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“Sonhos (des)comunais em tempos de descomposição social

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de Filosofia e Ciências Humanas Escola de Serviço Social Programa de Pós-Graduação em Serviço Social MARIELA NATALIA BECHER “Sonhos (des)comunais em tempos de descomposição social Mariátegui y Cinaio Prado Jr., fonte do marxismo latino americano”. RIO DE JANEIRO 2011
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Universidade Federal do Rio de JaneiroCentro de Filosofia e Ciências HumanasEscola de Serviço SocialPrograma de Pós-Graduação em Serviço Social

MARIELA NATALIA BECHER

“Sonhos (des)comunais em tempos de descomposição social

Mariátegui y Cinaio Prado Jr., fonte do marxismo latino americano”.

RIO DE JANEIRO2011

MARIELA NATALIA BECHER

“Sonhos (des)comunais em tempos de descomposição social.

Mariátegui y Caio Prado Jr., fonte do marxismo latino americano”

Tese de Doutorado, apresentada ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Orientador: Professor Doutor Marildo Menegat.

RIO DE JANEIRO2011

MARIELA NATALIA BECHER

“Sonhos (des)comunais em tempos de descomposição social.

Mariátegui y Caio Prado Jr., fonte do marxismo latino americano”

Tese de Doutorado, apresentada ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Aprovada em

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________.Professor Doutor Marildo Menegat (orientador)

Universidade Federal do Rio de Janeiro

___________________________________________________.Professora Doutora Dilma Andrade de Paula

Universidade Federal de Uberlândia

___________________________________________________.Professora Doutora Elaine Rossetti Behring

Universidade Estadual do Rio de Janeiro

___________________________________________________.Professora Doutora Roberta Lobo

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

___________________________________________________.Professor Doutor Luis Acosta Acosta

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Sumário

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 1

I. MARIÁTEGUI E CAIO PRADO NO PENSAMENTO CRÍTICO LATINO-AMERICANO ........................................................................................................................... 7

1. Introdução ao Pensamento Crítico Latinoamericano ......................................................... 7 1.1 Particularidade do pensamento marxista de Caio Prado e Mariátegui ...................... 11 1.2 Antecedentes de uma geração. Como se constrói um pensador periférico? .............. 17 1.3 A III Internacional e sua Stalinização – América Latina ........................................... 45 1.4 Mariátegui e a III Internacional ................................................................................. 51 1.5 Caio Prado Jr. e o Partido Comunista Brasileiro ....................................................... 58

2. José Carlos Mariátegui ..................................................................................................... 62 2.1 Lutas sociais no começo do século XX ..................................................................... 62 2.2 A Comuna Incaica ...................................................................................................... 66 2.3 A figura do mito e da utopia andina ........................................................................... 77

3. Caio Prado Jr. ................................................................................................................... 84 3.1 Povoamento da colônia .............................................................................................. 84 3.2 Lutas sociais no Brasil ............................................................................................... 87 3.3 Acumulação Primitiva-Empresa Comercial .............................................................. 90 3.4 Entre a originalidade os limites desse pensamento crítico. ...................................... 99

II. OS CAMINHOS E DERROTAS DA ESQUERDA LATINO-AMERICANA ........... 106 1. Política de “conciliação de classe” ................................................................................ 108 2. 1960: Acumulação e Revolução na América Latina ....................................................... 114

2.1 “Novo momento de acumulação”: as ditaduras latino-americanas ......................... 114 2.2 Marxismo Nacionalista ............................................................................................ 123

3. Cuba e a luta armada ...................................................................................................... 128 3.1 A revolução cubana e o guevarismo ....................................................................... 130

4. Chile e o Estado democrático-burguês ........................................................................... 149 4.1 A forma política da Unidad Popular ........................................................................ 155

5. A Frente Sandinista de Libertação Nacional e o fim da era “guevarista” ...................... 163 6. 1980: a via eleitoral e o partido de massas ..................................................................... 165

III. REVOLTA SOCIAL NA CRISE ................................................................................... 172 1. Acumulação Primitiva – “Desenvolvimento Civilizatório” ........................................... 172 2. Comuna e Comunismo ................................................................................................... 178

2.1 A “Comuna” dos sovietes ........................................................................................ 185 3. Comuna e Crise Estrutural ............................................................................................ 188

3.1 Revolta Social na Crise ............................................................................................ 197 3.2 A forma política da revolta ...................................................................................... 199

CONCLUSÃO: SONHOS (DES) COMUNAIS EM TEMPOS DE CRISE .................... 214

BIBLIOGRAFÍA ................................................................................................................... 218

RESUMO

O presente trabalho analisa a interpretação de José Carlos Mariátegui e Caio Prado Jr

sobre a formação sócio-histórica de América Latina. Se tenta mostrar como as ideias de esses

autores, considerados os precursores do marxismo latino americano, foram incorporadas pelos

diferentes marxismos que se desenvolveram na América Latina, e as consequências de estas

leituras nos processos revolucionários que aconteceram nos anos '60-'70 do século XX,

particularmente a experiência cubana e chilena. Se abordam as lutas sociais que se

desenvolveram a partir dos anos '90, reavivando o debate sobre aquelas interpretações, e se

analisam as particularidades de essas lutas no marco da crise estrutural do capital, e os

desafios que elas apresentam para a teoria marxista.

PALAVRAS-CHAVE: José Carlos Mariátegui - Caio Prado Jr.- América Latina -

Marxismo latinoamericano – Formação sócio-histórica – Comuna.

À memoria de Sabina e Juana,que teriam desfrutado de serem livres.

Agradecimentos

Às funcionarias e funcionários, professoras e professores da Escola de Serviço Social da

UFRJ, por acolhe-me.

Ao CNPq, CAPES, FAPERJ pelas bolsas, sem às quais teria sido impossível este trabalho.

Pelas contribuições, diálogos que as diferentes professoras e professores aportaram nos

momentos de avaliação de este trabalho. E a aqueles que foram parte de longas conversas com

a intenção de estimular minhas ideias, me mostrar o mundo e suas (im)possibilidades. Entre

eles devo uma menção especial a Andre Villar, que com seu pensamento libre e criativo, me

possibilitou viajar a lugares impensados por minha imaginação.

Aos diferentes amigos e amigas que me ajudarão com a busca de material para esta

investigação, recolhidos em vários países de América Latina, sem os quais o trabalho não teria

sido possível.

As amigas e amigos que formam meus jardins mais prezados, nos quais me refugiou para

me sentir humanamente viva. A elas e eles que cozinham, dançam, pintam, escrevem, pensam,

correm, nadam, cantam, fazem música, amam, que se distribuem por terras e mares, devo-lhes

a possibilidade de aprender a compartir a vida os sonhos.

Entre estas flores, quero realizar uma homenagem especial a Mariana, por ser um exemplo

de vida, alegria e humanidade. E a través de ela, a sua mãe Graciela e seu pai Osvaldo,

desaparecidos na última ditadura militar Argentina, por ter deixado tão bela flor entre nós,

inspirando sonhos.

A Marcia, pelo carinho, o cuidado e o trabalho conjunto.

A minha mãe Mirta, pelo amor, generosidade e simpleza. Por que aprendi de uma quase

analfabeta, a liberdade que podia estar escondida nos livros. A meu pai Mario, pelo amor e as

boas histórias que sempre alimentaram minha imaginação e fantasia. A meu irmão Heber, por

ter me ensinado a ler e escrever, sem o cual este trabalho não poderia ter sido possível. A meu

irmão Diego, por compartilhar a vida comigo. A meus sobrinhos, Cristian e Matias, por

encher-me de alegria e me deixar entrar no seu mundo.

A Marildo Menegat, com muito carinho, quero lhe agradecer ter-me passado o impulso e a

necessidade de buscar a liberdade, nas suas diversas formas e conteúdos.. Seu trabalho

intelectual e humano me servirão como faro para não me perder no meio de tanto desastre.

Por seu cuidado, amizade e por ter confiado em mim.

Finalmente a Javier, pelo seu amor e música tão generosa que me dão um motivo para

acordar cada manhã com a ilusão de ouvir cada nota, cada acorde, cada melodia. Seu cuidado,

respeito, confiança foram o território fértil onde germinarão estos sonhos.

1

INTRODUÇÃO

O pensamento marxista latino-americano se construiu durante a primeira metade do século

XX tendo como base a influência do debate teórico-político existente nos países europeus e na

União Soviética. Este fato trouxe, por um lado, a riqueza acumulada durante várias décadas

pelo debate marxista, socialista e anarquista; mas, por outro lado, com estas idéias também

veio inclusa a dificuldade de pensar a particularidade do território americano, enquanto lugar

diverso, em virtude de sua história anterior a conquista e sua constituição como colônia

européia.

Caio Prado Junior é um dos primeiros autores latino-americanos a assinalar o caráter

desagregador da colonização, a qual viria a construir territórios que proporcionariam a

matéria-prima necessária para garantir a “acumulação primitiva” do capital1 que se encontrava

em plena formação, como também construiria territórios populacionais sem conexão, sem o

vinculo orgânico necessário para o desenvolvimento de uma vida social, em um todo

orgânico. Esse processo faz parte do que ele chama do “sentido da colonização”, a qual só se

propôs a ser uma vasta empresa comercial (PRADO JR., 2000 pág. 19-20).

Por outro lado, José Carlos Mariátegui observa que anterior à conquista, as formas sociais

existentes na parte andina da América, mantinham “nexos” que outorgavam uma unidade a

esse conglomerado social, tanto em suas relações sociais, com a natureza e, portanto, com a

produção. Por esta razão, as populações indígenas na América cumpririam um papel

fundamental nas lutas sociais desde a conquista até os dias atuais, na tentativa de recuperar

tanto os territórios expropriados como outros tipos de relações sociais e de produção.

A partir destas ideias pioneiras tanto de Caio Prado quanto de Mariátegui, cujo

1 Marx demonstra que no processo de “acumulação primitiva” do capital, toda a população que foi violentamente expropriada de suas terras, também será maltratada, torturada e tratada por diferentes legislações como vadiagem até submetê-los ao “sistema de trabalho assalariado” (2004, pág. 918. Tomo I-vol 3). Parte dessa população foi enviada nas embarcações para a América durante o processo colonizador e será parte do processo de perseguição as populações indígenas para a submissão ao sistema de trabalho de exploração em grande escala. A acumulação primitiva que se realizou ao longo de vários séculos significou a expulsão violenta, realizada de maneiras bárbaras, dos tradicionais “produtores diretos” na maioria camponeses, de seus meios de produção, sendo torturados e forçados a aceitar o status moderno de trabalhadores assalariados, o qual é exigido pelo sistema de mercadorias moderno como status das grandes massas.

2

pensamento foi construído baseado nessa realidade, é que se começou a pensar a

particularidade destas regiões, com uma perspectiva crítica.

Após a Segunda Guerra Mundial essas ideias começaram a ser tratadas de diversas

maneiras devido a diferentes fatos político-históricos, é possível observar que as mesmas

acabam sendo esquematizadas em um determinado caminho de análise. Assim os eixos

marcados por estes autores, como representantes de uma geração que introduziu o pensamento

marxista na América Latina, que pretendeu pensar a natureza da Revolução, o Sujeito

revolucionário e as formas de organização, a partir de uma perspectiva teórico-política

sustentada em uma análise da periferia, perdem sentido, força, submetendo esse pensamento a

um processo de readequação da realidade a teoria, esta é uma tentativa de reproduzir de

maneira universal estratégias revolucionárias, baseadas em pressupostos interpretativos

importados da Europa, URSS, Revolução Chinesa, que acabaram padronizando novamente os

processos, perdendo a riqueza da heterogeneidade de suas lutas abertas naquele momento.

A América Latina passará neste período histórico por alguns processos revolucionários

importantes, que abrirão a possibilidade de repensar e reelaborar essa teoria revolucionária,

que logo será interrompida por processos ditatoriais, fundamentalmente, mas também por uma

incapacidade do pensamento marxista de dar conta da realidade próxima.

Os processos revolucionários que tiveram maior impacto nos movimentos de esquerda

desses anos foram a Revolução Cubana e a Unidade Popular no Chile. Essas duas

experiências serão utilizadas para analisar as formas políticas de organização usadas pelas

mesmas, numa tentativa de realizar um balanço histórico que nos permita pensar o presente.

A chegada do neoliberalismo nos anos 80, acentuando o conflito social que instalará em

1989 com o Caracazo2 e abre a porta para uma série de manifestações sociais em toda a

américa latina. Neste mesmo ano se realizam grandes protestos na região, como no Peru,

produto dos chamados “Paquetazos” do governo Alan Garcia, a população sai às ruas.

Destacam-se também os levantes do Equador e Bolívia, constituindo-se estes, junto a rebeldia

urbana das grandes cidades, na expressão dos “novos movimentos sociais na América Latina”,

próprios da década de 80, que se caracterizaram por um forte “protagonismo do movimento

2 O “Caracazo”. Assim foi denominado o dia em que na capital da Venezuela, Caracas, se realizou uma onda de protestos e saques em resposta ao ajuste neoliberal decretado pelo então presidente Carlos Andrés Pérez, o qual respondeu com um massacre. Isto ocorreu em 27 de fevereiro de 1989.

3

indígena” frente às reformas neoliberais e para a queda de diversos governos (CAMPANHA

OCAMPO e HOETMER, 2007:9).

As rebeliões suscitadas nestes anos são produto de um processo de violenta regressão

social, que resultou num aumento massivo de populações “sobrantes”, que ao não encontrar

lugar no mercado de trabalho, nem no território, nem junto ao Estado começam a evidenciar a

violência que significou, e significa não ter mais um espaço dentro da forma social capitalista.

Os mesmos, em suas lutas de rebeldia, começam a pensar em outras formas sociais de

produção e reprodução social. Os limites e alcances de suas lutas estão demarcados em um

processo de crise estrutural do capital3.

Diante desse panorama a esquerda “tradicional”, que deixou de lado a centralidade de

algumas ideias colocadas nos primeiros 30 anos do século XX, se enfrenta com a inadequação

de sua teoria em relação à natureza da revolução, o sujeito revolucionário e as formas de

organização, em um novo panorama social o qual marca a necessidade de repensar e

reelaborar a crítica em torno dos mesmos. Assim, debates sobre a territorialização da luta,

autonomia dos movimentos sociais, a autodeterminação dos povos, a luta antiestatal,

anticapitalista, uma outra relação com a natureza, a necessidade de criar outras formas de

relações sociais e de produção, passam a demandar um diálogo inevitável com a teoria social

crítica.

As lutas sociais que surgem nos anos 90, como produto desse momento de regressão

social, junto com a impossibilidade de análise e resposta do pensamento marxista, marcam a

ausência de uma teoria social-crítica que permita entender essas realidades, como também,

remetem a perda de seu lugar no debate das questões trazidas por Caio Prado e Mariátegui

na segunda metade do século XX.

A proposta deste trabalho é pensar na forma política da Comuna como uma chave para

entender estas experiências que se expandiram a partir dos anos 90 e que chegam a 2010 com

3 Não será tema desta tese explicar o funcionamento da crise do sistema capitalista, mas sim se tentará analisar o produto dessa forma social em seu processo de dissolução, e quais são as experiências que se criaram e recriaram a partir da dita regressão. Para a análise desta crise e como ela se desenvolve pode-se consultar autores como Robert Kurz, Anselm Jappe, Paulo Arantes, Marildo Menegat, entre outros.

4

um processo ao mesmo tempo de acumulação de práticas, reflexões e por outro lado, um

desgaste importante tanto em suas práticas cotidianas, como em sua capacidade de

enfrentamento da crise estrutural do capital, da qual surge a necessidade de refletir sobre uma

práxis emancipatória que permita fortalecer e dar um lugar a esta experiência política

coletiva produto desta crise.

A ideia desta tese não é realizar um estudo histórico sobre o marxismo latino-americano,

mas uma tentativa de mostrar os caminhos que foi adotando um determinado pensamento

crítico sobre a periferia, e a partir da periferia, sem que isto signifique um processo endógeno

de elaboração, de uma teoria autoreferenciada, e sim que mostre a particularidade que o

mesmo adquire no processo de expansão do capital.

O grau de autonomia que os capítulos desta tese contêm se fundam na intenção de pensar

estes três momentos históricos diferentes, não como uma simples realização de etapas, e sim

como um processo muito mais complexo que guarda relações com o passado e interações com

o presente, porém fora de uma visão linear, e sim, em um caminho repleto de encontros e

desencontros destes processos históricos com uma certa teoria marxista latino-americana.

O capítulo I apresenta a pertinência da radicalidade das interpretações realizadas por

Mariátegui e Caio Prado na primeira metade do século XX como expressão de um debate

realizado por toda uma geração. Assim poderemos ver a intenção desses intelectuais de dar

andamento ao processo de pensar uma práxis que fosse a expressão destas novas

interpretações sobre a formação das colônias, em um contexto social regressivo como era a

Primeira Guerra Mundial, o surgimento do fascismo, e, ao mesmo tempo, a esperança trazida

com a Revolução Soviética.

No capítulo II observaremos que essas interpretações elaboradas entre as décadas de

1920-1940, acabaram sendo instrumentalizadas pelo marxismo oficial perdendo a riqueza e

criatividade que permitiriam dar continuidade a este pensamento crítico.

A renovação do marxismo nos anos 1960 recuperará o movimento expresso por estas

interpretações, buscando pensar novamente a particularidade da América Latina e a

importância desta chave de análise para caracterizar os diferentes processos revolucionários.

Estes debates acabarão sendo hegemonizados por aqueles grupos que baseavam suas análises

5

nos pressupostos do desenvolvimento e subdesenvolvimento, como base para entender a

formação das colônias. Tudo isso demarcado por um novo padrão de acumulação capitalista e

no contexto da Guerra Fria. As duas principais experiências, expressão destes debates, são: A

Revolução Cubana e A Unidade Popular do Chile. Nelas será possível ver como o velho

debate sobre “Reforma ou revolução?” voltará com força à cena dos programas políticos.

O objetivo deste ensaio é mostrar como baseados nesses pressupostos de interpretação

sobre o desenvolvimento da América Latina será difícil para um determinado marxismo

colocar em questão a forma política do Estado como caminho para o processo revolucionário.

Assim, estas experiências deixarão um saldo de derrotas, ao mesmo tempo, que diversos

debates que neste momento acabaram sendo truncados, hoje se recolocam. Depois dessas

experiências, o marxismo entrará em baixa e acabará perdendo a possibilidade de um diálogo

mais oxigenado com as lutas de massas.

Finalmente no capítulo III tenta-se resgatar por que as interpretações de Mariátegui e Caio

Prado Junior perderam sua vigência para entender a realidade atual, porém, ao mesmo tempo,

continuam sendo clássicos da compreensão da formação da América Latina. Destas

interpretações surgiram ao menos dois caminhos: por um lado aquelas análises centradas em

entender a regressão do progresso, e as consequências do projeto civilizatório para a

América Latina, que trouxe consigo a proposta de modernização retardataria aprofundando

um processo de(s)composição/desagregação social; e, por outro lado, ver este

desenvolvimento apenas como uma forma particular que adquire a expansão capitalista

na periferia, e de superar o problema de haver ingressado a modernidade por um caminho

não clássico, explicava os problemas de nossas revoluções, através do necessário

desenvolvimento para dar um salto até a nivelação às economias centrais. A proposta de este

trabalho é aprofundar as leituras que abriu o primeiro caminho de análise, sobre as regressões

da modernidade e os desafios que este pressuposto coloca.

Frente a crise estrutural instalada nos anos 1990, os desafios do projeto emancipatório

colocado por estas lutas sociais e seu divórcio com o pensamento marxista tradicional, re-

atualizam a forma política da Comuna, como uma forma de enfrentar um contexto de

decomposição social, e o campo de possibilidades que estas lutas abrem para ajudar a pensar

6

uma perspectiva teórico-política crítica ancorada na reflexão das realidades periféricas.

O desafio, finalmente, é pensar uma teoria da periferia que permita não só resgatar a

particularidade de cada realidade nacional, senão a existência de certa unidade na

heterogeneidade desses grupos dada pelo produto da crise estrutural do capital, e a

necessidade de potencializar uma práxis emancipatória gestada por dentro destas experiências,

que permita pensar um salto para fora da formação burguesa.

7

I. MARIÁTEGUI E CAIO PRADO NO PENSAMENTO CRÍTICO LATINO-AMERICANO

1. Introdução ao Pensamento Crítico Latinoamericano

"7 ensaios de interpretação da realidade peruana" (1928) e "Evolução política do Brasil.

Ensaios de interpretação materialista da história brasileira" (1933) marcam o começo de uma

forma original de entender a América Latina. Tanto José Carlos Mariátegui quanto Caio Prado

Jr. marcam um ponto de partida para uma forma de leitura diferente da realizada até aquele

momento, mantendo o marxismo como referência.

Decerto, até 1930 não são esses autores que realizam a introdução de uma visão marxista

na América Latina. Na mesma época, atuavam Recabarren no Chile, Codovilla e Ponce na

Argentina, Mella em Cuba, Astrojildo Pereira no Brasil, e as primeiras idéias marxistas já

haviam começado a circular antes, em pequenos círculos, no México, através de Rhodakanaty,

entre outros. Vale perguntar, então, por que, quando todos os demais só poderiam ser estudos

sobretudo por razões meramente históricas, Mariátegui e Caio Prado continuam atuais. Por

que, não obstante as insuficiências e incongruências de seu pensamento, ocupam ainda um

lugar decisivo em nosso debate atual?

Se tanto Mariátegui quanto Caio Prado foram capazes de deixar uma obra na qual os

revolucionários da América Latina e de outros países podem ainda encontrar e reconstruir

uma matriz de fecundidade indiscutível para as tarefas de hoje, isso se deve sobretudo ao fato

de terem sido, entre todos os que contribuíram à implantação do marxismo na América Latina

de seu tempo, os que conseguiram, mais profundamente, e de forma mais acertada, apropriar-

se – e, nesse caso, não importa se de maneira mais intuitiva ou sistemática – daquilo que

confere um valor autenticamente revolucionário ao marxismo. Ao invés de limitarem-se à

"'aplicação' do aparato conceitual marxista como um molde classificatório e nominador,

temperado de retórica ideológica, sobre uma realidade social, da mesma forma que os

herdeiros da visão eurocentrista ou os seguidores da 'ortodoxia' da burocracia oficial do

movimento comunista, depois de Lênin" (Quijano, 2007: LX), as análises daqueles autores

8

focaram-se sobretudo nas lutas mais expressivas do momento, bem como àquelas que

representaram, na formação da América, o eixo principal de enfrentamento com o projeto

colonizador.

A tensão constante do próprio processo histórico, situado ao mesmo tempo entre um

realizar-se e um impedir-se, constituem o vigor da obra de cada um deles. Assim, o debate

sobre a questão indígena não é um acidente no pensamento maritaguiano: é a própria

expressão das lutas que estavam sucedendo no momento (e que sucederam durante 500 anos).

A discussão sobre o feudalismo-capitalismo em Caio Prado tampouco constitui acaso em seu

percurso, nem mera incompatibilidade política com a linha do Partido Comunista do

momento: é o próprio centro de sua obra, porque forma parte da leitura e da prática política

por ele defendidas, inovando na maneira de abordar a interpretação do capitalismo e da

colônia, e as complexidades produzidas pelo imperialismo, a partir de um enfoque marxista.

Para Mariátegui, tanto o "comunismo inca" quanto o "mito" são formas "concretas" de

respostas ao desenvolvimento "civilizatório" impulsionado pelo capitalismo. Não constituem,

em nenhum momento, apelo "ideal" ou "místico" (no sentido espiritualista do termo), mas

respostas concretas que não são recuperadas em seu estado puro, mas desde a perspectiva de

suas possibilidades no mundo atual, as quais se articulam com as lutas sociais do momento.

Em essa análise sobre os elementos propostos por Mariátegui, corre-se o risco de perder a

riqueza e a radicalidade de sua proposta frente à "forma social burguesa".

A "Revista Amuata" e a "Revista Brasiliense" são dois marcos de referência para a

esquerda, onde se encontram condensados o debate social, político, cultura do Peru e do

Brasil. "Amauta" inaugura uma nova intelectualidade no Peru, e a "Revista Brasiliense" marca

o debate vigente nos anos 1950 e princípios dos 1960 no Brasil. São dois mundos que

confluem nessas revistas, que permitiram dar curso às discussões inovadoras e heterodoxas

desses dois intelectuais. Tanto "Amauta" quanto "Brasiliense" tem como fundo de discussão a

construção de uma nacionalidade, do nacionalismo que, como veremos, significava um

projeto "necessário" que permitiria uma determinada "unidade" nesse conglomerado social

desagregado.

9

Segundo Quijano, a escritura mariateguiana exibe, exatamente, essa capacidade de

percorrer o tempo, produzindo, em cada época, uma relação nova com o mundo e, assim,

leituras novas. Essa capacidade parece prover de um modo de pensar, indagar e conhecer que

se constitui pela "unidade tensa entre dois paradigmas que a cultura dominante – o modo

eurocêntrico da modernidade – desune e opõe como irreconciliáveis: o logos e o mito. Essa

tensão está ativa na intersubjetividade latino-americana desde o começo; é parte de sua

especificidade histórica, o rastro de cultural original na América Latina que impregna, cada

vez mais, a arte, a narração, a poesia, o imaginário quotidiano dos dominados. Mas é só com

Mariátegui que essa tensão se estabelece, intelectualmente, como uma questão central de todo

um período histórico". Isso, segundo o mesmo autor, explica a vigorosa "autonomia

intelectual mariateguiana", e sua diferenciada presença no debate socialista –

particularmente marxista – de seu tempo. Pois essa diferença não se reduz unicamente, ou

principalmente, a um matiz de alguma das tendências previamente dadas. O tempo a vai

destilando como matriz alternativa às opções eurocêntricas de investigação e revolução da

sociedade (Quijano; 1991: IX).

Assim como a ação é o que guia o pensamento e as preocupações mariateguianas,

veremos que, em Caio Prado, é algo muito semelhante que se condensa no A Revolução

Brasileira. Anterior a esse livro, que é um verdadeiro programa em que estabelece algumas

teses que deveriam ser pensadas diante do fracasso de 1964, Caio Prado tem a preocupação de

realizar uma leitura rigorosa e pormenorizada sobre a formação social brasileira. É verdade

que, diferentemente de Mariátegui, Caio não explicita uma preocupação maior pela região

latino-americana, mas vai enfrentando indiretamente esses debates na medida que estabelece

uma nova forma de pensar o desenvolvimento da colônia na América Latina. Nesse sentido,

seria possível pensar também que as idéias de Mariátegui com relação ao problema do índio

estão reduzidas à região andina mas, na verdade, sua análise transcende o setor geográfico,

enriquecendo as esferas de análise e interpretação da particularidade latino-americana. O

mesmo se passa com Caio Prado, e é impossível pensar hoje dentro da teoria social crítica,

sem a contribuição fundamental sobre o sentido da colônia, e o significado que teve, na

expansão capitalista, a conquista espanhola e a conquista portuguesa.

10

É possível encontrar em Caio Prado uma preocupação com a análise sobre a formação

brasileira, que, posteriormente, não pode ser refletida em uma reflexão sobre a práxis,

diferentemente do que ocorre com Mariátegui, cuja preocupação está centrada na práxis

revolucionária, para a qual dirige toda sua atenção e análise.

A intervenção na vida pública é uma característica tanto de Mariátegui quanto de Caio

Prado, que marcaram o debate de uma época histórica, e que continuam com a relevância

própria de uma pensamento sobre uma realidade que ainda não foi superada. O que se vê

neles não é um pensamento individual: eles conseguiram dar expressão a um pensamento

coletivo, de uma crítica que começava a surgir na América Latina.

Tanto Mariátegui quanto Caio Prado devolvem ao marxismo uma práxis que rechaçava o

fechamento em preconceitos, o fracionamento em seitas que se confundiam entre si à medida

que perdiam sua capacidade de intervenção. Devolvem-no a uma práxis revolucionária ao

chamar a atenção sobre outras tradições teóricas e lutas sociais que se vinham ensaiando por

diferentes caminhos.

O marxismo consegue, com isso, vincular-se a outros sujeitos, trajetórias, com novas

apostas e oportunidades para voltar à tarefa pendente: a revolução, a qual deve ser vinculada

às experiências de lutas passadas que gravitam ainda no imaginário dos povos.

Voltar a Mariátegui e a Caio Prado não é voltar às suas respostas, mas às suas perguntas,

aos debates que se organizara ao redor delas, sobre as intuições e suspeitas que superaram as

tarefas do marxismo latino-americano e que tornaram mais complexo e contraditório o

socialismo na América Latina. Atentar a tudo isso coloca em debate, novamente, três pilares

da discussão do marxismo: a natureza da revolução, o sujeito revolucionário e as formas de

organização das massas. Desafios e preocupações ainda atuais.

11

1.1 Particularidade do pensamento marxista de Caio Prado e Mariátegui

José Carlos Mariátegui e Caio Prado Jr. inauguram na América Latina o desenvolvimento

de um pensamento crítico próprio da periferia, marcado basicamente por alguns elementos

que condensaram um debate iniciado décadas antes pela chamada "geração modernista", e que

se amadureceram nas idéias desses autores.

Por um lado, falar da unidade do pensamento de Mariátegui e de Caio Prado Jr. não

significa perguntar pela validade do seu marxismo, e tampouco se trata necessariamente de

encontrar os marxismos presentes em cada um deles, senão de buscar os elementos potenciais

para pensar e entender as realidades atuais na América Latina. Assim, uma das

particularidades desse pensamento foi a tentativa de pensar o marxismo na periferia.

Por outro lado, partir da realidade concreta de cada país foi o marco que eleito por ambos

os pensadores, reconhecendo essa realidade como ponto de partida do pensamento e da ação.

É assim que, por exemplo, a questão agrária no Peru se cruza com a questão indígena. No

Brasil, com a grande exploração agrária, esse problema se coloca como parte da problemática

dos trabalhadores rurais. O pensamento da particularidade de cada realidade nacional como

base de ação pode fundamentar uma unidade entre Mariátegui, Caio Prado e o italiano

Gramsci, pois nos três casos se vê nitidamente a necessidade de vincular a prática com as

realidades locais.

A maneira como Caio Prado e Mariátegui inauguram e desenvolvem essas idéias reflete ao

mesmo tempo a trajetória histórica do marxismo na América Latina – seus encontros e

desencontros – e sua tentativa de colocar o problema de como pensar a América Latina a

partir do marxismo.

Um dos elementos importantes nas idéias dos dois é a necessidade de pensar a partir do

sistema colonial, o significado desse sistema como constituição periférica do capital, e a

forma que tal sistema adquiriu como "empresa capitalista".

Pensar desde as realidades nacionais significou, para esses autores, a compreensão de que

12

a forma própria de ser da América Latina envolvia zonas de modernidade e zonas de atraso. A

tensão existente é colocada nesse duplo movimento simultâneo de atraso e progresso, e está

posta, também, a necessidade de entender suas conseqüências para as lutas sociais.

A periferia começa a ser percebida como unidade de elementos atrasados e modernos

justapostos antes de Mariátegui e Caio Prado. Entretanto, esses autores têm a originalidade

de colocar essa idéia dentro do pensamento crítico latino-americano e mundial. Ao mesmo

tempo, entendem essa unidade da América Latina como forma própria da constituição das

colônias, o que faz com que seu caminho seja diferente do processo histórico europeu.

Quando se fala de periferia como unidade, se faz referência a essa unidade que significa

atraso e progresso, essa forma de ser da periferia, essa conjunção insolúvel que a periferia

adquire sob o capitalismo. Assim, o atraso tem uma existência indissociável do moderno, e

vice-versa. É Caio Prado o primeiro a sugerir a idéia da não-existência de restos feudais na

américa-latina, e a conquista como própria expansão do capital4.

Essa realidade "inclassificável" para o marxismo existente nesse momento mostrou para a

teoria crítica os limites para a caracterização da América Latina5. Essa realidade contém uma

unidade que está dada não penas por um fato geográfico: ela pode ser compreendida e

explicada graças à presença de um substrato histórico comum e, portanto, único. As próprias

características adquiridas pela expansão do capital na América Latina, que aparecia como um

"enorme esforço de europeização" da região, processo que levaria a um "conquista do

progresso e da cultura", escondia, na realidade, uma distorção da sociedade global, uma

diferenciação crescente das estruturas econômico-sociais, que fragmentavam as sociedades

4 Ángel Rama assinala que "ao cruzar o Atlântico, não apenas se passava de um continente velho a outro presumivelmente novo, mas se atravessava o muro do tempo, e se ingressava no capitalismo expansivo e ecumênico, ainda carregado da aversão à mudanças típica do pensamento medieval" (Rama, 1984: 2).

5 Jorge Myers mostra que a história da região, a qual, depois de um processo lento e contraditório veio a se chamar "América Latina", "não começou com a chegada dos europeus, e isso é hoje um ponto de partida inegável para qualquer historiador. A textura particular adquirida por aquela ruptura entre o universo cultural habitado pelos povos indígenas – com suas formas políticas, religiosas, econômicas próprias, com suas línguas, seus hábitos e suas crenças também próprias – e o novo universo cultural conformado pela imposição de formas políticas, religiosas, econômicas ou culturais originadas na região ibérica da Europa foi e continua sendo um tema de controvérsia. Quanto de novo e quanto de continuidade teve lugar, pois, apesar dos genocídios, exploração e guerras, as populações indígenas continuam habitando na região" (Myers, 2008: 28-30).

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nacionais em "zonas de modernidade e zonas de atraso" (Aricó, 1989: 420). E assim, o que

seria um caminho em direção ao progresso, levou também à construção de uma vasta área de

desagregação social.

Diferentemente de Mariátegui e Caio Prado, o pensamento dualista marca essas duas

formas como sendo uma antecedente da outra, o que propiciou, durante muitos anos, dentro

do marxismo – e, ainda hoje, em alguns setores da esquerda – uma leitura sobre a constituição

da América Latina que gerava uma lógica etapista para entender a "evolução" da região,

chamando de "feudal ou semifeudal uma parte do país considerada 'arcaica', a qual era preciso

modernizar através de uma revolução burguesa que ainda estaria faltando" (Arantes, 1992:

28).

Na "modernização" da periferia, "o 'arcaico' se reproduz em lugar de se extinguir, de

modo que a coexistência do antigo com o novo é um fato geral de todas as sociedades

capitalistas" e de muitas outras também. Porém, nos países colonizados, essa forma é central,

já que "esses países foram incorporados ao mercado mundial (...) na qualidade de econômica

e socialmente atrasados, de fornecedores de matéria-prima e trabalho barato. A sua ligação ao

novo se faz através, estruturalmente através de seu atraso social, que se reproduz em lugar de

se extinguir” (Schwarz, 2005: 34). O que não se pensou com esse processo modernizador

foram as conseqüências não intencionais desse moderno sistema produtor de mercadorias, que

ocultava – em sua fase de ascensão histórica – o conteúdo negativo com elementos positivos:

"Enquanto cumpria essa 'missão civilizatória' (Marx), esse sistema funcionava perfeitamente,

vencendo todas as relações de reprodução estamentais estáticas, pré-modernas. As crises eram

apenas interrupções em seu processo de ascensão e pareciam, a princípio, superáveis” (Kurz,

1993: 29).

Foi a análise das transformações no sistema de produção da colônia que levou Caio Prado

a explicar o "sentido da colônia", que não registra a existência de restos feudais, mas mostra a

grande exploração que teve lugar na colônia, percebendo como "a grande propriedade, o

trabalho escravo e a produção voltada para o mercado externo se articulam organicamente"

(Ricupero, 2000: 157).

14

Em "A Revolução Brasileira" (1966), Caio Prado chama a atenção para a impossibilidade

dentro do Partido Comunista de reconhecer uma investigação mais "herege", a qual não podia

se sobrepor a convicções tão profundamente implantadas, "pois os próprios fatos passariam a

ser considerados unicamente através das fortes lentes deformadoras daquelas falsas

convicções", o que fez com que, até então, se respeitasse ainda o velho esquema tradicional

desenvolvido na Europa, o qual foi tomado como "lei geral da moderna fase evolutiva de

todas e quaisquer sociedades humanas, continuo-se a falar no Brasil naquela revolução

democrático-burguesa destinada a eliminar os 'restos feudais' supostamente presente em nosso

país” (Prado Jr, 1972: 28).

A passagem do feudalismo para o capitalismo é uma marca que, segundo Caio Prado, não

teve registro nas colônias americanos. Com isso, tenta mostrar, a partir de parâmetros

marxistas, que a particularidade do capitalismo adquiriu novas formas em sua expansão

marítimo-comercial na realidade brasileira. No país, não se vive no estilo europeu, mas

segundo formas próprias da periferia.

A constituição da colônia sub esse perspectiva abriu a possibilidade de outras formulações

que pensassem a relação entre o nacional e o internacional como uma linha difusa em relação

aos parâmetros dos países colonizadores. Assim, a colônia passava a ser uma entidade que

dependia da Europa até em sua maneira de se pensar, com o que se convertia em um mero

apêndice reprodutor do comércio e das matérias primas.

Aos olhos de Mariátegui, a realidade nacional é um sistema mais amplo do pensamento

até o momento, o que implica pensar estratégias que contemplam a ruptura com esse sistema.

A relação entre marxismo e nação é uma tensão permanente no pensamento mariateguiano.

Assim, em determinadas situações prima o marxismo enquanto, em outras, prima a nação. A

partir de sua peculiar relação entre marxismo e nação, acaba elaborando uma "maneira

específica – peruana, indo-americana, andina – de pensar Marx" (Flores Galindo, 1989: 22). A

maneira específica está marcada pela tentativa de entender esse limite difuso entre o dentro e

o fora da realidade nacional e internacional.

15

Junto com a constituição da colônia e, particularmente, no que diz respeito à forma de ser

da periferia, Mariátegui assinala outro elemento que dá particularidade a essa realidade, e que

será de importância fundamental para as lutas sociais: o problema do Índio. Em seus "Sete

ensaios de interpretação sobre a realidade peruana", coloca pela primeira vez a necessidade e

a potencialidade da incorporação das comunidades indígenas nas filas do marxismo.

Esse problema faz com que Mariátegui se enfrente com a incapacidade do marxismo

desenvolvido até o momento para pensar esse sujeito das lutas sociais, e também,

internamente, com o debate extenso mantido durante muitos anos dentro de diferentes

movimentos latino-americanos. A forma em que aborda o problema do índio marca a

originalidade do pensamento mariateguiano. O índio é deslocado de seu lugar de vítima, e

colocado como sujeito da política emancipadora. A inovação está dada pelo apego

conseqüente de sua análise e de sua imaginação política a essa realidade.

A tarefa do "socialismo indo-americano" formulada por Mariátegui era, assim, a formação

da classe proletária que unificasse tanto os trabalhadores quanto os indígenas. Sem esses

últimos, o socialismo seria impossível no Peru. Ao incorporar a idéia dos indígenas como

parte da classe proletária, está tratando dos indígenas e dos negros como trabalhadores, com

um papel econômico-produtivo dentro da sociedade capitalista, de modo que a classe

proletária congregaria todos esses setores. Os índios necessitavam de um vínculo nacional,

seus protestos sempre haviam sido regionais, o que contribuía em grande medida para suas

derrotas. "Um povo de quatro milhões de homens, consciente de seu número, enquanto

permaneça uma massa inorgânica, uma multidão dispersa, é incapaz de decidir seu rumo

histórico" (Mariátegui, 1994a: 23). Nesses momentos, apresenta-se com força a idéia de nação

em Mariátegui, mas como um chamado a uma integração que havia sido quebrada pela

conquista. Com a chegada da colônia e a introdução de outros habitantes (escravos negros e

imigrantes brancos), produziu-se uma ruptura no vínculo, no "nexo" social necessário para a

formação social integrada. Esse nexo passará a ser dado pelo traço econômico-produtivo, com

o que se tornava difícil pensar tal conglomerado heterogêneo como a unidade que realmente

era. Potencializar essas massas e introduzi-las em um projeto emancipador era a necessidade

colocada pelas realidades nacionais.

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De onde surgem pensadores como Mariátegui e Caio Prado na periferia? Influências

intelectuais recebidas, tanto locais como européias, marcam sua formação. Mariátegui é um

pensador fortemente marcado pela sua relação com Croce, Sorel, o movimento surrealista, o

que lhe propiciou um complemento importante a seu marxismo, e lhe deu a possibilidade de

pensar a América Latina a partir desse conhecimento da realidade européia. Para Caio Prado

Jr., a dificuldade em sua leitura do marxismo estava posta na recepção das idéias marxistas no

Brasil, a qual foi marcada pela combinação do stalinismo com o positivismo, as quais fizeram

desse marxismo uma interpretação esquemática da realidade brasileira. É assim que, no

Brasil, nas três primeiras décadas do século XX, o pensamento político avançado, na medida

em que conseguia encaminhar sua fundamentação filosófica, "sofria a influência profunda do

'cientificismo'", especialmente do "evolucionismo" (Herbert Spencer) e do "positivismo"

(Augusto Comte). As demais correntes filosóficas definidas que atuavam na vida cultural

brasileira eram menos influentes na perspectiva dos intelectuais progressistas (Konder, 1988:

180).

A decadência da civilização ocidental como marco para o que seriam as revoluções do século XX

é uma linha permanente no pensamento iniciado por esses autores, assinalando que estamos assistindo

à "desagregação, a agonia de uma sociedade caduca, senil, decrépita" (Mariátegui, 1994j: 853-849),

mas advertindo qual será o papel do proletariado nesse contexto frente a essa decadência: "e que o

proletariado se pergunte se vale a pena reconstruir a sociedade burguesa, para que, dentro de quarenta

ou cinqüenta anos, talvez antes, volte uma nova conflagração estoure no mundo, e se produza uma

nova carnificina"6.

O primeiro desafio enfrentado pelo marxismo latino-americano é pensar qual seria a

natureza da revolução, o que inclui uma certa análise sobre as formações sociais latino-

americanas, sendo este o ponto de partida para a formulação de estratégias e táticas políticas

(Cf. Löwy, 2006a: 9).

O debate apresentado dentro do movimento socialista internacional sobre a particularidade

da América Latina enfrentou esse corpo teórico7 com os próprios limites que tinha para pensar

6 Mariátegui o enuncia em 1923, dezesseis anos antes do início da Segunda Guerra Mundial (1939) (Idem).7 Quartim de Moraes, em uma análise sobre a influência de Stalin no comunismo brasileiro, fala sobre a idéia

17

uma realidade até certo ponto "inclassificável" (Aricó, 1980: 39) nas formulações realizadas

até o momento pelo marxismo.

O problema da natureza da revolução se relacionava, em última instância, com questões

teóricas e metodológicas sobre como aplicar o marxismo à América Latina. É assim que o

marxismo latino-americano se vê tentado por duas tendências opostas: o "excepcionalismo

indo-americano" (Aricó, 1980: 39), baseado na absolutização da especificidade da América

Latina, e o "eurocentrismo" (Löwy, 2006a: 10) que tentava transplantar mecanicamente para a

América Latina os modelos de desenvolvimento sócio-econômico que explicam a evolução da

Europa. Löwy (2006a: 9-10) distinguiu pelo menos três desses períodos: "1) um período

revolucionário que vai dos anos 20 até meados dos anos 30, cuja expressão teórica mais

profunda é Mariátegui; nesse período a tendência era caracterizar a revolução latino-

americana como, simultaneamente, socialista, democrática e anti-imperialista; 2) um segundo

período stalinista, de meados da década de 1930 até 1959, durante o qual a interpretação

soviética do marxismo foi hegemônica, e, portanto, o que predomina é a teoria da revolução

por etapas, de Stalin, definindo a etapa presente da América Latina como nacional-

democrática; e 3) o novo período revolucionário, depois da Revolução Cubana, que vê a

ascensão de correntes mais radicais, cujos pontos de referência são a natureza socialista da

revolução e a legitimação, em certas situações, da luta armada."

1.2 Antecedentes de uma geração. Como se constrói um pensador periférico?

O final do século XII e o início do século XX são o marco de gestação de uma geração

que começa a questionar as oligarquias colonialistas surgidas dos processos idependentistas e

consolidadas na República. Esse processo se dá como parte de uma modernização acelerada,

de teoria desenvolvida por Stalin e apropriada pelos Partidos Comunistas da III Internacional (todos eles na América Latina). Segundo Stalin, "é revolucionário o partido que se guia pela teoria revolucionária (de vanguarda) e é revolucionária a teoria que guia o partido revolucionário". Assim, na "prática confundiam-se a elaboração da teoria e a direção do partido em uma única e mesma instância (...) No essencial, Stalin reduziu a teoria a uma técnica de análise de situações e de conjunturas (...) de modo que tática e teoria ficavam justapostas" (1991: 53-54), o que significava ou uma supervalorização da primeira ou uma subestimação da segunda. Essa concepção trazia, como conseqüência, não apenas a redução da teoria, mas também a formulação do etapismo como passos necessários para a revolução.

18

intensificada em alguns lugares, como na Argentina, Brasil, México, Chile, e mais lento em

outros, tais como Bolívia e Peru. Com uma inflexão sobre seu passado colonial, "atrasado",

essa geração começa a questionar as oligarquias tradicionalistas, atribuindo-lhes um certo

impedimento na conquista da modernização, do progresso que resolveria, na América Latina,

os problemas causados pelos restos arcaicos ainda presentes. Também era parte da reflexão a

necessidade de resgatar e gerar intelectuais e artistas que pensassem a particularidade dessa

realidade. Assim, é marcada uma divisão de águas na cultura desses países: em literatura,

teoria social, pintura, escultura e outros âmbitos, essa questão começa a receber inúmeras

miradas e reflexões. Tanto os grupos das revistas "Colónida" e "Nuestra Época", no Peru,

como "Claridad", "Sagitario", "La vida literaria", "Córdoba", "Valoraciones", na Argentina,

quanto a "Semana de Arte Moderna", em 1922, no Brasil, convertem-se em espaços onde se

vai refletindo todo esse movimento que a sociedade está vivendo.

A década de 1920 vê surgir uma nova intelectualidade Latino-Americana, da qual

Mariátegui não seria apenas um dos personagens mais destacados. Era uma intelectualidade

tomada por uma inquietude profunda, um mal-estar: seus membros sentiam-se como que

suspendidos no vazio, pairando entre o sentimento de frustração despertados pelas autoridades

oligárquicas nativas e a atração exercida pelas intermináveis "massas de ofendidos e

humilhados". É uma intelectualidade forjada através de um processo de "continentalização de

suas aspirações sociais e políticas" (Aricó apud Tarcus, 2001: 23). Essa efervescência

formava parte das práticas quotidianas e do imaginário coletivo dos intelectuais e políticos

latino-americanos dos anos 1920 e 1930, um vínculo que consegue continentalizar as relações

através de cartas, envio de livros, intercâmbio de revistas, viagens, exílios. Isso é

demonstrado, por exemplo, pela forte e importante relação estabelecida entre Mariátegui e

Glusberg, propiciando, para Mariátegui, a possibilidade de conhecer amplamente outras

realidades: não só a Argentina, mas também os países do Cone Sul e sua relação com Waldo

Frank, narrador e ensaísta estadunidense. Tudo isso lhe permitiu uma potencialização de suas

idéias e o conhecimento de outras que estavam fora do espectro do marxismo naquele

momento na América Latina.

Duas figuras importantes que antecederam o movimento modernista são José Martí e

19

Ruben Darío. Trata-se de um movimento que se constitui como o "primeiro movimento

literário articulado" concretamente entre os artistas de todo o âmbito hispano-americano, o

qual consegue igual projeção na Espanha mediante encontros, revistas, artigos dos escritores

uns sobre os outros, etc. Ambos encarnam a passagem de uma atividade intelectual que muda

de centro, deixa de privilegiar o "político" (para Martí, a independência de Cuba) para afirmar

a "autonomia do saber e da arte", sustentado por Rubén Darío como único respaldo para

intervir no mundo das idéias. Darío instala a polêmica do intelectual artista, marcando "o

trabalho intelectual como fundado em todas as possibilidades da palavra" (Zanetti, 2008:

523). Os modernistas são responsáveis, não exclusivamente, mas em grande medida, por uma

nova configuração do trabalho intelectual na América Latina.

Grupos de intelectuais e artistas se formam em diferentes revistas, diários, publicações, e

o foi o projeto "Amauta" que congregou Mariátegui e vários intelectuais com os quais se

construiu essa revista que foi uma grande "tarefa coletiva" (Flores Galindo, 1976: 76). Foi

onde se conseguiu refletir uma tarefa artística e uma tarefa política. É no "Amauta" que

Mariátegui desenvolve mais profundamente suas tarefas de jornalista, escritor, com um forte

rechaço ao academicismo, e dando lugar ao ensaio através do qual podia falar da vida

quotidiana sobre os acontecimentos nacionais e mundiais. É em "Amauta" que consegue

enfrentar as tensões existentes no Peru na formação de um movimento, partido de massas: por

um lado, estava a preocupação indígena que era parte necessária dessas lutas e, por outros

lado, um proletariado incipiente, o qual devia, quase por obrigação, ser protagonista dessas

lutas.

As novas configurações que sofre a sociedade peruana, devido às transformações do

capital e a ruptura com a herança colonialista, geram dentro desse movimento de vanguarda

debates que eram colocados pela própria realidade peruana, que respondia a lutas indígenas e

de trabalhadores do período, e que exigiram dos modernistas a necessidade de relacionar seus

debates estético-literários com os problemas políticos. Melis (1999: 145) assinala que a

convergência do indigenismo político e as inovações artísticas vanguardistas é um dos

aspectos mais singulares do campo cultural peruano durante os anos vinte, ao que contribui,

de maneira decisiva, a capacidade aglutinadora da revista "Amauta", e nela o papel de

20

Mariátegui.

O período de 1894-1930, nascimento e morte de Mariátegui, foi excepcionalmente

importante na história peruana, já que, nele, se conjugam os elementos da herança colonial,

apenas modificados superficialmente desde meados do século XIX, e os novos elementos que,

com a implantação dominante do capital monopolista, de controle imperialista, vão

produzindo uma reconfiguração das bases econômicas, sociais e políticas da estrutura da

sociedade peruana (Quijano, 2007: XI).

Em 1888, seis anos antes do nascimento de Mariátegui, Gonzales Prada realiza uma série

de intervenções na sociedade peruana, resgatando um liberalismo inexistente até o momento

no Peru. Primeiramente, com seu discurso do Politeama, começa dizendo que "os que pensam

o limiar da vida se juntam hoje para dar uma lição aos que se aproximam das portas do

sepulcro (...) os velhos devem tremer diante das crianças, porque a geração que se levanta é

sempre acusadora e juiz da geração que decai". Ataca duramente os proprietários de terra, a

corrupção da classe dominante e do seu instrumento militar, e a submissão dos camponeses à

ignorância e à servidão. Meses depois, no Teatro Olimpo, chama a todos os pertencentes ao

Círculo Literário a "romper com o pacto infame de falar a meia-voz". No fim do mesmo ano,

publica "Propaganda e Ataque", onde sentencia: "em resume, hoje Peru é um organismo

doente: onde quer que se coloque o dedo, jorra pus" (Gonzales Prada, 1965: 61, 38, 154),

advertindo que o fundamento da nação são as massas indígenas, que precisam ter um lugar

dentro do Estado para que este possa realizar uma mudança substantiva no país. Assim como

o tema do índio, e com ele as questões centrais da terra, sua incorporação à vida política, tudo

na ordem oligárquica estava em debate. Tudo isso foi aprofundado pela derrota frente ao

Chile8, que havia posto à mostra de que modo a dominação dos proprietários de terra é uma

característica do regime de "colonialismo interno" (Quijado, 2007: XXVI), que era o

fundamento da falta de integração nacional, falta essa que, por sua vez, tinha sido decisiva

8 Trata-se da chamada "Guerra do Pacífico" ou "Guerra do Salitre", na qual Chile invadiu parte do território boliviano e parte do território peruano e saiu vencedor. Desenvolveu-se entre os anos 1879-1884 e consistiu, basicamente, numa guerra de disputa pelo guano e, posteriormente, pelo salitre, várias jazidas do qual foram encontradas no deserto de Atacama. O final da guerra significou o fechamento do acesso marítimo da Bolívia ao oceano Pacífico, pela ocupação das províncias de Tacna e Arica, que passaram ao território chileno. O tratado de paz foi firmado finalmente em 1904, quando Chile tomou possessão territorial das jazidas de salitre, guano e cobre.

21

para aquela derrota. Além disso, começava, nesse momento, um novo ciclo de lutas do

campesinato indígena no país (Idem). Antes do discurso de Politeama, teve lugar "a primeira

grande insurreição do campesinato indígena nessa etapa, a qual inaugurou o ciclo de

intermitentes guerras camponesas contra a dominação dos latifundiários, o qual dura até

metade da década de 1930, precisamente como reação à expansão da grande propriedade

agrária, impulsionada por um novo interesse adquirido por essa classe nesse período, pelo

modo em que se estabeleciam as relações com a dominação do capital monopolista" (Idem:

XXVII) 9.

A primeira etapa da penetração do capitalismo monopolista na economia peruana coincide

com duas situações históricas determinantes da profundidade e das condições específicas em

que se estabelece essa dominação: por um lado, o deslocamento da hegemonia imperialista da

burguesia britânica àquela dos Estados Unidos. O capitalismo britânico, até o momento, havia

concentrado seu desenvolvimento industrial exportável principalmente na indústria têxtil, e as

matérias primas que necessitava eram o algodão e a lã. Além destes, também requeria

produtos alimentícios tais como o trigo, a carne e o açúcar. Para essas necessidades, não era

indispensável o desenvolvimento de investimentos diretos de capital em nossos países, nem

de relações capitalistas de produção em grande escala. Esse tipo de matérias primas e

alimentícias podiam ser produzidas de forma vantajosa com relações pré-capitalistas de

produção, e era suficiente um domínio comercial e financeiro para estabelecer a respectiva

divisão internacional de trabalho e de "troca desigual" resultante (Cf. Quijano, 1978: 23, 24).

Já o desenvolvimento industrial do capitalismo norte-americano se foi realizando ao redor

da produção metalúrgica, principalmente. Assim, as necessidades prioritárias eram sobretudo

de matérias primas minerais. A produção desses recursos na escala necessária não podia ser

realizada na América Latina, e particularmente no Peru, sem a utilização de tecnologia

avançada e, conseqüentemente, sem a implantação de relações de produção capitalistas sobre

a base de investimentos diretos de capital. Desse modo, assim como o deslocamento do eixo

de hegemonia imperialista em direção aos EUA dava conta do maior desenvolvimento das

forças produtivas nesses país frente à Inglaterra, e portanto de uma maior concentração de

9 No mesmo ano do Politeama, é publicada, também, a primeira novela indigenista, A Trindade do índio, ou Costumes do interior" de José T. Itolararres. Clorinda Matto de Turner publica, também, Aves sem ninho.

22

capital, esses mesmos fatores empurravam em direção à modificação do tipo de relações

econômicas com os demais países incorporados ou se incorporando à área do capitalismo, por

meio de exportações diretas de capital produtivo e, ao mesmo tempo, do deslocamento do

interesse do capital monopolista para novas matérias primas (Cf. Idem) 10.

Por outro lado, encontrávamos um Estado fraco, que vinha se constituindo como Estado

Nacional no Peru, e, junto a ele, o enfraquecimento dos grupos mais importantes das camadas

de proprietários rurais/comerciantes que se haviam desenvolvido na costa peruana desde

meados do século XIX. Esse novo capital – por sua maior concentração, e suas maiores

necessidades de ampliar suas bases de acumulação, assim como por suas necessidades de

matérias primas diferentes, para cuja exploração se exige o investimento direto de capital –

avançava tirando desses grupos a propriedade de seus principais recursos de produção, e

solapando, assim, as bases da relativa autonomia mantida na situação anterior. Alguns

membros desses grupos resistiram à perda de sua posição anterior, buscando barganhar com o

capital norte-americano as condições da associação subordinada e as margens de autonomia e

de distribuição de benefícios. Esses núcleos estavam principalmente ligados à propriedade da

terra e de recursos minerais11 (Idem: 25).

Segundo Quijano (1978: 27), a peculiar combinação entre capitalismo monopolista e pré-

capitalismo, e a história dessa combinação, é o que dominará e definirá, adiante, o caráter das

mudanças de formação econômico-social peruana, até a segunda metade do século XX.

Entre 1890 e 1925, o investimento do capital monopolista se estabelece sob o controle de

10 Na análise de Quijano, é possível observar como, no caso do Peru, a penetração do capitalismo monopolista coincide com essa passagem de hegemonia da Inglaterra para os Estados Unidos. Contudo, segundo Maurice Dobb, esse mesmo processo foi realizado de maneira uniforme em todos os países da América Latina. Assim, esse autor mostra, em "A evolução do capitalismo", como, por volta de 1880, os investimentos externos da Inglaterra já mostravam uma recuperação em função do impulso de um novo movimento colonial e uma alteração de atenção no mercado de investimentos na América do Sul (principalmente Argentina, Chile e Brasil) e para o Canadá e a Índia. Em 1904, os investimentos britânicos no estrangeiro iniciam seu aumento espetacular: "o empréstimo ao Transval, em 1903, foi seguido pelos empréstimos ao Japão, Canadá e Argentina, destinados a ferrovias. A corrente principal do capital britânico dirigiu-se para o Canadá e a Argentina, mais uma vez para os Estados Unidos e também para o Brasil, o Chile e o México” (Dobb, 1980: 315).

11 O controle da "Cerro Pasco Corporation" é um caso exemplar da disputa pelo controle das minas. Uma crônica e análise interessante e rica sobre o processo de luta dos homens e mulheres de algumas aldeias dos Andes Centrais, onde estava localizada a "Cerro Paso Corporation", pode ser encontrado em "La Guerra Silenciosa" de Manuel Scorza, vivida e escrita durante os anos de 1950 e 1962.

23

quatro grandes coporações principalmente: "Cerro de Pasco Copper Corporation", "Grace and

Co., International Petroleum Corporation" e "Peruvian Corporation", a As três primeiras de

capital estadunidense, e a última de capital britânico. Assinalando as diferenças de poder e

interesse de ambos os capitais, as primeiras operam em setores produtivos (mineração,

agricultura de exportação e têxtil e petróleo, respectivamente), e a última no transporte

ferroviário. Junto a elas, algumas empresas menores, tais como a "Duncan Fox" britânica, que

atuava no ramo têxtil. Paralelamente, uma rede de Bancos, dos quais o Banco do Peru e de

Londres é o mais importante, e empresas de comércio internacional, servem essa nova

formação monopolista no Peru.

Ao produzir-se a incorporação da produção das fazendas pré-capitalistas à nova

acumulação imperialista do capital, os proprietários de terra senhoriais passarão a ter como

objetivo principal a comercialização do excedente, buscando uma ampliação de recursos que

permitiam a ampliação da produção de tais excedentes. Como conseqüência, iniciou-se nesse

país o mais importante e amplo processo de concentração da propriedade agrária nas mãos

desse tipo de proprietário de terras, através do espólio das terras das comunidades indígenas

sobreviventes da colônia e da primeira onda de concentração da propriedade agrária no

começo da república (Cf. Idem: 46).

Esse processo desatou uma onda de insurreições camponesas ao longo das três primeiras

décadas do século XX, afetando sobretudo as regiões de mais densa população indígena, nas

quais estava localizada a maior parte das comunidades indígenas. Mas a concentração de

propriedade agrária não afetou apenas a propriedade das comunidades indígenas, embora essa

fosse sua base principal. O processo foi levado a cabo também através do espólio das terras

dos pequenos e médios proprietários.

Sobre essa base foi surgindo uma capa de pequena e média burguesia comercial rural e

semi-rural (ou semi-urbana), estreitamente vinculada à classe dos latifundiários e dependente

dela durante um primeiro momento, mas destinada, no futuro, a disputar com os setores mais

fracos dessa classe o controle da terra e da economia rural em seu conjunto (Idem: 47).

A combinação do capitalismo monopolista e das relações pré-capitalistas, contraditória

24

porém complementarmente, em uma estrutura comum, implicará necessariamente o

surgimento de uma coalizão de interesses entre os dominadores dos dois modos de produção:

burguesia mercantil e latifundiários senhoriais, do outro. Essa coalizão de interesses, também

necessariamente, estará centrada em torno da hegemonia do capital imperialista, ou seja, da

burguesia imperialista. Isso redefine o caráter dessas classes, seus comportamentos, o âmbito

de sua ação, de seus interesses e de suas lutas (Cf. Idem: 37).

Dada a concentração de capital nos ramos primários, basicamente a agricultura e a

mineração – enquanto que, nos setores industriais, os investimentos eram reduzidos – o

nascente proletariado era basicamente agro-mineiro, e apenas muito secundariamente urbano-

industrial. O proletariado que se ia formando basicamente em Lima provinha, em grande

medida, dos meios do artesanato urbano-mercantil e dos setores camponeses médios

despojados de seus recursos (Idem: 50). Numericamente reduzido, desarticulado, flutuante,

basicamente não urbano-industrial, prioritariamente de origem camponesa, ligado pelo tipo de

consumo às pautas culturais do campesinato e recrutado por coação, o proletariado nascente

corresponde justamente ao tipo de implantação imperialista e ao seu modo concreto de

acumulação do capital.

A relação desses três setores: camponeses indígenas, trabalhadores e estudantes, marcará a

organização dos movimentos populares no Peru ao longo de todo o século XX.

O movimento anarco-sindicalista no período de 1903-1910 fundou centrais operárias em

vários países da América Latina e, em 1904, quando o proletariado peruano enfrenta a

primeira crise capitalista, aparece a União Trabalhadora de Padeiros "La Estrella del Peru".

Em 1911 se forma a "Federación Obrera Textil Vitarte", que, mais tarde, se converterá, por um

tempo, no eixo da mobilização sindical e política do proletariado peruano. A partir de 1904

não existirá praticamente nenhum ano em que não se produzam greves mais ou menos

violentas por reivindicações salariais e, logo depois, a partir de 1913, pela jornada de oito

horas de trabalho, reivindicação que mobilizará a nascente classe trabalhadora urbano-mineira

ao longo dos próximos anos até a conquista dessa demanda em 1919.

No dia 1 de maio de 1905, Gonzales Prada pronuncia seu famoso discurso "O intelectual e

25

o trabalhador", onde conclama uma revolução mundial que "apague fronteiras, suprima

nacionalidades e chame a humanidade à posse e benefício da terra". Nesse sentido, não haverá

revolução "sem lutas nem sangue, porque os mesmos que reconhecem a legitimidade das

reivindicações sociais não cedem nem um palmo no terreno de suas conveniências: na boca,

levam palavras de justiça, e no peito guardam obras de iniqüidade" (Gonzales Prada, 1969:

57-60). Esse primeiro movimento de trabalhadores peruano está concentrado sobretudo na

luta sindical, atento para que a ação conserve seu caráter econômico, o que resultaria em um

anarco-sindicalismo, mais do que em um anarquismo simplesmente libertário.

As primeiras manifestações do anarco-sindicalismo se dão em 1912 com a exigência das 8

horas de trabalho, o que posteriormente ganha em potência devido ao surgimento de uma

incipiente burguesia industrial que ganhará as eleições em 1912 elegendo como presidente

Guilhermo Billinghurst. Em maio desse ano se realizou uma imensa manifestação popular que

usa a imagem de um enorme pão como símbolo da identificação da candidatura com as

necessidades populares. Essa manifestação de rua, que ficou conhecida como a do "Pão

Grande", foi sem dúvida a primeira ocasião da presença popular, efetiva no cenário político

peruano, que se mobilizava na direção das pressões pela modernização do Estado e a

democratização da vida política, embora ainda estivesse sob o jugo de uma das tendências da

própria classe dominante (Cf. Quijano, 1978: 85).

Billinghurst era um homem que se caracterizava por "certas atitudes demagógicas, unidas

a idéias que favoreciam modelos novos de relações entre a classe dominante e os

trabalhadores (...) Tentou desde o governo desenvolver uma política de difusão do ensino

popular, sem êxito" (Quijano, 1978: 85). Todos esses fatos geraram uma forte oposição que,

somada às numerosas greves de trabalhadores que se generalizaram nesse período, foram

debilitando seu governo.

Esse governo cai diante do golpe de 1914 do general Benavides. Esse grupo que

manifestava ter um viés "socialista", criador de um pequeno periódico de trabalhadores –

"Germinal" – rapidamente será objeto do oportunismo pessoal de alguns de seus membros,

como Luis Ulloa, que participavam como colaboradores do diário "El tiempo", e que logo

26

intervirão pela campanha a presidente de Augusto B. Leguía12 que, em 1919, chamara a união

das forças progressistas do país, derrubando o então presidente José Pardo.

Desde suas origens como jornalista, Mariátegui acompanha e é parte da conformação dos

movimentos de massas no Peru, de modo que sua formação política não começa quando de

sua volta da Europa em 1923, mas trata-se, esta, de um claro reflexo de seu acompanhamento

e intervenção na realidade peruana desde suas origens. Sua obra escrita mostra dois eixos

centrais: o "artístico-literário", que foi o inicial, e ao qual corresponde certa de metade de sua

obra, e o "político-sociológico", que foi se tornando o dominante na produção da etapa final

(Quijano, 1991: VII). Trava diálogos com Gonzales Prada13 e Valdelomar14, que, ao retornar

da Europa, trazem as idéias anarquistas e criam a revista "Colónida"15, que foi o refúgio de

toda a boemia surgida em lima nos primeiros 20 anos do século XX e, finalmente, a chegada

da revista España de Luis Araquistain, já de influência claramente socialista (Cf. Paris, 1981:

34). É assim que esse grupo de jovens formado por Mariátegui, César Falcón, Félix del Valle,

Humberto del Águila, Valdelomar e Vallejo em 191816 começam a publicar a revista "Nossa

época", que, como o mesmo Mariátegui definiu, seria o ponto de partida de suas "orientações

socialistas", que não trará explicitamente um programa socialista, embora houvesse um

"esforço ideológico e propagandístico nesse sentido" (Mariátegui, 1994b: 201, 202) 17.

12 Sargento durante a guerra com Chile, Ministro das Finanças durante a presidência de Pardo (1904-1908). Foi presidente pela primeira vez em 1908-1912 e depois em 1919-1930.

13 Gonzáles Prada, escritor e intelectual peruano da primeira metade do século XX, que influenciou várias gerações de intelectuais, nas próprias palavras de Mariátegui, "é o precursos da transição do período colonial ao período cosmopolita, deixando para outros o trabalho de criar o socialismo no Peru" (Mariátegui, 1994a: 116-117).

14 Poeta e escritor peruano da primeira metade do século XX.15 Flores Galindo, ao situar a revista "Colónida", diz que se tratava de um grupo de intelectuais jovens, na

maioria provincianos de classe média, que juntaram ao redor da revista e da figura de Abraham Valdelomar (Cf. 1989: 167). Também se considera essa revista como "uma expressão de um momento de transição entre o modernismo e o vanguardismo. Os 'colónidos' produziram uma ruptura no campo literário ao rechaçar viceralmente o academicismo e a estética oligárquica" (Mazzeo, 2008: 25).

16 1918 é um ano de grande importância para a América Latina espanhola. Na Argentina, terá lugar a Reforma Universitária que teve impacto em todo o continente, e sobre a qual Mariátegui escreverá em seu livro "7 ensaios de interpretação sobre a realidade peruana". A reforma começa na Universidade de Córdoba (Argentina) em 1918 e rapidamente se expande por todas as universidades do país. As críticas à rigidez do establishment, o ensino abstrato e fossilizado, o saber burocrático, se converteram em um protesto que proclama "homens livres da América do Sul". As exigências eram: cátedras livres, co-gestão integrada por estudantes, e o livre direito dos alunos de assistir aulas. Esse movimento se expande pelo resto da América Latina, gerando mobilizações em vários países, e reaparece o velho sonho da "unidade latino-americana".

17 Essa caracterização foi realizada em um documento enviado ao Congresso Constituinte da Confederação Sindical Latino-americana, que se realizou em Montevidéu em Maio de 1929. Em seguida, foi publicado em Ideología y Política.

27

Deixando o papel mais literário, e aplicando-se a temas políticos, surge o primeiro artigo de

Mariátegui que se converte, sem sombra de dúvidas, em um ponto de partida. Trata-se de uma

nota sobre "O dever do exército e o dever do Estado". Aí, argumenta a necessidade de ter um

exército em proporção aos recursos econômicos, de modo que a preocupação deveria estar em

ter política de trabalho, e não de aprovisionamento, e também "políticas de educação", que

permitam combater o analfabetismo. Nessa nota, Mariátegui já se coloca com respeito ao

problema do Índio e sua relação com o Estado, dizendo que, em caso de guerra, a "massa de

aborígines inconscientes" será buscada "para que defenda a pátria" e que os índios seriam

"coercitivamente alistados". Termina afirmando que o "povo paupérrimo e embrutecido tem

vivido para manter o exército, e apenas existe uma burocracia mal formada e mal alimentada"

(Cf. Mariátegui, 1994u: 2540-2542).

Depois desse enfrentamento com o exército, o jornal "El Tiempo", que financiava a edição

e impressão da revista, acaba encerrando-a depois do segundo número. O grupo da "Nova

Época", já sem revista, decide criar um "Comitê de Propaganda Socialista" (París, 1981: 37).

Diante desses acontecimentos, Mariátegui decide, junto a seu amigo Falcón, criar o diário "La

Razón", em maio de 1919, no qual apóiam energicamente tanto os trabalhadores na série de

greves empreendidas nesse ano, como também os estudantes de San Marcos em sua luta pela

reforma, ecoando a reforma de Córdoba de 1918.

As lutas dos estudantes pela reforma universitária e a dos trabalhadores por sua

sindicalização e organização política convergiram em mobilizações solidárias cuja

demonstração mais efetiva foi a grande manifestação de rua do dia 23 de maio de 1923 contra

a consagração do Peru ao Coração de Jesus, preconizada pelo governo e pela Igreja. A

repressão do governo a essa manifestação causou a morte de um estudante e de um

trabalhador, e essas mortes são símbolo de uma forte solidariedade entre os dois grupos

sociais (Cf. Quijano, 1978: 100).

Por outro lado, o processo renovado de concentração da propriedade agrária na serra

empurrava os camponeses indígenas agrupados nas comunidades indígenas a confrontarem-se

violentamente contra os latifundiários em defesa de suas terras usurpadas. A insurgência

camponesa, junto com os fatores anteriores, veio a estimular o desenvolvimento de certas

28

correntes de pensamento entre os intelectuais dos setores médios, os quais preconizavam uma

reavaliação da cultura indígena e de sua histórica como fato determinante da sociedade

peruana. Essa corrente, denominada indigenismo, teve suas expressões mais importantes na

literatura narrativa, na poesia e nas artes plásticas (Idem: 101).

O "Comitê de Propaganda Socialista" não parecia diferenciar-se dos outros movimentos

mencionados anteriormente e, nas palavras de Mariátegui, nele se incluíam todos os

elementos que se definiam como socialistas, até o antipoliticismo dos gonzales-pradistas, e,

por essas razões, no dia 1o de maio de 1919, é criado o Partido Socialista18. Para Mariátegui e

seus amigos, essa foi uma decisão demasiado rápida e, com isso, decide retirar-se do partido.

Esse ato é marcado como a primeira ruptura frente à pequena burguesia, o que assinala o

caminho do que logo será a ruptura com a APRA. A crítica que Mariátegui realiza nesse

momento é que o comitê deve assentar-se mais nas massas, e que o período corrente não é

próprio para a organização socialista. No momento da Reforma Universitária, e da luta do

proletariado pela jornada de 8 horas, Mariátegui declara a necessidade de ter “singular

cuidado para proceder com paciência, mesura o que marca sua atitude quando se trate de

fundar nos próximos 10 anos o partido socialista” (Paris, 1981: 44).

Esses grupos que foram se formando muito amplamente durante a década de 1920, com a

criação da APRA19 em 1924, viverão sua ruptura quando essa organização decide se tornar um

partido interclassista20, em 1927.

18 Paralelamente, alguns elementos procedentes do billinghurismo, bem como de outras correntes, criam o Partido Obrero. Quando se propõem ao comitê socialista a fusão dos dois grupos, aquele a rechaça. "O ato inaugural do Partido Obrero foi fixado para o 1o de maio de 1918, mas, reunida uma assembléia popular, convocada pelos promotores desse partido em um teatro da capital, Gutarra, orador sindicalista, denuncia os bastidores políticos e eleitoreiros de suas gestões, e leva a multidão às ruas, numa manifestação de perfil classista. A tentativa do partido socialista fracassa porque a manifestação do 1o de maio de 1919 segue a greve geral do mesmo mês, na qual os dirigentes desse grupo evitam toda ação abandonando as massas e tomando uma atitude contrária à sua ação revolucionária. Estando Luis Ulloa ausente do país, e tendo Carlos del Barzo falecido, o comitê do partido se dissolve sem deixar nenhuma marca de sua atividade na consciência dos trabalhadores" (Mariátegui, 1994b: 201).

19 Haya de la Torre é o mentor e líder do movimento APRA, Aliança Popular Revolucionária Americana, de caráter anti-imperialista. Era um movimento amplo que se definia como uma "frente única internacional dos trabalhadores manuais e intelectuais, dotada de um programa de ação política". A idéia da Frente Única tinha como estratégia a do Comintern (III Internacional): a unidade entre o proletariado e os estratos médios radicalizados, como a fusão das massas com os intelectuais.

20 Aricó assinala que a derrota da revolução chinesa conduziu o Comintern ao abandono da orientação do "bloco das quatro classes", terminando, desse modo, o curto idílio entre os movimentos nacionais e os partidos comunistas (Cf. Aricó, 1989: 444).

29

Essa mesma década verá o surgimento, no Peru, de correntes que estruturarão

sucessivamente a vida intelectual do país: o indigenismo, a APRA, o socialismo de

Mariátegui.

Julio Cotler assinala que a transformação dos anos 1920, no Peru, está marcada pela

emergência política dos setores da sociedade afetados pela transformação econômica social

em curso. "É assim que os trabalhadores agrícolas, recentemente concentrados nas plantações

de açúcar, algodão e arroz, os trabalhadores mineiros e industriais, a pequena burguesia

urbana e rural deslocada pelas mudanças empreendidas pelo capital imperialista, as

comunidades que viam sua existência ameaçada pelo avanço do latifúndio, a fração dos

comuneiros que eram expropriados por seus pares que se diferenciavam deles em base

classista, todos entraram em um processo de mobilização de intensidade e tipo diferente. Essa

mobilização se canalizou através de organizações sindicais, políticas e culturais que foram

adquirindo conotações anti-imperialistas e anti-oligárquicas. O desenvolvimento político das

classes populares esteve determinado, embora com projeções distintas, pelo pensamento e

atividade organizada de Víctor Raúl Haya de la Torre e de José Carlos Mariátegui" (Cotler,

1977: 374).

Dessa maneira, o governo de Leguía se viu diante de uma dupla oposição: de um lado, o

populismo-nacionalista-reformista (concentrado na APRA) e, por outro, o socialismo

revolucionário (organizado ao redor da figura de Mariátegui e do projeto "Amauta"). Ambas

essas correntes encontravam-se trespassadas pelo indigenismo que representava os primeiros

efeitos das lutas camponesas na consciência social da inteligência peruana.

Em 1928, é fundado novamente o Partido Socialista Peruano, do qual Mariátegui será o

secretário geral. Nesse mesmo ano, tem lugar a greve mineira em Morococha, devido a um

deslizamento provocado pela negligência da empresa exploradora, o qual provoca a morte de

26 trabalhadores. Tem início, aí, a organização da Federação Mineira, outro elemento

influente na organização das massas trabalhadores do Peru.

Todos esses acontecimentos vão marcando uma forma de entender e pensar a realidade

30

peruana, que Mariátegui vai construindo junto a todo um coletivo de escritores, poetas,

políticos, sindicalistas, jornalistas, que vão travando contato uns com os outros em diferentes

momentos, e por diversos motivos, e que expressarão fortemente a contradição colocada nesse

momento: a luta tanto dos proletários quanto dos indígenas, com um forte chamado ao

reconhecimento trabalhista e identitário.

Com essas preocupações, em 1920, Mariátegui parte rumo à Europa por 3 anos e 7 meses,

em uma espécie de exílio, já que o governo Leguía fecha o jornal "La Razón" em maio desse

ano, devido às diversas críticas que eram nele publicadas, em especial um artigo chamado "El

tinglado de la patria nueva" (algo como "As artimanhas da pátria nova"), conjuntamente com

sua participação ativa nas diferentes manifestações sociais. Mariátegui parte convencido de

que Peru exige uma nova linguagem política, as palavras estavam vazias: conservador ou

liberal não queriam dizer nada, e era necessário criar "novos grupamentos capazes de adquirir

uma efetiva força popular" (Mariátegui, 1994u: 2547). Leguía oferece a Falcón e Mariátegui

duas opções: "a prisão ou uma viagem a Europa na qualidade de agentes de propaganda do

governo peruano. Era, na realidade, um exílio dissimulado" (Quijano, 2007: XXXIX).

A passagem de Mariátegui pela Europa – entre 1919 e 1923 – lhe rende um aprendizado

indispensável: o descobrimento das diferenças da América Latina, o que significou explorar o

máximo possível o que esse continente oferecia em matéria de conhecimento, cultura, para

poder estabelecer as leituras de aproximação e diferença entre a América e a Europa. A

maturidade intelectual adquirida por Mariátegui na Europa e a incorporação do marxismo de

maneira mais profunda, foi o que permitiu a Mariátegui formular uma interpretação original

da realidade latino-americana. Suas leituras conseguem não ficar presas a aspectos meramente

econômicos (como sucedia com os intelectuais da II e III Internacional), o que lhe permitiu

pensar a política como uma dimensão organizada da subjetividade, onde os temas culturais

ocupam um lugar destacado. Nesse sentido, um caminho para entender suas formulações

nesse período é sua relação com o surrealismo, sendo que Mariátegui foi um personagem

decisivo na entrada desse movimento21 no Peru. Através de suas leituras de Sorel e Croce,

21 O surrealismo, ao contrário do que se pensa comumente – que se tratava de um movimento literário, artístico – foi, na verdade, "um autêntico movimento de rebelião do espírito e uma tentativa eminentemente subversiva de reencantamento do mundo, quer dizer, o repovoamento do coração da vida humana por momentos encantados apagados pela civilização burguesa" (Löwy, 200b: 9-26). Surge em 1924, com o

31

acaba encontrando um parentesco entre um movimento que reivindica a imaginação e a

espontaneidade criativa, e um continente distanciado do racionalismo e da ilustração (Cf.

Flores Galindo, 1976: 61). É por causa dessa relação do surrealismo e do marxismo e com a

realidade nacional que Mariátegui volta da Europa com uma dupla vertente: a defesa do

nacional e a necessidade do internacionalismo22. É a partir dessas duas visões que se divide a

acusação de Mariátegui de ser, por um lado, "populista" e, por outro, "romântico". Para Löwy

(2005b), poderíamos dizer se tratava de um pensador que se inscrevia em um "romantismo

nacionalista"23, no qual está resgatado o "coletivismo agrário inca" para a introdução do

socialismo no Peru.

Mariátegui publicou três ensaios sobre o surrealismo entre 1926 e 193024, nos quais insiste

não se tratar de um movimento libertário ou de uma moda artística, mas sim de "um protesto

do espírito" (Mariátegui, 1994g: 564) que "denunciava e condenava, em bloco, a civilização

capitalista" (Idem). Pelo seu espírito e sua ação, o surrealismo era um movimento romântico,

mas "pelo seu rechaço revolucionário ao pensamento e à sociedade capitalista, coincide

historicamente com o comunismo, em um nível político" (Idem). Mariátegui assinala como

quatro grupos, quatro revistas – "Clarté", "Correspondance", "Philosophies" e "La Révolution

Surréaliste" – subscrevem em seu momento um manifesto que defendia a revolução: "Somos

Primeiro Manifesto Surrealista, e já no Segundo Manifesto de 1925, Breton afirmava que a dialética hegeliano-marxista se encontrava no coração da filosofia surrealista. Nesse escrito encontra-se já explicitada sua crítica radical à civilização ocidental e à idéia de progresso: "ali onde reina a civilização ocidental, cessaram todos os vínculos humanos, exceto os que têm por razão de ser o interesse, o duro 'salário contado'. Já faz mais de um século que a dignidade humana foi rebaixada ao nível do valor de troca... Nós não aceitamos as leis da Economia e o Valor de Troca, não aceitamos a escravidão do Trabalho" (Idem).

22 São amplos e vastos os debates enfrentados pela esquerda latino-americana sobre o problema do nacional e internacional, os quais, como já vimos e continuaremos a ver, forma caros a Mariátegui e a Caio Prado, em sua relação com a tentativa de dar-lhes uma unidade. A importância dessas categorias no pensamento dos dois tem a ver com a força que guarda, neles, a realidade nacional como fonte para pensar e atuar em processos revolucionários. Ela sempre está sempre demarcada por um contexto internacional, o qual nenhum dos dois perde de vista em nenhum momento.

23 Depois da morte de Marx e Engels, surgem no marxismo duas correntes: "uma evolucionista e positivista para a qual o socialismo era só o coroamento e continuação do desenvolvimento do capitalismo (Plekhanov, Kautsky) e uma outra que se poderia denominar de 'romântica' por sua crítica às 'ilusões do progresso', sugerindo uma dialética entre as formas pré-capitalistas e o futuro socialista (Morris, Bloch, Marcuse, Thompson, o jovem Lukács, Benjamin). Mariátegui se inscreve dentro dessa segunda linha de análise, de uma forma original e em um contexto latino-americano muito diferente do da Inglaterra ou da Europa Central" (Löwy, 2005b: 10).

24 Mariátegui usa o termo "Suprarrealismo" para se referir ao surrealismo. Os ensaios mencionados são: “El Grupo Suprarrealista y Clarté” (Revista Variedades, 24 de julho de 1926); “El balance del Suprarrealismo” (Revista Variedades, 19 de fevereiro e 5 de março de 1930); “El Suprarrealismo y el amor” (Jornal Mundial, 22 de março de 1930).

32

– dizia o manifesto – a revolta do espírito: consideramos a revolução sangrenta como a

vingança inelutável do espírito humilhado pelas obras de vocês. Não somos utópicos:

concebemos essa revolução sob a forma social de vocês" (apud. Mariátegui, 1994g: 565).

Anos mais tarde, num artigo intitulado "O balanço do surrealismo", Mariátegui assinalava

que o suprarrealismo é "um movimento, uma experiência" (Idem) que, por um lado,

reconhece origens românticas, segundo as palavras de André Breton que afirma que "dizemos

que esse romantismo (...) em 1930 é a negação desses poderes [hoje existentes]"25. Ao mesmo

tempo, esse movimento estava comprometido com o "programa marxista" (Idem).

O apelo do surrealismo a uma experiência passada que permite manter uma relação não-

destrutiva com o mundo é o lugar onde podemos inscrever Mariátegui, com seu apelo ao

comunismo inca, à harmonia original com a natureza. A relação de Mariátegui com o

indigenismo pode ser entendida dentro dessa matriz surrealista, a qual permite emprestar à

idéia de socialismo o conteúdo real por ele adquirido na realidade peruana. A idéia surrealista

de um "protesto do espírito" contra o "progresso" da sociedade capitalista possibilitou a

Mariátegui, juntamente com outros elementos, pensar o lugar e a vigência que poderia ter a

atualização das experiências comunitárias camponesas e indígenas para a revolução socialista.

Esse "romantismo" é uma verdadeira "visão de mundo", um estilo de pensamento, uma

estrutura de sensibilidade que se manifesta em todas as esferas da vida cultural. Assim, é

possível definir a "visão de mundo romântica" como uma "crítica cultural da civilização

moderna" (capitalista) em nome de "valores pré-modernos" (pré-capitalistas). Trata-se de um

protesto contra "a quantificação e mecanização da vida, a coisificação das relações sociais, a

dissolução da comunidade e o desencantamento do mundo". Por isso, a visão nostálgica do

passado não significa uma visão retrógrada: "reação e revolução" (Löwy, 2005b: 10) são

aspectos possíveis da visão romântica do mundo: "para o romantismo revolucionário, o

objetivo não é uma volta ao passado, mas um desvio por ele, rumo ao futuro utópico" (Idem).

25 Breton prossegue: "O fato de que ter cem anos de existência é, para ele, estar na juventude, ou o que se chamou equivocadamente de época heróica, só pode ser considerado como o choro de um ser que apenas começa a conhecer seu desejo, através de nós, e, se se admite que o que havia sido pensado antes dele – classicamente – era o bem, esse ser quer incontestavelmente todo o mal" (apud. Mariátegui, 1994g: 568).

33

No livro Por um socialismo indo-americano. José Carlos Mariátegui, Löwy marca que

essa idéia de romantismo já está presente em Marx: "basta ver, por exemplo, sua carta à

revolucionária russa Vera Zassulitsch, de 1881, na qual Marx 'insistia na importância das

comunidades rurais tradicionais – a obshtchina – para o futuro do socialismo na Rússia'. na

sua opinião, a abolição revolucionária do czarismo e do capitalismo nesse país poderia

permitir o retorno (Rückkehr) da sociedade moderna ao tipo de propriedade comunal 'arcaico',

ou melhor, 'a um renascimento do tipo de sociedade arcaica sob uma forma superior'.

Portanto, um renascimento que integraria todas as conquistas técnicas da civilização européia"

(Löwy, 2005b: 9).

O impacto intelectual vivido por Mariátegui em sua passagem pela Europa está

circunscrito num movimento mais amplo vivido pelo ocidente como um todo, de modo que a

"crise da cultura européia" expressa pela Primeira Guerra Mundial é vista por Mariátegui

como uma "crise de civilização", algo que também era visto por outros marxistas da época,

não conhecidos por ele (tais como Ernest Bloch e o jovem Lukács26), o que lhes permitiu

realizar outra leitura do processo histórico, não-evolucionista e não-economicista, a qual

seguramente já havia sido pensada – marginalmente – por Marx.

Para Löwy (1997: 202, 203), o messianismo histórico, ou a concepção romântico-

milenarista da história está em ruptura com a visão do progresso da modernidade e com o

culto positivista do desenvolvimento científico e técnico. "Contribui com uma concepção

qualitativa, não evolucionista, do tempo histórico, no qual a volta ao passado representa o

ponto de partida necessário para o salto em direção ao futuro, em oposição à visão linear,

multidimensional, puramente quantitativa da temporalidade, enquanto progresso acumulativo.

Uma visão crítica da modernidade, da civilização industrial (...) em nome de certos valores

sociais, culturais e religiosos pré-capitalistas, e ao mesmo tempo uma aspiração a um futuro

que não seja a 'novidade' fática da mercadoria – mas um mundo utópico qualitativamente

26 Löwy mostra como, nesse período entre 1909 e 1916, um autor como Lukács faz eco desse pensamento romântico que o autor chama de "anticapitalismo romântico suigeneris", que combina a "problemática da intelligentsia alemã (o desenvolvimento irreversível do capitalismo) com a dos intelectuais húngaros (a estabilidade de uma sociedade ultra-conservadora, feudal e burguesa), numa 'fusão ideológica' extremamente radical com tendências a una coerência trágica” (Idem: 101). Esta visión recibió el impacto del advenimiento de la Primera Guerra Mundial (1914-1918), con su cortejo de crímenes y miserias, que acabó politizándola en un “antimilitarismo que era apenas a conseqüência lógica do anticapitalismo” (Idem: 118).

34

distinto, com uma distância absoluta em relação ao estado de coisas existente."

Esses fatores permitirão a Mariátegui realizar uma síntese entre sua experiência anterior (o

Peru do início do século XX) e os caminhos abertos para a sociedade peruana no momento

histórico do pós-guerra.

A Primeira Guerra Mundial representa, em Mariátegui, da mesma forma que para os

movimentos surrealistas, românticos, a linha de demarcação que separa as ilusões positivistas

do brusco despertar da violência. Assim, tanto "El alma matinal" quanto as "Cartas de Italia"

se concentram fortemente na descrição e análise da brutalidade com que se expande o

capitalismo no século XX. A Primeira Guerra Mundial "fraturou e modificou não apenas a

economia e a político do Ocidente" (Mariátegui, 1994f: 495), mas também sua "mentalidade e

espírito" (Idem). A idéia de progresso foi erguida sobre um "respeito supersticioso" (Idem),

onde a humanidade parecia haver encontrado uma "via definitiva" (Idem). Conservadores e

revolucionários aceitavam praticamente as conseqüências da tese evolucionista: "ambos

coincidiam na mesma adesão à idéia de progresso e à mesma aversão à idéia de violência"

(Idem) 27. Diante da idéia de um progresso irrestrito, a primeira guerra veio pôr sobre a

sociedade ocidental a marca da violência como necessidade do capital. Essa marca não é nova

na história do capitalismo (recordemos a conquista da América e tudo que significou a

Acumulação Primitiva assinalada por Marx no Capital), mas, como registra Mariátegui, essa

violência traz outras marcas que traçarão as novas modalidades a serem adquiridas nessa nova

fase. Diferentemente das outras guerras, que eram impulsionadas por motivos limitados e

concretos, a primeira guerra teve a inovação de perseguir objetivos ilimitados. Na era

imperialista, produziu-se a fusão da "política e da economia: a rivalidade política

internacional se estabelecia em função do crescimento e da competitividade na economia, mas

o que mais a caracterizava era que não tinha limites. As 'fronteiras naturais' da Standad Oil, do

Deutsche Bank, ou da De Beers Diamond Corporation se situavam nos confins do universo, 27 Mariátegui cita o crítico italiano Adriano Tilgher que diz: "Produto de uma civilização muitas vezes secular,

saturada de experiência e reflexão, analítica e introspectiva, artificial e livresca, essa geração crescida antes da guerra teve que viver em um mundo que parecia consolidado para sempre e assegurado contra toda possibilidade de mudanças. E se adaptou sem esforço a esse mundo. Uma geração toda nervos e cérebro gastos e cansados pelas grandes fadigas de seus genitores: não suportava os esforços tenazes, as tensões prolongadas, as sacudidas bruscas, os rumores fortes, as luzes vivas, o ar livre e agitado: amava a penumbra e os crepúsculos, as luzes doces e discretas, os sons apagados e distantes, os movimentos mesurados e regulares. O ideal dessa geração era viver docemente" (1994f: 495-496).

35

ou seja, nos limites de suas capacidades de se expandirem" (Hobsbawm, 2007: 37-38).

O advento do fenômeno fascista marca um novo momento nesse marco de violência, que

significará, na leitura de Mariátegui, a perda das conquistas realizadas pela civilização

ocidental. Na ausência da "superstição do progresso", foram testemunhas, depois da guerra,

de que "à humanidade ainda podiam abater-se fatos superiores às previsões da Ciência, ou

contrários ao interesse da civilização" (Mariátegui, 1994f: 495-496). A esse ocaso da

civilização burguesa sobreveio o fascismo como resposta à Revolução Russa e como forma de

"normalização" das sociedades que se perderam com a guerra e com a Revolução de 1917.

Uma tensão se expressa em Mariátegui ao longo de seus ensaios sobre a "idéia de

progresso": por um lado, positiva-o, vendo nele a possibilidade de uma revolução na América

Latina. Por outro lado, percebe através da lente de Sorel as "ilusões de progresso" da

sociedade ocidental, as quais acabam desfazendo-se com a Primeira Guerra. É uma tensão

vivida pela intelectualidade nesse momento na Europa: absorta pelo avanço da violência,

encontra-se em um ponto de inflexão com respeito a essa idéia.

A vinculação da economia capitalista com a economia de guerra é uma relação intrínseca

ao capital, sua expansão está baseada na força das armas. O impacto da Primeira Guerra foi

um divisor de águas no pensamento crítico ocidental, e Mariátegui não é estranho a esse

debate, e percebe que "dentro do regime capitalista, a guerra está em permanente incubação"

(Idem: 855). A partir dessa idéia, o autor elabora extensas críticas à atitude oficial tomada pela

Segunda Internacional de participar na guerra e, lamentando que o movimento revolucionário

internacional tenha pouco de Rosa Luxemburgo e de Lênin, já que a consigna destes era:

"'Caso estoure a guerra, os socialistas estão obrigados a trabalhar para seu fim rápido e utilizar

a crise econômica e política provocada pela guerra para sacudir o povo e acelerar a queda da

dominação capitalista'" (apud Mariátegui, 1994j: 852). Em um amplo debate com a

Internacional, e dedicando vários ensaios a analisar tanto a Primeira Guerra como o fenômeno

do fascismo, muito mais que a revolução russa, denuncia essa adesão à guerra como um erro

de leitura a respeito de qual é a necessidade da burguesia e como ela incorpora o proletariado

no poder para lhe assegurar um lugar nas filas do exército: "subsidiava as famílias dos

36

combatentes, oferecia o pão a preço baixo, subvencionava amplamente a indústria, trabalho

abundante, adormecendo as massas com a idéia de luta de classes. Tudo isso teve a grande

adesão do proletariado", o que fez com que, durante seis anos, os trabalhadores se matassem

uns aos outros, e fracassasse a Segunda Internacional.

É perceptível o temor que provocava a Mariátegui a propagação do fascismo como uma

nova forma adquirida pela violência no capitalismo. Não apenas se dedica a analisar o

fenômeno durante sua estadia na Itália, como também, ao regressar, tenta leva essa história

que a Europa está vivendo para o conhecimento das massas trabalhadoras. Não abandona essa

preocupação ao longo daqueles sete anos, sendo que, ao retornar, sente-a com ainda mais

força, de modo que, com o tempo, se lhe impõe a necessidade da organização de massas no

Peru, como resposta para aquele temor: a consolidação de um partido que permita dar um

salto antes da chegada dos novos aparatos de violência implementados no ocidente. Não

encontramos em seus ensaios nada que signifique uma quebra dessa tensão relativa à idéia de

progresso, nem com a idéia de organização. Essa quebra não é possível, na medida que há um

avanço do pensamento de integração das massas indígenas às massas revolucionárias, há um

aumento da contradição sobre a violência causada pelo progresso imposto violentamente nas

colônias. E, por outro lado, não deixam de funcionar formas atrasadas que sirvam também em

função desse progresso. A incorporação da forma de produção e reprodução da "comuna

incaica" em um processo de modernização acelerado, é um problema ao qual Mariátegui não

encontrava resposta. A tensão não foi solucionada, porque o próprio movimento das massas

ainda não resolvia o problema da integração: campo-cidade, indígenas-trabalhadores. Existe

clareza a respeito da necessidade dessa integração, a necessidade de multiplicar essas massas,

que estranhamente não caracteriza como "trabalhadores", propondo incorporá-las a um

proletariado incipiente. A contradição, para Mariátegui, está em como construir um projeto

onde se incorpore todas as massas populares, de tal modo que elas mesmas consigam guardar

as particularidades de suas lutas. Esse problema continua vigente até os dias de hoje.

Um aspecto importante que merece muita atenção nessa idéia de como seria o socialismo

indo-americano é que Mariátegui ressalta que o mesmo não é uma "etapa superior" da história

universal, resultado do desenvolvimento capitalista. O socialismo aparece como uma

37

alternativa de práxis a ser permanentemente atualizada, e o devir da organização de massas é

o que delineará seu porvir.

Algumas das críticas dirigidas a Mariátegui vêem uma tentativa de "espiritualização do

marxismo", o que, na verdade, poder-se-ia entender como "o problema ético-moral que

enfrenta o materialismo". Sem uma estrutura de conceitos filosóficos sólidos, e sem uma

sistematicidade na exposição desses problemas, Mariátegui está guiado por uma intuição

certeira: "o lugar da práxis na determinação da história" (Quijano, 2007: LXV).

A práxis passará, assim, a ocupar o centro dos debates, passará a ser o centro dos

problemas colocados para o marxismo latino-americano. Essa práxis que guarda uma íntima

relação com a ação dos condicionamentos objetivos, bem como com a ação consciente: "é na

luta de classe onde residem todos os elementos do sublime e do heróico de sua ascensão, o

proletariado deve elevar-se a uma 'moral de produtores', muito distante e muito diferente da

'moral dos escravos' a qual seus professores gratuitos de moral oficiosamente se empenham

em incutir neles, horrorizados com seu materialismo" (Mariátegui, 1994m: 1308).

Essas são as tendências entre as quais Mariátegui desenvolve sua visão e sua análise sobre a

América Latina, e a possibilidade de um socialismo indo-americano. Quando retorna da Europa 28, com

uma bagagem cultural muito mais ampla que a que tinha antes de partir, com a tenção entre o nacional

e o internacional, a qual não dizia respeito senão a contradições próprias da realidade, percebe que não

apenas existem problemas na radicalidade da crítica à sociedade em que vive, mas também que é

preciso criar, sem deixar de recuperar o já existente, novas formas que permitam expressar essa crítica.

É por esse caminho, e também devido a uma formação não universitária e um passado de jornalista,

que utiliza o ensaio como forma de expressão na qual envolve um amálgama de dados, reflexões,

conteúdos teóricos e ficção, mostrando uma unidade entre todos esses elementos29. Mariátegui

28 É importante ressaltar o assinalado por Quijano, a existência de duas etapas depois de seu regresso. Na primeira, de 1923 a 1928, Leguía já define um governo despótico e totalmente aliado ao imperialismo norte-americano. Haya constitui o APRA e convida Mariátegui a participar da direção da revista Claridad. Em 1924, é preso por seus contatos com trabalhadores e sua participação em sua organização. A segunda etapa vai desde 1928 até sua morte, em 1930. Aí se desenvolve a maturação de seu pensamento político, bem como da organização das massas (C.f. Quijano, 2007: XLVI-XLVII).

29 Horacio Gonzáles assinala que "o ensaio é o estilo da visão moral contrariada que se impõe no mundo. Está sempre em estado de ebulição ou pesadelo, de chamamento e de inquietude. Põe os sujeitos em um problemático 'coletivo moral' que lhes pode revelar suas liberdades, mas também pode obscurecer os caminhos da compreensão. Por isso mesmo, tanto por suas virtudes quanto por suas abdicações, foi combatido pelas correntes científicas. Estas, sem ter a precaução de criar os passos necessários para não

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imaginou a necessidade de produzir um romance para entender a realidade peruana. Em todo caso,

acabou utilizando como meio de aproximação à realidade peruana um gênero localizado a meio

caminho entre a ficção e o estudo erudito: o ensaio (Flores Galindo, 2008: 3).

Para Caio Prado, no Brasil, as influências e os acontecimentos mundiais não foram muito

diferentes: a diferença está, sim, na maneira como se processam socialmente esses fatos.

No Brasil, um forte crescimento no movimento operário tem lugar, como efeito da

Primeira Guerra Mundial, o qual provocou um explosivo desenvolvimento da indústria, e a

criação da Companhia Siderúrgica Mineira em 1917, o que faz surgir, com maior poder

político, todo um grupo representante da indústria, em um claro enfrentamento com a

oligarquia rural dominante até o momento. Assim, entre 1907 e 1920, "o proletariado

brasileiro quase se duplicou, e o número de estabelecimentos fabris quase triplicou" (Konder,

1988: 124). Para o movimento de massas, isso se apresentou como um grande desafio. Em

1919, o movimento operário realiza 37 greves no Estado de São Paulo, mas sofre uma

retração devido à grande repressão. A Revolução Russa também se fez sentir nesse

movimento e, em 1919, cria-se o Partido Comunista, com orientação anarquista, mas que em

algumas ocasiões fazia concessões à Revolução Russa. Dirigido por Astrojildo Pereira Duarte,

o anarco-comunismo durou pouco tempo, devido a divergências internas. Assim, em 1922, é

fundado o Partido Comunista.

As primeiras leituras de Marx que se realizam no Brasil ocorrem dentro do Colégio Pedro

II, em 1908, por Farias Britos e Euclides da Cunha. Antes deles, são os anarquistas imigrantes

que trazem as idéias socialistas para o interior das diferentes expressões populares que

surgiam ao fim do século XIX e princípios do XX. Em 1906, realiza-se o I Congresso

Operário no Rio de Janeiro, onde são vitoriosas as teses anarquistas que negam qualquer

apoio ao Estado. Iniciava-se, assim, o movimento social brasileiro, com um proletariado

cindir conhecimento e expressão (ou compreensão e linguagem), se dedicaram a desprestigiar as ações e torções do ensaio que constituía parte da histórica cultural nacional, em nome de técnicas precisas de medição, inspiradas em uma idéia acrítica de modernização surgida de realidades políticas que os novos cientistas supunham que não necessitassem auto-reflexão" (1999: 9-10). É interessante recuperar essa idéia sobre o ensaio, sobre essa "visão contrariada", essa visão incômoda, que se constitui como uma forma de expressão rica e inovadora, porque permite trazer outros elementos que não poderiam ser colocados por um pensamento formado apenas nos âmbitos acadêmicos.

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incipiente já concentrado nos grandes centros urbanos. Os anarquistas conseguiam ser mais

numerosos que os socialistas chamados democráticos ou reformistas: aqueles eram mais

agitadores, e ofereciam aos trabalhadores a esperança de um mundo melhor, sem classes, sem

governo, sem patrões, sem mi´seria. Em 1903 é fundada a Federação das Associações de

Classe no Estado do Rio de Janeiro a qual, em 1906, passou a chamar-se a Federação

Operária Regional Brasileira, a qual convoca o I Congresso Operário Brasileiro, realizado na

capital federal em 1906, cuja condução foi disputada por anarquistas e reformistas. Em 1913,

é realizado o II Congresso Operário Brasileiro.

Na primeira década do século XX, os trabalhadores protestaram contra o militarismo e a

guerra, e com a guerra declarada se uniram em comícios de protesto, contra a entrada do

Brasil no conflito e contra o alistamento militar.

Com a Revolução Russa de 1917, se instala concretamente um Estado Socialista, e as repercussões

no Brasil foram enormes. Os anarquistas, num primeiro momento, saúdam a revolução como uma

vitória do seu credo, mas rapidamente passam a atacá-la. O impacto da revolução em toda América

Latina acelera os processos que vinham sendo desenvolvidos dentro dos movimentos sociais formados

nas duas primeiras metades do século XX.

Em 1926, Octavio Brandão se aventura a realizar a primeira análise marxista da história e da

realidade brasileira com "Agrarismo e industrialismo", mas a obra não chega a ser o que o autor

esperara: o resultado é um livro "sectário, apaixonado" (Cf. Moraes Filho De, 1991), que tenta aplicar

a dialética marxista à sociedade brasileira girando em torno da dicotomia "centralização-

descentralização" (Idem). Essa interpretação do Brasil só terá lugar mais tarde com Caio Prado.

Apesar da criação do Partido Comunista em 1922, o conhecimento da obra de Marx no Brasil só tem

lugar depois de 1930 (idem).

Junto ao ingresso das idéias anarco-sindicalistas e socialistas, se dá, ao mesmo tempo, um

processo mais geral, conforme chamávamos atenção em parágrafos anteriores, o qual tem

lugar em toda América Latina, com o desenvolvimento do movimento modernistas que, assim

como no Peru, terá enorme impacto no Brasil.

As vanguardas literárias e artísticas brasileiras (e de outros países da América Latina) da

40

década de 1920 permitem um cotejo dos rasgos estruturais derivados dos surgimento do

campo intelectual nesses países "novos" da periferia capitalista. Segundo Miceli (2010: 490),

devido às imposições externas à atividade criativa, o cenário cultural que então se constituía

em nosso continente se baseou em um ordenamento radicalmente distinto no que tange aos

laços entre condições sociais e rasgos singulares do campo em gestação: "essa experiência

histórica afetou totalmente o imaginário criativo plasmado pela reinvenção característica do

trabalho intelectual desenvolvido pelos líderes daqueles movimento" (Idem).

Miceli (2010: 494) observa que a atividade literária na maioria desses países colonizados

dependia da dádiva e das proteções concedidas pelos grupos que possuíam o poder econômico

e político. Assim como não é possível dissociar os textos de Sarmientos, Alberdi, Mitre e

Hernández das aflições do exílio, dos diagnósticos conflituosos sobre o regime de Rosas, dos

projetos de reforma do país, tampouco podem desvincular-se os escritos de Alencar, Nabuco e

Oliveira Lima dos desafios e dos impasses que enfrentariam no desempenho de suas funções

públicas, desde o regime monárquico até o período republicano. As realizações intelectuais

modelares de Machado de Assis e de Leopoldo Lugones, além das diferenças de linguagem e

gênero, pareciam valer-se das energias suscitadas pela irrupção de uma atividade autoral mais

ousada em meio à teia de vínculos que envolviam os diferentes círculos e fraciones da classe

dirigente. Essa camada intelectual, empregada na política, estava comprimida entre o chicote

do trabalho por encomenda e o desafio de uma obra expressiva autônoma. Por conseguinte,

todos os representantes dessa autonomia e da capacidade de invenção dependeram de recursos

das entidades públicas com inserção estratégica no âmbito cultural – como, por exemplo, a

universidade, o principal sustentáculo da atividade intelectual no Brasil desde meados do

século XX.

Até o momento da eclosão das vanguardas, as sucessivas gerações de intelectuais

dividiam seus esforços entre a escrita e a atividade política, às vezes limitada à colaboração na

imprensa, e, ao mesmo tempo, reagiam diante das mudanças e propostas que surgiam na

metrópole européia.

À medida que se desenvolvem movimentos mais vinculados à Arte, nucleados na Semana

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Modernista de São Paulo, e o Movimento Regionalista de Pernambuco, existia também uma

inquietude no setor político e militar, produzindo as revoltas de 5 de julho de 1922 e a de 5 de

julho de 1924. Essas revoltas continuaram sendo produzidas até 1927 pela Coluna Prestes.

Formaram-se dois grandes grupos de intelectuais: o primeiro com uma visão inclinada ao

"fascismo e à consolidação do domínio da oligarquia", e outro grupo se aproximava com a

intenção de realizar uma análise da "realidade brasileira à luz do pensamento marxista"

(Correia de Andrade, 1989: 358-359). É nesses anos que se estabelecem as bases de um tipo

de pensamento que já não é importado da Europa ou dos EUA, mas que permite abrir novas

perspectivas, inquietudes e interrogações sobre a própria constituição nacional e regional.

Segundo Miceli (2010: 497) a irrupção criativa no Brasil da primeira geração modernista

deveu-se, sobretudo no começo, às rivalidades e aos enfrentamentos entre as forças políticas

representativas das elites regionais. Em São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, a crise

aguda do poder oligárquico na década de 1920, em luta com facções dissidentes, ao que se

somavam as rebeliões dos oficiais militares descontentes, modificou de maneira drástica os

modos de colaboração da nova geração de intelectuais com os donos do poder político. "Os

escritores modernistas começaram suas carreiras como quadros dos partidos republicanos

estaduais e dos respectivos órgãos de imprensa, o que os fez tributários das palavras de ordem

com as quais foram socializados e, ao mesmo tempo, lhes proporcionou uma sensibilidade

aguda para perceber as oscilações no prestígio de seus mentores que podiam afetar seu destino

temporal. Nenhuma artimanha estetizante será capaz de afastar essas origem" (Idem: 498).

Assim, por um lado, constituiu-se a "Frente Modernista Paulista", a qual, devido à

incompetência política entre os grupos de dirigentes paulistas, impulsionou a criação do

Partido Democrático, assim como o controle do diário "O Estado de São Paulo" e a "Revista

do Brasil" por parte de uma fração especializada de empresários culturais. Em Minas Gerais,

o círculo modernista, liderado desde o começo por Carlos Drummond de Andrade (1902-

1987), floresceu sob a sombra do Partido Republicano Mineiro. Alguns dos integrantes do

círculo trabalharam na redação do Dário de Minas, órgão oficial da agrupação partidária, em

cujas oficinas se fazia o periódico literário do grupo, "A Revista", editado na Imprensa Oficial

do estado, selo de quase toda a literatura da época. "Os modernistas de Minas Gerais

42

pertenciam a uma geração de gente do interior proveniente do mesmo estrato social dos

"fazendeiros do ar", segunda a expressão de Drummond: quer dizer, os fazendeiros cujas

famílias haviam perdido suas terras, e tinham que dirigir as expectativas de seus herdeiros

para o trabalho intelectual" (Idem: 498).

Por outro lado, Augusto Meyer (1902-1970), Raúl Bopp (1898-1984) e outros escritores

gaúchos dessa geração também procuraram compatibilizar o trabalho intelectual com as

ocupações de funcionários graduados. Depois do período probatório de colaboração com os

dirigentes oligárquicos no âmbito estadual, "gaúchos e mineiros" foram atraídos pelo governo

Vargas, que lhes ofereceu posições destacadas nos altos escalões do serviço público federal.

No Rio de Janeiro, a geração chamada "'modernista', devido à sua amnésia frente à

história literária, constituía um grupo significativo de escritores que haviam estreado na chave

simbolista ou 'penumbrista', alguns deles muito antes de 1922" (Idem: 499). Ronald de

Carvalho (1893-1935), Gilberto Amado (1887-1969), Manuel Bandeira (1886-1968),

Prudente de Morais Neto (1904-1977), Murilo Mendes (1901-1975), Alceu Amoroso Lima

(1893-1983), entre outros.

A trajetória intelectual e profissional dos jovens modernistas brasileiros, incluindo a dos

mais favorecidos, como Oswald de Andrade, foi sendo moldada em meio a uma série de

circunstâncias político-institucionais regionais, em função do grau variável de diversificação e

de abertura dentro do comando das forças oligárquicas. Essas mediações locais permitem

estimar os complexos viveiros de experiências pelas quais transitaram os modernistas

brasileiros, os quais, na passagem da província para a capital do país, conseguiram consolidar,

ao mesmo tempo, uma posição funcional e o reconhecimento literário, na órbita dos círculos e

anéis burocráticos controlados por seus protetores políticos (C.f. Idem: 499).

Da mesma forma que a maioria dos modernistas latino-americanos do momento, as

primeiras atividades profissionais dessas figuras de vanguarda foi produzida na imprensa, o

único espaço capaz de garantir empregos e salários adequados em troca de uma produção

literária autoral, cujos temas e estilos, entretanto, ficavam restritos aos padrões jornalísticos.

43

A formação de Caio Prado ocorre prematuramente, em meio a esse processo de

constituição de um campo intelectual crítico às antigas estruturas coloniais e que, ao mesmo

tempo, se instalava dentro das próprias lutas de camponeses, as quais se sucediam nesse

momento, influenciadas pelo surgimento do pensamento anarco-socialista da época. Mais

tarde, Caio Prado publicará sua primeira obra, numa tentativa de interpretar o Brasil como

produto da colônia, dentro de uma visão marxista. Em 1933, publica seu primeiro livro,

"Evolução política do Brasil", numa leitura crítica sobre o desenvolvimento brasileiro,

buscando as causas de seus presente, em seus antecedentes coloniais. Esse primeiro período

de produção se estende até a publicação, em 1942, de Formação do Brasil Contemporâneo,

onde se aprofunda e se estende essa preocupação, dando uma explicação inovadora para todo

o pensamento latino-americano sobre a não-existência de restos feudais na conformação da

América. É uma obra que sedimentará uma linha de análise que provocará importantes

debates, e na qual Caio Prado mostra, com a análise de inúmeros dados, a necessidade de

entender a conformação das realidades periféricas na expansão capitalista. Dessa maneira, era

possível entender esse processo mais geral que fugia dos parâmetros do marxismo oficial

instaurados pela III Internacional30. Com a criação da "Revista Brasileira", se realiza uma

proposta muito mais programática, de estratégia, baseada em suas análises anteriores, e

enfrentando as teses defendidas pelo PCB nesse momento. Historicamente, tem sido difícil

explicar o grau de autonomia que Caio guardou em relação ao PCB, por um lado por

pertencer à geração da década de 1930, que surge quando a universidade ainda não estava

consolidada no Brasil – diferentemente do resto da América Latina, que já havia sido cenário

da Reforma Universitária de 1918 –, por outro lado ganhou-se um respeito importante por

parte do PCB, como intérprete e analista do Brasil contemporâneo.

Fernando Henrique Cardoso (1993: 22) assinala que Gilberto Freyre, com Casa grande e

senzala (1933), Sérgio Buarque de Hollanda, com Raízes do Brasil (1936) e, mais tarde, Caio

Prado Jr., com Formação do Brasil Contemporâneo (1942) foram básicos para a geração de

Antonio Candido, formando os três pilares fundamentais do pensamento brasileiro até esse

momento. Embora se tratassem de autores com contribuições muito diferentes umas das

outras, os livros escritos por eles surgem da motivação de entender o Brasil.

30 Tema a ser tratado no ponto seguinte.

44

Até a década de 1930, nas intepretações do Brasil havia um forte predomínio das idéias

anti-liberais. Os grandes autores eram Oliveira Viana e Alberto Torres, e depois Azevedo

Amaral. Segundo Fernando Henrique Cardoso (1993: 24), Gilberto Freyre introduz na

literatura sobre o Brasil a vida quotidiana, a família, a cozinha, a vida sexual, os maus-

hábitos, os bons. Esse autor descreve uma história social, às vezes idealizada, mas sua

referência analítica é sempre a dos aspectos antropológicos do quotidiano.

Sergio Buarque de Hollanda, conforme observa Cardoso, é um pensador democrata,

perguntando-se sobre a possibilidade de construir uma sociedade mais democrática: "o que

podemos fazer para construir uma sociedade mais democrática? Uma sociedade que ao invés

do personalismo e do caudilhismo permita o acesso de todos às oportunidades existentes, que

tenha regras gerais, como na democracia?” (Buarque de Hollanda apud Cardoso, 1993: 29).

Segundo Menegat (2008a), Sergio Buarque mostra, em Raízes do Brasil, como se dá, de

maneira concreta, o processo dialético de progresso-atraso na periferia do capital.

Em Caio Prado, já se econtram outras raízes intelectuais. Formado irregularmente na

Universidade de São Paulo, conviveu com os primeiros professores franceses que

administraram aulas, sendo alunos de Lévi-Strauss, Deffontaines, considerado o pai da

geografia humana moderna. Dessa menria, Caio Prado consegue descrever a colônia dos

portugueses fundando-se sempre nas análises sobre o meio físico e os processos de exploração

econômica, as formas históricas de organização do trabalho e da sociedade.

O interessante desses autores é que, no fundo, buscaram dar uma resposta à questão da

identidade como brasileiros, sobre as condições da história e as alternativas para o futuro do

Brasil. São, segundo Cardoso (1993: 34), um exemplo de paixão pela busca do "ser nacional"

ou da "sociedade nacional". Em paralelo com as preocupações modernistas, esses autores, por

diferentes caminhos, enfrentam um passado oligárquico, numa tentativa de entender como foi

construído esse projeto nacional, e quais seriam os desafios para modificá-lo. É uma busca

por uma explicação local da realidade periférica.

45

1.3 A III Internacional e sua Stalinização – América Latina

A III Internacional surge como corolário da Revolução Russa de 1917. Criada em 1919 e

dissolvida em 1943, apresentava uma forte crítica e rechaço às concepções da II Internacional.

Em suas "21 condições para a admissão", insistia-se em uma "completa ruptura com o

reformismo e as políticas centristas", e com os dirigentes que com elas se identificavam. Os

Partidos Comunistas eram definidos, nesse documento, como uma "compacta organização da

elite da classe operária", a qual havia reunido em suas fileiras "os defensores mais corajosos,

lúcidos e avançados da classe operária". Com o colapso da II Internacional na primeira guerra

mundial, Lênin desenha, em 1915, a base programática de um novo tipo de partido, em escala

internacional, e que seguiria o exemplo bolchevique. Com o triunfo da Revolução Russa em

1917, se estabelecem as bases para a propagação desse modelo e a criação da III Internacional

Comunistas (C.f. Johnstone, 1985: 13-41). A III Internacional nasce com uma forte carga

ideológica, atribuindo-se explicitamente a função de preservar o patrimônio do marxismo

contra a degeneração e a corrupção à qual este foi submetido na época da II Internacional. Por

isso, a luta ideológica se define como fundamental na luta de classes. O forte peso dado à

estratégia acabou empobrecendo a teoria, e a genialidade e profundidade da estratégia de

Lênin, e o êxito alcançado pelos bolcheviques em 1917, atuaram como freio para

subseqüentes desenvolvimentos teóricos (C.f. Hobsbawm apud. Agosti; 1985: 139)31.

A partir de 1930, as idéias gestadas nos primeiros 30 anos do século XX na América

Latina começam a tomar diferentes rumos. A morte de José Carlos Mariátegui marca, no Peru,

31 Agosti pensa que a teoria na III Internacional cumpre o papel, por um lado, de legitimar racionalmente a perspectiva da inexorabilidade da revolução e, por outro lado, é um elemento determinante para distinguir entre o movimento revolucionário e todos os seus adversários. Dessa relação dupla e contraditória com a teoria, três fases podem ser identificadas: "a) a primeira estaria situada entre a criação da III Internacional e a morte de Lênin, que se caracteriza por um peso importante do debate teórico e uma vinculação com o marxismo originário de Marx e Engels; b) numa segunda fase compreendida entre 1924 e 1929 se sistematiza de maneira dogmática o chamado 'leninismo' denominado como o 'marxismo da época do imperialismo e da revolução proletária'. A figura teórica perde distância; c) a terceira vai de 1929 até sua dissolução, e nela se plasmam as bases forjadas na fase anterior, mas com um endurecimento dogmático ainda maior. Desaparece quase por completo um desenvolvimento crítico dentro do marxismo, e o que consegue sobreviver nasce fora da ideologia da III Internacional (dentre eles, citamos a Escola de Frankfurt, as reflexões solitárias de Karl Korsch, as elaborações de Trotski no exílio). É um período que freqüentemente se denominou stalinista, onde a teoria não é uma guia para a ação, e sim uma justificação posterior da própria ação" (1985: 140-145).

46

uma forte divisão nos setores da esquerda e a fundação do Partido Comunista32, o qual retoma

as ideias de Mariátegui de uma maneira tal que permitia a legitimação das diretrizes da III

Internacional na América Latina. Esse foi o primeiro passo de um processo de "desativação"

do pensamento crítico iniciado por Mariátegui, e que se viu refletido no marxismo oficial que

se desenvolveu na segunda metade do século XX.

Depois da morte de Mariátegui, se inicia um processo de degradação do pensamento

marxista latino-americano, o qual durará várias décadas. Em 193633, o processo de

stalinização dos partidos comunistas, que se desenvolve de diferentes maneiras e de formas

contraditórias a partir do final da década de 1920, nesse ano já estava completo e cristalizado.

Com a ideia de "stanilização", o que se quer designar é a criação de partidos enquanto

aparatos dirigentes – hierárquicos, burocráticos e autoritários – intimamente relacionados com

a liderança da União Soviética, seguindo fielmente os passos de sua orientação internacional

(C.f. Löwy, 2006a: 27).

A imposição de um regime policial de grande ferocidade que levou à consolidação de um

estado burocrático sobre a classe operária na URSS levaria a uma separação irreconciliável

entre teoria e prática dentro do partido bolchevique. Seus movimentos de base foram varridos,

extinguindo a autonomia e a espontaneidade dos mesmos. O marxismo foi reduzido a uma

32 Mariátegui se opôs à criação do Partido Comunista durante todos os seus anos de militância na esquerda peruana, e por isso propõe a criação do Partido Socialista, que, após sua morte, é transformado em Partido Comunista. Para Mariátegui, a criação do Partido segundo as diretrizes da III Internacional significava uma cisão nos movimentos de esquerda em Peru, o que não ajudaria em nada a construir uma luta conjunta. Ao mesmo tempo, rechaça a proposta de Haya de la Torre de ser parte da fundação do APRA.

33 Com a Primeira Conferência Comunista Latino-Americana de 1929 (à qual Mariátegui não consegue assistir), se inicia o chamado "Terceiro Período do Comintern". Enquanto certos partidos latino-americanos seguiram as orientações ortodoxas do Terceiro Período, outros receberam rumos esquerdistas para suas próprias inclinações autônomas. Esse foi o caso de El Salvador, com Agustín Farabundo Martí como líder, que, em 1932, organizou a primeira – e única – insurreição em massa na história da América Latina a ser liderada por um Partido Comunista. Diante do encarceramento dos principais líderes do movimento, realiza-se uma insurreição camponesa (indígena) de "soldados vermelhos" que, segundo documentos da própria insurreição, chegavam a 40 mil combatentes. Por carecer de uma coordenação político-militar centralizada, as insurreições locais foram asfixiadas naquilo que se convencionou chamar, na história salvadorenha, de "La Matanza". Durante semanas o exército fuzilou, assassinou, destruiu povoados inteiros, executando cerca de 20 mil homens, mulheres e crianças nas regiões vermelhas. Depois dessas jornadas, os líderes Farabundo Martí, Luna e Zapata foram executados. Segundo Miguel Mármol, único líder sobrevivente do massacre, as decisões dessa insurreição foram tomadas pelo Partido Comunista Salvadorenho, sem nenhuma intervenção da III Internacional. As críticas por parte dos Partidos Comunistas latino-americanos do evento de 1932 ratificam a nova orientação que os Partidos receberiam a partir da Primeira Conferência de 1929 (Cf. Löwy, 2006a: 22-23).

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simples lembrança, e o materialismo histórico se converteu, em menos de uma década, em um

corpo teórico estancado e semi-analfabeto.

Nos anos de consolidação do processo de "stalinização", mais precisamente em 1935,

sucede um fato significativo não apenas par a esquerda brasileira (já que a revolta foi

realizada no Brasil), mas também para a esquerda latino-americana. Segundo Caballero

(1988: 163), este fato foi relevante muito mais devido a suas várias significações do que pelos

fatos em si. Trata-se da "intentona comunista", como foi conhecido o levantamento de

novembro de 1935. Sua base foi um levante de guarnições militares que logo vieram a ser

apoiadas pelo Partido Comunista Brasileiro. A rebelião foi rápida e facilmente derrotada pelo

governo de Getúlio Vargas, o qual, após esse episódio, teve as razões legítimas para perseguir

e reprimir socialistas e comunistas, tivessem ou não participado do processo.

Esse "pronunciamento", como denomina Caballero, foi importante na história do

Comintern na América Latina34, mas sua importância não termina aí. Está dada, também,

desde o ponto de vista da "tática e do programa da Internacional como um todo", sem falar

dos recursos comprometidos por ela na aventura de 1935. Esse evento marca o advento de

uma atitude política que, nos períodos seguintes, caracterizará os comunistas latino-

americanos: "preferirão sistematicamente uma aliança com uma forte personalidade, antes de

um partido político organizado que pudesse propor ou, pior ainda, impor táticas

independentes a uma liderança diferente e permanente sobre a aliança (ou 'frente')"

(Caballero, 1988: 163).

A revolução de Prestes e o Partido Comunista pareciam contradizer praticamente todas e

cada uma das novas proposições políticas feitas pelo Comintern. A Frente Popular baseava

34 Desde o princípio da história do Comintern, criado em 1919, assistiu-se mudanças sucessivas de táticas, mudanças de política, como apenas "períodos" no desenvolvimento da um mesmo processo e de uma simples tendência geral que conduzia ao triunfo da revolução proletária mundial. Essa divisão de períodos não respondia claramente a uma significação teórica, mas uma significação política. Assim, depois de um período de guerras e revoluções que termina em 1921, o capitalismo entra em um período de "estabilização", o qual não podia durar muito, já que o sistema capitalista, mais cedo ou mais tarde, fecharia seu "terceiro período". Seria esse terceiro período o último do capitalismo? Seria ele encerrado com o triunfo da revolução mundial? Uma resposta afirmativa estava implícita na idéia de um "terceiro período" que seguisse ao de "estabilização". Não obstante, o "segundo período" se revelou mais longo do que as predições da posição oficial. É por isso que a chegada do "terceiro período" serviu de fronteira para dividir o Comintern em esquerda e direita (Cf. Caballero, 1988: 38).

48

sua tática na idéia de ampliar as alianças dos partidos comunistas, primeiramente com os

partidos da classe trabalhadora, em seguida com as classes médias e, ao fim, inclusive com o

setor antifascista da burguesia. Mas, no Brasil, a Aliança Nacional Libertadora (ANL) deu a

impressão de seguir o curso diametralmente oposto. Ou seja: ela desfez o caminho desde uma

audiência (para não falar de influência) relativamente ampla, desde um controle estrito do

Partido sobre a supracitada Aliança, até o momento em que a Aliança funciona como disfarce

do partido. A Frente Popular fazia crer que os comunistas haviam passado do aventureirismo e

da impaciência revolucionária, a conspiração de pequenas seitas, até uma política de trabalho

paciente, longa, entre "as massas", usando meios legais ou, pelo menos, pacíficos. No Brasil,

o aventureirismo, a insurreição, o proselitismo entre os soldados e seus oficiais (o chamado

"tenentismo") foram, pelo contrário, os métodos escolhidos. A tática quando do "Sétimo

Congresso" pressupunha afrouxar os laços que, no Comintern, ligavam as seções nacionais

aos quartéis generais de Moscou. No Brasil, a Internacional deu a impressão de dirigir

abertamente a insurreição por meio de seus agentes, entre os quais figuravam vários

estrangeiros. E, não obstante, apresentava a Aliança como modelo a seguir pelos países

coloniais e semicoloniais (c.f. Idem: 164).

O período de revoluções que estourariam depois da guerra nunca chegou. Apesar da crise

de 1929, o que se produziu não foi o triunfo de uma ou de várias revoluções proletárias, mas

uma das piores contra-revoluções jamais vistas e, sem dúvida, a pior derrota que o movimento

socialista e de trabalhadores em seu conjunto (e a Internacional em particular) jamais

sofreram na Europa: o triunfo dos nazistas na Alemanha. Por fim, dez anos depois de

anunciada, veio a guerra, e a Internacional se viu obrigada a abrir um novo período: as Frentes

Populares, embora nunca se referissem a um "quarto período" (Idem).

A Frente Popular (sancionada no VII Congresso do Comintern em 1935) significava a

"aliança antifacista dos partidos comunistas, socialistas e democrático-burgueses". Depois de

seu advento, cada Partido Comunista latino-americano tentou criar alianças locais para a

conformação de uma frente popular local. Na maioria dos países, diante da "ausência de

partidos social-democratas", as alianças foram feitas diretamente com as "forças burguesas

consideradas liberais ou nacionalistas" (Löwy, 2006a: 28).

49

No dia 20 de maio do mesmo ano, a Internacional anunciou que, em outubro de 1934, se

havia realizado a "terceira" Conferência dos Partidos Comunistas da América do Sul em

Montevidéu, sendo essa a única referência sobre essa conferência. Há, não obstante, alguns

detalhes que merecem ser destacados dessa conferência em relação a suas conclusões: por um

lado, tomou-se o imperialismo como alvo principal, insistindo em que "a luta de liberação

nacional contra o imperialismo colocou em primeiro plano a aguda necessidade de organizar a

revolução nacional arrastando sistematicamente as mais amplas massas nacionais à luta contra

o imperialismo e seus agentes locais, formando assim a mais ampla frente anti-imperialista".

Seria abandonado o rude sectarismo do "terceiro período" para passar à Frente Popular.

Esse giro tático na América Latina não era tão evidente como na Europa, onde o triunfo

nazista impunha uma nova tática. Mas essa explicação não podia ser realizada sem uma

autocrítica, o que significa mostrar que a afirmação do "terceiro período" havia sido suicida.

A maneira como a Internacional "descobre a América" é um processo interessante de

conhecer, porque logo se tornará um eixo importante no debate sobre como tomar o poder,

pergunta que se impôs sobre a pergunta anterior, de por que tomá-lo.

Foi no Segundo Congresso da Internacional (1920) que a "Questão Colonial" se

transformou na "questão do oriente", como se chamará nos próximos oito anos, até o Sexto

Congresso Mundial. Um informe de Lênin sobre a "Questão Colonial" favorecia o apoio dos

movimentos nacional-burgueses apenas quando fossem verdadeiramente revolucionários,

quer dizer, quando não aceitassem somente a colaboração do Comintern, mas também a

propaganda e a agitação comunista. Esse foi um dos escassos momentos em que os interesses

nacionais russos e a luta dos povos coloniais coincidiram ao ponto de impor ao Comintern

uma política determinada.

O Sexto Congresso (1928) mostrou, com respeito à "Questão Colonial", duas grandes

tendências: a primeira era dar uma virada na tática que predominava no congresso anterior no

que dizia respeito à aliança com a burguesia nacional; a segunda foi o que se denominou "o

50

descobrimento da América". De fato, tratava-se do descobrimento de uma nova potência

mundial: os Estados Unidos (C.f. Caballero, 1988: 43).

O "descobrimento da América"35 para o Comintern revela uma concepção dos processos

históricos mundiais e do papel da Internacional neles. Em outras palavras, segundo Caballero,

"o socialismo tinha que seguir os passos do capitalismo quatro séculos antes e, assim, partindo

da Europa, tinha que desembarcar primeiro na Ásia e depois na América". Ao mesmo tempo,

descobria os Estados Unidos como uma potência mundial, a qual podia ser reconhecida

porque era uma sociedade capitalista industrial. Já na América Latina, desembarcavam em

território desconhecido. Não obstante esse desconhecimento, o Comintern propunha a seus

habitantes "que iniciassem um processo revolucionário antes de saber com que tipo de

sociedade estavam tratando e, portanto, de que tipo de revolução precisavam" (Idem: 107).

No Peru, o Partido Comunista foi rechaçado pela APRA, e assim se une à Frente Democrática que

apoiava a candidatura de Manuel Prado, um representante da oligarquia liberal tradicional. Na

Colômbia, o Partido Comunista apoiou o Partido Liberal; no México, rompeu com o General Mújica,

líder da ala esquerda do Partido da Revolução Mexicana36, para apoiar, em 1939, a ala moderada,

representada por Ávila Camacho. Em Cuba, o Partido Comunista não conseguiu encontrar aliados

social-democratas, liberais ou democratas, e finalmente apoiou Fulgencio Batista em Janeiro de 1939,

unicamente pelo fato de que mantinha uma colaboração eficaz entre Cuba e os Estados Unidos contra

a ameaça fascista.

O único país onde foi possível construir uma frente popular com certas similitudes ao modelo

europeu foi o Chile, o qual, diferentemente dos outros países, conseguiu uma aliança entre o Partido

Comunista e o Partido Socialista, sob a hegemonia do Partido Radical37. Para o Partido comunista

35 Caballero assinala que, ao Comintern, interessava menos o "descobrimento" que a "conquista" da América (C.f. Caballero, 1988: 120).

36 Adolfo Gilly, em seu livro "A revolução interrompida", descreve a situação vivida por Mújica nesse período, e sua renúncia à candidatura à presidência como possível sucessor de Cárdenas. Numa carta aberta de Mújica, datada de 14 de julho de 1939, onde fazia pública as razões da renúncia, marca o significado dessas alianças no Partido Comunista mexicano: "Vimos como os dirigentes dos setores de esquerda tentaram atrair-se aos setores de centro e de direita, prometendo transformações em muitos aspectos básicos da vida econômica e social da região, e estamos presenciando como os controladores das centrais de trabalhadores e camponeses, formadas por massas revolucionárias, se aliaram aos políticos profissionais e aos poderes públicos dos Estados que, em muitas ocasiões, não representam uma linha de ação progressista e, em nenhum caso, garantia eleitoral e respeito à função cidadã." (Gilly, 1974: 389).

37 O Partido Radical liderado por Aguirre Acerda ganhou as eleições presidenciais em 1938.

51

Chileno, o objetivo da Frente Popular era levar a cabo a etapa nacional-democrática através do

"desenvolvimento progressivo do capitalismo chileno". A Frente Popular Chilena perdurou nesses

anos sob diversas formas, até que, em 1947, foi substituída por uma aliança entre os radicais e uma ala

do Partido Socialista, que durou até 1952 (C.f. Löwy, 2006a: 29).

Segundo John Reese Stevenson, "a vitória da Frente Popular impediu uma revolução, e

ensinou as massas a usar o voto ao invés da espada" (Reese Stevenson apud. Löwy, 2006a:

30). Para o socialista chileno Oscar Waiss, a Frente Popular foi "um erro político gigantesco"

que reabilitou o Partido Radical já em decadência e "roubou a iniciativa revolucionária das

massas". A Frente Popular foi um ato de "mistificação social", que nunca se propôs nem

tentou mudar a estrutura da "propriedade da terra ou recuperar a posse da riqueza fundamental

do país" (Löwy, 2006a: 30).

1.4 Mariátegui e a III Internacional

Mariátegui, ao surgir como um dos primeiros pensadores que vê a necessidade de pensar a

periferia desde uma chave marxista, fazendo uso de categorias como realidades nacionais, sua

caracterização do imperialismo acaba impondo-se à versão oficial da III Internacional. Para

ela, todos os países eram realidades semi-coloniais, e ao mesmo tempo o imperialismo

mantinha formas pré-capitalistas de produção, junto com aquelas incorporadas pelo

capitalismo monopolizado, dentro da América Latina.

Mariátegui pensava que, no Peru, sob a "economia feudal nascida na conquista, subsistem

ainda no interior resíduos de uma economia comunista indígena e, na costa, cresce uma

economia burguesa" (Mariátegui, 1994a: 13-14). Dessa maneira, consegue mostrar como,

apesar de suas diferenças profundas, os três modos vigentes de produção concorrem com a

configuração de uma mesma e "unitária estrutura econômico-social" (Quijano, 2007: LXXX),

sobre a base de sua articulação recíproca sob a lógica hegemônica do capital. Essa concepção

contrasta com a visão dualista de Haya, e adotada mais tarde pelos seguidores da própria III

Internacional e pelos ideológicos do modernismo desenvolvimentista. Ao mesmo tempo,

nessa ideia de Mariátegui estava e está implicada uma "oposição fundamental à ideia de uma

52

sequência", derivada de um raciocínio lógico abstrato, e de modo algum dialético-marxista,

entre uma etapa revolucionária antifeudal prévia a uma anticapitalista, como a experiência

europeia sugeria (Idem). Por isso, para Mariátegui, a realidade era muito mais complexa, e

não bastava chamá-la simplesmente de "feudal", já que, ao mesmo tempo que desde a época

do guano38 se havia iniciado um lento e irreversível processo de desenvolvimento do

capitalismo, junto com o qual conviviam formas "feudais", sobretudo na fazenda andina

tradicional39. Tanto para Hugo Pesce40 quanto para Mariátegui o "capitalismo não era uma

sinônimo necessário de progresso"; ao contrário, à medida que se desenvolvia, derivava em

"dependência, subordinação, atraso, destruição das peculiaridades nacionais" (Flores Galindo,

1989: 43).

O paradoxo do socialismo latino-americano era que, atuando em uma realidade diferente

38 O período do guano e do salitre é caracterizado nos 7 ensaios como um momento em que "a Espanha nos queria e nos guardava como países produtores de metais preciosos. A Inglaterra nos preferiu como países produtores de guano e salitre. Mas essa gesto diferente não acusava, obviamente, um objetivo diferente. O que mudava não era o objetivo, era a época. O ouro do Peru perdia seu poder de atração em uma época em que, na América, a vara do pioneer descobria o ouro na Califórnia. Já o guano e o salitre – que, para as civilizações anteriores tinha carecido de valor, mas que, para uma civilização industrial adquiriam um preço extraordinário – constituíam uma reserva quase exclusivamente nossa. O industrialismo europeu ou ocidental – fenômeno em pleno desenvolvimento – necessitava abastecer-se desses materiais no longínquo litoral sul do Pacífico (...) Enquanto que, para extrair das entranhas dos Andes o ouro, a prata, o cobre, o carvão, era preciso vencer ásperas montanhas e enormes distâncias, o salitre e o guano jaziam na costa quase ao alcance dos barcos que vinham buscá-los (...) Nos primeiros tempos da Independências, a luta de frações e chefes militares aparece como uma conseqüência da falta de uma burguesia orgânica. No Peru, a revolução encontrava menos definidos, e mais atrasados que em outros países hispano-americanos, os elementos de uma ordem liberal burguesa. Para que essa ordem funcionasse mais ou menos embrionariamente, uma classe capitalista vitoriosa tinha que se constituir. Enquanto essa classe se organizava, o poder estava a mercê dos caudilhos militares. As concessões do Estado e os benefícios do guano e do salitre criaram um capitalismo e uma burguesia. Essa classe, que se pronto se organizou no 'civilismo', se mobilizou rapidamente para a conquista total do poder (...) No período dominado e caracterizado pelo comércio de guano e salitre, o processo da transformação de nossa economia, de feudal a burguesa, recebeu sua primeira propulsão enérgica" (Mariátegui, 1994a: 12). Essa exploração intensa começa a partir de 1840. Quijano (2007: XIV) assinala que, como resultado desse processo, "começaram a se constituir os primeiros núcleos importantes de burguesia comercial e latifundiária, principalmente no litoral."

39 Quijano assinala que, para Mariátegui, o que predomina no interior são resíduos "semi-feudais" e o "caciquismo" como forma de dominação política local dos latifundiários. O autor não explicita o motivo da designação "semi-feudal". Se diz que, por um lado, as expressões do feudalismo sobrevivente são o latifúndio e a servidão, por outro assinala que o método liberal, a liberdade individual, já são um passado para o Peru (ver nota 239). "O fim do feudalismo já faz parte da liquidação da ordem vigente, dominada pelo capital. O feudalismo existente no interior é feudalismo se considerado isolado no conjunto da estrutura econômica do país. Tomado dentro desse conjunto, ou seja, articulado ao capital e sob seu domínio, é 'semifeudal' (capitalista, diria Caio Prado Jr.). Assim, o problema do campesinato indígena e o problema agrário é a destruição do feudalismo, e isso não pode ser realizado, exceto dentro do processo global da revolução anticapitalismo. Por isso, sustentará mais tarde que a luta do proletariado no litoral é a mesma que a luta do campesinato contra o 'feudalismo' no interior" (2007: LXXXII).

40 Médico, de formação marxista, integrante do Partido Socialista Peruano

53

da européia, seus esforços para aplicar, em nosso ambiente, as orientações fundamentais do

marxismo canonizadas pela III Internacional apresentava efeitos contraditórios, sobre os quais

não se tinha consciência (C.f. Aricó, 1989: 424), porque não se tinha conhecimento da

realidade de que se tratava. Tais efeitos eram a grande degradação das massas populares, com

a tendência a setorizar as demandas e, portanto, fragmentar um campo comum de luta.

As idéias socialistas chegam à América Latina nas mãos dos imigrantes italianos, alemães

e espanhóis ao final do século XIX. É Juan B. Justo, vinculado à II Internacional, que realiza a

primeira tradução d'O Capital para o espanhol, o que não quer dizer que Justo é o primeiro

marxista latino-americano, já que possuía idéias "semiliberais, ecléticas" (C.f. Löwy, 2006a:

14). São os partidos comunistas, surgidos a partir de 1920, que realizam as primeiras

tentativas de pensar a realidade latino-americana em termos marxistas. A leitura desses

partidos está intrinsecamente vinculada às primeiras resoluções da então recém-fundada III

Internacional.

A II Internacional marca o período de ingresso do marxismo na América Latina. A mesma

foi criada em 1889 e se estende até 191441, começo da primeira guerra mundial. A influência

ideológica do marxismo sobre os movimentos sociais nesses momentos convive com a

influência do anarquismo e do sindicalismo. Com o primeiro, obteve uma menor convivência

devido à incorporação da análise marxista realizada pelo anarquismo, e até sua expulsão da

Internacional em 1896 era difícil distinguir entre uns e outros. Já com o sindicalismo

revolucionário, o marxismo ortodoxo guardou maiores diferenças teóricas. Esses sindicalistas 41 Hobsbawm assinala três fases em que se pode ver no desenvolvimento da II Internacional: “a) una primera

que va desde los años de 1889 y comienzo de 1890, que esta caracterizado por el nacimiento de una serie de partidos socialistas y operarios de orientación más o menos marxistas. Lo más importante en este período no estaba dado tanto por la fuerza organizativa, electoral y/o sindical de los movimientos socialistas y operarios y si por la irrupción de ellos en la escena política de sus respectivos países y en el plano internacional. El capitalismo estaba en crisis; b) la segunda va desde mediados de 1890, cuando se torno evidente la retomada de la expansión capitalista en escala mundial. La denominada 'crisis del marxismo' se debía no solo a la retomada del capitalismo con mayor vitalidad, sino también del aparecimiento de grupos con diversos intereses que se diferenciaba de aquello que hasta hacia poco tiempo parecía ser una fuente univoca del socialismo; c) la tercera fase se inaugura con la revolución rusa de 1905 y va hasta 1914. Es una fase caracterizada por la reanimación de las amplias acciones de masa, lo que significó una reactivación de la izquierda revolucionaria tanto en el interior de los movimientos marxistas como fuera de ellos” (Hobsbawn; 1982: 79-80) É interessante observar como esse ressurgimento da ação das massas colocado na terceira fase por Hobsbawm tem uma grande importância nos movimentos surgidos nesses anos na América Latina, influenciados pelos imigrantes anarquistas e socialistas que chegavam da Europa. O movimento socialista latino-americano será fortemente influenciado por esse processo, sobre o qual, 15 anos mais tarde, Mariátegui realizará uma crítica importante, sobretudo atacando o revisionismo da II Internacional.

54

rechaçavam a concepção de organização e de Estado, assim como o sistema de análise

histórico. Na verdade, o rechaço dos sindicalismos ao marxismo ortodoxo estava baseado

numa crítica à incorporação de um certo "evolucionismo" e de uma certa "incrustação

positivista e naturalista" que a social-democracia estava realizando, prejudicando o marxismo

(C.f. Hobsbawn, 1982: 82-83).

Esse desenvolvimento da II Internacional permite ver como alguns traços marcados por

esse período foram recebidos e incorporados na América Latina de maneira totalmente

esquemática. A dificuldade de aplicá-los em sua totalidade estava dada pelo desenvolvimento

diferenciado apresentado pelos movimentos de massa que produziam fortes tensões no

momento de se organizarem. Isso marca um ponto de ruptura importantíssimo com o

movimento socialista da época. Mas, ao mesmo tempo, tanto o anarquismo quanto o

sindicalismo (que tinham muito mais força nesses momentos) não conseguiam incluir em seus

protestos nem os indígenas nem outros movimentos, devido à inexperiência com realidades

como as que se apresentavam nesses casos. Apenas na década de 1920 é que essa

particularidade, e com ela a particularidade dos movimentos latino-americanos, começa a ser

pensada.

Mariátegui, com sua adesão ao movimento internacional comunista e à revolução de

outubro, é o primeiro a colocar as diferenças político-teóricas que existiam em um movimento

socialista latino-americano, colocando a necessidade de potencializar os elementos vigentes

em cada realidade nacional que permitiriam uma revolução de acordo com os processos

desenvolvidos nos países colonizados. Seu enfrentamento com o movimento nacionalista da

APRA não o faz deixar de pensar as realidades locais; para ele, porém, o sentido dessas

realidades era outro, por estarem enraizadas em movimentos de caráter universalista.

O nacionalismo não estaria definido pela defesa dos limites territoriais nem pela

consolação das instituições políticas independentes. Fundamentalmente, concebia a

nacionalidade como um projeto que tendia a integrar a memória histórica e satisfazer as

necessidades sociais de todos os habitantes do Peru. Mariátegui entendia que "a solução para

as injustiças e desigualdades", características do que, até agora, havia definido como

55

"nacionalidade peruana", podia ser alcançada mediante a ação conjunta de índios, estudantes,

trabalhadores, funcionários, artistas e intelectuais (C.f. Beigel, 2001: 49).

A caracterização por parte do marxismo de "colônia latino-americana" não dava resposta

aos problemas das realidades nacionais apontadas por Mariátegui e, ao mesmo tempo de uma

maneira muito original em um contexto latino-americano muito diferente do da Inglaterra ou

da Europa Central, ele "consegue assimilar não apenas o marxismo, como também alguns

aspectos do pensamento romântico contemporâneo: Nietzsche, Bergson, MIguel Unamuno,

Sorel, o surrealismo" (Löwy, 2005b: 10). Para Aricó, existem ao menos três características do

chamado "marxismo de Mariátegui", por um lado suas "vinculações ideológicas com a

APRA", minimizadas, negadas ou criticadas pelos seus próprios companheiros de luta

imediatamente depois da sua morte; por outro lado, "seu suposto 'populismo'", conforme

acusava a Internacional Comunista; e finalmente sua "filiação 'soreliana'", atribuída, pelos

mais benévolos, à "imaturidade e ao estado de gestação de suas concepções definitivas". Essas

características formam parte de um único problema que é, segundo esse autor, o "caráter

autônomo do marxismo" (Aricó, 1999: 151).

É a partir das leituras que a III Internacional mantinha sobre a América Latina que

Mariátegui marcará uma diferença profunda na maneira de entender a constituição da colônia,

e suas posteriores repúblicas. Pensava-se o marxismo como "um corpo cerrado de doutrina",

ou como uma "teoria com validade universal" e, para que funcionasse na América Latina, esta

deveria ser igual à Europa, "onde havia surgido esse corpo teórico" e "onde se davam as

conquistas da revolução soviética" (Flores Galindo, 1989: 44) 42.

Apesar da existência dos Partidos Comunistas na maior parte da América Latina, a

Internacional não tinha grande interesse em Mariátegui e em seu grupo, até o IV Congresso da

Internacional Comunista, em 1928, o qual, diante da suposta situação revolucionária como

conseqüência da dura crise do capitalismo mundial, decide reagrupar suas fileiras

42 As fórmulas para a resolução do problema do campesinato foram as mais variadas: "revolução camponesa sob a direção do proletariado, ditadura democrática do proletariado e dos camponeses, revolução proletária e camponesa, revolução do proletariado e das massas camponeses, revolução do proletariado que arrasta atrás de si as massas camponesas. A hegemonia do proletariado estava subentendida como elemento principal" (Mazzeo, 2008: 130).

56

promovendo a organização da I Conferência Comunista Latino-americana. Os primeiros

contatos de Mariátegui com a I Internacional tiveram lugar antes dessa conferência (Flores

Galindo, 1989: 32) 43. A essa conferência comparecem Julio Portocarrero (sindicalista

operário) e Hugo Pesce, ambos membros do recém-formado Partido Socialista Peruano. Os

textos apresentados nessa Conferência foram elaborados conjuntamente com Mariátegui e

eram os seguintes: "O problema das raças na América Latina" e "Ponto de vista anti-

imperialista"44. A leitura desses ensaios marcou várias diferenças frente às demais delegações

participantes no evento, por um lado pela falta de citações de Marx e Lênin e, por outro, pela

informação, dados, descrições que, para os peruanos, constituíam a tentativa de leitura

marxista sobre a realidade nacional (C.f. Flores Galindo, 1989: 40) 45.

Mas as posições apresentadas por Pesce e Portocarrero na I Conferência Latino-americana

em relação ao partido como órgão em que confluía o movimento socialista eram pouco

consistentes, e isso não devido a um "atraso na discussão", mas sim a que o partido fosse fruto

do próprio movimento de massas, sendo por isso impossível propor um modelo destinado a

ser executado e aplicado. Esse processo de análise, que marcava uma posição bem

diferenciada dentro do marxismo oficial, foi interrompido pelas discussões mantidas com a

43 Quijano (2007: XLVII) assinala que, em 1929, começa uma etapa crucial no desenvolvimento do pensamento revolucionário de Mariátegui, processo esse que é interrompido por sua morte. "Sua designação como membto do Conselho Geral da Liga contra o Imperialismo, organismo da III Internacional, no segundo congresso de Berlin, no início do ano, formaliza sua vinculação orgânica com a III Internacional. Por isso, seu grupo é convidado ao Congresso Constituinte da Confederação Sindical Latino-americana de Montevidéu, em maio, e à Primeira COnferência Comunista Latino-americana de Buenos Aires, em junho do mesmo ano".

44 Esses dois textos estão reproduzidos na obra "Ideologia e Política", de José Carlos Mariátegui.45 A direção da I Conferência estava a cargo de Vittorio Codovilla, reconhecido dirigente comunista ítalo-

argentino, que tinha a função de organizar o movimento comunista latino-americano. Em um momento do evento, "Pesce se aproximou de Codovilla para entregar-lhe um exemplar do livro '7 ensaios de interpretação da realidade peruana', cujo autor era José Carlos Mariátegui. Codovilla expressou seu incômodo com o texto, manifestando que era de pouco valor, e que um exemplo a ser seguido no Peru era Martinez de la Torre" (Idem: 41). Ricardo Martinez de la Torre foi co-fundadora do Partido Socialista Peruano. Em 1928 escreve três ensaios chamados "O Movimento Operário em 1919", publicado em nos números 17, 18 e 19 do Amautas, nos quais tentava apontar uma "interpretação marxista da história social". A leitura que Mariátegui realiza sobre essa reconstrução histórica de Martinez de la Torre, sobre as greves realizadas em 1919 pelo movimento de trabalhadores (fundamentalmente baseada no chamado "paro de las subsistencias"), que conquistou a jornada de 8 horas, é que, mesmo realizando o primeiro passo para contribuir no estudo sobre a "questão social no Peru" (Mariátegui, S/D: 3), é equivocada a avaliação de "confusão e desorientação" que o autor realiza sobre a mobilização, já que não considera o caráter "incipiente" do mesmo, sem abandonar o corte classista, marcando o primeiro evento de greves com essas características (Idem: 4). Essa campanha "contra a carestia é uma verdadeira expressão da possibilidade revolucionária do trabalhadora da cidade e do campo" (Idem: 5).

57

APRA (Flores Galindo, 1989: 48).

A Internacional exigia partidos monolíticos, de trabalhadores disciplinados, e os peruanos

pensavam partidos de massa, pelas razões expostas anteriormente, onde confluíam vários

sujeitos que conformavam essas massas.

Portocarrero e pesce, com esses documentos, colocavam como problema de fundo a

constituição da classe com identidade nacional. Porém, mais que isso, para esses

embaixadores peruanos o ponto fundamental era que o proletariado tinha uma história, uma

cultura que tinha a ver com um proletariado peruano (C.f. Flores Galindo, 1989: 44).

Paralelamente, Mariátegui, através da crítica levantada contra ele pela APRA, também se

enfrenta com a III Internacional, sustentando a inviabilidade histórica de uma burguesia com

sentido nacional e progressista: "Pretender que essa camada social desenvolva um sentimento

de nacionalismo revolucionário, parecido com o que, em condições distintas, representa um

fator da luta anti-imperialista nos países semicoloniais avassalados pelo imperialismo nas

últimas décadas na Ásia, seria um grave erro". Baseado na experiência mexicana, onde a

pequena burguesia acabou pactuando com o imperialismo ianque, o autor ressalta que o anti-

imperialismo não anula "o antagonismo de classe, não suprime sua diferença de interesses"

(Mariátegui, 1994b: 196).

A maneira como a III Internacional abortou esse processo, tentando uma uniformidade

impossível à luz das realidades nacionais e continentais, foi, primeiramente, buscando cooptar

os enviados à I Conferência, de modo a preparar um posterior enfrentamento com Mariátegui,

mentor da idéia de partido de massas com base indígena. Ao fracassar essa tentativa, decidem

eleger Eudocio Ravines para a organização do Partido (Flores Galindo, 1989: 52). A partir

desse momento, a disputa com Mariátegui se divide em duas frentes: por um lado, com a

Internacional, dada sua necessidade de plasmar no movimento a singularidade do Peru e, por

outro, com a APRA. Foi impossível para o Partido Comunista Peruano entender a contradição

que Mariátegui colocou sobre as "tarefas democrático-burguesas" e a incapacidade do "regime

burguês" de cumpri-las. Esse debate está colocado no documento de fundação do Partido

Socialista Peruano, no qual é definido com duplo caráter: "por um lado, suas bases sociais são

58

as massas camponesas e o campesinato; por outro, sua direção é proletária" (Quijano, 2007:

CI). O artigo 8 do documento de fundação do Partido Socialista, reforça a idéia de uma tarefa

"democrático-burguesa do socialismo", dizendo que, cumprida essa etapa, "a revolução se

torna, em seus objetivos e em sua doutrina, revolução proletária". Assim, o proletariado

realiza, nessa etapa, "as tarefas da organização e da defesa da ordem socialista" (Mariátegui,

1994b: 226).

Essas propostas de Mariátegui tornavam-no uma figura impertinente no modelo da III

Internacional, devido às influências que havia recebido, sua trajetória, sendo que, ao mesmo

tempo, tampouco era a figura nacionalista, impregnada por uma visão endógena do processo

peruano (tal como expresso pela APRA), quer permitira a manifestação daqueles grupos cujo

objetivo era apenas a construção de um Estado nacional. Era uma figura que conseguia

acolher esse amálgama existente entre o ser latino-americano e as consequências de ser,

também, um produto da colônia européia.

1.5 Caio Prado Jr. e o Partido Comunista Brasileiro

Com uma base na história e na elaboração teórica, Caio Prado cria a primeira visão

marxista brasileira que não estava amparada em esquemas prévios de interpretação,

enfrentando um "marxismo positivista", baseando suas análises em dados históricos que

explicam a constituição da colônia e da república. É um intelectual solitário nesse contexto do

PCB e do marxismo, suas idéias principais são geradas anteriormente à existência do que, na

década de 1950, foi chamado de "marxismo brasileiro", nascido próximo às universidades e

de alguns intelectuais de esquerda46.

Ao mesmo tempo, Caio Prado não estava tão só quanto parecia dentro da intelectualidade

de esquerda. Com a entrada do Brasil na II Guerra e a repressão do governo de Getúlio

Vargas, começa a reconstituir-se o PCB apenas a partir do ano 1943. Por um lado, é criado a

CNOP – Comissão Nacional de Organizações Políticas – e, por outro lado, em oposição a ela, 46 Para Iglésias, Caio Prado era um homem de “la alta burguesía que decide mezclarse con el pueblo en su

elección por una militancia comunista, su experiencia en el PCB tuvo importancia por su contacto con el pueblo y las perspectivas de actividades que le abrió” (Iglésias, 1982: 15)

59

se conformam os Comitês de Ação. Faziam parte da CNOP os dirigentes do PCB da época, e

os Comitês de Ação era integrados principalmente por intelectuais como Caio Prado, Mário

Schenberg, Victor Konder, Tito Batini e David Lerner. Os primeiros estavam orientados pela

união nacional em função da guerra contra o Eixo, que "exigia o apoio de Getúlio Vargas". Os

segundos, os Comitês de Ação, "era abertamente contra o fascismo e o 'Estado Novo'"

(Ricupero, 2000: 109). A Secretaria Geral do PCB, nas mãos de Luis Carlos Prestes, decide

apoiar a CNOP, com o que alguns militantes decidem sair do partido e entrar na Esquerda

Democrática (ED). Não é o caso de Caio Prado, que continua filiado ao PCB. Mas é

importante observar que, apesar disso, Caio Prado mostra um total desacordo com a leitura da

realidade mantida pelo partido e, além disso, com a direção do mesmo e a distância que

mantém frente às massas populares47.

Quando da criação da Revista Brasiliense48 em 1955, Caio Prado havia mostrado suas

dissidências com o PCB e, junto com o grupo que dirige a revista, em seu manifesto de

fundação, esclarece a vinculação da mesma com questões de "ordem política e de partido"49.

Esses intelectuais que haviam formado os Comitês de Ação, e logo formarão a Revista

Brasiliense, compartilhavam "mais que posições políticas, havia laços de amizade, um

47 Em 1945, em alguns escritos que não pretendia publicar, Caio Prado afirma: “não acredito em Prestes e na atual direção do Partido. Têm-se mostrado uma incapacidade sem par. Isto acrescido à suficiência que revelam, uma pretensão ilimitada de acerto infalível; mais o sectarismo que os caracteriza, são condições precárias para o futuro do partido (…) A minha interpretação dos acontecimentos e da posição atual do partido, é a seguinte. O comunismo no Brasil, representado de um lado por um largo, embora ainda confuso sentimento popular, e doutro por uma ideologia capaz de servir de base à renovação do Brasil, foi empolgado por um grupo de aventureiros que se valeram do prestígio de Prestes. Aventureiros (num) bom sentido da palabra, i.e., bem intencionado no fundo, sem propósitos pessoais na maioria; mas de curta visão e incapacidade política total. E formando um pequeno grupo hermético e inteiramente destacado da realidade, vivendo no mundo da lua. Caberia a Prestes, se fosse realmente um grande líder político, uma remodelação completa do comunismo brasileiro, confnado até há poucos meses atrás, a pequenos grupos dispersos, sectários e muito mais teóricos que prácticos; e fazer do comunismo uma verdadeira e grande força nacional. Preste fracassou nisto porque não está na altura da tarefa que o destino colocou em suas mãos. Suas grandes qualidades pessoais, não incluem as de um dirigente político de envergadura. Estabeleceu-se assim continuidade nefasta entre um pequeno grupo de semi-conspiradores do passado, e o atual partido de massas. O desastre foi completo" (Prado Jr., apud Ricupero, 2000: 201).

48 A Revista Brasiliense teve seu primeiro número em setembro-outubro de 1955. Foi publicada regularmente durante vários anos, debatendo os problemas políticos da hora, do país, abordando todos os temas e assuntos. Reuniu o melhor da intelectualidade nativa da época, de modo que sua coleção é um bom retrato desse momento. Era bimestral e teve como diretor Elias Chaves Neto, mas Caio Prado foi seu verdadeiro centro: está presente em quase todos os números. A revista publicou 51 números. O número 52 seria de março-abril de 1964, mas, estando pronto para a impressão, foi destruído pelos agentes da nova ordem. Foi sua última edição. (C.f. Iglésias, 1982: 19).

49 Revista Brasiliense, 1955: 21 apud Ricupero; 2000: 111.

60

determinado ethos que os unia" (Ricupero, 2000: 112).

Diante da leitura sobre a crise capitalista que viria na década de 1930 mencionada

anteriormente, a Internacional Comunista, no VI Congresso de 1928, decide rechaçar

qualquer união entre os Partidos Comunistas e os movimentos social-democratas. Com isso,

August Guralski é enviado da Rússia ao Brasil. Assim como Ravines no Peru, possuía pouco

conhecimento sobre a América Latina em geral. Tratava-se de “receber um marxismo leninismo

codificado desde fora e aplicar-lo ao continente” (Konder, 1988: 165).

As possibilidades criadas pelos movimentos socialistas latino-americanos durante toda a

década de 1920 foram quebradas com essa entrada violenta do stalinismo no debate. Não é

casual que o Amauta publica um artigo de Stalin só depois da morte de Mariátegui. Sua

resistência estava dirigida a evitar o erro de interpretação a priori sobre a ação do movimento

de massas. Depois dessa entrada, desse corte abrupto do que se havia gestado durante toda a

década de 1920, o marxismo "oficial" se fechará em seus próprios "fundamentalismos",

deixando de fora outras leituras existentes no momento sobre as realidades latino-americanas.

A distância guardada pelo Partido Comunista Brasileiro frente a outros acontecimentos

que sucediam na sociedade brasileira, tais como a Semana de Arte Moderna de 1922, fazia

com que esse tipo de fenômenos não mostrasse interesse pelo marxismo que estava sendo

difundido na época pelo partido. Só anos mais tarde é que travariam relação com o

movimento comunista50. Diferentemente do movimento peruano, que pôde manter durante a

década de 1920 (até a morte de Mariátegui em 1930) uma autonomia frente ao movimento

internacional comunista, o que permitiu sua proximidade com os movimento populares

vigentes, o PCB estava muito distante dessa leitura, com uma visão estática da realidade.

Apesar dessa distância, o PCB consegue crescer numericamente ao longo dos anos 1920.

50 Oswald de Andrade, no prefácio de Serafim Ponte Grande (1928) diz que a “bosta mental sudamericana da época, ao contrário do burgués não era o proletario, senão o bohemio, e se descreve da seguinte forma: Com pouco dineiro, e fora do eixou revolucionario do mundo, ignorando o Manifiesto Comunista e não querendo ser burgués, pase a ser naturalmente bohemio” (apud Konder; 1988: 157) Em 1928, Oswald de Andrade publica, na Revista Antropofagia, o "Manifesto Antropófago", onde realiza um apelo a pensar quem são os brasileiros, latino-americanos, que forma parte desse "aglomerado heterogêneo", produto da expansão capitalista, que precisava ser pensado em sua particularidade. “Queremos a Revolução Caraiba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem” (De Andrade: 1928).

61

Todos os debates apresentados por Caio Prado no interior do partido estavam atravessados

por leituras difundidas pela recém-criada III Internacional. Marx, Engels, Lênin e Stalin

começaram a ser apresentados nos anos 1930 como os quatro clássicos do marxismo, "sendo

Marx o mais teórico e abstrato e Stalin o mais didático, o mais atual, o mais influente". Assim,

o marxismo começa a ter uma combinação com o positivismo, potenciada pela entrada de

pensadores como Comte e Spencer na América Latina, e devido, também, ao rechaço de

Stalin à teoria, o que permitia, por um lado, "a adesão espontânea às fileiras dos PCs",

identificando um único inimigo, e, por outro lado, a concessão oportuna a "manobras políticas

oportunistas" (Gorender, 1980: 178-180).

62

2. José Carlos Mariátegui

2.1 Lutas sociais no começo do século XX

Peru, logo após a derrota frente ao Chile (1879), recai num regime caudilho militar, o que

produz em tais condições uma burguesia e camadas médias urbanas totalmente debilitadas,

pelo que são obrigadas não só a negociar com o regime militarista senhorial mas também a

sustentá-lo. A independência em 1821 não contou com o apoio “das massas populares e não

permitiu acertar as contas com o passado colonial” (Flores Galindo, 1976: 55), somado a isto,

em 1879 uma derrota militar, a ocupação do território e o colapso econômico.

Os núcleos da burguesia eram basicamente “mercantis e proprietário de terras” (Quijano,

2007: XIII). Três processos centrais conduzem, desde então até 1930, a história peruana: 1) a

implantação e consolidação do capital monopolista, sob controle imperialista, como

dominante de uma complexa combinação com as relações pré-capitalistas de produção, até

então dominantes; 2) a reconstituição, sobre essa base, dos intereses e dos movimentos de

classes, e de seus modos de relação com o Estado; 3) e o desenvolvimento e renovação do

debate ideológico-político, em sua primeira etapa somente dentro das clases dominantes, e

depois de 1919, entre elas e as clases exploradas e médias (Cfr. Idem: XV).

A população que habitava o Peru era uma mescla entre o índio originário destas terras, o

escravo trazido para sustentar a exploração dos recursos e os colonos europeus que chegaram

para ser donos das terras, mas ao mesmo tempo cumpriram um papel na conformação da mão

de obra, se constituiu uma mistura complexa e particular de população51.

Diferente desse processo colonizador, e prévio ao mesmo, a economia indígena “se forma

sozinha, espontaneamente determina suas instituições”, a economia colonial, no entanto, se

estabelece “sobre bases artificiais, estrangeiras, subordinada ao interesse do colonizador”. Seu

desenvolvimento depende da aptidão do colonizador para adaptar-se às condições ambientais

ou para transformá-las (Mariátegui, 2004a: 26).

Com a exploração e a perseguição da população indígena, o colonizador foi perdendo o

“capital humano”, com o qual recorreram ao sistema de importação de escravos, e com eles 51 […] “mesmo, até que se adotasse universalmente nos trópicos americanos a mão-de-obra escrava de outras

raças, indígena do continente ou negros africanos importados, muitos colonos europeus tiveram de se sujeitar, embora a contragosto, àquela condição (…) É uma escravidão temporária que será substituída inteiramente, em meados do séc XVII, pela definitiva de negros importados” (Prado Jr., 2000: 18).

63

nasce a “lei da escravidão que foi imposta também aos índios” (Mariátegui, 1994a: 26-27).

Com esse sistema de expropriação da terra e escravidão, o índio começa a formar parte das

grandes massas empobrecidas e perseguidas do território. O mesmo dirá Caio Prado ao

escrever que a ideia no era a de povoar a América, mas a extração de recursos naturais, pelo

que os habitantes dessas terras, assim como os que foram trazidos sob o regime de escravidão

não eram tratados como homens, mas como braços. Mariátegui disse que baseados na teoria

de Aristóteles sobre a escravidão natural, “sobre a qual os povos ‘civis modernos’ justificam

suas conquistas e domínio sobre os que eles chamam de raças inferiores”; propõem da mesma

maneira que Aristóteles que existem naturalmente homens que mandam e outros que servem,

os povos modernos, que se gratificam a si mesmos com o “epíteto de civilizados, dizem

existir povos que devem naturalmente dominar, e são eles, e outros povos que não menos

naturalmente devem obedecer e são aqueles que querem explorar”. E os europeus cumprem

“o sacrossanto dever de destruir aos africanos, como por exemplo no Congo, para ensiná-los a

ser civilizados”. Não falta logo que admire esta obra de “paz, de progresso, de civilidade”.

Estes “bons povos civis” pretendem fazer o bem aos povos a eles sujeitos, quando os

oprimem e ainda os destroem, por que desta maneira os querem “‘livres’ pela força”

(Mariátegui, 1994b: 168).

Entre os anos 1910-1920 começam a surgir camadas médias da população entre os

gamonales52 e os índios, os quais são alimentados no sul do país pelo desenvolvimento do

comércio. Uma referência para estes grupos foi a Universidade de San Antonio de Abad em

Cuzco, reorganizada por um reitor progressista de origem norte-americana, Albert Giesecke,

que inicia seus alunos no estudo da realidade social imediata. Em 1912, realiza um censo da

cidade. Surge um pensamento política que está preocupado pela condição do índio e

estabelece distância com a igreja católica53.

As massas indígenas nesses momentos também estão num processo de revoltas e 52 Segundo Flores Galindo, o termo “gamonal” é um peruanismo cunhado no curso do século XIX, buscando

estabelecer um símile entre planta parasitária e os proprietários de terra. Em outra versão “gamonal” é um verme que corrói a árvore da nação. Mas além dessas características depreciativo e críticas, “o termo designa a existência de um poder local: a privatização da política, a fragmentação do domínio e seu exercício na escala de um povo ou de uma província [...]. O Estado precisava do gamonal para poder controlar essas massas indígenas excluídas do voto e dos rituais da democracia liberal” (1986: 246-247).

53 Essa relação entre os intelectuais e os camponeses também se encontra potencializada pela criação na Universade de San Marcos da Associação Pró-Indígena, cujo fundador é Pedro Zulen. Os fins da mesma era apoiar as queixas e reivindicações dos indígenas, designar advogados para defendê-los gratuitamente, conformar comissões investigativas, se coloca a necessidade de elaborar um informe sobre a condição do índio em cada província e uma enquete nacional (Cfr. Flores Galindo, 1986:289).

64

manifestações, que se farão sentir em todo o país. Diferenciando-se dos protestos obreiros-

sindicais, os indígenas fazem um pedido que parecia incompreensível: “querem voltar atrás,

rechaçam toda a história que supertaram desde a conquista e intentam recurperar um

idealizado império incaico” (Flores Galindo, 1989: 57), com o qual fica demonstrada uma

imagem diferente do que se vinha pensando como país e como nação. 54 Assim, levantamentos

como o de Rumi Maqui55 em Azángaro (1915) no Puno, outros movimentos como Huancané y

Nazca (1917), são obsevados por Mariátegui em suas crônicas do “El Tiempo”. Uma que

escreve em abril desse anos se chama “Minuto Solemne” fala de um momento histórico no

Perú onde a vida nacional chega a uma importante etapa, se assiste a um “renascimento

peruano: temos arte incaica, música incaica e que para nada nos falte nos há sobrevivido uma

revolução incaica” (Mariátegui, 1994v: 2901). Este jovem jornalista se sente distante e

confrontado com a sociedade rígida, acartonada, inamovível que é o Peru nesses momentos.

Por isso se sente seduzido pelo progresso aclamado na Europa, em sua busca por alternativas

a este mundo que se apresente diante dele. É 1917, no fim deste ano ocorrerá a revolução

Russa e Mariátegui sorfrerá esse outro impacto da revolução e do socialismo. Essa

transformação que se vê na Europa, no Peru começa a vislumbrá-lo no Puno. Se abre uma

brecha, se rompe o tédio e a possibilidade de que o antigo seja novo coloca o debate da

revolução; até o momento o tradicional era sinônimo do colonial, e agora tem a possibilidade

de potencializar-se como o mundo pré-hispânico que era ignorado nas cidades. Através de

Rumi Maqui, Mariátegui começa a descobrir um lado oculto e ignorado do país, o mundo

54 Surge também nesses momentos Martín Chambi, fotógrafo que terá reconhecimento internacional por sua fotografia social e indígena. Chambi surge em Cuzco, se vincula com o grupo “Ressurgimiento” que foi difundido numa das edições de Amauta; do dito grupo surge a “Escuela Cuzqueña” que se encarregará de realizar um programa baseado na defesa dos índios frente aos proprietários de terra e a afirmação da cultura indígena. Este artista nasceu 3 anos antes que Mariátegui, em 1891, no altiplano punenho, sendo suas imagens um desnudamento da complexidade social dos Andes. Seria o primeiro fotógrafo peruano que consegue retratar a gente de sua raça indígena sem o olhar colonizado, que alcançou a maior projeção internacional e que deixou uma obra pessoal, “mágica, profunda e deslumbrante”. Durante muitos anos Chambi decidiu viajar os assentamentos incaicos no lombo de um cavalo nas altas terras sul-andinas (Cfr. Vargas Llosa e López Mondéjar; 2002). O grupo “Resurgimiento” nasce em 1927 em Cuzco, sendo seus fundadores: Luis Valcárcerl, J. Uriel García, Luis F. Paredes, Casiano Rado, Roberto La Torre, Francisco Choquehuanca Ayulo, Dora Mayer de Zulen, Manuel Quiroga, Julio C. Tello, Rebeca Carrión, Francisco Mostajo y José Sagobal.

55 Rumi Maqui é um general a quem se aculsa de ter organizado o levantamento de Puno e é levado a Arequipa onde se inicia um julgamento por “destronado restaurador do Império Inca. Foge e desaparece, não deixando rastros, até que meses depois, em maio de 1917, quando se informa que estaria residindo na Bolícia. Rumi Maqui será uma figura que rondará o imaginário coletivo das diferentes revoltas, mas não existem evidências de sua aparição. Se converteu num emblema para as rebeliões indígenas e hoje em dia a Federação dos Camponeses de Puna assume o nome do mesmo (Flores Galindo, 1986:262).

65

andino que não havia sido destruído pela colônia e ainda guardava potencialidades para o

presente. O que passou a importar depois dessa irrupção foi que a possibilidade de

transformação estava aberta, e não foi precisamente provocado pelo progresso das regiões

industrializadas, mas pela rebelião das regiões mais “atrasadas” do país.

Todas estas rebeliões se estenderam entre 1919 e 1923 nos Andes do Sul do Peru, de onde

chegaram ao número de 50 revoltas, cujos epicentros serão o Puno e Cuzco. Desde o começo

do século em livros, teses e artigos se argumentava o caráter comunista do império incaico,

sendo o livro de Luis Valcárse “Tempestad en los Andes” (1927) onde se formularão todas

estas “inquietudes, e ditas frases como ‘o proletariado indígena espera seu Lenin’ não são

retóricas enmarcadas nas rebeliões mencionadas anteriormente: os indios desceriam das

alturas, para criar um Peru novo, como disse Mariátegui (Flores Galindo, 1986: 286)56.

Mariátegui regressa da Europa quando estão acabando as rebeliões no sul, mas consegue

informar-se o suficiente do processo, por intermédio de vários intelectuais. Em 1923 – ano de

chegada de Mariátegui ao Peru – se organiza um congresso indígena onde se elabora um

programa cujas demandas fundamentais são: defesa da comunidade, abolição dos serviços

gratuitos, reivindicações de escola, garantias de associação e liberdade de cultos.

As diferentes intervenções de Mariátegui na forma em que deveriam se organizar as

massas peruanas que contemplasse tanto indígenas como o resto da população, se

diferenciavam enormemente da Haya de la Torre que pretendiam formar um “exército

vermelho” ao estilo russo, com um grupo seleto de “conspiradores”. Mariátegui apostava em

uma revolução como ato coletivo, como criação das massas, como tradução de seus impulsos

e valores. As concepções sobre o progresso o diferenciavam também do PARA, já que

diferentemente dos mesmos, que pensavam num desenvolvimento do capitalismo para

remover o rotineiro mundo dos camponeses, Mariátegui pensava num encontro entre

socialismo e comunidade indígena.

A partir da compreensão dessas massas indígenas, escravas, desagregadas é que precisava

ser repensada a ideia de sujeito na América Latina, como adquire especificidade e

particularidade na periferia.

56 É interessante o que assinala Flores Galindo que as sublevações dos anos 20 não ocorrem em qualquer época do ano, mas que na maioria começam em setembro e se prolongam até outubro e novembro, quando termina a estação da seca e iniciam as chuvas nos Andes. Setembro no calendário andino é o mês da regeneração: quando se ajorran dos povos os males e as pestes (Cfr. Flores Galindo, 1986: 286).

66

2.2  A Comuna Incaica

O problema do indígena havia sido tratado até o momento desde diversas visões: algumas

delas propunham uma solução de tipo jurídica, ou seja, o status de cidadania que permitisse

incorporá-lo socialmente, outras consideravam que era um problema moral-ético, houve quem

pensasse que dando-lhe um lugar na literatura nacional se conhecia o papel dessas

comunidades na cultura peruana e outros como um problema racial. É ampla e vasta a

“polêmica do indigenismo”57 no Peru, no período de Mariátegui, e seu “Intermezzo polêmico”

com Luis Alberto Sanchéz constituem uma das reflexões mais ricas acerca deste problema.

Acusando Mariátegui e o grupo indigenista por Luis Alberto Sanchéz de “‘falsa adesão ao

indígena’, de ‘propagandistas sectários’, de ‘desconhecimento da realidade dos mesmos’”

(Aquézolo Castro, 1976: 69), responde com sua ideia da confluência entre indigenismo e

socialismo, assim “o socialismo não seria nem peruano, nem socialismo se não se solidariza

com as reivindicações indígenas” (Mariátegui, 1994b: 249).

O termo indigenismo foi cunhado pela geração posterior aos primeiros modernistas latino-

americanos, sendo ela a que conferiu o significado com o qual foi aceito em todo o

continente. Se tratou de uma formulação local, peculiar, referida à problemática cultural da

região, dessa tendência “generalizada, regionalista, criolista, nativista, que se possessionou de

América Latina com posterioridade ao novocentismo modernista”, desenvolvendo-se nas

décadas dos 20 primeiros anos do século XX: propôs uma nova apreciação da realidade e do

funcionamento das sociedades do continente que estavam modernizando-se, através da óptica

da baixa classe média em Ascenso, que estabeleceram uma luta contra as consolidadas

estruturas de poder. Estabelecem-se três períodos indigenistas assinalados por José María

Arguedas, retomados e completados por Ángel Rama: 1) correspondente ao novecentismo,

marcados pela obra de José de la Riva Agüero e Víctor A. Belaúnde, onde se dá o

reconhecimento da antiga cultura inca devido às descobertas arqueológicas ocorridas nesse

momento (Machu Picchu, Paracas, Guamán Poma de Ayala, etc), mas isto não foi

acompanhado de uma revalorização da cultura índia pós-hispânica; 2) o segundo momento

57 Os artigos e cartas tanto de Mariátegui, como de Luis Alberto Sanchéz, Luis Valcarce, Enrique Lopez Albujar, Jose Angel Escalante, Ventura Garcia Calderon, Roberto Mac Lean Estenos, Darío Eguren Larrea, Manuel M. Gonzalez, Manuel Seoane, que formam parte desta polêmica, estão reproduzidas num livro organizado e dirigido por Manuel Aquézolo Castro chamado “La polémica del Indigenismo”, Lima-1976.

67

encabeçado por Mariátegui, é de onde “se impõe uma reivindicação social e econômica do

índio”. O problema deste período foi que o foco esteve posto no índio e colonizador,

fortalecendo uma visão dualista de costa/serra, deixando por fora novos setores como o

mestiço; por outro lado esta corrente carecia de um conhecimento sobre o produzido pela

cultura indígena, de modo que não pôde dar valor a sua arte, costume e crenças; 3) o terceiro

período é posterior a Mariátegui sendo seus principais narradores Ciro Alegría e José María

Arguedas58, conservando as demandas sociais, econômicas e políticas dos 7 ensaios,

intentaram refletir com um maior conhecimento da realidade peruana, tendo um traço

“‘culturalista’ e já não será o índio como exclusivo sujeito de seu pensamento” (Cfr. Rama,

1989: 14-15), pelo que o próprio nome indigenismo começará a ser questionado. É indubitável

que o conceito indigenismo59 queria alcançar uma coincidência com conceito de peruanidade.

Mariátegui, como representante dessa segunda corrente, assinala que o problema do índio

é econômico-social, e é graças a “chegada das ideias socialistas ao Peru” que os permitiu

colocar o problema desde um lugar de onde se questionava o capitalismo como a forma social

que origina esse problema que não é exclusivo do índio. Pelo que não seria com mais

“educação, cultura, progresso, amor, céu” que se resolveria o dito problema, mas que a

reivindicação era em primeira instância “o direito à terra”. O socialismo ajudava neste sentido

já que esse movimento reivindica às massas trabalhadoras exploradas, “as quatro quintas

partes delas no Peru estão formadas pelos indígenas” (Mariátegui, 1994a: 22-24), pelo que o

direito à terra se convertía no problema central para esas massas.

As comunidades indígenas eran básicamente agrárias, o povo incaico era um povo de

agricultores, eran uma “civilização agraria” (Idem, 1994a: 26). O incario60 tinha um sistema

de propriedade coletiva da terra, das águas, que estabelecia uma cooperação comum no

trabalho e na apropriação individual das colheitas e dos frutos. A destruição deste sistema com

58 Arguedas assinala que “as classes sociais têm também um fundamento cultural especialmente grave no Peru andino, quando lutam, e o fazem barbaramente, a luta não é só impulsionada pelo interesse econôico; outras forças espirituais profundas e violentas inflamam aos bandos, os agitam com implavável força, com incessante e ineludível violência”(Arguedas apud Flores Galindo, 1986: 21).

59 Para Beigel, “todas as manifestações do ‘indigienismo revolucionário’ colocam em questão a ideia que se tinha até o momento acerca da identidade nacional. A visualização da opressão do índio e da sinalização do Estado oligárquico como o principal responsável da convivência entre a “República” e a feudalidade, alimentava a preocupação por definir o “verdadeiramente peruano”. Mas o programa político e cultural que intentaria sintetizar estas aspirações vanguardistas estava todavia em formação e seguiria precipitadamente seu curso polêmico a medida que avançava a segunda metade da década de vinte. Com a fundação de Amauta, o debate se condensou e chegou a um ponto de inflexão” (Beigel, 2001: 49).

60 Período de onde se desenvolvia o sistema de comunidades territoriais implantadas pelo império Inca.

68

a conquista e a aniquilação da população indígena com as guerras e a exploração, servidão,

acabou com uma forma de produção e reprodução da vida social no Peru. Quando o

colonizador chegou, a “nação inca” era aproximadamente de “10 milhões e três séculos

depois eram de 1 milhão”; com o que se havia destruído um sistema econômico e social. “O

povo incario era um povo de camponeses, dedicado originariamente à agricultura e ao

pastoreio. As indústrias, as artes tinham um caráter doméstico e rural. No Peru dos incas era

mais certo que em povo algum o princípio de que a vida vem da terra (Mariátegui, 1994a: 26).

Segundo Mariátegui (1994a: 27), o colonizador espanhol “tinha uma ideia, um pouco

fantástica, do valor econômico dos tesouros da natureza, mas não tinha quase ideia alguma do

valor econômico do homem [...] A perseguição e escravização dos índios desfazia velozmente

um capital subestimado em grau inverossímil pelos colonizadores: o capital humano [...] Seu

interesse consistia por converter num povo mineiro ao que, sob os incas e desde suas mais

remotas origens, havia sido um povo fundamentalmente agrário. Deste fato nasceu a

necessidade de impor ao índio a dura lei da escravidão [...] O trabalho das minas e das cidades

devia fazer dele um escravo”.

O sistema colonial espanhol não se estabeleceu nas margens dos novos territórios, mas no

interior deles. Sua finalidade não era encontrar mercado para produtos metropolitanos, mas

extrair produtos que, dada a tecnologia da época, conduziam até uma utilização massiva da

força de trabalho. Estabelecem minas e junto delas, cidades e fazendas. Para controlar os

índios, os organizam em povos seguindo o padrão das comunidades castelhanas. Assim

podem estar vigiados, ser facilmente mobilizáveis para a missa e dispostos a escutar a prédica

religiosa. Os índios acabam sendo dominados (Cfr. Flores Galindo, 1986: 40).61

Após a implantação do sistema colonial, sua consolidação, os movimentos

independentistas tampouco significaram “como se sabe, um movimento indígena.

Promoveram-no e usufruíram os crioulos e ainda os espanhóis das colônias. Mas aproveitou o

apoio das massas indígenas. E, ademais, alguns índios ilustrados como Pumacahua, tiveram

61 Os espanhóis trazem para a América a noção de culpa, que segundo Flores Galindo, a introduzem nos vencidos como meios para dominar suas almas. “A imaginação europeia desse momento está povoada por demônios e gênios do mal... os índios como seres humanos não estão excluídos do pecado original, o pecado eram suas práticas qualificadas de idolátricas, seus costumes considerados aberrantes, sua vida sexual, sua organização familiar, seus ritos religiosos... multidão de faltas que explicava porque tiveram que se derrotados (Flores Galindo, 1986: 41).

69

em sua gestação parte importante” (Mariátegui, 1994a: 21). E o mais contraditório deste

processo, para o autor, é que a República o tocava elevar a condição do índio, e pelo contrário

acabou pauperizando, agravando sua depressão e exasperando sua miséria (Idem: 22). Em

uma população claramente agrária, o despojo da terra constituiu uma “dissolução material e

moral” (Idem). Por essas razões, todas as revoltas e “tempestades dos índios, haviam sido

afogadas em sangue” (Idem: 23);

Mariátegui coloca a questão da terra como central para o problema do índio, pensando que

a propriedade coletiva foi um sistema de “comunismo agrário”, sendo possível recuperar

alguns de seus elementos que nos permitam pensar num socialismo “Indoamericano”. Isto não

significa a mera reprodução do chamado “comunismo incaico” nas atuais condições, mas

implica pensar como esse “comunismo moderno” é re significado em função de um passado,

sem negar que este nasceria dessa tradição, dessa experiência; recuperando as lutas e as

diferentes formas sociais desenvolvidas antes da conquista. Para Mariátegui (1994a: 36), a

recuperação deste “comunismo agrário” tem que ver como que no processo de construção da

república “o conceito de propriedade individual quase teve uma função antisocial [...] por

causa de seu conflito com a subsistência da ‘comunidade’”. Assim durante o período

republicano “os escritores e legisladores nacionais mostraram uma tendência mais ou menos

uniforme de condenar a ‘comunidade’ como um resquício de uma sociedade primitiva ou

como uma sobrevivência da organização colonial” (Idem: 37). Assim retomando a Castro

Pozo, que considera que é o primeiro intelectual que recupera a discussão da “comunidade”

desde uma visão socialista e um estudo concreto dessa experiência (em “Nuestra Comunidad

Indígena”), observa que se poderiam distinguir quatro formas existentes nesse momento:

“Comunidades agrícolas; Comunidades agrícolas-pecuárias; Comunidades de Pasto e água:

Comunidades de usufruto” (Idem: 38). Tendo em conta que cada uma delas se encontra

presente nas outras três formas, mas o conjunto de fatores externos acabou impondo a cada

um destes grupos um determinado gênero de vida em seus costumes, usos e sistemas de

trabalho.

Um dado importante para Mariátegui (1994a: 39), em como se mantém vigente a forma de

comunidade em diferentes aldeias indígenas de onde se haviam extinguido os vínculos

patrimoniais e do trabalho comunitário, “subsistem ainda, robustos e tenazes, hábitos de

70

cooperação e solidariedade que são a expressão empírica de um espírito comunista. A

‘comunidade’ corresponde a este espírito. É seu órgão. Quando a expropriação e a repartição

parecem liquidar a ‘comunidade’, o socialismo indígena encontra sempre o meio de refazê-la,

mantê-la ou substituí-la. O trabalho e a propriedade em comum são substituídos pela

cooperação no trabalho individual”62.

Com a ideia de “comunismo incaico”, Mariátegui intenta construir uma ferramenta que o

permita “desmistificar” o capitalismo. Num plano menos evidente, numa dimensão menos

observada e compreendida, contrapõe uma civilização baseada numa “cultura própria, num

espírito coletivista, numa cosmovisão intersubjetiva” e num “mito vital”, a outra baseada

numa “cultura alheia, opressiva e sustentada por fetiches lúgubres”. Também põe ênfase no

modelo organizativo dos incas e na utilização da tecnologia que, diferentemente do

capitalismo, desenvolveu uma “técnica que se combinava com o processo de produção que

não prejudicava” nem os recursos humanos nem os recursos naturais. O chamado é ao

“ayllu”63 e não ao Estado incaico, servindo-o como padrão para pensar um socialismo “não

estatista”, não admitindo representações “que reduzem o socialismo à propriedade estatal dos

meios de produção” (Mazzeo, 2008: 78-96). Mariátegui não realiza um chamado “idealista”

quando apela ao “comunismo incaico”, pelo contrário, é uma necessidade concreta com a qual

intenta enfrentar a forma social imposta pelo capital, que se apresenta como única e

necessária.

O resgate da “comunidade indígena” (Mariátegui, 1994a: 39) não “repousa em princípios

abstratos de justiça nem em sentimentais considerações tradicionalistas, mas em razões

concretas e práticas de ordem econômico e social. A propriedade comunal não representa no

Peru uma economia primitiva”. Mariátegui reforça esta observação sobre a comunidade,

baseando-se novamente na investigação levada a cabo por Castro Pozo, como Chefe da Seção

de assuntos indígenas do Ministério de Fomento, na qual fundamenta que “a comunidade

62 Disse Castro Pozo “o costume caiu reduzido às mingas ou as reuniões de todo era ayllu pra fazer gratuitamente um trabalho de cerco, acéquia ou casa de algum comunero, ou qualquer fazer o efetuam ao som de harpas e violinos, consumindo algumas arrobas de aguardentes de cana, pacotes de cigarros e mascadas de coca” (apud Mariátegui, 1994a: 39).

63 “Sistema de que reunia um conjunto de famílias aparentadas, com propriedade coletiva da terra ainda que divididas em lotes individuais, como propriedade coletiva das águas e dos bosques pertencentes a marca ou tribo, ou seja, a federação de ayllus, cooperação comum no trabalho, apropriação individual das colheitas e dos frutos” (Mariátegui, 1994a: 26).

71

indígena conserva dos grandes princípios econômico-sociais que até o presente nem a ciência

sociológica nem o empirismo dos grandes industriais puderam resolver satisfatoriamente: o

contrato múltiplo de trabalho e a realização deste com menor desgaste fisiológico e num

ambiente de agradabilidade, emulação e companheirismo” (Castro Pozo apud Mariátegui,

1994a: 40).

Num primeiro momento de sua vida intelectual Mariátegui coincide com os questões

clássicas, de corte etnocêntricos sobre o problema do suposto “atraso rural”, sustentando

numa conferência sobre a revolução alemã, em 1923 que o “proletariado agrícola não tem

suficiente saturação socialista, a suficiente educação classista para servir de base ao regime

socialista”, e portanto o instrumento da revolução socialista “será sempre o proletariado

industrial, o proletariado das cidades” (Mariátegui, 1994j: 871).Poucos anos mais tarde

Mariátegui realiza uma ruptura com este pensamento, deixando de conceber o socialismo com

etapa superior do liberalismo e a emancipação passará a ser concebida como uma obra das

“classes subalternas” (Mazzeo, 2008: 141), de onde estará presente o proletariado mas

sobretudo o campesinato-indígena. Isto se verá claramente refletido nos “siete ensayos de

interpretación de la realidad peruana” (1928), de onde se pode observar o movimento no qual

tenciona compreender as lutas indígenas que haviam desenrolado na década de 1910 e 1920

no Peru, como também a Revolução Mexicana64 e a própria Revolução Russa, como base para

a revolução latino-americana.

A ideia de “esperança utópica” e o marxismo como “o herdeiro e executor testamentários

de vários séculos de lutas e de vários sonhos de emancipação” (Löwy, 2005a: 57; T.N), que,

como assinalava Löwy, assim como Benjamin, se aplica plenamente ao pensamento

revolucionário de Mariátegui. Enfrentando o tradicionalismo conservador da oligarquia, o

romantismo retrógrado das elites e a nostalgia do período colonial, ele apenas a uma tradição

mais antiga e mais profunda: “o das civilizações indígenas pré-colombianas” (Löwy, 2005b:

64 Um evento que marcará o pensamento de Mariátegui – que já mencionamos – será a revolução mexicana, a primeira revolução agrária do século XX, o mostram o amauta como “os camponeses e os trabalhadores pobres do campo, partindo da guerra camponesa, chegaram a estabelecer uma aliança com o resto das classes subalternas. Esta revolução também mostrou como aqueles trabalhadores, inclusive aqueles que estavam sob influência de ideologias de esquerda ou progressistas, podiam julgar os papéis antipopulares e reacionários” (Mazzeo, 2008: 141).

72

18; T.N). Assim para Mariátegui “o passado inca entrou em nossa história, reivindicado não

pelos tradicionalistas, mas pelos revolucionários. Nisto consiste a derrota do colonialismo,

ainda sobrevivente, em parte, como Estado social – feudalidade, gamonalismo –, mas

derrotado para sempre como espírito. A revolução reivindicou nossa mais antiga tradição”

(Mariátegui, 1994c: 326)65.

Esta ideia de Mariátegui é fundamental para entender a articulação que realiza com o

“comunismo incaico”, e isto se baseia na distinção que efetua entre o “comunismo agrário e

despótico das civilizações pré-colombianas” e o “comunismo de nossa época”, herdeiro das

conquistas materiais e espirituais da modernidade. “O comunismo moderno é uma coisa

distinta do comunismo incaico, porque um e outro comunismo são um produto de diferentes

experiências humanas, pertencem a diferentes épocas históricas, constituem a elaboração de

diferentes civilizações: a dos incas foi uma civilização agrária, a de Marx e Sorel é uma

civilização industrial”. É com base nessa ideia que Mariátegui, não resgata uma organização

em Estado puro, pelo contrário intenta complexificar a leitura do que significaria nesse

momento o comunismo no Peru, em meio a lutas indígenas e operarias, resgatando

necessariamente uma tradição, num tempo histórico diferente. Por fim, reforça, “é absurdo,

(...) confrontar as formas e as instituições de um e outro comunismo. O único que pode

confrontar-se é sua incorpórea semelhança essencial, dentro da diferença essencial e material

do tempo e espaço” (Mariategui, 1994a:36). Num pé de página dos “Siete ensayos”, falando

do “Comunismo Moderno”, e numa defesa de como seria o mesmo, respondendo as críticas

sobre esta tesis de Aguirre Morales em “El pueblo del sol”, Mariátegui desenvolve a ideia de

liberdade que estaria contida dentro desse comunismo, criticando a ideia de uma “liberdade

individual” necessária para outras culturas, observa que “o homem do Tawantisuyo não sentia

absolutamente nenhuma necessidade de liberdade individual. Assim como não sentia

65 Na senda que apresenta Löwy, é possível pensar que Mariátegui com este apelo ao passado incaico realiza uma crítica a uma visão unlinear da história. Desta maneira se aproxima da leitura que Walter Benjamin realiza em suas “Teses sobre o conceito da história” sobre a revolução, concebendo-a não como resultado “natural” ou “inevitável” do progresso económico e técnico, mas sim como uma interrupção de uma evolução histórica que leva à catástrofe (apud Löwy, 2005a: 103). Diz Löwy, analizando a tese XI de Benjamin que “essa concepção evolucionista/positivista da história ‘só que se aperceber dos progresos da dominação da natureza, mas não dos retrocesos da sociedade’ […] Ao contrario de tantos outros marxistas, Benjamin percebeu claramente o aspecto moderno, técnicamente ‘avançado’ do nazismo, asociando os maiores ‘progressos’ tecnológicos – principalmente no dominio militar – aos mais terríveis retrocessos sociais” (Idem). Horkheimer influenciado pela leitura das “Teses sobre o conceito da história” de Benjamin, formulará que toda forma de transformação radical da sociedade não pode ser pensada como uma “aceleração do progresso”, mas como um “salto para fora do progresso” (Cfr. Horkheimer apud Löwy, 2005a: 99).

73

absolutamente, por exemplo, nenhuma necessidade de liberdade de imprensa [...]. Para que

poderia servi-lo, por conseguinte, ao índio esta liberdade inventada por nossa civilização?”

Para Mariátegui, a liberdade concebida pelo liberalismo não é um conceito universal, porque a

mesma “varia com as idades, os povos e os climas. Consubstanciar a ideia abstrata da

liberdade como as imagens concretas de uma liberdade com gorro frigio – filha do

protestantismo e do renascimento e da revolução francesa – é deixar-se tomar por uma ilusão

que depende talvez de um mero, ainda que desinteressado, astigmatismo filosófico da

burguesia e de sua democracia” (Mariátegui; 1994a:36). Mariátegui não é um pensador que de

deixa seduzir pelos preceitos contidos em qualquer revolução burguesa, e nas conquistas

ocidentais, o que dá sustento inovador a seu marxismo, e às próprias leituras do mundo andino

realizadas até o momento.

A recuperação das comunidades agrárias significava a atualização de outras formas sociais

que nos permitiriam dar um salto ao “comunismo”, como proposta de outra organização

social oposta à colocada pelo capitalismo, que também estaria dado por uma crítica dessa

forma de modernidade que foi trazida para as colônias, como um sintoma de desagregação e

violência.

A proposta de Mariátegui é a construção de algo “novo” que ainda não estava sendo

pensado nos termos de unidade latinoamericana. Poderíamos dizer que esta ideia de pensar a

conjugação do arcaico e moderno66 é algo muito mais intuitivo que sistemático em

Mariátegui, o que não permitiu que fosse uma ideia consolidada em seu pensamento. Não

obstante são vários os chamados que realiza para esta concepção. Para Mariátegui (1994a: 13-

14) no Peru “coexistem elementos de três economias diferentes. Sob o regime de economia

feudal nascido da conquista subsistem na serra alguns resíduos vivos todavia da economia

comunista indígena. Na costa sobre um solo feudal, cresce uma economia burguesa que, pelo

menos em seu desenvolvimento mental, dá a impressão de uma economia retardada”. É

interessante uma observação que realiza Mazzeo (2008: 91) que Mariátegui usa a categoria

feudal com um rigor muito mais político que teórico. Com esta observação é possível realizar

66 Mazzeo mostra que para Mariátegui “arcaico e moderno” na América-latina “são o resultado do mesmo processo histórico, da ‘mesma dialética’. Consegue identificar a combinação específica destes elementos que caracterizam o desenvolvimento do capitalismo na América Latina e o modelo de acumulação periférico. Antecipa-se assim às visões unitárias sobre desenvolvimento e subdesenvolvimento” (2008: 90).

74

um leitura da obra do mesmo que nos permite entender o esforço contido na mesma para

explicar a associação perversa e constitutiva dos elementos de atraso e progresso próprios da

formação da periferia, em seus processos de acumulação primitiva permanente. Este tema é

desenvolvido mais adiante neste trabalho.

Nos “siete ensayos”, Mariátegui (1994a: 30) para explicar o destino da comunidade

indígena sob o sistema colonial, realiza uma comparação como o que ocorreu com o “Mir”67

russo, que tanto este como a comunidade rural peruana sofreram uma completa

“desnaturalização”, transformando pouco a pouco a organização comunal num instrumento de

exploração.

A leitura sobre a realidade nacional como base para pensar a revolução provoca contra

Mariátegui a acusação de “populista”, que tem como função política fechar a temática da

realidade nacional (neste caso marcada pelo lugar do indígena) nos partidos comunistas, e que

como já vimos anteriormente seria totalmente rechaçada dentro da formulação das estratégias

para os países não Europeus. Apesar de desconhecer a ideia formulada por Marx em 1880

sobre a comuna rural na Rússia “como a possibilidade de eludir o capitalismo e passar

diretamente para a forma socialista de vida e de produção” (Marx [1880] 1980: 52),

Mariátegui consegue seguir esse mesmo caminho que o aproximará do movimento

indigenista. Por sua vez realiza o esforço de se aproximar do movimento operário moderno

com as massas camponesas indígenas, entendendo a “questão campesina” como a “questão

indígena” (Aricó, 1999: 175-181).

Sem os camponeses era impossível a revolução: “eles compensariam a debilidade

numérica dos operários”; mas para contar com a ação camponesa era imprescindível que “o

socialismo fosse uma garantia da vida rural no Peru”, assim o socialismo não se edificaria por

trás das costas dos camponeses (Flores Galindo, 1976: 69). “Os mesmo quatro milhões de

homens, ainda que não sejam senão uma massa inorgânica, uma multidão dispersa, são

incapazes de decidir seu rumo histórico” (Mariátegui, 1994a: 23).

Mariátegui (1994a: 26) observa que “uma economia indígena, orgânica, nativa, se forma

sozinha. Ela mesma determina espontaneamente suas instituições. Mas uma economia

colonial se estabelece sobre as bases em parte artificial e estrangeira, subordinada ao interesse

do colonizador”. Este processo colonizador incorpora uma contradição inerente ao processo 67 O Mir e outros tipos de organização comunal serão desenvolvidos e analisados mas adiante neste mesmo

trabalho.

75

de expansão do capital com a coexistência entre arcaico e moderno. A partir desse momento

Mariátegui faz eco com a crítica ao projeto civilizatório implementado pela conquista, assim

como também expressará as ideias que afirmam a necessidade de modernização nos países

atrasados em relação ao sistema capitalista. A colônia e a república impuseram às

comunidades a lógica de modos de produção que contribuíram para desquiciarlas, modos

destruidores dos equilíbrios da sociedade indígena tradicional Mas, apesar de tudo, com suas

bases materiais de existência já muito deterioradas até a década de vinte, despojada da terra e

menoscabadas suas formas coletivas de trabalho, a comunidade sobreviveu, e junto com elas

os “resíduos vivos de uma economia comunista indígena” (Idem: 14).

É uma tensão para ele nesse momento de construir o socialismo indo-americano. Seu

encontro com o mundo andino lhe permitiu ver a importância das utas para a construção desse

projeto e ademais a reflexão sobre o marxismo e a autonomia dos diferentes processos

históricos. O progresso no Peru não seria tal “se não fosse peruano” e isto significava “incluir

as quatro quintas partes da população que são indígenas” (Mariátegui, 1994a: 36). O problema

por ele colocado não era uma eleição entre o moderno e o tradicional, sem bem realiza uma

crítica da modernidade ocidental refletida em Lima, não pretendida refugiar-se no passado e

voltar atrás; pelo contrário queria ensaiar uma amalgama entre o marxismo e o indigenismo,

um encontro diferente “entre a cidade e o campo”, entre o “Ocidente e o mundo andino”

(Mariátegui, 1994c: 306).

O chamado passado incaico de alguma maneira propõe um questionamento às formas

absurdas, antisociais e desagregadoras impostas pelo regime colonial: “A conquista foi, antes

de tudo, uma tremenda carnificina” (Idem: 21)68. Um reclamo permanente ao fato de

converter todo recurso natural em mercadoria e de uma sociedade que só é apêndice do

mercado. Não é recolocar o modelo de organização incaico, é questionar a forma societária

que produz o capitalismo, de onde tanto a natureza como os homens começam a ser tratados

como mercadorias e bens produzidos para a venda, meios de produção de mais-valia. “A

destruição da economia [incaica] e por fim da cultura que se nutria de sua seiva – é uma das

responsabilidades discutíveis do colonialismo, não por faver constituído a destruição das

formas autóctones, mas por não ter trazido consigo sua substituição por formas superiores. O

regime colonial desorganizou e aniquilou a economia agrária incaica, sem substituí-la por 68 David N. Cook assinala que até 1530 o território atual do Peru devia ter uma população aproximada de

2.738.673 habitantes, reduzidos para 601.645 indígenas en 1630 (apud Flores Galindo, 1986: 39).

76

uma economia de maiores rendimentos. Sob uma aristocracia indígena, os nativos

compunham uma nação de dez milhões de homens, com um Estado eficiente e orgânico cuja

ação chegava a todos os âmbitos de sua soberania; sob uma aristocracia estrangeira os nativos

se reduziram a uma dispersa e anárquica massa de um milhão de homens, caídos nas servidão

e no ‘felahísmo’”(Mariátegui, 1994a: 26).

Uma vez que destruíram esta forma social de produção e reprodução social, os vínculos

orgânicos dessa sociedade foram aniquilados, dissolvendo-se em comunidades dispersas, e o

“trabalho indígena cessou de funcionar de um modo solidário e orgânico” (Idem: 7). Assim os

colonizadores se ocuparam apenas de “distribuir e disputar o pingue botim de guerra.

Despojaram templos e palácios dos tesouros que guardavam; repartiram as terras e os homens,

sem se perguntar sequer por seu porvir como forças e meios de produção” (Idem).

É por esta razão que o chamado Tahuantisuyo69 apela a um socialismo que “não violente”,

ou seja, que dê conta das “singularidades, que não seja fruto de uma imposição externa e

compulsiva de uma totalidade totalizante” (Mazzeo, 2008: 84). A esta altura Mariátegui sabe

que o verdadeiro problema do marxismo é como modificar e transformar uma ordem social.

Não começou descrevendo uma sociedade para depois pensar em sua abolição, mas partiu

assumindo um voto contra a ordem oliguárquica, isto é, partiu de uma certa opção política.

Sua marcha ao socialismo começou por um forte rechaço à sociedade em que vivia, por um

“anti”; mas logo perceberá que esse “anti” era insuficiente para fundar o socialismo no Peru.

Havia que dar um conteúdo afirmativo a esta palavra.

Quais eram as bases do projeto mariateguiano que faz que em 1928 se enfrente com o

projeto messiânico e hierárquico de Haya de la Torre? As bases sociais do projeto aprista são

muito evidentes na história peruana, se as pode comprovar não só citando discursos políticos

mas ademais rastreando o mundo das ideias coletivas. Portocarrero dizia que no Peru dos

inícios da República, os liberais ganharam a batalha ideológica mas os conservadores

ganharam a batalha no mundo do cotidiano. Não se tem o mesmo êxito ao descobrir as bases

mariateguista, “ele estava convencido de que as comunidades indígenas constituíam um

reservatório de tradições democráticas porque eram essencialmente igualitárias”. Ali esperava

encontrar um respaldo. “Sabemos agora que seus conhecimentos sobre o mundo camponês e

indígena eram muito escasso” e que construiu uma imagem das “comunidades sem conflitos

69 Denominação outorgada do Império Inca, cuja capital estava localizada em Cuzco, hoje cidade do Peru.

77

que não havia existido nunca” (Flores Galindo, 2008: 4). Em 1920, essas comunidades

estavam fortemente erodidas pelas relações de mercado, havia iniciado processos de

privatização de terras e todo isso gerava fortes conflitos no interior do mundo camponês. Mas

Mariátegui sabia que “um projeto revolucionário para ser eficaz, devia inserir-se em uma

tradição histórica” (Idem).

2.3  A figura do mito e da utopia andina

A figura do mito em Mariátegui se inscreve naquilo que chamamos anteriormente de uma

“visão de mundo romântica”, que significava por um lado a crítica ao projeto civilizatório da

Europa Ocidental, e por outro lado sua relação com o passado inca, e as formas que essa

combinação adquiriu nos Andes.

É impossível desvincular esta figura do mito de este duplo movimento de Mariátegui: a

compreensão do progresso capitalista e a destruição de uma cultura milenar.

Nutrido, como assinalamos, do surrealismo, de Sorel, do marxismo e da própria cultura

andina, Mariátegui apelará para uma figura sincrética que permita entender a relação entre o

misticismo popular e a práxis revolucionária. A “visão de mundo romântica” se vê claramente

alimentada e enriquecida pela utopia andina.

Como foi possível a relação entre o messianismo de Mariátegui e sua ação política? A

resposta está dada pelos ciclos de lutas que se desenvolvem desde a conquista até o momento

dos Andes.

A construção da utopia andina data dos tempos da colônia espanhola, e sua maior base

está ancorada na religiosidade da cultura inca. A Violência em sua forma militar e religiosa

foram o marco em que se desenvolveu a conquista.

A utopia andina, segundo Flores Galindo (1986: 81) é uma criação coletiva elaborada a

partir do século XVI. Seria absurdo imaginá-la como o prolongamento inalterado do

pensamento andino pré-hispânico. Para este mesmo autor, um conceito que pode ser útil para

entendê-la é a “disjunção”: “provem da análise iconográfica e se utiliza para assinalar que na

situação de domínio de uma cultura sobre outras, os vencidos se apropriam das formas que

78

introduzem os vencedores mas os outorgam um conteúdo próprio, com o que terminam

elaborando um produto diferente” (Idem: 82).

A história da utopia andina alterna períodos quentes, onde confluem com grandes

movimentos de massas, seguidos por outros de postergação e esquecimento. Não é uma

história linear. Pelo contrário, se trata de várias histórias: “a imagem do Inca e do

Tahuantinsuyo dependem dos grupos ou classes que as elaborem” (Idem: 22).

Em 1780, a revolução tupamarista foi o intento mais ambicioso de converter a utopia

andina em programa político. Se houvesse triunfado, Cuzco seria a capital do Peru, a serra

dominaria sobre a costa, o que teria significado uma mudança radical na sociedade colonial. A

medida que avançava o desenvolvimento da revolução, os indígenas logravam deslocar-se até

outros grupos sociais, conseguindo a hegemonia e logrando impor as reivindicações

camponesas, em claro enfrentamento contra todo o ocidental. Estas rebeliões implicavam um

rechaço ao colonialismo mas também ao progresso, no sentido que ao término começava a

assumir na Europa das luzes identificado com o desenvolvimento capitalista. Se houvesse

triunfado esta revolução, teria implicado uma transformação estrutural da sociedade colonial,

de onde as massas almejavam a vota a esse Tahuantinsuyo que a imaginação popular havia

criado com os traços de uma sociedade igualitária, um mundo homogêneo composto só por

runas (campesinos andino) onde não existiriam nem grandes comerciantes, nem autoridades

coloniais, nem fazendas, nem minas, e aqueles que eram até então párias e miseráveis

voltariam a decidir seu destino (Cfr. Flores Galindo, 1986: 93-104).

Logo, durantes a independência (1824), a utopia andina não esteve ausente no discurso

crioulo, mas sim como as massas camponesas não tiveram uma intervenção multitudinária, os

incas foram reduzidos a certos tópicos e imagens. Se os invocava com um passado do qual os

militares crioulos se imaginavam continuadores. A volta do Inca termina confinada aos

espaços rurais: “a ideia subterrânea e clandestina, confundida com o folclore dos povos ou

com os surtos temores dos brancos” (Idem: 223).

Flores Galindo (1986: 307), observa que aquilo que foi só uma intuição em Mariátegui, só

79

será retomado muitos anos depois por Jorge Brasadre70: “o fenômeno mais importante na

cultura peruana do século XX é o aumento da tomada de consciência acerca do índio entre

escritores, artistas, homens de ciência e políticos”. Toda isso, independentemente de

discrepância e contradições, foi tributária da utopia andina. Racharam uma ordem ideológica

até então hegemonizada de maneira excludente pela oligarquia. De acordo com sua

percepção, esta “tomada de consciência” teve um alto conteúdo subversivo e permitiu à

intelectualidade tanto cuzquenha como limenha “abandonar o território apaziguado das ideias

desencarnadas, para encontrar-se com as lutas e os conflitos, com os homens no plural, com

os grupos e as classes sociais, com os problemas do poder e da violência na sociedade”. Mas,

isto teria sido possível sem as rebeliões de 1920?

A relação do indigenismo com a revolução socialista permitiu compreender como os incas

habitavam a cultura popular, e qual era a correlação existente entre cultura andina e pobreza

(Flores Galindo, 1986: 19). Este autor define a utopia andina como a possibilidade de

“converter o ódio cotidiano e interno, a raiva, num gigantesco incêndio, numa força

transformadora” (Idem: 22).

Mas a restauração do império incaico foi uma alternativa real a partir das revolutas em

1920? Segundo Flores Galindo (1986: 291), não existem as evidências necessárias para

afirmar que os camponeses chegaram a formular um programa desse estilo, mas é indubitável

que os proprietários de terra estiveram convencidos que se tratava de uma “verdadeira guerra

de castas” e para alguns intelectuais, de Lima ou províncias, esses acontecimentos podiam

estar anunciando o esperado renascimento andino. Inserir as rebeliões dos anos 20 no interior

de uma história prolongada, não foi unicamente a elaboração de intelectuais demasiados

esperançosos no foto e na dinamite71. O sincretismo de uma memória popular, segundo (Idem:

294), revela a persistência de uma tradição.

O mito vivia nos Andes. As lutas camponesas tinham uma sustentação na recordação mas

também na mesma vida material das comunidades que, em pleno século XX, mantinham essas

relações coletivistas que foram a estrutura mesma da sociedade incaica (Idem). Desta

maneira, o socialismo, assimilado por intelectuais e operários das cidades e das minas, podia

encontrar adeptos entre essas massas camponesas que eram a maioria do país. Ideia importada 70 Basadre, Jorge: “Perú: problema y posibilidad”. Lima. 198071 Na Bolivia, durante esses mesmos anos, alguns camponeses se propusera a resgatar restos de Túpac Catari.

80

da Europa mas capaz de fundir-se com as tradições andinas: o socialismo ante que o discurso

ideológico, “era a forma que adquiria um nosso tempo o mito” (Mariátegui, 1994f: 499).

O socialismo em Mariátegui era a superação da ideia liberal, a democracia que adverte nos

soviets contrapostos ao parlamentarismo burguês. Então não se tratava de prolongar uma

tradição andina – a do comunismo agrário – mas de alimentá-la da construção de uma

sociedade nova. O pensamento dele – igual a grande parte da cultura peruana dos anos 20 –,

foi tributário da utopia andina. Aqui radicava toda a particularidade de seu marxismo. Flores

Galindo (Idem: 297) se pergunta sobre o que tornou possível esse encontro? É que entre

Mariátegui e o mundo andino existia um terreno comum, um lugar de encontro privilegiado: a

religião. Para este a religião era um fato pessoal e também um fato coletivo.

Os indigenistas ofereciam a possibilidade de vincular o marxismo com o mundo andino.

Herdeiro da utopia andina, como marco da luta e do sincretismo religioso, Mariátegui

enfrenta a realidade nacional com o advento da violência em nível mundial. Os ecos da

primeira guerra significaram uma ruptura com suas ilusões positivistas, que ancorada na

filosofia positivista geravam uma incompatibilidade forte com esse sincretismo do qual

Mariátegui era parte. A partir desse momento, este começa a usar o que foi acumulado em sua

viagem pela Europa, seus encontros com os surrealistas, suas leituras sorelianas, passa a ser

parte do grupo de intelectuais que realizará uma crítica da razão da civilização burguesa,

principalmente através da ideia do mito. O referente que busca para construir essa ideia é

Sorel, que como já mencionamos anteriormente é um dos pilares na formação mariateguiana,

uma guia para sua reflexão e para a elaboração de uma proposta própria.

Ante a leitura da decadência da “razão burguesa” (Quijano, 1995:42-45), a proposta

própria consistia numa “racionalidade alternativa à dominante no ocidente” (Idem), é nessa

preocupação subjetiva, individual, da experiência humana e sua relação com a transformação

social que Mariátegui logra relacionar estes autores: Sorel e Marx. A necessidade de elaborar

uma “racionalidade integradora” (Idem), que permita entender América Latina não como um

continuum homogêneo, mas como uma “estrutura historicamente heterogênea” (Idem) e que é

essa a forma de percebê-la para não distorcê-la, é essa a preocupação de Mariátegui.

É nesta preocupação onde se situa a concepção de mito, que não é cópia, como se pensa,

81

de Sorel72, porque os interesses do filósofo francês eram de outra índole e contexto. Para

Mariátegui a questão maior era a necessidade de uma “força mobilizadora” (Quijano, 1995:

47) para América Latina que indubitavelmente se diferenciava da Europa. Por isso, ante uma

leitura de que os oprimidos e explorados no Peru são indígenas, a questão de “raça” (Idem) se

converte na chave para essa mobilização e “também pensando que para os índios dos Andes,

talvez aquele socialismo que vinha da Europa significava um retrocesso” (Idem).

Recuperando não suas leituras de Sorel, mas também a influência do surrealismo e sua

ideia de mito coletivo, resignificava um passado, uma tradição que é a incaica, dando

fundamento a sua crítica sobre a decadência da razão burguesa, a esse afiançamento da

sociedade ocidental burguesa, à ideia de progresso que o levava a pensar que a força

mobilizadora estaria baseada nesse mito, que significava nas palavras de Mariátegui uma “fé,

uma crença, vontade, paixão” (Mariátegui, 1994f: 499) que estaria fora da “racionalidade

ocidental burguesa”, cuja decadência estava baseada na falta desse “mito”73(Idem).

Poderíamos dizer que a ideia de mito afastava Mariátegui do plano de uma análise

objetiva da realidade, o leva a formulações metafísicas e meramente espirituais. Contra a ideia

de que se afasta dessa análise objetiva, a recuperação do mito, essa ideia soreliana, responde a 72 A distinção que Sorel realiza sobre o mito e utopia é que “A utopia, ao contrário, é o produto de um trabalho

intelectual; é obra dos teóricos que, após terem observado e discutido os fatos, buscam estabelecer um modelo que possam comparar as sociedades existentes para avaliar o bem e o mal que encerram; é uma composição de instituições imaginárias, mas que mantém com instituições reais analogias bastantes grandes para que o jurista possa pensar sobre elas; é uma construção desmontável, de que alguns pedaços foram talhados de maneira que possam passar (mediantes certos ajustes) numa legislação futura. Enquanto nossos mitos atuais conduzem os homens a se prepararem para um combate destinado a destruir o que existe, a utopia sempre teve por efeito dirigir os espíritos para reformas que poderão ser efetuadas fragmentando o sistema. Não é de surpreender, portanto, que tantos utopistas puderam tornar-se homens de Estado hábeis quando adquiriram uma maior experiência da vida política. Um mito não poderia ser refutado, pois no fundo é idêntico às convicções de um grupo, é a expressão dessas convicções em linguagem de movimento, sendo portanto indecomponível em partes que possam ser aplicadas num plano de descrições históricas. A utopia, ao contrário, pode ser discutida, como toda constituição social. Podem-se comparar os movimentos automáticos que ela supõe como aqueles constatados ao longo da história e, assim, apreciar sua verossimilhança. Pode-se refutá-la demonstrando que a economia sobre a qual a fazem repousar é incompatível com as necessidades da produção atual” (Sorel; 1992: 49-50). A ideia de “mito” adquire concreticidade na medida em que o mesmo se mantém no laço que une a luta histórica com um campo de possibilidades do presente.

73 Disse Mariátegui em El alma matinal “O que mais nítida e claramente diferencia nesta época a burguesia e o proletariado é o mito. A burguesia não tem já mito algum. Se tornou incrédula, cética e niilista. O mito liberal renascentista, envelheceu muito. O proletariado tem um mito: a revolução social. Esse mito se move com uma fé veemente e ativa. A burguesia nega; o proletariado afirma. A inteligência burguesa se entretêm numa crítica racionalista do método, da teoria, da técnica dos revolucionários. Que incompreensão! A força dos revolucionários não está em sua ciência; este em sua fé, em sua paixão, em sua vontade. É uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do mito. A emoção revolucionária, como escreve num artigo sobre Gandhi, é uma emoção religiosa. Os motivos religiosos se deslocado do céu para a terra. Não são divinos, são humanos, são sociais” (1994e: 449).

82

uma necessidade de enfrentar uma matriz de interpretação sobre a história universal gerada

pela racionalidade ocidental e adotada pelo marxismo, que não conseguia refletir essa

formação heterogênea que era a América Latina. A ideia do mito é um intento, é um esboço de

outras formas de olhar a América no contexto da história universal. Ficar preso ao mito e

reduzi-lo a um mero ecletismo, idealismo, misticismo, é perder a riqueza que atravessa toda a

visão de Mariátegui sobre a América Latina.

Com uma leitura do avanço da violência a nível mundial, sobre como ela adquire novas

formas com o fascismo que mencionamos anteriormente, e que rapidamente se expandiria

para o resto do mundo, com a vivência de um país onde a conquista mostrou desenvolvidas

formas de desagregação humana e natural, era preciso marcar onde se encontraria a diferença

com essa maneira de olhar o mundo da sociedade ocidental como transformá-lo.

A recuperação da tradição incaica, para Mariátegui se base no que ele chamava

“evangelho indigenista”, referindo-se ao célebre Tempestad en los Andes de onde Valcárcel

assumirá como necessidade de um mito para a recuperação desta tradição: “não é a

civilização, não é o alfabeto do branco, o que levanta a alma do índio. É o mito, é a ideia da

revolução socialista. A esperança indígena é absolutamente revolucionária. É mito mesmo, a

mesma ideia, são agentes decisivos do despertar de outros velhos povos, de outras velhas

raças em colapso: hindus, chineses etc.” (Mariátegui, 2004a: 17).

A visão utópica-mítica em Mariátegui é uma tentativa de recuperar as lutas derrotada74 dos

povos dos Andes, com sua atualização necessária no novo contexto peruano, de onde o mito

recuperaria o nexo necessário entre essas diferentes lutas. A “visão romântica” é fundamental

para entender esta construção mariateguiana, que segundo Löwy (1997: 26) o “romantismo

anticapitalista é um fenômeno político e cultural particular, que até agora não recebeu atenção

merecida porque escapa às classificações habituais”. Um dos temas essenciais da crítica desta

visão de mundo, como já assinalamos, é a oposição entre Kultur, um universo espiritual de

valores éticos, religiosos e estéticos, e Zivilization, o mundo do progresso econômico e

técnico, materialista e vulgar. Se o capitalismo seria, segundo a expressão de Marx Weber, o

desencantamento do mundo75, o romantismo anticapitalista deve ser considerado antes de tudo

74 Walter Benjamin, nas “Teses sobre el concepto de la historia” realiza uma tentativa de compreensão do “ponto de vista dos vencidos, [no qual entra] não só a história da classe oprimida, mas também a história das mulhres, dos indígenas, dos negros” (Löwy, 2005a: 39).

75 Este análise weberiana é diferente da leitura que Marx realiza em O Capital onde mostra que o capitalismo não seria um “desencantamento do mundo” e sim um “reencantamento”, daí que surge a necessidade de

83

como uma “tentativa nostálgica e desesperada de re-encantamento do mundo, que tem como

uma de suas dimensões essenciais o retorno à religião, o renascimento de múltiplas formas de

espiritualidade religiosa” (Idem: 30). Esta visão representa a possibilidade de incorporar a

“tradição dos oprimidos” (Benjamin apud Löwy, 1997: 203), que, no caso de Mariátegui,

seria la utopia andina.

A visão romântica se vê interpelada pelo estado de regressão social provocado pela

explosão da Primeira Guerra, a qual passou a interrogar a ideias de progresso e essa segurança

que exibiam os que se sentiam civilizados, o que dará origem a várias vertentes e começará a

circular a ideia de utopia novamente, aparecendo em 1918 no título de um livro de Ernst

Bloch. Mariátegui se relaciona com estes novos ares de maneira muito particular, do que ele

mesmo chamará de fator religioso, tendo uma preocupação quase mística que o diferenciava

de outros contemporâneos. “Interroga o marxismo desde uma tradição popular” (Flores

Galindo, 1979: 187), particularmente forte, “formada pela religião e pela religiosidade no

Peru” (Idem), convertendo-se num elemento importante como aglutinadora das massas

populares.

Esta relação do fator religioso com o marxismo vai marcar alguns problemas em

Mariátegui, que serão o modo como ele assume o marxismo: 1) A não resolvida tensão entre

uma concepção do marxismo como teoria da sociedade e da história, e o método de

interpretação e ação revolucionária, por um lado, e a filosofia da história, apta para receber as

águas de outras vertentes filosóficas que contribuíram para a permanência da vontade de ação

revolucionária, por outro lado; 2) vinculada a anterior, a insistência na centralidade da

vontade individual como fundamento da ação histórica, e por fim na necessidade de um

alimento de fé e de fundamento metafísico para a restauração de uma moral humana

despojada dos lastres da consciência burguesa (Cfr. Quijano, 2007: LXI).

Como vimos anteriormente essa ideia de mito em Mariátegui, que tem o papel de

enfrentar o positivismo por um lado e o niilismo por outro, é o produto de um conjunto que

consegue realizar entre uma concepção de marxismo como “método de interpretação histórica

analisar o fetichismo da mercadoria (Cfr. El Capital, cap. 1-Livro I). Esta chave weberiana serve para entender os efeitos provocados em toda uma geração que enfrenta um processo de regressão social no marco da Primeira Guerra Mundial.

84

e da ação e uma filosofia da histórica de explícito conteúdo metafísico e religioso” (Quijano,

2007: LXVIII). A partir deste entendimento do marxismo se produz uma tensão em seu

pensamento e que se fundamenta na busca permanente por uma “reflexão sobre a práxis”

(Mazzeo, 2008: 47).

3. Caio Prado Jr.76

3.1  Povoamento da colônia

O nascimento do Brasil a partir da colônia se dá pela conjunção dos “núcleos opostos”,

por um lado um “núcleo orgânico” do sistema colonial de produção, localizado no trabalho

dos escravos do litoral e por outro sua “periferia inorgânica”, “um número mais ou menos

avultado de indivíduos desamparados, evidentemente deslocados, para quem não existe o dia

de amanhã, sem ocupação formal e fixa, ou desocupados inteiramente, alternando o recurso à

caridade com o crime” (Prado Jr., 2000: 293).

Esse setor “inorgânico” vive na situação caótica, tornando-se um mero apêndice da grande

exploração, “a estrutura social, a organização política e as formas culturais”, todas elas se

subordinam a grande exploração (Ricupero, 2000: 140; T.N).

Por esta razão é que para Caio Prado, o fundamento da colônia é uma “empresa

comercial”, que estava destinada a explorar os recursos humanos e naturais necessários para o

comércio europeu, e que neste sentido é que surge a América Latina e especificamente o

Brasil; é este o caráter constitutivo que se manterá ao longo de três séculos e que fará da

América Latina o que é hoje. O sentido da colônia desde o começo n]ao foi povoar o

território, era o “comércio” o que os interessava e por isso existia esse desprezo pelo povo

primitivo da América. A ideia era “de ocupar [...] apenas como agentes comerciais,

funcionários e militares para a defesa, organizados em simples feitorias destinadas a

mercadejar com os nativos e servir de articulação entre as rotas marítimas e os territórios

ocupados” (Prado Jr., 2000: 12-20).

76 As reflexões e análises destas chaves de leitura sobre a obra de Caio Prado Júnior foram abertas, enriquecidas e aprofundadas a partir da disciplina oferecida pelo prof. Marildo Menegat “Teoria Crítica no Brasil” na Escola de Serviço Social/UFRJ. Ano 2008/1, de onde extraí os pontos chaves para pensar a relação das mesmas com o pensamento crítico latino-americano e sua riqueza na análise sobre a formação histórica da América Latina.

85

Mas à medida que se desenvolvem as diferentes atividades de extração dos recursos,

começa-se a ver a necessidade de “[...] ampliar estas bases, criar um povoamento capaz de

abastecer e manter as feitorias que se fundassem e organizar a produção dos gêneros que

interessassem ao seu comércio. A ideia de povoar surge daí, e só daí” (Idem) é então quando

surge a ideia de povoar.

Desta maneira, a vida colonial da América sofrerá a falta de um “nexo moral” (Prado Jr.,

2000: 357), definindo-se desta maneira pela desagregação, pelas forças dispersas. Estes

setores “inorgânicos expulsos” (Leite da Silva Dias, 1989: 386), vivem nas áreas pobres e não

podem gerar uma organização econômica significativa. “É isto, em resumo, que o observador

encontrará de essencial na sociedade da colônia: de um lado uma organização está aí no que

diz respeito a relações sociais de nível superior; doutro, um Estado, ou antes um processo de

desagregação mais o menos adiantado, conforme o caso, resultante ou reflexo do primeiro, e

que se alastra progressivamente” (Prado Jr., 2000: 356).

Em a “Formação do Brasil”, no plano das realizações humanas se criava “algo novo” que

se concretizava num organismo social complexo e distinto com uma população bem

diferenciada, étnica e territorialmente, uma estrutura material particular, constituída com base

de elementos próprios, uma organização social definida por relações específicas, e até uma

certa “atitude” mental coletiva particular” (Prado Jr., 2000: 2).

O que define esse “inorgânico”, esse antagonismo, esse eixo central para entender o

processo de formação da América Latina depois da conquista, nas quais a falta de “nexo

moral”, visto neste seu sentido mais amplo como “o conjunto de forças de aglutinação,

complexo de relações humanas mas que mantêm ligados e unidos os indivíduos de uma

sociedade e os fundem num todo coeso e compacto” (Idem: 357) fica inconcluso. Ao

contrário, na sociedade colonial as relações se definem pela “inércia”, que apesar de ser

“infecunda dão uma certa estabilidade à estrutura colonial”. O que mantém a precária

integridade do conjunto são os “laços materiais primários, econômicos e sexuais” (Idem). É

com base nisto que a sociedade se manteve é desta maneira a colônia pôde continuar77.

77 Arantes (2004: 59) retoma esta ideia de Caio Prado para explicar esta fratura que vivem (e seguiram se aprofundando) as sociedades contemporâneas marcando que de onde se disse “falta de nexo moral” em uma “quase-sociedade de vanguarda mercantil, podemos ler erosão e invalidação do tal lien social, cuja

86

A especificidade da América Latina estaria dada por essa forma particular em que esse

modelos de produção diferentes funcionam numa mesma unidade, é o que foi sendo

aprofundada no curso do século XX, essa especificidade estará marcada neste longo período

pela criação de “uma grande ‘periferia’ onde predominam relações de produção não-

capitalistas, como forma e meio de sustento e alimentação do crescimento dos setores

estratégicos nitidamente capitalistas, que são a longo prazo a garantia das estruturas de

dominação e reprodução do sistema (Cfr. Oliveira, 2003: 69).

São os mesmos elementos que dão organicidade, os que produzem contradições

inorgânicas. Para Caio Prado, a organização jurídico-política e a estrutura econômico-social

do país é um exemplo desta relação: por um lado se conforma um “Estado Nacional” segundo

o modelo do centro capitalista, transplantando para as colônias instituições liberais que

garantiam a cidadania; e por outro lado a produção voltada para as necessidades estranhas à

população local, o que origina “uma maior exclusão para os habitantes” (Cfr. Prado Jr., 1957:

63).

América foi constituída tanto por aqueles que a povoaram com o fim comercial pelo qual

surge, como também pelas massas indígenas que habitavam antes da conquista e que foram

arrastados brutalmente para o trabalho escravo, iniciando-se uma caça do homem pelo

homem, expedições predadoras de gente, onde milhares e milhares de pessoas serão iniciadas

na “‘beleza’ da civilização” (Prado Jr., 1957: 23), como assim também os escravos trazidos da

África, e finalmente uma parte dos colonizadores que por alguns períodos e em determinadas

regiões tiveram que submeter-se ao regime de escravidão78.

Mariátegui ao se referir a essas massas indígenas e escravas, falava da “perseguição e da

escravização dos índios”, o que levou à perda de grande parte do “capital humano”, pelo que

evaporação contemporânea tira o sono dos franceses ameaçados de brasilianização”78 Encontraremos em Caio Prado uma caracterização da diferença que teve o trabalho colonizador dependendo

também das regiões dentro do Brasil onde o mesmo se encontrava. É assim que a relação do colonizador com o indígena na região do amazonas é diferente daquela estabelecida na Bahia, por exemplo, revelando-se com total crueza com a população indígena da região. “A evolução do Brasil, de simples colônia tropical para nação, tão difícil e dolorosa e cujo processo, mesmo em nossos dias, ainda não se completou, seria lá muito retardada. A Amazônia ficou, neste sentido, muito atrás das demais regiões ocupadas e colonizadas do território brasileiro” (Prado Jr., 1981: 52).

87

o colonizador precisou de “outros” “braços para a exploração e aproveitamento das riquezas”.

É assim que se recorre ao sistema mais antisocial e primitivo de colonização: “o da

importação de escravos”. Para Mariátegui desta maneira o colonizador “renuncia à conquista

do índio”, e se vale da raça negra “para suprir o desequilíbrio demográfico” (Mariátegui,

1994a: 27).

Segundo Franco, se realiza uma composição da sociedade nacional onde existe um amplo

setor formado por “homens livres na ordem escravocrata”: em sua maioria pauperizados,

relegados a serviços residuais, que a maior parte dos mesmos não podiam ser realizados por

escravos ou não o interessam aos homens com patrimônio. Ocupando este lugar

“intermediário” entre a escravidão e os latifundiários, estes homens não podiam nem obedecer

a norma em sua totalidade nem desprezá-la, um setor que ficava fora dos setores instituídos

pela colônia (Cfr. Franco apud Arantes, 1992: 46,69,73).

No período de colonização do Brasil, “a população livre, mas pobre, não encontrava lugar

algum naquele sistema que se reduzia ao binômio 'senhor e escravo'. Quem não fosse escravo

e não pudesse ser senhor, era um elemento desajustado, que não se podia entrosar

normalmente no organismo econômico e social do país. Isto que já vinha dos tempos remotos

da colônia, resultava em contingentes relativamente grandes de indivíduos mais ou menos

desocupados, de vida incerta e aleatória, e que davam nos casos extremos nestes estados

patológicos da vida social: a vadiagem criminosa e a prostituição. Ambos se disseminavam

largamente em todas as regiões de certa densidade demográfica” (Prado Jr., 1981: 148).

3.2  Lutas sociais no Brasil

Segundo Darcy Ribeiro (2000: 167-8), a historia brasileira está dilacerada por conflitos

étnicos, sociais, económicos, religiosos, raciais etc. E o mais chamativo é que estes em si

nunca foram conflitos puros, cada um se pinta com as cores dos outros “o processo de

formação do povo brasileiro, que se fez pelo entrechoque de seus contíngentes indios, negros

e brancos, foi, por conseguinte, altamente conflitivo. Pode-se afirmar, mesmo, que vivemos

88

praticamente em estado de guerra latente, que, por vezes, e com freqüência, se torna cruento,

sangrento”79. Desde 1500 até hoje, estes enfrentamentos se desenrolavam através de lutas

armadas contra cada tribo que se enfrenta com a sociedade nacional, em sua expansão

inexorável pelo territorio que se apropria “como seu chão do mundo: a base física de sua

existência” (Idem). Se trata de uma guerra de exterminio, onde nenhuma paz é possível, onde

os índios não podem deixar o que são e ingresar individualmente na nova sociedade, e onde os

que são brasileiros, não podem pensar neste territorio outra identidade ética que seja a sua,

que havendo sido assumida por brancos, negros e asiáticos, deveria ser aceita também pelos

índios.

Até a década de 1920, as rebeliões populares haviam sido consideradas como grupos de

“rebeldes, bandidos sanguinários e ladrões” que haviam devastado as áreas do norte e

nordeste, e que seu único objetivo, segundo os autores da época, era “roubar’ (Correia de

Andrade, 1989: 360). Caracterizado por Caio Prado, os movimentos populares surgidos nesse

momento “foram esporádicos e sem auto-organização suficientes” o que não os permitiu ter

uma força importantes no projeto de constituição da nação. Assim movimentos como o dos

“Balaios no Maranhão”, em lugar de realizar movimentos em massa, eram “grupos sertanejos

em tôrno de chefes, formando assim apenas bandos armados que percorrem o sertão em

saques e depredações. O resultado não foi somente a dissolução gradual destes bandos até sua

redução a pequenas colunas que apenas se aproveitam da enormedade do sertão para fugirem

às armas legais, como ainda amortece o ímpeto revolucionário inicial das massas, a que não

interessava este 'bandolerismo' de uns poucos de seus elementos” (Prado Jr., 1957: 74). Estes

grupos careciam de uma orientação ideológica e um sistema de comunicação que os colocasse

em contato entre uma área e outra, pelo que eram facilmente isolados pelas forças imperiais.

Viviam um grande isolamento que esgotava a resistência dos rebeldes, ademais das rupturas

que sofriam pelas diferenças de interesses surgidas por dentro do movimento. Nos “Balaios80”

79 Continuando com Ribeiro, se pode observar que “conflitos interétnicos existiram desde sempre, opondo as tribos indígenas umas às outras. Mas isto se dava sem maiores consequências, porque nenhuma delas tinha possibilidades de impor sua hegemonia às demais. A situação muda completamente quando entra nesse conflito um novo tipo de contendor, de caráter irreconciliável, que é o dominador europeu e os novos grupos humanos que ele vai aglutinando, avassalando e configurando como uma macroetnia expansionista” (Idem)

80 “Os Balaios eram, em essência, rebeldes da massa negra concentrada no Maranhão para produzir algodão, os quais, igualmente deculturados e desafricanizados, lutavam, tal como o faziam os quilombos, por uma ruptura da ordem social que os fazia escravos […] Demasiado civilizados para voltar às velhas formas tribais de vivência autárquica e demasiado primitivos para se propor uma reordenação intencional da sociedade em

89

(1831-1841), por exemplo, existiam três grupos: “os negros aquilombados do Maranhão; os

grupos de classe pobre do vale do sul de Itapecuru e os vaqueiros do sul do Piauí e do

Maranhão” (Correia de Andrade, 1989: 361; T.N).

Toda esta série de lutas populares conformou um território de enfrentamentos armados,

que significou o genocídio de grandes massas, que pretendiam enfrentar pelos diversos

interesses e sem uma articulação entre os mesmos, a exploração e escravidão dos índios e

negros, que também era sofrida pelas populações mestiças.

Segundo Ribeiro (2000: 255), o Brasil se implanta como sociedade nacional sobre um

imenso território, envolvendo milhões de pessoas, e em contrapartida a esta tarefa unificadora

foi a “ordenação da sociedade nacional em cada uma de suas formações, com estreita

obediência aos interesses oligárquicos”. A própria independência do Brasil é empreendida

pela metrópole colonial que desloca a parte mais viva e representativa das classes dirigentes

lusitanas e sua burocracia mais competente. Já o território brasileiro, se mimetiza de brasileira

e é tão bem organizada a independência pra si mesma que continua regendo no Brasil por

mais oitenta anos. Nestas décadas, se enfrenta e vence todos os levantamentos populares,

matando seus líderes ou dando-lhes anistia e incorporando-os ao grupo dominante (Idem:

256).

Após estas intensas e prolongadas rebeliões, a proclamação da república mobilizou muito

pouco as camadas populares que com “uma simples passeata militar foi suficiente para lhe

arrancar o último suspiro”(Prado Jr., 1957: 94) do império.

Brasil, esse aglomerado heterogêneo e originário de raças e povos díspares: o branco

europeu, o negro africano, o indígena, foram reunidos pela colonização, para produzir

“gêneros tropicais demandados pelo mercado europeu” e é isto o que dará o caráter de uma

“sociedade nacionalmente organizada” (Prado Jr, 1972: 69). O indígena e o negro trazido da

África como escravo são os que acabaram contribuindo com o esforço físico do

desenvolvimento da empresa.

novas bases, os cabanos e os balaios se viram paralisados, esperando a derrota que os destruiria” (Idem: 322).

90

A colonização produziu, com base no monopólio da terra, três classes de população: “o

latifundiário, o escravo e o homem ‘livre’, na verdade dependente. Entre os dois primeiros a

relação é clara, são as grandes massas dos terceiros que dão a particularidade” (Schwarz,

2008: 16; T.N). Nem proprietários, nem proletários, seu acesso à vida social e seus bens

dependem materialmente do “favor”, indireto ou direto, de um grande (…) “é o mecanismo

através do qual se reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo também outra,

a dos que têm (…) O favor é nossa mediação universal [e] o escravismo [acaba desmentindo]

as ideias liberais [mas] o favor, tão incompatível com elas quanto o primeiro, as absorve e

desloca, originando um padrão particular” (Schwarz, 2008: 16-17).

Sem uma ruptura política das massas com a colônia, e com uma continuidade econômico-

social baseada naquele processo da conquista, a América Latina transita o século XIX com

essa ambiguidade de não poder constituir uma “identidade nacional” que côngrua todo esse

“aglomerado heterogéneo” sobre a qual se funda.

3.3  Acumulação Primitiva­Empresa Comercial

Caio Prado é um dos primeiros pensadores marxistas latino-americanos a colocar a ideia

da não existência do feudalismo nas colônias latino-americanas, afirmando que a conquista foi

uma “grande empresa colonial”, pensada só como o fim de obter matérias-primas. O “sentido

da colônia” está posto “para fora”, até o comércio europeu, por uma necessidade do Capital de

constituir-se nos trópicos como fonte de recursos. É a “expansão marítima dos países da

Europa”, depois do século XV, da qual a conquista da América forma parte, o que leva ao

comércio europeu à possibilidade de desenvolver-se mais além do que era imaginável até o

momento por via terrestre. Assim o que se passou a chamar a “era dos descobrimentos”, “não

é senão um capítulo da história do comércio europeu ” (Prado Jr., 2000: 9-20)81.

81 Em “A Ideologia Alemã (Feuerbach)”, Marx e Engels analisando o desenvolvimento da manufatura e o surgimento do comércio, observam que “A manufatura e em geral o movimento da produção receberam um enorme impulso através da extensão do comércio, em conseqüência da descoberta da América e da rota marítima das Índias Orientais. Os novos produtos importados destas regiões, e principalmente as massas de ouro e prata que entraram em circulação, trasnformaram totalmente a situação recíproca das classes sociais (…) Através da colonização dos países de descoberta recente, a luta comercial entre as nações recebeu novo alimento e, com isso, tornou-se mais extensa e encarniçada” (Marx; Engels [1845-1846], 1982: 88).

91

Em seu primeiro livro, “Evolução Política do Brasil” (1933), mantendo um diálogo com

aqueles que sustentam a tese do “feudalismo” na América Latina, Caio Prado assinalava o

caráter mercantil da conquista, da qual a explosão marítima foi causa e resultado de uma

“burguesia comercial sedenta de lucros, e que não encontrava no reduzido território pátrio

satisfação à sua desmedida ambição” (Prado Jr.,1957: 11,91); assim a “evolução” do Brasil se

caracteriza pelo desenvolvimento da forma capitalista de produção. Em 1942, com “Formação

do Brasil Contemporâneo”, volta a ressaltar o caráter decisivo do século XIX na história do

Brasil “apontando-o como o esgotamento do sistema colonial, frente às solicitações ampliadas

do capitalismo”. Retoma o debate em outro contexto em 1942, plena modernização do Brasil

e consolidação do “Estado Novo”, enquanto que para vários intelectuais o problema era o

“progresso”, a “modernização”, para Caio Prado a questão era maior, era “a necessidade de

uma revolução mais profunda, de mudanças radicais” (Cfr. Amaral Ferlini, 1989: 229).

A não existência de “restos feudais” na América marca para Caio Prado um ponto de

ruptura com a leitura sustentada pelo marxismo até o momento sobre o processo colonial:

“Feudal tornou-se assim sinônimo ou equivalente de qualquer forma particularmente

extorsiva de exploração de trabalho, o que seria um eixo falso para entender esta forma social

constituída a partir da conquista. Tais formas (…) ainda largamente difundidas nas relações de

trabalho rural brasileiro, constituem remanescentes, isto sim, do sistema de trabalho vigente

legalmente no Brasil até fins do século passado, a saber: a escravidão” (Prado Jr., 1972: 32).

Segundo Caio Prado, o erro mais frequente é confundir escravidão com feudalismo,

esquecendo que os mesmos se diferenciam na natureza das relações de trabalho e produção, e

que o papel que tanto o feudalismo como a escravidão cumprem nos processos político-

sociais. Ou seja: é impossível pensar estes sistemas por fora do modo econômico e social

onde se desenrolam. A existência da escravidão não seria desta maneira o sintoma dos “restos

feudais”, é a presença das bases históricas sobre as quais se forjou o capitalismo na América82.82 Gunder Frank assinala que as teses marxistas “tradicionais” sobre o feudalismo poderiam ser resumidas em

três: “a) o feudalismo antecede o capitalismo; b) o feudalismo coexiste com o capitalismo; c) o capitalismo penetra ou invade o feudalismo”. Estas teses não se excluem uma às outras. “A deficiência mais forte destas teses reside na incapacidade de dar uma explicação adequada às mudanças ocorridas nas realidades latino-americanas com o transcurso do tempo. A primeira tese não esclarece qual seria o momento e a forma pela qual o capitalismo chegou na América. A segunda tese sobre a ‘penetração’ no caso mais extremo supõe uma ‘proletarização’ contínua, progressiva e acumulativa, de onde o capitalismo estaria paulatina e irreversivelmente extinguindo o feudalismo. Como já o explicaram Caio Prado, Schattan, Paixão, Geiger o setor feudal se adapta continuamente às circunstâncias, incluindo às mudanças da demanda. A própria dualidade feudalismo-capitalismo não permite encontrar as razões dos aspectos feudais e capitalistas no desenvolvimento agrícola e muito menos compreender porque se combinam” (2005: 40-55).

92

Da mesma maneira é que Caio Prado visualiza a independência do Brasil, ressaltando que

é o “desenvolvimento econômico” o que propicia a “independência política”; isto é, que a

“superestrutura política da colônia” não correspondia com “as forças produtivas e a

infraestrutura econômica”, pelo que se faz necessário uma ruptura que permita o curso desta

“evolução”. No período de transição entre a colônia e a nação não existem enfrentamentos

violentos, mas no fundo o processo é o mesmo: uma evolução econômica incompatível com o

estatuto colonial. O outro efeito pelo qual se levou a cabo a emancipação do Brasil é o de

“arranjo político”; assim a independência se realizou por uma simples transferência política

de poderes da metrópole ao novo governo brasileiro, e com a falta de participação das massas

populares o poder cai nas mãos das classes superiores da ex-colônia. Então se conquistava

uma independência onde o povo não teria lugar na nova ordem política. O caráter “classista”

que envolve o projeto da independência revelou por dentro do processo um viés

discriminatório dos direitos políticos. Assim, os grandes proprietários rurais adquiriram todos

aqueles direitos políticos que lhes permitiam governar a nação, sobre aqueles que nunca

teriam qualquer possibilidade de eleição, nem posse de cargo público, aqueles que não eram

considerados “cidadãos ativos” (Cfr. Prado Jr., 1957: 49-55): os trabalhadores e os escravos83

los trabajadores y los esclavos.

Seguindo com a análise de Caio Prado (1972: 91) observamos que “o capitalismo

constituiu historicamente a intensificação em alto grau daquela exploração e opressão, e isso

representou um dos importantes fatores de impulsionamento da acumulação capitalista

primitiva, isto é, a constituição do capital inicial ou de parcelas importantes desse capital com

que se desencadeou, e, em seguida, acelerou o processo de desenvolvimento do sistema

produtivo do capitalismo”.

Seguindo este pressuposto mostra que o campo brasileiro se constitui basicamente com o

trabalho escravo, pelo que existem trabalhadores na “qualidade de empregados, de prestação

de serviços” (Cfr. Prado Jr., 1972: 92-123 TN), sem ser um sistema autônomo de produção

consolidado.

Deste processo é que a colonização encontra-se unida ao processo de acumulação 83 Segundo Caio Prado: “A constituição reconhece os contratos (!) entre os senhores e os escravos; ‘o governo

vigiará sua manutenção’: É este o mais perfeito retrato do liberalismo burgués…” (1957: 54; T.N).

93

primitiva e de onde surge o “nascimento sanguinário” da América. Desta maneira a ocupação

do território não se realizou transportando as formas feudais da Europa, mas como assinala

Caio Prado foi uma “empresa colônia”; no qual o monocultivo exacerbado e extensivo era

financiado por capitais internacionais. Esta leitura se contrapõe às leituras “dualistas” sobre as

formações latino-americanas, que veem modos feudais em sua constituição.

É por estas razões da “empresa comercial” que o trabalho escravo se inscreve dentro da

mesma como “comércio de carne humana” (Galeano [1971], 2008), nascem como relações

sociais capitalistas nas fronteiras europeias na formação incipiente do mercado mundial. A

expansão e desenvolvimento do capital contaram com a apropriação de formas de trabalho e

de produção típicas de formações sociais pré-modernas, que adquiriram, por meio da própria

apropriação, um conteúdo capitalista. Assim, o advendo do capital contou com a apropriação

dos processos de trabalho tal como foram encontrados, e só posteriormente é que foram

introduzidas modificações diversas em sua base material, e com a intenção de impulsionar a

expansão desta nova forma social.

Foi neste sentido, por exemplo, que o capital edificou a máquina, no âmbito da “grande

indústria” e foi possível ultrapassar as “barreiras orgânicas humanas”: “não basta que o capital

se apodere do processo de trabalho em sua figura historicamente tradicional estabelecida e se

limita a prolongar sua duração”, “o capital tem que revolucionar as condições técnicas e

sociais do processo de trabalho, e portanto o modo de produção mesmo” (Marx [1867], 2004:

379-382). Essa tendência foi dominada por Marx como “subsunção real do trabalho ao

capital”.

É como parte e produto deste processo que nossa posição periférica leva a falar de uma

“barbárie civilizatória” do capital, que através de sua empresa acumulativa criava uma noção

de “progresso” humano que implicava a superexploração das áreas periferias (“atraso”

periférico) que se mantém em sintonia com as determinações mais avançadas do capital.

94

Revolução democrático burguesa

A teoria revolucionária dos partidos comunistas latino-americanos traço seus eixos

principais numa leitura sobre os países subdesenvolvidos economicamente e com uma posição

subordinada em relação à economia capitalista dos países desenvolvidos da Europa e dos

EUA. Em “A Revolução Brasileira”, Caio Prado disse que se “pressupunha” que esta teoria

sobre a revolução estava baseada em uma análise “séria e rigorosa dos fatos econômicos,

sociais e políticos”, se deduzia da referida análise que o país se encontrava num caminho de

transição do “subdesenvolvimento para o desenvolvimento”, ou seja, do “feudalismo para o

capitalismo”. Assim a revolução necessária dentro deste “esquema consagrado” seria a

“democrático-burguesa” (Prado Jr., 1972: 32)84. É neste quadro que se aplicam estes modelos

totalmente “estranhos e distintos” aos países latino-americanos “cuja realidade se intentava

interpretar revolucionariamente”, introduzindo-se “um ‘todo’ original: o anti-imperialismo”, o

que daria numa “‘revolução agrária e anti-imperialista’ [...] porque se tratava de neles superar

a etapa ‘feudal’ em que, em maior ou menor grau, eles ainda se encontravam”. É o

“desconhecimento e o desprezo” dos fatos reais o que guia essa formulação, como se estes

não tivessem importância ante a “imposição da teoria” (Prado Jr., 1972: 26-28).

Esta posição do Partido Comunista Brasileiro será mantida até o golpe de Estado em 1964,

onde a revolução difundida era basicamente anti-imperialista e com a estratégia de aliança

com a burguesia nacional, formando uma espécie de “marxismo patriótico facilmente”

combinável com o populismo nacionalista hegemônico nessa época. Essa complexa

combinação deteve a primazia da teoria no pensamento da esquerda brasileira. O ponto forte

da posição comunista, que chegou a penetrar nas massas foi o aprofundamento do “sentido

político do patriotismo”, baseado na demonstração de que a dominação imperialista e a reação

interna estão ligadas e a transformação de uma implicava a transformação da outra. O

84 Isto guarda uma relação intrínseca com o modelo leninista proposta para a Rússia czarista, de um caminho que passou do feudalismo para o capitalismo, do atraso (em relação ao capitalismo) para o progresso. “O que caracteriza esse feudalismo é a ocorrência na base do sistema econômico-social, de uma economia camponesa, isto é, da exploração parcelária da terra pela massa trabalhadora rural. Economia camponesa essa a que se sobrepõe uma classe nitidamente diferenciada e privilegiada, de origem aristrocrática, ou substituindo-se a essa aristocracia. Essa classe privilegiada e dominante explora a massa camponesa e se apropria do sobreproduto do seu trabalho, através dos privilégios que lhe são assegurados pelo regime social e político vigente, e que se configuram e realizam sob a forma de relações de dependência e subordinação pessoal do camponês” (Idem).

95

problema não foi esta relação entre o imperialismo e as relações internas, mas a maneira como

se especificava: assim passou a distinguir no interior das classes dominantes um “setor

agrário, retrógrado e pró-americano e um setor industrial, nacional e progressista”, ao qual se

aliava contra o primeiro. Diante desta tese, o inimigo principal passava a ser os aspectos

“‘arcaicos’ (o latifúndio) da sociedade brasileira contra quem se devia lutar para alcançar um

suposto ‘progresso’”. Isto acabou resultando num programa econômico-político

“modernizador e democratizante”, mais precisamente se tratava de uma “ampliação” do

mercado interno através da reforma agrária, nos marcos de uma política externa independente

(Cfr. Schwarz, 2005: 10-14).

Caio Prado se diferencia desta tese dentro do Partido Comunista, sustentando que ao não

existir “restos feudais”, o Brasil nunca exigiu uma revolução agrária e anti-imperialista para

se tornar capitalista. Porque a economia brasileira se baseou na “exploração comercial em

larga escala”85, ou seja, “não-parcelária”, produzida pelo “braço escravo introduzido

conjuntamente com essa exploração” (Prado Jr., 1972: 34). Ao contrário desta leitura, o PCB

propunha uma revolução democrático-burguesa e antifeudal que pressupõe a luta pela “posse

da terra por parte dos camponeses” e isto fez “subestimar e até ocultar por completo que no

campo brasileiro as massas reivindicavam mais e melhor emprego (Prado Jr., 1972: 34; TN)86.

Modernizar não significava implantar o capitalismo87, pois este já estava solidamente

arraigado e no interior do mesmo é que devia buscar-se a resolução dos restos coloniais ainda

vigentes. A agricultura colonial tinha muito mais de “embrionárias tendências capitalistas, que

possíveis restos feudais” (Amaral Ferlini, 1989: 233).

85 Em “História econômica do Brasil” Caio Prado assinala esta ideia da produção agrária em grande escala dizendo que “a colonização europeia nos trópicos inaugurou ali um novo tipo de agricultura comercial extensiva e em larga escala. Aliás durante séculos, até os tempos contemporâneos, é só nos trópicos que se encontra esta forma de produção agrária ” (Prado Jr, 1981: 93).

86 Caio Prado presta uma atenção especial ao papel dos trabalhadores rurais em “A Revolução Brasileira”, a quem cabe promover “o empuxo e impulso de que o país necessita para o seu decisivo passo no sentido da superação do que sobra do passado colonial. É na luta dos trabalhadores rurais pela sua regeneração econômica e libertação social que se encontram as premissas das transformações que estamos considerando” (Prado Jr., 1972: 153-4). Em Mariátegui esta questão se traduz na luta dos indígenas pela terra e pela produção das mesmas, mas este último inova na maneira de pensar estes grupos não como trabalhadores rurais, mas como populações que forma parte de um mundo econômico, social, cultural diferente ao que se constituiu a partir da colônia.

87 Sendo Mazzeo na América Latina se penso que era necessário um primeiro momento de desenvolvimento do capitalismo que permitiria “eliminar el régimen de servidumbre, distribución de la tierra, nacionalización, desarrollo del mercado interno, mejora de las condiciones de vida de los campesinos, disolución de las comunidades rurales (concebidas como simples rémoras de estadios anteriores, precapitalistas) y el consiguiente desarrollo de las contradicciones y la lucha de clases en las zonas rurales”(2008: 128).

96

Em 1949, um informe político realizado por Luis Carlos Prestes, enviado ao comitê

nacional do PCB, caracteriza a importância da luta pela “independência nacional, contra o

jugo colonizador do imperialismo como também a luta contra os restos feudais, contra as

formas pré-capitalistas de exploração”. Os mesmos pontos assinalados no informe de 49

continuaram sendo de relevância em outro informe de 195488. Foi antes do golpe de 64 que se

publica o último informe do PCB, “guardando as mesmas concepções que 36 antes tinham

servido para caracterizar [os países coloniais e semi-coloniais], continuando no mesmo ponto

de partida” (Prado Jr., 1972: 55) sobre a análise da revolução brasileira89. A cúpula dirigente

do PCB mostrará uma grande incapacidade para uma revisão, buscando uma afinamento da

“tática” e na habilidade “prática”, resguardando quase obsessivamente o “aparato partidário”

da influência dos renovadores, produzindo uma discussão sobre os inimigos do partido que

diminuirá o conteúdo e as potencialidades inovadoras dos processos discursivos abertos

(Idem:156).

O debate colocado dentro do PCB entre 1946 e 1964 marcará os pontos de distância que o

mesmo guardará historicamente com a realidade brasileira, estendendo-se esta fórmula para

toda América Latina. Em 194390 a fórmula da “Unidade Nacional” se torna forte nos Partidos

88 O documento aprovado em 1954 pelo IV Congresso, o PCB caracteriza o Brasil como uma “nação sob risco iminente de ser colonizada, numa relação de completa dependência do imperialismo norte-americano que engendraria um processo de militarização acelerada, arrastando o país à nova ordem guerreira incentivada pelos EUA ”. Seguindo esse caminho a avaliação que se realiza do segundo governo de Vargas é de “traição nacional” governo de “latifundiários e capitalistas”, com o cual a derrota do mesmo significaria a substituição por um novo poder da Frente Democrática de Liberação Nacional (FDLN) para realizar una plataforma de soberania nacional, democratização, etc. (Santos; 1991:136).

89 Os anos 50 marcarão a esquerda mundial com XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética. Em 1956 chegaram as primeiras noticias do informe publicado em dito congresso o qual abre uma crise em os Partidos Comunistas devido à absorção acrítica que se tinha tido até o momento do que seria o marxismo-leninismo na chave de Stalin a denuncia dos crimines cometidos pelo regímen socialista. O Partido Comunista Italiano (PCI) tomará este fato como um estímulo para sair do burocratismo e o formalismo dos anos da hegemonia stalinista. A publicação de parte dos informes de dito congresso na “Voz Operária”, propiciará o cenário para o surgimento na cena púbica de dois tipos de pessebistas: “por um lado os que na crítica à forma organizativa proporcionavam elementos alternativos de política; e por outro lado os que começavam a exercer um certo defensismo de algo não muito preciso. Os primeiros começarão a ser vítimas de ataques e foram debilitando-se rapidamente”(Santos, 1991: 140).

90 Em 1943 se realizou a chamada “Conferencia da Mantiqueira”, da qual participam como principais organizadores Diógenes Arruda, Maurício Grabois, Pedro Pomar, João Amazonas, Amarílio Vasconcelos, Júlio Sérgio de Oliveira, Mário Alves, atribuindo-lhe a esta conferencia um papel central para a estruturação do PC a escala nacional. Se elege um Comité Nacional que inclui os nomes anteriores e se incorpora o de Luis Carlos Prestes e Carlos Mantiqueira que estavam no carcere (Documento del Comité Central del Partido Comunista de Brasil, elaborado por João Amazonas e Maurício Grabois entre fevereiro e março de

97

Comunistas da América Latina, influenciados pelas posições de Earl Browder, secretário do

PC dos EUA, de onde surge a concepção da revolução “democrático-burguesa”91. Em 1945, o

PCB volta à legalidade depois de 23 anos de clandestinidade desde o seu nascimento, mas sua

duração é curta, entrando na ilegalidade novamente em 1947. Depois disto, o partido se

prepara na clandestinidade para a Conferência de 1954.

Em seu livro “A Revolução Brasileira” (1966), Caio Prado realiza uma caracterização das

classes sociais no Brasil, dizendo que existe uma “burguesia agrária” formada pelos grandes

proprietários de terra, que a pesar de seus traços “arcaicos” de “atraso, de ambientes

medíocres, não deixa de ser burguesa”. Discutindo a ideia da existência de uma “burguesia

nacional” progressista e anti-imperialista, assinala que, diferentemente do modelo Chinês, está

não existia no modelo brasileiro, já que tanto a burguesia industrial como a burguesia agrária

não possuíam as características que o PBC intentava outorgar. A “burguesia nacional” tal

como foi conceituada anti-imperialista e progressista “não tem realidade no Brasil, e não

passa de mais de um destes mitos criados para justificar teorias preconcebidas; quando não

pior, ou seja, para trazer, com fins políticos imediatistas, a um correlato e igualmente mítico

'capitalismo progressista', o apoio das forças políticas populares e de esquerda. O anti-

imperialismo tem no Brasil outro conteúdo e outras bases que interesses específicos da

burguesia ou de qualquer de seus setores” (Prado Jr., 1972: 105-6).

A atitude tomada pelo marxismo do Partido Comunista Brasileiro e sua deformação

“populista”92 termina entrelaçada com o poder, particularmente durante o governo de

Goulart93. Em consequência, a tônica da crítica será “nacionalismo anti-imperialista,

1972). 91 Sobre o “browderismo” e a concepção “democrático-burguesa” da revolução, se faz referencia no capítulo III

de este mesmo trabalho.92 Sobre o debate da “deformação populista” do PCB, se encontram desenvolvidas no capítulo II de este mesmo

trabalho, no item “marxismo nacionalista”.93 Depois do suicídio de Getúlio Vargas, se produz uma aliança populista entre el PSD e PTB promovendo

como candidato para presidente a Jucelino Kubitschek e vice João Goulart (Ministro de Trabalho do governo de Getúlio Vargas). Nas eleições de 1961, logo da crise apresentada no final do mandato de JK, surge a candidatura a presidente de Jânio Quadros (governador de São Paulo), sendo proclamada pelo Partido Trabalhista Nacional e apoiada pela UDN e outros partidos de centro e direita. Obteve o 48% dos votos, contra o 28% do PSD-PTB, e o 23% do PSP. A formula de Jânio estava acompanhada novamente por João Goulart. Em Agosto de esse mesmo ano, frente a denuncia de “pressões de forças terríveis” Jânio renuncia à

98

anticapitalista num segundo momento”, sem que a estes corresponda um contato com os

problemas das massas; um marxismo especializado na “inviabilidade do capitalismo”, e nos

“caminhos da revolução” (Cfr. Schwarz, 2005: 15).

Serão anos após a publicação de “A Revolução Brasileira” em que se aprofundam as teses

propostas durante 30 anos por Caio Prado, acerca do erro sobre a necessidade de uma

revolução democrático-burguesa. Ao contário da revolução burguesa “clássica”, depois dos

anos 20, e com a crise capitalista, a Segunda Guerra Mundial, no Brasil “a expansão do

capitalismo repousará sobre a dialética interna das forças sociais em pugna: serão as

possibilidades da transformação do modo de acumulação, na estrutura de poder e no estilo de

dominação, as determinantes do processo”. Entre essa tensão é que emerge a “revolução

burguesa no Brasil, sendo o populismo”, com Getúlio Vargas e o “Estado Novo”, “a forma

política que adquiriu neste processo” (Idem: 63).

A diferença da revolução burguesa “clássica”, no Brasil a transformação das classes

proprietárias rurais por novas classes burguesas empresarial-industrial não exigiu uma ruptura

total com o sistema. Na Europa, a hegemonia da classe proprietária rural é total e paralisa

qualquer desenvolvimento das forças produtivas, pelo fato de que as economias “clássicas”

não entravam em nenhuma sistema que os produzisse os bens de capital de que necessitavam

para sua expansão: eles tinham que produzi-los. No Brasil, as classes proprietárias rurais são

particularmente hegemônicas, com o qual mantinham o padrão de reprodução do capital

adequado para o tipo de economia primário-exportadora.

Segundo Oliveira (2003: 64), “com o colapso das relações externas, essa hegemonia

desemboca no vácuo; mas, nem por isso, ipso facto entram em ação mecanismos automáticos

que produzissem a industrialização por 'substituição de importações'”. É assim que o

populismo empreende a grande operação de “juntar o ‘arcaico’ e o ‘novo’”, baseando-se na

reestruturação das relações entre capital e trabalho, com o fim de criar fontes internas de

acumulação; o sentido é a passagem da estrutura de poder de uma classe para outra. Essa

passagem preservará modos de produção distintos, mas não “antagônicos” como crê a visão

dualista da realidade, a penetração de um modo de produção não significava a eliminação de

presidência. Assume João Goulart em meio de uma crise econômica e institucional. O 1 de abril de 1964 Goulart é deposto pelo Golpe Militar que vai até 1984.

99

outro modo, isso dá uma “‘especificidade particular’ ao Brasil (Cf. Oliveira, 2003: 64,65).

3.4  Entre a originalidade os limites desse pensamento crítico. 

Neste primeiro capítulo pudemos ver como tanto Mariátegui como Caio Prado existe uma

preocupação por realizar uma interpretação marxista da América Latina, que significou um

momento imprescindível para entender as particularidades regionais e nacionais sobre as

quais se devia assentar a práxis revolucionária.

O aporte de Mariátegui e Caio Prado neste sentido foi insuperável, forneceram uma chave

de leitura para compreender a América Latina. Daí suas preocupações de entender a

conformação da periferia do sistema capitalista. Assim adquiriu significado e relevância as

singularidades históricas de cada realidade e a possibilidade de explica-la no marco de um

processo mundial. É por este motivo que eles continuam sendo clássicos do pensamento

marxista latino-americano. Eles inauguram uma forma de interpretar a América.

Os limites de suas propostas, como uma expressão de uma geração, estiveram dados de

maneiras diferentes. Uma distância que deve ser marcada entre estes autores é o período

histórico que viveu cada um, já que isso mostrará as possibilidades e alcances de suas leituras

de acordo com o que foi observado em seu momento.

Mariátegui viveu até os princípios de 1930, morrendo com 36 anos de idade. Apesar de

haver presenciado o triunfo da Revolução Russa, não teve tempo de observar o que significou

o desenvolvimento do stalinismo e o aprofundamento autoritário desse processo. Ao mesmo

tempo, pôde ver o que significou o desenvolvimento do fascismo na Europa e anunciou o que

este poderia trazer consigo no aprofundamento da regressão social, tal como havia assinalado

após a Primeira Guerra Mundial. Já não esteve presente no desenvolvimento do nazismo e na

Segunda Guerra Mundial, com o qual esse processo violento e reacionário que iria expandir-

se em várias regiões da Europa, acabou consolidando-se com a Segunda Guerra. É

interessante perceber como Mariátegui em sua análise sobre o fascismo na Itália consegue

traças algumas tendências que poderiam marcar novos processos de violência no século XX e

suas consequências para a revolução socialista: “O experimento fascista, qualquer que seja

100

sua duração, qualquer que seja o seu desenvolvimento, aparece inevitavelmente destinado a

exasperar a crise contemporânea, a minar as bases da sociedade burguesa, a manter uma

inquietude pós-bélica” (Mariátegui, 1994k: 936).

Em Mariátegui podemos perceber um limite em seu pensamento no momento de formular

a existência de restos feudais no Peru, que não permitiam dar consecução à luta

revolucionária, sem antes acabar com os mesmos. Coloca isto como uma tarefa da revolução,

no intento de valorizar os avanços do progresso capitalista como necessário para a construção

de um projeto nacional que permitisse unificar as diferentes realidades que conviviam dentro

de um mesmo país. Como dissemos ao longo de todo o texto, esta ideia de Mariátegui é uma

tensão em todo o seu pensamento, mas acabou reforçando a necessidade do desenvolvimento

capitalista como salvação dos males da nação, ao mesmo tempo em que outorga ao atraso as

causas de um determinado tipo de desenvolvimento inconcluso, incompleto: “se a dissolução

e expropriação da [comunidade indígena] fora decretada e realizada por um capitalismo em

vigoroso e autônomo crescimento. O índio então havia passado de um regime misto de

comunismo e servidão para um regime de salário livre. Esta transformação o havia

desnaturalizado um pouco; mas o havia posto em condições de se organizar e se emancipar

como classe, por via dos demais proletários do mundo” (Mariátegui, 1994a: 36).

Para Mariátegui (1994a: 45), o problema da economia peruana está na estrutura da

mesma, em seu caráter colonial, em seu caráter dependente dos mercados internacionais: “o

caráter da propriedade agrária no Peru se apresenta como uma das maiores travas do próprio

desenvolvimento do capitalismo nacional” (Idem: 46). Desta maneira, “a exploração

capitalista e industrialista da terra, que requer para seu livre e pleno desenvolvimento a

eliminação de todo o vestígio feudal, avança por isto em nosso país com suma lentidão”

(Idem).

Com estas interpretações, Mariátegui mostra que não existe nele um rechaço absoluto ao

progresso (tal como é proposto pelos surrealistas), já que ao mesmo tempo que se encontra

com estar críticas à civilização ocidental, se enfrenta, ao regressar ao Peru, com o problema

da organização política e de um projeto de nação que permita dar um sentido orgânico aos

diferentes grupos e lutas que convivem no país.

Para Mariátegui deixar de lado a solução do problema indígena, é deixar de lado “a

101

realização dos sonhos do progresso” (1994c: 292). Desta maneira, a “a opressão enemista o

índio com a civilização. O anula praticamente, como elemento do progresso [...] Desvalorizá-

lo, depreciá-lo como homem equivale a desvalorizá-lo, a desprezá-lo como produtor. Somente

quando o índio obtenha para si o rendimento de seu trabalho, adquiria a qualidade de

consumidor e produtor que a economia de uma nação moderna necessita em todos os

indivíduos” (Idem).

É possível entender que esta contradição que Mariátegui sustenta em sues textos, se deve à

própria contradição que a conquista introduziu na forma arcaico/moderno e sua busca por

outorgar uma explicação e resolução. Não chega a lhe dar consecução a estes pressupostos, de

modo que não podemos saber quais seriam suas propostas programáticas no futuro para a

resolução dos ditos problemas, em meio a um contexto ainda mais regressivo que o observado

após a Primeira Guerra Mundial e com a hegemonização do stalinismo dentro do marxismo

oficial.

É neste ponto que Caio Prado completa o pensamento de Mariátegui, observando a

existência dos restos feudais na conformação das colônias americanas, de modo que essa

tensão assinalada pelo autor peruano, na formulação de Caio Prado é uma consequência da

empresa comercial que significou a conquista.

Caio Prado, diferentemente de Mariátegui, viverá desde 1907 até 1990. Isto explica muitas

das possibilidades que teve seu pensamento, que logrou conhecer grande parte dos fatos

históricos do século XX, como também teve condições para estar próximo, através de suas

viagens, da realidade nacional e das realidades internacionais. Observa Fernando Henrique

Cardoso: “Caio Prado, que era bastante rico, sempre viajou, sempre andou pelo interior, tanto

do Brasil quanto da Europa e da América Latina. As noções que transmite nos livros não

advêm propriamente do que leu em outro autor apenas, mas também do que ele viu. Leu e

viu” (1993: 32).

Os limites do aporte de Caio Prado se observam principalmente no vínculo que estabelece

entre sua interpretação sobre a formação do Brasil e a práxis revolucionária, de onde as

consequências de suas interpretações terminavam em bases programáticas que finalmente

esvaziavam sua idéia sobre o socialismo. Fausto, recém publicada “A Revolução Brasileira”

102

(1966), realizou uma crítica interessante sobre a obra, onde assinala que Caio Prado acabou

ressuscitando com ela o velho revisionismo clássico: “Ao separar radicalmente as duas ordens

de objetivos, Caio não faz mais do que ressuscitar o velho adágio de Bernstein, o papa do

reformismo. 'O fim último do reformismo, não é nada; o importante é o movimento'.

Bernstein como Caio, não negava que o fim último fôsse o socialismo. Mas o que

representaria hoje êsse fim remoto? 'O fim remoto? Pois continua sendo remoto', respondia

Bernstein. Quebrada a conexão que hoje se deve estabelecer entre os objetivos imediatos e

mediatos, rompida a continuidade da praxis em proveito de uma sucessão de respostas que

não poderão acumular experiências, resta por um lado uma política programática e, por outro

um discurso vazio sôbre o socialismo” (Fausto, 1967: 11). Seguindo com Fausto, podemos

dizer que o limite de Caio Prado fica exposto quando tenta encontrar uma solução para o

“problema político” da revolução brasileira. Este limite que se visualizava no programa,

segundo Fausto, se remetia a ideia de “agrarismo” que, ainda que não estivesse totalmente

equivocada sua tese sobre o assalariamento dos trabalhadores rurais, “'desqualifica(va) do

ponto de vista político' a luta pela terra” (Idem). Dice Caio Prado: “A questão da terra no

Brasil não tem a generalidade suficiente, nem se apresenta com a necessária uniformidade em

todos os lugares, para constituir ponto de partida de amplos e continuados movimentos de

massa […] Ela pode determinar […] pontos de atrito que eventualmente degeneram em

conflitos localizados […] Mas não vai nem pode ir além daqueles estreitos limites, pois logo

esgota sua potencialidade, porque a situação conflitante se supera sem que daí resultem novas

contradições e conflitos renovados (1972: 129).

Veremos, no capítulo II, como os movimentos camponeses que existiram desde finais dos

anos 50, com as “ligas camponesas”, e sua consecução no que terminou consolidando-se no

Movimento Sem Terra, refutaram esta tese de Caio Prado, colocando em vigência a

importância da luta pela terra e como ele conseguiu universalizar um campo de demandas na

qual unificavam diversas lutas que estes movimentos enfrentavam.

Segundo Caio Prado “a chave da aliança do proletariado urbano e dos trabalhadores do

campo, e o caminho para a sua efetivação, encontramse na organização, seja sindical, seja de

outra natureza, inclusive política” (Idem: 157).

Seguindo com a análise de Fausto, é possível observar que, já na proposta política de Caio

103

Prado, no final de seu livro, a revolução, nesse momento do país (1966, ano em que o livro foi

publicado), devia centrar suas forças na elevação dos padrões materiais e no estatuto social

dos trabalhadores rurais, essencialmente no aumento do salário. Mas o que incomoda Fausto

deste pressuposto é que Caio Prado não responde a pergunta: quem luta contra o imperialismo

e quem são seus aliados? Sua resposta acaba sendo ambígua, por cais na noção de

“polarização de forças”, que se desdobra numa prática ineficaz. O erro de Caio Prado é não

declarar a burguesia como inimiga, já que o esforço realizado por analisar uma nova

conformação da burguesia nacional, não acaba extraindo as mesmas consequências políticas.

O que fausto assinala é que nesse contexto revolucionário da América Latina, as burguesias

nacionais sabem muito bem qual é o limite razoável das tensões e evitam os combates que

põem em perigo o sistema: “Não seria essa uma das lições do gole de 64?” (Fausto, 1967: 20,

21).

As consequências desse pensamento, que neste ponto se junta com as concepções do PCB,

acaba se colocando a serviço da política de aliança, esvaziando em algum ponto o caminho

que conduz do pensamento à ação. Tal vazio, segundo Fausto, acaba debilitando uma das

ideias centrais de Caio Prado sobre a originalidade da formação brasileira, em relação aos

caminhos clássicos de outras formações nacionais e à estruturação de um capitalismo exitoso.

“De fato, se ele (Caio Prado) se mantém sempre fiel a essa tese, para o passado, o seu

programa político da 'A Revolução Brasileira' […] só pode resultar como perspectiva

estrátegica a utopia de um Brasil país capitalista avançado, como etapa prévia em direção ao

socialismo” (Idem: 23). Esto es posible verlo en palabras de Caio Prado (1972: 183): “A

condição principal para o amadurecimento desse estado de coisas e de espírito, é que

saibamos, isto é, saibam as forças nacionalistas populares e de esquerda propor o programa de

reformas necessárias ao progresso e desenvolvimento do país e do povo brasileiro [em um

contexto onde] cultura e tecnologia cada vez mais aceleradamente se engajam, têm muito

mais a ganhar com a difusão do progresso moderno por toda parte, que com a realização de

bons negócios à custa uns dos outros”.

O programa político de Caio Prado acaba adotando a forma burguesa como proposta

revolucionária, própria de um marxismo mais tradicional, que não corresponde com sua

interpretação sobre a formação nacional. Nas palavras de Fausto (1967: 23) “as conclusões de

104

“A Revolução Brasileira” já estão mais o menos decididas nas suas primeiras páginas, onde

[…] se distinguem os dois sentidos da palavra revoluçaõ: 'emprêgo da fôrça e da violência

para a derrubada do govêrno', 'toma de poder por algum grupo, categoria social ou outra fôrça

qualquer na oposição' (Prado Jr., 1972: 1) [sendo que] da interseção de esses dois sentidos e

não da sua disjunção é que se torna possível uma teoria que se pretenda marxista ou

revolucionária” (Fausto, 1967: 23).

Estes problemas que são identificados na proposta programática de Caio Prado, rementem

a uma ideia de organização revolucionária que não apontava para a conformação de massas

em seu sentido de heterogeneidade, ponto no qual é complementado por Mariátegui e sua

necessidade de articulação das mesmas; mas que acabará baseando sua proposta na

organização de uma luta liderada pelo proletariado urbano, seguindo os esquemas do Partido

Comunista. O que se colocava em questão nesse momento na América Latina (como veremos

no capítulo II) é o debate sobre a questão do poder do Estado capitalista e suas consequências

naqueles projetos que se pretendem emancipatórios.

105

“El problema es que duermo, doctor. Duermo y sueño. Pero sueño con la realidad exacta de todos los días.

Los que otros viven durante doce horas yo lo vivo veinticuatro. Quisiera soñar con algo distinto. Con cualquier cosa.

Pero no. Siempre es lo mismo”94.

94 Frase enunciada pela personagem “Laura,” no filme “Madagascar”, de Fernando Pérez. Cuba/1994.

106

II.   OS   CAMINHOS   E   DERROTAS   DA   ESQUERDA   LATINO­AMERICANA

Mudar o mundo por meio do Estado tem sido o pressuposto que dominou o pensamento

revolucionário por mais de um século. O debate travado há cem anos entre Rosa Luxemburgo

e Eduard Bernstein sobre “Reforma ou Revolução”, estabeleceu claramente os termos que

dominariam o pensamento sobre a revolução duranta a maior parte do século XX. O debate

entre reforma ou revolução acabou na seguinte formulação: reforma era uma transição gradual

em direção ao socialismo, ao qual se chegaria pela vitória em eleições e a introdução de

mudanças pela via institucional. Revolução era uma transição muito mais vertiginosa, que

seria conseguida com a tomada do poder estatal e a rápida introdução da mudança radical,

levada adiante pelo novo Estado. A intensidade dos desacordos encobria um ponto básico em

comum: ambos os enfoques concentravam-se no Estado como a posição vantajosa a partir da

qual a sociedade podia ser mudada. Apesar de todas suas diferenças, os dois pontos de vista

apontavam a ganhar o poder estatal. Considera-se, desde as duas perspectivas, que ganhar o

poder estatal é o ponto nodal do processo revolucionário, o centro desde o qual se irradia a

mudança revolucionária.

Para Holloway (2002: 28), um dos maiores problemas dos movimentos revolucionários

nos anos 1960 foi agir sob esse paradigma da tomada do Estado, isto é, o suposto de que

ganhar o poder estatal é central na mudança radical. Os governos “comunistas” tanto da

URSS quanto na China ou Cuba, “certamente incrementaram os níveis de segurança material

e diminuíram as desigualdades sociais nos territórios dos Estados que controlavam” (pelo

menos de maneira temporária), mas pouco fizeram por criar uma “sociedade

autodeterminada” ou por promover o reino da liberdade” que sempre tem sido central na

aspiração comunista.

Desta maneria, a ideia de mudar a sociedade por meio da conquista do poder acaba

conseguindo o oposto do que almeja. A tentativa de conquistar o poder implica “a extensão do

campo de relações de poder ao interior da luta contra o poder” (Idem: 36).

Tal como assinalamos nos parágrafos anteriores, esse foi o pressuposto que dominou na

107

maioria dos movimentos de esquerda dos anos de 1960 e 1970. Nesse período, a reabertura do

campo marxista permitiu questionar os pressupostos centrais até esse momento do marxismo

tradicional, assim como sua relação com a periferia. Apesar desse movimento no interior de

diversos grupos de esquerda, eles tiveram que enfrentar um processo contra-revolucionário

por parte do capital e sua expressão nas burguesias nacionais, que significou um

recrudescimento violento do sistema; mas, por outro lado, também se viram impossibilitados

de desdobrar aqueles questionamentos, pensando em outras formas sociais, onde o objetivo

central continuasse sendo a crítica radical do sistema capitalista e não só uma apropriação

progressista daquelas vantagens geradas por esse sistema. Assim, essas revoluções, vistas

desde uma perspectiva histórica, nasceram derrotadas pelo fato de querer transformar e agir

sob os preceptos da forma social que ao mesmo tempo questionavam e precisavam destruir.

Neste capítulo reconstruímos o processo de duas experiencias históricas, a cubana e a

chilena, como caminho para entender de que maneira concreta, tanto nos seus pressupostos

quanto nas suas práticas, elas enfrentam o problema das formas de governo de uma revolução

sem questionar a herança recebida da forma social burguesa, sem realizar uma revisão crítica

suficientemente radical que pudesse dar lugar à recuperação de outras práticas realmente

emancipatórias. Ditas experiências permitiram o avanço em múltiplos aspectos em relação à

construção de uma práxis revolucionária que permitisse pensar para além de leituras

esquemáticas e lineares sobre a história e la revolução; mas ao mesmo tempo morreram

afogadas numa tentativa frustrada de universalizar estratégias a realidades diferenciadas, e na

opção por uma modernização tardia que significava em si mesmo (como veremos no próximo

capítulo) derrotar aquelas práticas, experiências que apontavam a enriquecer um projeto

emancipatório. Boa parte dessa visão conseguiu germinar em diferentes grupos de esquerda os

quais finalmente não conseguiram dar força suficiente para as suas leituras. A visão dual sobre

atraso e modernidade recoloca-se, tanto na academia quanto na prática política,

hegemonizando o campo do debate sobre a definição da natureza da revolução nos países

definidos como “subdesenvolvidos” ou “dependentes”.

Como consequência desse processo, boa parte dos grupos marxistas acabou sofrendo um

isolamento acadêmico que impossibilitou o diálogo com as lutas populares. O marxismo

108

como teoria revolucionária, depois dessas experiencias, entrou numa estagnação própria da

perseguição e morte dos processos ditatoriais e contra-revolucionários; mas também como

parte dessa distância com a realidade. Autores como Mariátegui e Caio Prado já não

conseguem explicar os processos iniciados a partir dos anos de 1960. Perdem sua validez num

contexto no qual as realidades nacionais passam por um forte processo de modernização que

gera um aumento das massas desagregadas, inorgânicas, o que coloca um desafio para pensar

as formas organizativas revolucionárias. Desafio que a esquerda acabou não enfrentando,

gestando, em parte, a sua própria derrota.

1. Política de “conciliação de classe”

A partir daqui analisamos as opções revolucionárias da esquerda neste período passando

pela revolução cubana, pela Unidade Popular no Chile, e pontuando brevemente a experiência

da Frente Sandinista de Libertação Nacional, como os mais expressivos do processo de

construção da estrategia da esquerda. Apontamos como esses processos se inserem num

quadro mais geral de “política de conciliação de classe”, “marxismo nacionalista” e “frentes

antiimperialistas”.

No final da Segunda Guerra Mundial, consolidaram-se mudanças nos sistemas políticos e

econômicos que tinham iniciado em 1930. Com o forte impacto da ideologia democrática a

partir da luta antinazista, assistiu-se a uma importante diminuição do número de governos

militares na América Latina. Lieuwin (sociólogo americano) contabilizou 7 governos

dirigidos por oficiais do Exército, sobre um total de 20 países, em 1947 (Cfr. Sader, 1982: 32).

Após a invasão de Hitler na URSS a análise política mudou na América Latina. No

contexto da aliança anti-fascista entre os EUA e a URSS, qualquer propaganda contra o

imperialismo norte-americano era duramente criticada e estigmatizada pelos partidos

comunistas como uma ação ao serviço do fascismo. Assim, entre 1944 e 1945 desenvolveu-se

o fenômeno do “browderismo” na América Latina. Fazia referência a Earl Browder, líder do

Partido Comunista dos Estados Unidos, quem declarou o início de uma era de colaboração

íntima entre o campo socialista e os Estados Unidos. A vaga “associação política” criada pelo

109

“browderismo” varreu não só o Partido Comunista dos Estados Unidos, mas também os da

América Latina que tinham aceito fielmente a linha desenvolvida por Browder. Em 1945

Duclos95 condena a prática do “browderismo” como “liquidacionista”, e se inicia um período

de autocrítica e retificação que levou ao abandono da perspectiva de convergência

“harmoniosa” com os Estados Unidos e com suas medidas (Cfr. Löwy, 2006a: 32-33).

A política de “conciliação de classe” precedeu nos partidos que aderiram claramente ao

chamado “browderismo”. Assim, por exemplo, Maurice Thorez falando em 1937 para o

Comitê Central da Seção Francesa da Internacional Comunista, propôs ampliar a Frente

Popular para formar uma “Front Français” que incluísse liberais e moderados, assim como

autoridades civis e militares que não tivessem sido anteriormente partidários da Frente

Popular. Thorez no era somente um líder de primeira linha da Internacional, mas era o

“inventor” da Frente Popular; de fato, todos os documentos da Internacional depois de 1941

diziam: “a divisão de classes proposta por Marx tem sido substituída pela clássica divisão

entre nações”. Isso foi se acentuando em 1943 com a dissolução da Internacional. A sua

última vontade mostrava que a “Guerra Mundial tem traçado uma linha divisória entre os

países sob a tirania hitleriana e os povos amantes da liberdade têm se unido numa poderosa

coligação anti-hitleriana” (Caballero, 1988: 196). Essa vontade era diametralmente oposta à

proposta feita por Marx noventa e cinco anos antes no Manifesto Comunista no qual chamava

a unir-se aos proletários do mundo.

Esses antecedentes marcam o território no qual se instalaram as teses de Browder, terreno

fértil de onde surgiu o “browderismo”, de influencia fundamental nos partidos de vários

países latino-americanos.

Dois aspectos importantes assinalam essa importante influencia: por um lado, Browder

justifica suas proposições teóricas baseado no resultado da Conferência de Teerã96, na qual

Churchill, Roosevelt e Stalin estabeleceram os termos de sua aliança depois do fim das

hostilidades; por outro, o browderismo, não se propunha como exemplo a ser seguido por

outros partidos, mas era algo típico dos EUA (Cfr. Caballero, 1988: 200).

95 Líder do Partido Comunista Francês, publicou o artigo que inicia esse período no órgão teórico mensal do Partido Comunista Francês “Cahiers du Communisme”, em abril de 1945.

96 A "Conferência de Teerã", entre o 28 de novembro e o 1 de dezembro de 1943, foi a primeira entre "os aliados" a contar com a presença dos chamados "Três Grandes" (URSS, EUA e Inglaterra).

110

O ponto de partida de Browder era que o capitalismo americano era “o mais avançado do

mundo, mas não o mais maduro”, proposição que não consegue ir além de teses psicologistas

sobre a maturidade e imaturidade que apresenta o povo americano com seu “fanatismo quase

religioso” em relação à palavra de ordem da “livre empresa”. Seu segundo ponto era que o

capitalismo americano era e sempre seria monopolista. A resposta para a primeira tese

também era psicologista, afirmando que a esse fanatismo os comunistas deviam responder

como se responde a uma crença religiosa, ou sejam “respeitando a liberdade de crença”,

portanto desde esse momento respeitar-se-ia a adesão à livre empresa. A resposta à segunda

questão era que não deviam ser prejudicadas as relações com aquela fração do capital que

podia ser ganhada para a democracia e o progresso, sob o lema “o capital monopolista não é

uma massa reacionária”. Browder é bastante claro: a “divisão de classes” não tem mais

sentido. Esta é talvez a posição mais extrema expressada jamais por um “revisionista” do

marxismo (Idem: 202).

A despeito da clara hegemonia stalinista nos Partidos Comunistas, nesse período

conseguiram emergir e sobreviver algumas vertentes mais críticas inspiradas nas ideias de

Trotsky. A concepção de “revolução permanente” que combina “tarefas democráticas,

agrárias, nacionais e anticapitalistas, e rejeita uma aliança estratégica com a burguesia local”

(Löwy; 2006a: 36) por considerá-la incapaz de desempenhar um papel revolucionário

significativo, diferenciava radicalmente o trostkismo do comunismo pró-soviético; além de

sua independência em relação à URSS e sua crítica do autoritarismo burocrático. Por essa

visão da estratégia revolucionária a corrente latino-americana inspirada pelas ideias de

Trotsky considerava-se “continuadora das ideias do comunismo latino-americano da década

de 1920”, especialmente de Mariátegui, a cuja herança política os trostkistas recorriam

frequentemente (Idem). Esses grupos foram sendo reduzidos a seitas, conformados

principalmente por intelectuais, acusados pelos Partidos Comunistas pró-soviéticos de

fascistas. Só na revolução cubana os grupos trostkistas conseguiram consolidar-se na base dos

sindicatos e na classe operária. O papel por eles cumprido nessa revolução provocou um

fortalecimento desses grupos em diversos países da América Latina97.

97 Aprofundaremos esse assunto na análise da Revolução Cubana.

111

O desterro definitivo de Trotsky e a estratégia implementada por Stalin a partir das Frentes

Populares revelou para o conjunto da esquerda mundial não só as dissidências no processo

russo (impossível de ser enfrentado pelos expurgos e pelo contexto da Segunda Guerra

Mundial), mas também estimulou a criação de diversos grupos que desconformes com os

Partidos Comunistas abriram a possibilidade de repensar e recriar as estratégias de luta

implementadas até aquele momento pela III Internacional e tiveram forte impacto nos anos de

1960 na América Latina.

Em 1936 é o ápice das Frentes Populares no ocidente. A vitória eleitoral na França

estimulou os operários a colocar demandas, se inserir nos sindicatos, ocupar fábricas e fazer

greves e manifestações em escala nacional: “A Revolução Francesa começou”, proclamou

Trotsky em The Nation (apud Deutscher, 1969: 301). Os chefes da Frente Popular cortejavam

a derrota, enquanto a contra-revolução mantinha-se à espreita. Durante anos o Partido

Comunista tinha anunciado Les Soviets partout, mas agora quando o momento de passar das

palavras aos fatos, armar e mobilizar os trabalhadores e formar “Conselhos de operários”

aquela palavra de ordem declarava-se “inoportuna” (Deutscher, 1969: 302). Trotsky dirigiu a

seguinte advertência aos seus seguidores: “O partido o grupo que não possa encontrar lugar

no atual movimento de greves e estabelecer vínculos sólidos com os trabalhadores em luta

não é digno de se chamar uma organização revolucionária” (apud Deutscher, 1969: 302).

Nesses anos já no exílio, Trotsky é acusado pelo governo de Stalin de atos terroristas

visando desestabilizar o Estado Socialista da Rússia. Na distância é julgado junto com outros

15 acusados (entre eles, seu filho Livoa), e condenados a morte por aqueles atos. Isso foi feito

por Stalin no mesmo momento em que Hitler entrava com suas tropas na Renania e pouco

depois da formação da Frente Popular na França. Desta manerira, segundo Deutscher (1969:

307), chantageava o movimento operário e a intelectualidade de esquerda de Ocidente, pois o

veiam como seu aliado contra Hitler, não podendo realizar nenhuma acusação sobre os

expurgos, pois isso quebraria a Frente Popular e deixaria a Europa Ocidental enfrentada com

o Terceiro Reich.

Após esses acontecimentos, depois de uma longa peregrinação, Trotski acaba no México,

acolhido pelo muralista Diego Rivera, membro do PC mexicano, onde se relaciona com

importantes personalidades da política, a arte, a literatura. Intelectuais de todos os países

112

chegam de visita na sua casa em Coyoacan, permitindo-lhe manter contato com os diferentes

movimentos, setores de esquerda do mundo todo, principalmente da América do Norte e da

América Latina. É assassinado no México em 1940 por ordem do stalinismo.

Diferentemente do período de 1929-35, nos anos posteriores os partidos comunistas

latino-americanos não lideraram nenhuma revolta de massas e continuaram com sua

interpretação stalinista do marxismo, a revolução por etapas e o bloco das quatro classes para

a revolução nacional-democrática.

O fato mais característico deste período acontece na Guatemala entre 1951 e 1954, quando

o Partido Guatemalteco do Trabalho (PGT, comunista) se torna uma das principais forças

políticas do país durante a presidência de Jacobo Arbenz. O PGT defendia uma estrategia de

revolução nacional-democrática em aliança com os sectores da burguesia e as forças armadas.

Depois do governo de Arbenz expropriar alguns territórios da United Fruit Company um

exército de mercenários treinados pelos Estados Unidos invadiu a Guatemala em junho de

1954. As forças armadas acabaram se alineando com o coronel invasor Castillo Armas, e o

PGT não conseguiu resistir. Desencadeou-se uma repressão sangrenta em grande escala,

devolvendo os territórios à United Fruit Company. Em 1955, num documento de autocrítica o

PGT reconhece não ter tido uma linha suficientemente independente da burguesia nacional

democrática, contribuindo assim no fortalecimento das ilusões em relação ao exército, e não

conseguindo desativar a atividade contra-revolucionária do alto comando do exército. Essa

autocrítica não atinge o fundamento da estratégia da revolução em etapas (a etapa necessária

do desenvolvimento nacional) e a decorrente leitura da necessidade de uma aliança com a

burguesia nacional para uma revolução democrático patriótica. Portanto, em 1955 o PGT

reafirma a necessidade de coligação de forças nacionais (Cfr. Löwy, 2006a: 38)98.

O “Tratado de Yalta” (URSS) de 1945, entre Stalin, Roosevelt e Churchill, permitiu um 98 No relatório de autocrítica do PGT “A intervenção norte-americana em Guatemala e a derrocada do regime

democrático”, publicado em 1955, a avaliação identifica quatro erros principais: a direção da Frente Democrática liderada pelos dirigentes dos partidos burgueses democráticos não levavam adiante as ordens do Comité Central da frente; em muitas ocasiões, por medo a assumir posições sectárias o partido limitou a propaganda do seu próprio programa marxista-leninista, provocando desmobilização das bases; por isso mesmo o partido não soube realizar uma crítica ao governo de Arbenz e da corrupção na sua gestão; o partido deixou que a burguesia exercesse uma influencia nociva sobre si mesmo, aprofundando sua debilidade teórica e política.O problema continua sendo o de que a classe operária não hegemonizou a Frente Democrática, e portanto os interesses da burguesia primaram por sobre os outros (Comissão Política do PGT apud Löwy, 2006a: 207-217).

113

aumento considerável do socialismo prussiano, e significou um renascimento do “otimismo”

no mundo colonial: a China em 1949, Vietnã nos anos 1960, Cuba em 1959 e a África na

década de 1970. Os países do Terceiro Mundo semi-industrializados caracterizam-se naqueles

anos por movimentos que iam desde o nacionalismo autoritário ao nacional-populismo,

acontecendo situações de instabilidade política, que punham em risco o própio

desenvolvimento como consequência da nova ordem de pós-guerra (Cfr. Menegat, 2006: 25).

Com a morte de Stalin (1953) e com o XX Congresso do PCUS (1956) inaugurou-se um

novo período no comunismo latino-americano dos Partidos Comunistas “pró-soviéticos”, não

implicando necessariamente numa ruptura político-ideológica com a liderança da URSS. A

orientação da URSS favorável à coexistência pacífica institucionalizada e o caminho da

modernização depois da Guerra Fria foram traduzidos pelos Partidos Comunistas latino-

americanos como uma linha política de apoio a governos capitalistas considerados

progressistas e/ou democráticos99.

A hegemonia stalinista desde 1930 na esquerda latino-americana, não significou que não

existisse outro tipo de contribuições teórico-políticas de índole marxista. Caio Prado é uma

voz que se mantém ativa na crítica à ideia de impor o modelo feudal para a interpretação das

formações sócio-econômicas do continente, que trazia atrelado o modelo de revolução por

etapas adotado pelos Partidos Comunistas latino-americanos. Como temos apontado no

capítulo I, desde a “Evolução Política do Brasil” (1933), passando por “Formação do Brasil

Contemporâneo” (1942) e chegando à “História Econômica do Brasil” (1945), o autor fornece

uma leitura diferente à adotada pelos Partidos Comunistas pró-soviéticos100.

Tambén Sergio Bagú, com a publicação em 1949 de “Economia da sociedade colonial:

ensaio de história comparada da América Latina”, sugere a hipótese análoga utilizando o

concepto de capitalismo colonial. Segundo Bagú, as colonias luso-hispanas “não nasceram

para repetir o ciclo feudal101” (Bagú apud Löwy, 2006a: 251), e sim para se inserir ao novo 99 Löwy aponta para uma declaração realizada por el Partido Comunista brasileiro em 1958 que ressumiria essa

nova orientação segundo a qual a contradição entre burguesia e proletariado “não exigiria una solução radical na presente etapa. Nas presentes contradições do país, o desenvolvimento capitalista corresponde aos interesses do proletariado e de todo o povo. […] O proletariado e a burguesia se aliam em torno do objetivo comum de lutar por um desenvolvimento independente e progressista contra o imperialismo norte-americano” (Declaração sobre a política do Partido Comunista do Brasil apud Löwy, 2006a: 40).

100 A ideia da conquista “como empresa comercial”, verdadeiro sentido da colonia, negando todo tipo de resto feudal, foi desenvolvida no capítulo I.

101 Bagú reafirma que as características mencionadas por historiadores e economistas sobre o reviver do feudalismo com a conquista luso-espanhola baseia-se na transferência de algumas instituições feudais em decadência na Europa como: certas formas de exploração agrícola, a relação senhor-servo, etc, sendo

114

ciclo capitalista que se inaugurava no mundo. Foram conquistadas e descobertas “como um

episódio mais no grande período de expansão do capital comercial europeu”102(Idem),

demostrado nas décadas posteriores com a exploração minera, agrícola em grande escala, que

respondia aos interesses predominantes nos grandes centros comerciais da Europa (Idem).

Outros autores, da mesma maneira que Caio Prado e Bagú, criticavam aos partidários do

feudalismo latino-americano, como o caso de Marcelo Segall, historiador chileno, quem

insistia na importância da mineração, uma industria tipicamente capitalista, no sistema

colonial.

2. 1960: Acumulação e Revolução na América Latina

2.1  “Novo momento de acumulação”: as ditaduras latino­americanas

A partir dos anos de 1960, diferentemente do período anterior, multiplicam-se

escandalosamente os regimes militares. Eliminam-se progressivamente os governos

“democráticos-representativos” e irrompem massivamente os corpos de oficiais na cena

política. Ao lado de países que já tinham sido frequentemente governados por militares (os da

América Central, a Bolívia, o Peru, etc.) tinham outros com uma longa tradição “cívica”. O

Brasil, por exemplo, que não tinha tido na sua história um regime militar strictu sensu, foi

governada durante 21 anos pelas forças armadas; o Chile e o Uruguai, que tinham

desenvolvido estruturas democrático-representativas maduras, foram igualmente submetidos a

governos militares (Cfr. Sader, 1982: 32).

Por trás desse processo de militarização dos Estados, ocorre uma profunda mudança nas

relações sociais. Por um lado, o contexto político redefine-se a partir da Revolução Cubana

em 1959. O processo cubano, segundo Sader (1982: 33-35), desencadeou e intensificou uma

crise de hegemonia sem precedentes no continente, e acabou descobrindo a potencialidade

socialista por trás das lutas populares, democráticas, anti-capitalistas, anti-imperialistas,

insuficiente para configurar o sistema econômico feudal. A escravidão não tinha nada de feudal e tudo de capitalista pois as mãos de obra africana e indígena foram os pilares do trabalho colonial americano (Bagú apud Löwy, 2006a: 252-3).

102 Essa leitura segue a tese de Caio Prado sobre a função comercial da conquista e seu lugar na “acumulação primitiva” de capital.

115

camponesas, que estavam sendo levadas adiante. Para os setores populares politizados teve o

efeito de estímulo para um enfrentamento radical de seus problemas, cuja solução até então

não tinha apresentado um horizonte revolucionário. Em alguns momentos, a luta anti-

capitalista desses setores foi sobre-valorizada, tomando como “necessário o que era apenas

uma potencialidade” (Idem). Muitos líderes populares assumiram então uma linha de

enfrentamento radical, sob o suposto de que seriam posteriormente apoiados pela “inevitável”

dinâmica revolucionária das masas. Aconteceu que “a dinâmica revolucionária” não efetivou

essa radicalização das massas, o que caracterizou os enfrentamentos políticos dos anos de

1960-1970, marcados por uma guerra desigual entre as forças armadas e os grupos

revolucionários armados. Isso não significa que não houve uma intensificação das lutas

sociais: houve de fato uma “generalização de lutas camponesas, politização de conflitos

industriais, mobilização inédita de frações do subproletariado urbano e da pequena burguesia,

movimentos de soldados, marinheiros e suboficiais” (Idem). Esses movimentos anunciavam a

superação de padrões reformistas vigentes, mas estavam ainda longe de sustentar

enfrentamentos revolucionários.

As classes dominantes, se sentindo ameaçadas pela emergência dessas lutas, perceberam a

necessidade de sufocar esse processo, substituindo o Estado constitucional pelo Estado

militar, com o objetivo essencial de obter “segurança nacional”, através da guerra contra os

“inimigos internos” (Idem).

A ditadura instaurada em 1964, golpe central no sistema político brasileiro, não significou

uma “mudança de modelo”, mas uma resposta às exigências do processo de acumulação e

industrialização substitutiva que precisava de uma radicalização no controle do novo ator

fundamental – o proletariado- e uma acumulação primitiva mais profunda ainda que as

anteriores (Cfr. Oliveira, 2007: 19). A ditadura estatizou os setores mais importantes da

produção numa escala maior que os nacionalistas das épocas anteriores103.

Por outro lado, deu-se um processo de modificação do padrão de desenvolvimento e

103 Segundo Oliveira (2007: 20) "foi na ditadura que se formou o tripé desenvolvimentista: empresas estatais-empresas privadas nacionais-empresas multinacionais. Uma parte notável do excedente tomava o rumo do exterior para o pagamento da dívida, com o que se caminhou já nos anos 1980 para una crise de dívida externa que marcou todo o período e tornou quase sem eficácia econômica a redemocratização política operada após o encurralamento da ditadura, afinal afastada em 1984.

116

acumulação capitalista no nível mundial, de grande impacto nos países mais importantes da

região que tem seus antecedentes imediatos no período que vai – grosso modo - desde a

Primeira Guerra Mundial até finais dos anos '40. Nesse período a longa crise do mercado

mundial cria as condições para as mudanças no eixo econômico dos principais países do

continente, do setor primário exportador para o setor industrial. “A desfasagem entre a

produção e o consumo, características das economias periféricas, parecia em vias de ser

solucionada” (Sader, 1982: 35). Segundo esse mesmo autor, a redução das exportações latino-

americanas, que restringiu a capacidade de importar dessas economias, acabou liberando

recursos financeiros de um lado e mercado consumidor pelo outro, para o desenvolvimento de

uma indústria de tipo “substituição de importações”. Esse processo de industrialização

começa pelos setores de produção de bens de consumo final, com um desenvolvimento

tecnológico limitado, aproveitando a abundancia de força de trabalho e as disponibilidades

locais de matérias primas. O crescimento desses setores, implicou num aumento da demanda

de força de trabalho.

Continuando com Sader (Idem: 35) podemos observar que o processo de industrialização

latino-americana, ao se produzir sem quebrar com sua base primário-exportadora, teve seu

modo de produção e circulação adaptado a ela: “as burguesias industriais latino-americanas

formaram-se como apêndices de sistemas primário-exportadores. As exportações estavam na

origem das divisas necessárias para a importação de máquinas, equipamentos e bens

intermediários. Por outro lado, as condições de apropriação monopolista da terra geravam

uma reserva importante de mão-de-obra a baixo custo. Finalmente, não raras vezes, a

demanda do setor primário-exportador constituía o principal mercado consumidor dos

produtos industriais locais” (Idem).

A crise de 1929 alterará as condições do mercado mundial, produzindo mudanças

significativas nos sistemas de poder na América Latina: por um lado organizam-se para

impulsar a industrialização; e por outro, na ausência de uma burguesia industrial independente

do setor rural, forma-se um poder que mantem um compromisso entre a antiga oligarquia e os

setores urbanos emergentes. Getúlio Vargas no Brasil a partir de 1930, Cárdenas no México

em 1934, o governo liberal na Colômbia no mesmo ano, a Frente Popular chilena em 1938,

Perón na Argentina em 1945, reorientaram a ação do Estado, fomentando as condições

117

necessárias para a criação de um mercado interno. Esses regimes eram muito diferenciados,

pelas suas alianças internas, as relações de força e inclusive a fase alcançada de implantação

industrial. Mas tem em comum o fato de dirigir um processo de industrialização extensiva,

reforçando o papel do Estado e incorporando novos contingentes de mão de obra ao mercado

de trabalho urbano, sem quebrar a relação de dependência criada pelo sistema primário

exportador, pois eram dessas exportações que se obtinham as divisas necessárias para as

importações requeridas para a implantação industrial no país (Cfr. Sader, 1982).

Os regimes políticos que se instalam a partir do processo de industrialização e que tem por

objetivo seu desenvolvimento, assentam-se numa ampla base social. Novas camadas de

funcionários, geradas pelo crescimento do setor estatal, assim como funcionários do setor

terciário, provocam um crescimento do mercado de trabalho da classe média. Também

profissionais liberais e pequenos proprietários urbanos são favorecidos pelo aumento da renda

urbana. Finalmente, significativos contingentes das classes trabalhadoras verão melhoradas

suas condições de vida e trabalho com o crescimento do emprego industrial, que lhes aparece

como alternativa frente à perda de seus lugares no campo e à migração massiva em direção às

cidades.

No Brasil, por exemplo, segundo Oliveira (2003: 59), o “modo de acumulação global”,

próprio da expansão do capitalismo no, depois dos anos 1930, é produto “de uma base

capitalística de acumulação razoavelmente pobre para sustentar a expansão industrial e a

conversão da economia pós-anos 1930, que da existência de setores 'atrasados' e 'modernos'”.

A originalidade desse tipo de combinação desigual é que no Brasil isso aconteceu

introduzindo relações novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo. Foi a

maneira de compatibilizar a acumulação global, na qual a introdução do novo no arcaico

libera força de trabalho que sustenta a acumulação industrial-urbana y na qual a reprodução

das relações arcaicas no novo preserva o potencial de acumulação liberado exclusivamente

para os fins de expansão do próprio novo (Cfr. Oliveira, 2003: 59-60).

Essa mudança produz uma alteração de aspectos variados que ganham uma significação

maior da que tinham até então. Um deles é a relação capital-trabalho e a promulgação de leis

de trabalho destinadas a instaurar um novo regime de acumulação do capital. Segundo

118

Oliveira (2003) a população em geral e principalmente aquela que migrava para as cidades

necessitava ser convertida em “exército de reserva”104. Essa conversão de enormes grupos

populacionais em “exército de reserva”, forma adequada à produção do capital, era pertinente

e necessária desde o punto de vista da acumulação que se iniciava nesse momento e que

pretendia reforçar basicamente por duas razões: “de um lado, propiciava o horizonte médio

para o cálculo econômico empresarial, liberto do pesadelo de um mercado de concorrência

perfeita, no qual ele devesse competir pelo uso dos fatores; de outro lado, a legislação

trabalhista igualava reduzindo – antes que incrementando- o preço da força de trabalho. Essa

operação de igualar pela base reconvertia inclusive trabalhadores especializados à situação de

não-qualificados, e impedia – ao contrário do que pensam muitos- a formação precoce de um

mercado dual de força de trabalho” (Oliveira, 2003: 37-39).

Diferentemente da “revolução burguesa 'clássica'”, a mudança das classes proprietárias

rurais pelas novas classes burguesas empresárias-industriais não exigiu, no Brasil, uma

ruptura total do sistema, não apenas por razões genéticas, mas também por razões estruturais.

Segundo Oliveira será o “populismo” quem levará adiante essa adequação que começa por

estabelecer uma forma de juntar o “'arcaico' e o 'novo'”, corporativamente, colocando a

relação Capital-Trabalho como o eixo central dessa adequação fundando “novas formas de

relação”, para criar “novas formas de acumulação”. O sentido político mais profundo é o de

mudar definitivamente a estrutura de poder, passando as novas classes burguesas empresárias-

industriais à posição de hegemonia. A legislação sobre as relações de trabalho será o contexto

no qual se realizará esse acordo.

O processo desenvolve-se em condições externas adversas para a mudança, exigindo o

requisito estrutural de manter as condições de reprodução das atividades agrícolas, não

excluindo, portanto, totalmente, as classes proprietárias rurais nem da estrutura de poder nem

dos benefícios da expansão do sistema: “a legislação trabalhista não afetará as relações de

produção agrária, preservando um modo de “acumulação primitiva” extremamente adequado

104 Marx n'O Capital analisa a formação desse fenômeno: “No departamento externo da fábrica, da manufatura ou da casa comercial, na esfera do trabalho domiciliar, já por si totalmente irregular, completamente dependente dos caprichos do capitalista para a obtenção de matéria-prima e de encomendas, o qual aqui não está sujeito a nenhuma preocupação com a valorização de prédios, máquinas etc. E que aqui tampouco se arrisca coisa alguma exceto a pele do próprio trabalhador, cria-se assim, sistematicamente, um exército industrial de reserva sempre disponível, durante parte do ano dizimado por um trabalho forçado desumano, enquanto durante outra parte está na miséria por falta de trabalho” (Marx, [1867] 2004: 583).

119

para a expansão global” (Oliveira, 2003: 62-65)105.

Esse será o “'pacto estrutural'” que preservará modos de acumulação distintos entre os

setores da economia, mas não antagônicos entre si, como pensa o modelo cepalino. Uma

especificidade do modelo brasileiro, então, é que diferentemente do “clássico”, seu

desenvolvimento não requer a destruição completa do antigo modo de acumulação. Essa

especificidade consistiu em reproduzir e criar uma grande “periferia” que permitiu sustentar e

alimentar outros sectores que garantiam a estrutura de dominação e reprodução do sistema

(Cfr. Oliveira, 65-69).

Mas a própria dinâmica da industrialização – que possibilitou os Estados populistas-

superará tais condições. Depois de ter começado pelos ramos de produção de bens de

consumo imediato, a produção industrial local alcança os ramos mais complexos de bens

intermediários e de capital, como resposta a pressões exercidas sobre a capacidade de

importação dessas economias. Se produz então “uma mudança no eixo do processo de

acumulação” (Sader, 1982: 36).

Durante o processo de substituição de importações, produz-se num determinado momento

um descompasso entre as inversões necessárias para a implantação de novas etapas de

produção e os recursos internos disponíveis. É o momento de crise do “nacionalismo burguês”

(Idem) – morte de Vargas em 1954, golpe contra o governo de Perón em 1955-, no qual a

atração de capitais estrangeiros deverá ser acompanhada de “uma legislação permissiva para a

remessa de lucros, oferta de infra-estrutura a baixo custo e, sobretudo, uma força de trabalho

barata e disciplinada. E é também nos anos '50 que os centros dirigentes do capitalismo

mundial promovem um deslocamento maciço de unidades industriais para as regiões

periféricas” (Idem: 37).

Existem elementos do desenvolvimento capitalista latino-americano historicamente

anteriores e logicamente independentes das ditaduras militares, vinculados às condições dadas

105 Menegat afirma que com a ditadura iniciada em 1964 no Brasil completa-se o modelo de substituição de importações iniciado após a crise capitalista de 1930: "com este modelo econômico, o Brasil passou por uma intensa e tardia industrialização e urbanização, o que correspondeu ao pleno desenvolvimento das relações sociais burguesas num país periférico" (Menegat, 2008).

120

pela divisão internacional do trabalho. A internacionalização do processo de produção

industrial constitui todo um complexo de transformações das condições de acumulação na

América Latina, que está na origem do que foi chamado “novo modelo de acumulação” e que

precede aos “novos regimes militares” (Sader, 1982: 59). Essa “internacionalização do

processo de produção industrial” realiza-se como consequência de: “a) o esgotamento da

industrialização substitutiva de importações em consequência da carência de divisas e da

estreiteza do mercado interno, o que indica, por sua vez, as insuficiências do setor exportador

para sustentar a acumulação industrial (devendo prover as necessidades de bens de produção e

bens intermediários pela mediação do comércio exterior), b) a nova expansão de capitais

imperialistas sob a forma de inversões na periferia” (Idem). O “novo modelo de acumulação”

que tem esse processo de internacionalização como um primeiro momento, faz referencia

somente às economias que já tinham alcançado um certo nível de desenvolvimento das baes

produtivas (o Brasil, o México, a Argentina). Depois veio um segundo grupo com o Chile, a

Colômbia, a Venezuela, o Peru eu Uruguai.

Os problemas sociais implícitos no esgotamento do modelo anterior e na

internacionalização da produção industrial acentuar-se-ão com um processo paralelo de

radicalização política. Até os anos de 1950 as respostas políticas a esses problemas

expressavam as polarizações internas das classes dominantes nas suas variantes populista

nacionalista e oligárquico-integracionista. No decorrer dos anos de 1950 os projetos

reformistas burgueses de corte nacionalista esgotam-se rapidamente, porque, por um lado, os

setores dominantes do conjunto da burguesia buscavam, golpear o poder reivindicativo dos

trabalhadores, e por outro lado, porque a politização das lutas sociais radicaliza-se com a

revolução cubana, ao revelar sua potencialidade socialista (Cfr. Idem: 61).

Segundo Sader, a revolução socialista põe-se na ordem do dia, mas as forças interessadas

ainda não estavam preparadas para conduzi-la. A consciência política não acompanha a

extensão das lutas e o seu caráter heterogêneo permitiu respostas eficazes da contra-

revolução. Diante da ameaça social dos explorados, uma amplia coligação de classes

dominantes impulsou a solução militar. “As Forças Armadas não aparecem assim como

'instrumento' do capital monopólico, nem do imperialismo ou dos proprietários de terra, mas

121

mais precisamente como defensores do regime capitalista em sua totalidade, apoiadas pelo

conjunto das classes dominantes” (Idem).

A internacionalização da produção industrial generalizou-se no decorrer dos anos de 1950

nas economias mais avançadas e nos anos de 1960 nas do segundo grupo; e a generalização

das ditaduras militares vinculadas à industrialização se deu da seguinte maneira: Brasil, 1964;

Argentina, 1966-1968 e definitivamente em 1976; Peru, 1968; Chile, 1973; Uruguai em 1973.

O México não sofreu essa experiência; e a Colômbia e a Venezuela aparentemente tiveram um

processo invertido, já que a ditadura militar acaba em 1958. Mas eram ditaduras tradicionaiss,

anteriores a essa industrialização.

Segundo Sader (1982: 62) existem duas consequências decisivas desses processos,

passíveis de generalização: o aumento da exploração da força de trabalho e o aumento do

controle estrangeiro da produção nacional, aprofundando a monopolização da economia.

O primeiro caso a configurar o “novo modelo” foi o brasileiro, onde a partir dos anos '60

uma crise revelava as contradições que opunham as novas bases produtivas às estruturas do

país. “Enquanto o reformismo propunha a ampliação do mercado interno de consumo através

de uma reforma agrária e distribuição da renda, as classes dominantes optaram por golpear as

organizações populares” (Idem: 64). Essa via trouxe uma concentração maior da renda, que

levou a muitos analistas a esperar uma “crise de realização”. De fato, o que se produziu foi

um boom a partir de 1968: “é que, sobre a base de uma superexploração dos trabalhadores, da

'racionalização' do aparato do Estado, da concentração capitalista, uma 'superacumulação'

permitia sustentar os gastos com uma significativa camada de técnicos, de empregados

improdutivos, de especialistas do terciário altamente remunerados e que constituem o

principal mercado de consumo para os setores dinâmicos da economia (automóveis,

eletrodomésticos, etc.)” (Idem). Baixos salários, ordem social baseada na repressão, liberdade

de movimentos para o capital e garantias contra ameaças nacionalistas, infraestrutura

importante e mercado interno suficientemente amplio, foram as condições desse boom.

Na Argentina a ditadura militar não conseguiu estabelecer esse modelo. Depois da queda

122

do Perón, assistiu-se a uma grande penetração dos capitais estrangeiros, com a decorrente

reorganização do aparato produtivo. As novas necessidades de acumulação enfrentam-se com

um regime híbrido depois da saída de Perón e são as forças armadas que intervem para

“reorganizar” o país em 1966. Os avanços econômicos pareciam positivos até o cordobazo de

1969106, quando começam a mostrar suas fissuras. Segundo Sader (Idem) tal vez tenha sido a

mais sólida organização da sociedade civil que não permitiu, diferentemente do Brasil, uma

transição mais rápida para o novo modelo. Foi somente com a eliminação das bases sociais e

com a ditadura de 1976 que conseguiu assentar de maneira mais radical o novo modelo de

desenvolvimento industrial monopolista.

No Uruguai, a ditadura não se estabeleceu até 1973 de forma efetiva, embora desde 1970

as forças armadas controlassem o aparato do Estado na luta contra a guerrilha. Esse país não

conseguiu se recuperar da crise de exportações dos anos '50. O capital estrangeiro chega em

quantidade suficiente para impulsar a monopolização, mas não da maneira como chegou ao

Brasil, Argentina, Chile, México, Colômbia, Peru onde gerou um dinamismo industrializante.

A ditadura militar contentou-se com a aplicação de uma política clássica de exportação de

bens primários (carne, lã) baseada numa redução drástica dos salários (Idem)

No Chile a intervenção militar realizou-se de maneira muito mais abrupta do que nos

outros países: “redução brutal dos salários, do gasto público, diminuição das proteções

aduaneiras, reprivatização de empresas nacionalizadas, subsídio às exportações, apoio às

empresas nacionalizadas, subsídio às exportações, apoio às empresas capitalistas no campo

frente ao 'sector reformado'” (Idem). Diferente do Brasil, ocorre um processo de

desestatização das empresas.

A ditadura no Peru, estabelecida em 1968, teve características diferentes. O governo de

Velazco teve uma grande autonomia em relação ao conjunto das classes dominantes que

aproveitou para realizar uma via “nacionalista” e de reforma agraria, pelo qual a capitalização

106 O Cordobazo foi um importante movimento de protesta acontecido no 29 de maio de 1969, em Córdoba-Argentina, uma das cidades mais industrializadas do país, que viveu uma forte crise da indústria automobilística, e uma forte disputa ao interior dos sindicatos (IKA-Renaut). Isso deu origem a uma jornada de mobilização e protesto que ficará registrada como uma das mais importantes acontecidas no país. O movimento reuniu setores operários mecânicos, eletricistas, metalúrgicos e funcionários, assim como estudantes de segundo grau e universitários, e outros sectores populares, que somados aos levantes no norte da Argentina (Tucumán) com a luta dos trabalhadores da cana de açúcar, a conformação das Ligas Agrárias, revoltas acontecidas em Rosario, Catamarca, Mendoza, significaram uma importante politização da sociedade, reprimida pelo exército, e ao mesmo tempo o fim do governo militar de Onganía (1966-1969).

123

no campo realizou-se golpeando a antiga oligarquia e buscando a criação de uma base social

camponesa. O projeto fracassou, evidenciado pelo isolamento e derrota de Velazco.

Não é que a partir dessas condiciones econômicas, a consequência direta sejam as

ditaduras militares. Como assinalado por Sader (idem), “a burguesia não escolhe a seu gosto

os regimes através dos quais exerce sua dominação”, estes serão o resultado das relações de

força e das articulações entre as diferentes forças sociais e instituições em cada situação

específica.

As ditaduras militares acabaram sendo as formas políticas mais adequadas para o

exercício da dominação burguesa. Sem capacidade de articular sua hegemonia no seio da

sociedade civil, a burguesia apelou à ditadura cada vez que seu regime de exploração foi

ameaçado pela mobilização popular.

2.2  Marxismo NacionalistaVimos até aqui que a chegada do marxismo, a sua apropriação pelos latino-americanos, a

reconstrução do campo marxista após a revolução russa, a chegada do período da

estalinização a partir dos anos de 1930, isso tudo marca um forte debate sobre a natureza da

revolução, o seu sujeito, e as formas organizativas políticas para levá-la adiante. Até a morte

de Stalin esse debate foi silenciado a base de repressão, perseguição e forte dogmatização,

sendo esse o estado predominante nos partidos comunistas no mundo inteiro através da

Internacional. Mas o que acontecia com a esquerda que não estava nos partidos comunistas e

que professava um pensamento e prática de esquerda? Como se processava aquele debate no

campo intelectual?

Seguindo a análise de Roberto Schwarz do desenvolvimento desse processo no caso

brasileiro, podemos inferir que existem alguns elementos comuns a outros países latino-

americanos, e que servem portanto para explicar o desenvolvimento das experiências

populistas na América Latina, o problema da formação de classes na periferia e a dificuldade

para pensar sua organização pelas vias tradicionais – como sindicatos, partidos – e o difícil

desenvolvimento nacional. A partir dessa leitura, Mariátegui ganha novamente vigência no

sentido de que já a inícios do século XX chamava a atenção, atentando para a particularidade

124

das formações latino-americanas, sobre a necessidade de uma formação ampla e heterogênea

das massas que conseguisse incluir as múltiplas e diferenciadas lutas que tinham ocorrida ao

longo da sua história, desde a colonização, e que adquiriam diferentes particularidades

dependendo do momento histórico no qual a organização se encontrava. Como vimos no

capítulo I, Mariátegui enfrenta-se até rachar com Haya de la Torre, precisamente por

diferenças nessas leituras. Deixando o viés da esquerda e a formação do partido tradicional,

não entrava na versão populista, posteriormente desenvolvida em outros países, e isso marcará

o ponto de tensão no qual Mariátegui se encontrava antes de morrer.

A análise do marxismo nacionalista na experiencia brasileira feita por Schwarz mostra

uma realidade particular que marcou fortemente os limites da estrategia revolucionária da

esquerda brasileira ao mesmo tempo abriu com a ditadura de 1964 o processo regressivo e

violento da fase das ditaduras latino-americanas.

O socialismo que se difundia no Brasil desde 1930 e até então era fortemente anti-

imperialista, e a estratégia de Frente Popular com sua aliança de classe era dominante.

Formou-se como complexo ideológico um “marxismo patriótico” (Schwarz, 2005: 10-1) e,

como vimos, a estratégia da Internacional era claramente conciliatória com a burguesia e

mantinha seu combate contra os capitais estrangeiros, a política externa e a favor da reforma

agrária. O ponto forte da posição comunista que penetrou nas massas populares, de grande

alcance e aprofundando o senso patriótico, residia na demostração de que a dominação

imperialista e a reação interna estavam vinculadas, que uma não mudava sem a outra. Esse

anti-imperialismo sobreposto ao anti-capitalismo colocou o Partido Comunista frente ao

desastre que significou o golpe de 1964: na leitura de um setor agrário retrogrado e pró-

americano e um setor industrial nacional e progressista, decide se aliar claramente com o

segundo.

Naqueles anos Caio Prado publica “A Revolução Brasileira”, texto que, como vimos,

mostrava profundas diferenças com a leitura do partido na sua análise sobre os fundamentos

de uma revolução no Brasil. Esses debates também se refletiam na “Revista Brasiliense”. Os

limites de Caio Prado naquele momento residiam não na sua análise mas nos fundamentos da

estratégia política, fazendo parte do partido acabou entrando no marco ilusório da esquerda.

Em 1962, no texto "Perspectivas da política progressista e popular brasileira", Caio Prado

reafirma a ideia da coligação de interesses dos setores progressistas com vistas a conseguir na

125

presidência de Goulart "reformas de base" que incluíam desde "medidas nacionalistas e a

reforma agrária, até a democratização das instituições e o combate ao poder econômico

espoliativo", como recompensa à luta das massas populares que tinham participado do

processo que tinha levado João Goulart à presidência após a renúncia de Jânio Quadros107.

Apesar de apresentar esse panorama, no mesmo artigo Caio Prado afirma que a vitória

avassaladora do "dispositivo janguista" não tinha dado os frutos esperados ou pelo menos

aqueles que o povo poderia esperar depois de suas lutas.

O Partido Comunista, então, da mesma maneira que no restante de América Latina, com

sua leitura dos quatro blocos de classes e a necessidade da unidade, inicia uma transformação

de seu aparato ideológico e político orientado e acreditando fortemente nas alianças.

A crença do Partido Comunista de estar “nadando a favor da corrente” mostrou um dos

fracassos do marxismo oficial. A identificação dos aspectos “arcaicos” da sociedade brasileira,

basicamente o latifúndio, como principal aliado do imperialismo, ao qual o povo tinha que

enfrentar, “povo”108 que estaria formado por todos aqueles interessados no progresso do país,

deu como resultado um plano econômico-político de modernização e democratização

burguesa, que ampliaria o mercado interno através da reforma agraria, tendo como marco

uma política externa independente. Por essa deformação populista o marxismo, antes do

golpe de 1964, será especialista na inviabilidade do capitalismo antes que nos caminhos da

revolução. Caballero aponta para essa questão ao afirmar que a esquerda se perguntava como

fazer a revolução mas não o por que. Esse marxismo teve uma funcionalidade na

objetividade: o lugar fundamental do Estado na acumulação de capital nos países

retardatários. O capital precisa do Estado e o Partido Comunista se iludiu com os interesses

anticapitalistas da burguesia nacional, uma aliança “nacionalista” da mão do populismo. Essa

ilusão não permitiu enxergar que o nacionalismo é diferente para os empresários do que para

as massas populares: o privilegio da burguesia nacional109 era o controle dos recursos naturais,

107 Revista Brasiliense; 1962, N 44: 3108 Schwarz afirma que "no plano ideológico resultava una noção de "povo" apologética e sentimentalizável, o

lumpenzinato, a intelligentsia, os magnatas nacionais e o Exército" (2005: 14).109 Jacob Gorender no seu livro "Combate nas Trevas" afirma que "a linha política do PCB, em cuja elaboração

tomei parte, empurrava à plena luz o seu erro essencial. A burguesia brasileira não pode ser colocada na mesma categoria da burguesia nacional chinesa, acerca da qual teorizou Mao Tse-tung [...] No momento de 1964, a burguesia brasileira já era a classe dominante. Dispunha de grandes recursos econômicos, do aparelho de Estado, de equipes de intelectuais orgânicos e de uma rede de instituições para o trabalho ideológico. A pretensão do PCB de hegemonizá-la fundava-se numa ilusão. Sucedeu o contrário: o PCB é que foi hegemonizado" (Gorender; 1987: 62).

126

materiais, através do Estado para o beneficio próprio. Por que lutariam contra esse privilegio?

O problema já estava apontado por Caio Prado em “A revolução Brasileira”: a revolução

burguesa já tinha acontecido no Brasil e portanto não se podia pensar uma estratégia para que

ela fosse ainda a acontecer (Cfr. Menegat, 2008a).

Nos momentos pré-golpe de 1964 havia um vento pré-revolucionário que permitia que se

falasse em reforma agrária, revolta camponesa, moviemento operário, nacionalização das

empresas americanas, etc. Como afirma Schwarz (2005: 21) “o país estava

irreconhecivelmente inteligente”, a intelectualidade começava a reorientar sua relação com as

massas populares. Nesse momento aconteceu o golpe110. O golpe de 1964 no Brasil tem a

finalidade de garantir outro momento de expansão do capital e também contra as

possibilidades do socialismo no Brasil e no resto da América Latina. El governo popular de

João Goulart111, a pesar da grande mobilização da esquerda atingida, temia a luta de classes e

uma possível guerra civil. O povo que estava participando ativamente do processo que ia

rapidamente construindo um território de debate e propostas de esquerda, não tinha nem

armas nem ainda uma organização autônoma112. O desdobramento disso foi o mesmo que em

todas as ditaduras latino-americanas: perseguição, terrorismo, desaparições, ocupação das

universidades, invasão das igrejas, dissolução de todo tipo de organização política (estudantis,

de trabalhadores), censura, suspensão do “habeas corpus”; foram ataques que se estenderam

duramente durante todo o período ditatorial e deixou vários traços nos governos democráticos

posteriores113.

De maneira particular, no Brasil a esquerda não desapareceu nesse momento, ao contrário,

não parou de crescer (Schwarz, 2005: 8). Mas é preciso qualificar esse crescimento e essa

intervenção da esquerda. Seu domínio baseou-se em grupos ideológicos: estudantes, artistas,

jornalistas, parte da sociologia e da economia, parte da igreja, etc. Os intelectuais eram de

esquerda, mas as matérias que escreviam para o governo não o eram. Essa intelectualidade foi 110 Sobre esse processo no pensamento crítico brasileiro foram uma contribuição fundamental as ideias

desenvolvidas pelo prof. Marildo Menegat na disciplina de pós-graduação "Teoria Critica no Brasil", na Escola de Serviço Social/UFRJ. Rio de Janeiro. 2008/1.

111 Governo referido no capítulo 1.112 Em 1964 deteve-se um processo cultural que ia além das fronteiras de classe, da mercantilização. Segundo

Schwarz (2005:37), em face da ruptura do diálogo com os explorados, para o qual esses movimentos culturais, artísticos, estavam se orientando, acabaram se dirigindo a um público ao qual não estava destinada a sua produção, mudando totalmente seu sentido. De revolucionárias suas formas passaram a “símbolo vendável da revolução”, símbolos da “moral política”.

113 No Brasil 1964-1985; Na Argentina 1966-1973, com um período democrático entre 1973-1976 que finalmente se instaura em 1983; No Chile 1973-1990; No Uruguai 1973-1985; Na Bolívia 1964-1982.

127

deixada no canto pois não produzia grandes incômodos para o desenvolvimento dos planos do

governo implementados pela ditadura. Somente sofreram exílio, repressão, tortura, aqueles

grupos que tinham um contato com as massas populares. O resto não foi problema para o

governo Castelo Branco, que não impediu a circulação teórica e artística com ideias de

esquerda em ambientes restritos. Assim foi até 1968, momento em que as novas massas de

estudantes organizados na clandestinidade foram capazes de dar força material à ideologia.

Afirma Schwarz (2005: 9): “durante esses anos, enquanto lamentava abundantemente o seu

confinamento e a sua impotência, a intelectualidade de esquerda foi estudando, ensinando,

editando, filmando, falando, etc., e sem perceber contribuía para a criação, no interior da

pequena burguesia, de uma geração maciçamente anticapitalista”. A riqueza da produção

desses grupos manteve-se até 1968; quando foi percebida como elemento perigoso, foi preciso

eliminá-la114.

O golpe apresentou-se como uma volta à modernização que tinha sido abandonada nesses

anos todos: a ideia da família como célula da nação e a tradição cristã foram os argumentos da

ditadura. Mesmo assim, como vimos, em diversas esferas (artística, ideológica, política, etc)

seguiu-se gestando um diálogo com as massas populares de onde surgia uma cultura popular

viva e ativa. Foi só a finais de 1968 que a existência da guerra revolucionária no Brasil é

reconhecida oficialmente, donde a pesada ofensiva do Estado, passando à tortura, à prisão

política, ao exílio el larga escala.

Para Menegat (2008a) o golpe de 1964 abre na América Latina uma fase que encerra o tempo

das “revoluções permanentes”. Após o golpe, a crise social, sintomas de mal-estar, foram

generalizados, mas não foram sinais de uma práxis emancipatória, não era a atualização da

revolução: era o “aprofundamento da barbárie”. Perde-se assim a oportunidade re-aberta em

1964 de um horizonte emancipatório. Diferentemente dos anos de 1930, neste momento

existia um caldo cultural e social que permitiu às massas populares propor um projeto de país.

Sobreveio uma contra-revolução que deu continuidade ao modelo que vinha sendo traçado e

114 A Revista Brasiliense era uma expressão importante deses debates, tanto no artístico como no econômico, político, cultural. No seu número 43, por exemplo, temos dois artigos sobre teatro, um deles "Novos caminhos do teatro universitário (o teatro universitário em marcha com o CPC- Centro Popular de Cultura)" de Camila Ribeiro. Refere-se a um grupo experimental da USP (Universidade de São Paulo) cujo texto se propõe retratar uma realidade contra a qual o homem pode algo, a realidade social, porque "não implica em um consentimento da ordem existente, mas transmite através desta uma ideia que transforma" (Revista Brasiliense; 1962, N 43: 189).

128

que estabeleceu as bases para o novo modelo de expansão do capital: adequação ao

capitalismo dos monopólios, preservação dos latifúndios com dependência ao capitalismo

internacional, desenvolvimento das forças produtivas com forte intervenção do Estado,

desenvolvimento pleno do capitalismo monopolista.

O reposicionamento das massas populares não foi mais uma escolha, foi uma imposição do

modelo que trouxe mudanças estruturais: no horizonte, nos sujeitos, nas condições. O balanço

da contra-revolução apontava para duas estrategias diferentes: ou um reformismo

revolucionário ou a construção de poder popular que obrigava a pensar outras formas de

reorganização social e econômica (Cfr. Menegat, 2008a).

Para Schwarz o que ocorre em momento de crise é uma combinação do antigo e do

moderno, mais precisamente das manifestações mais avançadas da integração imperialista

internacional e da ideologia burguesa mais antiga, centrada no indivíduo, a unidade familiar e

suas tradições. Importante aqui é o caráter sistemático dessa coexistência e seu sentido

mutável: se na fase Goulart a modernização passava pelas relações de propriedade e poder e

pela ideologia que precisava ceder diante da pressão das massas e das necessidades de

desenvolvimento nacional, o golpe de 1964 afirmou-se na derrota desse movimento, e assim

fazendo, a integração imperialista que modernizou rapidamente para seus fins a economia do

país, reviveu e tonificou parte do “arcaísmo” ideológico e político que precisava para sua

estabilidade (Cfr. Schwarz, 2005: 28).

3. Cuba e a luta armada

Cuba entra no século XX depois da revolução de 1895 liderada por José Martí. Seus

reclamos baseavam-se na independência da república, na necessidade de acabar com o

colonialismo espanhol, na criação de instituições democráticas que permitissem gerar uma

nação mais igualitária. A resposta é a intervenção dos Estados Unidos, em nome do

imperialismo, colocando governos conservadores e liberais durante 50 anos. Entre 1902 e

1933 ocorre uma sucessão de governos escolhidos através de fraude e inúmeras intervenções

dos Estados Unidos com golpes e contra-golpes para derrubar governos.

Entre 1920-1930 dá-se um movimento de crítica contra a política intervencionista, e

129

contra uma certa aristocracia colonialista ainda vigente. Surgem então escritores como

Fernando Ortiz, Nicolás Guillén; poetas como Regino Pedroso, Marínez Villena, Juan

Marinello. Faz parte, como vimos, de um movimento comum a toda a América Latina.

A assunção de Batista em 1933 abre um ciclo de lutas dos movimentos sociais que

tentavam instaurar novamente a Constituição de 1901, derogada em 1928. Desde 1934, o

movimento de oposição a Batista elabora um lema: uma Assembleia Constituinte que

incorpore ao novo texto constitucional as conquistas democráticas dos mais de dez anos de

luta popular e escamoteadas pelo regime militar. Por causa das pressões das massas

(movimentos pró-anistia, de ajuda ao povo espanhol, antifascista, de jovens, estudantil) e

baseado no calculo de que o governo dos Estados Unidos opor-se-ia às agressivas ambições

do nazismo, Batista começou a manobrar numa perspectiva de abertura, buscando apoio numa

política menos tensa. A legalização do Partido Comunista que se uniu ao Partido Unión

Revolucionaria preexistente, o grande movimento de unidade sindical que permitiu fundar a

Confederación de Trabajadores de Cuba (CTC), as simultâneas garantias oferecidas a outros

partidos e grupos de oposição e o início do processo de convocatória da Constituinte de 1940,

escolhida por votação popular direta, constituem os elementos básicos de uma nova situação.

A Constituição foi votada quando começava a Segunda Guerra Mundial e as forças populares

conseguiram imprimir na letra jurídica os direitos que lhes outorgavam algumas garantias –

embora de caráter formal- de um valor instrumental importante. De fato, os governos que se

sucederam entre 1940-1958 serão julgados pelos movimentos por incumprimento da

Constituição (Le Rivered, 1984: 52).

Em 1952 constitui-se o movimento geral de oposição ao regime de Batista, cujo líder era

Fidel Castro Ruiz. Em 1953 realizam um assalto aos quartéis militares. O assassinato de

vários jovens e a massificação da repressão terá como consequência a multiplicação das

pessoas que decidem inserir-se nos movimentos de revolta. Em 1956 acontece outra tentativa

frustrada de ataque por parte do Movimento 26 de julho. As revoltas continuaram até sua

vitória em 1959 e a capitulação de Batista. Abre-se um novo período com a Revolução

Cubana.

130

3.1  A revolução cubana e o guevarismo A revolução cubana constitui um marco tanto para a história da América Latina quanto

para o pensamento marxista latino-americano. A chegada do exército guerrilheiro no 8 de

janeiro de 1959, que acabou com a ditadura de Batista, conduzido por Fidel Castro, decide

implementar a estratégia da revolução democrática como processo de “transição” rumo ao

socialismo, “rompendo” com o capitalismo em 1960-61. Estabeleceram-se, para isso, uma

série de medidas democrático-nacionalistas como reforma agrária radical, desapropriação das

refinarias de petróleo em mãos de empresas estrangeiras, que encontraram forte oposição não

do capital estrangeiro como também das classes dominantes do país.

A excepcionalidade da revolução cubana, para Löwy, é que uma equipe política de origem

pequeno-burguesa, inspirada numa ideologia jacobina e pelas ideias de José Martí, passou a

fazer parte da classe operária tornou-se “marxista por uma 'metamorfose ideológica' coletiva”

(Lowy, 2006a: 45; TN) sem precedentes. Isso fez com que os dirigentes da primeira revolução

socialista latino-americana fossem alheios ao modelo ideológico do comunismo estalinista.

Por outro lado, isso não significou uma crítica radical a aquele marxismo ou uma ruptura com

a herança estalinista. Sua posterior aproximação com o modelo soviético não invalida aquele

fato histórico.

Com a Revolução Cubana constituía-se um processo que não fazia referência nem à

acumulação insurrecional da Revolução Russa de 1917, nem à estratégia de guerra prolongada

de Mao na China: “uma vanguarda apoiada basicamente em colunas guerrilheiras consegue,

num processo de luta contra uma ditadura decadente, unir o campo e a cidade, desorganizar o

exército inimigo, tomar o poder e, no processo de sua consolidação, trilhar o caminho do

socialismo” (Koutzzi, 1987: 50).

Em face das propostas inadequadas para o Terceiro Mundo, tanto as que provinham da

Rússia com as de Mao, a “via cubana” organiza-se a partir da “teoria do foco”: a coluna

guerrilheira instalava-se no campo e incorporava rapidamente as forças revolucionárias no

campo e na cidade. Era apresentada como uma solução alternativa: “se as condições objetivas

estão dadas, a entrada em ação de uma força armada no campo permitirá a construção

simultânea do partido e do exército revolucionário. Esta ação incidirá ao mesmo tempo na

catalisação e no amadurecimento do próprio processo. Evidentemente, a ação do foco

131

funcionava como um acelerador da revolução” (Koutzzi, 1987: 59).

Koutzzi (1987) assinala que, à luz dos acontecimentos históricos das décadas posteriores,

poderia pensar-se num “delírio generoso” dos que empreenderam aquela façanha, mas que é

preciso compreender aqueles fatos a partir das condições históricas, políticas e da própria

análise teórica que se realizava naquele momento .

A reflexão sobre o processo revolucionário acontece depois da tomada do poder do Estado

e a figura do Che Guevara e sua ideia do “homem novo” e do estímulo moral ao trabalho, dos

compromissos internacionais da revolução, disseminarão uma determinada “forma

revolucionária” para o resto da América Latina.

A adoção da perspectiva da luta armada foi uma crítica ao imobilismo gerado dentro dos

partidos comunistas pró-soviéticos e pró-chineses e seu afastamento das lutas populares. No

contexto geral da Guerra Fria e do fracasso dos partidos comunistas em manter a paz, o

capital encontrava nos ataques bélicos, mais uma vez, a afirmação do sistema.

A defesa por parte dos partidos comunistas de uma aliança com as burguesias nacionais

deixa totalmente vulnerável uma estratégia socialista pois essas burguesias, a despeito das

suas supostas contradições com o imperialismo, não tinham nenhuma potencialidade

revolucionária, como pensava o movimento comunista. A nova “vanguarda revolucionária” na

América Latina afirmará que a potencialidade revolucionária daquelas burguesias tinha

chegado ao fim. Isso foi dramaticamente mostrado com o golpe militar em Brasil em 1964, o

desembarque na República Dominicana em 1965 e o golpe militar de Onganía na Argentina

em 1966 (Cfr. Koutzii, 1987: 52-53).

A revolução cubana abre um novo período revolucionário na América Latina mostrando

por um lado a possibilidade da luta armada como forma de destruir um poder ditatorial e pró-

imperialista e abrindo o caminho para o socialismo. Por outro lado realizando a possibilidade

objetiva de uma revolução que combinava tarefas democráticas e socialistas com um processo

revolucionário ininterrupto.

A leitura segundo a qual as economias latino-americanas estavam num caminho sem

saída, de estagnação, que já não tinham nenhuma capacidade de resposta, reforçou o

pensamento dos guevaristas de que as condições estavam maduras para a revolução. Os

grupos influenciados por essa revolução, pensavam então que, dadas as condições gerais de

132

miséria e pobreza na América Latina, elas por si mesmas gerariam disposição de luta e

consciência política nos “povos oprimidos”. Tratava-se de uma confusão entre “explosividade

social e consciência política. Tomava-se a irrupção da rebeldia popular como reveladora de

condições revolucionarias iminentes” (Koutzii, 1987: 58)115.

A figura que melhor representa esse período revolucionário é Ernesto “Che” Guevara, não

apenas por seu papel na revolução cubana, mas também por suas formulações teórico-

políticas acerca da estratégia revolucionária no continente. Um dos seus principais temas teve

a ver com a ética comunista116 no processo revolucionário e a recusa de medidas econômicas

de construção socialista que se baseiem nas “armas falhadas que nos deixou o capitalismo (a

mercadoria como célula econômica, a rentabilidade, o interesse material individual como

alavanca, etc)” que podiam levar a “um beco sem saída” (Guevara, 1965). A partir de 1963,

Guevara começou a desenvolver uma atitude mais crítica ao modelo econômico, social e

político do “socialismo real”, buscando um caminho socialista alternativo, mais democrático,

mais igualitário e mais solidário.

Por outro lado Guevara reforça que o caráter socialista da revolução na América Latina

tinha que abandonar sua aliança com a burguesia local por ela ter perdido “sua capacidade de

resistir ao imperialismo – se alguma vez a tiveram – e agora só formam sua retaguarda

['furgón de cola']” (Guevara, 1967). De alguma maneira Guevara enfrenta o problema das

etapas no esquema do marxismo pró-soviético, afirmando que “em Cuba pulam-se etapas” no

caminho ao socialismo.

O terceiro elemento enfrentado por Guevara é o da luta armada e a necessidade de que a

guerrilha seja acompanhada pelo apoio das masas camponesas e operárias, sem as quais a luta

é um prelúdio do “desastre inevitável”117.

Segundo Sandroni (1987: 121), talvez tenha sido um dos primeiros latino-americanos a

enfrentar concretamente um dos problemas mais complexos das revoluções vitoriosas: como

construir uma economia socialista num país economicamente atrasado, onde a maioria da

115 A teoria do foco guerrilheiro deduzia de forma simplificada e unilateral da experiência cubana soluções para quase tudo: "'Economizava' os necessariamente longos períodos de amadurecimento da organização e consciência das classes oprimidas. 'Economizava' as etapas da preparação social e militar de insurreição" (Koutzzi, 1987: 59).

116 Para Löwy (1987: 97), a capacidade do pensamento revolucionário do Che Guevara para ser atualizado e reatualizado em diferentes momentos e pelos mais diversos movimentos revolucionários latino-americanos, se deveu ao seu potencial “humanista”, baseado na “filosofia da práxis” que para ele significava o marxismo.

117 Esse debate pode ser encontrado no seu texto “Guerra de guerrilhas, o método”, escrito em 1960.

133

população não dispunha de uma consciência socialista desenvolvida: “tratava-se de organizar

dentro de moldes socialista uma economia com um pequeno grau de diversificação altamente

dependente do exterior, sem uma base industrial, e submetida a um bloqueio e hostilidades

militares sem precedentes na América Latina […] O povo cubano havia aprendido a morrer

pela revolução, mas ainda não a viver no socialismo”.

O debate levado adiante entre os anos 1963-1964 envolveu não só o interior da revolução

cubana, mas a esquerda no nível mundial. Os pontos centrais dessa controvérsia foram: a) a

questão da correspondência necessária entre as forças produtivas e as relações de produção; b)

o princípio do planejamento socialista e a vigência da lei do valor; c) a centralização do

orçamento e a autonomia financeira; d) a questão dos incentivos morais e materiais; e) a

questão do trabalho voluntário; e f) o internacionalismo proletário.

Em relação ao primeiro ponto, o Che afirmava que as relações de produção podem estar

descompassadas do desenvolvimento das forças produtivas, e para reforçar essa argumentação

apela a Lenin e sua concepção do elo mais fraco da corrente imperialista, representado por

Rússia em 1917 (Cf. Sandroni, idem: 124). O Che queria buscava assim reforçar a

possibilidade de uma revolução socialista num país atrasado.

O segundo punto é muito mais controverso, inclusive dentro do debate cubano. O Che

idealiza uma sociedade onde cada um participa com sua capacidade e recebe segundo o seu

trabalho realizado. Diferentemente das sociedades capitalistas, nesse tipo de sociedade todos

são iguais frente aos meios de produção, todos trabalham e as desigualdades na distribuição

do produto está dada pelo fato de que uns trabalham mais que outros (Cfr. Idem: 127). A

controvérsia residia em que os produtos no âmbito da distribuição conservavam o caráter de

mercadoria. Para o Che, essa situação não devia ser avaliada como prova de sobrevivência da

lei do valor, pois a troca não seria determinada pelo valor mas pelos preços administrados que

não necessariamente seriam uma expressão do valor das mercadorias (Idem). O planejamento

era para o Che um instrumento da sociedade para controlar e dirigir de forma consciente a

produção e a reprodução da vida social. Convertia-se num meio para alcançar objetivos

qualitativos: “a organização da produção em função da essencialidade dos valores de uso, a

prioridade para a satisfação das necessidades humanas mais prementes, a participação

consciente e colectiva das massas em todos os mecanismos de direção e produção como única

maneira de romper os grilhões da alienação” (Idem: 130).

134

Em relação ao terceiro ponto, e sua correlação prática com os pontos anteriores, na

preocupação de como seria a organização das empresas e do conjunto formado por elas, estas

não teriam fundos próprios, o arrecadado pela venda dos seus produtos dirigir-se-ia

diretamente ao Banco Central. E este forneceria os fundos necessários para o

desenvolvimento das atividades da empresa. Aqueles que atacavam essa proposição do Che

argumentavam que isso daria numa excessiva centralização e numa burocracia insuportável

(Idem: 131).

O quarto ponto foi extremamente relevante na formação de quadros dos movimentos

políticos latino-americanos surgidos com inspiração guevariana: a criação do homem novo. O

Che, num artigo de 1965, “O socialismo e o homem em Cuba” afirma: “Para construir o

comunismo, simultaneamente com a base material tem que ser feito o homem novo”

(Guevara, 1965). Se os homens na nova sociedade se orientassem por valores constituídos na

sociedade capitalista, o homem novo não seria mais que uma ilusão. Según Sandroni (1987:

134), embora para o Che fosse indispensável o desenvolvimento de uma base tecnológica, o

importante era como ele seria conseguido: “através de uma prática cotidiana, formadora de

uma consciência socialista. E a formação desta consciência entrava em rota de colisão com a

adoção ou tolerância de métodos semelhantes aos existentes no capitalismo, isto é, que

estimulassem o individualismo e acentuassem as diferenças de participação na riqueza

material e, por tanto, no consumo entre os trabalhadores”.

É importante ressaltar neste ponto a vinculação que esse elemento tem com a formulação

de Mariátegui em relação à formação de novos sujeitos a partir da revolução. Ambos autores

estavam preocupados pela autoconsciência que os sujeitos revolucionários teriam que

desenvolver na busca de uma nova sociedade que realmente fugisse das formas sociais

impostas pelo sistema capitalista. Essa formação de massas era ampla, heterogênea, e

compreendia a necessidade de novas maneiras de socialização que significavam bases

materiais e culturais diferentes às desenvolvidas até então.

O quinto ponto, sobre o trabalho voluntário, era crucial para o Che na revolução socialista.

Não só eliminaria a divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, mas também seria a

manifestação mais elevada do trabalho não alienado, do trabalho consciente realizado às

margens das pressões econômicas e/ou morais externas. O Che era consciente de que essa não

era uma tarefa simples e se perguntava até que ponto o trabalho voluntário era uma tarefa

135

voluntária, pois se a continuidade da participação dependia da pressão moral, não seria

totalmente voluntário. Se não realizava a tarefa livremente, e era pressionado por seus

companheiros, não teria sentido nenhum na organização de novas formas sociais.

Por último, na questão do internacionalismo proletário realiza um apelo à solidariedade

entre os países socialistas e uma crítica a eles mesmos por manterem com os países

capitalistas subdesenvolvidos relações de comércio espoliativas. Segundo Sandroni (1987:

138) aqui enfatiza que a ajuda econômica a Cuba por parte do bloco socialista não era um

favor mas um dever. Nessas relações baseava-se a solidariedade do internacionalismo

proletário que não ficara atrelada ao mero intercâmbio entre estados nacionais.

O movimento surgido da revolução cubana, que gerou outras interpretações do marxismo,

tinha como característica principal um certo “voluntarismo revolucionário”, político e ético,

em oposição ao determinismo passivo e fatalista118.

Os movimentos inspirados no chamado “guevarismo” que se expandiram pela América

Latina toda inspiravam-se basicamente numa ideia “voluntarista” e “militarista” da

organização. A derrota política e militar não só debilitou a maioria dos movimentos populares

mas também mostrou o débil apoio que eles tinham das incipientes organizações

camponesas119.

Régis Debray120, no seu livro dos anos '70 “A Guerrilha do Che” avalia como um erro de

leitura nacional e regional a tentativa de generalizar a luta armada na experiencia boliviana

como mecanismo de luta continental. Transferindo as premissas do Che do “A guerra de

guerrilhas” sobre a necessidade da guerra camponesa acompanhar a guerra do proletariado

118 A publicação do livro "Revolução na Revolução" de Régis Debray, em 1968, que marcou os movimentos guevaristas surgidos nesse momento, mostra parte desse "voluntarismo" e a confiança nos processos "revolucionários" que estavam se desenvolvendo em diferentes territórios (sobre tudo no cubano) com a ideia de que rapidamente atingir-se-ia um "continente socialista". No contexto dos processos ditatoriais, a aposta na "luta armada", "sindicatos camponeses" e de uma suposta "adesão quase unanime das massas", reflete as bases desse pensamento surgido pós-revolução cubana (Debray, N/C).

119 Algumas delas são: FALN (Fuerzas Armadas de Liberación Nacional) e o MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionaria) na Venezuela, as FAR (Fuerzas Armadas Revolucionarias) e o MR-13 (Movimiento Revolucionario 13 de noviembre) na Guatemala, o MIR e o ELN (Ejército de Liberación Nacional) no Peru, a FSLN (Frente Sandinista de Liberación Nacional) na Nicarágua, o Movimiento 14 de junio na República Dominicana e o ELN na Bolívia.

120 Régis Debray, filósofo e escritor francês que após o triunfo da revolução cubana viajou para Cuba e esteve até o último momento acompanhando o exército guerrilheiro de Bolívia. Foi detido e encarcerado pelo Exército Boliviano, em abril de 1967, e condenado a 30 anos de prisão. Foi liberado dois anos depois, após a queda do governo de René Barrientos, sendo anistiado pelo novo governo de Juan José Torres.

136

urbano, acabou gerando movimentos fracos e sem uma clara conexão com os diversos setores

populares. Mas Debray adverte que os limites do diagnóstico sobre a realidade boliviana não

invalidavam totalmente os planos do Che, pois a Bolívia não era um objetivo central mas

somente um momento tático num horizonte histórico mais geral. A tática do “foco

guerrilheiro” aparece com um objetivo maior à simples “tomada do poder” (Debray, 1980:

67). Escolhendo um campo de operações afastado dos centros políticos (como La Paz), o Che

revelava a escolha de um campo histórico distinto. Com essa estrategia, segundo Debray

(Idem: 68), não só ampliava seu campo de visão por cima das fronteiras nacionais, mas se

afastava também dos métodos da esquerda tradicional implementados até então. O objetivo

não era a “tomada do poder” mas a construção de poder popular materializado pelo seu

instrumento de ação, uma força militar autônoma e móvel. “Em sua concepção, a construção

do poder popular se antepunha à tomada de poder na Bolivia, derivada no tempo e secundária

em importância. Essa inversão de ordem dos fatores e dos momentos históricos marcava uma

ruptura efetiva com a tradição local” (Idem).

Até então a estratégia da esquerda era primeiro a tomada do poder do Estado, do aparato

burocrático e militar existente, para posteriormente utilizar esse poder como alavanca para

gerar um governo “progressista” e/ou “populista” que tentaria construir as bases de um poder

popular. Nesse sentido, segundo Debray (Idem: 69), o Che rompia com o costume “golpista” e

com a tendência às sublevações do “populismo contemporâneo”, predominante na Bolívia e

em outros lugares. O Che retomava assim a lição fundamental de Marx de que a revolução

proletária “não pode simplesmente deitar a mão sobre a máquina do Estado 'já feita', porém

debe romper com a máquina militar e burocrática do Estado burguês e instaurar a ditadura do

proletariado” (Marx apud Debray, 1980: 69).

Ñancahuasu, escolhido como território para o foco guerrilheiro, era um lugar pensado

como um campo de treinamento que num prazo de dois anos geraria um exército guerrilheiro

que permitiria ações na América Latina toda. O assassinato do Che em 1967 por parte do

exército boliviano e a captura do resto dos guerrilheiros acabou com o plano.

Paralelamente à revolução cubana e aos movimentos guevaristas surgiram também em

diferentes países movimentos guerrilheiros urbanos que vinham se desenvolvendo nas

periferias das cidades e que tiveram um importante impacto político no momento de sua

137

explosão121. A maioria deles foram destruídos pelas ditaduras.

Junto com a conformação da corrente política “guevarista”, desenvolve-se uma “ciência

social marxista” que, penetrando nas universidades latino-americanas, enriqueceu o estudo da

sociologia, da economia política, da historia, da ciência política. Os grandes assuntos

abordados por esta ciência eram: dependência e subdesenvolvimento, populismo, sindicatos e

a relação com o Estado, movimentos operários e camponeses, a questão agrária, a

marginalidade, etc. Apesar do pertencimento da maioria desses intelectuais-pesquisadores ao

meio acadêmico, eles não deixavam de vincular o desenvolvimento das pesquisas aos

problemas práticos da realidade. Os temas principais sobre os quais baseavam suas reflexões

eram: a recusa da ideia do feudalismo latino-americano, a crítica ao conceito de uma

“burguesia nacional progressista”, uma análise da derrota das experiências populistas como

resultado das próprias formações latino-americanas, a origem do atraso econômico como

parte do desenvolvimento capitalista dependente, e finalmente a impossibilidade de um

caminho “nacional democrático” para o desenvolvimento social na América Latina (Cfr.

Löwy, 2006a: 50).

É possível afirmar que com o guevarismo abre-se novamente o debate da revolução latino-

americana. Pelo contexto histórico que permite o surgimento desse pensamento pois ele volta

a ser colocado sobre as particularidades da América Latina, assinaladas por Mariátegui e Caio

Prado e os grupos de intelectuais surgidos nos anos 1920, como uma geração que abre para

novas formas de leituras sobre a formação da América Latina e seu desenvolvimento posterior

como desdobramento daquela formação.

Os anos de 1960 significam uma abertura para esse debate, não só pelos processos de

agitação, produção intelectual e a revolução cubana, mas também por uma revisão crítica do

que tinha sido o período stalinista, suas leituras e estratégias revolucionárias, para o conjunto

dos partidos comunistas no nível mundial. Assim, a esquerda herdeira da Segunda Guerra

Mundial, com a publicização do expurgo stalinista, tem por um lado a tarefa dessa revisão,

mas sobretudo emerge nas massas populares uma interpelação por novas leituras e estratégias.

Como vimos, esse processo foi cortado abruptamente pelos processos ditatoriais.

121 Alguns desses movimentos são: Movimiento de Liberación Nacional (Tupamaros) no Uruguay, PRT-ERP (Partido Revolucionario de los Trabajadores-Ejército Revolucionario del Pueblo) na Argentina, a ALN (Ação Libertadora Nacional) e o MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro) no Brasil, e o MIR no Chile.

138

Nesse contexto deve ser entendida a revolução cubana: ela provocou uma “revolução”

dentro do marxismo e dentro dos que detinham seu monopólio: os partidos comunistas.

É importante refletirmos sobre a maneira pela qual a revolução cubana influiu na esquerda

latino-americana e a oposição que significou naquele momento a uma concepção de história e

de política na qual o progresso, submetido a leis “objetivas”, substituía a práxis e na qual a

luta de classes era mero reflexo da cena social dos quase-desígnios das estruturas.

No campo da cultura essa reabertura não foi menos profunda. Passou a interpelar o âmbito

universitário para que nela repercutisse esse processo emergente nas massas populares.

Ocorre então um diálogo fecundo entre o campo intelectual e as massas populares

mobilizadas. Em 1971 Fernández Retamar escreve “Caliban” como produto desse processo,

no qual as diferentes correntes de esquerda se perguntaram pela existência ou não de uma

“Cultura” latino-americana, de um “Ser” latino-americano122. “Caliban” como o antropófago

“Caníbal”, que era o “homem bestial situado irremediavelmente à margem da civilização e a

quem era necessário combater a sangue e fogo” (Fernández Retamar, 2004: 3), foi a imagem

construída do homem que habitava as terras colonizadas123.

No capítulo I observamos a importância do movimento modernista na América Latina, na

formação de um campo intelectual que conseguiu expressar a diferença de ser intelectual da

periferia e tentar compreender essa periferia. A partir da década de 30 abandona-se aquela

necessidade de perceber a diferença da periferia do capital. Os anos 60 re-colocam aquelas

preocupações. Como afirma Fernández Retamar, pensar a nossa condição de “Caliban”

implica repensar a nossa história desde o “outro” lado, desde o “outro” protagonista, não

desde o “Ariel”124, quem seria nosso “outro” ser latino-americano: ilustrado, iluminado, que

122 Mariátegui é um dos intelectuais mais influentes nesses movimentos que tentavam resgatar um "marxismo latino-americano que não fosse calco e cópia". O Che Guevara conhecia os sete ensaios e destacava a sua relevância no pensamento revolucionário latino-americano.

123 Fernandez Retamar constrói a história do "Caliban" americano, inspirado na personagem Caliban/Caníbal (A Tempestade, de Shakespeare) e afirma: "em Montaigne (fonte de inspiração de Shakespeare) no seu ensaio de 1580 'Dos Canibais' nas terras desconhecidas 'nada tem de bárbaro nem de selvagem nessas nações; acontece que cada um chama de barbárie o que é alheio a seus costumes'. Em Shakespeare, ao contrário, esse Caliban/Canibal é um escravo selvagem e deforme para quem são poucas as injúrias. Acontece, simplismente, que Shakespeare, realista implacável, assume aqui ao desenhar Caliban a outra opção do nascente mundo burguês [...] Ao homem concreto, apresentá-lo como um animal, roubar-lhe a terra, escravizá-lo para viver de seu trabalho e, de ser preciso, exterminá-lo: isto último, sempre que contasse com alguém para realizar no seu lugar o duro trabalho [...] Não resta dúvida que 'A Tempestade' alude à América" (Fernandez Retamar, 2004: 4).

124 Ariel é um espírito evocado por Prósper (personagem de “A Tempestade”) que se contrapõe à natureza e

139

consegue desenvolver um pensamento autônomo, próprio da América Latina. Não há uma

verdadeira polaridade entre Caliban e Ariel pois “ambos são servos nas mãos de Próspero125, o

feiticeiro estrangeiro. Só que Caliban é o rude e inconquistável dono da ilha, enquanto Ariel,

criatura aérea, embora também seja filho da ilha, é nela o intelectual” (Fernandez Retamar,

2004: 11). Recuperava-se aqui a possibilidade de um pensamento e ação que permitissem

refletir um processo social que demandava do campo intelectual uma reflexão encerrada a

partir dos anos 30. Raras tinham sido as obras que tinham conseguido fugir dessa

homogeneização. Essa reabertura foi abortada não só pelas ditaduras militares mas também

por uma incapacidade da esquerda hegemônica de absorver outras formas sociais de

organização, outras tradições que existiam antes da chegada da cultura ocidental.

O processo aberto pelo guevarismo permitiu questionar o transplante violento, no qual a

esquerda também contribuía, do mundo ocidental para a América. A reabertura da leitura

marxista reabriu o debate sobre o lugar no qual se ancorava a construção de poder popular e

os limites que esse processo enfrentava quando se tentava reproduzir uma mesma forma para

realidades e processos diferentes. A maioria dos grupos de esquerda desconheceu as

singularidades das lutas camponesas e proletárias, donde a tentativa de generalização de

estratégias que forjou derrotas anunciadas antes do nascimento.

Um dos campos importantes dessa reabertura foi a igreja católica latino-americana com o

surgimento da “teologia da libertação”e seu vínculo com as organizações de base e com o

marxismo. O caráter dos regimes ditatoriais e o processo de renovação da igreja através do

Concílio Vaticano II, fizeram com que muitos sacerdotes e líderes do mundo católico se

aproximassem de uma nova maneira, de forma mais democrática, aos trabalhadores da cidade

e do campo, através de programas de assistência. Iniciava-se um deslocamento por parte de

alguns setores da igreja em direção a uma dimensão ideológico-política mais próxima dos

movimentos de massas que procuravam transformações sociais. Os grupos ou movimentos

cristãos mais destacados desse período foram “Sacerdotes do Terceiro Mundo” (Argentina,

governa suas forças, representando a “razão” e sua “potência”. Fernandez Retamar retoma a figura de "Ariel" (1900) construída na obra de José Enrique Rodó (1871-1917), na qual o autor exprime uma ilusão sobre a "juventude" americana, fazendo referência como metáfora às terras jovens da América e sua passagem para a maturidade, como uma clara contraposição ao "Caliban" de Shakespeare.

125 Personagem de "A Tempestade" (1611), de William Shakespeare (1564-1616).

140

1968), “Movimento Onis” (Peru, 1968), “Movimento Golconda” (Colômbia, 1969), “Igreja e

Sociedade” (Bolívia, 1969), “Cristãos para o Socialismo” (Chile, 1971). Pela condição de

clérigos de seus integrantes, esses grupos tiveram muita influência na propagação dos novos

posicionamentos dentro da igreja e no conjunto da sociedade.

A teologia da libertação não surgiu de uma escola de pensamento gestada dentro da

universidade ou nos centros teológicos ou fruto de uma reflexão pós-conciliar europeia. Foi

“um esforço original de nossos países para ser uma maneira diferente de fazer teologia,

reflexão crítica da práxis histórica, como ato que pensa um compromisso de caridade

anterior” (Souza apud Borgi, 1987: 59). Resulta impossível compreender a teologia da

libertação separada do contexto das práticas sociais, políticas e eclesiais da América Latina

naquele momento. A originalidade e especificidade da teologia da libertação reside na especial

combinação entre uma perspectiva teológica, uma tradição de pensamento, a teoria crítica

latino-americana, a apropriação de um instrumental teórico-metodológico marxista, e as

características das próprias formações sociais latino-americanas, onde se destaca o importante

espaço e protagonismo dos grupos e movimentos cristãos.

Segundo Löwy (1999: 1), a teologia da libertação, isto é, o corpus inovador de escritos

realizado pelos teólogos socialmente comprometidos como Gustavo Gutiérrez, Hugo Assman,

Leonardo e Clodovis Boff, Enrique Dussel, Frei Betto, Jon Sobrino, Pablo Richard, Franz

Hinkelammert (entre outros), não é mais do que a ponta visível de um fenômeno profundo

que mudou a história moderna da América Latina. Nascida nos anos '60 a teologia da

libertação é a expressão de um vasto movimento social que inclui setores da igreja (ou das

igrejas), muitas das ordens e congregações religiosas, as comunidades eclesiais de base,

movimentos cristãos laicos, promotores sindicais rurais e urbanos, e uma parte significativa

dos militantes de certos movimentos políticos de libertação social. Na análise de Löwy, “sem

a práxis desse movimento social, não é possível compreender os acontecimentos mais

importantes desde os anos 70 como as revoluções centro-americanas (Nicarágua, El

Salvador), ou o surgimento de um novo movimento operário e camponês no Brasil” (Idem).

Quais elementos propiciavam a congregação da teologia da libertação e do marxismo? A

crítica do fetichismo, como base da teoria marxista, foi a fonte mais rica da qual a teologia

bebeu nos anos 60 e 70. Dela surge a construção de uma práxis histórica sustentada numa

crítica radical da forma social capitalista. Com a teologia da libertação, a esquerda, coisificada

141

em seus dogmas, consegue novamente entrar em contato com as lutas sociais, os movimentos,

e revitalizar a teoria revolucionária. Segundo Löwy (2000: 19), “o cristianismo de libertação

latino-americano [...] é basicamente a criação de uma nova cultura religiosa que expressa as

condições específicas da América Latina: capitalismo dependente, pobreza em massa,

violência institucionalizada, religiosidade popular”.

A teologia da libertação e o marxismo constituíram-se em campos de confluência que

enriqueceram profundamente o pensamento crítico latino-americano, superando a mera

articulação política do momento inicial para passar a uma esfera de afinidade,

correspondências, possibilidade de ação e sobretudo de transformações mutuas. Nem o

cristianismo, tal como formulado desde a teologia da libertação permanecerá o mesmo após

seu encontro com o marxismo nem o marxismo poderá abrir mão de certas contribuições da

teologia e das concepções cristãs para a análise de uma sociedade fetichizada, alienada e

mistificada.

O concepto mais importante da crítica marxista do capitalismo é una "metáfora teológica",

referida à idolatria: o fetichismo (Cf. Löwy, 1999). Marx tinha descoberto esse termo em

1842, no livro de Desbrosses, Sobre el culto de los dioses fetiches (1785). N'O Capital, na

célebre seção 4 do capítulo I, sobre "O carácter fetichista da mercadoria e seu segredo"

descreve a mercadoria "uma coisa muito complexa, cheia de subtilezas metafísicas e de

argúcias teológicas". O carácter fetichista da mercadoria consiste em que as relações sociais

determinadas entre os seres humanos revistem para eles “a forma fantástica de uma relação

das coisas entre elas mesmas”. Löwy observa que as primeiras tentativas de utilizar a análise

de Marx para formular uma crítica teológica do capitalismo moderno como “sistema

idolátrico”, tiveram lugar no seio d destacadaequipe de teólogos que fundou em 1976 em San

José da Costa Rica um centro ecumênico de pesquisa, o Departamento Ecumênico de

Investigações (DEI): Hugo Assmann, Enrique Dussel, Franz Hinkelammert, Jorge Pixley,

Pablo Richard, etc. O primeiro resultado das discussões do DEI foi o livro pioneiro de

Hinkelammert, “As armas ideológicas da morte” (1978). A crítica do sistema de dominação

econômica e social existente na América Latina como forma de idolatria será esboçada, sob

distintos ângulos, dois anos depois, numa coleção (ou compilação) de textos do DEI publicada

com o título “A luta dos deuses”. Os ensaios fazem referência tanto às fontes bíblicas como às

formas antigas e modernos do culto dos ídolos. Somente o texto de F. Hinkelammert —"As

142

raízes econômicas da idolatria: a metafísica do empresário"— está dedicado às raízes

econômicas da idolatria (capitalista) contemporânea. Esse assunto será objeto de uma análise

profunda e inovadora no destacado livro de Hugo Assmann e Franz Hinkelammert, “A

idolatria do mercado. Ensaio sobre economia e teologia” (1989). Essa importante contribuição

é a primeira, na história da Teologia da Libertação, que está explicitamente dedicada ao

combate contra o sistema capitalista definido como idolatria.

Mariátegui está fortemente vinculado a esse processo das década de 60-70, na recuperação

de uma religiosidade popular. Como já assinalamos, tentou nutrir ao marxismo de outras

vertentes fundamentais para pensar a práxis revolucionária na América Latina. A teologia da

libertação não desconheceu esse trabalho, principalmente porque o vínculo com as

comunidades indígenas exigia uma compreensão da religiosidade que ia além da esfera da

igreja católica.

Junto ao guevarismo e à teologia da libertação surgem também outras correntes

revolucionárias na América Latina, com um menor nível de repercussão e de militantes: o

trotskismo e o maoismo.

A consolidação do trotskismo dá-se, segundo Löwy (2006a: 50) porque a Revolução

Cubana foi vista por muitos setores da juventude radicalizada como uma “confirmação da tese

da IV Internacional” da “revolução permanente” como processo que conduz ao

“transcrescimento” da revolução democrática numa revolução socialista.

Entre 1961 e 1963 o trotskista peruano Hugo Blanco liderou um dos maiores movimentos

camponeses de massas da história recente na América Latina. No livro “Tierra o Muerte”,

Hugo Blanco descreve a maneira na qual os camponeses se organizaram e levaram adiante sua

própria reforma agraria. Explica também como as massas se convenceram da necessidade da

luta armada e aponta os limites dessa luta na tentativa de chegar numa escala nacional.

Segundo Camejo126 (1979: 17), Hugo Blanco rejeitou as teses debrayanas do “foquismo”,

procurando o apoio das massas à luta armada, em lugar de baseá-la em pequenos grupos

isolados. Observa Blanco (1979: 81): “Os trotsquistas sabemos que a luta armada é uma fase

126 “Introdução” in “Terra ou Morte”. Em 1971, ano de publicação desse texto, Peter Camejo era membro da direção do “Socialist Workers Party” (SWP) dos Estados Unidos, e do “Secretariado Unificado da IV Internacional”.

143

obrigatória da revolução, mas somente isso: uma fase [mas] não podemos dizer que forma ira

a tomar essa luta armada e em que momento irá a se dar”. Afastando-se claramente das teorias

foquistas, afirma: “Sublinho as massas, porque é a parte que não entendem os ultra-

esquerdistas. Eles creem que basta que nós, os revolucionários, saibamos que a revolução há

de ser violenta” (Idem- Itálicas del autor).

Nem pela via do foquismo, nem pela “via pacífica ao socialismo” (com os exemplos do

Chile e do Uruguai), Chaupimayo (lugar da organização das massas camponesas lideradas por

Blanco) mostrou, segundo esse mesmo autor, que existia uma terceira via. A adesão de Blanco

ao indigenismo e seu convívio com a população quéchua, permitiram-lhe por um lado uma

forte recusa da proposta da APRA e por outro lado também às premissas do Partido

Comunista Peruano. No mesmo livro Blanco (Idem: 40) chama a atenção para o tipo de

organização do Ayllu127. Igual que Mariátegui, define-o como a “célula do comunismo

primitivo”, “fonte da revolução” pois ali é “conservada a organização comunal”. Esse tipo de

organização contrapõe-se à “fazenda”, importada pela colonia espanhola. À opressão sofrida

pelo indígena com a nova forma social de produção, o latifúndio, acrescenta-se outro aspecto::

“o 'índio' é uma nacionalidade oprimida”(Idem: 43).

Para os grupos de camponeses, a organização de massas torna-se um eixo fundamental no

debate, pois a conjunção dos povos indígenas com o restante das populações camponesas e

urbanas colocam um desafio enorme para a esquerda e para a teoria marxista, onde a teoria do

partido, a tomada do poder do Estado, a classe proletária são categorias que não conseguem

dar conta da complexidade dessas realidades nacionais e regionais. Apesar de os grupos como

o de Blanco realizarem um apelo à formação do partido como base para essas lutas, eles não

deixam de assinalar os limites de qualquer tipo de organização que não leve em consideração

a própria dinâmica que envolve as massas indígenas nessas regiões. A vitalidade do

pensamento de Mariátegui nesse ponto é indiscutível, e foi fonte de inspiração na organização

desses grupos.

A simpatia do trotskismo pela Revolução Cubana e a recepção das ideias do Trotsky por

parte dos guevaristas permitiu uma relação de colaboração em diferentes países e em muitos

lugares uma confluência política e/ou organizativa128. 127 Ver nota 66.128 São os casos do Chile, com o MIR em 1965, da Bolívia com a colaboração entre o POR e o ELN entre 1969

144

Já a relação do guevarismo com o maoismo foi mais conflitiva, pois a origem destes vem

da cisão dos Partidos Comunistas tradicionais no conflito sino-soviético129. O primeiro grupo

maoista latino-americano foi o Partido Comunista do Brasil (PCdoB)130, produto de uma

corrente dissidente do PCB desde 1962.

O PCdoB propunha um retorno à política de ofensiva do período da “Guerra Fria”131 e

uma tentativa de aplicar a estratégia revolucionária do PC chinês. Seguindo aquele exemplo,

o PCdoB propunha um “bloco de quatro classes”132 e o estabelecimento de um governo

revolucionário conquistado por uma guerra popular, cuja tarefa seria uma revolução anti-

imperialista e anti-latifundista. Como os soviéticos, os maoistas acreditavam na necessidade

de uma aliança com a burguesia nacional para a etapa presente da revolução, mas com uma

hegemonia do proletariado e a necessidade da luta armada. Durante a década de 1960, o

PCdoB opôs-se à luta armada e às ações levadas adiante pelos grupos castristas no Brasil

(ALN, MR-8). No entanto, entre 1971 e 1973 organizaram uma guerrilha no amazonas que

a 1971, e da Argentina com o PRT em 1965.129 Com a vitória da Revolução Chinesa em 1949, o mundo socialista passa a ter uma segunda referência. A

crescente divergência entre soviéticos e chineses, estoura finalmente a fins dos anos 1950 e estabelece uma diferença principal: "a União Soviética defendia uma política de coexistência pacífica, enquanto os chineses sustentavam uma política de confronto com o imperialismo norte-americano [...] [O importante deste conflito] é que pela primeira vez na historia do movimento comunista internacional, o monopolitismo e o domínio total da União Soviética no campo da esquerda passavam a ser contestados" (Koutzii, 1987: 49).

130 Outras organizações semelhantes no resto da América Latina foram: o PCML (Partido Comunista Marxista-Leninista) no Peru, o PCML na Bolívia, o PCML na Colômbia.

131 É importante destacar a "Crise dos mísseis" no período da Guerra Fria em Cuba (1962). Tratou-se da instalação por parte do dirigente russo N. S. Kruschev de mísseis em Cuba para compensar os mísseis norte-americanos instalados em outro lado da fronteira soviética, na Turquia. Os Estados Unidos obrigaram a tirá-los com ameaça de guerra, mas também tiraram seus mísseis d Turquia. Os mísseis soviéticos, "como tinham lhe dito ao presidente Kennedy naquele momento, careciam de importância no contexto do equilíbrio estratégico" (Hobsbawm, 2007: 234, nota 3). Segundo Hobsbawm, retomando a Ball, a principal preocupação de ambos bandos esteve em "evitar que se mal interpretassem gestos hostis como preparativos bélicos reais [...] [O fato foi que] a crise dos mísseis cubanos, esteve perto de arrastar o mundo a uma guerra desnecessária durante longos dias" (Idem, 34)

132 O “bloco das quatro classes” foi tomado da ideia da “nova revolução democrática” formulada por Mao Tse-Tung, que tinha como eixo principal a coalizão dos operários, camponeses, pequenos burgueses e capitalistas de ordem nacional. Um documento do PCdoB, publicado em 1968, enquadrava essa “revolução democrático-burguesa de novo tipo”, com sua perspectiva de “uma transição para el socialismo”, passando “necessariamente por uma etapa nacional e democrática” e de que nas tarefas realizadas nessa etapa “criam-se as condições, objetivas e subjetivas, favoráveis para a transição”. Para o PCdoB “o imperialismo e o latifúndio são os inimigos principais dos povos latino-americanos. Porque agregar a estes inimigos o capitalismo nacional em seu conjunto, levantando medidas socialistas como reivindicações imediatas? Ao apresentar as exigências democráticas e anti-imperialistas, que uma vez satisfeitas atingem de morte àqueles inimigos, o proletariado pode aliar-se temporariamente com uma parte da burguesia, mesmo vacilante, neutralizar outra e golpear apenas os setores burgueses ligados ao imperialismo (Documento do PCdoB “A revolução nacional-democrática apud Löwy, 2006a: 455).

145

acabou sendo dizimada pelas forças armadas (Idem: 52)133.

Flores Galindo (1986: 354) observa que o Peru foi um dos países onde a Revolução

Chinesa teve maior impacto, tanto em quantidade de agrupações que se geraram quanto em

quantidade de militantes que se tornaram maoistas. Uma dessas agrupações foi o “Sendero

Luminoso”. Surgido a fins dos anos de 1960, assumiam o lema “pelo caminho luminoso

[sendero luminoso] de José Carlos Mariátegui”. O grupo, de grande impacto na esquerda

peruana e latino-americana, autoproclamava-se seguidor do pensamento de Mariátegui.

Identificando-se com os posicionamentos mais dogmáticos e fechados, de uma estrutura

vertical onde o messianismo era impositivo, caracterizavam o Peru como “semifeudal, onde a

fazenda e os gamonales persistiam como principal sustento de um Estado burocratizado que

apenas conseguía, através das reformas implementadas pelos militares, uma incipiente e lenta

penetração do capitalismo” (Idem: 355). Segundo o grupo, para disputar o poder o caminho

era a luta armada que iria do campo para as cidades. Talvez por essa razão a maior parte dos

militantes acabou se concentrando em um dos departamentos mais atrasados do Peru,

Ayacucho, onde pareciam confirmar-se as teses de uma população maioritariamente

camponesa, sem indústria e grande comércio, com predominância de artesãos, num meio

cultural onde o quéchua resistia com eficácia ao espanhol.

No entanto, nesse lugar funcionava uma universidade desproporcional em relação às

condições da região, a Universidad Nacional de San Cristóbal de Huamanga (capital do

estado). Ela contava com 6 mil alunos e uma equipe excepcional de docentes que passaram a

se interessar (algo não muito frequente nas universidades) pelo conhecimento da realidade

imediata. Viajavam, percorriam fazendas, comunidades, faziam trabalho de campo. Assim,

“desde os setores mais atrasados do país começou a se pensar na possibilidade de mudar a

história universal” (Flores Galindo, idem: 358). O surgimento de “Sendero Luminoso” deve

ser entendido no contexto dessa região que tinha sido o centro do grande império pré-

hispânico. Dessa maneira, as ideias imaginadas nesse território podem soar menos absurdas

em relação ao que acabaram se tornando na prática (idem: 360).

As ações de luta armada começaram no dia 17 de maio de 1980, com a tomada de Chuschi

133 Na época o PCdoB foi apoiado pela Ação Popular, uma organização com base na esquerda cristã que hegemonizou o movimento estudantil na década de 1960.

146

e a queima simbólica de ânforas, multiplicando-se num ritmo ascendente até 1984134. Para

Flores Galindo (Idem: 361) o grupo foi “uma espécie de raio num céu claro […] Um

movimento que surge quando a esquerda (maioritariamente) assume a via eleitoral e opta por

respeitar alguma regras mínimas do 'jogo democrático' e quando, por outro lado, sociólogos e

economistas traçavam a imagem de um país cada vez mais moderno, onde a urbanização era

irreversível, os camponeses beiravam a desaparição e as classes populares tornavam-se em

assalariados ou semiproletários. Constatava-se a desaparição do andino”. Esse processo

recebeu o nome de “descampenização”.

Em face das mortes, ataques e a forte repressão que o grupo começa a sofrer, a estratégia

adotada pelo governo frente às ações do “Sendero Luminoso” foi isolá-lo ideologicamente

sob o lema: não são guerrilheiros, nem combatentes, são “terroristas” sinônimo de

“criminais”, dos quais a sociedade devia se proteger. Iniciou-se assim um longo processo de

“dessangramento” do movimento e de enfrentamentos na maior parte dos Estados do país135.

A importância desses movimentos surgidos após a Revolução Cubana (1960) está

vinculada à crítica e à novidade que propõem em relação aos Partidos Comunistas latino-

americanos tradicionais, baseados nas diretrizes da III Internacional. Conseguiram recuperar

aquelas ideias de Mariátegui da década de 1920 e de Caio Prado da década de 1940. Mas

perderam ao mesmo tempo eixos fundamentais de análise, formulando finalmente um

esquematismo parecido ao dos partidos comunistas da época, ao tentar reproduzir uma

estratégia localizada da experiência cubana, e dos setores camponeses para o resto da

América Latina.

Problematizaram os modelos revolucionários baseados nos pressupostos fundados nas

diferentes interpretações sobre a formação da América Latina, mas acabaram pagando o

134 Segundo dados oficiais atribuem-se ao Sendero Luminoso: 219 “atentados” em 1980, 715 em 1981, 891 no ano seguinte, 1123 e 1760 em 1983 e 1984 respectivamente. Esses atentados consistiam, durante 1980 e princípios de 1981 em corte de estradas, ataques a fundos e minas, destruição de tratores, assalto a tendas e armazéns, explosões, corte de vias férreas e pontes e sobretudo, voadura de torres de luz eléctrica (Cfr. Flores Galindo, 1986: 361).

135 Não desenvolvemos neste trabalho a continuidade do movimento depois dos anos 80. Só assinalamos que em 1991 o presidente Alberto Fujimori promulgou um decreto legislativo outorgando à “rondas campesinas” status legal e chamando-as de “Comitês de autodefesa” lhes entregando armas e treinamento militar por parte do exército, provocando enfrentamentos sangrentos entre a população. Segundo dados do governo existiram 7226 “comitês de autodefesa”. No 12 de setembro de 1992 o líder do Sendero Luminoso Abimael Guzmán Reynoso foi capturado. Considera-se esse momento como o do fim do grupo, apesar de versões de novos atentados.

147

tributo necessário ao histórico dualismo de “atraso/progresso” nos seus programas políticos.

Situado na realidade brasileira, Arantes afirma que depois da pós-guerra “as cenas do

Brasil velho, diferente, fora de esquadro, acintosamente localista, continuassem misturadas à

paisagem moderna que bem o mal a Revolução do 30 delineara, alastrou-se a convicção, logo

transformada num imenso lugar-comúm, de que na realidade existiam justapostos dois

Brasis”. Aprofundando essa ideia observa que “mesmo a Formação do Brasil Contemporâneo

não deixa de pagar seu tributo ao raciocínio dualista quando Caio Prado Jr. faz gravitar a

desequilibrada colônia de exploração mercantil em torno de dois focos distintos, o núcleo

orgânico do sistema colonial de produção, isto é, a lavoura escravista do litoral, e sua periferia

inorgânica, subsistindo dispersa na imensidão do território interior” (1992: 24-5). Caio Prado,

como vimos, sedimenta as bases de uma teoria crítica que precisava se pensar como parte da

expansão capitalista, outorgando uma originalidade às formações coloniais da América, se

esforçando por enfrentar o debate com o PCB e sua visão nos marcos etapistas da III

Internacional.

Ao mesmo tempo, essa visão de “capitalismo dependente”, acabou alimentando outros

pressupostos na formulação do programa político que finalmente debilitaram o revigoramento

do marxismo. Fernando Henrique Cardoso, um dos maiores expoentes da Teoria da

Dependência nos anos 60, abordando o nexo espinhoso da escravidão-capitalismo, inspirado

num “marxismo renovado” daqueles anos, formula que “o sistema escravocrata, numa

economia mercantil que visa o lucro, encobre para o propriétario de escravos o sentido real da

produção capitalista e impede o pleno florescimento do capitalismo” (Cardoso apud Arantes,

1991: 64). Assim, segundo Arantes, uma coisa era demostrar que o sistema de produção

escravista-capitalista é uma contradição em termos e que portanto uma empresa escravista

lucrativa que se realiza no mercado está por definição condenada, e “outra coisa é reconhecer

que na prática nem sempre foi assim: durante muito tempo o regime escravista funcionou

adequadamente a serviço da produção mercantil num quadro de capitalismo comercial em

pleno desenvolvimento” (Idem). É possível pensar que, indiretamente, o pressuposto de Caio

Prado sobre a empresa comercial como expansão do capitalismo na conquista de América

acabou gerando esse tipo de interpretações onde um determinado dualismo, que observava o

148

capitalismo da colonia como dinâmico e contraditório ao mesmo tempo, acabaria resolvendo a

dualidade com a qual tinha sido interpretado historicamente até o momento. Na análise de

Arantes (1991: 65), para Fernando Henrique Cardoso é indiferente falar de capitalismo

colonial quanto de escravidão colonial; a diferença é que nesse novo contexto o capitalismo já

não pode ser entendido como um todo homogêneo contraposto à nebulosa do pré-capitalismo.

Essa é a crítica que Arantes (1991: 65) faz dessa leitura: “Éramos portanto parte de um

sistema com duas caras, nem integralmente capitalista, nem simplesmente pré-capitalista.

Capitalistas? Escravistas? Éramos e não éramos, ao mesmo tempo […] Voltamos assim à

terra natal da dualidade, agora passada a limpo na língua da contradição: os termos que a

compõem não se encontram mais justapostos porém 'contraditoriamente relacionados'”.

Retomando a análise de Schwarz (2005: 16) do “marxismo nacionalista” no Brasil,

podemos pensar o problema político que vivia a esquerda latino-americana no momento, e

que assinalamos no capítulo I como um dos limites do programa de “A Revolução Brasileira”

de Caio Prado, que se traduzia em que “num país dependente mas desenvolvimentista, de

capitalização fraca e governo empreendedor, toda iniciativa mais ousada se faz em contato

com o Estado. Esta mediação dá perspectiva nacional (e paternalista) à vanguarda [...] a tônica

de sua crítica será o nacionalismo antiimperialista, anticapitalista num segundo momento, sem

que a isto corresponda um contato natural com os problemas da massa. Um 'marxismo

especializado na inviabilidade do capitalismo, e não nos caminhos da revolução'” (itálica

nossa).

A chave de leitura de Caio Prado abria a possibilidade de pelo menos duas visões: por um

lado, a ideia de dependência como uma forma particular do capitalismo periférico, que

precisava ser superada com o desenvolvimento de um capitalismo autônomo que permitisse

equalizar os diferentes núcleos existentes nas sociedades periféricas; e uma outra visão que

permitia pensar a empresa colonial como parte da regressão do progresso na expansão

capitalista e da acumulação primitiva permanente. Partindo desse pressuposto era possível

pensar em processos revolucionários que questionassem de maneira radical a forma social

burguesa. Nosso capítulo III baseia-se nesse pressuposto, apontando para o aprofundamento

desse processo regressivo nos anos 1990 e a nova configuração das lutas que, assim como nos

anos 1960, marcaram para o marxismo a necessidade de uma oxigenação de seus pressupostos

149

teóricos e políticos.

4. Chile e o Estado democrático-burguês

A experiência chilena que abre os anos 1970 deu-se num contexto local diferente da

revolução cubana, definindo estratégias de luta diferentes.

Com a Guerra do Pacífico (1879-1884) (já mencionada no capítulo I) contra a Bolívia e o

Peru, na qual Chile invade e se apropria dos territórios de Tacna e Arica, ricos em salitre e

guano, a economia chilena recebeu um grande impulso. Isso também provocou grandes

mudanças no papel do Estado e no seu sistema produtivo. Por um lado significou a

incorporação massiva de empresas estrangeiras no processo de exploração e acumulação

intensivos; por outro lado, a burguesia chilena não tinha desenvolvido a tecnologia necessária

para essa exploração. Esse setor, incapaz de assumir diretamente a exploração das minas,

reforçou seu papel estatal que lhe permitisse negociar com os proprietários estrangeiros: “O

Estado representativo cumpre, assim, a função de, expressando a diferentes fracções da

burguesia chilena, definir as formas de repartição interna da parte do excedente gerado no

setor explorador que ficava no país” (Sader, 1982: 77).

A inícios do século XX, as lutas dos trabalhadores das minas de carvão, cobre

(principalmente), junto aos do salitre, trens e da indústria manufatureira, começam um ciclo

de revoltas por melhoras nas condições de trabalho e de exploração, realizando trabalhos

forçados para as empresas multinacionais. As ideias anarco-sindicalistas exerceram uma

extraordinária influencia nos setores operários (de mesma maneira que no resto da América

Latina) e sustentam o desenvolvimento de um dos movimentos sociais de maior

transcendência na história do Chile. Outros grupos estavam formados pelos agricultores do

sul, os industriais, os comerciantes, os profissionais universitários, os funcionários do Estado

e os artesãos. Todos eles recebiam inspiração ideológica do positivismo e das doutrinas

solidaristas e militavam fundamentalmente no Partido Radical. Esse processo teve duas

expressões políticas simultâneas e, no fundo, contraditórias. As camadas médias representadas

politicamente pela Alianza Liberal, com seu candidato Arturo Alessandri, enfrentaram a

oligarquia nas eleições presidenciais de 1920 e com suas bandeiras reformistas arrastaram a

150

maioria dos trabalhadores que não tinham ainda uma clara consciência de seus interesses. O

movimento operário, por sua parte, lutou durante a mesma época, sob a condução de Luis

Emilio Recabarren, para se organizar numa política classista e autônoma, cuja expressão

concreta nessa campanha eleitoral foi a própria candidatura presidencial desse líder popular

(Cfr. Elgueta; Chelen, 1977: 227-228).

A chegada de Alessandri no governo criou condições políticas que favoreceram o

desenvolvimento do movimento operário. As organizações sindicais atuaram de fato

assumindo a representação dos trabalhadores, estabelecendo convênios coletivos de trabalho,

promovendo conflitos e greves pela satisfação de suas demandas econômicas. Esse governo

foi derrocado em 1924 por um golpe militar. Depois de Alessandri ter sido obrigado a

abandonar seu mandato três meses antes da sua finalização, foi eleito presidente Emiliano

Figueroa Larraín, quem representava os interesses da antiga classe dirigente. Foi obrigado a

escolher como Ministro do Interior o coronel Ibáñez, quem um ano e meio depois, diante da

renúncia do presidente, assumiu o cargo de vice-presidente, para ser eleito no 27 de maio de

1927 presidente da nação. A ditadura militar, desgastada durante esses quatro anos de

reiterados fracassos, foi deposta no 26 de julho de 1931 por um levante geral do país,

encabeçado pelos estudantes universitários, por uma crise financeira provocada pela banca

norte-americana (Idem: 231).

As lutas daqueles anos que sedimentaram o pensamento socialista ao longo do século XX

no Chile deram origem em 1912 ao Partido Socialista Obrero, inspirados em Luis Emilio

Recabarren. Depois de aderir à III Internacional em 1922 transforma-se em Partido Comunista

Chileno. Elgueta e Chelen (1977: 255) destacam quatro períodos do PC chileno: "a) de 1922 a

1933 adotou posições marxistas-leninistas intransigentes e opostas à colaboração com os

partidos burgueses; b) de 1933 a 1948 desenvolveu o lema de 'frentes populares em todo o

mundo', primeiro e de 'unidade nacional' depois, para deter o fascismo; c) de 1948 a 1956

atuou na ilegalidade, passando por uma das mais graves crises pois a maioria do povo apoiou

o populismo ibañista; c) de 1956 para frente inaugurou uma política de unidade com o Partido

Socialista cristalizada na fundação da Frente de Acción Popular".

Com a queda de Ibáñez em 1931, propagaram-se as ideias socialistas, produzindo vários

151

grupos, movimentos, dentre os quais jovens militares que conformaram um movimento

revolucionário que estourou no 4 de junho de 1932 por meio de um pronunciamento militar

que proclamou a “República Socialista” encabeçada pelo comodoro del Aire Marmaduque

Grove. La efêmera república -que durou somente 12 dias- recebeu amplo apoio das masas

trabalhadoras, embora grupos reduzidos, como o Partido Comunista apresentaram sua

oposição a dita façanha. Esse grupo derrotado tão rapidamente, formará posteriormente o

Partido Socialista (Idem: 233).

Em 1932 Alessandri é novamente eleito presidente e reprime severamente os grupos

socialistas. Estes, vendo que sua sobrevivência dependia da sua unidade, fundam, no 19 de

abril de 1933 o Partido Socialista. Segundo Altamirano136 (1979: 16) o Partido Socialista

chileno sempre manteve autonomia frente às grandes correntes do movimento operário

internacional: “Marginalizado igualmente da II Internacional Social-democrata e da III

Internacional Comunista, constituiu uma expressão nacional estranha às diretrizes das

Internacionais”.

Esse novo mandato de Alessandri teve que enfrentar o declínio definitivo da indústria do

salitre, e a continuação do declínio da agricultura, já iniciado em 1929-1931.

Segundo Sader (1982: 77) no Chile (assim como no resto da América Latina) a

industrialização substitutiva de importações processou-se como reação à depressão do setor

exportador e, como consequência desse processo, as relações de classe levaram a uma

polarização política aguda: “de um lado a velha oligarquia se aferrou a projetos políticos de

manutenção da ordem, supostamente ameaçados pelo crescimento da organização política dos

trabalhadores. De outro, estes últimos -expressos no PC e no PS- aliados ao Partido Radical,

expressão liberal da camadas médias e setores de proprietários dispostos a tal coligação à

esquerda, constituem a Frente Popular” (Idem).

Nesse período, como vimos, a III Internacional promoveu a política das Frentes Populares,

e no Chile acabou sendo favorecida pela política repressiva de Alessandri e pela retirada do

Partido Radical das tarefas de gabinete. O Partido Socialista, que inicialmente não

compartilhava essa iniciativa política, incorporou-se à aliança juntamente com a

136 Carlos Altamirano (1922) foi Secretário Geral do Partido Socialista chileno entre os anos 1971-1979.

152

Confederação de Trabalhadores do Chile. A Frente Popular conquistou importantes vitórias

nas eleições gerais de parlamentares em 1937 e com seu candidato Pedro Aguirre Cerda

derrotou a direita nas eleições presidenciais do 25 de outubro de 1938 (Cfr. Elgueta; Chelen,

1977: 235).

As medidas da frente não puderam fugir das linhas gerais dos governos do Terceiro

Mundo: reorganizar o aparato estatal para impulsar a industrialização137. O desenvolvimento

econômico influiu por sua vez na conformação das forças sociais e políticas que começaram a

participar nas novas conformações de classe. A burguesia industrial e comercial desenvolveu-

se à sombra da política de intervenção na economia por parte do Estado, que assumiu enormes

investimentos na construção da infra-estrutura e na criação de poderosas atividades que

condicionaram o crescimento econômico do país. Muitas dessas atividades foram transferidas

posteriormente aos empresários privados, gerando um forte setor que se tornou por sua vez

grupo de pressão sobre o Estado, influenciando na política econômica do governo (Idem:

236).

Em 1941 a Frente Popular experimentou uma crise mortal, produzindo-se uma ruptura por

decisão do Partido Socialista. Segundo Elgueta e Chelen (1977: 237), o programa da frente

acabou não mais do que o programa da burguesia dependente.

Em 1946 o PC insistiu no compromisso de uma frente, e conforma com o Partido Radical

a chamada Alianza Democrática. Seu candidato Gabriel González Videla foi eleito presidente.

Seis meses depois de iniciado o mandato, o governo iniciou uma forte repressão. O PC sofreu

violentos golpes e ingressou à ilegalidade. Acabou com esse governo o esquema de

colaboração de classes iniciado nos anos de 1930138.

O 29 de fevereiro de 1956 conformou-se a Frente de Acción Popular (FRAP). Socialistas

137 Sob a direção da "Corporación de Fomento de la Producción", criada pelo governo, desenvolveram-se grandes atividades nacionais, como "a Empresa Nacional de Electricidad com suas centrais hidroelétricas, a Empesa Nacional de Petróleo, a Compañía de Acero del Pacífico, as fábricas de cemento, a Empresa Nacional de Mineração com suas funções e refinarias de cobre procedente da pequena e média mineração, a maioria das quais se organizaram como empresas estatais" (Elgueta; Chelen, 1977: 235).

138 Carlos Altamirano (1979: 27) observa que os Partidos Comunistas do Chile, França, Itália, Finlândia e Bélgica foram quase simultaneamente expulsos de todas as alianças realizadas nesses anos para a conquista do governo. “Em março de 1947, Gabriel González Videla pede que os ministros comunistas renunciem e declara o partido ilegal. Spack toma igual atitude na Bélgica, e Ramadier na França, enquanto De Gaspari faz o mesmo na Itália, ao retornar da sua viagem aos Estados Unidos”.

153

e comunistas formaram pela primeira vez na história do Chile um bloco político de caráter

revolucionário. Segundo Altamirano (1979: 26) o surgimento da FRAP encerrou um longo

ciclo com saldo negativo na evolução do movimento popular chileno e inaugurou um período

de ascensão da classe trabalhadora.

Como foi dito, o impacto da revolução cubana foi importantíssimo para o fortalecimento

dos setores de esquerda na América Latina. No Chile dos anos 1960-1970 não foi diferente.

Em 1964, a Democracia Cristiana (DC) ganha as eleições com o apoio da direita

tradicional, elegendo Eduardo Frei como presidente. Salvador Allende é derrotado como

representante da coligação de esquerda. Os principais aspectos do governo da DC foram a

reforma agrária com a criação de assentamentos rurais e a política de moradia vinculada à

organização comunitária em bairros pobres. Com a lei de expropriação, entre 1964 e 1970

1364 latifúndios foram expropriados, representando o 18% da terra agrícola (Cfr. Sader, 1982:

79). O fim último da “área reformada” era a modernização da produção agrícola, significando

um grande estímulo para a burguesia agrícola.

A posse da terra significou uma organização massiva das bases camponesas, fornecendo à

futura Unidad Popular uma força importante na luta política.

A política de moradia consistiu numa entrega enorme de terrenos aos setores populares, na

qual as famílias construíam suas casas com madeiras providenciadas pelo Estado. Isso deu

origem a uma base social organizada em “Juntas de Vizinhos” e “Centros de mães”, que

tinham por objetivo colher as demandas dos bairros em relação à infraestrutura e

equipamentos necessários e convertê-las em revindicações ao Estado.

A expansão do mercado econômico dá-se em paralelo a esse processo de “moradia

popular”, onde a construção de casas para a classe média, financiadas pelo Estado, estimula o

setor da construção, favorecendo um setor de empresários e a través da extensão das redes de

equipamentos urbanos (Cfr. Sader, 1982: 81; TN).

Segundo Elgueta e Chelen (1977: 242), a política desenvolvimentista impulsada pelo

governo democrata cristão presidido por Frei “no foi senão a nova cara da aliança do capital

imperialista com o capital nacional industrial, dirigida fundamentalmente a transferir parte

dos investimentos norte-americanos da mineração para as industrias manufatureiras, de

154

acordo com a tendência manifestada por eles, nos últimos anos, da busca de taxas de lucro

mais atrativas, e a ampliar o mercado interno para os produtos das novas industrias por meio

da reforma agrária, a organização dos camponeses e a melhora do nível de seus ingressos”139.

Em meados de 1969, os partidos socialistas e comunistas dirigiram uma carta pública a

diversos partidos e movimentos, os convidando a constituir um bloco político capaz de

oferecer ao Chile uma alternativa “nacional, popular e revolucionária” (Altamirano, 1979:

33). Mais tarde surgirá a Unidad Popular, como continuação da antiga FRAP, incorporando

outras tendencias do pensamento democrático. Segundo esse mesmo autor, o povo

identificou-se com o programa da UP por ser amplo e conter interesses e aspirações das

grandes maiorias.

Com a regressão econômica de 1967, paralisou-se a expansão da DC e iniciou-se um ciclo

de revoltas sociais que se encerrou com a vitória da Unidad Popular em 1970.

Diferentemente de outros PCs, o Partido Comunista chileno não teve grandes divisões,

conseguiu se fortalecer e buscou uma via pacífica para o socialismo conformando a Unidad

Popular, que chegou ao governo em 1970, tendo como líder e presidente a Salvador Allende.

O papel moderado que adquire o Partido Comunista chileno lutara para que o governo

mantenha uma aliança importante com os sectores considerados progressistas da burguesia,

assegurando um “modus vivendi”. Esse fato fez com que os eventos de 1973 surpreendessem

o PC chileno, pois sua concepção de aliança entre as classes no aparato estatal não deixava

enxergar a contradição que ela significava no processo revolucionário.

Salvador Allende foi eleito presidente no 4 de setembro de 1970 com o 36,3% dos votos,

assumindo o cargo no 4 de novembro desse. As medidas principais eram entre outras:

estatização, nacionalização da mega mineração de cobre, reforma agrária, aumento dos

salários. Poucos meses depois já era visível uma polarização na sociedade chilena que se

aprofundou rapidamente.

139 Com as faculdades que lhe outorgava o Congresso da Nação, Frei pês em marcha a "política sobre o cobre", que consistiu essencialmente em criar sociedades mistas entre o Estado e as companhias norte-americanas, por meio da compra por parte do primeiro do 51% das ações nas sociedades mistas, pagando quantidades absurdas por indenizações: “A Anaconda recebeu, pelo 51% das ações nas sociedades mistas formadas com suas subsidiarias Chile Exploration Co. e Andes Copper Co. letras de câmbio do governo de Chile por 175 milhões de dólares, quando o valor livro dessas empresas era só de 181 milhões de dólares, isto é, pelo 51% das ações pagou-se o valor total dos investimentos” (Elgueta; Chelen, 1977: 242).

155

Os acontecimentos entre 1970 e 1973 levaram a um debilitamento do governo e ao seu

final no 11 de setembro de 1973. Mencionaremos alguns dos eventos mais importantes. A

medida de nacionalização da mineração provocou o boicote por parte do governo

estadunidense a cargo de Richard Nixon, recusando o fornecimento de créditos externos e

iniciando um embargo ao governo chileno pelas perdas das empresas La Anaconda e

Kennecott. A sociedade entrou numa polarização profunda e apareceram os primeiros sinais

de desabastecimento. Milhares de mulheres da oposição organizaram o primeiro panelaço

reclamando alimentos. Ao mesmo tempo, apareceu um florescente mercado negro. A oposição

conseguiu se agrupar na CODE (Confederación de la Democracia) e nas eleições

parlamentares de 1973 obteve o 54,6% dos votos frente a 43,3% da Unidad Popular, não

conseguindo os dois terços do congresso que pretendia. Numa crise profunda, Allende tenta

uma aproximação frustrada com a DC (Democracia Cristiana), seguindo a linha de

“conciliação de classe”. A ruptura do Partido Socialista com Carlos Altamirano criou uma

dissidência forte e com entrecruzamentos violentos dentro da Unidad Popular. O conflito

educacional, o desabastecimento, as JAP (Juntas de Abastecimento e Preços), a reforma

agraria, as “tomadas de terras”, os grupos armados, os cinturões industriais, etc., foram

aprofundando a polarização entre os chilenos. Em face da renúncia do chefe do exército Prats,

fiel a Allende e a assunção de Pinochet como comandante em chefe, e à possibilidade de um

plebiscito para retificar o cargo de Allende, Pinochet incorporou-se ao grupo golpista e no dia

11 de setembro de 1973 o golpe de Estado foi levado adiante, acabando com o suicídio de

Salvador Allende no Palacio de la Moneda.

4.1  A forma política da Unidad Popular

O processo iniciado com a vitória de Allende representava um caráter essencialmente

diferente daquele das outras experiências revolucionárias (União Soviética, China, Cuba), que

tinham começado por resolver o problema do poder numa primeira instância. A peculiaridade

do processo chileno, segundo Altamirano (1979: 164) esteve dada pelo esforço por substituir

as instituições e estruturas capitalistas antes da conquista do poder.

A Unidad Popular apoiou-se numa força social onde predominava a classe operária

156

organizada em sindicatos e no Partido Comunista e no Partido Socialista, que imprimiam nas

bases programáticas da UP a “via institucional” para a tomada do poder, obtendo seu impulso

de uma massa social que tinha “o socialismo inscrito em seus objetivos” (Sader, 1982: 89).

No programa de governo da Unidad Popular podemos ler “Através de um processo de

democratização em todos os níveis e de uma mobilização organizada das massas construir-se-

á desde a base a nova estrutura do poder. Uma nova Constituição Política institucionalizará a

incorporação massiva do povo no poder estatal”140. Tratava-se, portanto, de ocupar

progressivamente o aparato estatal.

Por que a experiencia chilena diferenciava-se tanto das outras experiências latino-

americanas? Por que era um caso “insólito” tal como definido por Fidel Castro? Sader arrisca

algumas respostas. A chegada ao poder do Estado de uma coalizão de forças (classes) que se

propunha marchar ao socialismo: “ou seja, um centro vital do aparato criado para a

preservação da ordem burguesa era ocupado por uma coalizão que pretendia destruí-la.

Porém, o insólito prosseguia no fato de que essa coalizão pretendia chegar ao socialismo pelas

vias institucionais criadas para combatê-lo” (Sader, 1982: 92).

A Unidad Popular fundava-se na concepção de utilizar a “institucionalidade burguesa”,

para construir com “pluralismo, democracia e liberdade”, um campo político necessário para

as reformas estruturais do país. Para alguns autores, o desenvolvimento de organizações

autônomas a esse poder, ou seja a dualidade de poder, era “impossível” de aplicar, pois o

Estado a “grosso modo” era “'popular'” (F. Castillo e J. Larrain apud Sader, 1982: 94).

Para outros tinha sim uma “dualidade de poder”, baseado na ideia de que “apesar de não

ter conquistado em sua 'totalidade' o poder estatal”, as classes populares teriam em suas mão o

poder substancial ou “decisivo” que é o executivo (Cademártori apud Sader, 1982: 94).

O golpe militar de 1973 veio demonstrar que o “substancial” ou “decisivo” não está no

poder executivo e sim nos aparatos repressivos.

Ambas as ideias sobre a construção de poder popular por vias estatais, assim como a

noção de socialização que se impregnava com a concepção de “nacionalização”, levaram a

debilitar a possibilidade de organizações autônomas de camponeses, periferia urbana,

trabalhadores, que frente aos acontecimentos de 1973 teriam podido, tal vez, dar outro marco

à correlação de forças existentes até então.

140 Disponível em http://www.abacq.net/imagineria/frame5.htm

157

As eleições de 1970 trouxeram a novidade da criação por parte da UP dos CUP (Comités

de Unidad Popular), organismos de base coordenados por um Comando Político a nível

nacional. Este, presidido por Rafael Tarud, da Acción Popular Independiente (API), ficou

conformado por três representantes de cada um dos seis partidos que integravam a Unidad

Popular. Esses órgãos de campanha, junto com a já mencionada enfase na inserção local e sua

capacidade de agitação social, substituiriam a anterior forma de organizar a campanha

presidencial. Esses CUP seriam ativismo eleitoral ou embrião do poder popular? Existia o

consenso de que não deviam ser só um comité captador de votos, mas teriam que estar

inseridos nas lutas sociais. No entanto, não ficava claro qual seria o ponto de chegada para o

qual teriam que andar. O documento oficial da UP “Condução e estilo de campanha” colocava

que os CUP deviam “ir se tornando no curso da campanha em expressões germinais do poder

popular que conquistaremos em 1970, começando ainda antes da vitória a concretizar

aspirações reivindicativas das masas e se transformando uma vez alcançada aquela em fatores

dinamizadores e de direção local dos processos de mudanças revolucionários” (El Siglo, 28 de

dezembro de 1969 apud Ávarez Vallejos, 2010: 224).

Em relação a essa construção de poder popular que depois se exprimiria no triunfo da UP,

Altamirano observa que esse poder se construiu por fora das organizações tradicionais da

classe operária, ocupando um lugar abandonado por elas durante um longo período. Assim,

essa população que vivia nos cinturões de “miséria e atraso” (Idem: 105) como

“subproletariado urbano e rural”141 (Idem) passou a integrar de maneria inédita as lutas que se

sucederam no ano 1972 em defesa do governo da UP.

Para Altamirano (1979: 37) esses embriões de poder popular tinham como objetivo a

substituição do Estado burguês, como instrumento da classe dominante, por um novo Estado

que se constituiria como expressão dos interesses do proletariado e de seus aliados.

Segundo Álvarez Vallejos (2010: 225) a conversão ou não em órgãos de “poder popular”,

exigia um debate político e teórico que as urgências da campanha tornavam impossível.

Privilegiou-se o acionar concreto das massas –tal como era costume na esquerda chilena– por

sobre a preeminência da teoria. Assim, a existência dos CUP como supostos embriões do 141 Segundo Altamirano, essas massas conformavam um quarto da população total do país (Cfr. Altamirano,

1979: 105).

158

poder popular ficou só como um enunciado geral, como letra morta, por não ter se efetivado

na UP uma discussão de fundo a respeito.

Seguindo Sader (1982: 96), vemos que por um lado a “via chilena” baseava-se em

favorecer as grandes maiorias com uma distribuição equitativa baseada na renda produzida

pelo desenvolvimento da acumulação capitalista e ao mesmo tempo essa acumulação não se

libertava da dependência das grandes multinacionais. Por outro lado, estruturou-se sobre a

base da “ideologia liberal burguesa” e o fetiche das “maiorias”, sem questionar o significado

da forma “representativa” tal como apresentada pelo Estado burguês.

No primeiro ano de governo da Unidad Popular, ela consegue manter sua ofensiva e

ampliar as bases de apoio. A derrota das primeiras tentativas golpistas142 deixou por um certo

tempo na defensiva às forças tradicionais da direita. Apesar do bloqueio econômico externo, o

governo de Allende – apoiado na sua vitória e na coincidência de muitos puntos com o

programa política da DC – avançou em medidas de nacionalização, de reforma agraria, de

beneficio de consumo popular. Com os aparatos repressivos em grande parte neutralizados, a

organização popular ganha força e se multiplica. As eleições municipais de 1971 refletem esse

consenso popular, com a vitória dos partidos que apoiam o governo com o 51% dos votos

(Allende tinha alcançado o 36%).

No plano educativo, conquistou-se uma redução significativa do analfabetismo (12% em

1971 e 10,8% em 1972), aumentando o número de matrículas em todos os níveis de ensino.

Houve também um intenso movimento de intelectuais, com manifestações no plano da

cultura, especialmente na Universidade. Em setembro de 1971 é criada a Editorial Quimantú,

que em apenas dois anos conseguiu editar 12 milhões de exemplares de livros, revistas

populares e especializadas, e documentos diversos143 (Cfr. Altamirano, 1979: 47).

No entanto, todas essas conquistas não puderam esconder a expressão dos limites

impostos pelo Estado e a economia capitalista à política popular. A criação de um setor

nacionalizado da economia, “que serviria para controlar as molas da acumulação, tinha-se

defrontado com o bloqueio parlamentar” (Idem: 99). Por outro lado, a burguesia diminuiu

142 O governo da UP desenvolveu-se entre dois golpes militares: o primeiro, quarenta dias depois das eleições e quando Allende ainda não tinha tomado posse, foi montado o primeiro dispositivo para anular a vontade das urnas. Frustrou-se com o assassinato do comandante em chefe do exército, general René Schneider em outubro de 1970; o segundo derrocou o governo da UP de maneira sangrenta, três anos depois.

143 Os livros apresentavam diversas temáticas, desde a análise social e educacional até a historiografia chilena e latino-americana, além de obras relevantes da literatura universal. Para propagar essa mobilização, a editorial organizou bibliotecas nos sindicatos, organizações populares, esportivas, juvenis (Cfr. Altamirano, 1979: 47).

159

seus investimentos em 25 a 30% nesses anos. “Deste modo, estabelecia-se uma ruptura entre a

política econômica redistributiva de curto prazo que tinha levado a uma reanimação industrial

no primeiro ano e as condições para as reorientações estruturais” (Idem). Já a fins de 1971 o

desabastecimento, o déficit fiscal, a inflação, o bloqueio econômico que se anunciava,

revelavam as reações do capital frente às tentativas de um governo popular.

No plano da luta social, depois de um primeiro ano de um importante desenvolvimento de

organizações locais enfrentando uma certa passividade política, e uma expectativa otimista

em relação às medidas tomadas desde cima, já em 1972 viu-se um envolvimento político

autônomo que questionará a institucionalidade burguesa. Em junho constituiu-se o “Cordón

Cerrillos”144, exigindo a nacionalização de empresas e impulsando o controle operário. Em

Julho reúne-se em Concepción uma Assembleia Popular, com representantes de organismos

de massa, “apontando o caminho de uma institucionalidade popular para apoiar as medidas

bloqueadas pela institucionalidade burguesa”145 (Cfr. Sader, 1982: 100).

Essa tensão traduziu-se no interior da UP em duas linhas: enquanto um setor propunha

uma ofensiva para controlar o setor fundamental da indústria, se apoiando no fortalecimento

da organização operária y popular, outro setor defendia a necessidade de frear as iniciativas

das bases que assustavam às camadas médias, e chegar a um acordo com a DC para superar a

forte tensão que estava sendo produzida.

Venceu o setor que apostava numa política econômica que permitisse reunir as

organizações populares em “conselhos comunais de trabalhadores” e ganhar os empresários

fornecendo-lhes “estabilidade e progresso econômico”146.

Essas medidas de incentivo ao capital privado dividiram e desestimularam as massas

populares e essa reação provocou uma desconfiança nas camadas médias.

A nacionalização significou uma tentativa de consolidar uma situação na qual o governo

144 Cinturão industrial: via urbana por onde se estende uma grande concentração de indústrias. Neles organizaram-se os Comandos de Luchas de los Trabajadores, que serão conhecidos como Comandos de Lucha dos cinturões, ou simplesmente cinturões.

145 Por sua parte, as mobilizações camponesas também se ativaram durante 1970. Segundo as estadísticas, naquele ano "57.210 pessoas estiveram envolvidas em movimentos de greve, num total de 476 greves, se tornando no ano em que mais camponeses e camponesas participaram nesse tipo de mobilização" (Pizarro, 1986: 154 apud Vallejo, 2010: 228).

146 Frases de Orlando Millas, Ministro de Economia eleito depois de resultar vencedor esse setor da UP, publicado em "La clase obrera bajo el Gobierno Popular" (El siglo de 05/06/1972), e "Evitar la crisis y reforzar la Unidad Popular" (El siglo de 28/05/1972). (apud Sader, 1982: 100).

160

não tinha controle das bases econômicas. A crise de 1972 caiu totalmente sobre a classe

trabalhadora e enquanto a burguesia se lançava a parar o país e depor o governo, a Unidad

Popular realizava tentativas infecundas de “compromissos” pacíficos.

A direita apelou à intervenção militar e a Unidade Popular tentou novamente uma

“política conciliatória” com as Forças Armadas, o que deu num rotundo fracasso.

Na análise de Carlos Altamirano sobre o fracasso da UP no Chile, no seu livro “Dialética

de uma derrota” (1977), podemos encontrar os mesmos pressupostos que observamos na

experiência cubana, onde todas as realidades latino-americanas acabaram sendo enquadradas

numa interpretação dualista, baseada na necessidade de desenvolver um determinado setor

“atrasado”, que permitiria finalmente o progresso dos países da América Latina. O fracasso da

experiência chilena, segundo Altamirano, gerou uma convicção: “os obstáculos ao

desenvolvimento nacional autônomo e à satisfação das aspirações populares […] se devem ao

modo específico de existência e reprodução das relações de produção e às estruturas

historicamente cristalizadas na formação social conhecida como capitalista dependente”

(1979: 156).

Para o autor, as classes médias nos países de capitalismo dependente – especialmente na

América Latina- beneficiam-se de um quadro de privilégios: “seu padrão de vida é

significativamente superior ao das grandes massas empobrecidas da cidade e do campo. Aqui

existe um desnível de vida consideravelmente maior do que nos países capitalistas avançados,

entre as massas populares, de um lado, e grande parte dos intelectuais, dos empregados e da

pequena burguesia ligada ao comércio e aos transporte, de outro” (Idem: 75). Essas

características, segundo o autor, dificultavam a aliança entre proletariado e burguesia, pois o

processo revolucionário devia forçosamente impor uma distribuição equitativa da renda para

as grandes masas, significando a deterioração quase inevitável das condiciones de vida da

burguesia.

Nesse contexto, a experiência revolucionária da UP enfrentava-se com exigências

múltiplas e frequentemente incompatíveis que se exprimiam com maior força “no propósito

de modificar drasticamente as estruturas sócio-econômicas de dependência, preservando a

estabilidade e continuidade democrática do país” (Idem: 173). Esse lineamento político da UP

161

levou a realizar um esforço constante para assegurar uma sincronização e coerência entre “as

tarefas de regulamentação e controle econômico e as tarefas de transformação das estruturas

básicas” (Idem). As contradições do governo da UP exprimiam-se na existência de uma

“crescente necessidade objetiva de acelerar o processo de desenvolvimento econômico e

social […] e a presença cada vez mais deformante do capital imperialista [o qual] determinava

tanto o padrão de crescimento da economia quanto seus mecanismos de funcionamento e, de

passagem, impunha a lógica implacável do 'desenvolvimento do subdesenvolvimento'” (Idem:

156). Para a UP, o desafio colocado em 1970 exigia que combinasse, por um lado “um

processo de acumulação de capital indispensável para se conseguir um crescimento

econômico rápido e, de outro, o aumento dos níveis de consumo de massas, que redundaria

em maior apoio político. Mas isso gerava um círculo vicioso difícil de se romper” (Idem).

O governo da UP herdou uma estrutura econômica que tinha, segundo Altamirano (Idem:

157), os seguintes traços fundamentais: uma insuficiente integração do sistema econômico,

com una grande heterogeneidade dos sectores de extração primários, industrial e agrário; o

crescimento desigual desses setores, a extraordinária concentração da riqueza y da renda, o

insuficiente nível de acumulação; os altos índices de desemprego estrutural, a distorção das

relações comerciais e tecnológicas e a concentração geográfica do desenvolvimento.

A opção da UP na política econômica de curto prazo tinha um objetivo central: garantir os

estímulos necessários para reativar a produção e elevar a oferta de empregos, provocando uma

garantia preferencial de consumo em favor dos setores de renda mais baixa. Tal redistribuição,

efetuada a través de uma política de preços e salários, teria de se apoiar numa política de gasto

público, concentrando os esforços simultaneamente na criação de serviços sociais e na

realização de investimentos indispensáveis para sustentar o dinamismo de crescimento, uma

vez finalizada a fase de reativação (Cfr. Idem: 165).

A interpretação da realidade latino-americana baseada nesse dualismo acabava em

propostas que apontavam a uma modernização tardia das estruturas nacionais, que permitisse

o acesso das massas às conquistas desenvolvidas pelo sistema capitalista no Ocidente, e ao

mesmo tempo sobre essas bases realizar um salto à revolução socialista. Como veremos no

seguinte capítulo, essa modernização estava longe de fornecer à maioria das massas algum

tipo de conquista diferente de processos regressivos e violentos de exploração e

162

marginalidade.

O fracasso da “via chilena” esteve marcado por vários fatores: por um lado o projeto da

UP debilitou-se pela perda de poder dos setores populares nos quais ela tinha baseado sua

força, surgidos dos movimentos dos anos '60, e agora frente à contradição de interesses na

coalizão de classes. Por outro lado, o peso perdido dos setores populares refletiu-se nos

limites do debate da UP em relação à construção de poder popular, focado nos CUP que

acabaram se tornando uma máquina de agitação eleitoral. No momento dos

desabastecimentos, da crise institucional, as forças da ordem continuavam mantendo o mesmo

peso que sempre tinham tido. As forças populares enfrentaram-se a uma situação para a qual

não estavam preparados, e os aparatos repressivos acabaram definindo o processo.

A despeito da derrota, a experiência chilena será um exemplo de estratégia revolucionária

contraposta à experiência armada para o resto da América Latina. Converteu-se e, fonte de

inspiração para os movimentos que surgiriam na década de 1980, baseados na ideia de

partidos de massas e via eleitoral como caminho para a revolução latino-americana. A “via

chilena” foi uma tentativa de resolver a dicotomia “¿Reforma ou Revolução?”, buscando

cumprir com as reformas burguesas necessárias para a passagem ao socialismo, e por essa

escolha obrigatoriamente acabaram sendo debilitados os germens de poder popular surgidos

nos anos '60.

Já nesse momento histórico, o marxismo latino-americano consolida-se como pensamento

crítico da periferia, com uma composição extremamente heterogênea, mas possibilitando uma

análise dos processos revolucionários que se deram a partir da década de '50 numa outra

chave de leitura que permitisse compreender a particularidade histórica desses processos na

América Latina. Ao mesmo tempo, enfrentou-se com os limites de um pensamento endógeno

que oscilava entre as determinações estruturais do capitalismo mundializado e as

potencialidades próprias do “atraso” latino-americano. Esse processo contém uma importante

riqueza de debates e produções que abriram um campo de discussão crítica desconhecida para

a esquerda até então. Apesar dos horrores e massacres das ditaduras latino-americanas, o

período caracterizou-se também por uma riqueza extremamente fecunda de produção teórica,

artística, cultural que influenciou nos processos posteriores às ditaduras.

163

5. A Frente Sandinista de Libertação Nacional e o fim da era “guevarista”

Em 1979, 6 anos após a derrota da Unidad Popular no Chile, estoura a Revolução

Nicaragüense e paralelamente um processo no qual serão vitoriosas várias frentes

revolucionárias da América Central na década de 1980. A Frente Sandinista de Libertação

Nacional, fundada em 1961 com influencia do guevarismo, liderada por Carlos Fonseca,

resgatava o processo de luta de Augusto Sandino (“o general dos homens livres”) líder da

rebelião contra a ocupação dos Estados Unidos e assassinado em 1934 pelos homens de

Somoza. A FSLN reunia na sua ideologia as lutas sandinistas com o marxismo-leninismo147. A

Revolução Sandinista parecia-se em alguns aspectos à Revolução Cubana: a luta armada, a

criação do poder revolucionário entregando armas ao povo, a reforma agrária, o

enfrentamento do imperialismo. A diferença estava na participação dos pobres e jovens

sobretudo urbanos, dando uma importância menor à guerrilha rural e uma forte presença das

massas cristãs.

Num documento de 1974 a FSLN considerava que as ações guerrilheiras de 1958-1961

eram o prelúdio do auge das condições “subjetivas nas organizações gremiais e políticas”148.

Fazia-se referência à Juventude Patriótica Nicaragüense, que contribuiu ao desenvolvimento

do movimento sindical, do movimento estudantil e das manifestações de julho de 1959 em

solidariedade com o movimento armado de El Chaparral, manifestações que foram

massacradas149.

Entre 1974 e 1977 a ditadura de Somoza “tortura, assassina e comete múltiplos atos de

barbárie, com o objetivo de gerar um terror paralisador do movimento popular em todas suas

manifestações” (Salazar Valiente, 1984: 406). Junto às altas taxas de desemprego, pobreza,

147 O Partido Comunista da Nicarágua (Partido Socialista Nicaraguense) desconheceu a FSLN, chamando-os de “ultra-esquerdistas”, “aventureiros” e “influenciados pelo maoismo e pelo trotskismo” (Löwy; 2006a: 56)

148 O documento faz referência ao texto lido no dia da sua primeira ação armada, no 27 de dezembro de 1974, quando a FSLN toma a residencia de José (chema) María Castillo. Pelo sucesso da ação ganham conhecimento público, além de um milhão de dólares e liberar os pressos políticos (Salazar Valiente, 1984: 405).

149 No documento faz-se uma avaliação crítica desse processo, afirmando que "as limitações da guerrilha de 1963 originam-se nas concepções erradas em relação à maneira de desenvolver uma guerra revolucionária, e, sobretudo, à ausência de uma estratégia de guerra popular prolongada" (consultado em Salazar Valiente, 1984: 405).

164

inflação, será o contexto de gestação da revolta de 1979150.

Vários acontecimentos se sucedem desde 1978 até o 19 de julho de 1979, quando as

colunas guerrilheiras da Frente Sandinista de Libertação Nacional entram em Manágua,

abrindo um novo ciclo histórico no país e na América Latina151.

A Revolução Nicaraguense opôs-se à ordem burguesa sobretudo no plano político,

estabelecendo milícias populares sandinistas, desmontando o aparato estatal das classes

dominantes, baseando seu apoio popular em sindicatos, Comitês de Defesa Sandinista, etc. As

mudanças econômicas foram muito lentas e incompletas, ficando grande parte das

propriedades em mãos particulares. Por outro lado, foi um governo que tomou a forma

burguesa do sistema democrático como marco para estabelecer os direitos cidadãos, o

pluralismo político e sindical, a liberdade de imprensa, o direito à livre associação. As

primeiras eleições democráticas na Nicarágua aconteceram em 1984 e a FSLN ganhou por

ampla maioria152.

Traços autoritários do movimento, com muitas dificuldades para democratizar o processo

de luta, junto com o bloqueio econômico exercido pelos Estados Unidos e a forte

contraofensiva, debilitaram o movimento e em 1990 a FSLN perdeu as eleições153.

É importante destacar tanto para a Revolução Sandinista, como na sua influencia em

diferentes países da América Central, como El Salvador e a Guatemala, a confluência do

pensamento marxista-leninista com as lutas populares históricas de cada país desde a

conquista. O resgate daquelas lutas enfrentava-os claramente com a concepção do marxismo

tradicional e ao mesmo tempo fornecia-lhes um valor fortemente histórico aos movimentos.

150 No 10 de janeiro de 1978 foi assassinado Pedro Joaquín Chamorro, líder e candidato a presidente pela Unión democrática Liberal (UDEL) que congregava várias organizações representantes da burguesia. A partir de 1977 tinha começado a ganhar popularidade, levando perigo para o governo de Somoza. Em face disso e com o restabelecimento das garantias constitucionais, a família Somoza decide eliminá-lo fisicamente. O crime funcionou como detonador dentro das bases populares (Cfr. Salazar Valiente, 1984: 406).

151 Em dezembro de 1979 foi proclamada a "Frente Patriótica Nacional", hegemonizada pela FSLN, que estava conformada pelo (Movimiento del Pueblo Unido), o PLI (Partido Liberal Independiente), o "Grupo de los doce", a Central de Trabajadores da Nicarágua, o Partido Popular Socialcristiano, o Sindicato de Radioperiodistas de Manágua, a Frente Operária e outras entidades populares .

152 O livro “Nicaragua tan violentamente dulce” de Julio Cortázar, assim como “El País bajo mi piel” (autobiografia) de Giocanda Belli, nicaraguense participante da FSLN, são alguns livros literários que retratam esse processo revolucionário latino-americano e mostram o impacto teve no campo intelectual da época e no ambiente cultural.

153 As conquistas no âmbito educativo, saúde, terra, autonomia dos povos miskitos implementadas pela FSLN foram muito importantes para os movimentos revolucionários latino-americanos.

165

Nutriam-se das lutas indígenas, camponesas, dos negros, que não encaixavam com a visão da

classe proletária mantida pelos partidos comunistas latino-americanos, junto com seus blocos

de classes e a revolução por etapas. Essas luta tão fragmentadas, debilitadas pela forte

intervenção dos Estados Unidos e o não apoio da esquerda tradicional, foram o prelúdio de

fracassos sangrentos, com altíssimos custos para os povos latino-americanos.

A queda do Muro de Berlim em 1989 e a derrota da Frente Sandinista de Libertação

Nacional em 1990 repercutiram profundamente na esquerda latino-americana. Acrescenta-se o

genocídio efetuado pelas ditaduras militares, as intervenções estadunidenses nos processos

que tiveram como saldo o aniquilamento de populações inteiras, a implementação dos

programas neoliberais.

6. 1980: a via eleitoral e o partido de massas

A década de 1980 inicia-se na América Latina com panorama sombrio para muitos países

pela continuidade das ditaduras iniciadas nos anos 60 e 70; ao mesmo tempo, a necessidade

da abertura democrática abre um debate necessário e urgente para a esquerda sobre a

organização política a ser construída nesse novo período.

As lutas foram diversas, confluindo em movimentos que demandavam do Estado o

atendimento em diferentes políticas públicas. Tinha os movimentos pelo direito à terra, à

moradia, à água, universidades, direitos humanos, etc. Castañeda afirma que “não eram

órgãos estatais, mas tampouco eram radicalmente 'exteriores' ao Estado” (1994: 172). Isso não

lhes tirava importância, nem originalidade, mas era um chamado de atenção que não foi

observado naquele momento.

Sendo vitoriosos contra as ditaduras, acabaram se agrupando em sindicatos, partidos,

governos locais, e tornaram seus dirigentes autoridades estatais, expressão da importância da

sua luta, assim como dos seus limites.

Frente a esta situação, a esquerda com sua concepção de partido e a subordinação de todo

interesse e demanda a esse tipo de organização gerou uma relação tensa entre essa “esquerda

166

partidista” e os “novos movimentos sociais” surgidos também por uma necessidade de se

diferenciar dessa esquerda.

Para Castañeda, a melhor resolução dessa tensão, com a procura de gerar uma “esquerda

movimentista”, se deu no Brasil com a criação do Partido dos Trabalhadores (PT) e a

candidatura de Luiz Inácio da Silva (Lula) nas eleições de 1989 (1994: 173). Essas “frentes

eleitorais” eram amplas, muitas vezes de difícil controle, com uma coalizão de forças de

enorme diversidade, não apenas com muitas organizações políticas, mas com vários

movimentos populares procedentes da sociedade civil: “grupos eclesiais e sindicatos,

intelectuais, organizações camponesas, associação de direitos humanos e grupos estudantis,

todos eles participaram na busca de um objetivo eleitoral, mas sua atividade não se restringia,

de maneira alguma, a isso. Essa esquerda […] não difere da anterior apenas em concepção: é

sobretudo diferente na vida real. Sua força está em seus vínculos com os movimentos de

base” (Castañeda, 1994: 174).

No Brasil de finais dos anos '70 a ascensão do “novo sindicalismo” exprimia um

descontentamento social popular e massivo em relação ao regime ditatorial e uma clara

demonstração de que a democratização era necessária para resolver o potencial conflito social.

Essas lideranças sindicalistas tinham uma base social cada vez mais sólida, que se sobrepunha

à estrutura sindical oficial que tinha servido durante tanto tempo para oprimi-los (Cfr. Keck,

1991: 55). As transformações do movimento sindical nesse período foram fundamentais na

criação de um partido com base popular. As greves dos anos 1978-1979154 em São Bernardo e

Diadema, e o surgimento de líderes operários reconhecidos pela opinião pública, o caso do

Lula representando o sindicato de São Bernardo, levaram para dentro dos partidos novos

elementos para a organização das massas, se fazendo elas presentes de maneira ativa e

protagonistas das lutas.

Por outro lado, os intelectuais também tiveram um papel importante no enfrentamento do

regime autoritário. Em São Paulo, por exemplo, trabalhando em institutos de pesquisa como o

154 As greves de 1978-1979 surgiram no país todo. Em 1979 mais de três milhões de trabalhadores paralisaram o trabalho. Lula, Olívio Dutra (dos bancários de Rio Grande do Sul) e João Paulo Pires Vasconcelos (dos metalúrgicos de João Monlevade, Minas Gerais), converteram-se numa espécie de “grupo de assessoria”, ajudando na negociação entre os líderes sindicais e suas bases em revolta. Maria Hermínia Tavares de Almeida, comentando sobre essas greves, observa que “elas pareciam inspiradas mais pela necessidade de testemunhar as aspirações operárias de liberdade, autonomia e direito a uma cidadania plena, do que por qualquer reivindicação de curto prazo” (apud Keck, 1991: 81).

167

“Centro Brasileiro de Análise e Planejamento” (CEBRAP), o “Centro de Estudos de Cultura

Contemporânea” (CEDEC), e o “Instituto de Estudos Sociais e Políticos” (IDESP), segundo

Keck (Idem: 59) “esses intelectuais tentaram, pedaço a pedaço, reconstruir o discurso verbal e

escrito da sociedade sobre si mesma (…) tomando especial cuidado em discutir e preservar as

histórias dos grupos excluídos – o operariado e os movimentos comunitários”.

Ressurgiu também nesse processo o movimento estudantil, quem conseguiu depois de

muito tempo reconstruir as organizações destruídas depois de 1968, especialmente a “União

Nacional dos Estudantes” (UNE). A ilegalidade de suas organizações e a força da repressão da

ditadura deixaram os estudantes sem possibilidades de participação legal na política,

abandonando muitos deles as universidades, para se unir à luta armada ou às atividades

culturais.

Um dos setores importantes na construção desses movimentos de base foi a igreja e os

grupos eclesiais. Frente ao fechamento de universidades, sindicatos, organizações

camponesas, em alguns países aqueles grupos foram um canal onde ainda podia se mostrar a

oposição contra a ditadura, foram o refúgio dessa dissidência.

As “Comunidades Eclesiais de Base” (CEBs) surgiram como uma nova forma de

organização pastoral, vinculada com as massas. Tratava-se de uma experiência fecunda e com

muita potencialidade pois, por meio dela, inicia-se um processo de renovação da própria

igreja, no sentido de uma descentralização e democratização a partir das bases populares (Cfr.

Bordin, 1987: 56). Constituíam-se em comunidades, com pequenos grupos de personas

vinculadas entre si por relações quotidianas, territoriais, de trabalho, de vizinhança.

Segundo Castañeda (1994: 79), o Brasil é um exemplo importante desse processo. Ao

longo dos anos 70s e 80s tanto a “Confederação Nacional dos Bispos do Brasil”, (CNBB)

quanto as CEBs foram um território “fértil e fonte de incontáveis movimentos populares,

surgidos como resposta ao impulso da industrialização acelerada promovida pelos militares e

às estruturas políticas autoritárias que o envolveram”. Assim surge um dos mais importantes

desses grupos, a “Comissão Pastoral dos Trabalhadores”, criada pela igreja nos anos 70s,

congregando grupos do cinturão industrial paulista. Anos depois conseguiriam criar um

vínculo “quase orgânico” com o novo movimento sindical brasileiro.

O processo de organização política dos anos 80s mostrará essa forte influencia,

fundamentalmente das CEB, se expressando no apoio decisivo ao “Partido dos

168

Trabalhadores” nas eleições de 1989, que mudou o mapa eleitoral brasileiro, conseguindo que

as camadas pobres, camponesas, operárias obtivessem uma maior participação eleitoral.

Consolidou-se assim uma influencia de base na política nacional e na organização da luta.

Várias frações da esquerda também começaram participar da conformação do PT. A finais

dos anos 70s essas organizações, frequentemente originárias do setor estudantil, ainda

enfrentando a censura e os ataques repressivos da ditadura, começaram a se organizar de

maneira mais aberta, publicar em revistas-periódicos. Um dos mais representativos desses

grupos foi a “Convergência Socialista”, que desde sua formação, em janeiro de 1978, já

afirmava a necessidade da criação de um partido socialista. A Convergência, segundo Keck

(1991: 98), foi um dos mais ardentes defensores da ideia de um partido dos trabalhadores.

Seguindo a análise de Keck, o PT foi sem dúvidas um fato novo nas instituições políticas

do Brasil por diversas razões: a “primeira, porque ele se propôs a ser um partido que

expressava os interesses dos trabalhadores e dos pobres na esfera política; segunda, porque

procurou ser um partido inteiramente democrático; e, por fim, porque queria representar todos

os seus membros e responsabilizar-se perante eles pelos seus atos” (Idem: 271).

As origens do PT foram profundamente influenciadas pela amplia mobilização em relação

às revindicações sociais no final dos anos 70; “no início dos anos 80, à medida que foi ficando

claro que a organização em nível local em torno de reivindicações específicas não se traduzia

automaticamente num movimento social mais amplo, o partido foi colocado na ambígua

posição de ter de ajudar a organizar aquilo que ele alegava estar representado” (Idem: 275).

Aceitando esse pressuposto, o partido mergulhou no problema da auto-organização que fazia

parte das duas organizações mais fortes que o conformavam: os militantes sindicais e os

militantes católicos, cuja visão política era influenciada pelas CEBs e por outras organizações

de base vinculadas à igreja. Ambos os grupos desconfiavam das mediações políticas e

acreditavam que o papel do partido seria o de unificar e generalizar as revindicações de ambos

movimentos. Segundo Keck (Idem: 275-276), iniciados os anos '80, o PT encontrou-se frente

à dificuldade de formular uma estratégia institucional: “a persistente separação entre as

esferas da ação social e política no Brasil colocava o PT numa espécie de posição

esquizofrênica entre as duas. Dentro da sociedade civil, ele se dedicava a fortalecer os atores

sociais cujo recurso político mais potente era a capacidade de confronto; dentro das

169

instituições políticas, seu trabalho era expandir o espaço político disponível para integrar a

participação e as demandas populares de maneira regulada”.

Outros movimentos do período, caracterizados como “novos” foram os movimentos

urbanos, que refletiam (assim como hoje, com outras particularidades) situações da vida

quotidiana, em bairros pobres; por falta de um salário que lhes permitisse viver nos centros

das grandes cidades, expulsos das regiões rurais por falta de trabalho, passaram a ocupar as

periferias, onde se viram obrigados a lutar por moradia, água, luz, serviços urbanos; foram os

chamados “movimentos de bairros” (Castañeda, 1994: 187). Surgem estratégias como a de

“ajuda mútua” na construção de moradias, “taças de leite”, “comedores comunitários”, etc; a

luta pela propriedade dos terrenos e a “legalização” dos lugares que habitavam para a

obtenção de infraestrutura por parte do Estado levou-os a se organizar em “centros de

vizinhos”, “cooperativas de moradia”, etc.

Os movimentos urbanos na América Latina foram se fortalecendo na medida em que as

periferias urbanas iam se empobrecendo cada vez mais e ao mesmo tempo aumentando em

quantidade pelo contínuo êxodo rural, na fuga da pobreza do campo. As massas empobrecidas

e sem emprego eram cada vez mais numerosas e sua luta pela sobrevivência se torna cada vez

mais intensa155.

A questão do Estado não estava ausente para todos esses movimentos. Na análise de Keck

sobre el PT sobre o significado do socialismo a finais do século XX, o “ataque ao Estado” não

era basicamente “um ataque à esquerda” e sim às tradições desenvolvimentistas e populistas

que, nos cinquenta anos anteriores tinham sido os pilares fundamentais do próprio conceito de

nação para muitos países do continente. Repensar o Estado era para eles repensar muitos dos

fundamentos do nacionalismo (Cfr. Keck, 1991: 282).

Movimentos que se destacam nessa “nova configuração” (e que veremos no capítulo III) e

155 Castañeda contribui com alguns dados fundamentais sobre a década de 80 na América Latina e o processo de conformação dos movimentos e a explosão das periferias urbanas: "em 1980, 136 milhões de latino-americanos, ou o 41% da população do continente, viviam na pobreza; em 1986, a cifra havia aumentado para 170 milhões de indivíduos, ou 43%; no final da década, estimava-se que havia atingido a espantosa cifra de entre 203 e 270 milhões de pessoas, cerca de 44% da força de trabalho. O salario mínimo real diminuiu 13% entre 1980 e 1987, mas esta cifra geral encobre profundas diferenças entre os países. No México, no Brasil e no Chile, a diminuição foi de 43%. A queda dos salários reais médios foi quase tão drástica: 23% no México, quase 30% no Uruguai, 62% no Peru, em 1991" (1994: 218).

170

se reposicionam para as lutas atuais são o de mulheres, o de Direitos Humanos, ecologistas e

indígenas. O importante aqui é observar que eles se tornaram rapidamente pilares dessas lutas,

apesar das suas tensões e contradições internas, conseguiram colocar na agenda de demandas

interesses que transcendiam os próprios movimentos, e por isso, como veremos, tiveram um

papel fundamental nas lutas das revoltas dos anos 90.

Dava-se o mesmo processo na América Latina toda. A volta da democracia na maior parte

dos países consolida os processos e as “novas formas organizativas” gestadas desde os anos

70; e reconfiguração política e econômica dos países lhes dão novo impulso. Por um lado, o

retorno da esquerda à “via institucional” a partir da estratégia de “partidos de massas” que

significava congregar todos os “novos movimentos” numa mesma estratégia de luta,

construindo uma “via eleitoral” democrática, fortalecida nas bases populares dos movimentos.

A “via chilena” ao socialismo era uma fonte de inspiração para quase todos esses partidos de

esquerda.

Deixar de lado a pergunta pela necessidade da revolução e estar somente preocupados em

como realizá-la teve os custos já mencionados ao longo desses 70 anos. Acrescentou-se a isso

uma ofensiva capitalista que levou a vários intelectuais de esquerda a declarar o fim da fase

“revolucionária” e o começo de uma fase de “consenso democrático”, no qual as reformas

necessárias dariam-se no marco da economia capitalista de mercado. Para esses intelectuais a

revolução era uma fase que se encerrava na história latino-americana156.

A década de 90 finalizou com a derrota sandinista (1990), com a derrota eleitoral do

“Partido dos Trabalhadores” (1989), com a queda do muro de Berlim (1990) e, como veremos

no capítulo III, com uma explosão social na América Latina que configurará os novos

cenários sociais e trará um novo desafio para a esquerda. O contexto para pensar a

necessidade da revolução será completamente diferente a partir dos anos 1990, nos quais

consolidou-se uma profunda crise estrutural do sistema, provocando importantes revoltas de

grandes massas de população vivendo um processo de desagregação violenta.

O segundo capítulo deste trabalho responde à necessidade de um balanço das derrotas da

156 Tese defendida por Jorge Castañeda no seu livro "Utopia desarmada" publicado em 1993 (Castañeda; 1994).

171

esquerda na segunda metade do século XX na América Latina, de suas possibilidades e

estratégias.

A análise das experiências cubana e chilena, permitiu observar a tensão de um debate

ainda aberto na esquerda: Reforma ou Revolução? No período de surgimento desses

movimentos (1960-1970) dá-se na América Latina uma abertura do marxismo na qual se

recupera um certo pensamento mariateguiano, surge um livro como “A revolução brasileira”

de Caio Prado que provocou profundos debates no interior do PCB, surge um pensamento

oxigenado como o do Che Guevara, e a proposta da luta armada e a formação do homem

novo. Diversos aspectos que mostraram a dificuldade do marxismo oficial para dialogar com

uma realidade que sentia a necessidade de reatualizar o significado da natureza da revolução,

das formas organizativas e dos sujeitos revolucionários. Assim, a esquerda acabou fechando

seu capítulo revolucionário depois da queda da Frente Sandinista de Libertação Nacional em

1990 e da impossibilidade dos partidos de massas de realizarem uma crítica radical real ao

sistema capitalista. Num contexto de recrudescimento das estratégias contra-revolucionárias

do capitalismo que aprofunda a barbárie, o século XX foi encerrado com a bandeira da derrota

sobre aqueles movimentos que tentaram, mais uma vez, construir projetos emancipatórios.

Apesar das derrotas e desacertos das décadas anteriores, a esquerda terá novamente a

tarefa de reatualizar suas leituras sobre as lutas, sobre a práxis revolucionária e as

possibilidades de transformação, num contexto de regressão social aprofundada, para o qual

uma parte do corpo teórico marxista parece não ter se modificado suficientemente ao ponto de

compreender a urgência que essa realidade demanda, antes que o aprofundamento da

descomposição social seja irreversível, como já é para uma parte da população mundial.

172

III. REVOLTA SOCIAL NA CRISE

1. Acumulação Primitiva – “Desenvolvimento Civilizatório”

Pensar na acumulação primitiva tal como exposta por Marx n’O Capital significa não só

percorrer um itinerário histórico e poder observar as diferentes maneiras através das quais ela

se desenvolveu e nas quais se cristalizou, como também poder vê-a como uma forma que se

apresenta de maneira constante no processo de expansão e consolidação do capital e suas

implicações cada vez mais profundas e destrutivas, que ela envolve. Como assinala Holloway,

a “acumulação primitiva” não é só uma característica de um período passado, é central para a

existência do capitalismo (cf. Holloway, 2002: 209).

Para Kurz, em retrospectiva histórica, tanto o Terceiro Mundo como o “socialismo real”

que teve lugar na Rússia poderiam ser consideradas “sociedades de acumulação primitiva de

natureza recuperadora” (Kurz, 1993: 189). As distâncias entre estes tipos de sociedades não se

dão apenas em termos de períodos históricos diferentes, como também em sua acentuação

sócio-econômica. Ademais, se distinguem dos antigos processos de acumulação primitiva da

Europa, desde o século XVII (cf. Kurz, 1993: 189). Veremos como as diferenças na ênfase

dada ao Estado vão responder às particularidades históricas de cada momento.

O que guardam em comum estes três tipos de acumulação primitiva é o que Marx

descreve n’O Capital: expulsão violenta, realizada de formas bárbaras, dos tradicionais

“produtores diretos”, em sua maioria de procedência camponesa, de seus meios de produção e

as “torturas” que sofreram ao ser forçados a se converter em modernos trabalhadores

assalariados, o que exige um sistema de mercadoria moderna como status de grandes massas.

Toda a população que foi violentamente despojada de suas terras foi logo a seguir maltratada,

torturada por diferentes legislações reputando-os vagabundos, até que estivessem submetidos

ao “sistema do trabalho assalariado”. Fração dessa população foi enviada nas embarcações

para a América no processo colonizador, e tomou parte no processo brutal de perseguição das

populações indígenas para a submissão ao sistema de trabalho de exploração em grande escala

173

(cf. Marx, [1867] 2004: 891-938)157.

Esta acumulação primitiva compôs-se fundamentalmente por um processo de colonização

triplamente determinada: por um lado a dissolução das formas de organização social pré-

modernas dentro do continente europeu, através da expropriação dos meios de produção,

cercando os campos e criminalizando a obtenção de lenha nos bosques. Neste sentido, “o

processo que cria a relação do capital, então, não pode ser outro que o processo de cisão entre

o trabalhador e a propriedade de suas condições de trabalho” (Marx, [1867] 2004: 893). Outra

determinação se deu com a expansão das nascentes relações capitalistas para além da

Europa, por intermédio do genocídio de povos e culturas não-capitalistas com o fim de obter

matérias primas para a produção e a circulação de dinheiro gerado pelo comércio escravo. Por

último, uma terceira determinação dada pelo adestramento subjetivo de massas humanas ao

ritmo da máquina da grande indústria moderna, que começou na Europa e logo se expandiu

para o resto do mundo. Este processo de acumulação primitiva inaugura um processo de

expansão do capital, que o permitirá afirmar-se como forma social única em todo o planeta.

O que Marx descreveu para a Inglaterra dos séculos XVI e XVII poderia aplicar-se,

segundo Kurz (1993: 189), para descrever a Rússia do século XX e para Brasil ou Índia de

fins do mesmo século, diferenciando estas regiões apenas pelo fator de tempo histórico da

modernização. Este processo gerou, em escala crescente, cada vez mais forças produtivas

científicas, até alcançar, em nossos dias, o limite de supressão, por parte do próprio capital, da

substância de “trabalho produtivo” do capital: “É precisamente nesse desenvolvimento e

aumento da produtividade, que faz colocar em alturas incríveis a régua da medição da

rentabilidade, que podem ser observadas as diferenças essenciais na tipologia da acumulação

primitiva” (Idem: 190).

Kurz (1993: 189-195) propõe para análise três formas de acumulação primitiva que se

157 No capítulo XXIV “A chamada acumulação riginaria” (Tomo I, Vol 3 – Libro Primeiro) Marx, já no primeiro parágrafo, observa: “a acumulação do capital pressupõe a mais-valia, a mais-valia a produção capitalista, e esta a pré-existência de massas de capital e de força de trabalho relativamente grandes em mãos dos produtores de mercadorias. Todo este processo, então, parece girar em um círculo vicioso do qual só podemos sair supondo uma acumulação 'originaria' prévia à acumulação capitalista […], uma acumulação que não é o resultado do modo de produção capitalista, mas seu ponto de partida” (Marx, [1867] 2004: 891 itálicos do autor).

174

desenvolveram ao longo da história do capitalismo, sublinhando que tanto o “mercado” como

o “Estado” são duas formas das quais se valeu o Capital para sua expansão e consolidação,

mas com acentuação e características diferentes em cada região dependendo de cada momento

histórico.

Por um lado, na Europa, o estatismo criador de “casas de detenção e trabalho” se limitou à

primeira fase do mercantilismo, porque a enorme massa inerte da economia de subsistência,

por falta de pressão externa, não necessitava nem podia ser transformada em pouco tempo. O

sistema produtor de mercadorias dispôs de mais de três séculos para absorver as massas

desvinculadas com violência maior ou menor das produções agrárias e artesanais. Isto se

realizou com grande velocidade passando de uma fase a outra de desenvolvimento,

interrompidas apenas por breves “crises de imposição”. O nível de desenvolvimento da força

produtiva daquela época, na qual ainda não havia penetrado o desenvolvimento científico,

produzia uma “voracidade canibalesca” (Marx, [1867] 2004: 292) de força trabalho vivo.

Passou-se muito tempo até que a mais-valia absoluta (jornada laboral que excedia o limite

físico, trabalho infantil etc.) veio a ser complementada pelo surgimento da mais-valia relativa

(redução do custo de reprodução do trabalhador mediante a produtividade elevada,

aumentando assim a participação relativa da mais-valia na produção global de valor). O

problema, esclarece Kurz, não era a falta de trabalho dentro do capital, senão sua natureza

violenta e grosseira (cf. Kurz, 1993: 189-191).

Neste momento se localiza uma primeira fase do mercado mundial, a dos descobrimentos

e da primeira colonização até a metade do século XIX, com a Inglaterra como o destaque na

economia nacional do ocidente. A produção para o mercado não havia logrado até o momento

impor-se plenamente, de maneira que as crises ainda não podiam repercutir no modo de

produção da sociedade em seu conjunto, a cual ainda continuava com um caráter

predominantemente agrário e de subsistência (cf. Kurz, 2004: 53).

A segunda experiência proposta é a soviética, em inícios do século XX, que por seu

“atraso” no processo de adotar o sistema produtor de mercadorias já desenvolvido na Europa

ocidental, se viu obrigada a exagerar o uso do elemento “estatista”, para transformar toda a

175

sociedade em uma máquina de trabalho abstrato comandada de forma quase militar, imposta

pela lógica do capital. Este segundo tipo de acumulação primitiva chegou a realizar

historicamente uma industrialização que alcançou grandes áreas e uma reestruturação

profunda da sociedade. Mas depois de 70 anos de iniciado esse processo, não se consegue

manter o nível que o mercado mundial pressiona como necessário (cf. Kurz, 1993: 192-193).

Neste momento se desenvolve a segunda fase do mercado mundial, à qual se denominou

a era dos “pais da pátria”, que vai até o final da Segunda Guerra Mundial, de onde surge uma

nova série de economias nacionais. Dentro desta fase claramente surge a consolidação dos

projetos nacionais na América Latina e sua industrialização tardia, ou processo de

acumulação primitiva como foi descrito anteriormente.

Nesta fase a economia de mercado se expandiu claramente até cada recanto do mundo e as

crises já afetavam a uma percentagem muito maior da população mundial. Isto ficou claro na

crise mundial de 1929-1933. Se aprofunda a interrelação dos mercados em nível mundial:

entretanto, o papel principal nas relações econômicas segue sendo desempenhado pelos

mercados nacionais (cf. Kurz, 2004: 54).

Com a decadência do “boom fordista” e o desenvolvimento das forças produtivas

completamente novas (racionalização e automatização), foram estabelecidas novas condições

irreversíveis de rentabilidade, nas quais começou a se manifestar, pela primeira vez, o limite

lógico inerente ao movimento de exploração abstrata da força de trabalho. Assim, o

desemprego em massa que se apresentou em um primeiro momento como um sintoma da

crise mundial, logo se tornou um problema permanente em nível planetário. Essa

produtividade crescente, que excede a capacidade de absorção da produção de mercadorias,

não podia deixar de gerar repercussões desastrosas nos processos recuperadores de

acumulação primitiva (cf. Kurz, 1993:189-191).

A terceira experiência é a que se realizou no “Terceiro Mundo”, como forma tardia da

modernização. Neste a maior parte da acumulação primitiva teve lugar somente após a

Segunda Guerra Mundial, o que significa em um nível mais desenvolvido de mercado

176

mundial e de produtividade comparativamente ao tipo soviético. “Nas sociedades do Terceiro

Mundo, o desenvolvimento do sistema produtor de mercadorias tinha que dividir-se, portanto,

em duas tendências completamente distintas” (Kurz, 1993: 193). O processo de acumulação

primitiva abarcou à sociedade inteira em apenas um aspecto: a economia de subsistência

tradicional, que em grande parte sobreviveu à época colonial, acabou sendo destruída com a

mesma brutalidade que na União Soviética. “Mas já que a abertura forçada ao mercado

mundial e a exigência de uma produtividade elevada impediam uma industrialização

recuperadora completa e extensa, a acumulação primitiva não chegou a terminar sua obra.

Ficou parada na metade do caminho, isto é, depois de desarraigar as massas, deixou de

integrá-as na moderna máquina de exploração em empresas” (Idem: 194). Desde o começo, a

industrialização foi seletiva, limitando-se a algumas fábricas isoladas que produziam para o

mercado mundial. O setor moderno, com a infraestrutura correspondente, sempre existiu

apenas como um corpo estranho em uma sociedade que já não podia penetrar inteiramente. “A

maior parte da sociedade foi apenas modernizada em sentido negativo, isto é, foram

destruídas as estruturas tradicionais sem que alguma coisa nova ocupasse seu lugar. E desde

os anos 70 intensificou-se extraordinariamente esse desenvolvimento, ao qual o Terceiro

Mundo pós colonial estava predestinado desde o princípio” (Idem).

Um dos maiores sofrimentos do Terceiro Mundo nos dias que correm não é a repisada

exploração capitalista de seu trabalho produtivo: pelo contrário, é a ausência de sua

exploração. É por esta razão que não pode haver nestes países uma reforma socialdemocrata

burguesa: “ninguém 'precisa' da grande maioria dessas massas desarraigadas, levando esta

parte uma vida miserável e improdutiva fora de qualquer estrutura de reprodução coerente”

(Kurz, 1993: 194).

O Terceiro Mundo pode ser visto como um estado de “acumulação primitiva

permanente”, que desde a conquista se consolidou como forma de produção e realização do

capital.

Aqui encontramos a terceira fase do mercado mundial que poderia se chamar “paz

americana”, que se estende desde o pós-guerra até fins do século XX, onde o modo de

produção para o mercado passou a desbordar o âmbito das economias nacionais para gerar

177

toda uma rede internacional de mercados. Os mercados internos perdem a cada passo seu

caráter fechado, e no mesmo movimento o mercado mundial ou os grandes mercados

regionais de caráter mundial se tornam um “espaço funcional imediato” de um número cada

vez maior de sujeitos econômicos (cf. Kurz, 2004: 54).

O período do mercado mundial não pode ser analisado apenas a partir de um “princípio

estrutural” ou de um “ordenamento”, senão como um “processo de globalização” (cf. Kurz,

2004: 55). Em um primeiro momento se expandiu o comércio mundial, em um segundo

momento se somou a isto a exportação extensiva de capital, que significou que setores inteiros

de produção foram instalados em outros países como capital, forçando a expansão do modo de

produção para o mercado. Em um terceiro momento a exportação intensiva de capital, ou seja,

a divisão internacional de processos de produção, arrebentou definitivamente a cápsula das

economias internas. Este período, que vem desde os anos 70, significou a criação de mercados

financeiros internacionalizados, que saíram do controle dos sistemas nacionais.

Arantes alinha neste caminho o que seria uma volta aos processos de acumulação

primitiva e sua relação com a globalização, destacando o exemplo dos movimentos

antiglobalização, os quais expressam o clamor pela reintegração da posse coletiva de tudo o

que é “comum”, em que se incluem desde a informação genética até os fundos públicos: “A

viagem redonda do capitalismo de acesso vem a ser esse retorno da acumulação primitiva”

(2007: 177).

Frente à marcha da “acumulação primitiva permanente”, que leva a um processo social

regressivo, se apresenta como desafio pensar naquelas experiências que hoje se desenvolvem

dentro do sistema capitalista como contestação anticapitalista, no sentido de que tanto sua

forma política de organização como a reprodução da vida cotidiana reconstroem outras

formas de organização da vida social. Elas, isoladas, sem uma articulação clara entre suas

lutas, parecem recriar, ante um cenário de desmoronamento, algumas idéias, práticas já

observadas por Marx na “Comuna de Paris” como a origem de formas autônomas e

autogestoras de organização social.

178

2. Comuna e Comunismo

Pensar a ideia de “Comuna” nos leva a construir uma memória sobre as sociedades pré-

modernas e outras formas sociais que se experimentaram anteriormente ao capitalismo. Tem-

se como referência mais ou menos generalizada que as sociedades pré-modernas eram

primitivas: no entanto, não só elas não o eram como, sim, eram altamente diferenciadas.

Apenas, esta diferenciação não deve ser compreendida tal como o é no conceito moderno.

As sociedades antigas cuja estrutura era predominantemente agrária não tinham “uma

cultura”: elas eram uma cultura em sua totalidade. Por sua vez, quando se fala de “cultura

moderna”, sempre se faz referência a um aspecto específico de formas de expressão e nunca a

um sistema social como um todo. A partir daí é possível ver que a cultura já foi um “todo” e

não apenas uma esfera funcionalmente separada158.

Os conteúdos e as formas diferenciadas tais como se apresentam no “metabolismo com a

natureza”, assim como as relações sociais e a estética, não se separam entre si como

subsistemas com lógica própria, mas são sempre a expressão de um modo “de existência

cultural único e coerente”. A descrição desta existência cultural em termos modernos, a partir

desta concepção de cultura, soa bastante confusa: a produção era estética, a estética era

religiosa, a religião era política, a política era cultural, a cultura era social e assim

sucessivamente. Para estas formas sociais “cada momento da vida social estava contido em

outro ou outros”, e se poderia dizer que a “religião” se apresentava como um momento

integrador forte da sociedade como cultura (cf. Kurz, 2004: 114). Assim, a religião não pode

ser pensada dentro destas culturas como uma simples relação coercitiva irracional, na medida

em que ela agrupava outros elementos que eram do âmbito do público.

Mariátegui, em sua leitura sobre o “mito”, precisamente tenciona refletir sobre esse lugar

da “religiosidade” nas culturas pré-modernas como um momento de integração da vida social,

dado que era difícil especificar a particularidade de cada esfera já que as mesmas se

encontram coesas na esfera do público.158 A palavra cultura provém do latim “cultus”, estando relacionada a plantação, agricultura, e, também, ao

“serviço divino, socialização, formação e vestimenta”. Esta concepção indica o caráter de integração das sociedades agrárias.

179

A idéia de “Comuna” nos remete a Marx e “A Guerra Civil na França” [1871]159.

Inspirado pela revolta de Paris em 1871160, ele realiza uma análise dos fatos sucedidos e da

potencialidade de suas propostas. A “Comuna de Paris” para Marx era a “antítese direta do

império, o grito de república social” (Marx [1871]; 1973:87)161.

Uma das ideias-chave desta análise é que ali “não se tratava de destruir a unidade da

nação, pelo contrário, tratava-se de organizá-a mediante um regime comunal, convertendo-a

em uma realidade ao destruir o poder do Estado, que pretendia ser a encarnação daquela

unidade, independente e localizado acima da nação mesma, em cujo corpo não era mais que

uma excrescência parasitária” (Marx, [1871] 1973: 90).

Marx se encarrega de marcar especificamente a diferença desta nova “Comuna” com a

“comuna medieval”, a qual precedeu o Estado moderno para logo servir-lhe de base. A nova

forma da “Comuna de Paris” tinha a ver com a “destruição do Estado Moderno”, era o

produto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora: “a forma política enfim

descoberta para levar a cabo dentro dela a emancipação econômica do trabalho” (Marx,

159 Marx, encarregado pelo Conselho Geral da Internacional, teve a seu cargo explicar aos proletários do mundo a gênese, a significação e o alcance do movimento parisiense. Realizando-o mediante documentos que lhe forneciam os periódicos todas as manhãs, elaborou o terceiro Memorial, conhecido com o título de A guerra civil na França, que só foi lido ante o Conselho Geral no dia 30 de maio, quando a comuna já não existia. Esta defesa, simultaneamente oração fúnebre, constitui uma das mais sólidas páginas da literatura socialista (cf. Bourgin, 1962: 34).

160 A “Comuna de Paris” foi um movimento insurrecional que governou Paris entre março e maio de 1871. Promulgou uma série de leis de autogestão, laicismo, sufrágio universal etc., que vieram a ser profundamente analisadas por marxistas e anarquistas. Logo foi sometida ao assédio do governo provisório estabelecido em Versalles (a cargo de Adolphe Thiers) e foi massacrada com extrema dureza. Após um mês de combate, o ataque final ao centro urbano provocou o que se chamou “a semana sangrenta”, entre 21 e 28 de maio, deixando mais de 30.000 mortos e instaurando por cinco anos a lei marcial em toda França.

161 O primeiro decreto da “Comuna” foi “suprimir o exército permanente e substituí-lo peo povo armado” . A “Comuna de Paris” estava formada pelos “conselheiros municipais eleitos por sufrágio universal nos diversos distritos da cidade. Eram responsáveis e revogáveis em todo momento […] a Comuna não devia ser um organismo parlamentar, mas uma corporação de trabalho, executiva e legislativa ao mesmo tempo […] em mãos da Comuna se puseram não somente a administração municipal, mas toda a iniciativa conduzida até então pelo Estado […]. Todas as instituições de ensino foram abertas gratuitamente ao povo e ao mesmo tempo emancipadas de toda intromissão da Igreja e do Estado. Assim, não só se punha o ensino ao alcance de todos, mas a própria ciência se redimia das travas a que a sujeitavam os preconceitos de classe e o poder do governo”. Por outro lado, as “comunas rurais” de cada distrito administrariam seus assuntos coletivos por meio de uma “assembleia de delegados na capital do distrito correspondente”, e estas assembleias, por sua vez, enviariam deputados à “Assembleia Nacional de delegados de Paris”, entendendo-se que todos os delegados seriam revogáveis em todo momento e se encontrariam obrigados pelo mandato imperativo de sus eleitores (Marx [1871], 1973: 90).

180

[1871] 1973: 91-94). Seguindo as observações de Marx, percebe-se que sem esta condição

última o regime comunal haveria sido uma impossibilidade e uma impostura: “a dominação

política dos produtores é incompatível com a perpetuação de sua escravidão social. Portanto, a

Comuna tinha de servir de palanque para extirpar os cimentos econômicos sobre os quais

repousa a existência das classes e, por conseguinte, a dominação de classe” (Marx [1871],

1973: 94).

Em “A Guerra Civil na França” Marx clarifica suas idéias acerca da potencialidade da

forma política da “Comuna” como “antítese direta do império” (Marx [1871], 1973: 87): ela

se apresentava como uma forma política que estava contra qualquer tipo de poder estatal, seja

o mesmo legítimo, constitucional, republicano, imperialista. Até o momento não havia tido

lugar na história um enfrentamento tão claro contra a forma Estado tal qual estava planteada

pela sociedade burguesa.

Para Saeer e Corregan, o que mais chamava Marx à atenção na “Comuna” não eram suas

medidas enquanto governo (que considera conquistas para a “salvação da classe média”), mas

sua potencialidade como “forma política”; sua própria organização era seu revolucionário (cf.

Saeer e Corregan, 1987). Como para Marx ([1859]1987:30) as “formas sociais (…) se

originam nas condições materiais de vida”, procedeu a uma análise da “Comuna” não como

abstração, mas a partir dos fatos que realmente sucederam na Paris de 1871.

Marx celebrava o fato de que todos os assuntos da vida social foram franqueados à

“Comuna”, o que permitia pensar em outra “forma social” que no fosse regulada pelo Estado,

e tampouco falava de um Estado “a serviço da sociedade”, mas no resgate desta outra “forma

política” de poder regular a vida social de uma maneira igualitária e coletiva, através de um

processo mais consciente deste “controle”, o que tornaria os Estados uma forma tanto

impossível como desnecessária162.

162 A Comuna decidiu, no dia 29 de março, dividir-se em dez comissões, cada uma das quais correspondia aos antigos ministérios, salvo o de Culto, cujo orçamento se suprimia e que passava a depender da Comissão de Segurança Pública. Estas comissões eram: a Comissão Executiva, a Comissão Militar, que substituiu em principio o Comitê Central da Guarda Nacional, a Comissão de Alimentos, a de Finanças, a de Justiça, a de Segurança Pública, a do Trabalho, Indústria e Comércio, a de Serviços Públicos, a de Relações Exteriores e a de Educação. Em relação aos cultos religiosos, no 2 de abril a Comuna decretou a separação entre Igreja e Estado, a supressão do orçamento para cultos e a secularização dos bens das congregações, que não chegou a

181

Marx deixa claro com sua análise que a “Comuna” simbolizava toda a redução do poder

de qualquer autoridade societária centralizada. A primeira medida que foi a abolição do

exército permanente significou não só poder desarmar uma contrarrevolução, mas também

uma condição necessária para as melhoras sociais, realizando um dos tópicos das revoluções

burguesas que era ter “governos baratos” ao destruir duas grandes fontes de gastos: “o

exército permanente e a burocracia estatal” (Marx [1871], 1973: 93)163. Era o augúrio de uma

unidade nacional, já não baseada em um Estado centralizado, mas com um regime “Comunal”

através do auto-trabalho e do auto-governo que permitiam destruir o corpo do Estado que não

era mais que uma “excrescência parasitária” (Marx [1871], 1973: 90). Se pretendia com a

forma “Comuna” uma unidade política da sociedade francesa, que estava longe de ser aquela

forma centralizada que havia prestado serviços contra o feudalismo, mas se convertido em

uma “unidade artificial”, apoiada no exército e altamente repressora (cf. Marx [1871], 1973).

A “Comuna” conseguiu em seu curto período dotar a república de “bases realmente

democráticas”, mas Marx observa que seu objetivo não era a “verdadeira república”, mas que

estes eram tão somente “fatores concomitantes” (Marx [1871], 1973: 93).

Assim como a principal conquista era a “forma política” que a “Comuna” havia

impulsionado, o objetivo final não podia ser a instauração de uma “república realmente

democrática”. Estava em germinação uma nova organização na qual se conjugavam elementos

pré-modernos a elementos novos da revolta. A forma autônoma dos governos locais que se

toma como base para a “Comuna” já havia sido implementada nas experiências comunais

prévias ao capitalismo, e logo, com o desenvolvimento do mesmo se converteram em uma

forma totalizada de organização política e econômica dos territórios. Antes deste, tanto a

política como a economia tinham a ver com os territórios, o que permitia à população uma

participação direta nas mesmas164.

se realizar.163 É importante assinalar que as experiências das insurreições de julho de 1830 e fevereiro e junho de 1848

inspiraram aos engenheiros e aos militares múltiplos aprendizados. A demolição das ruas tortuosas e estreitas – cujo pavimento era feito de grandes pedras quadradas, propícias para a construção de barricadas e muito apropriadas para a aplicação das regras dessa guerra de rua cuja estratégia havia estudado Blanqui – se deve muito mais a estas preocupações militares que às de filantropia operária e higiene urbana (cf. Bourgin, 1962: 110).

164 Um dado interessante deste período da Comuna foi o que sucedeu aos teatros, oito dos quais, dentre os principais, se encontravam abertos em princípios do mês de abril, além dos teatros dos bairros. Aos 21 dias de maio ainda se representavam no Ginásio algumas comédias e vaudevilles; 22 de maio, Raoul Pugno ensaiava na Ópera a ária Vive la liberté de Gossec, com vistas a uma representação especial que não chegou a

182

É difícil extrair destes textos de Marx alguma idéia de “centralismo democrático” tal

como Lenin o formulou em “Que fazer?” (1902), porque fica claro em vários parágrafos de

“A Guerra Civil na França” que Marx aprovava uma sociedade altamente “descentralizada”

como era a “Comuna”, sendo as “comunas locais” autônomas em tudo, exceto naquelas

funções que eram fundamentalmente do governo central, mas que não se aboliriam, e sim

ficariam nas mãos dos agentes comunais. Dessa forma existiria uma unidade nacional real, e

não supérflua como pretende um Estado centralizado (cf. Marx [1871], 1973: 90).

No capítulo III de “O Estado e a Revolução” de Lenin (1917), se encontra uma análise

sobre “A Guerra Civil na França” que constitui uma tentativa de recuperar o projeto de Marx

sobre a abolição do Estado na forma “Comuna” de governo. Lenin ([1917]1973: 69) insiste

em recuperar fundamentalmente a idéia da unidade da nação que a comuna garantiria, e esto

se daria através do que ele chamou “centralismo democrático”. Apesar de ser rica e fecunda a

análise, e de mostrar a forma comunal como aquela que Marx apontava como uma

experiência concreta que mostrava outras maneiras de organização social, Lenin acaba

defendendo determinado “centralismo voluntário”, uma maneira de unificar a ação de todos

os conselhos que acaba debilitando o ponto forte da análise de Marx quando fala da

autonomia desta organização. Ao mesmo tempo Lenin reforça, como Marx – ao não estar

preocupado em “descobrir uma forma política do futuro”, e realizando uma observação

precisa de uma situação histórica determinada –, que a “Comuna” é a primeira tentativa de

“destruir a máquina estatal burguesa” e a forma “descoberta por fim” para substituir o

“destruído” (Lenin [1917] 1973: 72).

Marx se dirige à classe trabalhadora, como os protagonistas da rebelião de 1871 na

França, e fortalece perante eles a ideia de forma comunal como organização política a ser

implementada após a “emancipação do trabalho”. Um dos pontos que destacou para que a

classe trabalhadora tivesse em conta é que assim como deverão passar por diferentes fases na

luta de classes, a “substituição das condições econômicas da escravidão do trabalho pelas

condições de trabalho livre e associado só podem ser obra progressiva do tempo (…), que elas

se realizar. Havia concertos populares nas Tulherias. A 21 de maio se realizou na Praça da Concórdia um grande festival, apesar da proximidade do eco do canhão (cf. Bourgin, 1962:104-107).

183

requerem não apenas uma mudança de distribuição, mas uma nova organização da produção,

ou melhor, a libertação das formas sociais de produção, no trabalho organizado atual

(engendrado pela indústria atual), dos grilhões da escravidão, de seu atual caráter de classe e

de sua coordenação nacional e internacional harmoniosa”. Entretanto sabe também que

podem ser dados “grandes saltos através da forma comunal da organização política, e que

chegou o momento de iniciar esse movimento em benefício de si mesma e da humanidade”

(Marx apud Mészáros, 2002: 1048). A forma comunal como organização política permitiria

potencializar aquelas conquistas propostas pela experiência histórica da “Comuna” em uma

crítica radical ao Estado, onde possam ser incorporadas todas aquelas “formas sociais” que

foram experimentadas ao longo da história da humanidade e a atualização de suas lutas. Marx

não desconhece esse aporte, e reconhece o lugar que as mesmas têm no momento de pensar

“formas de organização política”.

No 18 de março de 1871 o Comité Central da Comuna de Paris manifestou: “os

proletários de Paris, em meio aos fracassos e traições das classes dominantes, se deram conta

de que é chegada a hora de salvar a situação tomando em suas mãos a direção dos assuntos

públicos […] Compreenderam que é seu dever imperioso e seu direito indiscutível fazerem-se

donos de seus próprios destinos, tomando o poder”; ao que Marx agrega: “mas a classe opera

´ria não pode limitar-se simplesmente a tomar possessão da máquina do Estado tal e qual está

e servir-se dela para seus próprios fins” (Marx [1871], 1973: 82). Segundo Saeer e Corregan,

Marx propõe que a “Comuna” nos “ofereceria o meio racional através do qual a luta de

classes poderia atravessar suas diversas fases, de uma maneira mais humana e racional”

(Marx apud Saeer e Corregan, 1987).

As análises realizadas por Marx sobre o processo parisiense se complementam com seu

diálogo com os populistas russos. A formulação de que não existia uma necessidade intrínseca

ao processo revolucionário de ter que passar pela “selvageria” e por um conjunto de etapas

subsequentes de desenvolvimento das forças produtivas, ficou mais explícita em suas cartas

184

com Vera Zasulich165, como também em sua carta à redação de Otiéchestviennie Zapiski166

onde expõe suas diferentes concepções sobre a idéia do desenvolvimento histórico capitalista

e a crítica à idéia de uma possível teleologia da história. É importante citar algumas passagens

destas cartas-anotações onde observa que em seu livro O Capital167 se propõe um caminho

para compreender como na Europa Ocidental nasceu “o regime feudal capitalista do seio do

regime econômico feudal”. Observa ele que ali se expõe um processo histórico de como os

produtores foram separados dos meios de produção e convertidos em operários assalariados,

enquanto os proprietários destes meios se convertiam em capitalistas, sendo que este processo

ainda não se realizara de uma maneira radical a não ser na Inglaterra (Marx [1877], 1980: 63-

4).

Em 1881 Marx debateu com Zasulich sobre a idéia de “comuna” tal como era projetada

pelos populistas russos e se era necessário que a “comuna” tal como existia sofresse as

transformações descritas por ele n'O Capital, inclusive a passagem pelo modo de produção

capitalista, ou se os socialistas podiam pensar que essa “comuna” era capaz de desenvolver

uma via socialista organizando sua produção e distribuição sobre bases coletivas (Zasúlich

[1881], 1980: 29). Marx, em seus rascunhos de cartas a Zasulich, esboça algumas idéias sobre

esta problemática dizendo que “a propriedade comum da terra oferece a base natural da

apropriação coletiva, e seu meio histórico, a contemporaneidade da produção capitalista,

apresenta já prontas as condições materiais do trabalho cooperativo, organizado em ampla

165 Issac Deutscher, no primeiro volume de sua trilogia sobre Trostky, “O Profeta Armado”, descreve a Vera Zasulich (1869-1919), que viveu um período em companhia de Trostky e Martov em Londres, onde nesse momento se encontravam exilados junto a Lenin. Zasulich, nas palavras de Deutscher (seguramente tomadas de Trostky) era aquela mulher que “um ano antes do nascimento de Trostky (1879) disparara contra o general Trepov, inspirando involuntariamente a Liberdade do Povo (grupo político mais favorável às atividades terroristas que se origina de uma ruptura com o partido Terra e Liberdade) a seguir-lhe o exemplo. Depois que o júri a inocentou, fugiu para o exterior, manteve-se em contato com Karl Marx e, embora não lhe aceitasse os ensinamentos sem algumas reservas, tornou-se uma das fundadoras da escola marxista russa. Ignorando as dúvidas de Marx, foi das primeiras a proclamar que o socialismo proletário que ele defendera para a Europa Ocidental era aplicável também à Rússia. Vera não era apenas um personagem heróico. Conhecia bem História e Filosofia, era essencialmente herege, com uma inteligência agudamente feminina, trabalhando antes por impulsos intuitivos do que pelo raciocínio […] Para o jovem Trostky ela era uma heroína de um épico glorioso” (Deutscher [1954]; 1984a: 72-3).

166 “Otiéchestviennie Zapiski”[Anais da Pátria]: revista político-literária, publicada inicialmente em São Petersburgo, desde 1820; a partir de 1839 era uma das melhores publicações progressistas da época. Submetida a contínuas perseguições por parte da censura, a revista foi fechada em 1884 pelo governo czarista.

167 Particularmente, esclarece, no capítuo XXIV, “La Acumulación Originária”, El Capital, Tomo I - Vol 3, Libro Primero “El proceso de producción del capital” [1867] (Siglo XXI. Argentina. 2004).

185

escala. Então podem incorporar-se as aquisições positivas elaboradas pelo sistema capitalista

sem passar por suas forcas caudinas […] Depois de haver sido previamente posta em estado

normal em sua forma presente, pode chegar a ser o 'ponto de partida direto' do sistema

econômico ao que se inclina a sociedade moderna, e se remoçar sem começar por se suicidar”

(Marx [1881], 1980: 52).

No capítulo I observamos que Mariátegui marca de maneira intuitiva o caminho

percorrido por Marx nestas cartas, reforçando a idéia da “comuna incaica” como forma

social alternativa à desenvolvida pela entrada do capitalismo com a colonização. O desafio

que estava posto frente a Mariátegui e ao grupo de intelectuais desse momento foi o mesmo

desafio colocado para Zasulich e a esquerda russa. Os acontecimentos da “Revolução Russa”

não só estimularam em Mariátegui a necessidade de um caminho socialista para a

transformação, como também permitiram que pudesse pensar em que o caminho ao

comunismo não podia seguir significando violência e pauperização, como havia sido até o

momento após a conquista. Para isto era necessário reconstruir a história das lutas, recuperar

algumas práticas que enfrentavam essa forma social depredadora e, sobretudo, o desafio de

dar “unidade” às massas populares.

Como se vê, Marx não só avalia com grande entusiasmo os fatos sucedidos em Paris em

1871, como consegue ver a novidade que estes eventos traziam para a reflexão sobre as

formas organizativas estratégicas para a revolução. Marx pode ver nesta experiência uma

forma social que permitiria recuperar uma tradição organizativa que havia sido violentamente

destruída pelo desenvolvimento capitalista, mas que se reatualizavam em novas formas de

lutas, adquirindo novas configurações. Um dos processos onde elas se viram novamente

retomadas foi com a experiência dos sovietes, na Rússia de 1905.

2.1  A “Comuna” dos sovietes

A experiência em 1905 dos Conselhos de Operários – sovietes, não só marcou a

Revolução Russa e os debates do marxismo dentro dela, como ainda hoje continuam

186

influenciando os debates vigentes nos movimentos sociais.

Ao falar dos sovietes, é impossível não fazer referência ao que significou o Mir como

antecedente histórico dos mesmos. O Mir significa “comuna aldeã”, que consegue reunir

nesse mesmo significado três elementos de grande importância no mundo rural: “o mundo”,

“o universo” e “a paz”. Segundo esta definição, violar a comuna era “violar a paz”. O Mir era

um espaço de autonomia e democracia, onde as terras eram cultivadas por cada um dos

aldeãos mas pertenciam à comuna, e de tempo em tempo eram redistribuídas as marcas de

divisão das mesmas entre seus membros (cf. Hill, 1977: 72). O Mir foi, durante um largo

período histórico, a forma de organização da vida camponesa e resistiu fortemente aos

processos de ingresso do capitalismo na Rússia.

Os acontecimentos de 1905 guardam uma íntima relação com esta forma de vida

experimentada na Rússia e que se verá refletida na organização dos sovietes.

No dia 22 de janeiro de 1905 se realizou uma greve geral em São Petersburgo, onde se

requeria ao czar a existência de uma constituição que permitisse aos trabalhadores que se

protegessem da exploração dos patrões e uma redução das misérias nas quais viviam. A

resposta a esta manifestação foi uma repressão violenta que ficou conhecida como o

“Domingo Sangrento”, onde se calcula que morreram mil pessoas (Idem: 82). A ação iniciada

em São Petersburgo se estendeu a outras grandes cidades do país, e logo a várias greves e

negociações com o czar, até que no 13 de outubro se realizou uma greve geral que deu origem

aos sovietes de São Petersburgo; rapidamente conquistaram poder de convocatória,

constituindo-se como o primeiro órgão eletivo que representou as classes trabalhadoras, que

até o momento no tinham direito a voto, tornando-se desde o início um fato revolucionário de

uma grandeza extraordinária (Deutscher, 1984a: 141).

Os sovietes, assembleias de representantes de fábricas e organizações da classe

trabalhadora, eram as únicas instituições espontaneamente democráticas no país. Não eram

produto de lucubrações de partidos políticos: cresciam entre os operários das cidades, mas

suas raízes se assentavam em uma velha tradição de organização democrática e autonomia, na

187

comuna aldeã e no artel (cooperativa de pequenos produtores e artesãos) (cf. Hill, 1977: 84).

Os métodos que os sovietes punham em prática podiam ser entendidos em qualquer aldeia,

comunidade, eram simples, diretos: voto a mão erguida, com direito a ser revogado, e eleição

indireta dos escalões superiores; isto permitia que os trabalhadores analfabetos pudessem

participar de um processo autenticamente democrático. O que importava neste processo era a

“comunidade trabalhadora” e não o indivíduo isolado. Nas palavras de Lenin: “Há muito mais

conteúdo revolucionário nessa instituição do que em todas as vossas frases revolucionárias”

(apud Hill, 1973: 85).

Ante o vazio que deixavam os partidos de esquerda, os sovietes se localizam rapidamente

em nível político mais avançado, enquanto surgem diretamente de vasto movimento de

massas. Representam, ademais, uma forma de poder que aparece como alternativa direta e

imediata ao poder constituído, tanto em suas formas autocráticas como nas da democracia

representativa (cf. Foa, 1972: 102).

O debate com os populistas russos deixou assentadas as bases para que se pensassem

outras formas sociais que permitissem a passagem ao socialismo, de outras maneiras que não

implicavam necessariamente o total desenvolvimento capitalista. Idéias que Marx no

conseguiu desenvolver em maior profundidade devido a sua morte em 1883, e que se

tornaram parte de um debate periférico no âmbito do movimento comunista do século XX.

O antigo sonho populista de uma comunidade de comunas camponesas autônomas nunca

foi realizado, e o advento do capitalismo nas aldeias destruiu as comunas sobre as quais se

assentou, mas a tradição da organização e a conduta autônoma reapareceram com o processo

dos sovietes.

A agitação vivida nos dias anteriores ao 17 de outubro seria uma antecipação do que em

seguida se viveu em 1917, com a diferença de que neste momento tanto os grupos socialistas

como os partidos não estavam totalmente de acordo com a atitude que os sovietes

empreendiam, já que tanto os bolcheviques como os outros grupos queriam que os conselhos

aceitassem a direção do partido. Era impossível para os partidos ver que os sovietes não só

188

representavam uma experiência histórica diferente de outras greves, que tinham um caráter de

autonomia e autogestão não visto até aquele momento na Rússia, como também que

representavam uma classe operária ampla, razão pela qual precisavam contemplar diversos

interesses, e uma liderança única acabaria com a unidade de uma greve geral.

Todos estes debates estavam sendo realizados quando, no 17 de outubro, o czar publicou

um manifesto onde prometia uma Constituição, liberdades civis e sufrágio universal. Em um

primeiro momento de euforia as massas saíram às ruas para festejar, ao mesmo tempo em que

à polícia foi dada a ordem de reprimir. Com a confiança nas promessas do czar se

encontravam também as massas camponesas para quem a revolução era ainda um assunto

meramente urbano168.

Recuperando o exposto no capítulo I, onde mostramos as ideias-chave que abrem um

caminho diferente para a interpretação destas experiências de “comunas” (recuperadas por

Marx), descobrimos que o marxismo latino-americano negligenciou durante longo período

(apresentado no capítulo II deste trabalho) a importância de entender e dar luz sobre as

múltiplas manifestações das lutas sociais, e se fechou no intento de adequar as mesmas a uma

teoria que desse conta de tais processos. A estratégia revolucionária durante este período no

esteve voltada para a análise das diferentes experiências que tiveram uma força

importantíssima nas diferentes formas que adquiriram antes e depois da conquista da América.

3. Comuna e Crise Estrutural

A forma social de organização nas experiências comunais anteriores à modernidade estava

dada fundamentalmente por um forte vínculo com a terra, bem como por seu laço religioso

(entendido nos termos da relação entre cultura e religião). Com o desenvolvimento do

capitalismo, estas antigas estruturas comunais se vêem rapidamente desestruturadas (processo

de acumulação primitiva) e incorporadas a uma noção de “vínculo social” que se reduzia

principalmente à esfera da vida privada (família) e sua reprodução social passa a formar parte

168 Holloway, analisando a Revolução Russa de 1917, observa que “a tomada do poder do Estado na Rússia significou a derrota dos sovietes, o intento de tomar o poder do Estado é o oposto do impulso para a autodeterminação” (2006: 20).

189

do “mercado”. Assim, o significado das lutas da “Comuna de Paris” teve uma conotação

totalmente diferente daquele das lutas empreendidas pelos indígenas dos Andes (no mesmo

período) onde se tentava recuperar a forma de organização social do “ayllu” em seu estado

puro (a volta ao Tawantisuyo). Para cada uma destas lutas a idéia de “comuna” mudava em

relação aos impactos da modernidade e ao capitalismo como projeto civilizatório.

Com os sovietes, a recuperação da idéia de “comuna” se nutre fortemente da classe

trabalhadora, que começa a crescer na Rússia em fins do século XIX, e suas características,

como vimos, terão a ver com a incorporação das “conquistas do progresso da modernidade” à

luta das massas proletárias (regulamentação da jornada de trabalho e luta contra o

absolutismo). Mas, ao mesmo tempo, as massas camponesas, como componente fundamental

dessas lutas, revitalizam a idéia da organização comunal nas reivindicações dos sovietes (o

mir), que acabam adotando uma forma antiga de organização política em uma luta operária e

sindical. O impulso que os mesmos conseguem imprimir à revolução de 1917 será uma das

bases da vitória de outubro.

Ao longo do século XX estas experiências começam a se perder no horizonte de análise

política e teórica da esquerda, fracassando a mesma em seu intento de democratizar as formas

políticas de organização da vida social, como anticapitalistas fundamentalmente. Então cabe

perguntar-se: seguirão tendo vigência estas experiências da luta anticapitalista? Que

características adquirem neste novo momento histórico do capitalismo?

O capitalismo, a partir dos 1970, ingressou em nova fase. Neste período, consolidou seu

domínio sobre todas as esferas da vida humana e todos os territórios do planeta, unificados em

uma “sociedade produtora de mercadorias”. Impulsionada por grandes transformações

produtivas, esta nova fase representa sua madurez – e auge – enquanto sistema. Assim, o

“arcaico”, entendido como pré-capitalismo ou insuficiente desenvolvimento da produção

capitalista, está superado: “o arcaico que vemos agora espalhado pelo mundo, desde os países

periféricos até as periferias dos países centrais, é a própria configuração deste modo de

produção. O seu progresso não passa de formas ideológicas de um impressionante retrocesso”

(Menegat, 2008).

190

O capitalismo nesta fase significa também uma crise de expansão. As fronteiras internas

estão postas pelas renovações tecnológicas e a inovação de produtos, e a externa está posta

pela expansão para novos mercados. Tais limites significam uma “crise estrutural”169 que se

vai combinando com os processos de crise conjunturais (Tigres asiáticos e Rússia 1996-7,

México 1998, Argentina 2001, bolsa de valores de Nova York 2001,) (cf. Menegat, 2008). Em

uma análise que Schwarz realiza sobre o livro de Kurz “O colapso da modernização”, observa

que esta débacle sofrida pelas industrializações protegidas do Terceiro Mundo e do socialismo

real são observadas por uma visão mais doutrinária como a vitória definitiva do mercado e de

seus mecanismos; desde o ângulo histórico que propõe Kurz “trata-se da inviabilização de

imensos esforços de integração à modernidade, postos fora de combate pelos rigores da

concorrência global, ou seja, pela própria lógica do sistema de produção de mercadorias, que

passou à autodestruição” (Schwarz, 1993: 134). As mudanças nesta fase do capitalismo estão

marcadas pela Terceira Revolução técnico-científica, que começa a desenvolver-se depois da

Segunda Guerra mundial e que atinge sua madurez nos anos 1970-1980. A partir deste

processo se suplanta a organização produtiva fordista por novas tecnologias e as formas

organizativas que derivam delas. Assim, assinala Menegat (2008), “a modificação do modelo

fordista da unidade de produção implicou também num rearranjo sócio-político que girou em

torno do desmonte do Estado de Bem-Estar social ainda hoje em curso. Estas mudanças

liberam energias que não podem ser absorvidas pelo capitalismo, a não ser destrutivamente”.

Na medida que o trabalho é substituído por complexos sistemas de produção

automatizados, a “criação de riqueza perde as suas antigas bases materiais”, o que provoca um

desemprego estrutural gerando uma “imensa crise social” em virtude da perda de sua

substância viva: o trabalho (Menegat, 2008)170.

169 Como referência na análise sobre a crise estrutural do capitalismo se podem consultar estes autores, entre outros: KURZ, R. “O colapso da modernização”, Paz e Terra. Rio de Janeiro. 2003; “Os últimos combates”, Vozes. Petrópolis. 1997. “Com todo vapor ao colapso”, UFJF-Pazulin. Juiz de Fora. 2004. MÉSZÁROS, I. “Para além do capital”. Boitempo. São Paulo. 2002.

170 No ensaio “A atualidade da barbárie”, Menegat (2006: 41) assinala que “no capitalismo da atualidade da barbárie, marcado pelas ruínas das derrotas das revoluções, a exclusão de milhões de seres humanos dessa esfera do mundo social cria formas de sociabilidade em decomposição, como o desemprego estrutural e a criminalidade, por exemplo, que, definitivamente, não podem ser vistos como uma anomia”.

191

Enfrentado o “limite lógico do capital”, os Estados nacionais passam por um aumento de

suas funções repressivas, assistenciais, agregando-se a isto uma diminuição dos recursos

(diferentemente do auge do Estado de Bem-Estar e do pleno emprego por este garantido) e

enfrentando grandes corporações, em uma situação onde a demanda social está em claro

aumento.

Os anos 1990 se caracterizam pela resolução dos impasses produzidos pelas

transformações do capitalismo nos países centrais e sua penetração na sociedade brasileira (e

latinoamericana), que passou por um forte desmonte do Estado combinado a uma abertura à

economia de livre mercado, o que obrigou grande parte da indústria do país a fechar suas

portas. É neste quadro em que se insere a modernização tecnológica e as novas formas de

organização do processo produtivo. Neste quadro de “um crescimento econômico anêmico,

este modo de modernização foi gerando um exército industrial de reserva gigantesco, que não

é mais conjuntural, mas estrutural. Se dá um encontro entre o exército de reserva “natural” de

um país periférico, com as conseqüências das novas tecnologias produtivas” (Menegat, 2008).

Arantes  observa  que  estas  massas  “excluídas”   foram  tratadas  através  das  políticas  de 

“inclusão” desde a ótica de se pensar o foco da fratura social apenas desde a exclusão. Então,

a perspectiva de emancipação se convertia em perspectiva de integração, ao perceber-se que o

núcleo dos excluídos representa o setor “moderno” da sociedade que funciona muito bem,

dando-se as costas à massa sobrante de inadaptados: “O que resta de antagonismo numa

sociedade de atores individuais a um tempo fraturada, e, por assim dizer, interacionista, é uma

luta por reconhecimento. O discurso sobre a exclusão, a fratura social, oculta detrás dela uma

política de produção sistemática de desigualdades” (Arantes, 2004: 51-3). Para Arantes, “a

febre ética de hoje é um pobre sucedâneo do empenho político bloqueado” (idem: 290). A

proposta de integração dos excluídos legitima indiretamente a punição dos atrasados por seu

atraso.

Em fins dos anos '60 e princípios dos '70 José Num elabora a noção de “massa marginal”

(que suscitou largo debate com Fernando Henrique Cardoso), com a intenção de enfrentar o

“hiperfuncionalismo da esquerda” que se empenhava em demonstrar que até o último dos

192

camponeses sem terra ou dos vendedores ambulantes de nossas cidades eram não unicamente

funcionais, senão decisivos para a acumulação do capital (cf. Num, 2001: 25).

Com a incorporação desta noção não substituía, e sim complementava, a de “exército

industrial de reserva”. Pretendia mostrar que a “massa marginal” exigiria uma gestação de

políticas para esse excedente, e que isto significa estratégias de afuncionalização da não

funcionalidade da superpopulação relativa, favorecendo distintos graus de autonomia dos

subsistemas que a contêm: assim o ilustram situações aparentemente tão dissimilares como a

persistência do gamonalismo na serra peruana e do minifúndio no México (idem: 139, 242-3).

Baseado na leitura dos Grundrisse, Num resgata que para Marx “o excedente de

população é sempre relativo, mas não aos meios de subsistência em geral senão ao modo

vigente para sua produção” (Idem: 42). Esse é o núcleo da crítica de Marx à concepção

abstrata e a-histórica de Malthus. Nas palavras de Marx, que Num extrai dos Grundrisse, “é

então unicamente um excedente para tal nível de desenvolvimento” (Marx apud Nun, 2001:

42).

Para Num uma parte cada vez maior da superpopulação relativa se transforma em uma

“massa marginal”, cuja falta de funcionalidade não é uma consequência buscada pelo

comportamento dos agentes econômicos, mas o efeito dessa “contradição fundamental” entre

as relações de produção imperantes e o nível de desenvolvimento alcançado pelas forças

produtivas (Idem: 106).

Para superar o dilema da exclusão, é preciso compreender que “o mercado é uma

formação social que não admite nenhum 'exterior'” (Arantes, 2004: 52), o desempregado não

encontra mais quem lhe compre a força de trabalho, o pobre é um consumidor insustentável,

os descartados são “descartados porque estão absolutamente incluídos” (idem: 295). É o que

Kurz (1992: 195) chama de “sujeitos monetários sem dinheiro”171.

171 Uma referência importante sobre a construção, localização e lutas destas massas pode encontrar-se entre outros trabalhos em MARRO, K. “'A rebelião dos que sobram': Reflexões sobre a organização dos trabalhadores desempregados e os mecanismos sócio-assistenciais de contra-insurgência na Argentina contemporânea ”, tese de doutorado, Escola de Serviço Social/UFRJ. 2009. Também se pode encontrar uma análise que mostra a conformação destas massas como produto da crise estrutural em BRITO, F. M. Da S. “Acumulação (Democrática) de Escombros”. Tese de doutorado, Escola de Serviço Social/UFRJ. 2010.

193

Se configura assim um vasto espaço no qual “vivem os caídos transitando sua

desumanização” (Ferrara, 2003: 24). Assim, o que os sustinha até o momento como sujeitos

“desvaneceu, a ordem simbólica vigente cai e arrastra em sua queda a condição de sujeito. A

miséria tem efeitos sobre os vínculos, os corpos, a capacidade de simbolizar, o universo de

valores, desliga a composição subjetiva e aniquila a humanidade prévia” (idem)172.

Uma parte da esquerda, ultrafuncionalista, desconheceu ou negou a existência dessas

massas inorgânicas, excluídas, sobrantes, marginais, negando ocultando o debate sobre o

lugar que as mesmas guardam nos processos de lutas sociais. Arantes mostra que ante a

impossibilidade de incorporação se passa à proposta de uma integração por reconhecimento,

identitária, solidária. É a idéia de reconstruir pontes entre o incluído e o excluído, onde o

reconhecimento dessa dualidade não leva a uma crítica da produção sistemática da

desigualdade.

Neste contexto o comportamento da burguesia se vê refletido em “um descompromisso

autoritário” com as necessidades colectivas das sociedades nacionais de onde surgiram; “o

privilégio dado ao interesse financeiro, levando-a a sustentar estupidamente as conseqüências

antissociais destas suas ações; a sua frieza social amesquinhadora que a torna abertamente

cruel, realizando como algo natural e inevitável a contenção da pobreza por meio da

criminalização dos pobres, cujo resultado é o genocídio das 'massas sobrantes'” (Menegat,

2008). Este grupo acaba personificando as necessidades do capital.

Por outro lado, o proletariado sofreu nas últimas décadas as consequências deste processo

de desmoronamento, vendo-se afetado pelo desemprego estrutural, que debilitou fortemente

suas lutas, aumentando enormemente o exército industrial de reserva que permite às empresas

derrotar qualquer ação colectiva dos trabalhadores. Somada a isto a exigência de uma

formação técnica do trabalhador, que aumenta a competição cruel entre a maior parte da

população que busca sobreviver em meio à crise.

172 Ferrara (2003:25) se pergunta: “Que afinidade poderia ser estabelecida entre os consumidores do neoliberalismo e as massas que vivem na miséria, entre as ratazanas, com inundações constantes, acorrendo adultos e crianças às latas de lixo para poder comer? São humanos estes sobreviventes da miséria?”

194

Além do desemprego estrutural, os trabalhadores assalariados sofrem as consequências da

chamada “flexibilização trabalhista”, que transformou os empregos estáveis em totalmente

instáveis “terceirizando”, ou seja, entregando diferentes setores da produção a várias empresas

que levem a cabo o processo. Com isto já não existe uma única unidade de produção, o que

leva ao desaparecimento de um “território” em comum para a organização coletiva: a fábrica.

Esta, como lugar de luta, de organização, de estratégia, desaparece, desmembrando o coletivo

em uma individuação abstrata, onde se perde como referência o com quem e para quem se

trabalha.

Um terceiro elemento é a alienação do trabalho, que surge em consequência de um

aprofundamento cada vez maior da divisão técnica , que torna impossível que cada

trabalhador compreenda o que é que realmente se faz em cada uma das funções.

Segundo Schwarz (1993: 136), se com Marx assistimos ao aprofundamento da luta de

classes, onde as sucessivas derrotas do jovem proletariado são outros tantos anúncios de seu

ressurgimento mais consciente, com o aprofundamento da crise estrutural, 150 anos depois, “o

antagonismo de classes perdeu a virtualidade da solução, e com ela a substância heróica. A

dinâmica e a unidade são ditadas pela mercadoria fetichizada – o anti-herói absoluto – cujo

processo infernal escapa ao entendimento de burguesia e proletariado, que enquanto tais não o

enfrentam”.

Com estes elementos colocados como consequência do quadro de crise estrutural resulta

difícil hoje pensar na organização coletiva do proletariado, dadas as condições mencionadas –

que, como Menegat (2008) aponta, não podemos saber se são parte de uma situação

conjuntural de transição entre um período de conquistas materiais dentro da ordem burguesa

para um período imediatamente posterior de derrotas e ajustes, ou se estamos frente uma

situação estrutural, determinada mais exatamente pela incorporação desta classe ao sistema

depois de haver sido devidamente domesticada e aburguesada durante anos por hábitos de

consumo sem os quais já não consegue pensar-se, além de uma visão de política de Estado em

que a idéia de outra forma de vida social perde seu lugar.

195

A este quadro se soma a “globalização do mercado”, com a intensificação e flexibilização

da acumulação do capital, que vai acelerando e aprofundando a transferência de riquezas dos

países periféricos para os centrais, e das classes subalternas para os ricos dentro de um mesmo

país, “completando assim o quadro de uma imensa cratera que se abre feito ferida nas

sociedades do 'elo mais fraco'” (Menegat, 2006: 92).

O Estado, neste contexto, se configura no mesmo momento como repressivo e

assistencialista. Ao mesmo tempo em que realiza uma administração coercitiva da crise, a

reforça com um assistencialismo que se disfarça de “novos direitos”. Assim este “poder

estatal” consegue, no ato de “inclusão coercitiva” das massas sobrantes, construir um amplo

campo de criminalização da pobreza. Desde este lugar, as massas empobrecidas serão as

responsáveis pela falta de “nexo” social, que será agudizada com a proliferação das políticas

de “Tolerância Zero” (Brasil), “Unidades de Polícia Pacificadora” (Rio de Janeiro), “Policía

Metropolitana” (Ciudad de Buenos Aires), “Comando de Acción Preventiva” (Córdoba-

Argentina), entre tantos outros173. García Linera (2004: 38) mostra como entre o ano 2001 e

2004 (ano das principais revoltas na Bolívia no que temos até aqui de século XXI), em

diversas capitais provinciais da Bolívia se criaram “polícias comunitárias” que resguardavam

a ordem pública em nome da Federación Campesina.

Para Menegat (2006: 99), para que esse “arranjo social” possa prosseguir sem “ferir o

processo excessivo de produção”, em um regime de apropriação privada de riqueza, “é

necessário hipertrofiar as funções policiais do Estado”. Essa operação não se restringe ao

simples “aumento dos contingentes repressivos, mas, numa manobra bastante sutil, incorpora

à função repressiva as maiorias eleitorais e a chamada opinião pública”. Segundo Oliveira

(2004: 70), os Estados nacionais na América Latina se converteram em “Estados de Exceção”

em um duplo sentido: “existem para proteger os interesses dos capitais financeiros e mantêm

o grosso de suas populações em estado de indigência, de excepcionalidade, numa

funcionalização da pobreza que é a pior das exceções”. Se converteram em “administradores

das políticas de funcionalização da pobreza”, de onde surgem assim “bolsa-escola”, “bolsa-

alimentação”, “primeiro emprego”, “começar de novo”, “fome zero”, “jefe y jefa de hogar”,

173 Cf. Brito, 2010.

196

etc. A violência cotidiana fala da profundidade da crise de legitimação do Estado, que acaba

se resolvendo a favor das tendências totalitárias, já mui bem conhecidas na região,

recuperando e atualizando velhos modelos ditatoriais, com formas conhecidas e

desconhecidas de violência.

A “naturalização da barbárie” se efetivou de tal maneira, por meio de um consenso que

alguns chamam ingenuamente “pensamento único”, sem atentar para “o fato de que se trata

efetivamente da naturalização que sempre esteve em curso no mundo burguês, fundada por

este axioma do pensamento moderno que é a 'natureza humana'” (Menegat, 2006: 100).

Schwarz, continuando no caminho de Kurz, observa que estas nações que se haviam

lançado à industrialização tardia perdem as condições de coesão e se convertem em

“sociedades pós-catástrofe” (Kurz, 1991), onde o projeto de modernização que supostamente

iria atender as demandas de maneira universal se perdeu no passado. “Para estes países, a

reprodução coerente no espaço da concorrência global deixou de ser um horizonte efetivo, e

predomina a tendência à desagregação. Noutras palavras, a generalização do salário e da

cidadania está mais distante” (Schwarz, 1993: 136). Desta maneira, assinala este autor, o

desenvolvimentismo liberou e arrancou suas populações do velho enquadramento para

reenquadrá-las em um esforço de industrialização nacional, as abandonando sem que tenham

aonde voltar, na qualidade de “sujeitos monetários sem dinheiro”(Kurz, 1991) ou de ex-

proletários virtuais, agora disponíveis para a criminalidade e os fanatismos nacionalistas o

religiosos (cf. Schwarz, 1993).

A partir dos anos '90 se abre, na América Latina, um processo de regressão e revolta social

que apresenta novas características. Como veremos, a continuação estas lutas não é apenas

uma manifestação de um processo de “barbárie”, como também apresenta para a esquerda

experiências coletivas de organização que abrem a possibilidade de colocar novos elementos

em debate. Essas manifestações representam um desafio ante um panorama de catástrofe.

197

3.1  Revolta Social na Crise

Desde o Caracazo de 1989 até a Comuna de Oaxaca em 2006, na América Latina se abriu

uma série de levantamentos populares que multiplicaram-se em vários territórios como

sucedeu em: Argentina em 1989, Assunção em março de 1999, Quito em fevereiro de 1997 e

janeiro de 2000, Lima e Cochabamba em abril de 2000, Argentina em 2001, Caracas em abril

de 2002, La Paz em fevereiro de 2003 e El Alto em outubro de 2003, mencionando apenas os

casos mais relevantes.

O levantamento do Exército Zapatista de Liberação Nacional (EZLN), em Chiapas –

estado do México –, em 1994 teve um impacto muito forte em todo este contexto de revoltas

e surgimento de vários movimentos. O grupo é basicamente formado por indígenas que

habitam a selva de toda essa região, limítrofe com a Guatemala. É um grupo guerrilheiro, mas

que diferentemente dos grupos armados dos anos '60, não se propunha a tomada do poder,

mas uma mobilização da sociedade civil mexicana, que permitiria transformações profundas

no sistema político-social do país. O fato destacado deste grupo foi a proposta dos “conselhos

comunais”, de “cooperação”, que propõe como forma política de organização e que se torna

uma referência para todos aqueles movimentos latino-americanos compostos pelas massas

castigadas pelo neoliberalismo. Este movimento significou uma renovação nas formas de

organização em relação à esquerda latino-americana, e, mais ainda, a incorporação de um

sujeito que parecia esquecido: os indígenas.

São várias as fontes das quais o EZLN se nutre: o guevarismo, as lutas de Emiliano

Zapata174, e também a teologia da libertação. Mas o que mais profundamente se resgata no

“zapatismo” é a forma de “comuna” como processo de produção e reprodução da vida social,

anterior ao capitalismo, à modernidade, à conquista da América. O EZLN aprofunda a luta

marcada pela conquista da América com o projeto de “civilização” e “modernidade”, e o

processo regressivo que o mesmo significou para todas estas populações.

174 Emiliano Zapata 1879-1919, um dos principais líderes da Revolução Mexicana de 1910, comandando o Exército Libertador do Sul. Morre em uma emboscada e se converte no "Apóstolo da Revolução".

198

Zibechi sublinha que apesar de que estes movimentos se dêem em diferentes lugares,

distantes e em uma aparente desconexão, eles guardam elementos que emprestam

características diferentes às lutas desenvolvidas desde os anos '60 até o momento. Para o

autor, até a década de 1970 a ação social girava em torno das “demandas de direitos aos

Estados, do estabelecimento de alianças com outros setores sociais e partidos políticos” e do

desenvolvimento de planos de luta para modificar a relação de forças em escala nacional.

Assim, a ação social perseguia “o acesso ao Estado” para modificar as relações de

propriedade, e esse objetivo justificava as formas “estatocêntricas de organização”, assentadas

no centralismo, na divisão entre dirigentes e dirigidos e na disposição piramidal da estrutura

dos movimentos (cf. Zibechi; 2007: 21-2).

A partir de uma revisão histórica das rebeliões e levantamentos comunitários na época

colonial na região do então Alto Peru, Sinclair Thomson considera que seus conteúdos,

propostas e buscas mais profundos podem, em grandes traços, distinguir-se em três posturas

estratégicas. 1) A primeira é a autonomista, ou seja, rebeliões e levantamentos cujo conteúdo

é o desconhecimento, impugnação e rechaço a determinadas regulações e leis coloniais

impostas, que simultaneamente instaura como legítimas as práticas, usos e formas de

regulação ancestrais próprias das comunidades rebeldes. Em muitas ocasiões isto se

entrelaçou com o desconhecimento, expulsão ou morte de algumas das autoridades coloniais

existentes. A maior parte das rebeliões analisadas por Thomson compartilhou esta estratégia

que não contrapôs à ordem colonial em seu conjunto uma “nova ordem”, ainda que

modificasse brusca e drasticamente os termos das relações de poder em nível local, e, de

maneira significativa de acordo com a força da rebelião, em nível mais geral na medida em

que obrigava a fazer uma série de concessões políticas, começando pela modificação,

atenuamento ou suspensão da disposição que houvesse sido impugnada mais diretamente

através do levantamento. 2) A segunda postura estratégica distinguida é a daquelas rebeliões,

generalmente mais radicais e amplas, onde se fizeram esforços sistemáticos por conseguir

uma “inversão da ordem” geral das coisas. Diferentemente das anteriores, estas rebeliões

não apenas expulsavam ou matavam os funcionários coloniais mais odiosos e rechaçavam

aspectos específicos da legislação colonial, mas, além disso, em nível local ou regional,

desconheciam todo o arcabouço institucional e normativo da Colônia, instaurando

199

efemeramente “governos de índios” onde se promovia tendencialmente que os mestiços e

criollos assumissem as práticas e usos comunitários indígenas. 3) Finalmente, a terceira

postura estratégica, a de Tupac Amaru no Perú que se estendeu a amplas zonas do que hoje é a

Bolívia e então constituía o Alto Peru, foi a da luta pela independência política geral da

Espanha, sobre a base de uma aliança entre indígenas, mestiços e criollos (cf. Thomson

apud Gutiérrez Aguilar, 2008: 145-6).

Diferentemente da busca por uma reapropriação do Estado, como centro da disputa, as

lutas desenvolvidas desde os anos '90 adquirem e ao mesmo tempo recuperam outros aspectos

que a esquerda havia deixado de lado durante varias décadas. Adquirem de novo aqueles

elementos que são colocados por uma crise estrutural do capital e o desmonte dos Estados

com violento desemprego e marginalização nas grandes cidades principalmente. Recuperam

velhas práticas comunitárias desenvolvidas pelos movimentos de fins do século XIX e

princípios do XX, assim como das culturas pré-modernas, onde encontram formas coletivas

que permitem enfrentar a degradação provocada pelo impacto cada vez mas violento desta

desagregação provocada por uma nova fase de “acumulação primitiva”.

3.2  A forma política da revolta

Anteriormente pudemos observar como a configuração que surge com a crise estrutural do

capital provocou basicamente fortes explosões de lutas sociais, que recuperam em seus

mecanismos algumas das ferramentas de mobilização desenvolvidas nas experiências

comunais anteriores à modernidade – “comuna inca”, “mir” –, como também outras já

produto de um capitalismo consolidado – “Comuna de Paris”, “sovietes”.

Assim, perante o quadro de decomposição que se apresenta a partir dos anos 1990 em toda

a América Latina, o desafio do sujeito coletivo se recoloca como um novo tipo, com novas

determinações e configurações. Menegat (2008) menciona alguns aspectos a ter em conta

neste processo referindo-se especificamente ao caso brasileiro, mas o mesmo coincide com o

diagnóstico que intelectuais como Zibechi, entre outros, traçam para a América Latina.

Um primeiro elemento são as diferentes dinâmicas regionais, onde por um lado temos

200

conglomerados urbanos onde o processo de “regressão social” se apresenta com experiências

diferentes de outras regiões onde o modos vivendi rural segue ainda vigente, com o que as

formas de sobrevivência colectiva e desenvolvimento são diferenciados (cf. Menegat, 2008).

Holloway (2006: 11) observa que “não há modelos de organização” destas lutas, a forma

de organização que adquirem são de “comuna, conselho, assembleia”, uma característica que

vai desde a “Comuna de Paris” até os “sovietes da Rússia”, os “conselhos nas aldeias dos

zapatistas”, até as “asambleas barriales da Argentina”.

Neste mesmo caminho, Zibechi (2007) marca a “territorialidade” como um elemento

que mantêm em comum os movimentos surgidos a partir dos anos 1990, arraigados a espaços

físicos recuperados ou conquistados através de longas lutas. Segundo Zibechi (2007: 22) é a

resposta estratégica dos pobres à crise da velha territorialidade da fábrica e da hacienda, e à

reformulação por parte do capital dos velhos modos de dominação. A “desterritorialização

produtiva” (a reboque das ditaduras e das contrarreformas neoliberais) fez entrarem em crise

os velhos movimentos, fragilizando sujeitos que viram evaporarem-se as territorialidades nas

quais haviam ganho poder e sentido” (idem).

A separação dos territórios sempre foi uma busca colocada pelas sociedades de classes.

Nos países periféricos, essa separação é uma estratégia necessária para que seja possível a

“naturalização da violência” a que são submetidas as classes subalternas, assim como também

é uma forma de garantir o usufruto dos bens provenientes da superexploração que caracteriza

essas sociedades. É o resultado de uma economia básica de distribuição dos espaços, que

implica a construção de dois territórios dentro de uma mesma cidade175 (cf. Menegat, 2006:

105).

Esta separação espacial cumpre a função ideológica de legitimar “a contraposição de uma

parte da sociedade”, o que permite afirmar que “elas existem e são acessíveis a todos, desde

175 Menegat (2006: 106) aponta que se poderia dizer que se trata de uma “estratégia de espacialização da dinâmica de classes, que ganha contornos drásticos em situações tais como: tempos de acumulação primitiva; processos de acumulação nas periferias do capitalismo; transições dos regimes de acumulação; ou em épocas de crise estrutural – sendo que todas essas situações guardam características comuns e estão presentes na atualidade”.

201

que possuam as qualidades morais necessárias”, enqunto a outra parte da sociedade “tida

como moralmente fraca” é ineficiente economicamente, o que a “impede de se elevar ao

território ideal” (Menegat, 2006: 106).

O resultado em todos os países, ainda que com diferentes intensidades, características e

ritmos, “é a relocalização ativa dos setores populares em novos territórios situados amiúde nas

margens das cidades e das zonas de produção rural intensiva” (Idem). Em um país de

segregação social como o Brasil, as massas sem trabalho, precarizadas, e até as que formam

parte da classe trabalhadora formal, vivem na periferia, em bairros pobres, onde na maioria

dos casos tanto a posse como a construção da moradia foram fruto (e dependem) de um

esforço de cooperação e solidariedade dos vizinhos: “pensar o território como espaço da luta

contra o capital, porém, é um grande desafio” (Menegat, 2008)176.

A autogestão é uma característica importante desses “novos territórios”, que remonta ao

meio rural, mas que acabou se impondo nas zonas urbanas marginais de massas desocupadas,

que ao serem totalmente marginalizadas do território urbano começaram a ocupar edifícios e

terras que hoje concentram as chamadas periferias. Um aspecto importante destas localizações

urbanas é que elas incorporam formas da vida rural, como a produção de hortas comunitárias

e a prática colectiva na distribuição de alguns recursos que recebem do Estado. Estas são só

algumas delas, que marcam uma interconexão de práticas que foram violentamente divididas

pelo capital em cidade-campo, e que hoje mostram novos diálogos a partir das práticas

cotidianas na organização da vida social. Para Zibechi (2007: 23), a experiência dos

piqueteros na Argentina resulta significativa, posto que é um dos primeiros casos em que um

176 Continuemos com Menegat (2008), que, analisando o processo de revoltas na França em 2005, reforça como é complexo e exige um olhar que consiga incorporar a tradição a estes novos processos para que a mesma possa ser recriada em um nível mais elevado: “As explosões da periferia de Paris do final de 2005 mostraram uma revolta em estado bruto. Os traços de politização eram tênues e parecia mesmo que se tratava mais de uma ação reativa contra a polícia do que algo com intenções precisas, ancorado numa organização forte e num plano de ação consciente das causas do conflito e das formas de superá-o. No entanto, o conjunto de razões que levaram os jovens imigrantes dos banlieues de Paris a se revoltarem são menos assimiláveis pelo sistema do que as reivindicações contra a Lei do Primeiro Emprego de 2006. No âmago desta revolta está o desemprego estrutural e as formas desiguais com que ele atinge as diferentes camadas sociais. Os jovens descendentes de imigrantes, que estudaram nas péssimas escolas da periferia de Paris, por causa da sua etnia (na maioria são oriundos das ex-colônias francesas do norte da África) são antecipadamente excluídos dos postos de trabalho existentes ou mais bem remunerados e, por isso mesmo, continuarão com a sua precária formação profissional”.

202

movimento urbano põe em lugar destacado a produção material.

Uma segunda característica é a “autonomia” em relação ao Estado, como também aos

partidos políticos (idem), que se consolida na medida em que estes movimentos começam a

criar estratégias que lhes permitem a sustentação de seus militantes, como a que mencionamos

no parágrafo anterior: a autogestão.

Em uma declaração do Movimiento de Trabajadores Desocupados Solano, estes observam

que “não se constrói autonomia somente arrancando reivindicações ao governo através da

luta. Um dos elementos fundantes na construção da autonomia poderia ser a autogestão”177.

Em terceiro lugar recuperam e revalorizam a cultura e a identidade destes setores

populares. Este é um elemento significativo para estes grupos, já que na maioria deles os

indígenas constituem um contingente importante, como também a idéia de popular como uma

marca para ser repensada e revalorizada por estes sectores. Não falamos apenas de marcas de

etnias ou gênero, como também da conformação de massas desagregadas, que se atribuem

uma identidade como tais. Menegat (2008) assinala que a questão étnica, marcada pelo

histórico extermínio dos indígenas, a opressão da população negra, se vê aumentada pela

incorporação dos brancos pobres.

A quarta característica comum é a formação de seus militantes. Como consequência dos

processos repressivos vividos na América Latina, em diferentes momentos da historia que vai

desde a colonização até nossos dias, as possibilidades de refletir sobre as práticas dos setores

populares, tanto no campo como na cidade, se viram violentamente interrompidas em

diferentes momentos e foram desvinculadas de uma “práxis” que permitisse aprofundar um

projeto emancipatório. Os movimentos aos quais nos referimos, surgidos nos anos 90,

percebendo a desconexão existente entre a teoria revolucionaria existente e as lutas que

estavam realizando, se puseram o desafio da formação de intelectuais-militantes que

pudessem recuperar essa práxis reconstruindo o passado de conquistas e derrotas dos setores

populares, como também a necessidade de pensar as novas configurações tanto do capitalismo 177 Boletim El Pikete, do Movimiento de Trabajadores Desocupados Solano. ano N 2, N 7, agosto de 2002 apud

Ferrara, 2003:49

203

como da luta anticapitalista. Para isso foi necessário pensar na formação e na produção de

uma teoria revolucionária que acompanhasse estes movimentos.

Menegat (2008) observa que a opressão e superexploração das mulheres não obedece

somente a um corte de classe, como também é transversal a todas elas. As mulheres pobres

têm enfrentado esta situação histórica de uma maneira bem diferente da dos homens. Zibechi

marca este lugar da mulher, de suma importância, como uma quinta característica destes

movimentos. Uma recolocação necessária destes setores foi imposta pelas diversas lutas que

as mulheres enfrentaram no século XX, obtendo conquistas importantes em nível de direitos

civis e sociais. Em qualquer projeto emancipador esta não é uma questão de menor

importância a considerar. As mulheres dos setores populares desempenham um papel nestes

movimentos que as coloca em lugares importantes de direção e formação. Tanto as indígenas

como as camponesas, bem como as piqueteras, adquirem um papel central nas lutas, na

formação e na organização.

Por último, o sexto traço que compartilham é a preocupação por uma outra organização

do trabalho e sua relação com a natureza. Segundo Zibechi, ainda nos casos em que a luta

pela reforma agrária ou pela recuperação das fábricas fechadas aparece em primeiro lugar, os

ativistas sabem que a propriedade dos meios de produção não resolve a maior parte de seus

problemas. Tendem a visualizar a terra, as fábricas e os assentamentos como “espaços nos

quais produzir sem patrões nem capatazes, onde promover relações igualitárias e horizontais

com escassa divisão do trabalho, assentadas portanto em novas relações técnicas de produção

que não gerem alienação nem sejam depredadoras do ambiente” (2007: 24)178.

Outro elemento que Menegat (2008) agrega ao mapa da luta necessária na organização

destes movimentos é o lugar dos jovens, que passaram a constituir um elemento central das

diferentes revoltas nos últimos 20 anos, em todos estes eventos mencionados anteriormente,

assim como na organização dos movimentos. Os jovens, como parte das massas periféricas,

perderam qualquer horizonte que hoje lhes permita pensar alguma possibilidade de

178 Um dado interessante em relação a esta nova forma de organização do trabalho e sua relação com a natureza é a relação histórica que mantém com o sucedido na “Comuna de Paris”, onde se estabeleceu a retomada do trabalho nas oficinas abandonadas por seus patrões, com a intenção de criar uma “Federação de Cooperativas Operárias”.

204

incorporação no mercado de trabalho formal, sem garantias de acesso à educação, a serviços

de saúde, a recreação, em territórios totalmente desagregados, sujos, violentos, sem guardar

nenhum registro mnemônico de relação com a natureza. Torna-se para eles uma necessidade

urgente a transformação dessas condições de vida.

Estes movimentos, alguns deles sobretudo, realizam um esforço para incorporar nestas

novas lutas aqueles processos de revolta históricos na América Latina, somando elementos de

lutas passadas, que permitem por um lado encontrar a conexão histórica existente entre todos

eles, como também realizar uma elaboração crítica dos mesmos que permite superá-los, ir

além.

Assim temos que as barricadas de El Alto179 na Bolívia180, onde na luta pelo gás e pela

água a estratégia foi o corte da rota que dá acesso à capital La Paz, o que provocou forte

impacto na livre circulação, e considerando que neste território vivem em sua maioria as

empregadas domésticas e os trabalhadores do setor de serviços que “baixam” a La Paz, pois

bem, esta medida conseguiu paralisar a cidade por vários dias181. Essas mesmas barricadas,

que em diferentes momentos históricos foram a ferramenta de luta empregada pelo

movimento operário, hoje se recriam e adquirem novas formas para outros processos.

179 Até o ano 2004, do total da população trabalhadora de El Alto, 69% o faz em âmbito informal, de emprego precário e sob relações trabalhistas semiempesariais ou familiares. Pouco mais de 43% dos alteños são trabalhadores, operários ou empregados, o que a converte na cidade com maior percentagem de operários do país, o que explica a presença de uma forte identidade operária entre seus habitantes. De fato, assinala García Linera, “a cidade de El Alto ocupa hoje o papel de concentração territorial e cultura trabalhista que nos anos '40 e '60 do século XX ocupavan os bairros de Villa Vitória, Pura Pura e Mumaepata, onde se localizam os bairros operários. A alta presença de trabalho familiar, microempresarial e informal dos trabalhadores alteños sintetiza os componentes híbridos e fragmentados que caracterizam à nova condição operária e assalariada da sociedade boliviana” (2004: 52-53).

180 Na Bolívia, durante os anos 2000 e 2005 houve pelo menos quatro momentos de insurreição popular: a Guerra da Água (2000), o Fevereiro Negro (2003), a Guerra do Gás (outubro de 2003) e o ciclo mobilizatório de 2004 e 2005, em que se sucederam de maneira turbulenta os governos de Carlos Mesa e Eduardo Rodríguez Votzé, e que culminou com a convocatória a eleições em fins de 2005, em que ganhou Evo Morales. Estes dados foram obtidos em Chávez León, Patricia; Mokrani Chávez, Dumia e Uriona Crespo, Pilar “Una década de movimientos sociales en Bolivia” em OSAL (Buenos Aires: CLACSO) ano XI, N° 28, noviembre, 2010, pp 75.

181 A 5 de Agosto de 1781, depois de vários meses de cerco indígena e do apoio dos mineiros de Ananea que construíram uma represa para inundar o povoado, Sorata caía em mãos dos exércitos indígenas encabeçados por Bartolina Sisa e o jovem Andrés Tupac Amaru. 222 anos depois, desde o 19 de setembro de 2003, outra vez Sorata é ocupada por indígenas insurgentes como um elo mais de um novo ciclo de rebelião indígena que há 3 anos vinha reapropriando-se de territórios aymara, expulsando funcionários estatais e reconstruindo um tipo de poder político comunal baseado nos ayllus e sindicatos (cf. García Linera, 2004: 47).

205

Segundo García Linera (2004: 35), diferentemente do que sucedeu nos anos '30 do século XX,

na Bolívia, quando estes movimentos foram articulados em torno do sindicalismo operário,

portador de um ideário de mestiçagem e resultante da modernização econômica da elites

empresariais, hoje “os movimentos sociais com maior poder de interpelação ao ordenamento

político são a base social índia emergentes das zonas agrárias bloqueadas ou marginalizadas”.

Também, nesta reelaboração das lutas, os movimentos, não só indígenas ou camponeses,

retomam a produção e distribuição coletiva como base para a organização da vida cotidiana.

Movimentos urbanos como piqueteros ou de fábricas recuperadas realizam este processo

organizando hortas comunitárias, refeitórios, copa de leche, onde destinam uma parte do

financiamento que recebem do Estado (Plan Jefe e Jefa de Hogar) à realização destas

atividades que garantem a sobrevivência de um número maior de famílias do que se a mesma

se realizasse apenas com a distribuição individual de cada Plan. Inclusive conseguem garantir

comida e sobrevivência àqueles que não recebem o benefício individual.

Assim como na Bolívia, no Equador entre os anos 2005-2006 as trajetórias da mobilização

estiveram atadas a um cenário em que as pressões e resistências à reforma política

enfrentavam, outra vez, a sociedade civil aos partidos. Apenas pequenos fragmentos

organizativos tendiam a consolidar específicos espaços autônomos de atividade política. As

assembleias se converteram na forma central de organização (característica que também se

deu na revolta de 2001 na Argentina): universidades, estudantes, bairros, redes de

sociabilidade, coletivos etc., ativaram tais espaços de deliberação política. Muitas destas

assembleias não funcionaram mais além de umas quantas semanas. Outras, sobretudo de

caráter barrial, abriram desde então uma sustentada atividade organizativa em que

concorreram velhos e novos militantes próximos a pequenos grupos de esquerda e ao campo

dos movimentos sociais. Sua maior preocupação colocada na agenda estava baseada no

sistema político. Se situava melhor na busca de novas formas de ação colectiva e democracia

direta no marco da afirmação de um sentido autônomo e radical da política. A ocupação de

territórios urbanos específicos abria uma auspiciosa dinâmica de politização do espaço

público em que se problematizavam os problemas locais à luz das tensões nacionais182.182 Podem-se encontrar mais dados sobre a mobilização social no Equador na última década em: Ramírez

Gallegos, Franklin 2010 “Fragmentación, reflujo e desconcierto. Movimientos sociales e cambio político en

206

Poderíamos dizer com Zibechi (2007: 26) que as “novas territorialidades” são a

característica mais importante destes movimentos, já que o que se está vendo é o

desenvolvimento de uma luta pensando no posicionamento geográfico como um lugar

estratégico, lugar onde surgem novas relações sociais de produção e reprodução social,

dotando esse espaço da capacidade de construir uma nova organização social, que

diferentemente das fábricas, sindicatos, retoma uma vida comunitária como lugar onde

construir objetiva e subjetivamente uma luta anticapitalista.

Podemos pensar a luta territorial como uma marca da luta anticapitalista da periferia, já

que as mesmas nascem para o capital como apropriação das terras para obtenção das matérias

primas em sua “acumulação primitiva”, a qual leva a marca da desapropriação de seus

habitantes originais na base da violência. Desde esse momento se criou uma ruptura nos

territórios entre os colonizados e os colonizadores, entre produtor e explorado, dissociações

próprias da quebra que significou a chegada do capital e a constituição de suas periferias.

Desta maneira, a luta pelo território surge a partir deste momento como uma luta contra o

capital, contra a exploração depredadora tanto dos homens como da natureza. Por esta razão a

luta pelo território, nesta direção, é anticapitalista, re-colocada em diferentes períodos

históricos na maioria das vezes pelos indígenas, mas que consegue universalizar-se às massas

marginalizadas devido a que cada vez mais são aqueles que ficam fora de territórios

necessários para a reprodução da vida social, tanto na cidade como no campo.

A diferença está em que a recuperação destes territórios já está pensada como uma outra

forma de habitá-los, tanto em sua reprodução das relações sociais, como sua relação com a

natureza e as possibilidades de autossustentabilidade.

Em seu libro “Dispersar o poder: os movimentos como poderes antiestatais”, Zibechi

(2006) consegue realizar uma análise do sucedido nos últimos anos com as revoltas na

Bolívia, destacando que a estrutura e a consistência destas revoltas são suas formas

comunitárias de organização, através de assembleias por zonas, responsáveis pela

Ecuador” (2000-2010)” em OSAL (Buenos Aires: CLACSO) ano XI, N° 28, noviembre, 2010.

207

organização nas ações de luta, com lideranças rotativas e descentralizadas, e com uma

multiplicação das ações de resistência que permite neutralizar a ação repressiva do Estado,

por um lado, e gera necessariamente uma mudança permanente na direção das mesmas, por

outro 183.

Gutiérrez Aguilar afirma que as práticas comunitárias têm ido tendencialmente ajustando-

se a âmbitos locais, pois as sucessivas divisões territoriais, primeiro coloniais e depois

republicanas, se impuseram ao anterior formato de ocupação do espaço baseado na

descontinuidade territorial, que permitia às diversas comunidades e ayllus ocupar diversos

solos ecológicos e ter acesso a uma grande variedade de produtos agrícolas e pecuários. A

debilidade da vida comunitária contemporânea é remediada em parte mediante a estrutura

sindical que unifica e abarca a todos; ainda que isto represente ao mesmo tempo um reforço

da própria debilidade, já que na estrutura sindical o comunitário convive, e muitas vezes se

subordina, a outros princípios e lógicas operativas (cf. Gutiérrez Aguilar, 2008: 116, nota

113).

Gutiérrez Aguilar (2008: 345) propõe pensar a perspectiva “comunitária-popular” em

contraposição à idéia de “nacional-popular” desenvolvida até inícios dos anos '80. A proposta

desta última era dar especial atenção à forma e ao vínculo entre o Estado e a sociedade. Em

contraste com esta idéia, considera-se que o mais importante da proposta comunitária-popular

é a reformulação da relação entre o governo e a sociedade, reconfigurando e renegociando os

âmbitos de autonomia e a desconcentração do poder como estratégia fundamental para

reorganizar a relação estatal, entendida como pacto de convivência. Ao mesmo tempo é

importante não manter ilusões que desconheçam o papel que o Estado cumpre enquanto

“gerenciador da barbárie” (Menegat, 2008b) destes amplos territórios.

Na Bolívia, entre 2000 e 2005, o conjunto de lutas anticapitalistas e antiestatais não

propôs de forma sintética, desde as profundezas da mobilização, nenhum sistema substituto à

ordem de exploração e domínio político do capital, para além da intermitente formulação de

183 O livro deste autor está focado em uma análise destas rebeliões na Bolívia, como marco para pensar os movimentos sociais como poderes antiestatais. Raquel Gutierrez Aguilar aprofunda esta análise em “Los ritmos del pachakuti”, mostrando de maneira exaustiva os mecanismo de organização, tomada de decisões, formas de enfrentamento ao Estado, entre outros elementos, na Bolívia de 2000-2005.

208

bandeiras dificilmente explicáveis ao conjunto da população. Vale a pena continuar a reflexão

sobre a transformação do mundo, assumindo a premissa de que o conteúdo anticapitalista e

antiestatal das lutas no logrará universalizar-se na medida em que não consiga aprofundar e

dar visibilidade às lutas locais que emergem o tempo todo (cf. Gutiérrez Aguilar, 2008: 358).

Estamos transitando em direção a novas relações entre sujeitos e territórios, marcando

mudanças profundas nos setores populares que agora já não são mais nem operários, nem

dirigentes sindicais, nem militantes de partidos de esquerda, constituindo-se agora de sujeitos

heterogêneos deslocados rumo às periferias urbanas e com a necessidade de construir nestes

territórios lugares onde se reproduzir e sobreviver. A partir da perda dos “territórios sociais” –

onde se articulava a luta e ela ganhava sentido (fábrica, sindicato, partido) –, que foi

provocada por uma forte desindustrialização, foi necessária a apropriação geográfica dos

territórios, com migrações em massa dentro e fora dos limites nacionais, sobretudo no espaço

urbano, ao mesmo tempo que se viveu o fenômeno da reterritorialização como parte da

estratégia de intervenção coercitiva que o Estado implementou sobre as massas sobrantes

desse processo, marcado pelo desemprego em massa, dando origem a uma disposição do

espaço urbano diferenciado das décadas anteriores, onde os limites entre o rural e o urbano

começam a ser cada vez mas difusos. Como mostra Harvey, com a fuga de capital e o

processo de desindustrialização se abre uma nova configuração da relação sujeitos-territórios.

Nestas fugas, a marca que o capital deixa é de devastação porque “o capital, por natureza, cria

ambientes físicos a sua imagem e semelhança unicamente para destruí-los mais adiante,

quando busca expansões geográficas e deslocalizações temporais, em um intento de

solucionar as crises de superacumulação que o afetam ciclicamente” (Harvey apud Zibechi,

2007: 74). Essa devastação se resume, na América Latina, em desocupação e pobreza

extrema, na expulsão de milhões de trabalhadores da cidade consolidada para os arrabaldes

inóspitos, fétidos e inundáveis184.

184 Para nomear apenas alguns exemplos, no Cone Sul temos a expulsão manu militari de 200 mil pobres da cidade de Buenos Aires em direção à periferia, em 1977, pela ditadura militar; a expulsão de 24 mil mineiros e suas famílias, em 1985, na Bolívia, uma parte dos quais fixou-se na cidade de El Alto e outra parte, em seguida a um extenso périplo, terminou estabelecendo-se no Chapare para trabalhar como cultivadores de folha de coca; e a expulsão ao largo de duas décadas de 17 por cento da população de Montevideo, desde seus antigos bairros operários e de classes médias rumo à periferia, onde 280 mil desocupados e sub-ocupados vivem agora em assentamentos irregulares (cf. Zibechi, 2007: 74).

209

Passou-se de uma cidade integrada a uma cidade segregada. Esta fratura espacial foi a

mostra de muito mais que isso: é a mostra de uma fratura social, tal como nas origens o

assinala Caio Prado, um nascimento por desagregação, que se recoloca sempre ante a crise

aguda e uma segregação em massa que já no consegue mais ser incorporada. É uma marca da

colônia que se estende até nossos dias, razão pela qual a luta territorial neste sentido se

converte em luta anticapitalista, porque significa a possibilidade de construir uma forma

social de “nexo” que seria a identidade entre produtores e consumidores185,que poderia

ser definida pela articulação de relações sociais e com a natureza não destrutivas, e não pela

desagregação como se têm apresentado até o momento.

Os assentamentos urbanos que mantêm ainda suas relações formais precarizadas com a

trama urbana da cidade consolidada (escolas, hospitais, transporte público), adquire traços

próprios ante a necessidade de sobrevivência de seus membros em um espaço onde eles se

converteram em “sujeitos monetários sem dinheiro”, esquecidos em um espaço territorial

degradado e violentamente vigiado, precisando construir relações sociais que permitam desde

a autoconstrução do habitat até a construção de espaços públicos, centros de saúde, escolas. A

construção deste espaço territorial urbano adquire particularidades que não haviam sido

desenvolvidas até o momento pelos movimentos sociais.

Kurz aponta que a maioria da população mundial hoje são “sujeitos monetários sem

dinheiro”, pessoas que não se encaixam em nenhuma forma social, nem na pré-capitalista nem

na capitalista, e muito menos na pós-capitalista, que foram forçados a viver em um

“leprosário social” que já compreende a maior parte do planeta. No momento atual as massas

sobrantes que fazem parte destes “sujeitos-dinheiro sem dinheiro” mostram que se chegou ao

limite do suportável, mas ao mesmo tempo sempre que haja um vencedor no mercado

mundial sobrevive a ilusão de que a humanidade possa continuar reproduzindo-se no sistema

capitalista e alcançar novos continentes. As elites do Terceiro Mundo, que já se encontram

encerradas em casas blindadas em territórios particulares dentro das cidades, já não se

atrevem a pisar grandes regiões de seus próprios países, e sendo o medo o motor de suas

185 Kurz assinala que “a cisão econômica (até dos próprios indivíduos) em interesse do produtor e interesse do consumidor é uma característica básica do sistema produtor de mercadorias e de seu corolário, a propriedade privada dos meios de produção; a identidade institucional, social e comunicativa dos produtores e consumidores é, assim, condição sine qua non para uma superação da forma do valor” (Kurz, 1997b).

210

vidas, que controla suas relações sociais, “se negam a considerar seres humanos a seus

chamados concidadãos” (cf. Kurz, 1993: 195; TN).

Como consequência do processo de “acumulação primitiva” (que descrevemos no início

deste capítulo) surgem estes movimentos, estas lutas, estas expressões de resistência. Estes

“sujeitos-dinheiro sem dinheiro” se converteram nos últimos 20 anos nos portavozes de uma

situação social insustentável, na expressão mais crua de uma “acumulação primitiva” cada vez

mais violenta e depredadora, tanto dos seres humanos como da natureza186.

O “colapso da modernização” como é exposto por Kurz, tanto para os perdedores do sul

como da URSS, significa que a modernização historicamente possível para estes países já foi

realizada dentro do contexto do sistema mundial produtor de mercadorias, que chegou a seu

fim e junto com este a subjetividade burguesa do dinheiro, porque o mesmo já não consegue

integrar em sua lógica a maior parte da população mundial, que hoje se agrupa nas regiões

periféricas da cidade e do campo. As periferias do capital, que hoje também estão localizadas

nos países centrais (não só no Terceiro Mundo), marcam o rumo desse colapso, o caminho

pelo qual vai continuar seu curso este sistema. São essas massas as que hoje formam parte das

lutas e rebeliões marcadas em diversos territórios da periferia, sendo a expressão mais viva da

degradação e da miséria.

Em resposta à expressão violenta destes setores periféricos, a estratégia na maioria dos

países da América Latina tem sido a implementação de “planos sociais”, que permitem

gerenciar de maneira violenta e com disciplinamento focos de rebelião social em diferentes

territórios suburbanos, promovendo uma guerra civil que “garante” a matança de grandes

massas. A militarização da sociedade para recuperar o controle das periferias urbanas não é

suficiente, como o revela a experiência militar recente no Terceiro Mundo. Para Agamben, o

totalitarismo pode ser definido como “a instauração, através do Estado de exceção, de uma

186 Holloway (2002:242), em uma crítica à visão positiva do sujeito dentro do sistema capitalista e contrapondo a ele a negação como constitutiva do mesmo diz que “tratar o sujeito como algo positivo resulta atraente mas inevitavelmente é uma ficção. Em um mundo que nos desumaniza, só podemos existir como seres humanos de maneira negativa, lutando contra nossa desumanização. Compreender o sujeito como positivamente autônomo (em lugar de potencialmente autônomo) é muito parecido a ser uma prisioneira ou um prisioneiro em uma cela que imagina que já é livre: uma idéia atraente e estimulante, mas uma ficção, uma ficção que facilmente conduz a outras ficções, à construção de todo um mundo de ficção”.

211

guerra civil legal, que permite a eliminação física não apenas dos adversários políticos mas de

categorias inteiras de cidadãos que por qualquer razão resultam não integráveis no sistema

político” (Agamben apud Zibechi, 2007: 183). Essas categorias são, principalmente, os

habitantes dos bairros populares, aqueles setores que ficaram desconectados da economia

formal, de modo permanente e estrutural (Zibechi, 2007: 183). Wallerstein assinala que nos

subúrbios confluem algumas das mais importantes fraturas que atravessam o capitalismo: de

raça, classe, etnia e gênero. São os territórios da despossessão quase absoluta (cf. Wallerstein

apud Zibechi, 2007: 185).

Menegat (2008) analisa que a “novidade” do governo do “Partido dos Trabalhadores” no

Brasil é a “gestão da crise social”. Isto se traduz na criação de diversas técnicas que lhe

permitem o que alguns intelectuais chamaram de “governabilidade social”, pudendo

“minimizar a inércia da barbárie”. Estes programas de “gestão da barbárie” ganharam

efetivamente “uma forma compatível com as possibilidades de sua execução no quadro de

regressão da sociedade brasileira”. Esta “nova forma” que lhe empresta originalidade e

diferencia o PT dos outros partidos de direita tem a intenção de “congelar” a barbárie, usando

como “antídoto um pouco mais do que a produz, misturado com boas intenções 'sociais'”187.

O desafio que se apresenta diante deste “colapso” está na possibilidade de que nestes

territórios se possam criar “práticas sociais alternativas à forma mercadoria”. Um de seus

principais eixos, como já vimos, é o território, mas há outro que tem a mesma importância: é

o da autonomia, que permite repensar novas formas de relações sociais que não sejam

mediadas pelo Estado. As mesmas esbarram no limite de serem mediadas pelo sistema

produtor de mercadorias, encontrando nos espaços comunitários uma possibilidade de crítica

e reapropriação de outras formas de relações sociais que permitam a sobrevivência imediata.

Ao mesmo tempo, os limites estão postos na dificuldade de sua generalização, tanto no

187 Estas técnicas, segundo Menegat (2008), já foram exportadas para 37 países (cf. “Social 'made in Brazil' já está em 37 países”, Jornal O Gobo, 8 de maio de 2005, p. 38; “Brasil já exporta sua tecnologia da miséria urbana”, Jornal Folha de São Paulo, 21 de maio de 2006, B16 apud Menegat, 2008), constando na lista: “Pastoral da Criança, Comitê para Democratização de Informática (CDI), Bolsa Escola, Bolsa Família, AfroReggae, Fome Zero, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), Projeto de Crédito Fundiário, Programa de Combate à Pobreza Rural e Cooperativas de Reciclagem de lixo (que no Brasil ocupam 500 mil catadores e movimentam R$ 7 bilhões).

212

campo como na cidade, o isolamento das mesmas sem encontrar um fio de unidade que lhes

permita elaborar uma proposta basicamente antiestatal e sobretudo resistir à cooptação

constante que sofrem por parte do mesmo, como simultaneamente conseguir dar a essa

“forma política embrionária” um peso maior que permita a construção de poderes populares

localizados onde a potencialidade esteja colocada em seu anticapitalismo e no rechaço à

forma social burguesa.

Para Menegat (2008), o que estas experiências mantêm em comum é a politização dos

diferentes movimentos sociais, diferenciando-se (como marcava Zibechi anteriormente) tanto

da política partidária dominante, como da esquerda tradicional incorporados à ordem vigente.

A possibilidade de unidade destes movimentos passa a ser uma questão cada vez mais

urgente. Diante este quadro, a forma organizativa que este processo adquire não está baseada

em uma crítica estéril dos processos anteriores, ou no desconhecimento de suas conquistas:

pelo contrário, trata-se de mostrar como essas formas de organização tradicionais apresentam

uma séria dificuldade no momento de enfrentar de uma maneira radical o capitalismo

contemporâneo. As contribuições dos períodos anteriores devem ser colocadas frente aos

desafios objetivos atuais: “a crítica aos partidos, hoje generalizada por toda a sociedade, é

parte de uma crítica às formas autocráticas do Estado burguês e sua crise de legitimação […]

Os partidos de esquerda no ocidente, tais como os conhecemos ao longo da história, tiveram

uma grande dificuldade em realizar uma socialização da política que fosse além dos limites do

Estado como instância inexorável de dominação de classe”.

Estas novas experiências abriram o caminho para que o amplo campo da esquerda possa,

no marco das transformações vividas nos últimos 40 anos, debater e polemizar sobre a ação

política e as formas organizativas necessárias para construir uma proposta anticapitalista

radical, que permita negar a forma social que hoje vive como única e inexorável.

Grespan (2004: 185) marca que o desafio que enfrentam estas experiências é não perder

como centro da crítica o capital, o valor, que não podem ser reduzidos a uma “simples luta

entre seus agentes sociais, para a qual e na qual as condições objetivas são irrelevantes ou

secundárias”. O desconsiderar “radicalmente” a economia pode levar à perda do horizonte da

213

“crítica à economia política” como necessário e fundamental para “transformar o mundo”188.

Holloway (2006: 31), em resposta aos limites que teriam estas experiências em relação ao

assinalado por Grespan (e outros autores que polemizaram com o mencionado texto de

Holloway), observa que, por exemplo, a criação de cooperativas, bem como a transformação

de fábricas ocupadas em cooperativas, foi durante muito tempo um aspecto da luta da classe

operária: “as limitações das mesmas são claras: enquanto produzem para o mercado, estão

sujeitas a produzir sob as mesmas condições de qualquer empresa capitalista”. Portanto o

problema não radicaria na propriedade da empresa, mas na “forma de articulação entre os

diferentes fazeres”. As cooperativas, neste sentido, não esgotam a questão, e o problema da

“autodeterminação” não pode ser visto simplesmente como “atividades particulares”, mas,

necessariamente, deverá abarcar a “articulação entre essas atividades”.

A Argentina é o último exemplo que se tem neste caso de “fábricas recuperadas” e

“cooperativas”, e onde a questão voltou a se colocar como em um primeiro momento, sendo o

problema como se orienta esse movimento: “em direção ao Estado (demandando a

nacionalização da empresa, por exemplo), ou rumo ao estabelecimento de uma rede de laços

entre produtores (e consumidores) independente do Estado” (Holloway, 2006: 32).

Segundo Menegat (2006: 44), o espírito de nossa época está marcado pela presença

efetiva de uma “tendência ao aprofundamento da barbárie”. Evitar sua inexorabilidade é o

desafio de um projeto emancipatório, que implica em “revitalizar elementos da tradição e a

construção de novas bases de representação da comunidade dos indivíduos livremente

associados”. Evitar o desmoronamento social que está posto na ordem do dia significa,

necessariamente, pensar na construção de formas de organização social que nos permitam

deter este processo de regressão social colocado pelo capital, e impulsionar a

autoemancipação.

188 Esta frase faz referência ao livro de Holloway “Cambiar el mundo, sin tomar el poder”. Herramienta. Buenos Aires. 2002.

214

CONCLUSÃO: SONHOS (DES) COMUNAIS EM TEMPOS DE CRISE

Em uma carta de novembro de 2002, Michael Lõwy, afirma a Jonh Hollway que diante da

pergunta “como podem as pessoas tão envoltas do fetichismo liberar-se do sistema?”, a

resposta segue sendo a formulada por Marx pela primeira vez nas “Teses sobre Feuerbach”:

“através de sua própria práxis emancipatória ”189.

Depois da queda do muro de Berlin e do desmoronamento da URSS, o marxismo deixa de

ser usado como fundamento ideológico do Estado por “regimes burocráticos-parasitários”, e

abre a oportunidade histórica para “redescobrir a mensagem marxiana originária e tentar

desenvolvê-lo de modo criador” (LõWY, 2002, p. 17).

A unidade buscada neste trabalho entre Caio Prado e Mariátegui permite neste contexto ter

como horizonte: por um lado, uma análise profunda sobre a dissolução desta forma social, e

como nesta dissolução está contida velhas formas de desagregação que se re-atualizam com

novos processos de violência, onde a maior parte da população é descartada; e por outro lado,

a necessidade de nexos entre aquelas experiências que hoje nos permitam pensar saltos para

fora de uma sociedade em colapso.

Mariátegui diante de um contexto de regressão social, marcado pela Primeira Guerra

Mundial, se propõem pensar uma práxis que estaria embasada na reconstrução de uma

tradição onde se resgata a prática coletiva na produção e reprodução da vida social,

recuperando o “nexo entre produtores e consumidores” (KURTZ, 1992), e a existência de um

“mito” que permitisse tornar visível o que não está visível” (AUGUSTO, 1989, p. 17), isto

era, naquele momento, a atualidade das diferentes lutas das massas populares onde

encontravam a possibilidade da auto-emancipação.

O terceiro capítulo desse trabalho pretendeu marcar quais são os caminhos que se

apresentam hoje para uma práxis emancipatória, que consiga enfrentar o processo de

189 Esta carta pode ser encontrada no livro “Contra y más allá del Capital” de Holloway, John. Herramienta. Buenos Aires. 2006. págs. 107-117

215

desagregação social em curso, não de uma maneira ilusória e sim baseada em experiências

concretas de luta que hoje estão ocorrendo na América Latina, e em outros países fora da

região. Experiências de luta dos desempregados (piqueteiros) na Argentina, “Movimento Sem

Terra” no Brasil, povos originários na Bolívia, Peru, Equador, México, Chile, são um marco

para pensar estas novas dinâmicas de lutas, que não podem ser enquadradas em velhas

categorias teóricas, que são produto de outras configurações, as quais o marxismo deverá

enfrentar sem teleologias históricas, pensando muito mais em colapso do que em vitória.

A intenção é poder reabrir um diálogo entre essa realidade e o marxismo, o qual

significará para o marxismo um processo de re-atualização, criação e liberação de velhos

pressupostos, para construir uma teoria que permita dar lugar a elaboração de um projeto

emancipatório baseada nessa práxis.

O contexto para essa teoria é sombrio, onde a violência se naturalizou como parte da vida

cotidiana, precisará de um trabalho profundo para mostrar a intensidade e consequências que

ela contém para além da aparência como se apresenta. Para isso será necessário começar por

recuperar lutas concretas com suas potencialidades, e rejeitar esperanças ilusórias que

acabarão estabilizando (como já ocorreu no passado) a ordem burguesa decadente, subtraindo

do horizonte qualquer proposta de poder popular emancipatório que supere a simples

promessa teleológica da história.

Tal como mostram os intelectuais que se esforçaram em entender este panorama de crise

estrutural consolidada, nossa práxis não deverá apontar para novas ilusões

desenvolvimentistas e governos progressistas, com promessas de progresso e estabilização

social; mas deverá assentar-se no primeiro caminho indicado pela originalidade da leitura de

Mariátegui e Caio Prado.

É neste ponto que eles são clássicos, por mostrar a necessidade de compreender os

processos sociais em sua originalidade, e não como dedução de outros processos históricos.

Nesta chave radicou sua genialidade, permitindo pensar o significado da regressão do

progresso como afirmação da acumulação primitiva permanente, mostrando como, em sua

216

expansão colonial não deixou de ser, tomando as palavras de Benjamin “um documento de

barbárie190.

Mostrado este processo de crise estrutural, o caminho apontado por suas interpretações

adquire maior validade e profundidade. Para o marxismo o desafio que se coloca é ainda

maior que em períodos passados, porque não só acumulou o processo regressivo das décadas

anteriores, além do que se soma a este um recrudescimento da criminalização e violência

sobre os setores populares. Assim as periferias (que já não são exclusividade do terceiro

mundo) se constituem em campos de extermínio, onde se aplicam as mais sofisticadas

ferramentas de massacre. Nesta linha, a natureza se encontra da mesma maneira ameaçada em

suas formas de vida e existência.

Diante dessa possibilidade, já colocada e aprofundada pela forma social capitalista, um

marxismo, que ainda não consegue conectar sua interpretação da realidade com as lutas que se

sucedem diariamente, está impossibilitado de pensar alguma estratégia revolucionária que lhe

permita dar um salto para fora dessa formação.

A proposta é voltar o olhar para as experiências coletivas que remontam desde a comuna

Inca, passando pelas presentes no século XIX, bem como nos séculos XX e XXI. Estas

últimas localizadas, desarticuladas, debilitadas pelo Estado de Exceção, se encontram

afogadas a cada passo, e ao mesmo tempo tentam sobreviver, criando novas formas de

organização e reprodução que lhes permite conquistar um bem primário: a vida. Estas

experiências começaram a perceber em princípios dos anos 90 que o salto para fora ia estar

dado pela possibilidade de pensar-se num marco de outras relações sociais, de produção, com

a natureza, resgatando elementos do passado, que necessariamente foram re-atualizadas num

marco de crise. Estas práticas se converteram em uma novidade organizativa sem precedentes.

O desafio para o marxismo segue sendo poder entendê-las e potencializar seu processo de

luta. Estas práticas precisam de um marxismo revitalizado, que possa entender o processo de

decomposição do sistema capitalista, e descobrir aquelas experiências coletivas que apesar de 190 Na tese VII de seu livro “Teses sobre o conceito de história”, Benjamin diz: “Nunca há um documento da

cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie”. (Benjamin apud Löwy, 2005: 70)

217

surgir neste contexto de desagregação guardam grande impulso para dar um salto para fora do

mesmo.

Para isso, a contribuição do marxismo, como teoria de uma práxis emancipatória, segue

sendo poder aprofundar aquelas leituras sobre uma crítica radical as teorias ilusórias

desenvolvimentistas, que não geram mais que mundos de “acesso” (ARANTES, 2007) onde

os “sujeitos monetários sem dinheiro” acabam sendo seu produto mais expressivo. Entender

este processo, a organização desses sujeitos na construção de outra forma social segue sendo o

caminho interpretativo que o marxismo deve enfrentar, e sobre o qual ainda carece de

categorias referenciais para entendê-lo.

A volta à práxis e a busca no imaginário social de um “mito”, que permita negar a forma

social burguesa, e construir outras formas de organização, que não são, nem foram no

passado, uma necessidade do mundo das ideias, senão que território real de lutas sobre o qual

se estruturam.

Nesta perspectiva, a presença de “mitos” no imaginário social se traduz – gerando uma

forte tensão no campo do real – na ampliação dos “campos do possível”, transformando as

“pedras duras em uma matéria a ser esculpida em obras em comum”. Desta forma os “mitos”

podem ser entendidos como uma força social que, quando elaborados no imaginário coletivo,

participam ativamente em suas decisões191.

Experiências coletivas que ainda nos permitam pensarmos “por fora” da ordem do capital,

realizando uma crítica radical ao mesmo, delineando novas expressões não só em suas formas

de organização, mas também em suas formas culturais, artísticas, produtivas.

Assim como grande parte da população deste mundo passa seus dias buscando alimentos

em meio de campos de lixo, teremos que, com a mesma dedicação e desespero, buscar em

meio deste colapso aquelas experiências, que hoje possibilitem um diálogo com aqueles

pressupostos da teoria marxista que seguem apontando para entender as (im) possibilidades

deste mundo. Será possível?191 É neste caminho que Menegat (2006, p. 314) trabalha com a idéia de utopias em seu ensaio “Utopias do ócio

para depois do fim do mundo, agora”. In “O olho da barbárie”. Expressão Popular. São Paulo. 2006.

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