceano Pacífico, pela ocupação das províncias de Tacna e Arica, que passaram ao território chileno. O tratado de paz foi firmado finalmente em 1904, quando Chile tomou possessão territorial das jazidas de salitre, guano e cobre.
21
para aquela derrota. Além disso, começava, nesse momento, um novo ciclo de lutas do
campesinato indígena no país (Idem). Antes do discurso de Politeama, teve lugar "a primeira
grande insurreição do campesinato indígena nessa etapa, a qual inaugurou o ciclo de
intermitentes guerras camponesas contra a dominação dos latifundiários, o qual dura até
metade da década de 1930, precisamente como reação à expansão da grande propriedade
agrária, impulsionada por um novo interesse adquirido por essa classe nesse período, pelo
modo em que se estabeleciam as relações com a dominação do capital monopolista" (Idem:
XXVII) 9.
A primeira etapa da penetração do capitalismo monopolista na economia peruana coincide
com duas situações históricas determinantes da profundidade e das condições específicas em
que se estabelece essa dominação: por um lado, o deslocamento da hegemonia imperialista da
burguesia britânica àquela dos Estados Unidos. O capitalismo britânico, até o momento, havia
concentrado seu desenvolvimento industrial exportável principalmente na indústria têxtil, e as
matérias primas que necessitava eram o algodão e a lã. Além destes, também requeria
produtos alimentícios tais como o trigo, a carne e o açúcar. Para essas necessidades, não era
indispensável o desenvolvimento de investimentos diretos de capital em nossos países, nem
de relações capitalistas de produção em grande escala. Esse tipo de matérias primas e
alimentícias podiam ser produzidas de forma vantajosa com relações pré-capitalistas de
produção, e era suficiente um domínio comercial e financeiro para estabelecer a respectiva
divisão internacional de trabalho e de "troca desigual" resultante (Cf. Quijano, 1978: 23, 24).
Já o desenvolvimento industrial do capitalismo norte-americano se foi realizando ao redor
da produção metalúrgica, principalmente. Assim, as necessidades prioritárias eram sobretudo
de matérias primas minerais. A produção desses recursos na escala necessária não podia ser
realizada na América Latina, e particularmente no Peru, sem a utilização de tecnologia
avançada e, conseqüentemente, sem a implantação de relações de produção capitalistas sobre
a base de investimentos diretos de capital. Desse modo, assim como o deslocamento do eixo
de hegemonia imperialista em direção aos EUA dava conta do maior desenvolvimento das
forças produtivas nesses país frente à Inglaterra, e portanto de uma maior concentração de
9 No mesmo ano do Politeama, é publicada, também, a primeira novela indigenista, A Trindade do índio, ou Costumes do interior" de José T. Itolararres. Clorinda Matto de Turner publica, também, Aves sem ninho.
22
capital, esses mesmos fatores empurravam em direção à modificação do tipo de relações
econômicas com os demais países incorporados ou se incorporando à área do capitalismo, por
meio de exportações diretas de capital produtivo e, ao mesmo tempo, do deslocamento do
interesse do capital monopolista para novas matérias primas (Cf. Idem) 10.
Por outro lado, encontrávamos um Estado fraco, que vinha se constituindo como Estado
Nacional no Peru, e, junto a ele, o enfraquecimento dos grupos mais importantes das camadas
de proprietários rurais/comerciantes que se haviam desenvolvido na costa peruana desde
meados do século XIX. Esse novo capital – por sua maior concentração, e suas maiores
necessidades de ampliar suas bases de acumulação, assim como por suas necessidades de
matérias primas diferentes, para cuja exploração se exige o investimento direto de capital –
avançava tirando desses grupos a propriedade de seus principais recursos de produção, e
solapando, assim, as bases da relativa autonomia mantida na situação anterior. Alguns
membros desses grupos resistiram à perda de sua posição anterior, buscando barganhar com o
capital norte-americano as condições da associação subordinada e as margens de autonomia e
de distribuição de benefícios. Esses núcleos estavam principalmente ligados à propriedade da
terra e de recursos minerais11 (Idem: 25).
Segundo Quijano (1978: 27), a peculiar combinação entre capitalismo monopolista e pré-
capitalismo, e a história dessa combinação, é o que dominará e definirá, adiante, o caráter das
mudanças de formação econômico-social peruana, até a segunda metade do século XX.
Entre 1890 e 1925, o investimento do capital monopolista se estabelece sob o controle de
10 Na análise de Quijano, é possível observar como, no caso do Peru, a penetração do capitalismo monopolista coincide com essa passagem de hegemonia da Inglaterra para os Estados Unidos. Contudo, segundo Maurice Dobb, esse mesmo processo foi realizado de maneira uniforme em todos os países da América Latina. Assim, esse autor mostra, em "A evolução do capitalismo", como, por volta de 1880, os investimentos externos da Inglaterra já mostravam uma recuperação em função do impulso de um novo movimento colonial e uma alteração de atenção no mercado de investimentos na América do Sul (principalmente Argentina, Chile e Brasil) e para o Canadá e a Índia. Em 1904, os investimentos britânicos no estrangeiro iniciam seu aumento espetacular: "o empréstimo ao Transval, em 1903, foi seguido pelos empréstimos ao Japão, Canadá e Argentina, destinados a ferrovias. A corrente principal do capital britânico dirigiu-se para o Canadá e a Argentina, mais uma vez para os Estados Unidos e também para o Brasil, o Chile e o México” (Dobb, 1980: 315).
11 O controle da "Cerro Pasco Corporation" é um caso exemplar da disputa pelo controle das minas. Uma crônica e análise interessante e rica sobre o processo de luta dos homens e mulheres de algumas aldeias dos Andes Centrais, onde estava localizada a "Cerro Paso Corporation", pode ser encontrado em "La Guerra Silenciosa" de Manuel Scorza, vivida e escrita durante os anos de 1950 e 1962.
23
quatro grandes coporações principalmente: "Cerro de Pasco Copper Corporation", "Grace and
Co., International Petroleum Corporation" e "Peruvian Corporation", a As três primeiras de
capital estadunidense, e a última de capital britânico. Assinalando as diferenças de poder e
interesse de ambos os capitais, as primeiras operam em setores produtivos (mineração,
agricultura de exportação e têxtil e petróleo, respectivamente), e a última no transporte
ferroviário. Junto a elas, algumas empresas menores, tais como a "Duncan Fox" britânica, que
atuava no ramo têxtil. Paralelamente, uma rede de Bancos, dos quais o Banco do Peru e de
Londres é o mais importante, e empresas de comércio internacional, servem essa nova
formação monopolista no Peru.
Ao produzir-se a incorporação da produção das fazendas pré-capitalistas à nova
acumulação imperialista do capital, os proprietários de terra senhoriais passarão a ter como
objetivo principal a comercialização do excedente, buscando uma ampliação de recursos que
permitiam a ampliação da produção de tais excedentes. Como conseqüência, iniciou-se nesse
país o mais importante e amplo processo de concentração da propriedade agrária nas mãos
desse tipo de proprietário de terras, através do espólio das terras das comunidades indígenas
sobreviventes da colônia e da primeira onda de concentração da propriedade agrária no
começo da república (Cf. Idem: 46).
Esse processo desatou uma onda de insurreições camponesas ao longo das três primeiras
décadas do século XX, afetando sobretudo as regiões de mais densa população indígena, nas
quais estava localizada a maior parte das comunidades indígenas. Mas a concentração de
propriedade agrária não afetou apenas a propriedade das comunidades indígenas, embora essa
fosse sua base principal. O processo foi levado a cabo também através do espólio das terras
dos pequenos e médios proprietários.
Sobre essa base foi surgindo uma capa de pequena e média burguesia comercial rural e
semi-rural (ou semi-urbana), estreitamente vinculada à classe dos latifundiários e dependente
dela durante um primeiro momento, mas destinada, no futuro, a disputar com os setores mais
fracos dessa classe o controle da terra e da economia rural em seu conjunto (Idem: 47).
A combinação do capitalismo monopolista e das relações pré-capitalistas, contraditória
24
porém complementarmente, em uma estrutura comum, implicará necessariamente o
surgimento de uma coalizão de interesses entre os dominadores dos dois modos de produção:
burguesia mercantil e latifundiários senhoriais, do outro. Essa coalizão de interesses, também
necessariamente, estará centrada em torno da hegemonia do capital imperialista, ou seja, da
burguesia imperialista. Isso redefine o caráter dessas classes, seus comportamentos, o âmbito
de sua ação, de seus interesses e de suas lutas (Cf. Idem: 37).
Dada a concentração de capital nos ramos primários, basicamente a agricultura e a
mineração – enquanto que, nos setores industriais, os investimentos eram reduzidos – o
nascente proletariado era basicamente agro-mineiro, e apenas muito secundariamente urbano-
industrial. O proletariado que se ia formando basicamente em Lima provinha, em grande
medida, dos meios do artesanato urbano-mercantil e dos setores camponeses médios
despojados de seus recursos (Idem: 50). Numericamente reduzido, desarticulado, flutuante,
basicamente não urbano-industrial, prioritariamente de origem camponesa, ligado pelo tipo de
consumo às pautas culturais do campesinato e recrutado por coação, o proletariado nascente
corresponde justamente ao tipo de implantação imperialista e ao seu modo concreto de
acumulação do capital.
A relação desses três setores: camponeses indígenas, trabalhadores e estudantes, marcará a
organização dos movimentos populares no Peru ao longo de todo o século XX.
O movimento anarco-sindicalista no período de 1903-1910 fundou centrais operárias em
vários países da América Latina e, em 1904, quando o proletariado peruano enfrenta a
primeira crise capitalista, aparece a União Trabalhadora de Padeiros "La Estrella del Peru".
Em 1911 se forma a "Federación Obrera Textil Vitarte", que, mais tarde, se converterá, por um
tempo, no eixo da mobilização sindical e política do proletariado peruano. A partir de 1904
não existirá praticamente nenhum ano em que não se produzam greves mais ou menos
violentas por reivindicações salariais e, logo depois, a partir de 1913, pela jornada de oito
horas de trabalho, reivindicação que mobilizará a nascente classe trabalhadora urbano-mineira
ao longo dos próximos anos até a conquista dessa demanda em 1919.
No dia 1 de maio de 1905, Gonzales Prada pronuncia seu famoso discurso "O intelectual e
25
o trabalhador", onde conclama uma revolução mundial que "apague fronteiras, suprima
nacionalidades e chame a humanidade à posse e benefício da terra". Nesse sentido, não haverá
revolução "sem lutas nem sangue, porque os mesmos que reconhecem a legitimidade das
reivindicações sociais não cedem nem um palmo no terreno de suas conveniências: na boca,
levam palavras de justiça, e no peito guardam obras de iniqüidade" (Gonzales Prada, 1969:
57-60). Esse primeiro movimento de trabalhadores peruano está concentrado sobretudo na
luta sindical, atento para que a ação conserve seu caráter econômico, o que resultaria em um
anarco-sindicalismo, mais do que em um anarquismo simplesmente libertário.
As primeiras manifestações do anarco-sindicalismo se dão em 1912 com a exigência das 8
horas de trabalho, o que posteriormente ganha em potência devido ao surgimento de uma
incipiente burguesia industrial que ganhará as eleições em 1912 elegendo como presidente
Guilhermo Billinghurst. Em maio desse ano se realizou uma imensa manifestação popular que
usa a imagem de um enorme pão como símbolo da identificação da candidatura com as
necessidades populares. Essa manifestação de rua, que ficou conhecida como a do "Pão
Grande", foi sem dúvida a primeira ocasião da presença popular, efetiva no cenário político
peruano, que se mobilizava na direção das pressões pela modernização do Estado e a
democratização da vida política, embora ainda estivesse sob o jugo de uma das tendências da
própria classe dominante (Cf. Quijano, 1978: 85).
Billinghurst era um homem que se caracterizava por "certas atitudes demagógicas, unidas
a idéias que favoreciam modelos novos de relações entre a classe dominante e os
trabalhadores (...) Tentou desde o governo desenvolver uma política de difusão do ensino
popular, sem êxito" (Quijano, 1978: 85). Todos esses fatos geraram uma forte oposição que,
somada às numerosas greves de trabalhadores que se generalizaram nesse período, foram
debilitando seu governo.
Esse governo cai diante do golpe de 1914 do general Benavides. Esse grupo que
manifestava ter um viés "socialista", criador de um pequeno periódico de trabalhadores –
"Germinal" – rapidamente será objeto do oportunismo pessoal de alguns de seus membros,
como Luis Ulloa, que participavam como colaboradores do diário "El tiempo", e que logo
26
intervirão pela campanha a presidente de Augusto B. Leguía12 que, em 1919, chamara a união
das forças progressistas do país, derrubando o então presidente José Pardo.
Desde suas origens como jornalista, Mariátegui acompanha e é parte da conformação dos
movimentos de massas no Peru, de modo que sua formação política não começa quando de
sua volta da Europa em 1923, mas trata-se, esta, de um claro reflexo de seu acompanhamento
e intervenção na realidade peruana desde suas origens. Sua obra escrita mostra dois eixos
centrais: o "artístico-literário", que foi o inicial, e ao qual corresponde certa de metade de sua
obra, e o "político-sociológico", que foi se tornando o dominante na produção da etapa final
(Quijano, 1991: VII). Trava diálogos com Gonzales Prada13 e Valdelomar14, que, ao retornar
da Europa, trazem as idéias anarquistas e criam a revista "Colónida"15, que foi o refúgio de
toda a boemia surgida em lima nos primeiros 20 anos do século XX e, finalmente, a chegada
da revista España de Luis Araquistain, já de influência claramente socialista (Cf. Paris, 1981:
34). É assim que esse grupo de jovens formado por Mariátegui, César Falcón, Félix del Valle,
Humberto del Águila, Valdelomar e Vallejo em 191816 começam a publicar a revista "Nossa
época", que, como o mesmo Mariátegui definiu, seria o ponto de partida de suas "orientações
socialistas", que não trará explicitamente um programa socialista, embora houvesse um
"esforço ideológico e propagandístico nesse sentido" (Mariátegui, 1994b: 201, 202) 17.
12 Sargento durante a guerra com Chile, Ministro das Finanças durante a presidência de Pardo (1904-1908). Foi presidente pela primeira vez em 1908-1912 e depois em 1919-1930.
13 Gonzáles Prada, escritor e intelectual peruano da primeira metade do século XX, que influenciou várias gerações de intelectuais, nas próprias palavras de Mariátegui, "é o precursos da transição do período colonial ao período cosmopolita, deixando para outros o trabalho de criar o socialismo no Peru" (Mariátegui, 1994a: 116-117).
14 Poeta e escritor peruano da primeira metade do século XX.15 Flores Galindo, ao situar a revista "Colónida", diz que se tratava de um grupo de intelectuais jovens, na
maioria provincianos de classe média, que juntaram ao redor da revista e da figura de Abraham Valdelomar (Cf. 1989: 167). Também se considera essa revista como "uma expressão de um momento de transição entre o modernismo e o vanguardismo. Os 'colónidos' produziram uma ruptura no campo literário ao rechaçar viceralmente o academicismo e a estética oligárquica" (Mazzeo, 2008: 25).
16 1918 é um ano de grande importância para a América Latina espanhola. Na Argentina, terá lugar a Reforma Universitária que teve impacto em todo o continente, e sobre a qual Mariátegui escreverá em seu livro "7 ensaios de interpretação sobre a realidade peruana". A reforma começa na Universidade de Córdoba (Argentina) em 1918 e rapidamente se expande por todas as universidades do país. As críticas à rigidez do establishment, o ensino abstrato e fossilizado, o saber burocrático, se converteram em um protesto que proclama "homens livres da América do Sul". As exigências eram: cátedras livres, co-gestão integrada por estudantes, e o livre direito dos alunos de assistir aulas. Esse movimento se expande pelo resto da América Latina, gerando mobilizações em vários países, e reaparece o velho sonho da "unidade latino-americana".
17 Essa caracterização foi realizada em um documento enviado ao Congresso Constituinte da Confederação Sindical Latino-americana, que se realizou em Montevidéu em Maio de 1929. Em seguida, foi publicado em Ideología y Política.
27
Deixando o papel mais literário, e aplicando-se a temas políticos, surge o primeiro artigo de
Mariátegui que se converte, sem sombra de dúvidas, em um ponto de partida. Trata-se de uma
nota sobre "O dever do exército e o dever do Estado". Aí, argumenta a necessidade de ter um
exército em proporção aos recursos econômicos, de modo que a preocupação deveria estar em
ter política de trabalho, e não de aprovisionamento, e também "políticas de educação", que
permitam combater o analfabetismo. Nessa nota, Mariátegui já se coloca com respeito ao
problema do Índio e sua relação com o Estado, dizendo que, em caso de guerra, a "massa de
aborígines inconscientes" será buscada "para que defenda a pátria" e que os índios seriam
"coercitivamente alistados". Termina afirmando que o "povo paupérrimo e embrutecido tem
vivido para manter o exército, e apenas existe uma burocracia mal formada e mal alimentada"
(Cf. Mariátegui, 1994u: 2540-2542).
Depois desse enfrentamento com o exército, o jornal "El Tiempo", que financiava a edição
e impressão da revista, acaba encerrando-a depois do segundo número. O grupo da "Nova
Época", já sem revista, decide criar um "Comitê de Propaganda Socialista" (París, 1981: 37).
Diante desses acontecimentos, Mariátegui decide, junto a seu amigo Falcón, criar o diário "La
Razón", em maio de 1919, no qual apóiam energicamente tanto os trabalhadores na série de
greves empreendidas nesse ano, como também os estudantes de San Marcos em sua luta pela
reforma, ecoando a reforma de Córdoba de 1918.
As lutas dos estudantes pela reforma universitária e a dos trabalhadores por sua
sindicalização e organização política convergiram em mobilizações solidárias cuja
demonstração mais efetiva foi a grande manifestação de rua do dia 23 de maio de 1923 contra
a consagração do Peru ao Coração de Jesus, preconizada pelo governo e pela Igreja. A
repressão do governo a essa manifestação causou a morte de um estudante e de um
trabalhador, e essas mortes são símbolo de uma forte solidariedade entre os dois grupos
sociais (Cf. Quijano, 1978: 100).
Por outro lado, o processo renovado de concentração da propriedade agrária na serra
empurrava os camponeses indígenas agrupados nas comunidades indígenas a confrontarem-se
violentamente contra os latifundiários em defesa de suas terras usurpadas. A insurgência
camponesa, junto com os fatores anteriores, veio a estimular o desenvolvimento de certas
28
correntes de pensamento entre os intelectuais dos setores médios, os quais preconizavam uma
reavaliação da cultura indígena e de sua histórica como fato determinante da sociedade
peruana. Essa corrente, denominada indigenismo, teve suas expressões mais importantes na
literatura narrativa, na poesia e nas artes plásticas (Idem: 101).
O "Comitê de Propaganda Socialista" não parecia diferenciar-se dos outros movimentos
mencionados anteriormente e, nas palavras de Mariátegui, nele se incluíam todos os
elementos que se definiam como socialistas, até o antipoliticismo dos gonzales-pradistas, e,
por essas razões, no dia 1o de maio de 1919, é criado o Partido Socialista18. Para Mariátegui e
seus amigos, essa foi uma decisão demasiado rápida e, com isso, decide retirar-se do partido.
Esse ato é marcado como a primeira ruptura frente à pequena burguesia, o que assinala o
caminho do que logo será a ruptura com a APRA. A crítica que Mariátegui realiza nesse
momento é que o comitê deve assentar-se mais nas massas, e que o período corrente não é
próprio para a organização socialista. No momento da Reforma Universitária, e da luta do
proletariado pela jornada de 8 horas, Mariátegui declara a necessidade de ter “singular
cuidado para proceder com paciência, mesura o que marca sua atitude quando se trate de
fundar nos próximos 10 anos o partido socialista” (Paris, 1981: 44).
Esses grupos que foram se formando muito amplamente durante a década de 1920, com a
criação da APRA19 em 1924, viverão sua ruptura quando essa organização decide se tornar um
partido interclassista20, em 1927.
18 Paralelamente, alguns elementos procedentes do billinghurismo, bem como de outras correntes, criam o Partido Obrero. Quando se propõem ao comitê socialista a fusão dos dois grupos, aquele a rechaça. "O ato inaugural do Partido Obrero foi fixado para o 1o de maio de 1918, mas, reunida uma assembléia popular, convocada pelos promotores desse partido em um teatro da capital, Gutarra, orador sindicalista, denuncia os bastidores políticos e eleitoreiros de suas gestões, e leva a multidão às ruas, numa manifestação de perfil classista. A tentativa do partido socialista fracassa porque a manifestação do 1o de maio de 1919 segue a greve geral do mesmo mês, na qual os dirigentes desse grupo evitam toda ação abandonando as massas e tomando uma atitude contrária à sua ação revolucionária. Estando Luis Ulloa ausente do país, e tendo Carlos del Barzo falecido, o comitê do partido se dissolve sem deixar nenhuma marca de sua atividade na consciência dos trabalhadores" (Mariátegui, 1994b: 201).
19 Haya de la Torre é o mentor e líder do movimento APRA, Aliança Popular Revolucionária Americana, de caráter anti-imperialista. Era um movimento amplo que se definia como uma "frente única internacional dos trabalhadores manuais e intelectuais, dotada de um programa de ação política". A idéia da Frente Única tinha como estratégia a do Comintern (III Internacional): a unidade entre o proletariado e os estratos médios radicalizados, como a fusão das massas com os intelectuais.
20 Aricó assinala que a derrota da revolução chinesa conduziu o Comintern ao abandono da orientação do "bloco das quatro classes", terminando, desse modo, o curto idílio entre os movimentos nacionais e os partidos comunistas (Cf. Aricó, 1989: 444).
29
Essa mesma década verá o surgimento, no Peru, de correntes que estruturarão
sucessivamente a vida intelectual do país: o indigenismo, a APRA, o socialismo de
Mariátegui.
Julio Cotler assinala que a transformação dos anos 1920, no Peru, está marcada pela
emergência política dos setores da sociedade afetados pela transformação econômica social
em curso. "É assim que os trabalhadores agrícolas, recentemente concentrados nas plantações
de açúcar, algodão e arroz, os trabalhadores mineiros e industriais, a pequena burguesia
urbana e rural deslocada pelas mudanças empreendidas pelo capital imperialista, as
comunidades que viam sua existência ameaçada pelo avanço do latifúndio, a fração dos
comuneiros que eram expropriados por seus pares que se diferenciavam deles em base
classista, todos entraram em um processo de mobilização de intensidade e tipo diferente. Essa
mobilização se canalizou através de organizações sindicais, políticas e culturais que foram
adquirindo conotações anti-imperialistas e anti-oligárquicas. O desenvolvimento político das
classes populares esteve determinado, embora com projeções distintas, pelo pensamento e
atividade organizada de Víctor Raúl Haya de la Torre e de José Carlos Mariátegui" (Cotler,
1977: 374).
Dessa maneira, o governo de Leguía se viu diante de uma dupla oposição: de um lado, o
populismo-nacionalista-reformista (concentrado na APRA) e, por outro, o socialismo
revolucionário (organizado ao redor da figura de Mariátegui e do projeto "Amauta"). Ambas
essas correntes encontravam-se trespassadas pelo indigenismo que representava os primeiros
efeitos das lutas camponesas na consciência social da inteligência peruana.
Em 1928, é fundado novamente o Partido Socialista Peruano, do qual Mariátegui será o
secretário geral. Nesse mesmo ano, tem lugar a greve mineira em Morococha, devido a um
deslizamento provocado pela negligência da empresa exploradora, o qual provoca a morte de
26 trabalhadores. Tem início, aí, a organização da Federação Mineira, outro elemento
influente na organização das massas trabalhadores do Peru.
Todos esses acontecimentos vão marcando uma forma de entender e pensar a realidade
30
peruana, que Mariátegui vai construindo junto a todo um coletivo de escritores, poetas,
políticos, sindicalistas, jornalistas, que vão travando contato uns com os outros em diferentes
momentos, e por diversos motivos, e que expressarão fortemente a contradição colocada nesse
momento: a luta tanto dos proletários quanto dos indígenas, com um forte chamado ao
reconhecimento trabalhista e identitário.
Com essas preocupações, em 1920, Mariátegui parte rumo à Europa por 3 anos e 7 meses,
em uma espécie de exílio, já que o governo Leguía fecha o jornal "La Razón" em maio desse
ano, devido às diversas críticas que eram nele publicadas, em especial um artigo chamado "El
tinglado de la patria nueva" (algo como "As artimanhas da pátria nova"), conjuntamente com
sua participação ativa nas diferentes manifestações sociais. Mariátegui parte convencido de
que Peru exige uma nova linguagem política, as palavras estavam vazias: conservador ou
liberal não queriam dizer nada, e era necessário criar "novos grupamentos capazes de adquirir
uma efetiva força popular" (Mariátegui, 1994u: 2547). Leguía oferece a Falcón e Mariátegui
duas opções: "a prisão ou uma viagem a Europa na qualidade de agentes de propaganda do
governo peruano. Era, na realidade, um exílio dissimulado" (Quijano, 2007: XXXIX).
A passagem de Mariátegui pela Europa – entre 1919 e 1923 – lhe rende um aprendizado
indispensável: o descobrimento das diferenças da América Latina, o que significou explorar o
máximo possível o que esse continente oferecia em matéria de conhecimento, cultura, para
poder estabelecer as leituras de aproximação e diferença entre a América e a Europa. A
maturidade intelectual adquirida por Mariátegui na Europa e a incorporação do marxismo de
maneira mais profunda, foi o que permitiu a Mariátegui formular uma interpretação original
da realidade latino-americana. Suas leituras conseguem não ficar presas a aspectos meramente
econômicos (como sucedia com os intelectuais da II e III Internacional), o que lhe permitiu
pensar a política como uma dimensão organizada da subjetividade, onde os temas culturais
ocupam um lugar destacado. Nesse sentido, um caminho para entender suas formulações
nesse período é sua relação com o surrealismo, sendo que Mariátegui foi um personagem
decisivo na entrada desse movimento21 no Peru. Através de suas leituras de Sorel e Croce,
21 O surrealismo, ao contrário do que se pensa comumente – que se tratava de um movimento literário, artístico – foi, na verdade, "um autêntico movimento de rebelião do espírito e uma tentativa eminentemente subversiva de reencantamento do mundo, quer dizer, o repovoamento do coração da vida humana por momentos encantados apagados pela civilização burguesa" (Löwy, 200b: 9-26). Surge em 1924, com o
31
acaba encontrando um parentesco entre um movimento que reivindica a imaginação e a
espontaneidade criativa, e um continente distanciado do racionalismo e da ilustração (Cf.
Flores Galindo, 1976: 61). É por causa dessa relação do surrealismo e do marxismo e com a
realidade nacional que Mariátegui volta da Europa com uma dupla vertente: a defesa do
nacional e a necessidade do internacionalismo22. É a partir dessas duas visões que se divide a
acusação de Mariátegui de ser, por um lado, "populista" e, por outro, "romântico". Para Löwy
(2005b), poderíamos dizer se tratava de um pensador que se inscrevia em um "romantismo
nacionalista"23, no qual está resgatado o "coletivismo agrário inca" para a introdução do
socialismo no Peru.
Mariátegui publicou três ensaios sobre o surrealismo entre 1926 e 193024, nos quais insiste
não se tratar de um movimento libertário ou de uma moda artística, mas sim de "um protesto
do espírito" (Mariátegui, 1994g: 564) que "denunciava e condenava, em bloco, a civilização
capitalista" (Idem). Pelo seu espírito e sua ação, o surrealismo era um movimento romântico,
mas "pelo seu rechaço revolucionário ao pensamento e à sociedade capitalista, coincide
historicamente com o comunismo, em um nível político" (Idem). Mariátegui assinala como
quatro grupos, quatro revistas – "Clarté", "Correspondance", "Philosophies" e "La Révolution
Surréaliste" – subscrevem em seu momento um manifesto que defendia a revolução: "Somos
Primeiro Manifesto Surrealista, e já no Segundo Manifesto de 1925, Breton afirmava que a dialética hegeliano-marxista se encontrava no coração da filosofia surrealista. Nesse escrito encontra-se já explicitada sua crítica radical à civilização ocidental e à idéia de progresso: "ali onde reina a civilização ocidental, cessaram todos os vínculos humanos, exceto os que têm por razão de ser o interesse, o duro 'salário contado'. Já faz mais de um século que a dignidade humana foi rebaixada ao nível do valor de troca... Nós não aceitamos as leis da Economia e o Valor de Troca, não aceitamos a escravidão do Trabalho" (Idem).
22 São amplos e vastos os debates enfrentados pela esquerda latino-americana sobre o problema do nacional e internacional, os quais, como já vimos e continuaremos a ver, forma caros a Mariátegui e a Caio Prado, em sua relação com a tentativa de dar-lhes uma unidade. A importância dessas categorias no pensamento dos dois tem a ver com a força que guarda, neles, a realidade nacional como fonte para pensar e atuar em processos revolucionários. Ela sempre está sempre demarcada por um contexto internacional, o qual nenhum dos dois perde de vista em nenhum momento.
23 Depois da morte de Marx e Engels, surgem no marxismo duas correntes: "uma evolucionista e positivista para a qual o socialismo era só o coroamento e continuação do desenvolvimento do capitalismo (Plekhanov, Kautsky) e uma outra que se poderia denominar de 'romântica' por sua crítica às 'ilusões do progresso', sugerindo uma dialética entre as formas pré-capitalistas e o futuro socialista (Morris, Bloch, Marcuse, Thompson, o jovem Lukács, Benjamin). Mariátegui se inscreve dentro dessa segunda linha de análise, de uma forma original e em um contexto latino-americano muito diferente do da Inglaterra ou da Europa Central" (Löwy, 2005b: 10).
24 Mariátegui usa o termo "Suprarrealismo" para se referir ao surrealismo. Os ensaios mencionados são: “El Grupo Suprarrealista y Clarté” (Revista Variedades, 24 de julho de 1926); “El balance del Suprarrealismo” (Revista Variedades, 19 de fevereiro e 5 de março de 1930); “El Suprarrealismo y el amor” (Jornal Mundial, 22 de março de 1930).
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– dizia o manifesto – a revolta do espírito: consideramos a revolução sangrenta como a
vingança inelutável do espírito humilhado pelas obras de vocês. Não somos utópicos:
concebemos essa revolução sob a forma social de vocês" (apud. Mariátegui, 1994g: 565).
Anos mais tarde, num artigo intitulado "O balanço do surrealismo", Mariátegui assinalava
que o suprarrealismo é "um movimento, uma experiência" (Idem) que, por um lado,
reconhece origens românticas, segundo as palavras de André Breton que afirma que "dizemos
que esse romantismo (...) em 1930 é a negação desses poderes [hoje existentes]"25. Ao mesmo
tempo, esse movimento estava comprometido com o "programa marxista" (Idem).
O apelo do surrealismo a uma experiência passada que permite manter uma relação não-
destrutiva com o mundo é o lugar onde podemos inscrever Mariátegui, com seu apelo ao
comunismo inca, à harmonia original com a natureza. A relação de Mariátegui com o
indigenismo pode ser entendida dentro dessa matriz surrealista, a qual permite emprestar à
idéia de socialismo o conteúdo real por ele adquirido na realidade peruana. A idéia surrealista
de um "protesto do espírito" contra o "progresso" da sociedade capitalista possibilitou a
Mariátegui, juntamente com outros elementos, pensar o lugar e a vigência que poderia ter a
atualização das experiências comunitárias camponesas e indígenas para a revolução socialista.
Esse "romantismo" é uma verdadeira "visão de mundo", um estilo de pensamento, uma
estrutura de sensibilidade que se manifesta em todas as esferas da vida cultural. Assim, é
possível definir a "visão de mundo romântica" como uma "crítica cultural da civilização
moderna" (capitalista) em nome de "valores pré-modernos" (pré-capitalistas). Trata-se de um
protesto contra "a quantificação e mecanização da vida, a coisificação das relações sociais, a
dissolução da comunidade e o desencantamento do mundo". Por isso, a visão nostálgica do
passado não significa uma visão retrógrada: "reação e revolução" (Löwy, 2005b: 10) são
aspectos possíveis da visão romântica do mundo: "para o romantismo revolucionário, o
objetivo não é uma volta ao passado, mas um desvio por ele, rumo ao futuro utópico" (Idem).
25 Breton prossegue: "O fato de que ter cem anos de existência é, para ele, estar na juventude, ou o que se chamou equivocadamente de época heróica, só pode ser considerado como o choro de um ser que apenas começa a conhecer seu desejo, através de nós, e, se se admite que o que havia sido pensado antes dele – classicamente – era o bem, esse ser quer incontestavelmente todo o mal" (apud. Mariátegui, 1994g: 568).
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No livro Por um socialismo indo-americano. José Carlos Mariátegui, Löwy marca que
essa idéia de romantismo já está presente em Marx: "basta ver, por exemplo, sua carta à
revolucionária russa Vera Zassulitsch, de 1881, na qual Marx 'insistia na importância das
comunidades rurais tradicionais – a obshtchina – para o futuro do socialismo na Rússia'. na
sua opinião, a abolição revolucionária do czarismo e do capitalismo nesse país poderia
permitir o retorno (Rückkehr) da sociedade moderna ao tipo de propriedade comunal 'arcaico',
ou melhor, 'a um renascimento do tipo de sociedade arcaica sob uma forma superior'.
Portanto, um renascimento que integraria todas as conquistas técnicas da civilização européia"
(Löwy, 2005b: 9).
O impacto intelectual vivido por Mariátegui em sua passagem pela Europa está
circunscrito num movimento mais amplo vivido pelo ocidente como um todo, de modo que a
"crise da cultura européia" expressa pela Primeira Guerra Mundial é vista por Mariátegui
como uma "crise de civilização", algo que também era visto por outros marxistas da época,
não conhecidos por ele (tais como Ernest Bloch e o jovem Lukács26), o que lhes permitiu
realizar outra leitura do processo histórico, não-evolucionista e não-economicista, a qual
seguramente já havia sido pensada – marginalmente – por Marx.
Para Löwy (1997: 202, 203), o messianismo histórico, ou a concepção romântico-
milenarista da história está em ruptura com a visão do progresso da modernidade e com o
culto positivista do desenvolvimento científico e técnico. "Contribui com uma concepção
qualitativa, não evolucionista, do tempo histórico, no qual a volta ao passado representa o
ponto de partida necessário para o salto em direção ao futuro, em oposição à visão linear,
multidimensional, puramente quantitativa da temporalidade, enquanto progresso acumulativo.
Uma visão crítica da modernidade, da civilização industrial (...) em nome de certos valores
sociais, culturais e religiosos pré-capitalistas, e ao mesmo tempo uma aspiração a um futuro
que não seja a 'novidade' fática da mercadoria – mas um mundo utópico qualitativamente
26 Löwy mostra como, nesse período entre 1909 e 1916, um autor como Lukács faz eco desse pensamento romântico que o autor chama de "anticapitalismo romântico suigeneris", que combina a "problemática da intelligentsia alemã (o desenvolvimento irreversível do capitalismo) com a dos intelectuais húngaros (a estabilidade de uma sociedade ultra-conservadora, feudal e burguesa), numa 'fusão ideológica' extremamente radical com tendências a una coerência trágica” (Idem: 101). Esta visión recibió el impacto del advenimiento de la Primera Guerra Mundial (1914-1918), con su cortejo de crímenes y miserias, que acabó politizándola en un “antimilitarismo que era apenas a conseqüência lógica do anticapitalismo” (Idem: 118).
34
distinto, com uma distância absoluta em relação ao estado de coisas existente."
Esses fatores permitirão a Mariátegui realizar uma síntese entre sua experiência anterior (o
Peru do início do século XX) e os caminhos abertos para a sociedade peruana no momento
histórico do pós-guerra.
A Primeira Guerra Mundial representa, em Mariátegui, da mesma forma que para os
movimentos surrealistas, românticos, a linha de demarcação que separa as ilusões positivistas
do brusco despertar da violência. Assim, tanto "El alma matinal" quanto as "Cartas de Italia"
se concentram fortemente na descrição e análise da brutalidade com que se expande o
capitalismo no século XX. A Primeira Guerra Mundial "fraturou e modificou não apenas a
economia e a político do Ocidente" (Mariátegui, 1994f: 495), mas também sua "mentalidade e
espírito" (Idem). A idéia de progresso foi erguida sobre um "respeito supersticioso" (Idem),
onde a humanidade parecia haver encontrado uma "via definitiva" (Idem). Conservadores e
revolucionários aceitavam praticamente as conseqüências da tese evolucionista: "ambos
coincidiam na mesma adesão à idéia de progresso e à mesma aversão à idéia de violência"
(Idem) 27. Diante da idéia de um progresso irrestrito, a primeira guerra veio pôr sobre a
sociedade ocidental a marca da violência como necessidade do capital. Essa marca não é nova
na história do capitalismo (recordemos a conquista da América e tudo que significou a
Acumulação Primitiva assinalada por Marx no Capital), mas, como registra Mariátegui, essa
violência traz outras marcas que traçarão as novas modalidades a serem adquiridas nessa nova
fase. Diferentemente das outras guerras, que eram impulsionadas por motivos limitados e
concretos, a primeira guerra teve a inovação de perseguir objetivos ilimitados. Na era
imperialista, produziu-se a fusão da "política e da economia: a rivalidade política
internacional se estabelecia em função do crescimento e da competitividade na economia, mas
o que mais a caracterizava era que não tinha limites. As 'fronteiras naturais' da Standad Oil, do
Deutsche Bank, ou da De Beers Diamond Corporation se situavam nos confins do universo, 27 Mariátegui cita o crítico italiano Adriano Tilgher que diz: "Produto de uma civilização muitas vezes secular,
saturada de experiência e reflexão, analítica e introspectiva, artificial e livresca, essa geração crescida antes da guerra teve que viver em um mundo que parecia consolidado para sempre e assegurado contra toda possibilidade de mudanças. E se adaptou sem esforço a esse mundo. Uma geração toda nervos e cérebro gastos e cansados pelas grandes fadigas de seus genitores: não suportava os esforços tenazes, as tensões prolongadas, as sacudidas bruscas, os rumores fortes, as luzes vivas, o ar livre e agitado: amava a penumbra e os crepúsculos, as luzes doces e discretas, os sons apagados e distantes, os movimentos mesurados e regulares. O ideal dessa geração era viver docemente" (1994f: 495-496).
35
ou seja, nos limites de suas capacidades de se expandirem" (Hobsbawm, 2007: 37-38).
O advento do fenômeno fascista marca um novo momento nesse marco de violência, que
significará, na leitura de Mariátegui, a perda das conquistas realizadas pela civilização
ocidental. Na ausência da "superstição do progresso", foram testemunhas, depois da guerra,
de que "à humanidade ainda podiam abater-se fatos superiores às previsões da Ciência, ou
contrários ao interesse da civilização" (Mariátegui, 1994f: 495-496). A esse ocaso da
civilização burguesa sobreveio o fascismo como resposta à Revolução Russa e como forma de
"normalização" das sociedades que se perderam com a guerra e com a Revolução de 1917.
Uma tensão se expressa em Mariátegui ao longo de seus ensaios sobre a "idéia de
progresso": por um lado, positiva-o, vendo nele a possibilidade de uma revolução na América
Latina. Por outro lado, percebe através da lente de Sorel as "ilusões de progresso" da
sociedade ocidental, as quais acabam desfazendo-se com a Primeira Guerra. É uma tensão
vivida pela intelectualidade nesse momento na Europa: absorta pelo avanço da violência,
encontra-se em um ponto de inflexão com respeito a essa idéia.
A vinculação da economia capitalista com a economia de guerra é uma relação intrínseca
ao capital, sua expansão está baseada na força das armas. O impacto da Primeira Guerra foi
um divisor de águas no pensamento crítico ocidental, e Mariátegui não é estranho a esse
debate, e percebe que "dentro do regime capitalista, a guerra está em permanente incubação"
(Idem: 855). A partir dessa idéia, o autor elabora extensas críticas à atitude oficial tomada pela
Segunda Internacional de participar na guerra e, lamentando que o movimento revolucionário
internacional tenha pouco de Rosa Luxemburgo e de Lênin, já que a consigna destes era:
"'Caso estoure a guerra, os socialistas estão obrigados a trabalhar para seu fim rápido e utilizar
a crise econômica e política provocada pela guerra para sacudir o povo e acelerar a queda da
dominação capitalista'" (apud Mariátegui, 1994j: 852). Em um amplo debate com a
Internacional, e dedicando vários ensaios a analisar tanto a Primeira Guerra como o fenômeno
do fascismo, muito mais que a revolução russa, denuncia essa adesão à guerra como um erro
de leitura a respeito de qual é a necessidade da burguesia e como ela incorpora o proletariado
no poder para lhe assegurar um lugar nas filas do exército: "subsidiava as famílias dos
36
combatentes, oferecia o pão a preço baixo, subvencionava amplamente a indústria, trabalho
abundante, adormecendo as massas com a idéia de luta de classes. Tudo isso teve a grande
adesão do proletariado", o que fez com que, durante seis anos, os trabalhadores se matassem
uns aos outros, e fracassasse a Segunda Internacional.
É perceptível o temor que provocava a Mariátegui a propagação do fascismo como uma
nova forma adquirida pela violência no capitalismo. Não apenas se dedica a analisar o
fenômeno durante sua estadia na Itália, como também, ao regressar, tenta leva essa história
que a Europa está vivendo para o conhecimento das massas trabalhadoras. Não abandona essa
preocupação ao longo daqueles sete anos, sendo que, ao retornar, sente-a com ainda mais
força, de modo que, com o tempo, se lhe impõe a necessidade da organização de massas no
Peru, como resposta para aquele temor: a consolidação de um partido que permita dar um
salto antes da chegada dos novos aparatos de violência implementados no ocidente. Não
encontramos em seus ensaios nada que signifique uma quebra dessa tensão relativa à idéia de
progresso, nem com a idéia de organização. Essa quebra não é possível, na medida que há um
avanço do pensamento de integração das massas indígenas às massas revolucionárias, há um
aumento da contradição sobre a violência causada pelo progresso imposto violentamente nas
colônias. E, por outro lado, não deixam de funcionar formas atrasadas que sirvam também em
função desse progresso. A incorporação da forma de produção e reprodução da "comuna
incaica" em um processo de modernização acelerado, é um problema ao qual Mariátegui não
encontrava resposta. A tensão não foi solucionada, porque o próprio movimento das massas
ainda não resolvia o problema da integração: campo-cidade, indígenas-trabalhadores. Existe
clareza a respeito da necessidade dessa integração, a necessidade de multiplicar essas massas,
que estranhamente não caracteriza como "trabalhadores", propondo incorporá-las a um
proletariado incipiente. A contradição, para Mariátegui, está em como construir um projeto
onde se incorpore todas as massas populares, de tal modo que elas mesmas consigam guardar
as particularidades de suas lutas. Esse problema continua vigente até os dias de hoje.
Um aspecto importante que merece muita atenção nessa idéia de como seria o socialismo
indo-americano é que Mariátegui ressalta que o mesmo não é uma "etapa superior" da história
universal, resultado do desenvolvimento capitalista. O socialismo aparece como uma
37
alternativa de práxis a ser permanentemente atualizada, e o devir da organização de massas é
o que delineará seu porvir.
Algumas das críticas dirigidas a Mariátegui vêem uma tentativa de "espiritualização do
marxismo", o que, na verdade, poder-se-ia entender como "o problema ético-moral que
enfrenta o materialismo". Sem uma estrutura de conceitos filosóficos sólidos, e sem uma
sistematicidade na exposição desses problemas, Mariátegui está guiado por uma intuição
certeira: "o lugar da práxis na determinação da história" (Quijano, 2007: LXV).
A práxis passará, assim, a ocupar o centro dos debates, passará a ser o centro dos
problemas colocados para o marxismo latino-americano. Essa práxis que guarda uma íntima
relação com a ação dos condicionamentos objetivos, bem como com a ação consciente: "é na
luta de classe onde residem todos os elementos do sublime e do heróico de sua ascensão, o
proletariado deve elevar-se a uma 'moral de produtores', muito distante e muito diferente da
'moral dos escravos' a qual seus professores gratuitos de moral oficiosamente se empenham
em incutir neles, horrorizados com seu materialismo" (Mariátegui, 1994m: 1308).
Essas são as tendências entre as quais Mariátegui desenvolve sua visão e sua análise sobre a
América Latina, e a possibilidade de um socialismo indo-americano. Quando retorna da Europa 28, com
uma bagagem cultural muito mais ampla que a que tinha antes de partir, com a tenção entre o nacional
e o internacional, a qual não dizia respeito senão a contradições próprias da realidade, percebe que não
apenas existem problemas na radicalidade da crítica à sociedade em que vive, mas também que é
preciso criar, sem deixar de recuperar o já existente, novas formas que permitam expressar essa crítica.
É por esse caminho, e também devido a uma formação não universitária e um passado de jornalista,
que utiliza o ensaio como forma de expressão na qual envolve um amálgama de dados, reflexões,
conteúdos teóricos e ficção, mostrando uma unidade entre todos esses elementos29. Mariátegui
28 É importante ressaltar o assinalado por Quijano, a existência de duas etapas depois de seu regresso. Na primeira, de 1923 a 1928, Leguía já define um governo despótico e totalmente aliado ao imperialismo norte-americano. Haya constitui o APRA e convida Mariátegui a participar da direção da revista Claridad. Em 1924, é preso por seus contatos com trabalhadores e sua participação em sua organização. A segunda etapa vai desde 1928 até sua morte, em 1930. Aí se desenvolve a maturação de seu pensamento político, bem como da organização das massas (C.f. Quijano, 2007: XLVI-XLVII).
29 Horacio Gonzáles assinala que "o ensaio é o estilo da visão moral contrariada que se impõe no mundo. Está sempre em estado de ebulição ou pesadelo, de chamamento e de inquietude. Põe os sujeitos em um problemático 'coletivo moral' que lhes pode revelar suas liberdades, mas também pode obscurecer os caminhos da compreensão. Por isso mesmo, tanto por suas virtudes quanto por suas abdicações, foi combatido pelas correntes científicas. Estas, sem ter a precaução de criar os passos necessários para não
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imaginou a necessidade de produzir um romance para entender a realidade peruana. Em todo caso,
acabou utilizando como meio de aproximação à realidade peruana um gênero localizado a meio
caminho entre a ficção e o estudo erudito: o ensaio (Flores Galindo, 2008: 3).
Para Caio Prado, no Brasil, as influências e os acontecimentos mundiais não foram muito
diferentes: a diferença está, sim, na maneira como se processam socialmente esses fatos.
No Brasil, um forte crescimento no movimento operário tem lugar, como efeito da
Primeira Guerra Mundial, o qual provocou um explosivo desenvolvimento da indústria, e a
criação da Companhia Siderúrgica Mineira em 1917, o que faz surgir, com maior poder
político, todo um grupo representante da indústria, em um claro enfrentamento com a
oligarquia rural dominante até o momento. Assim, entre 1907 e 1920, "o proletariado
brasileiro quase se duplicou, e o número de estabelecimentos fabris quase triplicou" (Konder,
1988: 124). Para o movimento de massas, isso se apresentou como um grande desafio. Em
1919, o movimento operário realiza 37 greves no Estado de São Paulo, mas sofre uma
retração devido à grande repressão. A Revolução Russa também se fez sentir nesse
movimento e, em 1919, cria-se o Partido Comunista, com orientação anarquista, mas que em
algumas ocasiões fazia concessões à Revolução Russa. Dirigido por Astrojildo Pereira Duarte,
o anarco-comunismo durou pouco tempo, devido a divergências internas. Assim, em 1922, é
fundado o Partido Comunista.
As primeiras leituras de Marx que se realizam no Brasil ocorrem dentro do Colégio Pedro
II, em 1908, por Farias Britos e Euclides da Cunha. Antes deles, são os anarquistas imigrantes
que trazem as idéias socialistas para o interior das diferentes expressões populares que
surgiam ao fim do século XIX e princípios do XX. Em 1906, realiza-se o I Congresso
Operário no Rio de Janeiro, onde são vitoriosas as teses anarquistas que negam qualquer
apoio ao Estado. Iniciava-se, assim, o movimento social brasileiro, com um proletariado
cindir conhecimento e expressão (ou compreensão e linguagem), se dedicaram a desprestigiar as ações e torções do ensaio que constituía parte da histórica cultural nacional, em nome de técnicas precisas de medição, inspiradas em uma idéia acrítica de modernização surgida de realidades políticas que os novos cientistas supunham que não necessitassem auto-reflexão" (1999: 9-10). É interessante recuperar essa idéia sobre o ensaio, sobre essa "visão contrariada", essa visão incômoda, que se constitui como uma forma de expressão rica e inovadora, porque permite trazer outros elementos que não poderiam ser colocados por um pensamento formado apenas nos âmbitos acadêmicos.
39
incipiente já concentrado nos grandes centros urbanos. Os anarquistas conseguiam ser mais
numerosos que os socialistas chamados democráticos ou reformistas: aqueles eram mais
agitadores, e ofereciam aos trabalhadores a esperança de um mundo melhor, sem classes, sem
governo, sem patrões, sem mi´seria. Em 1903 é fundada a Federação das Associações de
Classe no Estado do Rio de Janeiro a qual, em 1906, passou a chamar-se a Federação
Operária Regional Brasileira, a qual convoca o I Congresso Operário Brasileiro, realizado na
capital federal em 1906, cuja condução foi disputada por anarquistas e reformistas. Em 1913,
é realizado o II Congresso Operário Brasileiro.
Na primeira década do século XX, os trabalhadores protestaram contra o militarismo e a
guerra, e com a guerra declarada se uniram em comícios de protesto, contra a entrada do
Brasil no conflito e contra o alistamento militar.
Com a Revolução Russa de 1917, se instala concretamente um Estado Socialista, e as repercussões
no Brasil foram enormes. Os anarquistas, num primeiro momento, saúdam a revolução como uma
vitória do seu credo, mas rapidamente passam a atacá-la. O impacto da revolução em toda América
Latina acelera os processos que vinham sendo desenvolvidos dentro dos movimentos sociais formados
nas duas primeiras metades do século XX.
Em 1926, Octavio Brandão se aventura a realizar a primeira análise marxista da história e da
realidade brasileira com "Agrarismo e industrialismo", mas a obra não chega a ser o que o autor
esperara: o resultado é um livro "sectário, apaixonado" (Cf. Moraes Filho De, 1991), que tenta aplicar
a dialética marxista à sociedade brasileira girando em torno da dicotomia "centralização-
descentralização" (Idem). Essa interpretação do Brasil só terá lugar mais tarde com Caio Prado.
Apesar da criação do Partido Comunista em 1922, o conhecimento da obra de Marx no Brasil só tem
lugar depois de 1930 (idem).
Junto ao ingresso das idéias anarco-sindicalistas e socialistas, se dá, ao mesmo tempo, um
processo mais geral, conforme chamávamos atenção em parágrafos anteriores, o qual tem
lugar em toda América Latina, com o desenvolvimento do movimento modernistas que, assim
como no Peru, terá enorme impacto no Brasil.
As vanguardas literárias e artísticas brasileiras (e de outros países da América Latina) da
40
década de 1920 permitem um cotejo dos rasgos estruturais derivados dos surgimento do
campo intelectual nesses países "novos" da periferia capitalista. Segundo Miceli (2010: 490),
devido às imposições externas à atividade criativa, o cenário cultural que então se constituía
em nosso continente se baseou em um ordenamento radicalmente distinto no que tange aos
laços entre condições sociais e rasgos singulares do campo em gestação: "essa experiência
histórica afetou totalmente o imaginário criativo plasmado pela reinvenção característica do
trabalho intelectual desenvolvido pelos líderes daqueles movimento" (Idem).
Miceli (2010: 494) observa que a atividade literária na maioria desses países colonizados
dependia da dádiva e das proteções concedidas pelos grupos que possuíam o poder econômico
e político. Assim como não é possível dissociar os textos de Sarmientos, Alberdi, Mitre e
Hernández das aflições do exílio, dos diagnósticos conflituosos sobre o regime de Rosas, dos
projetos de reforma do país, tampouco podem desvincular-se os escritos de Alencar, Nabuco e
Oliveira Lima dos desafios e dos impasses que enfrentariam no desempenho de suas funções
públicas, desde o regime monárquico até o período republicano. As realizações intelectuais
modelares de Machado de Assis e de Leopoldo Lugones, além das diferenças de linguagem e
gênero, pareciam valer-se das energias suscitadas pela irrupção de uma atividade autoral mais
ousada em meio à teia de vínculos que envolviam os diferentes círculos e fraciones da classe
dirigente. Essa camada intelectual, empregada na política, estava comprimida entre o chicote
do trabalho por encomenda e o desafio de uma obra expressiva autônoma. Por conseguinte,
todos os representantes dessa autonomia e da capacidade de invenção dependeram de recursos
das entidades públicas com inserção estratégica no âmbito cultural – como, por exemplo, a
universidade, o principal sustentáculo da atividade intelectual no Brasil desde meados do
século XX.
Até o momento da eclosão das vanguardas, as sucessivas gerações de intelectuais
dividiam seus esforços entre a escrita e a atividade política, às vezes limitada à colaboração na
imprensa, e, ao mesmo tempo, reagiam diante das mudanças e propostas que surgiam na
metrópole européia.
À medida que se desenvolvem movimentos mais vinculados à Arte, nucleados na Semana
41
Modernista de São Paulo, e o Movimento Regionalista de Pernambuco, existia também uma
inquietude no setor político e militar, produzindo as revoltas de 5 de julho de 1922 e a de 5 de
julho de 1924. Essas revoltas continuaram sendo produzidas até 1927 pela Coluna Prestes.
Formaram-se dois grandes grupos de intelectuais: o primeiro com uma visão inclinada ao
"fascismo e à consolidação do domínio da oligarquia", e outro grupo se aproximava com a
intenção de realizar uma análise da "realidade brasileira à luz do pensamento marxista"
(Correia de Andrade, 1989: 358-359). É nesses anos que se estabelecem as bases de um tipo
de pensamento que já não é importado da Europa ou dos EUA, mas que permite abrir novas
perspectivas, inquietudes e interrogações sobre a própria constituição nacional e regional.
Segundo Miceli (2010: 497) a irrupção criativa no Brasil da primeira geração modernista
deveu-se, sobretudo no começo, às rivalidades e aos enfrentamentos entre as forças políticas
representativas das elites regionais. Em São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, a crise
aguda do poder oligárquico na década de 1920, em luta com facções dissidentes, ao que se
somavam as rebeliões dos oficiais militares descontentes, modificou de maneira drástica os
modos de colaboração da nova geração de intelectuais com os donos do poder político. "Os
escritores modernistas começaram suas carreiras como quadros dos partidos republicanos
estaduais e dos respectivos órgãos de imprensa, o que os fez tributários das palavras de ordem
com as quais foram socializados e, ao mesmo tempo, lhes proporcionou uma sensibilidade
aguda para perceber as oscilações no prestígio de seus mentores que podiam afetar seu destino
temporal. Nenhuma artimanha estetizante será capaz de afastar essas origem" (Idem: 498).
Assim, por um lado, constituiu-se a "Frente Modernista Paulista", a qual, devido à
incompetência política entre os grupos de dirigentes paulistas, impulsionou a criação do
Partido Democrático, assim como o controle do diário "O Estado de São Paulo" e a "Revista
do Brasil" por parte de uma fração especializada de empresários culturais. Em Minas Gerais,
o círculo modernista, liderado desde o começo por Carlos Drummond de Andrade (1902-
1987), floresceu sob a sombra do Partido Republicano Mineiro. Alguns dos integrantes do
círculo trabalharam na redação do Dário de Minas, órgão oficial da agrupação partidária, em
cujas oficinas se fazia o periódico literário do grupo, "A Revista", editado na Imprensa Oficial
do estado, selo de quase toda a literatura da época. "Os modernistas de Minas Gerais
42
pertenciam a uma geração de gente do interior proveniente do mesmo estrato social dos
"fazendeiros do ar", segunda a expressão de Drummond: quer dizer, os fazendeiros cujas
famílias haviam perdido suas terras, e tinham que dirigir as expectativas de seus herdeiros
para o trabalho intelectual" (Idem: 498).
Por outro lado, Augusto Meyer (1902-1970), Raúl Bopp (1898-1984) e outros escritores
gaúchos dessa geração também procuraram compatibilizar o trabalho intelectual com as
ocupações de funcionários graduados. Depois do período probatório de colaboração com os
dirigentes oligárquicos no âmbito estadual, "gaúchos e mineiros" foram atraídos pelo governo
Vargas, que lhes ofereceu posições destacadas nos altos escalões do serviço público federal.
No Rio de Janeiro, a geração chamada "'modernista', devido à sua amnésia frente à
história literária, constituía um grupo significativo de escritores que haviam estreado na chave
simbolista ou 'penumbrista', alguns deles muito antes de 1922" (Idem: 499). Ronald de
Carvalho (1893-1935), Gilberto Amado (1887-1969), Manuel Bandeira (1886-1968),
Prudente de Morais Neto (1904-1977), Murilo Mendes (1901-1975), Alceu Amoroso Lima
(1893-1983), entre outros.
A trajetória intelectual e profissional dos jovens modernistas brasileiros, incluindo a dos
mais favorecidos, como Oswald de Andrade, foi sendo moldada em meio a uma série de
circunstâncias político-institucionais regionais, em função do grau variável de diversificação e
de abertura dentro do comando das forças oligárquicas. Essas mediações locais permitem
estimar os complexos viveiros de experiências pelas quais transitaram os modernistas
brasileiros, os quais, na passagem da província para a capital do país, conseguiram consolidar,
ao mesmo tempo, uma posição funcional e o reconhecimento literário, na órbita dos círculos e
anéis burocráticos controlados por seus protetores políticos (C.f. Idem: 499).
Da mesma forma que a maioria dos modernistas latino-americanos do momento, as
primeiras atividades profissionais dessas figuras de vanguarda foi produzida na imprensa, o
único espaço capaz de garantir empregos e salários adequados em troca de uma produção
literária autoral, cujos temas e estilos, entretanto, ficavam restritos aos padrões jornalísticos.
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A formação de Caio Prado ocorre prematuramente, em meio a esse processo de
constituição de um campo intelectual crítico às antigas estruturas coloniais e que, ao mesmo
tempo, se instalava dentro das próprias lutas de camponeses, as quais se sucediam nesse
momento, influenciadas pelo surgimento do pensamento anarco-socialista da época. Mais
tarde, Caio Prado publicará sua primeira obra, numa tentativa de interpretar o Brasil como
produto da colônia, dentro de uma visão marxista. Em 1933, publica seu primeiro livro,
"Evolução política do Brasil", numa leitura crítica sobre o desenvolvimento brasileiro,
buscando as causas de seus presente, em seus antecedentes coloniais. Esse primeiro período
de produção se estende até a publicação, em 1942, de Formação do Brasil Contemporâneo,
onde se aprofunda e se estende essa preocupação, dando uma explicação inovadora para todo
o pensamento latino-americano sobre a não-existência de restos feudais na conformação da
América. É uma obra que sedimentará uma linha de análise que provocará importantes
debates, e na qual Caio Prado mostra, com a análise de inúmeros dados, a necessidade de
entender a conformação das realidades periféricas na expansão capitalista. Dessa maneira, era
possível entender esse processo mais geral que fugia dos parâmetros do marxismo oficial
instaurados pela III Internacional30. Com a criação da "Revista Brasileira", se realiza uma
proposta muito mais programática, de estratégia, baseada em suas análises anteriores, e
enfrentando as teses defendidas pelo PCB nesse momento. Historicamente, tem sido difícil
explicar o grau de autonomia que Caio guardou em relação ao PCB, por um lado por
pertencer à geração da década de 1930, que surge quando a universidade ainda não estava
consolidada no Brasil – diferentemente do resto da América Latina, que já havia sido cenário
da Reforma Universitária de 1918 –, por outro lado ganhou-se um respeito importante por
parte do PCB, como intérprete e analista do Brasil contemporâneo.
Fernando Henrique Cardoso (1993: 22) assinala que Gilberto Freyre, com Casa grande e
senzala (1933), Sérgio Buarque de Hollanda, com Raízes do Brasil (1936) e, mais tarde, Caio
Prado Jr., com Formação do Brasil Contemporâneo (1942) foram básicos para a geração de
Antonio Candido, formando os três pilares fundamentais do pensamento brasileiro até esse
momento. Embora se tratassem de autores com contribuições muito diferentes umas das
outras, os livros escritos por eles surgem da motivação de entender o Brasil.
30 Tema a ser tratado no ponto seguinte.
44
Até a década de 1930, nas intepretações do Brasil havia um forte predomínio das idéias
anti-liberais. Os grandes autores eram Oliveira Viana e Alberto Torres, e depois Azevedo
Amaral. Segundo Fernando Henrique Cardoso (1993: 24), Gilberto Freyre introduz na
literatura sobre o Brasil a vida quotidiana, a família, a cozinha, a vida sexual, os maus-
hábitos, os bons. Esse autor descreve uma história social, às vezes idealizada, mas sua
referência analítica é sempre a dos aspectos antropológicos do quotidiano.
Sergio Buarque de Hollanda, conforme observa Cardoso, é um pensador democrata,
perguntando-se sobre a possibilidade de construir uma sociedade mais democrática: "o que
podemos fazer para construir uma sociedade mais democrática? Uma sociedade que ao invés
do personalismo e do caudilhismo permita o acesso de todos às oportunidades existentes, que
tenha regras gerais, como na democracia?” (Buarque de Hollanda apud Cardoso, 1993: 29).
Segundo Menegat (2008a), Sergio Buarque mostra, em Raízes do Brasil, como se dá, de
maneira concreta, o processo dialético de progresso-atraso na periferia do capital.
Em Caio Prado, já se econtram outras raízes intelectuais. Formado irregularmente na
Universidade de São Paulo, conviveu com os primeiros professores franceses que
administraram aulas, sendo alunos de Lévi-Strauss, Deffontaines, considerado o pai da
geografia humana moderna. Dessa menria, Caio Prado consegue descrever a colônia dos
portugueses fundando-se sempre nas análises sobre o meio físico e os processos de exploração
econômica, as formas históricas de organização do trabalho e da sociedade.
O interessante desses autores é que, no fundo, buscaram dar uma resposta à questão da
identidade como brasileiros, sobre as condições da história e as alternativas para o futuro do
Brasil. São, segundo Cardoso (1993: 34), um exemplo de paixão pela busca do "ser nacional"
ou da "sociedade nacional". Em paralelo com as preocupações modernistas, esses autores, por
diferentes caminhos, enfrentam um passado oligárquico, numa tentativa de entender como foi
construído esse projeto nacional, e quais seriam os desafios para modificá-lo. É uma busca
por uma explicação local da realidade periférica.
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1.3 A III Internacional e sua Stalinização – América Latina
A III Internacional surge como corolário da Revolução Russa de 1917. Criada em 1919 e
dissolvida em 1943, apresentava uma forte crítica e rechaço às concepções da II Internacional.
Em suas "21 condições para a admissão", insistia-se em uma "completa ruptura com o
reformismo e as políticas centristas", e com os dirigentes que com elas se identificavam. Os
Partidos Comunistas eram definidos, nesse documento, como uma "compacta organização da
elite da classe operária", a qual havia reunido em suas fileiras "os defensores mais corajosos,
lúcidos e avançados da classe operária". Com o colapso da II Internacional na primeira guerra
mundial, Lênin desenha, em 1915, a base programática de um novo tipo de partido, em escala
internacional, e que seguiria o exemplo bolchevique. Com o triunfo da Revolução Russa em
1917, se estabelecem as bases para a propagação desse modelo e a criação da III Internacional
Comunistas (C.f. Johnstone, 1985: 13-41). A III Internacional nasce com uma forte carga
ideológica, atribuindo-se explicitamente a função de preservar o patrimônio do marxismo
contra a degeneração e a corrupção à qual este foi submetido na época da II Internacional. Por
isso, a luta ideológica se define como fundamental na luta de classes. O forte peso dado à
estratégia acabou empobrecendo a teoria, e a genialidade e profundidade da estratégia de
Lênin, e o êxito alcançado pelos bolcheviques em 1917, atuaram como freio para
subseqüentes desenvolvimentos teóricos (C.f. Hobsbawm apud. Agosti; 1985: 139)31.
A partir de 1930, as idéias gestadas nos primeiros 30 anos do século XX na América
Latina começam a tomar diferentes rumos. A morte de José Carlos Mariátegui marca, no Peru,
31 Agosti pensa que a teoria na III Internacional cumpre o papel, por um lado, de legitimar racionalmente a perspectiva da inexorabilidade da revolução e, por outro lado, é um elemento determinante para distinguir entre o movimento revolucionário e todos os seus adversários. Dessa relação dupla e contraditória com a teoria, três fases podem ser identificadas: "a) a primeira estaria situada entre a criação da III Internacional e a morte de Lênin, que se caracteriza por um peso importante do debate teórico e uma vinculação com o marxismo originário de Marx e Engels; b) numa segunda fase compreendida entre 1924 e 1929 se sistematiza de maneira dogmática o chamado 'leninismo' denominado como o 'marxismo da época do imperialismo e da revolução proletária'. A figura teórica perde distância; c) a terceira vai de 1929 até sua dissolução, e nela se plasmam as bases forjadas na fase anterior, mas com um endurecimento dogmático ainda maior. Desaparece quase por completo um desenvolvimento crítico dentro do marxismo, e o que consegue sobreviver nasce fora da ideologia da III Internacional (dentre eles, citamos a Escola de Frankfurt, as reflexões solitárias de Karl Korsch, as elaborações de Trotski no exílio). É um período que freqüentemente se denominou stalinista, onde a teoria não é uma guia para a ação, e sim uma justificação posterior da própria ação" (1985: 140-145).
46
uma forte divisão nos setores da esquerda e a fundação do Partido Comunista32, o qual retoma
as ideias de Mariátegui de uma maneira tal que permitia a legitimação das diretrizes da III
Internacional na América Latina. Esse foi o primeiro passo de um processo de "desativação"
do pensamento crítico iniciado por Mariátegui, e que se viu refletido no marxismo oficial que
se desenvolveu na segunda metade do século XX.
Depois da morte de Mariátegui, se inicia um processo de degradação do pensamento
marxista latino-americano, o qual durará várias décadas. Em 193633, o processo de
stalinização dos partidos comunistas, que se desenvolve de diferentes maneiras e de formas
contraditórias a partir do final da década de 1920, nesse ano já estava completo e cristalizado.
Com a ideia de "stanilização", o que se quer designar é a criação de partidos enquanto
aparatos dirigentes – hierárquicos, burocráticos e autoritários – intimamente relacionados com
a liderança da União Soviética, seguindo fielmente os passos de sua orientação internacional
(C.f. Löwy, 2006a: 27).
A imposição de um regime policial de grande ferocidade que levou à consolidação de um
estado burocrático sobre a classe operária na URSS levaria a uma separação irreconciliável
entre teoria e prática dentro do partido bolchevique. Seus movimentos de base foram varridos,
extinguindo a autonomia e a espontaneidade dos mesmos. O marxismo foi reduzido a uma
32 Mariátegui se opôs à criação do Partido Comunista durante todos os seus anos de militância na esquerda peruana, e por isso propõe a criação do Partido Socialista, que, após sua morte, é transformado em Partido Comunista. Para Mariátegui, a criação do Partido segundo as diretrizes da III Internacional significava uma cisão nos movimentos de esquerda em Peru, o que não ajudaria em nada a construir uma luta conjunta. Ao mesmo tempo, rechaça a proposta de Haya de la Torre de ser parte da fundação do APRA.
33 Com a Primeira Conferência Comunista Latino-Americana de 1929 (à qual Mariátegui não consegue assistir), se inicia o chamado "Terceiro Período do Comintern". Enquanto certos partidos latino-americanos seguiram as orientações ortodoxas do Terceiro Período, outros receberam rumos esquerdistas para suas próprias inclinações autônomas. Esse foi o caso de El Salvador, com Agustín Farabundo Martí como líder, que, em 1932, organizou a primeira – e única – insurreição em massa na história da América Latina a ser liderada por um Partido Comunista. Diante do encarceramento dos principais líderes do movimento, realiza-se uma insurreição camponesa (indígena) de "soldados vermelhos" que, segundo documentos da própria insurreição, chegavam a 40 mil combatentes. Por carecer de uma coordenação político-militar centralizada, as insurreições locais foram asfixiadas naquilo que se convencionou chamar, na história salvadorenha, de "La Matanza". Durante semanas o exército fuzilou, assassinou, destruiu povoados inteiros, executando cerca de 20 mil homens, mulheres e crianças nas regiões vermelhas. Depois dessas jornadas, os líderes Farabundo Martí, Luna e Zapata foram executados. Segundo Miguel Mármol, único líder sobrevivente do massacre, as decisões dessa insurreição foram tomadas pelo Partido Comunista Salvadorenho, sem nenhuma intervenção da III Internacional. As críticas por parte dos Partidos Comunistas latino-americanos do evento de 1932 ratificam a nova orientação que os Partidos receberiam a partir da Primeira Conferência de 1929 (Cf. Löwy, 2006a: 22-23).
47
simples lembrança, e o materialismo histórico se converteu, em menos de uma década, em um
corpo teórico estancado e semi-analfabeto.
Nos anos de consolidação do processo de "stalinização", mais precisamente em 1935,
sucede um fato significativo não apenas par a esquerda brasileira (já que a revolta foi
realizada no Brasil), mas também para a esquerda latino-americana. Segundo Caballero
(1988: 163), este fato foi relevante muito mais devido a suas várias significações do que pelos
fatos em si. Trata-se da "intentona comunista", como foi conhecido o levantamento de
novembro de 1935. Sua base foi um levante de guarnições militares que logo vieram a ser
apoiadas pelo Partido Comunista Brasileiro. A rebelião foi rápida e facilmente derrotada pelo
governo de Getúlio Vargas, o qual, após esse episódio, teve as razões legítimas para perseguir
e reprimir socialistas e comunistas, tivessem ou não participado do processo.
Esse "pronunciamento", como denomina Caballero, foi importante na história do
Comintern na América Latina34, mas sua importância não termina aí. Está dada, também,
desde o ponto de vista da "tática e do programa da Internacional como um todo", sem falar
dos recursos comprometidos por ela na aventura de 1935. Esse evento marca o advento de
uma atitude política que, nos períodos seguintes, caracterizará os comunistas latino-
americanos: "preferirão sistematicamente uma aliança com uma forte personalidade, antes de
um partido político organizado que pudesse propor ou, pior ainda, impor táticas
independentes a uma liderança diferente e permanente sobre a aliança (ou 'frente')"
(Caballero, 1988: 163).
A revolução de Prestes e o Partido Comunista pareciam contradizer praticamente todas e
cada uma das novas proposições políticas feitas pelo Comintern. A Frente Popular baseava
34 Desde o princípio da história do Comintern, criado em 1919, assistiu-se mudanças sucessivas de táticas, mudanças de política, como apenas "períodos" no desenvolvimento da um mesmo processo e de uma simples tendência geral que conduzia ao triunfo da revolução proletária mundial. Essa divisão de períodos não respondia claramente a uma significação teórica, mas uma significação política. Assim, depois de um período de guerras e revoluções que termina em 1921, o capitalismo entra em um período de "estabilização", o qual não podia durar muito, já que o sistema capitalista, mais cedo ou mais tarde, fecharia seu "terceiro período". Seria esse terceiro período o último do capitalismo? Seria ele encerrado com o triunfo da revolução mundial? Uma resposta afirmativa estava implícita na idéia de um "terceiro período" que seguisse ao de "estabilização". Não obstante, o "segundo período" se revelou mais longo do que as predições da posição oficial. É por isso que a chegada do "terceiro período" serviu de fronteira para dividir o Comintern em esquerda e direita (Cf. Caballero, 1988: 38).
48
sua tática na idéia de ampliar as alianças dos partidos comunistas, primeiramente com os
partidos da classe trabalhadora, em seguida com as classes médias e, ao fim, inclusive com o
setor antifascista da burguesia. Mas, no Brasil, a Aliança Nacional Libertadora (ANL) deu a
impressão de seguir o curso diametralmente oposto. Ou seja: ela desfez o caminho desde uma
audiência (para não falar de influência) relativamente ampla, desde um controle estrito do
Partido sobre a supracitada Aliança, até o momento em que a Aliança funciona como disfarce
do partido. A Frente Popular fazia crer que os comunistas haviam passado do aventureirismo e
da impaciência revolucionária, a conspiração de pequenas seitas, até uma política de trabalho
paciente, longa, entre "as massas", usando meios legais ou, pelo menos, pacíficos. No Brasil,
o aventureirismo, a insurreição, o proselitismo entre os soldados e seus oficiais (o chamado
"tenentismo") foram, pelo contrário, os métodos escolhidos. A tática quando do "Sétimo
Congresso" pressupunha afrouxar os laços que, no Comintern, ligavam as seções nacionais
aos quartéis generais de Moscou. No Brasil, a Internacional deu a impressão de dirigir
abertamente a insurreição por meio de seus agentes, entre os quais figuravam vários
estrangeiros. E, não obstante, apresentava a Aliança como modelo a seguir pelos países
coloniais e semicoloniais (c.f. Idem: 164).
O período de revoluções que estourariam depois da guerra nunca chegou. Apesar da crise
de 1929, o que se produziu não foi o triunfo de uma ou de várias revoluções proletárias, mas
uma das piores contra-revoluções jamais vistas e, sem dúvida, a pior derrota que o movimento
socialista e de trabalhadores em seu conjunto (e a Internacional em particular) jamais
sofreram na Europa: o triunfo dos nazistas na Alemanha. Por fim, dez anos depois de
anunciada, veio a guerra, e a Internacional se viu obrigada a abrir um novo período: as Frentes
Populares, embora nunca se referissem a um "quarto período" (Idem).
A Frente Popular (sancionada no VII Congresso do Comintern em 1935) significava a
"aliança antifacista dos partidos comunistas, socialistas e democrático-burgueses". Depois de
seu advento, cada Partido Comunista latino-americano tentou criar alianças locais para a
conformação de uma frente popular local. Na maioria dos países, diante da "ausência de
partidos social-democratas", as alianças foram feitas diretamente com as "forças burguesas
consideradas liberais ou nacionalistas" (Löwy, 2006a: 28).
49
No dia 20 de maio do mesmo ano, a Internacional anunciou que, em outubro de 1934, se
havia realizado a "terceira" Conferência dos Partidos Comunistas da América do Sul em
Montevidéu, sendo essa a única referência sobre essa conferência. Há, não obstante, alguns
detalhes que merecem ser destacados dessa conferência em relação a suas conclusões: por um
lado, tomou-se o imperialismo como alvo principal, insistindo em que "a luta de liberação
nacional contra o imperialismo colocou em primeiro plano a aguda necessidade de organizar a
revolução nacional arrastando sistematicamente as mais amplas massas nacionais à luta contra
o imperialismo e seus agentes locais, formando assim a mais ampla frente anti-imperialista".
Seria abandonado o rude sectarismo do "terceiro período" para passar à Frente Popular.
Esse giro tático na América Latina não era tão evidente como na Europa, onde o triunfo
nazista impunha uma nova tática. Mas essa explicação não podia ser realizada sem uma
autocrítica, o que significa mostrar que a afirmação do "terceiro período" havia sido suicida.
A maneira como a Internacional "descobre a América" é um processo interessante de
conhecer, porque logo se tornará um eixo importante no debate sobre como tomar o poder,
pergunta que se impôs sobre a pergunta anterior, de por que tomá-lo.
Foi no Segundo Congresso da Internacional (1920) que a "Questão Colonial" se
transformou na "questão do oriente", como se chamará nos próximos oito anos, até o Sexto
Congresso Mundial. Um informe de Lênin sobre a "Questão Colonial" favorecia o apoio dos
movimentos nacional-burgueses apenas quando fossem verdadeiramente revolucionários,
quer dizer, quando não aceitassem somente a colaboração do Comintern, mas também a
propaganda e a agitação comunista. Esse foi um dos escassos momentos em que os interesses
nacionais russos e a luta dos povos coloniais coincidiram ao ponto de impor ao Comintern
uma política determinada.
O Sexto Congresso (1928) mostrou, com respeito à "Questão Colonial", duas grandes
tendências: a primeira era dar uma virada na tática que predominava no congresso anterior no
que dizia respeito à aliança com a burguesia nacional; a segunda foi o que se denominou "o
50
descobrimento da América". De fato, tratava-se do descobrimento de uma nova potência
mundial: os Estados Unidos (C.f. Caballero, 1988: 43).
O "descobrimento da América"35 para o Comintern revela uma concepção dos processos
históricos mundiais e do papel da Internacional neles. Em outras palavras, segundo Caballero,
"o socialismo tinha que seguir os passos do capitalismo quatro séculos antes e, assim, partindo
da Europa, tinha que desembarcar primeiro na Ásia e depois na América". Ao mesmo tempo,
descobria os Estados Unidos como uma potência mundial, a qual podia ser reconhecida
porque era uma sociedade capitalista industrial. Já na América Latina, desembarcavam em
território desconhecido. Não obstante esse desconhecimento, o Comintern propunha a seus
habitantes "que iniciassem um processo revolucionário antes de saber com que tipo de
sociedade estavam tratando e, portanto, de que tipo de revolução precisavam" (Idem: 107).
No Peru, o Partido Comunista foi rechaçado pela APRA, e assim se une à Frente Democrática que
apoiava a candidatura de Manuel Prado, um representante da oligarquia liberal tradicional. Na
Colômbia, o Partido Comunista apoiou o Partido Liberal; no México, rompeu com o General Mújica,
líder da ala esquerda do Partido da Revolução Mexicana36, para apoiar, em 1939, a ala moderada,
representada por Ávila Camacho. Em Cuba, o Partido Comunista não conseguiu encontrar aliados
social-democratas, liberais ou democratas, e finalmente apoiou Fulgencio Batista em Janeiro de 1939,
unicamente pelo fato de que mantinha uma colaboração eficaz entre Cuba e os Estados Unidos contra
a ameaça fascista.
O único país onde foi possível construir uma frente popular com certas similitudes ao modelo
europeu foi o Chile, o qual, diferentemente dos outros países, conseguiu uma aliança entre o Partido
Comunista e o Partido Socialista, sob a hegemonia do Partido Radical37. Para o Partido comunista
35 Caballero assinala que, ao Comintern, interessava menos o "descobrimento" que a "conquista" da América (C.f. Caballero, 1988: 120).
36 Adolfo Gilly, em seu livro "A revolução interrompida", descreve a situação vivida por Mújica nesse período, e sua renúncia à candidatura à presidência como possível sucessor de Cárdenas. Numa carta aberta de Mújica, datada de 14 de julho de 1939, onde fazia pública as razões da renúncia, marca o significado dessas alianças no Partido Comunista mexicano: "Vimos como os dirigentes dos setores de esquerda tentaram atrair-se aos setores de centro e de direita, prometendo transformações em muitos aspectos básicos da vida econômica e social da região, e estamos presenciando como os controladores das centrais de trabalhadores e camponeses, formadas por massas revolucionárias, se aliaram aos políticos profissionais e aos poderes públicos dos Estados que, em muitas ocasiões, não representam uma linha de ação progressista e, em nenhum caso, garantia eleitoral e respeito à função cidadã." (Gilly, 1974: 389).
37 O Partido Radical liderado por Aguirre Acerda ganhou as eleições presidenciais em 1938.
51
Chileno, o objetivo da Frente Popular era levar a cabo a etapa nacional-democrática através do
"desenvolvimento progressivo do capitalismo chileno". A Frente Popular Chilena perdurou nesses
anos sob diversas formas, até que, em 1947, foi substituída por uma aliança entre os radicais e uma ala
do Partido Socialista, que durou até 1952 (C.f. Löwy, 2006a: 29).
Segundo John Reese Stevenson, "a vitória da Frente Popular impediu uma revolução, e
ensinou as massas a usar o voto ao invés da espada" (Reese Stevenson apud. Löwy, 2006a:
30). Para o socialista chileno Oscar Waiss, a Frente Popular foi "um erro político gigantesco"
que reabilitou o Partido Radical já em decadência e "roubou a iniciativa revolucionária das
massas". A Frente Popular foi um ato de "mistificação social", que nunca se propôs nem
tentou mudar a estrutura da "propriedade da terra ou recuperar a posse da riqueza fundamental
do país" (Löwy, 2006a: 30).
1.4 Mariátegui e a III Internacional
Mariátegui, ao surgir como um dos primeiros pensadores que vê a necessidade de pensar a
periferia desde uma chave marxista, fazendo uso de categorias como realidades nacionais, sua
caracterização do imperialismo acaba impondo-se à versão oficial da III Internacional. Para
ela, todos os países eram realidades semi-coloniais, e ao mesmo tempo o imperialismo
mantinha formas pré-capitalistas de produção, junto com aquelas incorporadas pelo
capitalismo monopolizado, dentro da América Latina.
Mariátegui pensava que, no Peru, sob a "economia feudal nascida na conquista, subsistem
ainda no interior resíduos de uma economia comunista indígena e, na costa, cresce uma
economia burguesa" (Mariátegui, 1994a: 13-14). Dessa maneira, consegue mostrar como,
apesar de suas diferenças profundas, os três modos vigentes de produção concorrem com a
configuração de uma mesma e "unitária estrutura econômico-social" (Quijano, 2007: LXXX),
sobre a base de sua articulação recíproca sob a lógica hegemônica do capital. Essa concepção
contrasta com a visão dualista de Haya, e adotada mais tarde pelos seguidores da própria III
Internacional e pelos ideológicos do modernismo desenvolvimentista. Ao mesmo tempo,
nessa ideia de Mariátegui estava e está implicada uma "oposição fundamental à ideia de uma
52
sequência", derivada de um raciocínio lógico abstrato, e de modo algum dialético-marxista,
entre uma etapa revolucionária antifeudal prévia a uma anticapitalista, como a experiência
europeia sugeria (Idem). Por isso, para Mariátegui, a realidade era muito mais complexa, e
não bastava chamá-la simplesmente de "feudal", já que, ao mesmo tempo que desde a época
do guano38 se havia iniciado um lento e irreversível processo de desenvolvimento do
capitalismo, junto com o qual conviviam formas "feudais", sobretudo na fazenda andina
tradicional39. Tanto para Hugo Pesce40 quanto para Mariátegui o "capitalismo não era uma
sinônimo necessário de progresso"; ao contrário, à medida que se desenvolvia, derivava em
"dependência, subordinação, atraso, destruição das peculiaridades nacionais" (Flores Galindo,
1989: 43).
O paradoxo do socialismo latino-americano era que, atuando em uma realidade diferente
38 O período do guano e do salitre é caracterizado nos 7 ensaios como um momento em que "a Espanha nos queria e nos guardava como países produtores de metais preciosos. A Inglaterra nos preferiu como países produtores de guano e salitre. Mas essa gesto diferente não acusava, obviamente, um objetivo diferente. O que mudava não era o objetivo, era a época. O ouro do Peru perdia seu poder de atração em uma época em que, na América, a vara do pioneer descobria o ouro na Califórnia. Já o guano e o salitre – que, para as civilizações anteriores tinha carecido de valor, mas que, para uma civilização industrial adquiriam um preço extraordinário – constituíam uma reserva quase exclusivamente nossa. O industrialismo europeu ou ocidental – fenômeno em pleno desenvolvimento – necessitava abastecer-se desses materiais no longínquo litoral sul do Pacífico (...) Enquanto que, para extrair das entranhas dos Andes o ouro, a prata, o cobre, o carvão, era preciso vencer ásperas montanhas e enormes distâncias, o salitre e o guano jaziam na costa quase ao alcance dos barcos que vinham buscá-los (...) Nos primeiros tempos da Independências, a luta de frações e chefes militares aparece como uma conseqüência da falta de uma burguesia orgânica. No Peru, a revolução encontrava menos definidos, e mais atrasados que em outros países hispano-americanos, os elementos de uma ordem liberal burguesa. Para que essa ordem funcionasse mais ou menos embrionariamente, uma classe capitalista vitoriosa tinha que se constituir. Enquanto essa classe se organizava, o poder estava a mercê dos caudilhos militares. As concessões do Estado e os benefícios do guano e do salitre criaram um capitalismo e uma burguesia. Essa classe, que se pronto se organizou no 'civilismo', se mobilizou rapidamente para a conquista total do poder (...) No período dominado e caracterizado pelo comércio de guano e salitre, o processo da transformação de nossa economia, de feudal a burguesa, recebeu sua primeira propulsão enérgica" (Mariátegui, 1994a: 12). Essa exploração intensa começa a partir de 1840. Quijano (2007: XIV) assinala que, como resultado desse processo, "começaram a se constituir os primeiros núcleos importantes de burguesia comercial e latifundiária, principalmente no litoral."
39 Quijano assinala que, para Mariátegui, o que predomina no interior são resíduos "semi-feudais" e o "caciquismo" como forma de dominação política local dos latifundiários. O autor não explicita o motivo da designação "semi-feudal". Se diz que, por um lado, as expressões do feudalismo sobrevivente são o latifúndio e a servidão, por outro assinala que o método liberal, a liberdade individual, já são um passado para o Peru (ver nota 239). "O fim do feudalismo já faz parte da liquidação da ordem vigente, dominada pelo capital. O feudalismo existente no interior é feudalismo se considerado isolado no conjunto da estrutura econômica do país. Tomado dentro desse conjunto, ou seja, articulado ao capital e sob seu domínio, é 'semifeudal' (capitalista, diria Caio Prado Jr.). Assim, o problema do campesinato indígena e o problema agrário é a destruição do feudalismo, e isso não pode ser realizado, exceto dentro do processo global da revolução anticapitalismo. Por isso, sustentará mais tarde que a luta do proletariado no litoral é a mesma que a luta do campesinato contra o 'feudalismo' no interior" (2007: LXXXII).
40 Médico, de formação marxista, integrante do Partido Socialista Peruano
53
da européia, seus esforços para aplicar, em nosso ambiente, as orientações fundamentais do
marxismo canonizadas pela III Internacional apresentava efeitos contraditórios, sobre os quais
não se tinha consciência (C.f. Aricó, 1989: 424), porque não se tinha conhecimento da
realidade de que se tratava. Tais efeitos eram a grande degradação das massas populares, com
a tendência a setorizar as demandas e, portanto, fragmentar um campo comum de luta.
As idéias socialistas chegam à América Latina nas mãos dos imigrantes italianos, alemães
e espanhóis ao final do século XIX. É Juan B. Justo, vinculado à II Internacional, que realiza a
primeira tradução d'O Capital para o espanhol, o que não quer dizer que Justo é o primeiro
marxista latino-americano, já que possuía idéias "semiliberais, ecléticas" (C.f. Löwy, 2006a:
14). São os partidos comunistas, surgidos a partir de 1920, que realizam as primeiras
tentativas de pensar a realidade latino-americana em termos marxistas. A leitura desses
partidos está intrinsecamente vinculada às primeiras resoluções da então recém-fundada III
Internacional.
A II Internacional marca o período de ingresso do marxismo na América Latina. A mesma
foi criada em 1889 e se estende até 191441, começo da primeira guerra mundial. A influência
ideológica do marxismo sobre os movimentos sociais nesses momentos convive com a
influência do anarquismo e do sindicalismo. Com o primeiro, obteve uma menor convivência
devido à incorporação da análise marxista realizada pelo anarquismo, e até sua expulsão da
Internacional em 1896 era difícil distinguir entre uns e outros. Já com o sindicalismo
revolucionário, o marxismo ortodoxo guardou maiores diferenças teóricas. Esses sindicalistas 41 Hobsbawm assinala três fases em que se pode ver no desenvolvimento da II Internacional: “a) una primera
que va desde los años de 1889 y comienzo de 1890, que esta caracterizado por el nacimiento de una serie de partidos socialistas y operarios de orientación más o menos marxistas. Lo más importante en este período no estaba dado tanto por la fuerza organizativa, electoral y/o sindical de los movimientos socialistas y operarios y si por la irrupción de ellos en la escena política de sus respectivos países y en el plano internacional. El capitalismo estaba en crisis; b) la segunda va desde mediados de 1890, cuando se torno evidente la retomada de la expansión capitalista en escala mundial. La denominada 'crisis del marxismo' se debía no solo a la retomada del capitalismo con mayor vitalidad, sino también del aparecimiento de grupos con diversos intereses que se diferenciaba de aquello que hasta hacia poco tiempo parecía ser una fuente univoca del socialismo; c) la tercera fase se inaugura con la revolución rusa de 1905 y va hasta 1914. Es una fase caracterizada por la reanimación de las amplias acciones de masa, lo que significó una reactivación de la izquierda revolucionaria tanto en el interior de los movimientos marxistas como fuera de ellos” (Hobsbawn; 1982: 79-80) É interessante observar como esse ressurgimento da ação das massas colocado na terceira fase por Hobsbawm tem uma grande importância nos movimentos surgidos nesses anos na América Latina, influenciados pelos imigrantes anarquistas e socialistas que chegavam da Europa. O movimento socialista latino-americano será fortemente influenciado por esse processo, sobre o qual, 15 anos mais tarde, Mariátegui realizará uma crítica importante, sobretudo atacando o revisionismo da II Internacional.
54
rechaçavam a concepção de organização e de Estado, assim como o sistema de análise
histórico. Na verdade, o rechaço dos sindicalismos ao marxismo ortodoxo estava baseado
numa crítica à incorporação de um certo "evolucionismo" e de uma certa "incrustação
positivista e naturalista" que a social-democracia estava realizando, prejudicando o marxismo
(C.f. Hobsbawn, 1982: 82-83).
Esse desenvolvimento da II Internacional permite ver como alguns traços marcados por
esse período foram recebidos e incorporados na América Latina de maneira totalmente
esquemática. A dificuldade de aplicá-los em sua totalidade estava dada pelo desenvolvimento
diferenciado apresentado pelos movimentos de massa que produziam fortes tensões no
momento de se organizarem. Isso marca um ponto de ruptura importantíssimo com o
movimento socialista da época. Mas, ao mesmo tempo, tanto o anarquismo quanto o
sindicalismo (que tinham muito mais força nesses momentos) não conseguiam incluir em seus
protestos nem os indígenas nem outros movimentos, devido à inexperiência com realidades
como as que se apresentavam nesses casos. Apenas na década de 1920 é que essa
particularidade, e com ela a particularidade dos movimentos latino-americanos, começa a ser
pensada.
Mariátegui, com sua adesão ao movimento internacional comunista e à revolução de
outubro, é o primeiro a colocar as diferenças político-teóricas que existiam em um movimento
socialista latino-americano, colocando a necessidade de potencializar os elementos vigentes
em cada realidade nacional que permitiriam uma revolução de acordo com os processos
desenvolvidos nos países colonizados. Seu enfrentamento com o movimento nacionalista da
APRA não o faz deixar de pensar as realidades locais; para ele, porém, o sentido dessas
realidades era outro, por estarem enraizadas em movimentos de caráter universalista.
O nacionalismo não estaria definido pela defesa dos limites territoriais nem pela
consolação das instituições políticas independentes. Fundamentalmente, concebia a
nacionalidade como um projeto que tendia a integrar a memória histórica e satisfazer as
necessidades sociais de todos os habitantes do Peru. Mariátegui entendia que "a solução para
as injustiças e desigualdades", características do que, até agora, havia definido como
55
"nacionalidade peruana", podia ser alcançada mediante a ação conjunta de índios, estudantes,
trabalhadores, funcionários, artistas e intelectuais (C.f. Beigel, 2001: 49).
A caracterização por parte do marxismo de "colônia latino-americana" não dava resposta
aos problemas das realidades nacionais apontadas por Mariátegui e, ao mesmo tempo de uma
maneira muito original em um contexto latino-americano muito diferente do da Inglaterra ou
da Europa Central, ele "consegue assimilar não apenas o marxismo, como também alguns
aspectos do pensamento romântico contemporâneo: Nietzsche, Bergson, MIguel Unamuno,
Sorel, o surrealismo" (Löwy, 2005b: 10). Para Aricó, existem ao menos três características do
chamado "marxismo de Mariátegui", por um lado suas "vinculações ideológicas com a
APRA", minimizadas, negadas ou criticadas pelos seus próprios companheiros de luta
imediatamente depois da sua morte; por outro lado, "seu suposto 'populismo'", conforme
acusava a Internacional Comunista; e finalmente sua "filiação 'soreliana'", atribuída, pelos
mais benévolos, à "imaturidade e ao estado de gestação de suas concepções definitivas". Essas
características formam parte de um único problema que é, segundo esse autor, o "caráter
autônomo do marxismo" (Aricó, 1999: 151).
É a partir das leituras que a III Internacional mantinha sobre a América Latina que
Mariátegui marcará uma diferença profunda na maneira de entender a constituição da colônia,
e suas posteriores repúblicas. Pensava-se o marxismo como "um corpo cerrado de doutrina",
ou como uma "teoria com validade universal" e, para que funcionasse na América Latina, esta
deveria ser igual à Europa, "onde havia surgido esse corpo teórico" e "onde se davam as
conquistas da revolução soviética" (Flores Galindo, 1989: 44) 42.
Apesar da existência dos Partidos Comunistas na maior parte da América Latina, a
Internacional não tinha grande interesse em Mariátegui e em seu grupo, até o IV Congresso da
Internacional Comunista, em 1928, o qual, diante da suposta situação revolucionária como
conseqüência da dura crise do capitalismo mundial, decide reagrupar suas fileiras
42 As fórmulas para a resolução do problema do campesinato foram as mais variadas: "revolução camponesa sob a direção do proletariado, ditadura democrática do proletariado e dos camponeses, revolução proletária e camponesa, revolução do proletariado e das massas camponeses, revolução do proletariado que arrasta atrás de si as massas camponesas. A hegemonia do proletariado estava subentendida como elemento principal" (Mazzeo, 2008: 130).
56
promovendo a organização da I Conferência Comunista Latino-americana. Os primeiros
contatos de Mariátegui com a I Internacional tiveram lugar antes dessa conferência (Flores
Galindo, 1989: 32) 43. A essa conferência comparecem Julio Portocarrero (sindicalista
operário) e Hugo Pesce, ambos membros do recém-formado Partido Socialista Peruano. Os
textos apresentados nessa Conferência foram elaborados conjuntamente com Mariátegui e
eram os seguintes: "O problema das raças na América Latina" e "Ponto de vista anti-
imperialista"44. A leitura desses ensaios marcou várias diferenças frente às demais delegações
participantes no evento, por um lado pela falta de citações de Marx e Lênin e, por outro, pela
informação, dados, descrições que, para os peruanos, constituíam a tentativa de leitura
marxista sobre a realidade nacional (C.f. Flores Galindo, 1989: 40) 45.
Mas as posições apresentadas por Pesce e Portocarrero na I Conferência Latino-americana
em relação ao partido como órgão em que confluía o movimento socialista eram pouco
consistentes, e isso não devido a um "atraso na discussão", mas sim a que o partido fosse fruto
do próprio movimento de massas, sendo por isso impossível propor um modelo destinado a
ser executado e aplicado. Esse processo de análise, que marcava uma posição bem
diferenciada dentro do marxismo oficial, foi interrompido pelas discussões mantidas com a
43 Quijano (2007: XLVII) assinala que, em 1929, começa uma etapa crucial no desenvolvimento do pensamento revolucionário de Mariátegui, processo esse que é interrompido por sua morte. "Sua designação como membto do Conselho Geral da Liga contra o Imperialismo, organismo da III Internacional, no segundo congresso de Berlin, no início do ano, formaliza sua vinculação orgânica com a III Internacional. Por isso, seu grupo é convidado ao Congresso Constituinte da Confederação Sindical Latino-americana de Montevidéu, em maio, e à Primeira COnferência Comunista Latino-americana de Buenos Aires, em junho do mesmo ano".
44 Esses dois textos estão reproduzidos na obra "Ideologia e Política", de José Carlos Mariátegui.45 A direção da I Conferência estava a cargo de Vittorio Codovilla, reconhecido dirigente comunista ítalo-
argentino, que tinha a função de organizar o movimento comunista latino-americano. Em um momento do evento, "Pesce se aproximou de Codovilla para entregar-lhe um exemplar do livro '7 ensaios de interpretação da realidade peruana', cujo autor era José Carlos Mariátegui. Codovilla expressou seu incômodo com o texto, manifestando que era de pouco valor, e que um exemplo a ser seguido no Peru era Martinez de la Torre" (Idem: 41). Ricardo Martinez de la Torre foi co-fundadora do Partido Socialista Peruano. Em 1928 escreve três ensaios chamados "O Movimento Operário em 1919", publicado em nos números 17, 18 e 19 do Amautas, nos quais tentava apontar uma "interpretação marxista da história social". A leitura que Mariátegui realiza sobre essa reconstrução histórica de Martinez de la Torre, sobre as greves realizadas em 1919 pelo movimento de trabalhadores (fundamentalmente baseada no chamado "paro de las subsistencias"), que conquistou a jornada de 8 horas, é que, mesmo realizando o primeiro passo para contribuir no estudo sobre a "questão social no Peru" (Mariátegui, S/D: 3), é equivocada a avaliação de "confusão e desorientação" que o autor realiza sobre a mobilização, já que não considera o caráter "incipiente" do mesmo, sem abandonar o corte classista, marcando o primeiro evento de greves com essas características (Idem: 4). Essa campanha "contra a carestia é uma verdadeira expressão da possibilidade revolucionária do trabalhadora da cidade e do campo" (Idem: 5).
57
APRA (Flores Galindo, 1989: 48).
A Internacional exigia partidos monolíticos, de trabalhadores disciplinados, e os peruanos
pensavam partidos de massa, pelas razões expostas anteriormente, onde confluíam vários
sujeitos que conformavam essas massas.
Portocarrero e pesce, com esses documentos, colocavam como problema de fundo a
constituição da classe com identidade nacional. Porém, mais que isso, para esses
embaixadores peruanos o ponto fundamental era que o proletariado tinha uma história, uma
cultura que tinha a ver com um proletariado peruano (C.f. Flores Galindo, 1989: 44).
Paralelamente, Mariátegui, através da crítica levantada contra ele pela APRA, também se
enfrenta com a III Internacional, sustentando a inviabilidade histórica de uma burguesia com
sentido nacional e progressista: "Pretender que essa camada social desenvolva um sentimento
de nacionalismo revolucionário, parecido com o que, em condições distintas, representa um
fator da luta anti-imperialista nos países semicoloniais avassalados pelo imperialismo nas
últimas décadas na Ásia, seria um grave erro". Baseado na experiência mexicana, onde a
pequena burguesia acabou pactuando com o imperialismo ianque, o autor ressalta que o anti-
imperialismo não anula "o antagonismo de classe, não suprime sua diferença de interesses"
(Mariátegui, 1994b: 196).
A maneira como a III Internacional abortou esse processo, tentando uma uniformidade
impossível à luz das realidades nacionais e continentais, foi, primeiramente, buscando cooptar
os enviados à I Conferência, de modo a preparar um posterior enfrentamento com Mariátegui,
mentor da idéia de partido de massas com base indígena. Ao fracassar essa tentativa, decidem
eleger Eudocio Ravines para a organização do Partido (Flores Galindo, 1989: 52). A partir
desse momento, a disputa com Mariátegui se divide em duas frentes: por um lado, com a
Internacional, dada sua necessidade de plasmar no movimento a singularidade do Peru e, por
outro, com a APRA. Foi impossível para o Partido Comunista Peruano entender a contradição
que Mariátegui colocou sobre as "tarefas democrático-burguesas" e a incapacidade do "regime
burguês" de cumpri-las. Esse debate está colocado no documento de fundação do Partido
Socialista Peruano, no qual é definido com duplo caráter: "por um lado, suas bases sociais são
58
as massas camponesas e o campesinato; por outro, sua direção é proletária" (Quijano, 2007:
CI). O artigo 8 do documento de fundação do Partido Socialista, reforça a idéia de uma tarefa
"democrático-burguesa do socialismo", dizendo que, cumprida essa etapa, "a revolução se
torna, em seus objetivos e em sua doutrina, revolução proletária". Assim, o proletariado
realiza, nessa etapa, "as tarefas da organização e da defesa da ordem socialista" (Mariátegui,
1994b: 226).
Essas propostas de Mariátegui tornavam-no uma figura impertinente no modelo da III
Internacional, devido às influências que havia recebido, sua trajetória, sendo que, ao mesmo
tempo, tampouco era a figura nacionalista, impregnada por uma visão endógena do processo
peruano (tal como expresso pela APRA), quer permitira a manifestação daqueles grupos cujo
objetivo era apenas a construção de um Estado nacional. Era uma figura que conseguia
acolher esse amálgama existente entre o ser latino-americano e as consequências de ser,
também, um produto da colônia européia.
1.5 Caio Prado Jr. e o Partido Comunista Brasileiro
Com uma base na história e na elaboração teórica, Caio Prado cria a primeira visão
marxista brasileira que não estava amparada em esquemas prévios de interpretação,
enfrentando um "marxismo positivista", baseando suas análises em dados históricos que
explicam a constituição da colônia e da república. É um intelectual solitário nesse contexto do
PCB e do marxismo, suas idéias principais são geradas anteriormente à existência do que, na
década de 1950, foi chamado de "marxismo brasileiro", nascido próximo às universidades e
de alguns intelectuais de esquerda46.
Ao mesmo tempo, Caio Prado não estava tão só quanto parecia dentro da intelectualidade
de esquerda. Com a entrada do Brasil na II Guerra e a repressão do governo de Getúlio
Vargas, começa a reconstituir-se o PCB apenas a partir do ano 1943. Por um lado, é criado a
CNOP – Comissão Nacional de Organizações Políticas – e, por outro lado, em oposição a ela, 46 Para Iglésias, Caio Prado era um homem de “la alta burguesía que decide mezclarse con el pueblo en su
elección por una militancia comunista, su experiencia en el PCB tuvo importancia por su contacto con el pueblo y las perspectivas de actividades que le abrió” (Iglésias, 1982: 15)
59
se conformam os Comitês de Ação. Faziam parte da CNOP os dirigentes do PCB da época, e
os Comitês de Ação era integrados principalmente por intelectuais como Caio Prado, Mário
Schenberg, Victor Konder, Tito Batini e David Lerner. Os primeiros estavam orientados pela
união nacional em função da guerra contra o Eixo, que "exigia o apoio de Getúlio Vargas". Os
segundos, os Comitês de Ação, "era abertamente contra o fascismo e o 'Estado Novo'"
(Ricupero, 2000: 109). A Secretaria Geral do PCB, nas mãos de Luis Carlos Prestes, decide
apoiar a CNOP, com o que alguns militantes decidem sair do partido e entrar na Esquerda
Democrática (ED). Não é o caso de Caio Prado, que continua filiado ao PCB. Mas é
importante observar que, apesar disso, Caio Prado mostra um total desacordo com a leitura da
realidade mantida pelo partido e, além disso, com a direção do mesmo e a distância que
mantém frente às massas populares47.
Quando da criação da Revista Brasiliense48 em 1955, Caio Prado havia mostrado suas
dissidências com o PCB e, junto com o grupo que dirige a revista, em seu manifesto de
fundação, esclarece a vinculação da mesma com questões de "ordem política e de partido"49.
Esses intelectuais que haviam formado os Comitês de Ação, e logo formarão a Revista
Brasiliense, compartilhavam "mais que posições políticas, havia laços de amizade, um
47 Em 1945, em alguns escritos que não pretendia publicar, Caio Prado afirma: “não acredito em Prestes e na atual direção do Partido. Têm-se mostrado uma incapacidade sem par. Isto acrescido à suficiência que revelam, uma pretensão ilimitada de acerto infalível; mais o sectarismo que os caracteriza, são condições precárias para o futuro do partido (…) A minha interpretação dos acontecimentos e da posição atual do partido, é a seguinte. O comunismo no Brasil, representado de um lado por um largo, embora ainda confuso sentimento popular, e doutro por uma ideologia capaz de servir de base à renovação do Brasil, foi empolgado por um grupo de aventureiros que se valeram do prestígio de Prestes. Aventureiros (num) bom sentido da palabra, i.e., bem intencionado no fundo, sem propósitos pessoais na maioria; mas de curta visão e incapacidade política total. E formando um pequeno grupo hermético e inteiramente destacado da realidade, vivendo no mundo da lua. Caberia a Prestes, se fosse realmente um grande líder político, uma remodelação completa do comunismo brasileiro, confnado até há poucos meses atrás, a pequenos grupos dispersos, sectários e muito mais teóricos que prácticos; e fazer do comunismo uma verdadeira e grande força nacional. Preste fracassou nisto porque não está na altura da tarefa que o destino colocou em suas mãos. Suas grandes qualidades pessoais, não incluem as de um dirigente político de envergadura. Estabeleceu-se assim continuidade nefasta entre um pequeno grupo de semi-conspiradores do passado, e o atual partido de massas. O desastre foi completo" (Prado Jr., apud Ricupero, 2000: 201).
48 A Revista Brasiliense teve seu primeiro número em setembro-outubro de 1955. Foi publicada regularmente durante vários anos, debatendo os problemas políticos da hora, do país, abordando todos os temas e assuntos. Reuniu o melhor da intelectualidade nativa da época, de modo que sua coleção é um bom retrato desse momento. Era bimestral e teve como diretor Elias Chaves Neto, mas Caio Prado foi seu verdadeiro centro: está presente em quase todos os números. A revista publicou 51 números. O número 52 seria de março-abril de 1964, mas, estando pronto para a impressão, foi destruído pelos agentes da nova ordem. Foi sua última edição. (C.f. Iglésias, 1982: 19).
49 Revista Brasiliense, 1955: 21 apud Ricupero; 2000: 111.
60
determinado ethos que os unia" (Ricupero, 2000: 112).
Diante da leitura sobre a crise capitalista que viria na década de 1930 mencionada
anteriormente, a Internacional Comunista, no VI Congresso de 1928, decide rechaçar
qualquer união entre os Partidos Comunistas e os movimentos social-democratas. Com isso,
August Guralski é enviado da Rússia ao Brasil. Assim como Ravines no Peru, possuía pouco
conhecimento sobre a América Latina em geral. Tratava-se de “receber um marxismo leninismo
codificado desde fora e aplicar-lo ao continente” (Konder, 1988: 165).
As possibilidades criadas pelos movimentos socialistas latino-americanos durante toda a
década de 1920 foram quebradas com essa entrada violenta do stalinismo no debate. Não é
casual que o Amauta publica um artigo de Stalin só depois da morte de Mariátegui. Sua
resistência estava dirigida a evitar o erro de interpretação a priori sobre a ação do movimento
de massas. Depois dessa entrada, desse corte abrupto do que se havia gestado durante toda a
década de 1920, o marxismo "oficial" se fechará em seus próprios "fundamentalismos",
deixando de fora outras leituras existentes no momento sobre as realidades latino-americanas.
A distância guardada pelo Partido Comunista Brasileiro frente a outros acontecimentos
que sucediam na sociedade brasileira, tais como a Semana de Arte Moderna de 1922, fazia
com que esse tipo de fenômenos não mostrasse interesse pelo marxismo que estava sendo
difundido na época pelo partido. Só anos mais tarde é que travariam relação com o
movimento comunista50. Diferentemente do movimento peruano, que pôde manter durante a
década de 1920 (até a morte de Mariátegui em 1930) uma autonomia frente ao movimento
internacional comunista, o que permitiu sua proximidade com os movimento populares
vigentes, o PCB estava muito distante dessa leitura, com uma visão estática da realidade.
Apesar dessa distância, o PCB consegue crescer numericamente ao longo dos anos 1920.
50 Oswald de Andrade, no prefácio de Serafim Ponte Grande (1928) diz que a “bosta mental sudamericana da época, ao contrário do burgués não era o proletario, senão o bohemio, e se descreve da seguinte forma: Com pouco dineiro, e fora do eixou revolucionario do mundo, ignorando o Manifiesto Comunista e não querendo ser burgués, pase a ser naturalmente bohemio” (apud Konder; 1988: 157) Em 1928, Oswald de Andrade publica, na Revista Antropofagia, o "Manifesto Antropófago", onde realiza um apelo a pensar quem são os brasileiros, latino-americanos, que forma parte desse "aglomerado heterogêneo", produto da expansão capitalista, que precisava ser pensado em sua particularidade. “Queremos a Revolução Caraiba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem” (De Andrade: 1928).
61
Todos os debates apresentados por Caio Prado no interior do partido estavam atravessados
por leituras difundidas pela recém-criada III Internacional. Marx, Engels, Lênin e Stalin
começaram a ser apresentados nos anos 1930 como os quatro clássicos do marxismo, "sendo
Marx o mais teórico e abstrato e Stalin o mais didático, o mais atual, o mais influente". Assim,
o marxismo começa a ter uma combinação com o positivismo, potenciada pela entrada de
pensadores como Comte e Spencer na América Latina, e devido, também, ao rechaço de
Stalin à teoria, o que permitia, por um lado, "a adesão espontânea às fileiras dos PCs",
identificando um único inimigo, e, por outro lado, a concessão oportuna a "manobras políticas
oportunistas" (Gorender, 1980: 178-180).
62
2. José Carlos Mariátegui
2.1 Lutas sociais no começo do século XX
Peru, logo após a derrota frente ao Chile (1879), recai num regime caudilho militar, o que
produz em tais condições uma burguesia e camadas médias urbanas totalmente debilitadas,
pelo que são obrigadas não só a negociar com o regime militarista senhorial mas também a
sustentá-lo. A independência em 1821 não contou com o apoio “das massas populares e não
permitiu acertar as contas com o passado colonial” (Flores Galindo, 1976: 55), somado a isto,
em 1879 uma derrota militar, a ocupação do território e o colapso econômico.
Os núcleos da burguesia eram basicamente “mercantis e proprietário de terras” (Quijano,
2007: XIII). Três processos centrais conduzem, desde então até 1930, a história peruana: 1) a
implantação e consolidação do capital monopolista, sob controle imperialista, como
dominante de uma complexa combinação com as relações pré-capitalistas de produção, até
então dominantes; 2) a reconstituição, sobre essa base, dos intereses e dos movimentos de
classes, e de seus modos de relação com o Estado; 3) e o desenvolvimento e renovação do
debate ideológico-político, em sua primeira etapa somente dentro das clases dominantes, e
depois de 1919, entre elas e as clases exploradas e médias (Cfr. Idem: XV).
A população que habitava o Peru era uma mescla entre o índio originário destas terras, o
escravo trazido para sustentar a exploração dos recursos e os colonos europeus que chegaram
para ser donos das terras, mas ao mesmo tempo cumpriram um papel na conformação da mão
de obra, se constituiu uma mistura complexa e particular de população51.
Diferente desse processo colonizador, e prévio ao mesmo, a economia indígena “se forma
sozinha, espontaneamente determina suas instituições”, a economia colonial, no entanto, se
estabelece “sobre bases artificiais, estrangeiras, subordinada ao interesse do colonizador”. Seu
desenvolvimento depende da aptidão do colonizador para adaptar-se às condições ambientais
ou para transformá-las (Mariátegui, 2004a: 26).
Com a exploração e a perseguição da população indígena, o colonizador foi perdendo o
“capital humano”, com o qual recorreram ao sistema de importação de escravos, e com eles 51 […] “mesmo, até que se adotasse universalmente nos trópicos americanos a mão-de-obra escrava de outras
raças, indígena do continente ou negros africanos importados, muitos colonos europeus tiveram de se sujeitar, embora a contragosto, àquela condição (…) É uma escravidão temporária que será substituída inteiramente, em meados do séc XVII, pela definitiva de negros importados” (Prado Jr., 2000: 18).
63
nasce a “lei da escravidão que foi imposta também aos índios” (Mariátegui, 1994a: 26-27).
Com esse sistema de expropriação da terra e escravidão, o índio começa a formar parte das
grandes massas empobrecidas e perseguidas do território. O mesmo dirá Caio Prado ao
escrever que a ideia no era a de povoar a América, mas a extração de recursos naturais, pelo
que os habitantes dessas terras, assim como os que foram trazidos sob o regime de escravidão
não eram tratados como homens, mas como braços. Mariátegui disse que baseados na teoria
de Aristóteles sobre a escravidão natural, “sobre a qual os povos ‘civis modernos’ justificam
suas conquistas e domínio sobre os que eles chamam de raças inferiores”; propõem da mesma
maneira que Aristóteles que existem naturalmente homens que mandam e outros que servem,
os povos modernos, que se gratificam a si mesmos com o “epíteto de civilizados, dizem
existir povos que devem naturalmente dominar, e são eles, e outros povos que não menos
naturalmente devem obedecer e são aqueles que querem explorar”. E os europeus cumprem
“o sacrossanto dever de destruir aos africanos, como por exemplo no Congo, para ensiná-los a
ser civilizados”. Não falta logo que admire esta obra de “paz, de progresso, de civilidade”.
Estes “bons povos civis” pretendem fazer o bem aos povos a eles sujeitos, quando os
oprimem e ainda os destroem, por que desta maneira os querem “‘livres’ pela força”
(Mariátegui, 1994b: 168).
Entre os anos 1910-1920 começam a surgir camadas médias da população entre os
gamonales52 e os índios, os quais são alimentados no sul do país pelo desenvolvimento do
comércio. Uma referência para estes grupos foi a Universidade de San Antonio de Abad em
Cuzco, reorganizada por um reitor progressista de origem norte-americana, Albert Giesecke,
que inicia seus alunos no estudo da realidade social imediata. Em 1912, realiza um censo da
cidade. Surge um pensamento política que está preocupado pela condição do índio e
estabelece distância com a igreja católica53.
As massas indígenas nesses momentos também estão num processo de revoltas e 52 Segundo Flores Galindo, o termo “gamonal” é um peruanismo cunhado no curso do século XIX, buscando
estabelecer um símile entre planta parasitária e os proprietários de terra. Em outra versão “gamonal” é um verme que corrói a árvore da nação. Mas além dessas características depreciativo e críticas, “o termo designa a existência de um poder local: a privatização da política, a fragmentação do domínio e seu exercício na escala de um povo ou de uma província [...]. O Estado precisava do gamonal para poder controlar essas massas indígenas excluídas do voto e dos rituais da democracia liberal” (1986: 246-247).
53 Essa relação entre os intelectuais e os camponeses também se encontra potencializada pela criação na Universade de San Marcos da Associação Pró-Indígena, cujo fundador é Pedro Zulen. Os fins da mesma era apoiar as queixas e reivindicações dos indígenas, designar advogados para defendê-los gratuitamente, conformar comissões investigativas, se coloca a necessidade de elaborar um informe sobre a condição do índio em cada província e uma enquete nacional (Cfr. Flores Galindo, 1986:289).
64
manifestações, que se farão sentir em todo o país. Diferenciando-se dos protestos obreiros-
sindicais, os indígenas fazem um pedido que parecia incompreensível: “querem voltar atrás,
rechaçam toda a história que supertaram desde a conquista e intentam recurperar um
idealizado império incaico” (Flores Galindo, 1989: 57), com o qual fica demonstrada uma
imagem diferente do que se vinha pensando como país e como nação. 54 Assim, levantamentos
como o de Rumi Maqui55 em Azángaro (1915) no Puno, outros movimentos como Huancané y
Nazca (1917), são obsevados por Mariátegui em suas crônicas do “El Tiempo”. Uma que
escreve em abril desse anos se chama “Minuto Solemne” fala de um momento histórico no
Perú onde a vida nacional chega a uma importante etapa, se assiste a um “renascimento
peruano: temos arte incaica, música incaica e que para nada nos falte nos há sobrevivido uma
revolução incaica” (Mariátegui, 1994v: 2901). Este jovem jornalista se sente distante e
confrontado com a sociedade rígida, acartonada, inamovível que é o Peru nesses momentos.
Por isso se sente seduzido pelo progresso aclamado na Europa, em sua busca por alternativas
a este mundo que se apresente diante dele. É 1917, no fim deste ano ocorrerá a revolução
Russa e Mariátegui sorfrerá esse outro impacto da revolução e do socialismo. Essa
transformação que se vê na Europa, no Peru começa a vislumbrá-lo no Puno. Se abre uma
brecha, se rompe o tédio e a possibilidade de que o antigo seja novo coloca o debate da
revolução; até o momento o tradicional era sinônimo do colonial, e agora tem a possibilidade
de potencializar-se como o mundo pré-hispânico que era ignorado nas cidades. Através de
Rumi Maqui, Mariátegui começa a descobrir um lado oculto e ignorado do país, o mundo
54 Surge também nesses momentos Martín Chambi, fotógrafo que terá reconhecimento internacional por sua fotografia social e indígena. Chambi surge em Cuzco, se vincula com o grupo “Ressurgimiento” que foi difundido numa das edições de Amauta; do dito grupo surge a “Escuela Cuzqueña” que se encarregará de realizar um programa baseado na defesa dos índios frente aos proprietários de terra e a afirmação da cultura indígena. Este artista nasceu 3 anos antes que Mariátegui, em 1891, no altiplano punenho, sendo suas imagens um desnudamento da complexidade social dos Andes. Seria o primeiro fotógrafo peruano que consegue retratar a gente de sua raça indígena sem o olhar colonizado, que alcançou a maior projeção internacional e que deixou uma obra pessoal, “mágica, profunda e deslumbrante”. Durante muitos anos Chambi decidiu viajar os assentamentos incaicos no lombo de um cavalo nas altas terras sul-andinas (Cfr. Vargas Llosa e López Mondéjar; 2002). O grupo “Resurgimiento” nasce em 1927 em Cuzco, sendo seus fundadores: Luis Valcárcerl, J. Uriel García, Luis F. Paredes, Casiano Rado, Roberto La Torre, Francisco Choquehuanca Ayulo, Dora Mayer de Zulen, Manuel Quiroga, Julio C. Tello, Rebeca Carrión, Francisco Mostajo y José Sagobal.
55 Rumi Maqui é um general a quem se aculsa de ter organizado o levantamento de Puno e é levado a Arequipa onde se inicia um julgamento por “destronado restaurador do Império Inca. Foge e desaparece, não deixando rastros, até que meses depois, em maio de 1917, quando se informa que estaria residindo na Bolícia. Rumi Maqui será uma figura que rondará o imaginário coletivo das diferentes revoltas, mas não existem evidências de sua aparição. Se converteu num emblema para as rebeliões indígenas e hoje em dia a Federação dos Camponeses de Puna assume o nome do mesmo (Flores Galindo, 1986:262).
65
andino que não havia sido destruído pela colônia e ainda guardava potencialidades para o
presente. O que passou a importar depois dessa irrupção foi que a possibilidade de
transformação estava aberta, e não foi precisamente provocado pelo progresso das regiões
industrializadas, mas pela rebelião das regiões mais “atrasadas” do país.
Todas estas rebeliões se estenderam entre 1919 e 1923 nos Andes do Sul do Peru, de onde
chegaram ao número de 50 revoltas, cujos epicentros serão o Puno e Cuzco. Desde o começo
do século em livros, teses e artigos se argumentava o caráter comunista do império incaico,
sendo o livro de Luis Valcárse “Tempestad en los Andes” (1927) onde se formularão todas
estas “inquietudes, e ditas frases como ‘o proletariado indígena espera seu Lenin’ não são
retóricas enmarcadas nas rebeliões mencionadas anteriormente: os indios desceriam das
alturas, para criar um Peru novo, como disse Mariátegui (Flores Galindo, 1986: 286)56.
Mariátegui regressa da Europa quando estão acabando as rebeliões no sul, mas consegue
informar-se o suficiente do processo, por intermédio de vários intelectuais. Em 1923 – ano de
chegada de Mariátegui ao Peru – se organiza um congresso indígena onde se elabora um
programa cujas demandas fundamentais são: defesa da comunidade, abolição dos serviços
gratuitos, reivindicações de escola, garantias de associação e liberdade de cultos.
As diferentes intervenções de Mariátegui na forma em que deveriam se organizar as
massas peruanas que contemplasse tanto indígenas como o resto da população, se
diferenciavam enormemente da Haya de la Torre que pretendiam formar um “exército
vermelho” ao estilo russo, com um grupo seleto de “conspiradores”. Mariátegui apostava em
uma revolução como ato coletivo, como criação das massas, como tradução de seus impulsos
e valores. As concepções sobre o progresso o diferenciavam também do PARA, já que
diferentemente dos mesmos, que pensavam num desenvolvimento do capitalismo para
remover o rotineiro mundo dos camponeses, Mariátegui pensava num encontro entre
socialismo e comunidade indígena.
A partir da compreensão dessas massas indígenas, escravas, desagregadas é que precisava
ser repensada a ideia de sujeito na América Latina, como adquire especificidade e
particularidade na periferia.
56 É interessante o que assinala Flores Galindo que as sublevações dos anos 20 não ocorrem em qualquer época do ano, mas que na maioria começam em setembro e se prolongam até outubro e novembro, quando termina a estação da seca e iniciam as chuvas nos Andes. Setembro no calendário andino é o mês da regeneração: quando se ajorran dos povos os males e as pestes (Cfr. Flores Galindo, 1986: 286).
66
2.2 A Comuna Incaica
O problema do indígena havia sido tratado até o momento desde diversas visões: algumas
delas propunham uma solução de tipo jurídica, ou seja, o status de cidadania que permitisse
incorporá-lo socialmente, outras consideravam que era um problema moral-ético, houve quem
pensasse que dando-lhe um lugar na literatura nacional se conhecia o papel dessas
comunidades na cultura peruana e outros como um problema racial. É ampla e vasta a
“polêmica do indigenismo”57 no Peru, no período de Mariátegui, e seu “Intermezzo polêmico”
com Luis Alberto Sanchéz constituem uma das reflexões mais ricas acerca deste problema.
Acusando Mariátegui e o grupo indigenista por Luis Alberto Sanchéz de “‘falsa adesão ao
indígena’, de ‘propagandistas sectários’, de ‘desconhecimento da realidade dos mesmos’”
(Aquézolo Castro, 1976: 69), responde com sua ideia da confluência entre indigenismo e
socialismo, assim “o socialismo não seria nem peruano, nem socialismo se não se solidariza
com as reivindicações indígenas” (Mariátegui, 1994b: 249).
O termo indigenismo foi cunhado pela geração posterior aos primeiros modernistas latino-
americanos, sendo ela a que conferiu o significado com o qual foi aceito em todo o
continente. Se tratou de uma formulação local, peculiar, referida à problemática cultural da
região, dessa tendência “generalizada, regionalista, criolista, nativista, que se possessionou de
América Latina com posterioridade ao novocentismo modernista”, desenvolvendo-se nas
décadas dos 20 primeiros anos do século XX: propôs uma nova apreciação da realidade e do
funcionamento das sociedades do continente que estavam modernizando-se, através da óptica
da baixa classe média em Ascenso, que estabeleceram uma luta contra as consolidadas
estruturas de poder. Estabelecem-se três períodos indigenistas assinalados por José María
Arguedas, retomados e completados por Ángel Rama: 1) correspondente ao novecentismo,
marcados pela obra de José de la Riva Agüero e Víctor A. Belaúnde, onde se dá o
reconhecimento da antiga cultura inca devido às descobertas arqueológicas ocorridas nesse
momento (Machu Picchu, Paracas, Guamán Poma de Ayala, etc), mas isto não foi
acompanhado de uma revalorização da cultura índia pós-hispânica; 2) o segundo momento
57 Os artigos e cartas tanto de Mariátegui, como de Luis Alberto Sanchéz, Luis Valcarce, Enrique Lopez Albujar, Jose Angel Escalante, Ventura Garcia Calderon, Roberto Mac Lean Estenos, Darío Eguren Larrea, Manuel M. Gonzalez, Manuel Seoane, que formam parte desta polêmica, estão reproduzidas num livro organizado e dirigido por Manuel Aquézolo Castro chamado “La polémica del Indigenismo”, Lima-1976.
67
encabeçado por Mariátegui, é de onde “se impõe uma reivindicação social e econômica do
índio”. O problema deste período foi que o foco esteve posto no índio e colonizador,
fortalecendo uma visão dualista de costa/serra, deixando por fora novos setores como o
mestiço; por outro lado esta corrente carecia de um conhecimento sobre o produzido pela
cultura indígena, de modo que não pôde dar valor a sua arte, costume e crenças; 3) o terceiro
período é posterior a Mariátegui sendo seus principais narradores Ciro Alegría e José María
Arguedas58, conservando as demandas sociais, econômicas e políticas dos 7 ensaios,
intentaram refletir com um maior conhecimento da realidade peruana, tendo um traço
“‘culturalista’ e já não será o índio como exclusivo sujeito de seu pensamento” (Cfr. Rama,
1989: 14-15), pelo que o próprio nome indigenismo começará a ser questionado. É indubitável
que o conceito indigenismo59 queria alcançar uma coincidência com conceito de peruanidade.
Mariátegui, como representante dessa segunda corrente, assinala que o problema do índio
é econômico-social, e é graças a “chegada das ideias socialistas ao Peru” que os permitiu
colocar o problema desde um lugar de onde se questionava o capitalismo como a forma social
que origina esse problema que não é exclusivo do índio. Pelo que não seria com mais
“educação, cultura, progresso, amor, céu” que se resolveria o dito problema, mas que a
reivindicação era em primeira instância “o direito à terra”. O socialismo ajudava neste sentido
já que esse movimento reivindica às massas trabalhadoras exploradas, “as quatro quintas
partes delas no Peru estão formadas pelos indígenas” (Mariátegui, 1994a: 22-24), pelo que o
direito à terra se convertía no problema central para esas massas.
As comunidades indígenas eran básicamente agrárias, o povo incaico era um povo de
agricultores, eran uma “civilização agraria” (Idem, 1994a: 26). O incario60 tinha um sistema
de propriedade coletiva da terra, das águas, que estabelecia uma cooperação comum no
trabalho e na apropriação individual das colheitas e dos frutos. A destruição deste sistema com
58 Arguedas assinala que “as classes sociais têm também um fundamento cultural especialmente grave no Peru andino, quando lutam, e o fazem barbaramente, a luta não é só impulsionada pelo interesse econôico; outras forças espirituais profundas e violentas inflamam aos bandos, os agitam com implavável força, com incessante e ineludível violência”(Arguedas apud Flores Galindo, 1986: 21).
59 Para Beigel, “todas as manifestações do ‘indigienismo revolucionário’ colocam em questão a ideia que se tinha até o momento acerca da identidade nacional. A visualização da opressão do índio e da sinalização do Estado oligárquico como o principal responsável da convivência entre a “República” e a feudalidade, alimentava a preocupação por definir o “verdadeiramente peruano”. Mas o programa político e cultural que intentaria sintetizar estas aspirações vanguardistas estava todavia em formação e seguiria precipitadamente seu curso polêmico a medida que avançava a segunda metade da década de vinte. Com a fundação de Amauta, o debate se condensou e chegou a um ponto de inflexão” (Beigel, 2001: 49).
60 Período de onde se desenvolvia o sistema de comunidades territoriais implantadas pelo império Inca.
68
a conquista e a aniquilação da população indígena com as guerras e a exploração, servidão,
acabou com uma forma de produção e reprodução da vida social no Peru. Quando o
colonizador chegou, a “nação inca” era aproximadamente de “10 milhões e três séculos
depois eram de 1 milhão”; com o que se havia destruído um sistema econômico e social. “O
povo incario era um povo de camponeses, dedicado originariamente à agricultura e ao
pastoreio. As indústrias, as artes tinham um caráter doméstico e rural. No Peru dos incas era
mais certo que em povo algum o princípio de que a vida vem da terra (Mariátegui, 1994a: 26).
Segundo Mariátegui (1994a: 27), o colonizador espanhol “tinha uma ideia, um pouco
fantástica, do valor econômico dos tesouros da natureza, mas não tinha quase ideia alguma do
valor econômico do homem [...] A perseguição e escravização dos índios desfazia velozmente
um capital subestimado em grau inverossímil pelos colonizadores: o capital humano [...] Seu
interesse consistia por converter num povo mineiro ao que, sob os incas e desde suas mais
remotas origens, havia sido um povo fundamentalmente agrário. Deste fato nasceu a
necessidade de impor ao índio a dura lei da escravidão [...] O trabalho das minas e das cidades
devia fazer dele um escravo”.
O sistema colonial espanhol não se estabeleceu nas margens dos novos territórios, mas no
interior deles. Sua finalidade não era encontrar mercado para produtos metropolitanos, mas
extrair produtos que, dada a tecnologia da época, conduziam até uma utilização massiva da
força de trabalho. Estabelecem minas e junto delas, cidades e fazendas. Para controlar os
índios, os organizam em povos seguindo o padrão das comunidades castelhanas. Assim
podem estar vigiados, ser facilmente mobilizáveis para a missa e dispostos a escutar a prédica
religiosa. Os índios acabam sendo dominados (Cfr. Flores Galindo, 1986: 40).61
Após a implantação do sistema colonial, sua consolidação, os movimentos
independentistas tampouco significaram “como se sabe, um movimento indígena.
Promoveram-no e usufruíram os crioulos e ainda os espanhóis das colônias. Mas aproveitou o
apoio das massas indígenas. E, ademais, alguns índios ilustrados como Pumacahua, tiveram
61 Os espanhóis trazem para a América a noção de culpa, que segundo Flores Galindo, a introduzem nos vencidos como meios para dominar suas almas. “A imaginação europeia desse momento está povoada por demônios e gênios do mal... os índios como seres humanos não estão excluídos do pecado original, o pecado eram suas práticas qualificadas de idolátricas, seus costumes considerados aberrantes, sua vida sexual, sua organização familiar, seus ritos religiosos... multidão de faltas que explicava porque tiveram que se derrotados (Flores Galindo, 1986: 41).
69
em sua gestação parte importante” (Mariátegui, 1994a: 21). E o mais contraditório deste
processo, para o autor, é que a República o tocava elevar a condição do índio, e pelo contrário
acabou pauperizando, agravando sua depressão e exasperando sua miséria (Idem: 22). Em
uma população claramente agrária, o despojo da terra constituiu uma “dissolução material e
moral” (Idem). Por essas razões, todas as revoltas e “tempestades dos índios, haviam sido
afogadas em sangue” (Idem: 23);
Mariátegui coloca a questão da terra como central para o problema do índio, pensando que
a propriedade coletiva foi um sistema de “comunismo agrário”, sendo possível recuperar
alguns de seus elementos que nos permitam pensar num socialismo “Indoamericano”. Isto não
significa a mera reprodução do chamado “comunismo incaico” nas atuais condições, mas
implica pensar como esse “comunismo moderno” é re significado em função de um passado,
sem negar que este nasceria dessa tradição, dessa experiência; recuperando as lutas e as
diferentes formas sociais desenvolvidas antes da conquista. Para Mariátegui (1994a: 36), a
recuperação deste “comunismo agrário” tem que ver como que no processo de construção da
república “o conceito de propriedade individual quase teve uma função antisocial [...] por
causa de seu conflito com a subsistência da ‘comunidade’”. Assim durante o período
republicano “os escritores e legisladores nacionais mostraram uma tendência mais ou menos
uniforme de condenar a ‘comunidade’ como um resquício de uma sociedade primitiva ou
como uma sobrevivência da organização colonial” (Idem: 37). Assim retomando a Castro
Pozo, que considera que é o primeiro intelectual que recupera a discussão da “comunidade”
desde uma visão socialista e um estudo concreto dessa experiência (em “Nuestra Comunidad
Indígena”), observa que se poderiam distinguir quatro formas existentes nesse momento:
“Comunidades agrícolas; Comunidades agrícolas-pecuárias; Comunidades de Pasto e água:
Comunidades de usufruto” (Idem: 38). Tendo em conta que cada uma delas se encontra
presente nas outras três formas, mas o conjunto de fatores externos acabou impondo a cada
um destes grupos um determinado gênero de vida em seus costumes, usos e sistemas de
trabalho.
Um dado importante para Mariátegui (1994a: 39), em como se mantém vigente a forma de
comunidade em diferentes aldeias indígenas de onde se haviam extinguido os vínculos
patrimoniais e do trabalho comunitário, “subsistem ainda, robustos e tenazes, hábitos de
70
cooperação e solidariedade que são a expressão empírica de um espírito comunista. A
‘comunidade’ corresponde a este espírito. É seu órgão. Quando a expropriação e a repartição
parecem liquidar a ‘comunidade’, o socialismo indígena encontra sempre o meio de refazê-la,
mantê-la ou substituí-la. O trabalho e a propriedade em comum são substituídos pela
cooperação no trabalho individual”62.
Com a ideia de “comunismo incaico”, Mariátegui intenta construir uma ferramenta que o
permita “desmistificar” o capitalismo. Num plano menos evidente, numa dimensão menos
observada e compreendida, contrapõe uma civilização baseada numa “cultura própria, num
espírito coletivista, numa cosmovisão intersubjetiva” e num “mito vital”, a outra baseada
numa “cultura alheia, opressiva e sustentada por fetiches lúgubres”. Também põe ênfase no
modelo organizativo dos incas e na utilização da tecnologia que, diferentemente do
capitalismo, desenvolveu uma “técnica que se combinava com o processo de produção que
não prejudicava” nem os recursos humanos nem os recursos naturais. O chamado é ao
“ayllu”63 e não ao Estado incaico, servindo-o como padrão para pensar um socialismo “não
estatista”, não admitindo representações “que reduzem o socialismo à propriedade estatal dos
meios de produção” (Mazzeo, 2008: 78-96). Mariátegui não realiza um chamado “idealista”
quando apela ao “comunismo incaico”, pelo contrário, é uma necessidade concreta com a qual
intenta enfrentar a forma social imposta pelo capital, que se apresenta como única e
necessária.
O resgate da “comunidade indígena” (Mariátegui, 1994a: 39) não “repousa em princípios
abstratos de justiça nem em sentimentais considerações tradicionalistas, mas em razões
concretas e práticas de ordem econômico e social. A propriedade comunal não representa no
Peru uma economia primitiva”. Mariátegui reforça esta observação sobre a comunidade,
baseando-se novamente na investigação levada a cabo por Castro Pozo, como Chefe da Seção
de assuntos indígenas do Ministério de Fomento, na qual fundamenta que “a comunidade
62 Disse Castro Pozo “o costume caiu reduzido às mingas ou as reuniões de todo era ayllu pra fazer gratuitamente um trabalho de cerco, acéquia ou casa de algum comunero, ou qualquer fazer o efetuam ao som de harpas e violinos, consumindo algumas arrobas de aguardentes de cana, pacotes de cigarros e mascadas de coca” (apud Mariátegui, 1994a: 39).
63 “Sistema de que reunia um conjunto de famílias aparentadas, com propriedade coletiva da terra ainda que divididas em lotes individuais, como propriedade coletiva das águas e dos bosques pertencentes a marca ou tribo, ou seja, a federação de ayllus, cooperação comum no trabalho, apropriação individual das colheitas e dos frutos” (Mariátegui, 1994a: 26).
71
indígena conserva dos grandes princípios econômico-sociais que até o presente nem a ciência
sociológica nem o empirismo dos grandes industriais puderam resolver satisfatoriamente: o
contrato múltiplo de trabalho e a realização deste com menor desgaste fisiológico e num
ambiente de agradabilidade, emulação e companheirismo” (Castro Pozo apud Mariátegui,
1994a: 40).
Num primeiro momento de sua vida intelectual Mariátegui coincide com os questões
clássicas, de corte etnocêntricos sobre o problema do suposto “atraso rural”, sustentando
numa conferência sobre a revolução alemã, em 1923 que o “proletariado agrícola não tem
suficiente saturação socialista, a suficiente educação classista para servir de base ao regime
socialista”, e portanto o instrumento da revolução socialista “será sempre o proletariado
industrial, o proletariado das cidades” (Mariátegui, 1994j: 871).Poucos anos mais tarde
Mariátegui realiza uma ruptura com este pensamento, deixando de conceber o socialismo com
etapa superior do liberalismo e a emancipação passará a ser concebida como uma obra das
“classes subalternas” (Mazzeo, 2008: 141), de onde estará presente o proletariado mas
sobretudo o campesinato-indígena. Isto se verá claramente refletido nos “siete ensayos de
interpretación de la realidad peruana” (1928), de onde se pode observar o movimento no qual
tenciona compreender as lutas indígenas que haviam desenrolado na década de 1910 e 1920
no Peru, como também a Revolução Mexicana64 e a própria Revolução Russa, como base para
a revolução latino-americana.
A ideia de “esperança utópica” e o marxismo como “o herdeiro e executor testamentários
de vários séculos de lutas e de vários sonhos de emancipação” (Löwy, 2005a: 57; T.N), que,
como assinalava Löwy, assim como Benjamin, se aplica plenamente ao pensamento
revolucionário de Mariátegui. Enfrentando o tradicionalismo conservador da oligarquia, o
romantismo retrógrado das elites e a nostalgia do período colonial, ele apenas a uma tradição
mais antiga e mais profunda: “o das civilizações indígenas pré-colombianas” (Löwy, 2005b:
64 Um evento que marcará o pensamento de Mariátegui – que já mencionamos – será a revolução mexicana, a primeira revolução agrária do século XX, o mostram o amauta como “os camponeses e os trabalhadores pobres do campo, partindo da guerra camponesa, chegaram a estabelecer uma aliança com o resto das classes subalternas. Esta revolução também mostrou como aqueles trabalhadores, inclusive aqueles que estavam sob influência de ideologias de esquerda ou progressistas, podiam julgar os papéis antipopulares e reacionários” (Mazzeo, 2008: 141).
72
18; T.N). Assim para Mariátegui “o passado inca entrou em nossa história, reivindicado não
pelos tradicionalistas, mas pelos revolucionários. Nisto consiste a derrota do colonialismo,
ainda sobrevivente, em parte, como Estado social – feudalidade, gamonalismo –, mas
derrotado para sempre como espírito. A revolução reivindicou nossa mais antiga tradição”
(Mariátegui, 1994c: 326)65.
Esta ideia de Mariátegui é fundamental para entender a articulação que realiza com o
“comunismo incaico”, e isto se baseia na distinção que efetua entre o “comunismo agrário e
despótico das civilizações pré-colombianas” e o “comunismo de nossa época”, herdeiro das
conquistas materiais e espirituais da modernidade. “O comunismo moderno é uma coisa
distinta do comunismo incaico, porque um e outro comunismo são um produto de diferentes
experiências humanas, pertencem a diferentes épocas históricas, constituem a elaboração de
diferentes civilizações: a dos incas foi uma civilização agrária, a de Marx e Sorel é uma
civilização industrial”. É com base nessa ideia que Mariátegui, não resgata uma organização
em Estado puro, pelo contrário intenta complexificar a leitura do que significaria nesse
momento o comunismo no Peru, em meio a lutas indígenas e operarias, resgatando
necessariamente uma tradição, num tempo histórico diferente. Por fim, reforça, “é absurdo,
(...) confrontar as formas e as instituições de um e outro comunismo. O único que pode
confrontar-se é sua incorpórea semelhança essencial, dentro da diferença essencial e material
do tempo e espaço” (Mariategui, 1994a:36). Num pé de página dos “Siete ensayos”, falando
do “Comunismo Moderno”, e numa defesa de como seria o mesmo, respondendo as críticas
sobre esta tesis de Aguirre Morales em “El pueblo del sol”, Mariátegui desenvolve a ideia de
liberdade que estaria contida dentro desse comunismo, criticando a ideia de uma “liberdade
individual” necessária para outras culturas, observa que “o homem do Tawantisuyo não sentia
absolutamente nenhuma necessidade de liberdade individual. Assim como não sentia
65 Na senda que apresenta Löwy, é possível pensar que Mariátegui com este apelo ao passado incaico realiza uma crítica a uma visão unlinear da história. Desta maneira se aproxima da leitura que Walter Benjamin realiza em suas “Teses sobre o conceito da história” sobre a revolução, concebendo-a não como resultado “natural” ou “inevitável” do progresso económico e técnico, mas sim como uma interrupção de uma evolução histórica que leva à catástrofe (apud Löwy, 2005a: 103). Diz Löwy, analizando a tese XI de Benjamin que “essa concepção evolucionista/positivista da história ‘só que se aperceber dos progresos da dominação da natureza, mas não dos retrocesos da sociedade’ […] Ao contrario de tantos outros marxistas, Benjamin percebeu claramente o aspecto moderno, técnicamente ‘avançado’ do nazismo, asociando os maiores ‘progressos’ tecnológicos – principalmente no dominio militar – aos mais terríveis retrocessos sociais” (Idem). Horkheimer influenciado pela leitura das “Teses sobre o conceito da história” de Benjamin, formulará que toda forma de transformação radical da sociedade não pode ser pensada como uma “aceleração do progresso”, mas como um “salto para fora do progresso” (Cfr. Horkheimer apud Löwy, 2005a: 99).
73
absolutamente, por exemplo, nenhuma necessidade de liberdade de imprensa [...]. Para que
poderia servi-lo, por conseguinte, ao índio esta liberdade inventada por nossa civilização?”
Para Mariátegui, a liberdade concebida pelo liberalismo não é um conceito universal, porque a
mesma “varia com as idades, os povos e os climas. Consubstanciar a ideia abstrata da
liberdade como as imagens concretas de uma liberdade com gorro frigio – filha do
protestantismo e do renascimento e da revolução francesa – é deixar-se tomar por uma ilusão
que depende talvez de um mero, ainda que desinteressado, astigmatismo filosófico da
burguesia e de sua democracia” (Mariátegui; 1994a:36). Mariátegui não é um pensador que de
deixa seduzir pelos preceitos contidos em qualquer revolução burguesa, e nas conquistas
ocidentais, o que dá sustento inovador a seu marxismo, e às próprias leituras do mundo andino
realizadas até o momento.
A recuperação das comunidades agrárias significava a atualização de outras formas sociais
que nos permitiriam dar um salto ao “comunismo”, como proposta de outra organização
social oposta à colocada pelo capitalismo, que também estaria dado por uma crítica dessa
forma de modernidade que foi trazida para as colônias, como um sintoma de desagregação e
violência.
A proposta de Mariátegui é a construção de algo “novo” que ainda não estava sendo
pensado nos termos de unidade latinoamericana. Poderíamos dizer que esta ideia de pensar a
conjugação do arcaico e moderno66 é algo muito mais intuitivo que sistemático em
Mariátegui, o que não permitiu que fosse uma ideia consolidada em seu pensamento. Não
obstante são vários os chamados que realiza para esta concepção. Para Mariátegui (1994a: 13-
14) no Peru “coexistem elementos de três economias diferentes. Sob o regime de economia
feudal nascido da conquista subsistem na serra alguns resíduos vivos todavia da economia
comunista indígena. Na costa sobre um solo feudal, cresce uma economia burguesa que, pelo
menos em seu desenvolvimento mental, dá a impressão de uma economia retardada”. É
interessante uma observação que realiza Mazzeo (2008: 91) que Mariátegui usa a categoria
feudal com um rigor muito mais político que teórico. Com esta observação é possível realizar
66 Mazzeo mostra que para Mariátegui “arcaico e moderno” na América-latina “são o resultado do mesmo processo histórico, da ‘mesma dialética’. Consegue identificar a combinação específica destes elementos que caracterizam o desenvolvimento do capitalismo na América Latina e o modelo de acumulação periférico. Antecipa-se assim às visões unitárias sobre desenvolvimento e subdesenvolvimento” (2008: 90).
74
um leitura da obra do mesmo que nos permite entender o esforço contido na mesma para
explicar a associação perversa e constitutiva dos elementos de atraso e progresso próprios da
formação da periferia, em seus processos de acumulação primitiva permanente. Este tema é
desenvolvido mais adiante neste trabalho.
Nos “siete ensayos”, Mariátegui (1994a: 30) para explicar o destino da comunidade
indígena sob o sistema colonial, realiza uma comparação como o que ocorreu com o “Mir”67
russo, que tanto este como a comunidade rural peruana sofreram uma completa
“desnaturalização”, transformando pouco a pouco a organização comunal num instrumento de
exploração.
A leitura sobre a realidade nacional como base para pensar a revolução provoca contra
Mariátegui a acusação de “populista”, que tem como função política fechar a temática da
realidade nacional (neste caso marcada pelo lugar do indígena) nos partidos comunistas, e que
como já vimos anteriormente seria totalmente rechaçada dentro da formulação das estratégias
para os países não Europeus. Apesar de desconhecer a ideia formulada por Marx em 1880
sobre a comuna rural na Rússia “como a possibilidade de eludir o capitalismo e passar
diretamente para a forma socialista de vida e de produção” (Marx [1880] 1980: 52),
Mariátegui consegue seguir esse mesmo caminho que o aproximará do movimento
indigenista. Por sua vez realiza o esforço de se aproximar do movimento operário moderno
com as massas camponesas indígenas, entendendo a “questão campesina” como a “questão
indígena” (Aricó, 1999: 175-181).
Sem os camponeses era impossível a revolução: “eles compensariam a debilidade
numérica dos operários”; mas para contar com a ação camponesa era imprescindível que “o
socialismo fosse uma garantia da vida rural no Peru”, assim o socialismo não se edificaria por
trás das costas dos camponeses (Flores Galindo, 1976: 69). “Os mesmo quatro milhões de
homens, ainda que não sejam senão uma massa inorgânica, uma multidão dispersa, são
incapazes de decidir seu rumo histórico” (Mariátegui, 1994a: 23).
Mariátegui (1994a: 26) observa que “uma economia indígena, orgânica, nativa, se forma
sozinha. Ela mesma determina espontaneamente suas instituições. Mas uma economia
colonial se estabelece sobre as bases em parte artificial e estrangeira, subordinada ao interesse
do colonizador”. Este processo colonizador incorpora uma contradição inerente ao processo 67 O Mir e outros tipos de organização comunal serão desenvolvidos e analisados mas adiante neste mesmo
trabalho.
75
de expansão do capital com a coexistência entre arcaico e moderno. A partir desse momento
Mariátegui faz eco com a crítica ao projeto civilizatório implementado pela conquista, assim
como também expressará as ideias que afirmam a necessidade de modernização nos países
atrasados em relação ao sistema capitalista. A colônia e a república impuseram às
comunidades a lógica de modos de produção que contribuíram para desquiciarlas, modos
destruidores dos equilíbrios da sociedade indígena tradicional Mas, apesar de tudo, com suas
bases materiais de existência já muito deterioradas até a década de vinte, despojada da terra e
menoscabadas suas formas coletivas de trabalho, a comunidade sobreviveu, e junto com elas
os “resíduos vivos de uma economia comunista indígena” (Idem: 14).
É uma tensão para ele nesse momento de construir o socialismo indo-americano. Seu
encontro com o mundo andino lhe permitiu ver a importância das utas para a construção desse
projeto e ademais a reflexão sobre o marxismo e a autonomia dos diferentes processos
históricos. O progresso no Peru não seria tal “se não fosse peruano” e isto significava “incluir
as quatro quintas partes da população que são indígenas” (Mariátegui, 1994a: 36). O problema
por ele colocado não era uma eleição entre o moderno e o tradicional, sem bem realiza uma
crítica da modernidade ocidental refletida em Lima, não pretendida refugiar-se no passado e
voltar atrás; pelo contrário queria ensaiar uma amalgama entre o marxismo e o indigenismo,
um encontro diferente “entre a cidade e o campo”, entre o “Ocidente e o mundo andino”
(Mariátegui, 1994c: 306).
O chamado passado incaico de alguma maneira propõe um questionamento às formas
absurdas, antisociais e desagregadoras impostas pelo regime colonial: “A conquista foi, antes
de tudo, uma tremenda carnificina” (Idem: 21)68. Um reclamo permanente ao fato de
converter todo recurso natural em mercadoria e de uma sociedade que só é apêndice do
mercado. Não é recolocar o modelo de organização incaico, é questionar a forma societária
que produz o capitalismo, de onde tanto a natureza como os homens começam a ser tratados
como mercadorias e bens produzidos para a venda, meios de produção de mais-valia. “A
destruição da economia [incaica] e por fim da cultura que se nutria de sua seiva – é uma das
responsabilidades discutíveis do colonialismo, não por faver constituído a destruição das
formas autóctones, mas por não ter trazido consigo sua substituição por formas superiores. O
regime colonial desorganizou e aniquilou a economia agrária incaica, sem substituí-la por 68 David N. Cook assinala que até 1530 o território atual do Peru devia ter uma população aproximada de
2.738.673 habitantes, reduzidos para 601.645 indígenas en 1630 (apud Flores Galindo, 1986: 39).
76
uma economia de maiores rendimentos. Sob uma aristocracia indígena, os nativos
compunham uma nação de dez milhões de homens, com um Estado eficiente e orgânico cuja
ação chegava a todos os âmbitos de sua soberania; sob uma aristocracia estrangeira os nativos
se reduziram a uma dispersa e anárquica massa de um milhão de homens, caídos nas servidão
e no ‘felahísmo’”(Mariátegui, 1994a: 26).
Uma vez que destruíram esta forma social de produção e reprodução social, os vínculos
orgânicos dessa sociedade foram aniquilados, dissolvendo-se em comunidades dispersas, e o
“trabalho indígena cessou de funcionar de um modo solidário e orgânico” (Idem: 7). Assim os
colonizadores se ocuparam apenas de “distribuir e disputar o pingue botim de guerra.
Despojaram templos e palácios dos tesouros que guardavam; repartiram as terras e os homens,
sem se perguntar sequer por seu porvir como forças e meios de produção” (Idem).
É por esta razão que o chamado Tahuantisuyo69 apela a um socialismo que “não violente”,
ou seja, que dê conta das “singularidades, que não seja fruto de uma imposição externa e
compulsiva de uma totalidade totalizante” (Mazzeo, 2008: 84). A esta altura Mariátegui sabe
que o verdadeiro problema do marxismo é como modificar e transformar uma ordem social.
Não começou descrevendo uma sociedade para depois pensar em sua abolição, mas partiu
assumindo um voto contra a ordem oliguárquica, isto é, partiu de uma certa opção política.
Sua marcha ao socialismo começou por um forte rechaço à sociedade em que vivia, por um
“anti”; mas logo perceberá que esse “anti” era insuficiente para fundar o socialismo no Peru.
Havia que dar um conteúdo afirmativo a esta palavra.
Quais eram as bases do projeto mariateguiano que faz que em 1928 se enfrente com o
projeto messiânico e hierárquico de Haya de la Torre? As bases sociais do projeto aprista são
muito evidentes na história peruana, se as pode comprovar não só citando discursos políticos
mas ademais rastreando o mundo das ideias coletivas. Portocarrero dizia que no Peru dos
inícios da República, os liberais ganharam a batalha ideológica mas os conservadores
ganharam a batalha no mundo do cotidiano. Não se tem o mesmo êxito ao descobrir as bases
mariateguista, “ele estava convencido de que as comunidades indígenas constituíam um
reservatório de tradições democráticas porque eram essencialmente igualitárias”. Ali esperava
encontrar um respaldo. “Sabemos agora que seus conhecimentos sobre o mundo camponês e
indígena eram muito escasso” e que construiu uma imagem das “comunidades sem conflitos
69 Denominação outorgada do Império Inca, cuja capital estava localizada em Cuzco, hoje cidade do Peru.
77
que não havia existido nunca” (Flores Galindo, 2008: 4). Em 1920, essas comunidades
estavam fortemente erodidas pelas relações de mercado, havia iniciado processos de
privatização de terras e todo isso gerava fortes conflitos no interior do mundo camponês. Mas
Mariátegui sabia que “um projeto revolucionário para ser eficaz, devia inserir-se em uma
tradição histórica” (Idem).
2.3 A figura do mito e da utopia andina
A figura do mito em Mariátegui se inscreve naquilo que chamamos anteriormente de uma
“visão de mundo romântica”, que significava por um lado a crítica ao projeto civilizatório da
Europa Ocidental, e por outro lado sua relação com o passado inca, e as formas que essa
combinação adquiriu nos Andes.
É impossível desvincular esta figura do mito de este duplo movimento de Mariátegui: a
compreensão do progresso capitalista e a destruição de uma cultura milenar.
Nutrido, como assinalamos, do surrealismo, de Sorel, do marxismo e da própria cultura
andina, Mariátegui apelará para uma figura sincrética que permita entender a relação entre o
misticismo popular e a práxis revolucionária. A “visão de mundo romântica” se vê claramente
alimentada e enriquecida pela utopia andina.
Como foi possível a relação entre o messianismo de Mariátegui e sua ação política? A
resposta está dada pelos ciclos de lutas que se desenvolvem desde a conquista até o momento
dos Andes.
A construção da utopia andina data dos tempos da colônia espanhola, e sua maior base
está ancorada na religiosidade da cultura inca. A Violência em sua forma militar e religiosa
foram o marco em que se desenvolveu a conquista.
A utopia andina, segundo Flores Galindo (1986: 81) é uma criação coletiva elaborada a
partir do século XVI. Seria absurdo imaginá-la como o prolongamento inalterado do
pensamento andino pré-hispânico. Para este mesmo autor, um conceito que pode ser útil para
entendê-la é a “disjunção”: “provem da análise iconográfica e se utiliza para assinalar que na
situação de domínio de uma cultura sobre outras, os vencidos se apropriam das formas que
78
introduzem os vencedores mas os outorgam um conteúdo próprio, com o que terminam
elaborando um produto diferente” (Idem: 82).
A história da utopia andina alterna períodos quentes, onde confluem com grandes
movimentos de massas, seguidos por outros de postergação e esquecimento. Não é uma
história linear. Pelo contrário, se trata de várias histórias: “a imagem do Inca e do
Tahuantinsuyo dependem dos grupos ou classes que as elaborem” (Idem: 22).
Em 1780, a revolução tupamarista foi o intento mais ambicioso de converter a utopia
andina em programa político. Se houvesse triunfado, Cuzco seria a capital do Peru, a serra
dominaria sobre a costa, o que teria significado uma mudança radical na sociedade colonial. A
medida que avançava o desenvolvimento da revolução, os indígenas logravam deslocar-se até
outros grupos sociais, conseguindo a hegemonia e logrando impor as reivindicações
camponesas, em claro enfrentamento contra todo o ocidental. Estas rebeliões implicavam um
rechaço ao colonialismo mas também ao progresso, no sentido que ao término começava a
assumir na Europa das luzes identificado com o desenvolvimento capitalista. Se houvesse
triunfado esta revolução, teria implicado uma transformação estrutural da sociedade colonial,
de onde as massas almejavam a vota a esse Tahuantinsuyo que a imaginação popular havia
criado com os traços de uma sociedade igualitária, um mundo homogêneo composto só por
runas (campesinos andino) onde não existiriam nem grandes comerciantes, nem autoridades
coloniais, nem fazendas, nem minas, e aqueles que eram até então párias e miseráveis
voltariam a decidir seu destino (Cfr. Flores Galindo, 1986: 93-104).
Logo, durantes a independência (1824), a utopia andina não esteve ausente no discurso
crioulo, mas sim como as massas camponesas não tiveram uma intervenção multitudinária, os
incas foram reduzidos a certos tópicos e imagens. Se os invocava com um passado do qual os
militares crioulos se imaginavam continuadores. A volta do Inca termina confinada aos
espaços rurais: “a ideia subterrânea e clandestina, confundida com o folclore dos povos ou
com os surtos temores dos brancos” (Idem: 223).
Flores Galindo (1986: 307), observa que aquilo que foi só uma intuição em Mariátegui, só
79
será retomado muitos anos depois por Jorge Brasadre70: “o fenômeno mais importante na
cultura peruana do século XX é o aumento da tomada de consciência acerca do índio entre
escritores, artistas, homens de ciência e políticos”. Toda isso, independentemente de
discrepância e contradições, foi tributária da utopia andina. Racharam uma ordem ideológica
até então hegemonizada de maneira excludente pela oligarquia. De acordo com sua
percepção, esta “tomada de consciência” teve um alto conteúdo subversivo e permitiu à
intelectualidade tanto cuzquenha como limenha “abandonar o território apaziguado das ideias
desencarnadas, para encontrar-se com as lutas e os conflitos, com os homens no plural, com
os grupos e as classes sociais, com os problemas do poder e da violência na sociedade”. Mas,
isto teria sido possível sem as rebeliões de 1920?
A relação do indigenismo com a revolução socialista permitiu compreender como os incas
habitavam a cultura popular, e qual era a correlação existente entre cultura andina e pobreza
(Flores Galindo, 1986: 19). Este autor define a utopia andina como a possibilidade de
“converter o ódio cotidiano e interno, a raiva, num gigantesco incêndio, numa força
transformadora” (Idem: 22).
Mas a restauração do império incaico foi uma alternativa real a partir das revolutas em
1920? Segundo Flores Galindo (1986: 291), não existem as evidências necessárias para
afirmar que os camponeses chegaram a formular um programa desse estilo, mas é indubitável
que os proprietários de terra estiveram convencidos que se tratava de uma “verdadeira guerra
de castas” e para alguns intelectuais, de Lima ou províncias, esses acontecimentos podiam
estar anunciando o esperado renascimento andino. Inserir as rebeliões dos anos 20 no interior
de uma história prolongada, não foi unicamente a elaboração de intelectuais demasiados
esperançosos no foto e na dinamite71. O sincretismo de uma memória popular, segundo (Idem:
294), revela a persistência de uma tradição.
O mito vivia nos Andes. As lutas camponesas tinham uma sustentação na recordação mas
também na mesma vida material das comunidades que, em pleno século XX, mantinham essas
relações coletivistas que foram a estrutura mesma da sociedade incaica (Idem). Desta
maneira, o socialismo, assimilado por intelectuais e operários das cidades e das minas, podia
encontrar adeptos entre essas massas camponesas que eram a maioria do país. Ideia importada 70 Basadre, Jorge: “Perú: problema y posibilidad”. Lima. 198071 Na Bolivia, durante esses mesmos anos, alguns camponeses se propusera a resgatar restos de Túpac Catari.
80
da Europa mas capaz de fundir-se com as tradições andinas: o socialismo ante que o discurso
ideológico, “era a forma que adquiria um nosso tempo o mito” (Mariátegui, 1994f: 499).
O socialismo em Mariátegui era a superação da ideia liberal, a democracia que adverte nos
soviets contrapostos ao parlamentarismo burguês. Então não se tratava de prolongar uma
tradição andina – a do comunismo agrário – mas de alimentá-la da construção de uma
sociedade nova. O pensamento dele – igual a grande parte da cultura peruana dos anos 20 –,
foi tributário da utopia andina. Aqui radicava toda a particularidade de seu marxismo. Flores
Galindo (Idem: 297) se pergunta sobre o que tornou possível esse encontro? É que entre
Mariátegui e o mundo andino existia um terreno comum, um lugar de encontro privilegiado: a
religião. Para este a religião era um fato pessoal e também um fato coletivo.
Os indigenistas ofereciam a possibilidade de vincular o marxismo com o mundo andino.
Herdeiro da utopia andina, como marco da luta e do sincretismo religioso, Mariátegui
enfrenta a realidade nacional com o advento da violência em nível mundial. Os ecos da
primeira guerra significaram uma ruptura com suas ilusões positivistas, que ancorada na
filosofia positivista geravam uma incompatibilidade forte com esse sincretismo do qual
Mariátegui era parte. A partir desse momento, este começa a usar o que foi acumulado em sua
viagem pela Europa, seus encontros com os surrealistas, suas leituras sorelianas, passa a ser
parte do grupo de intelectuais que realizará uma crítica da razão da civilização burguesa,
principalmente através da ideia do mito. O referente que busca para construir essa ideia é
Sorel, que como já mencionamos anteriormente é um dos pilares na formação mariateguiana,
uma guia para sua reflexão e para a elaboração de uma proposta própria.
Ante a leitura da decadência da “razão burguesa” (Quijano, 1995:42-45), a proposta
própria consistia numa “racionalidade alternativa à dominante no ocidente” (Idem), é nessa
preocupação subjetiva, individual, da experiência humana e sua relação com a transformação
social que Mariátegui logra relacionar estes autores: Sorel e Marx. A necessidade de elaborar
uma “racionalidade integradora” (Idem), que permita entender América Latina não como um
continuum homogêneo, mas como uma “estrutura historicamente heterogênea” (Idem) e que é
essa a forma de percebê-la para não distorcê-la, é essa a preocupação de Mariátegui.
É nesta preocupação onde se situa a concepção de mito, que não é cópia, como se pensa,
81
de Sorel72, porque os interesses do filósofo francês eram de outra índole e contexto. Para
Mariátegui a questão maior era a necessidade de uma “força mobilizadora” (Quijano, 1995:
47) para América Latina que indubitavelmente se diferenciava da Europa. Por isso, ante uma
leitura de que os oprimidos e explorados no Peru são indígenas, a questão de “raça” (Idem) se
converte na chave para essa mobilização e “também pensando que para os índios dos Andes,
talvez aquele socialismo que vinha da Europa significava um retrocesso” (Idem).
Recuperando não suas leituras de Sorel, mas também a influência do surrealismo e sua
ideia de mito coletivo, resignificava um passado, uma tradição que é a incaica, dando
fundamento a sua crítica sobre a decadência da razão burguesa, a esse afiançamento da
sociedade ocidental burguesa, à ideia de progresso que o levava a pensar que a força
mobilizadora estaria baseada nesse mito, que significava nas palavras de Mariátegui uma “fé,
uma crença, vontade, paixão” (Mariátegui, 1994f: 499) que estaria fora da “racionalidade
ocidental burguesa”, cuja decadência estava baseada na falta desse “mito”73(Idem).
Poderíamos dizer que a ideia de mito afastava Mariátegui do plano de uma análise
objetiva da realidade, o leva a formulações metafísicas e meramente espirituais. Contra a ideia
de que se afasta dessa análise objetiva, a recuperação do mito, essa ideia soreliana, responde a 72 A distinção que Sorel realiza sobre o mito e utopia é que “A utopia, ao contrário, é o produto de um trabalho
intelectual; é obra dos teóricos que, após terem observado e discutido os fatos, buscam estabelecer um modelo que possam comparar as sociedades existentes para avaliar o bem e o mal que encerram; é uma composição de instituições imaginárias, mas que mantém com instituições reais analogias bastantes grandes para que o jurista possa pensar sobre elas; é uma construção desmontável, de que alguns pedaços foram talhados de maneira que possam passar (mediantes certos ajustes) numa legislação futura. Enquanto nossos mitos atuais conduzem os homens a se prepararem para um combate destinado a destruir o que existe, a utopia sempre teve por efeito dirigir os espíritos para reformas que poderão ser efetuadas fragmentando o sistema. Não é de surpreender, portanto, que tantos utopistas puderam tornar-se homens de Estado hábeis quando adquiriram uma maior experiência da vida política. Um mito não poderia ser refutado, pois no fundo é idêntico às convicções de um grupo, é a expressão dessas convicções em linguagem de movimento, sendo portanto indecomponível em partes que possam ser aplicadas num plano de descrições históricas. A utopia, ao contrário, pode ser discutida, como toda constituição social. Podem-se comparar os movimentos automáticos que ela supõe como aqueles constatados ao longo da história e, assim, apreciar sua verossimilhança. Pode-se refutá-la demonstrando que a economia sobre a qual a fazem repousar é incompatível com as necessidades da produção atual” (Sorel; 1992: 49-50). A ideia de “mito” adquire concreticidade na medida em que o mesmo se mantém no laço que une a luta histórica com um campo de possibilidades do presente.
73 Disse Mariátegui em El alma matinal “O que mais nítida e claramente diferencia nesta época a burguesia e o proletariado é o mito. A burguesia não tem já mito algum. Se tornou incrédula, cética e niilista. O mito liberal renascentista, envelheceu muito. O proletariado tem um mito: a revolução social. Esse mito se move com uma fé veemente e ativa. A burguesia nega; o proletariado afirma. A inteligência burguesa se entretêm numa crítica racionalista do método, da teoria, da técnica dos revolucionários. Que incompreensão! A força dos revolucionários não está em sua ciência; este em sua fé, em sua paixão, em sua vontade. É uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do mito. A emoção revolucionária, como escreve num artigo sobre Gandhi, é uma emoção religiosa. Os motivos religiosos se deslocado do céu para a terra. Não são divinos, são humanos, são sociais” (1994e: 449).
82
uma necessidade de enfrentar uma matriz de interpretação sobre a história universal gerada
pela racionalidade ocidental e adotada pelo marxismo, que não conseguia refletir essa
formação heterogênea que era a América Latina. A ideia do mito é um intento, é um esboço de
outras formas de olhar a América no contexto da história universal. Ficar preso ao mito e
reduzi-lo a um mero ecletismo, idealismo, misticismo, é perder a riqueza que atravessa toda a
visão de Mariátegui sobre a América Latina.
Com uma leitura do avanço da violência a nível mundial, sobre como ela adquire novas
formas com o fascismo que mencionamos anteriormente, e que rapidamente se expandiria
para o resto do mundo, com a vivência de um país onde a conquista mostrou desenvolvidas
formas de desagregação humana e natural, era preciso marcar onde se encontraria a diferença
com essa maneira de olhar o mundo da sociedade ocidental como transformá-lo.
A recuperação da tradição incaica, para Mariátegui se base no que ele chamava
“evangelho indigenista”, referindo-se ao célebre Tempestad en los Andes de onde Valcárcel
assumirá como necessidade de um mito para a recuperação desta tradição: “não é a
civilização, não é o alfabeto do branco, o que levanta a alma do índio. É o mito, é a ideia da
revolução socialista. A esperança indígena é absolutamente revolucionária. É mito mesmo, a
mesma ideia, são agentes decisivos do despertar de outros velhos povos, de outras velhas
raças em colapso: hindus, chineses etc.” (Mariátegui, 2004a: 17).
A visão utópica-mítica em Mariátegui é uma tentativa de recuperar as lutas derrotada74 dos
povos dos Andes, com sua atualização necessária no novo contexto peruano, de onde o mito
recuperaria o nexo necessário entre essas diferentes lutas. A “visão romântica” é fundamental
para entender esta construção mariateguiana, que segundo Löwy (1997: 26) o “romantismo
anticapitalista é um fenômeno político e cultural particular, que até agora não recebeu atenção
merecida porque escapa às classificações habituais”. Um dos temas essenciais da crítica desta
visão de mundo, como já assinalamos, é a oposição entre Kultur, um universo espiritual de
valores éticos, religiosos e estéticos, e Zivilization, o mundo do progresso econômico e
técnico, materialista e vulgar. Se o capitalismo seria, segundo a expressão de Marx Weber, o
desencantamento do mundo75, o romantismo anticapitalista deve ser considerado antes de tudo
74 Walter Benjamin, nas “Teses sobre el concepto de la historia” realiza uma tentativa de compreensão do “ponto de vista dos vencidos, [no qual entra] não só a história da classe oprimida, mas também a história das mulhres, dos indígenas, dos negros” (Löwy, 2005a: 39).
75 Este análise weberiana é diferente da leitura que Marx realiza em O Capital onde mostra que o capitalismo não seria um “desencantamento do mundo” e sim um “reencantamento”, daí que surge a necessidade de
83
como uma “tentativa nostálgica e desesperada de re-encantamento do mundo, que tem como
uma de suas dimensões essenciais o retorno à religião, o renascimento de múltiplas formas de
espiritualidade religiosa” (Idem: 30). Esta visão representa a possibilidade de incorporar a
“tradição dos oprimidos” (Benjamin apud Löwy, 1997: 203), que, no caso de Mariátegui,
seria la utopia andina.
A visão romântica se vê interpelada pelo estado de regressão social provocado pela
explosão da Primeira Guerra, a qual passou a interrogar a ideias de progresso e essa segurança
que exibiam os que se sentiam civilizados, o que dará origem a várias vertentes e começará a
circular a ideia de utopia novamente, aparecendo em 1918 no título de um livro de Ernst
Bloch. Mariátegui se relaciona com estes novos ares de maneira muito particular, do que ele
mesmo chamará de fator religioso, tendo uma preocupação quase mística que o diferenciava
de outros contemporâneos. “Interroga o marxismo desde uma tradição popular” (Flores
Galindo, 1979: 187), particularmente forte, “formada pela religião e pela religiosidade no
Peru” (Idem), convertendo-se num elemento importante como aglutinadora das massas
populares.
Esta relação do fator religioso com o marxismo vai marcar alguns problemas em
Mariátegui, que serão o modo como ele assume o marxismo: 1) A não resolvida tensão entre
uma concepção do marxismo como teoria da sociedade e da história, e o método de
interpretação e ação revolucionária, por um lado, e a filosofia da história, apta para receber as
águas de outras vertentes filosóficas que contribuíram para a permanência da vontade de ação
revolucionária, por outro lado; 2) vinculada a anterior, a insistência na centralidade da
vontade individual como fundamento da ação histórica, e por fim na necessidade de um
alimento de fé e de fundamento metafísico para a restauração de uma moral humana
despojada dos lastres da consciência burguesa (Cfr. Quijano, 2007: LXI).
Como vimos anteriormente essa ideia de mito em Mariátegui, que tem o papel de
enfrentar o positivismo por um lado e o niilismo por outro, é o produto de um conjunto que
consegue realizar entre uma concepção de marxismo como “método de interpretação histórica
analisar o fetichismo da mercadoria (Cfr. El Capital, cap. 1-Livro I). Esta chave weberiana serve para entender os efeitos provocados em toda uma geração que enfrenta um processo de regressão social no marco da Primeira Guerra Mundial.
84
e da ação e uma filosofia da histórica de explícito conteúdo metafísico e religioso” (Quijano,
2007: LXVIII). A partir deste entendimento do marxismo se produz uma tensão em seu
pensamento e que se fundamenta na busca permanente por uma “reflexão sobre a práxis”
(Mazzeo, 2008: 47).
3. Caio Prado Jr.76
3.1 Povoamento da colônia
O nascimento do Brasil a partir da colônia se dá pela conjunção dos “núcleos opostos”,
por um lado um “núcleo orgânico” do sistema colonial de produção, localizado no trabalho
dos escravos do litoral e por outro sua “periferia inorgânica”, “um número mais ou menos
avultado de indivíduos desamparados, evidentemente deslocados, para quem não existe o dia
de amanhã, sem ocupação formal e fixa, ou desocupados inteiramente, alternando o recurso à
caridade com o crime” (Prado Jr., 2000: 293).
Esse setor “inorgânico” vive na situação caótica, tornando-se um mero apêndice da grande
exploração, “a estrutura social, a organização política e as formas culturais”, todas elas se
subordinam a grande exploração (Ricupero, 2000: 140; T.N).
Por esta razão é que para Caio Prado, o fundamento da colônia é uma “empresa
comercial”, que estava destinada a explorar os recursos humanos e naturais necessários para o
comércio europeu, e que neste sentido é que surge a América Latina e especificamente o
Brasil; é este o caráter constitutivo que se manterá ao longo de três séculos e que fará da
América Latina o que é hoje. O sentido da colônia desde o começo n]ao foi povoar o
território, era o “comércio” o que os interessava e por isso existia esse desprezo pelo povo
primitivo da América. A ideia era “de ocupar [...] apenas como agentes comerciais,
funcionários e militares para a defesa, organizados em simples feitorias destinadas a
mercadejar com os nativos e servir de articulação entre as rotas marítimas e os territórios
ocupados” (Prado Jr., 2000: 12-20).
76 As reflexões e análises destas chaves de leitura sobre a obra de Caio Prado Júnior foram abertas, enriquecidas e aprofundadas a partir da disciplina oferecida pelo prof. Marildo Menegat “Teoria Crítica no Brasil” na Escola de Serviço Social/UFRJ. Ano 2008/1, de onde extraí os pontos chaves para pensar a relação das mesmas com o pensamento crítico latino-americano e sua riqueza na análise sobre a formação histórica da América Latina.
85
Mas à medida que se desenvolvem as diferentes atividades de extração dos recursos,
começa-se a ver a necessidade de “[...] ampliar estas bases, criar um povoamento capaz de
abastecer e manter as feitorias que se fundassem e organizar a produção dos gêneros que
interessassem ao seu comércio. A ideia de povoar surge daí, e só daí” (Idem) é então quando
surge a ideia de povoar.
Desta maneira, a vida colonial da América sofrerá a falta de um “nexo moral” (Prado Jr.,
2000: 357), definindo-se desta maneira pela desagregação, pelas forças dispersas. Estes
setores “inorgânicos expulsos” (Leite da Silva Dias, 1989: 386), vivem nas áreas pobres e não
podem gerar uma organização econômica significativa. “É isto, em resumo, que o observador
encontrará de essencial na sociedade da colônia: de um lado uma organização está aí no que
diz respeito a relações sociais de nível superior; doutro, um Estado, ou antes um processo de
desagregação mais o menos adiantado, conforme o caso, resultante ou reflexo do primeiro, e
que se alastra progressivamente” (Prado Jr., 2000: 356).
Em a “Formação do Brasil”, no plano das realizações humanas se criava “algo novo” que
se concretizava num organismo social complexo e distinto com uma população bem
diferenciada, étnica e territorialmente, uma estrutura material particular, constituída com base
de elementos próprios, uma organização social definida por relações específicas, e até uma
certa “atitude” mental coletiva particular” (Prado Jr., 2000: 2).
O que define esse “inorgânico”, esse antagonismo, esse eixo central para entender o
processo de formação da América Latina depois da conquista, nas quais a falta de “nexo
moral”, visto neste seu sentido mais amplo como “o conjunto de forças de aglutinação,
complexo de relações humanas mas que mantêm ligados e unidos os indivíduos de uma
sociedade e os fundem num todo coeso e compacto” (Idem: 357) fica inconcluso. Ao
contrário, na sociedade colonial as relações se definem pela “inércia”, que apesar de ser
“infecunda dão uma certa estabilidade à estrutura colonial”. O que mantém a precária
integridade do conjunto são os “laços materiais primários, econômicos e sexuais” (Idem). É
com base nisto que a sociedade se manteve é desta maneira a colônia pôde continuar77.
77 Arantes (2004: 59) retoma esta ideia de Caio Prado para explicar esta fratura que vivem (e seguiram se aprofundando) as sociedades contemporâneas marcando que de onde se disse “falta de nexo moral” em uma “quase-sociedade de vanguarda mercantil, podemos ler erosão e invalidação do tal lien social, cuja
86
A especificidade da América Latina estaria dada por essa forma particular em que esse
modelos de produção diferentes funcionam numa mesma unidade, é o que foi sendo
aprofundada no curso do século XX, essa especificidade estará marcada neste longo período
pela criação de “uma grande ‘periferia’ onde predominam relações de produção não-
capitalistas, como forma e meio de sustento e alimentação do crescimento dos setores
estratégicos nitidamente capitalistas, que são a longo prazo a garantia das estruturas de
dominação e reprodução do sistema (Cfr. Oliveira, 2003: 69).
São os mesmos elementos que dão organicidade, os que produzem contradições
inorgânicas. Para Caio Prado, a organização jurídico-política e a estrutura econômico-social
do país é um exemplo desta relação: por um lado se conforma um “Estado Nacional” segundo
o modelo do centro capitalista, transplantando para as colônias instituições liberais que
garantiam a cidadania; e por outro lado a produção voltada para as necessidades estranhas à
população local, o que origina “uma maior exclusão para os habitantes” (Cfr. Prado Jr., 1957:
63).
América foi constituída tanto por aqueles que a povoaram com o fim comercial pelo qual
surge, como também pelas massas indígenas que habitavam antes da conquista e que foram
arrastados brutalmente para o trabalho escravo, iniciando-se uma caça do homem pelo
homem, expedições predadoras de gente, onde milhares e milhares de pessoas serão iniciadas
na “‘beleza’ da civilização” (Prado Jr., 1957: 23), como assim também os escravos trazidos da
África, e finalmente uma parte dos colonizadores que por alguns períodos e em determinadas
regiões tiveram que submeter-se ao regime de escravidão78.
Mariátegui ao se referir a essas massas indígenas e escravas, falava da “perseguição e da
escravização dos índios”, o que levou à perda de grande parte do “capital humano”, pelo que
evaporação contemporânea tira o sono dos franceses ameaçados de brasilianização”78 Encontraremos em Caio Prado uma caracterização da diferença que teve o trabalho colonizador dependendo
também das regiões dentro do Brasil onde o mesmo se encontrava. É assim que a relação do colonizador com o indígena na região do amazonas é diferente daquela estabelecida na Bahia, por exemplo, revelando-se com total crueza com a população indígena da região. “A evolução do Brasil, de simples colônia tropical para nação, tão difícil e dolorosa e cujo processo, mesmo em nossos dias, ainda não se completou, seria lá muito retardada. A Amazônia ficou, neste sentido, muito atrás das demais regiões ocupadas e colonizadas do território brasileiro” (Prado Jr., 1981: 52).
87
o colonizador precisou de “outros” “braços para a exploração e aproveitamento das riquezas”.
É assim que se recorre ao sistema mais antisocial e primitivo de colonização: “o da
importação de escravos”. Para Mariátegui desta maneira o colonizador “renuncia à conquista
do índio”, e se vale da raça negra “para suprir o desequilíbrio demográfico” (Mariátegui,
1994a: 27).
Segundo Franco, se realiza uma composição da sociedade nacional onde existe um amplo
setor formado por “homens livres na ordem escravocrata”: em sua maioria pauperizados,
relegados a serviços residuais, que a maior parte dos mesmos não podiam ser realizados por
escravos ou não o interessam aos homens com patrimônio. Ocupando este lugar
“intermediário” entre a escravidão e os latifundiários, estes homens não podiam nem obedecer
a norma em sua totalidade nem desprezá-la, um setor que ficava fora dos setores instituídos
pela colônia (Cfr. Franco apud Arantes, 1992: 46,69,73).
No período de colonização do Brasil, “a população livre, mas pobre, não encontrava lugar
algum naquele sistema que se reduzia ao binômio 'senhor e escravo'. Quem não fosse escravo
e não pudesse ser senhor, era um elemento desajustado, que não se podia entrosar
normalmente no organismo econômico e social do país. Isto que já vinha dos tempos remotos
da colônia, resultava em contingentes relativamente grandes de indivíduos mais ou menos
desocupados, de vida incerta e aleatória, e que davam nos casos extremos nestes estados
patológicos da vida social: a vadiagem criminosa e a prostituição. Ambos se disseminavam
largamente em todas as regiões de certa densidade demográfica” (Prado Jr., 1981: 148).
3.2 Lutas sociais no Brasil
Segundo Darcy Ribeiro (2000: 167-8), a historia brasileira está dilacerada por conflitos
étnicos, sociais, económicos, religiosos, raciais etc. E o mais chamativo é que estes em si
nunca foram conflitos puros, cada um se pinta com as cores dos outros “o processo de
formação do povo brasileiro, que se fez pelo entrechoque de seus contíngentes indios, negros
e brancos, foi, por conseguinte, altamente conflitivo. Pode-se afirmar, mesmo, que vivemos
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praticamente em estado de guerra latente, que, por vezes, e com freqüência, se torna cruento,
sangrento”79. Desde 1500 até hoje, estes enfrentamentos se desenrolavam através de lutas
armadas contra cada tribo que se enfrenta com a sociedade nacional, em sua expansão
inexorável pelo territorio que se apropria “como seu chão do mundo: a base física de sua
existência” (Idem). Se trata de uma guerra de exterminio, onde nenhuma paz é possível, onde
os índios não podem deixar o que são e ingresar individualmente na nova sociedade, e onde os
que são brasileiros, não podem pensar neste territorio outra identidade ética que seja a sua,
que havendo sido assumida por brancos, negros e asiáticos, deveria ser aceita também pelos
índios.
Até a década de 1920, as rebeliões populares haviam sido consideradas como grupos de
“rebeldes, bandidos sanguinários e ladrões” que haviam devastado as áreas do norte e
nordeste, e que seu único objetivo, segundo os autores da época, era “roubar’ (Correia de
Andrade, 1989: 360). Caracterizado por Caio Prado, os movimentos populares surgidos nesse
momento “foram esporádicos e sem auto-organização suficientes” o que não os permitiu ter
uma força importantes no projeto de constituição da nação. Assim movimentos como o dos
“Balaios no Maranhão”, em lugar de realizar movimentos em massa, eram “grupos sertanejos
em tôrno de chefes, formando assim apenas bandos armados que percorrem o sertão em
saques e depredações. O resultado não foi somente a dissolução gradual destes bandos até sua
redução a pequenas colunas que apenas se aproveitam da enormedade do sertão para fugirem
às armas legais, como ainda amortece o ímpeto revolucionário inicial das massas, a que não
interessava este 'bandolerismo' de uns poucos de seus elementos” (Prado Jr., 1957: 74). Estes
grupos careciam de uma orientação ideológica e um sistema de comunicação que os colocasse
em contato entre uma área e outra, pelo que eram facilmente isolados pelas forças imperiais.
Viviam um grande isolamento que esgotava a resistência dos rebeldes, ademais das rupturas
que sofriam pelas diferenças de interesses surgidas por dentro do movimento. Nos “Balaios80”
79 Continuando com Ribeiro, se pode observar que “conflitos interétnicos existiram desde sempre, opondo as tribos indígenas umas às outras. Mas isto se dava sem maiores consequências, porque nenhuma delas tinha possibilidades de impor sua hegemonia às demais. A situação muda completamente quando entra nesse conflito um novo tipo de contendor, de caráter irreconciliável, que é o dominador europeu e os novos grupos humanos que ele vai aglutinando, avassalando e configurando como uma macroetnia expansionista” (Idem)
80 “Os Balaios eram, em essência, rebeldes da massa negra concentrada no Maranhão para produzir algodão, os quais, igualmente deculturados e desafricanizados, lutavam, tal como o faziam os quilombos, por uma ruptura da ordem social que os fazia escravos […] Demasiado civilizados para voltar às velhas formas tribais de vivência autárquica e demasiado primitivos para se propor uma reordenação intencional da sociedade em
89
(1831-1841), por exemplo, existiam três grupos: “os negros aquilombados do Maranhão; os
grupos de classe pobre do vale do sul de Itapecuru e os vaqueiros do sul do Piauí e do
Maranhão” (Correia de Andrade, 1989: 361; T.N).
Toda esta série de lutas populares conformou um território de enfrentamentos armados,
que significou o genocídio de grandes massas, que pretendiam enfrentar pelos diversos
interesses e sem uma articulação entre os mesmos, a exploração e escravidão dos índios e
negros, que também era sofrida pelas populações mestiças.
Segundo Ribeiro (2000: 255), o Brasil se implanta como sociedade nacional sobre um
imenso território, envolvendo milhões de pessoas, e em contrapartida a esta tarefa unificadora
foi a “ordenação da sociedade nacional em cada uma de suas formações, com estreita
obediência aos interesses oligárquicos”. A própria independência do Brasil é empreendida
pela metrópole colonial que desloca a parte mais viva e representativa das classes dirigentes
lusitanas e sua burocracia mais competente. Já o território brasileiro, se mimetiza de brasileira
e é tão bem organizada a independência pra si mesma que continua regendo no Brasil por
mais oitenta anos. Nestas décadas, se enfrenta e vence todos os levantamentos populares,
matando seus líderes ou dando-lhes anistia e incorporando-os ao grupo dominante (Idem:
256).
Após estas intensas e prolongadas rebeliões, a proclamação da república mobilizou muito
pouco as camadas populares que com “uma simples passeata militar foi suficiente para lhe
arrancar o último suspiro”(Prado Jr., 1957: 94) do império.
Brasil, esse aglomerado heterogêneo e originário de raças e povos díspares: o branco
europeu, o negro africano, o indígena, foram reunidos pela colonização, para produzir
“gêneros tropicais demandados pelo mercado europeu” e é isto o que dará o caráter de uma
“sociedade nacionalmente organizada” (Prado Jr, 1972: 69). O indígena e o negro trazido da
África como escravo são os que acabaram contribuindo com o esforço físico do
desenvolvimento da empresa.
novas bases, os cabanos e os balaios se viram paralisados, esperando a derrota que os destruiria” (Idem: 322).
90
A colonização produziu, com base no monopólio da terra, três classes de população: “o
latifundiário, o escravo e o homem ‘livre’, na verdade dependente. Entre os dois primeiros a
relação é clara, são as grandes massas dos terceiros que dão a particularidade” (Schwarz,
2008: 16; T.N). Nem proprietários, nem proletários, seu acesso à vida social e seus bens
dependem materialmente do “favor”, indireto ou direto, de um grande (…) “é o mecanismo
através do qual se reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo também outra,
a dos que têm (…) O favor é nossa mediação universal [e] o escravismo [acaba desmentindo]
as ideias liberais [mas] o favor, tão incompatível com elas quanto o primeiro, as absorve e
desloca, originando um padrão particular” (Schwarz, 2008: 16-17).
Sem uma ruptura política das massas com a colônia, e com uma continuidade econômico-
social baseada naquele processo da conquista, a América Latina transita o século XIX com
essa ambiguidade de não poder constituir uma “identidade nacional” que côngrua todo esse
“aglomerado heterogéneo” sobre a qual se funda.
3.3 Acumulação PrimitivaEmpresa Comercial
Caio Prado é um dos primeiros pensadores marxistas latino-americanos a colocar a ideia
da não existência do feudalismo nas colônias latino-americanas, afirmando que a conquista foi
uma “grande empresa colonial”, pensada só como o fim de obter matérias-primas. O “sentido
da colônia” está posto “para fora”, até o comércio europeu, por uma necessidade do Capital de
constituir-se nos trópicos como fonte de recursos. É a “expansão marítima dos países da
Europa”, depois do século XV, da qual a conquista da América forma parte, o que leva ao
comércio europeu à possibilidade de desenvolver-se mais além do que era imaginável até o
momento por via terrestre. Assim o que se passou a chamar a “era dos descobrimentos”, “não
é senão um capítulo da história do comércio europeu ” (Prado Jr., 2000: 9-20)81.
81 Em “A Ideologia Alemã (Feuerbach)”, Marx e Engels analisando o desenvolvimento da manufatura e o surgimento do comércio, observam que “A manufatura e em geral o movimento da produção receberam um enorme impulso através da extensão do comércio, em conseqüência da descoberta da América e da rota marítima das Índias Orientais. Os novos produtos importados destas regiões, e principalmente as massas de ouro e prata que entraram em circulação, trasnformaram totalmente a situação recíproca das classes sociais (…) Através da colonização dos países de descoberta recente, a luta comercial entre as nações recebeu novo alimento e, com isso, tornou-se mais extensa e encarniçada” (Marx; Engels [1845-1846], 1982: 88).
91
Em seu primeiro livro, “Evolução Política do Brasil” (1933), mantendo um diálogo com
aqueles que sustentam a tese do “feudalismo” na América Latina, Caio Prado assinalava o
caráter mercantil da conquista, da qual a explosão marítima foi causa e resultado de uma
“burguesia comercial sedenta de lucros, e que não encontrava no reduzido território pátrio
satisfação à sua desmedida ambição” (Prado Jr.,1957: 11,91); assim a “evolução” do Brasil se
caracteriza pelo desenvolvimento da forma capitalista de produção. Em 1942, com “Formação
do Brasil Contemporâneo”, volta a ressaltar o caráter decisivo do século XIX na história do
Brasil “apontando-o como o esgotamento do sistema colonial, frente às solicitações ampliadas
do capitalismo”. Retoma o debate em outro contexto em 1942, plena modernização do Brasil
e consolidação do “Estado Novo”, enquanto que para vários intelectuais o problema era o
“progresso”, a “modernização”, para Caio Prado a questão era maior, era “a necessidade de
uma revolução mais profunda, de mudanças radicais” (Cfr. Amaral Ferlini, 1989: 229).
A não existência de “restos feudais” na América marca para Caio Prado um ponto de
ruptura com a leitura sustentada pelo marxismo até o momento sobre o processo colonial:
“Feudal tornou-se assim sinônimo ou equivalente de qualquer forma particularmente
extorsiva de exploração de trabalho, o que seria um eixo falso para entender esta forma social
constituída a partir da conquista. Tais formas (…) ainda largamente difundidas nas relações de
trabalho rural brasileiro, constituem remanescentes, isto sim, do sistema de trabalho vigente
legalmente no Brasil até fins do século passado, a saber: a escravidão” (Prado Jr., 1972: 32).
Segundo Caio Prado, o erro mais frequente é confundir escravidão com feudalismo,
esquecendo que os mesmos se diferenciam na natureza das relações de trabalho e produção, e
que o papel que tanto o feudalismo como a escravidão cumprem nos processos político-
sociais. Ou seja: é impossível pensar estes sistemas por fora do modo econômico e social
onde se desenrolam. A existência da escravidão não seria desta maneira o sintoma dos “restos
feudais”, é a presença das bases históricas sobre as quais se forjou o capitalismo na América82.82 Gunder Frank assinala que as teses marxistas “tradicionais” sobre o feudalismo poderiam ser resumidas em
três: “a) o feudalismo antecede o capitalismo; b) o feudalismo coexiste com o capitalismo; c) o capitalismo penetra ou invade o feudalismo”. Estas teses não se excluem uma às outras. “A deficiência mais forte destas teses reside na incapacidade de dar uma explicação adequada às mudanças ocorridas nas realidades latino-americanas com o transcurso do tempo. A primeira tese não esclarece qual seria o momento e a forma pela qual o capitalismo chegou na América. A segunda tese sobre a ‘penetração’ no caso mais extremo supõe uma ‘proletarização’ contínua, progressiva e acumulativa, de onde o capitalismo estaria paulatina e irreversivelmente extinguindo o feudalismo. Como já o explicaram Caio Prado, Schattan, Paixão, Geiger o setor feudal se adapta continuamente às circunstâncias, incluindo às mudanças da demanda. A própria dualidade feudalismo-capitalismo não permite encontrar as razões dos aspectos feudais e capitalistas no desenvolvimento agrícola e muito menos compreender porque se combinam” (2005: 40-55).
92
Da mesma maneira é que Caio Prado visualiza a independência do Brasil, ressaltando que
é o “desenvolvimento econômico” o que propicia a “independência política”; isto é, que a
“superestrutura política da colônia” não correspondia com “as forças produtivas e a
infraestrutura econômica”, pelo que se faz necessário uma ruptura que permita o curso desta
“evolução”. No período de transição entre a colônia e a nação não existem enfrentamentos
violentos, mas no fundo o processo é o mesmo: uma evolução econômica incompatível com o
estatuto colonial. O outro efeito pelo qual se levou a cabo a emancipação do Brasil é o de
“arranjo político”; assim a independência se realizou por uma simples transferência política
de poderes da metrópole ao novo governo brasileiro, e com a falta de participação das massas
populares o poder cai nas mãos das classes superiores da ex-colônia. Então se conquistava
uma independência onde o povo não teria lugar na nova ordem política. O caráter “classista”
que envolve o projeto da independência revelou por dentro do processo um viés
discriminatório dos direitos políticos. Assim, os grandes proprietários rurais adquiriram todos
aqueles direitos políticos que lhes permitiam governar a nação, sobre aqueles que nunca
teriam qualquer possibilidade de eleição, nem posse de cargo público, aqueles que não eram
considerados “cidadãos ativos” (Cfr. Prado Jr., 1957: 49-55): os trabalhadores e os escravos83
los trabajadores y los esclavos.
Seguindo com a análise de Caio Prado (1972: 91) observamos que “o capitalismo
constituiu historicamente a intensificação em alto grau daquela exploração e opressão, e isso
representou um dos importantes fatores de impulsionamento da acumulação capitalista
primitiva, isto é, a constituição do capital inicial ou de parcelas importantes desse capital com
que se desencadeou, e, em seguida, acelerou o processo de desenvolvimento do sistema
produtivo do capitalismo”.
Seguindo este pressuposto mostra que o campo brasileiro se constitui basicamente com o
trabalho escravo, pelo que existem trabalhadores na “qualidade de empregados, de prestação
de serviços” (Cfr. Prado Jr., 1972: 92-123 TN), sem ser um sistema autônomo de produção
consolidado.
Deste processo é que a colonização encontra-se unida ao processo de acumulação 83 Segundo Caio Prado: “A constituição reconhece os contratos (!) entre os senhores e os escravos; ‘o governo
vigiará sua manutenção’: É este o mais perfeito retrato do liberalismo burgués…” (1957: 54; T.N).
93
primitiva e de onde surge o “nascimento sanguinário” da América. Desta maneira a ocupação
do território não se realizou transportando as formas feudais da Europa, mas como assinala
Caio Prado foi uma “empresa colônia”; no qual o monocultivo exacerbado e extensivo era
financiado por capitais internacionais. Esta leitura se contrapõe às leituras “dualistas” sobre as
formações latino-americanas, que veem modos feudais em sua constituição.
É por estas razões da “empresa comercial” que o trabalho escravo se inscreve dentro da
mesma como “comércio de carne humana” (Galeano [1971], 2008), nascem como relações
sociais capitalistas nas fronteiras europeias na formação incipiente do mercado mundial. A
expansão e desenvolvimento do capital contaram com a apropriação de formas de trabalho e
de produção típicas de formações sociais pré-modernas, que adquiriram, por meio da própria
apropriação, um conteúdo capitalista. Assim, o advendo do capital contou com a apropriação
dos processos de trabalho tal como foram encontrados, e só posteriormente é que foram
introduzidas modificações diversas em sua base material, e com a intenção de impulsionar a
expansão desta nova forma social.
Foi neste sentido, por exemplo, que o capital edificou a máquina, no âmbito da “grande
indústria” e foi possível ultrapassar as “barreiras orgânicas humanas”: “não basta que o capital
se apodere do processo de trabalho em sua figura historicamente tradicional estabelecida e se
limita a prolongar sua duração”, “o capital tem que revolucionar as condições técnicas e
sociais do processo de trabalho, e portanto o modo de produção mesmo” (Marx [1867], 2004:
379-382). Essa tendência foi dominada por Marx como “subsunção real do trabalho ao
capital”.
É como parte e produto deste processo que nossa posição periférica leva a falar de uma
“barbárie civilizatória” do capital, que através de sua empresa acumulativa criava uma noção
de “progresso” humano que implicava a superexploração das áreas periferias (“atraso”
periférico) que se mantém em sintonia com as determinações mais avançadas do capital.
94
Revolução democrático burguesa
A teoria revolucionária dos partidos comunistas latino-americanos traço seus eixos
principais numa leitura sobre os países subdesenvolvidos economicamente e com uma posição
subordinada em relação à economia capitalista dos países desenvolvidos da Europa e dos
EUA. Em “A Revolução Brasileira”, Caio Prado disse que se “pressupunha” que esta teoria
sobre a revolução estava baseada em uma análise “séria e rigorosa dos fatos econômicos,
sociais e políticos”, se deduzia da referida análise que o país se encontrava num caminho de
transição do “subdesenvolvimento para o desenvolvimento”, ou seja, do “feudalismo para o
capitalismo”. Assim a revolução necessária dentro deste “esquema consagrado” seria a
“democrático-burguesa” (Prado Jr., 1972: 32)84. É neste quadro que se aplicam estes modelos
totalmente “estranhos e distintos” aos países latino-americanos “cuja realidade se intentava
interpretar revolucionariamente”, introduzindo-se “um ‘todo’ original: o anti-imperialismo”, o
que daria numa “‘revolução agrária e anti-imperialista’ [...] porque se tratava de neles superar
a etapa ‘feudal’ em que, em maior ou menor grau, eles ainda se encontravam”. É o
“desconhecimento e o desprezo” dos fatos reais o que guia essa formulação, como se estes
não tivessem importância ante a “imposição da teoria” (Prado Jr., 1972: 26-28).
Esta posição do Partido Comunista Brasileiro será mantida até o golpe de Estado em 1964,
onde a revolução difundida era basicamente anti-imperialista e com a estratégia de aliança
com a burguesia nacional, formando uma espécie de “marxismo patriótico facilmente”
combinável com o populismo nacionalista hegemônico nessa época. Essa complexa
combinação deteve a primazia da teoria no pensamento da esquerda brasileira. O ponto forte
da posição comunista, que chegou a penetrar nas massas foi o aprofundamento do “sentido
político do patriotismo”, baseado na demonstração de que a dominação imperialista e a reação
interna estão ligadas e a transformação de uma implicava a transformação da outra. O
84 Isto guarda uma relação intrínseca com o modelo leninista proposta para a Rússia czarista, de um caminho que passou do feudalismo para o capitalismo, do atraso (em relação ao capitalismo) para o progresso. “O que caracteriza esse feudalismo é a ocorrência na base do sistema econômico-social, de uma economia camponesa, isto é, da exploração parcelária da terra pela massa trabalhadora rural. Economia camponesa essa a que se sobrepõe uma classe nitidamente diferenciada e privilegiada, de origem aristrocrática, ou substituindo-se a essa aristocracia. Essa classe privilegiada e dominante explora a massa camponesa e se apropria do sobreproduto do seu trabalho, através dos privilégios que lhe são assegurados pelo regime social e político vigente, e que se configuram e realizam sob a forma de relações de dependência e subordinação pessoal do camponês” (Idem).
95
problema não foi esta relação entre o imperialismo e as relações internas, mas a maneira como
se especificava: assim passou a distinguir no interior das classes dominantes um “setor
agrário, retrógrado e pró-americano e um setor industrial, nacional e progressista”, ao qual se
aliava contra o primeiro. Diante desta tese, o inimigo principal passava a ser os aspectos
“‘arcaicos’ (o latifúndio) da sociedade brasileira contra quem se devia lutar para alcançar um
suposto ‘progresso’”. Isto acabou resultando num programa econômico-político
“modernizador e democratizante”, mais precisamente se tratava de uma “ampliação” do
mercado interno através da reforma agrária, nos marcos de uma política externa independente
(Cfr. Schwarz, 2005: 10-14).
Caio Prado se diferencia desta tese dentro do Partido Comunista, sustentando que ao não
existir “restos feudais”, o Brasil nunca exigiu uma revolução agrária e anti-imperialista para
se tornar capitalista. Porque a economia brasileira se baseou na “exploração comercial em
larga escala”85, ou seja, “não-parcelária”, produzida pelo “braço escravo introduzido
conjuntamente com essa exploração” (Prado Jr., 1972: 34). Ao contrário desta leitura, o PCB
propunha uma revolução democrático-burguesa e antifeudal que pressupõe a luta pela “posse
da terra por parte dos camponeses” e isto fez “subestimar e até ocultar por completo que no
campo brasileiro as massas reivindicavam mais e melhor emprego (Prado Jr., 1972: 34; TN)86.
Modernizar não significava implantar o capitalismo87, pois este já estava solidamente
arraigado e no interior do mesmo é que devia buscar-se a resolução dos restos coloniais ainda
vigentes. A agricultura colonial tinha muito mais de “embrionárias tendências capitalistas, que
possíveis restos feudais” (Amaral Ferlini, 1989: 233).
85 Em “História econômica do Brasil” Caio Prado assinala esta ideia da produção agrária em grande escala dizendo que “a colonização europeia nos trópicos inaugurou ali um novo tipo de agricultura comercial extensiva e em larga escala. Aliás durante séculos, até os tempos contemporâneos, é só nos trópicos que se encontra esta forma de produção agrária ” (Prado Jr, 1981: 93).
86 Caio Prado presta uma atenção especial ao papel dos trabalhadores rurais em “A Revolução Brasileira”, a quem cabe promover “o empuxo e impulso de que o país necessita para o seu decisivo passo no sentido da superação do que sobra do passado colonial. É na luta dos trabalhadores rurais pela sua regeneração econômica e libertação social que se encontram as premissas das transformações que estamos considerando” (Prado Jr., 1972: 153-4). Em Mariátegui esta questão se traduz na luta dos indígenas pela terra e pela produção das mesmas, mas este último inova na maneira de pensar estes grupos não como trabalhadores rurais, mas como populações que forma parte de um mundo econômico, social, cultural diferente ao que se constituiu a partir da colônia.
87 Sendo Mazzeo na América Latina se penso que era necessário um primeiro momento de desenvolvimento do capitalismo que permitiria “eliminar el régimen de servidumbre, distribución de la tierra, nacionalización, desarrollo del mercado interno, mejora de las condiciones de vida de los campesinos, disolución de las comunidades rurales (concebidas como simples rémoras de estadios anteriores, precapitalistas) y el consiguiente desarrollo de las contradicciones y la lucha de clases en las zonas rurales”(2008: 128).
96
Em 1949, um informe político realizado por Luis Carlos Prestes, enviado ao comitê
nacional do PCB, caracteriza a importância da luta pela “independência nacional, contra o
jugo colonizador do imperialismo como também a luta contra os restos feudais, contra as
formas pré-capitalistas de exploração”. Os mesmos pontos assinalados no informe de 49
continuaram sendo de relevância em outro informe de 195488. Foi antes do golpe de 64 que se
publica o último informe do PCB, “guardando as mesmas concepções que 36 antes tinham
servido para caracterizar [os países coloniais e semi-coloniais], continuando no mesmo ponto
de partida” (Prado Jr., 1972: 55) sobre a análise da revolução brasileira89. A cúpula dirigente
do PCB mostrará uma grande incapacidade para uma revisão, buscando uma afinamento da
“tática” e na habilidade “prática”, resguardando quase obsessivamente o “aparato partidário”
da influência dos renovadores, produzindo uma discussão sobre os inimigos do partido que
diminuirá o conteúdo e as potencialidades inovadoras dos processos discursivos abertos
(Idem:156).
O debate colocado dentro do PCB entre 1946 e 1964 marcará os pontos de distância que o
mesmo guardará historicamente com a realidade brasileira, estendendo-se esta fórmula para
toda América Latina. Em 194390 a fórmula da “Unidade Nacional” se torna forte nos Partidos
88 O documento aprovado em 1954 pelo IV Congresso, o PCB caracteriza o Brasil como uma “nação sob risco iminente de ser colonizada, numa relação de completa dependência do imperialismo norte-americano que engendraria um processo de militarização acelerada, arrastando o país à nova ordem guerreira incentivada pelos EUA ”. Seguindo esse caminho a avaliação que se realiza do segundo governo de Vargas é de “traição nacional” governo de “latifundiários e capitalistas”, com o cual a derrota do mesmo significaria a substituição por um novo poder da Frente Democrática de Liberação Nacional (FDLN) para realizar una plataforma de soberania nacional, democratização, etc. (Santos; 1991:136).
89 Os anos 50 marcarão a esquerda mundial com XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética. Em 1956 chegaram as primeiras noticias do informe publicado em dito congresso o qual abre uma crise em os Partidos Comunistas devido à absorção acrítica que se tinha tido até o momento do que seria o marxismo-leninismo na chave de Stalin a denuncia dos crimines cometidos pelo regímen socialista. O Partido Comunista Italiano (PCI) tomará este fato como um estímulo para sair do burocratismo e o formalismo dos anos da hegemonia stalinista. A publicação de parte dos informes de dito congresso na “Voz Operária”, propiciará o cenário para o surgimento na cena púbica de dois tipos de pessebistas: “por um lado os que na crítica à forma organizativa proporcionavam elementos alternativos de política; e por outro lado os que começavam a exercer um certo defensismo de algo não muito preciso. Os primeiros começarão a ser vítimas de ataques e foram debilitando-se rapidamente”(Santos, 1991: 140).
90 Em 1943 se realizou a chamada “Conferencia da Mantiqueira”, da qual participam como principais organizadores Diógenes Arruda, Maurício Grabois, Pedro Pomar, João Amazonas, Amarílio Vasconcelos, Júlio Sérgio de Oliveira, Mário Alves, atribuindo-lhe a esta conferencia um papel central para a estruturação do PC a escala nacional. Se elege um Comité Nacional que inclui os nomes anteriores e se incorpora o de Luis Carlos Prestes e Carlos Mantiqueira que estavam no carcere (Documento del Comité Central del Partido Comunista de Brasil, elaborado por João Amazonas e Maurício Grabois entre fevereiro e março de
97
Comunistas da América Latina, influenciados pelas posições de Earl Browder, secretário do
PC dos EUA, de onde surge a concepção da revolução “democrático-burguesa”91. Em 1945, o
PCB volta à legalidade depois de 23 anos de clandestinidade desde o seu nascimento, mas sua
duração é curta, entrando na ilegalidade novamente em 1947. Depois disto, o partido se
prepara na clandestinidade para a Conferência de 1954.
Em seu livro “A Revolução Brasileira” (1966), Caio Prado realiza uma caracterização das
classes sociais no Brasil, dizendo que existe uma “burguesia agrária” formada pelos grandes
proprietários de terra, que a pesar de seus traços “arcaicos” de “atraso, de ambientes
medíocres, não deixa de ser burguesa”. Discutindo a ideia da existência de uma “burguesia
nacional” progressista e anti-imperialista, assinala que, diferentemente do modelo Chinês, está
não existia no modelo brasileiro, já que tanto a burguesia industrial como a burguesia agrária
não possuíam as características que o PBC intentava outorgar. A “burguesia nacional” tal
como foi conceituada anti-imperialista e progressista “não tem realidade no Brasil, e não
passa de mais de um destes mitos criados para justificar teorias preconcebidas; quando não
pior, ou seja, para trazer, com fins políticos imediatistas, a um correlato e igualmente mítico
'capitalismo progressista', o apoio das forças políticas populares e de esquerda. O anti-
imperialismo tem no Brasil outro conteúdo e outras bases que interesses específicos da
burguesia ou de qualquer de seus setores” (Prado Jr., 1972: 105-6).
A atitude tomada pelo marxismo do Partido Comunista Brasileiro e sua deformação
“populista”92 termina entrelaçada com o poder, particularmente durante o governo de
Goulart93. Em consequência, a tônica da crítica será “nacionalismo anti-imperialista,
1972). 91 Sobre o “browderismo” e a concepção “democrático-burguesa” da revolução, se faz referencia no capítulo III
de este mesmo trabalho.92 Sobre o debate da “deformação populista” do PCB, se encontram desenvolvidas no capítulo II de este mesmo
trabalho, no item “marxismo nacionalista”.93 Depois do suicídio de Getúlio Vargas, se produz uma aliança populista entre el PSD e PTB promovendo
como candidato para presidente a Jucelino Kubitschek e vice João Goulart (Ministro de Trabalho do governo de Getúlio Vargas). Nas eleições de 1961, logo da crise apresentada no final do mandato de JK, surge a candidatura a presidente de Jânio Quadros (governador de São Paulo), sendo proclamada pelo Partido Trabalhista Nacional e apoiada pela UDN e outros partidos de centro e direita. Obteve o 48% dos votos, contra o 28% do PSD-PTB, e o 23% do PSP. A formula de Jânio estava acompanhada novamente por João Goulart. Em Agosto de esse mesmo ano, frente a denuncia de “pressões de forças terríveis” Jânio renuncia à
98
anticapitalista num segundo momento”, sem que a estes corresponda um contato com os
problemas das massas; um marxismo especializado na “inviabilidade do capitalismo”, e nos
“caminhos da revolução” (Cfr. Schwarz, 2005: 15).
Serão anos após a publicação de “A Revolução Brasileira” em que se aprofundam as teses
propostas durante 30 anos por Caio Prado, acerca do erro sobre a necessidade de uma
revolução democrático-burguesa. Ao contário da revolução burguesa “clássica”, depois dos
anos 20, e com a crise capitalista, a Segunda Guerra Mundial, no Brasil “a expansão do
capitalismo repousará sobre a dialética interna das forças sociais em pugna: serão as
possibilidades da transformação do modo de acumulação, na estrutura de poder e no estilo de
dominação, as determinantes do processo”. Entre essa tensão é que emerge a “revolução
burguesa no Brasil, sendo o populismo”, com Getúlio Vargas e o “Estado Novo”, “a forma
política que adquiriu neste processo” (Idem: 63).
A diferença da revolução burguesa “clássica”, no Brasil a transformação das classes
proprietárias rurais por novas classes burguesas empresarial-industrial não exigiu uma ruptura
total com o sistema. Na Europa, a hegemonia da classe proprietária rural é total e paralisa
qualquer desenvolvimento das forças produtivas, pelo fato de que as economias “clássicas”
não entravam em nenhuma sistema que os produzisse os bens de capital de que necessitavam
para sua expansão: eles tinham que produzi-los. No Brasil, as classes proprietárias rurais são
particularmente hegemônicas, com o qual mantinham o padrão de reprodução do capital
adequado para o tipo de economia primário-exportadora.
Segundo Oliveira (2003: 64), “com o colapso das relações externas, essa hegemonia
desemboca no vácuo; mas, nem por isso, ipso facto entram em ação mecanismos automáticos
que produzissem a industrialização por 'substituição de importações'”. É assim que o
populismo empreende a grande operação de “juntar o ‘arcaico’ e o ‘novo’”, baseando-se na
reestruturação das relações entre capital e trabalho, com o fim de criar fontes internas de
acumulação; o sentido é a passagem da estrutura de poder de uma classe para outra. Essa
passagem preservará modos de produção distintos, mas não “antagônicos” como crê a visão
dualista da realidade, a penetração de um modo de produção não significava a eliminação de
presidência. Assume João Goulart em meio de uma crise econômica e institucional. O 1 de abril de 1964 Goulart é deposto pelo Golpe Militar que vai até 1984.
99
outro modo, isso dá uma “‘especificidade particular’ ao Brasil (Cf. Oliveira, 2003: 64,65).
3.4 Entre a originalidade os limites desse pensamento crítico.
Neste primeiro capítulo pudemos ver como tanto Mariátegui como Caio Prado existe uma
preocupação por realizar uma interpretação marxista da América Latina, que significou um
momento imprescindível para entender as particularidades regionais e nacionais sobre as
quais se devia assentar a práxis revolucionária.
O aporte de Mariátegui e Caio Prado neste sentido foi insuperável, forneceram uma chave
de leitura para compreender a América Latina. Daí suas preocupações de entender a
conformação da periferia do sistema capitalista. Assim adquiriu significado e relevância as
singularidades históricas de cada realidade e a possibilidade de explica-la no marco de um
processo mundial. É por este motivo que eles continuam sendo clássicos do pensamento
marxista latino-americano. Eles inauguram uma forma de interpretar a América.
Os limites de suas propostas, como uma expressão de uma geração, estiveram dados de
maneiras diferentes. Uma distância que deve ser marcada entre estes autores é o período
histórico que viveu cada um, já que isso mostrará as possibilidades e alcances de suas leituras
de acordo com o que foi observado em seu momento.
Mariátegui viveu até os princípios de 1930, morrendo com 36 anos de idade. Apesar de
haver presenciado o triunfo da Revolução Russa, não teve tempo de observar o que significou
o desenvolvimento do stalinismo e o aprofundamento autoritário desse processo. Ao mesmo
tempo, pôde ver o que significou o desenvolvimento do fascismo na Europa e anunciou o que
este poderia trazer consigo no aprofundamento da regressão social, tal como havia assinalado
após a Primeira Guerra Mundial. Já não esteve presente no desenvolvimento do nazismo e na
Segunda Guerra Mundial, com o qual esse processo violento e reacionário que iria expandir-
se em várias regiões da Europa, acabou consolidando-se com a Segunda Guerra. É
interessante perceber como Mariátegui em sua análise sobre o fascismo na Itália consegue
traças algumas tendências que poderiam marcar novos processos de violência no século XX e
suas consequências para a revolução socialista: “O experimento fascista, qualquer que seja
100
sua duração, qualquer que seja o seu desenvolvimento, aparece inevitavelmente destinado a
exasperar a crise contemporânea, a minar as bases da sociedade burguesa, a manter uma
inquietude pós-bélica” (Mariátegui, 1994k: 936).
Em Mariátegui podemos perceber um limite em seu pensamento no momento de formular
a existência de restos feudais no Peru, que não permitiam dar consecução à luta
revolucionária, sem antes acabar com os mesmos. Coloca isto como uma tarefa da revolução,
no intento de valorizar os avanços do progresso capitalista como necessário para a construção
de um projeto nacional que permitisse unificar as diferentes realidades que conviviam dentro
de um mesmo país. Como dissemos ao longo de todo o texto, esta ideia de Mariátegui é uma
tensão em todo o seu pensamento, mas acabou reforçando a necessidade do desenvolvimento
capitalista como salvação dos males da nação, ao mesmo tempo em que outorga ao atraso as
causas de um determinado tipo de desenvolvimento inconcluso, incompleto: “se a dissolução
e expropriação da [comunidade indígena] fora decretada e realizada por um capitalismo em
vigoroso e autônomo crescimento. O índio então havia passado de um regime misto de
comunismo e servidão para um regime de salário livre. Esta transformação o havia
desnaturalizado um pouco; mas o havia posto em condições de se organizar e se emancipar
como classe, por via dos demais proletários do mundo” (Mariátegui, 1994a: 36).
Para Mariátegui (1994a: 45), o problema da economia peruana está na estrutura da
mesma, em seu caráter colonial, em seu caráter dependente dos mercados internacionais: “o
caráter da propriedade agrária no Peru se apresenta como uma das maiores travas do próprio
desenvolvimento do capitalismo nacional” (Idem: 46). Desta maneira, “a exploração
capitalista e industrialista da terra, que requer para seu livre e pleno desenvolvimento a
eliminação de todo o vestígio feudal, avança por isto em nosso país com suma lentidão”
(Idem).
Com estas interpretações, Mariátegui mostra que não existe nele um rechaço absoluto ao
progresso (tal como é proposto pelos surrealistas), já que ao mesmo tempo que se encontra
com estar críticas à civilização ocidental, se enfrenta, ao regressar ao Peru, com o problema
da organização política e de um projeto de nação que permita dar um sentido orgânico aos
diferentes grupos e lutas que convivem no país.
Para Mariátegui deixar de lado a solução do problema indígena, é deixar de lado “a
101
realização dos sonhos do progresso” (1994c: 292). Desta maneira, a “a opressão enemista o
índio com a civilização. O anula praticamente, como elemento do progresso [...] Desvalorizá-
lo, depreciá-lo como homem equivale a desvalorizá-lo, a desprezá-lo como produtor. Somente
quando o índio obtenha para si o rendimento de seu trabalho, adquiria a qualidade de
consumidor e produtor que a economia de uma nação moderna necessita em todos os
indivíduos” (Idem).
É possível entender que esta contradição que Mariátegui sustenta em sues textos, se deve à
própria contradição que a conquista introduziu na forma arcaico/moderno e sua busca por
outorgar uma explicação e resolução. Não chega a lhe dar consecução a estes pressupostos, de
modo que não podemos saber quais seriam suas propostas programáticas no futuro para a
resolução dos ditos problemas, em meio a um contexto ainda mais regressivo que o observado
após a Primeira Guerra Mundial e com a hegemonização do stalinismo dentro do marxismo
oficial.
É neste ponto que Caio Prado completa o pensamento de Mariátegui, observando a
existência dos restos feudais na conformação das colônias americanas, de modo que essa
tensão assinalada pelo autor peruano, na formulação de Caio Prado é uma consequência da
empresa comercial que significou a conquista.
Caio Prado, diferentemente de Mariátegui, viverá desde 1907 até 1990. Isto explica muitas
das possibilidades que teve seu pensamento, que logrou conhecer grande parte dos fatos
históricos do século XX, como também teve condições para estar próximo, através de suas
viagens, da realidade nacional e das realidades internacionais. Observa Fernando Henrique
Cardoso: “Caio Prado, que era bastante rico, sempre viajou, sempre andou pelo interior, tanto
do Brasil quanto da Europa e da América Latina. As noções que transmite nos livros não
advêm propriamente do que leu em outro autor apenas, mas também do que ele viu. Leu e
viu” (1993: 32).
Os limites do aporte de Caio Prado se observam principalmente no vínculo que estabelece
entre sua interpretação sobre a formação do Brasil e a práxis revolucionária, de onde as
consequências de suas interpretações terminavam em bases programáticas que finalmente
esvaziavam sua idéia sobre o socialismo. Fausto, recém publicada “A Revolução Brasileira”
102
(1966), realizou uma crítica interessante sobre a obra, onde assinala que Caio Prado acabou
ressuscitando com ela o velho revisionismo clássico: “Ao separar radicalmente as duas ordens
de objetivos, Caio não faz mais do que ressuscitar o velho adágio de Bernstein, o papa do
reformismo. 'O fim último do reformismo, não é nada; o importante é o movimento'.
Bernstein como Caio, não negava que o fim último fôsse o socialismo. Mas o que
representaria hoje êsse fim remoto? 'O fim remoto? Pois continua sendo remoto', respondia
Bernstein. Quebrada a conexão que hoje se deve estabelecer entre os objetivos imediatos e
mediatos, rompida a continuidade da praxis em proveito de uma sucessão de respostas que
não poderão acumular experiências, resta por um lado uma política programática e, por outro
um discurso vazio sôbre o socialismo” (Fausto, 1967: 11). Seguindo com Fausto, podemos
dizer que o limite de Caio Prado fica exposto quando tenta encontrar uma solução para o
“problema político” da revolução brasileira. Este limite que se visualizava no programa,
segundo Fausto, se remetia a ideia de “agrarismo” que, ainda que não estivesse totalmente
equivocada sua tese sobre o assalariamento dos trabalhadores rurais, “'desqualifica(va) do
ponto de vista político' a luta pela terra” (Idem). Dice Caio Prado: “A questão da terra no
Brasil não tem a generalidade suficiente, nem se apresenta com a necessária uniformidade em
todos os lugares, para constituir ponto de partida de amplos e continuados movimentos de
massa […] Ela pode determinar […] pontos de atrito que eventualmente degeneram em
conflitos localizados […] Mas não vai nem pode ir além daqueles estreitos limites, pois logo
esgota sua potencialidade, porque a situação conflitante se supera sem que daí resultem novas
contradições e conflitos renovados (1972: 129).
Veremos, no capítulo II, como os movimentos camponeses que existiram desde finais dos
anos 50, com as “ligas camponesas”, e sua consecução no que terminou consolidando-se no
Movimento Sem Terra, refutaram esta tese de Caio Prado, colocando em vigência a
importância da luta pela terra e como ele conseguiu universalizar um campo de demandas na
qual unificavam diversas lutas que estes movimentos enfrentavam.
Segundo Caio Prado “a chave da aliança do proletariado urbano e dos trabalhadores do
campo, e o caminho para a sua efetivação, encontramse na organização, seja sindical, seja de
outra natureza, inclusive política” (Idem: 157).
Seguindo com a análise de Fausto, é possível observar que, já na proposta política de Caio
103
Prado, no final de seu livro, a revolução, nesse momento do país (1966, ano em que o livro foi
publicado), devia centrar suas forças na elevação dos padrões materiais e no estatuto social
dos trabalhadores rurais, essencialmente no aumento do salário. Mas o que incomoda Fausto
deste pressuposto é que Caio Prado não responde a pergunta: quem luta contra o imperialismo
e quem são seus aliados? Sua resposta acaba sendo ambígua, por cais na noção de
“polarização de forças”, que se desdobra numa prática ineficaz. O erro de Caio Prado é não
declarar a burguesia como inimiga, já que o esforço realizado por analisar uma nova
conformação da burguesia nacional, não acaba extraindo as mesmas consequências políticas.
O que fausto assinala é que nesse contexto revolucionário da América Latina, as burguesias
nacionais sabem muito bem qual é o limite razoável das tensões e evitam os combates que
põem em perigo o sistema: “Não seria essa uma das lições do gole de 64?” (Fausto, 1967: 20,
21).
As consequências desse pensamento, que neste ponto se junta com as concepções do PCB,
acaba se colocando a serviço da política de aliança, esvaziando em algum ponto o caminho
que conduz do pensamento à ação. Tal vazio, segundo Fausto, acaba debilitando uma das
ideias centrais de Caio Prado sobre a originalidade da formação brasileira, em relação aos
caminhos clássicos de outras formações nacionais e à estruturação de um capitalismo exitoso.
“De fato, se ele (Caio Prado) se mantém sempre fiel a essa tese, para o passado, o seu
programa político da 'A Revolução Brasileira' […] só pode resultar como perspectiva
estrátegica a utopia de um Brasil país capitalista avançado, como etapa prévia em direção ao
socialismo” (Idem: 23). Esto es posible verlo en palabras de Caio Prado (1972: 183): “A
condição principal para o amadurecimento desse estado de coisas e de espírito, é que
saibamos, isto é, saibam as forças nacionalistas populares e de esquerda propor o programa de
reformas necessárias ao progresso e desenvolvimento do país e do povo brasileiro [em um
contexto onde] cultura e tecnologia cada vez mais aceleradamente se engajam, têm muito
mais a ganhar com a difusão do progresso moderno por toda parte, que com a realização de
bons negócios à custa uns dos outros”.
O programa político de Caio Prado acaba adotando a forma burguesa como proposta
revolucionária, própria de um marxismo mais tradicional, que não corresponde com sua
interpretação sobre a formação nacional. Nas palavras de Fausto (1967: 23) “as conclusões de
104
“A Revolução Brasileira” já estão mais o menos decididas nas suas primeiras páginas, onde
[…] se distinguem os dois sentidos da palavra revoluçaõ: 'emprêgo da fôrça e da violência
para a derrubada do govêrno', 'toma de poder por algum grupo, categoria social ou outra fôrça
qualquer na oposição' (Prado Jr., 1972: 1) [sendo que] da interseção de esses dois sentidos e
não da sua disjunção é que se torna possível uma teoria que se pretenda marxista ou
revolucionária” (Fausto, 1967: 23).
Estes problemas que são identificados na proposta programática de Caio Prado, rementem
a uma ideia de organização revolucionária que não apontava para a conformação de massas
em seu sentido de heterogeneidade, ponto no qual é complementado por Mariátegui e sua
necessidade de articulação das mesmas; mas que acabará baseando sua proposta na
organização de uma luta liderada pelo proletariado urbano, seguindo os esquemas do Partido
Comunista. O que se colocava em questão nesse momento na América Latina (como veremos
no capítulo II) é o debate sobre a questão do poder do Estado capitalista e suas consequências
naqueles projetos que se pretendem emancipatórios.
105
“El problema es que duermo, doctor. Duermo y sueño. Pero sueño con la realidad exacta de todos los días.
Los que otros viven durante doce horas yo lo vivo veinticuatro. Quisiera soñar con algo distinto. Con cualquier cosa.
Pero no. Siempre es lo mismo”94.
94 Frase enunciada pela personagem “Laura,” no filme “Madagascar”, de Fernando Pérez. Cuba/1994.
106
II. OS CAMINHOS E DERROTAS DA ESQUERDA LATINOAMERICANA
Mudar o mundo por meio do Estado tem sido o pressuposto que dominou o pensamento
revolucionário por mais de um século. O debate travado há cem anos entre Rosa Luxemburgo
e Eduard Bernstein sobre “Reforma ou Revolução”, estabeleceu claramente os termos que
dominariam o pensamento sobre a revolução duranta a maior parte do século XX. O debate
entre reforma ou revolução acabou na seguinte formulação: reforma era uma transição gradual
em direção ao socialismo, ao qual se chegaria pela vitória em eleições e a introdução de
mudanças pela via institucional. Revolução era uma transição muito mais vertiginosa, que
seria conseguida com a tomada do poder estatal e a rápida introdução da mudança radical,
levada adiante pelo novo Estado. A intensidade dos desacordos encobria um ponto básico em
comum: ambos os enfoques concentravam-se no Estado como a posição vantajosa a partir da
qual a sociedade podia ser mudada. Apesar de todas suas diferenças, os dois pontos de vista
apontavam a ganhar o poder estatal. Considera-se, desde as duas perspectivas, que ganhar o
poder estatal é o ponto nodal do processo revolucionário, o centro desde o qual se irradia a
mudança revolucionária.
Para Holloway (2002: 28), um dos maiores problemas dos movimentos revolucionários
nos anos 1960 foi agir sob esse paradigma da tomada do Estado, isto é, o suposto de que
ganhar o poder estatal é central na mudança radical. Os governos “comunistas” tanto da
URSS quanto na China ou Cuba, “certamente incrementaram os níveis de segurança material
e diminuíram as desigualdades sociais nos territórios dos Estados que controlavam” (pelo
menos de maneira temporária), mas pouco fizeram por criar uma “sociedade
autodeterminada” ou por promover o reino da liberdade” que sempre tem sido central na
aspiração comunista.
Desta maneria, a ideia de mudar a sociedade por meio da conquista do poder acaba
conseguindo o oposto do que almeja. A tentativa de conquistar o poder implica “a extensão do
campo de relações de poder ao interior da luta contra o poder” (Idem: 36).
Tal como assinalamos nos parágrafos anteriores, esse foi o pressuposto que dominou na
107
maioria dos movimentos de esquerda dos anos de 1960 e 1970. Nesse período, a reabertura do
campo marxista permitiu questionar os pressupostos centrais até esse momento do marxismo
tradicional, assim como sua relação com a periferia. Apesar desse movimento no interior de
diversos grupos de esquerda, eles tiveram que enfrentar um processo contra-revolucionário
por parte do capital e sua expressão nas burguesias nacionais, que significou um
recrudescimento violento do sistema; mas, por outro lado, também se viram impossibilitados
de desdobrar aqueles questionamentos, pensando em outras formas sociais, onde o objetivo
central continuasse sendo a crítica radical do sistema capitalista e não só uma apropriação
progressista daquelas vantagens geradas por esse sistema. Assim, essas revoluções, vistas
desde uma perspectiva histórica, nasceram derrotadas pelo fato de querer transformar e agir
sob os preceptos da forma social que ao mesmo tempo questionavam e precisavam destruir.
Neste capítulo reconstruímos o processo de duas experiencias históricas, a cubana e a
chilena, como caminho para entender de que maneira concreta, tanto nos seus pressupostos
quanto nas suas práticas, elas enfrentam o problema das formas de governo de uma revolução
sem questionar a herança recebida da forma social burguesa, sem realizar uma revisão crítica
suficientemente radical que pudesse dar lugar à recuperação de outras práticas realmente
emancipatórias. Ditas experiências permitiram o avanço em múltiplos aspectos em relação à
construção de uma práxis revolucionária que permitisse pensar para além de leituras
esquemáticas e lineares sobre a história e la revolução; mas ao mesmo tempo morreram
afogadas numa tentativa frustrada de universalizar estratégias a realidades diferenciadas, e na
opção por uma modernização tardia que significava em si mesmo (como veremos no próximo
capítulo) derrotar aquelas práticas, experiências que apontavam a enriquecer um projeto
emancipatório. Boa parte dessa visão conseguiu germinar em diferentes grupos de esquerda os
quais finalmente não conseguiram dar força suficiente para as suas leituras. A visão dual sobre
atraso e modernidade recoloca-se, tanto na academia quanto na prática política,
hegemonizando o campo do debate sobre a definição da natureza da revolução nos países
definidos como “subdesenvolvidos” ou “dependentes”.
Como consequência desse processo, boa parte dos grupos marxistas acabou sofrendo um
isolamento acadêmico que impossibilitou o diálogo com as lutas populares. O marxismo
108
como teoria revolucionária, depois dessas experiencias, entrou numa estagnação própria da
perseguição e morte dos processos ditatoriais e contra-revolucionários; mas também como
parte dessa distância com a realidade. Autores como Mariátegui e Caio Prado já não
conseguem explicar os processos iniciados a partir dos anos de 1960. Perdem sua validez num
contexto no qual as realidades nacionais passam por um forte processo de modernização que
gera um aumento das massas desagregadas, inorgânicas, o que coloca um desafio para pensar
as formas organizativas revolucionárias. Desafio que a esquerda acabou não enfrentando,
gestando, em parte, a sua própria derrota.
1. Política de “conciliação de classe”
A partir daqui analisamos as opções revolucionárias da esquerda neste período passando
pela revolução cubana, pela Unidade Popular no Chile, e pontuando brevemente a experiência
da Frente Sandinista de Libertação Nacional, como os mais expressivos do processo de
construção da estrategia da esquerda. Apontamos como esses processos se inserem num
quadro mais geral de “política de conciliação de classe”, “marxismo nacionalista” e “frentes
antiimperialistas”.
No final da Segunda Guerra Mundial, consolidaram-se mudanças nos sistemas políticos e
econômicos que tinham iniciado em 1930. Com o forte impacto da ideologia democrática a
partir da luta antinazista, assistiu-se a uma importante diminuição do número de governos
militares na América Latina. Lieuwin (sociólogo americano) contabilizou 7 governos
dirigidos por oficiais do Exército, sobre um total de 20 países, em 1947 (Cfr. Sader, 1982: 32).
Após a invasão de Hitler na URSS a análise política mudou na América Latina. No
contexto da aliança anti-fascista entre os EUA e a URSS, qualquer propaganda contra o
imperialismo norte-americano era duramente criticada e estigmatizada pelos partidos
comunistas como uma ação ao serviço do fascismo. Assim, entre 1944 e 1945 desenvolveu-se
o fenômeno do “browderismo” na América Latina. Fazia referência a Earl Browder, líder do
Partido Comunista dos Estados Unidos, quem declarou o início de uma era de colaboração
íntima entre o campo socialista e os Estados Unidos. A vaga “associação política” criada pelo
109
“browderismo” varreu não só o Partido Comunista dos Estados Unidos, mas também os da
América Latina que tinham aceito fielmente a linha desenvolvida por Browder. Em 1945
Duclos95 condena a prática do “browderismo” como “liquidacionista”, e se inicia um período
de autocrítica e retificação que levou ao abandono da perspectiva de convergência
“harmoniosa” com os Estados Unidos e com suas medidas (Cfr. Löwy, 2006a: 32-33).
A política de “conciliação de classe” precedeu nos partidos que aderiram claramente ao
chamado “browderismo”. Assim, por exemplo, Maurice Thorez falando em 1937 para o
Comitê Central da Seção Francesa da Internacional Comunista, propôs ampliar a Frente
Popular para formar uma “Front Français” que incluísse liberais e moderados, assim como
autoridades civis e militares que não tivessem sido anteriormente partidários da Frente
Popular. Thorez no era somente um líder de primeira linha da Internacional, mas era o
“inventor” da Frente Popular; de fato, todos os documentos da Internacional depois de 1941
diziam: “a divisão de classes proposta por Marx tem sido substituída pela clássica divisão
entre nações”. Isso foi se acentuando em 1943 com a dissolução da Internacional. A sua
última vontade mostrava que a “Guerra Mundial tem traçado uma linha divisória entre os
países sob a tirania hitleriana e os povos amantes da liberdade têm se unido numa poderosa
coligação anti-hitleriana” (Caballero, 1988: 196). Essa vontade era diametralmente oposta à
proposta feita por Marx noventa e cinco anos antes no Manifesto Comunista no qual chamava
a unir-se aos proletários do mundo.
Esses antecedentes marcam o território no qual se instalaram as teses de Browder, terreno
fértil de onde surgiu o “browderismo”, de influencia fundamental nos partidos de vários
países latino-americanos.
Dois aspectos importantes assinalam essa importante influencia: por um lado, Browder
justifica suas proposições teóricas baseado no resultado da Conferência de Teerã96, na qual
Churchill, Roosevelt e Stalin estabeleceram os termos de sua aliança depois do fim das
hostilidades; por outro, o browderismo, não se propunha como exemplo a ser seguido por
outros partidos, mas era algo típico dos EUA (Cfr. Caballero, 1988: 200).
95 Líder do Partido Comunista Francês, publicou o artigo que inicia esse período no órgão teórico mensal do Partido Comunista Francês “Cahiers du Communisme”, em abril de 1945.
96 A "Conferência de Teerã", entre o 28 de novembro e o 1 de dezembro de 1943, foi a primeira entre "os aliados" a contar com a presença dos chamados "Três Grandes" (URSS, EUA e Inglaterra).
110
O ponto de partida de Browder era que o capitalismo americano era “o mais avançado do
mundo, mas não o mais maduro”, proposição que não consegue ir além de teses psicologistas
sobre a maturidade e imaturidade que apresenta o povo americano com seu “fanatismo quase
religioso” em relação à palavra de ordem da “livre empresa”. Seu segundo ponto era que o
capitalismo americano era e sempre seria monopolista. A resposta para a primeira tese
também era psicologista, afirmando que a esse fanatismo os comunistas deviam responder
como se responde a uma crença religiosa, ou sejam “respeitando a liberdade de crença”,
portanto desde esse momento respeitar-se-ia a adesão à livre empresa. A resposta à segunda
questão era que não deviam ser prejudicadas as relações com aquela fração do capital que
podia ser ganhada para a democracia e o progresso, sob o lema “o capital monopolista não é
uma massa reacionária”. Browder é bastante claro: a “divisão de classes” não tem mais
sentido. Esta é talvez a posição mais extrema expressada jamais por um “revisionista” do
marxismo (Idem: 202).
A despeito da clara hegemonia stalinista nos Partidos Comunistas, nesse período
conseguiram emergir e sobreviver algumas vertentes mais críticas inspiradas nas ideias de
Trotsky. A concepção de “revolução permanente” que combina “tarefas democráticas,
agrárias, nacionais e anticapitalistas, e rejeita uma aliança estratégica com a burguesia local”
(Löwy; 2006a: 36) por considerá-la incapaz de desempenhar um papel revolucionário
significativo, diferenciava radicalmente o trostkismo do comunismo pró-soviético; além de
sua independência em relação à URSS e sua crítica do autoritarismo burocrático. Por essa
visão da estratégia revolucionária a corrente latino-americana inspirada pelas ideias de
Trotsky considerava-se “continuadora das ideias do comunismo latino-americano da década
de 1920”, especialmente de Mariátegui, a cuja herança política os trostkistas recorriam
frequentemente (Idem). Esses grupos foram sendo reduzidos a seitas, conformados
principalmente por intelectuais, acusados pelos Partidos Comunistas pró-soviéticos de
fascistas. Só na revolução cubana os grupos trostkistas conseguiram consolidar-se na base dos
sindicatos e na classe operária. O papel por eles cumprido nessa revolução provocou um
fortalecimento desses grupos em diversos países da América Latina97.
97 Aprofundaremos esse assunto na análise da Revolução Cubana.
111
O desterro definitivo de Trotsky e a estratégia implementada por Stalin a partir das Frentes
Populares revelou para o conjunto da esquerda mundial não só as dissidências no processo
russo (impossível de ser enfrentado pelos expurgos e pelo contexto da Segunda Guerra
Mundial), mas também estimulou a criação de diversos grupos que desconformes com os
Partidos Comunistas abriram a possibilidade de repensar e recriar as estratégias de luta
implementadas até aquele momento pela III Internacional e tiveram forte impacto nos anos de
1960 na América Latina.
Em 1936 é o ápice das Frentes Populares no ocidente. A vitória eleitoral na França
estimulou os operários a colocar demandas, se inserir nos sindicatos, ocupar fábricas e fazer
greves e manifestações em escala nacional: “A Revolução Francesa começou”, proclamou
Trotsky em The Nation (apud Deutscher, 1969: 301). Os chefes da Frente Popular cortejavam
a derrota, enquanto a contra-revolução mantinha-se à espreita. Durante anos o Partido
Comunista tinha anunciado Les Soviets partout, mas agora quando o momento de passar das
palavras aos fatos, armar e mobilizar os trabalhadores e formar “Conselhos de operários”
aquela palavra de ordem declarava-se “inoportuna” (Deutscher, 1969: 302). Trotsky dirigiu a
seguinte advertência aos seus seguidores: “O partido o grupo que não possa encontrar lugar
no atual movimento de greves e estabelecer vínculos sólidos com os trabalhadores em luta
não é digno de se chamar uma organização revolucionária” (apud Deutscher, 1969: 302).
Nesses anos já no exílio, Trotsky é acusado pelo governo de Stalin de atos terroristas
visando desestabilizar o Estado Socialista da Rússia. Na distância é julgado junto com outros
15 acusados (entre eles, seu filho Livoa), e condenados a morte por aqueles atos. Isso foi feito
por Stalin no mesmo momento em que Hitler entrava com suas tropas na Renania e pouco
depois da formação da Frente Popular na França. Desta manerira, segundo Deutscher (1969:
307), chantageava o movimento operário e a intelectualidade de esquerda de Ocidente, pois o
veiam como seu aliado contra Hitler, não podendo realizar nenhuma acusação sobre os
expurgos, pois isso quebraria a Frente Popular e deixaria a Europa Ocidental enfrentada com
o Terceiro Reich.
Após esses acontecimentos, depois de uma longa peregrinação, Trotski acaba no México,
acolhido pelo muralista Diego Rivera, membro do PC mexicano, onde se relaciona com
importantes personalidades da política, a arte, a literatura. Intelectuais de todos os países
112
chegam de visita na sua casa em Coyoacan, permitindo-lhe manter contato com os diferentes
movimentos, setores de esquerda do mundo todo, principalmente da América do Norte e da
América Latina. É assassinado no México em 1940 por ordem do stalinismo.
Diferentemente do período de 1929-35, nos anos posteriores os partidos comunistas
latino-americanos não lideraram nenhuma revolta de massas e continuaram com sua
interpretação stalinista do marxismo, a revolução por etapas e o bloco das quatro classes para
a revolução nacional-democrática.
O fato mais característico deste período acontece na Guatemala entre 1951 e 1954, quando
o Partido Guatemalteco do Trabalho (PGT, comunista) se torna uma das principais forças
políticas do país durante a presidência de Jacobo Arbenz. O PGT defendia uma estrategia de
revolução nacional-democrática em aliança com os sectores da burguesia e as forças armadas.
Depois do governo de Arbenz expropriar alguns territórios da United Fruit Company um
exército de mercenários treinados pelos Estados Unidos invadiu a Guatemala em junho de
1954. As forças armadas acabaram se alineando com o coronel invasor Castillo Armas, e o
PGT não conseguiu resistir. Desencadeou-se uma repressão sangrenta em grande escala,
devolvendo os territórios à United Fruit Company. Em 1955, num documento de autocrítica o
PGT reconhece não ter tido uma linha suficientemente independente da burguesia nacional
democrática, contribuindo assim no fortalecimento das ilusões em relação ao exército, e não
conseguindo desativar a atividade contra-revolucionária do alto comando do exército. Essa
autocrítica não atinge o fundamento da estratégia da revolução em etapas (a etapa necessária
do desenvolvimento nacional) e a decorrente leitura da necessidade de uma aliança com a
burguesia nacional para uma revolução democrático patriótica. Portanto, em 1955 o PGT
reafirma a necessidade de coligação de forças nacionais (Cfr. Löwy, 2006a: 38)98.
O “Tratado de Yalta” (URSS) de 1945, entre Stalin, Roosevelt e Churchill, permitiu um 98 No relatório de autocrítica do PGT “A intervenção norte-americana em Guatemala e a derrocada do regime
democrático”, publicado em 1955, a avaliação identifica quatro erros principais: a direção da Frente Democrática liderada pelos dirigentes dos partidos burgueses democráticos não levavam adiante as ordens do Comité Central da frente; em muitas ocasiões, por medo a assumir posições sectárias o partido limitou a propaganda do seu próprio programa marxista-leninista, provocando desmobilização das bases; por isso mesmo o partido não soube realizar uma crítica ao governo de Arbenz e da corrupção na sua gestão; o partido deixou que a burguesia exercesse uma influencia nociva sobre si mesmo, aprofundando sua debilidade teórica e política.O problema continua sendo o de que a classe operária não hegemonizou a Frente Democrática, e portanto os interesses da burguesia primaram por sobre os outros (Comissão Política do PGT apud Löwy, 2006a: 207-217).
113
aumento considerável do socialismo prussiano, e significou um renascimento do “otimismo”
no mundo colonial: a China em 1949, Vietnã nos anos 1960, Cuba em 1959 e a África na
década de 1970. Os países do Terceiro Mundo semi-industrializados caracterizam-se naqueles
anos por movimentos que iam desde o nacionalismo autoritário ao nacional-populismo,
acontecendo situações de instabilidade política, que punham em risco o própio
desenvolvimento como consequência da nova ordem de pós-guerra (Cfr. Menegat, 2006: 25).
Com a morte de Stalin (1953) e com o XX Congresso do PCUS (1956) inaugurou-se um
novo período no comunismo latino-americano dos Partidos Comunistas “pró-soviéticos”, não
implicando necessariamente numa ruptura político-ideológica com a liderança da URSS. A
orientação da URSS favorável à coexistência pacífica institucionalizada e o caminho da
modernização depois da Guerra Fria foram traduzidos pelos Partidos Comunistas latino-
americanos como uma linha política de apoio a governos capitalistas considerados
progressistas e/ou democráticos99.
A hegemonia stalinista desde 1930 na esquerda latino-americana, não significou que não
existisse outro tipo de contribuições teórico-políticas de índole marxista. Caio Prado é uma
voz que se mantém ativa na crítica à ideia de impor o modelo feudal para a interpretação das
formações sócio-econômicas do continente, que trazia atrelado o modelo de revolução por
etapas adotado pelos Partidos Comunistas latino-americanos. Como temos apontado no
capítulo I, desde a “Evolução Política do Brasil” (1933), passando por “Formação do Brasil
Contemporâneo” (1942) e chegando à “História Econômica do Brasil” (1945), o autor fornece
uma leitura diferente à adotada pelos Partidos Comunistas pró-soviéticos100.
Tambén Sergio Bagú, com a publicação em 1949 de “Economia da sociedade colonial:
ensaio de história comparada da América Latina”, sugere a hipótese análoga utilizando o
concepto de capitalismo colonial. Segundo Bagú, as colonias luso-hispanas “não nasceram
para repetir o ciclo feudal101” (Bagú apud Löwy, 2006a: 251), e sim para se inserir ao novo 99 Löwy aponta para uma declaração realizada por el Partido Comunista brasileiro em 1958 que ressumiria essa
nova orientação segundo a qual a contradição entre burguesia e proletariado “não exigiria una solução radical na presente etapa. Nas presentes contradições do país, o desenvolvimento capitalista corresponde aos interesses do proletariado e de todo o povo. […] O proletariado e a burguesia se aliam em torno do objetivo comum de lutar por um desenvolvimento independente e progressista contra o imperialismo norte-americano” (Declaração sobre a política do Partido Comunista do Brasil apud Löwy, 2006a: 40).
100 A ideia da conquista “como empresa comercial”, verdadeiro sentido da colonia, negando todo tipo de resto feudal, foi desenvolvida no capítulo I.
101 Bagú reafirma que as características mencionadas por historiadores e economistas sobre o reviver do feudalismo com a conquista luso-espanhola baseia-se na transferência de algumas instituições feudais em decadência na Europa como: certas formas de exploração agrícola, a relação senhor-servo, etc, sendo
114
ciclo capitalista que se inaugurava no mundo. Foram conquistadas e descobertas “como um
episódio mais no grande período de expansão do capital comercial europeu”102(Idem),
demostrado nas décadas posteriores com a exploração minera, agrícola em grande escala, que
respondia aos interesses predominantes nos grandes centros comerciais da Europa (Idem).
Outros autores, da mesma maneira que Caio Prado e Bagú, criticavam aos partidários do
feudalismo latino-americano, como o caso de Marcelo Segall, historiador chileno, quem
insistia na importância da mineração, uma industria tipicamente capitalista, no sistema
colonial.
2. 1960: Acumulação e Revolução na América Latina
2.1 “Novo momento de acumulação”: as ditaduras latinoamericanas
A partir dos anos de 1960, diferentemente do período anterior, multiplicam-se
escandalosamente os regimes militares. Eliminam-se progressivamente os governos
“democráticos-representativos” e irrompem massivamente os corpos de oficiais na cena
política. Ao lado de países que já tinham sido frequentemente governados por militares (os da
América Central, a Bolívia, o Peru, etc.) tinham outros com uma longa tradição “cívica”. O
Brasil, por exemplo, que não tinha tido na sua história um regime militar strictu sensu, foi
governada durante 21 anos pelas forças armadas; o Chile e o Uruguai, que tinham
desenvolvido estruturas democrático-representativas maduras, foram igualmente submetidos a
governos militares (Cfr. Sader, 1982: 32).
Por trás desse processo de militarização dos Estados, ocorre uma profunda mudança nas
relações sociais. Por um lado, o contexto político redefine-se a partir da Revolução Cubana
em 1959. O processo cubano, segundo Sader (1982: 33-35), desencadeou e intensificou uma
crise de hegemonia sem precedentes no continente, e acabou descobrindo a potencialidade
socialista por trás das lutas populares, democráticas, anti-capitalistas, anti-imperialistas,
insuficiente para configurar o sistema econômico feudal. A escravidão não tinha nada de feudal e tudo de capitalista pois as mãos de obra africana e indígena foram os pilares do trabalho colonial americano (Bagú apud Löwy, 2006a: 252-3).
102 Essa leitura segue a tese de Caio Prado sobre a função comercial da conquista e seu lugar na “acumulação primitiva” de capital.
115
camponesas, que estavam sendo levadas adiante. Para os setores populares politizados teve o
efeito de estímulo para um enfrentamento radical de seus problemas, cuja solução até então
não tinha apresentado um horizonte revolucionário. Em alguns momentos, a luta anti-
capitalista desses setores foi sobre-valorizada, tomando como “necessário o que era apenas
uma potencialidade” (Idem). Muitos líderes populares assumiram então uma linha de
enfrentamento radical, sob o suposto de que seriam posteriormente apoiados pela “inevitável”
dinâmica revolucionária das masas. Aconteceu que “a dinâmica revolucionária” não efetivou
essa radicalização das massas, o que caracterizou os enfrentamentos políticos dos anos de
1960-1970, marcados por uma guerra desigual entre as forças armadas e os grupos
revolucionários armados. Isso não significa que não houve uma intensificação das lutas
sociais: houve de fato uma “generalização de lutas camponesas, politização de conflitos
industriais, mobilização inédita de frações do subproletariado urbano e da pequena burguesia,
movimentos de soldados, marinheiros e suboficiais” (Idem). Esses movimentos anunciavam a
superação de padrões reformistas vigentes, mas estavam ainda longe de sustentar
enfrentamentos revolucionários.
As classes dominantes, se sentindo ameaçadas pela emergência dessas lutas, perceberam a
necessidade de sufocar esse processo, substituindo o Estado constitucional pelo Estado
militar, com o objetivo essencial de obter “segurança nacional”, através da guerra contra os
“inimigos internos” (Idem).
A ditadura instaurada em 1964, golpe central no sistema político brasileiro, não significou
uma “mudança de modelo”, mas uma resposta às exigências do processo de acumulação e
industrialização substitutiva que precisava de uma radicalização no controle do novo ator
fundamental – o proletariado- e uma acumulação primitiva mais profunda ainda que as
anteriores (Cfr. Oliveira, 2007: 19). A ditadura estatizou os setores mais importantes da
produção numa escala maior que os nacionalistas das épocas anteriores103.
Por outro lado, deu-se um processo de modificação do padrão de desenvolvimento e
103 Segundo Oliveira (2007: 20) "foi na ditadura que se formou o tripé desenvolvimentista: empresas estatais-empresas privadas nacionais-empresas multinacionais. Uma parte notável do excedente tomava o rumo do exterior para o pagamento da dívida, com o que se caminhou já nos anos 1980 para una crise de dívida externa que marcou todo o período e tornou quase sem eficácia econômica a redemocratização política operada após o encurralamento da ditadura, afinal afastada em 1984.
116
acumulação capitalista no nível mundial, de grande impacto nos países mais importantes da
região que tem seus antecedentes imediatos no período que vai – grosso modo - desde a
Primeira Guerra Mundial até finais dos anos '40. Nesse período a longa crise do mercado
mundial cria as condições para as mudanças no eixo econômico dos principais países do
continente, do setor primário exportador para o setor industrial. “A desfasagem entre a
produção e o consumo, características das economias periféricas, parecia em vias de ser
solucionada” (Sader, 1982: 35). Segundo esse mesmo autor, a redução das exportações latino-
americanas, que restringiu a capacidade de importar dessas economias, acabou liberando
recursos financeiros de um lado e mercado consumidor pelo outro, para o desenvolvimento de
uma indústria de tipo “substituição de importações”. Esse processo de industrialização
começa pelos setores de produção de bens de consumo final, com um desenvolvimento
tecnológico limitado, aproveitando a abundancia de força de trabalho e as disponibilidades
locais de matérias primas. O crescimento desses setores, implicou num aumento da demanda
de força de trabalho.
Continuando com Sader (Idem: 35) podemos observar que o processo de industrialização
latino-americana, ao se produzir sem quebrar com sua base primário-exportadora, teve seu
modo de produção e circulação adaptado a ela: “as burguesias industriais latino-americanas
formaram-se como apêndices de sistemas primário-exportadores. As exportações estavam na
origem das divisas necessárias para a importação de máquinas, equipamentos e bens
intermediários. Por outro lado, as condições de apropriação monopolista da terra geravam
uma reserva importante de mão-de-obra a baixo custo. Finalmente, não raras vezes, a
demanda do setor primário-exportador constituía o principal mercado consumidor dos
produtos industriais locais” (Idem).
A crise de 1929 alterará as condições do mercado mundial, produzindo mudanças
significativas nos sistemas de poder na América Latina: por um lado organizam-se para
impulsar a industrialização; e por outro, na ausência de uma burguesia industrial independente
do setor rural, forma-se um poder que mantem um compromisso entre a antiga oligarquia e os
setores urbanos emergentes. Getúlio Vargas no Brasil a partir de 1930, Cárdenas no México
em 1934, o governo liberal na Colômbia no mesmo ano, a Frente Popular chilena em 1938,
Perón na Argentina em 1945, reorientaram a ação do Estado, fomentando as condições
117
necessárias para a criação de um mercado interno. Esses regimes eram muito diferenciados,
pelas suas alianças internas, as relações de força e inclusive a fase alcançada de implantação
industrial. Mas tem em comum o fato de dirigir um processo de industrialização extensiva,
reforçando o papel do Estado e incorporando novos contingentes de mão de obra ao mercado
de trabalho urbano, sem quebrar a relação de dependência criada pelo sistema primário
exportador, pois eram dessas exportações que se obtinham as divisas necessárias para as
importações requeridas para a implantação industrial no país (Cfr. Sader, 1982).
Os regimes políticos que se instalam a partir do processo de industrialização e que tem por
objetivo seu desenvolvimento, assentam-se numa ampla base social. Novas camadas de
funcionários, geradas pelo crescimento do setor estatal, assim como funcionários do setor
terciário, provocam um crescimento do mercado de trabalho da classe média. Também
profissionais liberais e pequenos proprietários urbanos são favorecidos pelo aumento da renda
urbana. Finalmente, significativos contingentes das classes trabalhadoras verão melhoradas
suas condições de vida e trabalho com o crescimento do emprego industrial, que lhes aparece
como alternativa frente à perda de seus lugares no campo e à migração massiva em direção às
cidades.
No Brasil, por exemplo, segundo Oliveira (2003: 59), o “modo de acumulação global”,
próprio da expansão do capitalismo no, depois dos anos 1930, é produto “de uma base
capitalística de acumulação razoavelmente pobre para sustentar a expansão industrial e a
conversão da economia pós-anos 1930, que da existência de setores 'atrasados' e 'modernos'”.
A originalidade desse tipo de combinação desigual é que no Brasil isso aconteceu
introduzindo relações novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo. Foi a
maneira de compatibilizar a acumulação global, na qual a introdução do novo no arcaico
libera força de trabalho que sustenta a acumulação industrial-urbana y na qual a reprodução
das relações arcaicas no novo preserva o potencial de acumulação liberado exclusivamente
para os fins de expansão do próprio novo (Cfr. Oliveira, 2003: 59-60).
Essa mudança produz uma alteração de aspectos variados que ganham uma significação
maior da que tinham até então. Um deles é a relação capital-trabalho e a promulgação de leis
de trabalho destinadas a instaurar um novo regime de acumulação do capital. Segundo
118
Oliveira (2003) a população em geral e principalmente aquela que migrava para as cidades
necessitava ser convertida em “exército de reserva”104. Essa conversão de enormes grupos
populacionais em “exército de reserva”, forma adequada à produção do capital, era pertinente
e necessária desde o punto de vista da acumulação que se iniciava nesse momento e que
pretendia reforçar basicamente por duas razões: “de um lado, propiciava o horizonte médio
para o cálculo econômico empresarial, liberto do pesadelo de um mercado de concorrência
perfeita, no qual ele devesse competir pelo uso dos fatores; de outro lado, a legislação
trabalhista igualava reduzindo – antes que incrementando- o preço da força de trabalho. Essa
operação de igualar pela base reconvertia inclusive trabalhadores especializados à situação de
não-qualificados, e impedia – ao contrário do que pensam muitos- a formação precoce de um
mercado dual de força de trabalho” (Oliveira, 2003: 37-39).
Diferentemente da “revolução burguesa 'clássica'”, a mudança das classes proprietárias
rurais pelas novas classes burguesas empresárias-industriais não exigiu, no Brasil, uma
ruptura total do sistema, não apenas por razões genéticas, mas também por razões estruturais.
Segundo Oliveira será o “populismo” quem levará adiante essa adequação que começa por
estabelecer uma forma de juntar o “'arcaico' e o 'novo'”, corporativamente, colocando a
relação Capital-Trabalho como o eixo central dessa adequação fundando “novas formas de
relação”, para criar “novas formas de acumulação”. O sentido político mais profundo é o de
mudar definitivamente a estrutura de poder, passando as novas classes burguesas empresárias-
industriais à posição de hegemonia. A legislação sobre as relações de trabalho será o contexto
no qual se realizará esse acordo.
O processo desenvolve-se em condições externas adversas para a mudança, exigindo o
requisito estrutural de manter as condições de reprodução das atividades agrícolas, não
excluindo, portanto, totalmente, as classes proprietárias rurais nem da estrutura de poder nem
dos benefícios da expansão do sistema: “a legislação trabalhista não afetará as relações de
produção agrária, preservando um modo de “acumulação primitiva” extremamente adequado
104 Marx n'O Capital analisa a formação desse fenômeno: “No departamento externo da fábrica, da manufatura ou da casa comercial, na esfera do trabalho domiciliar, já por si totalmente irregular, completamente dependente dos caprichos do capitalista para a obtenção de matéria-prima e de encomendas, o qual aqui não está sujeito a nenhuma preocupação com a valorização de prédios, máquinas etc. E que aqui tampouco se arrisca coisa alguma exceto a pele do próprio trabalhador, cria-se assim, sistematicamente, um exército industrial de reserva sempre disponível, durante parte do ano dizimado por um trabalho forçado desumano, enquanto durante outra parte está na miséria por falta de trabalho” (Marx, [1867] 2004: 583).
119
para a expansão global” (Oliveira, 2003: 62-65)105.
Esse será o “'pacto estrutural'” que preservará modos de acumulação distintos entre os
setores da economia, mas não antagônicos entre si, como pensa o modelo cepalino. Uma
especificidade do modelo brasileiro, então, é que diferentemente do “clássico”, seu
desenvolvimento não requer a destruição completa do antigo modo de acumulação. Essa
especificidade consistiu em reproduzir e criar uma grande “periferia” que permitiu sustentar e
alimentar outros sectores que garantiam a estrutura de dominação e reprodução do sistema
(Cfr. Oliveira, 65-69).
Mas a própria dinâmica da industrialização – que possibilitou os Estados populistas-
superará tais condições. Depois de ter começado pelos ramos de produção de bens de
consumo imediato, a produção industrial local alcança os ramos mais complexos de bens
intermediários e de capital, como resposta a pressões exercidas sobre a capacidade de
importação dessas economias. Se produz então “uma mudança no eixo do processo de
acumulação” (Sader, 1982: 36).
Durante o processo de substituição de importações, produz-se num determinado momento
um descompasso entre as inversões necessárias para a implantação de novas etapas de
produção e os recursos internos disponíveis. É o momento de crise do “nacionalismo burguês”
(Idem) – morte de Vargas em 1954, golpe contra o governo de Perón em 1955-, no qual a
atração de capitais estrangeiros deverá ser acompanhada de “uma legislação permissiva para a
remessa de lucros, oferta de infra-estrutura a baixo custo e, sobretudo, uma força de trabalho
barata e disciplinada. E é também nos anos '50 que os centros dirigentes do capitalismo
mundial promovem um deslocamento maciço de unidades industriais para as regiões
periféricas” (Idem: 37).
Existem elementos do desenvolvimento capitalista latino-americano historicamente
anteriores e logicamente independentes das ditaduras militares, vinculados às condições dadas
105 Menegat afirma que com a ditadura iniciada em 1964 no Brasil completa-se o modelo de substituição de importações iniciado após a crise capitalista de 1930: "com este modelo econômico, o Brasil passou por uma intensa e tardia industrialização e urbanização, o que correspondeu ao pleno desenvolvimento das relações sociais burguesas num país periférico" (Menegat, 2008).
120
pela divisão internacional do trabalho. A internacionalização do processo de produção
industrial constitui todo um complexo de transformações das condições de acumulação na
América Latina, que está na origem do que foi chamado “novo modelo de acumulação” e que
precede aos “novos regimes militares” (Sader, 1982: 59). Essa “internacionalização do
processo de produção industrial” realiza-se como consequência de: “a) o esgotamento da
industrialização substitutiva de importações em consequência da carência de divisas e da
estreiteza do mercado interno, o que indica, por sua vez, as insuficiências do setor exportador
para sustentar a acumulação industrial (devendo prover as necessidades de bens de produção e
bens intermediários pela mediação do comércio exterior), b) a nova expansão de capitais
imperialistas sob a forma de inversões na periferia” (Idem). O “novo modelo de acumulação”
que tem esse processo de internacionalização como um primeiro momento, faz referencia
somente às economias que já tinham alcançado um certo nível de desenvolvimento das baes
produtivas (o Brasil, o México, a Argentina). Depois veio um segundo grupo com o Chile, a
Colômbia, a Venezuela, o Peru eu Uruguai.
Os problemas sociais implícitos no esgotamento do modelo anterior e na
internacionalização da produção industrial acentuar-se-ão com um processo paralelo de
radicalização política. Até os anos de 1950 as respostas políticas a esses problemas
expressavam as polarizações internas das classes dominantes nas suas variantes populista
nacionalista e oligárquico-integracionista. No decorrer dos anos de 1950 os projetos
reformistas burgueses de corte nacionalista esgotam-se rapidamente, porque, por um lado, os
setores dominantes do conjunto da burguesia buscavam, golpear o poder reivindicativo dos
trabalhadores, e por outro lado, porque a politização das lutas sociais radicaliza-se com a
revolução cubana, ao revelar sua potencialidade socialista (Cfr. Idem: 61).
Segundo Sader, a revolução socialista põe-se na ordem do dia, mas as forças interessadas
ainda não estavam preparadas para conduzi-la. A consciência política não acompanha a
extensão das lutas e o seu caráter heterogêneo permitiu respostas eficazes da contra-
revolução. Diante da ameaça social dos explorados, uma amplia coligação de classes
dominantes impulsou a solução militar. “As Forças Armadas não aparecem assim como
'instrumento' do capital monopólico, nem do imperialismo ou dos proprietários de terra, mas
121
mais precisamente como defensores do regime capitalista em sua totalidade, apoiadas pelo
conjunto das classes dominantes” (Idem).
A internacionalização da produção industrial generalizou-se no decorrer dos anos de 1950
nas economias mais avançadas e nos anos de 1960 nas do segundo grupo; e a generalização
das ditaduras militares vinculadas à industrialização se deu da seguinte maneira: Brasil, 1964;
Argentina, 1966-1968 e definitivamente em 1976; Peru, 1968; Chile, 1973; Uruguai em 1973.
O México não sofreu essa experiência; e a Colômbia e a Venezuela aparentemente tiveram um
processo invertido, já que a ditadura militar acaba em 1958. Mas eram ditaduras tradicionaiss,
anteriores a essa industrialização.
Segundo Sader (1982: 62) existem duas consequências decisivas desses processos,
passíveis de generalização: o aumento da exploração da força de trabalho e o aumento do
controle estrangeiro da produção nacional, aprofundando a monopolização da economia.
O primeiro caso a configurar o “novo modelo” foi o brasileiro, onde a partir dos anos '60
uma crise revelava as contradições que opunham as novas bases produtivas às estruturas do
país. “Enquanto o reformismo propunha a ampliação do mercado interno de consumo através
de uma reforma agrária e distribuição da renda, as classes dominantes optaram por golpear as
organizações populares” (Idem: 64). Essa via trouxe uma concentração maior da renda, que
levou a muitos analistas a esperar uma “crise de realização”. De fato, o que se produziu foi
um boom a partir de 1968: “é que, sobre a base de uma superexploração dos trabalhadores, da
'racionalização' do aparato do Estado, da concentração capitalista, uma 'superacumulação'
permitia sustentar os gastos com uma significativa camada de técnicos, de empregados
improdutivos, de especialistas do terciário altamente remunerados e que constituem o
principal mercado de consumo para os setores dinâmicos da economia (automóveis,
eletrodomésticos, etc.)” (Idem). Baixos salários, ordem social baseada na repressão, liberdade
de movimentos para o capital e garantias contra ameaças nacionalistas, infraestrutura
importante e mercado interno suficientemente amplio, foram as condições desse boom.
Na Argentina a ditadura militar não conseguiu estabelecer esse modelo. Depois da queda
122
do Perón, assistiu-se a uma grande penetração dos capitais estrangeiros, com a decorrente
reorganização do aparato produtivo. As novas necessidades de acumulação enfrentam-se com
um regime híbrido depois da saída de Perón e são as forças armadas que intervem para
“reorganizar” o país em 1966. Os avanços econômicos pareciam positivos até o cordobazo de
1969106, quando começam a mostrar suas fissuras. Segundo Sader (Idem) tal vez tenha sido a
mais sólida organização da sociedade civil que não permitiu, diferentemente do Brasil, uma
transição mais rápida para o novo modelo. Foi somente com a eliminação das bases sociais e
com a ditadura de 1976 que conseguiu assentar de maneira mais radical o novo modelo de
desenvolvimento industrial monopolista.
No Uruguai, a ditadura não se estabeleceu até 1973 de forma efetiva, embora desde 1970
as forças armadas controlassem o aparato do Estado na luta contra a guerrilha. Esse país não
conseguiu se recuperar da crise de exportações dos anos '50. O capital estrangeiro chega em
quantidade suficiente para impulsar a monopolização, mas não da maneira como chegou ao
Brasil, Argentina, Chile, México, Colômbia, Peru onde gerou um dinamismo industrializante.
A ditadura militar contentou-se com a aplicação de uma política clássica de exportação de
bens primários (carne, lã) baseada numa redução drástica dos salários (Idem)
No Chile a intervenção militar realizou-se de maneira muito mais abrupta do que nos
outros países: “redução brutal dos salários, do gasto público, diminuição das proteções
aduaneiras, reprivatização de empresas nacionalizadas, subsídio às exportações, apoio às
empresas nacionalizadas, subsídio às exportações, apoio às empresas capitalistas no campo
frente ao 'sector reformado'” (Idem). Diferente do Brasil, ocorre um processo de
desestatização das empresas.
A ditadura no Peru, estabelecida em 1968, teve características diferentes. O governo de
Velazco teve uma grande autonomia em relação ao conjunto das classes dominantes que
aproveitou para realizar uma via “nacionalista” e de reforma agraria, pelo qual a capitalização
106 O Cordobazo foi um importante movimento de protesta acontecido no 29 de maio de 1969, em Córdoba-Argentina, uma das cidades mais industrializadas do país, que viveu uma forte crise da indústria automobilística, e uma forte disputa ao interior dos sindicatos (IKA-Renaut). Isso deu origem a uma jornada de mobilização e protesto que ficará registrada como uma das mais importantes acontecidas no país. O movimento reuniu setores operários mecânicos, eletricistas, metalúrgicos e funcionários, assim como estudantes de segundo grau e universitários, e outros sectores populares, que somados aos levantes no norte da Argentina (Tucumán) com a luta dos trabalhadores da cana de açúcar, a conformação das Ligas Agrárias, revoltas acontecidas em Rosario, Catamarca, Mendoza, significaram uma importante politização da sociedade, reprimida pelo exército, e ao mesmo tempo o fim do governo militar de Onganía (1966-1969).
123
no campo realizou-se golpeando a antiga oligarquia e buscando a criação de uma base social
camponesa. O projeto fracassou, evidenciado pelo isolamento e derrota de Velazco.
Não é que a partir dessas condiciones econômicas, a consequência direta sejam as
ditaduras militares. Como assinalado por Sader (idem), “a burguesia não escolhe a seu gosto
os regimes através dos quais exerce sua dominação”, estes serão o resultado das relações de
força e das articulações entre as diferentes forças sociais e instituições em cada situação
específica.
As ditaduras militares acabaram sendo as formas políticas mais adequadas para o
exercício da dominação burguesa. Sem capacidade de articular sua hegemonia no seio da
sociedade civil, a burguesia apelou à ditadura cada vez que seu regime de exploração foi
ameaçado pela mobilização popular.
2.2 Marxismo NacionalistaVimos até aqui que a chegada do marxismo, a sua apropriação pelos latino-americanos, a
reconstrução do campo marxista após a revolução russa, a chegada do período da
estalinização a partir dos anos de 1930, isso tudo marca um forte debate sobre a natureza da
revolução, o seu sujeito, e as formas organizativas políticas para levá-la adiante. Até a morte
de Stalin esse debate foi silenciado a base de repressão, perseguição e forte dogmatização,
sendo esse o estado predominante nos partidos comunistas no mundo inteiro através da
Internacional. Mas o que acontecia com a esquerda que não estava nos partidos comunistas e
que professava um pensamento e prática de esquerda? Como se processava aquele debate no
campo intelectual?
Seguindo a análise de Roberto Schwarz do desenvolvimento desse processo no caso
brasileiro, podemos inferir que existem alguns elementos comuns a outros países latino-
americanos, e que servem portanto para explicar o desenvolvimento das experiências
populistas na América Latina, o problema da formação de classes na periferia e a dificuldade
para pensar sua organização pelas vias tradicionais – como sindicatos, partidos – e o difícil
desenvolvimento nacional. A partir dessa leitura, Mariátegui ganha novamente vigência no
sentido de que já a inícios do século XX chamava a atenção, atentando para a particularidade
124
das formações latino-americanas, sobre a necessidade de uma formação ampla e heterogênea
das massas que conseguisse incluir as múltiplas e diferenciadas lutas que tinham ocorrida ao
longo da sua história, desde a colonização, e que adquiriam diferentes particularidades
dependendo do momento histórico no qual a organização se encontrava. Como vimos no
capítulo I, Mariátegui enfrenta-se até rachar com Haya de la Torre, precisamente por
diferenças nessas leituras. Deixando o viés da esquerda e a formação do partido tradicional,
não entrava na versão populista, posteriormente desenvolvida em outros países, e isso marcará
o ponto de tensão no qual Mariátegui se encontrava antes de morrer.
A análise do marxismo nacionalista na experiencia brasileira feita por Schwarz mostra
uma realidade particular que marcou fortemente os limites da estrategia revolucionária da
esquerda brasileira ao mesmo tempo abriu com a ditadura de 1964 o processo regressivo e
violento da fase das ditaduras latino-americanas.
O socialismo que se difundia no Brasil desde 1930 e até então era fortemente anti-
imperialista, e a estratégia de Frente Popular com sua aliança de classe era dominante.
Formou-se como complexo ideológico um “marxismo patriótico” (Schwarz, 2005: 10-1) e,
como vimos, a estratégia da Internacional era claramente conciliatória com a burguesia e
mantinha seu combate contra os capitais estrangeiros, a política externa e a favor da reforma
agrária. O ponto forte da posição comunista que penetrou nas massas populares, de grande
alcance e aprofundando o senso patriótico, residia na demostração de que a dominação
imperialista e a reação interna estavam vinculadas, que uma não mudava sem a outra. Esse
anti-imperialismo sobreposto ao anti-capitalismo colocou o Partido Comunista frente ao
desastre que significou o golpe de 1964: na leitura de um setor agrário retrogrado e pró-
americano e um setor industrial nacional e progressista, decide se aliar claramente com o
segundo.
Naqueles anos Caio Prado publica “A Revolução Brasileira”, texto que, como vimos,
mostrava profundas diferenças com a leitura do partido na sua análise sobre os fundamentos
de uma revolução no Brasil. Esses debates também se refletiam na “Revista Brasiliense”. Os
limites de Caio Prado naquele momento residiam não na sua análise mas nos fundamentos da
estratégia política, fazendo parte do partido acabou entrando no marco ilusório da esquerda.
Em 1962, no texto "Perspectivas da política progressista e popular brasileira", Caio Prado
reafirma a ideia da coligação de interesses dos setores progressistas com vistas a conseguir na
125
presidência de Goulart "reformas de base" que incluíam desde "medidas nacionalistas e a
reforma agrária, até a democratização das instituições e o combate ao poder econômico
espoliativo", como recompensa à luta das massas populares que tinham participado do
processo que tinha levado João Goulart à presidência após a renúncia de Jânio Quadros107.
Apesar de apresentar esse panorama, no mesmo artigo Caio Prado afirma que a vitória
avassaladora do "dispositivo janguista" não tinha dado os frutos esperados ou pelo menos
aqueles que o povo poderia esperar depois de suas lutas.
O Partido Comunista, então, da mesma maneira que no restante de América Latina, com
sua leitura dos quatro blocos de classes e a necessidade da unidade, inicia uma transformação
de seu aparato ideológico e político orientado e acreditando fortemente nas alianças.
A crença do Partido Comunista de estar “nadando a favor da corrente” mostrou um dos
fracassos do marxismo oficial. A identificação dos aspectos “arcaicos” da sociedade brasileira,
basicamente o latifúndio, como principal aliado do imperialismo, ao qual o povo tinha que
enfrentar, “povo”108 que estaria formado por todos aqueles interessados no progresso do país,
deu como resultado um plano econômico-político de modernização e democratização
burguesa, que ampliaria o mercado interno através da reforma agraria, tendo como marco
uma política externa independente. Por essa deformação populista o marxismo, antes do
golpe de 1964, será especialista na inviabilidade do capitalismo antes que nos caminhos da
revolução. Caballero aponta para essa questão ao afirmar que a esquerda se perguntava como
fazer a revolução mas não o por que. Esse marxismo teve uma funcionalidade na
objetividade: o lugar fundamental do Estado na acumulação de capital nos países
retardatários. O capital precisa do Estado e o Partido Comunista se iludiu com os interesses
anticapitalistas da burguesia nacional, uma aliança “nacionalista” da mão do populismo. Essa
ilusão não permitiu enxergar que o nacionalismo é diferente para os empresários do que para
as massas populares: o privilegio da burguesia nacional109 era o controle dos recursos naturais,
107 Revista Brasiliense; 1962, N 44: 3108 Schwarz afirma que "no plano ideológico resultava una noção de "povo" apologética e sentimentalizável, o
lumpenzinato, a intelligentsia, os magnatas nacionais e o Exército" (2005: 14).109 Jacob Gorender no seu livro "Combate nas Trevas" afirma que "a linha política do PCB, em cuja elaboração
tomei parte, empurrava à plena luz o seu erro essencial. A burguesia brasileira não pode ser colocada na mesma categoria da burguesia nacional chinesa, acerca da qual teorizou Mao Tse-tung [...] No momento de 1964, a burguesia brasileira já era a classe dominante. Dispunha de grandes recursos econômicos, do aparelho de Estado, de equipes de intelectuais orgânicos e de uma rede de instituições para o trabalho ideológico. A pretensão do PCB de hegemonizá-la fundava-se numa ilusão. Sucedeu o contrário: o PCB é que foi hegemonizado" (Gorender; 1987: 62).
126
materiais, através do Estado para o beneficio próprio. Por que lutariam contra esse privilegio?
O problema já estava apontado por Caio Prado em “A revolução Brasileira”: a revolução
burguesa já tinha acontecido no Brasil e portanto não se podia pensar uma estratégia para que
ela fosse ainda a acontecer (Cfr. Menegat, 2008a).
Nos momentos pré-golpe de 1964 havia um vento pré-revolucionário que permitia que se
falasse em reforma agrária, revolta camponesa, moviemento operário, nacionalização das
empresas americanas, etc. Como afirma Schwarz (2005: 21) “o país estava
irreconhecivelmente inteligente”, a intelectualidade começava a reorientar sua relação com as
massas populares. Nesse momento aconteceu o golpe110. O golpe de 1964 no Brasil tem a
finalidade de garantir outro momento de expansão do capital e também contra as
possibilidades do socialismo no Brasil e no resto da América Latina. El governo popular de
João Goulart111, a pesar da grande mobilização da esquerda atingida, temia a luta de classes e
uma possível guerra civil. O povo que estava participando ativamente do processo que ia
rapidamente construindo um território de debate e propostas de esquerda, não tinha nem
armas nem ainda uma organização autônoma112. O desdobramento disso foi o mesmo que em
todas as ditaduras latino-americanas: perseguição, terrorismo, desaparições, ocupação das
universidades, invasão das igrejas, dissolução de todo tipo de organização política (estudantis,
de trabalhadores), censura, suspensão do “habeas corpus”; foram ataques que se estenderam
duramente durante todo o período ditatorial e deixou vários traços nos governos democráticos
posteriores113.
De maneira particular, no Brasil a esquerda não desapareceu nesse momento, ao contrário,
não parou de crescer (Schwarz, 2005: 8). Mas é preciso qualificar esse crescimento e essa
intervenção da esquerda. Seu domínio baseou-se em grupos ideológicos: estudantes, artistas,
jornalistas, parte da sociologia e da economia, parte da igreja, etc. Os intelectuais eram de
esquerda, mas as matérias que escreviam para o governo não o eram. Essa intelectualidade foi 110 Sobre esse processo no pensamento crítico brasileiro foram uma contribuição fundamental as ideias
desenvolvidas pelo prof. Marildo Menegat na disciplina de pós-graduação "Teoria Critica no Brasil", na Escola de Serviço Social/UFRJ. Rio de Janeiro. 2008/1.
111 Governo referido no capítulo 1.112 Em 1964 deteve-se um processo cultural que ia além das fronteiras de classe, da mercantilização. Segundo
Schwarz (2005:37), em face da ruptura do diálogo com os explorados, para o qual esses movimentos culturais, artísticos, estavam se orientando, acabaram se dirigindo a um público ao qual não estava destinada a sua produção, mudando totalmente seu sentido. De revolucionárias suas formas passaram a “símbolo vendável da revolução”, símbolos da “moral política”.
113 No Brasil 1964-1985; Na Argentina 1966-1973, com um período democrático entre 1973-1976 que finalmente se instaura em 1983; No Chile 1973-1990; No Uruguai 1973-1985; Na Bolívia 1964-1982.
127
deixada no canto pois não produzia grandes incômodos para o desenvolvimento dos planos do
governo implementados pela ditadura. Somente sofreram exílio, repressão, tortura, aqueles
grupos que tinham um contato com as massas populares. O resto não foi problema para o
governo Castelo Branco, que não impediu a circulação teórica e artística com ideias de
esquerda em ambientes restritos. Assim foi até 1968, momento em que as novas massas de
estudantes organizados na clandestinidade foram capazes de dar força material à ideologia.
Afirma Schwarz (2005: 9): “durante esses anos, enquanto lamentava abundantemente o seu
confinamento e a sua impotência, a intelectualidade de esquerda foi estudando, ensinando,
editando, filmando, falando, etc., e sem perceber contribuía para a criação, no interior da
pequena burguesia, de uma geração maciçamente anticapitalista”. A riqueza da produção
desses grupos manteve-se até 1968; quando foi percebida como elemento perigoso, foi preciso
eliminá-la114.
O golpe apresentou-se como uma volta à modernização que tinha sido abandonada nesses
anos todos: a ideia da família como célula da nação e a tradição cristã foram os argumentos da
ditadura. Mesmo assim, como vimos, em diversas esferas (artística, ideológica, política, etc)
seguiu-se gestando um diálogo com as massas populares de onde surgia uma cultura popular
viva e ativa. Foi só a finais de 1968 que a existência da guerra revolucionária no Brasil é
reconhecida oficialmente, donde a pesada ofensiva do Estado, passando à tortura, à prisão
política, ao exílio el larga escala.
Para Menegat (2008a) o golpe de 1964 abre na América Latina uma fase que encerra o tempo
das “revoluções permanentes”. Após o golpe, a crise social, sintomas de mal-estar, foram
generalizados, mas não foram sinais de uma práxis emancipatória, não era a atualização da
revolução: era o “aprofundamento da barbárie”. Perde-se assim a oportunidade re-aberta em
1964 de um horizonte emancipatório. Diferentemente dos anos de 1930, neste momento
existia um caldo cultural e social que permitiu às massas populares propor um projeto de país.
Sobreveio uma contra-revolução que deu continuidade ao modelo que vinha sendo traçado e
114 A Revista Brasiliense era uma expressão importante deses debates, tanto no artístico como no econômico, político, cultural. No seu número 43, por exemplo, temos dois artigos sobre teatro, um deles "Novos caminhos do teatro universitário (o teatro universitário em marcha com o CPC- Centro Popular de Cultura)" de Camila Ribeiro. Refere-se a um grupo experimental da USP (Universidade de São Paulo) cujo texto se propõe retratar uma realidade contra a qual o homem pode algo, a realidade social, porque "não implica em um consentimento da ordem existente, mas transmite através desta uma ideia que transforma" (Revista Brasiliense; 1962, N 43: 189).
128
que estabeleceu as bases para o novo modelo de expansão do capital: adequação ao
capitalismo dos monopólios, preservação dos latifúndios com dependência ao capitalismo
internacional, desenvolvimento das forças produtivas com forte intervenção do Estado,
desenvolvimento pleno do capitalismo monopolista.
O reposicionamento das massas populares não foi mais uma escolha, foi uma imposição do
modelo que trouxe mudanças estruturais: no horizonte, nos sujeitos, nas condições. O balanço
da contra-revolução apontava para duas estrategias diferentes: ou um reformismo
revolucionário ou a construção de poder popular que obrigava a pensar outras formas de
reorganização social e econômica (Cfr. Menegat, 2008a).
Para Schwarz o que ocorre em momento de crise é uma combinação do antigo e do
moderno, mais precisamente das manifestações mais avançadas da integração imperialista
internacional e da ideologia burguesa mais antiga, centrada no indivíduo, a unidade familiar e
suas tradições. Importante aqui é o caráter sistemático dessa coexistência e seu sentido
mutável: se na fase Goulart a modernização passava pelas relações de propriedade e poder e
pela ideologia que precisava ceder diante da pressão das massas e das necessidades de
desenvolvimento nacional, o golpe de 1964 afirmou-se na derrota desse movimento, e assim
fazendo, a integração imperialista que modernizou rapidamente para seus fins a economia do
país, reviveu e tonificou parte do “arcaísmo” ideológico e político que precisava para sua
estabilidade (Cfr. Schwarz, 2005: 28).
3. Cuba e a luta armada
Cuba entra no século XX depois da revolução de 1895 liderada por José Martí. Seus
reclamos baseavam-se na independência da república, na necessidade de acabar com o
colonialismo espanhol, na criação de instituições democráticas que permitissem gerar uma
nação mais igualitária. A resposta é a intervenção dos Estados Unidos, em nome do
imperialismo, colocando governos conservadores e liberais durante 50 anos. Entre 1902 e
1933 ocorre uma sucessão de governos escolhidos através de fraude e inúmeras intervenções
dos Estados Unidos com golpes e contra-golpes para derrubar governos.
Entre 1920-1930 dá-se um movimento de crítica contra a política intervencionista, e
129
contra uma certa aristocracia colonialista ainda vigente. Surgem então escritores como
Fernando Ortiz, Nicolás Guillén; poetas como Regino Pedroso, Marínez Villena, Juan
Marinello. Faz parte, como vimos, de um movimento comum a toda a América Latina.
A assunção de Batista em 1933 abre um ciclo de lutas dos movimentos sociais que
tentavam instaurar novamente a Constituição de 1901, derogada em 1928. Desde 1934, o
movimento de oposição a Batista elabora um lema: uma Assembleia Constituinte que
incorpore ao novo texto constitucional as conquistas democráticas dos mais de dez anos de
luta popular e escamoteadas pelo regime militar. Por causa das pressões das massas
(movimentos pró-anistia, de ajuda ao povo espanhol, antifascista, de jovens, estudantil) e
baseado no calculo de que o governo dos Estados Unidos opor-se-ia às agressivas ambições
do nazismo, Batista começou a manobrar numa perspectiva de abertura, buscando apoio numa
política menos tensa. A legalização do Partido Comunista que se uniu ao Partido Unión
Revolucionaria preexistente, o grande movimento de unidade sindical que permitiu fundar a
Confederación de Trabajadores de Cuba (CTC), as simultâneas garantias oferecidas a outros
partidos e grupos de oposição e o início do processo de convocatória da Constituinte de 1940,
escolhida por votação popular direta, constituem os elementos básicos de uma nova situação.
A Constituição foi votada quando começava a Segunda Guerra Mundial e as forças populares
conseguiram imprimir na letra jurídica os direitos que lhes outorgavam algumas garantias –
embora de caráter formal- de um valor instrumental importante. De fato, os governos que se
sucederam entre 1940-1958 serão julgados pelos movimentos por incumprimento da
Constituição (Le Rivered, 1984: 52).
Em 1952 constitui-se o movimento geral de oposição ao regime de Batista, cujo líder era
Fidel Castro Ruiz. Em 1953 realizam um assalto aos quartéis militares. O assassinato de
vários jovens e a massificação da repressão terá como consequência a multiplicação das
pessoas que decidem inserir-se nos movimentos de revolta. Em 1956 acontece outra tentativa
frustrada de ataque por parte do Movimento 26 de julho. As revoltas continuaram até sua
vitória em 1959 e a capitulação de Batista. Abre-se um novo período com a Revolução
Cubana.
130
3.1 A revolução cubana e o guevarismo A revolução cubana constitui um marco tanto para a história da América Latina quanto
para o pensamento marxista latino-americano. A chegada do exército guerrilheiro no 8 de
janeiro de 1959, que acabou com a ditadura de Batista, conduzido por Fidel Castro, decide
implementar a estratégia da revolução democrática como processo de “transição” rumo ao
socialismo, “rompendo” com o capitalismo em 1960-61. Estabeleceram-se, para isso, uma
série de medidas democrático-nacionalistas como reforma agrária radical, desapropriação das
refinarias de petróleo em mãos de empresas estrangeiras, que encontraram forte oposição não
do capital estrangeiro como também das classes dominantes do país.
A excepcionalidade da revolução cubana, para Löwy, é que uma equipe política de origem
pequeno-burguesa, inspirada numa ideologia jacobina e pelas ideias de José Martí, passou a
fazer parte da classe operária tornou-se “marxista por uma 'metamorfose ideológica' coletiva”
(Lowy, 2006a: 45; TN) sem precedentes. Isso fez com que os dirigentes da primeira revolução
socialista latino-americana fossem alheios ao modelo ideológico do comunismo estalinista.
Por outro lado, isso não significou uma crítica radical a aquele marxismo ou uma ruptura com
a herança estalinista. Sua posterior aproximação com o modelo soviético não invalida aquele
fato histórico.
Com a Revolução Cubana constituía-se um processo que não fazia referência nem à
acumulação insurrecional da Revolução Russa de 1917, nem à estratégia de guerra prolongada
de Mao na China: “uma vanguarda apoiada basicamente em colunas guerrilheiras consegue,
num processo de luta contra uma ditadura decadente, unir o campo e a cidade, desorganizar o
exército inimigo, tomar o poder e, no processo de sua consolidação, trilhar o caminho do
socialismo” (Koutzzi, 1987: 50).
Em face das propostas inadequadas para o Terceiro Mundo, tanto as que provinham da
Rússia com as de Mao, a “via cubana” organiza-se a partir da “teoria do foco”: a coluna
guerrilheira instalava-se no campo e incorporava rapidamente as forças revolucionárias no
campo e na cidade. Era apresentada como uma solução alternativa: “se as condições objetivas
estão dadas, a entrada em ação de uma força armada no campo permitirá a construção
simultânea do partido e do exército revolucionário. Esta ação incidirá ao mesmo tempo na
catalisação e no amadurecimento do próprio processo. Evidentemente, a ação do foco
131
funcionava como um acelerador da revolução” (Koutzzi, 1987: 59).
Koutzzi (1987) assinala que, à luz dos acontecimentos históricos das décadas posteriores,
poderia pensar-se num “delírio generoso” dos que empreenderam aquela façanha, mas que é
preciso compreender aqueles fatos a partir das condições históricas, políticas e da própria
análise teórica que se realizava naquele momento .
A reflexão sobre o processo revolucionário acontece depois da tomada do poder do Estado
e a figura do Che Guevara e sua ideia do “homem novo” e do estímulo moral ao trabalho, dos
compromissos internacionais da revolução, disseminarão uma determinada “forma
revolucionária” para o resto da América Latina.
A adoção da perspectiva da luta armada foi uma crítica ao imobilismo gerado dentro dos
partidos comunistas pró-soviéticos e pró-chineses e seu afastamento das lutas populares. No
contexto geral da Guerra Fria e do fracasso dos partidos comunistas em manter a paz, o
capital encontrava nos ataques bélicos, mais uma vez, a afirmação do sistema.
A defesa por parte dos partidos comunistas de uma aliança com as burguesias nacionais
deixa totalmente vulnerável uma estratégia socialista pois essas burguesias, a despeito das
suas supostas contradições com o imperialismo, não tinham nenhuma potencialidade
revolucionária, como pensava o movimento comunista. A nova “vanguarda revolucionária” na
América Latina afirmará que a potencialidade revolucionária daquelas burguesias tinha
chegado ao fim. Isso foi dramaticamente mostrado com o golpe militar em Brasil em 1964, o
desembarque na República Dominicana em 1965 e o golpe militar de Onganía na Argentina
em 1966 (Cfr. Koutzii, 1987: 52-53).
A revolução cubana abre um novo período revolucionário na América Latina mostrando
por um lado a possibilidade da luta armada como forma de destruir um poder ditatorial e pró-
imperialista e abrindo o caminho para o socialismo. Por outro lado realizando a possibilidade
objetiva de uma revolução que combinava tarefas democráticas e socialistas com um processo
revolucionário ininterrupto.
A leitura segundo a qual as economias latino-americanas estavam num caminho sem
saída, de estagnação, que já não tinham nenhuma capacidade de resposta, reforçou o
pensamento dos guevaristas de que as condições estavam maduras para a revolução. Os
grupos influenciados por essa revolução, pensavam então que, dadas as condições gerais de
132
miséria e pobreza na América Latina, elas por si mesmas gerariam disposição de luta e
consciência política nos “povos oprimidos”. Tratava-se de uma confusão entre “explosividade
social e consciência política. Tomava-se a irrupção da rebeldia popular como reveladora de
condições revolucionarias iminentes” (Koutzii, 1987: 58)115.
A figura que melhor representa esse período revolucionário é Ernesto “Che” Guevara, não
apenas por seu papel na revolução cubana, mas também por suas formulações teórico-
políticas acerca da estratégia revolucionária no continente. Um dos seus principais temas teve
a ver com a ética comunista116 no processo revolucionário e a recusa de medidas econômicas
de construção socialista que se baseiem nas “armas falhadas que nos deixou o capitalismo (a
mercadoria como célula econômica, a rentabilidade, o interesse material individual como
alavanca, etc)” que podiam levar a “um beco sem saída” (Guevara, 1965). A partir de 1963,
Guevara começou a desenvolver uma atitude mais crítica ao modelo econômico, social e
político do “socialismo real”, buscando um caminho socialista alternativo, mais democrático,
mais igualitário e mais solidário.
Por outro lado Guevara reforça que o caráter socialista da revolução na América Latina
tinha que abandonar sua aliança com a burguesia local por ela ter perdido “sua capacidade de
resistir ao imperialismo – se alguma vez a tiveram – e agora só formam sua retaguarda
['furgón de cola']” (Guevara, 1967). De alguma maneira Guevara enfrenta o problema das
etapas no esquema do marxismo pró-soviético, afirmando que “em Cuba pulam-se etapas” no
caminho ao socialismo.
O terceiro elemento enfrentado por Guevara é o da luta armada e a necessidade de que a
guerrilha seja acompanhada pelo apoio das masas camponesas e operárias, sem as quais a luta
é um prelúdio do “desastre inevitável”117.
Segundo Sandroni (1987: 121), talvez tenha sido um dos primeiros latino-americanos a
enfrentar concretamente um dos problemas mais complexos das revoluções vitoriosas: como
construir uma economia socialista num país economicamente atrasado, onde a maioria da
115 A teoria do foco guerrilheiro deduzia de forma simplificada e unilateral da experiência cubana soluções para quase tudo: "'Economizava' os necessariamente longos períodos de amadurecimento da organização e consciência das classes oprimidas. 'Economizava' as etapas da preparação social e militar de insurreição" (Koutzzi, 1987: 59).
116 Para Löwy (1987: 97), a capacidade do pensamento revolucionário do Che Guevara para ser atualizado e reatualizado em diferentes momentos e pelos mais diversos movimentos revolucionários latino-americanos, se deveu ao seu potencial “humanista”, baseado na “filosofia da práxis” que para ele significava o marxismo.
117 Esse debate pode ser encontrado no seu texto “Guerra de guerrilhas, o método”, escrito em 1960.
133
população não dispunha de uma consciência socialista desenvolvida: “tratava-se de organizar
dentro de moldes socialista uma economia com um pequeno grau de diversificação altamente
dependente do exterior, sem uma base industrial, e submetida a um bloqueio e hostilidades
militares sem precedentes na América Latina […] O povo cubano havia aprendido a morrer
pela revolução, mas ainda não a viver no socialismo”.
O debate levado adiante entre os anos 1963-1964 envolveu não só o interior da revolução
cubana, mas a esquerda no nível mundial. Os pontos centrais dessa controvérsia foram: a) a
questão da correspondência necessária entre as forças produtivas e as relações de produção; b)
o princípio do planejamento socialista e a vigência da lei do valor; c) a centralização do
orçamento e a autonomia financeira; d) a questão dos incentivos morais e materiais; e) a
questão do trabalho voluntário; e f) o internacionalismo proletário.
Em relação ao primeiro ponto, o Che afirmava que as relações de produção podem estar
descompassadas do desenvolvimento das forças produtivas, e para reforçar essa argumentação
apela a Lenin e sua concepção do elo mais fraco da corrente imperialista, representado por
Rússia em 1917 (Cf. Sandroni, idem: 124). O Che queria buscava assim reforçar a
possibilidade de uma revolução socialista num país atrasado.
O segundo punto é muito mais controverso, inclusive dentro do debate cubano. O Che
idealiza uma sociedade onde cada um participa com sua capacidade e recebe segundo o seu
trabalho realizado. Diferentemente das sociedades capitalistas, nesse tipo de sociedade todos
são iguais frente aos meios de produção, todos trabalham e as desigualdades na distribuição
do produto está dada pelo fato de que uns trabalham mais que outros (Cfr. Idem: 127). A
controvérsia residia em que os produtos no âmbito da distribuição conservavam o caráter de
mercadoria. Para o Che, essa situação não devia ser avaliada como prova de sobrevivência da
lei do valor, pois a troca não seria determinada pelo valor mas pelos preços administrados que
não necessariamente seriam uma expressão do valor das mercadorias (Idem). O planejamento
era para o Che um instrumento da sociedade para controlar e dirigir de forma consciente a
produção e a reprodução da vida social. Convertia-se num meio para alcançar objetivos
qualitativos: “a organização da produção em função da essencialidade dos valores de uso, a
prioridade para a satisfação das necessidades humanas mais prementes, a participação
consciente e colectiva das massas em todos os mecanismos de direção e produção como única
maneira de romper os grilhões da alienação” (Idem: 130).
134
Em relação ao terceiro ponto, e sua correlação prática com os pontos anteriores, na
preocupação de como seria a organização das empresas e do conjunto formado por elas, estas
não teriam fundos próprios, o arrecadado pela venda dos seus produtos dirigir-se-ia
diretamente ao Banco Central. E este forneceria os fundos necessários para o
desenvolvimento das atividades da empresa. Aqueles que atacavam essa proposição do Che
argumentavam que isso daria numa excessiva centralização e numa burocracia insuportável
(Idem: 131).
O quarto ponto foi extremamente relevante na formação de quadros dos movimentos
políticos latino-americanos surgidos com inspiração guevariana: a criação do homem novo. O
Che, num artigo de 1965, “O socialismo e o homem em Cuba” afirma: “Para construir o
comunismo, simultaneamente com a base material tem que ser feito o homem novo”
(Guevara, 1965). Se os homens na nova sociedade se orientassem por valores constituídos na
sociedade capitalista, o homem novo não seria mais que uma ilusão. Según Sandroni (1987:
134), embora para o Che fosse indispensável o desenvolvimento de uma base tecnológica, o
importante era como ele seria conseguido: “através de uma prática cotidiana, formadora de
uma consciência socialista. E a formação desta consciência entrava em rota de colisão com a
adoção ou tolerância de métodos semelhantes aos existentes no capitalismo, isto é, que
estimulassem o individualismo e acentuassem as diferenças de participação na riqueza
material e, por tanto, no consumo entre os trabalhadores”.
É importante ressaltar neste ponto a vinculação que esse elemento tem com a formulação
de Mariátegui em relação à formação de novos sujeitos a partir da revolução. Ambos autores
estavam preocupados pela autoconsciência que os sujeitos revolucionários teriam que
desenvolver na busca de uma nova sociedade que realmente fugisse das formas sociais
impostas pelo sistema capitalista. Essa formação de massas era ampla, heterogênea, e
compreendia a necessidade de novas maneiras de socialização que significavam bases
materiais e culturais diferentes às desenvolvidas até então.
O quinto ponto, sobre o trabalho voluntário, era crucial para o Che na revolução socialista.
Não só eliminaria a divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, mas também seria a
manifestação mais elevada do trabalho não alienado, do trabalho consciente realizado às
margens das pressões econômicas e/ou morais externas. O Che era consciente de que essa não
era uma tarefa simples e se perguntava até que ponto o trabalho voluntário era uma tarefa
135
voluntária, pois se a continuidade da participação dependia da pressão moral, não seria
totalmente voluntário. Se não realizava a tarefa livremente, e era pressionado por seus
companheiros, não teria sentido nenhum na organização de novas formas sociais.
Por último, na questão do internacionalismo proletário realiza um apelo à solidariedade
entre os países socialistas e uma crítica a eles mesmos por manterem com os países
capitalistas subdesenvolvidos relações de comércio espoliativas. Segundo Sandroni (1987:
138) aqui enfatiza que a ajuda econômica a Cuba por parte do bloco socialista não era um
favor mas um dever. Nessas relações baseava-se a solidariedade do internacionalismo
proletário que não ficara atrelada ao mero intercâmbio entre estados nacionais.
O movimento surgido da revolução cubana, que gerou outras interpretações do marxismo,
tinha como característica principal um certo “voluntarismo revolucionário”, político e ético,
em oposição ao determinismo passivo e fatalista118.
Os movimentos inspirados no chamado “guevarismo” que se expandiram pela América
Latina toda inspiravam-se basicamente numa ideia “voluntarista” e “militarista” da
organização. A derrota política e militar não só debilitou a maioria dos movimentos populares
mas também mostrou o débil apoio que eles tinham das incipientes organizações
camponesas119.
Régis Debray120, no seu livro dos anos '70 “A Guerrilha do Che” avalia como um erro de
leitura nacional e regional a tentativa de generalizar a luta armada na experiencia boliviana
como mecanismo de luta continental. Transferindo as premissas do Che do “A guerra de
guerrilhas” sobre a necessidade da guerra camponesa acompanhar a guerra do proletariado
118 A publicação do livro "Revolução na Revolução" de Régis Debray, em 1968, que marcou os movimentos guevaristas surgidos nesse momento, mostra parte desse "voluntarismo" e a confiança nos processos "revolucionários" que estavam se desenvolvendo em diferentes territórios (sobre tudo no cubano) com a ideia de que rapidamente atingir-se-ia um "continente socialista". No contexto dos processos ditatoriais, a aposta na "luta armada", "sindicatos camponeses" e de uma suposta "adesão quase unanime das massas", reflete as bases desse pensamento surgido pós-revolução cubana (Debray, N/C).
119 Algumas delas são: FALN (Fuerzas Armadas de Liberación Nacional) e o MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionaria) na Venezuela, as FAR (Fuerzas Armadas Revolucionarias) e o MR-13 (Movimiento Revolucionario 13 de noviembre) na Guatemala, o MIR e o ELN (Ejército de Liberación Nacional) no Peru, a FSLN (Frente Sandinista de Liberación Nacional) na Nicarágua, o Movimiento 14 de junio na República Dominicana e o ELN na Bolívia.
120 Régis Debray, filósofo e escritor francês que após o triunfo da revolução cubana viajou para Cuba e esteve até o último momento acompanhando o exército guerrilheiro de Bolívia. Foi detido e encarcerado pelo Exército Boliviano, em abril de 1967, e condenado a 30 anos de prisão. Foi liberado dois anos depois, após a queda do governo de René Barrientos, sendo anistiado pelo novo governo de Juan José Torres.
136
urbano, acabou gerando movimentos fracos e sem uma clara conexão com os diversos setores
populares. Mas Debray adverte que os limites do diagnóstico sobre a realidade boliviana não
invalidavam totalmente os planos do Che, pois a Bolívia não era um objetivo central mas
somente um momento tático num horizonte histórico mais geral. A tática do “foco
guerrilheiro” aparece com um objetivo maior à simples “tomada do poder” (Debray, 1980:
67). Escolhendo um campo de operações afastado dos centros políticos (como La Paz), o Che
revelava a escolha de um campo histórico distinto. Com essa estrategia, segundo Debray
(Idem: 68), não só ampliava seu campo de visão por cima das fronteiras nacionais, mas se
afastava também dos métodos da esquerda tradicional implementados até então. O objetivo
não era a “tomada do poder” mas a construção de poder popular materializado pelo seu
instrumento de ação, uma força militar autônoma e móvel. “Em sua concepção, a construção
do poder popular se antepunha à tomada de poder na Bolivia, derivada no tempo e secundária
em importância. Essa inversão de ordem dos fatores e dos momentos históricos marcava uma
ruptura efetiva com a tradição local” (Idem).
Até então a estratégia da esquerda era primeiro a tomada do poder do Estado, do aparato
burocrático e militar existente, para posteriormente utilizar esse poder como alavanca para
gerar um governo “progressista” e/ou “populista” que tentaria construir as bases de um poder
popular. Nesse sentido, segundo Debray (Idem: 69), o Che rompia com o costume “golpista” e
com a tendência às sublevações do “populismo contemporâneo”, predominante na Bolívia e
em outros lugares. O Che retomava assim a lição fundamental de Marx de que a revolução
proletária “não pode simplesmente deitar a mão sobre a máquina do Estado 'já feita', porém
debe romper com a máquina militar e burocrática do Estado burguês e instaurar a ditadura do
proletariado” (Marx apud Debray, 1980: 69).
Ñancahuasu, escolhido como território para o foco guerrilheiro, era um lugar pensado
como um campo de treinamento que num prazo de dois anos geraria um exército guerrilheiro
que permitiria ações na América Latina toda. O assassinato do Che em 1967 por parte do
exército boliviano e a captura do resto dos guerrilheiros acabou com o plano.
Paralelamente à revolução cubana e aos movimentos guevaristas surgiram também em
diferentes países movimentos guerrilheiros urbanos que vinham se desenvolvendo nas
periferias das cidades e que tiveram um importante impacto político no momento de sua
137
explosão121. A maioria deles foram destruídos pelas ditaduras.
Junto com a conformação da corrente política “guevarista”, desenvolve-se uma “ciência
social marxista” que, penetrando nas universidades latino-americanas, enriqueceu o estudo da
sociologia, da economia política, da historia, da ciência política. Os grandes assuntos
abordados por esta ciência eram: dependência e subdesenvolvimento, populismo, sindicatos e
a relação com o Estado, movimentos operários e camponeses, a questão agrária, a
marginalidade, etc. Apesar do pertencimento da maioria desses intelectuais-pesquisadores ao
meio acadêmico, eles não deixavam de vincular o desenvolvimento das pesquisas aos
problemas práticos da realidade. Os temas principais sobre os quais baseavam suas reflexões
eram: a recusa da ideia do feudalismo latino-americano, a crítica ao conceito de uma
“burguesia nacional progressista”, uma análise da derrota das experiências populistas como
resultado das próprias formações latino-americanas, a origem do atraso econômico como
parte do desenvolvimento capitalista dependente, e finalmente a impossibilidade de um
caminho “nacional democrático” para o desenvolvimento social na América Latina (Cfr.
Löwy, 2006a: 50).
É possível afirmar que com o guevarismo abre-se novamente o debate da revolução latino-
americana. Pelo contexto histórico que permite o surgimento desse pensamento pois ele volta
a ser colocado sobre as particularidades da América Latina, assinaladas por Mariátegui e Caio
Prado e os grupos de intelectuais surgidos nos anos 1920, como uma geração que abre para
novas formas de leituras sobre a formação da América Latina e seu desenvolvimento posterior
como desdobramento daquela formação.
Os anos de 1960 significam uma abertura para esse debate, não só pelos processos de
agitação, produção intelectual e a revolução cubana, mas também por uma revisão crítica do
que tinha sido o período stalinista, suas leituras e estratégias revolucionárias, para o conjunto
dos partidos comunistas no nível mundial. Assim, a esquerda herdeira da Segunda Guerra
Mundial, com a publicização do expurgo stalinista, tem por um lado a tarefa dessa revisão,
mas sobretudo emerge nas massas populares uma interpelação por novas leituras e estratégias.
Como vimos, esse processo foi cortado abruptamente pelos processos ditatoriais.
121 Alguns desses movimentos são: Movimiento de Liberación Nacional (Tupamaros) no Uruguay, PRT-ERP (Partido Revolucionario de los Trabajadores-Ejército Revolucionario del Pueblo) na Argentina, a ALN (Ação Libertadora Nacional) e o MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro) no Brasil, e o MIR no Chile.
138
Nesse contexto deve ser entendida a revolução cubana: ela provocou uma “revolução”
dentro do marxismo e dentro dos que detinham seu monopólio: os partidos comunistas.
É importante refletirmos sobre a maneira pela qual a revolução cubana influiu na esquerda
latino-americana e a oposição que significou naquele momento a uma concepção de história e
de política na qual o progresso, submetido a leis “objetivas”, substituía a práxis e na qual a
luta de classes era mero reflexo da cena social dos quase-desígnios das estruturas.
No campo da cultura essa reabertura não foi menos profunda. Passou a interpelar o âmbito
universitário para que nela repercutisse esse processo emergente nas massas populares.
Ocorre então um diálogo fecundo entre o campo intelectual e as massas populares
mobilizadas. Em 1971 Fernández Retamar escreve “Caliban” como produto desse processo,
no qual as diferentes correntes de esquerda se perguntaram pela existência ou não de uma
“Cultura” latino-americana, de um “Ser” latino-americano122. “Caliban” como o antropófago
“Caníbal”, que era o “homem bestial situado irremediavelmente à margem da civilização e a
quem era necessário combater a sangue e fogo” (Fernández Retamar, 2004: 3), foi a imagem
construída do homem que habitava as terras colonizadas123.
No capítulo I observamos a importância do movimento modernista na América Latina, na
formação de um campo intelectual que conseguiu expressar a diferença de ser intelectual da
periferia e tentar compreender essa periferia. A partir da década de 30 abandona-se aquela
necessidade de perceber a diferença da periferia do capital. Os anos 60 re-colocam aquelas
preocupações. Como afirma Fernández Retamar, pensar a nossa condição de “Caliban”
implica repensar a nossa história desde o “outro” lado, desde o “outro” protagonista, não
desde o “Ariel”124, quem seria nosso “outro” ser latino-americano: ilustrado, iluminado, que
122 Mariátegui é um dos intelectuais mais influentes nesses movimentos que tentavam resgatar um "marxismo latino-americano que não fosse calco e cópia". O Che Guevara conhecia os sete ensaios e destacava a sua relevância no pensamento revolucionário latino-americano.
123 Fernandez Retamar constrói a história do "Caliban" americano, inspirado na personagem Caliban/Caníbal (A Tempestade, de Shakespeare) e afirma: "em Montaigne (fonte de inspiração de Shakespeare) no seu ensaio de 1580 'Dos Canibais' nas terras desconhecidas 'nada tem de bárbaro nem de selvagem nessas nações; acontece que cada um chama de barbárie o que é alheio a seus costumes'. Em Shakespeare, ao contrário, esse Caliban/Canibal é um escravo selvagem e deforme para quem são poucas as injúrias. Acontece, simplismente, que Shakespeare, realista implacável, assume aqui ao desenhar Caliban a outra opção do nascente mundo burguês [...] Ao homem concreto, apresentá-lo como um animal, roubar-lhe a terra, escravizá-lo para viver de seu trabalho e, de ser preciso, exterminá-lo: isto último, sempre que contasse com alguém para realizar no seu lugar o duro trabalho [...] Não resta dúvida que 'A Tempestade' alude à América" (Fernandez Retamar, 2004: 4).
124 Ariel é um espírito evocado por Prósper (personagem de “A Tempestade”) que se contrapõe à natureza e
139
consegue desenvolver um pensamento autônomo, próprio da América Latina. Não há uma
verdadeira polaridade entre Caliban e Ariel pois “ambos são servos nas mãos de Próspero125, o
feiticeiro estrangeiro. Só que Caliban é o rude e inconquistável dono da ilha, enquanto Ariel,
criatura aérea, embora também seja filho da ilha, é nela o intelectual” (Fernandez Retamar,
2004: 11). Recuperava-se aqui a possibilidade de um pensamento e ação que permitissem
refletir um processo social que demandava do campo intelectual uma reflexão encerrada a
partir dos anos 30. Raras tinham sido as obras que tinham conseguido fugir dessa
homogeneização. Essa reabertura foi abortada não só pelas ditaduras militares mas também
por uma incapacidade da esquerda hegemônica de absorver outras formas sociais de
organização, outras tradições que existiam antes da chegada da cultura ocidental.
O processo aberto pelo guevarismo permitiu questionar o transplante violento, no qual a
esquerda também contribuía, do mundo ocidental para a América. A reabertura da leitura
marxista reabriu o debate sobre o lugar no qual se ancorava a construção de poder popular e
os limites que esse processo enfrentava quando se tentava reproduzir uma mesma forma para
realidades e processos diferentes. A maioria dos grupos de esquerda desconheceu as
singularidades das lutas camponesas e proletárias, donde a tentativa de generalização de
estratégias que forjou derrotas anunciadas antes do nascimento.
Um dos campos importantes dessa reabertura foi a igreja católica latino-americana com o
surgimento da “teologia da libertação”e seu vínculo com as organizações de base e com o
marxismo. O caráter dos regimes ditatoriais e o processo de renovação da igreja através do
Concílio Vaticano II, fizeram com que muitos sacerdotes e líderes do mundo católico se
aproximassem de uma nova maneira, de forma mais democrática, aos trabalhadores da cidade
e do campo, através de programas de assistência. Iniciava-se um deslocamento por parte de
alguns setores da igreja em direção a uma dimensão ideológico-política mais próxima dos
movimentos de massas que procuravam transformações sociais. Os grupos ou movimentos
cristãos mais destacados desse período foram “Sacerdotes do Terceiro Mundo” (Argentina,
governa suas forças, representando a “razão” e sua “potência”. Fernandez Retamar retoma a figura de "Ariel" (1900) construída na obra de José Enrique Rodó (1871-1917), na qual o autor exprime uma ilusão sobre a "juventude" americana, fazendo referência como metáfora às terras jovens da América e sua passagem para a maturidade, como uma clara contraposição ao "Caliban" de Shakespeare.
125 Personagem de "A Tempestade" (1611), de William Shakespeare (1564-1616).
140
1968), “Movimento Onis” (Peru, 1968), “Movimento Golconda” (Colômbia, 1969), “Igreja e
Sociedade” (Bolívia, 1969), “Cristãos para o Socialismo” (Chile, 1971). Pela condição de
clérigos de seus integrantes, esses grupos tiveram muita influência na propagação dos novos
posicionamentos dentro da igreja e no conjunto da sociedade.
A teologia da libertação não surgiu de uma escola de pensamento gestada dentro da
universidade ou nos centros teológicos ou fruto de uma reflexão pós-conciliar europeia. Foi
“um esforço original de nossos países para ser uma maneira diferente de fazer teologia,
reflexão crítica da práxis histórica, como ato que pensa um compromisso de caridade
anterior” (Souza apud Borgi, 1987: 59). Resulta impossível compreender a teologia da
libertação separada do contexto das práticas sociais, políticas e eclesiais da América Latina
naquele momento. A originalidade e especificidade da teologia da libertação reside na especial
combinação entre uma perspectiva teológica, uma tradição de pensamento, a teoria crítica
latino-americana, a apropriação de um instrumental teórico-metodológico marxista, e as
características das próprias formações sociais latino-americanas, onde se destaca o importante
espaço e protagonismo dos grupos e movimentos cristãos.
Segundo Löwy (1999: 1), a teologia da libertação, isto é, o corpus inovador de escritos
realizado pelos teólogos socialmente comprometidos como Gustavo Gutiérrez, Hugo Assman,
Leonardo e Clodovis Boff, Enrique Dussel, Frei Betto, Jon Sobrino, Pablo Richard, Franz
Hinkelammert (entre outros), não é mais do que a ponta visível de um fenômeno profundo
que mudou a história moderna da América Latina. Nascida nos anos '60 a teologia da
libertação é a expressão de um vasto movimento social que inclui setores da igreja (ou das
igrejas), muitas das ordens e congregações religiosas, as comunidades eclesiais de base,
movimentos cristãos laicos, promotores sindicais rurais e urbanos, e uma parte significativa
dos militantes de certos movimentos políticos de libertação social. Na análise de Löwy, “sem
a práxis desse movimento social, não é possível compreender os acontecimentos mais
importantes desde os anos 70 como as revoluções centro-americanas (Nicarágua, El
Salvador), ou o surgimento de um novo movimento operário e camponês no Brasil” (Idem).
Quais elementos propiciavam a congregação da teologia da libertação e do marxismo? A
crítica do fetichismo, como base da teoria marxista, foi a fonte mais rica da qual a teologia
bebeu nos anos 60 e 70. Dela surge a construção de uma práxis histórica sustentada numa
crítica radical da forma social capitalista. Com a teologia da libertação, a esquerda, coisificada
141
em seus dogmas, consegue novamente entrar em contato com as lutas sociais, os movimentos,
e revitalizar a teoria revolucionária. Segundo Löwy (2000: 19), “o cristianismo de libertação
latino-americano [...] é basicamente a criação de uma nova cultura religiosa que expressa as
condições específicas da América Latina: capitalismo dependente, pobreza em massa,
violência institucionalizada, religiosidade popular”.
A teologia da libertação e o marxismo constituíram-se em campos de confluência que
enriqueceram profundamente o pensamento crítico latino-americano, superando a mera
articulação política do momento inicial para passar a uma esfera de afinidade,
correspondências, possibilidade de ação e sobretudo de transformações mutuas. Nem o
cristianismo, tal como formulado desde a teologia da libertação permanecerá o mesmo após
seu encontro com o marxismo nem o marxismo poderá abrir mão de certas contribuições da
teologia e das concepções cristãs para a análise de uma sociedade fetichizada, alienada e
mistificada.
O concepto mais importante da crítica marxista do capitalismo é una "metáfora teológica",
referida à idolatria: o fetichismo (Cf. Löwy, 1999). Marx tinha descoberto esse termo em
1842, no livro de Desbrosses, Sobre el culto de los dioses fetiches (1785). N'O Capital, na
célebre seção 4 do capítulo I, sobre "O carácter fetichista da mercadoria e seu segredo"
descreve a mercadoria "uma coisa muito complexa, cheia de subtilezas metafísicas e de
argúcias teológicas". O carácter fetichista da mercadoria consiste em que as relações sociais
determinadas entre os seres humanos revistem para eles “a forma fantástica de uma relação
das coisas entre elas mesmas”. Löwy observa que as primeiras tentativas de utilizar a análise
de Marx para formular uma crítica teológica do capitalismo moderno como “sistema
idolátrico”, tiveram lugar no seio d destacadaequipe de teólogos que fundou em 1976 em San
José da Costa Rica um centro ecumênico de pesquisa, o Departamento Ecumênico de
Investigações (DEI): Hugo Assmann, Enrique Dussel, Franz Hinkelammert, Jorge Pixley,
Pablo Richard, etc. O primeiro resultado das discussões do DEI foi o livro pioneiro de
Hinkelammert, “As armas ideológicas da morte” (1978). A crítica do sistema de dominação
econômica e social existente na América Latina como forma de idolatria será esboçada, sob
distintos ângulos, dois anos depois, numa coleção (ou compilação) de textos do DEI publicada
com o título “A luta dos deuses”. Os ensaios fazem referência tanto às fontes bíblicas como às
formas antigas e modernos do culto dos ídolos. Somente o texto de F. Hinkelammert —"As
142
raízes econômicas da idolatria: a metafísica do empresário"— está dedicado às raízes
econômicas da idolatria (capitalista) contemporânea. Esse assunto será objeto de uma análise
profunda e inovadora no destacado livro de Hugo Assmann e Franz Hinkelammert, “A
idolatria do mercado. Ensaio sobre economia e teologia” (1989). Essa importante contribuição
é a primeira, na história da Teologia da Libertação, que está explicitamente dedicada ao
combate contra o sistema capitalista definido como idolatria.
Mariátegui está fortemente vinculado a esse processo das década de 60-70, na recuperação
de uma religiosidade popular. Como já assinalamos, tentou nutrir ao marxismo de outras
vertentes fundamentais para pensar a práxis revolucionária na América Latina. A teologia da
libertação não desconheceu esse trabalho, principalmente porque o vínculo com as
comunidades indígenas exigia uma compreensão da religiosidade que ia além da esfera da
igreja católica.
Junto ao guevarismo e à teologia da libertação surgem também outras correntes
revolucionárias na América Latina, com um menor nível de repercussão e de militantes: o
trotskismo e o maoismo.
A consolidação do trotskismo dá-se, segundo Löwy (2006a: 50) porque a Revolução
Cubana foi vista por muitos setores da juventude radicalizada como uma “confirmação da tese
da IV Internacional” da “revolução permanente” como processo que conduz ao
“transcrescimento” da revolução democrática numa revolução socialista.
Entre 1961 e 1963 o trotskista peruano Hugo Blanco liderou um dos maiores movimentos
camponeses de massas da história recente na América Latina. No livro “Tierra o Muerte”,
Hugo Blanco descreve a maneira na qual os camponeses se organizaram e levaram adiante sua
própria reforma agraria. Explica também como as massas se convenceram da necessidade da
luta armada e aponta os limites dessa luta na tentativa de chegar numa escala nacional.
Segundo Camejo126 (1979: 17), Hugo Blanco rejeitou as teses debrayanas do “foquismo”,
procurando o apoio das massas à luta armada, em lugar de baseá-la em pequenos grupos
isolados. Observa Blanco (1979: 81): “Os trotsquistas sabemos que a luta armada é uma fase
126 “Introdução” in “Terra ou Morte”. Em 1971, ano de publicação desse texto, Peter Camejo era membro da direção do “Socialist Workers Party” (SWP) dos Estados Unidos, e do “Secretariado Unificado da IV Internacional”.
143
obrigatória da revolução, mas somente isso: uma fase [mas] não podemos dizer que forma ira
a tomar essa luta armada e em que momento irá a se dar”. Afastando-se claramente das teorias
foquistas, afirma: “Sublinho as massas, porque é a parte que não entendem os ultra-
esquerdistas. Eles creem que basta que nós, os revolucionários, saibamos que a revolução há
de ser violenta” (Idem- Itálicas del autor).
Nem pela via do foquismo, nem pela “via pacífica ao socialismo” (com os exemplos do
Chile e do Uruguai), Chaupimayo (lugar da organização das massas camponesas lideradas por
Blanco) mostrou, segundo esse mesmo autor, que existia uma terceira via. A adesão de Blanco
ao indigenismo e seu convívio com a população quéchua, permitiram-lhe por um lado uma
forte recusa da proposta da APRA e por outro lado também às premissas do Partido
Comunista Peruano. No mesmo livro Blanco (Idem: 40) chama a atenção para o tipo de
organização do Ayllu127. Igual que Mariátegui, define-o como a “célula do comunismo
primitivo”, “fonte da revolução” pois ali é “conservada a organização comunal”. Esse tipo de
organização contrapõe-se à “fazenda”, importada pela colonia espanhola. À opressão sofrida
pelo indígena com a nova forma social de produção, o latifúndio, acrescenta-se outro aspecto::
“o 'índio' é uma nacionalidade oprimida”(Idem: 43).
Para os grupos de camponeses, a organização de massas torna-se um eixo fundamental no
debate, pois a conjunção dos povos indígenas com o restante das populações camponesas e
urbanas colocam um desafio enorme para a esquerda e para a teoria marxista, onde a teoria do
partido, a tomada do poder do Estado, a classe proletária são categorias que não conseguem
dar conta da complexidade dessas realidades nacionais e regionais. Apesar de os grupos como
o de Blanco realizarem um apelo à formação do partido como base para essas lutas, eles não
deixam de assinalar os limites de qualquer tipo de organização que não leve em consideração
a própria dinâmica que envolve as massas indígenas nessas regiões. A vitalidade do
pensamento de Mariátegui nesse ponto é indiscutível, e foi fonte de inspiração na organização
desses grupos.
A simpatia do trotskismo pela Revolução Cubana e a recepção das ideias do Trotsky por
parte dos guevaristas permitiu uma relação de colaboração em diferentes países e em muitos
lugares uma confluência política e/ou organizativa128. 127 Ver nota 66.128 São os casos do Chile, com o MIR em 1965, da Bolívia com a colaboração entre o POR e o ELN entre 1969
144
Já a relação do guevarismo com o maoismo foi mais conflitiva, pois a origem destes vem
da cisão dos Partidos Comunistas tradicionais no conflito sino-soviético129. O primeiro grupo
maoista latino-americano foi o Partido Comunista do Brasil (PCdoB)130, produto de uma
corrente dissidente do PCB desde 1962.
O PCdoB propunha um retorno à política de ofensiva do período da “Guerra Fria”131 e
uma tentativa de aplicar a estratégia revolucionária do PC chinês. Seguindo aquele exemplo,
o PCdoB propunha um “bloco de quatro classes”132 e o estabelecimento de um governo
revolucionário conquistado por uma guerra popular, cuja tarefa seria uma revolução anti-
imperialista e anti-latifundista. Como os soviéticos, os maoistas acreditavam na necessidade
de uma aliança com a burguesia nacional para a etapa presente da revolução, mas com uma
hegemonia do proletariado e a necessidade da luta armada. Durante a década de 1960, o
PCdoB opôs-se à luta armada e às ações levadas adiante pelos grupos castristas no Brasil
(ALN, MR-8). No entanto, entre 1971 e 1973 organizaram uma guerrilha no amazonas que
a 1971, e da Argentina com o PRT em 1965.129 Com a vitória da Revolução Chinesa em 1949, o mundo socialista passa a ter uma segunda referência. A
crescente divergência entre soviéticos e chineses, estoura finalmente a fins dos anos 1950 e estabelece uma diferença principal: "a União Soviética defendia uma política de coexistência pacífica, enquanto os chineses sustentavam uma política de confronto com o imperialismo norte-americano [...] [O importante deste conflito] é que pela primeira vez na historia do movimento comunista internacional, o monopolitismo e o domínio total da União Soviética no campo da esquerda passavam a ser contestados" (Koutzii, 1987: 49).
130 Outras organizações semelhantes no resto da América Latina foram: o PCML (Partido Comunista Marxista-Leninista) no Peru, o PCML na Bolívia, o PCML na Colômbia.
131 É importante destacar a "Crise dos mísseis" no período da Guerra Fria em Cuba (1962). Tratou-se da instalação por parte do dirigente russo N. S. Kruschev de mísseis em Cuba para compensar os mísseis norte-americanos instalados em outro lado da fronteira soviética, na Turquia. Os Estados Unidos obrigaram a tirá-los com ameaça de guerra, mas também tiraram seus mísseis d Turquia. Os mísseis soviéticos, "como tinham lhe dito ao presidente Kennedy naquele momento, careciam de importância no contexto do equilíbrio estratégico" (Hobsbawm, 2007: 234, nota 3). Segundo Hobsbawm, retomando a Ball, a principal preocupação de ambos bandos esteve em "evitar que se mal interpretassem gestos hostis como preparativos bélicos reais [...] [O fato foi que] a crise dos mísseis cubanos, esteve perto de arrastar o mundo a uma guerra desnecessária durante longos dias" (Idem, 34)
132 O “bloco das quatro classes” foi tomado da ideia da “nova revolução democrática” formulada por Mao Tse-Tung, que tinha como eixo principal a coalizão dos operários, camponeses, pequenos burgueses e capitalistas de ordem nacional. Um documento do PCdoB, publicado em 1968, enquadrava essa “revolução democrático-burguesa de novo tipo”, com sua perspectiva de “uma transição para el socialismo”, passando “necessariamente por uma etapa nacional e democrática” e de que nas tarefas realizadas nessa etapa “criam-se as condições, objetivas e subjetivas, favoráveis para a transição”. Para o PCdoB “o imperialismo e o latifúndio são os inimigos principais dos povos latino-americanos. Porque agregar a estes inimigos o capitalismo nacional em seu conjunto, levantando medidas socialistas como reivindicações imediatas? Ao apresentar as exigências democráticas e anti-imperialistas, que uma vez satisfeitas atingem de morte àqueles inimigos, o proletariado pode aliar-se temporariamente com uma parte da burguesia, mesmo vacilante, neutralizar outra e golpear apenas os setores burgueses ligados ao imperialismo (Documento do PCdoB “A revolução nacional-democrática apud Löwy, 2006a: 455).
145
acabou sendo dizimada pelas forças armadas (Idem: 52)133.
Flores Galindo (1986: 354) observa que o Peru foi um dos países onde a Revolução
Chinesa teve maior impacto, tanto em quantidade de agrupações que se geraram quanto em
quantidade de militantes que se tornaram maoistas. Uma dessas agrupações foi o “Sendero
Luminoso”. Surgido a fins dos anos de 1960, assumiam o lema “pelo caminho luminoso
[sendero luminoso] de José Carlos Mariátegui”. O grupo, de grande impacto na esquerda
peruana e latino-americana, autoproclamava-se seguidor do pensamento de Mariátegui.
Identificando-se com os posicionamentos mais dogmáticos e fechados, de uma estrutura
vertical onde o messianismo era impositivo, caracterizavam o Peru como “semifeudal, onde a
fazenda e os gamonales persistiam como principal sustento de um Estado burocratizado que
apenas conseguía, através das reformas implementadas pelos militares, uma incipiente e lenta
penetração do capitalismo” (Idem: 355). Segundo o grupo, para disputar o poder o caminho
era a luta armada que iria do campo para as cidades. Talvez por essa razão a maior parte dos
militantes acabou se concentrando em um dos departamentos mais atrasados do Peru,
Ayacucho, onde pareciam confirmar-se as teses de uma população maioritariamente
camponesa, sem indústria e grande comércio, com predominância de artesãos, num meio
cultural onde o quéchua resistia com eficácia ao espanhol.
No entanto, nesse lugar funcionava uma universidade desproporcional em relação às
condições da região, a Universidad Nacional de San Cristóbal de Huamanga (capital do
estado). Ela contava com 6 mil alunos e uma equipe excepcional de docentes que passaram a
se interessar (algo não muito frequente nas universidades) pelo conhecimento da realidade
imediata. Viajavam, percorriam fazendas, comunidades, faziam trabalho de campo. Assim,
“desde os setores mais atrasados do país começou a se pensar na possibilidade de mudar a
história universal” (Flores Galindo, idem: 358). O surgimento de “Sendero Luminoso” deve
ser entendido no contexto dessa região que tinha sido o centro do grande império pré-
hispânico. Dessa maneira, as ideias imaginadas nesse território podem soar menos absurdas
em relação ao que acabaram se tornando na prática (idem: 360).
As ações de luta armada começaram no dia 17 de maio de 1980, com a tomada de Chuschi
133 Na época o PCdoB foi apoiado pela Ação Popular, uma organização com base na esquerda cristã que hegemonizou o movimento estudantil na década de 1960.
146
e a queima simbólica de ânforas, multiplicando-se num ritmo ascendente até 1984134. Para
Flores Galindo (Idem: 361) o grupo foi “uma espécie de raio num céu claro […] Um
movimento que surge quando a esquerda (maioritariamente) assume a via eleitoral e opta por
respeitar alguma regras mínimas do 'jogo democrático' e quando, por outro lado, sociólogos e
economistas traçavam a imagem de um país cada vez mais moderno, onde a urbanização era
irreversível, os camponeses beiravam a desaparição e as classes populares tornavam-se em
assalariados ou semiproletários. Constatava-se a desaparição do andino”. Esse processo
recebeu o nome de “descampenização”.
Em face das mortes, ataques e a forte repressão que o grupo começa a sofrer, a estratégia
adotada pelo governo frente às ações do “Sendero Luminoso” foi isolá-lo ideologicamente
sob o lema: não são guerrilheiros, nem combatentes, são “terroristas” sinônimo de
“criminais”, dos quais a sociedade devia se proteger. Iniciou-se assim um longo processo de
“dessangramento” do movimento e de enfrentamentos na maior parte dos Estados do país135.
A importância desses movimentos surgidos após a Revolução Cubana (1960) está
vinculada à crítica e à novidade que propõem em relação aos Partidos Comunistas latino-
americanos tradicionais, baseados nas diretrizes da III Internacional. Conseguiram recuperar
aquelas ideias de Mariátegui da década de 1920 e de Caio Prado da década de 1940. Mas
perderam ao mesmo tempo eixos fundamentais de análise, formulando finalmente um
esquematismo parecido ao dos partidos comunistas da época, ao tentar reproduzir uma
estratégia localizada da experiência cubana, e dos setores camponeses para o resto da
América Latina.
Problematizaram os modelos revolucionários baseados nos pressupostos fundados nas
diferentes interpretações sobre a formação da América Latina, mas acabaram pagando o
134 Segundo dados oficiais atribuem-se ao Sendero Luminoso: 219 “atentados” em 1980, 715 em 1981, 891 no ano seguinte, 1123 e 1760 em 1983 e 1984 respectivamente. Esses atentados consistiam, durante 1980 e princípios de 1981 em corte de estradas, ataques a fundos e minas, destruição de tratores, assalto a tendas e armazéns, explosões, corte de vias férreas e pontes e sobretudo, voadura de torres de luz eléctrica (Cfr. Flores Galindo, 1986: 361).
135 Não desenvolvemos neste trabalho a continuidade do movimento depois dos anos 80. Só assinalamos que em 1991 o presidente Alberto Fujimori promulgou um decreto legislativo outorgando à “rondas campesinas” status legal e chamando-as de “Comitês de autodefesa” lhes entregando armas e treinamento militar por parte do exército, provocando enfrentamentos sangrentos entre a população. Segundo dados do governo existiram 7226 “comitês de autodefesa”. No 12 de setembro de 1992 o líder do Sendero Luminoso Abimael Guzmán Reynoso foi capturado. Considera-se esse momento como o do fim do grupo, apesar de versões de novos atentados.
147
tributo necessário ao histórico dualismo de “atraso/progresso” nos seus programas políticos.
Situado na realidade brasileira, Arantes afirma que depois da pós-guerra “as cenas do
Brasil velho, diferente, fora de esquadro, acintosamente localista, continuassem misturadas à
paisagem moderna que bem o mal a Revolução do 30 delineara, alastrou-se a convicção, logo
transformada num imenso lugar-comúm, de que na realidade existiam justapostos dois
Brasis”. Aprofundando essa ideia observa que “mesmo a Formação do Brasil Contemporâneo
não deixa de pagar seu tributo ao raciocínio dualista quando Caio Prado Jr. faz gravitar a
desequilibrada colônia de exploração mercantil em torno de dois focos distintos, o núcleo
orgânico do sistema colonial de produção, isto é, a lavoura escravista do litoral, e sua periferia
inorgânica, subsistindo dispersa na imensidão do território interior” (1992: 24-5). Caio Prado,
como vimos, sedimenta as bases de uma teoria crítica que precisava se pensar como parte da
expansão capitalista, outorgando uma originalidade às formações coloniais da América, se
esforçando por enfrentar o debate com o PCB e sua visão nos marcos etapistas da III
Internacional.
Ao mesmo tempo, essa visão de “capitalismo dependente”, acabou alimentando outros
pressupostos na formulação do programa político que finalmente debilitaram o revigoramento
do marxismo. Fernando Henrique Cardoso, um dos maiores expoentes da Teoria da
Dependência nos anos 60, abordando o nexo espinhoso da escravidão-capitalismo, inspirado
num “marxismo renovado” daqueles anos, formula que “o sistema escravocrata, numa
economia mercantil que visa o lucro, encobre para o propriétario de escravos o sentido real da
produção capitalista e impede o pleno florescimento do capitalismo” (Cardoso apud Arantes,
1991: 64). Assim, segundo Arantes, uma coisa era demostrar que o sistema de produção
escravista-capitalista é uma contradição em termos e que portanto uma empresa escravista
lucrativa que se realiza no mercado está por definição condenada, e “outra coisa é reconhecer
que na prática nem sempre foi assim: durante muito tempo o regime escravista funcionou
adequadamente a serviço da produção mercantil num quadro de capitalismo comercial em
pleno desenvolvimento” (Idem). É possível pensar que, indiretamente, o pressuposto de Caio
Prado sobre a empresa comercial como expansão do capitalismo na conquista de América
acabou gerando esse tipo de interpretações onde um determinado dualismo, que observava o
148
capitalismo da colonia como dinâmico e contraditório ao mesmo tempo, acabaria resolvendo a
dualidade com a qual tinha sido interpretado historicamente até o momento. Na análise de
Arantes (1991: 65), para Fernando Henrique Cardoso é indiferente falar de capitalismo
colonial quanto de escravidão colonial; a diferença é que nesse novo contexto o capitalismo já
não pode ser entendido como um todo homogêneo contraposto à nebulosa do pré-capitalismo.
Essa é a crítica que Arantes (1991: 65) faz dessa leitura: “Éramos portanto parte de um
sistema com duas caras, nem integralmente capitalista, nem simplesmente pré-capitalista.
Capitalistas? Escravistas? Éramos e não éramos, ao mesmo tempo […] Voltamos assim à
terra natal da dualidade, agora passada a limpo na língua da contradição: os termos que a
compõem não se encontram mais justapostos porém 'contraditoriamente relacionados'”.
Retomando a análise de Schwarz (2005: 16) do “marxismo nacionalista” no Brasil,
podemos pensar o problema político que vivia a esquerda latino-americana no momento, e
que assinalamos no capítulo I como um dos limites do programa de “A Revolução Brasileira”
de Caio Prado, que se traduzia em que “num país dependente mas desenvolvimentista, de
capitalização fraca e governo empreendedor, toda iniciativa mais ousada se faz em contato
com o Estado. Esta mediação dá perspectiva nacional (e paternalista) à vanguarda [...] a tônica
de sua crítica será o nacionalismo antiimperialista, anticapitalista num segundo momento, sem
que a isto corresponda um contato natural com os problemas da massa. Um 'marxismo
especializado na inviabilidade do capitalismo, e não nos caminhos da revolução'” (itálica
nossa).
A chave de leitura de Caio Prado abria a possibilidade de pelo menos duas visões: por um
lado, a ideia de dependência como uma forma particular do capitalismo periférico, que
precisava ser superada com o desenvolvimento de um capitalismo autônomo que permitisse
equalizar os diferentes núcleos existentes nas sociedades periféricas; e uma outra visão que
permitia pensar a empresa colonial como parte da regressão do progresso na expansão
capitalista e da acumulação primitiva permanente. Partindo desse pressuposto era possível
pensar em processos revolucionários que questionassem de maneira radical a forma social
burguesa. Nosso capítulo III baseia-se nesse pressuposto, apontando para o aprofundamento
desse processo regressivo nos anos 1990 e a nova configuração das lutas que, assim como nos
anos 1960, marcaram para o marxismo a necessidade de uma oxigenação de seus pressupostos
149
teóricos e políticos.
4. Chile e o Estado democrático-burguês
A experiência chilena que abre os anos 1970 deu-se num contexto local diferente da
revolução cubana, definindo estratégias de luta diferentes.
Com a Guerra do Pacífico (1879-1884) (já mencionada no capítulo I) contra a Bolívia e o
Peru, na qual Chile invade e se apropria dos territórios de Tacna e Arica, ricos em salitre e
guano, a economia chilena recebeu um grande impulso. Isso também provocou grandes
mudanças no papel do Estado e no seu sistema produtivo. Por um lado significou a
incorporação massiva de empresas estrangeiras no processo de exploração e acumulação
intensivos; por outro lado, a burguesia chilena não tinha desenvolvido a tecnologia necessária
para essa exploração. Esse setor, incapaz de assumir diretamente a exploração das minas,
reforçou seu papel estatal que lhe permitisse negociar com os proprietários estrangeiros: “O
Estado representativo cumpre, assim, a função de, expressando a diferentes fracções da
burguesia chilena, definir as formas de repartição interna da parte do excedente gerado no
setor explorador que ficava no país” (Sader, 1982: 77).
A inícios do século XX, as lutas dos trabalhadores das minas de carvão, cobre
(principalmente), junto aos do salitre, trens e da indústria manufatureira, começam um ciclo
de revoltas por melhoras nas condições de trabalho e de exploração, realizando trabalhos
forçados para as empresas multinacionais. As ideias anarco-sindicalistas exerceram uma
extraordinária influencia nos setores operários (de mesma maneira que no resto da América
Latina) e sustentam o desenvolvimento de um dos movimentos sociais de maior
transcendência na história do Chile. Outros grupos estavam formados pelos agricultores do
sul, os industriais, os comerciantes, os profissionais universitários, os funcionários do Estado
e os artesãos. Todos eles recebiam inspiração ideológica do positivismo e das doutrinas
solidaristas e militavam fundamentalmente no Partido Radical. Esse processo teve duas
expressões políticas simultâneas e, no fundo, contraditórias. As camadas médias representadas
politicamente pela Alianza Liberal, com seu candidato Arturo Alessandri, enfrentaram a
oligarquia nas eleições presidenciais de 1920 e com suas bandeiras reformistas arrastaram a
150
maioria dos trabalhadores que não tinham ainda uma clara consciência de seus interesses. O
movimento operário, por sua parte, lutou durante a mesma época, sob a condução de Luis
Emilio Recabarren, para se organizar numa política classista e autônoma, cuja expressão
concreta nessa campanha eleitoral foi a própria candidatura presidencial desse líder popular
(Cfr. Elgueta; Chelen, 1977: 227-228).
A chegada de Alessandri no governo criou condições políticas que favoreceram o
desenvolvimento do movimento operário. As organizações sindicais atuaram de fato
assumindo a representação dos trabalhadores, estabelecendo convênios coletivos de trabalho,
promovendo conflitos e greves pela satisfação de suas demandas econômicas. Esse governo
foi derrocado em 1924 por um golpe militar. Depois de Alessandri ter sido obrigado a
abandonar seu mandato três meses antes da sua finalização, foi eleito presidente Emiliano
Figueroa Larraín, quem representava os interesses da antiga classe dirigente. Foi obrigado a
escolher como Ministro do Interior o coronel Ibáñez, quem um ano e meio depois, diante da
renúncia do presidente, assumiu o cargo de vice-presidente, para ser eleito no 27 de maio de
1927 presidente da nação. A ditadura militar, desgastada durante esses quatro anos de
reiterados fracassos, foi deposta no 26 de julho de 1931 por um levante geral do país,
encabeçado pelos estudantes universitários, por uma crise financeira provocada pela banca
norte-americana (Idem: 231).
As lutas daqueles anos que sedimentaram o pensamento socialista ao longo do século XX
no Chile deram origem em 1912 ao Partido Socialista Obrero, inspirados em Luis Emilio
Recabarren. Depois de aderir à III Internacional em 1922 transforma-se em Partido Comunista
Chileno. Elgueta e Chelen (1977: 255) destacam quatro períodos do PC chileno: "a) de 1922 a
1933 adotou posições marxistas-leninistas intransigentes e opostas à colaboração com os
partidos burgueses; b) de 1933 a 1948 desenvolveu o lema de 'frentes populares em todo o
mundo', primeiro e de 'unidade nacional' depois, para deter o fascismo; c) de 1948 a 1956
atuou na ilegalidade, passando por uma das mais graves crises pois a maioria do povo apoiou
o populismo ibañista; c) de 1956 para frente inaugurou uma política de unidade com o Partido
Socialista cristalizada na fundação da Frente de Acción Popular".
Com a queda de Ibáñez em 1931, propagaram-se as ideias socialistas, produzindo vários
151
grupos, movimentos, dentre os quais jovens militares que conformaram um movimento
revolucionário que estourou no 4 de junho de 1932 por meio de um pronunciamento militar
que proclamou a “República Socialista” encabeçada pelo comodoro del Aire Marmaduque
Grove. La efêmera república -que durou somente 12 dias- recebeu amplo apoio das masas
trabalhadoras, embora grupos reduzidos, como o Partido Comunista apresentaram sua
oposição a dita façanha. Esse grupo derrotado tão rapidamente, formará posteriormente o
Partido Socialista (Idem: 233).
Em 1932 Alessandri é novamente eleito presidente e reprime severamente os grupos
socialistas. Estes, vendo que sua sobrevivência dependia da sua unidade, fundam, no 19 de
abril de 1933 o Partido Socialista. Segundo Altamirano136 (1979: 16) o Partido Socialista
chileno sempre manteve autonomia frente às grandes correntes do movimento operário
internacional: “Marginalizado igualmente da II Internacional Social-democrata e da III
Internacional Comunista, constituiu uma expressão nacional estranha às diretrizes das
Internacionais”.
Esse novo mandato de Alessandri teve que enfrentar o declínio definitivo da indústria do
salitre, e a continuação do declínio da agricultura, já iniciado em 1929-1931.
Segundo Sader (1982: 77) no Chile (assim como no resto da América Latina) a
industrialização substitutiva de importações processou-se como reação à depressão do setor
exportador e, como consequência desse processo, as relações de classe levaram a uma
polarização política aguda: “de um lado a velha oligarquia se aferrou a projetos políticos de
manutenção da ordem, supostamente ameaçados pelo crescimento da organização política dos
trabalhadores. De outro, estes últimos -expressos no PC e no PS- aliados ao Partido Radical,
expressão liberal da camadas médias e setores de proprietários dispostos a tal coligação à
esquerda, constituem a Frente Popular” (Idem).
Nesse período, como vimos, a III Internacional promoveu a política das Frentes Populares,
e no Chile acabou sendo favorecida pela política repressiva de Alessandri e pela retirada do
Partido Radical das tarefas de gabinete. O Partido Socialista, que inicialmente não
compartilhava essa iniciativa política, incorporou-se à aliança juntamente com a
136 Carlos Altamirano (1922) foi Secretário Geral do Partido Socialista chileno entre os anos 1971-1979.
152
Confederação de Trabalhadores do Chile. A Frente Popular conquistou importantes vitórias
nas eleições gerais de parlamentares em 1937 e com seu candidato Pedro Aguirre Cerda
derrotou a direita nas eleições presidenciais do 25 de outubro de 1938 (Cfr. Elgueta; Chelen,
1977: 235).
As medidas da frente não puderam fugir das linhas gerais dos governos do Terceiro
Mundo: reorganizar o aparato estatal para impulsar a industrialização137. O desenvolvimento
econômico influiu por sua vez na conformação das forças sociais e políticas que começaram a
participar nas novas conformações de classe. A burguesia industrial e comercial desenvolveu-
se à sombra da política de intervenção na economia por parte do Estado, que assumiu enormes
investimentos na construção da infra-estrutura e na criação de poderosas atividades que
condicionaram o crescimento econômico do país. Muitas dessas atividades foram transferidas
posteriormente aos empresários privados, gerando um forte setor que se tornou por sua vez
grupo de pressão sobre o Estado, influenciando na política econômica do governo (Idem:
236).
Em 1941 a Frente Popular experimentou uma crise mortal, produzindo-se uma ruptura por
decisão do Partido Socialista. Segundo Elgueta e Chelen (1977: 237), o programa da frente
acabou não mais do que o programa da burguesia dependente.
Em 1946 o PC insistiu no compromisso de uma frente, e conforma com o Partido Radical
a chamada Alianza Democrática. Seu candidato Gabriel González Videla foi eleito presidente.
Seis meses depois de iniciado o mandato, o governo iniciou uma forte repressão. O PC sofreu
violentos golpes e ingressou à ilegalidade. Acabou com esse governo o esquema de
colaboração de classes iniciado nos anos de 1930138.
O 29 de fevereiro de 1956 conformou-se a Frente de Acción Popular (FRAP). Socialistas
137 Sob a direção da "Corporación de Fomento de la Producción", criada pelo governo, desenvolveram-se grandes atividades nacionais, como "a Empresa Nacional de Electricidad com suas centrais hidroelétricas, a Empesa Nacional de Petróleo, a Compañía de Acero del Pacífico, as fábricas de cemento, a Empresa Nacional de Mineração com suas funções e refinarias de cobre procedente da pequena e média mineração, a maioria das quais se organizaram como empresas estatais" (Elgueta; Chelen, 1977: 235).
138 Carlos Altamirano (1979: 27) observa que os Partidos Comunistas do Chile, França, Itália, Finlândia e Bélgica foram quase simultaneamente expulsos de todas as alianças realizadas nesses anos para a conquista do governo. “Em março de 1947, Gabriel González Videla pede que os ministros comunistas renunciem e declara o partido ilegal. Spack toma igual atitude na Bélgica, e Ramadier na França, enquanto De Gaspari faz o mesmo na Itália, ao retornar da sua viagem aos Estados Unidos”.
153
e comunistas formaram pela primeira vez na história do Chile um bloco político de caráter
revolucionário. Segundo Altamirano (1979: 26) o surgimento da FRAP encerrou um longo
ciclo com saldo negativo na evolução do movimento popular chileno e inaugurou um período
de ascensão da classe trabalhadora.
Como foi dito, o impacto da revolução cubana foi importantíssimo para o fortalecimento
dos setores de esquerda na América Latina. No Chile dos anos 1960-1970 não foi diferente.
Em 1964, a Democracia Cristiana (DC) ganha as eleições com o apoio da direita
tradicional, elegendo Eduardo Frei como presidente. Salvador Allende é derrotado como
representante da coligação de esquerda. Os principais aspectos do governo da DC foram a
reforma agrária com a criação de assentamentos rurais e a política de moradia vinculada à
organização comunitária em bairros pobres. Com a lei de expropriação, entre 1964 e 1970
1364 latifúndios foram expropriados, representando o 18% da terra agrícola (Cfr. Sader, 1982:
79). O fim último da “área reformada” era a modernização da produção agrícola, significando
um grande estímulo para a burguesia agrícola.
A posse da terra significou uma organização massiva das bases camponesas, fornecendo à
futura Unidad Popular uma força importante na luta política.
A política de moradia consistiu numa entrega enorme de terrenos aos setores populares, na
qual as famílias construíam suas casas com madeiras providenciadas pelo Estado. Isso deu
origem a uma base social organizada em “Juntas de Vizinhos” e “Centros de mães”, que
tinham por objetivo colher as demandas dos bairros em relação à infraestrutura e
equipamentos necessários e convertê-las em revindicações ao Estado.
A expansão do mercado econômico dá-se em paralelo a esse processo de “moradia
popular”, onde a construção de casas para a classe média, financiadas pelo Estado, estimula o
setor da construção, favorecendo um setor de empresários e a través da extensão das redes de
equipamentos urbanos (Cfr. Sader, 1982: 81; TN).
Segundo Elgueta e Chelen (1977: 242), a política desenvolvimentista impulsada pelo
governo democrata cristão presidido por Frei “no foi senão a nova cara da aliança do capital
imperialista com o capital nacional industrial, dirigida fundamentalmente a transferir parte
dos investimentos norte-americanos da mineração para as industrias manufatureiras, de
154
acordo com a tendência manifestada por eles, nos últimos anos, da busca de taxas de lucro
mais atrativas, e a ampliar o mercado interno para os produtos das novas industrias por meio
da reforma agrária, a organização dos camponeses e a melhora do nível de seus ingressos”139.
Em meados de 1969, os partidos socialistas e comunistas dirigiram uma carta pública a
diversos partidos e movimentos, os convidando a constituir um bloco político capaz de
oferecer ao Chile uma alternativa “nacional, popular e revolucionária” (Altamirano, 1979:
33). Mais tarde surgirá a Unidad Popular, como continuação da antiga FRAP, incorporando
outras tendencias do pensamento democrático. Segundo esse mesmo autor, o povo
identificou-se com o programa da UP por ser amplo e conter interesses e aspirações das
grandes maiorias.
Com a regressão econômica de 1967, paralisou-se a expansão da DC e iniciou-se um ciclo
de revoltas sociais que se encerrou com a vitória da Unidad Popular em 1970.
Diferentemente de outros PCs, o Partido Comunista chileno não teve grandes divisões,
conseguiu se fortalecer e buscou uma via pacífica para o socialismo conformando a Unidad
Popular, que chegou ao governo em 1970, tendo como líder e presidente a Salvador Allende.
O papel moderado que adquire o Partido Comunista chileno lutara para que o governo
mantenha uma aliança importante com os sectores considerados progressistas da burguesia,
assegurando um “modus vivendi”. Esse fato fez com que os eventos de 1973 surpreendessem
o PC chileno, pois sua concepção de aliança entre as classes no aparato estatal não deixava
enxergar a contradição que ela significava no processo revolucionário.
Salvador Allende foi eleito presidente no 4 de setembro de 1970 com o 36,3% dos votos,
assumindo o cargo no 4 de novembro desse. As medidas principais eram entre outras:
estatização, nacionalização da mega mineração de cobre, reforma agrária, aumento dos
salários. Poucos meses depois já era visível uma polarização na sociedade chilena que se
aprofundou rapidamente.
139 Com as faculdades que lhe outorgava o Congresso da Nação, Frei pês em marcha a "política sobre o cobre", que consistiu essencialmente em criar sociedades mistas entre o Estado e as companhias norte-americanas, por meio da compra por parte do primeiro do 51% das ações nas sociedades mistas, pagando quantidades absurdas por indenizações: “A Anaconda recebeu, pelo 51% das ações nas sociedades mistas formadas com suas subsidiarias Chile Exploration Co. e Andes Copper Co. letras de câmbio do governo de Chile por 175 milhões de dólares, quando o valor livro dessas empresas era só de 181 milhões de dólares, isto é, pelo 51% das ações pagou-se o valor total dos investimentos” (Elgueta; Chelen, 1977: 242).
155
Os acontecimentos entre 1970 e 1973 levaram a um debilitamento do governo e ao seu
final no 11 de setembro de 1973. Mencionaremos alguns dos eventos mais importantes. A
medida de nacionalização da mineração provocou o boicote por parte do governo
estadunidense a cargo de Richard Nixon, recusando o fornecimento de créditos externos e
iniciando um embargo ao governo chileno pelas perdas das empresas La Anaconda e
Kennecott. A sociedade entrou numa polarização profunda e apareceram os primeiros sinais
de desabastecimento. Milhares de mulheres da oposição organizaram o primeiro panelaço
reclamando alimentos. Ao mesmo tempo, apareceu um florescente mercado negro. A oposição
conseguiu se agrupar na CODE (Confederación de la Democracia) e nas eleições
parlamentares de 1973 obteve o 54,6% dos votos frente a 43,3% da Unidad Popular, não
conseguindo os dois terços do congresso que pretendia. Numa crise profunda, Allende tenta
uma aproximação frustrada com a DC (Democracia Cristiana), seguindo a linha de
“conciliação de classe”. A ruptura do Partido Socialista com Carlos Altamirano criou uma
dissidência forte e com entrecruzamentos violentos dentro da Unidad Popular. O conflito
educacional, o desabastecimento, as JAP (Juntas de Abastecimento e Preços), a reforma
agraria, as “tomadas de terras”, os grupos armados, os cinturões industriais, etc., foram
aprofundando a polarização entre os chilenos. Em face da renúncia do chefe do exército Prats,
fiel a Allende e a assunção de Pinochet como comandante em chefe, e à possibilidade de um
plebiscito para retificar o cargo de Allende, Pinochet incorporou-se ao grupo golpista e no dia
11 de setembro de 1973 o golpe de Estado foi levado adiante, acabando com o suicídio de
Salvador Allende no Palacio de la Moneda.
4.1 A forma política da Unidad Popular
O processo iniciado com a vitória de Allende representava um caráter essencialmente
diferente daquele das outras experiências revolucionárias (União Soviética, China, Cuba), que
tinham começado por resolver o problema do poder numa primeira instância. A peculiaridade
do processo chileno, segundo Altamirano (1979: 164) esteve dada pelo esforço por substituir
as instituições e estruturas capitalistas antes da conquista do poder.
A Unidad Popular apoiou-se numa força social onde predominava a classe operária
156
organizada em sindicatos e no Partido Comunista e no Partido Socialista, que imprimiam nas
bases programáticas da UP a “via institucional” para a tomada do poder, obtendo seu impulso
de uma massa social que tinha “o socialismo inscrito em seus objetivos” (Sader, 1982: 89).
No programa de governo da Unidad Popular podemos ler “Através de um processo de
democratização em todos os níveis e de uma mobilização organizada das massas construir-se-
á desde a base a nova estrutura do poder. Uma nova Constituição Política institucionalizará a
incorporação massiva do povo no poder estatal”140. Tratava-se, portanto, de ocupar
progressivamente o aparato estatal.
Por que a experiencia chilena diferenciava-se tanto das outras experiências latino-
americanas? Por que era um caso “insólito” tal como definido por Fidel Castro? Sader arrisca
algumas respostas. A chegada ao poder do Estado de uma coalizão de forças (classes) que se
propunha marchar ao socialismo: “ou seja, um centro vital do aparato criado para a
preservação da ordem burguesa era ocupado por uma coalizão que pretendia destruí-la.
Porém, o insólito prosseguia no fato de que essa coalizão pretendia chegar ao socialismo pelas
vias institucionais criadas para combatê-lo” (Sader, 1982: 92).
A Unidad Popular fundava-se na concepção de utilizar a “institucionalidade burguesa”,
para construir com “pluralismo, democracia e liberdade”, um campo político necessário para
as reformas estruturais do país. Para alguns autores, o desenvolvimento de organizações
autônomas a esse poder, ou seja a dualidade de poder, era “impossível” de aplicar, pois o
Estado a “grosso modo” era “'popular'” (F. Castillo e J. Larrain apud Sader, 1982: 94).
Para outros tinha sim uma “dualidade de poder”, baseado na ideia de que “apesar de não
ter conquistado em sua 'totalidade' o poder estatal”, as classes populares teriam em suas mão o
poder substancial ou “decisivo” que é o executivo (Cademártori apud Sader, 1982: 94).
O golpe militar de 1973 veio demonstrar que o “substancial” ou “decisivo” não está no
poder executivo e sim nos aparatos repressivos.
Ambas as ideias sobre a construção de poder popular por vias estatais, assim como a
noção de socialização que se impregnava com a concepção de “nacionalização”, levaram a
debilitar a possibilidade de organizações autônomas de camponeses, periferia urbana,
trabalhadores, que frente aos acontecimentos de 1973 teriam podido, tal vez, dar outro marco
à correlação de forças existentes até então.
140 Disponível em http://www.abacq.net/imagineria/frame5.htm
157
As eleições de 1970 trouxeram a novidade da criação por parte da UP dos CUP (Comités
de Unidad Popular), organismos de base coordenados por um Comando Político a nível
nacional. Este, presidido por Rafael Tarud, da Acción Popular Independiente (API), ficou
conformado por três representantes de cada um dos seis partidos que integravam a Unidad
Popular. Esses órgãos de campanha, junto com a já mencionada enfase na inserção local e sua
capacidade de agitação social, substituiriam a anterior forma de organizar a campanha
presidencial. Esses CUP seriam ativismo eleitoral ou embrião do poder popular? Existia o
consenso de que não deviam ser só um comité captador de votos, mas teriam que estar
inseridos nas lutas sociais. No entanto, não ficava claro qual seria o ponto de chegada para o
qual teriam que andar. O documento oficial da UP “Condução e estilo de campanha” colocava
que os CUP deviam “ir se tornando no curso da campanha em expressões germinais do poder
popular que conquistaremos em 1970, começando ainda antes da vitória a concretizar
aspirações reivindicativas das masas e se transformando uma vez alcançada aquela em fatores
dinamizadores e de direção local dos processos de mudanças revolucionários” (El Siglo, 28 de
dezembro de 1969 apud Ávarez Vallejos, 2010: 224).
Em relação a essa construção de poder popular que depois se exprimiria no triunfo da UP,
Altamirano observa que esse poder se construiu por fora das organizações tradicionais da
classe operária, ocupando um lugar abandonado por elas durante um longo período. Assim,
essa população que vivia nos cinturões de “miséria e atraso” (Idem: 105) como
“subproletariado urbano e rural”141 (Idem) passou a integrar de maneria inédita as lutas que se
sucederam no ano 1972 em defesa do governo da UP.
Para Altamirano (1979: 37) esses embriões de poder popular tinham como objetivo a
substituição do Estado burguês, como instrumento da classe dominante, por um novo Estado
que se constituiria como expressão dos interesses do proletariado e de seus aliados.
Segundo Álvarez Vallejos (2010: 225) a conversão ou não em órgãos de “poder popular”,
exigia um debate político e teórico que as urgências da campanha tornavam impossível.
Privilegiou-se o acionar concreto das massas –tal como era costume na esquerda chilena– por
sobre a preeminência da teoria. Assim, a existência dos CUP como supostos embriões do 141 Segundo Altamirano, essas massas conformavam um quarto da população total do país (Cfr. Altamirano,
1979: 105).
158
poder popular ficou só como um enunciado geral, como letra morta, por não ter se efetivado
na UP uma discussão de fundo a respeito.
Seguindo Sader (1982: 96), vemos que por um lado a “via chilena” baseava-se em
favorecer as grandes maiorias com uma distribuição equitativa baseada na renda produzida
pelo desenvolvimento da acumulação capitalista e ao mesmo tempo essa acumulação não se
libertava da dependência das grandes multinacionais. Por outro lado, estruturou-se sobre a
base da “ideologia liberal burguesa” e o fetiche das “maiorias”, sem questionar o significado
da forma “representativa” tal como apresentada pelo Estado burguês.
No primeiro ano de governo da Unidad Popular, ela consegue manter sua ofensiva e
ampliar as bases de apoio. A derrota das primeiras tentativas golpistas142 deixou por um certo
tempo na defensiva às forças tradicionais da direita. Apesar do bloqueio econômico externo, o
governo de Allende – apoiado na sua vitória e na coincidência de muitos puntos com o
programa política da DC – avançou em medidas de nacionalização, de reforma agraria, de
beneficio de consumo popular. Com os aparatos repressivos em grande parte neutralizados, a
organização popular ganha força e se multiplica. As eleições municipais de 1971 refletem esse
consenso popular, com a vitória dos partidos que apoiam o governo com o 51% dos votos
(Allende tinha alcançado o 36%).
No plano educativo, conquistou-se uma redução significativa do analfabetismo (12% em
1971 e 10,8% em 1972), aumentando o número de matrículas em todos os níveis de ensino.
Houve também um intenso movimento de intelectuais, com manifestações no plano da
cultura, especialmente na Universidade. Em setembro de 1971 é criada a Editorial Quimantú,
que em apenas dois anos conseguiu editar 12 milhões de exemplares de livros, revistas
populares e especializadas, e documentos diversos143 (Cfr. Altamirano, 1979: 47).
No entanto, todas essas conquistas não puderam esconder a expressão dos limites
impostos pelo Estado e a economia capitalista à política popular. A criação de um setor
nacionalizado da economia, “que serviria para controlar as molas da acumulação, tinha-se
defrontado com o bloqueio parlamentar” (Idem: 99). Por outro lado, a burguesia diminuiu
142 O governo da UP desenvolveu-se entre dois golpes militares: o primeiro, quarenta dias depois das eleições e quando Allende ainda não tinha tomado posse, foi montado o primeiro dispositivo para anular a vontade das urnas. Frustrou-se com o assassinato do comandante em chefe do exército, general René Schneider em outubro de 1970; o segundo derrocou o governo da UP de maneira sangrenta, três anos depois.
143 Os livros apresentavam diversas temáticas, desde a análise social e educacional até a historiografia chilena e latino-americana, além de obras relevantes da literatura universal. Para propagar essa mobilização, a editorial organizou bibliotecas nos sindicatos, organizações populares, esportivas, juvenis (Cfr. Altamirano, 1979: 47).
159
seus investimentos em 25 a 30% nesses anos. “Deste modo, estabelecia-se uma ruptura entre a
política econômica redistributiva de curto prazo que tinha levado a uma reanimação industrial
no primeiro ano e as condições para as reorientações estruturais” (Idem). Já a fins de 1971 o
desabastecimento, o déficit fiscal, a inflação, o bloqueio econômico que se anunciava,
revelavam as reações do capital frente às tentativas de um governo popular.
No plano da luta social, depois de um primeiro ano de um importante desenvolvimento de
organizações locais enfrentando uma certa passividade política, e uma expectativa otimista
em relação às medidas tomadas desde cima, já em 1972 viu-se um envolvimento político
autônomo que questionará a institucionalidade burguesa. Em junho constituiu-se o “Cordón
Cerrillos”144, exigindo a nacionalização de empresas e impulsando o controle operário. Em
Julho reúne-se em Concepción uma Assembleia Popular, com representantes de organismos
de massa, “apontando o caminho de uma institucionalidade popular para apoiar as medidas
bloqueadas pela institucionalidade burguesa”145 (Cfr. Sader, 1982: 100).
Essa tensão traduziu-se no interior da UP em duas linhas: enquanto um setor propunha
uma ofensiva para controlar o setor fundamental da indústria, se apoiando no fortalecimento
da organização operária y popular, outro setor defendia a necessidade de frear as iniciativas
das bases que assustavam às camadas médias, e chegar a um acordo com a DC para superar a
forte tensão que estava sendo produzida.
Venceu o setor que apostava numa política econômica que permitisse reunir as
organizações populares em “conselhos comunais de trabalhadores” e ganhar os empresários
fornecendo-lhes “estabilidade e progresso econômico”146.
Essas medidas de incentivo ao capital privado dividiram e desestimularam as massas
populares e essa reação provocou uma desconfiança nas camadas médias.
A nacionalização significou uma tentativa de consolidar uma situação na qual o governo
144 Cinturão industrial: via urbana por onde se estende uma grande concentração de indústrias. Neles organizaram-se os Comandos de Luchas de los Trabajadores, que serão conhecidos como Comandos de Lucha dos cinturões, ou simplesmente cinturões.
145 Por sua parte, as mobilizações camponesas também se ativaram durante 1970. Segundo as estadísticas, naquele ano "57.210 pessoas estiveram envolvidas em movimentos de greve, num total de 476 greves, se tornando no ano em que mais camponeses e camponesas participaram nesse tipo de mobilização" (Pizarro, 1986: 154 apud Vallejo, 2010: 228).
146 Frases de Orlando Millas, Ministro de Economia eleito depois de resultar vencedor esse setor da UP, publicado em "La clase obrera bajo el Gobierno Popular" (El siglo de 05/06/1972), e "Evitar la crisis y reforzar la Unidad Popular" (El siglo de 28/05/1972). (apud Sader, 1982: 100).
160
não tinha controle das bases econômicas. A crise de 1972 caiu totalmente sobre a classe
trabalhadora e enquanto a burguesia se lançava a parar o país e depor o governo, a Unidad
Popular realizava tentativas infecundas de “compromissos” pacíficos.
A direita apelou à intervenção militar e a Unidade Popular tentou novamente uma
“política conciliatória” com as Forças Armadas, o que deu num rotundo fracasso.
Na análise de Carlos Altamirano sobre o fracasso da UP no Chile, no seu livro “Dialética
de uma derrota” (1977), podemos encontrar os mesmos pressupostos que observamos na
experiência cubana, onde todas as realidades latino-americanas acabaram sendo enquadradas
numa interpretação dualista, baseada na necessidade de desenvolver um determinado setor
“atrasado”, que permitiria finalmente o progresso dos países da América Latina. O fracasso da
experiência chilena, segundo Altamirano, gerou uma convicção: “os obstáculos ao
desenvolvimento nacional autônomo e à satisfação das aspirações populares […] se devem ao
modo específico de existência e reprodução das relações de produção e às estruturas
historicamente cristalizadas na formação social conhecida como capitalista dependente”
(1979: 156).
Para o autor, as classes médias nos países de capitalismo dependente – especialmente na
América Latina- beneficiam-se de um quadro de privilégios: “seu padrão de vida é
significativamente superior ao das grandes massas empobrecidas da cidade e do campo. Aqui
existe um desnível de vida consideravelmente maior do que nos países capitalistas avançados,
entre as massas populares, de um lado, e grande parte dos intelectuais, dos empregados e da
pequena burguesia ligada ao comércio e aos transporte, de outro” (Idem: 75). Essas
características, segundo o autor, dificultavam a aliança entre proletariado e burguesia, pois o
processo revolucionário devia forçosamente impor uma distribuição equitativa da renda para
as grandes masas, significando a deterioração quase inevitável das condiciones de vida da
burguesia.
Nesse contexto, a experiência revolucionária da UP enfrentava-se com exigências
múltiplas e frequentemente incompatíveis que se exprimiam com maior força “no propósito
de modificar drasticamente as estruturas sócio-econômicas de dependência, preservando a
estabilidade e continuidade democrática do país” (Idem: 173). Esse lineamento político da UP
161
levou a realizar um esforço constante para assegurar uma sincronização e coerência entre “as
tarefas de regulamentação e controle econômico e as tarefas de transformação das estruturas
básicas” (Idem). As contradições do governo da UP exprimiam-se na existência de uma
“crescente necessidade objetiva de acelerar o processo de desenvolvimento econômico e
social […] e a presença cada vez mais deformante do capital imperialista [o qual] determinava
tanto o padrão de crescimento da economia quanto seus mecanismos de funcionamento e, de
passagem, impunha a lógica implacável do 'desenvolvimento do subdesenvolvimento'” (Idem:
156). Para a UP, o desafio colocado em 1970 exigia que combinasse, por um lado “um
processo de acumulação de capital indispensável para se conseguir um crescimento
econômico rápido e, de outro, o aumento dos níveis de consumo de massas, que redundaria
em maior apoio político. Mas isso gerava um círculo vicioso difícil de se romper” (Idem).
O governo da UP herdou uma estrutura econômica que tinha, segundo Altamirano (Idem:
157), os seguintes traços fundamentais: uma insuficiente integração do sistema econômico,
com una grande heterogeneidade dos sectores de extração primários, industrial e agrário; o
crescimento desigual desses setores, a extraordinária concentração da riqueza y da renda, o
insuficiente nível de acumulação; os altos índices de desemprego estrutural, a distorção das
relações comerciais e tecnológicas e a concentração geográfica do desenvolvimento.
A opção da UP na política econômica de curto prazo tinha um objetivo central: garantir os
estímulos necessários para reativar a produção e elevar a oferta de empregos, provocando uma
garantia preferencial de consumo em favor dos setores de renda mais baixa. Tal redistribuição,
efetuada a través de uma política de preços e salários, teria de se apoiar numa política de gasto
público, concentrando os esforços simultaneamente na criação de serviços sociais e na
realização de investimentos indispensáveis para sustentar o dinamismo de crescimento, uma
vez finalizada a fase de reativação (Cfr. Idem: 165).
A interpretação da realidade latino-americana baseada nesse dualismo acabava em
propostas que apontavam a uma modernização tardia das estruturas nacionais, que permitisse
o acesso das massas às conquistas desenvolvidas pelo sistema capitalista no Ocidente, e ao
mesmo tempo sobre essas bases realizar um salto à revolução socialista. Como veremos no
seguinte capítulo, essa modernização estava longe de fornecer à maioria das massas algum
tipo de conquista diferente de processos regressivos e violentos de exploração e
162
marginalidade.
O fracasso da “via chilena” esteve marcado por vários fatores: por um lado o projeto da
UP debilitou-se pela perda de poder dos setores populares nos quais ela tinha baseado sua
força, surgidos dos movimentos dos anos '60, e agora frente à contradição de interesses na
coalizão de classes. Por outro lado, o peso perdido dos setores populares refletiu-se nos
limites do debate da UP em relação à construção de poder popular, focado nos CUP que
acabaram se tornando uma máquina de agitação eleitoral. No momento dos
desabastecimentos, da crise institucional, as forças da ordem continuavam mantendo o mesmo
peso que sempre tinham tido. As forças populares enfrentaram-se a uma situação para a qual
não estavam preparados, e os aparatos repressivos acabaram definindo o processo.
A despeito da derrota, a experiência chilena será um exemplo de estratégia revolucionária
contraposta à experiência armada para o resto da América Latina. Converteu-se e, fonte de
inspiração para os movimentos que surgiriam na década de 1980, baseados na ideia de
partidos de massas e via eleitoral como caminho para a revolução latino-americana. A “via
chilena” foi uma tentativa de resolver a dicotomia “¿Reforma ou Revolução?”, buscando
cumprir com as reformas burguesas necessárias para a passagem ao socialismo, e por essa
escolha obrigatoriamente acabaram sendo debilitados os germens de poder popular surgidos
nos anos '60.
Já nesse momento histórico, o marxismo latino-americano consolida-se como pensamento
crítico da periferia, com uma composição extremamente heterogênea, mas possibilitando uma
análise dos processos revolucionários que se deram a partir da década de '50 numa outra
chave de leitura que permitisse compreender a particularidade histórica desses processos na
América Latina. Ao mesmo tempo, enfrentou-se com os limites de um pensamento endógeno
que oscilava entre as determinações estruturais do capitalismo mundializado e as
potencialidades próprias do “atraso” latino-americano. Esse processo contém uma importante
riqueza de debates e produções que abriram um campo de discussão crítica desconhecida para
a esquerda até então. Apesar dos horrores e massacres das ditaduras latino-americanas, o
período caracterizou-se também por uma riqueza extremamente fecunda de produção teórica,
artística, cultural que influenciou nos processos posteriores às ditaduras.
163
5. A Frente Sandinista de Libertação Nacional e o fim da era “guevarista”
Em 1979, 6 anos após a derrota da Unidad Popular no Chile, estoura a Revolução
Nicaragüense e paralelamente um processo no qual serão vitoriosas várias frentes
revolucionárias da América Central na década de 1980. A Frente Sandinista de Libertação
Nacional, fundada em 1961 com influencia do guevarismo, liderada por Carlos Fonseca,
resgatava o processo de luta de Augusto Sandino (“o general dos homens livres”) líder da
rebelião contra a ocupação dos Estados Unidos e assassinado em 1934 pelos homens de
Somoza. A FSLN reunia na sua ideologia as lutas sandinistas com o marxismo-leninismo147. A
Revolução Sandinista parecia-se em alguns aspectos à Revolução Cubana: a luta armada, a
criação do poder revolucionário entregando armas ao povo, a reforma agrária, o
enfrentamento do imperialismo. A diferença estava na participação dos pobres e jovens
sobretudo urbanos, dando uma importância menor à guerrilha rural e uma forte presença das
massas cristãs.
Num documento de 1974 a FSLN considerava que as ações guerrilheiras de 1958-1961
eram o prelúdio do auge das condições “subjetivas nas organizações gremiais e políticas”148.
Fazia-se referência à Juventude Patriótica Nicaragüense, que contribuiu ao desenvolvimento
do movimento sindical, do movimento estudantil e das manifestações de julho de 1959 em
solidariedade com o movimento armado de El Chaparral, manifestações que foram
massacradas149.
Entre 1974 e 1977 a ditadura de Somoza “tortura, assassina e comete múltiplos atos de
barbárie, com o objetivo de gerar um terror paralisador do movimento popular em todas suas
manifestações” (Salazar Valiente, 1984: 406). Junto às altas taxas de desemprego, pobreza,
147 O Partido Comunista da Nicarágua (Partido Socialista Nicaraguense) desconheceu a FSLN, chamando-os de “ultra-esquerdistas”, “aventureiros” e “influenciados pelo maoismo e pelo trotskismo” (Löwy; 2006a: 56)
148 O documento faz referência ao texto lido no dia da sua primeira ação armada, no 27 de dezembro de 1974, quando a FSLN toma a residencia de José (chema) María Castillo. Pelo sucesso da ação ganham conhecimento público, além de um milhão de dólares e liberar os pressos políticos (Salazar Valiente, 1984: 405).
149 No documento faz-se uma avaliação crítica desse processo, afirmando que "as limitações da guerrilha de 1963 originam-se nas concepções erradas em relação à maneira de desenvolver uma guerra revolucionária, e, sobretudo, à ausência de uma estratégia de guerra popular prolongada" (consultado em Salazar Valiente, 1984: 405).
164
inflação, será o contexto de gestação da revolta de 1979150.
Vários acontecimentos se sucedem desde 1978 até o 19 de julho de 1979, quando as
colunas guerrilheiras da Frente Sandinista de Libertação Nacional entram em Manágua,
abrindo um novo ciclo histórico no país e na América Latina151.
A Revolução Nicaraguense opôs-se à ordem burguesa sobretudo no plano político,
estabelecendo milícias populares sandinistas, desmontando o aparato estatal das classes
dominantes, baseando seu apoio popular em sindicatos, Comitês de Defesa Sandinista, etc. As
mudanças econômicas foram muito lentas e incompletas, ficando grande parte das
propriedades em mãos particulares. Por outro lado, foi um governo que tomou a forma
burguesa do sistema democrático como marco para estabelecer os direitos cidadãos, o
pluralismo político e sindical, a liberdade de imprensa, o direito à livre associação. As
primeiras eleições democráticas na Nicarágua aconteceram em 1984 e a FSLN ganhou por
ampla maioria152.
Traços autoritários do movimento, com muitas dificuldades para democratizar o processo
de luta, junto com o bloqueio econômico exercido pelos Estados Unidos e a forte
contraofensiva, debilitaram o movimento e em 1990 a FSLN perdeu as eleições153.
É importante destacar tanto para a Revolução Sandinista, como na sua influencia em
diferentes países da América Central, como El Salvador e a Guatemala, a confluência do
pensamento marxista-leninista com as lutas populares históricas de cada país desde a
conquista. O resgate daquelas lutas enfrentava-os claramente com a concepção do marxismo
tradicional e ao mesmo tempo fornecia-lhes um valor fortemente histórico aos movimentos.
150 No 10 de janeiro de 1978 foi assassinado Pedro Joaquín Chamorro, líder e candidato a presidente pela Unión democrática Liberal (UDEL) que congregava várias organizações representantes da burguesia. A partir de 1977 tinha começado a ganhar popularidade, levando perigo para o governo de Somoza. Em face disso e com o restabelecimento das garantias constitucionais, a família Somoza decide eliminá-lo fisicamente. O crime funcionou como detonador dentro das bases populares (Cfr. Salazar Valiente, 1984: 406).
151 Em dezembro de 1979 foi proclamada a "Frente Patriótica Nacional", hegemonizada pela FSLN, que estava conformada pelo (Movimiento del Pueblo Unido), o PLI (Partido Liberal Independiente), o "Grupo de los doce", a Central de Trabajadores da Nicarágua, o Partido Popular Socialcristiano, o Sindicato de Radioperiodistas de Manágua, a Frente Operária e outras entidades populares .
152 O livro “Nicaragua tan violentamente dulce” de Julio Cortázar, assim como “El País bajo mi piel” (autobiografia) de Giocanda Belli, nicaraguense participante da FSLN, são alguns livros literários que retratam esse processo revolucionário latino-americano e mostram o impacto teve no campo intelectual da época e no ambiente cultural.
153 As conquistas no âmbito educativo, saúde, terra, autonomia dos povos miskitos implementadas pela FSLN foram muito importantes para os movimentos revolucionários latino-americanos.
165
Nutriam-se das lutas indígenas, camponesas, dos negros, que não encaixavam com a visão da
classe proletária mantida pelos partidos comunistas latino-americanos, junto com seus blocos
de classes e a revolução por etapas. Essas luta tão fragmentadas, debilitadas pela forte
intervenção dos Estados Unidos e o não apoio da esquerda tradicional, foram o prelúdio de
fracassos sangrentos, com altíssimos custos para os povos latino-americanos.
A queda do Muro de Berlim em 1989 e a derrota da Frente Sandinista de Libertação
Nacional em 1990 repercutiram profundamente na esquerda latino-americana. Acrescenta-se o
genocídio efetuado pelas ditaduras militares, as intervenções estadunidenses nos processos
que tiveram como saldo o aniquilamento de populações inteiras, a implementação dos
programas neoliberais.
6. 1980: a via eleitoral e o partido de massas
A década de 1980 inicia-se na América Latina com panorama sombrio para muitos países
pela continuidade das ditaduras iniciadas nos anos 60 e 70; ao mesmo tempo, a necessidade
da abertura democrática abre um debate necessário e urgente para a esquerda sobre a
organização política a ser construída nesse novo período.
As lutas foram diversas, confluindo em movimentos que demandavam do Estado o
atendimento em diferentes políticas públicas. Tinha os movimentos pelo direito à terra, à
moradia, à água, universidades, direitos humanos, etc. Castañeda afirma que “não eram
órgãos estatais, mas tampouco eram radicalmente 'exteriores' ao Estado” (1994: 172). Isso não
lhes tirava importância, nem originalidade, mas era um chamado de atenção que não foi
observado naquele momento.
Sendo vitoriosos contra as ditaduras, acabaram se agrupando em sindicatos, partidos,
governos locais, e tornaram seus dirigentes autoridades estatais, expressão da importância da
sua luta, assim como dos seus limites.
Frente a esta situação, a esquerda com sua concepção de partido e a subordinação de todo
interesse e demanda a esse tipo de organização gerou uma relação tensa entre essa “esquerda
166
partidista” e os “novos movimentos sociais” surgidos também por uma necessidade de se
diferenciar dessa esquerda.
Para Castañeda, a melhor resolução dessa tensão, com a procura de gerar uma “esquerda
movimentista”, se deu no Brasil com a criação do Partido dos Trabalhadores (PT) e a
candidatura de Luiz Inácio da Silva (Lula) nas eleições de 1989 (1994: 173). Essas “frentes
eleitorais” eram amplas, muitas vezes de difícil controle, com uma coalizão de forças de
enorme diversidade, não apenas com muitas organizações políticas, mas com vários
movimentos populares procedentes da sociedade civil: “grupos eclesiais e sindicatos,
intelectuais, organizações camponesas, associação de direitos humanos e grupos estudantis,
todos eles participaram na busca de um objetivo eleitoral, mas sua atividade não se restringia,
de maneira alguma, a isso. Essa esquerda […] não difere da anterior apenas em concepção: é
sobretudo diferente na vida real. Sua força está em seus vínculos com os movimentos de
base” (Castañeda, 1994: 174).
No Brasil de finais dos anos '70 a ascensão do “novo sindicalismo” exprimia um
descontentamento social popular e massivo em relação ao regime ditatorial e uma clara
demonstração de que a democratização era necessária para resolver o potencial conflito social.
Essas lideranças sindicalistas tinham uma base social cada vez mais sólida, que se sobrepunha
à estrutura sindical oficial que tinha servido durante tanto tempo para oprimi-los (Cfr. Keck,
1991: 55). As transformações do movimento sindical nesse período foram fundamentais na
criação de um partido com base popular. As greves dos anos 1978-1979154 em São Bernardo e
Diadema, e o surgimento de líderes operários reconhecidos pela opinião pública, o caso do
Lula representando o sindicato de São Bernardo, levaram para dentro dos partidos novos
elementos para a organização das massas, se fazendo elas presentes de maneira ativa e
protagonistas das lutas.
Por outro lado, os intelectuais também tiveram um papel importante no enfrentamento do
regime autoritário. Em São Paulo, por exemplo, trabalhando em institutos de pesquisa como o
154 As greves de 1978-1979 surgiram no país todo. Em 1979 mais de três milhões de trabalhadores paralisaram o trabalho. Lula, Olívio Dutra (dos bancários de Rio Grande do Sul) e João Paulo Pires Vasconcelos (dos metalúrgicos de João Monlevade, Minas Gerais), converteram-se numa espécie de “grupo de assessoria”, ajudando na negociação entre os líderes sindicais e suas bases em revolta. Maria Hermínia Tavares de Almeida, comentando sobre essas greves, observa que “elas pareciam inspiradas mais pela necessidade de testemunhar as aspirações operárias de liberdade, autonomia e direito a uma cidadania plena, do que por qualquer reivindicação de curto prazo” (apud Keck, 1991: 81).
167
“Centro Brasileiro de Análise e Planejamento” (CEBRAP), o “Centro de Estudos de Cultura
Contemporânea” (CEDEC), e o “Instituto de Estudos Sociais e Políticos” (IDESP), segundo
Keck (Idem: 59) “esses intelectuais tentaram, pedaço a pedaço, reconstruir o discurso verbal e
escrito da sociedade sobre si mesma (…) tomando especial cuidado em discutir e preservar as
histórias dos grupos excluídos – o operariado e os movimentos comunitários”.
Ressurgiu também nesse processo o movimento estudantil, quem conseguiu depois de
muito tempo reconstruir as organizações destruídas depois de 1968, especialmente a “União
Nacional dos Estudantes” (UNE). A ilegalidade de suas organizações e a força da repressão da
ditadura deixaram os estudantes sem possibilidades de participação legal na política,
abandonando muitos deles as universidades, para se unir à luta armada ou às atividades
culturais.
Um dos setores importantes na construção desses movimentos de base foi a igreja e os
grupos eclesiais. Frente ao fechamento de universidades, sindicatos, organizações
camponesas, em alguns países aqueles grupos foram um canal onde ainda podia se mostrar a
oposição contra a ditadura, foram o refúgio dessa dissidência.
As “Comunidades Eclesiais de Base” (CEBs) surgiram como uma nova forma de
organização pastoral, vinculada com as massas. Tratava-se de uma experiência fecunda e com
muita potencialidade pois, por meio dela, inicia-se um processo de renovação da própria
igreja, no sentido de uma descentralização e democratização a partir das bases populares (Cfr.
Bordin, 1987: 56). Constituíam-se em comunidades, com pequenos grupos de personas
vinculadas entre si por relações quotidianas, territoriais, de trabalho, de vizinhança.
Segundo Castañeda (1994: 79), o Brasil é um exemplo importante desse processo. Ao
longo dos anos 70s e 80s tanto a “Confederação Nacional dos Bispos do Brasil”, (CNBB)
quanto as CEBs foram um território “fértil e fonte de incontáveis movimentos populares,
surgidos como resposta ao impulso da industrialização acelerada promovida pelos militares e
às estruturas políticas autoritárias que o envolveram”. Assim surge um dos mais importantes
desses grupos, a “Comissão Pastoral dos Trabalhadores”, criada pela igreja nos anos 70s,
congregando grupos do cinturão industrial paulista. Anos depois conseguiriam criar um
vínculo “quase orgânico” com o novo movimento sindical brasileiro.
O processo de organização política dos anos 80s mostrará essa forte influencia,
fundamentalmente das CEB, se expressando no apoio decisivo ao “Partido dos
168
Trabalhadores” nas eleições de 1989, que mudou o mapa eleitoral brasileiro, conseguindo que
as camadas pobres, camponesas, operárias obtivessem uma maior participação eleitoral.
Consolidou-se assim uma influencia de base na política nacional e na organização da luta.
Várias frações da esquerda também começaram participar da conformação do PT. A finais
dos anos 70s essas organizações, frequentemente originárias do setor estudantil, ainda
enfrentando a censura e os ataques repressivos da ditadura, começaram a se organizar de
maneira mais aberta, publicar em revistas-periódicos. Um dos mais representativos desses
grupos foi a “Convergência Socialista”, que desde sua formação, em janeiro de 1978, já
afirmava a necessidade da criação de um partido socialista. A Convergência, segundo Keck
(1991: 98), foi um dos mais ardentes defensores da ideia de um partido dos trabalhadores.
Seguindo a análise de Keck, o PT foi sem dúvidas um fato novo nas instituições políticas
do Brasil por diversas razões: a “primeira, porque ele se propôs a ser um partido que
expressava os interesses dos trabalhadores e dos pobres na esfera política; segunda, porque
procurou ser um partido inteiramente democrático; e, por fim, porque queria representar todos
os seus membros e responsabilizar-se perante eles pelos seus atos” (Idem: 271).
As origens do PT foram profundamente influenciadas pela amplia mobilização em relação
às revindicações sociais no final dos anos 70; “no início dos anos 80, à medida que foi ficando
claro que a organização em nível local em torno de reivindicações específicas não se traduzia
automaticamente num movimento social mais amplo, o partido foi colocado na ambígua
posição de ter de ajudar a organizar aquilo que ele alegava estar representado” (Idem: 275).
Aceitando esse pressuposto, o partido mergulhou no problema da auto-organização que fazia
parte das duas organizações mais fortes que o conformavam: os militantes sindicais e os
militantes católicos, cuja visão política era influenciada pelas CEBs e por outras organizações
de base vinculadas à igreja. Ambos os grupos desconfiavam das mediações políticas e
acreditavam que o papel do partido seria o de unificar e generalizar as revindicações de ambos
movimentos. Segundo Keck (Idem: 275-276), iniciados os anos '80, o PT encontrou-se frente
à dificuldade de formular uma estratégia institucional: “a persistente separação entre as
esferas da ação social e política no Brasil colocava o PT numa espécie de posição
esquizofrênica entre as duas. Dentro da sociedade civil, ele se dedicava a fortalecer os atores
sociais cujo recurso político mais potente era a capacidade de confronto; dentro das
169
instituições políticas, seu trabalho era expandir o espaço político disponível para integrar a
participação e as demandas populares de maneira regulada”.
Outros movimentos do período, caracterizados como “novos” foram os movimentos
urbanos, que refletiam (assim como hoje, com outras particularidades) situações da vida
quotidiana, em bairros pobres; por falta de um salário que lhes permitisse viver nos centros
das grandes cidades, expulsos das regiões rurais por falta de trabalho, passaram a ocupar as
periferias, onde se viram obrigados a lutar por moradia, água, luz, serviços urbanos; foram os
chamados “movimentos de bairros” (Castañeda, 1994: 187). Surgem estratégias como a de
“ajuda mútua” na construção de moradias, “taças de leite”, “comedores comunitários”, etc; a
luta pela propriedade dos terrenos e a “legalização” dos lugares que habitavam para a
obtenção de infraestrutura por parte do Estado levou-os a se organizar em “centros de
vizinhos”, “cooperativas de moradia”, etc.
Os movimentos urbanos na América Latina foram se fortalecendo na medida em que as
periferias urbanas iam se empobrecendo cada vez mais e ao mesmo tempo aumentando em
quantidade pelo contínuo êxodo rural, na fuga da pobreza do campo. As massas empobrecidas
e sem emprego eram cada vez mais numerosas e sua luta pela sobrevivência se torna cada vez
mais intensa155.
A questão do Estado não estava ausente para todos esses movimentos. Na análise de Keck
sobre el PT sobre o significado do socialismo a finais do século XX, o “ataque ao Estado” não
era basicamente “um ataque à esquerda” e sim às tradições desenvolvimentistas e populistas
que, nos cinquenta anos anteriores tinham sido os pilares fundamentais do próprio conceito de
nação para muitos países do continente. Repensar o Estado era para eles repensar muitos dos
fundamentos do nacionalismo (Cfr. Keck, 1991: 282).
Movimentos que se destacam nessa “nova configuração” (e que veremos no capítulo III) e
155 Castañeda contribui com alguns dados fundamentais sobre a década de 80 na América Latina e o processo de conformação dos movimentos e a explosão das periferias urbanas: "em 1980, 136 milhões de latino-americanos, ou o 41% da população do continente, viviam na pobreza; em 1986, a cifra havia aumentado para 170 milhões de indivíduos, ou 43%; no final da década, estimava-se que havia atingido a espantosa cifra de entre 203 e 270 milhões de pessoas, cerca de 44% da força de trabalho. O salario mínimo real diminuiu 13% entre 1980 e 1987, mas esta cifra geral encobre profundas diferenças entre os países. No México, no Brasil e no Chile, a diminuição foi de 43%. A queda dos salários reais médios foi quase tão drástica: 23% no México, quase 30% no Uruguai, 62% no Peru, em 1991" (1994: 218).
170
se reposicionam para as lutas atuais são o de mulheres, o de Direitos Humanos, ecologistas e
indígenas. O importante aqui é observar que eles se tornaram rapidamente pilares dessas lutas,
apesar das suas tensões e contradições internas, conseguiram colocar na agenda de demandas
interesses que transcendiam os próprios movimentos, e por isso, como veremos, tiveram um
papel fundamental nas lutas das revoltas dos anos 90.
Dava-se o mesmo processo na América Latina toda. A volta da democracia na maior parte
dos países consolida os processos e as “novas formas organizativas” gestadas desde os anos
70; e reconfiguração política e econômica dos países lhes dão novo impulso. Por um lado, o
retorno da esquerda à “via institucional” a partir da estratégia de “partidos de massas” que
significava congregar todos os “novos movimentos” numa mesma estratégia de luta,
construindo uma “via eleitoral” democrática, fortalecida nas bases populares dos movimentos.
A “via chilena” ao socialismo era uma fonte de inspiração para quase todos esses partidos de
esquerda.
Deixar de lado a pergunta pela necessidade da revolução e estar somente preocupados em
como realizá-la teve os custos já mencionados ao longo desses 70 anos. Acrescentou-se a isso
uma ofensiva capitalista que levou a vários intelectuais de esquerda a declarar o fim da fase
“revolucionária” e o começo de uma fase de “consenso democrático”, no qual as reformas
necessárias dariam-se no marco da economia capitalista de mercado. Para esses intelectuais a
revolução era uma fase que se encerrava na história latino-americana156.
A década de 90 finalizou com a derrota sandinista (1990), com a derrota eleitoral do
“Partido dos Trabalhadores” (1989), com a queda do muro de Berlim (1990) e, como veremos
no capítulo III, com uma explosão social na América Latina que configurará os novos
cenários sociais e trará um novo desafio para a esquerda. O contexto para pensar a
necessidade da revolução será completamente diferente a partir dos anos 1990, nos quais
consolidou-se uma profunda crise estrutural do sistema, provocando importantes revoltas de
grandes massas de população vivendo um processo de desagregação violenta.
O segundo capítulo deste trabalho responde à necessidade de um balanço das derrotas da
156 Tese defendida por Jorge Castañeda no seu livro "Utopia desarmada" publicado em 1993 (Castañeda; 1994).
171
esquerda na segunda metade do século XX na América Latina, de suas possibilidades e
estratégias.
A análise das experiências cubana e chilena, permitiu observar a tensão de um debate
ainda aberto na esquerda: Reforma ou Revolução? No período de surgimento desses
movimentos (1960-1970) dá-se na América Latina uma abertura do marxismo na qual se
recupera um certo pensamento mariateguiano, surge um livro como “A revolução brasileira”
de Caio Prado que provocou profundos debates no interior do PCB, surge um pensamento
oxigenado como o do Che Guevara, e a proposta da luta armada e a formação do homem
novo. Diversos aspectos que mostraram a dificuldade do marxismo oficial para dialogar com
uma realidade que sentia a necessidade de reatualizar o significado da natureza da revolução,
das formas organizativas e dos sujeitos revolucionários. Assim, a esquerda acabou fechando
seu capítulo revolucionário depois da queda da Frente Sandinista de Libertação Nacional em
1990 e da impossibilidade dos partidos de massas de realizarem uma crítica radical real ao
sistema capitalista. Num contexto de recrudescimento das estratégias contra-revolucionárias
do capitalismo que aprofunda a barbárie, o século XX foi encerrado com a bandeira da derrota
sobre aqueles movimentos que tentaram, mais uma vez, construir projetos emancipatórios.
Apesar das derrotas e desacertos das décadas anteriores, a esquerda terá novamente a
tarefa de reatualizar suas leituras sobre as lutas, sobre a práxis revolucionária e as
possibilidades de transformação, num contexto de regressão social aprofundada, para o qual
uma parte do corpo teórico marxista parece não ter se modificado suficientemente ao ponto de
compreender a urgência que essa realidade demanda, antes que o aprofundamento da
descomposição social seja irreversível, como já é para uma parte da população mundial.
172
III. REVOLTA SOCIAL NA CRISE
1. Acumulação Primitiva – “Desenvolvimento Civilizatório”
Pensar na acumulação primitiva tal como exposta por Marx n’O Capital significa não só
percorrer um itinerário histórico e poder observar as diferentes maneiras através das quais ela
se desenvolveu e nas quais se cristalizou, como também poder vê-a como uma forma que se
apresenta de maneira constante no processo de expansão e consolidação do capital e suas
implicações cada vez mais profundas e destrutivas, que ela envolve. Como assinala Holloway,
a “acumulação primitiva” não é só uma característica de um período passado, é central para a
existência do capitalismo (cf. Holloway, 2002: 209).
Para Kurz, em retrospectiva histórica, tanto o Terceiro Mundo como o “socialismo real”
que teve lugar na Rússia poderiam ser consideradas “sociedades de acumulação primitiva de
natureza recuperadora” (Kurz, 1993: 189). As distâncias entre estes tipos de sociedades não se
dão apenas em termos de períodos históricos diferentes, como também em sua acentuação
sócio-econômica. Ademais, se distinguem dos antigos processos de acumulação primitiva da
Europa, desde o século XVII (cf. Kurz, 1993: 189). Veremos como as diferenças na ênfase
dada ao Estado vão responder às particularidades históricas de cada momento.
O que guardam em comum estes três tipos de acumulação primitiva é o que Marx
descreve n’O Capital: expulsão violenta, realizada de formas bárbaras, dos tradicionais
“produtores diretos”, em sua maioria de procedência camponesa, de seus meios de produção e
as “torturas” que sofreram ao ser forçados a se converter em modernos trabalhadores
assalariados, o que exige um sistema de mercadoria moderna como status de grandes massas.
Toda a população que foi violentamente despojada de suas terras foi logo a seguir maltratada,
torturada por diferentes legislações reputando-os vagabundos, até que estivessem submetidos
ao “sistema do trabalho assalariado”. Fração dessa população foi enviada nas embarcações
para a América no processo colonizador, e tomou parte no processo brutal de perseguição das
populações indígenas para a submissão ao sistema de trabalho de exploração em grande escala
173
(cf. Marx, [1867] 2004: 891-938)157.
Esta acumulação primitiva compôs-se fundamentalmente por um processo de colonização
triplamente determinada: por um lado a dissolução das formas de organização social pré-
modernas dentro do continente europeu, através da expropriação dos meios de produção,
cercando os campos e criminalizando a obtenção de lenha nos bosques. Neste sentido, “o
processo que cria a relação do capital, então, não pode ser outro que o processo de cisão entre
o trabalhador e a propriedade de suas condições de trabalho” (Marx, [1867] 2004: 893). Outra
determinação se deu com a expansão das nascentes relações capitalistas para além da
Europa, por intermédio do genocídio de povos e culturas não-capitalistas com o fim de obter
matérias primas para a produção e a circulação de dinheiro gerado pelo comércio escravo. Por
último, uma terceira determinação dada pelo adestramento subjetivo de massas humanas ao
ritmo da máquina da grande indústria moderna, que começou na Europa e logo se expandiu
para o resto do mundo. Este processo de acumulação primitiva inaugura um processo de
expansão do capital, que o permitirá afirmar-se como forma social única em todo o planeta.
O que Marx descreveu para a Inglaterra dos séculos XVI e XVII poderia aplicar-se,
segundo Kurz (1993: 189), para descrever a Rússia do século XX e para Brasil ou Índia de
fins do mesmo século, diferenciando estas regiões apenas pelo fator de tempo histórico da
modernização. Este processo gerou, em escala crescente, cada vez mais forças produtivas
científicas, até alcançar, em nossos dias, o limite de supressão, por parte do próprio capital, da
substância de “trabalho produtivo” do capital: “É precisamente nesse desenvolvimento e
aumento da produtividade, que faz colocar em alturas incríveis a régua da medição da
rentabilidade, que podem ser observadas as diferenças essenciais na tipologia da acumulação
primitiva” (Idem: 190).
Kurz (1993: 189-195) propõe para análise três formas de acumulação primitiva que se
157 No capítulo XXIV “A chamada acumulação riginaria” (Tomo I, Vol 3 – Libro Primeiro) Marx, já no primeiro parágrafo, observa: “a acumulação do capital pressupõe a mais-valia, a mais-valia a produção capitalista, e esta a pré-existência de massas de capital e de força de trabalho relativamente grandes em mãos dos produtores de mercadorias. Todo este processo, então, parece girar em um círculo vicioso do qual só podemos sair supondo uma acumulação 'originaria' prévia à acumulação capitalista […], uma acumulação que não é o resultado do modo de produção capitalista, mas seu ponto de partida” (Marx, [1867] 2004: 891 itálicos do autor).
174
desenvolveram ao longo da história do capitalismo, sublinhando que tanto o “mercado” como
o “Estado” são duas formas das quais se valeu o Capital para sua expansão e consolidação,
mas com acentuação e características diferentes em cada região dependendo de cada momento
histórico.
Por um lado, na Europa, o estatismo criador de “casas de detenção e trabalho” se limitou à
primeira fase do mercantilismo, porque a enorme massa inerte da economia de subsistência,
por falta de pressão externa, não necessitava nem podia ser transformada em pouco tempo. O
sistema produtor de mercadorias dispôs de mais de três séculos para absorver as massas
desvinculadas com violência maior ou menor das produções agrárias e artesanais. Isto se
realizou com grande velocidade passando de uma fase a outra de desenvolvimento,
interrompidas apenas por breves “crises de imposição”. O nível de desenvolvimento da força
produtiva daquela época, na qual ainda não havia penetrado o desenvolvimento científico,
produzia uma “voracidade canibalesca” (Marx, [1867] 2004: 292) de força trabalho vivo.
Passou-se muito tempo até que a mais-valia absoluta (jornada laboral que excedia o limite
físico, trabalho infantil etc.) veio a ser complementada pelo surgimento da mais-valia relativa
(redução do custo de reprodução do trabalhador mediante a produtividade elevada,
aumentando assim a participação relativa da mais-valia na produção global de valor). O
problema, esclarece Kurz, não era a falta de trabalho dentro do capital, senão sua natureza
violenta e grosseira (cf. Kurz, 1993: 189-191).
Neste momento se localiza uma primeira fase do mercado mundial, a dos descobrimentos
e da primeira colonização até a metade do século XIX, com a Inglaterra como o destaque na
economia nacional do ocidente. A produção para o mercado não havia logrado até o momento
impor-se plenamente, de maneira que as crises ainda não podiam repercutir no modo de
produção da sociedade em seu conjunto, a cual ainda continuava com um caráter
predominantemente agrário e de subsistência (cf. Kurz, 2004: 53).
A segunda experiência proposta é a soviética, em inícios do século XX, que por seu
“atraso” no processo de adotar o sistema produtor de mercadorias já desenvolvido na Europa
ocidental, se viu obrigada a exagerar o uso do elemento “estatista”, para transformar toda a
175
sociedade em uma máquina de trabalho abstrato comandada de forma quase militar, imposta
pela lógica do capital. Este segundo tipo de acumulação primitiva chegou a realizar
historicamente uma industrialização que alcançou grandes áreas e uma reestruturação
profunda da sociedade. Mas depois de 70 anos de iniciado esse processo, não se consegue
manter o nível que o mercado mundial pressiona como necessário (cf. Kurz, 1993: 192-193).
Neste momento se desenvolve a segunda fase do mercado mundial, à qual se denominou
a era dos “pais da pátria”, que vai até o final da Segunda Guerra Mundial, de onde surge uma
nova série de economias nacionais. Dentro desta fase claramente surge a consolidação dos
projetos nacionais na América Latina e sua industrialização tardia, ou processo de
acumulação primitiva como foi descrito anteriormente.
Nesta fase a economia de mercado se expandiu claramente até cada recanto do mundo e as
crises já afetavam a uma percentagem muito maior da população mundial. Isto ficou claro na
crise mundial de 1929-1933. Se aprofunda a interrelação dos mercados em nível mundial:
entretanto, o papel principal nas relações econômicas segue sendo desempenhado pelos
mercados nacionais (cf. Kurz, 2004: 54).
Com a decadência do “boom fordista” e o desenvolvimento das forças produtivas
completamente novas (racionalização e automatização), foram estabelecidas novas condições
irreversíveis de rentabilidade, nas quais começou a se manifestar, pela primeira vez, o limite
lógico inerente ao movimento de exploração abstrata da força de trabalho. Assim, o
desemprego em massa que se apresentou em um primeiro momento como um sintoma da
crise mundial, logo se tornou um problema permanente em nível planetário. Essa
produtividade crescente, que excede a capacidade de absorção da produção de mercadorias,
não podia deixar de gerar repercussões desastrosas nos processos recuperadores de
acumulação primitiva (cf. Kurz, 1993:189-191).
A terceira experiência é a que se realizou no “Terceiro Mundo”, como forma tardia da
modernização. Neste a maior parte da acumulação primitiva teve lugar somente após a
Segunda Guerra Mundial, o que significa em um nível mais desenvolvido de mercado
176
mundial e de produtividade comparativamente ao tipo soviético. “Nas sociedades do Terceiro
Mundo, o desenvolvimento do sistema produtor de mercadorias tinha que dividir-se, portanto,
em duas tendências completamente distintas” (Kurz, 1993: 193). O processo de acumulação
primitiva abarcou à sociedade inteira em apenas um aspecto: a economia de subsistência
tradicional, que em grande parte sobreviveu à época colonial, acabou sendo destruída com a
mesma brutalidade que na União Soviética. “Mas já que a abertura forçada ao mercado
mundial e a exigência de uma produtividade elevada impediam uma industrialização
recuperadora completa e extensa, a acumulação primitiva não chegou a terminar sua obra.
Ficou parada na metade do caminho, isto é, depois de desarraigar as massas, deixou de
integrá-as na moderna máquina de exploração em empresas” (Idem: 194). Desde o começo, a
industrialização foi seletiva, limitando-se a algumas fábricas isoladas que produziam para o
mercado mundial. O setor moderno, com a infraestrutura correspondente, sempre existiu
apenas como um corpo estranho em uma sociedade que já não podia penetrar inteiramente. “A
maior parte da sociedade foi apenas modernizada em sentido negativo, isto é, foram
destruídas as estruturas tradicionais sem que alguma coisa nova ocupasse seu lugar. E desde
os anos 70 intensificou-se extraordinariamente esse desenvolvimento, ao qual o Terceiro
Mundo pós colonial estava predestinado desde o princípio” (Idem).
Um dos maiores sofrimentos do Terceiro Mundo nos dias que correm não é a repisada
exploração capitalista de seu trabalho produtivo: pelo contrário, é a ausência de sua
exploração. É por esta razão que não pode haver nestes países uma reforma socialdemocrata
burguesa: “ninguém 'precisa' da grande maioria dessas massas desarraigadas, levando esta
parte uma vida miserável e improdutiva fora de qualquer estrutura de reprodução coerente”
(Kurz, 1993: 194).
O Terceiro Mundo pode ser visto como um estado de “acumulação primitiva
permanente”, que desde a conquista se consolidou como forma de produção e realização do
capital.
Aqui encontramos a terceira fase do mercado mundial que poderia se chamar “paz
americana”, que se estende desde o pós-guerra até fins do século XX, onde o modo de
produção para o mercado passou a desbordar o âmbito das economias nacionais para gerar
177
toda uma rede internacional de mercados. Os mercados internos perdem a cada passo seu
caráter fechado, e no mesmo movimento o mercado mundial ou os grandes mercados
regionais de caráter mundial se tornam um “espaço funcional imediato” de um número cada
vez maior de sujeitos econômicos (cf. Kurz, 2004: 54).
O período do mercado mundial não pode ser analisado apenas a partir de um “princípio
estrutural” ou de um “ordenamento”, senão como um “processo de globalização” (cf. Kurz,
2004: 55). Em um primeiro momento se expandiu o comércio mundial, em um segundo
momento se somou a isto a exportação extensiva de capital, que significou que setores inteiros
de produção foram instalados em outros países como capital, forçando a expansão do modo de
produção para o mercado. Em um terceiro momento a exportação intensiva de capital, ou seja,
a divisão internacional de processos de produção, arrebentou definitivamente a cápsula das
economias internas. Este período, que vem desde os anos 70, significou a criação de mercados
financeiros internacionalizados, que saíram do controle dos sistemas nacionais.
Arantes alinha neste caminho o que seria uma volta aos processos de acumulação
primitiva e sua relação com a globalização, destacando o exemplo dos movimentos
antiglobalização, os quais expressam o clamor pela reintegração da posse coletiva de tudo o
que é “comum”, em que se incluem desde a informação genética até os fundos públicos: “A
viagem redonda do capitalismo de acesso vem a ser esse retorno da acumulação primitiva”
(2007: 177).
Frente à marcha da “acumulação primitiva permanente”, que leva a um processo social
regressivo, se apresenta como desafio pensar naquelas experiências que hoje se desenvolvem
dentro do sistema capitalista como contestação anticapitalista, no sentido de que tanto sua
forma política de organização como a reprodução da vida cotidiana reconstroem outras
formas de organização da vida social. Elas, isoladas, sem uma articulação clara entre suas
lutas, parecem recriar, ante um cenário de desmoronamento, algumas idéias, práticas já
observadas por Marx na “Comuna de Paris” como a origem de formas autônomas e
autogestoras de organização social.
178
2. Comuna e Comunismo
Pensar a ideia de “Comuna” nos leva a construir uma memória sobre as sociedades pré-
modernas e outras formas sociais que se experimentaram anteriormente ao capitalismo. Tem-
se como referência mais ou menos generalizada que as sociedades pré-modernas eram
primitivas: no entanto, não só elas não o eram como, sim, eram altamente diferenciadas.
Apenas, esta diferenciação não deve ser compreendida tal como o é no conceito moderno.
As sociedades antigas cuja estrutura era predominantemente agrária não tinham “uma
cultura”: elas eram uma cultura em sua totalidade. Por sua vez, quando se fala de “cultura
moderna”, sempre se faz referência a um aspecto específico de formas de expressão e nunca a
um sistema social como um todo. A partir daí é possível ver que a cultura já foi um “todo” e
não apenas uma esfera funcionalmente separada158.
Os conteúdos e as formas diferenciadas tais como se apresentam no “metabolismo com a
natureza”, assim como as relações sociais e a estética, não se separam entre si como
subsistemas com lógica própria, mas são sempre a expressão de um modo “de existência
cultural único e coerente”. A descrição desta existência cultural em termos modernos, a partir
desta concepção de cultura, soa bastante confusa: a produção era estética, a estética era
religiosa, a religião era política, a política era cultural, a cultura era social e assim
sucessivamente. Para estas formas sociais “cada momento da vida social estava contido em
outro ou outros”, e se poderia dizer que a “religião” se apresentava como um momento
integrador forte da sociedade como cultura (cf. Kurz, 2004: 114). Assim, a religião não pode
ser pensada dentro destas culturas como uma simples relação coercitiva irracional, na medida
em que ela agrupava outros elementos que eram do âmbito do público.
Mariátegui, em sua leitura sobre o “mito”, precisamente tenciona refletir sobre esse lugar
da “religiosidade” nas culturas pré-modernas como um momento de integração da vida social,
dado que era difícil especificar a particularidade de cada esfera já que as mesmas se
encontram coesas na esfera do público.158 A palavra cultura provém do latim “cultus”, estando relacionada a plantação, agricultura, e, também, ao
“serviço divino, socialização, formação e vestimenta”. Esta concepção indica o caráter de integração das sociedades agrárias.
179
A idéia de “Comuna” nos remete a Marx e “A Guerra Civil na França” [1871]159.
Inspirado pela revolta de Paris em 1871160, ele realiza uma análise dos fatos sucedidos e da
potencialidade de suas propostas. A “Comuna de Paris” para Marx era a “antítese direta do
império, o grito de república social” (Marx [1871]; 1973:87)161.
Uma das ideias-chave desta análise é que ali “não se tratava de destruir a unidade da
nação, pelo contrário, tratava-se de organizá-a mediante um regime comunal, convertendo-a
em uma realidade ao destruir o poder do Estado, que pretendia ser a encarnação daquela
unidade, independente e localizado acima da nação mesma, em cujo corpo não era mais que
uma excrescência parasitária” (Marx, [1871] 1973: 90).
Marx se encarrega de marcar especificamente a diferença desta nova “Comuna” com a
“comuna medieval”, a qual precedeu o Estado moderno para logo servir-lhe de base. A nova
forma da “Comuna de Paris” tinha a ver com a “destruição do Estado Moderno”, era o
produto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora: “a forma política enfim
descoberta para levar a cabo dentro dela a emancipação econômica do trabalho” (Marx,
159 Marx, encarregado pelo Conselho Geral da Internacional, teve a seu cargo explicar aos proletários do mundo a gênese, a significação e o alcance do movimento parisiense. Realizando-o mediante documentos que lhe forneciam os periódicos todas as manhãs, elaborou o terceiro Memorial, conhecido com o título de A guerra civil na França, que só foi lido ante o Conselho Geral no dia 30 de maio, quando a comuna já não existia. Esta defesa, simultaneamente oração fúnebre, constitui uma das mais sólidas páginas da literatura socialista (cf. Bourgin, 1962: 34).
160 A “Comuna de Paris” foi um movimento insurrecional que governou Paris entre março e maio de 1871. Promulgou uma série de leis de autogestão, laicismo, sufrágio universal etc., que vieram a ser profundamente analisadas por marxistas e anarquistas. Logo foi sometida ao assédio do governo provisório estabelecido em Versalles (a cargo de Adolphe Thiers) e foi massacrada com extrema dureza. Após um mês de combate, o ataque final ao centro urbano provocou o que se chamou “a semana sangrenta”, entre 21 e 28 de maio, deixando mais de 30.000 mortos e instaurando por cinco anos a lei marcial em toda França.
161 O primeiro decreto da “Comuna” foi “suprimir o exército permanente e substituí-lo peo povo armado” . A “Comuna de Paris” estava formada pelos “conselheiros municipais eleitos por sufrágio universal nos diversos distritos da cidade. Eram responsáveis e revogáveis em todo momento […] a Comuna não devia ser um organismo parlamentar, mas uma corporação de trabalho, executiva e legislativa ao mesmo tempo […] em mãos da Comuna se puseram não somente a administração municipal, mas toda a iniciativa conduzida até então pelo Estado […]. Todas as instituições de ensino foram abertas gratuitamente ao povo e ao mesmo tempo emancipadas de toda intromissão da Igreja e do Estado. Assim, não só se punha o ensino ao alcance de todos, mas a própria ciência se redimia das travas a que a sujeitavam os preconceitos de classe e o poder do governo”. Por outro lado, as “comunas rurais” de cada distrito administrariam seus assuntos coletivos por meio de uma “assembleia de delegados na capital do distrito correspondente”, e estas assembleias, por sua vez, enviariam deputados à “Assembleia Nacional de delegados de Paris”, entendendo-se que todos os delegados seriam revogáveis em todo momento e se encontrariam obrigados pelo mandato imperativo de sus eleitores (Marx [1871], 1973: 90).
180
[1871] 1973: 91-94). Seguindo as observações de Marx, percebe-se que sem esta condição
última o regime comunal haveria sido uma impossibilidade e uma impostura: “a dominação
política dos produtores é incompatível com a perpetuação de sua escravidão social. Portanto, a
Comuna tinha de servir de palanque para extirpar os cimentos econômicos sobre os quais
repousa a existência das classes e, por conseguinte, a dominação de classe” (Marx [1871],
1973: 94).
Em “A Guerra Civil na França” Marx clarifica suas idéias acerca da potencialidade da
forma política da “Comuna” como “antítese direta do império” (Marx [1871], 1973: 87): ela
se apresentava como uma forma política que estava contra qualquer tipo de poder estatal, seja
o mesmo legítimo, constitucional, republicano, imperialista. Até o momento não havia tido
lugar na história um enfrentamento tão claro contra a forma Estado tal qual estava planteada
pela sociedade burguesa.
Para Saeer e Corregan, o que mais chamava Marx à atenção na “Comuna” não eram suas
medidas enquanto governo (que considera conquistas para a “salvação da classe média”), mas
sua potencialidade como “forma política”; sua própria organização era seu revolucionário (cf.
Saeer e Corregan, 1987). Como para Marx ([1859]1987:30) as “formas sociais (…) se
originam nas condições materiais de vida”, procedeu a uma análise da “Comuna” não como
abstração, mas a partir dos fatos que realmente sucederam na Paris de 1871.
Marx celebrava o fato de que todos os assuntos da vida social foram franqueados à
“Comuna”, o que permitia pensar em outra “forma social” que no fosse regulada pelo Estado,
e tampouco falava de um Estado “a serviço da sociedade”, mas no resgate desta outra “forma
política” de poder regular a vida social de uma maneira igualitária e coletiva, através de um
processo mais consciente deste “controle”, o que tornaria os Estados uma forma tanto
impossível como desnecessária162.
162 A Comuna decidiu, no dia 29 de março, dividir-se em dez comissões, cada uma das quais correspondia aos antigos ministérios, salvo o de Culto, cujo orçamento se suprimia e que passava a depender da Comissão de Segurança Pública. Estas comissões eram: a Comissão Executiva, a Comissão Militar, que substituiu em principio o Comitê Central da Guarda Nacional, a Comissão de Alimentos, a de Finanças, a de Justiça, a de Segurança Pública, a do Trabalho, Indústria e Comércio, a de Serviços Públicos, a de Relações Exteriores e a de Educação. Em relação aos cultos religiosos, no 2 de abril a Comuna decretou a separação entre Igreja e Estado, a supressão do orçamento para cultos e a secularização dos bens das congregações, que não chegou a
181
Marx deixa claro com sua análise que a “Comuna” simbolizava toda a redução do poder
de qualquer autoridade societária centralizada. A primeira medida que foi a abolição do
exército permanente significou não só poder desarmar uma contrarrevolução, mas também
uma condição necessária para as melhoras sociais, realizando um dos tópicos das revoluções
burguesas que era ter “governos baratos” ao destruir duas grandes fontes de gastos: “o
exército permanente e a burocracia estatal” (Marx [1871], 1973: 93)163. Era o augúrio de uma
unidade nacional, já não baseada em um Estado centralizado, mas com um regime “Comunal”
através do auto-trabalho e do auto-governo que permitiam destruir o corpo do Estado que não
era mais que uma “excrescência parasitária” (Marx [1871], 1973: 90). Se pretendia com a
forma “Comuna” uma unidade política da sociedade francesa, que estava longe de ser aquela
forma centralizada que havia prestado serviços contra o feudalismo, mas se convertido em
uma “unidade artificial”, apoiada no exército e altamente repressora (cf. Marx [1871], 1973).
A “Comuna” conseguiu em seu curto período dotar a república de “bases realmente
democráticas”, mas Marx observa que seu objetivo não era a “verdadeira república”, mas que
estes eram tão somente “fatores concomitantes” (Marx [1871], 1973: 93).
Assim como a principal conquista era a “forma política” que a “Comuna” havia
impulsionado, o objetivo final não podia ser a instauração de uma “república realmente
democrática”. Estava em germinação uma nova organização na qual se conjugavam elementos
pré-modernos a elementos novos da revolta. A forma autônoma dos governos locais que se
toma como base para a “Comuna” já havia sido implementada nas experiências comunais
prévias ao capitalismo, e logo, com o desenvolvimento do mesmo se converteram em uma
forma totalizada de organização política e econômica dos territórios. Antes deste, tanto a
política como a economia tinham a ver com os territórios, o que permitia à população uma
participação direta nas mesmas164.
se realizar.163 É importante assinalar que as experiências das insurreições de julho de 1830 e fevereiro e junho de 1848
inspiraram aos engenheiros e aos militares múltiplos aprendizados. A demolição das ruas tortuosas e estreitas – cujo pavimento era feito de grandes pedras quadradas, propícias para a construção de barricadas e muito apropriadas para a aplicação das regras dessa guerra de rua cuja estratégia havia estudado Blanqui – se deve muito mais a estas preocupações militares que às de filantropia operária e higiene urbana (cf. Bourgin, 1962: 110).
164 Um dado interessante deste período da Comuna foi o que sucedeu aos teatros, oito dos quais, dentre os principais, se encontravam abertos em princípios do mês de abril, além dos teatros dos bairros. Aos 21 dias de maio ainda se representavam no Ginásio algumas comédias e vaudevilles; 22 de maio, Raoul Pugno ensaiava na Ópera a ária Vive la liberté de Gossec, com vistas a uma representação especial que não chegou a
182
É difícil extrair destes textos de Marx alguma idéia de “centralismo democrático” tal
como Lenin o formulou em “Que fazer?” (1902), porque fica claro em vários parágrafos de
“A Guerra Civil na França” que Marx aprovava uma sociedade altamente “descentralizada”
como era a “Comuna”, sendo as “comunas locais” autônomas em tudo, exceto naquelas
funções que eram fundamentalmente do governo central, mas que não se aboliriam, e sim
ficariam nas mãos dos agentes comunais. Dessa forma existiria uma unidade nacional real, e
não supérflua como pretende um Estado centralizado (cf. Marx [1871], 1973: 90).
No capítulo III de “O Estado e a Revolução” de Lenin (1917), se encontra uma análise
sobre “A Guerra Civil na França” que constitui uma tentativa de recuperar o projeto de Marx
sobre a abolição do Estado na forma “Comuna” de governo. Lenin ([1917]1973: 69) insiste
em recuperar fundamentalmente a idéia da unidade da nação que a comuna garantiria, e esto
se daria através do que ele chamou “centralismo democrático”. Apesar de ser rica e fecunda a
análise, e de mostrar a forma comunal como aquela que Marx apontava como uma
experiência concreta que mostrava outras maneiras de organização social, Lenin acaba
defendendo determinado “centralismo voluntário”, uma maneira de unificar a ação de todos
os conselhos que acaba debilitando o ponto forte da análise de Marx quando fala da
autonomia desta organização. Ao mesmo tempo Lenin reforça, como Marx – ao não estar
preocupado em “descobrir uma forma política do futuro”, e realizando uma observação
precisa de uma situação histórica determinada –, que a “Comuna” é a primeira tentativa de
“destruir a máquina estatal burguesa” e a forma “descoberta por fim” para substituir o
“destruído” (Lenin [1917] 1973: 72).
Marx se dirige à classe trabalhadora, como os protagonistas da rebelião de 1871 na
França, e fortalece perante eles a ideia de forma comunal como organização política a ser
implementada após a “emancipação do trabalho”. Um dos pontos que destacou para que a
classe trabalhadora tivesse em conta é que assim como deverão passar por diferentes fases na
luta de classes, a “substituição das condições econômicas da escravidão do trabalho pelas
condições de trabalho livre e associado só podem ser obra progressiva do tempo (…), que elas
se realizar. Havia concertos populares nas Tulherias. A 21 de maio se realizou na Praça da Concórdia um grande festival, apesar da proximidade do eco do canhão (cf. Bourgin, 1962:104-107).
183
requerem não apenas uma mudança de distribuição, mas uma nova organização da produção,
ou melhor, a libertação das formas sociais de produção, no trabalho organizado atual
(engendrado pela indústria atual), dos grilhões da escravidão, de seu atual caráter de classe e
de sua coordenação nacional e internacional harmoniosa”. Entretanto sabe também que
podem ser dados “grandes saltos através da forma comunal da organização política, e que
chegou o momento de iniciar esse movimento em benefício de si mesma e da humanidade”
(Marx apud Mészáros, 2002: 1048). A forma comunal como organização política permitiria
potencializar aquelas conquistas propostas pela experiência histórica da “Comuna” em uma
crítica radical ao Estado, onde possam ser incorporadas todas aquelas “formas sociais” que
foram experimentadas ao longo da história da humanidade e a atualização de suas lutas. Marx
não desconhece esse aporte, e reconhece o lugar que as mesmas têm no momento de pensar
“formas de organização política”.
No 18 de março de 1871 o Comité Central da Comuna de Paris manifestou: “os
proletários de Paris, em meio aos fracassos e traições das classes dominantes, se deram conta
de que é chegada a hora de salvar a situação tomando em suas mãos a direção dos assuntos
públicos […] Compreenderam que é seu dever imperioso e seu direito indiscutível fazerem-se
donos de seus próprios destinos, tomando o poder”; ao que Marx agrega: “mas a classe opera
´ria não pode limitar-se simplesmente a tomar possessão da máquina do Estado tal e qual está
e servir-se dela para seus próprios fins” (Marx [1871], 1973: 82). Segundo Saeer e Corregan,
Marx propõe que a “Comuna” nos “ofereceria o meio racional através do qual a luta de
classes poderia atravessar suas diversas fases, de uma maneira mais humana e racional”
(Marx apud Saeer e Corregan, 1987).
As análises realizadas por Marx sobre o processo parisiense se complementam com seu
diálogo com os populistas russos. A formulação de que não existia uma necessidade intrínseca
ao processo revolucionário de ter que passar pela “selvageria” e por um conjunto de etapas
subsequentes de desenvolvimento das forças produtivas, ficou mais explícita em suas cartas
184
com Vera Zasulich165, como também em sua carta à redação de Otiéchestviennie Zapiski166
onde expõe suas diferentes concepções sobre a idéia do desenvolvimento histórico capitalista
e a crítica à idéia de uma possível teleologia da história. É importante citar algumas passagens
destas cartas-anotações onde observa que em seu livro O Capital167 se propõe um caminho
para compreender como na Europa Ocidental nasceu “o regime feudal capitalista do seio do
regime econômico feudal”. Observa ele que ali se expõe um processo histórico de como os
produtores foram separados dos meios de produção e convertidos em operários assalariados,
enquanto os proprietários destes meios se convertiam em capitalistas, sendo que este processo
ainda não se realizara de uma maneira radical a não ser na Inglaterra (Marx [1877], 1980: 63-
4).
Em 1881 Marx debateu com Zasulich sobre a idéia de “comuna” tal como era projetada
pelos populistas russos e se era necessário que a “comuna” tal como existia sofresse as
transformações descritas por ele n'O Capital, inclusive a passagem pelo modo de produção
capitalista, ou se os socialistas podiam pensar que essa “comuna” era capaz de desenvolver
uma via socialista organizando sua produção e distribuição sobre bases coletivas (Zasúlich
[1881], 1980: 29). Marx, em seus rascunhos de cartas a Zasulich, esboça algumas idéias sobre
esta problemática dizendo que “a propriedade comum da terra oferece a base natural da
apropriação coletiva, e seu meio histórico, a contemporaneidade da produção capitalista,
apresenta já prontas as condições materiais do trabalho cooperativo, organizado em ampla
165 Issac Deutscher, no primeiro volume de sua trilogia sobre Trostky, “O Profeta Armado”, descreve a Vera Zasulich (1869-1919), que viveu um período em companhia de Trostky e Martov em Londres, onde nesse momento se encontravam exilados junto a Lenin. Zasulich, nas palavras de Deutscher (seguramente tomadas de Trostky) era aquela mulher que “um ano antes do nascimento de Trostky (1879) disparara contra o general Trepov, inspirando involuntariamente a Liberdade do Povo (grupo político mais favorável às atividades terroristas que se origina de uma ruptura com o partido Terra e Liberdade) a seguir-lhe o exemplo. Depois que o júri a inocentou, fugiu para o exterior, manteve-se em contato com Karl Marx e, embora não lhe aceitasse os ensinamentos sem algumas reservas, tornou-se uma das fundadoras da escola marxista russa. Ignorando as dúvidas de Marx, foi das primeiras a proclamar que o socialismo proletário que ele defendera para a Europa Ocidental era aplicável também à Rússia. Vera não era apenas um personagem heróico. Conhecia bem História e Filosofia, era essencialmente herege, com uma inteligência agudamente feminina, trabalhando antes por impulsos intuitivos do que pelo raciocínio […] Para o jovem Trostky ela era uma heroína de um épico glorioso” (Deutscher [1954]; 1984a: 72-3).
166 “Otiéchestviennie Zapiski”[Anais da Pátria]: revista político-literária, publicada inicialmente em São Petersburgo, desde 1820; a partir de 1839 era uma das melhores publicações progressistas da época. Submetida a contínuas perseguições por parte da censura, a revista foi fechada em 1884 pelo governo czarista.
167 Particularmente, esclarece, no capítuo XXIV, “La Acumulación Originária”, El Capital, Tomo I - Vol 3, Libro Primero “El proceso de producción del capital” [1867] (Siglo XXI. Argentina. 2004).
185
escala. Então podem incorporar-se as aquisições positivas elaboradas pelo sistema capitalista
sem passar por suas forcas caudinas […] Depois de haver sido previamente posta em estado
normal em sua forma presente, pode chegar a ser o 'ponto de partida direto' do sistema
econômico ao que se inclina a sociedade moderna, e se remoçar sem começar por se suicidar”
(Marx [1881], 1980: 52).
No capítulo I observamos que Mariátegui marca de maneira intuitiva o caminho
percorrido por Marx nestas cartas, reforçando a idéia da “comuna incaica” como forma
social alternativa à desenvolvida pela entrada do capitalismo com a colonização. O desafio
que estava posto frente a Mariátegui e ao grupo de intelectuais desse momento foi o mesmo
desafio colocado para Zasulich e a esquerda russa. Os acontecimentos da “Revolução Russa”
não só estimularam em Mariátegui a necessidade de um caminho socialista para a
transformação, como também permitiram que pudesse pensar em que o caminho ao
comunismo não podia seguir significando violência e pauperização, como havia sido até o
momento após a conquista. Para isto era necessário reconstruir a história das lutas, recuperar
algumas práticas que enfrentavam essa forma social depredadora e, sobretudo, o desafio de
dar “unidade” às massas populares.
Como se vê, Marx não só avalia com grande entusiasmo os fatos sucedidos em Paris em
1871, como consegue ver a novidade que estes eventos traziam para a reflexão sobre as
formas organizativas estratégicas para a revolução. Marx pode ver nesta experiência uma
forma social que permitiria recuperar uma tradição organizativa que havia sido violentamente
destruída pelo desenvolvimento capitalista, mas que se reatualizavam em novas formas de
lutas, adquirindo novas configurações. Um dos processos onde elas se viram novamente
retomadas foi com a experiência dos sovietes, na Rússia de 1905.
2.1 A “Comuna” dos sovietes
A experiência em 1905 dos Conselhos de Operários – sovietes, não só marcou a
Revolução Russa e os debates do marxismo dentro dela, como ainda hoje continuam
186
influenciando os debates vigentes nos movimentos sociais.
Ao falar dos sovietes, é impossível não fazer referência ao que significou o Mir como
antecedente histórico dos mesmos. O Mir significa “comuna aldeã”, que consegue reunir
nesse mesmo significado três elementos de grande importância no mundo rural: “o mundo”,
“o universo” e “a paz”. Segundo esta definição, violar a comuna era “violar a paz”. O Mir era
um espaço de autonomia e democracia, onde as terras eram cultivadas por cada um dos
aldeãos mas pertenciam à comuna, e de tempo em tempo eram redistribuídas as marcas de
divisão das mesmas entre seus membros (cf. Hill, 1977: 72). O Mir foi, durante um largo
período histórico, a forma de organização da vida camponesa e resistiu fortemente aos
processos de ingresso do capitalismo na Rússia.
Os acontecimentos de 1905 guardam uma íntima relação com esta forma de vida
experimentada na Rússia e que se verá refletida na organização dos sovietes.
No dia 22 de janeiro de 1905 se realizou uma greve geral em São Petersburgo, onde se
requeria ao czar a existência de uma constituição que permitisse aos trabalhadores que se
protegessem da exploração dos patrões e uma redução das misérias nas quais viviam. A
resposta a esta manifestação foi uma repressão violenta que ficou conhecida como o
“Domingo Sangrento”, onde se calcula que morreram mil pessoas (Idem: 82). A ação iniciada
em São Petersburgo se estendeu a outras grandes cidades do país, e logo a várias greves e
negociações com o czar, até que no 13 de outubro se realizou uma greve geral que deu origem
aos sovietes de São Petersburgo; rapidamente conquistaram poder de convocatória,
constituindo-se como o primeiro órgão eletivo que representou as classes trabalhadoras, que
até o momento no tinham direito a voto, tornando-se desde o início um fato revolucionário de
uma grandeza extraordinária (Deutscher, 1984a: 141).
Os sovietes, assembleias de representantes de fábricas e organizações da classe
trabalhadora, eram as únicas instituições espontaneamente democráticas no país. Não eram
produto de lucubrações de partidos políticos: cresciam entre os operários das cidades, mas
suas raízes se assentavam em uma velha tradição de organização democrática e autonomia, na
187
comuna aldeã e no artel (cooperativa de pequenos produtores e artesãos) (cf. Hill, 1977: 84).
Os métodos que os sovietes punham em prática podiam ser entendidos em qualquer aldeia,
comunidade, eram simples, diretos: voto a mão erguida, com direito a ser revogado, e eleição
indireta dos escalões superiores; isto permitia que os trabalhadores analfabetos pudessem
participar de um processo autenticamente democrático. O que importava neste processo era a
“comunidade trabalhadora” e não o indivíduo isolado. Nas palavras de Lenin: “Há muito mais
conteúdo revolucionário nessa instituição do que em todas as vossas frases revolucionárias”
(apud Hill, 1973: 85).
Ante o vazio que deixavam os partidos de esquerda, os sovietes se localizam rapidamente
em nível político mais avançado, enquanto surgem diretamente de vasto movimento de
massas. Representam, ademais, uma forma de poder que aparece como alternativa direta e
imediata ao poder constituído, tanto em suas formas autocráticas como nas da democracia
representativa (cf. Foa, 1972: 102).
O debate com os populistas russos deixou assentadas as bases para que se pensassem
outras formas sociais que permitissem a passagem ao socialismo, de outras maneiras que não
implicavam necessariamente o total desenvolvimento capitalista. Idéias que Marx no
conseguiu desenvolver em maior profundidade devido a sua morte em 1883, e que se
tornaram parte de um debate periférico no âmbito do movimento comunista do século XX.
O antigo sonho populista de uma comunidade de comunas camponesas autônomas nunca
foi realizado, e o advento do capitalismo nas aldeias destruiu as comunas sobre as quais se
assentou, mas a tradição da organização e a conduta autônoma reapareceram com o processo
dos sovietes.
A agitação vivida nos dias anteriores ao 17 de outubro seria uma antecipação do que em
seguida se viveu em 1917, com a diferença de que neste momento tanto os grupos socialistas
como os partidos não estavam totalmente de acordo com a atitude que os sovietes
empreendiam, já que tanto os bolcheviques como os outros grupos queriam que os conselhos
aceitassem a direção do partido. Era impossível para os partidos ver que os sovietes não só
188
representavam uma experiência histórica diferente de outras greves, que tinham um caráter de
autonomia e autogestão não visto até aquele momento na Rússia, como também que
representavam uma classe operária ampla, razão pela qual precisavam contemplar diversos
interesses, e uma liderança única acabaria com a unidade de uma greve geral.
Todos estes debates estavam sendo realizados quando, no 17 de outubro, o czar publicou
um manifesto onde prometia uma Constituição, liberdades civis e sufrágio universal. Em um
primeiro momento de euforia as massas saíram às ruas para festejar, ao mesmo tempo em que
à polícia foi dada a ordem de reprimir. Com a confiança nas promessas do czar se
encontravam também as massas camponesas para quem a revolução era ainda um assunto
meramente urbano168.
Recuperando o exposto no capítulo I, onde mostramos as ideias-chave que abrem um
caminho diferente para a interpretação destas experiências de “comunas” (recuperadas por
Marx), descobrimos que o marxismo latino-americano negligenciou durante longo período
(apresentado no capítulo II deste trabalho) a importância de entender e dar luz sobre as
múltiplas manifestações das lutas sociais, e se fechou no intento de adequar as mesmas a uma
teoria que desse conta de tais processos. A estratégia revolucionária durante este período no
esteve voltada para a análise das diferentes experiências que tiveram uma força
importantíssima nas diferentes formas que adquiriram antes e depois da conquista da América.
3. Comuna e Crise Estrutural
A forma social de organização nas experiências comunais anteriores à modernidade estava
dada fundamentalmente por um forte vínculo com a terra, bem como por seu laço religioso
(entendido nos termos da relação entre cultura e religião). Com o desenvolvimento do
capitalismo, estas antigas estruturas comunais se vêem rapidamente desestruturadas (processo
de acumulação primitiva) e incorporadas a uma noção de “vínculo social” que se reduzia
principalmente à esfera da vida privada (família) e sua reprodução social passa a formar parte
168 Holloway, analisando a Revolução Russa de 1917, observa que “a tomada do poder do Estado na Rússia significou a derrota dos sovietes, o intento de tomar o poder do Estado é o oposto do impulso para a autodeterminação” (2006: 20).
189
do “mercado”. Assim, o significado das lutas da “Comuna de Paris” teve uma conotação
totalmente diferente daquele das lutas empreendidas pelos indígenas dos Andes (no mesmo
período) onde se tentava recuperar a forma de organização social do “ayllu” em seu estado
puro (a volta ao Tawantisuyo). Para cada uma destas lutas a idéia de “comuna” mudava em
relação aos impactos da modernidade e ao capitalismo como projeto civilizatório.
Com os sovietes, a recuperação da idéia de “comuna” se nutre fortemente da classe
trabalhadora, que começa a crescer na Rússia em fins do século XIX, e suas características,
como vimos, terão a ver com a incorporação das “conquistas do progresso da modernidade” à
luta das massas proletárias (regulamentação da jornada de trabalho e luta contra o
absolutismo). Mas, ao mesmo tempo, as massas camponesas, como componente fundamental
dessas lutas, revitalizam a idéia da organização comunal nas reivindicações dos sovietes (o
mir), que acabam adotando uma forma antiga de organização política em uma luta operária e
sindical. O impulso que os mesmos conseguem imprimir à revolução de 1917 será uma das
bases da vitória de outubro.
Ao longo do século XX estas experiências começam a se perder no horizonte de análise
política e teórica da esquerda, fracassando a mesma em seu intento de democratizar as formas
políticas de organização da vida social, como anticapitalistas fundamentalmente. Então cabe
perguntar-se: seguirão tendo vigência estas experiências da luta anticapitalista? Que
características adquirem neste novo momento histórico do capitalismo?
O capitalismo, a partir dos 1970, ingressou em nova fase. Neste período, consolidou seu
domínio sobre todas as esferas da vida humana e todos os territórios do planeta, unificados em
uma “sociedade produtora de mercadorias”. Impulsionada por grandes transformações
produtivas, esta nova fase representa sua madurez – e auge – enquanto sistema. Assim, o
“arcaico”, entendido como pré-capitalismo ou insuficiente desenvolvimento da produção
capitalista, está superado: “o arcaico que vemos agora espalhado pelo mundo, desde os países
periféricos até as periferias dos países centrais, é a própria configuração deste modo de
produção. O seu progresso não passa de formas ideológicas de um impressionante retrocesso”
(Menegat, 2008).
190
O capitalismo nesta fase significa também uma crise de expansão. As fronteiras internas
estão postas pelas renovações tecnológicas e a inovação de produtos, e a externa está posta
pela expansão para novos mercados. Tais limites significam uma “crise estrutural”169 que se
vai combinando com os processos de crise conjunturais (Tigres asiáticos e Rússia 1996-7,
México 1998, Argentina 2001, bolsa de valores de Nova York 2001,) (cf. Menegat, 2008). Em
uma análise que Schwarz realiza sobre o livro de Kurz “O colapso da modernização”, observa
que esta débacle sofrida pelas industrializações protegidas do Terceiro Mundo e do socialismo
real são observadas por uma visão mais doutrinária como a vitória definitiva do mercado e de
seus mecanismos; desde o ângulo histórico que propõe Kurz “trata-se da inviabilização de
imensos esforços de integração à modernidade, postos fora de combate pelos rigores da
concorrência global, ou seja, pela própria lógica do sistema de produção de mercadorias, que
passou à autodestruição” (Schwarz, 1993: 134). As mudanças nesta fase do capitalismo estão
marcadas pela Terceira Revolução técnico-científica, que começa a desenvolver-se depois da
Segunda Guerra mundial e que atinge sua madurez nos anos 1970-1980. A partir deste
processo se suplanta a organização produtiva fordista por novas tecnologias e as formas
organizativas que derivam delas. Assim, assinala Menegat (2008), “a modificação do modelo
fordista da unidade de produção implicou também num rearranjo sócio-político que girou em
torno do desmonte do Estado de Bem-Estar social ainda hoje em curso. Estas mudanças
liberam energias que não podem ser absorvidas pelo capitalismo, a não ser destrutivamente”.
Na medida que o trabalho é substituído por complexos sistemas de produção
automatizados, a “criação de riqueza perde as suas antigas bases materiais”, o que provoca um
desemprego estrutural gerando uma “imensa crise social” em virtude da perda de sua
substância viva: o trabalho (Menegat, 2008)170.
169 Como referência na análise sobre a crise estrutural do capitalismo se podem consultar estes autores, entre outros: KURZ, R. “O colapso da modernização”, Paz e Terra. Rio de Janeiro. 2003; “Os últimos combates”, Vozes. Petrópolis. 1997. “Com todo vapor ao colapso”, UFJF-Pazulin. Juiz de Fora. 2004. MÉSZÁROS, I. “Para além do capital”. Boitempo. São Paulo. 2002.
170 No ensaio “A atualidade da barbárie”, Menegat (2006: 41) assinala que “no capitalismo da atualidade da barbárie, marcado pelas ruínas das derrotas das revoluções, a exclusão de milhões de seres humanos dessa esfera do mundo social cria formas de sociabilidade em decomposição, como o desemprego estrutural e a criminalidade, por exemplo, que, definitivamente, não podem ser vistos como uma anomia”.
191
Enfrentado o “limite lógico do capital”, os Estados nacionais passam por um aumento de
suas funções repressivas, assistenciais, agregando-se a isto uma diminuição dos recursos
(diferentemente do auge do Estado de Bem-Estar e do pleno emprego por este garantido) e
enfrentando grandes corporações, em uma situação onde a demanda social está em claro
aumento.
Os anos 1990 se caracterizam pela resolução dos impasses produzidos pelas
transformações do capitalismo nos países centrais e sua penetração na sociedade brasileira (e
latinoamericana), que passou por um forte desmonte do Estado combinado a uma abertura à
economia de livre mercado, o que obrigou grande parte da indústria do país a fechar suas
portas. É neste quadro em que se insere a modernização tecnológica e as novas formas de
organização do processo produtivo. Neste quadro de “um crescimento econômico anêmico,
este modo de modernização foi gerando um exército industrial de reserva gigantesco, que não
é mais conjuntural, mas estrutural. Se dá um encontro entre o exército de reserva “natural” de
um país periférico, com as conseqüências das novas tecnologias produtivas” (Menegat, 2008).
Arantes observa que estas massas “excluídas” foram tratadas através das políticas de
“inclusão” desde a ótica de se pensar o foco da fratura social apenas desde a exclusão. Então,
a perspectiva de emancipação se convertia em perspectiva de integração, ao perceber-se que o
núcleo dos excluídos representa o setor “moderno” da sociedade que funciona muito bem,
dando-se as costas à massa sobrante de inadaptados: “O que resta de antagonismo numa
sociedade de atores individuais a um tempo fraturada, e, por assim dizer, interacionista, é uma
luta por reconhecimento. O discurso sobre a exclusão, a fratura social, oculta detrás dela uma
política de produção sistemática de desigualdades” (Arantes, 2004: 51-3). Para Arantes, “a
febre ética de hoje é um pobre sucedâneo do empenho político bloqueado” (idem: 290). A
proposta de integração dos excluídos legitima indiretamente a punição dos atrasados por seu
atraso.
Em fins dos anos '60 e princípios dos '70 José Num elabora a noção de “massa marginal”
(que suscitou largo debate com Fernando Henrique Cardoso), com a intenção de enfrentar o
“hiperfuncionalismo da esquerda” que se empenhava em demonstrar que até o último dos
192
camponeses sem terra ou dos vendedores ambulantes de nossas cidades eram não unicamente
funcionais, senão decisivos para a acumulação do capital (cf. Num, 2001: 25).
Com a incorporação desta noção não substituía, e sim complementava, a de “exército
industrial de reserva”. Pretendia mostrar que a “massa marginal” exigiria uma gestação de
políticas para esse excedente, e que isto significa estratégias de afuncionalização da não
funcionalidade da superpopulação relativa, favorecendo distintos graus de autonomia dos
subsistemas que a contêm: assim o ilustram situações aparentemente tão dissimilares como a
persistência do gamonalismo na serra peruana e do minifúndio no México (idem: 139, 242-3).
Baseado na leitura dos Grundrisse, Num resgata que para Marx “o excedente de
população é sempre relativo, mas não aos meios de subsistência em geral senão ao modo
vigente para sua produção” (Idem: 42). Esse é o núcleo da crítica de Marx à concepção
abstrata e a-histórica de Malthus. Nas palavras de Marx, que Num extrai dos Grundrisse, “é
então unicamente um excedente para tal nível de desenvolvimento” (Marx apud Nun, 2001:
42).
Para Num uma parte cada vez maior da superpopulação relativa se transforma em uma
“massa marginal”, cuja falta de funcionalidade não é uma consequência buscada pelo
comportamento dos agentes econômicos, mas o efeito dessa “contradição fundamental” entre
as relações de produção imperantes e o nível de desenvolvimento alcançado pelas forças
produtivas (Idem: 106).
Para superar o dilema da exclusão, é preciso compreender que “o mercado é uma
formação social que não admite nenhum 'exterior'” (Arantes, 2004: 52), o desempregado não
encontra mais quem lhe compre a força de trabalho, o pobre é um consumidor insustentável,
os descartados são “descartados porque estão absolutamente incluídos” (idem: 295). É o que
Kurz (1992: 195) chama de “sujeitos monetários sem dinheiro”171.
171 Uma referência importante sobre a construção, localização e lutas destas massas pode encontrar-se entre outros trabalhos em MARRO, K. “'A rebelião dos que sobram': Reflexões sobre a organização dos trabalhadores desempregados e os mecanismos sócio-assistenciais de contra-insurgência na Argentina contemporânea ”, tese de doutorado, Escola de Serviço Social/UFRJ. 2009. Também se pode encontrar uma análise que mostra a conformação destas massas como produto da crise estrutural em BRITO, F. M. Da S. “Acumulação (Democrática) de Escombros”. Tese de doutorado, Escola de Serviço Social/UFRJ. 2010.
193
Se configura assim um vasto espaço no qual “vivem os caídos transitando sua
desumanização” (Ferrara, 2003: 24). Assim, o que os sustinha até o momento como sujeitos
“desvaneceu, a ordem simbólica vigente cai e arrastra em sua queda a condição de sujeito. A
miséria tem efeitos sobre os vínculos, os corpos, a capacidade de simbolizar, o universo de
valores, desliga a composição subjetiva e aniquila a humanidade prévia” (idem)172.
Uma parte da esquerda, ultrafuncionalista, desconheceu ou negou a existência dessas
massas inorgânicas, excluídas, sobrantes, marginais, negando ocultando o debate sobre o
lugar que as mesmas guardam nos processos de lutas sociais. Arantes mostra que ante a
impossibilidade de incorporação se passa à proposta de uma integração por reconhecimento,
identitária, solidária. É a idéia de reconstruir pontes entre o incluído e o excluído, onde o
reconhecimento dessa dualidade não leva a uma crítica da produção sistemática da
desigualdade.
Neste contexto o comportamento da burguesia se vê refletido em “um descompromisso
autoritário” com as necessidades colectivas das sociedades nacionais de onde surgiram; “o
privilégio dado ao interesse financeiro, levando-a a sustentar estupidamente as conseqüências
antissociais destas suas ações; a sua frieza social amesquinhadora que a torna abertamente
cruel, realizando como algo natural e inevitável a contenção da pobreza por meio da
criminalização dos pobres, cujo resultado é o genocídio das 'massas sobrantes'” (Menegat,
2008). Este grupo acaba personificando as necessidades do capital.
Por outro lado, o proletariado sofreu nas últimas décadas as consequências deste processo
de desmoronamento, vendo-se afetado pelo desemprego estrutural, que debilitou fortemente
suas lutas, aumentando enormemente o exército industrial de reserva que permite às empresas
derrotar qualquer ação colectiva dos trabalhadores. Somada a isto a exigência de uma
formação técnica do trabalhador, que aumenta a competição cruel entre a maior parte da
população que busca sobreviver em meio à crise.
172 Ferrara (2003:25) se pergunta: “Que afinidade poderia ser estabelecida entre os consumidores do neoliberalismo e as massas que vivem na miséria, entre as ratazanas, com inundações constantes, acorrendo adultos e crianças às latas de lixo para poder comer? São humanos estes sobreviventes da miséria?”
194
Além do desemprego estrutural, os trabalhadores assalariados sofrem as consequências da
chamada “flexibilização trabalhista”, que transformou os empregos estáveis em totalmente
instáveis “terceirizando”, ou seja, entregando diferentes setores da produção a várias empresas
que levem a cabo o processo. Com isto já não existe uma única unidade de produção, o que
leva ao desaparecimento de um “território” em comum para a organização coletiva: a fábrica.
Esta, como lugar de luta, de organização, de estratégia, desaparece, desmembrando o coletivo
em uma individuação abstrata, onde se perde como referência o com quem e para quem se
trabalha.
Um terceiro elemento é a alienação do trabalho, que surge em consequência de um
aprofundamento cada vez maior da divisão técnica , que torna impossível que cada
trabalhador compreenda o que é que realmente se faz em cada uma das funções.
Segundo Schwarz (1993: 136), se com Marx assistimos ao aprofundamento da luta de
classes, onde as sucessivas derrotas do jovem proletariado são outros tantos anúncios de seu
ressurgimento mais consciente, com o aprofundamento da crise estrutural, 150 anos depois, “o
antagonismo de classes perdeu a virtualidade da solução, e com ela a substância heróica. A
dinâmica e a unidade são ditadas pela mercadoria fetichizada – o anti-herói absoluto – cujo
processo infernal escapa ao entendimento de burguesia e proletariado, que enquanto tais não o
enfrentam”.
Com estes elementos colocados como consequência do quadro de crise estrutural resulta
difícil hoje pensar na organização coletiva do proletariado, dadas as condições mencionadas –
que, como Menegat (2008) aponta, não podemos saber se são parte de uma situação
conjuntural de transição entre um período de conquistas materiais dentro da ordem burguesa
para um período imediatamente posterior de derrotas e ajustes, ou se estamos frente uma
situação estrutural, determinada mais exatamente pela incorporação desta classe ao sistema
depois de haver sido devidamente domesticada e aburguesada durante anos por hábitos de
consumo sem os quais já não consegue pensar-se, além de uma visão de política de Estado em
que a idéia de outra forma de vida social perde seu lugar.
195
A este quadro se soma a “globalização do mercado”, com a intensificação e flexibilização
da acumulação do capital, que vai acelerando e aprofundando a transferência de riquezas dos
países periféricos para os centrais, e das classes subalternas para os ricos dentro de um mesmo
país, “completando assim o quadro de uma imensa cratera que se abre feito ferida nas
sociedades do 'elo mais fraco'” (Menegat, 2006: 92).
O Estado, neste contexto, se configura no mesmo momento como repressivo e
assistencialista. Ao mesmo tempo em que realiza uma administração coercitiva da crise, a
reforça com um assistencialismo que se disfarça de “novos direitos”. Assim este “poder
estatal” consegue, no ato de “inclusão coercitiva” das massas sobrantes, construir um amplo
campo de criminalização da pobreza. Desde este lugar, as massas empobrecidas serão as
responsáveis pela falta de “nexo” social, que será agudizada com a proliferação das políticas
de “Tolerância Zero” (Brasil), “Unidades de Polícia Pacificadora” (Rio de Janeiro), “Policía
Metropolitana” (Ciudad de Buenos Aires), “Comando de Acción Preventiva” (Córdoba-
Argentina), entre tantos outros173. García Linera (2004: 38) mostra como entre o ano 2001 e
2004 (ano das principais revoltas na Bolívia no que temos até aqui de século XXI), em
diversas capitais provinciais da Bolívia se criaram “polícias comunitárias” que resguardavam
a ordem pública em nome da Federación Campesina.
Para Menegat (2006: 99), para que esse “arranjo social” possa prosseguir sem “ferir o
processo excessivo de produção”, em um regime de apropriação privada de riqueza, “é
necessário hipertrofiar as funções policiais do Estado”. Essa operação não se restringe ao
simples “aumento dos contingentes repressivos, mas, numa manobra bastante sutil, incorpora
à função repressiva as maiorias eleitorais e a chamada opinião pública”. Segundo Oliveira
(2004: 70), os Estados nacionais na América Latina se converteram em “Estados de Exceção”
em um duplo sentido: “existem para proteger os interesses dos capitais financeiros e mantêm
o grosso de suas populações em estado de indigência, de excepcionalidade, numa
funcionalização da pobreza que é a pior das exceções”. Se converteram em “administradores
das políticas de funcionalização da pobreza”, de onde surgem assim “bolsa-escola”, “bolsa-
alimentação”, “primeiro emprego”, “começar de novo”, “fome zero”, “jefe y jefa de hogar”,
173 Cf. Brito, 2010.
196
etc. A violência cotidiana fala da profundidade da crise de legitimação do Estado, que acaba
se resolvendo a favor das tendências totalitárias, já mui bem conhecidas na região,
recuperando e atualizando velhos modelos ditatoriais, com formas conhecidas e
desconhecidas de violência.
A “naturalização da barbárie” se efetivou de tal maneira, por meio de um consenso que
alguns chamam ingenuamente “pensamento único”, sem atentar para “o fato de que se trata
efetivamente da naturalização que sempre esteve em curso no mundo burguês, fundada por
este axioma do pensamento moderno que é a 'natureza humana'” (Menegat, 2006: 100).
Schwarz, continuando no caminho de Kurz, observa que estas nações que se haviam
lançado à industrialização tardia perdem as condições de coesão e se convertem em
“sociedades pós-catástrofe” (Kurz, 1991), onde o projeto de modernização que supostamente
iria atender as demandas de maneira universal se perdeu no passado. “Para estes países, a
reprodução coerente no espaço da concorrência global deixou de ser um horizonte efetivo, e
predomina a tendência à desagregação. Noutras palavras, a generalização do salário e da
cidadania está mais distante” (Schwarz, 1993: 136). Desta maneira, assinala este autor, o
desenvolvimentismo liberou e arrancou suas populações do velho enquadramento para
reenquadrá-las em um esforço de industrialização nacional, as abandonando sem que tenham
aonde voltar, na qualidade de “sujeitos monetários sem dinheiro”(Kurz, 1991) ou de ex-
proletários virtuais, agora disponíveis para a criminalidade e os fanatismos nacionalistas o
religiosos (cf. Schwarz, 1993).
A partir dos anos '90 se abre, na América Latina, um processo de regressão e revolta social
que apresenta novas características. Como veremos, a continuação estas lutas não é apenas
uma manifestação de um processo de “barbárie”, como também apresenta para a esquerda
experiências coletivas de organização que abrem a possibilidade de colocar novos elementos
em debate. Essas manifestações representam um desafio ante um panorama de catástrofe.
197
3.1 Revolta Social na Crise
Desde o Caracazo de 1989 até a Comuna de Oaxaca em 2006, na América Latina se abriu
uma série de levantamentos populares que multiplicaram-se em vários territórios como
sucedeu em: Argentina em 1989, Assunção em março de 1999, Quito em fevereiro de 1997 e
janeiro de 2000, Lima e Cochabamba em abril de 2000, Argentina em 2001, Caracas em abril
de 2002, La Paz em fevereiro de 2003 e El Alto em outubro de 2003, mencionando apenas os
casos mais relevantes.
O levantamento do Exército Zapatista de Liberação Nacional (EZLN), em Chiapas –
estado do México –, em 1994 teve um impacto muito forte em todo este contexto de revoltas
e surgimento de vários movimentos. O grupo é basicamente formado por indígenas que
habitam a selva de toda essa região, limítrofe com a Guatemala. É um grupo guerrilheiro, mas
que diferentemente dos grupos armados dos anos '60, não se propunha a tomada do poder,
mas uma mobilização da sociedade civil mexicana, que permitiria transformações profundas
no sistema político-social do país. O fato destacado deste grupo foi a proposta dos “conselhos
comunais”, de “cooperação”, que propõe como forma política de organização e que se torna
uma referência para todos aqueles movimentos latino-americanos compostos pelas massas
castigadas pelo neoliberalismo. Este movimento significou uma renovação nas formas de
organização em relação à esquerda latino-americana, e, mais ainda, a incorporação de um
sujeito que parecia esquecido: os indígenas.
São várias as fontes das quais o EZLN se nutre: o guevarismo, as lutas de Emiliano
Zapata174, e também a teologia da libertação. Mas o que mais profundamente se resgata no
“zapatismo” é a forma de “comuna” como processo de produção e reprodução da vida social,
anterior ao capitalismo, à modernidade, à conquista da América. O EZLN aprofunda a luta
marcada pela conquista da América com o projeto de “civilização” e “modernidade”, e o
processo regressivo que o mesmo significou para todas estas populações.
174 Emiliano Zapata 1879-1919, um dos principais líderes da Revolução Mexicana de 1910, comandando o Exército Libertador do Sul. Morre em uma emboscada e se converte no "Apóstolo da Revolução".
198
Zibechi sublinha que apesar de que estes movimentos se dêem em diferentes lugares,
distantes e em uma aparente desconexão, eles guardam elementos que emprestam
características diferentes às lutas desenvolvidas desde os anos '60 até o momento. Para o
autor, até a década de 1970 a ação social girava em torno das “demandas de direitos aos
Estados, do estabelecimento de alianças com outros setores sociais e partidos políticos” e do
desenvolvimento de planos de luta para modificar a relação de forças em escala nacional.
Assim, a ação social perseguia “o acesso ao Estado” para modificar as relações de
propriedade, e esse objetivo justificava as formas “estatocêntricas de organização”, assentadas
no centralismo, na divisão entre dirigentes e dirigidos e na disposição piramidal da estrutura
dos movimentos (cf. Zibechi; 2007: 21-2).
A partir de uma revisão histórica das rebeliões e levantamentos comunitários na época
colonial na região do então Alto Peru, Sinclair Thomson considera que seus conteúdos,
propostas e buscas mais profundos podem, em grandes traços, distinguir-se em três posturas
estratégicas. 1) A primeira é a autonomista, ou seja, rebeliões e levantamentos cujo conteúdo
é o desconhecimento, impugnação e rechaço a determinadas regulações e leis coloniais
impostas, que simultaneamente instaura como legítimas as práticas, usos e formas de
regulação ancestrais próprias das comunidades rebeldes. Em muitas ocasiões isto se
entrelaçou com o desconhecimento, expulsão ou morte de algumas das autoridades coloniais
existentes. A maior parte das rebeliões analisadas por Thomson compartilhou esta estratégia
que não contrapôs à ordem colonial em seu conjunto uma “nova ordem”, ainda que
modificasse brusca e drasticamente os termos das relações de poder em nível local, e, de
maneira significativa de acordo com a força da rebelião, em nível mais geral na medida em
que obrigava a fazer uma série de concessões políticas, começando pela modificação,
atenuamento ou suspensão da disposição que houvesse sido impugnada mais diretamente
através do levantamento. 2) A segunda postura estratégica distinguida é a daquelas rebeliões,
generalmente mais radicais e amplas, onde se fizeram esforços sistemáticos por conseguir
uma “inversão da ordem” geral das coisas. Diferentemente das anteriores, estas rebeliões
não apenas expulsavam ou matavam os funcionários coloniais mais odiosos e rechaçavam
aspectos específicos da legislação colonial, mas, além disso, em nível local ou regional,
desconheciam todo o arcabouço institucional e normativo da Colônia, instaurando
199
efemeramente “governos de índios” onde se promovia tendencialmente que os mestiços e
criollos assumissem as práticas e usos comunitários indígenas. 3) Finalmente, a terceira
postura estratégica, a de Tupac Amaru no Perú que se estendeu a amplas zonas do que hoje é a
Bolívia e então constituía o Alto Peru, foi a da luta pela independência política geral da
Espanha, sobre a base de uma aliança entre indígenas, mestiços e criollos (cf. Thomson
apud Gutiérrez Aguilar, 2008: 145-6).
Diferentemente da busca por uma reapropriação do Estado, como centro da disputa, as
lutas desenvolvidas desde os anos '90 adquirem e ao mesmo tempo recuperam outros aspectos
que a esquerda havia deixado de lado durante varias décadas. Adquirem de novo aqueles
elementos que são colocados por uma crise estrutural do capital e o desmonte dos Estados
com violento desemprego e marginalização nas grandes cidades principalmente. Recuperam
velhas práticas comunitárias desenvolvidas pelos movimentos de fins do século XIX e
princípios do XX, assim como das culturas pré-modernas, onde encontram formas coletivas
que permitem enfrentar a degradação provocada pelo impacto cada vez mas violento desta
desagregação provocada por uma nova fase de “acumulação primitiva”.
3.2 A forma política da revolta
Anteriormente pudemos observar como a configuração que surge com a crise estrutural do
capital provocou basicamente fortes explosões de lutas sociais, que recuperam em seus
mecanismos algumas das ferramentas de mobilização desenvolvidas nas experiências
comunais anteriores à modernidade – “comuna inca”, “mir” –, como também outras já
produto de um capitalismo consolidado – “Comuna de Paris”, “sovietes”.
Assim, perante o quadro de decomposição que se apresenta a partir dos anos 1990 em toda
a América Latina, o desafio do sujeito coletivo se recoloca como um novo tipo, com novas
determinações e configurações. Menegat (2008) menciona alguns aspectos a ter em conta
neste processo referindo-se especificamente ao caso brasileiro, mas o mesmo coincide com o
diagnóstico que intelectuais como Zibechi, entre outros, traçam para a América Latina.
Um primeiro elemento são as diferentes dinâmicas regionais, onde por um lado temos
200
conglomerados urbanos onde o processo de “regressão social” se apresenta com experiências
diferentes de outras regiões onde o modos vivendi rural segue ainda vigente, com o que as
formas de sobrevivência colectiva e desenvolvimento são diferenciados (cf. Menegat, 2008).
Holloway (2006: 11) observa que “não há modelos de organização” destas lutas, a forma
de organização que adquirem são de “comuna, conselho, assembleia”, uma característica que
vai desde a “Comuna de Paris” até os “sovietes da Rússia”, os “conselhos nas aldeias dos
zapatistas”, até as “asambleas barriales da Argentina”.
Neste mesmo caminho, Zibechi (2007) marca a “territorialidade” como um elemento
que mantêm em comum os movimentos surgidos a partir dos anos 1990, arraigados a espaços
físicos recuperados ou conquistados através de longas lutas. Segundo Zibechi (2007: 22) é a
resposta estratégica dos pobres à crise da velha territorialidade da fábrica e da hacienda, e à
reformulação por parte do capital dos velhos modos de dominação. A “desterritorialização
produtiva” (a reboque das ditaduras e das contrarreformas neoliberais) fez entrarem em crise
os velhos movimentos, fragilizando sujeitos que viram evaporarem-se as territorialidades nas
quais haviam ganho poder e sentido” (idem).
A separação dos territórios sempre foi uma busca colocada pelas sociedades de classes.
Nos países periféricos, essa separação é uma estratégia necessária para que seja possível a
“naturalização da violência” a que são submetidas as classes subalternas, assim como também
é uma forma de garantir o usufruto dos bens provenientes da superexploração que caracteriza
essas sociedades. É o resultado de uma economia básica de distribuição dos espaços, que
implica a construção de dois territórios dentro de uma mesma cidade175 (cf. Menegat, 2006:
105).
Esta separação espacial cumpre a função ideológica de legitimar “a contraposição de uma
parte da sociedade”, o que permite afirmar que “elas existem e são acessíveis a todos, desde
175 Menegat (2006: 106) aponta que se poderia dizer que se trata de uma “estratégia de espacialização da dinâmica de classes, que ganha contornos drásticos em situações tais como: tempos de acumulação primitiva; processos de acumulação nas periferias do capitalismo; transições dos regimes de acumulação; ou em épocas de crise estrutural – sendo que todas essas situações guardam características comuns e estão presentes na atualidade”.
201
que possuam as qualidades morais necessárias”, enqunto a outra parte da sociedade “tida
como moralmente fraca” é ineficiente economicamente, o que a “impede de se elevar ao
território ideal” (Menegat, 2006: 106).
O resultado em todos os países, ainda que com diferentes intensidades, características e
ritmos, “é a relocalização ativa dos setores populares em novos territórios situados amiúde nas
margens das cidades e das zonas de produção rural intensiva” (Idem). Em um país de
segregação social como o Brasil, as massas sem trabalho, precarizadas, e até as que formam
parte da classe trabalhadora formal, vivem na periferia, em bairros pobres, onde na maioria
dos casos tanto a posse como a construção da moradia foram fruto (e dependem) de um
esforço de cooperação e solidariedade dos vizinhos: “pensar o território como espaço da luta
contra o capital, porém, é um grande desafio” (Menegat, 2008)176.
A autogestão é uma característica importante desses “novos territórios”, que remonta ao
meio rural, mas que acabou se impondo nas zonas urbanas marginais de massas desocupadas,
que ao serem totalmente marginalizadas do território urbano começaram a ocupar edifícios e
terras que hoje concentram as chamadas periferias. Um aspecto importante destas localizações
urbanas é que elas incorporam formas da vida rural, como a produção de hortas comunitárias
e a prática colectiva na distribuição de alguns recursos que recebem do Estado. Estas são só
algumas delas, que marcam uma interconexão de práticas que foram violentamente divididas
pelo capital em cidade-campo, e que hoje mostram novos diálogos a partir das práticas
cotidianas na organização da vida social. Para Zibechi (2007: 23), a experiência dos
piqueteros na Argentina resulta significativa, posto que é um dos primeiros casos em que um
176 Continuemos com Menegat (2008), que, analisando o processo de revoltas na França em 2005, reforça como é complexo e exige um olhar que consiga incorporar a tradição a estes novos processos para que a mesma possa ser recriada em um nível mais elevado: “As explosões da periferia de Paris do final de 2005 mostraram uma revolta em estado bruto. Os traços de politização eram tênues e parecia mesmo que se tratava mais de uma ação reativa contra a polícia do que algo com intenções precisas, ancorado numa organização forte e num plano de ação consciente das causas do conflito e das formas de superá-o. No entanto, o conjunto de razões que levaram os jovens imigrantes dos banlieues de Paris a se revoltarem são menos assimiláveis pelo sistema do que as reivindicações contra a Lei do Primeiro Emprego de 2006. No âmago desta revolta está o desemprego estrutural e as formas desiguais com que ele atinge as diferentes camadas sociais. Os jovens descendentes de imigrantes, que estudaram nas péssimas escolas da periferia de Paris, por causa da sua etnia (na maioria são oriundos das ex-colônias francesas do norte da África) são antecipadamente excluídos dos postos de trabalho existentes ou mais bem remunerados e, por isso mesmo, continuarão com a sua precária formação profissional”.
202
movimento urbano põe em lugar destacado a produção material.
Uma segunda característica é a “autonomia” em relação ao Estado, como também aos
partidos políticos (idem), que se consolida na medida em que estes movimentos começam a
criar estratégias que lhes permitem a sustentação de seus militantes, como a que mencionamos
no parágrafo anterior: a autogestão.
Em uma declaração do Movimiento de Trabajadores Desocupados Solano, estes observam
que “não se constrói autonomia somente arrancando reivindicações ao governo através da
luta. Um dos elementos fundantes na construção da autonomia poderia ser a autogestão”177.
Em terceiro lugar recuperam e revalorizam a cultura e a identidade destes setores
populares. Este é um elemento significativo para estes grupos, já que na maioria deles os
indígenas constituem um contingente importante, como também a idéia de popular como uma
marca para ser repensada e revalorizada por estes sectores. Não falamos apenas de marcas de
etnias ou gênero, como também da conformação de massas desagregadas, que se atribuem
uma identidade como tais. Menegat (2008) assinala que a questão étnica, marcada pelo
histórico extermínio dos indígenas, a opressão da população negra, se vê aumentada pela
incorporação dos brancos pobres.
A quarta característica comum é a formação de seus militantes. Como consequência dos
processos repressivos vividos na América Latina, em diferentes momentos da historia que vai
desde a colonização até nossos dias, as possibilidades de refletir sobre as práticas dos setores
populares, tanto no campo como na cidade, se viram violentamente interrompidas em
diferentes momentos e foram desvinculadas de uma “práxis” que permitisse aprofundar um
projeto emancipatório. Os movimentos aos quais nos referimos, surgidos nos anos 90,
percebendo a desconexão existente entre a teoria revolucionaria existente e as lutas que
estavam realizando, se puseram o desafio da formação de intelectuais-militantes que
pudessem recuperar essa práxis reconstruindo o passado de conquistas e derrotas dos setores
populares, como também a necessidade de pensar as novas configurações tanto do capitalismo 177 Boletim El Pikete, do Movimiento de Trabajadores Desocupados Solano. ano N 2, N 7, agosto de 2002 apud
Ferrara, 2003:49
203
como da luta anticapitalista. Para isso foi necessário pensar na formação e na produção de
uma teoria revolucionária que acompanhasse estes movimentos.
Menegat (2008) observa que a opressão e superexploração das mulheres não obedece
somente a um corte de classe, como também é transversal a todas elas. As mulheres pobres
têm enfrentado esta situação histórica de uma maneira bem diferente da dos homens. Zibechi
marca este lugar da mulher, de suma importância, como uma quinta característica destes
movimentos. Uma recolocação necessária destes setores foi imposta pelas diversas lutas que
as mulheres enfrentaram no século XX, obtendo conquistas importantes em nível de direitos
civis e sociais. Em qualquer projeto emancipador esta não é uma questão de menor
importância a considerar. As mulheres dos setores populares desempenham um papel nestes
movimentos que as coloca em lugares importantes de direção e formação. Tanto as indígenas
como as camponesas, bem como as piqueteras, adquirem um papel central nas lutas, na
formação e na organização.
Por último, o sexto traço que compartilham é a preocupação por uma outra organização
do trabalho e sua relação com a natureza. Segundo Zibechi, ainda nos casos em que a luta
pela reforma agrária ou pela recuperação das fábricas fechadas aparece em primeiro lugar, os
ativistas sabem que a propriedade dos meios de produção não resolve a maior parte de seus
problemas. Tendem a visualizar a terra, as fábricas e os assentamentos como “espaços nos
quais produzir sem patrões nem capatazes, onde promover relações igualitárias e horizontais
com escassa divisão do trabalho, assentadas portanto em novas relações técnicas de produção
que não gerem alienação nem sejam depredadoras do ambiente” (2007: 24)178.
Outro elemento que Menegat (2008) agrega ao mapa da luta necessária na organização
destes movimentos é o lugar dos jovens, que passaram a constituir um elemento central das
diferentes revoltas nos últimos 20 anos, em todos estes eventos mencionados anteriormente,
assim como na organização dos movimentos. Os jovens, como parte das massas periféricas,
perderam qualquer horizonte que hoje lhes permita pensar alguma possibilidade de
178 Um dado interessante em relação a esta nova forma de organização do trabalho e sua relação com a natureza é a relação histórica que mantém com o sucedido na “Comuna de Paris”, onde se estabeleceu a retomada do trabalho nas oficinas abandonadas por seus patrões, com a intenção de criar uma “Federação de Cooperativas Operárias”.
204
incorporação no mercado de trabalho formal, sem garantias de acesso à educação, a serviços
de saúde, a recreação, em territórios totalmente desagregados, sujos, violentos, sem guardar
nenhum registro mnemônico de relação com a natureza. Torna-se para eles uma necessidade
urgente a transformação dessas condições de vida.
Estes movimentos, alguns deles sobretudo, realizam um esforço para incorporar nestas
novas lutas aqueles processos de revolta históricos na América Latina, somando elementos de
lutas passadas, que permitem por um lado encontrar a conexão histórica existente entre todos
eles, como também realizar uma elaboração crítica dos mesmos que permite superá-los, ir
além.
Assim temos que as barricadas de El Alto179 na Bolívia180, onde na luta pelo gás e pela
água a estratégia foi o corte da rota que dá acesso à capital La Paz, o que provocou forte
impacto na livre circulação, e considerando que neste território vivem em sua maioria as
empregadas domésticas e os trabalhadores do setor de serviços que “baixam” a La Paz, pois
bem, esta medida conseguiu paralisar a cidade por vários dias181. Essas mesmas barricadas,
que em diferentes momentos históricos foram a ferramenta de luta empregada pelo
movimento operário, hoje se recriam e adquirem novas formas para outros processos.
179 Até o ano 2004, do total da população trabalhadora de El Alto, 69% o faz em âmbito informal, de emprego precário e sob relações trabalhistas semiempesariais ou familiares. Pouco mais de 43% dos alteños são trabalhadores, operários ou empregados, o que a converte na cidade com maior percentagem de operários do país, o que explica a presença de uma forte identidade operária entre seus habitantes. De fato, assinala García Linera, “a cidade de El Alto ocupa hoje o papel de concentração territorial e cultura trabalhista que nos anos '40 e '60 do século XX ocupavan os bairros de Villa Vitória, Pura Pura e Mumaepata, onde se localizam os bairros operários. A alta presença de trabalho familiar, microempresarial e informal dos trabalhadores alteños sintetiza os componentes híbridos e fragmentados que caracterizam à nova condição operária e assalariada da sociedade boliviana” (2004: 52-53).
180 Na Bolívia, durante os anos 2000 e 2005 houve pelo menos quatro momentos de insurreição popular: a Guerra da Água (2000), o Fevereiro Negro (2003), a Guerra do Gás (outubro de 2003) e o ciclo mobilizatório de 2004 e 2005, em que se sucederam de maneira turbulenta os governos de Carlos Mesa e Eduardo Rodríguez Votzé, e que culminou com a convocatória a eleições em fins de 2005, em que ganhou Evo Morales. Estes dados foram obtidos em Chávez León, Patricia; Mokrani Chávez, Dumia e Uriona Crespo, Pilar “Una década de movimientos sociales en Bolivia” em OSAL (Buenos Aires: CLACSO) ano XI, N° 28, noviembre, 2010, pp 75.
181 A 5 de Agosto de 1781, depois de vários meses de cerco indígena e do apoio dos mineiros de Ananea que construíram uma represa para inundar o povoado, Sorata caía em mãos dos exércitos indígenas encabeçados por Bartolina Sisa e o jovem Andrés Tupac Amaru. 222 anos depois, desde o 19 de setembro de 2003, outra vez Sorata é ocupada por indígenas insurgentes como um elo mais de um novo ciclo de rebelião indígena que há 3 anos vinha reapropriando-se de territórios aymara, expulsando funcionários estatais e reconstruindo um tipo de poder político comunal baseado nos ayllus e sindicatos (cf. García Linera, 2004: 47).
205
Segundo García Linera (2004: 35), diferentemente do que sucedeu nos anos '30 do século XX,
na Bolívia, quando estes movimentos foram articulados em torno do sindicalismo operário,
portador de um ideário de mestiçagem e resultante da modernização econômica da elites
empresariais, hoje “os movimentos sociais com maior poder de interpelação ao ordenamento
político são a base social índia emergentes das zonas agrárias bloqueadas ou marginalizadas”.
Também, nesta reelaboração das lutas, os movimentos, não só indígenas ou camponeses,
retomam a produção e distribuição coletiva como base para a organização da vida cotidiana.
Movimentos urbanos como piqueteros ou de fábricas recuperadas realizam este processo
organizando hortas comunitárias, refeitórios, copa de leche, onde destinam uma parte do
financiamento que recebem do Estado (Plan Jefe e Jefa de Hogar) à realização destas
atividades que garantem a sobrevivência de um número maior de famílias do que se a mesma
se realizasse apenas com a distribuição individual de cada Plan. Inclusive conseguem garantir
comida e sobrevivência àqueles que não recebem o benefício individual.
Assim como na Bolívia, no Equador entre os anos 2005-2006 as trajetórias da mobilização
estiveram atadas a um cenário em que as pressões e resistências à reforma política
enfrentavam, outra vez, a sociedade civil aos partidos. Apenas pequenos fragmentos
organizativos tendiam a consolidar específicos espaços autônomos de atividade política. As
assembleias se converteram na forma central de organização (característica que também se
deu na revolta de 2001 na Argentina): universidades, estudantes, bairros, redes de
sociabilidade, coletivos etc., ativaram tais espaços de deliberação política. Muitas destas
assembleias não funcionaram mais além de umas quantas semanas. Outras, sobretudo de
caráter barrial, abriram desde então uma sustentada atividade organizativa em que
concorreram velhos e novos militantes próximos a pequenos grupos de esquerda e ao campo
dos movimentos sociais. Sua maior preocupação colocada na agenda estava baseada no
sistema político. Se situava melhor na busca de novas formas de ação colectiva e democracia
direta no marco da afirmação de um sentido autônomo e radical da política. A ocupação de
territórios urbanos específicos abria uma auspiciosa dinâmica de politização do espaço
público em que se problematizavam os problemas locais à luz das tensões nacionais182.182 Podem-se encontrar mais dados sobre a mobilização social no Equador na última década em: Ramírez
Gallegos, Franklin 2010 “Fragmentación, reflujo e desconcierto. Movimientos sociales e cambio político en
206
Poderíamos dizer com Zibechi (2007: 26) que as “novas territorialidades” são a
característica mais importante destes movimentos, já que o que se está vendo é o
desenvolvimento de uma luta pensando no posicionamento geográfico como um lugar
estratégico, lugar onde surgem novas relações sociais de produção e reprodução social,
dotando esse espaço da capacidade de construir uma nova organização social, que
diferentemente das fábricas, sindicatos, retoma uma vida comunitária como lugar onde
construir objetiva e subjetivamente uma luta anticapitalista.
Podemos pensar a luta territorial como uma marca da luta anticapitalista da periferia, já
que as mesmas nascem para o capital como apropriação das terras para obtenção das matérias
primas em sua “acumulação primitiva”, a qual leva a marca da desapropriação de seus
habitantes originais na base da violência. Desde esse momento se criou uma ruptura nos
territórios entre os colonizados e os colonizadores, entre produtor e explorado, dissociações
próprias da quebra que significou a chegada do capital e a constituição de suas periferias.
Desta maneira, a luta pelo território surge a partir deste momento como uma luta contra o
capital, contra a exploração depredadora tanto dos homens como da natureza. Por esta razão a
luta pelo território, nesta direção, é anticapitalista, re-colocada em diferentes períodos
históricos na maioria das vezes pelos indígenas, mas que consegue universalizar-se às massas
marginalizadas devido a que cada vez mais são aqueles que ficam fora de territórios
necessários para a reprodução da vida social, tanto na cidade como no campo.
A diferença está em que a recuperação destes territórios já está pensada como uma outra
forma de habitá-los, tanto em sua reprodução das relações sociais, como sua relação com a
natureza e as possibilidades de autossustentabilidade.
Em seu libro “Dispersar o poder: os movimentos como poderes antiestatais”, Zibechi
(2006) consegue realizar uma análise do sucedido nos últimos anos com as revoltas na
Bolívia, destacando que a estrutura e a consistência destas revoltas são suas formas
comunitárias de organização, através de assembleias por zonas, responsáveis pela
Ecuador” (2000-2010)” em OSAL (Buenos Aires: CLACSO) ano XI, N° 28, noviembre, 2010.
207
organização nas ações de luta, com lideranças rotativas e descentralizadas, e com uma
multiplicação das ações de resistência que permite neutralizar a ação repressiva do Estado,
por um lado, e gera necessariamente uma mudança permanente na direção das mesmas, por
outro 183.
Gutiérrez Aguilar afirma que as práticas comunitárias têm ido tendencialmente ajustando-
se a âmbitos locais, pois as sucessivas divisões territoriais, primeiro coloniais e depois
republicanas, se impuseram ao anterior formato de ocupação do espaço baseado na
descontinuidade territorial, que permitia às diversas comunidades e ayllus ocupar diversos
solos ecológicos e ter acesso a uma grande variedade de produtos agrícolas e pecuários. A
debilidade da vida comunitária contemporânea é remediada em parte mediante a estrutura
sindical que unifica e abarca a todos; ainda que isto represente ao mesmo tempo um reforço
da própria debilidade, já que na estrutura sindical o comunitário convive, e muitas vezes se
subordina, a outros princípios e lógicas operativas (cf. Gutiérrez Aguilar, 2008: 116, nota
113).
Gutiérrez Aguilar (2008: 345) propõe pensar a perspectiva “comunitária-popular” em
contraposição à idéia de “nacional-popular” desenvolvida até inícios dos anos '80. A proposta
desta última era dar especial atenção à forma e ao vínculo entre o Estado e a sociedade. Em
contraste com esta idéia, considera-se que o mais importante da proposta comunitária-popular
é a reformulação da relação entre o governo e a sociedade, reconfigurando e renegociando os
âmbitos de autonomia e a desconcentração do poder como estratégia fundamental para
reorganizar a relação estatal, entendida como pacto de convivência. Ao mesmo tempo é
importante não manter ilusões que desconheçam o papel que o Estado cumpre enquanto
“gerenciador da barbárie” (Menegat, 2008b) destes amplos territórios.
Na Bolívia, entre 2000 e 2005, o conjunto de lutas anticapitalistas e antiestatais não
propôs de forma sintética, desde as profundezas da mobilização, nenhum sistema substituto à
ordem de exploração e domínio político do capital, para além da intermitente formulação de
183 O livro deste autor está focado em uma análise destas rebeliões na Bolívia, como marco para pensar os movimentos sociais como poderes antiestatais. Raquel Gutierrez Aguilar aprofunda esta análise em “Los ritmos del pachakuti”, mostrando de maneira exaustiva os mecanismo de organização, tomada de decisões, formas de enfrentamento ao Estado, entre outros elementos, na Bolívia de 2000-2005.
208
bandeiras dificilmente explicáveis ao conjunto da população. Vale a pena continuar a reflexão
sobre a transformação do mundo, assumindo a premissa de que o conteúdo anticapitalista e
antiestatal das lutas no logrará universalizar-se na medida em que não consiga aprofundar e
dar visibilidade às lutas locais que emergem o tempo todo (cf. Gutiérrez Aguilar, 2008: 358).
Estamos transitando em direção a novas relações entre sujeitos e territórios, marcando
mudanças profundas nos setores populares que agora já não são mais nem operários, nem
dirigentes sindicais, nem militantes de partidos de esquerda, constituindo-se agora de sujeitos
heterogêneos deslocados rumo às periferias urbanas e com a necessidade de construir nestes
territórios lugares onde se reproduzir e sobreviver. A partir da perda dos “territórios sociais” –
onde se articulava a luta e ela ganhava sentido (fábrica, sindicato, partido) –, que foi
provocada por uma forte desindustrialização, foi necessária a apropriação geográfica dos
territórios, com migrações em massa dentro e fora dos limites nacionais, sobretudo no espaço
urbano, ao mesmo tempo que se viveu o fenômeno da reterritorialização como parte da
estratégia de intervenção coercitiva que o Estado implementou sobre as massas sobrantes
desse processo, marcado pelo desemprego em massa, dando origem a uma disposição do
espaço urbano diferenciado das décadas anteriores, onde os limites entre o rural e o urbano
começam a ser cada vez mas difusos. Como mostra Harvey, com a fuga de capital e o
processo de desindustrialização se abre uma nova configuração da relação sujeitos-territórios.
Nestas fugas, a marca que o capital deixa é de devastação porque “o capital, por natureza, cria
ambientes físicos a sua imagem e semelhança unicamente para destruí-los mais adiante,
quando busca expansões geográficas e deslocalizações temporais, em um intento de
solucionar as crises de superacumulação que o afetam ciclicamente” (Harvey apud Zibechi,
2007: 74). Essa devastação se resume, na América Latina, em desocupação e pobreza
extrema, na expulsão de milhões de trabalhadores da cidade consolidada para os arrabaldes
inóspitos, fétidos e inundáveis184.
184 Para nomear apenas alguns exemplos, no Cone Sul temos a expulsão manu militari de 200 mil pobres da cidade de Buenos Aires em direção à periferia, em 1977, pela ditadura militar; a expulsão de 24 mil mineiros e suas famílias, em 1985, na Bolívia, uma parte dos quais fixou-se na cidade de El Alto e outra parte, em seguida a um extenso périplo, terminou estabelecendo-se no Chapare para trabalhar como cultivadores de folha de coca; e a expulsão ao largo de duas décadas de 17 por cento da população de Montevideo, desde seus antigos bairros operários e de classes médias rumo à periferia, onde 280 mil desocupados e sub-ocupados vivem agora em assentamentos irregulares (cf. Zibechi, 2007: 74).
209
Passou-se de uma cidade integrada a uma cidade segregada. Esta fratura espacial foi a
mostra de muito mais que isso: é a mostra de uma fratura social, tal como nas origens o
assinala Caio Prado, um nascimento por desagregação, que se recoloca sempre ante a crise
aguda e uma segregação em massa que já no consegue mais ser incorporada. É uma marca da
colônia que se estende até nossos dias, razão pela qual a luta territorial neste sentido se
converte em luta anticapitalista, porque significa a possibilidade de construir uma forma
social de “nexo” que seria a identidade entre produtores e consumidores185,que poderia
ser definida pela articulação de relações sociais e com a natureza não destrutivas, e não pela
desagregação como se têm apresentado até o momento.
Os assentamentos urbanos que mantêm ainda suas relações formais precarizadas com a
trama urbana da cidade consolidada (escolas, hospitais, transporte público), adquire traços
próprios ante a necessidade de sobrevivência de seus membros em um espaço onde eles se
converteram em “sujeitos monetários sem dinheiro”, esquecidos em um espaço territorial
degradado e violentamente vigiado, precisando construir relações sociais que permitam desde
a autoconstrução do habitat até a construção de espaços públicos, centros de saúde, escolas. A
construção deste espaço territorial urbano adquire particularidades que não haviam sido
desenvolvidas até o momento pelos movimentos sociais.
Kurz aponta que a maioria da população mundial hoje são “sujeitos monetários sem
dinheiro”, pessoas que não se encaixam em nenhuma forma social, nem na pré-capitalista nem
na capitalista, e muito menos na pós-capitalista, que foram forçados a viver em um
“leprosário social” que já compreende a maior parte do planeta. No momento atual as massas
sobrantes que fazem parte destes “sujeitos-dinheiro sem dinheiro” mostram que se chegou ao
limite do suportável, mas ao mesmo tempo sempre que haja um vencedor no mercado
mundial sobrevive a ilusão de que a humanidade possa continuar reproduzindo-se no sistema
capitalista e alcançar novos continentes. As elites do Terceiro Mundo, que já se encontram
encerradas em casas blindadas em territórios particulares dentro das cidades, já não se
atrevem a pisar grandes regiões de seus próprios países, e sendo o medo o motor de suas
185 Kurz assinala que “a cisão econômica (até dos próprios indivíduos) em interesse do produtor e interesse do consumidor é uma característica básica do sistema produtor de mercadorias e de seu corolário, a propriedade privada dos meios de produção; a identidade institucional, social e comunicativa dos produtores e consumidores é, assim, condição sine qua non para uma superação da forma do valor” (Kurz, 1997b).
210
vidas, que controla suas relações sociais, “se negam a considerar seres humanos a seus
chamados concidadãos” (cf. Kurz, 1993: 195; TN).
Como consequência do processo de “acumulação primitiva” (que descrevemos no início
deste capítulo) surgem estes movimentos, estas lutas, estas expressões de resistência. Estes
“sujeitos-dinheiro sem dinheiro” se converteram nos últimos 20 anos nos portavozes de uma
situação social insustentável, na expressão mais crua de uma “acumulação primitiva” cada vez
mais violenta e depredadora, tanto dos seres humanos como da natureza186.
O “colapso da modernização” como é exposto por Kurz, tanto para os perdedores do sul
como da URSS, significa que a modernização historicamente possível para estes países já foi
realizada dentro do contexto do sistema mundial produtor de mercadorias, que chegou a seu
fim e junto com este a subjetividade burguesa do dinheiro, porque o mesmo já não consegue
integrar em sua lógica a maior parte da população mundial, que hoje se agrupa nas regiões
periféricas da cidade e do campo. As periferias do capital, que hoje também estão localizadas
nos países centrais (não só no Terceiro Mundo), marcam o rumo desse colapso, o caminho
pelo qual vai continuar seu curso este sistema. São essas massas as que hoje formam parte das
lutas e rebeliões marcadas em diversos territórios da periferia, sendo a expressão mais viva da
degradação e da miséria.
Em resposta à expressão violenta destes setores periféricos, a estratégia na maioria dos
países da América Latina tem sido a implementação de “planos sociais”, que permitem
gerenciar de maneira violenta e com disciplinamento focos de rebelião social em diferentes
territórios suburbanos, promovendo uma guerra civil que “garante” a matança de grandes
massas. A militarização da sociedade para recuperar o controle das periferias urbanas não é
suficiente, como o revela a experiência militar recente no Terceiro Mundo. Para Agamben, o
totalitarismo pode ser definido como “a instauração, através do Estado de exceção, de uma
186 Holloway (2002:242), em uma crítica à visão positiva do sujeito dentro do sistema capitalista e contrapondo a ele a negação como constitutiva do mesmo diz que “tratar o sujeito como algo positivo resulta atraente mas inevitavelmente é uma ficção. Em um mundo que nos desumaniza, só podemos existir como seres humanos de maneira negativa, lutando contra nossa desumanização. Compreender o sujeito como positivamente autônomo (em lugar de potencialmente autônomo) é muito parecido a ser uma prisioneira ou um prisioneiro em uma cela que imagina que já é livre: uma idéia atraente e estimulante, mas uma ficção, uma ficção que facilmente conduz a outras ficções, à construção de todo um mundo de ficção”.
211
guerra civil legal, que permite a eliminação física não apenas dos adversários políticos mas de
categorias inteiras de cidadãos que por qualquer razão resultam não integráveis no sistema
político” (Agamben apud Zibechi, 2007: 183). Essas categorias são, principalmente, os
habitantes dos bairros populares, aqueles setores que ficaram desconectados da economia
formal, de modo permanente e estrutural (Zibechi, 2007: 183). Wallerstein assinala que nos
subúrbios confluem algumas das mais importantes fraturas que atravessam o capitalismo: de
raça, classe, etnia e gênero. São os territórios da despossessão quase absoluta (cf. Wallerstein
apud Zibechi, 2007: 185).
Menegat (2008) analisa que a “novidade” do governo do “Partido dos Trabalhadores” no
Brasil é a “gestão da crise social”. Isto se traduz na criação de diversas técnicas que lhe
permitem o que alguns intelectuais chamaram de “governabilidade social”, pudendo
“minimizar a inércia da barbárie”. Estes programas de “gestão da barbárie” ganharam
efetivamente “uma forma compatível com as possibilidades de sua execução no quadro de
regressão da sociedade brasileira”. Esta “nova forma” que lhe empresta originalidade e
diferencia o PT dos outros partidos de direita tem a intenção de “congelar” a barbárie, usando
como “antídoto um pouco mais do que a produz, misturado com boas intenções 'sociais'”187.
O desafio que se apresenta diante deste “colapso” está na possibilidade de que nestes
territórios se possam criar “práticas sociais alternativas à forma mercadoria”. Um de seus
principais eixos, como já vimos, é o território, mas há outro que tem a mesma importância: é
o da autonomia, que permite repensar novas formas de relações sociais que não sejam
mediadas pelo Estado. As mesmas esbarram no limite de serem mediadas pelo sistema
produtor de mercadorias, encontrando nos espaços comunitários uma possibilidade de crítica
e reapropriação de outras formas de relações sociais que permitam a sobrevivência imediata.
Ao mesmo tempo, os limites estão postos na dificuldade de sua generalização, tanto no
187 Estas técnicas, segundo Menegat (2008), já foram exportadas para 37 países (cf. “Social 'made in Brazil' já está em 37 países”, Jornal O Gobo, 8 de maio de 2005, p. 38; “Brasil já exporta sua tecnologia da miséria urbana”, Jornal Folha de São Paulo, 21 de maio de 2006, B16 apud Menegat, 2008), constando na lista: “Pastoral da Criança, Comitê para Democratização de Informática (CDI), Bolsa Escola, Bolsa Família, AfroReggae, Fome Zero, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), Projeto de Crédito Fundiário, Programa de Combate à Pobreza Rural e Cooperativas de Reciclagem de lixo (que no Brasil ocupam 500 mil catadores e movimentam R$ 7 bilhões).
212
campo como na cidade, o isolamento das mesmas sem encontrar um fio de unidade que lhes
permita elaborar uma proposta basicamente antiestatal e sobretudo resistir à cooptação
constante que sofrem por parte do mesmo, como simultaneamente conseguir dar a essa
“forma política embrionária” um peso maior que permita a construção de poderes populares
localizados onde a potencialidade esteja colocada em seu anticapitalismo e no rechaço à
forma social burguesa.
Para Menegat (2008), o que estas experiências mantêm em comum é a politização dos
diferentes movimentos sociais, diferenciando-se (como marcava Zibechi anteriormente) tanto
da política partidária dominante, como da esquerda tradicional incorporados à ordem vigente.
A possibilidade de unidade destes movimentos passa a ser uma questão cada vez mais
urgente. Diante este quadro, a forma organizativa que este processo adquire não está baseada
em uma crítica estéril dos processos anteriores, ou no desconhecimento de suas conquistas:
pelo contrário, trata-se de mostrar como essas formas de organização tradicionais apresentam
uma séria dificuldade no momento de enfrentar de uma maneira radical o capitalismo
contemporâneo. As contribuições dos períodos anteriores devem ser colocadas frente aos
desafios objetivos atuais: “a crítica aos partidos, hoje generalizada por toda a sociedade, é
parte de uma crítica às formas autocráticas do Estado burguês e sua crise de legitimação […]
Os partidos de esquerda no ocidente, tais como os conhecemos ao longo da história, tiveram
uma grande dificuldade em realizar uma socialização da política que fosse além dos limites do
Estado como instância inexorável de dominação de classe”.
Estas novas experiências abriram o caminho para que o amplo campo da esquerda possa,
no marco das transformações vividas nos últimos 40 anos, debater e polemizar sobre a ação
política e as formas organizativas necessárias para construir uma proposta anticapitalista
radical, que permita negar a forma social que hoje vive como única e inexorável.
Grespan (2004: 185) marca que o desafio que enfrentam estas experiências é não perder
como centro da crítica o capital, o valor, que não podem ser reduzidos a uma “simples luta
entre seus agentes sociais, para a qual e na qual as condições objetivas são irrelevantes ou
secundárias”. O desconsiderar “radicalmente” a economia pode levar à perda do horizonte da
213
“crítica à economia política” como necessário e fundamental para “transformar o mundo”188.
Holloway (2006: 31), em resposta aos limites que teriam estas experiências em relação ao
assinalado por Grespan (e outros autores que polemizaram com o mencionado texto de
Holloway), observa que, por exemplo, a criação de cooperativas, bem como a transformação
de fábricas ocupadas em cooperativas, foi durante muito tempo um aspecto da luta da classe
operária: “as limitações das mesmas são claras: enquanto produzem para o mercado, estão
sujeitas a produzir sob as mesmas condições de qualquer empresa capitalista”. Portanto o
problema não radicaria na propriedade da empresa, mas na “forma de articulação entre os
diferentes fazeres”. As cooperativas, neste sentido, não esgotam a questão, e o problema da
“autodeterminação” não pode ser visto simplesmente como “atividades particulares”, mas,
necessariamente, deverá abarcar a “articulação entre essas atividades”.
A Argentina é o último exemplo que se tem neste caso de “fábricas recuperadas” e
“cooperativas”, e onde a questão voltou a se colocar como em um primeiro momento, sendo o
problema como se orienta esse movimento: “em direção ao Estado (demandando a
nacionalização da empresa, por exemplo), ou rumo ao estabelecimento de uma rede de laços
entre produtores (e consumidores) independente do Estado” (Holloway, 2006: 32).
Segundo Menegat (2006: 44), o espírito de nossa época está marcado pela presença
efetiva de uma “tendência ao aprofundamento da barbárie”. Evitar sua inexorabilidade é o
desafio de um projeto emancipatório, que implica em “revitalizar elementos da tradição e a
construção de novas bases de representação da comunidade dos indivíduos livremente
associados”. Evitar o desmoronamento social que está posto na ordem do dia significa,
necessariamente, pensar na construção de formas de organização social que nos permitam
deter este processo de regressão social colocado pelo capital, e impulsionar a
autoemancipação.
188 Esta frase faz referência ao livro de Holloway “Cambiar el mundo, sin tomar el poder”. Herramienta. Buenos Aires. 2002.
214
CONCLUSÃO: SONHOS (DES) COMUNAIS EM TEMPOS DE CRISE
Em uma carta de novembro de 2002, Michael Lõwy, afirma a Jonh Hollway que diante da
pergunta “como podem as pessoas tão envoltas do fetichismo liberar-se do sistema?”, a
resposta segue sendo a formulada por Marx pela primeira vez nas “Teses sobre Feuerbach”:
“através de sua própria práxis emancipatória ”189.
Depois da queda do muro de Berlin e do desmoronamento da URSS, o marxismo deixa de
ser usado como fundamento ideológico do Estado por “regimes burocráticos-parasitários”, e
abre a oportunidade histórica para “redescobrir a mensagem marxiana originária e tentar
desenvolvê-lo de modo criador” (LõWY, 2002, p. 17).
A unidade buscada neste trabalho entre Caio Prado e Mariátegui permite neste contexto ter
como horizonte: por um lado, uma análise profunda sobre a dissolução desta forma social, e
como nesta dissolução está contida velhas formas de desagregação que se re-atualizam com
novos processos de violência, onde a maior parte da população é descartada; e por outro lado,
a necessidade de nexos entre aquelas experiências que hoje nos permitam pensar saltos para
fora de uma sociedade em colapso.
Mariátegui diante de um contexto de regressão social, marcado pela Primeira Guerra
Mundial, se propõem pensar uma práxis que estaria embasada na reconstrução de uma
tradição onde se resgata a prática coletiva na produção e reprodução da vida social,
recuperando o “nexo entre produtores e consumidores” (KURTZ, 1992), e a existência de um
“mito” que permitisse tornar visível o que não está visível” (AUGUSTO, 1989, p. 17), isto
era, naquele momento, a atualidade das diferentes lutas das massas populares onde
encontravam a possibilidade da auto-emancipação.
O terceiro capítulo desse trabalho pretendeu marcar quais são os caminhos que se
apresentam hoje para uma práxis emancipatória, que consiga enfrentar o processo de
189 Esta carta pode ser encontrada no livro “Contra y más allá del Capital” de Holloway, John. Herramienta. Buenos Aires. 2006. págs. 107-117
215
desagregação social em curso, não de uma maneira ilusória e sim baseada em experiências
concretas de luta que hoje estão ocorrendo na América Latina, e em outros países fora da
região. Experiências de luta dos desempregados (piqueteiros) na Argentina, “Movimento Sem
Terra” no Brasil, povos originários na Bolívia, Peru, Equador, México, Chile, são um marco
para pensar estas novas dinâmicas de lutas, que não podem ser enquadradas em velhas
categorias teóricas, que são produto de outras configurações, as quais o marxismo deverá
enfrentar sem teleologias históricas, pensando muito mais em colapso do que em vitória.
A intenção é poder reabrir um diálogo entre essa realidade e o marxismo, o qual
significará para o marxismo um processo de re-atualização, criação e liberação de velhos
pressupostos, para construir uma teoria que permita dar lugar a elaboração de um projeto
emancipatório baseada nessa práxis.
O contexto para essa teoria é sombrio, onde a violência se naturalizou como parte da vida
cotidiana, precisará de um trabalho profundo para mostrar a intensidade e consequências que
ela contém para além da aparência como se apresenta. Para isso será necessário começar por
recuperar lutas concretas com suas potencialidades, e rejeitar esperanças ilusórias que
acabarão estabilizando (como já ocorreu no passado) a ordem burguesa decadente, subtraindo
do horizonte qualquer proposta de poder popular emancipatório que supere a simples
promessa teleológica da história.
Tal como mostram os intelectuais que se esforçaram em entender este panorama de crise
estrutural consolidada, nossa práxis não deverá apontar para novas ilusões
desenvolvimentistas e governos progressistas, com promessas de progresso e estabilização
social; mas deverá assentar-se no primeiro caminho indicado pela originalidade da leitura de
Mariátegui e Caio Prado.
É neste ponto que eles são clássicos, por mostrar a necessidade de compreender os
processos sociais em sua originalidade, e não como dedução de outros processos históricos.
Nesta chave radicou sua genialidade, permitindo pensar o significado da regressão do
progresso como afirmação da acumulação primitiva permanente, mostrando como, em sua
216
expansão colonial não deixou de ser, tomando as palavras de Benjamin “um documento de
barbárie190.
Mostrado este processo de crise estrutural, o caminho apontado por suas interpretações
adquire maior validade e profundidade. Para o marxismo o desafio que se coloca é ainda
maior que em períodos passados, porque não só acumulou o processo regressivo das décadas
anteriores, além do que se soma a este um recrudescimento da criminalização e violência
sobre os setores populares. Assim as periferias (que já não são exclusividade do terceiro
mundo) se constituem em campos de extermínio, onde se aplicam as mais sofisticadas
ferramentas de massacre. Nesta linha, a natureza se encontra da mesma maneira ameaçada em
suas formas de vida e existência.
Diante dessa possibilidade, já colocada e aprofundada pela forma social capitalista, um
marxismo, que ainda não consegue conectar sua interpretação da realidade com as lutas que se
sucedem diariamente, está impossibilitado de pensar alguma estratégia revolucionária que lhe
permita dar um salto para fora dessa formação.
A proposta é voltar o olhar para as experiências coletivas que remontam desde a comuna
Inca, passando pelas presentes no século XIX, bem como nos séculos XX e XXI. Estas
últimas localizadas, desarticuladas, debilitadas pelo Estado de Exceção, se encontram
afogadas a cada passo, e ao mesmo tempo tentam sobreviver, criando novas formas de
organização e reprodução que lhes permite conquistar um bem primário: a vida. Estas
experiências começaram a perceber em princípios dos anos 90 que o salto para fora ia estar
dado pela possibilidade de pensar-se num marco de outras relações sociais, de produção, com
a natureza, resgatando elementos do passado, que necessariamente foram re-atualizadas num
marco de crise. Estas práticas se converteram em uma novidade organizativa sem precedentes.
O desafio para o marxismo segue sendo poder entendê-las e potencializar seu processo de
luta. Estas práticas precisam de um marxismo revitalizado, que possa entender o processo de
decomposição do sistema capitalista, e descobrir aquelas experiências coletivas que apesar de 190 Na tese VII de seu livro “Teses sobre o conceito de história”, Benjamin diz: “Nunca há um documento da
cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie”. (Benjamin apud Löwy, 2005: 70)
217
surgir neste contexto de desagregação guardam grande impulso para dar um salto para fora do
mesmo.
Para isso, a contribuição do marxismo, como teoria de uma práxis emancipatória, segue
sendo poder aprofundar aquelas leituras sobre uma crítica radical as teorias ilusórias
desenvolvimentistas, que não geram mais que mundos de “acesso” (ARANTES, 2007) onde
os “sujeitos monetários sem dinheiro” acabam sendo seu produto mais expressivo. Entender
este processo, a organização desses sujeitos na construção de outra forma social segue sendo o
caminho interpretativo que o marxismo deve enfrentar, e sobre o qual ainda carece de
categorias referenciais para entendê-lo.
A volta à práxis e a busca no imaginário social de um “mito”, que permita negar a forma
social burguesa, e construir outras formas de organização, que não são, nem foram no
passado, uma necessidade do mundo das ideias, senão que território real de lutas sobre o qual
se estruturam.
Nesta perspectiva, a presença de “mitos” no imaginário social se traduz – gerando uma
forte tensão no campo do real – na ampliação dos “campos do possível”, transformando as
“pedras duras em uma matéria a ser esculpida em obras em comum”. Desta forma os “mitos”
podem ser entendidos como uma força social que, quando elaborados no imaginário coletivo,
participam ativamente em suas decisões191.
Experiências coletivas que ainda nos permitam pensarmos “por fora” da ordem do capital,
realizando uma crítica radical ao mesmo, delineando novas expressões não só em suas formas
de organização, mas também em suas formas culturais, artísticas, produtivas.
Assim como grande parte da população deste mundo passa seus dias buscando alimentos
em meio de campos de lixo, teremos que, com a mesma dedicação e desespero, buscar em
meio deste colapso aquelas experiências, que hoje possibilitem um diálogo com aqueles
pressupostos da teoria marxista que seguem apontando para entender as (im) possibilidades
deste mundo. Será possível?191 É neste caminho que Menegat (2006, p. 314) trabalha com a idéia de utopias em seu ensaio “Utopias do ócio
para depois do fim do mundo, agora”. In “O olho da barbárie”. Expressão Popular. São Paulo. 2006.
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