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Cortar o no cortar: debates sobre la circuncisión masculina como método de prevención del VIH

Date post: 26-Mar-2023
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ISSN 0103-1104 Rio de Janeiro v. 35 n. 91 out./dez. 2011 Construir o SUS como verdadeira Política Pública
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ISSN 0103-1104

Rio de Janeiro • v. 35 • n. 91 • out./dez. 2011

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011

CEBE

S

www.cebes.org.br | www.saudeemdebate.org.br

Construir o SUS como verdadeira

Política Pública

Produção gráfica e editorialGraphic and editorial production

Zeppelini Editorial www.zeppelini.com.br

Impressão e AcabamentoPrint and Finish

Corbã Editora Artes Gráficas

TiragemNumber of Copies

2.000 exemplares/copies

Revista foi impressa no Rio de Janeiro em dezembro de 2011

Capa em papel cartão supremo 250 g/m²

Miolo em papel kromma silk 90 g/m²

This publication was printed in Rio de Janeiro in september, 2011

Cover in premium card 250 g/m²

Core in kromma silk 90 g/m²

Saúde em Debate, Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES – v.1 (out./nov./dez.1976) – São Paulo: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES, 2011.

v. 35; n. 91; 27,5 cm Trimestral ISSN 0103-1104

1. Saúde Pública, Periódico. I. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES

CDD 362.1

CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE (CEBES)

DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2011-2013)NATIONAL BOARD OF DIRECTORS (YEARS 2011-2013)

Presidente: Ana Maria CostaVice-Presidente: Alcides Silva de MirandaDiretora Administrativa: Aparecida Isabel BressanEditor de Política Editorial: Paulo Duarte de Carvalho AmaranteDiretores Executivos: Eymard Mourão Vasconcelos Luis Bernardo Delgado Bieber Lizaldo Andrade Maia Maria Lucia Frizzon Rizzotto Pedro Silveira CarneiroDiretores Ad-hoc: Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato Paulo Navarro

CONSELHO FISCAL • FISCAL COUNCIL

Armando RaggioFernando Henrique de Albuquerque MaiaJúlio Strubing Muller Neto

CONSELHO CONSULTIVO • ADVISORY COUNCIL

Ary Carvalho de MirandaCornelis Van StralenEleonor Minho ConillEli Iola Gurgel AndradeFelipe Assan RemondiGustavo Machado FelintoJairnilson Silva PaimLigia BahiaLuiz Antônio Silva NevesMaria Fátima de SouzaMario Cesar SchefferNelson Rodrigues dos SantosRosana Tereza Onocko CamposSilvio Fernandes da Silva

SECRETARIA • SECRETARIES

Secretária Geral: Gabriela Rangel de MouraPesquisadora: Suelen Carlos de Oliveira

SAÚDE EM DEBATE

A revista Saúde em Debate é uma publicação trimestral editada pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

EDITOR CIENTÍFICO • CIENTIFIC EDITOR

Paulo Duarte de Carvalho Amarante (RJ)

CONSELHO EDITORIAL • PUBLISHING COUNCIL

Alicia Stolkiner – UBA (Argentina)Angel Martinez Hernaez – Universidad Rovira i Virgili (Espanha)Carlos Botazzo – USP (SP/Brasil)Catalina Eibenschutz – UAM-X (México)Cornelis Johannes Van Stralen – UFMG (MG/Brasil)Diana Mauri – Universidade de Milão (Itália)Eduardo Maia Freese de Carvalho – CPqAM/FIOCRUZ (PE/Brasil)Giovanni Berlinguer – Università La Sapienza (Itália)Hugo Spinelli – UNLA (Argentina)José Carlos Braga – UNICAMP (SP/Brasil)José da Rocha Carvalheiro – FIOCRUZ (RJ/ Brasil)Luiz Augusto Facchini – UFPel (RS/Brasil)Luiz Odorico Monteiro de Andrade – UFC (CE/Brasil)Maria Salete Bessa Jorge – UECE (CE/Brasil)Paulo Marchiori Buss – FIOCRUZ (RJ/Brasil)Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira – UFPA (PA/Brasil)Rubens de Camargo Ferreira Adorno – USP (SP/Brasil)Sonia Maria Fleury Teixeira – FGV (RJ/Brasil)Sulamis Dain – UERJ (RJ/Brasil)

EDITORA EXECUTIVA • EXECUTIVE EDITOR

Marília Fernanda de Souza Correia

SECRETARIA EDITORIAL • EDITORIAL SECRETARY

Frederico Tomás Azevedo

INDEXAÇÃO • INDEXATION

Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde – LILACSHistória da Saúde Pública na América Latina e Caribe – HISASistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas deAmérica Latina, el Caribe, España y Portugal – LATINDEXSumários de Revistas Brasileiras - SUMÁRIOS

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA

Avenida Brasil, 4036 – sala 802 – Manguinhos21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – BrasilTel.: (21) 3882-9140 | 3882-9141Fax.: (21) 2260-3782Site: www.cebes.org.br • www.saudeemdebate.org.brE-mail: [email protected][email protected]

A Revista Saúde em Debate éassociada à Associação Brasileirade Editores Científicos

Apoio

Rio de Janeiro • v. 35 • n. 91 • out./dez. 2011

ÓRGÃO OFICIAL DO CEBES

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

ISSN 0103-1104

502 EdItorIal • Editorial

506 aPrESENtaÇÃo • PrESENtatioN

artIgo orIgINal • origiNal articlE

Pesquisa

508 As proposições das Conferências de Saúde e os Planos Municipais de Saúde: um estudo em municípios de Santa Catarinathe propositions of Health conferences and the Municipal Health Plans: a study in municipalities of Santa catarinatânia regina Krüger, ana Paula lemke, daiana Nardino, Solange Janete Finger, Jaqueline rosa Meggiato, Marta de lourdes de almeida Nunes, dalila Maria Pedrini

Pesquisa

522 Financiamento do sistema de saúde na Região Metropolitana do Rio de Janeiro: um estudo do município de NilópolisFinancing of the health system in the Metropolitan region of rio de Janeiro: a study of city of Nilópolisdaniela Savi geremia, Fátima teresinha Scarparo Cunha

Pesquisa

532 Avaliação do incentivo estadual para a Estratégia Saúde da Família em um município do Pantanal mato-grossenseEvaluation of the incentive for the Family Health Program in a municipality of the Pantanal, in Mato grosso, Brazilgilce Maynard Buogo gattas, Marly Marques da Cruz, João Henrique gurtler Scatena

Pesquisa

545 O processo de trabalho na Estratégia Saúde da Família e a humanização: dilemas e desafiosthe work process in the Family Health Strategy and the humanization: dilemmas and challengesrosana lúcia alves de Vilar, José Willington germano, raimunda de Medeiros germano

Pesquisa

553 O ‘ser’ agente comunitário de saúde na equipe de Saúde da Famíliathe ‘be’ community health agent in Family Health teamNeuza Cristina gomes da Costa, Maria angélica dos Santos Spineli

revisão

563 Os desafios da prática do enfermeiro inserido no Programa Saúde da Famíliathe practical challenges of the nurse inserted into the Family Health Programroberta Viegas Magalhães, lúcio José Vieira

Pesquisa

570 Refletindo sobre o processo de trabalho da enfermagem na Estratégia Saúde da Famíliareflecting on the process of work of nursing in Family Health Strategytayssa Suelen Cordeiro Paulino, Ildone Forte de Morais, Cecília Nogueira Valença, raimunda Medeiros germano

relato de experiência

577 Contribuições do PET para a formação de profissionais de saúde: a experiência do PET-SAÚDE/VSPEt’s contributions to the formation of health professionals: the experience of PEt-HEaltH/VS raiane Moreira dos Santos, Nadirlene Pereira gomes, Maíse Figueiredo Maia, aline araújo Sampaio, ricardo Vinicius Pinto de Carvalho, dulceli Botelho Nascimento andrade

revisão

587 Um breve histórico do movimento pela reforma psiquiátrica no Brasil contextualizando o conceito de desinstitucionalizaçãoa brief history of the movement for psichiatric reform in Brazil contextualizing the concept of deinstitutionalizationWalter Ferreira de oliveira, Cristina dos Santos Padilha, Cristiane Molina de oliveira

Pesquisa

597 Saúde atrás das grades: o Plano Nacional de Saúde no sistema penitenciário nos estados de Minas Gerais e PiauíHealth behind bars: the National Health Plan in the prison system in the states of Minas gerais and PiauíVinícius alexandre da Silva oliveira, Simone de Jesus guimarães

Pesquisa

607 Observações empíricas e experiências subjetivas na escolha de referenciais teóricos em pesquisa etnográfica no campo da saúde indígenaEmpirical observations and subjective experiences in the selection process of the theoretical approach in an ethnographic research in the indigenous health contextMaximiliano loiola Ponte de Souza

revisão

615 Cortar o no cortar: debates sobre la circuncisión masculina como método de prevención del VIHto cut or no to cut: debates on male circumcision as an HiV prevention methodrodrigo Parrini roses, azucena ojeda Sánchez, Héctor Carrillo, ana amuchástegui Herrera

Pesquisa

624 Avaliação da assistência obstétrica no Estado da Paraíba à luz das normas sanitáriasEvaluation of the obstetric care in Paraiba in the light of sanitary rulesViviane rolim de Holanda, danilo Wanderley Matos de abreu, Eliane rolim de Holanda, rômulo Wanderley de lima Cabral

relato de experiência

634 A importância do correto preenchimento das fichas de atendimento: relato de auditoria odontológica pelo Ministério Públicothe importance of proper completion of care records: dental audit by Public attorneysMário Marques Fernandes, rafael Bender Carpena de Menezes de oliveira, Mara rosângeles de oliveira, talita lima de Castro, daniel Pereira Parreiras de Bragança, Eduardo daruge Júnior, Mirna Koda

rESENHa • critical rEViEw

641 Entre o hospício e a cidadeMirna Koda

doCuMENtoS • docuMENtS

644 35 anos de luta pela reforma sanitáriaPreservando o interesse público na saúde

650 CARTA DA 14ª CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE À SOCIEDADE BRASILEIRA

agradECIMENtoS • ackNowlEdgEMENt

654 Lista de pareceristas que atuaram em 2011

502

EDITORIAL • Editorial

Saúde em debate, rio de Janeiro, v. 35, n. 91, p. 502-505, out./dez. 2011

Editorial

Finalmente, ocorreu a tramitação e votação parlamentares sobre a regula-mentação para a Emenda Constitucional 29. Apesar do reconhecido avan-

ço na definição normativa sobre o que devem ser gastos em Saúde, fica o gosto amargo da constatação de que, mais uma vez, as políticas públicas de Saúde parecem prioritárias somente em discursos governamentais de oportunidade eleitoral ou midiática.

Não se trata somente de alusão reativa a mais uma derrota, mais uma oportu-nidade perdida, em termos de garantia legal de estabilidade, sustentabilidade e pro-gressividade para o financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS); mas, antes, do entendimento de que sucessivos governos lidam com as políticas sociais a partir de conveniências particulares e perspectivas demasiadamente restritas e restritivas.

As políticas sociais ainda não estão devidamente dimensionadas em sua perspectiva longitudinal e, tampouco, estabelecidas como políticas de Estado. Os investimentos públicos não estão devidamente equacionados em suas múltiplas decorrências e eventuais impactos virtuosos para os ciclos econômicos. Sucessi-vos governos têm abdicado até mesmo de tensionamentos políticos em prol da consolidação dos princípios constitucionais que traduzem os valores societários de solidariedade e equidade, como fundamentos e guias para a política fiscal e para a utilização de recursos públicos.

Preponderam-se concepções gerencialistas de governo, orientadas por uma política econômica malsã, por sua vez, destituída de amplitude e perspectivas de longo prazo, desamparada do projeto de nação. Predominam as barganhas por ‘governança’ palaciana, negociadas no mercado da pequena política, traficadas em tratativas de ocasião e pautadas em equações de custos orçamentários sobre bene-fícios eleitorais.

Muitos governos mudam e os discursos reciclados e domesticados persistem. Vicejam as práticas mesquinhas entre representações de interesses menores e ali-nhados, de modo subserviente, ao modo de reprodução social e modelo de de-senvolvimento econômico que estão a produzir crescente degradação e sucessivas crises, em escalas ascendentes.

Em tal enredo, contexto e decorrentes conjunturas, o que tem restado às po-líticas sociais é o viés compensatório e focalizado, a vocação para o amortecimento de tensões sociais e a subalternidade diante dos imperativos do mercado financista. Em função de uma proclamada ‘responsabilidade fiscal’, governos consolidam o subfinanciamento para subsistemas públicos, mas, ainda assim, semiprivatizados, segmentados em fatias de maior e menor interesse do mercado.

Se o enredo e o contexto não são novos, também não o são os discursos de sobriedade e as medidas governamentais de ajuste fiscal perante sucessivas crises econômicas; a barganha do possível da política pela ‘política do possível’, nos ter-mos viciosos e viciados de um pragmatismo servil.

EDITORIAL • Editorial

Saúde em debate, rio de Janeiro, v. 35, n. 91, p. 502-505, out./dez. 2011 503

Eis, pois, a parte do enredo que coube ao SUS: a legalização de improvisações e resíduos orçamentários para prover a sustentabilidade de custeio, que requer mais eficiência gerencial, subordinada aos ditames dos meios que se tornaram fins.

Entretanto, aqueles que demonstram compromisso real com a construção das Políticas Públicas de Saúde, maiúsculas, não se submetem a tal enredo. Sob a égide do interesse público e da radicalidade democrática, persistem Movimentos Sociais amparados por lutadores teimosos, resistentes e insistentes.

Ao longo destes anos de luta e resistência pelo SUS, há recuos, mas também avanços. Ainda está em curso o grande desafio: ganhar a legitimidade advinda do seu pertencimento à população brasileira, alcançar a sustentação e a governabili-dade nas praças.

De todo o modo, o SUS permanecerá e irá persistir como práxis social e tensão instituinte-instituída da Política Social e Pública de Saúde; como exemplo, inacabado, de que a sua construção depende da luta de muitas gerações.

O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) completou 35 anos, for-jado como Movimento Social em prol da luta por democracia e pelo direito à Saúde, tecido e sustentado por várias gerações de lutadores. Também permanecerá e persistirá vigilante, crítico, criativo, construtivo e atuante; renovando-se sempre na luta que faz a diferença.

a diretoria Nacional

504

EDITORIAL • Editorial

Saúde em debate, rio de Janeiro, v. 35, n. 91, p. 502-505, out./dez. 2011

Editorial

Finally, politicians voted on the regulation for the constitutional amend-ment 29. Despite the known advances in the normative definition con-

cerning expenses in Health, we are left with the bitter taste of the fact that, once again, public health policies seem to be a priority only in governmental speeches of electoral or media opportunity.

It is not only about reacting to one more defeat, one more lost opportunity in terms of legally insuring stability, sustainability and progressivity to finance the Unified Health System (SUS); it is about understanding that successive govern-ments deal with social policies as private conveniences and with an overly restric-tive perspective.

Social policies are still not properly measured in their longitudinal perspec-tive, nor established as State policies. Public investments are not properly ac-counted for in their multiple consequences and possible virtuous impacts for the economic cycles. Different governments have even given up political tensions for the consolidation of constitutional principles that translate the societal values of solidarity and equity as being guidelines for the fiscal policy and for the use of public resources.

Managerial concepts of government are prevalent, guided by a poor econom-ic policy that lacks amplitude and long term perspective, with no nation project. The bargains for palatial ‘governance’ are prevalent, trafficked in occasional deals and guided by cost budgets on electoral benefits.

Many governments change, but the recycled and tamed speeches persist. Petty practices are disseminated among representatives of minor and aligned interests, in a submissive manner, in the way of social reproduction and model of economic devel-opment that produce an increasing degradation and successive crises in high scale.

In this context and consequent conjuncture, the social policies are left with the compensating and focused tendency, the vocation to ease tensions and the submission to the demands of the financial market. Due to the so called fiscal re-sponsibility’, governments consolidate the subfinancing for public subsystems, but are still semiprivatized and become less or more interesting for the market.

If this context is not new, neither are the speeches of sobriety and fiscal ad-justment measures concerning the successive economic crises; the bargain of the possibilities in politics for the ‘politics of what is possible’, in the vicious and ad-dicted terms of a servile pragmatism.

Then comes the part of the context that concerns SUS: to legalize improvi-sations and the residual budget to provide the sustainability of the costs, which requires more managerial efficiency submitted to the guidelines of the means that have become the ends.

However, those who demonstrated real commitment to the construction of Public Health Policies do not give in to such context. Protected by the public

EDITORIAL • Editorial

Saúde em debate, rio de Janeiro, v. 35, n. 91, p. 502-505, out./dez. 2011 505

interest and by the democratic radicalism, social movements supported by stub-born, resistant and insistent fighters persist.

Throughout these years of struggle and resistance by SUS, there are setbacks, but there is also progress. The great challenge is still on: to gain legitimacy since it belongs to the Brazilian population, to reach sustainability and governance.

Anyway, SUS will remain and persist as social praxis and establishing-estab-lished tension of the Social and Public Health Policy; as an unfinished example that its construction depends on the struggle of many generations.

The Brazilian Center for Health Studies (CEBES) has completed 35 years, forged as a social movement that fights for democracy and the right to Health, conducted and supported by many generations of fighters. It will also remain vigi-lant, critic, creative, constructive and active; being renewed in the struggle that makes a difference.

the National Board

Saúde em debate, rio de Janeiro, v. 35, n. 91, p. 506-507, out./dez. 2011506

ApREsEnTAçãO • PrESENtatioN

Esta é a última edição de 2011, na qual está sendo comemorado os 35 anos de existência (e resistência) da revista Saúde em Debate. Estamos

felizes por saber da importância que a comunidade de saúde coletiva atribui à re-vista e por conseguirmos consolidar uma publicação com qualidade, respeitando os padrões exigidos para os periódicos, sem perder o enfoque da análise crítica que nos caracteriza.

A 14ª Conferência Nacional de Saúde (CNS) reativou os debates políticos e a necessidade de atualização do pensamento crítico no campo da saúde. Assim, mais uma vez, constata-se a importância de uma revista que possibilite a discussão das políticas públicas de saúde.

Por outro lado, como o debate político é ágil, requer questões e ideias rápidas e não pode depender de periodicidade (própria das revistas), o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) vem aperfeiçoando sua página na Internet, que, atua-lizada diariamente, tem sido uma importante ferramenta para o processo político da Reforma Sanitária.

Na comemoração destes 35 anos da revista, decidiu-se selecionar quatro ilus-trações das capas que marcaram os primeiros anos da revista. A cada número uma destas ilustrações está destacada à frente das demais. A do presente número é a do grande e saudoso cartunista Glauco, brutalmente assassinado junto ao seu fi-lho. A revista 9, da qual esta ilustração foi capa, é especialmente cara a todos nós ‘Cebianos’ e militantes da Reforma Sanitária, já que nela foi publicado o documen-to A questão democrática na área da saúde, por meio do qual o CEBES apresentou à sociedade a proposta e os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS). Pela primeira vez, houve conhecimento do SUS no Brasil.

Passados 33 anos, a questão democrática ainda permanece como problema central para a política nacional de saúde, em que pese a incorporação do SUS à Constituição de 1988 e sua recente, porém tardia, regulamentação. Esperamos que a lembrança sirva para a retomada do debate.

Boa leitura!

Paulo amarante Editor Científico

Saúde em debate, rio de Janeiro, v. 35, n. 91, p. 506-507, out./dez. 2011 507

pREsEnTATIOn • aPrESENtaÇÃo

This is the last issue of 2011, when we celebrate the 35 years of exis-tence (and resistance) of the journal ‘Saúde em Debate’. We are happy

to know how important this journal is to the community of collective health, and also because we could consolidate a high quality publication that respects the de-manded standards for periodicals, without losing focus on the critical analysis that characterizes us.

The 14th National Conference of Health (14ª Conferência Nacional de Saúde – CNS) brought to life political debates and the need to update the critical thinking in the health field. Thus, once again, it is possible to observe the importance of a journal that enables the discussion of public health policies.

On the other hand, since the political debate is fast and requires issues and ideas that are fast as well, it cannot depend on periodicity (a characteristic of the journals); so, the Brazilian Center for Health Studies (CEBES) has improved its Internet page, which has been daily updated, thus becoming an important tool for the political process of the Sanitary Reform.

To celebrate the 35 years of the journal, we decided to select four cover il-lustrations that were remarkable for the first years of the publication. In each issue, one of these illustrations stands out. This issue has an illustration by the great and longing Glauco, who was brutally murdered along with his son. Issue number 9, which had this illustration on the cover, is especially dear to all of those who fight for the Sanitary Reform, since the document A Questão Democrática na Área da Saúde was published in this issue. With this document, CEBES showed the pro-posal and the principles of the Unified Health System (SUS) to the society. For the first time, SUS was acknowledged in Brazil.

After 33 years, the democratic issue remains as a core problem for the National Health Policy, in which is included the incorporation of SUS to the Constitution of 1988 and its recent – but late – regulation. We hope the memory is sufficient to bring the debate to life.

Enjoy your reading!

Paulo amarante Scientific editor

Saúde em debate, rio de Janeiro, v. 35, n. 91, p. 508-521, out./dez. 2011508

ARTIgO ORIgInAL • origiNal articlE

As proposições das Conferências de Saúde e os Planos Municipais de Saúde: um estudo em municípios de Santa Catarina

the propositions of Health conferences and the Municipal Health Plans: a study in municipalities of Santa catarina

tânia regina Krüger1, ana Paula lemke2, daiana Nardino3, Solange Janete Finger4, Jaqueline rosa Meggiato5, Marta de lourdes de almeida Nunes6, dalila Maria Pedrini7

RESUMO o objetivo deste texto é avaliar a inserção das proposições das Conferências Municipais de Saúde nos Planos de Saúde em municípios de Santa Catarina. a sistematização dos relatórios das Conferências, dos Planos de Saúde e das entrevistas com os delegados foram organizadas em categorias, tendo por base a organização do Sistema Único de Saúde (SuS), como política e serviço. através de um estudo qualiquantitativo analisamos as proposições das Conferências e relacionamos com as prioridades dos Planos de Saúde, fazendo comparações, destacando as categorias mais expressivas e os silêncios. No processo de sistematização, verificou-se que as propostas das Conferências não se identificam com os objetivos, as ações ou metas dos Planos de Saúde. a incorporação das demandas dessa plenária no documento de organização da política de saúde, que é o Plano de Saúde, tem sido baixa, oscilando de 2 a 35%.

PALAVRAS-CHAVE: Sistema Único de Saúde; Plano Municipal de Saúde; Conferência Municipal de Saúde; Participação.

ABSTRACT the objective of this text is to evaluate the introduction of the propositions of Municipal Health conferences in the Municipal Health Plans of Santa catarina. the systematization of the conferences reports, of the Health Plans and of the interviews with delegates were organized into categories. the categories had the organization like unified Health System, such as political and service. through a quali-quantitative study, we analyzed the propositions of conferences and related them with the priorities of health plans. after comparisons, the most expressive categories and silences were highlighted. in the systematization process, it was noticed that the proposals of the conferences do not recognize with objectives, actions or marks from the Health Plans. the incorporation of demand from this plenary in the document of health politic organization (Health Plan) has been low, oscillating between 2 to 35%.

KEywORDS: unified Health System; Municipal Health Plan; Municipal Health conference; Participation.

1 doutora em Serviço Social pela universidade Federal de Pernambuco (uFPE) – Pernambuco (PE), Brasil. Professora do departamento de Serviço Social da universidade Federal de Santa Catarina (uFSC) – Florianópolis (SC), Brasil. [email protected]

2 graduada em Serviço Social pela uFSC – Florianópolis (SC), Brasil. [email protected]

3 graduada em Serviço Social pela uFSC – Florianópolis (SC), Brasil. [email protected]

4 graduada em Serviço Social pela uFSC – Florianópolis (SC), Brasil. [email protected]

5 Mestre em Serviço Social pela uFSC – Florianópolis (SC), Brasil. [email protected]

6 graduada em Serviço Social pela uFSC – Florianópolis (SC), Brasil. [email protected]

7 doutora em Serviço Social pela Pontifícia universidade Católica de São Paulo (PuC/SP) – São Paulo (SP), Brasil. [email protected]

Saúde em debate, rio de Janeiro, v. 35, n. 91, p. 508-521, out./dez. 2011 509

KRügER, T.R.; LEmKE, A.p.; nARDInO, D.; FIngER, s.J.; mEggIATO, J.R.; nunEs, m.L.A; pEDRInI, D.m. • as proposições das Conferências de Saúde e os Planos Munici-pais de Saúde: um estudo em municípios de Santa Catarina

Introdução

Após mais de duas décadas de participação social no Siste-ma Único de Saúde (SUS), através dos colegiados de con-trole social, muito se tem debatido sobre o significado de sua função sociopolítica e sobre a permeabilidade da admi-nistração pública às propostas nascidas nesses espaços. Para contribuir nesse debate, este artigo tem por objetivo avaliar a inserção das proposições das Conferências Municipais de Saúde nos Planos Municipais em nove municípios do es-tado de Santa Catarina.

A literatura da área da saúde pública possui inúmeras produções que tratam da participação da comunidade, do controle social e da gestão participativa, sustentadas em di-versas matrizes teóricas a partir das experiências dos Con-selhos de Saúde; todavia as Conferências de Saúde têm sido pouco estudadas. Contribuir para qualificar a função sociopolítica das Conferências de Saúde na agenda e ges-tão das políticas de saúde e conhecer a permeabilidade da administração pública às propostas nascidas nesse espaço de controle social é o que pretendemos com este texto.

O setor saúde parece destacar-se das demais políti-cas públicas, demonstrando especial vitalidade quanto à sua implementação. Mesmo constituindo-se num quadro bastante contraditório e conflituoso, tem se mostrado ca-paz de aglutinar forças aliadas para enfrentar as resistências e tentar orientar o modelo de atendimento único e uni-versal, idealizado e formalizado. Desse modo, o processo de democratização do setor saúde vem contribuindo (via Conferências e Conselhos de Saúde) nas três esferas de governo, ainda que de maneira incipiente, para o forta-lecimento do regime democrático da sociedade brasileira, ao possibilitar a ampliação da relação da sociedade civil com as instâncias do executivo e mais timidamente com o legislativo e judiciário.

As Conferências e os Conselhos no debate predo-minante ora são considerados momentos privilegiados de participação (através das avaliações, proposições, delibera-ções e fiscalização), em que os interesses se conflitam, e ora são vistos como espaços para harmonizar e garantir o consenso entre os diferentes interesses ali manifestos. Es-ses espaços estão sendo considerados como um novo locus no exercício do poder político na realidade brasileira das políticas sociais, em face da possibilidade de construção de uma cultura política democrática e participativa. Até

meados dos anos de 1990 predominava, nos espaços de discussão das políticas sociais, o discurso de que a realiza-ção periódica de Conferências e reuniões dos Conselhos, no âmbito dos municípios, dos estados e da União, signi-ficava o cumprimento de um requisito para a descentra-lização e se constituía em instrumento privilegiado, para que a participação da sociedade alterasse seu estatuto de ‘passividade’ junto às esferas do poder público. Na última década, estamos assistindo certa banalização desses espaços, pois o caráter avaliativo e propositivo das Conferências, o caráter deliberativo dos Conselhos, a composição e a dinâ-mica de cada um desses colegiados vem sendo questiona-da, especialmente pelos gestores e segmentos da sociedade civil com perfil mais conservador. Esses questionamentos aparecem na lógica da eficiência e não num processo de aprendizagem de participação ou de alteração da cultura política para um perfil mais democrático popular.

Na perceptiva deste trabalho, os espaços das Confe-rências e Conselhos, mesmo que formalmente delimita-dos (institucionalizados), estão possibilitando que muitos representantes da sociedade, grupos sociais historicamen-te excluídos (usuários/trabalhadores) e muitos servidores públicos adentrem as autoritárias fronteiras que marcam a história da administração pública brasileira e façam pro-posições sobre as políticas públicas. Ainda, se constituem como oportunidade de socialização da política e de cons-trução de uma outra hegemonia articulada pelos princípios da democracia. Mesmo que, de fato, essas instâncias, em pouco mais de duas décadas, não tenham conseguido mu-dança de paradigma no conteúdo e na forma das políticas governamentais, estão introduzindo novas configurações no âmbito publicoestatal e, num nível restrito, estão pos-sibilitando a socialização de informações sobre projetos, serviços e financiamento.

É fato que os Conselhos de Saúde ganharam den-sidade política e institucional nas duas últimas décadas e estão retratados na vasta bibliografia que se produziu sobre eles. As Conferências, por sua vez, talvez por não terem a obrigatoriedade de reuniões mensais, não serem delibera-tivas e não estarem no organograma do executivo, prati-camente não são citadas na literatura, que trata de avaliar e analisar a implementação da diretriz constitucional de participação da comunidade. Por sua vez, os Conselhos possuem o papel formal de zelar e trabalhar para que as proposições das Conferências sejam implementadas. Mas,

Saúde em debate, rio de Janeiro, v. 35, n. 91, p. 508-521, out./dez. 2011510

KRügER, T.R.; LEmKE, A.p.; nARDInO, D.; FIngER, s.J.; mEggIATO, J.R.; nunEs, m.L.A; pEDRInI, D.m. • as proposições das Conferências de Saúde e os Planos Munici-pais de Saúde: um estudo em municípios de Santa Catarina

as Conferências são espaços mais amplos de participação do que os Conselhos, por serem mais informais e envol-veram plenárias ascendentes desde a esfera inframunicipal, podendo se constituir como espaços de democracia direta (KRÜGER, 2005).

Para os defensores dos colegiados do controle social, tem se tornado um desafio incorporar na agenda política a representação de interesses distintos e a inserção nos Planos de Saúde das proposições nascidas nesses espaços. No caso relacionando com o objeto desta pesquisa, as Conferências cumprem um papel pedagógico de educação política, pois são um espaço estratégico para socialização do debate do SUS e é nela que se pode qualificar ou formar novos con-selheiros. As Conferências, através de seus debates e propo-sições, permitem publicizar e tencionar a gestão da saúde, a dinâmica de planejamento, as definições orçamentárias e o próprio Conselho. Os papéis avaliativo e propositivo das plenárias das Conferências podem evidenciar as con-tradições entre a organização dos serviços de saúde e as necessidades cotidianas de saúde dos usuários.

Este texto está estruturado do seguinte modo: as in-dicações metodológicas da pesquisa que detalha a forma de coleta e sistematização dos dados. Os municípios que compõem a amostra desta investigação foram brevemente contextualizados incluindo uma caracterização do Con-selho de Saúde e das Conferências Municipais de Saúde. Na sequência, apresentamos de forma quantiqualitativa as proposições das Conferências Municipais de Saúde de 2003 e 2007, com indicações de comparabilidade, des-tacando as categorias mais expressivas, as repetições e os silêncios. No momento seguinte, também de forma quan-tiqualitativa, se relaciona as proposições das Conferências com os objetivos, ações e metas dos Planos Municipais de Saúde. Nessa parte são feitos vários ensaios analíticos, in-dicações de comparação, recorte dos principais temas pre-sentes e ausentes, com apoio significativo do material das entrevistas realizadas com os delegados das Conferências

pesquisadas. Nas considerações são apresentados os desta-ques do processo de construção desta pesquisa, as desco-bertas, as questões não respondidas.

Metodologia

Este trabalho é parte de uma investigação multicêntrica, realizada em nove estados brasileiros, através da parce-ria entre universidades públicas e a Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde1. A pesquisa se caracterizou por trabalhar com uma abor-dagem quantiqualitativa do tipo descritiva e explorató-ria. Além da literatura que trata do tema, subsidiaram a pesquisa empírica os Relatórios das Conferências Mu-nicipais de Saúde dos anos de 2003 e 2007, os Planos Municipais de Saúde dos respectivos períodos, além de outros documentos que eventualmente possibilitaram aos pesquisadores conhecer melhor a realidade de cada município pesquisado.

A sistematização dos documentos (Relatório Final das Conferências Municipais de Saúde e Plano Muni-cipal de Saúde) foi organizada em categorias macro, tendo por base a organização dos SUS como política e como serviço nessas duas décadas: a) Atenção à Saú-de; b) Ciência e Tecnologia em Saúde; c) Educação e Informação em Saúde; d) Gestão do SUS; e) Parti-cipação da Comunidade/Controle Social; f ) Políticas de Saúde; g) Seguridade Social2 e h) Outros. Essa for-ma de sistematização permitiu a comparabilidade dos dados entre documentos, períodos, categorias e cida-des. Para realizar a comparabilidade das categorias, que são as proposições das Conferências com as metas dos Planos de Saúde, deparou-se com a diversidade de for-ma e redação apresentada nos documentos. Assim, no processo de sistematização, verificou-se que as propos-tas das Conferências não se identificam imediatamente

1 Este artigo é um extrato do relatório de Pesquisa KrÜgEr, t.r. et al. (Coord.). Estudos avaliativos de conferências de Saúde: a inclusão das suas proposições na agenda das políticas de saúde - Santa Catarina departamento de Serviço Social. universidade Federal de Santa Catarina. agosto de 2010, 113 p. Essa foi uma investigação multicêntrica realizada em nove estados brasileiros, através da parceria entre universidades públicas (uErJ, uFrJ, uFg, uFMg, uFMt, uFSCE, uFSC, uFPB e uFrN) e a Secretaria de gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde. Em Santa Catarina, o projeto recebeu Financiamento do Fundo Nacional de Saúde, Portaria 719/2007.2 Essas macro categorias, entendidas como grandes temas, orientam a implementação do SuS no relatório completo desta pesquisa. algumas precisaram ser divididas em Categorias operacionais e Subcategorias, como forma de detalhar as proposições das plenárias, vinculando-as à forma de organização dos serviços do SuS. Ficaram assim de-talhadas as categorias operacionais: a) atenção à Saúde: Vigilância em Saúde, atenção Básica/Estratégia Saúde da Família, Saúde de Populações Específicas, Programas Especí-ficos, Média e alta Complexidade – MaC, assistência Farmacêutica, terapias alternativas; b) Ciência e tecnologia em Saúde; c) Educação e Informação em Saúde; d) gestão do SuS: Planejamento, Infraestrutura, Financiamento, organização do SuS, regulação, avaliação e controle, Modalidades de oferta de serviços e trabalho no SuS; e) Participação da Comunidade/Controle Social: Conselho de Saúde, Conselho local, gestão Participativa, Conferências de Saúde, ouvidoria, e outros; f ) Políticas de Saúde: direito à Saúde, Pactos da Saúde, Municipalização, regionalização, Integralidade, Intersetorialidade, Fundamentos do SuS e Humanização e acolhimento; g) Seguridade Social e h) outros.

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com os objetivos, as ações ou metas dos Planos de Saú-de. Pretendia-se fazer a comparação das proposições das Conferências com as ações priorizadas nos Planos, mas como esses se estruturam de maneira bastante diversa, ora a comparação foi feita a partir dos objetivos, ora a partir das ações e ora a partir das metas. Uma situação identificada foi que o período de elaboração dos Planos segue um tempo cronológico diferente das Conferên-cias e em sua maioria foram construídos em anos ime-diatamente anteriores à realização das plenárias.

Durante o processo de investigação e sistema-tização, foram realizadas 80 entrevistas gravadas nas cidades com delegados das Conferências dos anos de 2003 e 2007. Nessas, se contemplou a diversidade de segmentos (trabalhadores da saúde 17,5%; usuários 33,7%; gestores 27,5%; prestadores 11,2% e secretaria executiva do Conselho 10%)3. Nas entrevistas buscou-se apreender mais sobre a organização das Conferências Municipais de Saúde e sobre a definição da política de

saúde via os Planos Municipais. Na apresentação do conteúdo das entrevistas será preservada a identificação dos seus sujeitos, sendo esses nomeados como entrevis-tado, o número sequencial da entrevista e nome do mu-nicípio, por exemplo: entrevistado 1 Joaçaba.

Em Santa Catarina, o projeto contou com a par-ticipação de nove municípios na amostra da pesquisa, que foram escolhidos através dos seguintes critérios: diferentes regiões do estado, porte populacional, tra-dição da participação popular, grau de urbanização e que tivessem realizado Conferência de Saúde nos anos de 2003 e 2007. A participação da capital dos estados na pesquisa foi também um critério geral do projeto nacional. Assim, para a pesquisa em Santa Catarina, os seguintes municípios foram definidos: Chapecó, Crici-úma, Florianópolis, Joaçaba, Joinville, Major Gercino, Maravilha, Rio do Sul e São Joaquim4.

A Tabela 1 evidencia que a investigação contem-plou municípios de pequeno e grande porte para os

Município População estimada 2009

Densidade demográfica* IDH em 2000 Distância da capital

em kmRegião de

localizaçãoChapecó 174.187 279 0,848 630 oesteCriciúma 188.557 800,2 0,822 202 SulFlorianópolis 408.161 941,9 0,875 - grande FlorianópolisJoaçaba 25.322 105,1 0,866 414 Meio oesteJoinville 497.331 439,8 0,857 180 NorteMajor gercino 2.869 10 0,799 97 grande FlorianópolisMaravilha 23.099 112,3 0,817 659 oesterio do Sul 59.962 217 0,827 188 alto ValeSão Joaquim 25.122 12,3 0,766 235 SerranaPopulação dos nove municípios 1.404.610 - - - -

**Total do Estado 6.118.743 64,17[1] 0,807 - -

tabela 1. Caracterização dos municípios por população estimada em 2009, densidade demográfica, Índice de Desenvolvimento Humano, distância da capital do estado em km e região de localização em Santa Catarina

Fonte: IBgE – Cidades. População estimativa em 2009. disponível em: <http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1>. acesso em: 8 mar 2010. IdH: Índice de desenvolvimento Humano* Fonte: IBgE. **SaNta CatarINa. Secretaria do Estado do Planejamento. IdH. disponível em: <http://www.spg.sc.gov.br/dados_munic.php#idh>. acesso em: 8 mar 2010.

3 os entrevistados para efeito de identificação dos segmentos foram caracterizados a partir da posição que ocupavam na época da Conferência de 2007, isso porque muitos deles responderam as questões pelas duas Conferências e outros ainda representavam segmentos diferentes nas plenárias pesquisadas.4 a proposta de pesquisa foi apresentada aos municípios via carta impressa dirigida à(ao) Secretária(o) Municipal de Saúde, acompanhada de telefonemas e e-mail, objetivan-do obter o termo de anuência e de consulta aos arquivos, para submeter o projeto ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da uFSC (CEP/uFSC). após a aprova-ção do CEP/uFSC, a equipe solicitou aos municípios os relatórios das Conferências Municipais de Saúde de 2003 e 2007, os Planos Municipais de Saúde e relatórios anuais de gestão do período correspondente. apenas em Florianópolis os documentos foram localizados no site da Secretaria Municipal e alguns relatórios anuais de gestão, a partir de 2006, foram encontrados no site da Secretaria de Estado da Saúde – SES/SC, link do controle social. Nos municípios a proposta da pesquisa encontrou boa receptividade e contou com apoio de membros da gestão e do Conselho para a localização dos documentos, mapeamentos dos entrevistados e agendamento das entrevistas. a equipe em Santa Catarina construiu um relatório de pesquisa para cada município e um relatório de âmbito estadual. Cada município já recebeu o relatório que diz respeito à sua cidade e uma cópia do relatório estadual (cópia impressa e por e-mail).

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padrões catarinenses e explicita a heterogeneidade da densidade demográfica no estado. A tendência nacional de urbanização também se evidencia nos municípios catarinenses, pois a população rural do estado diminuiu de 21% em 2000 para 16% em 2010 (IBGE, 2010).

Nos municípios da pesquisa, sete das nove cida-des pesquisadas elegem o presidente do Conselho de saúde, já a maioria não possui infraestrutura própria e adequada para o seu funcionamento. A metade in-formou que o Conselho dispõe de secretaria executi-va, mas conseguimos identificar na pesquisa de campo e nos contatos que não é uma secretaria exclusiva. Os Conselhos Locais existem na metade dos municípios, mas não foi conseguido precisar a quantidade existente, pois ressurgem e ficam desativados com muita frequên-cia. As pré-Conferências não aconteceram na maioria das cidades e normalmente não parece ser um processo sistematizado e organizado para preparar o debate da etapa municipal.

Todas as nove cidades pesquisadas realizaram as Conferências Municipais de Saúde nos anos de 2003 e 2007. A maioria dos municípios começou a realizar suas Conferências Municipais a partir da segunda metade dos anos de 1990 no auge do processo de municipaliza-ção da saúde, mas Joaçaba e Major Gercino começaram nos anos 20005. Até 2007, Florianópolis e Joinville ha-viam realizado sete Conferências Municipais, Chapecó e Rio do Sul seis e Criciúma e São Joaquim cinco.

Sobre o processo organizativo, a realização, a elaboração e a divulgação dos Relatórios das plenárias cabem aqui alguns comentários com base nas entre-vistas e a observação da pesquisa de campo, pois os Relatórios Finais pouco caracterizam esse processo, na maioria se restringem a apresentar o programa da Conferência e as proposições aprovadas. Nesses muni-cípios, a convocação partiu do gestor em parceria com o Conselho Municipal de Saúde. Nas cidades meno-res e que realizaram menor número de Conferências a iniciativa do gestor e do Conselho foi motivada por documento recebido do Conselho Estadual de Saú-de e da Secretaria de Estado da Saúde (SES/SC), que normalmente chegam às cidades via as Secretarias de Desenvolvimento Regional (SDR).

As Conferências de Saúde de 2003 e 2007: caracterização de suas proposições

Essencialmente, as Conferências de Saúde têm a função de avaliar a situação de saúde e propor diretrizes da política de saúde nos níveis correspondentes, con-forme a Lei 8.142/1990. No entanto, o que pudemos observar no processo de pesquisa é que as Conferências não têm cumprido seu papel de avaliar a situação de saúde, se centrando essencialmente na elaboração de um Relatório Final com proposições. Normalmente, a programação das plenárias contempla uma análise de conjuntura com aspectos gerais ou de algum programa do SUS, mas efetivamente avaliar a situação de saúde do presente e do período entre uma Conferência e ou-tra no município, nada observamos. Entendemos que o Plano Municipal de Saúde Quadrienal, a Programação Anual de Saúde e os Relatórios Anuais de Gestão pode-riam ser instrumentos privilegiados de subsídio para os delegados realizarem a avaliação e as proposições.

Nos nove municípios, a soma das proposições dos Relatórios Finais, correspondentes às Conferências rea-lizadas em 2007, apresenta um total de 793 propostas, quase o dobro das proposições das plenárias de 2003. Isso parece seguir uma tendência que se observa nas etapas estaduais e nacionais do número de proposições se ampliando. Mas, observando-se a distribuição des-sas propostas por temática, aqui categorizadas, nas duas plenárias pesquisadas identifica-se um percentual de dis-tribuição bastante semelhante entre elas, com destaque para a atenção à saúde que de 2003 para 2007 aumen-tou um pouco mais de 10% o número de proposições.

As propostas das Conferências de 2003 e 2007 vão ser detalhadas na Tabela 2, de forma quantitativa, a partir das Macrocategorias e detalhadas em seu conteú-do nas categorias operacionais.

Os Relatórios Finais dos municípios, correspon-dentes às Conferências realizadas em 2003 e 2007, apresentam um total de 1203 propostas. Da Tabela 2, destaca-se:• No conjunto, a categoria atenção à saúde, que

contemplou 31,5% das proposições nas duas plenárias, reflete que, por mais que o SUS tenha ampliado sua infraestrutura física, o número de

5 a título de ilustração cabe dizer que Joinville realizou sua primeira Conferência Municipal de Saúde em 1992, Florianópolis em 1995, Chapecó em 1996.

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Macrocategoria Categorias Operacionais Conferência de 2003

Conferência de 2007 Total %

Atenção à Saúde

Vigilância em Saúde 14 44 58 15,3

atenção Básica /ESF-aCS 20 75 95 25,0

Saúde de Pop. Específicas 3 55 58 15,3

Programas Específicos 20 49 69 18,2

Média e alta Complexidade 26 33 59 15,5

assistência Farmacêutica 9 16 25 6,5

terapias alternativas 8 7 15 3,9

Subtotal 100 279 379 100

Gestão do SUS

Planejamento 11 33 45 13,4

Infraestrutura 12 34 47 14,0

Financiamento 17 32 50 14,9

organização do SuS 13 15 28 8,3

regulação, avaliação e controle 12 32 45 13,4

Modalidade de oferta e serviços - 1 1 0,3

trabalho no SuS 40 82 122 36,5

Subtotal 105 229 334 100

Política de Saúde

direito à Saúde 4 1 5 3,0

Pactos da Saúde - 16 16 9,8

Municipalização - - - -

descentralização 1 4 5 3,0

regionalização - 22 22 13,5

Integralidade 4 11 15 9,2

Intersetorialidade 31 45 76 47,5

Fundamentos do SuS 5 4 9 5,5

Humanização e acolhimento 4 10 14 8,6

Subtotal 49 112 162 100

Participação da comunidade

Conselho de Saúde 42 18 60 36,1

Conselho local 19 10 29 17,4

gestão Participativa 12 24 36 21,6

Conferência de Saúde 5 8 13 7,8

ouvidoria 5 7 12 7,2

outros 7 9 16 9,6

Subtotal 90 76 166 100

Educação e Informação em Saúde 25 46 71 -

Ciência e Tecnologia 21 8 29 -

Seguridade Social 2 4 6 -

Outras 18 38 56 -

Total Geral 410 793 1203 100

tabela 2. Distribuição das propostas das Conferências Municipais de Saúde de 2003 e 2007 pelas Categorias Operacionais de atenção à saúde, gestão do SUS, política de saúde e participação da comunidade

Fonte: relatórios Finais das Conferências Municipais de Saúde 2003 e 2007 dos municípios de Chapecó, Criciúma, Florianópolis, Joaçaba, Joinville, Major gercino, Maravilha, rio do Sul e São Joaquim.ESF: Estratégia Saúde da Família; aCS: agente Comunitário de Saúde; Pop.: População.

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trabalhadores, de procedimentos, de medicamen-tos e de programas, ainda assim as Conferências revelam demandas/problemas no acesso e de aten-dimento nos serviços;

• Quanto à ‘Gestão do SUS’, com 27,7%, as ple-nárias evidenciam que o problema do acesso aos serviços tem uma relação direta com a gestão (in-fraestrutura, financiamento, planejamento) do sistema, já que foi a segunda categoria com mais proposições;

• Quanto à ‘Participação da Comunidade’, emterceiro lugar com 13,8%, o percentual de pro-posições de 2003 para 2007 diminuiu em 12 pontos percentuais;

• Quanto à ‘Política de Saúde’, com 13,5% emquarto lugar, contemplou pouco os princípios doutrinários do SUS, indicou alguns princípios organizacionais do sistema e instrumentos ope-racionais mais recentes como o Pacto Pela Saúde e a Política Nacional de Humanização (PNH). A ênfase maior dessa categoria foi para ações de saúde intersetoriais;

• Quanto à ‘Educação e Informação em Saúde’(5,9%), grande parte das competências do SUS, de realizar ações de promoção, prevenção e edu-cação para a saúde, no sentido de corresponder ao conteúdo do conceito ampliado de saúde de-fendido pela Reforma Sanitária, tem relação com essa categoria, mas ainda parece estar em posição secundária aos aspectos da atenção clínica e cura-tiva. No entanto, cabe chamar a atenção aqui que as plenárias também apontaram aspectos da educação e promoção da saúde na categoria ope-racional intersetorialidade contemplada na cate-goria política de saúde;

• Quantoà ‘CiênciaeTecnologia’(2,4%),quefoium subtema da plenária de 2003, não parece ser algo próximo da esfera municipal e também dos colegiados de participação social. Ainda que com um entendimento reduzido de que a ciência e tec-nologia diz respeito à produção de medicamentos, insumos e equipamentos médicos hospitalares e que são produzidos substancialmente pelo setor privado, as esferas de participação social têm difi-culdade de se apropriar desse tema.

• Quanto à ‘Seguridade Social’, que obteve apenas 0,5% das proposições nas plenárias pesquisadas, foi um subtema da plenária nacional de 2003. Sendo a saúde colocada constitucionalmente no capítulo da Seguridade Social junto com a Previ-dência e a Assistência Social, para se estruturarem e serem financiadas de maneira articulada e solidá-ria, o que vivenciamos nessas duas décadas foi um funcionamento desarticulado e, portanto, não foi um tema apropriado pelos colegiados de partici-pação social, especialmente na esfera municipal;

• ‘Outras’ (4,6%). Neste item foram sistema-tizadas as propostas que não se caracterizam diretamente como ações de responsabilidade da Saúde, como por exemplo, limpeza de rios, transporte coletivo, habitação, coleta seletiva de lixo, espaços de lazer/cultura e preocupação com queimadas de campo, assim como a sua re-gulamentação e fiscalização.

Na distribuição dessas proposições por municípios e categorias, observa-se um quantitativo bastante dife-renciado, ficando Florianópolis com um número maior de demandas. O grande número de proposições apro-vadas na plenária de 2007, em Florianópolis, em parte se deve ao fato da VII Conferência ter sido realizada em duas etapas, julho de 2006 e agosto de 2007. Na etapa de 2006, o tema foi o Pacto pela Saúde e, estudando seu Relatório, identificamos 191 proposições com redação exatamente igual a do Pacto.

As Conferências e as ações dos Planos Municipais de SaúdeAo todo foram identificadas e classificadas 2.079 ações nos Planos de Saúde estudados, a maior concentração está na macrocategoria ‘Atenção à Saúde’, com mais de 60% nos dois quadriênios, seguidas pelas macrocatego-rias de ‘Gestão do SUS’ com 23,0%, ‘Política de Saúde’ 5,0% e ‘Educação e Informação em Saúde’ 5,0%. As macrocategorias que apresentaram menor número de ações priorizadas foram às relacionadas com a partici-pação da comunidade, ciência e tecnologia em saúde e seguridade social. No conjunto, as macrocategorias pontuadas nos Planos são semelhantes às proposições aprovadas nas Conferências.

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Na comparação entre as ações constantes nos Pla-nos Municipais de Saúde e as proposições aprovadas nas Conferências foram identificadas 303 ações seme-lhantes ou aproximações, representando 14,5% do to-tal de ações constantes nos Planos. A ‘Participação da Comunidade’ apresentou o maior percentual relativo (25,91%) de incorporação das proposições aprovadas nas Conferências nos Planos Municipais de Saúde, em seguida a macrocategoria ‘Outros’ (25,0%), ‘Política de Saúde’ (24,56%), ‘Ciência e Tecnologia’ (17,6%) e ‘Gestão do SUS’ com 17,1%. Apesar desses quantita-tivos em percentuais relativos parecerem significativos, em número absoluto a incorporação das proposições aprovadas nas plenárias de participação social é pouco expressiva, conforme ilustrado na Tabela 3.

A atenção à saúde foi a categoria mais represen-tativa nas reivindicações dos delegados das Conferên-cias de Saúde e também a que mais apresenta ações nos Planos, mas o seu percentual de semelhança é o menor entre as categorias levantadas.

Ao fazer as comparações das ações constantes nos Planos Municipais com as proposições das Con-ferências relacionando-as por municípios (Tabela 4), verifica-se que, no primeiro quadriênio, Florianópolis apresenta o maior percentual de propostas semelhan-tes ou equivalentes (24%), seguida pelos municípios de Criciúma (17,3%), Chapecó (10,1%), São Joaquim e

Major Gercino com 9% e 8%, respectivamente, e os demais com percentual de incorporação entre 1 e 2%. Deve-se lembrar que não houve análise no município de Joaçaba, pois o Relatório da Conferência de 2003 e o Plano Municipal de Saúde do mesmo período não foram localizados.

No segundo quadriênio, o percentual de incorpo-ração subiu entre os municípios uma média de 8 para 16%. O índice maior de semelhanças foi identificado no município de Joinville (41,5%), seguido por Floria-nópolis (26,7%) e Major Gercino (22,8%) e, nos de-mais, o percentual de incorporação variou de 1 a 8%.

Do mesmo modo que os Relatórios das Confe-rências ampliaram o número de proposições, os Planos Municipais de Saúde também ampliaram do primeiro para o segundo quadriênio o número de objetivos, ações ou metas. Alguns temas novos aparecem nos dois docu-mentos a partir de 2005, como saúde prisional, saúde do idoso, saúde do homem e vigilância da qualidade da água, mas o quantitativo de proposições e ações não explica em si esse aumento.

Avaliamos que as proposições das Conferências se concentram muito mais em reivindicações de serviços, com inúmeros detalhamentos, do que propriamente apresentam diretrizes para a formulação da política de saúde, conforme prevê o artigo 1º da Lei 8.142/1990, que indica o papel da plenária. Esse aumento dos

MacrocategoriasPropostas das

Conferências 2003 e 2007

Total das ações dos Planos de Saúde

Semelhanças das propostas das

Conferências com as ações dos Planos

% de propostas das Conferências semelhantes nos

PlanosPolítica de Saúde 162 114 28 24,5atenção à Saúde 379 1290 159 12,3Participação da comunidade 166 43 12 27,9

gestão do SuS 334 484 83 17,1Educação e Informação em Saúde 71 117 15 12,8

Ciência e tecnologia 29 17 3 17,6Seguridade Social 6 2 - -outros 56 12 3 25,0Total 1203 2079 303 14,5

tabela 3. Comparação das propostas das Conferências Municipais de Saúde de 2003 e 2007 com as ações dos Planos Municipais de Saúde de 2001-2004 e 2005-2008, por macrocategorias

Fonte: relatório final do projeto de pesquisa: Estudos avaliativos das conferências de Saúde, dos municípios de Chapecó, Criciúma, Florianópolis, Joaçaba, Joinville, Major gercino, Maravilha, rio do Sul e São Joaquim.

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objetivos, ações e metas dos Planos pode ser explica-do como um reflexo dos desdobramentos que cada um dos programas vem assumindo nos últimos anos através das inúmeras portarias que regulamentam os serviços e dos indicadores de serviços pactuados anualmente. Por outro lado, também se observa que essa ampliação das ações dos Planos se deve a uma melhor estruturação dos serviços no âmbito das Secretarias Municipais de Saúde nos últimos anos, com ampliação do número de traba-lhadores do SUS, das unidades de saúde, dos serviços oferecidos e uma melhor estruturação da gestão, sobre-tudo do setor de Planejamento em Saúde.

Vale lembrar que os Planos Municipais con-templados por esse estudo não guardam uma relação temporal com as Conferências, visto que a elaboração antecede a realização das plenárias. A pesquisa preten-dia identificar as semelhanças entre as proposições das plenárias e ações do Plano, mas nesse caso, o que se caracterizou como semelhança, podemos indicar que

nos parece mais coincidência. Também não se encon-trou na Agenda de Saúde elementos pelos quais pudés-semos avaliar com mais objetividade a incorporação das propostas das Conferências nos instrumentos de gestão. No entanto, o Plano de 2005-2008, poderia ter feito alguma referência à plenária de 2003 e o 2001-2004 à Conferência de 2000. Por exemplo, o Plano de Saú-de 2009-2012 de São Joaquim, construído semelhante ao anterior (2001-2004), indica que foi elaborado pela equipe central, a partir das intenções do Plano de Go-verno. Não foi encontrada, nesse documento, nenhuma referência a quaisquer das proposições das Conferências anteriores (2003, 2005 e 2007).

O fato de não se encontrar referências diretas às proposições das Conferências nos Planos Municipais de Saúde gera uma preocupação quanto à legitimidade desses espaços. Assim, questiona-se se as Conferências, da maneira como hoje se apresentam, vêm conseguin-do ser um mecanismo de controle social que apresente

Municípios Conferência 2003

Ações dos Planos de Saúde do 1º quadriênio

% de propostas das Conferências semelhantes nos Planos

Chapecó 54 59 10,1Criciúma 43 52 17,3Florianópolis 169 58 24,1Joaçaba - - -Joinville 56 105 1,9Major gercino 19 48 8,3Maravilha 26 69 1,4rio do Sul 33 101 2,9São Joaquim 10 53 9,4Total 410 545 8

Conferência 2007

Ações dos Planos de Saúde do 2º quadriênio

% de propostas das Conferências semelhantes nos Planos

Chapecó 127 348 7,1Criciúma 28 120 8,3Florianópolis 427 606 26,7Joaçaba 43 13 -Joinville 29 101 41,5Major gercino 32 57 22,8Maravilha 13 77 2,6rio do Sul 79 149 1,3São Joaquim 15 63 4,7Total 793 1534 16,8

tabela 4. Comparação das propostas das Conferências Municipais de Saúde de 2003 e 2007 com as ações dos respectivos Planos Municipais de Saúde, por município

Fonte: relatório final do projeto de pesquisa: Estudos avaliativos das conferências de Saúde, dos municípios de Chapecó, Criciúma, Florianópolis, Joaçaba, Joinville, Major gercino, Maravilha, rio do Sul e São Joaquim.

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diretrizes para a política de saúde do quadriênio seguinte, que podem ser monitoradas pelo Conselho e transforma-das em programas e ações de saúde pelos gestores.

Ao serem perguntados sobre a incorporação das propostas das Conferências nos instrumentos de gestão, os entrevistados foram maioria ao afirmar que a cons-trução dos Planos de Saúde dos municípios são docu-mentos construídos pelos técnicos da gestão, em geral, suas ações não foram definidas com base nos Relatórios das Conferências Municipais de Saúde e é um docu-mento pouco conhecido na cidade.

Para os entrevistados de Criciúma: “o Plano foi construído sem a participação da sociedade” (Usuário 1); o Profissional 1 destacou que a elaboração “foi entre qua-tro paredes”; já o Usuário 2 alegou não saber responder essas questões por desconhecer o processo. O Gestor 1 colocou que as questões de saúde eram discutidas e apro-vadas pelo conjunto do governo através do planejamento estratégico, considerando as deliberações do orçamento participativo e consultando os setores técnicos da Se-cretaria. Segundo ele, através da política de orçamento participativo, a sociedade foi ouvida. De acordo com o Prestador 1 de Joinville, o quadro apresentado é fruto do fato das Conferências serem apenas consultivas e não deliberativas. Para a Usuária 2, da mesma cidade,

o fato das Conferências não serem deliberativas: prejudica o controle/cobrança ao Gestor quanto à implantação destas e causa desânimo a cada vez que se fala em organizar uma Conferência.

Já para o Gestor 3, “as proposições são considera-das e o Relatório Final da Conferência é parte do Plano de prioridades da Secretaria”. Para os entrevistados de Chapecó, a construção dos Planos foi efetuada, essencial-mente pela equipe do setor de Planejamento da Secre-taria Municipal de Saúde. “A participação do Conselho Municipal de Saúde na construção do Plano de 2001-2004 foi muito restrita” (Entrevistado 6). Entre os entre-vistados de Major Gercino, três declararam que os Planos de Saúde englobam as propostas das Conferências, o En-trevistado 03, ressaltou que “nem todas, fica muita coisa para trás” e três não souberam responder.

Embora não identifiquem semelhanças entre a Con-ferência de 2007 e o Plano Municipal (2005-2008), os

entrevistados de Rio do Sul mencionaram que há certo esforço da Secretaria Municipal e da gestão em contemplá-las, expuseram pontos atrelados à incorporação das pro-postas, principalmente, aos recursos financeiros. Pergun-tamos aos entrevistados de Florianópolis se as propostas das Conferências estão sendo consideradas pela Gestão e a maioria respondeu que estão sendo parcialmente contem-pladas. Para o Entrevistado 2, o percentual é mínimo; já para o Entrevistado 7, “eu acho que estão sendo contem-pladas, talvez não no ritmo que se desejava”.

O tema da participação e da realização de planeja-mentos participativos tem se tornado uma retórica conti-nuamente repetida no âmbito das políticas sociais. Pelos indicadores das Tabelas 3 e 4 e pelas falas dos entrevista-dos, os processos de planejamento na área da saúde estão longe de confirmarem a materialização dessa retórica. As entrevistas não indicam que os planejamentos participa-tivos na área da saúde estejam acontecendo e, do mesmo modo, o conteúdo dos documentos operativos da políti-ca de saúde evidenciam que as proposições aprovadas nas Conferências não subsidiam a definição dos objetivos e prioridades dos Planos Municipais de Saúde. O Plano Municipal de Saúde enquanto um instrumento que deve dar a direção da gestão da política da saúde não parece, para os entrevistados, algo que lhe seja próximo. Muitos lembram apenas do processo formal de aprovação nos Conselhos. Do mesmo modo que os Relatórios das Con-ferências, os Planos Municipais de Saúde também não são documentos manuseados com regularidade para di-recionar a pauta dos Conselhos. Nas entrevistas, não se identificou qualquer monitoramento/acompanhamento desses dois documentos pelos delegados das Conferên-cias, pelo Conselho Municipal, pelos Conselhos Locais ou outros movimentos sociais.

Pelas características das Conferências (forma de organização mais informal e não deliberativa, perfil dos participantes, relatoria que sintetiza propostas, a repe-tição de várias propostas em praticamente todas as eta-pas), o documento que resulta (Relatório Final) é me-nos técnico, mas reflete necessidades não atendidas de usuários, trabalhadores, prestadores e gestores. As pro-postas aprovadas não possuem uma conexão direta em linguagem, tempo da burocracia, metas e indicadores que regem o cotidiano de uma Secretaria Municipal de Saúde e seus instrumentos de gestão.

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Não foram identificadas formas de comunicação do Relatório da Conferência com o Plano de Saúde, e nem do Plano de Saúde com o Relatório da Conferência. Por-tanto, são documentos que se estruturam com dinâmicas e lógicas distintas e independência entre si. Entendemos que o Plano Municipal de Saúde, a depender da perspectiva política do gestor mais democrático e aberto, a participa-ção popular, poderia ser um instrumento que realizasse as mediações entre as necessidades de saúde apresentadas nas instâncias das Conferências e Conselhos e fosse colocado em termos de linguagem técnica nos Planos e na gestão cotidiana dos serviços. De outro modo, indica-se que os Relatórios das Conferências sejam debatidos nos Conse-lhos com objetivo de que as propostas sejam traduzidas como necessidades de saúde pública e coletiva vinculadas às diretrizes e princípios do SUS.

Utilizando-se outro recorte de pesquisa, o estu-do de Cortes (2009), a partir da revisão de literatura sobre Conselhos e Conferências, teve como pergunta norteadora: ‘qual era o poder e a capacidade dos Conse-lhos e Conferências influírem no contexto da política de saúde’. As conclusões alcançadas foram semelhantes.

O papel que cada processo conferencista, pode ter na área da saúde, é em grande parte, definido pelos conflitos que se explicitam e pelas articu-lações que se realizam entre atores por meio dos limites administrativos que separam cada um des-tes espaços decisórios. (CORTES, 2009, p. 121, destaque do original).

Em síntese, segundo a autora, o papel democrati-zador da Conferência é inegável e bastante reconhecido, mas sua capacidade de influência sobre o processo de decisão política na área da saúde é limitado e depende da conjuntura local, estadual e nacional no período em que cada evento se realiza.

Estudos futuros poderão se deter com mais atenção na observação de como os Conselhos de Saúde trabalham ou pautam as proposições aprovadas nas Conferências. De acordo com o relato dos entrevistos, em grande medi-da os resultados do ‘processo conferencista’ que acontece na maioria das cidades a cada quatro anos, parece passar ao largo dessa instância de controle social que se encon-tra mensalmente. O Conselho de Saúde poderia ser o

mediador entre as demandas e necessidades de saúde re-fletidas nesse grande evento da saúde pública municipal (plenária da Conferência) e a deliberação dos instrumen-tos gestão. Ou seja, como indicado acima, os dois docu-mentos (Relatórios das Conferências e Planos Munici-pais de Saúde) não se comunicam imediatamente ou de forma automática, pela natureza do espaço em que cada um nasce. Essa comunicação, ou não, entre esses dois do-cumentos é permeada por uma intencionalidade política. Um caminho para a realização do diálogo entre esses dois documentos poderia ser viabilizado, sendo pautado pe-riodicamente no Conselho de Saúde. Os resultados do debate nesses colegiados de participação social poderiam fundamentar e sustentar a tomada de decisão pelos gesto-res sobre prioridades e orçamentos da saúde.

Escorel e Bloch (2005) estudaram o papel desem-penhado pelas Conferências Nacionais de Saúde na cons-trução do SUS e indicaram o quanto as proposições da oitava foram decisivas para a criação do SUS na Consti-tuição de 1988 e a sua posterior regulamentação nas leis 8.080 e 8.142 de 1990. A nona e a décima, com suas par-ticularidades, apresentaram indicativos importantes para as Normas Operacionais Básicas do SUS de 1993 e de 1996. A décima segunda enfatizou a necessidade da re-tomada e respeito aos princípios do SUS e da Seguridade Social. Todas essas plenárias aprovaram proposições que contribuíram, ao longo dessas duas décadas, para que se consolidasse o papel decisório dos Conselhos e Confe-rências e interferiram nos rumos das regulamentações e no processo de descentralização das políticas de saúde. Apesar das autoras não fazerem essa referência explícita, concluímos a partir de suas reflexões, que o papel desem-penhado pelas Conferências na construção do SUS foi decisivo, mas não linear e nem isento de conflitos, per-manecendo ainda o dilema de como lidar na dinâmica da política e da gestão com esse mecanismo de controle social que vem crescendo em número de participantes e ampliando sua realização nas esferas subnacionais.

Pelas características que as Conferências assumi-ram, especialmente depois de 1986, de ser um evento, mais informal, não deliberativo e aberto a um grande número de participantes dos vários segmentos sociais para vocalizarem suas demandas, não defendemos que elas se tornem um evento técnico, no sentido de utili-zar a linguagem que hoje permeia os espaços de gestão

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e planejamento do SUS ou o debate acadêmico da saúde pública. Os conflitos na organização e dinâmica das plenárias têm levado muitos sujeitos políticos a indicarem que esse modelo não está contribuindo na construção do SUS. A participação social nas decisões das políticas públicas brasileiras ainda está dando seus primeiros passos e, por isso, a tendência de reorientar mais a dinâmica das Conferências e reduzir o papel deliberativo dos Conselhos, deve ser vista com muita cautela. Precisamos sim de regulamentos e regimentos, não para esconder os conflitos, os interesses contradi-tórios e corporativistas, mas no sentido de organizar plenárias para tratar das demandas que dizem respeito à política e à gestão de um serviço de saúde que seja público e de caráter coletivo.

É preciso ressaltar que não entendemos que todas as virtudes sociais e políticas, no sentido da realização do direito social público e coletivo, estão assentadas nessas instâncias colegiadas de controle social. Mas, o que se defende aqui é uma maior permeabilidade do processo técnico e político da gestão às necessidades de saúde colocadas pelas instâncias de participação social e que o grupo técnico da gestão possa também compreender seu papel pedagógico de traduzir para sociedade sua linguagem, burocracia e dinâmica de gestão, quando compõem e participam desses espaços de controle social. Ou seja, simplificando os proces-sos burocráticos que separam o Estado do cidadão comum adotando, por exemplo, vários instrumentos de comunicação setoriais e intersetoriais presenciais, impressos e on-line. Enquanto serviço e servidor pú-blico, esse papel pedagógico faz parte de uma gestão que pretenda ter transparência na realização das ações e no uso dos recursos públicos.

Considerações finais

Para avaliar a inserção das proposições das Conferências Municipais de Saúde nos Planos Municipais de Saúde, em nove municípios de Santa Catarina, que era o obje-tivo deste trabalho, contextualizamos de maneira breve este tema no âmbito do SUS e do debate sobre parti-cipação social na saúde. Ao se estudar os documentos das Conferências Municipais de 2003 e 2007, vimos

que a segunda plenária, apresenta quase o dobro das proposições das plenárias de 2003. Isso parece seguir uma tendência que se observa nas etapas estaduais e na-cionais do número de proposições se ampliando. Mas, observando-se a distribuição dessas categorias pelas duas plenárias pesquisadas, identifica-se um percentu-al de distribuição bastante semelhante entre elas, com destaque para a atenção à saúde que de 2003 para 2007 aumentou um pouco mais de 10% o número de pro-posições e participação da comunidade, que diminuiu quase 12% de 2003 para 2007. O conjunto dos resulta-dos da pesquisa nos permite avaliar que as propostas das Conferências são pouco orientadas para fortalecer os princípios do SUS, pois de fato, as propostas das Con-ferências voltaram-se mais para as necessidades de saúde imediatas dos usuários e reivindicações dos trabalhado-res da saúde, o que não diminui sua legitimidade.

No estudo das proposições das Conferências e sua relação com as metas e ações dos Planos Municipais de Saúde, a pesquisa constatou a baixa incorporação das pro-posições das Conferências junto ao documento base para execução da política de saúde local. Na comparação entre as ações constantes nos Planos Municipais de Saúde e as proposições aprovadas nas Conferências, foram identifica-das 303 ações semelhantes ou aproximações, representan-do 16,8% do total de ações constantes nos Planos.

Para responder o principal objetivo da pesquisa de avaliar em que medida os Planos de Saúde incor-poram as proposições da Conferência, no processo de sistematização dos dados, identificamos as seme-lhanças entre as proposições das plenárias e ações do Plano, mas pela forma com que esses documentos são estruturados, nesse caso o que se caracterizou como semelhança, na verdade é coincidência, pois além dos Planos serem anteriores às Conferências em estudo, não contemplaram as proposições das Conferências que o antecederam.

Vale fazer uma observação sobre a pouca represen-tatividade de propostas em relação à Seguridade Social nas Conferências e completa ausência nos Planos de Saúde, o que, de uma certa forma, reflete o distancia-mento das políticas econômicas e sociais na lógica de se pensar a saúde e os serviços de proteção social como um sistema que envolve o tripé da saúde, assistência social e previdência social.

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Diante desses resultados, é possível tecer algu-mas considerações de que as propostas das Conferên-cias vêm sendo esquecidas dentro dos documentos oficiais de gestão da política de saúde do município. O fato de não se encontrar referências diretas às pro-posições das Conferências nos Planos Municipais de Saúde gera uma preocupação quanto à legitimidade desses espaços de participação social institucionaliza-dos. Assim, questiona-se se as Conferências, da ma-neira como hoje se apresentam, vêm conseguindo ser um mecanismo de controle social que deem a direção da gestão de saúde local com base nas necessidades de saúde de seus munícipes.

Os espaços de controle social, via Conferên-cias e Conselhos de saúde, ganharam densidade e reconhecimento político, institucional e acadêmico nas duas últimas décadas, como também ampliaram a representação de entidades sociais em seu meio (CORTES, 2009); no entanto, como evidenciou os resultados desta pesquisa, isso não tem significado preponderância desses sujeitos políticos na definição da agenda da gestão. De alguma forma, podemos di-zer que se segmentos sociais historicamente excluídos da definição das políticas públicas em pouco mais de 20 anos conseguiram pautar e debater suas deman-das nos espaços de controle social, o desafio que se tem pela frente é fazer com que suas demandas sejam incorporadas nos instrumentos de gestão, especial-mente no Plano Municipal de Saúde. E, insistimos, esse processo não necessita que os espaços participa-tivos se transformem em espaço tecnicoburocrático, nos quais delegados de Conferências e conselheiros tenham que ter domínio do mesmo conhecimen-to e capacidade gerencial dos gestores. O princípio democrático que sustenta a diretriz participativa do SUS se assenta no ideário de que as gestões deveriam ser permeáveis às necessidades de saúde apresentadas nesses colegiados. Não se imagina um locus isento de conflitos, mas que as gestões trabalhem para atender as necessidades coletivas e públicas na área da saúde. E a construção do Plano de Saúde representa um dos primeiros passos.

Evidente que diante dessas dificuldades e limites apontados pela pesquisa, reconhecemos que as Confe-rências se constituem em um importante espaço para

o debate democrático da política de saúde. Esse debate tem a potencialidade de formar novos sujeitos políticos com condições de qualificar as diretrizes políticas nas próprias Conferências, como nos Conselhos de Saúde e nas demais políticas sociais. Não defendemos aqui as Conferências como um espaço de consenso, mas reconhecemos como uma plenária que ao tensionar o debate também articula forças sociais convergentes, divulga novas posições de defesa dos direitos, socia-liza informações sobre a burocracia da gestão, sobre financiamento, indicadores de saúde e doença e, so-bretudo, apresenta as necessidades de saúde a partir da vocalização de seus usuários, trabalhadores e gestores. Esses espaços de controle social precisam ser avaliados constantemente sobre o seu papel de se tornarem cole-giados e plenárias fortes para se contraporem a lógica neoliberal de redução dos direitos sociais, da privatiza-ção dos serviços públicos e se tornarem de fato espaços de defesa do SUS.

É importante destacar que nem só de pessimis-mo, ou de críticas, vive o controle social do SUS. As Conferências são espaços privilegiados para a partici-pação, construção e avanço do processo democrático, procurando reforçar o papel do município na assis-tência à saúde. Em tempos onde o projeto de saúde está pautado nas políticas de ajustes com ênfase nas parcerias, estímulo ao seguro privado, focalização das ações, e na proposta privatista de saúde, ainda que de maneira incipiente, as Conferências e os Conselhos, enquanto espaços para exercício do controle social, contribuem para a manutenção do regime democrá-tico da sociedade brasileira. É nesses espaços que se fortalece a democracia participativa, constituindo-se como instrumento privilegiado para que a sociedade altere seu estatuto de exclusão nas decisões junto às esferas do poder público.

Por fim, ressalta-se a importância das Conferên-cias como instrumento de educação política, ao cons-tituírem como um espaço estratégico para socializa-ção do debate do SUS, para a escuta das necessidades cotidianas sentidas pelos trabalhadores, usuários, prestadores e gestores, possibilitando a mobilização e a interferência da sociedade civil sobre o planeja-mento, a implementação, a avaliação e o controle das ações do Estado.

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Referências

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KrÜgEr, t.r. et al. (Coord.). Estudos avaliativos de conferências de Saúde: a inclusão das suas proposições na agenda das políticas de saúde - Santa Catarina departamento de Serviço Social, universidade Federal de Santa Catarina, agosto de 2010.

recebido para publicação em abril/2011 Versão definitiva em outubro/2011 Suporte financeiro: Fundo Nacional de Saúde, Portaria 719/2007 conflito de interesse: inexistente

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ARTIgO ORIgInAL • origiNal articlE

Financiamento do sistema de saúde na Região Metropolitana do Rio de Janeiro: um estudo do município de Nilópolis

Financing of the health system in the Metropolitan region of rio de Janeiro: a study of city of Nilópolis

daniela Savi geremia1, Fátima teresinha Scarparo Cunha2

RESUMO objetivou-se identificar e analisar os indicadores de capacidade tributária do município de Nilópolis para o financiamento da gestão do Sistema Único de Saúde (SuS) nos anos de 2007 e 2008. tratou-se do estudo de caso de um município da região Metropolitana do Estado do rio de Janeiro, a partir dos indicadores disponíveis no Sistema de Informações sobre orçamentos Públicos de Saúde. os resultados mostraram baixa arrecadação tributária do município e alta dependência de transferências constitucionais do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e legais (SuS) da união. Enfatiza-se a necessidade de discutir o federalismo fiscal brasileiro e refletir sobre estratégias e mecanismos para as especificidades do financiamento da saúde em cidades metropolitanas.

PALAVRAS-CHAVE: Federalismo; Financiamento em Saúde; gestão em Saúde.

ABSTRACT the main objetive of this article was to identify and to analyze the indicators of tax capacity of the municipality of Nilópolis for financing the management of the unified Health System (SuS) in the years 2007 and 2008. this was the case study of a municipality in the metropolitan region of rio de Janeiro, from the indicators available in Public Health Budget information System. the results indicated the low tax revenue of the municipality and its high dependence on constitutional (FPM) and legal (SuS) transfers from the union. it is emphasized the need to discuss the Brazilian fiscal federalism and to reflect about strategies and mechanisms for the specific financing in the metropolitan cities.

KEywORDS: Federalism; Financing, Health; Health Management.

1 doutoranda em Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social (IMS) da universidade do Estado do rio de Janeiro (uErJ) – rio de Janeiro (rJ), Brasil. [email protected]

2 doutora em Saúde Coletiva pela uErJ – rio de Janeiro (rJ), Brasil. Professora do departamento de Enfermagem de Saúde Pública da Escola de Enfermagem alfredo Pinto da universidade Federal do Estado do rio de Janeiro (uNIrIo) – rio de Janeiro (rJ), Brasil. [email protected]

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gEREmIA, D.s.; CunhA, F.T.s. • Financiamento do sistema de saúde na região Metropolitana do rio de Janeiro: um estudo do município de Nilópolis

Introdução

O sistema de saúde brasileiro, instituído como Sistema Único de Saúde (SUS), representa uma conquista no pro-cesso de redemocratização do país, pois determinou novos rumos a essa política pública social. É um sistema desafia-dor, tanto na sua organização quanto no seu financiamento, especialmente, ao instituir o acesso universal e equitativo, e a descentralização com gestão dos governos subnacionais (ARRETCHE, 2003; SANTOS, ANDRADE, 2006).

O ideal materializado na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) não se concretizou plenamente por razões estruturais, de caráter econômico, político e social da própria formação da federação brasileira e do quadro de forte centralização nos períodos de regime ditatorial. Entretanto, são inegáveis os avanços do SUS após 20 anos de sua implantação. Por ser um sistema de tamanha audácia para um país continental como o Brasil e com população com condições de vida extrema-mente heterogêneas no território nacional, alguns desa-fios precisam ser estudados e enfrentados para compre-ender como a descentralização e a autonomia idealizada pelos entes governamentais se expressam na realidade de um determinado município.

A questão que instigou a realização desta discussão tem origem na leitura dos argumentos de muitos estu-dos nas áreas da economia e gestão pública de saúde. Tais estudos demonstram que grande parcela dos mu-nicípios brasileiros tem elevado grau de dependência fi-nanceira e administrativa da União para a provisão das políticas públicas sociais, reduzindo os avanços preten-didos com a descentralização idealizada na Constitui-ção Federal de 1988.

Destarte, o objetivo deste artigo é analisar os fluxos financeiros dos governos federal e estadual do Rio de Janeiro e a capacidade tributária de arrecadação própria para o financiamento do SUS do município de Nilópolis (RJ), nos anos de 2007 e de 2008.

A saber, os fluxos financeiros e a capacidade tribu-tária referem-se à composição da receita orçamentária e as despesas com saúde do município de Nilópolis-RJ.

Com base no exposto, este estudo pretende res-ponder a seguinte questão: como são as relações inter-governamentais e o grau de autonomia fiscal do muni-cípio de Nilópolis para o financiamento do SUS?

Nilópolis se ressente de problemas fiscais ca-racterísticos de municípios que compõem as regiões metropolitanas brasileiras, especialmente, as cidades-dormitório. Ao mesmo tempo em que se encontram nas fronteiras com a capital do estado, em geral, com economia dinâmica, são cidades penalizadas, pois apre-sentam demandas sociais de infraestrutura urbana, de-correntes de problemas peculiares do entorno dos gran-des centros urbanos. Além disso, não são contemplados por repasses financeiros específicos para essas regiões. Tais especificidades dos municípios de regiões metro-politanas requerem investigação, para compreender as relações intergovernamentais no âmbito fiscal entre as esferas subnacionais. No caso do financiamento da política pública de saúde, as dificuldades de gestão dos municípios da Região Metropolitana contrastam com a concentração de recursos no município do Rio de Ja-neiro que, por sua vez, compete com a gestão estadual da saúde. Estudar o município de Nilópolis possibilita discutir a lógica do financiamento público de saúde que é influenciada pelo sistema tributário brasileiro.

Aspectos federativos e a política de saúde no brasil

As transferências de recursos federais e estaduais para o custeio dos sistemas municipais de saúde são de gran-de importância no financiamento da saúde pública nos municípios, uma vez que o financiamento do SUS é compartilhado entre a União, os estados e os municí-pios. Entretanto, o grau de importância varia entre os municípios de acordo com a capacidade de cada um em exercer seu papel de gestor da saúde a partir das bases fiscais de arrecadação própria (MENDES, 2005).

A autonomia fiscal dos municípios é questionada porque muitos municípios brasileiros não têm capacida-de de arrecadação suficiente para prover os serviços que estão sob sua responsabilidade, a partir da Constituição Federal de 1988, de acordo com as necessidades e proble-mas de saúde próprios da sua população. Assim, necessi-tam de recursos financeiros provenientes da União e dos estados. As transferências constitucionais visam equalizar a capacidade de gasto dos municípios brasileiros e com-põem a base de cálculo para o financiamento do SUS.

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gEREmIA, D.s.; CunhA, F.T.s. • Financiamento do sistema de saúde na região Metropolitana do rio de Janeiro: um estudo do município de Nilópolis

Um importante pilar de sustentação à política se-torial de saúde está no cofinanciamento do Ministério da Saúde (MS). Entretanto, suas regras de distribuição de recursos financeiros até os Pactos pela Saúde, de 2006, reforçavam o financiamento dos municípios em gestão plena do Sistema Municipal de Saúde, ou seja, municípios com um conjunto de serviços de saúde com os três níveis de assistência à saúde: atenção básica, mé-dia e alta complexidade (MENEZES, ASSIS, 2006).

Entre 2000 e 2008, a participação dos três entes no financiamento do SUS variou bastante. Até o adven-to da Emenda Constitucional n° 29/2000 (BRASIL, 2000), a participação do governo federal era amplamen-te majoritária e, após sua aprovação, os estados e muni-cípios aumentaram a participação no financiamento do SUS. Em 2000, a participação da União era de quase 60% (59%) e vem caindo desde então, atingindo 45% em 2008. Concomitantemente, os estados passaram de 19% em 2000, para aproximadamente 25% em 2008 e o mesmo ocorreu com os municípios de 22%, em 2000, para 30%, em 2008 (BENEVIDES, 2010).

A redução percentual da participação do MS no fi-nanciamento do SUS correspondeu ao aumento da par-ticipação dos estados e, principalmente, dos municípios. Outra marca desse período é a descentralização de recursos federais, via repasse fundo a fundo (transferências legais). Todavia, cabe destacar que a descentralização de recursos não induziu maior autonomia de gasto em saúde pública para os municípios, pois são recursos transferidos median-tes adesão a programas e ações definidas centralmente pelo MS. O estudo de Machado (2005) exemplifica como são estabelecidas as relações intergovernamentais:

[...] Ao definir o PSF (Programa Saúde da Fa-mília) como estratégia prioritária para todo o país e adotar uma série de normas e incentivos nesse sentido, o Ministério da Saúde não esti-mula iniciativas diferenciadas de transforma-ção do modelo de atenção, que poderiam ser mais adequadas a algumas realidades específi-cas. (MACHADO, 2005, p. 198-199).

A capacidade de arrecadação de recursos dos muni-cípios está condicionada pelos níveis de emprego, renda e consumo no município. Para reduzir a desigualdade

na capacidade de gasto dos municípios há o Fundo de Participação dos Municípios (FPM).

O FPM foi criado considerando-se a baixa ca-pacidade dos municípios brasileiros de arrecadarem impostos locais. Segundo Prado (2003, p. 65),

[...] o fundo teve sempre caráter de um certo tipo de ‘renda mínima’ fiscal para compensar a limitação das bases próprias das pequenas localidades.

Na prática, o fundo tornou-se o principal meca-nismo de financiamento dos municípios.

A base para a composição da receita vinculada à saúde através da EC-29/2000 determina que a União, após o ano de 2001, corrija o orçamento do MS pela variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB). Para estados, Distrito Federal e municípios, o montante mí-nimo de recursos aplicado em saúde deve correspon-der a um percentual da receita de impostos arrecadados pelo respectivo ente federado e transferências constitu-cionais e legais. Esse percentual foi gradualmente am-pliado até alcançar 12% para os governos estaduais e do DF e 15%, para os governos municipais, de 2004 em diante (BRASIL, 2000).

Acredita-se que se faz necessária a presença decisi-va do Estado, para que a formulação de políticas públi-cas de saúde ganhe concretude em um sistema de saúde compatível com as necessidades de saúde da popula-ção. Cabe ao Estado redistribuir recursos sob a lógica do interesse social coletivo, como forma de garantia do princípio constitucional de saúde como direito de cida-dania e dever do Estado. As ações e serviços de saúde são responsabilidades dos três níveis de governo, que devem exercê-las de acordo com os dispositivos legais e normativos, possibilitando a organização, funciona-mento e avaliação do sistema de saúde.

A Constituição Federal de 1988 reforçou o mo-delo federativo de organização do Estado brasileiro. A federação brasileira é inovadora ao considerar, no texto constitucional, os municípios como entes federados; o único país no qual a Federação é integrada por três en-tes federativos, União, estados e municípios, com poder político e autonomia fiscal. Conforme Lima (2006), os movimentos constituintes que visavam à reforma

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tributária e à reforma sanitária objetivaram um sistema fiscal descentralizado, em reação ao caráter centralizador do período do regime militar e, ainda, ampliaram a au-tonomia fiscal e participação política dos municípios.

Ao mesmo tempo, ocorre o reconhecimento dos direitos civis da população e a incorporação dos movimentos sociais na formulação, controle e implementação de políticas públicas, legiti-mando a dimensão política das pressões pela descentralização. (DAIN, 2000, p. 77).

Foi seguindo essa lógica que os dispositivos con-tidos na Constituição Federal de 1988 transformaram os governos municipais nos principais responsáveis pela oferta de ações e serviços de saúde, além de ampliar a competência tributária para as esferas municipais e complementar a repartição da competência tributária com o aprofundamento do sistema de cotas de partici-pação nas receitas federal e estadual.

Metodologia

Este estudo obteve aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), em 24 de setembro de 2009, Parecer Nº 37/2009, de acordo com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) 196/96 (BRASIL, 1996).

Tratou-se de um estudo de caso do município de Nilópolis, situado na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), a partir dos indicadores que compõem a base de cálculo da EC-29/2000 e demais indicadores de fluxos financeiros que permitam a análise da capaci-dade tributária do município. Esses dados e indicadores estão disponíveis no Sistema de Informações sobre Or-çamentos Públicos de Saúde (SIOPS).

Nilópolis compreende uma área total de 19 km² e segundo o Censo Demográfico de 2010, do IBGE (IBGE, 2010), a população é de 154.232 habitantes. A escolha de

Nilópolis se deveu aos indicadores sanitários e de desenvol-vimento social que revelam alta proporção de domicílios atendidos pelos indicadores que seguem, ao comparar-se ao desempenho deficiente dos demais municípios da RMRJ, em 20001: rede geral de água em 96% dos domi-cílios; rede geral de esgoto ou pluvial em 79% dos domicí-lios (em 1991, a cobertura era de 3,2%); e 98,9% de lixo coletado pelo município (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, 2000).

Em Nilópolis, a ampliação da cobertura desses serviços básicos, diferentemente dos demais municípios que compreendem a RMRJ, é um fato instigante que nos leva a questionar: Por que Nilópolis conseguiu am-pliar os serviços de acesso à água, de coleta de lixo e de esgotamento sanitário, enquanto os demais municípios da RMRJ permaneceram estagnados?

Na RMRJ, o município encontra-se na tercei-ra posição no Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), de 0,78. O IDHM de Nilópolis corresponde ao IDH-renda de 0,72; IDH-longevidade de 0,70 e IDH-educação de 0,93. Na sequência, está na terceira posição, atrás do indicador de Niterói e do Rio de Janeiro, respectivamente2. Apresenta, ainda, o melhor indicador de distribuição de renda domiciliar per capita da RMRJ, índice de Gini3 de 0,48, situação similar aos municípios de Tanguá e São João de Meriti (PNUD, 2000).

Os dados estudados foram extraídos do SIOPS, para os anos de 2007 e 2008. A escolha do SIOPS como principal fonte de dados se deve pelas seguintes razões: constitui-se em um banco de dados completo e abrangente das receitas orçamentárias dos municípios e estados brasileiros; é alimentado pelos estados, Distri-to Federal e municípios, por meio do preenchimento de dados em software desenvolvido pelo DATASUS/MS e permite acompanhar as receitas totais e os gas-tos públicos com ações e serviços de saúde; as infor-mações recebidas e consolidadas pelo SIOPS respeitam, ao máximo, os balanços orçamentário-financeiros dos estados e municípios e seguem a classificação nacional

1 os indicadores sanitários e de desenvolvimento social apresentados neste estudo são do ano de 2000, sendo que esses dados são atualizados de dez em dez anos acompa-nhando o censo demográfico realizado pelo IBgE. o último censo ocorreu em 2010, porém os dados ainda não foram integralmente disponibilizados.2 o IdH foi criado para medir o nível de desenvolvimento humano dos países a partir de indicadores de educação, longevidade e renda (PIB per capita). o índice varia de 0 (nenhum desenvolvimento humano) a 1 (desenvolvimento humano total). Niterói apresenta IdH 0,88, IdH-renda 0,89, IdH-longevidade 0,80 e IdH-educação de 0,96 e o rio de Janeiro apresenta IdH 0,84, IdH-renda 0,84, IdH-longevidade 0,75 e IdH-educação de 0,93.3 Mede o grau de desigualdade existente na distribuição de indivíduos segundo a renda domiciliar per capita. disponível em: atlas de desenvolvimento Humano – PNud.

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da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), relativa às receitas da saúde (BENEVIDES, 2010).

Analisaram-se os seguintes dados e os indicadores: composição das receitas correntes (receitas tributárias de arrecadação própria); receitas de transferências cons-titucionais; receitas de transferências do SUS (repasse fundo a fundo); total de despesas com saúde; despesa total com recursos próprios; percentual de transferên-cias do SUS no gasto total em saúde; percentual de re-cursos aplicados em saúde.

As transferências podem ser classificadas como: transferências constitucionais; legais e voluntárias. Para a base de cálculo da EC-29/2000 são consideradas, so-mente, as transferências constitucionais. Neste estudo, utilizaremos as constitucionais e legais para fins de aná-lise dos fluxos financeiros.

As transferências constitucionais correspondem parcelas das receitas federais arrecadadas pela União que são repassadas aos estados, ao Distrito Federal e aos mu-nicípios, de acordo com a CF/1988 (BRASIL, 2009).

As transferências legais são recursos transferidos previstos em leis específicas e determinam a forma de ha-bilitação, a aplicação dos recursos e respectiva prestação de contas, por exemplo, transferências destinadas ao SUS (Lei n° 8.080/90 – n° 8.142/90) (BRASIL, 2009).

As transferências voluntárias são os recursos fi-nanceiros repassados pela União aos estados, Distrito Federal e municípios em decorrência de cooperação, auxílio financeiro ou assistência financeira, cuja fina-lidade é a realização de obras e/ou serviços de interes-se comum e coincidente às três esferas do Governo (PRADO, 2003).

Ao conceituar as transferências, cumpre esclare-cer que a base vinculável de recursos para o cálculo e a aplicação, conforme prevê a EC-29/2000, é composta por recursos próprios e transferidos. A base da receita municipal compreende:• Impostos arrecadados pelo município: Imposto

sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU); Imposto sobre a Transmissão Inter Vivos (ITBI); Imposto sobre Serviços de Qualquer Na-tureza (ISS); Imposto sobre a Propriedade Territo-rial Rural (ITR);

• Impostostransferidospelosestados:25%daarreca-dação do Imposto sobre Produtos Industrializados

(IPI); 25% da arrecadação do Imposto sobre Ope-rações relativas à Circulação de Mercadorias sobre a Prestação de Serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS); 50% da arrecadação do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA);

• Impostos transferidos pela União: Imposto deRenda Retido nas Fontes sobre os rendimentos do trabalho (IRRF) e IPI; do somatório dos impostos acima (IPI+IRRF), que são efetivamente arreca-dados, 23,5% compõem o Fundo de Participação dos Municípios, que é distribuído aos municípios, de acordo com a população; 50% do ITR, para os municípios em que estão as propriedades rurais.

Resultados e discussão

Os estudos sobre a conformação do sistema federativo brasileiro apontam, de modo geral, as profundas desi-gualdades estruturais, econômicas, sociais, políticas e administrativas entre as regiões brasileiras. Essas desi-gualdades expressam as enormes dificuldades na capaci-dade dos governos locais financiarem as ações governa-mentais que lhes cabem a partir da CF/1988.

Municípios que são considerados cidades-dormi-tório e pertencentes às Regiões Metropolitanas, como no caso de Nilópolis, têm necessidades e demandas por bens e serviços públicos para a garantia de condições mínimas de bem-estar social devido, principalmente, por sua conformação a partir da periferia dos grandes centros urbanos.

As cidades-dormitório apresentam especificidades nos aspectos de infraestrutura urbana e efetiva partici-pação econômica nas escalas locais, regionais, nacionais e internacionais (baixo dinamismo econômico), fator que influencia diretamente nas condições de vida da população e na relação entre os processos demográficos e sociais dos grandes movimentos populacionais. Os moradores dessas cidades dormem e residem na cidade, mas seu trabalho e vida social acontecem fora do muni-cípio (FREITAG, 2002).

Dentre os principais recursos que compõem a receita municipal arrecadada, encontram-se as receitas próprias (IPTU e ISS) e as transferências constitucionais

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(cota-parte do FPM e cota-parte do ICMS), transferi-das pela União e pelo estado do Rio de Janeiro.

Em grande parcela dos municípios brasileiros, percebem-se algumas dificuldades na arrecadação do ISS. A baixa arrecadação pode estar relacionada com a informalidade dos prestadores de serviço na declara-ção de suas atividades (receita potencial x receita real), a não exigência de nota fiscal por parte do consumidor e a reduzida renda per capita. A composição dos recur-sos próprios arrecadados por Nilópolis é apresentada nas Tabelas 1 e 2.

A receita tributária de arrecadação própria repre-senta 15% das receitas correntes em Nilópolis. É um município com alta dependência de transferências intergovernamentais, às quais predominam as cotas-partes do FPM e do ICMS, além das transferências le-gais vinculadas à educação e à saúde. Essas receitas têm caráter permanente e não dependem da execução do orçamento das demais esferas, como as transferências voluntárias, por exemplo.

O indicador do SIOPS que avalia o grau de de-pendência do município em relação às transferências de outras esferas de governo registrou, em 2008, um percen-tual de 62,24% oriundo das transferências, demonstran-do o quanto o gestor municipal de Nilópolis depende de repasses financeiros para a administração pública.

Na Tabela 2, observa-se que a arrecadação do ISS, se comparada a do IPTU, tem maior representação no total da receita do município. Esse imposto está dire-tamente ligado à atividade econômica e aos imóveis patrimoniais, configurando-se como fonte de recursos fiscais. Em princípio, quanto maior o município, maior é a sua densidade econômica e, portanto, maior a base tributária para a arrecadação do IPTU e do ISS.

Os valores das receitas do IPTU e do ISS por habi-tante estão bem abaixo das médias regional e nacional. A média nacional da arrecadação do IPTU, em 2008, foi de R$ 69,00. A média da Região Metropolitana I (RM I) do Rio de Janeiro foi de R$ 132,00 e da Região Metropolitana II (RM II), de R$ 100,00 por habitante.

tabela 1. Total das receitas correntes e sua composição por categorias econômicas no município de Nilópolis (2007-2008)

RECEITAS CORRENTESReceitas realizadas

em 2007% da receita

corrente 2007Receitas realizadas

em 2008% da receita

corrente 2008113.520.534,82 100,00 129.025.334,37 100,00

receita tributária 17.724.326,12 15,61 19.409.576,81 15,04receita de contribuições 5.339.709,78 4,70 4.017.782,01 3,11receita patrimonial 1.014.471,28 0,89 1.596.522,76 1,23receita agropecuária 0,00 0 0,00 0,00receita industrial 0,00 0 0,00 0,00receita de serviços 4.680.064,87 4,12 4.233.795,28 3,28transferências correntes 77.842.574,19 68,58 93.723.810,01 72,65outras receitas correntes 6.919.388,58 6,10 6.043.847,50 4,69

Fonte: Elaboração própria.

Fonte: Elaboração própria; (*) Percentual da receita é sobre o total da receita corrente; (**) total das receitas correntes sem deduções. IPtu: Imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana; ISS: Imposto sobre serviços de qualquer natureza; ItBI: Imposto sobre a transmissão inter vivos.

Conta contábil Receita Realizada/2007

Receita Corrente (*) 2007 (%)

Receita Realizada/2008

Receita Corrente (*) 2008 (%)

rECEItaS CorrENtES (**) 113.520.534,82 100 129.025.334,37 100receita tributária 17.724.326,12 15,61 19.409.576,81 15,04IPtu 4.611.634,93 4,06 4.908.937,15 3,80ISS 4.693.388,35 4,13 5.891.340,67 4,57ItBI 591.329,95 0,52 669.003,91 0,52

tabela 2. Composição das principais receitas correntes de Nilópolis (2007-2008)

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Para Nilópolis, que se encontra na RM I foi de R$ 31,00 (BENEVIDES, 2010). No que se refere ao ISS, a média de arrecadação por habitante brasileiro, em 2008, foi de R$ 127,00. Para as RM I foi de R$ 281,00 e RM II de R$ 86,00 por habitante. Nilópolis, no mesmo ano, situou-se abaixo das médias nacional e da RMRJ, com R$ 37,00.

Nilópolis também tem baixa arrecadação de IPTU. Entre os maiores problemas enfrentados pelas Prefeituras na arrecadação de impostos, especialmente a do IPTU, que deveria ser sua maior fonte de renda, refere-se ao elevado grau de inadimplência, alíquotas baixas, imóveis com situação não regularizada, entre outras. Isso se torna evidente, quando

[...] pesquisa realizada pelo IBGE mostrou que apenas 13,2% dos municípios receberam o pa-gamento por mais de 80% de suas unidades prediais e 24,6% receberam entre 60% e 80%. (TRISTÃO, 2003, p. 89).

Além das receitas próprias, as transferências cons-titucionais repassadas aos municípios são recursos li-vres, ou seja, não estão vinculados a nenhum programa específico definido por lei, sendo alocadas de acordo com o planejamento dos gestores municipais. Em fun-ção da liberdade de alocação, acabam por não criar e/ou incrementar mecanismos de controle de arrecadação fiscal. Quando a transferência é livre, busca equalizar as capacidades fiscais sem prejudicar a autonomia do ente federado, ao passo que a transferência vinculada está condicionada à execução de programas ou projetos específicos, a saber, a saúde e a educação.

O governo estadual também tem a responsabi-lidade de redistribuir recursos aos municípios, por meio das cotas-partes do ICMS, do IPVA e do IPI-exportação, conforme se observa na Tabela 3 os mon-tantes comparativos das duas principais transferências constitucionais para Nilópolis, o ICMS (estadual) e o FPM (federal). No que concerne à cota-parte do ICMS por habitante, na Região Metropolitana I do Rio de Janeiro, no ano de 2008, foi de R$ 221,00 e na Região Metropolitana II de R$ 146,00. A mé-dia nacional foi de R$ 297,00. Nilópolis recebeu um

montante significativo de recursos provenientes do ICMS, porém, muito abaixo das médias per capita na-cional e regionais para os anos de 2007 e de 2008.

Na Tabela 3 são apresentadas as receitas das transfe-rências das cotas-partes do FPM (transferência federal) e do ICMS (transferência estadual), por habitante, de Ni-lópolis. Em 2008, a média por habitante do FPM, para a Região Metropolitana I, do Rio de Janeiro, foi de R$ 47,00 e, para a Região Metropolitana II, de R$ 83,00. Compara-tivamente, percebe-se uma contradição com a média dos municípios brasileiros, que foi de R$ 277,00 por habitan-te. Nilópolis tem a média semelhante à nacional.

No percentual de participação dos governos fe-deral e estadual na composição das receitas correntes de Nilópolis, em 2008, as transferências constitucio-nais da União (42,79%), acrescidas das transferências do estado (16,36%), representaram, aproximadamen-te, 60% do total de receitas correntes do município. As transferências de recursos do SUS representaram 7,05% (BRASIL, 2010).

Nesse sentido, é possível perceber, também, como o sistema tributário vigente é controverso ao sistema federativo. Enquanto este busca a descentralização e a autonomia dos governos subnacionais, o governo fede-ral centraliza a arrecadação dos principais impostos. A partir disso, reitera-se a importância dos consensos, das negociações e das pactuações entre as três esferas de go-verno, visando à cooperação na aplicação de recursos para custeio e para investimentos no município.

Município de Nilópolis Ano 2007 Ano 2008Cota-parte FPM r$ 183,00 r$ 207,00Cota-parte ICMS r$ 98,00 r$ 107,00

tabela 3. Receitas de Transferências constitucionais da cota-parte do Fundo de Participação dos Municípios e cota-parte do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias sobre a prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação totais do Município de Nilópolis (RJ), 2007 e 2008, em R$ por habitante

Fonte: SIoPS; BENEVIdES, 2010. Nota: Valores corrigidos pela variação média anual do Índice Nacional de Preços ao Consumidor amplo (IPCa); FPM: Fundo de Participação dos Municípios; ICMS: Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias sobre a prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação.

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Ademais, é improvável que todos os municípios brasileiros, especialmente os de pequeno porte, consi-gam a partir de sua limitada base tributária, destinar recursos suficientes para atender a todas as suas obriga-ções constitucionais.

Ressalta-se que as transferências constitucionais da União e do estado não são destinadas obrigatoriamente à saúde, ainda que parcelas de algumas transferências constitucionais compõem a base do cálculo da EC-29/2000. Por outro lado, as transferências de recursos ao SUS, chamadas transferências legais, são obrigatoria-mente vinculadas à saúde, ou seja, elas devem ser gastas em ações e em serviços de saúde e não compõem a base da EC-29/2000.

Mendes (2005) destaca um possível problema para os municípios que apresentam alta dependên-cia das transferências do SUS. Essa situação pode in-fluenciar o comportamento das despesas com saúde, pois é possível alocar os recursos das receitas próprias em outras áreas que não a saúde, o que possibilitaria contar com os recursos fundo a fundo do MS. Estu-do de Mendes demonstra que alguns municípios do estado de São Paulo passaram a utilizar-se de outra estratégia após a EC-29/2000, definindo os 15% da receita disponível como teto e não como mínimo a ser aplicado. Com essa ação, podem ser criados alguns impasses para a expansão nas despesas com saúde na esfera local.

Na EC-29/2000, há a obrigação de os municí-pios aplicarem, no mínimo, 15% da sua arrecadação própria em saúde. Nilópolis aplicou 20,4% em 2007 e 17,7%, em 2008, cumprindo com a legislação. Na Ta-bela 4 são apresentados os montantes em R$ por habi-tante no ano de 2008, atualizado pelo Índice Nacional

de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) (BRASIL, 2010; BENEVIDES, 2010).

Em 2008, o valor da transferência do MS para o município de Nilópolis foi de R$ 84,00 por habitante e a despesa total com saúde foi de R$ 158,00. O per-centual de transferências do SUS em relação ao total das despesas com saúde representou aproximadamente 53%, ou seja, mais da metade do gasto no financiamen-to do SUS foi financiamento pela União através do MS. Em 2007, o município gastava mais em saúde com re-cursos próprios e, em 2008, passou a gastar mais com as transferências do MS.

Considerações finais

Este trabalho se propôs analisar os fluxos financeiros dos governos federal e estadual do Rio de Janeiro e a capacidade tributária de arrecadação própria para o fi-nanciamento do SUS no município de Nilópolis.

As questões levantadas neste estudo de caso nos levaram a reflexões que auxiliam na compreensão da complexidade do arranjo federativo brasileiro e dos de-safios para financiar o sistema de saúde nos municípios metropolitanos.

Nilópolis dispõe de reduzida renda per capita e baixa capacidade de arrecadação de impostos próprios. É altamente dependente das transferências de outras es-feras de governo, principalmente, da União. Os dados obtidos por meio do SIOPS evidenciam a importância das transferências do SUS como fonte regular de recur-sos na arrecadação de Nilópolis. Essas representaram a principal fonte de custeio, com mais de 50%, ou seja, mais da metade do gasto total com saúde.

Fonte: SIoPS Nota: valores corrigidos pela variação média anual do Índice Nacional de Preços ao Consumidor amplo. MS: Ministério da Saúde; rMrJ I: região Metropolitana do rio de Janeiro I.

Municípios Despesas em R$ por habitante 2007 2008Média dos municípios da rMrJ I despesas com recursos próprios r$ 128,00 r$ 146,00

transferências do MS r$ 132,00 r$ 129,00total Nilópolis despesas com recursos próprios r$ 82,00 r$ 74,00

transferências do MS r$ 78,00 r$ 84,00

tabela 4. Despesas com recursos próprios comparadas com transferências de recursos do Ministério da Saúde para o município de Nilópolis e média dos municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro I, em R$ por habitante

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No caso em estudo, as transferências constitu-cionais da União, acrescidas das constitucionais do estado do Rio de Janeiro, representaram aproxima-damente 60% do total das receitas correntes. Em linhas gerais, Nilópolis recebe recursos das cotas-partes do FPM e do ICMS, enquanto as receitas tributárias representaram aproximadamente 15% da receita corrente, que é composta, principalmen-te, pelo ISS e pelo IPTU. Os recursos provenientes do FPM e do ICMS, chamados de recursos livres, nem sempre são destinados à área da saúde, diferen-temente das transferências legais do SUS, que são vinculadas, obrigatoriamente, ao financiamento das ações e serviços de saúde.

Durante o período do estudo, Nilópolis cumpriu com o percentual mínimo de gasto em saúde, de 15% para os municípios, conforme prevê a EC-29/2000. No entanto, ressalta-se a importância da realização de novos estudos que analisem os fluxos de recursos relacionados às necessidades de saúde da população.

Para aprofundar a discussão sobre os fluxos finan-ceiros no financiamento de saúde são necessários novos estudos para a compreensão das especificidades das Re-giões Metropolitanas, pois esses municípios têm lógicas diferentes voltadas à capacidade fiscal e ao potencial de arrecadação tributária.

Finalmente, no tocante à cooperação entre os en-tes federados, em decorrência da alta dependência fiscal do município de Nilópolis das transferências intergo-vernamentais, é fundamental o exercício da autonomia política e, principalmente, financeira na gestão pública. Devem-se pensar alternativas de financiamento público em saúde para as Regiões Metropolitanas com o intuito de estabelecer mecanismos de partilha fiscal aos territó-rios com interesses e necessidades comuns e no incentivo à cooperação horizontal. Esses estudos poderiam analisar a ocorrência do aumento da eficiência na arrecadação fis-cal e na melhoria da execução de serviços públicos locais e, consequentemente, contribuir com o desenvolvimento de potencialidades para a promoção do welfare state.

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recebido para publicação em Novembro/2010 Versão definitiva em dezembro/2011 Suporte financeiro: Não houve conflito de interesse: inexistente

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ARTIgO ORIgInAL • origiNal articlE

Avaliação do incentivo estadual para a Estratégia Saúde da Família em um município do Pantanal mato-grossense

Evaluation of the incentive for the Family Health Program in a municipality of the Pantanal, in Mato grosso, Brazil

gilce Maynard Buogo gattas1, Marly Marques da Cruz2, João Henrique gurtler Scatena³

RESUMO Visando avaliar o Programa Estadual de Incentivo à Saúde da Família, fez-se um estudo de caso em município do Pantanal, no Mato grosso, utilizando-se dados primários e secundários e instrumentos da pesquisa quantitativa e qualitativa. Considerou-se o programa parcialmente implantado (62%). os percentuais mais elevados relacionaram-se ao contexto político-organizacional (72%). No contexto interno, a implantação foi de 48%, destacando-se negativamente: oportunidade (25%) e qualidade técnica (25%), em função de problemas relacionados à qualificação, ao predomínio de contratos temporários e à inexistência de planejamento das atividades das Equipes de Saúde da Família. ainda que a Secretaria Municipal de Saúde goze de relativa autonomia polticoadministrativa e de execução financeira, a pesquisa identificou vários aspectos cuja implantação pode melhorar esse programa.

PALAVRAS-CHAVE: Programa Saúde da Família; avaliação de Programas e Projetos de Saúde; gestão em Saúde; Financiamento em Saúde.

ABSTRACT to evaluate the State incentive for the Family Health Program, a case study was carried out in a municipality of the Pantanal, in Mato grosso, using primary and secondary data and instruments of qualitative and quantitative research. the program was partially implanted (62%). the highest levels were related to politic-organizational context (72%). in the internal context, the implantation was of 48%, negatively highlighting: opportunity (25%) and technical quality (25%), due to problems related to the qualification, to the predominance of temporary contracts and to the inexistence of planning at the Family Health Program. Even if the Municipal Health Secretary has relative political-administrative and financial execution autonomy, the research identified several aspects which implantation may improve this program.

KEywORDS: Family Health Program; Program Evaluation; Health Management; Financing, Health.

1 Mestre em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio arouca, Fundação oswaldo Cruz (ENSP-FIoCruZ) – rio de Janeiro (rJ), Brasil. técnica e Pesquisadora da Secretaria de Estado de Saúde de Mato grosso – Cuiabá (Mt), Brasil. [email protected]

² doutora em Saúde Pública pela ENSP-FIoCruZ – rio de Janeiro (rJ), Brasil. Professora e Pesquisadora da ENSP-FIoCruZ – rio de Janeiro (rJ), Brasil. [email protected]

³ doutor em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da universidade de São Paulo (uSP) – São Paulo (SP), Brasil. Professor e Pesquisador do Instituto de Saúde Coletiva da universidade Federal de Mato grosso (uFMt) – Cuiabá (Mt), Brasil. [email protected]

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Introdução

O Sistema Único de Saúde (SUS) vem passando, des-de a sua instituição, por importantes mudanças, entre as quais se pode destacar o avanço obtido na universaliza-ção, principalmente em decorrência do processo de des-centralização de responsabilidades, atribuições e recursos da esfera federal para estados e municípios, em oposição ao modelo anterior do sistema de saúde, caracterizado por marcante centralização decisória e financeira no nível federal (SOUZA, 2002).

De acordo com Levcovitz, Lima e Machado (2001), há relativo consenso sobre os avanços no âmbito da des-centralização. O processo de descentralização em saúde, predominante no Brasil, é do tipo politicoadministrati-vo, envolvendo não apenas a transferência de serviços, mas também de responsabilidades, poder e recursos da esfera federal para a estadual e municipal.

Contudo, a questão do financiamento tem sido um dos maiores desafios no processo de implantação do SUS. Na indução de um novo modelo de atenção, a principal estratégia utilizada, relacionada ao financia-mento para custeio das ações e serviços de atenção bási-ca de saúde sob gestão municipal, foi o Piso de Atenção Básica (PAB), criado pela Norma Operacional Básica-96 (NOB-96) e regulamentado pelas Portarias 1.882/1997 e 2.091/1998, que definiram uma parte fixa e uma parte variável do novo PAB.

É reconhecido que os gastos públicos com saúde, no Brasil, ainda são insuficientes, representando cerca de 40% dos gastos totais com saúde (UGÁ; SANTOS, 2006; IBGE, 2008). Essa constatação suscita problemas relacionados à insuficiência, bem como à gestão dos re-cursos financeiros para a superação das dificuldades para que o SUS universal e integral se efetive.

Para os gestores municipais de Mato Grosso (MT), a principal dificuldade sentida (32,4%) é a insuficiência de recursos financeiros disponíveis para custear o SUS municipal: 77,0% consideraram os recursos insuficien-tes e 21,6% expressaram serem suficientes quando ade-quadamente administrados (LUNA, 2008). No universo estudado pela autora, 54,0% têm autonomia para admi-nistrar os recursos do Fundo Municipal de Saúde.

Teixeira e Teixeira (2003) recomendam que, na escassez de recursos, o planejamento eficaz do gasto e a

adequada gestão dos limitados recursos disponíveis são imprescindíveis em todos os setores da economia, em es-pecial no setor público.

Dentre as inovações efetivamente implementadas, destaca-se a criação de incentivos financeiros para a es-truturação dos Programas de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e de Saúde da Família (PSF). Esses incen-tivos foram determinantes para o aumento do número de equipes no país e o desenvolvimento de ações mais abrangentes da atenção básica, propiciando a mudança do modelo assistencial. A partir da NOB-96, apoiada em deliberação do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), o PSF passa então a ser compreendi-do como ‘estratégia’ para a organização da atenção básica (GIOVANELLA; MENDONÇA, 2008).

A política de incentivo à implantação da Estratégia Saúde da Família (não é uma prerrogativa do Ministério. Alguns estados brasileiros vêm, também, fomentando incentivos financeiros aos municípios para que esses im-plantem suas equipes de saúde da família. Nessa situação encontram-se estados como: Mato Grosso do Sul, São Paulo, Mato Grosso, Amapá, Paraná, Espírito Santo, Minas Gerais, Sergipe, Tocantins e Ceará, com diferen-tes critérios de repasse (MARQUES; MENDES, 2002 e 2003). Apoios e incentivos, como estratégia da política estadual de saúde de redução das desigualdades regionais, auxiliaram a implantação do programa nos vários muni-cípios, incluindo os mais pobres, carentes de infraestru-tura assistencial (CANESQUI; SPINELLI, 2006).

O estado de Mato Grosso iniciou o processo de im-plantação de equipes de saúde da família em 1996, aos moldes definidos pelas diretrizes do Ministério da Saúde (MS), com sensibilização de gestores e comunidade, mas a formação efetiva de equipes deu-se em 1997, com oito equipes em seis municípios (MÜLLER NETO, 2002). Os incentivos financeiros federais repassados pelo MS foram fundamentais para a implantação de Equipes de Saúde da Família (ESF) no estado, entretanto não eram suficientes para a interiorização e fixação de profissionais de nível superior (médicos e enfermeiros), principalmen-te nos municípios de pequeno porte localizados no no-roeste do estado.

Nessa perspectiva, a Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso (SES/MT), em 2000, estabeleceu em sua polí-tica de descentralização da saúde, implementada pelo estado

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desde 1995 (MÜLLER NETO, 2002), mecanismos de concessão de incentivo para programas prioritários, dentre os quais a expansão de ACS e ESF. O incentivo foi previsto por meio do Decreto Estadual 1169 (MATO GROSSO, 2000), que autorizava a SES/MT a instituir o Programa de Apoio à Saúde da Família e Comunitária. A partir de 2001, o repasse do incentivo foi modificado, passando a “dispor sobre o sistema de transferência voluntária de recursos fi-nanceiros do fundo estadual de saúde aos fundos municipais de saúde” (MATO GROSSO, 2001). Ele é regulamentado pelas Portarias/SES/MT: 26/2001, 49/2002, 106/2003 e 084/2010, que promovem a reestruturação do programa e o estabelece como ‘Programa de Apoio à Saúde da Família e Comunitária no Âmbito do SUS/MT’.

O objetivo do incentivo é estimular os municípios a implementar e capacitar as ESF e elevar a cobertura populacional do estado. O resultado desse processo pode ser comprovado quando se analisa a série históri-ca de implantação de equipes nos municípios do estado, desde o final dos anos 1990. A cobertura de 1,4% (8 equipes), em 1997, evoluiu para 32,7% (299 equipes), em 2001, ascendendo até 66,0% (578 equipes), em de-zembro de 2009. Os recursos financeiros repassados pelo estado aos municípios com equipes de saúde da família implantadas evoluíram de R$ 675.800,00 (2000) para R$ 31.631.200,00 (2009) (MATO GROSSO, 2009).

Ao auxiliar a implantação do PSF, principalmente nos municípios mais carentes, os incentivos financeiros reduzem as desigualdades regionais. Parte-se, assim, do pressuposto que a gestão adequada dos incentivos finan-ceiros proporciona uma melhor implementação da estra-tégia de saúde da família, facilitando o acesso aos serviços de saúde e reduzindo os indicadores desfavoráveis.

A capacidade de financiamento em saúde munici-pal, como componente fundamental para a garantia do acesso a ações e serviços de saúde da atenção integral, deve ser compatível com as necessidades e demandas da população. Acredita-se que quando o acesso aos serviços de saúde não se dá em momento oportuno, a qualidade da atenção primária é afetada e pode levar ao agravamen-to da condição clínica dos usuários.

Diante do exposto, objetivou-se avaliar a implan-tação do programa estadual de incentivo à saúde da fa-mília no âmbito municipal, considerando os contextos: político-organizacional e externo.

Julgou-se oportuno investigar tal tema, pois não há registro de avaliação desse programa desde a sua implantação e essa é fundamental para a tomada de decisão. Assim, optou-se pela pesquisa avaliativa, pois essa possibilita verificar através de procedimentos cien-tíficos, as relações existentes entre os diferentes com-ponentes de uma intervenção e o contexto onde ela se situa (CONTANDRIOPOULOS et al., 1997).

Metodologia

Foi utilizado, como estratégia de pesquisa, o estudo de caso e, como estratégia metodológica, o modelo teórico de avaliação. O modelo teórico foi empregado como fer-ramenta, de forma a sistematizar os passos da avaliação e a caracterizar o tipo de avaliação realizada. Foi proposto, então, apresentar um desenho de modelo que abordasse o papel da teoria no processo de avaliação em saúde, as diretrizes para a construção do modelo teórico da avalia-ção e a construção de matrizes de medidas

Um importante passo foi descrever claramente as atividades do programa, apresentando, de maneira vi-sual e sistemática, as relações entre intervenção e efeito. Utilizando-se as informações disponíveis em documen-tos, portarias e materiais informativos sobre o programa, construiu-se o Modelo Lógico do Programa Estadual de Incentivo à Saúde da Família no Âmbito do SUS/MT (Figura 1) que, através de uma síntese de seus principais componentes, demonstra como o programa teoricamen-te deveria funcionar.

Tendo esse programa como unidade de análise, fo-ram consideradas como dimensões estratégicas, os con-textos político-organizacional e interno, relacionados aos componentes técnicos de gestão, para estimar o seu grau de implantação em um município mato-grossense. O Quadro 1 apresenta as dimensões e o conjunto de subdi-mensões definidas.

Para comparar o programa executado com padrões preestabelecidos e proceder ao julgamento de mérito, foram elaboradas matrizes de critérios/indicadores inte-gradas: matriz de relevância e pontuação, submetida a experts; a matriz de comparação; a matriz de análise e a matriz de julgamento. Os critérios e indicadores foram definidos pela pesquisadora com base no modelo lógico

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do programa e submetidos à validação de profissionais experientes.

Os dados – quantitativos e qualitativos – foram co-letados de forma sistematizada. A estratégia adotada de mensuração contemplou critérios e indicadores que estão relacionados às características do programa, incluindo os presumidos fatores contextuais que interagem na sua implantação.

A pesquisa foi realizada num município da região pantaneira que atendeu aos critérios: a) adesão precoce ao Programa de Incentivo em estudo; b) recebimento do incentivo fundo a fundo, no período de 2003 a 2008; c) cobertura do PSF acima de 90%, em 2008; d) Índice de desenvolvimento humano (IDH) de 2000, entre os 25 mais baixos do estado; e) população menor que 50 mil habitantes; f ) alimentação regular do Sistema de Infor-mações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS); g) localização próxima à capital; h) ter dados recentes de programação e execução.

Os dados secundários foram levantados nos siste-mas de informações oficiais do Ministério da Saúde no Sistema Integrado de Administração Financeira, que subsidiaram: a análise do cumprimento dos critérios e normas estabelecidas; as estratégias e metas estabelecidas para enfrentamento dos problemas; a análise dos indi-cadores da atenção básica pactuados e a análise do perfil socioeconômico do município.

Analisou-se o período de 2003 a 2008 porque nesse há uma relativa homogeneidade de informações disponi-bilizadas pelo SIOPS, permitindo comparabilidade dos dados e análise mais segura.

As informações sobre a organização, funcionamen-to da rede de serviços, estrutura física e suporte logísti-co – drogas, transportes, sistema de informação – foram

extraídas de um levantamento feito pela Coordenadoria de Atenção Primária/SES/MT (MATO GROSSO, 2009).

A avaliação da organização da rede de serviço foi realizada através da análise da documentação fornecida pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS): Plano Mu-nicipal de Saúde (PMS), organograma, relatório final da Conferência Municipal de Saúde (2003 e 2007), ata das reuniões do Conselho Municipal de Saúde (CMS, 2008), Relatório Anual de Gestão (RAG, 2008) e leis: Orgânica Municipal; criação do CMS, FMS, Pronto Atendimento Médico, Centro de Atenção Psicossocial e Farmácia Central; criação da estrutura administrativa municipal (1435 e 768). Também foi consultado o site da prefeitura <http://www.poconet.com.br>.

A coleta dos dados primários consistiu de entrevis-ta semiestruturada com 15 usuários potenciais (gestor, representante legal do CMS, médicos e enfermeiros das ESF). A amostra dos informantes foi intencional, envol-vendo atores considerados estratégicos na implantação do PSF. As informações prestadas foram analisadas segundo categorias pré-definidas e agregadas (gestores, represen-tante do CMS, trabalhadores).

Para a construção da matriz de análise, foi neces-sário o levantamento dos dados secundários (análise documental) e primários (entrevista semiestruturada e observação direta). A partir da base de evidência obtida com a consolidação dos dados, foi calculada a pontuação observada de cada critério. Em seguida, foram somadas a pontuação observada de cada critério, por subdimensão e dimensão. Assim, com o total de pontos observados e esperados, calculou-se a porcentagem da subdimensão e dimensão. De posse da percentagem, foi obtida a classifi-cação do grau de implantação do programa considerando as categorias/escore: implantado (≥75%), parcialmente

CONTEXTOS DIMENSÕES SUBDIMENSÕES CATEGORIAS

Político- organizacional

autonomia política e administrativa Planejamento das ações de saúderesponsabilidade(accountability)governabilidade autonomia financeira

Execução financeiraCapacidade tecnicagerencial Capacidade técnica de gestão

Interno Conformidadedisponibilidade

Consonânciaoportunidade Qualidade técnica

Externo Vulnerabilidade social Condições socioeconômicas -

Quadro 1. Dimensões do modelo teórico de avaliação

Fonte: adaptado de Souza, Vieira-da-Silva e Hartz (2005).

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implantado (50 a 74%), incipiente (25 a 49%) e não implantado (≤25%).

Atendendo aos preceitos éticos, o estudo foi sub-metido e recebeu a anuência do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública da Fun-dação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), conforme parecer nº135/09.

Resultados e discussão

Segundo a matriz de julgamento, no contexto interno, a intervenção atingiu 48,1% do que se esperava para a dimensão ‘conformidade’, classificada como implanta-ção incipiente (Quadro 2). Na subdimensão ‘disponibi-lidade’, o município atingiu 62,4%, pois não se obteve pontuação para dois critérios: capacitação de profissio-nais de ESF em cursos introdutório e básico para ACS; existência de planejamento das atividades elaborado pelas ESF. Nas capacitações, apenas 33,8% (médicos e enfermeiros) fizeram o curso introdutório e 35,7% dos ACS fizeram a primeira etapa do curso básico. Já, em relação ao planejamento não se constatou sua existência em documentos formais.

Sobre a realização do treinamento introdutório, Nascimento e Nascimento (2005) o reconhecem como um dos avanços ocorridos nos processos de capacitação para as equipes de saúde da família, destacando que, através dele, os profissionais passam a ter uma melhor compreensão do processo de trabalho nas ações e servi-ços de saúde. Germano et al. (2005) afirmam que é de fundamental importância a discussão em torno da for-mação de recursos humanos para o SUS, buscando en-contrar as melhores alternativas para enfrentar a situação dos profissionais já inseridos no sistema, minimizando os efeitos da formação inadequada desses profissionais. Devem-se buscar meios de garantir que suas práticas atendam aos desafios que estão sendo colocados para a implantação do sistema, em especial no âmbito dos municípios. Na pesquisa dos referidos autores, os pro-fissionais afirmam que essas capacitações proporcionam a atualização dos conhecimentos, ampliam a visão sobre as políticas de saúde como um todo, ajudam a reflexão sobre a práxis, além de propiciarem maior segurança na atenção básica.

De acordo com Moreira (2002), a falta de um pla-no de ação estruturado a partir do diagnóstico de saú-de da população local, com objetivos e metas traçados, definindo a missão institucional, em consonância com as políticas públicas estabelecidas pelo município, leva a unidade a uma atuação imediatista. Segundo a autora, tal limitação do planejamento é um indicativo de que o mu-nicípio tem baixa resolutividade dos problemas de saúde de sua população alvo. No município em estudo, o que se tem, no nível local, são reuniões para discussões rela-tivas ao alcance de metas pactuadas de indicadores. As ações e serviços prestados são decididos pelo nível central da SMS, levando em consideração as referidas metas.

Na subdimensão ‘oportunidade’, foram considera-das somente as informações levantadas durante a entre-vista. A pontuação obtida para a subdimensão foi 25% do esperado, sendo considerada incipiente na implan-tação. Os critérios sobre capacitação dos profissionais e planejamento foram os que não atingiram pontuação, já que não foram realizados em momento oportuno.

O acesso oportuno aos recursos financeiros é outro fator importante que interfere nos resultados, pois como o município é bastante dependente dos recursos de trans-ferências, atrasos no repasse prejudicam o cumprimento da programação e causam problemas na manutenção da estrutura física dos serviços, aquisição de equipamentos e materiais, formação de parcerias e racionalização dos gastos. O que se observou no levantamento das infor-mações junto à fonte do estado é que há, com certa frequência, um atraso no repasse do incentivo do PSF, principalmente nos últimos meses e começo de cada ano. Isso compromete todo o processo de gestão na execução do planejamento local, já que o município não apresenta reservas financeiras que possam garantir a manutenção durante aquele período.

Na ‘qualidade técnica’, definida a partir da concor-dância com a norma estadual, observou-se que a inter-venção no município encontra-se incipiente (25%). To-dos os critérios precisam ser melhorados de acordo com o estabelecido pela norma.

No contexto político-organizacional, o muni-cípio cumpre com 72,0% dos critérios estabelecidos pela intervenção, sendo essa considerada parcialmen-te implantada (Quadro 3). Na dimensão da ‘auto-nomia política e administrativa’ foi observado que

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Quadro 2. Matriz de julgamento do contexto interno

Contexto Dimensão Subdimensão Critérios/indicadoresAnálise e Julgamento

PM PO ÍNDICE(%)

Contexto interno Conformidade

Disponibilidade

% de cobertura de ESF existente 27 27,0 100

Profissionais contratados, capacitados por categoria profissional das ESF nos cursos: introdutório e curso básico para aCS

27 0 0

dispor de estrutura física adequada para as ESF 27 8,1 30,0

Fornecer equipamentos básicos necessários 27 8,1 30,0

Fornecer insumos básicos necessários 27 13,5 50,0

Fornecer medicamentos básicos 27 13,5 50,0

garantir sistemas de informação implantados e funcionando

27 27,0 100

garantir transporte para as ESF 24 12,0 50,0

Existência de apoio diagnóstico e terapêutico de referência

27 27,0 100

Existência de referência para consultas especializadas 27 27,0 100

Existência de referência hospitalar para atendimento das clínicas básicas

24 24,0 100

utilização dos dados dos sistemas de informação para monitoramento da situação de saúde e tomada de decisão no nível local

30 30,0 100

Existência de planejamento das atividades: objetivos, metas, indicadores, informação básica e M&a dos indicadores da aB

27 0 0

total da Subdimensão 348 217,2 62,4

Oportunidade

Profissionais contratados, capacitados por categoria profissional das ESF nos cursos: introdutório e curso básico para aCS em tempo oportuno

27 0 0

Equipamentos básicos adquiridos e disponíveis de forma oportuna

27 13,5 50,0

Insumos básicos adquiridos e disponíveis de forma oportuna

27 13,5 50,0

Planejamento das atividades: objetivos, metas, indicadores, informação básica realizado em tempo oportuno para a execução

27 0 0

total da Subdimensão 108 27,0 25,0

Qualidade técnica

Profissionais contratados, capacitados por categoria profissional das ESF nos cursos: introdutório e curso básico para aCS conforme metodologia preconizada

27 0 0

Equipamentos básicos e mobiliários em quantidade de acordo com a norma técnica

27 13,5 50,0

Medicamentos básicos em quantidade de acordo com a norma técnica

27 13,5 50,0

Planejamento das atividades: objetivos, metas, indicadores e programação de ações a partir do diagnóstico de saúde da área

27 0 0

total da Subdimensão 108 27,0 25,0

total da dimensão 564 271,2 48,1

Fonte: Elaboração própria.aB: atenção Básica; M&a: Monitoramento e avaliação; aCS: agentes Comunitários de Saúde; ESF: Equipe de Saúde da Família; PM: Pontuação Máxima; Po: Pontuação observada; Índice: em percentuais (aplicada regra de três simples, considerando o PM como 100%).

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Contexto Dimensão Subdimensão Critérios/indicadoresAnálise e julgamento

PM PO ÍNDICE (%)

Contexto político-

organizacional

Autonomia política e

administrativa

Planejamento das ações de

saúde

Prática de planejamento situacional local de saúde 27 27,0 100Planejamento é regular e utilizado como instrumento de gestão 18 9,0 50,0realização de conferências municipais de saúde regulares e suas propostas contempladas no PMS 27 18,9 70,0

PMS elaborado tendo como base o perfil epidemiológico, agenda de prioridades e proposições da conferência municipal de saúde e executado conforme planejado

27 21,6 80,0

atenção básica é explicitada como prioridade no PMS 27 0 0No PMS há coerência entre problemas priorizados e ações propostas 27 0 0Participação do CMS na elaboração e aprovação do PMS 27 0 0Pactuação/acompanhamento das metas dos indicadores da atenção básica 18 18,0 100

rag elaborado anualmente e a resolução de aprovação do CMS enviada ao Colegiado de gestão regional/Estadual 14 7,0 50,0

Inclusão de discussão e aprovação do relatório de gestão em ata do CMS 16 16,0 100

Profissionais sentem-se participantes do processo de gestão 27 27,0 100total da subdimensão 255 144,5 56,7

Governabilidade

Execução financeira

recurso orçamentário e financeiro garantido para a saúde nas leis orçamentárias municipais (ldo e loa)** conforme PMS 30 30,0 100

% orçamento base EC-29 aplicado em saúde (pelo menos 15%)¹ 27 27,0 100transferências de recursos exclusivamente municipais para o FMS 30 30,0 100gastos per capita em r$ com saúde ≥r$ 150,00(¹) 30 30,0 100transferências de recursos estaduais para o FMS 27 13,5 50,0transferências de recursos da união para o FMS 27 27,0 100transferências de recursos da união para aB 30 30,0 100transferências de recursos estaduais para aB 30 30,0 100recursos de incentivo específico ao PSF transferidos pelo Estado ao município 30 15,0 50,0

recursos de incentivo específico ao PSF transferidos pela união ao município 30 30,0 100

total da subdimensão 291 262,5 90,2

Autonomia financeira

Secretária com autonomia para utilização dos recursos municipais 30 30,0 100Secretária com participação na gestão do recurso da saúde 27 27,0 100SMS com comissão para realizar processos licitatórios 18 0 0Existência de um profissional responsável pela parte financeira do FMS 14 0 0

SIoPS (*) alimentado e atualizado 27 27,0 100Prestação de contas no tCE realizado anual 16 16,0 100Inclusão de prestação de contas dos gastos em ata do CMS 16 16,0 100total da subdimensão 148 116 78,3total da dimensão 438 378,5 86,1

Capacidade tecnicagerencial

Capacidade técnica de

gestão

Experiência acumulada pelo dirigente 18 18,0 100Formação na área de saúde coletiva do dirigente 16 16,0 100Concepção do gestor de um sistema de saúde local universal e de qualidade 30 30,0 100

adequação do quadro técnico às necessidades do sistema municipal de saúde e explicitada no discurso dos entrevistados 27 0,0 0

Profissionais contratados (concurso, tempo determinado) 27 13,5 50,0Profissionais qualificados em sua área de atuação por categoria profissional 30 6,0 20,0

total da subdimensão 148 83,5 56,4total do Contexto 842 606,5 72,0

Fonte: Elaboração própria.aB: atenção Básica; CMS: Conselho Municipal de Saúde; FMS: Fundo Municipal de Saúde; PMS: Plano Municipal de Saúde; PM: Pontuação Máxima; Po: Pontuação observada; Índice: em percentuais (aplicada regra de três simples, considerando o PM como 100%); PSF: Programa Saúde da Família; rag: relatório anual de gestão; SMS: Secretaria Municipal de Saúde; tCE: tribunal de Contas do Estado; (*) SIoPS: Sistema de Informações sobre orçamen-tos Públicos em Saúde; (**) lei de diretrizes orçamentárias e lei orçamentária anual; (¹) Vieira da Silva et al. (2007).

Quadro 3. Matriz de julgamento do contexto político-oganizacional

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o planejamento das ações encontra-se parcialmente implantado (56,7%), pois a SMS elabora apenas o PMS atendendo as exigências legais da administração pública brasileira. Os critérios: explicitação da aten-ção básica como prioridade no PMS; coerência entre problemas priorizados e ações propostas no PMS e participação do CMS na elaboração e aprovação do PMS foram os itens que não atingiram pontuação por apresentarem deficiência na execução.

O planejamento, enquanto trabalho de gestão para a implementação de políticas, pode ser investigado considerando o triângulo de governo. Esse é um sistema formado pela articulação de três variáveis, mutuamente dependentes e interdependentes: conjunto de propostas (projeto de governo), capacidade de governo e governa-bilidade. A prática de planejamento foi aqui considera-da como um dos componentes do projeto de governo e, desse modo, sendo condicionada e condicionando a capacidade de governo e a governabilidade do sistema (VILASBÔAS; PAIM, 2008).

Nessa perspectiva, foi possível identificar a exis-tência de práticas de planejamento sob a forma estru-turada, mas sem previsão de metas físicas quantificadas por ano, contemplando apenas algumas metas gerais. A ritualização dessa prática estruturada de planejamento encontrada na SMS em tela reforça as conclusões dos estudos sobre descentralização da saúde no país, revisa-dos por Vilasbôas e Paim (2008), relativos à burocrati-zação do planejamento em municípios que assumiram a responsabilidade pela gestão dos sistemas de saúde. Foram também observados os mesmos procedimentos ritualísticos na elaboração da proposta orçamentária. Porém, vale ressaltar que a supremacia dessa prática é de natureza política, o que não a confunde, entretanto, com improvisação. De acordo com Teixeira e Teixeira (2003, p. 392), “tão importante como o planejamento é a mensuração e a avaliação das ações empreendidas e dos resultados alcançados”.

Ritualização também pode ser apontada na elabo-ração do Relatório Anual de Gestão, pois como o Plano Municipal de Saúde não possui quantificação das me-tas, não há como monitorar o cumprimento destas. Tal relatório deveria constituir-se na principal ferramenta de acompanhamento da gestão da saúde no âmbito do planejamento (VILASBÔAS; PAIM, 2008). Porém,

como não se elabora o Plano de Trabalho Anual, não se verifica os resultados alcançados apurados com base no conjunto de indicadores que deveriam estar definidos na programação para acompanhar o cumprimento de me-tas nela fixadas e orientar eventuais redirecionamentos que se fizessem necessários. Além disso, torna-se difícil aos órgãos de controle interno e externo a verificação da aplicação dos recursos financeiros destinados ao SUS.

A participação social na definição das políticas de saúde se dá nos conselhos de saúde, assegurando o con-trole social sobre as ações e serviços de saúde (MOREIRA, 2002). A ele cabe analisar, discutir e aprovar os respecti-vos instrumentos de gestão, além de propor estratégia de enfrentamento das eventuais dificuldades encontradas na execução do PMS. Como no caso do município em estudo, a atuação do CMS restringe-se à aprovação dos instrumentos de gestão, pode-se dizer que a sua atuação ainda é pouco efetiva.

O que se percebe é a incipiente participação da Secretaria de Estado de Saúde no monitoramento dos municípios no que tange a: elaboração dos planos de saúde e relatórios de gestão; operacionalização dos fun-dos de saúde; constituição dos serviços de regulação, controle, avaliação e auditoria, como prevê o Pacto de Gestão. Tal limitação compromete o alcance dos indi-cadores e metas do pacto de gestão pelo município.

A dimensão “governabilidade” com suas duas sub-dimensões cumpre com 86,5% dos critérios, sendo consi-derada implantada. Na subdimensão “execução financei-ra”, a intervenção atingiu 90,2%, apesar dos problemas relativos a atrasos no repasse dos recursos estaduais para o FMS e, na subdimensão da “autonomia financeira” o percentual foi de 78,3%, mesmo a SMS não tendo co-missão para realizar processos licitatórios e um profissio-nal responsável pela parte financeira do FMS.

No que diz respeito à autonomia financeira, a movimentação e a aplicação dos recursos das diversas fontes do setor é determinada pelo gestor municipal de saúde, o que é um grande avanço, visto que, segundo Luna (2008), somente 54,0% dos gestores municipais de Mato Grosso têm autonomia para administrar os re-cursos do FMS.

Observou-se também que há uma grande depen-dência dos recursos federais para custeio municipal da saúde, e que os recursos estaduais são importantes para

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a manutenção da atenção básica. O município, por ser de pequeno porte e ter baixa capacidade de geração de recursos via impostos municipais, tem maior dificulda-de de investimento de recursos próprios para a saúde, face ao percentual estabelecido pela Emenda Constitu-cional-29 (EC-29). São os pequenos municípios os que mais dependem das transferências federais, como afir-mam autores como Scatena e Tanaka (2000), Moreira (2002), Pinto, Gonçalves e Neves (2003), Marques e Mendes (2003) e Lima (2007).

A gestão dos recursos é apresentada pela SMS como sendo uma importante conquista, porém o volu-me de trabalho contábil e a falta de técnicos disponíveis na área financeira e com conhecimento técnico específi-co necessário dificultam essa gestão de forma adequada. Situação essa evidenciada também nos estudos de Men-des e Marques (2002) e Luna (2008).

A falta de programação anual, comentada anterior-mente, prejudica o acompanhamento e a aplicação dos recursos financeiros por subfunção, dificultando, prova-velmente, a alimentação do SIOPS. Vale destacar que se observaram divergências entre algumas informações apre-sentadas pelo gestor estadual sobre recursos repassados ao município, frente às equivalentes declaradas por esse ao SIOPS, situação encontrada também por Mesquita (2008). O profissional que alimenta o SIOPS é do quadro da secretaria de finanças e a secretaria de saúde municipal só repassa as informações; o que leva a supor que o fato esteja relacionado, também, a questões de infraestrutura dos municípios e da disponibilidade de profissionais capa-citados, como levantado por Souza (2007). A autora tam-bém afirma que o número reduzido de recursos humanos capacitados no sistema de saúde é hoje uma realidade.

A fragilidade dos gestores no uso do SIOPS, refe-rida por Silva et al. (2010) foi também constatada neste estudo e é consequência do investimento insuficiente em cursos de capacitação. Mesmo com os recursos de ajuda existentes na página do SIOPS, acerca do pre-enchimento da declaração, a estruturação de cursos práticos para conhecimento e utilização do sistema é fundamental para instrumentalizar os gestores no uso da ferramenta.

Considerando o papel a ser desempenhado pela SES no monitoramento, acompanhamento, apoio e fiscalização da aplicação dos recursos financeiros

transferidos aos fundos municipais, a divergência na ali-mentação do SIOPS sugere certa fragilidade do estado no desempenho do seu papel regulador frente aos mu-nicípios, o que também é observado por Souza (2007). É necessário que a base de dados do SIOPS tenha uma crítica e consistência constante, para que o uso das in-formações do orçamento público em saúde transforme-se em ferramenta de monitoramento, avaliação e con-trole dos gestores do SUS (MESQUITA, 2008).

Ao município cabe a aplicação de recursos pró-prios para alcançar o objetivo de ampliar e qualificar a rede básica, pois os recursos provenientes das trans-ferências (federal e estadual) são induzidos pelos entes que os repassam, a serem aplicados no financiamento dos serviços assistenciais municipais. Autores como Barros (2002) e Lima (2007) destacam que o princípio legal do comando único com a prática dessa vinculação de recursos das transferências, limita o grau de auto-nomia. Autonomia esta necessária para que os gesto-res municipais implementem políticas voltadas para a sua realidade local. Tal limitação compromete também a gestão orçamentária municipal, sem garantir uma maior eficiência e efetividade no gasto.

Apesar dos parcos recursos próprios, o que se percebeu foi um bom investimento na estrutura das unidades básicas de saúde nos últimos anos. Porém, cabem ainda melhorias em algumas estruturas e cons-trução em outras, para que se possa elevar a qualidade do atendimento na rede pública de saúde. Teixeira e Teixeira (2003) recomendam que, na escassez de re-cursos, o planejamento eficaz do gasto e a adequada gestão dos limitados recursos disponíveis são impres-cindíveis em todos os setores da economia, em espe-cial no setor público.

Observou-se que, apesar do gestor ser da área da saúde e possuir vasta experiência na condução da secre-taria, ainda assim apresenta dificuldade em administrá-la, pois os processos cotidianos acabam consumindo parte do tempo que ele poderia investir em novos pla-nos. Isso sugere que há necessidade de um processo de educação permanente que permita ao gestor discutir suas experiências e dificuldades e aprender durante o processo de trabalho (LUNA, 2008).

Para a dimensão (e subdimensão) capacidade tecnicagerencial, a intervenção foi considerada como

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parcialmente implantada (56,4%), pois não se cons-tatou adequação do quadro técnico às necessidades do sistema municipal de saúde; nem todos os profissionais contratados são concursados e poucos profissionais pos-suem qualificação em sua área de atuação.

A questão dos recursos humanos aparece para o gestor como um problema, expresso na rotatividade e consequente baixa qualificação dos profissionais, que reflete na dificuldade dos mesmos em lidar com situ-ações do dia a dia. A descentralização de ações e ser-viços de saúde aumentou a responsabilidade do gestor municipal, mas sua equipe e qualificação continuam limitadas. Além disso, há uma grande dependência do município das capacitações oferecidas pela SES. As-sim, evidenciou-se a necessidade do investimento em concurso público para fixação de profissionais, e a ga-rantia de sua qualificação, se o objetivo for a melhoria dos serviços. Facchini et al. (2008) levantam dúvidas sobre a efetividade da atenção básica à saúde na res-posta às necessidades de saúde da população quando se tem problemas na quantidade e no perfil dos profis-sionais de saúde.

A classificação do grau de implantação por di-mensão foi obtida a partir do escore pré-estabelecido anteriormente e está melhor demonstrada no Qua-dro 4, onde pode ser observado que o programa en-contra-se parcialmente implantado com 62,4% dos critérios estabelecidos.

Esse grau de implantação, como apresentado, re-flete pontos positivos, mas também muitos aspectos deficientes, ambos importantes de ser evidenciados numa pesquisa avaliativa, pois, de acordo com Morei-ra (2002, p. 161):

avaliação pode ser efetiva para reorientação do processo quando as informações obtidas indi-cam tanto os sucessos alcançados como as falhas existentes, subsidiando o aperfeiçoamento das ações da intervenção.

Considerações finais

Incorporar práticas de monitoramento e avaliação nos serviços possibilita aos gestores informações para uma vi-são crítica da realidade e subsídios para decidir estratégias de intervenção, buscando melhorar o desempenho dos serviços e do programa. Além disso, é preciso que exista uma política de recursos humanos com plano de carreira, cargos e salários que garantam a estabilidade e ascensão do profissional; que seja realizado concurso público para os profissionais de saúde; que haja investimento em cur-sos de atualização e aperfeiçoamento, objetivando a valo-rização e fixação dos profissionais de saúde no município. Destaca-se também a necessidade de capacitar a equipe municipal na utilização dos sistemas de informações já disponíveis como instrumentos de monitoramento e

Dimensão Subdimensão PM PO Índice (%) Grau de ImplantaçãoContexto Político-organizacional

autonomia política e administrativa Planejamento das ações de saúde 255,0 144,5 56,7 Parcialmente implantado

governabilidadeExecução financeira 291,0 262,5 90,2 Implantado

autonomia financeira 148,0 116,0 78,3 Implantadototal da dimensão 439,0 378,5 86,4 Implantado

Capacidade tecnicagerencial Capacidade técnica de gestão 148,0 83,5 56,4 Parcialmente implantadototal do Contexto 842 606,5 72,0 Parcialmente implantado

Contexto Interno

Conformidadedisponibilidade 348,0 217,2 62,4 Parcialmente implantadooportunidade 108,0 27,0 25,0 Incipiente

Qualidade técnica 108,0 27,0 25,0 Incipientetotal do Contexto 564,0 271,2 48,1 Incipientetotal geral dos Contextos 1406 877,7 62,4 Parcialmente implantado

Quadro 4. Matrizes de julgamento dos contextos e o grau de implantação

Fonte: Elaboração própria.PM: Pontuação Máxima; Po: Pontuação observada.

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avaliação, estimulando a sua utilização para o planeja-mento das ações a serem desenvolvidas.

É preciso incorporar a prática de planejamento local, na rotina, com ações estruturadas, partindo do diagnóstico de saúde da população local, traçando obje-tivos e metas. Assim como elaborar relatório de gestão a partir do monitoramento do alcance de metas e nortear possíveis redirecionamentos que se fizerem necessários.

A eficácia no gasto público é condição relevan-te para que o sistema possa avançar na qualidade das ações. É imprescindível planejar de forma eficaz o gasto e a adequada gestão dos limitados recursos existentes.

O acesso oportuno aos recursos financeiros de transferências é outro fator importante que precisa ser resolvido pelos entes repassadores, pois compromete

todo o processo de gestão na execução do planejamento local, já que o município não apresenta reservas finan-ceiras que possam garantir a manutenção em períodos de atrasos no repasse. A SES necessita estabelecer for-mas de previsão e provisão financeira para que não haja a descontinuidade desses repasses.

Por fim, como recomenda Rocha et al. (2008), é importante promover mais processos investigativos que avaliem, com maior precisão, a utilização dos incentivos financeiros. Ainda segundo os autores o envolvimento de atores locais e a discussão aprofun-dada das particularidades subsidiariam os gestores para a tomada de decisão e para o redirecionamento e reordenamento do programa, o que não se deu no caso em estudo.

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recebido para publicação em Setembro/2011 Versão definitiva em dezembro/2011 Suporte financeiro: Secretaria de Estado de Saúde de Mato grosso (SES/Mt) conflito de interesse: inexistente

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ARTIgO ORIgInAL • origiNal articlE

O processo de trabalho na Estratégia Saúde da Família e a humanização: dilemas e desafios

the work process in the Family Health Strategy and the humanization: dilemmas and challenges

rosana lúcia alves de Vilar1, José Willington germano2, raimunda de Medeiros germano3

RESUMO Este artigo aborda o tema do processo de trabalho e humanização em saúde que envolve o conjunto de políticas implementadas pelo Ministério da Saúde no Brasil. a suposição é que a Estratégia Saúde da Família tem produzido experiências locais com potencialidades que não deve ser desperdiçadas, apesar das dificuldades e discrepâncias entre o modelo real e proposto. a pesquisa está ancorada fortemente nos aportes teóricos de Boaventura de Sousa Santos acerca da sociologia das ausências e das emergências, bem como do trabalho de tradução.

PALAVRAS-CHAVE: Humanização da assistência; Saúde da Família; atenção Primária à Saúde.

ABSTRACT this article approaches the topic of work process and humanization in health that involves the set of policies implemented by the Ministry of Health in Brazil. the assumption is that the Family Health Strategy has produced local experiences with potentialities that must not be wasted, in which there are difficulties and discrepancies between the real and proposed model. the research is anchored strongly in the theoretical concepts of Boaventura de Sousa Santos about the sociology of privations and emergencies, as well as of the work of translating.

KEywORDS: Humanization of assistance; Family Health; Primary Health care.

1 doutora em Ciências Sociais pela universidade Federal do rio grande do Norte (uFrN) – Natal (rN), Brasil. Professora associada da uFrN – Natal (rN), Brasil. [email protected]

2 doutor em Educação pela universidade Estadual de Campinas (uNICaMP) – Campinas (SP), Brasil. Professor titular da uFrN – Natal (rN), Brasil. [email protected]

3 doutora em Educação pela universidade Estadual de Campinas (uNICaMP) – Campinas (SP), Brasil. Professora associada da uFrN – Natal (rN), Brasil. [email protected]

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Introdução

Os marcos teóricos e políticos norteadores da Política Nacional de Humanização (PNH), preconizada pelo Ministério da Saúde do Brasil, evidenciam que essa po-lítica surge para contribuir com mudanças, na direção de um sistema de saúde inclusivo, acolhedor, solidário e democrático.

As intenções referenciadas nos documentos insti-tucionais sobre a Estratégia Saúde da Família, também sinalizam para mudanças no modelo da atenção que se diferencia do modelo tradicional.

A PNH também conhecida como HumanizaSUS, foi instituída pelo Ministério da Saúde no ano de 2003, na primeira gestão do governo Lula (2003-2006), for-mulada inicialmente por um grupo de técnicos da Se-cretaria Executiva do Ministério da Saúde (MS), então coordenada pelo professor Gastão Wagner de Sousa Campos, a partir de discussões e sistematização de ex-periências acumuladas e exitosas do chamado ‘SUS que dá certo’ (BRASIL, 2006a).

Tem como propósito maior efetivar os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) no cotidiano das práticas de atenção e de gestão, assim como estimular trocas solidárias entre gestores, trabalhadores e usuários, para a produção de saúde e a formação de sujeitos.

O documento base que a instituiu, justificando a sua necessidade, considera a persistência de problemas relacionados ao acesso dos serviços de saúde; à desvalori-zação dos trabalhadores de saúde; ao baixo investimento em processos educativos, tendo em vista a forma de ges-tão centralizada dos serviços e o frágil vínculo com os usuários como fortes determinantes da desumanização.

Diferente das iniciativas anteriores, que se limita-vam a programas, a novidade é que a humanização pas-sa a ser tratada como uma política de caráter público e amplo, abrangendo a atenção e a gestão nos serviços de saúde, recolocando na pauta um conjunto de problemas e desafios presentes no cotidiano do SUS, na perspecti-va de humanizar o cuidado e dignificar o trabalho.

Em relação ao marco teórico/político e arcabouço organizativo, articula princípios, método, diretrizes e dispositivos como norteadores, com base em

experiências imbuídas de modos de cuidar e gerir, que apostam em inovações.

Os princípios, compreendidos como proposições diretoras ou elementos predominantes na constituição da política, são: a transversalidade; a indissociabilidade entre práticas de gestão e de atenção à saúde, e o prota-gonismo dos sujeitos e dos coletivos.

A transversalidade se reporta à intenção de que a política seja horizontalizada, perpassando as diferentes ações e instâncias gestoras do SUS, ou seja, refletindo-se em todas as demais políticas no campo da saúde, am-pliando assim o seu espectro de atuação na perspectiva da capilarização.

O segundo princípio concebe os modos de gestão e de cuidar como indissociáveis, ou seja, a organização do trabalho como inseparável da atenção à saúde, ou ainda, com relação de codeterminação, com ações in-terdependentes e complementares que se influenciam mutuamente.

O protagonismo dos sujeitos e coletivos pressupõe um novo modo de fazer que requer a inclusão1 de sujeitos envolvidos na gestão e na atenção, tanto em sua expres-são singular como coletiva. Esse princípio está relaciona-do ao anterior e parte da premissa de que os profissionais de saúde e gestores são sujeitos que trabalham com e para os usuários, que, por sua vez, são copartícipes.

A concepção da política defende a tese de que o protagonismo contribui para a coconstrução de sujeitos reflexivos e com certa autonomia em relação ao proces-so de trabalho que desenvolvem.

O referencial sobre o conceito de autonomia tem como base a discussão feita por Campos (2006) que a considera como a capacidade de compreender e de agir sobre si mesmo e sobre o contexto, conforme de-sejos, interesses e valores. Essa autonomia tem um ca-ráter relativo e possibilita a existência de compromissos e contratos.

As diretrizes da política traduzem um conjunto de orientações importantes para colocar os princípios em prática, e se revestem de um eixo discursivo que abrange múltiplas intenções: acolhimento, ampliação da clínica, gestão participativa, valorização do trabalho, e defesa dos direitos dos usuários.

1 Nesse sentido, os documentos destacam que o método da política é da tríplice inclusão de pessoas (trabalhadores, gestores e usuários); de movimentos/coletivos e redes; e do reconhecimento do outro e sua alteridade, lidando com as diferenças e as subjetividades, para construção da corresponsabilidade.

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Em relação à Estratégia Saúde da Família (ESF), antes conhecida apenas como Programa de Saúde da Família (PSF) seu o primeiro documento oficial, data de setembro de 1994, explicitando a sua concepção como um instrumento de reorganização da atenção básica no SUS. E no seu início, a implantação foi definida para ocorrer em áreas de risco social e epi-demiológico; só posteriormente foi sendo proposto para outras áreas, passando a ser considerado como uma estratégia estruturante dos sistemas municipais de saúde e não um programa, provocando um movi-mento para reordenação do modelo de assistência na atenção básica.

Como estamos nos referindo ao nível da atenção básica, esta é compreendida na política de saúde brasi-leira, conforme a Portaria nº 648, de 28 de março de 2006, como um conjunto de ações de saúde, no âm-bito individual e coletivo, que abrangem a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diag-nóstico, o tratamento, a reabilitação e a manutenção da saúde (BRASIL, 2006b).

Essa definição já expressa a amplitude desse tipo de atenção, que para dar conta da sua responsabilidade, incluindo ações de natureza diversificada, precisa incor-porar a integralidade como eixo intercomunicante.

A mesma portaria estabelece, como princípios gerais da atenção básica, que a mesma deve ser desen-volvida por meio do exercício de práticas gerenciais e sanitárias, democráticas e participativas, sob forma de trabalho em equipe, dirigidas a populações de territó-rios bem delimitados, pelas quais assume a responsabi-lidade sanitária. Para tanto, deve ser considerada a di-namicidade existente no território em que vivem essas populações, a utilização de tecnologias de alta comple-xidade e baixa densidade, para resolver os problemas de saúde de maior frequência e relevância do territó-rio, devendo ser o contato preferencial dos usuários com os sistemas de saúde. Ainda, recomenda que a atenção básica deve estar orientada pelos princípios da universalidade, da acessibilidade e da coordenação do cuidado, do vínculo e continuidade, da integralidade, da responsabilização, da humanização, da equidade e da participação social. E, finalizando, acrescenta que a ESF deve ser prioritária para sua organização de acor-do com os preceitos do SUS.

Essas definições apontam para o caráter complexo da sua organização, já delineando uma mudança para o modelo de atenção, no qual a ESF é proposta como eixo estruturante.

Vale salientar que as duas propostas políticas buscam romper com um paradigma hegemônico/re-ducionista e fragmentado, na perspectiva da incorpo-ração de saberes e práticas, direcionados a uma nova racionalidade.

Santos (2005a, 2007, 2010) discute esse novo pa-radigma, que chama de emergente, no qual considera que todo conhecimento é social; todo conhecimento é local e global; todo conhecimento é autoconhecimen-to, e todo conhecimento científico visa constituir-se em senso comum.

O referido autor partindo da crítica ao pen-samento hegemônico da racionalidade científica, que chama ‘razão indolente’, propõe outra forma de conceber a razão. Essa outra forma, contrapõe-se a monocultura do saber, sendo concebida como ecologia dos saberes que se fundamenta na premis-sa de que não há nem conhecimentos puros, nem completos, há constelações de conhecimentos, que se cruzam e necessitam de uma articulação sistêmi-ca, dinâmica e horizontal.

A ESF como política de reestruturação da atenção básica, e a PNH como uma política transversal a todas as políticas do SUS, têm uma identidade com esse pa-radigma discutido por Boaventura dos Santos. Ambas apostam em mudanças na perspectiva da diversidade, da integralidade e da solidariedade.

Entretanto, sabemos que as mudanças dependem, em grande medida, das relações cotidianas estabelecidas nos processos de trabalho e de gestão, portanto dos su-jeitos partícipes das situações concretas desenvolvidas nos serviços de saúde (MERHY, 2006).

Nessa linha de argumentação, esse mesmo autor, ainda ressalta que, se não houver alteração do modo como os trabalhadores de saúde se relacionam com o seu principal objeto de trabalho: ‘a vida e o sofrimento dos indivíduos, famílias e coletividade’, não basta cor-rigir procedimentos organizacionais e financeiros das instituições, pois o grande desafio é a busca de outro modo de operar o trabalho em saúde, construindo uma relação mais solidária.

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Acerca do processo de trabalho desenvolvido na ESF, vale salientar que apresenta características específi-cas e comuns a outros processos de trabalho em saúde.

É importante assinalar que o trabalho em saúde é um serviço que não se realiza sobre coisas ou sobre objetos; dá-se sobre pessoas, numa intercessão partilhada entre o usu-ário e o profissional, com a presença de histórias, saberes e sofrimentos que compõem as subjetividades presentes.

As contribuições de Offe (1984), sobre as peculia-ridades do trabalho que produz serviço, apontam o seu caráter reflexivo e complexo. No caso da saúde, essa com-plexidade se evidencia pelo fato de envolver a pessoa hu-mana como principal protagonista, e lidar com a vida e com a morte.

Donnângelo (1975); Gonçalves (1979); Schraiber (1993); Pires (1996); Nogueira (1999); Merhy (2006) e Campos (2006), com base nos escritos de Marx, aborda-ram diferentes aspectos, ressaltando o trabalho como um processo que se constitui na mediação entre homem e na-tureza, operando transformações requeridas por necessida-des humanas, no caso da saúde, necessidades de saúde.

Nogueira (2000) identifica algumas especificida-des do processo de trabalho em saúde que reforçam os argumentos quanto à sua complexidade, tais como: o fato de ser um serviço dependente do laço interpessoal para eficácia do seu ato; a não universalidade do valor de uso, visto que o cuidado produzido é restrito a cada individuo; e a coletivização com fragmentação dos atos se contrapondo ao princípio da integralidade.

Sobre a fragmentação, trata-se de uma forte in-fluência dos princípios tayloristas na organização desse trabalho, que induziram a uma divisão técnica muito fracionada. Na verdade, no processo de trabalho em saúde existe uma variedade de profissionais com dife-rentes formações que atuam gerando um parcelamento nas atividades, muitas vezes de forma agrupada, mas não articulada ou integrada. Em função dessas ques-tões, na ESF propõe-se a constituição de equipes mul-tiprofissionais para uma atuação conjunta, na tentativa de internalizar a integralidade nas ações desenvolvidas.

Pinheiro et al. (2005) acrescentam que, mesmo diante da polifonia presente no processo e trabalho em saúde decorrente da diversidade de vozes e discursos dos diferentes saberes, é fundamental a harmonia, não como ausência de discordância ou como homogeneidade, mas

como um arranjo de elementos diferentes reunidos por uma relação de pertinência. E faz uma analogia com o concerto de uma orquestra:

[...] o agir dos profissionais de saúde de uma equi-pe, tal como o dos músicos de uma boa orquestra que trabalham em harmonia, deve agir em con-certo. (PINHEIRO et al. , 2005, p. 107).

Nessa concepção, reconhece-se a diversidade de conhecimentos e habilidades dos componentes da equi-pe, enfatizando-se a importância da complementarida-de e do compartilhamento de objetivos comuns.

Entretanto, diante da forma como o trabalho em saúde vem sendo realizado, considerando muitas vezes o usuário como objeto, não como sujeito, como parte e não como um todo, excluído do seu contexto social; re-forçando a fragmentação do conhecimento e a superes-pecialização; valorizando excessivamente a tecnificação conduzida para os interesses de um mercado lucrativo, surge o debate sobre a desumanização como conse-quência desse cenário e como desafio a ser enfrentado no trabalho desenvolvido no SUS.

O grande desafio de tornar as práticas de saúde mais eficazes, requer um posicionamento críti-co frente aos obstáculos inerentes à própria ra-cionalidade que limita a prática clínica,

e, com efeito, o processo de trabalho desenvolvido (NOGUEIRA, 2010, p. 102)

Este artigo aborda resultados de uma pesquisa so-bre o tema do processo de trabalho e da humanização na saúde, tendo como foco a estratégia saúde da famí-lia. O pressuposto é que, apesar do contexto social e político apresentar-se com muitas contradições e desa-fios, o modelo de atenção dessa estratégia, mesmo com dilemas e discrepâncias entre o real e o proposto, vem produzindo experiências locais com desafios e potencia-lidades que não devem ser desperdiçadas.

Para fundamentar seus argumentos, recorre a mar-cos antiutilitaristas, ancorando-se mais fortemente nos aportes teóricos de Boaventura de Sousa Santos, acerca da sociologia das ausências e das emergências e do tra-balho de tradução.

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Metodologia

A pesquisa teve como campo de investigação empíri-ca a ESF desenvolvida na atenção primária à saúde do município de Natal (RN), utilizando uma abordagem predominantemente qualitativa.

As abordagens qualitativas, conforme ressalta Minayo (2004), são capazes de incorporar os significados e as intencionalidades, como inerentes aos atos, às relações e às estruturas sociais, permitindo uma melhor compreensão em estudos com essa natureza.

A operacionalização do estudo utilizou procedi-mentos variados: a pesquisa bibliográfica; a pesquisa documental (documentos institucionais de âmbito na-cional2) e o trabalho de campo, onde foram realizadas entrevistas e observação direta.

A interpretação das informações coletadas foi fun-damentada na análise documental e na abordagem so-ciológica apresentada por Santos (2005b), denominada de cartografia simbólica das representações sociais, que tem como matriz de referência a construção e a repre-sentação do espaço para análises dessas representações.

Objetivando justificar a utilização desse procedi-mento de análise, Santos (2005) ressalta que a carto-grafia, em termos epistemológicos, é uma ciência muito complexa, por combinar características das ciências na-turais e das ciências sociais. Acerca dos mapas, destaca que esses são feitos para ser vistos ou lidos e expressam representações/distorções reguladas da realidade, ressal-vando que as distorções são “organizadas e criadoras de ilusões credíveis de correspondência”. (SANTOS, 2005, p. 198). Dito de outra maneira, os mapas distorcem a realidade para instituir a orientação, e, para serem práti-cos e úteis, não podem coincidir com a realidade exata; por essa razão a distorce, mas não de forma arbitrária, mas de forma conhecida e controlada, através de três mecanismos: a escala, a projeção e a simbolização.

A escala indica a relação das dimensões ou dis-tâncias marcadas sobre um plano com as dimensões ou distâncias reais, expressa o grau de pormenorização da representação. Dessa forma, os mapas podem ser con-siderados de grande escala, quando cobrem uma área menor (local), apresentando assim um maior grau de

pormenorização. E de pequena ou média escala, quan-do cobre áreas maiores (nacional, global), apresentando um menor grau de pormenorização. E pelo fato de me-diar a intenção e a ação, o mecanismo de escala pode ser aplicado à ação social. Os argumentos discursivos e normativos reguladores das políticas referenciadas, no âmbito nacional e municipal, e, as Unidades de Saúde da Família (USF) integrantes da pesquisa, configuram as escalas do mapa analisado.

Sobre a projeção, entendida enquanto a repre-sentação da realidade em um plano, ocorre uma dis-torção, mas não caoticamente. Cada tipo de projeção cria um campo de representação no qual as formas e os graus de distorção têm regras claras e precisas. Sendo assim, a projeção realça distorções ou aspectos no mapa que indicam compromissos condicionados por fatores técnicos e políticos. Para efeito da análise pormenorizada do processo de trabalho, foi feito um desenho cartográfico das atividades que o compõe, se-guindo os fluxos percorridos pelo usuário na unidade de saúde (da entrada à saída).

O terceiro mecanismo de representação/distorção da realidade, a simbolização, se refere aos símbolos usa-dos para assinalar os elementos mais significativos e as características mais relevantes a serem destacadas acerca da realidade espacial estudada. Essa foi visualizada atra-vés das vocalizações dos entrevistados (profissionais e usuários) que expressaram suas visões e relataram suas vivências como face visível da realidade.

Resultados

As evidências cartografadas apontaram como princi-pais dilemas:• Posturasdosprofissionais/usuários acolhedoras e

não acolhedoras, sendo identificado como ponto crítico o setor do arquivo. Foi unânime o entendi-mento sobre o acolhimento como diretriz clínica, que expressa a ideia da atitude acolhedora para com o usuário em todos os espaços da unidade de saúde, do que como dispositivo clínico referente a medidas organizativas para facilitar ou remarcar o

2 documento Base da PNH - Ministério da Saúde; textos Básicos sobre os dispositivos da PNH - Ministério da Saúde.

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acesso a determinados tipos de atendimento. Mas, na prática, as ações se reportam com mais evidên-cia ao acolhimento como dispositivo clínico;

• Deficiênciasnaambiência,interferindonoacolhi-mento dos usuários e nas ações desenvolvidas. Pe-los depoimentos cartografados, é possível afirmar que os problemas relacionados à ambiência inter-ferem no processo de trabalho, comprometendo sua qualidade, gerando desconforto aos usuários e desmotivações nos trabalhadores e gestores locais, que muitas vezes investem recursos próprios em alguma providência para agilizar uma solução pa-liativa de alguns problemas;

• Inexistência do profissionalmédico em algumasequipes da ESF, devido a inúmeros fatores que não foram objetos de análise desta pesquisa, com-prometendo a resolutividade de alguns problemas e ocasionando insatisfações de outros profissionais da equipe e de usuários;

• Demandareprimida,comprometendooacessoaoutros níveis de atenção;

• Uma forma de gestão, que apesar de começar aabrir espaço para discussões coletivas no processo de trabalho, ainda não se configura como uma ges-tão efetivamente participativa. Nas seis unidades pesquisadas, apenas uma não tem conselho gestor; no entanto, dos cinco existentes, três não funcio-nam regularmente e dois não estão se reunindo. O mapa aponta que os conselhos gestores locais ainda não conseguiram se constituir como espa-ços coletivos, fazendo acontecer o sistema de co-gestão, e não se inserem efetivamente como parte constitutiva da gestão das unidades de saúde. Essa situação revela que a criação de espaços coletivos para o exercício da democracia e da cidadania é fundamental, mas não suficiente. As dificuldades observadas, na prática, impõem a necessidade de comportamentos que internalizem uma cultura democrática.

Dentre os desafios, além das questões de ordem estrutural do sistema de saúde como um todo que vêm afetando as condições de trabalho e a oferta dos ser-viços, que precisam ser resolvidas, foram identificados quatro grandes desafios:

• Ainternalizaçãodeumreferencialfundamentadona ecologia dos saberes - o desafio da internaliza-ção de um referencial fundado na ecologia dos sa-beres não desqualifica o saber científico moderno, mas critica seriamente pela fragmentação, especia-lização excessiva, e o pressuposto de considerá-lo como única verdade. Assim, aposta na articulação entre esses saberes e na integração com as práticas, na agregação de outros saberes e na superação de um conhecimento de regulação para um conheci-mento de emancipação;

• Ainstituiçãodesubjetividadesrebeldes:buscain-tensificar a vontade de fazer algo para mudança, se contrapondo às subjetividades conformistas que mantêm permanentemente o status quo. O protagonismo dos sujeitos e coletivos possibilita condições para o exercício de subjetividades re-beldes, recuperando valores sociais/éticos e polí-ticos, criando contextos favoráveis a mudanças;

• Ainstituiçãodeumademocraciadealtaintensi-dade. Essa depende, não apenas da instalação de instituições democráticas, mas principalmente da prática cotidiana dos atores sociais e suas relações;

• Acapilarizaçãodapolíticadehumanizaçãonoses-paços institucionais: é outro desafio a ser enfren-tado que tem uma forte relação de dependência dos desafios anteriores. São vários os caminhos que podem ser trilhados para a efetivação da po-lítica nos microespaços, destacando-se a formação de redes interativas, produtoras de movimentos de socialização de informações e trocas;

• Aampliaçãodasexperiênciaspositivas,quetam-bém tem uma interface com o desafio da capilari-zação, supõe o reconhecimento dessas experiências como possibilidades emergentes a serem estimula-das e disseminadas.

Conclusões

Apesar das evidências cartografadas terem mostrado uma situação reveladora de um processo de trabalho produ-tor de uma atenção ainda em condições desumanizadora com vários dilemas e desafios, também foram evidencia-das algumas potencialidades, através de movimentos de

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mudanças no processo de trabalho, que vêm fortalecen-do o vínculo, ampliando as ações desenvolvidas, incorpo-rando novos sentidos e experiências inovadoras.

Essas experiências articulam a cultura, a arte, o lazer e as práticas de novos estilos de vida, trazendo assim, para o modelo de atenção à saúde, outras formas de racionalidade para lidar com o processo saúde-doença. Como também, refletem práticas que têm uma forte articulação com a po-lítica de humanização, uma vez que, todas buscam cons-truir relações mais humanas e horizontais, estimulando a participação e o protagonismo dos sujeitos para melhoria da sua saúde no âmbito individual e coletivo. E nesse sen-tido, fortalecem o vínculo e a solidariedade, favorecendo uma maior aproximação entre os participantes, criando um espaço de diálogo entre saberes, como também um espaço de circulação de bens simbólicos.

Grande parte dessas práticas situa-se no campo da promoção da saúde e da prevenção de agravos e, apesar de extremamente positivas, têm uma baixa visibilidade na mídia e baixo reconhecimento institucional. Depen-dem em grande parte de iniciativas dos profissionais em criá-las e mantê-las.

Retomando Boaventura Santos (2006), ele ins-tiga a necessidade do reconhecimento de alternativas novas, que a princípio podem até ser desacreditadas, propondo, como caminho para torná-las visíveis e cre-díveis, três procedimentos metasociológicos: a socio-logia das ausências, a sociologia das emergências e o trabalho de tradução.

Na sociologia das ausências, iniciativas locais bem sucedidas produzem novos sentidos e significados até então não explicados por uma teoria geral. Sendo im-portante a sua credibilidade e reconhecimento, o que vai possibilitar que a sua ausência ou invisibilidade, se transforme em presença ou visibilidade, permitindo as-sim uma visão ampla e completa do presente.

A sociologia das emergências move-se no campo das expectativas sociais, e consiste na identificação de saberes e práticas emergentes a serem fortalecidas, a partir de sinais e pistas da realidade, de modo a prever tendências futuristas, para maximizar probabilidades de esperança. Dentro desse enfoque aposta em avanços, mesmo diante das dificuldades do cotidiano.

O trabalho de tradução é considerado como com-plementar as sociologias das ausências e das emergên-cias, esclarecendo o que se encontra na realidade. Como diz Santos (2006, p. 135) “cria as condições para mu-danças a partir de uma imaginação democrática”, em outras palavras, interpreta de forma diversificada e fun-damentada, as novas realidades que se conformam em contextos mais ampliados.

Nas unidades de saúde pesquisadas, foram en-contradas várias dessas experiências, possibilitando o diálogo entre os saberes técnico e popular destacando-se: rodas de conversa; peças teatrais; grupos de danças; grupos de terapia comunitária; prática de exercícios fí-sicos e biodança; atividades de lazer como passeios para praias, cinemas, outros pontos culturais; atividades de artesanatos para confecção de produtos variados com organização de feiras de exposição, entre outras.

Podemos dizer que são experiências pouco conhe-cidas3 e pontuais, pois não existem em todas as unida-des de saúde, e onde existem, têm um envolvimento limitado de usuários quando comparado às demandas das equipes, podendo ser consideradas de pouca visibi-lidade. Nas palavras de Santos (2007, p. 23):

O mais preocupante no mundo de hoje é que tanta experiência fique desperdiçada, porque ocorrem em lugares remotos. Experiências muito locais, não muito conhecidas, nem legitimadas pelas ciências hegemônicas, são hostilizadas pelos meios de comunicação, e por isso têm permanecido invisíveis.

Com essa preocupação, Santos (2006) instiga a ne-cessidade da abertura dos olhos para alternativas novas, que a princípio são ‘inexistentes ou desacreditadas’; entretanto, às vezes estão próximas, porém distantes. E a proposta da sociologia das ausências busca exatamente colocar lentes para visualizá-las superando as monoculturas galgando ecologias. Assim sendo, a sociologia das ausências e das emergências deve assentar-se, segundo Santos (2008), em procedimentos epistemológicos que credibilizem a bus-ca de alternativas em condições de elevada incerteza. E, nessa perspectiva, propõe o distanciamento das teorias e

3apesar de já existir um movimento para divulgação das mesmas em relatos e apresentações em eventos variados, são experiências mais vinculadas às iniciativas de profis-sionais que não se caracterizam ainda como ‘institucionais’.

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VILAR, R.L.A.; gERmAnO, J.W.; gERmAnO, R.m. • o processo de trabalho na Estratégia Saúde da Família e a humanização: dilemas e desafios

disciplinas construídas pelo pensamento científico e a ra-zão indolente, pelo fato de terem esses contribuído para a discrepância entre perguntas fortes e respostas fracas, que caracterizam o mundo contemporâneo.

Sobre a discrepância mencionada, acrescenta que essa se traduz nas incertezas das quais destaca como principais: a incapacidade de captar a inesgotável diver-sidade da experiência humana e o temor que com isso se desperdice experiências que poderiam ser de grande valor na resolução de alguns problemas do cotidiano;

e a incerteza da aspiração de um mundo melhor, mais justo e humano, sem que se disponha de uma teoria da história que indique que seja possível.

Concluindo à luz do referencial utilizado, pode-mos reafirmar a valorização dos sujeitos como agentes da história (profissionais e usuários); a identificação de pistas, mesmo diante dos dilemas; o reconhecimento de avanços, mesmo diante dos limites, e a reascensão de utopias em direção a mudanças, apesar de contextos não favoráveis.

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recebido para publicação em Junho/2011 Versão definitiva em outubro/2011 Suporte financeiro: Não houve conflito de interesse: inexistente

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ARTIgO ORIgInAL • origiNal articlE

O ‘ser’ agente comunitário de saúde na equipe de saúde da família*

the ‘be’ community health agent in family health team

Neuza Cristina gomes da Costa1, Maria angélica dos Santos Spineli2

RESUMO Este estudo descreveu e analisou as concepções dos agentes Comunitários de Saúde (aCS) das equipes de saúde da família de Sorriso, Mato grosso. o município contava, em 2008, com 13 unidades na área urbana e 64 aCS distribuídos nas equipes. realizou-se observação participante durante visitas domiciliares e entrevista em grupo focal. os resultados apontaram para concepções restritas e contraditórias sobre as atividades desenvolvidas em equipe e sobre os princípios da saúde da família. ações para minimizar fragilidades e conflitos devem ser planejadas pela equipe de saúde e, principalmente, pela gestão municipal.

PALAVRAS-CHAVE: Saúde da Família; Promoção da Saúde; atenção Primária à Saúde.

ABSTRACT this study described and analyzed the conceptions of the community Health agents (acS) of family health teams of Sorriso, Mato grosso. the city had, in 2008, 13 units in urban areas and 64 acS distributed in teams. we conducted participant observation during home visits and focus group interview. the results pointed to limited and contradictory views on the activities of a team and on the principles of family health. actions to minimize weaknesses and conflicts should be planned by the health team and, especially, by municipality administration.

KEywORDS: Family Health; Health Promotion; Primary Health care.

1 Mestre em Saúde Coletiva pela universidade Federal de Mato grosso (uFMt) – Cuiabá (Mt), Brasil. Professora do Instituto de Saúde Coletiva da uFMt – Cuiabá (Mt), Brasil. [email protected]

2 doutora em Saúde Coletiva pela universidade Estadual de Campinas (uNICaMP) – Campinas (SP), Brasil. Professora do Instituto de Saúde Coletiva da uFMt – Cuiabá (Mt), Brasil. [email protected]

*Este estudo integrou a pesquisa: “os desafios e perspectivas do SuS na atenção à saúde em municípios da área de abrangência da Br 163 no estado de Mato grosso”, desenvolvido pelo Instituto de Saúde Coletiva da universidade Federal de Mato grosso (uFMt).

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COsTA, n.C.g.; spInELI m.A.D.s. • o ‘ser’ agente comunitário de saúde na equipe de saúde da família

Introdução

O Programa da Saúde da Família foi eleito pelo Minis-tério da Saúde para reorganizar o modelo de atenção no país com base nos princípios e diretrizes organizacionais do Sistema Único de Saúde (SUS) – universalidade, equidade, integralidade, descentralização, participação social. Instituída primeiramente como um Programa, a Saúde da Família foi afirmada como uma estratégia pelo Pacto pela Saúde editado em 2006.

A saúde da família tem princípios específicos: trabalho em equipe, atuação em território específico, cuidado das pessoas e famílias ao longo do tempo, planejamento e a programação de atividades com base no diagnóstico situacional, o foco da assistência para a construção de vínculos e ações pautadas no acolhimen-to. Estimula-se a integração com instituições e organi-zações sociais através de parcerias, de preferência na área de abrangência e a participação da comunidade como controle social e direito à cidadania (BRASIL, 2006).

O Agente Comunitário de Saúde (ACS) integra a equipe de saúde da família, sendo fruto de algumas experiências de programas nacionais. O Programa de Agente Comunitário de Saúde (PACS), implantado no sertão cearense em 1988, foi uma dessas experiências. O objetivo do PACS foi de melhorar a capacidade da po-pulação em cuidar de sua saúde através de informações e conhecimentos transmitidos pelos Agentes às popu-lações rurais, às periferias urbanas e ao grupo materno-infantil (BRASIL, 1994; SILVA et al., 2005).

Ainda com objetivo de melhorar a capacidade do cuidado das pessoas, mas numa perspectiva mais am-pliada e complexa, os ACS na equipe de saúde da fa-mília são os profissionais mais próximos dos usuários. Conforme Machado et al. (2008), são os profissionais que possuem maior viabilidade para identificar as ne-cessidades das famílias e comunidades em suas particu-laridades subjetivas, econômicas, sociais e culturais, e ao mesmo tempo, facilitando o acesso dos cidadãos ao serviço de saúde.

Na complexidade em ‘ser’ ACS, estudá-los é de-parar com um universo em descobrimento. Um uni-verso que reflete várias relações sociais determinadas por ideologias presentes em nossa sociedade. Ser ACS é possuir uma ‘dupla identidade’, ou seja, é ser morador

da comunidade em que assiste e membro da equipe de saúde da família. Desvendar aspectos que envolvem essa dupla identidade é poder argumentar sobre aspectos da prática que merecem ser aprofundados e revistos, a fim da resolução de conflitos para uma prática harmônica e atenção integral aos usuários.

Com intuito de desvendar as relações sociais que norteiam as práticas dos ACS, este artigo apresenta a descrição e a análise das concepções desses profissionais sobre suas atividades e da estratégia da saúde da família no município de Sorriso, Mato Grosso.

Metodologia

O estudo é um dos recortes da dissertação de mes-trado ‘Os Agentes Comunitários de Saúde na equipe de saúde da família do município de Sorriso, Mato Grosso’, que integrou a pesquisa: ‘Os desafios e pers-pectivas do SUS na atenção à saúde em municípios da área de abrangência da BR 163 no estado de Mato Grosso’, desenvolvido pelo grupo de pesquisa do Ins-tituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso, com financiamento do CNPq, apro-vado pelo Comitê de Ética em pesquisa envolvendo seres humanos do Hospital Universitário Julio Muller sob o número 235 (CEP–HUJM/2005), atendendo às determi nações da resolução 196/96.

Neste artigo, estão apresentados os resultados refe-rentes à observação participante e entrevista em grupo focal, coletados em 2008. O estudo foi realizado no mu-nicípio de Sorriso, localizado na região norte de Mato Grosso que contava, em 2007, com uma população de 55.134 habitantes. A escolha do município deu-se por possuir parte considerável de sua população coberta por ACS (88% em 2007). Em 2008, Sorriso contava com 14 unidades de saúde da família: 13 urbanas e 1 rural. Incluíram-se, neste estudo, os ACS de área urbana.

A observação participante foi realizada durante as visitas domiciliares de quatro ACS, dois de uma mesma unidade de saúde e outros dois de unidades distintas. A escolha das unidades de saúde de família deu-se segundo critério socioeconômico, especial-mente pela cobertura da população atendida pela equipe e pela iniciativa privada: 1) Unidade de Saúde

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da Família XIII, localizada em bairro central, com 3.546 usuários cadastrados e 897 com plano privado de saúde; 2) USF IX, bairro próximo ao centro, com 2.661 usuários cadastrados e 407 com plano privado de saúde; 3) USF VII, área periférica, com 3.600 usu-ários cadastrados e apenas 7 cobertos por plano pri-vado. No total, foram visitadas 40 famílias. A escolha do Agente a ser acompanhado nas visitas domicilia-res aconteceu pelo consenso entre eles. A interação entre o pesquisador e o pesquisado foi satisfatória e foi possível alcançar os objetivos propostos. A técnica foi analisada a partir dos registros em diário de cam-po, com objetivo de descrever as circunstâncias da participação, o desenrolar do cotidiano, as reflexões e as situações vividas.

Quanto ao grupo focal, foram formados dois gru-pos que incluíram os ACS representantes das 13 uni-dades de saúde da família, totalizando 16 convidados. Não houve comparecimento de todos. Foram marcados dois encontros, um para cada grupo; apresentaram-se quatro no primeiro grupo e seis no segundo. Os ACS ausentes não justificaram a ausência.

A entrevista seguiu um roteiro que abordou: con-ceito de saúde, modelo de atenção/características da saúde da família, educação permanente, trabalho em equipe, atividades assistenciais e grupos prioritários, fa-cilidades e dificuldades, saber popular e científico. O material foi submetido à análise de conteúdo a partir do registro e transcrição da entrevista na íntegra. A unida-de de análise considerada foi o próprio grupo, mesmo a opinião não sendo compartilhada por todos, a interpre-tação dos resultados é referida como do grupo (GON-DIM, 2002).

Os dados da observação participante e do grupo focal foram organizados conforme categorias de análi-se. As abordadas neste artigo compreendem: Educação permanente, Modelo de Atenção, Acolhimento e Vín-culo e Conflitos em ser ACS.

Resultados e discussão

Educação permanenteNenhum ACS possuía formação inicial ou técni-ca como estabelecido pelo Ministério da Saúde a

partir do Referencial Curricular para Curso Técnico de Agente Comunitário de Saúde, lançado em 2004. O único curso que os ACS fizeram referência é o Cur-so Introdutório de Saúde da Família, que no estado de Mato Grosso é de responsabilidade da Escola de Saúde Pública, representada pelos Escritórios Regionais de Saúde. Os ACS que ingressaram na equipe após 2006, receberam o Curso Introdutório em 2008; os demais, até a data da coleta de dados, não haviam recebido nenhuma qualificação para atuação na equipe.

A lacuna de conhecimento sobre as habilidades foi um grande obstáculo que os ACS enfrentaram ao assu-mir o cargo, já que a estratégia de saúde da família propõe ações diferenciadas daquelas que até então conheciam e vivenciavam. A contribuição de outros profissionais da equipe não foi grande, pois também não possuíam do-mínio sobre as práticas de caráter mais inovadoras. O aprendizado se fez na prática, contando com trocas de experiências entre os próprios agentes e com a contribui-ção da equipe e/ou dos profissionais isoladamente.

Os ACS julgam ser necessário participar de cursos de educação permanente. Os temas de interesse referem a certas patologias clínicas, evidenciando-se o interesse pelo saber médico:

Há temas com que não sabemos lidar. Houve um surto de rubéola e eu só sabia um pouco. Falta nos capacitar mais. Existem falhas do nosso lado? Existem. Mas o secretário de Saúde tinha que ver mais essa necessidade, eles que-rem ver números (ACS 01).

Tinha que haver alguma capacitação, pelo menos uma vez ao mês, de temas diferentes. Teve um cur-so que adorei, com um psiquiatra, aprendi coisas que não sabia, mas que vivenciava (ACS 03).

Na minha área perguntavam coisas e eu nem sabia, então anotava e no final da tarde sentava com o doutor e perguntava tudo. No outro dia, eu explicava para o paciente (ACS 09).

Os ACS relatam a necessidade de serem capaci-tados para outras atividades, como aferição dos sinais vitais dos usuários:

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[...] não aferimos pressão, mas gostaria, porque às vezes encontramos alguém que pede e percebe-mos que a pessoa está passando mal e temos que encaminhar ao posto. Seria bom se pudéssemos e se tivéssemos liberdade para ter aparelho de pres-são, de andar com termômetro (ACS 02).

A capacitação para verificação dos sinais vitais se refere à busca do ACS em fazer o seu trabalho render mais e melhor, como exposto pelo estudo de Bachilli et al. (2006), sobre a identidade do Agente Comunitá-rio de Saúde. Os autores destacam que o agente busca capacitação nesse sentido e no de ampliar suas ideias, colocando em prática seus conhecimentos. A percepção da comunidade de que os ACS podem ajudá-la é um estímulo contínuo para que façam algo melhor.

Além da percepção de fazer ‘render’ o trabalho, os ACS, quando dizem que querem aferir pressão e si-nais vitais, demonstram novamente o valor atribuído às práticas médicas. Percebe-se que buscam subsídios para atender a comunidade; no entanto, algumas ações, va-lorizadas na prática médica, os desviam dos objetivos de trabalho: prevenção de doenças e promoção da saúde.

A ‘falta de preparo profissional para a atuação na saúde da família’, pode ser justificada e compreendida pela ausência de curso de formação ou outro tipo de educação permanente. Destaca-se a importância da qualificação desses profissionais para atuação, pois, por serem parte da comunidade, trouxeram para o ambien-te de trabalho a perspectiva biomédica da assistência e concepções do senso comum, além das dificuldades en-frentadas no cotidiano de trabalho.

Modelo de atençãoA saúde compreendida pelos ACS é multifacetada, com-portando sentidos de abrangências distintas: a) como um bem-estar físico e mental do indivíduo e da população; b) relacionada à realização de exames e especialidades médicas, dependente do diagnóstico dos profissionais; c) atenção à saúde como forma de evitar problemas que prejudiquem o bem-estar físico e mental do indivíduo.

O primeiro conceito aproxima-se do estabelecido pela Organização Mundial de Saúde, elaborado após a segunda Guerra Mundial, que define saúde como “o es-tado de mais completo bem-estar físico, mental e social,

e não apenas a ausência de enfermidade”. Conceito am-plamente divulgado e conhecido.

Tal conceito pode ser sintetizado pelo relato:

Saúde não é algo relacionado apenas com do-ença, é um bem-estar físico, é a mente... tem pessoas que não estão com ferida ou machuca-do, mas é a mente, o coração (ACS 10).

O bem-estar psicológico enfatizado na palavra ‘co-ração’ vincula-se à emoção.

Na segunda categoria, os profissionais são vistos como essenciais na garantia da saúde da população, com ênfase no diagnóstico e na especialidade médica. Concepção que se aproxima das características do mo-delo biomédico:

Antes não tinha especialidade, somente o clí-nico e o ginecologista, agora tem cardiologista, pediatra, neurologista, urologista, otorrino. É a atenção à saúde (ACS 01).

A terceira perspectiva envolve uma concepção pre-ventivista. Prevenir doenças é de responsabilidade de todos os membros da equipe da unidade de saúde, espe-cialmente dos ACS: “Saúde como trabalho em equipe, orientar para prevenir doenças” (ACS 02).

Não foi estabelecida a relação entre saúde e condi-ções materiais de vida, como alimentação, moradia, edu-cação, lazer e ambiente, opondo-se a uma concepção am-pliada que envolve os determinantes sociais e econômicos do processo saúde-doença (biologia humana, ambiente, estilo de vida, organização da assistência à saúde, entre outros). Também não foi feita a relação com a promoção da saúde, promover e manter o ‘bem-estar’ das pessoas.

Apesar de reconhecerem a saúde como ‘bem-estar’ não só físico, mas também psicológico e de responsabi-lidade de todos os profissionais da saúde, que estariam representando o Estado no seu dever de assegurar o di-reito ao acesso a serviços de saúde, o conceito ainda é abstrato, focado na doença e em especialidades médicas (modelo biomédico).

Capra (1982) descreve que o modelo biomédico con-sidera o ser humano uma máquina e a doença um defei-to em seu funcionamento, excluindo os aspectos sociais e

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psicológicos que interferem no processo de saúde/doença. É marcado pela grande especialização da medicina e tem ênfase nos aspectos curativos (prestígio do diagnóstico, da terapêutica e do processo fisiopatológico em detrimento da causa das doenças). O autor afirma que o modelo adquiriu o status de um dogma na medicina, valorizando o estudo das doenças e a assistência aos enfermos – pacientes.

Saúde é definida com base em padrões que são de-terminados socialmente. Não consideram que saúde seja subjetiva e diferente para as pessoas, como uma forma de ‘estar bem’. Por mais que o processo de adoecer seja construído socialmente e varie conforme a cultura de cada sociedade, cada pessoa vivencia as experiências re-lacionadas à saúde e doença de forma peculiar e, assim, a saúde é considerada diferentemente pelas pessoas. A compreensão da subjetividade do outro é fundamental para a intervenção na saúde.

O Programa de Saúde da Família (PSF) é referido como uma proposta que visa reorganizar a atenção à saú-de, em acordo com a proposta atual ‘um novo modelo de atenção’. Entretanto, os ACS relacionam a proposta em oposição à do ‘postão’ (centro de saúde) e referem às pessoas e famílias como ‘pacientes’, não como usuários da saúde, mesmo considerando-se a diferença.

A proposta de saúde da família para os ACS ca-racteriza-se pela prevenção das doenças. A característica de prevenir doenças é o que torna o PSF diferente do atendimento do ‘postão’ e/ou do ‘pronto-atendimento’. Argumentam que nesses serviços o profissional não co-nhece a história da pessoa, nem de sua família, o tra-tamento é específico e voltado à queixa que a levou a procurar o atendimento:

A função do PSF é trabalhar com a prevenção. No pronto-atendimento se trabalha com o mal específico, o PSF trabalha com todo o sistema para evitar que a pessoa chegue a esse ponto. Tem toda uma conscientização, todo um traba-lho para conscientizar a pessoa (ACS 06).

Verifica-se uma ideia contraditória, pois ao mes-mo tempo em que a Saúde da Família é diferente dos serviços existentes, algumas concepções são restritas, especialmente sobre a promoção da saúde, eixo de tra-balho dos profissionais da equipe.

Citam exemplos das atividades que realizam na equipe, mas não as identificam como de promoção da saúde, reduzindo-as apenas à prevenção de doenças:

[...] igual os hipertensos, vamos acompanhar, fazer caminhada, consultas, controlar a dieta, fazer ações para evitar doenças graves. Esse é o trabalho do PSF (ACS 09).

As ações de ‘fazer caminhada’ e ‘controlar a die-ta’ são, segundo a Política Nacional de Promoção da Saúde, ações de promoção da saúde e que devem ser estimuladas e promovidas pelas equipes da Atenção Bá-sica em Saúde, especialmente as de saúde da família. Os ACS entendem as ações como forma de evitar ou controlar a doença, não reconhecendo a promoção da saúde como característica do trabalho da equipe de saú-de da família.

A estratégia de saúde da família busca a inversão do modelo assistencial, centrado na doença; no entan-to, a percepção dos ACS, que se desenha pelos ACS, reflete a prática das equipes de saúde da família. As falas dos ACS trazem traços do modelo biomédico e não integram a promoção da saúde e a integralidade da assistência.

A percepção e a definição do modelo de atenção po-dem estar relacionadas com a ausência de curso específico para qualificação na área, pois iniciaram e desenvolveram as atividades, seu suporte teórico e técnico específico. O serviço é a estratégia de reordenação dos serviços de saú-de e também de superação do atendimento voltado para o modelo biomédico, mas que só é possível com uma equipe multidisciplinar, ciente de suas ações.

Acolhimento e vínculoO acolhimento e vínculo são ferramentas que a equipe de saúde da família dispõe para quebrar barreiras em relação ao outro, interagir e compreender as relações que permeiam as situações de doença, tanto individual, quanto familiar.

Verificou-se que o acolhimento é um requisito para a construção do vínculo entre o ACS e a família. Não so-mente o usuário e sua família precisam de acolhimento, mas também o ACS. Percebe-se a necessidade do ACS em ser escutado, ouvido, percebido, ou seja, acolhido:

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Esses dias eu escrevi no registro do usuário: pa-ciente recusou em me dar atenção, vim fazer a visita de rotina, mas a mesma se recusou a me dar atenção e a mesma está assinando. Quan-do dei para ela ler, ela se recusou a assinar e perguntou o porquê de não estar dando aten-ção. Respondi que ela estava lavando a louça e olhando para a televisão e não prestava atenção no que eu falava e perguntei se então ela iria me dar atenção, ela então resolveu sentar e con-versar comigo (ACS 03).

O acolhimento dos usuários aos Agentes foi per-cebido na maioria das visitas domiciliares, expresso na recepção com cordialidade e respeito, no convite para entrar na casa, no oferecimento de algo para beber ou comer e na fala espontânea sobre os acontecimentos familiares, seja a saúde ou outros assuntos. A relação entre os moradores e os ACS possibilitou perceber a confiança no profissional, chamando-o para conversar, tanto para resolução de um problema de saúde, quanto para desabafo pessoal. Essa percepção deu-se em todas as visitas, independente da unidade de saúde.

A escuta e a conversa são características do acolhi-mento realizado pelos ACS e que também existem por parte da família. Ambos agem um sobre o outro, numa relação dinâmica. No entanto, a conversa do ACS deve ser diferenciada, pois tem um objetivo específico. Du-rante a observação, verificou-se que os ACS possuem uma conversa com objetivos, sob a roupagem de uma ‘visita informal’, buscavam levantar dados e realizavam orientações, de acordo com as necessidades de cada fa-mília. No entanto, identificaram-se fragilidades referen-tes às orientações sobre a rede de serviços no município e serviços de referência e contrarreferência.

A definição de ‘Ser’ Agente Comunitário de Saúde está relacionada com a questão do acolhimento e vín-culo. Ser ACS foi definido como: ‘amigo’, ‘gratificante’, ‘solidário’, ‘companheiro’. Tais definições implicam que o ACS não é apenas um profissional da saúde que rea-liza visitas domiciliares, e sim, algo mais. É através da conquista do vínculo que os ACS se veem como ‘tudo’ e se sentem confortáveis para a realização das atividades.

Os ACS referem-se à ligação entre eles e a comuni-dade como um ‘elo’, reforçando a questão do vínculo:

as pessoas reconhecem a gente (ACS) como um elo, tem família que quando um paciente mor-re a primeira pessoa que eles avisam é a mim. A gente tem um elo muito forte (ACS 04).

O ‘elo’ remete ao papel mediador do ACS entre a comunidade e a equipe de saúde: “nós (ACS) somos um elo, tudo que acontece na comunidade estamos levando para o posto” (ACS 03).

O ‘elo’ relatado conforma-se, assim, com a descri-ção de Silva et al. (2005), como uma união de partes separadas, uma forma reducionista de se pensar a in-tegração feita pelos ACS, propondo a união de partes através de relações humanas, ou seja, ‘laço’, o que possi-bilita mudanças nas atitudes dos sujeitos.

Porém, ‘elo’ ou ‘laço’ são, conforme Gomes e Pinheiro (2005), metáforas para simbolizar maneiras como o ACS se coloca diante de seus saberes e suas prá-ticas. Nesse sentido, o ‘elo’ apresenta-se em duas ver-tentes: aquela em que os ACS são reconhecidos como tais pela comunidade, algo mais que um profissional, reforçando a conquista do vínculo, e a segunda, a liga-ção entre comunidade e equipe, a ligação de duas partes que estão separadas.

Os demais profissionais da equipe também são reconhecidos pela comunidade, mas o ACS é a referên-cia: “As pessoas identificam toda a equipe, mas quando chegam lá no posto, já perguntam: cadê meu agente?” (ACS 05).

O vínculo estabelecido entre os agentes e famílias se faz com intensidade diferente, havendo moradores que se recusam a recebê-los na visita domiciliar. Esses moradores são os considerados ‘chatos’ e, diante da re-sistência, desestimulam os ACS à realização das ações com aquelas famílias:

Não vou ser hipócrita de falar que conheço a história de vida de todos, até porque têm uns que eu não faço nem questão de tão chatos que são... só faço minha obrigação... Não mandam você sentar, te atendem na frente da casa, mui-tas vezes com cadeado trancado e perguntam o que você quer. Para esses, peço para eles assina-rem a folha de registro de visita, confirmando que fui lá e só (ACS 03).

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Afirma-se a necessidade de que os ACS também precisam ser acolhidos pelos usuários. Sem esse aco-lhimento, a construção do vínculo torna-se prejudica-da. O vínculo é visto como uma relação de confiança, uma relação harmônica entre os ACS e os ‘moradores’, conquistada no cotidiano pela dedicação pessoal. Du-rante o acompanhamento das visitas domiciliares, não foi vivenciado nenhuma situação de recusa do aten-dimento, os ACS demonstram conhecer a história de cada família cadastrada e essas demonstraram conhe-cer o ACS, em muitas, considerando-o como profis-sional referência do serviço.

Uma das formas para facilitar o vínculo entre ACS e usuário é residir na área de abrangência, uma exigên-cia desde o início da institucionalização dos ACS. Os ACS percebem essa obrigatoriedade como negativa, justificando ser desnecessária para constituir o vínculo.

A exigência choca com interesses pessoais, como a mudança de residência. Alguns buscam uma casa com aluguel mais acessível ou localizada em outro bairro, no entanto, se mudam, não podem mais atuar na equipe daquela área de abrangência:

Porque lá do outro lado tem uma casa melhor, por um preço melhor para você morar, mas você não pode mudar por causa do emprego (ACS 03).

Porque você está todo dia na área... Têm situações que é necessário você morar e em outras, não. Não deveria é ser obrigatório (ACS 02).

Os ACS relatam visitas dos usuários fora do ho-rário de trabalho. Esse fato evidencia que as famílias não percebem o ACS apenas como um profissional da saúde que presta serviço para o município, mas como um membro da família, um vizinho, um morador do bairro com o qual se pode contar a todo o momento. A percepção da família vai de encontro com as definições dos próprios ACS, pois se consideram ‘amigos’ e ‘com-panheiros’ dessas mesmas famílias.

O vínculo, uma vez estabelecido, favorece a atu-ação dos ACS; no entanto, sua intensidade deve ser medida, pois o envolvimento ambíguo pode prejudicar

no desempenho profissional, bem como em sua vida pessoal, levando a situações de desconforto, tristeza, so-frimento e sentimentos de incapacidade.

O acolhimento e vínculo, como parte da integralida-de, é o eixo para mudança do modelo de atenção à saúde, no entanto, uma divisão de papéis é necessária. Deve haver uma separação entre o público e o privado: o profissional da equipe de saúde da família ou do ‘posto’ e o amigo ou vizinho. Esta diferenciação deve iniciar pelo próprio ACS, impondo limites em suas relações com os usuários.

Como se trata de união antiga, engessada em nossa cultura, é necessária a percepção não só do ACS, mas também pela equipe de trabalho, e a sepa-ração de papéis deve ser trabalhada cotidianamente com a população.

Os conflitos em ‘ser’ agente comunitário de saúdeUm dos conflitos em ‘Ser’ ACS é em relação ao víncu-lo. Uma vez construído, os ACS acolhem as pessoas, muitas vezes, de forma profunda. Por se considerarem ‘amigos’ e ‘companheiros’, chegam a ficar tristes e sofrer com situações que não conseguem resolver e aconteci-mentos que ocorrem com as famílias que atendem.

Porém, esse sofrimento não pode influenciar de forma negativa o ACS no desempenho de suas ativida-des, como acontece em alguns casos:

Às vezes eu me revolto no meu PSF, chego até a chorar, porque eu me coloco muito no lugar da pessoa. Há muitas pessoas que não se colo-cam no lugar do paciente. Quando chega uma pessoa nova no bairro e procura atendimento, a unidade não atende a pessoa. Pelo amor de Deus! Isso não é certo! (ACS 03). [...] eu sofro muito [...] (ACS 02).

Quando o paciente está grave, eu fico em cima, falo para o médico: vamos lá para a casa dele, vamos, vamos, pelo amor de Deus! (ACS 10).

No estudo de Bachilli et al. (2006), também foram percebidas relações de envolvimento profundo entre os ACS e a população que atendem. Esse envolvimento de confiança é semelhante ao dos relacionamentos familia-res de ambas as partes, como uma completa relação de

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troca. O envolvimento leva, muitas vezes, ao sentimen-to de impotência, pois o ACS absorve os problemas da comunidade.

Esse sofrimento retrata a dupla identidade que o Agente Comunitário possui. O ACS é membro da equi-pe de saúde da família e também membro da comuni-dade, permeando assim dois saberes, o saber científico e o saber popular. Essa dupla identidade leva a conflitos que afetam a execução de suas atividades, uma delas é o envolvimento profundo com as famílias que assiste.

Como membro da comunidade, compartilha ide-ologias e símbolos das pessoas que assiste e, ao mesmo tempo, percebe-se distante dela, por possuir algo que os diferencia, que é o pertencimento a uma equipe de saúde, ou seja, o contato com o saber científico.

Os Agentes reconhecem que convivem com os dois saberes; no entanto, pelos relatos percebe-se a dificuldade de transitar entre eles, de compreendê-los, de integrá-los, sem aprofundar a dicotomia: ou um ou outro. Os agen-tes argumentam que muitas vezes a ‘cultura’, os ‘hábitos’ e os ‘estilos de vida’ das pessoas atrapalham o tratamento das mesmas: “Na minha área tem gente de todo lugar do Brasil, é uma questão de cultura deles. É difícil mudar a cultura deles” (ACS 04). “É difícil mudar os hábitos que eles têm” (ACS 05). “Os que não aceitam nossas orienta-ções, que são poucos, é por teimosia” (ACS 06).

Os ACS tentam conciliar o tratamento medica-mentoso (saber científico) com os ‘vícios’ dos usuários (hábitos ou saberes populares): “Tento conciliar o trata-mento medicamentoso com o vício do paciente, porque pelo menos não se perde o tratamento” (ACS 08). Nas falas, os ACS se diferenciam dos costumes da comunida-de. Citam casos que acontecem na família, mas é como se fossem exteriores a eles: “Dentro da minha própria fa-mília, existem pessoas teimosas assim” (ACS 08).

Julgam as avós e os vizinhos como os princi-pais responsáveis pelo não cumprimento de algumas orientações:

As avós são um problema! Tinha uma menina na minha área que ficou grávida; quando nas-ceu o menino, fui visitar e observei uma coisa preta no umbigo do guri e perguntei o que era, a menina respondeu que era fumo. Conversei com ela que não era para usar. Então ela disse que a

família dela sempre usou e que iria usar. Con-versei e a orientei a usar álcool a 70%, ela ficou duvidando, mas usou e deu certo (ACS 09).

Existe muita opinião de vizinhos. Eles deixam de acreditar na gente por causa de vizinhos: ‘porque minha vizinha já teve tantos filhos’ e deixam de tomar o remédio por causa do chazinho, porque alguém falou que é melhor (ACS 03).

A gente orienta e fala e fala, mas para a pessoa sempre tem um chazinho! Enquanto não deu um desmaio nela por causa da hipertensão, não aprendeu (ACS 10).

Mesmo com o vínculo conquistado e o fato de a comunidade ‘confiar’ neles, os ACS têm dificuldades com as orientações, que remetem aos saberes populares e aos valores culturais diferentes. A diferença cultural não é compreendida pelos ACS, sendo considerada um atributo individual que poderia ser mudada com facilidade. Mais uma vez, esbarra-se com educação per-manente, pois o Curso Técnico visa abordar questões antropológicas e sociais, podendo levar a uma maior compreensão das relações sociais.

Essa discussão também foi descrita por Pontes et al. (2008) que, por sinal, afirmaram que a mudança dos hábitos e estilos de vida, percebida através da adesão ao tratamento, apresenta uma relação direta dos ACS com o acesso ao conhecimento acerca dos problemas de saúde. Os ACS, desse modo, são os portadores de conhecimento e a comunidade, o seu público, numa relação hierárquica.

Os ACS demonstram orgulho em dominar o co-nhecimento científico e, é a partir desse, que podem resolver os problemas da comunidade:

Teve uma vez que eu li um livro de anemia fal-ciforme e tinha um ‘piazinho’ na minha área que não conseguia engordar, ele sentia dor, não andava direito, então falei para a mãe: por que você não procura a médica e pede um exame de anemia falciforme da criança? Ela nem tinha ouvido falar. Incentivei para ir lá e falar que eu contei. E não é que o menino estava com anemia falciforme?! (risos) (ACS 03).

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Para a comunidade, a doença é percebida pela pre-sença de dor física, algo que seja evidente e que prejudi-ca em suas atividades diárias, especialmente o trabalho:

Existe um senhor na minha área, que é muito interessante, ele cuida muito bem da velhinha dele que é acamada, mas quando pergunto dos remédios dele, ele não toma, porque diz que está se sentindo bem (ACS 07).

No estudo de Acioli (2005), foi percebido que a ideia de ‘estar ou sentir-se doente’ é ligada à patologia e diretamente a experiências com dor, objetiva ou não. A experiência da doença em si é um processo individual, mas construído socialmente.

Os ACS são membros da comunidade em que atuam e assim compartilham os mesmos conceitos, muitas vezes os conciliam e em outras os descartam ou negam. A negação ocorre pela obtenção do conheci-mento científico que é valorizado em nossa sociedade; conhecimento que causa orgulho e leva à desvalorização do saber popular.

O saber privilegiado tanto pela comunidade quan-to pelos ACS é o médico. Evidência dessa valorização é a atribuição de importância ao tratamento medica-mentoso e a adesão a esse tratamento, e ainda, diante de algum desconhecimento, recorrer ao enfermeiro ou ao médico para o esclarecimento de dúvidas e novos aprendizados.

O ato de se dar privilégio ao saber médico tam-bém foi encontrado em outros estudos. Trapé e Soares (2007), ao analisarem a transmissão das orientações fei-tas pelo ACS às comunidades das UBS da região de Saú-de da Subprefeitura do Butantã (São Paulo) em 2004, perceberam que esses negam o saber popular, querendo impor os saberes científicos, desconsiderando crenças e delegando responsabilidade ao indivíduo assistido.

A contradição entre os saberes do ACS – popular e científico – é descrita por Nunes et al. (2002) e acontece porque o ACS convive com a realidade dos saberes e das práticas de saúde do bairro onde mora e sua atuação no setor saúde conecta-o ao saber biomédico, levando-o a ser um ator contraditório, podendo funcionar ora como facilitador ora como empecilho na mediação da cons-trução de um novo modelo assistencial.

A prática educativa realizada pelos ACS caracte-riza-se por uma atividade prescritiva e normativa, ou seja, um processo de transmissão de receituários para conservar ou adquirir saúde, de forma que o sujeito deve aceitar as orientações dos ACS, já que são os de-tentores do conhecimento científico. Nesse contexto, a educação em saúde possui como finalidade mudar o comportamento por meio do convencimento e estraté-gias de amedrontamento (TRAPÉ; SOARES, 2007).

Neste estudo, observou-se também a mesma con-cepção de atividade educativa. Os ACS realizam suas orientações de uma forma vertical e com estratégias de amedrontamento:

se a senhora não tomar o medicamento pode vir até um infarto e até morrer, assim, mesmo a senhora sentindo-se bem, deve tomar o medi-camento todos os dias (ACS 05).

A visão distorcida que possuem da educação em saúde reflete a concepção que os profissionais de saúde ainda possuem e também remete a ausência de capaci-tação específica. Ressalta-se que a atividade educativa é umas das mais importantes dos ACS, sendo realizada em todo momento de encontro com o usuário. Assim, a importância de trabalhar com os diferentes saberes deve ser percebida pelos demais profissionais da equipe de saúde a fim de um trabalho integrado e com fins especí-ficos e compartilhados.

A educação em saúde deve ser pensada numa in-tervenção que deve levar em conta as representações dos sujeitos e sua percepção sobre doença, em considerar as noções que os sujeitos possuem sobre determinados fenômenos, de forma a perceber brechas para inserção de um novo saber, levando a ‘construção compartilhada de conhecimento’.

Considerações finais

Os resultados demonstram que os ACS estudados possuem concepções restritas e contraditórias acerca do processo saúde-doença e da estratégia de saúde da família; concep-ções essas que podem estar relacionadas com a ausência de qualificação específica para atuação no serviço de saúde.

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O acolhimento e vínculo são tidos como essenciais para o desenvolvimento das atividades com as famílias. O vínculo é construído e permite aos ACS serem o ‘elo’ entre a equipe e a comunidade; ligação reconhecida tanto pela equipe, quanto pela comunidade. O vínculo, considerado positivo pelos Agentes, traz alguns efeitos negativos. O en-volvimento profundo com algumas famílias, muitas vezes, acarreta sofrimento e sentimento de impotência em rela-ção a situações que o Agente não consegue resolver.

Considera-se que alguns resultados, como concep-ções restritas e limitadas, desconhecimento das atividades, envolvimento profundo, conflitos pessoais e profissionais, podem estar relacionadas com a ausência de qualificação técnica. Sem a ’noção’ do trabalho na equipe de saúde da família, lacunas ficam evidentes e devem ser refletidas.

Destaca-se que esse é um problema que vai além do ACS, envolve outros profissionais da equipe, que em muitas situações, também não possuem especialidade na área. Envolve a gestão municipal no cumprimento das políticas de saúde e também a população que deve realizar o controle social.

Uma política de educação permanente, no mu-nicípio, pode ser um instrumento de mudanças para as equipes de saúde, especialmente para o ACS, con-siderado o profissional, através do seu papel de ‘elo’, propulsor de mudanças na comunidade. Ressalta-se ainda que o acompanhamento do ACS pela equipe é fundamental para (re)conhecer suas limitações e con-flitos, a fim de buscarem soluções em conjunto para os problemas evidenciados.

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recebido para publicação em Março/2011 Versão definitiva em outubro/2011 Suporte financeiro: conselho Nacional de Pesquisa e desenvolvimento (cNPq) conflito de interesse: inexistente

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ARTIgO ORIgInAL • origiNal articlE

Os desafios da prática do enfermeiro inserido no Programa Saúde da Família

the practical challenges of the nurse inserted into the Family Health Program

roberta Viegas Magalhães¹, lúcio José Vieira²

RESUMO o estudo teve como objetivo identificar os desafios da prática profissional do enfermeiro inserido no Programa Saúde da Família. tratou-se de uma revisão de literatura que compreendeu olhares de diversos autores sobre as atribuições do enfermeiro que atua no âmbito do Sistema Único de Saúde e como ele exerce sua função na prática diante da sua realidade. a pesquisa ocorreu por meio dos bancos de dados Medline, lilacs e BdENF. Vários artigos e três manuais foram encontrados e selecionados de acordo com o tema escolhido. Concluiu-se que o enfermeiro possui diversas atribuições na Equipe de Saúde da Família e torna-se de extrema importância viabilizar essas atribuições na prática. desse modo, o enfermeiro gerencia o processo de trabalho de forma efetiva e promove uma assistência com qualidade.

PALAVRAS-CHAVE: Enfermagem Prática; Saúde da Família; Papel do Profissional de Enfermagem; Programa Saúde da Família.

ABSTRACT the study aimed to identify the challenges of practice of nurse inserted on Family Health Program. it was a literature review that comprised looks by several authors of nurses who works in the unified Health System and how they exert their function in practice facing reality. the search occurred through databases Medline, lilacs and BdENF. Various articles and three manuals on the subject were found and selected according to the topic chosen. it was concluded that the nurse has many responsibilities in the Family Health team and becomes extremely important to make those assignments. thus, the nurse manages the process of work effectively and promotes assistance with higher quality.

KEywORDS: Nursing, Practical; Family Health; Nurse s role; Family Health Program.

¹ Especialista em atenção Básica e Saúde da Família pela universidade Federal de Minas gerais (uFMg) – Belo Horizonte (Mg), Brasil. gerente de unidade Básica da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte – Belo Horizonte (Mg), Brasil. [email protected]

² doutor em Enfermagem em Saúde Pública pela universidade de São Paulo (uSP) – São Paulo (SP), Brasil. Professor adjunto do departamento de Enfermagem Materno Infantil da Escola de Enfermagem da uFMg – Belo Horizonte (Mg), Brasil. [email protected]

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Introdução

Com a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), no final da década de 1980, os serviços públicos de saúde passaram por um processo de revisão do modelo assisten-cial de maneira que, novas práticas se instituíram e outras foram abandonadas (ERMEL; FRACOLLI, 2006).

Para promover um acesso universal e igualitário, foi criado o SUS, conforme indicado no artigo 198 da Constituição Federal: as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: descentralização, com di-reção única em cada esfera de governo; atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; participação da comunidade (BRASIL, 2000a).

Com a criação do SUS, aconteceram transforma-ções no Brasil que determinaram os processos de mu-nicipalização e descentralização das ações de saúde dos estados para os municípios, impondo-se novas relações no mercado de trabalho e exigências quanto ao perfil do enfermeiro (COSTA; SILVA, 2004).

O profissional enfermeiro, anteriormente com a prática relacionada ao trabalho médico, e com ações estritamente técnicas, passou a ter identidade e autono-mia para planejar ações no âmbito da saúde pública e supervisionar a assistência direta à população.

Estratégias para a reorganização das práticas de saúde apresentam-se como prioridade das atuais polí-ticas públicas e vêm demonstrar a intenção do Estado de voltar a atenção para a família, tendo o domicílio como porta de acesso para as novas práticas assistenciais e a Atenção Básica como locus privilegiado das ações de saúde (FAUSTINO et al., 2004).

A criação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), pelo Ministério da Saúde, foi uma das primeiras estratégias para se começar a mudar o mo-delo de assistência à saúde, ou seja, a forma como os serviços de saúde estão organizados e como a população tem acesso a esses serviços (BRASIL, 2000).

A implantação do Programa de Saúde da Família (PSF), em 1994, após o PACS, surge como uma estra-tégia de reorientação das práticas assistenciais. É uma estratégia do Ministério da Saúde para reorganizar a

assistência, com o objetivo de direcionar o cuidado à família, entendida e percebida a partir de seu ambiente físico e social. As ações são direcionadas à promoção, proteção e recuperação da saúde e estabelecem novas práticas nas ofertas dos serviços, com enfoque nos prin-cípios do SUS (ERMEL; FRACOLLI, 2006).

O PSF, mais tarde reconhecido como Estratégia de Saúde da Família (ESF), centra-se nas mesmas falas que estão descritas na política do SUS: prevenção, pro-moção, recuperação da saúde de forma geral e contínua (FIGUEIREDO; TONINI, 2007).

De acordo com o site do Ministério da Saúde, da-dos coletados em 6 de junho de 2010, no Brasil, há atualmente 27.324 equipes de saúde da família implan-tadas em um total de 5.125 municípios. Isso correspon-de a uma cobertura de 46,6% da população brasilei-ra, o que equivale a cerca de 87,7 milhões de pessoas. Acrescenta-se também 15,7 mil equipes de saúde bucal em todo o país e um total de 211 mil agentes comunitá-rios de saúde. Anteriormente, em 2007, segundo o site, houve um investimento na estratégia saúde da família (ESF) de R$ 4,067 milhões no país.

O Guia Prático do PSF ressalta que implantar a ESF significa reorganizar o sistema de saúde em vigor no município – e isso significa substituir as antigas dire-trizes, baseadas na valorização do hospital, mais voltadas para a doença, e introduzir novos princípios, com foco na promoção da saúde, na participação da comunidade (BRASIL, 2001).

Nesse novo contexto de organização das políticas públicas no Brasil, o enfermeiro tem sua valorização profissional e atua como elemento chave na mudança do modelo hegemônico, anteriormente centrado no médi-co. Ele atua na realização de várias ações de promoção à saúde e atua como mediador das ações intersetoriais.

A implantação do PSF, segundo o Guia Prático de Saúde da Família, tem como resultado: diminuição do número de mortes das crianças por causas evitáveis; au-mento da quantidade de gestantes que chegam saudá-veis e bem informadas ao parto; melhoria da qualidade de vida dos idosos; melhoria dos índices de vacinação; hipertensos e diabéticos são diagnosticados e tratados; os casos de tuberculose e hanseníase são localizados e tratados; há diminuição nas filas para atendimento nos hospitais da rede pública de saúde.

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Inseridas nas comunidades e no movimento diário das populações, as equipes de saúde da família têm uma aproximação singular com a realidade local, e assim po-dem focalizar suas ações de promoção da saúde, preven-ção, recuperação, reabilitação de doenças e agravos im-plementados nas residências, nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), nas comunidades, de forma individual, familiar ou coletiva, contextualizadas com a população vinculada (CAVALCANTE, 2008).

O caráter inovador da ESF evidencia uma série de desafios com características diversas. Com certeza, um desses desafios relaciona-se à necessidade de se defi-nir o perfil de competências necessário aos profissionais inseridos no PSF, bem como aos seus processos de for-mação, de educação continuada e permanente (BOAS; ARAÚJO; TIMÓTEO, 2008).

O trabalhador vem assumindo novas formas de trabalhar em equipe, com área definida e responsabi-lidade sobre o cuidado e a vigilância de um número fixo de famílias, bem como metas de produção fixadas segundo critérios quantitativos (SANTOS, 2007).

É imprescindível que o profissional, de acordo com a Portaria 648 de 28 de março de 2006, que apro-va a Política Nacional de Atenção Básica, realize ações de atenção integral conforme necessidade da popula-ção, faça uma escuta qualificada, se responsabilize pela população definida e estimule a participação da comu-nidade, grande parceira na promoção dessas ações.

Para o enfermeiro realizar suas atribuições con-forme preconizado de forma efetiva, é necessário que o mesmo tenha uma formação acadêmica qualificada, seja proativo e busque parcerias com o gestor local, para garantir impacto nas ações direcionadas à população lo-cal. O profissional deve se implicar com o processo de trabalho para promover mudanças significativas e pos-sibilitar a real implantação da estratégia.

Tal mudança na forma de realizar saúde no Brasil promove um envolvimento maior do profis-sional enfermeiro no processo de trabalho e motiva a realização de uma revisão na literatura acerca das atribuições desse profissional inserido na Equipe de Saúde da Família. Torna-se imprescindível viabilizar as atribuições desse profissional na prática, para que haja melhor organização da assistência, o que promo-ve atendimento de qualidade, maior satisfação dos

profissionais e usuários, e aplicação, na prática, dos princípios do SUS.

O objetivo do estudo foi realizar uma revisão de literatura dos últimos dez anos, a partir da implantação do PSF no Brasil, sobre os desafios da prática do enfer-meiro inserido na Atenção Básica no âmbito do SUS.

Metodologia

O estudo descritivo foi realizado a partir de uma revisão da literatura científica, publicada de 2000 a 2009, de enfermeiros que atuam na Atenção Primária e pesqui-sam os desafios da implantação do SUS por meio da Estratégia Saúde da Família.

A pesquisa ocorreu utilizando-se os bancos de dados Medical Literature Analysis and Retrieval System (Medline), Literatura latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs) e Banco de Dados de En-fermagem (BDENF). Foram selecionados, na primeira parte da pesquisa, os seguintes descritores: Programa Saúde da Família, enfermeiros, atribuições, com resul-tado, após a busca, de 21 artigos. Após expansão dos descritores, devido à dimensão da pesquisa, 42 artigos foram obtidos. Os descritores utilizados foram: saúde da família, programa saúde da família, prática profis-sional, enfermagem prática, enfermagem, enfermeiros e enfermeiras.

Diante dessa pesquisa, foram encontrados: 23 ar-tigos no Lilacs, 5 artigos no Medline e 14 no BDENF. Foram selecionados os três manuais encontrados duran-te a busca. Os artigos em inglês, encontrados no Me-dline, eram semelhantes a artigos no Lilacs, portanto foram descartados, assim como outros que não apre-sentaram relevância com o tema, ou não acrescentaram informações relevantes ao conteúdo estudado.

Discussão

Foram encontrados 42 artigos relacionados ao tema proposto e 27 foram descartados por não contribuí-rem com o assunto em questão. Os 15 estudos sele-cionados abordaram o perfil dos enfermeiros no PSF, a prática das equipes de saúde da família, olhares acerca

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do processo de trabalho na Atenção Primária, o papel do enfermeiro e suas contribuições para a promoção da saúde e a relação trabalho-saúde dos enfermeiros. Du-rante a pesquisa, foram identificados diferentes olhares acerca das atribuições do enfermeiro. Alguns autores destacaram funções subjetivas e outros se compromete-ram a listar funções técnicas previamente estabelecidas em manuais.

Os artigos analisados foram publicados no período de 2004 a 2009 e refletem o processo atual da ESF. Os manuais, por contextualizarem o processo histórico do programa, tiveram sua publicação inicial em 2000, e final, em 2008.

Segundo Ermel e Fracolli (2006), no PSF, a prá-tica de enfermagem se insere buscando a reformulação e a integração de ações com os demais trabalhadores da equipe de saúde. Essa reformulação e integração acon-tecem, principalmente, através de um processo de arti-culação das intervenções técnicas e da interação entre os outros profissionais da Equipe de Saúde da Família. Assim, segundo os autores para a compreensão da es-pecificidade do trabalho da enfermeira no PSF é im-prescindível que se analise a sua inserção no trabalho da equipe, o modo como se dá sua relação com o processo de trabalho e o modo como a enfermeira realiza o cui-dado específico de enfermagem.

Pode-se afirmar, segundo Costa e Miranda (2008), que o enfermeiro é um importante ator de mudança do modelo assistencial, capaz de modificar o perfil do estabelecimento de saúde, mediante a instauração de novas práticas e de uma dinâmica de trabalho inova-dora, comprometida com o projeto de fortalecimento da ESF/SUS. Segundo os mesmos autores, especifica-mente na ESF, o enfermeiro tem ficado a frente de todo o trabalho de estruturação da proposta, preparando as pessoas da comunidade para receber a estratégia, elabo-rando a territorialização, sustentando a integração e a articulação entre comunidade – serviço, identificando os principais problemas de saúde e socioculturais das famílias sob sua responsabilidade assistencial, desenvol-vendo ações de educação em saúde, preparando agentes comunitários para o trabalho com as famílias.

Segundo Santos (2007), o enfermeiro possui dois campos de atuação: no processo de organização das UBS e no processo de formação, capacitação e educação

permanente. A autora destaca a responsabilidade de or-ganização do processo de trabalho do Agente Comuni-tário de Saúde como uma função de extrema importân-cia e de competência do profissional enfermeiro.

Já de acordo com Faustino et al. (2004), o en-fermeiro possui ações divididas em quatro categorias empíricas: ações de gerenciamento, educativas, assis-tenciais e perfil profissional. Segundo o mesmo, o en-fermeiro deve ser referência para a equipe e usuários e também o responsável por orquestrar a organização das ações. É ele, também, o profissional da equipe mais bem preparado, na sua formação, para atuar na educação em saúde.

Os autores Costa e Silva (2004) afirmaram tam-bém que o enfermeiro precisa ter o domínio do conhe-cimento específico na área de enfermagem, das normas e rotinas institucionais e do conhecimento nas áreas de administração e educação. Por outro lado, verifica-se que a participação do enfermeiro como pesquisador ainda é muito incipiente, não tendo sido observadas di-ferenças após a criação do PSF.

Diante dessa nova realidade provocada pela mudança na prática assistencial, o enfermeiro surge como um ator social de extrema importância para implantar essas ações de forma resolutiva e com qualidade. Esse profissional, inserido na equipe de saúde da família, torna-se responsável por inúmeras atribuições, é o profissional-chave no processo de organização do trabalho na Atenção Primária, e sua prática na saúde pública se torna um grande desafio, visto que o mesmo enfrenta várias dificuldades para efetivar suas ações na prática.

Nesse contexto, o profissional enfermeiro encon-trou um promissor espaço de trabalho e ampliou sua inserção, assumindo a linha de frente em relação aos de-mais profissionais de saúde por desenvolver atividades assistenciais, administrativas e educativas, fundamentais à consolidação e ao fortalecimento da ESF no âmbito do SUS (COSTA; MIRANDA, 2008).

Ainda que o espaço da ESF esteja contribuindo para a autonomia do enfermeiro, na medida em que esse modelo exige maior qualificação profissional, nota-se que há necessidade do mesmo rever sua prática, pois suas atribuições não correspondem, muitas vezes, à sua rotina de trabalho.

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Segundo a Portaria 648, que aprova a Política Nacional de Atenção Básica, são atribuições específicas do profissional enfermeiro: realizar assistência integral (promoção e proteção da saúde, prevenção de agravos, diagnóstico, tratamento, reabilitação e manutenção da saúde) aos indivíduos e famílias na USF e, quando in-dicado ou necessário, no domicílio e/ou nos demais es-paços comunitários (escolas, associações, etc), em todas as fases do desenvolvimento humano: infância, adoles-cência, idade adulta e terceira idade; conforme proto-colos ou outras normativas técnicas estabelecidas pelo gestor municipal ou do Distrito Federal, observadas as disposições legais da profissão, realizar consulta de en-fermagem, solicitar exames complementares e prescre-ver medicações; planejar, gerenciar, coordenar e avaliar as ações desenvolvidas pelos Agentes Comunitários de Saúde (ACS); supervisionar, coordenar e realizar ativi-dades de educação permanente dos ACS e da equipe de enfermagem; contribuir e participar das atividades de Educação Permanente do Auxiliar de Enfermagem, Auxiliar de Consultório Dentário (ACD) e Técnico em Higiene Dental (THD); participar do gerenciamento dos insumos necessários para o adequado funciona-mento da USF.

Outros estudos, apontados abaixo, complementam essas atribuições de acordo com a realidade vivida em cada local e o processo de implantação do programa.

Em Londrina, o enfermeiro inserido na Atenção Básica é responsável, também, por administrar a fre-quência dos funcionários, garantir acesso à continuida-de do tratamento dentro de um sistema de referência e contrarreferência, organizar um sistema de informação ao nível local, realizar avaliação de desempenho em par-ceria com a equipe, gerenciar estágios de alunos, reali-zar escala, estabelecer fluxo de atendimento ao usuário e notificar agravos e problemas ambientais (GIROTI; NUNES; RAMOS, 2008).

Em Belo Horizonte, segundo o manual da Secre-taria Municipal de Saúde intitulado: Avanços e Desa-fios na Organização da Atenção Básica à Saúde em Belo Horizonte, há definição clara das atribuições do en-fermeiro na ESF (BELO HORIZONTE, 2008). Suas ações envolvem planejamento e ações assistenciais em todas as fases do ciclo de vida do indivíduo, supervisão da assistência de enfermagem, realização de consulta de

enfermagem, participação na educação permanente da equipe, regulação assistencial e priorização dos recursos disponíveis para casos com maior necessidade clínica.

Pavoni e Medeiros (2009) destacam que, muitas vezes, na prática, o profissional realiza funções que tam-bém são realizadas pelo auxiliar de enfermagem, o que contempla tanto funções assistenciais como administra-tivas. Além disso, a enfermeira realiza as outras funções que são de sua competência, portanto, encontra difi-culdades na realização das atividades que lhe são atri-buídas por lei, e o acúmulo de funções acarreta outro problema: a falta de tempo para exercer as suas funções adequadamente.

Outro fator dificultador na atividade do enfermei-ro inserido na ESF, apontado por Costa e Silva (2004) é o baixo número de enfermeiros com qualificação em nível de especialização, o que promove diminuição na qualidade das ações prestadas. Segundo os mesmos au-tores, os seguintes fatores podem justificar essa situação: necessidade do multiemprego, que tira o tempo e a dis-posição dos profissionais para estudar, a falta de uma política de capacitação nas instituições e o custo dos cursos de pós-graduação lato sensu. Os autores apontam que é preciso considerar, ainda, que a enfermagem não conta com uma legislação específica que regulamente seu piso salarial, o que desmotiva o trabalhador, que encontra muitas vezes condições precárias de trabalho. Soma-se a isso o fato de não existir um plano de car-reira, cargos e salários que definam responsabilidades e competência técnica, consolidando a importância da mão de obra (COSTA; SILVA, 2004).

Rocha e Zeitoune (2007) complementam que, apesar de as atuais demandas do mercado de trabalho exigirem dos profissionais uma visão mais abrangente, e voltadas para os novos desafios de uma sociedade em permanente transformação, as Escolas de Enfermagem não têm conseguido acompanhar o acelerado ritmo das mudanças. Continuam formando profissionais que apresentam dificuldades de inserção na realidade social e das organizações, apesar do empenho em qua-lificar o corpo docente, em adotar novas metodologias de ensino e criar a consciência da necessidade de edu-cação permanente.

A respeito da atividade gerencial, em outro estu-do, Benito et al. (2005), ressaltaram que o enfermeiro,

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como gerente da assistência de enfermagem no PSF, deve ser o gerador do conhecimento, através do desen-volvimento de competências, introduzindo inovações à equipe, definindo responsabilidades. Acrescenta, ainda, que o conhecimento das atribuições de cada profissio-nal propicia maior aproveitamento das potencialidades dos membros da Equipe de Saúde da Família. Porém, o enfermeiro possui a gerência como instrumento de tra-balho, e muitas vezes, o que deveria ser de responsabili-dade de todos os membros da equipe, se torna respon-sabilidade do enfermeiro, que assume essa atribuição na ESF. Pode-se afirmar que o profissional assume essa função através da organização da ESF que direciona vá-rias atribuições como exclusivas ao enfermeiro.

Faustino et al. (2004) ressaltaram, também, que ações de gerenciamento realizadas na USF muitas ve-zes não estão previstas como função da enfermeira da equipe, mas surgem como demandas da prática. O en-fermeiro acaba sendo responsável indireta e diretamen-te por várias ações burocráticas e gerenciais relativas à equipe e até mesmo ao funcionamento da USF. Isso ocasiona má resolubilidade das ações.

Pina, Mello, Lunardelo (2006) salientaram que, no tocante ao trabalho do enfermeiro em atenção primária à saúde, as ações e/ou intervenções de enfermagem são pouco estruturadas em relação a ter instrumentos para guiar a assistência. É preciso que haja a compreensão de que uma linguagem padronizada sobre a prática de enfermagem faz-se necessária.

Segundo Santos (2007), os enfermeiros estão in-tensamente envolvidos com o trabalho, convivendo de um lado com a forte expectativa que se tem de suas potencialidades para solucionar os problemas e, de ou-tro, com a impossibilidade de oferecer respostas para os problemas trazidos pela população. Torna-se necessário a construção de instrumentos baseados na prática diária para nortear o trabalho do enfermeiro e promover uma maior satisfação do profissional e também dos usuários assistidos.

Apesar de todas as dificuldades enfrentadas pelo profissional, Costa e Miranda (2008) identificaram que o enfermeiro, por meio da sua atuação efetiva em todas as etapas da produção do processo de trabalho, ganha cada vez mais espaço, autonomia e poder de de-cisão na equipe, deixando de ser um complemento e/

ou instrumento do trabalho médico e passa a se cons-tituir numa parcela do trabalho coletivo em saúde, corresponsável pela produção dos serviços, com seus saberes e práticas subordinados às necessidades sociais e de saúde da população.

É de extrema importância que as coordenações municipais e estaduais de Saúde da Família sejam for-talecidas e que os enfermeiros sintam-se valorizados e reconhecidos por seu trabalho dentro dessa política pública recentemente implantada no Brasil. Verifica-se que o modelo provoca impacto positivo na população e para que ele seja realmente eficaz, é necessária uma infraestrutura adequada para que o profissional consiga realizar todas as suas atribuições e provoque mudança no atual sistema público de saúde do Brasil.

Desse modo, o profissional enfermeiro consegue viabilizar suas atribuições na prática e promove efetiva mudança no processo de trabalho, que se torna o mais próximo possível da legislação vigente.

Considerações finais

Diante da pesquisa realizada, conclui-se que o enfer-meiro inserido na Estratégia de Saúde da Família possui inúmeras atribuições que envolvem os vários níveis da assistência na Atenção Primária. Ele é o responsável por vincular a comunidade à UBS e realiza desde ações as-sistenciais, por meio do contato direto com o usuário, até ações em parceria com os gestores e capacitação de profissionais.

Com frequência, o planejamento das atividades próprias do enfermeiro é sufocado pelos imprevistos do dia a dia, os mesmos assumem um pouco de tudo e muitas vezes o profissional adquire habilidades para resolver os problemas da rotina diária, porém não se utiliza de instrumentos técnicos para realizar suas reais atribuições e contribuir de fato para uma mudança do processo de trabalho na Atenção Primária.

Torna-se de extrema importância que o enfer-meiro seja apto a utilizar, com segurança, todas as tecnologias disponíveis para o seu trabalho, para que consiga realizar uma assistência eficaz e com qualida-de. O profissional já possui um acúmulo de funções estabelecidas pela ESF, de acordo com as diretrizes do

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Ministério da Saúde, e se encarregar de realizar várias atividades que não são de sua competência compro-mete a sua prática diária.

É preciso que as atividades individuais estejam equilibradas com as atividades coletivas, educativas, participativas e gerenciais. É necessário fortalecer a capacidade de planejamento desse profissional junto

com a comunidade, para que o usuário seja favorecido com a mudança dessa prática. Assim, a assistência tor-na-se mais qualificada, pois é permitido ao enfermeiro gerenciar o processo de trabalho de forma efetiva e prestar o cuidado direto ao usuário com maior dispo-nibilidade e eficácia, provocando mudança na realida-de da população assistida.

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recebido para publicação em Fevereiro/2011 Versão definitiva em outubro/2011 Suporte financeiro: Não houve conflito de interesse: inexistente

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ARTIgO ORIgInAL • origiNal articlE

Refletindo sobre o processo de trabalho da enfermagem na Estratégia Saúde da Família*

reflecting on the process of work of nursing in Family Health Strategy

tayssa Suelen Cordeiro Paulino¹, Ildone Forte de Morais², Cecília Nogueira Valença³, raimunda Medeiros germano4

RESUMO Este estudo teve por objetivo analisar as interfaces entre o processo saúde/doença e o processo de trabalho de enfermeiros da Estratégia Saúde da Família no município de Santa Cruz (rN). tratou-se de uma pesquisa qualitativa, dividida em momentos de aproximação, entrevista semiestruturada e análise dos dados segundo a hermenêutica/dialética. Como resultados, o processo de trabalho desenvolvido por esses profissionais é fragmentado, inoperante e biologicista. Para os entrevistados, o processo saúde/doença é visto como individual; contudo, o estudo concluiu que esse processo é característico de uma sociedade que expressa as condições coletivas de vida.

PALAVRAS-CHAVE: Enfermagem; Saúde da Família; Processo Saúde-doença.

ABSTRACT this study aimed to analyze the interfaces between the health/disease process and the work process of nurses from the Family Health Program, in Santa cruz (rN). it was a qualitative research, divided in moments of approach, semi-structured interviews and analysis of data, based on the hermeneutic/dialectic. as a result, the process of work of these professionals is fragmented, ineffective and biological. For the respondents, the health/disease process is seen as individual. However, the study concluded that this is a typical process of a society that expresses the collective living conditions.

KEywORDS: Nursing; Family Health; Health-disease Process.

¹ Cursando Especialização em Formação docente para o Ensino Superior n Faculdade de Ciência Cultura e Extensão do rio grande do Norte (FaCEX) – Natal (rN), Brasil. [email protected]

² Mestre em Enfermagem pela uFrN – Natal (rN), Brasil. Professor da uErN, campus Caicó – Caicó (rN), Brasil. [email protected]

³ doutoranda em Enfermagem pela uFrN – Natal (rN), Brasil. Professora da universidade do uErN, campus Caicó – Caicó (rN), Brasil. [email protected]

4 doutora em Educação pela universidade Estadual de Campinas (unicamp) – Campinas (SP), Brasil. Professor adjunto dos cursos de graduação e pós-graduação em Enfermagem da uFrN – Natal (rN), Brasil. [email protected]

* recorte do trabalho de conclusão de curso: “Estratégia Saúde da Família no Município de Santa Cruz/rN: revelando as práticas no processo de trabalho da enfermagem”, defendida no Curso de graduação em Enfermagem da universidade do Estado do rio grande do Norte (uErN) em 2011.

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Introdução

A concepção mais integral, que diz respeito à associação entre as condições sociais e a produção da saúde, ga-nhou nova força em meados da década de 1970, sobre-tudo na América Latina, onde se desenvolveu o embrião latente da denominada Medicina Social (FRACOLLI; BERTOLOZZI, 2001).

Acrescentam ainda, Rocha e Almeida (2000), que a medicina social redefiniu o campo de saberes e práti-cas da Saúde Coletiva, provocando uma ruptura com os modelos cartesianos que reduziam as relações de cau-sa e efeito ao plano biológico. Nesse sentido, o objeto da prática médica no processo saúde/doença deixa de ser os corpos biológicos, passando a ser corpos sociais e suas relações com estruturas econômicas, política e ideológica da sociedade.

Dessa forma, o trabalho no Programa de Saúde da Família (PSF) pretende constituir-se em uma “estra-tégia estruturante” de um novo modelo assistencial em saúde que, para Ribeiro et al. (2004), o cumprimento ou operacionalização dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) depende grandemente da possibilidade de abertura ou desencadeamento de processos sociais e intersubjetivos de criação/recriação constante de acor-dos, pactos, projetos coletivos, sempre conjunturais e transitórios que representem a eterna busca do ideal.

Dessa forma, as equipes de saúde, e principalmen-te o enfermeiro, deverão tomar para si a discussão que explique o processo, superando concepções de que o indivíduo é uma criatura meramente funcional, des-considerando-o como sujeito político e como pessoa singular, provido de crenças, valores, desejos e emoções (RIBEIRO et al., 2004).

O enfermeiro tem que estar apto para ouvir e compreender, bem como promover um atendimento com enfoque integral, aspectos biológicos, sociais e espirituais de seu cliente. A comunicação estabelecida pode ser considerada como um dos mecanismos para proporcionar ao usuário/família uma assistência plena e qualificada.

A assistência de enfermagem deve seguir seus prin-cípios éticos e seriedade na prestação de serviço para atender seus clientes, utilizando uma abordagem inter-disciplinar e multiprofissional visando o autocuidado,

aceitação do tratamento estabelecido, identificando as fragilidades do ambiente familiar para não comprome-ter a integralidade das ações, e, sobretudo, a superação da fragmentação das políticas públicas.

Por isso, precisa-se aprimorar as práticas em saúde vigente aspirando a implementação de me-lhores formas de reproduzir saúde coletivamente (GOULART, 2010).

O presente estudo objetivou analisar as interfaces entre o processo saúde/doença e o processo de trabalho de enfermeiros da Estratégia Saúde da Família no muni-cípio de Santa Cruz (RN). Neste trabalho, utilizaremos indistintamente as nomenclaturas: programa saúde da família (PSF) e estratégia saúde da família (ESF).

Metodologia

Tratou-se de uma pesquisa qualitativa, da qual partici-param seis enfermeiros que atuam no PSF da zona ur-bana do município de Santa Cruz (RN), que trabalham há pelo menos dois anos no mesmo local.

Utilizamos como instrumentos um roteiro de entrevista semiestruturada, com questões abertas e fe-chadas, e o diário de campo, para conhecer a dinâmica do processo de produção dos serviços de saúde em seis Unidades Básicas de Saúde da Família (UBSF) da zona urbana, no município de Santa Cruz (RN). Essas uni-dades foram escolhidas por serem campos de estágio do curso de graduação em enfermagem da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).

Na análise dos dados, utilizamos a abordagem her-menêutica/dialética. Segundo Minayo (2004), o ponto de partida da pesquisa hermenêutica é a manutenção e a extensão da intersubjetividade de uma intenção du-rante a análise de dados de uma realidade. Busca, no tempo presente, a compreensão do sentido que vem do passado ou de uma visão de mundo de um grupo deter-minado. O pesquisador tem que deduzir e explorar as definições de situações a partir do mundo do autor e de seu grupo social. Também deve entender o texto como a representação social de uma realidade que se mostra e se esconde na comunicação, o depoimento como re-sultado de um processo social e de conhecimento com significado específico.

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A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da UERN no mês de abril do ano de 2010, sob o protocolo nº 058/09 e o Certificado de Apresentação para Apre-ciação Ética (CAAE) nº 0057.0.428.000-09. Todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). Utilizamos nomes de aves em extinção como pseudônimos para manter o anonimato dos sujeitos do estudo.

Resultados e discussões

O direito à saúde vem da capacidade de o sistema res-ponder as suas necessidades tanto no âmbito individual como coletivo e, para tanto, se faz jus o estabelecimento de vínculo entre os serviços de saúde e a população usu-ária (AZEVEDO; COSTA, 2010).

O SUS tem sido capaz de provocar importantes re-percussões nas estratégias através de uma nova proposta do cuidar em saúde, tendo a família o seu espaço social como núcleo básico de atenção. Os coletivos de trabalho se transformam acompanhando as mudanças sociais, cul-turais, econômicas, tecnológicas e os modos de ensinar e aprender em diferentes níveis, o que requer uma compre-ensão ampliada do processo saúde/doença.

O PSF tem sido considerado uma estratégia para reorientação do modelo assistencial a partir da atenção básica para orientar a organização do sistema de saúde como direito social. Em 2006, a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) ampliou a visão da atenção bási-ca e reafirmou a Saúde da Família como estratégia prio-ritária e modelo substitutivo para organização da aten-ção básica (GIOVANELLA et al., 2009). Além do mais, provoca mudanças tanto em nível estrutural dos serviços como no sistema de saúde, apontando a necessidade de reorganização do processo de trabalho, criando deman-das antes não visualizadas (ARAÚJO; ROCHA, 2009).

Lopes et al. (2011) realizaram uma pesquisa nos centros de saúde de Fortaleza (CE) e constataram que 70% dos profissionais possuíam um curso de especia-lização, o que indica uma provável eficiência e eficácia no trabalho, porque as atualizações ou capacitações são importantes para que haja troca de experiências e os usuários possam se sentir mais autônomos quando tem as suas dúvidas sanadas.

Segundo Kell e Shimizu (2010), o trabalho em equipe é considerado fundamental para a construção de uma prática interdisciplinar, permitindo a aproximação e a união entre os entes envolvidos na busca de um ob-jetivo comum.

Isso pode ser evidenciado nas falas dos enfermei-ros entrevistados sobre o trabalho coletivo em saúde:

Para mim o trabalho coletivo em saúde é es-sencial, para mim eu acho muito importante, por quê? A forma de trabalhar em coletivida-de é a forma de você trabalhar bem! A gente nunca trabalha sozinha né? A gente trabalha em conjunto. Com a equipe, com todas as pes-soas da unidade, principalmente com o agente comunitário de saúde que são essenciais para gente né? Porque eles são um elo de comuni-cação entre a gente e a comunidade, né? Isso é muito importante para gente principalmente isso aí, porque é eles que trazem os problemas da comunidade para gente (Anumará).

Contribuindo com tal ideia, Scherer, Pires e Schwartz (2009) afirmam que conhecer o trabalho do outro é condição necessária para que uma colaboração se desenvolva e ainda, são coletivos, pois são vários profis-sionais buscando a eficácia e eficiência em seu trabalho.

O trabalho em equipe no PSF destaca-se pelo seu aspecto de aproximação com a integralidade no desen-volvimento das ações ligadas ao cuidado de saúde. Para Mattos (2004), a integralidade consiste em organizar o trabalho no serviço, articulando as necessidades de uma demanda espontânea e uma programada, assim como, a apreensão ampliada das necessidades da população que deve incorporar tanto as possibilidades de prevenção como as assistenciais.

Porém, com relação à função desempenhada pe-los enfermeiros entrevistados, nota-se a restrição em apenas desenvolver os programas das políticas públicas de saúde. Será que isso é integralidade? Mattos (2004) responde que a integralidade como um dos princípios do SUS tem de ser prioridade para as ações preventivas sem prejuízo dos serviços assistenciais. Os profissionais têm de ser capaz de responder ao sofrimento manifesto de uma demanda socialmente construída.

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Todavia, o que se observa na prática é apenas o desenvolvimento dos programas ministeriais:

O enfermeiro faz os programas que manda o MS [ministério da saúde] que é o pré-natal, CD [crescimento e desenvolvimento da crian-ça], o DST [doenças sexualmente transmissí-veis], saúde da mulher que engloba o preven-tivo e o resultado que a gente olha, e também algumas palestras (Tiê-Bicudo).

Assim, com o tempo a gente encontra... o en-fermeiro é... tem que ser responsável pelas consultas, a gente que tá ali fazendo palestras educativas, a gente tem que ser responsável pela informação, pelo burocrático do PSF, pelo preenchimento de fichas que são muitas, pela falta de material. E as palestras educativas. O trabalho mais é esse de prevenção, reabilitação, promoção e essa parte de gerenciar também é função do enfermeiro (Anambezinho).

Com uma formação tecnicista e fragmentada, ain-da atrelada ao cuidado do órgão doente e não de um ser, faz-se mister o uso do termo ‘saúde ampliada’ que consiste numa apreensão do sujeito sadio ou doente. E para que isso ocorra é necessária a introdução de pro-fissionais com enfoque integral e uma visão ampliada, buscando a integração de todas as tecnologias disponí-veis para uma abordagem à saúde de qualidade, ampla e humanizada (GONZE; SILVA, 2011).

Durante as décadas de 1970/1980, houve uma ex-pansão do número de UBS o que proporcionou um au-mento da cobertura, melhorando o acesso aos serviços de saúde pela população. A distritalização da saúde como es-tratégia de construção de um modelo assistencial voltado para a realidade social, traz o território como elemento essencial para o planejamento e gestão dos serviços de saúde oferecidos à população (SILVA et al., 2001).

Especificamente, no caso da enfermagem, Rocha e Almeida (2000) ressaltam que a sua prática integra a relação do ambiente e seu impacto no ser humano. É influenciada pela realidade que compreende a polí-tica, a economia e a cultura; sua especificidade está no cuidado tanto do individual como de famílias/coletivo

desenvolvendo atividades de promoção, prevenção, re-cuperação e reabilitação.

É um processo que busca atuar na vigilância e nos indicadores epidemiológicos, na educação em saú-de, no cumprimento dos programas ministeriais, no planejamento e administração da equipe, na realização da visita domiciliária independente da doença, na co-ordenação dos Programas dos Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e na promoção da autonomia dos pacientes/comunidade.

Ressalta-se, ainda, que o trabalho desenvolvido por esses enfermeiros e os demais membros da equipe é fragmentado:

Mais ou menos assim seria o trabalho em equi-pe, a gente tem a equipe, mas que no dia a dia é um pouco separado, a gente tem um modo particular (Anambezinho).

Eu [o médico] faço a minha parte aqui, não quero saber como ele [o enfermeiro] está cui-dando da população. Eu [o médico] sou pago para resolver aqueles procedimentos, o resto que... Então o processo de trabalho aqui é esse, cada um praticamente faz a sua parte e torce para que no final isso tudo [...] (Crejoá).

Pensando nessa situação, Peduzzi (2001) afirma que o trabalho de cada área profissional (trabalhos es-pecializados) é compreendido como um conjunto de tarefas, atribuições ou atividades. Dessa forma, quan-to à divisão técnica do trabalho, a equipe multiprofis-sional fraciona o mesmo processo de trabalho, pois há uma relação de complementaridade e interdependên-cia entre os trabalhos.

Com relação à participação da comunidade nas atividades que dizem respeito à saúde, Ceccim e Feu-erwerker (2004) conceituam controle social como

direito e dever da sociedade de participar do debate e da decisão sobre a formulação, execu-ção e avaliação da política nacional de saúde.

Contudo, Crevelim e Peduzzi (2005) dizem que o usuário encontra-se ausente no que diz respeito a sua

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coparticipação no processo de produção da saúde: “A mais difícil é o planejamento. A população tem dificul-dade em falar do que necessita” (Coroinha).

Corroborando com tal prerrogativa, Damasceno, Brito e Monteiro (2010) dizem que a população é pou-co participativa devido a falta de educação popular, de incentivo por parte dos conselhos na divulgação e par-ticipação nos eventos e da forte influência da cultura repressora do militarismo ainda presente.

Aí quando a gente muitas vezes deixa de fazer uma atividade e substitui por uma palestra ou debate mesmo às vezes sendo um tema que eles te-nham escolhido a gente observa que a frequência não é tanto quanto a gente esperava (Pichochó).

As necessidades de saúde da população se cons-tituem na procura pelos serviços médicos que um doente faz aos serviços de saúde, caracterizando uma demanda ativa por intervenção originada de um ca-recimento de seu estado sociovital. A população tem a concepção de que para seu problema há uma cor-reção desejável, ou seja, sua necessidade será tratada satisfazendo de algum modo a própria busca por essa intervenção que fica sendo reiterada (SCHRAIBER; MENDES-GONÇALVES, 1996).

Apesar de todo avanço do conhecimento, ainda se encontra certa dificuldade em desenvolver uma prática que considere como a família compreende o processo saúde/doença e como a mesma promove a saúde em seu espaço, no intuito de construir um modelo voltado às novas práticas na área da saúde.

A população, como usuária dos serviços de saúde, tem que ter a compreensão sobre sua participação no processo saúde/doença, atuando como protagonista de seu próprio viver e da produção do autocuidado pro-movendo a democratização das relações de trabalho e interação usuário/trabalhador.

No que diz respeito ao trabalho de assistência prestado à população, o mesmo ocorre com centralida-de ao modelo clínico, apesar do PSF ter como uma de suas diretrizes o modelo epidemiológico.

Schraiber e Mendes-Gonçalves (1996) afirmam que instaurar necessidades com base na produção de serviços significa também criar valores. Esse processo

acontece por meio do valor que atribuímos à satisfação das necessidades na sociedade, o que retiramos através de seu consumo sistemático.

Dessa forma, as necessidades de saúde se colocam como algo por sobre os indivíduos num processo de naturalização/coisificação das demandas, tornando a quem se destinado o cuidado um sujeito alienado to-lhido do exercício da subjetividade. Isso influencia a prática dos enfermeiros entrevistados que acabam res-pondendo a esse modelo:

Ainda [a população] valorizam a parte cura-tiva, então se eles vierem para uma consulta levarem medicamento, eles têm muito mais fa-cilidade de procurar o serviço (Pichochó).

Trabalha mais com a questão curativa que a preventiva devido à necessidade da população devido aos hospitais serem lotados. Também é preconizado pelo Ministério da Saúde traba-lhar a parte educacional, preventiva. Porém esta, não tem êxito, pois a curativa é a que pre-domina, “pois a população tá muito doente”. Se os hospitais fossem menos lotados dava para se trabalhar mais a prevenção (Coroinha).

A maneira pela qual o SUS foi apresentado à po-pulação acaba dificultando a nova compreensão do con-ceito ampliado de saúde. Foi nesse sentido que surgiu a ESF e todo o processo de trabalho voltado não apenas aos aspectos biológicos, mas sociais, políticos, econô-micos, assim como as formas de produção e reprodução social e de viver.

Com isso, o ESF surgiu para reorientar esse mo-delo, com a presença de equipes multiprofissionais e uma abordagem interdisciplinar. Todavia, tal fato não garante uma ruptura com o modelo biologicista, para tanto, há a necessidade de dispositivos que al-terem a dinâmica do processo de trabalho em saúde, tornando o ESF um espaço propício à construção de novas práticas.

Para que se tenha uma clínica ampliada, é necessá-rio o reconhecimento por parte dos profissionais de que seu saber é limitado, sendo importante levar em consi-deração os conhecimentos locais, para assim possuir um

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novo olhar e um novo agir sobre a realidade, fortalecen-do o processo de consciência e de enfrentamento dos problemas vividos na realidade da comunidade.

Essa clínica desenvolvida sobre o sujeito ignora os vínculos entre paciente, famílias e comunidade com a equipe, impossibilitando as pessoas de enfrentarem seus problemas a partir de suas condições concretas de vida. Uma nova clínica, a ampliada, rompe com essa lógica, pois a função do profissional da saúde é estimular o au-tocuidado, a educação em saúde e o compartilhamento de conhecimentos de saúde com os pacientes e grupos, aumentando a capacidade das pessoas de serem tera-peutas de si mesmas (CAMPOS, 2003).

Os enfermeiros ao exercitarem sua prática de consulta de enfermagem reiteram a lógica médica e medicalizante, hegemônica na sociedade ocidental, atuando segundo as teorias uni ou multicausais do processo saúde-doença. E ainda, as Visitas Domiciliá-rias são realizadas somente a pessoas que se encontram ‘isoladas’ ou a puérperas, ilustra-se essa ideia: “Se tra-balha com a Visita Domiciliar aos acamados e puérpe-ras” (Anambezinho).

A consulta quando não pode ser realizada no posto é feita na residência do paciente, mas as-sim é uma coisa limitada, mas assim, a gente tem um turno para visita e elas são priorizadas, então assim, aquelas pessoas que não podem vir aqui de jeito nenhum aí a agente vai até a re-sidência, munido de todo o material que pre-cisar. É qualquer trabalho que seja necessário para se fazer ali na residência a gente já vai equipada para isso, é como se ele tivesse aqui no posto (Pichochó).

O enfermeiro da ESF tem de trabalhar na busca pela promoção à saúde, prevenção de doenças e agravos, recuperação, proteção e reabilitação, tanto no individu-al, como no coletivo, como também,

seja capaz de atuar com criatividade e senso crítico, mediante uma prática humanizada, competente e resolutiva em saúde. (VALEN-ÇA; GERMANO, 2010, p. 138).

Cabe ao enfermeiro do PSF decidir quais aspectos são importantes e que devem ser mais bem explorados em cada família e quais podem ser relevados. É impor-tante que na prática clínica com famílias, a intervenção tenha como meta promover, incrementar ou sustentar o funcionamento da família quanto aos seus aspectos cognitivos, afetivos e de comportamento, além de seu papel enquanto cuidadores.

Considerações finais

As concepções de saúde/doença, que a população emer-ge sob o prisma da saúde enquanto ausência de doenças, são influenciadas pela cultura e situação de classe. Isso acaba interferindo na demanda pelos serviços de saú-de por uma assistência/clínica médica e medicalizante, onde as ações são direcionadas à cura de doenças.

O processo saúde/doença, portanto, não é um pro-cesso individual. É um processo característico de uma sociedade que expressa, ao nível individual, as condi-ções coletivas de vida resultantes dos perfis de produção e de consumo nas diferentes formas de vida. Para isso, o PSF foi criado para aproximar o profissional do co-tidiano da população com uma dedicação e preparação especial daquela exigida em sua prática anterior.

É preciso que a enfermagem, como uma das dis-tintas práticas sociais em saúde, tenha conhecimento das concepções de saúde e de educação em saúde para que o seu objeto possa ser transformado. Para isso, se faz necessário que sua prática se fundamente também na filosofia, ciência e tecnologia e ética, como saberes que se preocupam com a integralidade do homem, pro-movendo a sua emancipação.

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recebido para publicação em agosto/2011 Versão definitiva em outubro/2011 Suporte financeiro: Não houve conflito de interesse: inexistente

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ARTIgO ORIgInAL • origiNal articlE

Contribuições do PET para a formação de profissionais de saúde: a experiência do PET-SAÚDE/VS

PEt’s contributions to the formation of health professionals: the experience of PEt-HEaltH/VS

raiane Moreira dos Santos1, Nadirlene Pereira gomes2, Maíse Figueiredo Maia3, aline araújo Sampaio4, ricardo Vinicius Pinto de Carvalho5, dulceli Botelho Nascimento andrade6

RESUMO o presente artigo trata-se de um relato com o objetivo de compartilhar a experiência adquirida por discentes, docente e profissional de saúde no desenvolvimento do Programa de Educação pelo trabalho para a Saúde/Vigilância em Saúde vinculado à universidade Federal da Bahia. Esse programa priorizou como problema de saúde a mortalidade materna e, através da realização de coleta de dados, seminário, oficinas e treinamento para os profissionais de saúde do distrito Sanitário do Subúrbio Ferroviário, possibilitou: o exercício da interdisciplinaridade; o diagnóstico da situação de saúde; a organização de atividades e eventos; e a sistematização e divulgação do conhecimento.

PALAVRAS-CHAVE: Equipe Interdisciplinar de Saúde; Formação de recursos Humanos; Pessoal de Saúde; Educação em Saúde; Educação Continuada.

ABSTRACT this article is a report with the aim of sharing the experience of students, teachers and health professionals in developing of the Program of Education by work for Health/Health Surveillance linked to the Federal university of Bahia. this program has given priority to maternal mortality. By performing data collection, seminars, workshops and training for healthcare professionals from the Sanitary district at the railway Suburb, the search for interdisciplinary and health diagnosis, organization of activities and events, and the systematization and dissemination of knowledge made it possible.

KEywORDS: interdisciplinary team of Health; Human resources Formation; Health Personnel; Health Education; Education, continuing.

1 graduanda em Enfermagem pela universidade Federal da Bahia (uFBa) – Salvador (Ba), Brasil. [email protected]

2 doutora em Enfermagem pela uFBa – Salvador (Ba), Brasil. Professora adjunta da Escola de Enfermagem da uFBa – Salvador (Ba), Brasil. [email protected]

3 graduanda em Enfermagem pela uFBa – Salvador (Ba), Brasil. [email protected]

4 graduanda em odontologia pela uFBa – Salvador (Ba), Brasil. [email protected]

5 graduando em Medicina pela uFBa – Salvador (Ba), Brasil. [email protected]

6 graduada em Enfermagem. Enfermeira da Estratégia de Saúde da Família da Secretaria Municipal de Saúde de Salvador – Salvador (Ba), Brasil. [email protected]

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Introdução

Diante a complexidade e magnitude dos fenômenos so-cioeconômicos e de saúde que acometem a população, torna-se essencial um modelo de formação curricular que prepare os profissionais para o enfrentamento das questões atuais.

De forma geral, um currículo representa um pla-no pedagógico e institucional que orienta a aprendi-zagem dos alunos de forma sistemática. No entanto, Araújo (2007) aponta que os currículos na graduação são tradicionalmente estruturados de tal modo que os alunos tendem a não atingir uma satisfatória progres-são intelectual e, por isso, pouco contribuem para a resolução de problemas reais e potenciais no Sistema Único de Saúde (SUS). Loch-Neckel et al. (2009) acrescentam que o currículo tradicional é um dos principais empecilhos para o desenvolvimento da in-terdisciplinaridade nos processos de trabalho em equi-pes de saúde, até mesmo porque tal organização curri-cular valoriza o trabalho individual em detrimento do trabalho coletivo, algo que compromete a integração da equipe. Nota-se, assim, uma divergência entre a or-ganização disciplinar do conhecimento que orienta a formação dos profissionais de saúde e as necessidades no âmbito da saúde coletiva.

O ensino de qualidade deve utilizar os serviços de saúde e a comunidade como cenários de aprendizagem e ser capaz de desenvolver, nos profissionais, competên-cias para realização de atividades assistenciais, geren-ciais, de ensino e pesquisa (NASCIMENTO, 2007). Essa habilidade pode ser alvo de ação pedagógica visan-do o desenvolvimento profissional, afinal, Paulo Freire (1980), já em 1980, defendia que o conhecimento só se materializará quando apreendido sobre a realidade na qual o individuo se encontra inserido.

Sinalizando também para a necessidade de se aprimorar continuamente a formação dos profissio-nais de saúde, Araújo, Miranda e Brasil (2007) con-sideram de fundamental importância a inserção de acadêmicos em projetos que envolvam a integração entre o ensino, o serviço e a comunidade. A arti-culação entre esses cenários requer uma abordagem interdisciplinar, na qual sejam valorizadas as trocas de saberes, visando a superação da fragmentação do

conhecimento e a formação de profissionais com a visão mais integral e ancorada nos aspectos sociocul-turais (BERARDINELLI; SANTOS, 2005).

No sentido de contribuir para a necessária trans-formação dos processos formativos e das práticas pe-dagógicas e de saúde, a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS) vem se esforçando num trabalho articulado entre o sistema de saúde e as instituições formadoras, geralmente por meio de ofici-nas realizadas, preferencialmente, no próprio ambiente de trabalho, com vistas à identificação de problemas cotidianos e à construção de soluções, utilizando-se de práticas pedagógicas centradas na resolução de proble-mas (BRASIL, 2009). Essa política visa contribuir para a formação e o desenvolvimento de trabalhadores do SUS, bem como a organização dos serviços, a partir da efetivação de determinados programas, como o Progra-ma Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (PRÓ-SAÚDE).

O PRÓ-SAÚDE tem como uma de suas estra-tégias o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-SAÚDE), cujo fio condutor é a integração ensino-serviço-comunidade e objetiva oportunizar aos estudantes dos cursos de graduação e de pós-graduação, na área da saúde, a iniciação ao trabalho e, principal-mente, a inserção na realidade dos serviços como fonte de pesquisa e produção de conhecimento nas institui-ções de ensino. De acordo com a Portaria Ministerial nº 421 de 03 de março de 2010, o PET-SAÚDE deve estimular a formação de profissionais e docentes, bem como a atuação profissional pautada pela cidadania, pelo espírito crítico e pela função social da educação superior, orientados pelo princípio da indissociabilida-de entre ensino, pesquisa e extensão (BRASIL, 2010). Em três modalidades (PET-SAÚDE/Saúde da Família; PET-SAÚDE/Vigilância em Saúde – PET-SAÚDE/VS –, e o PET-SAÚDE/Saúde Mental), o PET-SAÚDE conta com uma equipe composta por um docente (tu-tor), dois profissionais dos serviços (preceptores) e oito graduandos da área da saúde, o que viabiliza o desen-volvimento das ações necessárias para intervir em agra-vos de saúde atuais.

Sabe-se, entretanto, que o modelo de atenção à saúde – ou à doença – é centrado em procedimen-tos técnicos e é marcado por relações interpessoais

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distantes, pelas dificuldades de acesso, pela falta de acolhimento e pela descontinuidade no atendimento, tornando difícil o cuidar integral (BEHEREGARAY; GERHARDT, 2010). Segundo Boff (1999), cuidar é mais do que um ato, é uma atitude. Assim, o cui-dado abrange mais do que um momento de atenção, sendo representado como uma atitude de ocupação, de responsabilização e de envolvimento com o outro. Emerge-se, pois, uma preocupação por uma formação profissional para o cuidado com o outro, consigo mes-mo e com toda a comunidade. Essa formação requer do discente a inserção na realidade, a capacidade de desvelar problemas e de pensar estratégias conjuntas de enfrentamento por meio da interdisciplinaridade do saber e da intersetorialidade no fazer.

Nesse contexto, e considerando os pressupostos do PET-SAÚDE para a reorientação da formação pro-fissional em saúde, o estudo tem como objetivo com-partilhar a experiência de discentes, docente e profissio-nal de saúde no desenvolvimento do PET-SAÚDE/VS na cidade de Salvador (BA).

Metodologia

O PET-SAÚDE/VS, vinculado à Universidade Federal da Bahia (UFBA), priorizou como problema de saúde a Mortalidade Materna, uma das situações epidemio-logicamente mais preocupantes no município de Sal-vador (BA). As ações do projeto, iniciadas em julho de 2010, foram desenvolvidas no sentido de viabilizar o monitoramento da morte materna no âmbito do Dis-trito Sanitário do Subúrbio Ferroviário (DSSF) e foram desenvolvidas por uma equipe composta por dezenove discentes dos cursos de enfermagem, medicina, nutri-ção e odontologia, sendo dezesseis bolsistas e quatro vo-luntários; além de duas docentes e quatro profissionais do serviço de saúde, todas graduadas em enfermagem.

Esta pesquisa trata-se de um relato acerca da expe-riência adquirida, durante um ano, no PET-SAÚDE/VS por quatro discentes (dois de enfermagem, uma de odontologia e um de medicina), uma professora adjunta da Escola de Enfermagem da UFBA e uma enfermeira atuante no DSSF. Optou-se pelo tipo de pesquisa ‘rela-to de experiência’, uma vez que as práticas na realidade

poderão contribuir com políticas públicas que visem à melhoria das condições de assistência e saúde (BEHE-REGARAY; GERHARDT, 2010).

O trabalho no PET-SAÚDE/VS se desenvolveu em dois momentos. No primeiro, realizou-se uma co-leta de dados a partir de informações da base de dados DATASUS. Os dados foram organizados através de ta-belas e gráficos, analisados e respaldados com base em textos obtidos em bancos de dados virtuais. Pode-se ob-servar que, tanto Salvador como o DSSF, apresentam taxas muito elevadas de mortalidade materna, que vêm aumentando ao longo do período de 2000 a 2009. No ano de 2009, a taxa para Salvador foi de 78 por 100.000 nascidos vivos e para o DSSF foi de 92 por 100.000 nascidos vivos. De acordo com padrões estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), uma taxa de mortalidade materna acima de 20 por 100.000 nas-cidos vivos já é considerada elevada.

A fim de socializar tais resultados, realizou-se, no segundo momento, um seminário visando o monito-ramento da mortalidade materna no DSSF, onde se discutiram estratégias para minimizar o problema exis-tente, sendo priorizadas a formação de uma comissão de morte materna, a criação de uma sala de situação e treinamentos/oficinas para a melhoria na captação das informações no Sistema de Acompanhamento do Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento (SISPRENATAL). No sentido de alcançar esses objeti-vos, foram desenvolvidas diversas atividades de cunho educativo e informativo, tendo como público alvo ges-tores, administrativos e profissionais das Unidades de Saúde no âmbito do DSSF, além de representantes da sociedade civil.

Por se tratar de um relato de experiência, não houve submissão ao Comitê de Ética em Pesquisa. No entanto, foram considerados os aspectos éticos baseados na Resolução 196/96 no sentido de preser-var a imagem da comunidade, lócus do estudo, evi-tando estigmatização ou qualquer outro prejuízo a essa (BRASIL, 1996).

As informações sobre a experiência dos integrantes foram coletadas com o apoio de um formulário semies-truturado contendo a seguinte questão norteadora: De que maneira o PET-SAÚDE/VS contribui na formação dos profissionais de saúde?

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Os dados foram agregados de modo a organizar categorias que sinalizem para as contribuições do PET-SAÚDE/VS no processo de formação dos profissionais de saúde. A análise com base nos dados foi respalda-da em artigos que tratam sobre as temáticas: forma-ção, interdisciplinaridade, educação em saúde, sistema de informação, organização de serviço e projetos de extensão.

Discussão

Durante um ano de integração no PET-SAÚDE/VS, muitas foram as atividades realizadas e as estratégias implementadas no sentido de viabilizar as ações ante-cipadamente previstas no projeto, além de outras que se desvelaram necessárias para a condução do processo de trabalho.

Neste relato, buscamos relacionar e compartilhar algumas contribuições desse programa para a formação de profissionais na área da saúde, visto que possibilitou: a Integração ensino-serviço-comunidade; a interação multiprofissional e o exercício da interdisciplinaridade; o diagnóstico da situação de saúde a partir dos Sistemas de Informação em Saúde; a organização de atividades e eventos na área de educação em saúde; a sistematização e divulgação do conhecimento.

Integração ensino-serviço-comunidade A inserção de estudantes da graduação nos espaços da saúde e em comunidades vem possibilitando conhecer as condições de vulnerabilidade à saúde dos grupos co-munitários, acompanhar os atendimentos em saúde nas unidades e sistematizar as informações que, a priori, de-vem subsidiar as práticas em saúde.

Os diversos cenários para coleta de informa-ções, planejamento, discussão e intervenção que ti-vemos oportunidade de atuar no PET-SAÚDE/VS sinalizam para o surgimento de práticas e espaços de ensino-aprendizagem inovadores, capazes de orientar a criação de novos métodos de ensino. Vale lembrar que a Universidade, enquanto instituição social com-prometida com a vida das sociedades, deve explorar todas as oportunidades para buscar atualizar, enri-quecer e aprofundar os conhecimentos, bem como

preparar o aluno para o cenário dinâmico da saúde (DELORS, 1999).

A interseção entre ensino e serviço é significante no processo de consolidação e reorganização dos mode-los de atenção à saúde, haja vista são cenários privilegia-dos para a construção do saber não só para os discentes, como também para profissionais de saúde, docentes e a própria comunidade (ALBUQUERQUE et al., 2008). A esse respeito, Gomes et al. (2009) defendem que a melhoria da formação profissional em saúde depende de uma articulação entre os componentes curriculares e a realidade do serviço.

A intenção do PET-SAÚDE é justamente apoiar projetos que possam garantir transformações no pro-cesso de formação dos profissionais de saúde e, assim, melhor prepará-los para a promoção do cuidado indi-vidual e coletivo, que envolve outras habilidades além de procedimentos técnicos, tais quais reconhecimento de agravos na comunidade e capacidade de articula-ção intersetorial e de trabalho em equipe em busca de estratégias de superação dos problemas/agravos iden-tificados para garantia do bem-estar de seus clientes. Para Nascimento et al. (2007), docentes, preceptores e discentes, quando trabalhando em equipe, poderão compartilhar seus saberes e ir além dos conhecimen-tos teóricos e práticos, estabelecendo um compromisso com a sociedade.

Interação multiprofissional e o exercício da interdisciplinaridadeNo PET-SAÚDE/VS da UFBA, tivemos oportunidade de trabalhar com um grupo multidisciplinar constituí-do por estudantes de quatro diferentes áreas no campo da saúde. São eles: enfermagem, medicina, nutrição e odontologia. Essa experiência permitiu melhor com-preender as competências e atribuições de cada curso em específico, bem como as potencialidades e limites de cada categorial profissional.

Trabalhando em equipe, desde as discussões acerca dos problemas da comunidade às ações de intervenção, percebemos que as dificuldades e limitações são supera-das – ou pelo menos reduzidas – quando o olhar sobre o objeto ultrapassa o campo unidisciplinar, isso porque as percepções e os entendimentos de diversos atores de distintas áreas possibilitam aprofundamento do assunto

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e, consequentemente, uma compreensão mais ampla e holística. Conforme Etges (1995), a interdisciplinari-dade visa superar a disciplinaridade, a partir da visão ampliada da realidade.

Vale salientar que o PET-SAÚDE/VS também possibilitou interação com profissionais que atuam em múltiplos cenários dentro do espaço da saúde. Essa vivência foi fundamental por constituir-se em uma oportunidade de inserção e contextualização da realidade do serviço de saúde ao nível local, já que ao mesmo tempo em que vivencia/presencia as ações de assistência, vigilância e gerência em saúde se deparam com obstáculos do sistema, tendo assim uma opor-tunidade ímpar de aprender in loco e melhor se pre-parar profissionalmente para enfrentar os problemas sociais e de saúde, que requer a interação dos saberes: a interdisciplinaridade. Nessa perspectiva, estes estu-dantes terão, a priori, maior facilidade de futuramente se inserirem em equipes multiprofissionais já atuantes, maior propriedade de reconhecer problemas e imple-mentar meios para superá-los.

Segundo Carvalho (2007), a interdisciplinaridade caracteriza-se por uma maneira diferenciada de olhar as coisas e de agir por parte daqueles que se encontram inseridos em trabalhos em equipe no mundo acadêmi-co, sendo fundamental no processo de construção do saber. O autor chama atenção, inclusive, para o ensino superior, principalmente na formação de pesquisadores, onde quase nada se produz sem o trabalho em equipe.

Nota-se a importância do PET-SAÚDE/VS para a formação acadêmica e transformação das práticas em saúde uma vez que vem contribuindo significa-tivamente para o desenvolvimento de competências e habilidades, que vão além dos procedimentos téc-nicos, impulsionando a capacidade de trabalhar em equipe, o que implica respeito às diferenças e união de esforços para fim comum. Para Beheregaray e Gerhar-dt (2010), um trabalho interdisciplinar promove uma atenção mais integral, pois busca romper a fragmenta-ção do conhecimento sem perder de vista a singulari-dade de cada sujeito.

Fica clara a importância de projetos e programas que promovem a inserção de estudantes nos espa-ços da saúde. Para tal, é necessário que as instituições de ensino superior forneçam subsídios para que essa

interação possa acontecer. Segundo Galindo e Golden-berg (2008), os projetos de extensão voltados para a co-munidade, por envolverem projetos em situações reais e o trabalho em equipe multidisciplinar, configuram-se em uma excelente oportunidade para se ampliar o con-ceito de interdisciplinaridade.

Diagnóstico da situação de saúde a partir dos sistemas de informação em saúde Considerando o problema priorizado pelo PET-SAÚ-DE/VS da UFBA, “Mortalidade Materna”, tornou-se necessário oportunizar aos estudantes o conhecimento acerca do funcionamento dos Sistemas de Informação em Saúde, a fim de realizar análise e diagnóstico da situ-ação de saúde no âmbito do DSSF, principalmente, no que se refere ao público feminino. Para isso, a utilização de determinadas funções da vigilância epidemiológica se estabeleceu como uma das principais ferramentas para o delineamento dos problemas de saúde e compre-ensão de seus determinantes no âmbito do DSSF, faci-litando, assim, a ação do programa em benefício dessa população.

A Vigilância em Saúde, enquanto um modelo al-ternativo de atenção à saúde, tem suas ações planejadas a partir do processo de identificação dos problemas de saúde reais de determinada comunidade, visando o en-frentamento dos mesmos.

A experiência PET-SAÚDE/VS foi rica em apren-dizados visto que, inseridos na realidade das práticas de saúde, vivenciamos a vigilância à saúde e praticamos o manuseio dos sistemas de informações para a caracteri-zação da população, das condições de vida e do perfil epidemiológico no âmbito do DSSF nas bases de dados do DATASUS. Os dados foram coletados em sistemas de informação em saúde, como Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), Sistema de Informações de Nascidos Vivos (SINASC), Sistema de Informações de Agravos de Notificação (SINAN), Sistema de Informa-ção da Atenção Básica (SIAB), Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH-SUS), Sistema de Acompa-nhamento do Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento (SISPRENATAL) e Sistema de Informa-ção do Programa Nacional de Imunização (SI-PNI), para a efetuação dos cálculos de alguns indicadores de

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saúde como, por exemplo, a taxa de mortalidade ma-terna, proporção de nascidos vivos por idade materna e incidência de sífilis congênita.

Esse processo de trabalho também contribuiu para desenvolvermos habilidades em programas de in-formática, principalmente o Office Excel, utilizado nos cálculos e construções de gráficos e tabelas referentes aos indicadores de saúde, sendo os cálculos baseados nas informações da Rede Interagencial de Informações em Saúde (RIPSA, 2008).

A interação com os demais integrantes do PET-SAÚDE/VS e com funcionários dos serviços, durante as atividades de campo no DSSF e nos tutoriais, favo-receu embasamento técnico e teórico no que tange não só a coleta de informações em saúde como também a alimentação dos sistemas, processamento e análise de dados, sinalizando, inclusive, para os fatores que inter-ferem nesse processo.

Durante a coleta de dados por meio dos Sistemas de Informações em Saúde, percebemos que os mesmos pos-suem algumas falhas, como subnotificação e alimentação irregular dos dados, algo que torna um grande impasse para o conhecimento da real situação de saúde de de-terminada população. Dessa forma, também foi possível construir um pensamento crítico sobre esse instrumento, bem como propor sugestões para a melhoria ao nível dis-trital de alguns sistemas como o SISPRENATAL, o qual está diretamente relacionado à saúde materna. Corrobo-rando para a necessidade de avanços na captação e pro-cessamento das informações em saúde, Gonçalves et al. (2008) apontaram a presença de elevada subnotificação no SINAN em relação aos dados sobre a síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS).

Nesse contexto, o Sistema de Informação em Saú-de desvela-se enquanto importante ferramenta para o direcionamento de ações políticas em saúde ao nível lo-cal, sobretudo no que tange à melhoria da qualidade das informações epidemiológicas, haja vista sua contribui-ção na gestão, planejamento e organização do serviço de saúde (BARROS et al., 2003). Entretanto, segundo Medeiros et al. (2005), os sistemas de informação em saúde ainda são pouco utilizados no que se refere ao seu potencial de subsidiar planos de ações em saúde.

Conforme o Manual de Gestão da Vigilância em Saúde (BRASIL, 2009), essa viabiliza o planejamento

das ações em saúde a partir de conhecimentos e práticas da epidemiologia e da utilização da análise da situação de saúde e seus determinantes sociais, proporcionando a organização do serviço e melhoria da atenção primária.

Organização de atividades e eventos na área de educação em saúde O PET-SAÚDE/VS nos oportunizou o exercício de planejar, desenvolver e avaliar atividades de cunho in-formativo e educativo, com características e comple-xidades diferentes. Foram organizadas desde tutoriais, mostras e oficinas, realizadas para discussão de temas específicos com um determinado grupo, até seminários com participação de representantes da Secretaria Muni-cipal de Saúde, Universidade e da sociedade civil.

Sobre os tutoriais temáticos, esses eram realizados no espaço físico da universidade. Explico-nos: reuniões sistemáticas entre discentes, preceptores e tutores, nos quais um determinado grupo (geralmente compos-to por alguns discentes, um preceptor e/ou um tutor) apresentava aos demais um tema anteriormente defini-do. Para tal, exigiram-se pesquisa sobre o assunto elegi-do, encontros para discussão temática e construção de estratégia de apresentação. O estudo prévio em equipe, a exposição do tema e, o posterior, debate foram essen-ciais para melhor prepararmo-nos profissionalmente.

O seminário foi realizado com o objetivo de expor sobre a problemática em questão e provocar debate mais amplo no que tange a implantação do monitoramento da mortalidade materna no território do DSSF. Pela complexidade, esse evento demandou várias reuniões de planejamento e acompanhamento. O produto desse seminário foi o principal precursor para a definição das oficinas.

As oficinas foram organizadas no sentido de aten-der às demandas e necessidades apontadas durante o de-senvolvimento do projeto, tais quais: melhoria da capta-ção de dados do SISPRENATAL; implantação da Sala de Situação e Criação de Comissão da Mortalidade Materna a nível distrital. Essa vivência favoreceu maior interação entre nós, integrantes do PET-SAÚDE/VS e os funcio-nários que atuam no DSSF, sejam esses profissionais de saúde da assistência ou técnicos. Para Ander-Egg (2000), apud Dias, Silveira e Witt (2009), a oficina é um cam-po de reflexão e ação que visa superar a distância entre

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teoria e prática, entre conhecimento e trabalho e entre o aprendizado adquirido e a vida.

Na Mostra, tivemos a oportunidade de divulgar, em evento científico local, os resultados parciais de nosso projeto, bem como nossa percepção sobre a ex-periência de integrar o PET-SAÚDE/VS. Elaboramos previamente resumos conforme normas do evento, sub-metemos à apreciação da Comissão, elaboramos pôster e os apresentamos publicamente. Para muitos discentes, essa experiência foi ímpar.

A participação na construção e desenvolvimento de todas essas atividades proporcionou aprendizados múlti-plos, visto que envolve um conjunto de ações diversifi-cadas: planejamento detalhado; reserva de espaço físico e recursos audiovisuais; aquisição de recursos didáticos, materiais de escritório, coffee-break, etc; relação de convi-dados; elaboração e envio de convites; preparo de apre-sentação; registro do evento e das informações; elabora-ção de relatório técnico; avaliação e registro no sistema de informação da universidade para certificação de equipe organizadora e ouvintes participantes. Acrescenta-se ain-da a necessidade constante de articulação intersetorial, uma vez que o PET-SAÚDE/VS não dispõe de recur-so financeiro para auxílio às atividades do projeto, sen-do preciso conseguir apoio da Secretaria Municipal de Saúde, das Escolas envolvidas – enfermagem, medicina, nutrição e odontologia, ou de outras instituições.

Conhecer a trajetória metodológica para a realiza-ção de um evento trouxe aos participantes um enrique-cimento de como otimizar seu tempo e a capacidade de trabalhar em equipe, dividindo tarefas, potencializando recursos e, mais uma vez, demonstrando a relevância do trabalho em equipe. Chama atenção o fato de que muitos discentes, que pouco contribuíam nas discus-sões dessas atividades, passaram a participar mais ativa-mente, inclusive oferecendo-se para representar o grupo em apresentações de trabalhos em eventos. Os tutoriais contribuíram significativamente para aumentar o po-der de oratória da maioria. Segundo Nascimento et al. (2007, p. 94), as oficinas pedagógicas

são primordiais e extremamente válidas para a consolidação dos conhecimentos necessários para um bom desempenho e, consequentemen-te, na sua formação profissional.

Muitos estudantes concluem a graduação e não vi-vem tal experiência. É importante sinalizar que embora não integre a grade curricular mínima, muitas são as oportunidades de discentes engajarem-se em projetos de extensão e/ou pesquisa ainda durante a graduação e constituírem-se protagonistas de sua formação.

Sistematização e divulgação do conhecimento O engajamento de discentes em atividades de pesqui-sa promove a qualificação da formação profissional. Durante todo o PET-SAÚDE/VS, o estímulo à leitura tornou-se um forte aliado através do qual realizamos pesquisa de artigos científicos, análise crítica e ficha-mentos, observando as características referentes à es-trutura e aos métodos quantitativos e/ou qualitativos utilizados. Soma-se ainda a elaboração de relatórios constando as atividades desenvolvidas, impressões, fa-cilidades e limitações, além de resumos sobre a temá-tica e experiência vivenciada para fins de apresentação e/ou publicação em eventos científicos de âmbito local e nacional e artigos para divulgação do aprendizado. Através desse processo de trabalho, aprendemos a fazer pesquisas bibliográficas em bases de dados confiáveis, como o LILACS e SCIELO, para a fundamentação teórica dos artigos, resumos e relatórios.

Em relação à apresentação de trabalhos em even-tos científicos, foram apresentados cinco resumos em uma Mostra resultante da parceria UFBA/Distrito Sa-nitário Subúrbio Ferroviário/Secretaria Municipal de Saúde. Também foram submetidos dois resumos ao VIII Congresso Brasileiro de Epidemiologia, vincula-do à ABRASCO. Mais três resumos foram aprovados para serem apresentados na I Mostra de Experiência em Promoção à Saúde para a Prevenção das Doenças e Agravos Não Transmissíveis (DANTS). Segundo Egry (2009), a publicação científica é muito importante, caracterizando-se como uma das formas de responder à sociedade, uma vez que a realização de pesquisas, geralmente, utiliza recursos públicos. Nesse sentido, Lorenzoni et al. (2007) complementam que a publi-cação de estudos na área da saúde pode ocorrer não apenas em revistas e/ou periódicos, mas também em encontros e congressos científicos.

Ao nos engajarmos no PET-SAÚDE/VS, também aprendemos a pesquisar e utilizar os Descritores em

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Ciências da Saúde (DeCS), os quais são padronizados pela Biblioteca Virtual em Saúde (BVS). Utilizamos ainda o portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) para conhecer o programa Qualis a fim de conferir a classificação de revistas, tanto estrangeiras como brasileiras, e verificar o papel do Portal de Periódicos, o qual permite o acesso a materiais da literatura científica.

Ficou notório o desenvolvimento dos acadêmi-cos envolvidos no projeto que referem sentir-se melhor preparados para elaboração de relatórios técnicos ou de pesquisa, bem como para delinear os caminhos meto-dológicos das ações de pesquisa e/ou extensão.

Estudo realizado por Soubhia, Garanhani e Dessunti (2007) verificou que o processo de pesqui-sa apresenta-se como um trabalho complexo que ne-cessita da orientação do corpo docente o qual deve, também, exercer um papel motivador que desperte no acadêmico o interesse em aprender a pesquisar, iden-tificando a importância desse aprendizado. Nesse sen-tido, o papel dos tutores, docentes de universidades, vem sendo essencial no sentido de instigar para o olhar investigativo e a sistematização, registro e análise críti-ca da produção e das práticas em saúde.

Vale salientar que a inserção na realidade do ser-viço nos permitiu identificar problemas e inquietar-se com situações relacionadas às nossas práticas em saúde e/ou ao nosso cotidiano, para as quais desejamos en-tender e encontrar subsídios para enfrentamento. Daí a abordagem científica se revela enquanto uma estratégia que viabiliza a compreensão dos fenômenos sociais e de saúde. Podemos dizer, assim, que a pesquisa também possibilita a interação entre o ensino e o ambiente de trabalho/serviço.

Percebemos, também, que todo esse processo estruturou uma base de conhecimentos para realizar-mos outros estudos e continuarmos sendo sujeitos ativos no processo de construção do saber. É impor-tante salientar que dúvidas e incertezas sempre sur-gem, mas a busca pelo conhecimento supera essas dificuldades. De acordo com Egry (2009), o ato de pesquisar é bastante útil para encontrar explicações sobre determinados fenômenos, revelando que o mais importante em uma pesquisa é a reflexão sobre o que está sendo estudado.

Considerações finais

A interação discentes-docentes-profissionais de saú-de do serviço em projetos, como o PET-SAÚDE/VS, vem trazendo contribuições importantes na forma-ção profissional em saúde. As ações desenvolvidas possibilitaram a integração ensino-serviço-comuni-dade; a interação multiprofissional e o exercício da interdisciplinaridade; o diagnóstico da situação de saúde a partir dos Sistemas de Informação em Saú-de; a organização de atividades e eventos na área de educação em saúde; e a sistematização e divulgação do conhecimento.

Esses múltiplos aprendizados sinalizam para o surgimento de novas práticas pedagógicas de apren-dizagem e guardam relação com os quatro pilares da Educação, considerados fundamentais ao longo de toda a trajetória profissional: aprender a conhecer, que parte do despertar da curiosidade intelectual para a capacidade de conhecer, descobrir, discernir e, enfim, compreender o mundo em que vivemos; aprender a fazer, que diz respeito ao colocar em prá-tica que se aprendeu a fim de transformar a realidade guardando, assim, relação direta com formação pro-fissional; aprender a viver junto, um dos maiores de-safios da educação, que requer a descoberta progres-siva do outro e a participação em projetos comuns sendo, portanto, indispensável no processo de traba-lho em saúde, cujas demandas exigem atuação mul-tiprofissional e articulação intersetorial; e, por fim, o aprender a ser, visto que a educação deve ser capaz de promover o desenvolvimento total da pessoa, da espiritualidade, da inteligência, da responsabilidade pessoal, de modo que a pessoa possa pensar e agir criticamente, formular seus próprios juízos de valor e decidir por si mesmo em diferentes circunstâncias da vida (DELORS, 1999).

É necessário que as universidades reflitam so-bre o profissional que se quer e repensem, não só os conteúdos curriculares para formação desse, mas principalmente as práticas pedagógicas e metodoló-gicas que valorizem o saber de espaços outros, além da Universidade, e contribuam para a formação de um profissional ético e comprometido com a realida-de social e de saúde.

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recebido para publicação em Julho/2011 Versão definitiva em dezembro/2011 Suporte financeiro: Não houve conflito de interesse: inexistente

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ARTIgO ORIgInAL • origiNal articlE

Um breve histórico do movimento pela reforma psiquiátrica no Brasil contextualizando o conceito de desinstitucionalização

a brief history of the movement for psichiatric reform in Brazil contextualizing the concept of deinstitutionalization

Walter Ferreira de oliveira1, Cristina dos Santos Padilha2, Cristiane Molina de oliveira3

RESUMO Este artigo contextualiza o conceito de desinstitucionalização como proposta de pauta na agenda dos movimentos pela reforma da atenção em saúde mental, reforma crucial para o avanço do Sistema Único de Saúde (SuS). apresenta breve histórico do movimento de reforma psiquiátrica e análise sucinta do conceito de desinstitucionalização. a desinstitucionalização é um processo social complexo, propositor de mudanças sociais e culturais, que não pode ser confundido com a mera desospitalização. a reforma do modelo de atenção em saúde mental pauta-se pela promoção da inclusão social, da conscientização e da cidadania.

PALAVRAS-CHAVE: reforma Psiquiátrica; reforma Sanitária; Saúde Mental; Sistema Único de Saúde; desinstitucionalização.

ABSTRACT the authors contextualize the concept of deinstitutionalization in the agenda for the Brazilian mental health reform and for the advancement of the National Health System (SuS). a brief historical account of the movement for psychiatric reform is presented as well as a succinct analysis of the concept of deinstitutionalization. deinstitutionalization is a complex social process proponent of social transformation and cultural change, which cannot be confused with more dehospitalization. the reform of the model of psychiatric is guided by promoting social inclusion, awareness and citizenship.

KEywORDS: Psychiatric reform; Health reform; Mental Health; unified Health System; deinstitutionalization.

1 Ph.d Social and Philosophical Foundations of Education Program, university of Minnesota – Minneapolis, Minnesota, Estados unidos. Professor do departamento de Saúde Pública da universidade Federal de Santa Catarina (uFSC) – Florianópolis (SC), Brasil. [email protected]

2 Mestre em Saúde Coletiva pelo Programa de Pós graduação em Saúde Coletiva da uFSC – Florianópolis (SC), Brasil. [email protected]

3 Especialista em Equipe Multidisciplinar em Saúde da Família pela uFSC - Florianópolis (SC), Brasil. [email protected]

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OLIVEIRA, W.F.; pADILhA, C.D.s.; OLIVEIRA, C.m. • um breve histórico do movimento pela reforma psiquiátrica no Brasil contextualizando o conceito de desinstitucionalização

Introdução

Em 2008, completamos 30 anos de um conjunto de mo-vimentos, que se costuma denominar, de maneira geral, de Movimento de Reforma Psiquiátrica (RP) no Brasil. Esse conjunto de movimentos, que tem como objetivo a reforma do modelo de atenção e cuidados em saúde mental, iniciou-se com o Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM) e hoje tem diversas denomi-nações, muitas faces, uma enorme variedade de formas de existência e a mais ampla polifonia. O Movimento de Reforma Psiquiátrica origina-se com as lutas democráti-cas, as lutas contra a opressão e a violência da ditadura militar e tem hoje, perante si, enormes desafios.

Alguns desses desafios encontram-se no próprio am-biente interno da reforma, como o perigo de manutenção de orientações tradicionais travestidas de ações reformado-ras (BRESOLA, 2004; FRANCHINI, 2003). Outros se relacionam com a inserção do subsistema de saúde mental no Sistema Único de Saúde (SUS), o que implica na que-bra de um histórico isolamento dos atores e dispositivos da atenção à saúde mental em relação ao sistema como um todo (OLIVEIRA; VIEIRA; ANDRADE, 2006). Outros, ainda, que já eram previstos no contexto estraté-gico da RP, incluem os avanços de movimentos contrários a essa, que se pautam pela reação contra um novo olhar e um novo lugar social para a loucura e contra a concreti-zação de um novo paradigma para a atuação do sistema de saúde frente ao fenômeno psíquico (TEIXEIRA, 2005; COSTA, 2003).

Uma bandeira de luta comum nesses movimentos de reação contra a RP é a manutenção de um modelo de atenção e cuidado centrado no hospital psiquiátrico, no médico psiquiatra e na medicalização, e promotor da exclusão, da dependência e da institucionalização das pessoas em sofrimento psíquico. Desinstituciona-lização constitui-se em um conceito, um conjunto de ideias e procedimentos que se contrapõem a esse mode-lo, a que chamamos de manicomial (OLIVEIRA, 2009; COSTA-ROSA; LUZIO; YASUI, 2003).

Este artigo contextualiza o conceito de desinsti-tucionalização como orientador de práticas essenciais à concretização das propostas da RP brasileira e à sua convergência com o Movimento da Reforma Sani-tária (RS). Além de uma reflexão sobre o conceito de

desinstitucionalização, a partir de algumas referências utilizadas no contexto da RP, realiza-se uma peque-na análise de alguns obstáculos e resistências que vêm sendo encontrados na implementação de processos de desinstitucionalização.

Breve história do movimento de Reforma Psiquiátrica no BrasilO movimento por uma reforma do modelo de atenção psiquiátrica emerge, no Brasil, no bojo das lutas dos trabalhadores de saúde frente à ditadura militar. Encon-tram-se, entre seus precursores, o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), que lançou a revista ‘Saú-de em Debate’, a primeira publicação independente em saúde pública no Brasil, e que propiciou um amplo de-bate sobre as ‘práticas críticas’ (como eram chamadas), formas transformadoras de pensar, cuidar e intervir na saúde da população; e o Movimento de Renovação Mé-dica (REME) que teve como objetivo ocupar os sin-dicatos e demais entidades de classe que estavam sob intervenção ou dominados por sindicalistas pelegos (AMARANTE; OLIVEIRA, 2004). O REME abriu-se às demais categorias da área da saúde, formando o núcleo do que seria conhecido como Plenária da Saúde, que teve papel fundamental na organização política do setor nos primeiros anos do SUS.

O REME propiciou ampla mobilização no campo sindical que, em curto espaço de tempo, deixou de se voltar apenas para questões corporativas e assumiu um importante papel na reformulação do setor da saúde brasileira, com expressiva mobilização para a 8ª Con-ferência Nacional de Saúde e a formulação e aprovação do SUS na Constituição de 1988. Com o CEBES e o REME engajados nos movimentos contra a ditadura, o setor saúde começava a ser agitado por denúncias e ma-nifestações de insatisfação. Nesse contexto surgiu, em 1978, a primeira expressão formal do Movimento de RP, o MTSM (AMARANTE, 1995).

O MTSM surge a partir de denúncias de violên-cias a que eram submetidos os usuários dos hospitais psi-quiátricos que constituíam a rede da Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM), do Ministério da Saúde. Em uma ocasião de maior tensão, a demissão sumária de profissionais no Centro Psiquiátrico Pedro II, maior complexo hospitalar psiquiátrico da América Latina,

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localizado no Rio de Janeiro, hoje com o nome de Ins-tituto Municipal Nise da Silveira, propiciou a primeira greve no setor público no país desde o início da ditadura militar, anterior, inclusive, à histórica greve dos metalúr-gicos do ABC paulista. O MTSM cresceu imediatamen-te em quase todo o país, através da criação de núcleos sindicais, em associações de moradores, em diretórios e centros acadêmicos, no CEBES e no REME.

Ainda em 1978, o Congresso Brasileiro de Psi-quiatria, em Camboriú, Santa Catarina, transformou-se em um grande acontecimento político, com reper-cussão externa ao campo psiquiátrico e sanitário e ficou conhecido como o ‘Congresso da Abertura’. O MTSM fez ampla convocação de simpatizantes e o congresso tornou-se palco de denúncias e reivindicações, um es-paço único de organização nacional.

Realizou-se, ainda em outubro de 1978, o I Sim-pósio Brasileiro de Psicanálise de Grupos e Instituições, que lançou o Instituto Brasileiro de Psicanálise de Gru-pos e Instituições (IBRAPSI). Participaram do evento alguns representantes do pensamento crítico interna-cional, dentre eles Felix Guattari, Robert Castel, Erving Goffman, Thomas Szasz, Shere Hite e Franco Basaglia.

A presença do psiquiatra italiano Franco Basaglia foi emblemática, pois na Itália acabava de ser aprova-da a Lei 180, da Reforma Psiquiátrica Italiana, que passou a ser conhecida como ‘Lei Basaglia’. A Itália tornava-se o primeiro país a prescrever o fim dos ma-nicômios e o Movimento da Psiquiatria Democrática Italiana tinha uma forte conotação política, o que o aproximava da nossa própria experiência, já influen-ciada por outras correntes de resistência ao biopoder psiquiátrico, como o movimento da antipsiquiatria, desenvolvido na Grã Bretanha e que tinha, por sua vez, fortes ligações com o movimento internacional da contracultura (BONO, 1975).

Em 1979, Basaglia retornou ao Brasil a convite da Associação Mineira de Psiquiatria e visitou várias cidades brasileiras, além da histórica visita ao hospício de Barbacena, baluarte do modelo manicomial. Suas palestras nessa viagem foram registradas em um livro publicado em 1979 intitulado ‘A psiquiatria alternativa: o otimismo da prática contra o pessimismo da razão’ e publicadas na Itália por ocasião dos 20 anos de sua morte (BASAGLIA, 2000).

Em janeiro de 1979, realizou-se o I Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental no Ins-tituto Sedes Sapientiae em São Paulo. O relatório final desse evento reitera que a luta pela transformação da saúde e da saúde mental se vincula às demais lutas da saúde e aos movimentos sociais. Em outubro do mes-mo ano, o CEBES apresentou, no I Simpósio de Saúde da Câmara dos Deputados, dois documentos históri-cos para o campo da saúde brasileira. O primeiro foi o texto ‘A questão democrática na área da saúde’, no qual a proposta de um Sistema Único de Saúde foi pela primeira vez apresentada e debatida com os setores po-líticos nacionais (CEBES, 1980). O segundo foi o texto ‘A assistência psiquiátrica no Brasil: setores público e privado’, elaborado pela Comissão de Saúde Mental do CEBES do Rio de Janeiro, que denunciou as mazelas do modelo psiquiátrico num espaço de enorme reper-cussão política (CEBES, 1980).

O Movimento começava, assim, a sair do campo exclusivo da comunidade técnica e, com ele, a questão da loucura e da instituição asilar seguiram a mesma trajetória: o debate sobre a loucura começava a sair do interior dos hospícios e congressos profissionais para o domínio público. Essa tendência havia sido fortemente sinalizada internacionalmente, na área das artes, com o lançamento, por exemplo, do filme ‘Um estranho no ninho’, dirigido por Milos Forman e vencedor de cinco Oscars no ano de 1975, baseado no livro de mesmo nome de Ken Kesey (1962). A loucura e a psiquiatria deixavam gradativamente de ser objeto de interesse e discussão exclusiva dos técnicos e alcançavam os diver-sos foros da sociedade civil. A grande imprensa noticia-va, com destaque e ininterruptamente, as condições dos hospitais psiquiátricos e as distorções da política nacio-nal de assistência psiquiátrica. A ‘questão psiquiátrica’ tornava-se uma questão política e social.

Ainda em 1979, realizou-se em Belo Horizonte o III Congresso Mineiro de Psiquiatria que contou com a presença de Franco Basaglia, Antonio Slavich e Robert Castel e se tornou também um importante marco no processo de RP no Brasil.

De forma geral, essas iniciativas tinham em comum o objetivo de superar a prática e os pressupostos teóri-cos da instituição psiquiátrica tradicional, que se apoia-vam na visão enfática do defeito, da irracionalidade, da

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desrazão, da improdutividade e da periculosidade do louco/doente. Colocava-se em discussão a possibilida-de de resgatar histórias, biografias e subjetividades dos portadores de sofrimento psíquico. Trazia-se ao debate a cidadania e os direitos humanos da ‘pessoa’ adoecida, o direito a um verdadeiro e digno cuidado. Desafiava-se a cientificidade da psiquiatria tradicional, tornando-se possível percebê-la como instrumento tecnocientífico de poder ou como saber e prática disciplinares e nor-matizantes (SZASZ, 1974; LAING, 1967).

A denúncia das formas desumanas de tratamento institucionalizadas nos hospitais psiquiátricos na déca-da de 1970 tornou possível verificar sua função mais custodial que assistencial, mais alienante que liberta-dora, mais iatrogênica que terapêutica. A psiquiatria passava a dizer respeito a toda a sociedade e propunha-se sua reforma, de maneira que seu objeto deixasse de ser a doença, contra a qual ela se mostrara impotente, para tornar-se o sujeito da experiência do sofrimento (TUNDIS; COSTA, 1994). O debate da RP propicia-va, assim, um movimento social expressivo, com uma proposta radical de transformação das instituições.

Com a abertura democrática nos anos 1980, os quadros políticos dos movimentos de RS e RP e suas propostas renovadoras começavam a ser absorvidos no aparelho de estado. No clima de reconstrução nacional característico desse período, realizaram-se as primeiras eleições municipais após a ditadura, o que propiciou a constituição de governos democrático-populares em vários municípios brasileiros que buscaram implantar e implementar ações de saúde mental fundamentadas nos princípios antimanicomiais e de desinstitucionalização. Foi também convocada a 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS) que, ao contrário das conferências ante-riores, teria expressiva participação popular, com repre-sentantes de vários setores da sociedade civil. Estima-se que participaram da 8ª CNS 4.000 pessoas, dentre as quais 1.000 delegados eleitos nas atividades preparató-rias, em nível municipal e estadual. A partir da 8ª CNS assumiu-se, no Brasil, uma concepção de saúde como dever do Estado e direito do cidadão e como sinônimo de qualidade de vida e afirmou-se uma visão do Estado como promotor de políticas de bem-estar social.

Assim como em outras áreas temáticas, foi convo-cada para o ano de 1987 a I Conferência Nacional de

Saúde Mental (CNSM), que deveria ser realizada nas mesmas bases e princípios políticos e organizativos da 8ª CNS. O papel do MTSM foi decisivo. Em decorrência de uma dissidência existente no âmbito do Ministério da Saúde, a I CNSM caminhava para se tornar um congres-so de natureza exclusivamente tecnocientífica, ficando de lado o processo de mobilização social e o debate nacio-nal sobre a questão da assistência psiquiátrica. Graças à participação de grande número de militantes do MTSM a Conferência pôde ser realizada enquanto um processo de debate e participação política e social (AMARANTE; OLIVEIRA, 2004). Dessa reunião, surgiu a proposta de realizar-se, em Bauru, naquele mesmo ano, o II Congres-so Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental.

No Congresso de Bauru, o MTSM foi objeto de uma transformação fundamental, deixando de ser um movimento predominantemente de técnicos para tor-nar-se um movimento social com o lema ‘Por uma so-ciedade sem manicômios’, o que expressava uma ruptu-ra tanto epistemológica quanto estratégica. O eixo dos debates abandonava os limites meramente assistenciais e a simples oposição entre serviços extra-hospitalares versus hospitalares/asilares, para vislumbrar a superação radical do modelo psiquiátrico tradicional, expresso tanto na estrutura institucional manicomial, quanto no pressuposto da exclusividade do saber médico sobre a loucura (AMARANTE, 1995).

Em Bauru, adotou-se a data de 18 de maio como comemoração do ‘Dia Nacional de Luta Antimanico-mial’. A partir daí são promovidas, nessa data, ativida-des científicas, culturais, políticas, etc., com o objeti-vo de chamar a sociedade a refletir sobre a questão da violência do modelo manicomial e a aderir à luta de transformação.

Em 1989, um ano após a inclusão da ementa da saúde na Constituição de 1988 – uma das únicas, se não a única, aprovada por proposta popular com mais de 150 mil assinaturas – ocorre um fato de importância para a política nacional de saúde mental e para o movimento pela RP. Em Santos (SP), existia uma clínica psiquiátrica privada onde eram frequentes as denúncias de violências contra os internos, com inúmeros casos de morte. O novo governo municipal de Santos tinha como Secretário de Saúde o sanitarista, militante do movimento da RS e um dos fundadores do CEBES, David Capistrano da Costa

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Filho. David foi um importante líder de Estado que aco-lheu as propostas de militantes dos movimentos pela RP que passaram a compor seu governo. Nesse contexto, a Prefeitura de Santos decidiu por uma intervenção na clí-nica Anchieta. Pela primeira vez na história das políticas públicas no Brasil uma intervenção não visava apenas investigar os motivos das irregularidades, mas superar o modelo assistencial que prevalecia na instituição e que era visto como causa das violências contra os internos (AMARANTE; OLIVEIRA, 2004; NICÁCIO, 1994).

Inaugurou-se, a partir da experiência de Santos, uma nova orientação política, desinstitucionalizante, em saúde mental, centrada na desconstrução do mode-lo manicomial. Foi montada uma sofisticada estrutura de serviços, dispositivos e estratégias que, baseadas na concepção de território, passariam a promover cuida-do, acolhimento e inclusão, contrapondo-se ao mo-delo vigente, que promovia exclusão e não evitava o abandono e a violência. Passou-se a preconizar serviços ‘substitutivos’ e concretizou-se a criação dos Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), protótipos do novo modelo assistencial.

O modelo santista privilegiava a relação com a co-munidade na lógica territorial, propunha novos equipa-mentos assistenciais e colocava em prática várias estratégias de intervenção cultural, visando transformar a relação da sociedade para com a loucura. Aí nasceram, entre outras iniciativas, a primeira estação de rádio e TV de usuários, a Rádio e TV TAM TAM, e a primeira cooperativa de tra-balho no contexto do modelo de atenção à saúde mental, a Cooperativa Paratodos. A experiência de Santos demons-trou a viabilidade de se organizar um modelo assistencial promotor de desinstitucionalização, que dispensava o con-curso do manicômio (NICÁCIO, 1994).

Em sintonia com a experiência santista, vários outros eventos foram ocorrendo e promovendo um avanço inexorável da RP. Um desses eventos foi a apre-sentação do Projeto de Lei 3.657/89, de autoria do Deputado Paulo Delgado, que procurava reorientar o modelo assistencial propondo a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outras modali-dades assistenciais. Já, em 1992, foi promulgada no Rio Grande do Sul a primeira lei estadual de RP, com ênfase na construção de dispositivos de substituição à atenção centrada no hospital psiquiátrico.

No mesmo ano de 1992, em dezembro, realizou-se a II Conferência Nacional de Saúde Mental em Bra-sília, com mais de 1.500 participantes, dentre usuários, familiares, técnicos e representantes de entidades da so-ciedade civil. Estima-se que, dos encontros preliminares até a realização da Conferência, cerca de 20.000 pessoas estiveram diretamente envolvidas no processo. Essa con-ferência marcava o movimento pela saúde mental como definitivamente inscrito na agenda de Estado no Brasil.

A expansão do movimento social pela saúde men-tal propiciou a realização em Salvador, em 1993, do I Encontro Nacional da Luta Antimanicomial, com cerca de 500 participantes, dos quais um quarto era composto de usuários e familiares. O Encontro focou o próprio Movimento enquanto movimento social, re-avaliando suas estratégias e princípios. Outros temas em foco foram a desinstitucionalização e a intervenção cultural (a cultura como alvo e como meio) no sentido de amplificar a possibilidade de transformação das prá-ticas sociais no lidar com o sofrimento psíquico, com a doença e com a diferença entre os sujeitos. O encontro de Salvador teve, entre outros desdobramentos, vários Encontros de Associações de Usuários e Familiares e a elaboração da ‘Carta dos Direitos dos Usuários’.

Na segunda metade da década de 1990, o movi-mento pela reforma em saúde mental foi fortalecido por uma série de peças legislativas, entre as quais se destaca a portaria no. 224 da Secretaria Nacional de Assistência à Saúde (SNAS) do Ministério da Saúde, de 29/1/1992, que estabelece diretrizes e normas para a organização de serviços de saúde mental (BRASIL, 2004). A portaria apresenta suas diretrizes como “baseadas nos princípios de universalidade, hierarquização, regionalização e in-tegralidade das ações”, revelando a preocupação do Mi-nistério em adequar-se, ao menos em termos de legis-lação, aos princípios do SUS. Implementam-se ainda, nesse período, políticas para a construção da rede de serviços substitutivos, com ênfase nos Centros de Aten-ção Psicossocial (Caps).

Em caráter nacional, essa trajetória resulta na pro-mulgação da Lei 10.216/01, conhecida como lei da Re-forma Psiquiátrica, polemizada pelo fato de ter sido su-primida de seu texto a proposta de progressiva extinção dos manicômios. Na continuidade, a política de saúde mental centrou-se, com base na portaria do Gabinete

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do Ministro/Ministério da Saúde (GM/MS) no. 336 de 19/2/2002, na disseminação dos Caps, hoje presentes em praticamente todo o território nacional e que vão sendo gradativamente incorporados ao atual modelo de atenção adotado no contexto do SUS.

Um dos problemas centrais da portaria 336 é ter definido os Caps como ambulatórios, contradizendo os objetivos pensados inicialmente para esse dispositivo, de atuar primordialmente como um órgão que toma para si a responsabilidade de organizar, promover, exe-cutar e apoiar ações de saúde mental em bases terri-toriais. Nesse sentido, Freire, Ugá e Amarante (2005) retomam a concepção de Dell´acqua e Mezzina (1991), que apontam como inspiradores da concepção brasileira de serviços substitutivos. Nessa perspectiva, os serviços substitutivos assumem como elementos fundantes as noções de ‘tomada de responsabilidade’ e de ‘território’. Visto por esses autores, ‘tomada de responsabilidade’ tem como aspecto central a disposição para apreender a existência em sofrimento como um todo e não apenas reportar-se à crise. Em seu caráter territorial, a ‘tomada de responsabilidade’ refere-se ao papel ativo na promo-ção da saúde mental em uma área territorial de referên-cia (FREIRE; UGÁ; AMARANTE, 2005). A definição do Caps como ambulatório, pela portaria 336/02, pare-ce uma flagrante contraposição a esses princípios.

A implementação das políticas de saúde men-tal, no sentido de fortalecer os serviços substitutivos ao modelo manicomial vem, dessa forma, avançando em alguns momentos, mas também tem apresentado períodos de estagnação e retrocesso. Os avanços e per-calços não têm, via de regra, redundado em obstáculos intransponíveis ao processo de reforma, mas há muito que fazer no sentido de aperfeiçoar esse processo.

Um pano de fundo para a orientação da reformu-lação do sistema de atenção em saúde mental é propor-cionado pela apropriação, no contexto da reforma, do conceito de desinstitucionalização e pela análise dos ca-minhos que vêm caracterizando as iniciativas para a efe-tivação da desinstitucionalização. O entendimento e a apropriação desse conceito são dificultados, não só por sua intrínseca complexidade, mas também pela dificul-dade e obstáculos colocados, na prática, à sua aplicação. Há necessidade de se refletir sobre como esse conceito vem sendo estruturado e entendido, para que se possa

dimensioná-lo de maneira que ele venha a conceder toda sua potencialidade para a consolidação da reforma da saúde mental e do sistema de saúde como um todo.

O conceito de desinstitucionalizaçãoO conceito de desinstitucionalização – que não deve ser confundido com a ideia mais simples de desospita-lização, como veremos adiante - tem servido como um fulcro para a RP no Brasil, que se inspira, entre outras, na reforma italiana, onde esse conceito também se colo-ca como central. Os pensadores italianos promoveram uma síntese conceitual que incorpora significados cons-truídos na trajetória histórica das ideias sobre instituição e institucionalização. Uma reflexão sobre esse conceito, na perspectiva de pensadores engajados no processo da RP, leva, inicialmente, a considerar o paradigma racio-nalista que, a partir de uma necessidade percebida de ordem social, norteia as diversas instituições de controle social, entre elas a psiquiatria (FOUCAULT, 2000).

O paradigma racionalista, no que concerne à relação problema-solução, configura uma prática, em saúde mental, que persegue como única solução para a doença mental o completo restabelecimento de comportamentos assumidos como norma. Entretanto, a prática psiquiátrica tradicional, que historicamente domina o campo da saúde mental, funda-se em apa-ratos diagnósticos e tratamentos medicamentosos e de segregação por internamento em hospitais psiquiátri-cos, que favorecem a cronificação. Dessa forma, como apontam Rotelli, Leonardis e Mauri (2001), essas prá-ticas acabam, a partir de seu insucesso, por desconfir-mar esse paradigma.

Rotelli (1991, p. 84) propõe, então, reformulação do modelo de assistência e cuidado em saúde mental, convidando a pensar as relações entre técnica e política e criticando a matriz de exclusão social que legitima a construção dos manicômios e que delega à psiquiatria o controle dos indivíduos que não se adaptam às re-gras da ideologia dominante. A ideia é superar a lógica manicomial, pensando novas formas de lidar com uma existência em sofrimento, com as suas determinações materiais e relações sociais e culturais, o que implica na desmontagem das intervenções e instituições postas a serviço da exclusão e da segregação daqueles que pertur-bam ou ameaçam a norma.

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Desinstitucionalizar, nesse sentido mais amplo, é desconstruir comportamentos, práticas e relações, pos-tos a serviço da disciplinarização dos corpos, da rotula-ção e da estigmatização dos que se encontram com um transtorno psíquico ou, dito de outra forma, daqueles que são movidos por ‘outras razões’. Desisntitucionali-zar é criar meios terapêuticos funcionais para o ser hu-mano e para o incentivo de relações autênticas e espon-tâneas, desmontando os meios ditos terapêuticos que servem ao propósito da naturalização das desigualdades e da banalização da violência (CASTEL, 1987).

Desinstitucionalização implica, portanto, ques-tionar nossas instituições, mas também nossas práticas, nossos papéis e nossos engessamentos sociais e não deve ser confundida com a ação, mais simples, de ‘Desos-pitalização’. Essa distinção é importante, prevenindo uma visão estreita que pode contribuir para que as novas modalidades de atendimento em saúde mental, no atual contexto político marcadamente neoliberal – caracterizado por tentativas estratégicas de despolitizar e desprestigiar as questões sociais em nível de Estado –, não se transformem em uma mera externalização da lógica manicomial, onde os indivíduos são privados de participar ativamente nas decisões que mais afetam suas vidas, inclusive na condução do seu tratamento (DELGADO et al., 1991, p. 22).

A lógica manicomial promove a exclusão e vê o paciente psiquiátrico sob as lentes dos mitos da impro-dutividade e da periculosidade; sustenta-se e legitima-se cientificamente por uma visão de ruptura completa e intransponível entre doença e sanidade mental. A lou-cura, nesse contexto, representa um paradigma extremo de marginalização social. Na sociedade ocidental con-temporânea, o sistema politicoeconômico admite ape-nas a inclusão do elemento considerado produtivo, não perigoso e que pratica os comportamentos que indicam a posse da razão. Para a loucura, essa sociedade propõe um conjunto de políticas e ideologias que expressam a necessidade de uma instituição de saúde mental repres-siva, representada pela abordagem manicomial.

À questão da marginalização pode se adicionar a visão da loucura contextualizada na problemática da di-visão de classes (SUÁREZ, 1985, p. 7). Nessa perspec-tiva, doença e loucura são contingências às quais está exposto todo ser humano, por sua dupla condição de

ser vivo e sujeito do desejo, da fala e da angústia, ex-posto às contradições que lhe invadem, diariamente, o ser. Como, quando, de que forma e sob quais condições sociais perderá sua saúde ou sua razão, e a assistência que receberá, dependerá decisivamente de sua condição de classe. Quanto mais baixa sua inserção no sistema de classes socioeconômicas, mais vulnerável estará o sujeito ao diagnóstico estigmatizante e às consequentes sanções institucionalizadas da abordagem manicomial.

Nessa visão de adoecimento influenciável pela divi-são de classes, pode-se afirmar que a sociedade não está organizada à medida do ser humano, mas feita por e para alguns, aqueles que controlam as forças de produção. A pessoa que vai parar no manicômio público aproxima-se do limite da indigência e não é tratada pelo que real-mente é, mas pela moléstia social da qual é ao mesmo tempo depositária e causa (KAZI, 2009). Dentro desse esquema, a finalidade do manicômio não é a cura, nem a terapêutica, mas a segregação daqueles que rompem com o jogo social, através da ideologia e aos quais se aplica repressão, punição e castigo (MOFFAT, 1982).

Assim, a lógica institucional do manicômio é uma lógica que o extrapola, é um aparato ideológico com con-sequentes ações políticas e sociais, com uma orientação voltada para a estigmatização e a exclusão de portadores de sofrimento psíquico, sob a influência das desigualdades socioeconômicas. É uma questão para além da ciência, para além da terapêutica, para além da tecnologia social. Para o público em geral, entretanto, a questão se apresenta de forma bem mais simplificada, a partir do paradigma racionalista mediado por corporativismos legitimados por um cientificismo submisso ao sistema politicoeconômico, filtrado por veículos de comunicação social, o que fomen-ta confusão (TUNDIS, COSTA, 1994).

Há, entretanto, confusões consideradas benéficas, como aponta Basaglia que, ao analisar o processo de de-sinstitucionalização do qual foi protagonista, afirma que o mais importante no trabalho realizado por seu grupo foi a confusão criada nos cidadãos de Trieste. A crise no interior do manicômio de Gorizia propiciou uma crise fora do manicômio, a população tomou consciência do desmonte da instituição mantenedora da ordem frente à desordem mental. A partir daí entendeu-se que o mani-cômio mudou e o problema da loucura passou a ser um problema de todos (BASAGLIA, 1985, p. 17-19; 42)

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A ideia de desinstitucionalização evidencia a im-portância de reformar não somente as relações dentro do hospital psiquiátrico, mas, sobretudo, de subverter as relações do manicômio com seu exterior, da institui-ção com a instância econômica, política e ideológica. O primeiro a se mudar é a relação da sociedade com o ‘doente’ mental, combatendo as ideologias discrimi-natórias no âmbito da família, do bairro e do lugar de trabalho, libertando o sofredor psíquico de sua condi-ção de marginalização e de exclusão social (SUÁREZ, 1985, p. 11-12).

A homologação da Lei 180 na Itália, uma lei par-ticular no panorama mundial das legislações psiqui-átricas ao propor a extinção dos manicômios, só foi possível porque o movimento surgido no interior do manicômio encarou-se como um verdadeiro processo de desinstitucionalização, coligando-se a importantes movimentos sociais, sindicais, políticos e culturais, constituindo-se em um Movimento de Psiquiatria De-mocrática. Nessa perspectiva, sob a égide de um apa-rato legal, os técnicos podem se constituir em agentes de inovação e de transformação, estendendo sua ação à participação em movimentos sociais, culturais e políti-cos. A continuidade de participação dos atores sociais no movimento de reforma e de desinstitucionalização depende, assim, de processos sociais complexos e ge-rais (ROTELLI, 1991, p. 87).

Essa fusão de movimentos leva às palavras de or-dem metafóricas, como as engendradas nos serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico criados na Itália, que usaram como slogan ‘manter as portas abertas’. Isso se refere não somente à porta física, porque

a porta aberta é também um não inundar-se de instrumentos teóricos, científicos e técnicos para invalidar o outro, para excluir, para negar o direito, para negar a autenticidade da experi-ência do outro. (ROTELLI, 1991, p. 91).

A porta aberta é também uma metáfora de um estilo de trabalho, porque não se consegue manter a porta aberta de um Centro de Saúde Mental se não existe uma porta aberta na cabeça da equipe, se não há certo nível de disponibilidade. Essa mentalidade torna imprescindível certo nível de questionamento:

do serviço em relação a si, dos familiares em relação ao serviço, desse em relação aos familiares, um contínuo e recíproco interrogar-se.

Urge incendiar o manicômio que existe dentro de cada operador, a lógica de exclusão que a prática pode perpetuar sem perceber. Caso con-trário, corre-se o grave risco de destruir o mani-cômio, superando-o como espaço para a massa, de flagrante aniquilamento da pessoa, porém criando centenas de pequenos manicômios iti-nerantes onde cada operador pode funcionar como um cadeado, como uma camisa de força, como um poderoso psicofármaco. Somente ex-plodindo o manicômio introjetado, a demanda internalizada da ‘solução manicomial’, poder-se-á chegar a um trabalho efetivo de transfor-mação da abordagem cotidiana do sofrimento psíquico. (DELGADO et al., 1991, p. 17).

Jaques Delgado compara o antigo modelo, no qual se buscava diagnosticar, classificar, medicar e curar o doente mental, objeto de atenção médica, com a nova proposta, na qual ao profissional de saúde mental é suge-rido se perceber diante de uma existência em sofrimen-to, que pede ajuda. Esse profissional deve “responder a esta demanda encarando a pessoa na sua plenitude, sem perder de vista a sua dimensão de cidadania” (DELGA-DO et al., 1991, p. 13).

A verdadeira desinstitucionalização resulta, assim, num cenário onde o portador de transtorno mental pode reconstruir sua identidade e readquirir sua cida-dania, aniquiladas pela institucionalização manicomial. Os corpos institucionalizados podem experimentar, ou-tra vez, a sensação de liberdade onde antes reinava um extremo controle e disciplina. É possível experimentar o desejo, passível de satisfação com escolhas que para qualquer cidadão são básicas e que chegam a confun-dir-se com necessidades (de alimentação, de higiene, de sono, de consumo). Desinstitucionalizar é promover um retorno à vida que havia sido impedida, sequestra-da, violentada. Tal retorno à vida permite, aos poucos, reapropriar-se da noção de tempo, sobretudo do tempo subjetivo, o seu próprio tempo, antes roubado pelo re-lógio do hospital.

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Processos de desinstitucionalização vêm acon-tecendo no Brasil e reconhece-se a dificuldade de se utilizar essa ou aquela experiência como modelo, da-das as especificidades culturais, políticas e econômicas de cada país e de cada região. A produção da loucura, o manicômio a serviço do sistema, vê-se agravada no cenário brasileiro, onde miséria, fome, desnutrição, mortalidade infantil, criminalidade e empobrecimento da população, por um lado, e vulnerabilidade política e econômica, brutalização, condições aéticas, desinfor-mação, individualismo e produtivismo, por outro, aju-dam a perpetuar problemas estruturais educativos, cul-turais, sociais, políticos e econômicos, já naturalizados em estatísticas de desigualdade social. A importância de transformar práticas de saúde a serviço da instituição manicomial, ícone de segregação e marginalização, em práticas de saúde a serviço do ser humano é tão urgente como a de transformar um sistema a serviço de relações perversas de produção, fabricante da loucura, em um sistema que restitua os direitos do homem e que pro-mova justiça e bem-estar.

Considerações finais

Pode-se considerar a existência histórica de vários mo-vimentos pela reforma no sistema de atenção em saú-de mental no Brasil, ou que há um grande movimento composto de várias segmentações. Assim, temos o Mo-vimento da Reforma Psiquiátrica, o de Trabalhadores de Saúde Mental, o da Luta Antimanicomial e ainda um grande movimento aglutinador, o da Reforma Sa-nitária. Esses movimentos da saúde se ligam de manei-ras variadas e em tempos diversos a outros movimentos

sociais, pois as lutas na área da saúde se coadunam fre-quentemente com as lutas em outros setores sociais.

A agenda desses movimentos tem se pautado, con-temporaneamente, por temas como inclusão, solidarie-dade, cidadania e conscientização. Esses temas têm sido representados, no campo da saúde mental, pelo esforço para a implantação de redes de serviços substitutivos ao modelo de atenção tradicional, pela construção de uma formação profissional mais humanizada, pelo trabalho interdisciplinar e pelo foco em paradigmas desconstru-tores dos mitos e crenças propostos por uma epistemo-logia de base essencialmente nosológica.

Muitas das reivindicações do MTSM e, posterior-mente, do Movimento da Luta Antimanicomial, estão hoje incorporadas às políticas públicas de saúde. Fo-ram, portanto, institucionalizadas e burocratizadas, o que constitui ganhos inquestionáveis, mas, por outro lado, traz o perigo da perda das origens de luta e do anseio de transformações.

A desinstitucionalização, nesse contexto, é um conceito norteador, compreendido como proposta de mudança cultural, de transformação de uma mentali-dade arraigada de exclusão do diferente, onde o louco e outras pessoas em estado de sofrimento psíquico se incluem entre os mais diferentes. Nesse sentido, há que pensar as formas em que os movimentos progressistas podem apropriar-se desse conceito e propor iniciativas visando sua materialização. Algumas destas iniciativas já estão em andamento, mas ainda sem a consistência necessária para que as propostas de desinsitucionali-zação assumam o papel histórico que lhe é destinado. Quanto mais avance a concretização deste potencial histórico, maiores serão nossos passos para a consolida-ção do SUS.

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recebido para publicação em outubro/2008 Versão definitiva em Março/2010 Suporte financeiro: Não houve conflito de interesse: inexistente

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ARTIgO ORIgInAL • origiNal articlE

Saúde atrás das grades: o Plano Nacional de Saúde no sistema penitenciário nos estados de Minas Gerais e Piauí

Health behind bars: the National Health Plan in the prison system in the states of Minas gerais and Piauí

Vinícius alexandre da Silva oliveira1, Simone de Jesus guimarães2

RESUMO o presente artigo problematiza a efetivação do Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário. a reflexão teórica articula o universo prisional com autores das Ciências Sociais e apresenta aspectos empíricos dos Estados do Piauí e de Minas gerais. relaciona, ainda, a saúde no Sistema Penitenciário e no Sistema Único de Saúde (SuS). Concluiu-se que o acesso equitativo aos serviços de saúde – incluindo-se aí o acesso das populações privadas de liberdade – configura-se na manifestação real da justiça distributiva e da solidariedade, cabendo, também, à comunidade acadêmica acompanhar a qualidade desses processos.

PALAVRAS-CHAVE: Saúde; Sistema Penitenciário; Populações Privadas de liberdade.

ABSTRACT this article discusses the effectiveness of the National Health Plan in the Prison System. the theoretical discussion articulates the prison world with the authors of Social Sciences, presenting empirical aspects of the states of Piaui and Minas gerais. also, it lists the health system in the penitentiary and in the unified Health System (SuS). it was concluded that equal access to health services, including here, the access of populations deprived of liberty, is configured in the actual manifestation of distributive justice and solidarity. the academic community also must to monitor the quality of these processes.

KEywORDS: Health; Prison System; Populations deprived of liberty.

1 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da universidade Federal do Piauí (uFPI) – teresina (PI), Brasil. [email protected]

2 Professora do departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da uFPI – teresina (PI), Brasil. [email protected]

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OLIVEIRA, V.A.s.; guImARãEs, s.J. • Saúde atrás das grades: o Plano Nacional de Saúde no sistema penitenciário nos estados de Minas gerais e Piauí

Introdução

A população prisional nacional, segundo análise de (BRASIL, 2010), no período de 1995 a 2005, teve um crescimento que oscilou entre 10% e 12% ao ano. Os dados demonstram que, apesar de uma ligeira redução da taxa anual de encarceramento, ainda nos encontra-mos em quarto lugar dentre os países que mais encar-ceram, atrás dos Estados Unidos, da Rússia e da China. Para tornar ainda mais complexo esse quadro, desta-camos que o Brasil possui um considerável déficit de aproximadamente 200.000 vagas.

Quando os dados apresentados são associados às precárias condições do cárcere, surgem, então, preocu-pações outras que deveriam alertar para o risco de um grave problema de saúde pública, no interior dos milha-res de estabelecimentos penais do País. Risco confirma-do pela existência de altas taxas de prevalência de doen-ças transmissíveis, destacando-se, entre essas, as sexuais e as respiratórias. Essa preocupação se estende também à elevada incidência de doenças crônicas no interior do cárcere, que tem confirmado a modificação no perfil de saúde da população ocorrida nos últimos anos – onde a maior ocorrência de doenças infectocontagiosas dá lu-gar a maior número de doenças cronicodegenerativas. Essas últimas, no interior do cárcere, sendo ocasiona-das, principalmente, pelas péssimas condições materiais e higiênicas, de nutrição, e ainda, pela pouca disponibi-lidade de serviços de saúde ofertada aos internos.

Um pequeno retrato dessa situação mostra que, no Rio de Janeiro, dados oficiais notificados de tuberculose apontam para 5% de casos entre os presos. Porém, se-gundo informações da Rede Brasileira de Tuberculose, dados obtidos através de pesquisa recente do mesmo instituto, revelam que 34,9% dos presos declararam es-tar com tosse crônica por um período maior que três semanas, sintoma, esse, característico da doença e que indica a necessidade de investigação1.

De fato, não existem estudos relevantes a respeito dos números que possam retratar o déficit da atenção à saúde no sistema penal do País; o que há são levanta-mentos administrativos, que pouco contribuem para a organização racional e efetiva dos serviços intramuros.

Por esses motivos aflora a necessidade de compre-ender, por intermédio de estudos e pesquisas, aspectos das eventuais mudanças organizacionais, ocorridas no sistema penal brasileiro no que diz respeito ao direito à saúde das pessoas encarceradas; tendo como base as diretrizes da reestruturação da rede pública de saúde no ambiente carcerário, via Portaria Interministerial nº 1777 (BRASIL, 2003).

Dado o exposto, torna-se imperioso promover a discussão do processo de implementação do Plano Na-cional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP). Este artigo – originado da fase preliminar de uma pesquisa que vem se desenvolvendo desde o ano de 2010, através do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí – parte da análise compa-rativa entre duas realidades distintas: a de um Estado ha-bilitado a essa estratégia política, no caso Minas Gerais, que por parte do Ministério da Saúde possui um reco-nhecido desempenho no que diz respeito à capacidade de habilitação da totalidade de equipes de saúde do sistema penal estadual; a de outro Estado, o Piauí, que ainda está em processo de habilitação ao referido plano.

Sistema Penitenciário: um pouco da realidade do Piauí e de Minas GeraisNos últimos anos, o termo ‘crise no sistema peniten-ciário’ tornou-se uma expressão disseminada e larga-mente utilizada no vocabulário, tanto dos estudiosos, quanto da população em geral. De fato, a definição de uma forma racional e digna de punir e aplicar penas aos indivíduos que delinquem sempre foi um desafio à humanidade. Contudo, especialmente, nos dias atuais, os operadores dos sistemas prisionais de todo o mundo têm se deparado com questões, objetivas e subjetivas, que variam desde a falta de recursos para investimento na estrutura física, aquisição de materiais e insumos e contratação de pessoal, até os aspectos dificultadores, associados ao estigma e à aversão social, inerentes à con-dição de suas clientelas: os indivíduos condenados.

Como no resto do mundo, a realidade do sistema penal brasileiro é marcada por um acumulado de carên-cias, de natureza estrutural e processual, que terminam por afetar diretamente os resultados produzidos.

1 dados do site da rede tB, disponível em http://redetb.org/noticias/108-noticias-ago2010/1131-pesquisas-revelam- principais-problemas-de-saude-nas-prisoes, acesso em 28/02/2011.

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Observa-se claramente que o ócio, a falta de pro-fissionais – em qualidade e quantidade – e a arquitetura precária dos presídios, além de alimentar um poderoso estigma, funcionam como importantes potencializado-res das mais diversas iniquidades, espetacularmente ex-ploradas por determinados segmentos midiáticos, que insistem em se multiplicar, tornando-se fóruns equivo-cados para o debate dessa temática.

Trata-se, aproximadamente, de meio milhão de indivíduos presos no País, mantidos nas penitenciárias a um custo mensal médio de três e meio salários mínimos, os quais, da mesma forma que o restante da população nacional, se tiverem o tratamento de seus problemas de saúde postergados ou não tratados, podem ter suas patologias evoluídas para necessidades de tratamentos mais complexos e, consequentemente, mais caros, ori-ginando gastos públicos ainda mais elevados, e, ainda, possíveis e irreparáveis danos à saúde.

Sobre a carência de profissionais, trata-se de ape-nas 64.697 agentes penitenciários destinados aos cuida-dos de todo o contingente prisional nacional; ou seja, é como se cada agente tivesse que assumir a responsabili-dade pelo acompanhamento de oito internos (BRASIL, 2010), número que não se mostra razoável, em virtude das escalas de trabalho, inerentes a esse profissional, que desempenha suas ações em turnos de 12 h de trabalho, por 36 h de descanso, fato que faz despencar a pro-porção nº de agentes versus nº de presos apresentada anteriormente, para uma terça parte. Então, em média, cada agente de segurança penitenciária seria responsável pelo acompanhamento de 24 presos. Assinale-se que os agentes penitenciários acumulam também funções ad-ministrativas, e têm o direito a gozar férias e licenças, como qualquer outra categoria profissional, compro-metendo, ainda mais, a proporção apresentada.

Ademais, em alguns Estados, o cuidado direto do preso é feito por indivíduos que sequer são concursados ou passaram por cursos de formação para tal, a exem-plo do que ocorre em Rondônia e Alagoas, segundo notícias da imprensa.2 Os prejuízos gerados por essas

práticas são imensuráveis. Afinal, como cobrar postura profissional, ética e responsável de um indivíduo que ganha um salário mínimo, diante do assédio de um pre-so comandante do crime organizado? Ou então, como esperar destes sujeitos habilidades necessárias ao correto acompanhamento de projetos com ênfase na humani-zação e na reintegração social? A ausência de servidores sem o devido conhecimento da realidade carcerária e sem compromisso com a melhoria desse cenário gera atitudes de abandono e negligência, evidenciadas na permanente reprodução de atos de dominação, explo-ração e violência sexual dentro das prisões.

Para os presos recém-chegados, o afastamento dos entes familiares, a privação da liberdade e a subjugação a rígidas regras de convivência, insere esses indivíduos em um perigoso processo, chamado por alguns estudio-sos de prisionização.3 Esse representa, empiricamente, o conjunto das adaptações cognitivas e comportamentais ocorridas no processo de vivência no interior do cárcere; constitui-se de um acumulado de mudanças que atingem a moral, a ética, o comportamento e a linguagem de todos aqueles que fazem parte de um dado sistema prisional, atingindo, no entanto, diferentemente, cada indivíduo, a depender de especificidades como, por exemplo, tempo de permanência na prisão, características da unidade pri-sional e dos grupos de indivíduos que as compõem.

Ressalte-se que são, ainda, objetos desse processo de adaptação, chamado de prisionização, a gerência e todos os indivíduos que prestam serviços em unidades penais, com ênfase para os agentes penitenciários. Esse destaque se torna importante, pois os reflexos desse processo pode se materializar por meio do estresse e de outras condições psicológicas, afetando, assim, di-retamente a qualidade da relação com os presos, exata-mente por causar prejuízos emocionais nos indivíduos responsáveis pelo seu acompanhamento.

Portanto, estão sujeitos aos danos do processo de prisionização e a toda a carga psicológica que esse acar-reta, todos os indivíduos que fazem parte da instituição e não apenas os presos.

2 Informações obtidas por meio do site da assembleia legislativa do Estado de rondônia, matéria intitulada “alE aprova projeto que mantém serviço dos agentes penitenciá-rios ‘emergenciais’. disponível em: <http://www.ale.ro.gov.br/noticias/ale-aprova-projeto-que-mantem-servico-dos-agentes-penitenciarios-201cemergenciais201d>. acesso em: 19 abr. 2001. E disponível em: <http://policiapenaldealagoas.blogspot.com/2011/02/agente-prestador-de-servico-e-preso-por.html>. Blog fonte de informação sobre agentes penitenciários em todo o País mostra matéria que afirma: “[...] um dos grandes problemas do sistema prisional de alagoas, prestadores de serviço contratados para exercer função de agente penitenciário, sem nenhum critério, a não ser o da ‘amizade’ e ‘politicagem’ [...]”.3 Prisionização é um processo de aculturação. É a “adoção, em maior ou menor grau, dos usos, costumes, hábitos e cultura geral da prisão” (doNald; ClEMMEr apud tHoMP-SoN, 1980, p. 23).

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A saúde mental, nas últimas décadas, tem se con-firmado como importante tema a ser discutido com in-ternos, familiares e profissionais que atuam nas prisões – gerentes, agentes penitenciários, trabalhadores admi-nistrativos e da saúde nas prisões, atitude, infelizmente, negligenciada pelas autoridades públicas e que tem gera-do prejuízos das mais diversas ordens, facilmente com-provados, através da divulgação constante do elevado número de suicídios nas prisões, no Brasil e no mundo.

Feito o destaque às mudanças psicológicas e rela-cionais que podem ocorrer no interior das prisões, tor-na-se necessário relacioná-las com outras questões ca-racterísticas dos espaços físicos do cárcere, geralmente, insalubres, super-habitados e que tendem a repercutir negativamente na qualidade da vivência nas prisões.

De acordo com Goffman (1961, p. 196):

Quase sempre, muitas instituições totais pa-recem funcionar apenas como depósitos de internados, mas, usualmente se apresentam ao público como organizações racionais, conscientemente planejadas como máquinas eficientes para atingir determinadas finali-dades socialmente confessadas e aprovadas.

A Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984 – Lei de Exe-cuções Penais (BRASIL, 1984) – dita, em seu artigo 88, as condições mínimas para encarceramento do conde-nado. No entanto, observa-se uma realidade bastante distante da idealizada pelo legislador, e mais próxima de uma instituição total no dizer de Goffman (1961).

As condições de vida, psicológicas e materiais dos presos nos ambientes prisionais são precárias, o que afeta, principalmente, a saúde dessas pessoas. Leis e normas têm sido criadas para dar melhores condi-ções de vida aos apenados, mas, muito ainda precisa ser feito. Entre os dispositivos existentes ressalta-se a Resolução n. 14, de 11 de novembro de 1994, do Ministério da Justiça, que dispõe sobre as Regras Mínimas do Preso no Brasil. Destacando-se alguns artigos dessa Resolução, tem-se a dizer que o Artigo 1º afirma que essas normas obedecem a princípios constantes da Declaração Universal dos Direitos do

Homem e daqueles inseridos nos Tratados, Conven-ções e regras internacionais de que o Brasil é signatá-rio, devendo ser aplicadas sem distinção de natureza racial, social, religiosa, sexual, política, idiomática ou de qualquer outra ordem.

Conforme dito anteriormente, entre a intenção le-gal e a realidade cotidiana dos presos há grande distân-cia. Trata-se de um modo de vida em que predomina a rotina da falta. Podem ser citados, como exemplo, itens de higiene, coletiva e individual, que privam os indiví-duos desde escovas de cabelo, sabonetes, sabões e xam-pus a escovas e cremes dentais, além de papel higiênico e toalhas. Tal situação explica o porquê, por exemplo, de tantas demandas por cuidados odontológicos e por medicamentos para problemas dermatológicos.

No que respeita o direito à saúde, a LEP, no seu ar-tigo 14, trata da assistência à saúde do preso e do inter-nado, dentro de uma perspectiva preventiva e curativa, compreendendo desde o atendimento médico e farma-cêutico ao odontológico. No § 3º desse artigo, assegura o acompanhamento médico à mulher, principalmente no pré-natal e no pós-parto, extensivo ao recém-nascido (incluído pela Lei n. 11.942, de 2009).

No entanto, a realidade mostra que, em muitos ca-sos, a referência a um cuidado médico, fora dos limites da unidade penal, dá-se por relações de camaradagem entre os profissionais de saúde. É o caso, por exemplo, de certas situações vivenciadas nas unidades penais do Estado do Piauí que, por não ter ainda aderido ao Pla-no Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, resolve os problemas de consultas especializadas e cirurgias de emergência ou eletivas, na base da relação interinstitu-cional informal. Desse modo, se, de um lado, é dado cumprimento às demandas mais urgentes, na base des-sas relações informais, de outro ficam pendentes defi-nições de pactuações formais interinstitucionais, para referência e contrarreferência4 dos detentos que necessi-tam de cuidados de saúde via adesão ao Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário.

Lembrando o Decreto Federal 678/92, que pro-mulga a Convenção Americana sobre Direitos Huma-nos (Pacto de São José da Costa Rica), em seu artigo 5°, ao tratar do direito à integridade da pessoa humana:

4 Sistema estruturado e pactuado de encaminhamento (e retorno) de pacientes aos diversos níveis de atenção.

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Toda pessoa tem direito a que se respeite sua inte-gridade física, psíquica e moral; e que ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos, ou degradantes.

Mesmo tolhida a liberdade, ao estar confinada no sistema prisional, a pessoa presa tem os seus direitos confirmados por essa convenção e por diversos tratados nacionais e internacionais.

Convém enfatizar que, caso continuem as práti-cas de desrespeito aos direitos humanos dos presos, as penitenciárias serão, cada vez mais, ambientes que não irão contribuir para mudar a realidade das pessoas que cometeram crimes ou atos ilícitos; configurando-se, sim, como cenários de reprodução da violência, intra e extramuro; como locus de reincidência criminal; como espaços lotados de um número, cada vez maior, de pre-sos dentre outras situações.

De fato, uma rápida análise empírica acerca das ações de combate à violência e das medidas punitivas destinadas aos indivíduos que delinquem possibilita visualizar que a redução de indivíduos condenados, vivendo em prisões, não vem ocorrendo ao redor do mundo. O Conselho Na-cional de Justiça (CNJ, 2009), resolveu conhecer a fundo a questão penitenciária no Brasil, e, após a realização de mutirões carcerários em todos os Estados, esse Conselho pautou as seguintes necessidades da área: a) acompanha-mento da execução penal e de maior rigor na fiscalização dos estabelecimentos penais; b) abertura de novas vagas no sistema carcerário; c) implantação de sistema de gestão penal eletrônica; d) integração das ações inter e intrains-titucionais; e) fortalecimento da assistência jurídica aos internos e egressos; f) aperfeiçoamento da legislação; g) prosseguimento dos seminários promovidos pelo CNJ; h) implementação de projetos de capacitação profissional e de reinserção social de interno e egresso.

Mais uma vez enfatizamos que o indivíduo encar-cerado pode ser afetado de diferentes formas dentro do sistema penal, seja pela qualidade das ações efetivadas dentro do espaço penal, pelo nível da relação com os trabalhadores do sistema penitenciário, seja pela es-trutura física e material das unidades penais. Enfim, a qualidade das políticas públicas direcionadas aos indi-víduos encarcerados é determinante para o sucesso das práticas executadas intramuros.

Destacamos o direito criminal como importante elemento desse mecanismo de controle e parâmetro para a elaboração de políticas públicas de segurança; entretanto, quase sempre essas políticas são elaboradas com base em princípios repressivos, observando o rigor penal, em detrimento da ressocialização dos detentos. Corre-se o risco de, eventualmente, verificar a própria Lei, tornando ineficiente a garantia de princípios e di-reitos presentes na Constituição Federal de 1988.

Por isso, deve-se entender que a questão peniten-ciária deve ser discutida para além do discurso policial, jurídico ou político, que a coloca nos marcos da sim-ples sanção, e avançar no sentido da garantia dos direi-tos humanos e da ressocialização dos presos. Por outro lado, é importante ressaltar que o Estado tem falhado, ao longo da sua história, na missão de garantir a igual-dade de direitos à totalidade dos cidadãos, penalizando, especialmente, as minorias e os setores populares mais empobrecidos. No caso dos direitos relacionados às pessoas privadas de liberdade, como vem se mostrando, essa situação é grave. Assim, se desejamos que o País se lance para o mundo como nação desenvolvida, pleite-ando reconhecimento e assento em importantes fóruns de discussão internacional, importa reconhecer a neces-sidade dos agentes políticos governamentais avançarem rumo às políticas públicas mais eficazes e amplas, que beneficiem os direitos humanos e sociais da população em geral e daqueles que vivem em unidades penais.

Nesse sentido, Sá (1996, p. 115) afirma que

a intenção de transformar ou modificar o in-frator, excluindo-o do livre convívio e o confi-nando em estabelecimentos penais, como conde-nado ou internado, está manifesta em diversos momentos da legislação [...],

e apresenta os resultados esperados desse confi-namento, através dos termos: ‘presumida adaptação social’, ‘tratamento penal’, ‘harmônica integração so-cial do condenado e do internado’, ‘incorporação do autor à comunidade’, ‘convivência em sociedade’, entre outros. Não obstante, entende-se que todo o processo de discussão acerca da ‘recuperação’ deve se dar à luz dos direitos humanos, cientes do fato de que, mesmo que a pena restritiva de liberdade importe em uma pena

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restritiva de direitos, isso não implica, necessariamente, a eliminação total desses.

Para Michel Foucault (1987), os indivíduos presos – ‘sequestrados’ – não possuem o tempo de suas vidas, tampouco possuem seus corpos; uma vez preso, o indi-víduo tem seu corpo ‘confiscado’ pela sociedade. Con-tribuem para essa conjuntura, segundo o autor, escolas e quartéis ao moldar corpos de acordo com a função social que o sujeito ocupará no sistema de produção; enquanto hospitais e prisões, nessa mesma visão, funcionam como locais de imposição de disciplina ao corpo.

Entretanto, será que lhes negando adequada as-sistência – incluindo a saúde – não estaríamos, como aponta Foucault (1987), buscando mostrar como o direito e a prática de punir descarregam no corpo dos condenados a sua fúria e vingança social?

A superlotação nos presídios do Brasil é resultado de um déficit da ordem de 194.650 vagas (BRASIL, 2010b). Dados da Folha de São Paulo, no ano de 2008, confirmam que, a cada dia, entram duzentos presos a mais do que saem nas prisões brasileiras. Esse jornal aponta, ainda, que a realidade do Brasil não é exceção.

No mundo todo, incluindo os países desenvol-vidos, a criminalidade dá sinais de recrudes-cimento, segundo estudo do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente. (FO-LHA DE SÃO PAULO, 2008).

A matéria finaliza dizendo que, entre 2002 e 2005, o número de presos cresceu 52% na Espanha, 66% na Irlanda e 102% na Holanda.

Nos Estados escolhidos como cenários da pes-quisa que vem se desenvolvendo – Piauí e Minas Ge-rais – a realidade não é diferente. No caso do Piauí, o sistema penal estadual possui uma população prisional composta por 2.473 homens e 118 mulheres, dispostos em 2.105 vagas. Os dados apresentados mostram que a

população carcerária no Piauí cresceu 44,3% nos últi-mos seis anos, saltando de 1.336 presos em 2003 para 2.591 no ano de 2009. Mostram, ainda, que a Casa de Custódia de Teresina5, construída para receber pouco mais de trezentos detentos, naquele ano, já possuía mais de seiscentos internos recolhidos. Segundo o mesmo le-vantamento, o índice de presos provisórios no Estado equivale a quase 73% do total (BRASIL, 2009).

Com relação ao perfil dos internos penitenciários do Piauí, o levantamento do DEPEN (2009) mostra que eles são, em sua maioria, jovens entre 18 e 34 anos (60,4%), e homens (95%). Identifica que mais da metade é da cor parda; e, sobre a formação educacional, mais de 80% não concluíram o Ensino Fundamental, e somente 80 indivíduos concluíram o Ensino Médio. Havia apenas quatro presos no Piauí com ensino superior completo e nenhum com Pós-Graduação, naquele ano.

Trazendo o foco para a saúde no sistema penal do Piauí, pode-se apresentar um exemplo da média de consultas médicas realizadas no Hospital Penitenciário Dr. Valter Alencar6 – centro de atendimento não cre-denciado ao Sistema Único de Saúde (SUS), e que fun-ciona como referência para as demais unidades penais. Localizado na Colônia Agrícola Major César Oliveira, no município de Altos, vizinho a Teresina, capital do Estado, as consultas ali realizadas, oscilam em torno do atendimento de 22 pacientes por médico, por aproxi-madas 3 h de trabalho por turno, denotando consultas com menos de 10 min de duração. Esses atendimentos compreendem casos que variam desde simples relatos de dor de cabeça e gripe, problemas dermatológicos e necessidades de agendamentos cirúrgicos, até o acom-panhamento e tratamento de indivíduos portadores de vírus da imunodeficiência humana (HIV).

Em todo o Estado do Piauí, o atendimento médico não é diário e a realidade dos presídios mais distantes da capital reflete uma carência ainda maior de profissionais de saúde, bem como a falta de definição de uma rede de aten-ção à saúde7 que garanta acesso à rede pública do SUS.

5 unidade penal provisória do governo do Estado do Piauí, que abriga os internos com maior potencial de periculosidade do sistema penitenciário local, incluindo, entre esses, presos condenados.6 as informações referentes às consultas médicas realizadas neste hospital foram obtidas em contato direto do pesquisador com os registros internos da instituição, não havendo ainda publicação desses dados.7 trata-se, segundo Mendes (2009), da organização horizontal de serviços de saúde, com o centro de comunicação, na atenção primária à saúde, que permite prestar uma assistência contínua a determinada população – no tempo certo, no lugar certo, com o custo certo e com a qualidade certa – e que se responsabiliza pelos resultados sani-tários e econômicos relativos a essa população.

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Em Minas Gerais, segundo o Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (InfoPen), do Ministério da Justiça, no Relatório de Dados Consolidados referente ao período de 2003 e 2006, a população encarcerada cres-ceu em 50,4%, entre presos condenados e provisórios, elevando-se de 23.156, em 2003, para 34.833 em 2006. Nesse intervalo de tempo, a Secretaria de Defesa Social daquele Estado informou um déficit de 12,4% de vagas; porém, se fossem levados em consideração os presos mi-neiros custodiados em distritos policiais ou em outros es-tabelecimentos prisionais provisórios da Polícia Civil do Estado, essa proporção cresceria para 45%. Atualmente, a população prisional de Minas Gerais é de 43.496 ho-mens e 2.951 mulheres, compondo um total de 46.447 indivíduos presos no Estado.

Dentro de todos os 18 Estados habilitados no PNSSP, Minas Gerais tem se destacado na implementa-ção da Política de Saúde Penitenciária.

Além de cadastrar mais de 117% das equipes de saúde junto ao PNSSP, ainda se observa, no sistema pe-nitenciário mineiro, uma série de ações de saúde bem-sucedidas e boas práticas administrativas, a exemplo da criação de uma ala especial para gays e travestis, priva-dos de liberdade em presídio recém-inaugurado. Nesse espaço, criado há mais de um ano, para 37 pessoas, não mais existem ameaças à decisão pessoal de feminização do corpo, nem situação de risco, outrora verificado, quando havia o convívio com indivíduos intolerantes à livre manifestação da orientação sexual.

Outras ações desenvolvidas em Minas Gerais, nes-sa área, destinam-se à redução da incidência do tabagis-mo, nos presídios, entre os adolescentes, que cumprem medidas socioeducativas no Estado, e entre as gestantes; essa última ação se dá através do Programa Redução de Danos para Gestantes, que tem como objetivo minimi-zar os riscos para a mãe e para o bebê.

Informações preliminares obtidas junto a técnicos da Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais (SES-MG) dão conta de que a responsabilidade da gestão estadual do PNSSP ficou a cargo da Secretaria Estadual da Saúde, e a gerência das equipes de saúde a cargo da Secretaria Estadu-al de Defesa Social (SEDS-MG), que é a responsável pela administração do sistema penal estadual.

À SES-MG compete a execução dos recursos fi-nanceiros, a capacitação dos profissionais de saúde e o

acompanhamento dos municípios, em especial, no que diz respeito à organização da referência e contrarrefe-rência para média e alta complexidade. A SEDS é, en-tão, responsável pela contratação das equipes de saúde e acompanhamento do seu trabalho.

Na prática, apesar do número significativo de equipes habilitadas, os cadastros de boa parte dessas encontram-se desatualizados, e algumas não possuem a composição mínima. Credita-se a dificuldade para a fixação dos profissionais de saúde nas equipes do siste-ma penal à falta de equiparação salarial, quando com-parados os proventos estaduais, com o salário pago às equipes da Estratégia Saúde da Família do município de Belo Horizonte.

As informações obtidas revelam, ainda, que, mes-mo tendo ultrapassado o número de equipes previsto pela Portaria n° 1777, o Estado não tem recebido qual-quer recurso adicional por isso.

Não obstante as dificuldades inerentes à implanta-ção de um plano dessa magnitude, torna-se imperioso depreender todos os esforços necessários para sua im-plementação, pois, historicamente, apesar da existência da oferta de cuidados em saúde aos presos no nosso País, a lógica utilizada nessas ações sempre preconizou o cuidado mínimo e pontual, em detrimento de ações educativas e preventivas, de caráter permanente.

Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário na perspectiva do SUSPara promover o acesso das pessoas presas à saúde de forma integral e efetiva, dando cumprimento ao man-damento constitucional que afirma ser a “saúde um di-reito de todos e um dever do Estado” (BRASIL, 1988), a Portaria Interministerial n° 1777, de 9 de setembro de 2003, apresentou o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, fruto do trabalho conjunto de diversas áreas técnicas dos Ministérios da Saúde e da Justiça, do Conselho Nacional de Secretários de Saú-de, do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde e do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, conforme (BRASIL, 2010a).

Com base no mencionado plano, as ações e servi-ços da atenção básica em saúde deverão ser organizados nas unidades penais, por meio da formação de equipes interdisciplinares, responsáveis pela atenção primária

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do preso, ficando o acesso aos demais níveis de atenção como item integrante dos planos operativos estaduais.

Portanto, os objetivos e princípios estabelecidos no PNSSP, do ponto de vista formal, são consoantes com a legislação internacional acerca dos direitos hu-manos, e, ainda, com os princípios e diretrizes do SUS, resultando no primeiro registro histórico de uma políti-ca de saúde específica à população confinada nas unida-des prisionais nacionais.

A relação do PNSSP com o SUS está bem demar-cada nas diretrizes estratégicas do plano, ao defender a assistência integral resolutiva, contínua e de boa qua-lidade; o controle e/ou redução dos agravos mais fre-quentes; definição e implementação de ações e serviços consoantes com os princípios e diretrizes do SUS; o estabelecimento de parcerias intersetoriais; a democra-tização do conhecimento do processo saúde/doença, da organização dos serviços e da produção social da saúde; o reconhecimento da saúde como um direito da cidada-nia; o efetivo exercício do controle social.

De modo geral, o plano propõe reforçar a premis-sa na qual as pessoas presas, independente dos delitos praticados, mantêm os seus direitos inerentes à pessoa humana, proclamados na Declaração dos Direitos Hu-manos (ONU, 1948, 1990) e na Constituição Federal, especialmente, o direito a plena saúde, não perdendo, portanto, o direito à cidadania.

O SUS representa a materialização da Política Na-cional de Saúde, constituindo-se como um conjunto organizado de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e mu-nicipais, opondo-se ao modelo médico hegemônico, ca-racterizado pelo individualismo; pela visão do processo saúde/doença,8 sob uma ótica de mercado; pela ênfase no biologismo e pela medicalização dos problemas.

Ainda sobre o SUS, cabe destacar que ele consagra importantes conquistas sociais da população brasileira; essas apontam para a democratização das ações e servi-ços de saúde que passam a ser universais e descentrali-zados. Baseia-se em uma nova concepção centrada na saúde e não mais na doença, elegendo a prevenção e

a promoção da saúde como importantes estratégias de melhoria da qualidade de vida dessa população.

A VIII Conferência Nacional de Saúde (1986), resultado das mobilizações e avanços – teóricos e práti-cos – dos diversos atores sociais e políticos, envolvidos no movimento da reforma sanitária,9 vem representar o marco definitivo da mudança do paradigma da saúde no País. E o Relatório Final da Conferência corrobora as afirmações:

Em primeiro lugar, ficou evidente que as modi-ficações necessárias ao setor saúde transcendem aos limites de uma reforma administrativa e financeira, exigindo-se uma reformulação mais profunda, ampliando-se o próprio conceito de saúde e sua correspondente ação institucional, revendo-se a legislação que diz respeito a pro-moção, prevenção e recuperação da saúde, cons-tituindo-se no que se está convencionado cha-mar de reforma sanitária. (BRASIL, p. 2).

Do exposto, pode-se concluir que a sistematiza-ção do cuidado à saúde no País, de modo mais amplo e pleno, somente se dá com o advento do SUS. Esse representa uma nova concepção de saúde, com base em outros referenciais que não a simples ausência da doença; representa a união das ações preventivas, pra-ticadas pelo Ministério da Saúde, com as ações curati-vas praticadas pelo Ministério da Previdência Social; e apresenta a descentralização dos serviços e dos recur-sos, sempre atrelados ao controle social e à participa-ção popular.

É necessário enfatizar que a efetivação do SUS como sistema brasileiro universal de saúde é o coroa-mento da luta pela reforma sanitária, levada a efeito, conforme se pontuou anteriormente, em especial, por importantes estudiosos e sanitaristas, trabalhadores da saúde e pela sociedade civil organizada. Contudo, a ne-cessidade de avanço é permanente.

De modo efetivo, o PNSSP representa a incor-poração de equipes básicas de saúde, compostas por

8 Segundo tancredi, Barrios e Ferreira (1998), trata-se de um processo social caracterizado pelas relações dos homens com a natureza (meio ambiente, espaço, território) e com outros homens (através do trabalho e das relações sociais, culturais e políticas), isso acontecendo num determinado espaço geográfico e num determinado tempo histórico.9 de acordo com Paim (2008), tem-se a definição de reforma Sanitária como uma reforma setorial com origem no interior da sociedade civil, a partir de movimentos sociais que combateram o autoritarismo desde os anos 1970, defendendo a democratização da saúde.

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médico, enfermeiro, cirurgião dentista, assistente social e psicólogo, e, ainda, com o agente promotor de saúde, internos do sistema penal que recebem auxílio financei-ro, e têm direito à remissão de suas penas, todos respon-sáveis pelos cuidados de 500 presos.

Cabe ao Ministério da Justiça o financiamento das construções e reformas estruturais dos módulos de saúde, e ainda a aquisição de materiais e equipamen-tos. Acrescente-se, também, que o Ministério da Saúde responsabiliza-se pelo fornecimento periódico de me-dicamentos e repasse de incentivos financeiros para a manutenção das equipes.

Aos cuidados dos Estados estão as seguintes atribui-ções: complementar os investimentos federais, contratar e controlar os serviços de referência sob sua gestão.

Atualmente, o desafio é incluir todos os segmen-tos e minorias sociais, aqueles que possuem representa-tividade ou não, na agenda da saúde contemporânea. Destaque-se aqui o caso da população carcerária.

Considerações finais

Diante da realidade carcerária nacional, conclui-se que o Estado não tem destinado a devida atenção para o assunto em questão. Dados dos Planos Diretores dos Estados apontam a morte de 1.919 presos no sistema penitenciário nacional, no período 2006-2007. Apesar da falta de dados confiáveis, credita-se a maior parte desses números à violência, mas certamente à falta de uma rede de cuidados de saúde estruturada junto às pri-sões conforme o preconizado pelo PNSSP.

Na realidade, a execução penal não tem ocorrido em ambiente adequado em momento algum da nossa história, nem priorizado o sentido recuperador da pena. O investimento realizado no setor, ao longo dos anos, não tem sido suficiente, e as ações de reintegração social não estão ao alcance da maioria dos presos no Brasil. Esse cenário de negação de direitos não tem contribu-ído para o caráter recuperador da pena, ao contrário, tem gerado revolta e falta de esperança nos indivíduos presos, que, em maioria, aguardam o cumprimento do tempo de suas condenações sem que nenhuma ação de reintegração social lhes seja dirigida. Portanto, urge pro-mover a reflexão desse tema e evitar a continuidade dos

constrangimentos causados pela negação dos direitos humanos dos presos, como a negação de assistência ma-terial, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa.

É também urgente atuar no sentido de diminuir o número de indivíduos encarcerados, devendo-se, ao tempo em que se promove uma revisão das caracterís-ticas mais perversas do cárcere, ampliar as ações, tendo em vista outras práticas penais. De acordo com o Pacto Internacional dos Direitos Políticos e Civis e a Decla-ração Universal dos Direitos do Homem, pode-se, por exemplo, fomentar a implantação, execução e fiscaliza-ção de medidas alternativas que se colocam para além da prevalência da pena privativa de liberdade.

Do exposto, pode-se afirmar que implementar o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário é efetivar, de fato, a consolidação do SUS como modelo de saúde universal, capaz de estabelecer a prática trans-disciplinar e o trabalho em equipe, como elementos norteadores das rotinas organizacionais da assistência.

Enfim, a disponibilização da Atenção Primária à Saúde, como um conjunto de ações, de caráter indi-vidual e coletivo, que engloba a promoção da saúde, a prevenção de agravos, o tratamento e a reabilitação, sig-nifica a redução de internações por condições sensíveis à atenção ambulatorial dos indivíduos encarcerados e à ampliação do acesso à saúde de populações em situação de desigualdade social.

De fato, o desenvolvimento das políticas de saúde nas últimas décadas no Brasil tem manifestado o enten-dimento da igualdade entre os indivíduos como base clássica do direito. A implementação do SUS e de po-líticas públicas capazes de agir, resguarda esses direitos; significa continuar trabalhando na direção da promo-ção de condições dignas de vida à população.

Por fim, o acesso equitativo aos serviços de saúde, incluindo-se o acesso das populações privadas de liber-dade, configura a manifestação real da justiça distributi-va e da solidariedade. Logo, como a existência de deter-minantes legais não vem garantindo a aplicação das leis, cabe, também, à comunidade acadêmica e à sociedade em geral contribuir, por meio de denúncias, com refle-xões e reivindicações para a efetivação desses serviços na vida concreta dos indivíduos presidiários.

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recebido para publicação em Maio/2011 Versão definitiva em outubro/2011 Suporte financeiro: Não houve conflito de interesse: inexistente

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ARTIgO ORIgInAL • origiNal articlE

Observações empíricas e experiências subjetivas na escolha de referenciais teóricos em pesquisa etnográfica no campo da saúde indígena*

Empirical observations and subjective experiences in the selection process of the theoretical approach in an ethnographic research in the indigenous health context

Maximiliano loiola Ponte de Souza1

RESUMO o objetivo deste texto foi narrar o processo de escolha dos referencias teóricos utilizados em uma pesquisa etnográfica explorando a interação entre revisão bibliográfica/observação empírica/experiência subjetiva. analisando-se o percurso da pesquisa a partir das teorias de roy Wagner, evidencia-se a importância de se observar não apenas o que ocorre no campo, mas também como aquilo que ocorre no campo é vivenciado pelo pesquisador, como um importante recurso nesse processo de escolha.

PALAVRAS-CHAVE: Etnografia; Experiência Subjetiva; trabalho de Campo; Saúde Indígena.

ABSTRACT the objective of this paper was to narrate the selection process of the theoretical approach used in an ethnographic research, exploring the interaction between literature review/empirical observation/subjective experience. the importance of observing not only what happens on the field, but also how what happens in the field is experienced by the researcher, was described as an important resource in this process of choice, by the analyze of the trajectory of the research using the roy wagner’s theories.

KEywORDS: Ethnography; Subjective experience; Field work; indigenous Health.

1 doutor em Saúde Pública pelo Instituto Fernandes Figueira – rio de Janeiro (rJ), Brasil. Pesquisador do Instituto leônidas e Maria deane da Fundação oswaldo Cruz – Manaus (aM), Brasil. [email protected]

*Este artigo foi realizado no contexto da tese de doutorado “Juventude, uso de álcool e violência em um contexto indígena em transformação”, apresentada em 2009, no Instituto Fernandes Figueira, Fundação oswaldo Cruz. recebeu o prêmio luiz Cerqueira, em 2010, para o melhor trabalho na área de “Saúde Mental”.

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Introdução

Nos últimos vinte anos está em curso no Brasil um processo de ampliação dos objetos de interesse dos pesquisadores do campo da saúde mental. Ao busca-rem compreender significados e experiências relacio-nados ao processo saúde-doença, pesquisadores desse campo passaram a apresentar um interesse crescente pelos métodos qualitativos, inclusive pela etnografia (CAPRARA; LANDIM, 2008).

Parte integrante do fazer etnográfico é a convivên-cia cotidiana e face a face do investigador junto aos su-jeitos e grupos sociais de interesse (CIOCCARI, 2009). Partindo de tais circunstâncias, observações empíricas, que geram experiências subjetivas, são significadas por meio de uma interação complexa com teorias, que são testadas, refutadas e/ou adaptadas nesse mesmo proces-so. Embora se reconheça a importância da descrição do caminho trilhado para escolha dos referenciais teóricos e sua relação com as demais etapas da construção do conhecimento, publicações da área da saúde raramente o expõem (ARANA, 2007).

Neste texto, pretendo narrar o processo de es-colha dos referencias teóricos utilizados em uma pesquisa etnográfica evidenciando-se sua interação, tanto com a observação empírica, como com a expe-riência subjetiva (tanto aquela sentida pelo pesquisa-dor, como aquela evocada nos interlocutores pela sua presença). A pesquisa em pauta, minha tese de dou-torado (SOUZA, 2009), tinha o objetivo de analisar a violência interpessoal juvenil em Iauaretê, populo-sa e multiétnica comunidade indígena, localizada no Alto Rio Negro1.

Entendo que um texto com esta proposta é potencialmente relevante para o campo da saúde mental pelo fato de explorar aspectos de uma es-tratégia de pesquisa, a etnografia, ainda não ple-namente difundida entre pesquisadores desse cam-po no Brasil, bem como ao abordar algumas de suas especificidades quando realizada no contexto

indígena. Especificamente o fio condutor da narra-tiva, o processo de escolha dos referencias teóricos que norteiam a pesquisa, mostra-se promissor, pois se relaciona a um caminho não linear, no qual se en-trelaçam observações e subjetividades, algo de certa forma análogo ao que se vivencia no campo da saúde mental, no qual teorias e hipóteses são constante-mente construídas e desconstruídas no contexto do encontro terapêutico.

Para compressão desse processo de escolha dos referenciais teóricos utilizarei algumas das contri-buições de Wagner (2010) a respeito do trabalho de campo, dentre as quais destaco seu entendimento que o pesquisador “usa sua própria cultura para es-tudar outras” (p. 29), “não havendo outra maneira senão conhecer ambas [a sua cultura e a que preten-de estudar] simultaneamente” (p. 30). Dessa forma, para esse autor os esforços do pesquisador,

para compreender aqueles que está estudan-do, para tornar essas pessoas e suas condutas plenas de significado e para comunicar esse conhecimento a outros irão brotar de suas habilidades para produzir significado no âmbito de sua própria cultura. (p. 36).

Proponho que os referenciais teóricos a serem recrutados para compreender a realidade investiga-da são elementos da cultura erudita, a qual o pes-quisador neófito que se encontra em processo de aprendizado (mediando pela díade observação/ex-periência) pretende se filiar, e que esse maneja de forma fragmentada seus símbolos quando entra em campo, pelo menos no início de sua carreira. Assim, entendo que haveria um simultâneo e progressivo refinamento compreensivo (inventivo/criativo), tanto da ‘cultura’ do nativo, como da ‘cultura’ do pesquisador no transcurso da pesquisa, entrelaçan-do observações, subjetividades e teorias, suas esco-lhas e seus usos.

1 destaco que o objetivo deste texto é modesto e circunscrito. Nele não pretendo apresentar uma introdução à etnografia, para tanto recomendo a leitura de autores clássicos (MalINoWSKI, 1978) e de textos básicos (VICtora; KNautH; HaSSEN, 2001); nem explorar os limites e possibilidades da pesquisa etnográfica no campo da saúde, como Caprara e landim (2008); ou realizar uma revisão das bases teórico-conceituais desse método, como o realizado por Wagner (2010), autor que inclusive, forneceu as bases teó-ricas para a reflexão aqui realizada. outro ponto que também aproveito para evidenciar é que é possível que o leitor não concorde com os referenciais teóricos adotados para compreensão da violência juvenil em Iauaretê, encontrando limitações nos mesmos, ou vislumbrando maior poder explicativo em outros. Entretanto, para manter a coerência com a proposta do artigo e a honestidade acadêmica opto por valer-me apenas dos referencias teóricos aventados ao longo do processo de elaboração da tese.

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Contexto da pesquisa, referenciais teóricos preliminares e a hipótese não dita

A região do Alto Rio Negro é região habitada por apro-ximadamente 30.000 indígenas, de mais de 20 etnias di-ferentes (PAGLIARO; AZEVEDO; SANTOS, 2005). Cada grupo étnico é composto por diferentes sibs, que são grupos de parentesco hieraquizados de acordo com a ordem de nascimento dos ancestrais fundadores. A ocupação do território se dá essencialmente de forma dispersa ao longo dos cursos dos rios (JACKSON, 1983). Nos locais de assentamento, dadas às regras de descendência patrilinear e de residência patrilocal pós-casamento, moravam homens (e seus filhos e filhas solteiras) de um mesmo sib, e suas esposas de outros grupos (CHERNELA, 1993). A progenitura ancestral, ancorada em bases míticas, fundamentava em larga me-dida o exercício da liderança, que era exercida através da busca de consensos sociais, entre pessoas ligadas por laços de parentesco.

Os povos rionegrinos estão em contato com a sociedade nacional há mais de três séculos. Mis-sionários católicos salesianos estão intensivamente presentes na região desde a segunda década do sé-culo passado. Esses estabeleceram centros missio-nários, implantando um projeto civilizador, através da instalação de internatos (ANDRELLO, 2006), o que contribui para entrada em desuso dos rituais de iniciação, que demarcavam a passagem da infância para idade adulta.

Um dos centros missionários foi instalado, em 1929, na localidade de Iauaretê. Com o internato, inaugurado em 1930, favoreceu-se a migração para essa localidade. Essa migração foi ainda intensifica-da com o fechamento do internato e sua transfor-mação em escola estadual. Em 2007, a população de Iauaretê era de 2.779 habitantes, 50 vezes maior que aquela de 70 anos atrás, e encontrava-se dividida em 10 vilas, cada qual com seu próprio quadro de lide-ranças. Cinco vilas são chamadas de ‘tradicionais’, relacionando-se as cinco malocas tarianas, existen-tes na chegada dos missionários, e derrubadas dois anos após. As demais vilas, chamadas de ‘novas’, são formadas por famílias que lá se instalaram ao longo dos anos seguintes (ANDRELLO, 2006).

Iauaretê é tida como um local de ‘muitos mo-vimentos’, denotando que lá ocorrem muitas festas. Nessas se bebe tanto caxiri, bebida fermentada a base de frutas e mandioca, como bebidas industria-lizadas, como a cachaça. As festas indígenas se asso-ciam, como noutros antigos centros missionários da região, a um conjunto de outras festas como aquelas relacionadas às datas do calendário cívico-nacional, comemorações religiosas, aniversários e casamentos (SOUZA; GARNELO, 2007). Essas ocorrem em praticamente em todos os finais de semana, conco-mitantemente em diferentes vilas. Não é necessário permanecer mais do que um mês em Iauaretê para poder observar ou ter notícia de situações nas quais, nessas festas, jovens se envolvem em brigas.

Meus pontos de partida para busca de referencias teóricos, para orientar a investigação em pauta foram: o meu conhecimento reduzido do contexto da pesqui-sa, baseado nos dados da literatura acima descritos; minha experiência adquirida em investigação conduzi-da em outros centros missionários rionegrinos menos populosos (SOUZA; GARNELO, 2007); bem como apriorístico intuito de valer-me de pressupostos que buscassem compreender a violência através de um olhar que respeitasse as especificidades dos grupos indígenas (visando reduzir o viés etnocêntrico), que a analisasse em suas dimensões coletivas (e não como fruto de idiossincrasias individuais), e como um fenômeno ancorado profundamente na cultu-ra. Dessa forma, no projeto de qualificação aventei a possibilidade de valer-me das discussões teóricas de Clastres (2004) relativas à dinâmica das guerras tribais para compreensão da violência juvenil em Iauaretê. Desse autor, destaquei o caráter político da guerra, sobretudo a tese que ela imprimiria a es-sas sociedades uma lógica centrífuga (dispersiva), ao induzir a dispersão, a fragmentação e a atomização dos grupos, o que lhes garantiria o exercício de seus ideais de autonomia e independência em relação a outros grupos indígenas. Com a pacificação forçada e com a criação de centros missionários, uma lógi-ca centrípeta (de concentração) passaria a operar, permitindo a formação de comunidades multiét-nicas como Iauaretê. Assim, a hipótese implícita e não dita, relacionada ao uso dessas formulações de

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Clastres, seria que a violência juvenil poderia ser compreendida como algo que se contraporia a lógi-ca centrípeta, e que operaria demarcando diferen-ças entre grupos que se organizavam antes de forma dispersa e passaram a dividir um mesmo território.

Entrada no campo e construção de parentesco

A entrada em campo é “um momento rico de signifi-cados sutis” (CAPRARA; LANDIM, 2008, p. 369). Não é incomum que elementos registrados no iní-cio da pesquisa, que parecem “sem utilidade direta”, se revelem “com o tempo de uma grande riqueza e pertinência” (GUTWIRTH, 2001, p. 233). O trecho abaixo se enquadra nesse tipo de registro. A partir da releitura crítica do mesmo e do cotejamento com outras experiências de campo, se iniciou um processo que permitiu identificar tanto outro referencial teó-rico para compreensão do objeto de investigação que se tornou central nas análises subsequentes, como os indicativos para sua posterior articulação com o en-foque inicialmente aventado.

Está difícil entrar de fato no campo. Consi-derando a proposta inicial de fazer observa-ções em três vilas diferentes, venho vagando de vila em vila, de festa em festa, buscando estabelecer relações e observar particularmen-te o consumo de bebidas. Nestas investidas percebo que minha presença evoca profun-da desconfiança, que por vezes se apresenta como hostilidade franca. Sobre mim recai a dúvida, quiçá a certeza plena de ser ‘igual a todos os brancos’, que meu intento com a pesquisa era, como um senhor irritado dizia, me ‘aproveitar dos índios’. Noutra festa um jovem disse-me para voltar para o meu lugar. Ontem foi necessário que pessoas intercedes-sem apartando-me de duas pessoas que enco-lerizadas ‘conversavam’ comigo. Lembrei-me que logo quando cheguei, quando acontecia uma comemoração festiva de uma semana de duração, durante a qual ocorriam eventos

nas diferentes vilas, fui alertado por lide-ranças indígenas para evitar andar de noite ‘atravessando as vilas’. Diante dos ocorridos e desta advertência vou mudar minha estraté-gia, irei fazer observações apenas na vila na qual estou morando.

Wagner (2010) aponta que “as pessoas geralmente se sentem desconfortáveis com um estranho em seu meio”, e desenvolvem “defesas para mantê-los a cer-ta distância” (p. 32), essas “não são necessariamente hostis (embora possam sê-lo)” (p. 34). Nesse caso es-pecífico, as ‘defesas’ eram hostis, demandando, além da paciência e cordialidade propostas por Wagner, uma flexibilização das estratégias de investigação, bem como uma atenção redobrada para esses even-tos, pois eles estavam de certa forma, relacionados ao objeto de investigação, ou seja, as interações hostis entre pessoas.

Especificamente, abandonei a estratégia de fa-zer observações em três vilas pré-selecionadas, para me restringir a uma delas, aquela na qual eu esta-va morando, uma vila ‘tradicional’, cujo sib Tariano predominante era de baixo status na hierarquia de parentesco. Tal decisão foi tomada com certo pesar, visto que eu cria que tal fato tornaria a pesquisa me-nos abrangente.

Com o tempo, foi possível atentar que as ‘limi-tações’ e as ‘frustrações’ impostas pelo campo não re-dundam necessariamente em perdas, sendo possível transformá-las em dados. O caminho utilizado para transformar a ‘perda’ em dado, foi considerar que o “comportamento do observador, suas angústias, ma-nobras de defesa, estratégias de pesquisa e decisões” são fontes de dados etnográficos tão importantes quanto o próprio comportamento nativo (DEVEREUX, 1980, apud CIOCCARI, 2009, p. 221).

Focando as atividades de pesquisa em uma vila, ampliei a observação e a participação no cotidiano, comparecendo às reuniões comunitárias, às festas de casamento, aos aniversários, etc. Dessa forma, a en-trada em campo foi se dando. Com os moradores dessa vila pude estreitar laços, comer e beber, obser-var e ser observado, sentir-me por vezes aceito e por vezes excluído, o que permitiu, como descreverei na

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sequência de eventos a seguir, perceber meu objeto de investigação sobre novos prismas, e também a po-tencialidade de outros referencias teóricos para ilu-minar essa compressão.

Após alguns meses, levei para uma festa outro não-índio, que estava visitando Iauaretê. As conver-sas giraram em comparar o novo visitante a mim. Naquele momento éramos totalmente diferentes. Afinal, eu bebia e comia ‘com’ e ‘como’ eles (ou pelo menos tentava). Eu entendia e falava algumas poucas palavras em Tukano, embora reiteradamente afirmas-sem que só falaria corretamente depois que mordesse a língua (numa clara metáfora sexual) de uma moça que falasse esse idioma. Enfim, o novo visitante era mais ‘de fora’ do que eu.

Algum tempo depois, um homem que era hos-tilizado pelos moradores da vila na qual eu realizava as observações, em parte por causa de suas explícitas ambições político-partidárias, escreveu um docu-mento que desagradou profundamente os membros da associação indígena local. Ao conversarem comi-go a respeito do assunto, diziam que o documento, embora tivesse o conteúdo equivocado, estava muito bem escrito. Dias depois, numa festa, ficou explícito que havia uma forte suspeita que eu o teria ajudado a escrever o texto. Essa explicitação ocorreu de for-ma hostil, semelhante àquela descrita no fragmento apresentado no início desta seção.

A relação entre esses eventos foi percebida em campo, entretanto uma compreensão teoricamente embasada, e a possibilidade dos mesmos apontarem para possível adoção de determinado referencial te-órico, só foi construída no processo de redação da tese. Tal processo foi realizado tomando como hori-zonte teórico as formulações de Viveiros de Castro (2002) a respeito da construção do parentesco em contextos ameríndios. Digno de nota é o fato que eu não tinha uma leitura prévia consistente desse au-tor. De fato, os primeiros contatos com suas teorias deram-se em campo, de forma indireta, através dos trabalhos de Andrello (2006) e Lasmar (2005) que foram leituras constantes durante o tempo que estive em Iauaretê. Tais aspectos evidenciam a importância

das imprevisíveis situações que se configuram no dia a dia no local da pesquisa (PEIRANO, 1992) du-rante o fazer etnográfico, inclusive no processo de escolha dos referenciais teóricos.

Analisando-se as descrições etnográficas apre-sentadas nesta seção a partir das formulações de Vi-veiros de Castro (2002), a relação social estabelecida entre mim e os moradores de Iauaretê partiu de uma distinção radical, na qual eu seria o outro. No contex-to ameríndio, a relação primeira é a da diferença, da alteridade e exterioridade, que se encontra associada à periculosidade inata, que precisa ser de alguma for-ma domesticada. Na lógica simbólica do parentesco, essa é uma relação de afinidade2, que por sua vez, “ocupa o lugar do dado na matriz relacional cósmica” (p. 406). O estranho é o afim, que é representado como outro tipo pessoa. Através da convivência, da corresidência e da comensalidade, a diferença pode ser atenuada. O parentesco e a semelhança, ou seja, a consanguinidade deve ser entendida, nesse contexto, como fruto da agência humana. O estabelecimento de relações reais de afinidade, como na metáfora de ‘morder a língua’, concorre no sentido de extrair a di-ferença do afim, consanguinizando-o, favorecendo a convivência cotidiana. Porém esse processo é sempre parcial e inacabado. A afinidade e a periculosidade a ela associada pode a qualquer momento, sobretudo nos momentos de crise, despontar, pois os afins são “de diversos modos, a linha de fratura do grupo lo-cal” (p. 426). Sobre mim, recaíram suspeitas de ter colaborado com a redação do texto, e a hostilidade antes domesticada veio à tona, no contexto de con-sumo de bebidas alcoólicas.

Buscando compreender os eventos que ocorre-ram, evolvendo a mim e as pessoas da vila na qual eu morava, pude aventar, por analogia, um caminho teórico para nortear a compreensão da violência juve-nil no contexto de Iauaretê. Tal caminho construído na interação entre observação e teoria se assenta na hipótese de que, no interior de cada vila localizada na populosa e multiétnica Iauaretê, haveria a necessidade constante de produzir semelhanças, borrando as di-ferenças entre os diferentes grupos e subgrupos que

2 de forma bem simplificada, e, sobretudo para facilitar a compreensão da argumentação apresentada, relação de afinidade pode ser entendida como aquela que é intermediada por relações de casamento, tais como esposo e esposa, genro/nora e sogro/sogra, e entre cunhados(as). Para compreensão em profundidade consultar Viveiros de Castro (2002).

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compõem a população local, para possibilitar a convi-vência cotidiana. Esse processo, todavia, seria sempre imperfeito e inacabado. A violência juvenil no interior das vilas poderia ser compreendida como uma das di-ferentes formas através da quais se expressaria a fragili-dade desse processo de consaguinização do outro.

Brigas e guerras

Em campo, por outro lado, observei eventos violentos nos quais os jovens eram de vilas diferentes, ou seja, de unidades sociopolíticas distintas, o que apontava para a potencialidade da utilização do referencial da guerra tribal, aventado nas fases iniciais da pesquisa, para compor o arcabouço teórico da pesquisa.

Entretanto, foi preciso reformular a hipótese que indicava a potencialidade de utilização da chave teórica da guerra para compreensão da violência ju-venil em Iauaretê. Tal reformulação partiu dos acha-dos de campo que evidenciaram que, no contexto de Iauaretê, ser de determinada vila é um aspecto im-portante para sociabilidade, coexistindo com a im-portância de pertencer a determinado sib, conforme se depreende do trecho abaixo.

Fulano me perguntou de onde eu era. Inicial-mente disse que era do Ceará. Depois que mo-rava em Manaus. A seguir, tentei explicar que minha família teria vindo para o Brasil, há muitos anos atrás, de Portugal e da Espanha. Pouco interessado em minha história familiar e muito menos em minha genealogia, meu interlocutor, objetivamente refez sua pergun-ta: ’Aqui eu Iauaretê, o senhor é de onde?’. Disse-lhe que morava com a equipe de saúde. Sua resposta foi: ’Ah! O senhor mora em São Miguel. Nós aqui já decidimos, quem mora em São Miguel é de São Miguel.

Mesmo aqueles oriundos de outros lugares preci-sam ser de alguma vila. Andrello (2006), que realizou trabalho de campo dez anos antes, preferiu deixar em aberto a questão se Iauaretê seria uma única comuni-dade, ou um conjunto de comunidades. No contexto

observado, foi possível encontrar fortes indícios que localmente Iauaretê é representada e vivenciada como um aglomerado composto de várias vilas, que se orga-nizam como grupos locais, possuindo suas lideranças, seus locais de reunião, suas festas, etc. Reiteradamente as lideranças indígenas iniciavam seus discursos com ex-pressões do tipo: “Aqui em Iauaretê, nas dez comunida-des...”. Soma-se ainda, a esse argumento, a observação que parte das brigas envolvendo jovens era justificada pelas rixas que envolviam pessoas de diferentes vilas.

No Alto Rio Negro, as guerras tribais não são mais observadas em sua plenitude desde o início do século XX. Entretanto, Fausto (1999) considera ser possível a continuidade dos sistemas guerreiros, mesmo na ausência de guerra, sobretudo se a con-cebemos para além de sua manifestação explícita, entendendo-a como um

espaço de mediação entre grupos e pessoas, lugar de operação de uma complexa dialética entre exterioridade e interioridade, entre alteridade e identidade. (p. 265).

Assim, os aportes teóricos relativos às guerras tribais, compõem uma chave para compreensão da mediação dos limites entre ‘nós’ e os ‘outros’. Atra-vés da guerra, os diferentes grupos interagiriam por meio de uma “lógica centrífuga” (CLASTRES, 2004, p. 266), permitindo que mantivessem seus ideais de autarquia e independência, evitando a fusão entre eles, que alienaria suas especificidades. Nesse senti-do, a guerra pôde ser compreendida pela lógica do parentesco, na medida em que explicita a afinidade do ‘outro-inimigo-de-outra-vila’, e promove a con-sanguinização do outro-aliado-corresidente.

Em Iauaretê atuariam um conjunto de forças cen-trípetas, a escola, o atendimento de saúde ocidental, a luz elétrica, etc. Essas forças atrativas dificultariam que as pessoas se mudassem para outros locais em caso de discussões e hostilidades. Porém, forças centrífugas, simbolicamente associadas à guerra, permaneceriam operando, uma vez que a fragmentação persiste. A re-sultante dessa tensão é que parece configurar o cenário de Iauaretê, no qual há fragmentação (diversidade de vilas) na ausência de dispersão (concentração espacial).

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Dessa forma, a hipótese implícita que de certa forma justificou a utilização dos referencias relativos às guerras tribais é que as atuais brigas dos jovens, particularmente aquelas que ocorrem entre aqueles de vilas diferentes, atuam como forças centrífugas, de forma análoga (mais obviamente, não idêntica) às guerras tribais, contri-buindo para se evitar a fusão alienante, num contexto de forte pressão centrípeta.

Por fim, utilizando as formulações de Viveiros de Castro (2002) a respeito da construção do parentesco no contexto ameríndio, juntamente com as contribuições de Clastres (2004) a respeito das guerras tribais, pude compreender as brigas entre os jovens, através de dois prismas inter-relacionados. Por um lado, ‘analisando a parcialidade’ e ‘fragilidade do processo consanguiniza-ção’, que concorreriam no sentido de alienar as diferen-ças, num contexto no qual o pertencimento a grupos de vizinhança (vilas, formadas por parentes e não pa-rentes que se tornam corresidentes), vem tornando-se tão importante quanto o pertencimento à descendência de ancestrais comuns, para ordenar as formas de inte-ração entre as pessoas. Por outro lado, outro caminho importante seria ‘a análise da demarcação da diferença’, entendendo-se que mesmo que a diferença não precise ser construída, visto que a alteridade é dada, no contex-to de Iauaretê far-se-ia necessário, por vezes, explicitá-la, sendo a violência juvenil um caminho para isso.

Considerações finais

A entrada em campo deve ser precedida de uma prévia e exaustiva revisão da literatura, que deve atentar, não apenas para os resultados de pesquisas anteriores, mas também para os referenciais teóricos e metodológicos que foram utilizados. Destaca-se que a utilização de determinado referencial se vincula, de forma mais ou menos explícita, a adoção de hipóteses explicativas a respeito do fenômeno social que se investiga.

O contato direto com o campo ampliará as infor-mações a respeito do fenômeno que se está investigan-do. Tal processo fornecerá subsídios para reformulação das hipóteses, que por sua vez exigirá reconfigurações no balizamento teórico proposto. Das diferentes expe-riências de campo, que auxiliam no processo de escolha

dos referenciais teóricos, destaco a entrada em campo. De particular interesse, no caso aqui apresentado, foi o exame de como fui analisado por meus interlocutores, o que remete a uma observação de Devereux (1980), citada por Cioccari (2009, p. 222):

quando se examinam os modos pelos quais o observador é esquadrinhado em campo, é preci-so considerar [que há uma] observação recípro-ca, na qual tanto o pesquisador como os nativos agem como observadores.

A análise de tal dinâmica interativa mostra-se uma fonte relevante por fornecer subsídios para a es-colha dos referencias teóricos.

Outro ponto igualmente importante foi atentar para o fato que parte relevante dos dados a serem cole-tados em campo não foi revelada “ao pesquisador, mas no pesquisador” (PEIRANO, 1992, p. 7). Em outras palavras, por vezes se deve procurar ‘observar’ não aqui-lo que ocorre no campo, mas como aquilo que ocorre no campo é vivenciado pelo pesquisador. Como descri-to ao longo deste texto, tal exercício de desviar o olhar para si mesmo consistiu noutro importante recurso para escolha dos referenciais teóricos.

Espero que com este artigo tenha sido possível evi-denciar a necessidade de disciplinada revisão da literatu-ra, de sensibilidade em relação aos indicativos do campo, de certa dose de acaso e de paciente trabalho de artesão, para dar sentido às experiências do campo, reorientar hi-póteses, selecionar, juntar e adaptar os referenciais teó-ricos ao contexto da pesquisa. Tal processo permite que o pesquisador construa seu próprio entendimento sobre o que observou baseando-se em analogias. E, de acordo com Wagner (2010, p. 41), “as analogias que ele cria são extensões das suas próprias noções e daquelas de sua cul-tura, transformada por suas experiências da situação de campo”, o que por sua vez permite “catapultar sua com-preensão para além dos limites impostos por pontos de vista prévios”. Por fim, ressalto meu entendimento que este processo de escolha necessita ser descrito e proble-matizado para que se possa dar maior consistência aos trabalhos qualitativos, em especial aqueles de orientação etnográfica, realizados no campo da saúde em geral e da saúde mental, em particular.

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recebido para publicação em abril/2011 Versão definitiva em outubro/2011 Suporte financeiro: trabalho financiado pelo Edital Mct/cNPq/MS-SctiE-dEcit 38/2005; Processo individual 400904/2005-5. conflito de interesse: inexistente

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ARTIgO ORIgInAL • origiNal articlE

Cortar o no cortar: debates sobre la circuncisión masculina como método de prevención del VIH*

to cut or no to cut: debates on male circumcision as an HiV prevention method

rodrigo Parrini roses1, azucena ojeda Sánchez2, Héctor Carrillo3, ana amuchástegui Herrera4

RESUMEN Estudios recientes muestran que la circuncisión masculina es un método de protección parcial del VIH en la transmisión sexual heterosexual de mujer al hombre, con una efectividad aproximada del 60%. tales datos son el resultado de tres pruebas clínicas realizadas en África (Sudáfrica, Kenia, y uganda), que impulsaron algunas recomendaciones internacionales para su promoción. Presentase el estado del arte sobre los principales debates actuales, así como algunas investigaciones realizadas en distintos países sobre la circuncisión masculina. al respecto, existen preguntas no resueltas y argumentos opuestos sobre su pertinencia como medida de salud pública, considerando: políticas de salud, pautas culturales, economías, intervenciones, derechos humanos, ética, sexualidad y género, entre otros, que brindan una visión global para dar respuesta a la pandemia del VIH/SIda.

PALABRAS CLAVE: Circuncisión Masculina; VIH; Prevención.

ABSTRACT recent studies have shown that male circumcision is a method of partial protection from HiV in the heterosexual transmission from women to men, with an approximate 60% efficacy. these data result from three clinical trials conducted in africa (South africa, kenya, and uganda), which prompted some recommendations for promotion. Here we present the state of the art on the major current debates, and some research in various countries on male circumcision. in this regard, there are unsolved issues and opposing arguments on their relevance as a public health measure, taking into account: health policies, cultural patterns, economies, interventions, human rights, ethics, sexuality and gender, among others, providing a global response to the HiV/aidS.

KEywORDS: circumcision, Male; HiV; Prevention.

1 Maestro en Estudios de género; Profesor investigador del departamento de Educación y Comunicación de la universidad autónoma Metropolitana – Xochimilco – Ciudad del México, México. [email protected]

2 Maestra en Psicología Social de grupos e Instituciones; académica de la universidad Nacional autónoma de México – México. [email protected]

3 drPH; Profesor asociado de Sociología y Estudios de género en Northwestern university – Chicago, uSa. [email protected]

4 Phd; Profesora investigadora del departamento de Educación y Comunicación de la universidad autónoma Metropolitana – Xochimilco – Ciudad del México, México. [email protected]

* El estado del arte que aquí se presenta forma parte de la investigación “cultural Factors associated with acceptability of Male circumcision as a Method for Preventing HiV infection in communities of Mexican Migrants in Mexico and california: Masculinity, the Body, and Sexuality”, a cargo de la universidad autónoma Metropolitana plantel Xochimilco en México y la San Francisco State university en Estados unidos.

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ROsEs, R.p.; sánChEz, A.O.; CARRILLO, h.; hERRERA, A.A. • Cortar o no cortar: debates sobre la circuncisión masculina como método de prevención del VIH

Introducción

El protagonista de este texto es el prepucio. Un pedazo de piel que ha tenido distintos significados culturales según las geografías y contextos históricos, las creencias sociales y distintas usanzas, pero que regresa nuevamen-te a los debates de la salud pública. Será mostrado cómo la circuncisión masculina ha convocado estudios clíni-cos, debates y desafíos éticos ante la visión biomédica, que alude a ‘un pequeño corte’, reduciendo una serie de procesos sociales, culturales, económicos y políticos, a un pedazo de piel.

La circuncisión masculina (CM) no es sólo una in-tervención médica, esa genera un denso entramado de posicionamientos científicos, éticos y políticos. Mien-tras que algunos autores la alientan por sus supuestos beneficios para la salud (FLYNN et al., 2007; MORRIS, 2007), los opositores minimizan sus ventajas, citando las tasas de complicaciones y reducción sustancial de sensación en el pene (MALONE; STEINBRECHER, 2007). Otros se preguntan qué cantidad del prepucio se debe cortar para la reducción de riesgo (GRUSKIN, 2007), y otros más cuestionan el procedimiento en fun-ción de la convicción religiosa de los padres frente a los derechos del niño (HINCHLEY, 2007). La evidencia más importante para su promoción es lo que fue dicho en algunos estudios que se realizaron en África y que muestran que la CM en hombres adultos reduce en un 60% el riesgo de infección de VIH de mujer a hombre durante el coito vaginal (UNAIDS, 2007).

Hasta el momento han sido muchas las pre-guntas, críticas y debates en torno a las evidencias científicas y a los resultados de estas investigaciones. Algunos especialistas señalan que la CM se trata sólo de ‘un pequeño corte’ y que si existiera una vacu-na para el VIH efectiva entre 50 y 60%, el mundo trataría de hacerla disponible, pero siendo un proce-dimiento quirúrgico resulta menos atractiva (AIDS, 2007). Empero ¿qué factores intervendrán para su aceptabilidad? ¿Qué hombres buscarán la circunci-sión? ¿Se comprenderá realmente la ‘protección par-cial’ que proporciona a los hombres y la falta de pro-tección para sus parejas sexuales? ¿Esta intervención se traducirá en nuevas formas de discriminación? ¿Bajo qué condiciones tendrá que implementarse la

CM como parte de un paquete integral de promo-ción en cada país?

Ante este escenario, el objetivo de este artículo fue bosquejar los principales debates e investigaciones que se han realizado luego de los descubrimientos y las reco-mendaciones internacionales que alientan la CM como política pública. Por otra parte, este texto buscó pensar sus posibles implicaciones en el contexto de América Latina, considerando factores y procesos específicos a nivel local.

Circuncisión masculina y prevención del vih: los descubrimientos

Históricamente, alrededor del mundo la prevalencia de la CM ha variado (AGGLETON, 2007). Una estima-ción global, en el 2006, determinó que el 30% de los hombres estaban circuncidados, siendo la religión la mayor determinante. En África, su prevalencia es eleva-da, y casi universal en el Medio Oriente y Asia Central. En el siglo 20, la CM aumentó por razones sociales y por los beneficios de higiene y salud en Estados Unidos, Nueva Zelanda y regiones de Europa. Mientras que en el Centro y Sur de América la CM no es común – me-nos del 20% (WHO et al., 2007).

La CM, por razones de salud, ha sido promovi-da por sus beneficios a los varones y por la reducción de infecciones entre sus parejas sexuales. Los beneficios médicos documentados incluyen la protección contra balanopostitis, fimosis, infecciones del tracto urinario, y protección contra el virus del papiloma humano asocia-do a diversos tipos de cáncer, además de proteger contra las enfermedades de transmisión sexual (FLYNN et al., 2007). Incluso, se ha argumentado que la CM repre-senta una ‘vacuna quirúrgica’ contra una amplia varie-dad de infecciones, problemas médicos y enfermedades posteriores potencialmente fatales, además de reducir los problemas sexuales (MORRIS, 2007; KLAUSNER et al., 2008).

En el campo de la prevención del VIH, la noción de ‘vacuna quirúrgica’ ha cobrado fuerza por los hallaz-gos sobre la CM, que la han señalado como un método eficaz para la reducción de riesgo en hombres hetero-sexuales. En 1986, se publicó una primera investigación

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que sugería que la CM protegía de la infección por VIH (MOR et al., 2007). Pero, fue Robert Bailey quien, desde 1995, dio seguimiento a tales descubrimientos después de leer sobre la prevalencia del VIH en ciertas áreas de África en función de la CM y de revisar estu-dios que mostraban que los hombres no circuncidados tenían de dos a ocho veces mayor riesgo de infectarse por VIH (AIDS, 2007). Las investigaciones desarrolla-das por Bailey (2007), a partir de tres pruebas clínicas realizadas en África, han destacado que la CM tendría gran impacto en la epidemia del VIH en las regiones con más personas afectadas del mundo.

A raíz de estos resultados, la CM ha sido recomen-dada por la Organización Mundial de la Salud (OMS) y por el Programa Conjunto de las Naciones Unidas sobre el VIH/SIDA (ONUSIDA). El informe presentado en el 2007 indica que se realizaron tres ensayos en Sudá-frica, Kenia y Uganda para reconocer su impacto en la transmisión del VIH de mujeres a hombres. La prueba de Orange Farm, Sudáfrica, donde participaron 3,274 circuncidados, los hombres VIH-negativos mostraron un efecto protector del 61%. La prueba en Kisumu, Kenia, de 2,784 hombres VIH-negativos, mostró un 53% de reducción de adquisición del VIH en hombres que se circuncidaron en relación a los no circuncidados. Mientras que la prueba de 4,996 hombres VIH-nega-tivos en Rakai, Uganda, mostró reducción en un 51% en hombres que se realizaron la circuncisión. Un cuarto ensayo estaba en marcha en Rakai, Uganda, para eva-luar si existe un efecto directo de la CM para reducir la transmisión del VIH de hombres VIH positivos a mu-jeres, y esto fue detenido en diciembre de 2006 debido a que la prueba no llegaría a la conclusión en un plazo razonable de tiempo (UNAIDS, 2007). En un estudio realizado en los Estados Unidos con hombres afroame-ricanos heterosexuales, basado en visitas clínicas en las que el paciente tenía exposición documentada de que su pareja femenina estaba infectada, mostró que la CM se relacionó con la reducción del 51% en prevalencia del VIH, siendo consistente con los resultados de las tres pruebas en África (WARNER et al., 2009).

En cambio, cuando se estudió la asociación entre la CM y los riesgos de contraer VIH para las parejas sexuales de los hombres circuncidados, los resultados fueron distintos. En Uganda y Zimbawe, se investigó

tal relación entre 4,417 mujeres, de las cuales un 74% reportó parejas no circuncidadas, 22% parejas circun-cidadas y el 4% parejas que desconocían si estaban o no circuncidados. El seguimiento fue de 23 meses, durante los cuales 210 mujeres adquirieron VIH, lo que mostró que, después del ajuste para otros factores de riesgo, el efecto protector desaparece. De modo que la CM no se asoció significativamente con la reduc-ción del riesgo de infectarse con VIH para las mujeres (TURNER; MORRISON; PADIAN, 2007).

Lo mismo se sucede con respecto a los efectos de la CM en hombres que tienen sexo con otros hombres (HSH). Fueron encontrados tres estudios realizados en Estados Unidos, el primero en hombres latinos y negros circuncidados y no circuncidados de Nueva York, Fila-delfia y Los Ángeles, con una muestra de 1,154 hom-bres negros HSH y 1,091 latinos HSH, se realizó una entrevista asistida por computadora de 45 minutos y se aplicó una prueba rápida de anticuerpos de forma oral a los participantes. Los resultados mostraron que la prevalencia fue más alta entre los negros do que entre los latinos (74 versus 33%), pero el estado de la circun-cisión no se asoció con la prevalencia en la infección de VIH entre los HSH latinos y negros, bisexuales negros, y hombres negros o latinos que reportaron ser negativos de VIH, con base en su última prueba de VIH. De esto, se deduce que la circuncisión no reduce el VIH entre hombres que tienen sexo insertivo o receptivo anal sin protección. El estudio encontró que no confiere riesgo ni protección y no está relacionado con la seroconver-sión en los HSH (MILLETT et al., 2007).

Otro estudio, realizado en los Estados Unidos, examinó la asociación entre la CM y la infección por el virus del herpes simple 2 (VHS-2), sin encontrar una relación entre la CM y la disminución del riesgo ante ese virus, los investigadores concluyen que la CM brin-da menos protección contra el VHS-2 que ante el VIH (XU et al., 2007).

El tercer estudio realizado en Seattle examinó la relación entre la CM y el VIH, el virus del herpes sim-ple tipo 2 (VHS-2), la sífilis, la gonorrea y la clamidia uretral entre los HSH, por la práctica del sexo anal. El período analizado fue de octubre de 2001 y mayo de 2006, durante los cuales 4,749 HSH que tuvieron re-laciones anales en los últimos 12 meses se sometieron

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a un total de 8,337 evaluaciones. El estado de la cir-cuncisión fue evaluado por 3,828 hombres, de éstos 3,241 (85%) estaban circuncidados, y 587 (15%) no lo estaban. Los investigadores no encontraron una asocia-ción significativa entre el estado de la CM y su impac-to en la reducción de riesgo al VIH y otras infecciones de transmisión sexual (ITS) (JAMESON et al., 2010).

Estos hallazgos son un aspecto de gran relevancia para la discusión científica ante la presencia importante de epidemias concentradas entre HSH, como es el caso de México y de muchos países de la América Latina.

Las explicaciones biomédicas que evalúan la efec-tividad de la CM indican que reduce la capacidad del virus para penetrar en las células. La superficie de la mucosa interna del prepucio contiene una mayor den-sidad de células de Langerhans, que, en el epitelio es-camoso estratificado, es más susceptible a la infección por VIH durante la penetración (FLYNN et al., 2007). Sin embargo, otros investigadores han presentado da-tos opuestos. Por ejemplo, se menciona que las células de Langerhans producen langerin que protege contra el VIH (DENNISTON, 2007). También se habla del hallazgo sobre la sensibilidad en el prepucio y su banda de camellones, ya que es la parte del pene (incluido el glande) más sensible al tocar (TAYLOR, 2007). Bailey (2007) ha respondido algunos cuestionamientos, y pide a la comunidad científica que, más allá de las especula-ciones, sobresalga las evidencias consistentes de las tres pruebas aleatorias y más de 40 estudios observacionales, los cuales muestran que la CM puede ser un método efectivo para evitar la infección por VIH.

¿Qué muestran las investigaciones? Hallazgos a nivel local

Existen estudios experimentales, observacionales y experiencias prácticas en países desarrollados y no desarrollados que apoyan la implementación de la CM (AUERBACH; HAYES; KANDATHIL, 2006). Una revisión de 13 estudios de aceptabilidad de la CM en África, basada en evidencias epidemiológica, clínica y experimental, señala que la proporción de hombres no circuncidados dispuestos a realizarla fue del 65%, el 69% de las mujeres favorecieron la CM

para sus parejas, y el 71% de hombres y 81% de mu-jeres estuvieron dispuestos a circuncidar a sus hijos (WESTERCAMP; BAILEY, 2007).

Los autores de esto estudio revisaron algunos estu-dios para reconocer los factores que pueden influir en la cultura y la vida de las personas para aceptar o rechazar la CM en países como Kenia, Malawi, Sudáfrica, Zam-bia y Zimbawe y de investigaciones que reconocieron los riesgos para las parejas sexuales, la limpieza genital, la satisfacción sexual antes y después de la CM, y la sensibilidad en el pene.

Con relación a los estudios de aceptabilidad de la CM en hombres y mujeres, se encontró que los resulta-dos en Kenia, Malawi, Sudáfrica, Zambia y Zimbabue sugieren que es alta en ambos géneros, según datos arro-jados por encuestas y entrevistas, incluso en aquellas comunidades donde la circuncisión no es usualmente practicada. La investigación realizada en Kenia, a partir de entrevistas y grupos de discusión a hombres y muje-res, reportó que el preditor más fuerte de la aceptabili-dad de la CM es el dolor del procedimiento y el costo. Entre quienes tenían mayor educación, la aceptabilidad de la CM disminuía. Muchos hombres y mujeres creen que los hombres no circuncidados tienen mayor ries-go de adquirir VIH/SIDA, ITS y cáncer. Esas creen-cias influyeron directamente en la preferencia por la circuncisión. Entre hombres y mujeres se encontraba la creencia de que los hombres circuncidados disfrutan más del placer sexual y otorgan mayor placer a las mu-jeres (MATTSON et al., 2005).

Un estudio realizado en Malawi, país con una de las prevalencias de VIH más altas del mundo, con grupos de discusión de hombres y mujeres en cuatro distritos, mostró que la aceptación de los servicios de la CM variaba según la región, pero en general, la aceptarían si los servicios fuesen seguros, asequibles y confidenciales. Los habitantes que participaron del estudio, pese a residir en las zonas en las que no se practica la CM, creían que los hombres circuncidados obtienen y brindan a las mujeres mayor placer sexual. Esta opinión fue más común entre jóvenes do que en-tre mayores. Los obstáculos a la circuncisión incluían el temor a la infección y sangrado, el dolor, la muerte y el costo. Los facilitadores incluían la higiene, reduc-ción del riesgo de infecciones de transmisión sexual,

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religión, condiciones médicas, y el placer sexual mejo-rado (NGALANDE et al., 2006).

Un estudio en Sudáfrica, basado en encuestas, mostró que el 51% de los hombres no circuncidados y 68% de las mujeres estuvieron a favor de ésta, mien-tras que el 50% de los hombres y 73% de las mujeres circuncidarían a sus hijos. Los principales preditores de preferencia en hombres se referían a las creencias so-bre el dolor y placer sexual para las mujeres, el conoci-miento sobre la relación entre la CM y la adquisición de ITS. Entre ambos los sexos, la principal barrera a la circuncisión era el miedo al dolor y la muerte. Tal es-tudio concluye que las decisiones sobre la circuncisión son ante todo una cuestión del individuo y de preferen-cias familiares que de la identidad cultural (SCOTT; WEISS; VIJOEN, 2005).

En Zambia, mediante grupos de discusión con hombres y mujeres en comunidades urbanas y rurales, se encontró que si la CM demuestra reducir el riesgo para el VIH y las ETS, la mayoría de los participantes la buscaría para ellos, sus parejas o sus hijos, si fuera gratis o a un costo mínimo. Los hombres de mediana edad y ancianos sentían que era demasiado tarde para circuncidarse, así que no lo harían, pero los jóvenes lo aceptaron. Las mujeres dijeron que alentarían a sus ma-ridos/parejas. Los resultados indican que no hay anti-patía hacia la CM y existe una creencia generalizada de que reduce el riesgo de adquisición de las ITS, incluido el VIH. Los obstáculos para la CM fueron: la identi-ficación del procedimiento con ciertos grupos étnicos y religiosos, dolor asociado con el procedimiento, el proceso y tiempo de sanación y el costo (LUKOBO; BAILEY, 2007).

Por último, en Zimbabue, por medio de encues-tas a hombres, el estudio sugiere que hay un grado de conocimiento ya existente sobre sus beneficios, aunque sólo algunos lo asociaron con VIH/SIDA: el 43% sabe de beneficios de salud; el 69% respondió que reduce el riesgo a las ETS; el 12%, con limpieza e higiene sexual; el 3% sugirió que la CM podría tener un riesgo insalubre o adquisición de VIH a través del corte; y el 45% expresó voluntad de someterse al pro-cedimiento (HALPERIN, 2005).

De las investigaciones antes mencionadas, de-ben ser puntualizados algunos datos. Todas fueron

consistentes con los resultados de otros estudios en África, mostrando hallazgos similares sobre los facto-res que alentarían u obstaculizarían la CM. Entre los facilitadores están el incremento de higiene genital, prevención de ITS/VIH, religión, condiciones médicas seguras y el bajo costo, en tanto que los obstáculos in-cluyen el temor de la infección y sangrado, el tiempo de sanación, el costo, el miedo al dolor y la muerte. En estos países persistió la creencia, en ambos géneros, de que los hombres y las parejas de los circuncidados disfrutan y otorgan más placer sexual. Esta opinión fue más común entre hombres jóvenes y mujeres que entre los hombres mayores. Por ello, algunos investigadores consideran que las campañas de CM podrían tener más impacto si se promovieran como ‘mejor sexo’ en vez de ‘sexo seguro’ (MATTSON et al., 2005).

No obstante, es importante considerar que estos estudios sondearon la aceptabilidad, pero no la viabili-dad de la CM. Es decir, no se consideraron aspectos de infraestructura, seguridad del procedimiento y los cos-tos-efectividad al introducirla. Además, estos estudios han sido realizados, principalmente, por investigadores involucrados en las tres pruebas clínicas y que les han dado seguimiento, por ende favorecen la promoción de la CM. Sin embargo, los estudios de aceptabilidad si-guen generando dudas y discusiones diversas.

¿Cortar o no cortar? Las preguntas y los debates

Los principales debates se centran en la ambigüedad y carácter controversial de las tres pruebas clínicas realiza-das en África y los desafíos de infraestructura de países en desarrollo para aplicar la CM. Además, se cuestionan los procedimientos, las condiciones y los contextos so-ciales que dificultarán las intervenciones y sus implica-ciones para poblaciones específicas. Asimismo, se plan-tean preguntas sobre las repercusiones de la CM en la sexualidad y el género y sus beneficios para las mujeres, así como los cambios que pueden repercutir en el deseo, excitación y sensibilidad en las relaciones sexuales. Se cuestiona el hecho de que la CM reduce, pero no elimi-na, el riesgo por VIH, lo que implica que los hombres circuncidados deben de continuar usando preservativos,

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los cuales tienen tasas de efectividad más altas en contra del VIH que la CM. Se interrogan los riesgos y las prác-ticas de hombres que tienen sexo con hombres y la falta de evidencia de los beneficios para ellos si se realizan la CM; y por último, se debaten cuestiones éticas para los investigadores y los derechos humanos.

A juicio de muchos, se necesita saber más acerca del posible papel de la CM para la prevención del VIH antes de adoptarla como medida de salud pública. Para empezar, la aceptabilidad del procedimiento es más compleja de lo que transmiten las distintas investiga-ciones: tal como sucede con la prueba del VIH, la idea puede ser aceptable, pero no se traduce en la práctica, cosa que podría suceder de manera similar con la CM (DOWSETT; COUCH, 2007). Pese a la aceptabilidad expresada por las mujeres, hay reportes que muestran cómo, debido a la vulnerabilidad estructural a la que muchas están sujetas, es frecuente que no puedan de-cidir sobre asuntos que involucran sus propios cuerpos, menos incidir en los cuerpos de los hombres. Es alenta-dor que, en la mayoría de los estudios de aceptabilidad, se reportó alta prevalencia de aprobación, aunque los procedimientos utilizados para explorar si tal aproba-ción se traduce en acciones, no termina por aclararse. Por tanto, la mayoría de éstos fallan en representar la realidad o los efectos adversos potenciales de la circun-cisión, los cuales incluyen efectos físicos, psicológicos, y sociales (MUULA, 2007). Es posible, por otro lado, que el paradigma biomédico lleve al reduccionismo de los procesos relacionados a la CM en África, enfocán-dose sólo en la frecuencia de la CM y su asociación con VIH/SIDA, y faltará integrar y entender los procesos psíquicos de los individuos y sus comportamientos, así como la influencia social y cultural que acompaña tales procesos. Tal enfoque podría alentar la creencia de que la CM es una ‘bala mágica’ contra VIH/SIDA, lo cual sería un grave error (NIANG; BOIRO, 2007).

Además, se advierte que los resultados de cual-quier ensayo clínico deben interpretarse en función de las condiciones específicas y tomando en cuenta las di-ferencias epidemiológicas y socioculturales. Mientras que los resultados de las tres pruebas en África mues-tran su efectividad, siendo predominante la transmi-sión del VIH por vía heterosexual, en otros países este resultado es menos claro debido a que tienen

epidemias concentradas entre HSH (SULLIVAN et al., 2007; MACDONALD; HUMPHREYS; JAFFE, 2008). Otros estudios insisten en que la eficacia (me-jora de la salud bajo condiciones ideales de prestadores de expertos y de calidad en los servicios de salud) no es lo mismo que la efectividad (impacto sobre la salud, en condiciones reales, para poblaciones completas), e indican que existe un notable desconocimiento sobre la eficacia en la prevención de los servicios de salud (IMRIE et al., 2007).

Las dudas sobre la calidad de los servicios de salud que realizarían las intervenciones esgrimen que, para ofrecer la CM, es necesaria una inversión en la forma-ción del personal de salud, el desarrollo de servicios de cirugía, la obtención de material quirúrgico especial y la esterilización de equipo quirúrgico. Por otro lado, un incremento en la CM puede causar un cambio en la norma social, que podría traducirse en la estigmatiza-ción hacia hombres no circuncidados, al ser visto como menos ‘seguros’. Dado que los proveedores de salud tendrían que estar autorizados para realizar la cirugía, surge otro reto debido a la grave escasez del personal médico capacitado en el mundo en desarrollo y la so-bredemanda de la población. La experiencia en el des-pliegue de la terapia antirretroviral puede dar una idea del impacto en los servicios de salud, en zonas pobres sin recursos (KARIM, 2007).

Otra dificultad se vislumbra en el caso de co-munidades rurales, en las cuales es difícil estimar la magnitud de la demanda de CM (BUVE; DELVAUX; CRIEL, 2007). Creemos que la asistencia a un ser-vicio de salud móvil no pasaría desapercibida ante poblaciones pequeñas, donde la circulación de infor-mación sobre la vida cotidiana y la sexualidad de sus habitantes quedan descubiertas y no sería atractivos para los hombres si no se garantizan procedimientos que reguarden confidencialidad y anonimato en las in-tervenciones para evitar discriminación.

Una reflexión sobre una política implementada en la India puede ayudar a la comprensión del posible im-pacto de la CM y los retos que la salud pública enfren-taría. La vasectomía, intervención quirúrgica análoga a la CM, se implementó como programa de salud pública en la India entre 1960 y 1970, con el objetivo de con-vertirla en el principal método de planificación de la

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reproducción. Promovida de manera agresiva, el progra-ma alentó a los hombres a ser esterilizados. Sin embar-go, los usuarios no fueron adecuadamente asesorados acerca de los riesgos y beneficios del procedimiento, el sistema de salud no tenía la capacitación y el desarrollo de la infraestructura necesaria, y en algunos lugares se intervino bajo condiciones insalubres. Las muertes, in-fecciones y complicaciones resultantes de la baja calidad de las cirugías generaron protestas y una reducción sig-nificativa en el número de vasectomías realizadas. Has-ta el día de hoy el programa no ha podido recuperarse (CHANDHIOK; GANGAKHEDKAR, 2007).

De lo anterior es posible prever que la entrega del paquete de la CM plantea enormes desafíos, pues no construir una relación de confianza con las comu-nidades para su aceptabilidad puede tener un impacto negativo no sólo en la aceptación de ésta, sino de credi-bilidad en la prevención del VIH.

También se han debatido las implicaciones de la CM en el campo de la sexualidad y las relaciones de género para la prevención del VIH. Hay diversos cues-tionamientos sobre sus efectos en las prácticas sexuales, como la sensibilidad del pene, la estética y la pérdida del placer sexual, sobre si existen cambios en las prácticas eróticas, y si hay cambios sensitivos con el uso, o no, del condón (BERER, 2007).

Así mismo, existe preocupación sobre los hombres recién circuncidados por los riesgos que conllevarían iniciar relaciones sexuales antes de la cicatrización com-pleta, la cual puede tomar semanas, y facilitaría adquirir o transmitir el VIH (O’FARRELL, 2007). Estos datos obligan a los futuros programas de CM a hacer hincapié en que su protección es ‘parcial’, y que la reanudación prematura de relaciones sexuales antes de completar la cicatrización puede aumentar el riesgo de adquirir VIH y/o transmitirla a sus parejas femeninas, incrementando el riesgo de complicaciones postoperatorias (KARIM, 2007; MATOVU et al., 2007; BUTLLER; ODLING-SMEE, 2007).

Este asunto es problemático si se considerar que la CM, además de influir en la sexualidad, también podría incidir en las relaciones de género e incrementar el ries-go de las mujeres ante la epidemia (HARRISON, 2002; CSETE, 2007). Algunas investigaciones señalan que la protección de la CM puede aumentar el riesgo para VIH

por otros mecanismos, conocidos como ‘compensación del riesgo’, especialmente por la reducción del uso del condón o el incremento en las parejas sexuales, pues es difícil imaginar un mensaje de salud pública que influ-ya a los hombres a se sometieren a la CM e insistieren al mismo tiempo en seguir usando consistentemente el condón (KALICHMAN; EATON; PINKERTON, 2007a; 2007b). Esto sugiere que, a corto plazo por lo menos, la CM podría reducir la incidencia del VIH entre los hombres, pero aumentarla entre las mujeres, lo que a su vez se traduce en mayor riesgo para los hombres. Los modelos epidemiológicos deberían tomar en cuenta esta dinámica, ya que el uso del condón debe seguir siendo utilizado, con o sin CM.

Existen reflexiones centradas en los riesgos para HSH y su relación con la circuncisión. Los estudios en HSH han identificado que el sexo anal receptivo no protegido tiene mayor riesgo de infección por el VIH, lo que sugiere que el estado de la circuncisión de la pareja que penetra puede ser una variable importan-te, que influya en el riesgo para las parejas receptivas (FANKEM; SHEY; HANKINS, 2008). Por lo pronto, los dos estudios antes mencionados centrados en HSH no encontraron una asociación significativa entre el es-tado de la CM y su impacto en la reducción de riesgo al VIH y otras ITS.

Mas allá de evaluar los efectos, particularmente en Asia, Europa, Australia y América, hay una necesidad global de saber si la circuncisión debería ser considerada una herramienta preventiva contra el VIH entre HSH, y si las pruebas clínicas con las que se cuenta son confia-bles. Aún falta interrogar si se debe promocionar la CM entre los HSH para reducir el riesgo de VIH, particu-larmente los que prefieren practicar sexo anal insertivo, lo cual sólo podrá responderse con futuras investigacio-nes (VERMUND; QIAN, 2008).

Por fin, los debates aluden a las cuestiones éticas presentes en las tres pruebas clínicas, tales como la de-cisión de no revelar a los participantes la condición de VIH durante la prueba, la decisión de pagar a los par-ticipantes y los tiempos de las pruebas, e implicaciones para el futuro de la prevención del VIH y sus investiga-ciones (LIE; EMANUEL; GRADY, 2006).

De esta manera, fue hecha una revisión de los principales estudios y debates. Las aportaciones hechas

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por las tres pruebas clínicas a la prevención del VIH han abierto la posibilidad de seguir pensando la efectividad de la CM y de trazar estudios focalizados, como los que se centran en la aceptabilidad, aunque insistimos que sería un riesgo interpretar los resultados como parte de comportamientos individuales, sin tomar en cuenta los contextos culturales y la influencia social, que organiza los significados y las prácticas cotidianas.

Entonces, ¿cortar o no cortar? Preguntase, ¿los estudios de aceptabilidad darían diferentes

resultados si fueran realizados con una orientación desde las ciencias sociales, y con un énfasis mayor y más profundo en los aspectos de la cultura y de la influencia social? Créese que sí, por lo que no sólo la salud pública se vería obligada a realizar inves-tigaciones que indaguen sobre la CM a nivel local y con poblaciones específicas, las otras disciplinas científicas tienen mucho que aportar sobre los hori-zontes de los programas y los desafíos internaciona-les en este campo.

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recebido para publicação em Março/2011. Versão definitiva em outubro/2011. Suporte financeiro: Programa de investigación en Migración y Salud (PiMSa) de la Health initiative of the americas, university of california, Berkeley, School of Public Health, grant No #gHN03w. conflito de interesse: inexistente.

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ARTIgO ORIgInAL • origiNal articlE

Avaliação da assistência obstétrica no Estado da Paraíba à luz das normas sanitárias

Evaluation of the obstetric care in Paraiba in the light of sanitary rules

Viviane rolim de Holanda1, danilo Wanderley Matos de abreu2, Eliane rolim de Holanda3, rômulo Wanderley de lima Cabral4

RESUMO Estudo documental que buscou avaliar a estrutura dos serviços de atenção obstétrica e neonatal na Paraíba, a partir das normas sanitárias vigentes. observou-se que, a maioria das maternidades, não dispõe de materiais para o alívio não farmacológico da dor, não permite acompanhantes, a estrutura física não garante privacidade e prevalece a ausência de quartos destinados à assistência durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato (PPP). Identificou-se como satisfatória a presença das escalas dos plantonistas e de lavabos. Espera-se contribuir para a sensibilização dos gestores de saúde, a fim de melhorar a qualidade das maternidades, a partir dos critérios mínimos de estrutura apontados.

PALAVRAS-CHAVE: avaliação em Saúde; Estrutura dos Serviços; legislação Sanitária; Parto; Mortalidade Materna.

ABSTRACT this is a documental study which aimed to evaluate the structure of the obstetric and neonatal care in Paraíba, from the current sanitary norms. the study observed that most of maternity hospitals has not materials to the non-pharmacological relief of pain. also, companions are not allowed, the physical structure does not provide privacy and, usually, the labor, delivery and post immediate delivery rooms are absent. Moreover, the presence of shift scales and lavabos were identified as satisfactory. therefore, this study intended to contribute to the sensitization of health managers, in the intention of improving the quality of maternity hospitals from the minimum criteria.

KEywORDS: Health Evaluation; Structure of Services; legislation, Health; Parturition; Maternal Mortality.

1 doutoranda em Enfermagem pela universidade Federal do Ceará (uFC) – Fortaleza (CE), Brasil. Professora do Núcleo de Enfermagem da universidade Federal de Pernambuco (uFPE)/Centro acadêmico de Vitória (CaV) – Vitória de Santo antão (PE), Brasil. [email protected]

2 Mestre em Engenharia urbana pela universidade Federal da Paraíba (uFPB) – João Pessoa, (PB), Brasil. Professor do curso de arquitetura da Faculdade de Ciências Sociais aplicadas (FaCISa) – Campina grande (PB), Brasil. [email protected]

3 doutoranda em Enfermagem pela uFC – Fortaleza (CE), Brasil. Professora do Núcleo de Enfermagem da uFPE – Vitória de Santo antão (PE), Brasil. [email protected]

4 Mestre em Saúde Pública pelo Centro de Pesquisa ageu Magalhães da Fundação oswaldo Cruz (NESC/CpaM/FIoCruZ) – recife (PE), Brasil. Professor da Faculdade Santa Emília de rodat – João Pessoa (PB), Brasil. [email protected]

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hOLAnDA, V.R.; ABREu, D.W.m.; hOLAnDA, E.R.; CABRAL R.W.L. • avaliação da assistência obstétrica no Estado da Paraíba à luz das normas sanitárias

Introdução

O conceito de avaliação em saúde tem como pressu-posto a avaliação da eficiência, eficácia e efetividade das estruturas, processos e resultados relacionados ao risco, acesso e satisfação dos cidadãos frente aos serviços na busca da resolubilidade e qualidade (MANZINI; BORGES; PARADA, 2009).

Donabedian (1988) identifica que o cuidado em saúde é constituído por dois domínios: a apli-cação dos conhecimentos e das tecnologias e a re-lação da equipe com o paciente. A qualidade desses dois domínios depende da estrutura como uma pré-condição favorável; pressupõe ainda que uma boa es-trutura dos serviços seja provavelmente o meio mais importante de proteção e promoção da qualidade do cuidado, entretanto não há uma relação direta entre uma boa estrutura e a produção de cuidados de boa qualidade, assim, uma estrutura inadequada pode re-duzir as chances de um cuidado de qualidade, mas não é capaz de determinar esse resultado.

No contexto do Sistema Único de Saúde (SUS), tem-se constituído como um verdadeiro desafio instru-mentar os serviços de condições e estruturas adequa-das, uma vez que essas ainda são consideradas instáveis. Uma estrutura inadequada pode comprometer a quali-dade da atenção nos mais diversos setores, especialmen-te naqueles que prestam cuidados obstétricos.

Diversos estudos têm evidenciado que as mor-tes maternas estão diretamente relacionadas à ade-quada atenção durante o ciclo gravídico-puerperal, podendo ser reduzidas se a assistência profissional e a estrutura institucional forem apropriadas. Desse modo, uma das condições básicas para a organização da assistência obstétrica seria a avaliação permanente dos serviços de saúde.

A mortalidade materna representa grave problema de saúde pública. Trata-se de um fenômeno complexo, cuja gênese envolve determinações de ordem biológica, econômica, social e cultural. Entre os anos de 2000 a 2004, a região Nordeste apresentou a razão de morta-lidade materna (RMM) mais elevada do país e a região Sudeste a mais baixa (63,8 e 44,4 por 100.000 nascidos vivos, respectivamente) (BRASIL, 2007a).

A redução da mortalidade materna tem sido mo-tivo de preocupação das autoridades de saúde, em nível federal, estadual e municipal. Segundo a Organização Mundial de Saúde, as mortes de mulheres, por causas ligadas à gravidez, aborto, parto e puerpério, são evitá-veis em 90% dos casos. No Brasil, onde 97% dos partos são hospitalares, a mortalidade materna está associada às desigualdades e iniquidades sociais, ao desrespeito ao direito de acesso e à baixa qualidade dos serviços de saúde, que realizam muitas vezes procedimentos iatro-gênicos (BRASIL, 2007a; 2007b).

Atualmente, a taxa da mortalidade materna pode ser considerada um excelente indicador de saúde e de qualidade de vida, não apenas da mulher, mas da po-pulação como um todo, por evidenciar mortes precoces que poderiam ser evitadas pelo acesso em tempo opor-tuno a serviços qualificados.

Nesse contexto, a redução da mortalidade mater-na tem sido pauta em âmbitos nacional e internacional, especialmente no que diz respeito à melhoria da qua-lidade da atenção ao processo de parto e nascimento. Tornou-se um compromisso governamental, político e ético do Brasil, por meio de diversos acordos que bus-cam garantir os direitos humanos das mulheres e uma maternidade segura, como o proposto pela Declaração e Metas para o Milênio, na qual se pactuou diminuir, em três quartos, a taxa de mortalidade materna até o ano de 2015.

Em 2004, com o Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal, as ações preconizadas para tal finalidade passaram a ter primazia no SUS. Re-forçando essas ações, em 2006, com o lançamento do Pacto pela Vida, a saúde materna foi estabelecida como prioridade, apontando a necessidade de se garantir os insumos e medicamentos para tratamento das síndro-mes hipertensivas no parto e a qualificação dos pontos de distribuição de sangue para que atendam as deman-das das maternidades (BRASIL, 2006).

Com intuito de conformar o papel da vigilân-cia sanitária, no Pacto pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal, o sistema nacional de vigilância sanitária comprometeu-se com a melhoria da qua-lidade sanitária dos estabelecimentos de saúde que dispõem de atenção materna e neonatal por meio

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de inspeção das unidades hospitalares com leitos obs-tétricos (BRASIL, 2007b).

Assim, em 2005, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) estabeleceu o Programa de Preven-ção e Controle de Riscos em Serviços de Atenção Ma-terna e Neonatal que busca melhorar a condição sanitá-ria e a qualidade dos serviços de saúde; reduzir os riscos associados a processos de trabalho; monitorar a situação sanitária dos serviços utilizando-se de indicadores e re-duzir eventos adversos associados aos equipamentos.

No Brasil, um dos referenciais de ‘avaliação em saúde’ mais utilizado foi proposto por Donabediam (1980; 1988) e compreende a análise da estrutura, processo e resultado. A ‘estrutura’ é compreendida como as características relativamente estáveis dos pro-vedores de cuidados, os instrumentos e recursos que eles têm disponíveis, o ambiente físico e organizacio-nal no qual trabalham.

Sendo assim, a ‘avaliação da estrutura’ refere-se à existência de recursos físicos (instalações), huma-nos (pessoal) e organizacionais (comitês, protocolos assistenciais, etc.) adequados. Para Pereira (1995), a avaliação estrutural baseia-se no princípio de que a qualidade de um serviço está diretamente relacionada com a infraestrutura de que dispõe, ou seja, com os recursos existentes ou aplicados para fazer a estrutura funcionar quando comparados a padrões estabelecidos como desejáveis.

Partindo desse pressuposto, este estudo teve como objetivo avaliar a estrutura dos serviços de saúde que realizam atenção obstétrica e neonatal no Estado da Paraíba, a partir das normas sanitárias vigentes da ANVISA: RDC nº 36/2008 e RDC nº 50/2002.

A RDC nº 36, de 03 de junho de 2008, trata-se de um regulamento técnico com o objetivo de estabelecer padrões para o funcionamento dos serviços de atenção obstétrica e neonatal fundamentados na qualificação, na humanização da atenção e gestão, e na redução e contro-le de riscos aos usuários e ao meio ambiente. Aplica-se aos serviços de saúde no país que exercem atividades de atenção obstétrica e neonatal, sejam públicos, privados, civis ou militares, funcionando como serviço de saúde independente ou inserido em hospital geral, incluindo aqueles que exercem ações de ensino e pesquisa.

Já a RDC nº 50, de 12 de fevereiro de 2002, é um regulamento técnico que dispõe sobre todas as normas para o planejamento, programação, elaboração e avalia-ção de projetos físicos de estabelecimentos assistenciais de saúde, na área pública e privada.

O tema reveste-se de uma importância crucial já que possibilita uma reflexão crítica sobre a qualidade da atenção ao processo de parto e nascimento, forne-cendo subsídios para o desenvolvimento de futuros instrumentos de avaliação para assistência obstétrica, visando à redução da mortalidade materna e à melhoria das condições sanitárias, não só dos serviços de saúde avaliados, mas colaborando com outras realidades que apresentem finalidades parecidas, uma vez que existe uma relação de semelhança entre o cotidiano assisten-cial de um serviço com outro que realize atendimento com os mesmos objetivos.

Metodologia

Esta investigação caracteriza-se por ser um estudo do-cumental, descritivo, de delineamento transversal e com abordagem quantitativa. Os dados foram coletados no órgão de vigilância sanitária do Estado da Paraíba atra-vés dos registros contidos nas fichas de inspeções sanitá-rias realizados nos serviços de atenção obstétrica duran-te o período de janeiro de 2009 a junho de 2010.

Vale ressaltar que, por se tratar de um estudo que não envolveu direta ou indiretamente seres humanos, não foi necessário o encaminhamento e aprovação do projeto de pesquisa para o Comitê de Ética em Pesquisa. No entanto, como utilizou dados secundários contidos nas fichas de inspeções sanitárias, referentes à estrutura física das instituições de saúde, foi solicitada do órgão de vigilância sanitária do Estado da Paraíba permissão documental, através de Termo de Anuência, na qual a mesma autorizou a utilização de seus bancos de dados.

A eleição das variáveis para compor o instrumento de coleta de dados da pesquisa limitou-se ao próprio sistema de registro disponível na instituição, tais como: tipologia dos estabelecimentos, recursos físicos, existên-cia de materiais e equipamentos, existência de normas, rotinas e recursos humanos.

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Assim, os indicadores relativos a recursos físicos e estruturais definidos foram: • Recursosfísicoseestruturais:apossibilidadede

acompanhantes no processo de parto e nasci-mento; a existência de ambientes com capacida-de para um leito e banheiro anexo, destinado à assistência à mulher durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, sendo esse conheci-do como ‘quarto PPP’; a adequação das salas de parto normal, cesárea e do alojamento conjunto para receberem os pais; o estado de conservação, higiene e limpeza da estrutura física (piso, pare-des, teto) e a disponibilidade de pias e lavabos para a higienização das mãos;

• Recursos materiais e equipamentos: a presença,nas salas de parto normal e de cirurgia cesariana, de fonte de oxigênio com fluxômetro, foco, mesa de parto, maleta de urgência/emergência e de anes-tesia, berço aquecido, estetoscópio clínico adulto e neonatal, estetoscópio de Pinard ou sonar dopller, aspirador a vácuo com manômetro, desfibrilador e, no alojamento conjunto e berçário, balança para recém-nascido e aparelho de fototerapia;

• ‘Normas, rotinas e recursos humanos’: a dispo-nibilidade de normas, rotinas e procedimentos padrões por escrito, a existência de protocolos clí-nicos instituídos, presença da escala dos profissio-nais com nome, número do registro e horário de atendimento em local visível.

O Estado da Paraíba possui 223 municípios, os quais estão divididos em 12 regionais de saúde, perfa-zendo um total de 149 estabelecimentos de saúde com assistência obstétrica (BRASIL, 2009), sujeitos à fisca-lização de vigilância sanitária por equipes multidiscipli-nares pertencentes ao órgão estadual de regulação. No entanto, participaram deste estudo 59 estabelecimentos, utilizando-se como critério de inclusão a solicitação do alvará sanitário e o atendimento aleatório da demanda nas regionais de saúde das inspeções sanitárias.

Os dados obtidos foram organizados, codificados, tabulados e submetidos à análise estatística descritiva pelo programa computacional Excel for Windows 2007. Assim foram analisados quantitativamente, em frequên-

cia (relativa e absoluta) e proporção, sendo apresenta-dos em forma de tabelas.

A análise do material empírico foi realizada à luz dos regulamentos sanitários vigentes preconizados pela ANVISA no tocante a normalização dos serviços de atenção materna, a saber, RDC nº 36/2008 e RDC nº 50/2002, sendo, posteriormente, discutida de acor-do com os aspectos da literatura pertinente.

Resultados

A esfera administrativa dos estabelecimentos estudados, de atenção ao processo de parto e nascimento do Estado da Paraíba, foi organizada em estadual, municipal, particular e filantrópico e está representada na Tabela 1. Dos esta-belecimentos analisados, apenas 2 (1,36%) tiveram alvará sanitário expedido pelo órgão sanitário competente.

Na avaliação dos recursos físicos (Tabela 2), destaca-se a inexistência de quartos PPP, ambiente com capaci-dade para um ou dois leitos e banheiro anexo, destinado à assistência à mulher durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato. A maioria dos estabelecimentos apresentava pia e/ou lavabos para higienização das mãos.

Variável (n=59) n %Estadual 12 18,65Municipal 20 33,90Particular 15 25,42Filantrópico 12 22,03

tabela 1. Tipologia dos estabelecimentos.

Fonte: Elaboração própria, 2011.n: frequência das observações.

Variável (n=59)Sim Não

n % n %Estrutura para acompanhante 8 13,56 51 86,44Existência de quarto P.P.P. 0 0,0 59 100,0adequação da Sala de Parto 46 77,97 13 22,03adequação da Sala Cirúrgica 40 71,43 19 28,57adequação do alojamento Conjunto 39 66,10 20 33,90Integridade de pisos, paredes e tetos 48 81,36 11 18,64disponibilidade lavatórios de mãos 51 86,44 8 13,55

tabela 2. Existência de recursos físicos e estruturais.

Fonte: Elaboração própria, 2011.n: frequência das observações; PPP: ambiente com capacidade para um leito e banheiro anexo, destinado à assistência à mulher durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato.

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O espaço físico das instituições dificulta a presen-ça de acompanhante no pré-parto, no trabalho de parto e no alojamento conjunto, bem como não permite a privacidade da parturiente e da puérpera. O sistema de alojamento conjunto consiste em um princípio hospi-talar em que o recém-nascido sadio, logo após o nasci-mento, permanece ao lado da mãe 24 h por dia, em um mesmo ambiente até a alta hospitalar. Tal sistema de internação possibilita ao binômio mãe-filho estabelecer laços afetivos e, ainda, receber incentivos ao aleitamen-to materno, orientações de cuidados de mãe para filho e prevenção de infecções (BRASIL, 1993).

Quanto a adequação das salas de parto, observou-se a ambiência que se refere ao ambiente físico, social, profissional e de relações interpessoais relacionada a um projeto de saúde voltado para a atenção acolhedora, re-solutiva e humana da atenção ao parto, além da dispo-nibilidade dos equipamentos e materiais recomendados na RDC nº 36/2008 nesses ambientes.

Em relação aos recursos materiais e equipamentos (Tabela 3) foram considerados os pertencentes exclusiva-mente às salas de pré-parto e parto (normal e cirúrgico) e do alojamento conjunto. Observou-se que os materiais de reanimação neonatal (ambú, laringoscópio, cânulas endotraqueais, desfibrilador) e, muitas vezes, os torpe-dos/cilindros de oxigênio (gás medicinal), eram retirados da sala de pronto-atendimento e conduzidos para a sala de parto, pela indisponibilidade de um quantitativo sufi-ciente, em muitos dos hospitais avaliados.

Quanto aos itens relacionados aos recursos humanos e a implantação de normas e rotinas (Tabela 4), verificou-se como satisfatória a presença das escalas de serviço dos plantões dos profissionais médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem. Contudo, registra-se que muitas vezes, essas escalas não estavam em local visível e apresentavam nomes incompletos, ausência do número do registro do profissional e horário de atendimento, conforme preconi-za a RDC ANVISA nº 36/2008. Há deficiência na im-plantação das normas e rotinas escritas e nos protocolos institucionais para organização da assistência obstétrica.

Verificou-se, nos registros das maternidades ava-liadas, uma carência de enfermeiros com títulos de especialistas em obstetrícia para o acompanhamen-to do processo de parturição bem como a carência de médicos especialistas em pediatria/neonatologia para a

assistência ao recém-nascido, visando garantir um parto e nascimento seguros.

Destaca-se também que apenas um número redu-zido das maternidades avaliadas dispunha de materiais para promoção do alívio não farmacológico da dor e de estímulo à evolução fisiológica do trabalho de parto, tais como: barra fixa ou escada de Ling, bola de Bobat, cavalinho, dentre outros, considerados itens importan-tes para promover ambiência acolhedora e ações de hu-manização da atenção à saúde.

Outra questão a ser apresentada por este estudo refere-se à desigualdade verificada na oferta geográfica dos serviços de atenção materna. Foi observado um dé-ficit de leitos públicos nas regiões mais afastadas da ca-pital, principalmente para gestantes e recém-natos com patologias que exijam atendimentos complexos.

Como agravante, alguns municípios não possuem rede de serviços de saúde adequada, sobrecarregando a rede hospitalar da capital do Estado da Paraíba. As

Variável (n=59)Sim Não

n % n %oxigênio exclusivo para Sala de Parto 31 52,54 28 47,46oxigênio exclusivo para Sala Cirúrgica 41 69,49 18 30,51Foco de luz móvel 37 62,71 22 37,29Mesa de parto adequada 48 81,36 11 18,64ressuscitador manual (ambú) 39 66,10 20 33,90Estetoscópio (Parto) 43 72,88 16 27,12Esfigmomanômetro (Parto) 42 71,19 17 28,81aparelho de sonar (detector fetal) 32 54,24 27 45,76aspirador 42 71,19 17 28,81Cardioversor (desfibrilador) 4 6,78 55 93,22Balança 33 55,93 26 44,07aparelho para fototerapia 41 69,49 18 30,51Berço aquecido 33 55,93 26 44,07Berço de acrílico 50 84,75 9 15,25

tabela 3. Existência de materiais e equipamentos.

Fonte: Elaboração própria, 2011.n: frequência das observações.

Variável (n=59)Sim Não

n % n %Escala de profissionais completa 52 88,14 7 11,86Protocolos clínicos 16 27,12 43 72,88Normas e rotina disponíveis 16 27,12 43 72,88

Fonte: Elaboração própria, 2011.n: frequência das observações.

tabela 4. Normas, rotinas e recursos humanos.

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maternidades com melhores avaliações registradas en-contravam-se nas macrorregiões do estado (João Pessoa, Guarabira, Campina Grande, Patos, Sousa e Cajazei-ras). Esse fato provoca uma verdadeira peregrinação de gestantes e recém-natos de risco, de muitos municípios, em busca de uma assistência mais adequada.

Discussão

As mortes maternas estão estreitamente condicionadas à falta de reconhecimento desse evento como um pro-blema social e à deficiência da qualidade estrutural dos serviços de saúde oferecidos às mulheres no ciclo gra-vídico-puerperal. O enfrentamento dessa problemática implica no envolvimento de diferentes atores sociais, de forma a garantir que as políticas públicas nacionais sejam, de fato, executadas e respondam às reais neces-sidades locais da população. Dessa forma, os caminhos apontados para redução da morbimortalidade materna vêm dos compromissos políticos e éticos firmados entre o governo e a sociedade.

Dentre as ações estratégicas firmadas no Pacto Na-cional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal destacamos: o controle social; a qualificação e humaniza-ção da atenção ao parto, nascimento e abortamento; a or-ganização do acesso e garantia de continuidade do cuidado em todos os níveis de atenção; o fortalecimento da atenção pré-natal; a vigilância ao óbito materno e infantil e o apoio à criação de Centros de Parto Normal (BRASIL, 2004).

Essas ações visam garantir o atendimento de qua-lidade nos serviços e pretendem assegurar o parto como uma urgência prevista, como também vincular a ges-tante ao serviço que atenderá o seu parto. Pretendem, ainda, promover o direito ao acompanhante, expandir a rede de hemoderivados, adequar os hospitais de pe-queno porte, definir os critérios mínimos para o fun-cionamento de maternidades, incentivar a formação de enfermeiras obstétricas e a qualificação de parteiras tradicionais e doulas. Logo, a redução dos eventos ad-versos associados à assistência a saúde está associada ao reconhecimento da diversidade e das especificidades locais, de forma que se articule o enfoque de risco (pro-teção) e o enfoque clínico, transformando o agir em saúde (LOPES; LOPES, 2008).

A construção de um modelo assistencial que aten-da as necessidades ampliadas da saúde da mulher e de sua família encarando-os como sujeitos no processo de parto e nascimento pode representar, portanto, um im-pacto favorável em relação aos atuais indicadores exis-tente em nosso país. Para tanto, é preciso ver esse pro-cesso como um acontecimento único e individualizado, pautado na humanização da assistência.

Percebe-se que práticas favoráveis ao processo de parto normal, como a presença de acompanhante e controle não farmacológico da dor, entre outras, ainda são pouco praticadas nas maternidades estudadas. Per-mitir a presença do acompanhante, de livre escolha da mulher, no acolhimento, no trabalho de parto, no parto e no pós-parto imediato é um direito da parturiente (BRASIL, 2005a; 2005b).

Existe, contudo, a necessidade de modificações na qualidade e humanização da assistência ao parto nas maternidades brasileiras, que inclui desde a adequação da estrutura física e equipamentos dos hospitais, até uma mudança de postura e atitude dos profissionais de saúde e das gestantes. A adequação física da rede hos-pitalar para que a mulher possa ter um acompanhante durante o trabalho de parto e para os procedimentos de alívio da dor requer, além de boa vontade, também investimentos (BRASIL, 2000; 2001; 2005).

Para D´Orsi et al. (2005), a presença do acom-panhante no processo de parto e nascimento transmite segurança emocional, trazendo benefícios à saúde da mulher e do recém nascido, além de humanizar o cui-dar prestado. Narchi (2009) reforça que a presença do acompanhante associa-se à menor necessidade de anal-gesia, parto operatório e experiências não satisfatórias, como também aumenta o índice de aleitamento mater-no e diminui a ocorrência de depressão puerperal.

Os resultados encontrados evidenciam a neces-sidade das maternidades garantirem a privacidade da parturiente e de seu acompanhante, além de propor-cionarem condições que permitam a deambulação e movimentação ativa da mulher, desde que não existam impedimentos clínicos.

Uma vez que ambientes desfavoráveis, sem espaço para deambulação, sem a possibilidade de presença de acompanhantes, nos quais a gestante permanece con-tinuamente deitada, prolongam o trabalho de parto e

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causam aumento do uso de ocitócitos para estimular as contrações (NARCHI, 2009).

Barros (2009) afirma que as maternidades devem primar por um ambiente físico, social, profissional e de relações interpessoais relacionados a um projeto de saúde voltado para a atenção acolhedora, resolutiva e humana. Entretanto, a falta de privacidade no pré-parto (expecta-ção) e no ambiente do nascimento tem levado algumas maternidades a permitir somente acompanhantes do sexo feminino, o que restringe as possibilidades de esco-lha e exclui a presença do pai da criança (D´ORSI et al., 2005; PARADA; CARVALHAES, 2007).

Ressalta-se que todos os projetos para nova cons-trução, reforma ou ampliação de estabelecimentos de saúde necessitam ser submetidos à análise e aprovação dos órgãos de vigilância sanitária e devem permitir condições de conforto (higrotérmico, qualidade do ar, acústico, luminosidade) adequadas, além de se garan-tir controle de infecções (fluxo de trabalho, sistema de transporte de materiais, barreiras físicas, níveis de bios-segurança), fornecimento de água (reservatório), esgo-to sanitário, energia elétrica e sistema de emergência, disponibilidade de gases medicinais e segurança contra incêndio (ANVISA, 2002).

É previsto na RDC ANVISA nº 36/2008 que os serviços que realizam partos cirúrgicos devem possuir estrutura e condições técnicas para realização de partos normais sem distócia. Porém, verificou-se que algumas maternidades estudadas ofereciam apenas o parto cirúr-gico, previamente agendado; fato que contraria a cam-panha nacional de incentivo ao parto normal e redução da cesárea desnecessária.

A Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS), realizada em 1996, mostrou uma cobertura institucional de parto de 91,5%. Todavia, 36% desses partos são cesarianas, um procedimento que, ao ser re-alizado sem indicação precisa, pode resultar em uma mortalidade materna até 12 vezes maior do que a ob-servada no parto vaginal. A cesariana implica no dobro da permanência no hospital e pode gerar transtornos respiratórios neonatais e prematuridade iatrogênica (BRASIL, 2004).

É inegável que o parto cirúrgico quando bem in-dicado pode colaborar para a redução da morbimorta-lidade materna e perinatal. Contudo, no Brasil as taxas

de cesárea estão muito acima dos 15% preconizados pela Organização Mundial da Saúde, principalmente no setor de saúde suplementar. Rezende, e Montenegro (2008) e Zugaib (2008) corroboram que os procedi-mentos cirúrgicos, na atenção ao parto, devem ter indi-cações e evidências claras para sua realização.

Dessa maneira, a cesárea não é um procedimento inócuo para a mãe e o bebê, como qualquer cirurgia ela traz consigo riscos próprios, pertinentes ao proce-dimento (ALVES; SILVA, 2000). O adequado acom-panhamento do trabalho de parto e a correta indicação de cesárea podem contribuir para a redução dos óbitos maternos e entre os nascidos vivos.

Todas as unidades integrantes do SUS devem dispor de recursos humanos qualificados para uma adequada assistência ao parto (BRASIL 2000; 2005). Nesse sentido, as maternidades precisam possuir equi-pe dimensionada, quantitativa e qualitativamente, atendendo as normatizações vigentes de acordo com a proposta assistencial e perfil de demanda. Devem ainda garantir educação permanente para os trabalha-dores da saúde, priorizando o controle, prevenção e eliminação de riscos sanitários, em conformidade com as atividades desenvolvidas.

Segundo Parada e Carvalhaes (2007) e Alves e Silva (2000), o enfermeiro especialista em obstetrícia parece ser um profissional adequado e com melhor custo-efetividade para ser responsável pela assistência à gestação e aos partos normais sem distócia. Sua incor-poração na atenção ao processo de parto e nascimento, é consenso na literatura especializada.

A ação do enfermeiro na assistência ao parto sem distócia pode possibilitar a construção de vínculos e de confiança por meio de um relacionamento terapêutico, permitindo a condução de um processo de nascimen-to menos intervencionista e resolutivo. A assistência ao recém-nascido na sala de parto, por um pediatra ou neonatologia, visa à prevenção de sequelas por inter-corrência perinatal (MANZINI, BORGES, PARADA, 2009; BRASIL, 1993).

Contudo, os profissionais de saúde inseridos no contexto da assistência ao parto, para que possam pres-tar um cuidar de qualidade e de forma competente, ne-cessitam de um contexto facilitador, incluindo acesso a equipamentos e medicamentos essenciais, instituição

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de protocolos de atendimentos baseados em evidências científicas, sistema de referência em funcionamento, competência clínica e o desenvolvimento de habilida-des interpessoais eficazes.

Observa-se também que os serviços de atenção obstétrica devem cumprir com as medidas de prevenção e controle de infecções. A equipe de saúde deve orien-tar os familiares e acompanhantes das pacientes sobre ações de controle de infecção e eventos adversos. Uma medida eficaz é a higienização das mãos, que consiste em uma medida individual simples e menos dispendio-sa para prevenir a propagação das infecções relacionadas à assistência.

Os lavatórios para higienização das mãos podem ter formatos e dimensões variadas, porém, a profundi-dade deve ser suficiente para que se lavem as mãos sem encostá-las nas paredes laterais ou bordas da peça e tam-pouco na torneira. Devem, também, possuir provisão de sabonete líquido, além de papel toalha que possua boa propriedade de secagem (ANVISA, 2002).

As preparações alcoólicas para higienização das mãos devem estar disponibilizadas na entrada da unida-de, entre os leitos e outros locais estratégicos definidos pelo programa de controle de infecção de cada serviço de saúde, devendo os profissionais de saúde estimular a adesão às práticas de higienização das mãos tanto pelos usuários como pelos demais profissionais.

Para redução do risco sanitário, os serviços de atenção materna devem instituir normas e rotinas téc-nicas (limpeza, desinfecção e esterilização de materiais e superfícies, biossegurança, gerenciamento de resíduos de serviços de saúde) e implantar protocolos institucio-nais, escritos, atualizados e de fácil acesso a toda a equipe de saúde, em conformidade com evidências científicas. Dessa forma, todos os procedimentos adotados durante a assistência devem ser baseados na avaliação individua-lizada e em protocolos clínicos institucionais.

Nos estudos de avaliação em saúde, a comparação entre as ações realizadas com as normas e procedimen-tos recomendados tem sido utilizada para classificação da qualidade tecnicocientífica da atenção à saúde. Trata-se da qualidade definida a partir dos critérios de atuação dos profissionais (D´ORSI et al., 2005).

Outro ponto que merece destaque é o fato de mais da metade das mortes maternas e neonatais ocorrerem

durante a internação do processo de parto e nascimen-to (BRASIL, 2004). Nesses casos, a conduta adequada é tomada quando não há mais tempo hábil para que seja eficaz. Isso resulta da inexistência de leitos e/ou de um sistema de referência formalizado para o parto, que obriga as mulheres a perambular em busca de vagas; do encaminhamento tardio de mulheres com intercor-rências para hospitais de referência; do despreparo de grande parte das maternidades para responder pronta-mente às urgências e emergências obstétricas, somadas à indisponibilidade de sangue e hemoderivados em tem-po oportuno.

A preocupação com a peregrinação à procura de uma instituição hospitalar, por ocasião do parto, é consequência da falta de ações articuladas dentro de uma política pública que garanta uma central de vagas satisfatória para responder à demanda. A desarticula-ção das ações no ciclo gravídico-puerperal é um dos fatores que influencia a fragmentação da assistência e gera ansiedade com repercussões negativas para o pro-cesso de nascimento, além de ser causa de desconfor-to, violência e mortes maternas no país como um todo (HOLANDA, 2006).

Alguns itens não mensurados neste estudo, tais como a disponibilidade de exames laboratoriais, preen-chimento do partograma e o acesso à rede de hemote-rapia merecem destaque e posteriores pesquisas para a investigação dos índices de morte materna.

Considerações finais

A assistência hospitalar ao parto precisa ser segura, garantindo para cada mulher os benefícios dos avanços com base em evidências científicas. Mas, fundamental-mente, precisa permitir e estimular o exercício da ci-dadania feminina resgatando a autonomia da mulher no parto. Para tanto, os serviços de atenção obstétrica devem contar com estrutura física, recursos humanos, equipamentos e materiais necessários a sua operacio-nalização, de acordo com a demanda, complexidade e modalidade de cuidado prestado, de forma a assegurar a qualidade e a continuidade da assistência a parturiente.

Nessa perspectiva, oferecer um cuidar obstétri-co de qualidade e humanizado parece ser um grande

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desafio que se apresenta aos profissionais e gestores de saúde. É necessária uma abordagem que respei-te a fisiologia do trabalho de parto, permita a parti-cipação ativa da mulher e de seu acompanhante no processo de parto e a elaboração de uma proposta de caráter amplo para se discutir a questão da mortali-dade materna, considerando as diferentes dimensões do problema e propondo a construção de um pensar e fazer coletivo.

O papel dos gestores de saúde é fundamental nesse processo, uma vez que a melhoria da qualidade

dos hospitais brasileiros dependerá da soma de es-forços e de uma articulação efetiva de todos os su-jeitos envolvidos. Assim, espera-se que os resultados deste estudo possam contribuir para a sensibilização dos gestores de saúde, uma vez que aponta possíveis fragilidades nos serviços de saúde e indica critérios mínimos de estrutura para o funcionamento adequa-do de maternidades. Tais direcionamentos são funda-mentais para proporcionar uma atenção ao processo de parto e nascimento pautado nos princípios da in-tegralidade em saúde.

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recebido para publicação em Julho/2011 Versão definitiva em outubro/2011 Suporte financeiro: Não houve conflito de interesse: inexistente

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ARTIgO ORIgInAL • origiNal articlE

A importância do correto preenchimento das fichas de atendimento: relato de auditoria odontológica pelo Ministério Público

the importance of proper completion of care records: dental audit by Public attorneys

Mário Marques Fernandes1, rafael Bender Carpena de Menezes de oliveira2, Mara rosângeles de oliveira3, talita lima de Castro4, daniel Pereira Parreiras de Bragança5, Eduardo daruge Júnior6

RESUMO o presente trabalho objetivou relatar um caso de auditoria odontológica em fichas de atendimento ambulatorial do Sistema Único de Saúde, bem como alertar os gestores e profissionais quanto à importância de se observar o correto preenchimento da documentação administrativa durante a assistência odontológica. o não cumprimento das normas que regem o preenchimento da documentação relacionada aos tratamentos odontológicos realizados no âmbito da rede pública acarreta ônus indevido a todos os envolvidos no Sistema: profissionais, gestores e usuários, podendo os envolvidos serem investigados nas esferas civil, penal e administrativa.

PALAVRAS-CHAVE: Normas técnicas; Ministério Público; auditoria odontológica; Sistema Único de Saúde; odontologia legal.

ABSTRACT this study aimed to report a case of dental audit in outpatient care records of unified Health System and to alert managers and professionals about the importance of correct filling of administrative documents during dental care. the non compliance with the rules which govern the filling of documentation related to dental care carried out within the public service causes burden to the people involved: professionals, managers and users. People involved can be investigated in civil, criminal and administrative fields.

KEywORDS: technical Standards; Public attorneys; dental audit; unified Health System; Forensic dentistry.

1 Mestre em odontologia legal e deontologia pela Faculdade de odontologia de Piracicaba (FoP) da universidade Estadual de Campinas (uNICaMP) – Piracicaba (SP), Brasil. odontólogo do Ministério Público do Estado do rio grande do Sul – Porto alegre (rS), Brasil. [email protected]

2 Especialista em Cirurgia Bucomaxilofacial. odontólogo do Ministério Público do Estado do rio grande do Sul – Porto alegre (rS), Brasil. Professor do Serviço de Cirurgia Bucomaxilofacial da Irmandade Santa Casa de Misericórdia – Porto alegre (rS), Brasil. [email protected]

3 Especialista em Saúde Coletiva pela Escola de Saúde Pública - Porto alegre (rS), Brasil. odontóloga do Ministério Público do Estado do rio grande do Sul – Porto alegre (rS), Brasil. [email protected]

4 Mestranda em odontologia legal e deontologia pela FoP/uNICaMP – Piracicaba (SP), Brasil. odontóloga legal da Polícia Civil do Estado de rondônia – Porto Velho (ro), Brasil. [email protected]

5 Mestrando em odontologia legal e deontologia pela FoP/uNICaMP – Piracicaba (SP), Brasil. [email protected]

6 livre docente de odontologia legal da FoP/uNICaMP – Piracicaba (SP), Brasil. Coordenador do Curso de Especialização em odontologia legal da FoP/uNICaMP – Piracicaba (SP), Brasil. [email protected]

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FERnAnDEs, m.m.; OLIVEIRA, R.B.C.m.; OLIVEIRA, m.R.; CAsTRO, T.L.; BRAgAnçA, D.p.p.; DARugE JúnIOR, E. • a importância do correto preenchimento das fichas de atendimento: relato de auditoria odontológica pelo Ministério Público

Introdução

O Ministério Público tem como atribuição, dentre outros papéis, defender os interesses sociais e in-dividuais, entre eles o direito à saúde, por meio de investigações civis ou de procedimentos investigató-rios criminais. Isso inclui a auditoria em documen-tos odontológicos provenientes do Sistema Único de Saúde (SUS), quando necessário. Como órgão fiscali-zador estabelecido constitucionalmente, a Instituição é fruto do desenvolvimento do estado brasileiro e da democracia (FERNANDES, 2009).

Por meio da Portaria conjunta entre o Ministério da Saúde e o Ministério Público (MP) Federal, foi cria-do o Grupo de Acompanhamento e Responsabilização (GAR), com a finalidade de garantir os interesses sociais e individuais assegurados pela Constituição Federal, re-ferente ao processo de atenção à saúde do SUS. O MP passa a atuar com mais eficiência na apuração, fiscali-zação e responsabilização de irregularidades verificadas durante as auditorias realizadas (MELO, 2007).

Estudos envolvendo a atuação do Ministério Pú-blico relacionada à verificação de situações específicas de saúde têm mostrado a importância da participação dos mecanismos técnicos da própria Instituição no assessora-mento aos Promotores de Justiça (RIO GRANDE DO SUL, 1995), auxiliando na tomada de decisão e nos en-caminhamentos necessários pertinentes a questões vincu-ladas ao direito em saúde (FERNANDES, 2008).

De acordo com os princípios e as diretrizes que norteiam a Odontologia moderna, faz-se necessário a divulgação, a inserção, o acompanhamento, o monito-ramento e a avaliação dos serviços prestados em saúde bucal no âmbito do SUS, conforme normas e padrões de biossegurança na prática odontológica e no controle de riscos operacionais, considerando a atual capacidade instalada de equipamentos de Odontologia e as moda-lidades inovadoras de reorganização da atenção odonto-lógica (BRASIL, 2005a).

O trabalho de auditoria no SUS é extremamente complexo, necessitando de uma grande quantidade de informações que precisam ser cuidadosamente extraí-das, trabalhadas e interpretadas, pois muitos interesses e responsabilidades estão em foco quando se audita em saúde. É necessidade essencial para a gestão nessa área

o conhecimento, com qualidade e rapidez, da situação de saúde. Essa informação, se de fácil acesso e dispo-nível com qualidade, torna-se de grande auxílio para a tomada de decisão em qualquer área de atuação, como planejamento estratégico, setorial, controle e avaliação, auditoria, investigação epidemiológica, entre outros (BRASIL, 2007).

Diante da importância pública do tema, o pre-sente trabalho objetivou relatar um caso de auditoria odontológica em fichas de atendimento ambulatorial do SUS, bem como alertar os gestores e profissionais quanto à importância de se observar o correto preen-chimento da documentação administrativa durante a assistência odontológica.

Metodologia

A auditoria nas Fichas de Atendimento Ambulatorial (FAA) Odontológico teve origem e foi conduzida para responder a dois quesitos: aferir se os procedimentos realizados eram compatíveis e se havia regularidade no seu preenchimento (vide um exemplo de FAA auditada na Figura 1). As FAA são oriundas de uma associação hospitalar pública no Estado do Rio Grande do Sul referentes aos atendimentos dos anos de 2004, 2006, 2007 e janeiro e fevereiro de 2008. A análise foi rea-lizada numa amostra, correspondendo a 1.022 fichas, escolhidas de maneira aleatória, incluindo os meses de janeiro e julho dos respectivos períodos.

Visando realizar a auditoria nos documentos da amostra, procurou-se verificar quais as orientações ofi-ciais sobre o preenchimento das fichas são indicadas pelo Ministério da Saúde (Datasus) e qual era o pro-cedimento que estava sendo realizado pelo profissional ora auditado. De acordo com o banco de dados do Siste-ma de Informações Ambulatoriais do SUS (SIA/SUS), mais precisamente na parte que versa sobre “Estrutura do Código de Procedimento”, pode-se identificar cada um deles e seus respectivos códigos.

Procedeu-se a análise do preenchimento das fichas (incluindo os campos de identificação contendo o muni-cípio de origem, assinatura do profissional, registro jun-to ao Conselho Regional de Odontologia do Rio Gran-de do Sul (CRORS), uso de carimbo), a verificação dos

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procedimentos registrados e do código utilizado, assim como a classificação atribuída a cada atendimento feito. Nessa fase, não se quantificou a amostra por especia-lidade envolvida (como dentística, cirurgia, urgência, etc.), pois, para os enquadramentos administrativo e legal isso não seria relevante. Os auditores ocuparam-se em constatar tanto a irregularidade do preenchimento, quanto a incompatibilidade dos procedimentos, ambos de maneira repetida e sistemática. Posteriormente, após oferecida a denúncia pelo Ministério Público, e a cri-tério do Judiciário, a totalidade das FAA poderão ser quantificadas por um perito oficial para calcular o valor indevido repassado para os envolvidos (associação hos-pitalar, município e profissional).

Visando atender às questões éticas envolvidas, esse estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa

da Faculdade de Odontologia de Piracicaba da Univer-sidade Estadual de Campinas (FOP/UNICAMP) e li-berado pelo ofício 018/2009.

Relato do caso

O Promotor de Justiça de um município do interior do Rio Grande do Sul, visando instruir os autos de um procedimento investigatório criminal, solicitou perícia nas FAA odontológicas do SUS, para aferir se os aten-dimentos realizados eram compatíveis e se havia regula-ridade no preenchimento desses documentos.

A equipe da promotoria procedeu à coleta de dados junto à prefeitura, e obteve as fichas de aten-dimento clínico para auditoria. Foi solicitado o

Figura 1. Exemplo de Ficha de Atendimento Ambulatorial auditada.

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assessoramento técnico dos odontólogos do Serviço Biomédico do Ministério Público do referido Estado, que realizaram o estudo técnico numa amostra dos do-cumentos remetidos.

Os assessores tiveram a preocupação de solicitar ao Promotor de Justiça a obtenção, junto ao gestor, do protocolo que orienta o correto preenchimento das fichas de atendimento ambulatorial utilizadas pela Secretaria Municipal de Saúde daquele município. A Prefeitura informou que a ficha é preenchida pela ser-vidora que atende na recepção e, em seguida, encami-nhada para o profissional realizar o atendimento. Des-sa forma, pareceu não haver uma rotina de orientação ou fornecimento de material explicativo para o correto preenchimento das fichas.

Após análise, foi elaborado um laudo técnico, cuja conclusão foi a existência de fortes indícios de incompa-tibilidade nos procedimentos realizados e a constatação de irregularidade no preenchimento das fichas, entre as quais podemos citar:1. Falta de assinatura, registro junto ao Conselho

Regional de Odontologia (CRO) e do uso do carimbo;

2. Atendimento a pacientes de outro município; 3. Utilização do código para capeamento pulpar em

100% das restaurações realizadas;4. Utilização de forma equivocada dos códigos da

dentística, utilizando o registro de restaurações de duas ou mais faces por mais de uma vez no mesmo dente;

5. Utilização do código referente à consulta odonto-lógica eletiva para casos de urgência;

6. Utilização de códigos para tratamento de com-plicações pós-operatórias em todas as exodontias realizadas.

Pode-se observar, na Figura 1, as irregularida-des 1, 3, 4 e 5, descritas acima. Com base no relató-rio apresentado pelos assessores técnicos do MP, nas declarações dos envolvidos e no material probatório coletado, o Promotor de Justiça pode planejar qual seria o melhor caminho jurídico para o caso, sen-do que foi oferecida denúncia contra o profissional, responsabilizando-o pelos seus atos nas esferas civil, penal e administrativa.

Discussão

Auditoria em serviços de saúde é uma análise dos pro-cedimentos realizados, à luz das boas práticas de assis-tência à saúde e do contrato entre as partes: paciente, profissional e patrocinador, aferindo sua execução, qua-lidade e conferindo os valores cobrados, para garantir que o pagamento seja justo e correto (LOVERDOS, 1999). Baseada na análise de dados estatísticos, docu-mentos, laudos, processos, relatórios e taxas, visa verifi-car o atendimento às normas e padrões pré-estabelecidos e redirecionar o modelo de atenção à saúde (JUHÁS, 2001; MELO, 2007). Destaca-se que, no presente caso, o objetivo da auditoria foi de verificar se a assistência prestada era compatível e se havia regularidade no pre-enchimento das fichas desses atendimentos.

Durante a execução dos serviços odontológicos no SUS, os Cirurgiões-dentistas devem não somente prestar o atendimento adequado aos seus pacientes, dentro dos princípios de integralidade e equidade, mas igualmente se esmerar em cumprir o que orienta os manuais técni-cos de orientação de atendimento ambulatorial e hospi-talar quanto à organização das informações prestadas. De acordo com essas normas, o profissional, ou algum membro da equipe odontológica designado para tal tare-fa, tem a obrigação de preencher os prontuários de cada paciente, anexando a FAA, que deve conter a identifica-ção do paciente, o caráter do atendimento – se eletivo ou de urgência -, o tratamento realizado com a descrição dos procedimentos, seguido do código de procedimento, en-tre outras informações. Essas informações são remetidas para o SIA/SUS, que permite o acompanhamento das programações físicas e orçamentárias das ações de saúde prestadas pela assistência ambulatorial e o maior controle e agilidade nos pagamentos (BRASIL, 2004).

O não cumprimento dessas normas prejudica o conhecimento de informações sobre a rede ambulato-rial e hospitalar que compõem o SUS, e o repasse do custeio ambulatorial (BRASIL, 2004).

O Fundo Nacional de Saúde é uma instituição de gestão financeira dos recursos do SUS. Criada em 1969, passou por importantes modificações, como a publica-ção do Decreto 3.964, de 10 de outubro de 2001, que corroborou a instituição como indispensável na conso-lidação do SUS (BRASIL, 2001). O Decreto conferiu

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FERnAnDEs, m.m.; OLIVEIRA, R.B.C.m.; OLIVEIRA, m.R.; CAsTRO, T.L.; BRAgAnçA, D.p.p.; DARugE JúnIOR, E. • a importância do correto preenchimento das fichas de atendimento: relato de auditoria odontológica pelo Ministério Público

autenticidade às atividades desenvolvidas pela Institui-ção, em especial, às transferências de recursos por meio dos Fundos Estaduais e Municipais de Saúde e a celebra-ção de convênios com Órgãos e Entidades. Além disso, possibilita o parcelamento de débitos dos mesmos, junto ao Ministério da Saúde, e o financiamento de ações de saúde para os Governos Estaduais e Municipais, Enti-dades Filantrópicas, Universidades e outras Instituições, além de consolidar as atividades de Acompanhamento e Prestação de Contas dos convênios celebrados.

Com efeito, visando promover cada vez mais a transparência dos gastos públicos, o Governo Federal incentiva firmemente o controle social dos atos da Ad-ministração Pública e de seus servidores, incluindo aqui os profissionais de saúde ligados ao SUS. Suas condutas e atuações precisam ser pautadas pela legalidade e pela ética, e devem ser exercidos com critério e sensatez, para garantir o bom uso dos recursos públicos.

Vale lembrar que os cidadãos podem e devem vis-toriar os atos e procedimentos realizados no SUS, a fim de garantir a qualidade da assistência prestada ao usu-ário e ampliar o controle do uso dos recursos públicos por parte do governo. A portaria do Ministério da Saúde que aprovou o regulamento do SUS cita em seu artigo 70 que as denúncias sobre possíveis irregularidades en-viadas ao Ministério da Saúde devem ser encaminhadas imediatamente ao Departamento Nacional de Audito-ria do SUS (DENASUS). Considerando a necessidade de investigação das condutas realizadas no SUS, o MP assume a apuração e fiscalização de procedimentos por meio de auditoria, buscando a responsabilização das ir-regularidades encontradas (BRASIL, 2009).

Nesse contexto, há uma clara elucidação de que a auditoria na área odontológica do SUS ainda necessita de profissionais concursados, na própria rede, direcionados apenas a esse serviço. Em consonância com o acatado, a Resolução 20/2001 do Conselho Federal de Odontologia (CFO), referente à normatização de perícias e auditorias odontológicas em sede administrativa, estabelece padrões éticos de atuação, e firma em seu artigo 19 que

não é eticamente compatível o profissio-nal exercer na mesma entidade ou empresa a função de profissional clínico e auditor. (BRASIL, 2001a).

Por isso, vislumbram-se no SUS, em médio prazo, concursos públicos exclusivos para auditores em saúde, especialmente na área odontológica.

É nesse momento, quando ainda não existem tais profissionais, que se torna fundamental a presença de Cirurgiões-dentistas no quadro funcional do Ministério Público, locados no Serviço Biomédico, que realizam a importante atividade de assessoramento técnico aos mem-bros e à Instituição (RIO GRANDE DO SUL, 1995).

No presente caso, a análise e a apreciação dos ele-mentos apurados evidenciaram a incompatibilidade nos procedimentos realizados e a constatação de irregulari-dade no preenchimento das fichas.

Restaurações de dentes e exodontias foram os procedimentos mais executados. A irregularidade, mais frequentemente verificada, relaciona-se as restaurações, seguida do preenchimento indevido do código de pri-meira consulta odontológica nos atendimentos de ur-gência e da falta de identificação do profissional. Fortes indícios de incompatibilidade foram verificados tanto nos registros de restaurações de dentes permanentes, que sempre eram acompanhadas de capeamento pul-par direto, quanto nas exodontias, que sempre estavam associadas a alguma complicação: hemorragia, fístula intra ou extraoral ou fratura alvéolo dentária.

Foi verificado durante a auditoria que o código (03021017) relativo à primeira consulta eletiva estava sendo utilizado em tratamentos de urgência realizados. Porém, de acordo com o manual de orientações técnicas sobre auditoria odontológica no SUS, o código referente à primeira consulta odontológica, utilizado para realizar o exame de toda a cavidade oral do paciente e estabelecer seu plano de tratamento, não deve ser utilizado nos tratamen-tos de urgência e emergência, em que não haverá conti-nuidade do tratamento odontológico eletivo. Nesses casos, registra-se apenas o código dos procedimentos realizados durante a consulta de urgência (BRASIL, 2005).

Outra constatação foi relativa ao código de restau-rações dentárias. A irregularidade aferida pelos assessores demonstra que o profissional utilizava o código referente a uma restauração de duas ou mais faces conforme o núme-ro de faces que realizava. Se o auditado realizava uma res-tauração de amálgama de duas faces no elemento 15, por exemplo, utilizava na FAA o código 03031047 duas vezes. Porém, sabe-se que para o correto preenchimento das fichas,

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FERnAnDEs, m.m.; OLIVEIRA, R.B.C.m.; OLIVEIRA, m.R.; CAsTRO, T.L.; BRAgAnçA, D.p.p.; DARugE JúnIOR, E. • a importância do correto preenchimento das fichas de atendimento: relato de auditoria odontológica pelo Ministério Público

deve-se observar os códigos específicos para restaurações de uma face, duas faces ou três faces. Isso significa que ao rea-lizar uma restauração de amálgama de uma face, utiliza o código 03031055, mas se a restauração for de duas faces de amálgama, utiliza-se somente uma vez o código 03031047. O mesmo ocorre com restaurações feitas com resina fotopo-limerizável em cavidades de, por exemplo, três faces; nesse caso, o código 03031063 deverá ser utilizado apenas por uma vez na ficha (BRASIL, 2005).

Quanto ao capeamento pulpar em restaurações de dentes vitais, foi verificado que em 100% das restaurações presentes nas FAA, havia o código 03031012, correspon-dente a capeamento pulpar. Isso permite concluir que ocor-reu exposição pulpar em todos os elementos restaurados pelo profissional em cinco anos de exercício profissional. Contudo, é sabido que a indicação do capeamento pulpar existe quando, na realização da cavidade, ocorre uma micro-exposição do tecido pulpar por cárie ou trauma, buscando a preservação da vitalidade da polpa (SILVA, 1994). Pode-mos imaginar que o profissional utilizava o referido código para referir-se ao forramento da cavidade a ser restaurada. Tal fato não é admitido, haja vista que esse procedimento já está incluído nos códigos das restaurações dentárias.

Verificou-se que exodontias sempre estavam associa-das a uma complicação pós-operatória ou transoperató-ria. Ora o investigado utilizava o código 03041069, que se refere à hemorragia, ora utilizava o código 010051350, que se refere à fratura alveolodentária, ora utilizava o có-digo 010051333, que se refere a tratamento cirúrgico de fístula intraoral. Isso significa que as exodontias realizadas sempre tinham alguma complicação associada. Sabendo que a literatura afirma que apenas 0,7% das exodontias apresentam complicações transoperatórias, e somente 1,6% no pós-operatório (ABDO et al., 2004), é no mí-nimo incoerente que todas as exodontias realizadas pelo profissional ocasionassem alguma complicação.

Na prática, ações integradas são necessárias para prevenir problemas dessa alçada, incluindo reciclagens, seminários e simpósios para orientação do preenchi-mento das fichas e prontuários, e conscientização sobre todos os aspectos éticos e legais pertinentes ao ato. O Ministério da Saúde tem o dever de prestar cursos e treinamentos para aperfeiçoamento a todos os seus ser-vidores, especialmente Cirurgiões-dentistas e gestores que atuam no SUS em todo território nacional.

O fornecimento das informações solicitadas por escrito, nos espaços apropriados, deve ser realizado com esmero e atenção pela equipe envolvida (auxiliares, téc-nicos e profissionais), buscando a rigorosa descrição e enumeração dos procedimentos realizados, relacionan-do os códigos indicados para cada situação.

O Cirurgião-dentista e o gestor de saúde devem estar atentos às consequências legais que podem ocorrer diante da comprovação pela auditoria de tentativa de sonegação das ferramentas e mecanismos de regulação, avaliação e controle do SUS previstos no SIA/SUS. O profissional responsável pode responder a processo cri-minal por falsidade ideológica, além de processo ético no Conselho Regional de Odontologia (BRASIL, 2003), além das repercussões administrativas previstas na insti-tuição ou empresa que estiver trabalhando. No caso em comento, o enquadramento legal proposto pelo promo-tor de justiça, através da investigação criminal, é de fal-sidade ideológica, artigo 299 do Código Penal Brasileiro (Capítulo da Falsidade Documental), onde está posto:

omitir, em documento público ou particular, declaração que dele deva constituir, ou nele in-serir, fazer inserir declaração falsa ou diversa da que deva ser escrita, com fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade so-bre fato juridicamente relevante.

A penalidade é de reclusão de um a cinco anos e multa se o documento é público, sendo que se o agente é funcionário público e comete o crime prevalecendo-se do cargo, aumenta-se a pena da sexta parte. Na esfera administrativa, as penas estão descritas no Código de Ética Odontológica, podem variar na questão discipli-nar desde advertência confidencial a cassação do exer-cício profissional pelo CFO. Paralelamente, também pode ser estabelecida pena pecuniária que pode variar entre 1 a 25 vezes o valor da anuidade.

Conclusões

O preenchimento inadequado das fichas de atendimen-to ambulatorial acarreta grande prejuízo ao SUS e im-pede o repasse ideal e justo de verbas aos municípios, o

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FERnAnDEs, m.m.; OLIVEIRA, R.B.C.m.; OLIVEIRA, m.R.; CAsTRO, T.L.; BRAgAnçA, D.p.p.; DARugE JúnIOR, E. • a importância do correto preenchimento das fichas de atendimento: relato de auditoria odontológica pelo Ministério Público

que gera prejuízo a toda sociedade civil. Por isso, a par-ticipação da comunidade, uma das diretrizes do SUS, é fundamental, e contribui para o cumprimento das nor-mas pelos profissionais. A sociedade deve estar atenta ao comportamento dos gestores e profissionais da classe odontológica, para que casos de suspeita de irregulari-dades sejam denunciados aos órgãos competentes para a correta investigação e auditoria.

O caso em tela evidenciou quão amplo é o proble-ma. O não cumprimento das normas que regem o pre-enchimento da documentação relacionada aos tratamen-tos odontológicos realizados no âmbito da rede pública

acarreta ônus indevido a todos os envolvidos no Sistema: profissionais, gestores e usuários, podendo os envolvidos se-rem investigados nas esferas civil, penal e administrativa.

Agradecimentos

Os autores agradecem ao Ilmo. Sr. Dr. Subprocu-rador-Geral para Assuntos Administrativos do Minis-tério Público do Rio Grande do Sul pela autorização para publicação do caso, preservando a identificação dos envolvidos.

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REsEnhA • critical rEViEw

Ianni Regia Scarcelli é psicóloga com formação em saúde pública, Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e, como pesquisadora,

tem se dedicado, entre outros problemas, a refletir sobre os efeitos das políticas públicas na vida das pessoas e os tipos de lacunas que se estabelecem entre os âmbitos político-jurídico e técnico-assistencial, quando está em questão a im-plementação de novos planos, programas e políticas. Parte desse trabalho está registrada no livro Entre o hospício e a cidade: dilemas no campo da saúde mental, cuja principal proposta é formular questões que se mostram relevantes ao campo da Saúde Mental a partir de experiências de desinstitucionalização, que foram materializadas nos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT). Os serviços que compõem a rede substitutiva ao hospital psiquiátrico foram regulamentados pela Portaria 106/2000, do Ministério da Saúde, e se constituem como moradias in-seridas na comunidade, destinadas a portadores de transtornos mentais, egressos de internações psiquiátricas de longa permanência, que enfrentam dificuldades de reintegração familiar, moradia e reinserção social.

Ao indagar sobre os problemas e as soluções identificados no processo de transição que ocorre do hospício à cidade, em seu sentido estrito, a autora procu-ra mostrar como os dilemas não se limitam ao desmonte do hospital psiquiátrico, mas também aos aspectos emblemáticos que o manicômio carrega. O manicômio é compreendido como emblema das relações de violência e segregação que sub-sistem na própria estrutura social.

No primeiro capítulo do livro, apresentou-se a discussão desses aspectos sem deixar de considerar, contudo, que parte significativa das elaborações e frentes de ação foi constituída no espaço coletivo de movimentos, como os de Reformas Sanitária e Psiquiátrica.

Uma das problemáticas apresentadas como dilema pela autora refere-se à noção de exclusão social e, como tal, comparece no âmbito das políticas e prá-ticas de Saúde Mental. Essa noção, foco de diversas controvérsias, é debatida no segundo capítulo. Paugam afirma que a noção de exclusão aponta para uma ‘crise do liame social’, na qual o fracasso dos processos de socialização gera a ‘desqualifi-cação social’ dos sujeitos. Tal situação provoca uma situação de insegurança e an-gústia, que afeta a própria subjetividade contemporânea. Por outro lado, outros autores, como José de Souza Martins e Pedro Demo, consideram a exclusão social como um falso problema, tendo em vista que tal processo é intrínseco ao próprio modo de funcionamento da sociedade capitalista. A ideia de exclusão, ao invés de revelar as contradições sociais, corre o risco de mascará-las, levando a formas pobres e insuficientes de inclusão que são pautadas por uma visão assistencialista de resposta à pobreza.

No capítulo três, a autora abordou a questão do morar e o processo de ur-banização das cidades que ocorreu a partir do século XIX. Nesse período, a aglo-meração populacional nas cidades gerou problemas sanitários e habitacionais, os quais levaram ao desenvolvimento de intervenções higienistas e reformas do

Scarcelli, I. r. Entre o hospício e a cidade: dilemas no campo da saúde mental. São Paulo: Zagodoni Editora, 2011.

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REsEnhA • critical rEViEw

espaço urbano. Os modos de morar e a organização das cidades são alvos de dis-cursos e práticas normatizadoras advindos de diversos saberes. A cidade, múltipla e complexa, condensa problemáticas, que suplantam sua esfera e dizem respeito à própria lógica do capital.

A problemática da inclusão do ‘louco’, num contexto social no qual há cada vez mais espaços fechados e excludentes, leva a aproximar esse grupo de outros segmentos da população, que também são considerados excluídos. Desse modo, segundo a autora, as políticas de Saúde Mental devem se articular com as de ha-bitação, cultura, transporte, educação e previdência, considerando os princípios da intersetorialidade. É necessário observar o modo como a inserção social desses grupos é construída, de forma a não se caracterizar como inclusão precária.

No capítulo quatro, a autora analisou duas experiências pioneiras no campo dos SRT, desenvolvidas na cidade de Campinas (Hospital Cândido Ferreira) e de Ribeirão Preto (Hospital Santa Tereza), estado de São Paulo. Essas experiências serviram de base para a formulação da Portaria 106/2000. A pesquisa seguiu o referencial teórico da Psicologia Social, principalmente aquele postulado por Pichon-Rivière. A autora realizou entrevistas individuais e coletivas com mo-radores dos SRT e trabalhadores da Saúde Mental desses municípios. Buscou investigar o que essas duas experiências traziam de contribuições ao campo da Saúde Mental seja como problematização, construção de práticas ou produção de conhecimento.

No processo de constituição das moradias, surge a preocupação com o mo-rar e o debate sobre os critérios de autonomia para participar delas. É comum observar a resistência dos pacientes em ir às moradias extra-hospitalares. A saída do hospício significa também um rompimento com uma organização imposta sobre o sujeito e a perda de referenciais. Isso gera a necessidade de um rearranjo das representações conscientes e inconscientes, além da construção de novos sig-nificados, que nunca foram antes inscritos.

A inserção na moradia não significa necessariamente inserção na comunidade. Há o medo por parte da comunidade no contato com pessoas há muito apartadas do convívio social, estigmatizadas como ‘loucas’ e ‘perigosas’. A discussão sobre reinserção social também traz em seu cerne a discussão sobre a autonomia. A in-ternação no hospício ao longo de décadas cria um forte vínculo de dependência configurado institucionalmente. Fica a questão: até onde intervir nas necessidades dos moradores, até onde assisti-los?

O recebimento da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) pelos mora-dores, a partir de meados da década de 1990, passou a auxiliar o sustento finan-ceiro dos moradores, dando fôlego à implantação das moradias. A questão do consumo é problematizada pela autora. A rotina dos moradores se concentra em dois tipos de atividades: cuidar da casa e fazer compras. Numa sociedade pautada pelo consumo, uma das ligações com a comunidade e de circulação nesta aconte-ce a partir da possibilidade de aquisição.

Foi observada, ao longo da pesquisa, uma multiplicidade de situações: de moradores, que transitavam livremente pela cidade, tendo grande grau de auto-nomia, aos que precisavam de assistência constante, de pessoas que trabalhavam

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1 doutora em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da universidade de São Paulo (uSP); Professora da universidade São Francisco; Membro do laPSo – laboratório de Estudos em Psicologia Social e Psicanálise (IPuSP) – São Paulo (SP), Brasil. E-mail: [email protected]

àquelas que viviam do benefício concedido pelo Estado. A característica comum entre eles era o consenso em não querer voltar a morar no hospital.

No capítulo cinco, a autora fez uma análise crítica do processo de formula-ção das políticas ministeriais no campo da Saúde Mental. Se, por um lado, elas instituem uma série de serviços que possibilitam avanços na Reforma Psiquiá-trica, por outro, ao se padronizar um modelo de atenção, corre-se o risco de se desconsiderar as especificidades locais, bem como o acúmulo teórico e técnico alcançados. Para a construção do direito pleno de cidadania dos moradores, é ne-cessário ampliar os horizontes para além da assistência, de modo a abarcar diver-sos âmbitos: do território às políticas globais, dos serviços às políticas públicas, das representações sociais às inconscientes, da inter à intrasubjetividade.

O trabalho de Ianni Scarcelli apresenta o complexo panorama no qual se insere o processo de Reforma Psiquiátrica brasileira, bem como as inúmeras ques-tões que daí surgem. A obra se constitui como uma contribuição de grande rele-vância, não só para o campo da Saúde Mental, como também para o âmbito das políticas sociais e assistenciais e das políticas públicas de maneira geral.

Mirna Koda1

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35 anos de luta pela Reforma Sanitária

Preservando o interesse público na saúde

O processo de crescimento econômico brasileiro concentra ainda mais o ca-pital, disputado por grupos privados e frações de mercado, cujos objetivos são antagônicos ao interesse publico. A política de desenvolvimento nacional atende a pressões atreladas a interesses privados sem compromisso com a universalidade dos direitos sociais, a preservação ambiental e a justiça social.

Merecem destaque os avanços na redução das desigualdades sociais e na dimi-nuição da pobreza ocorridas nos últimos anos. Quando as classes sociais conquis-tam mudanças por lutas políticas para melhoria de condições de vida, o resultado é o acumulo social de consciência política pelos direitos coletivos. As políticas go-vernamentais de distribuição de renda ocasionaram mudanças, mas o foco ficou restrito a ampliação da capacidade de consumo dos mais pobres.

Para o mercado, o direito ao consumo se sobrepõe ao valor coletivo dos di-reitos sociais, prevalecendo os interesses individuais e esvaziando o sentido coletivo da ‘Política’ na sociedade.

O modelo de desenvolvimento socialmente justo se baseia na universalização dos direitos sociais e não apenas na ideia de ampliação do consumo, que é objetivo do mercado. As disputas entre os interesses públicos e do mercado dependerão da correlação destas forças políticas.

A história mostra que a conquista dos direitos sociais universais é fruto das lutas democráticas e populares, nunca originada da elite política ou do Estado. A democracia precisa ser resgatada, pois as instituições democráticas brasileiras, incluindo os partidos políticos, são hoje reféns da conquista ou da manutenção do poder.

Os programas dos partidos políticos não se comprometem com a defesa de ideias e projetos para atender às necessidades e interesses coletivos. Esta situação tem graves repercussões sobre os direitos sociais e de cidadania. Como exemplo, a conhecida pressão religiosa contra a legalização do aborto, pela criação de co-munidades terapêuticas para tratamento da dependência química, ou em políticas distorcidas pelos interesses dos grupos financiadores das campanhas políticas.

A situação atual da democracia participativa reflete a despolitização da socie-dade e é marcada pelo corporativismo, cooptação e menos pela defesa dos interesses públicos. Na saúde, o Movimento da Reforma Sanitária sempre depositou e de-posita ainda grande expectativa na participação social na luta e conquista da saúde como direito social, mas é necessário avaliar os seus reais avanços e retrocessos nas

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instâncias dos conselhos e conferências, que, muitas vezes, colocam os interesses privados ou de grupos específicos acima do interesse público.

A baixa capacidade dos serviços do Estado em atender às necessidades e de-mandas da sociedade se agrava a cada dia. Entre as complexas causas e conflitos de interesses relacionados ao problema, destaca-se o tendencioso pacto federativo, com recursos e decisões altamente centralizadas, com transferência de responsabili-dades e atribuições para os municípios e estados. A reforma tributária, que poderia corrigir essa distorção, é continuamente adiada e protelada pelo interesse de manu-tenção da governabilidade, imobilizada pelos grupos de interesses que patrocinam e sustentam o governo. O mesmo ocorre com a reforma do Estado, hoje apoiado em estrutura burocrática, centralizada e centralizadora.

A ineficiência do Estado é justificativa frequente para a transferência de res-ponsabilidades para agentes privados, que atuam de acordo aos seus interesses, frente a pouca capacidade regulatória que deveria preservar o interesse público. Na mesma perspectiva, também vem sendo adiada a reforma política que tende à construção de um grande acordo com acomodação de todos os interesses dos diversos grupos envolvidos.

Para agravar, o Governo reforça a imagem da ineficiência do setor público ao valorizar as parcerias público-privado nos seus programas, para transferir tecnolo-gias para o aperfeiçoamento da gestão pública. Fica no ar a preservação dos interes-ses públicos que deveria prevalecer na gestão pública no lugar do gerencialismo e mercantilismo típicos do setor privado.

Os avanços da Reforma Sanitária, especialmente no componente dos resulta-dos da implantação do SUS, não foram poucos e devem ser celebrados como con-quistas sociais. A universalidade da cobertura dos serviços ainda não é fato, mas, efetivamente, houve uma ampliação do acesso aos serviços de saúde. Entretanto, prevalecem as dificuldades de acesso, a baixa qualidade dos serviços, a fragmentação da oferta, e não há integralidade na atenção. O insuficiente financiamento público da saúde tem sacrificado o sistema, penalizando os municípios, e a persistência desta condição mostra a pouca prioridade governamental para a saúde pública.

A diminuição progressiva do financiamento público da saúde, em especial no nível federal, com retração progressiva, ocasiona um ônus real para os mais frágeis, ou seja, os municípios e milhões de famílias brasileiras. É impossível um efetivo sistema público de saúde, universal e integral com o atual gasto anual per capita de US$ 340, quando o gasto público per capita em sistemas europeus com diretrizes similares é de pelo menos US$ 1000 por habitante.

O retrocesso nas bases constitucionais do direito à saúde fica exposto pelo grande crescimento do mercado privado de saúde. Os planos de saúde prosperam por um processo predatório do dinheiro público. Dentre os mecanismos que favo-recem e convivem hoje passivamente, destacam-se: as renúncias fiscais, tanto para empresas que contratam planos para seus empregados, quanto na renúncia fis-cal para contribuintes individuais, o não pagamento do ressarcimento de serviços prestados pelo SUS para beneficiários de planos ou na transferência de pacientes onerosos para o SUS.

DOCumEnTO • docuMENt

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O gasto de dinheiro público para pagamento de planos privados para servido-res públicos representa uma contradição e um efetivo subsídio público aos planos privados de saúde. É necessário apontar essas distorções e, de forma republicana, garantir que o dinheiro público não seja usado para violar o interesse público.

O plano de saúde é usado como forma de controle das empresas sobre o trabalhador, transformado-o em refém do patrão, portador da chave para o acesso à atenção médica. Por um lado, os planos são usados como moeda de troca nas ne-gociações com sindicatos, por outro, as empresas negociam com os planos de saúde a melhor maneira de descartar os empregados que oneram o plano.

É importante valorizar os esforços atuais em instituir normativas necessárias para orientar o funcionamento do SUS. Mas é preocupante a presença recorrente de propostas baseadas no conceito de ‘padrões de integralidade’, ou seja, que o município ofereça o que ‘puder’ e não o que a população ‘precisa’. A proposta não é nova e sua retomada pode aprofundar as desigualdades na oferta e acesso aos serviços. Além disso, fere o princípio da integralidade.

Nesse contexto de conflitos de interesses dissociados dos interesses públicos, a persistência deste cenário reduz a possibilidade de sobrevivência, consolidação e legitimação da Reforma Sanitária nos moldes de sua concepção ampliada fun-damentada na ideia inicial de saúde, bem estar e de seguridade social e base do desenvolvimento social.

Pelo lado mais específico da política setorial de assistência à saúde, fica mais distante a consolidação do SUS orientado pelos princípios constitucionais, ou seja, operado por rede de serviços públicos com complementaridade assegurada pelo uso racional dos serviços privados, garantindo universalidade, qualidade e integralidade.

Os interesses privados e de mercado apostaram no SUS que adere aos seus ob-jetivos: de baixa qualidade, ineficiente e destinado para os mais pobres. É necessário debater sobre o desvio dos rumos do SUS para avaliar possibilidades de retomada do projeto político do direito universal à saúde. Para isso, é imprescindível considerar:• Aprevalênciadosinteressesprivadosnabasedoprojetodedesenvolvimento

nacional em curso e a descaracterização da Saúde como uma Política de Esta-do com baixo investimento público;

• Amercantilizaçãoefinanceirizaçãodosetorquetemtransformadoasaúdeem um dos campos mais lucrativos para investimento do capital financeiro e que induz o consumo de procedimentos, medicamentos e de Serviços Auxi-liares de Diagnóstico e Tratamento (SADT);

• AexíguacapacidaderegulatóriadoEstadoperanteosetorprivado,tantodaindústria, na incorporação tecnológica, quanto do mercado dos planos assis-tenciais, ou mesmo na determinação dos preços para serviços e procedimentos. A regulação realizada atualmente valoriza o sentido cartorial quando deveria garantir efetivamente a primazia do interesse público sobre os privados;

• Ocrescimentodosplanosesegurosdesaúdesubsidiadoscomrecursospúbli-cos e a hegemonia do setor privado no mercado da oferta de serviços de média e alta complexidade;

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• Assucessivaspolíticaseprogramasgovernamentaisdesaúdefocadosnafrag-mentação da assistência e apelos do marketing político, reformas administra-tivas de baixo impacto e, especialmente, a limitação resultante do subfinan-ciamento persistente.

Nessa conjuntura, é pertinente retomar a ideia-lema do CEBES que situa a saúde como questão democrática: ‘Saúde é democracia. Democracia é Saúde’. Revisitar os direitos sociais e defender a saúde universal são caminhos obrigatórios. É preciso mudar a correlação de forças políticas e fazer prevalecer os interesses públicos nas decisões sobre o desenvolvimento econômico e social, garantindo a democratização da sociedade e os direitos sociais.

O momento da realidade nacional e do próprio setor saúde exige a mobiliza-ção e intervenção coletiva, articulada e persistente que recuperem e renovem os ob-jetivos da Política e do Movimento de Reforma Sanitária, atualizando a agenda sob a égide das conquistas constitucionais e analisando o projeto de desenvolvimento em curso no país e, ao mesmo tempo, considerando as condições econômicas, po-líticas e o atual quadro sanitário brasileiro.

A frequente defesa de um SUS idealizado e imaginário é ineficiente, inoportuna e não contribui para a re-politização, por se distanciar do SUS real que a população frequenta. O CEBES sempre se colocou ao lado dos usuários e dos interesses públicos e esse foi o maior objetivo do projeto político da Reforma Sanitária. Por essa razão, esta tese reforça a necessidade de maior aproximação à realidade do sistema, dando voz aos usuários e, por isso, denunciar, com veemência, os problemas que afligem o setor de saúde e, ao mesmo tempo, identificar e apontar alternativas e caminhos que possam fortalecer os interesses coletivos e superar essa condição.

Isso exige o resgate do significado histórico e político que orientou e ainda deve orientar a Reforma Sanitária e a criação do SUS, identificando os conflitos de interesses dos distintos grupos de pressão e os respectivos modelos de SUS que interessam a cada um desses grupos. O objetivo é identificar e diferenciar o SUS que atende aos interesses da população.

A proposta é fortalecer a consciência crítica e a ação política e, desta forma, ampliar as possibilidades de mudanças na configuração política atual rumo à ga-rantia da saúde como direito social universal. Algumas premissas devem ser consi-deradas nesse processo:• Asmudançasdevemresultardoesforçoamplodasociedadecivilmobilizada

pelo projeto de nação que seja capaz de articular o desenvolvimento econômico e social sustentável, a defesa dos direitos sociais e da democracia nas suas diver-sas modalidades. Para isso, é fundamental a união e articulação de movimentos, associações, sindicatos, partidos, organizações e pessoas do campo democrático e progressista em torno da disputa do modelo de desenvolvimento para a socie-dade brasileira que preserve a democracia e o interesse público.

• AdisputapolíticaeideológicaaquitratadaprecisaseestenderaomodelodeEstado. Tangente aos meios de comunicação, deve ser desafiado o discurso hegemônico que prevalece e que contribui fortemente para a alienação da consciência popular sobre os direitos sociais.

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• ÉfundamentalreconhecerodescolamentodoSUSdasuaproposiçãoinicialde materializar a Saúde como um direito social e humano de acesso universal, com serviços de boa qualidade, capaz de promover a legitimidade e o perten-cimento, a partir de sua acessibilidade e efetividade.

• Asestratégiaspolíticaseoperacionaisvoltadasparaaretomadado‘SUScons-titucional’ devem ter sua implementação intensificada com ‘persistência his-tórica’. Trata-se, dentre outras estratégias:1. Elevação da capacidade financeira e gestora dos componentes federal,

estadual e municipal com produção de ações e serviços de saúde capazes de incluir toda a população no sistema público.

2. Fortalecimento das Comissões Intergestores (CIT e CIBs) para as ne-gociações e pactuações sustentadas por metas sanitárias, da criação dos Fundos de Saúde e das transferências fundo a fundo e da implantação da efetiva Direção Única em cada esfera do sistema.

3. Esforço por avanços técnicos, gerenciais e operacionais nos espaços pos-síveis com ampla informação, divulgação, politização, acumulação de experiências, de forças e mobilização, com vistas ao desgaste da hegemo-nia atual e consequentemente, do seu modelo de saúde.

No contexto mais amplo da ação política em defesa do direito à saúde, desta-cam-se as seguintes pautas:• Enfrentamentopolíticoeideológico,nosentidodeconheceredenunciaras

relações existentes entre os interesses públicos e privados.• Promoveroconhecimento,divulgação,transparênciaecontroledosfluxosde

recursos públicos para setor privado. • AmpliaçãodacapacidadederegulaçãodoEstado,sejadomercadodeplanos

de saúde, seja na intervenção sobre a incorporação tecnológica ou na deter-minação de preços para serviços e procedimentos.

• Eegulaçãoefiscalizaçãoefetiva,viabilizandooressarcimentodosserviçosdoSUS prestados a beneficiários de planos de saúde e o efetivo respeito aos direi-tos dos usuários de planos, que sofrem constrangimentos de diversas ordens.

• Regulardefatoesuperaroatualsentidocartorialdasagênciasegarantirefe-tivamente a primazia do interesse público sobre os interesses privados.

• Reduçãoprogressivadebenefíciosfiscaisquerepresentamsubsídiopúblicoaoconsumo de planos privados de saúde, concomitante com o aumento do fi-nanciamento público da saúde, em especial no nível federal, cuja retração his-tórica vem penalizando a esfera municipal e milhões de famílias brasileiras.

• MobilizarapopulaçãocontraaDesvinculaçãodosRecursosdaUnião(DRU),assegurar o adequado financiamento setorial garantindo a destinação de pelo menos 10% da Renda Bruta da União para o orçamento da saúde e aprovar, sancionar e implantar a PEC 29.

• CombateaodiscursosimplistaquereduzoproblemadaqualidadedoSUSaos reconhecidos problemas de gestão e descarta os efeitos reais e concretos do baixo financiamento público.

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• MaioraproximaçãodapopulaçãocomoprojetodoSUS,quenecessariamen-te passa pelo aumento da capacidade do sistema de atender de forma efetiva e com qualidade as necessidades e as demandas dessa população.

• Reversãodatendênciaatualdeprivatizaçãodosserviçospúblicosdesaúdepor meio de diversas estratégias desde a valorização de ‘parceiros estratégicos’ privados, das relações ‘filantropistas’ e da adoção das OSSs e OSCIPs. Re-verter esta tendência significa apostar nas diretrizes constitucionais de gestão única do sistema único, de prioridade para a rede dos serviços públicos e caráter estratégico complementar dos serviços privados.

• Atuaçãocontraaprecarizaçãodotrabalhoemsaúde,queocorrepormeiodeOSSs, OSCIPs, cooperativas, uso indiscriminado de contratações temporá-rias e emergenciais ou comissionadas, que afetam negativamente a qualidade dos serviços prestados e conduz os trabalhadores de saúde à defesa de projetos corporativos distantes dos interesses coletivos que orientam a Reforma Sani-tária e o SUS.

• Peladignidade,compromissoequalidadedostrabalhadoresdasaúdequepre-cisam de políticas específicas que envolvam a criação das carreiras públicas;

• Pela qualificação e aperfeiçoamento da gestão e gerência do sistema, complanejamento de metas sanitárias e definição de estratégias de execução dos planos e acompanhamento que possibilitem uma política consistente e ade-quadas às necessidades da população.

• Pelocompromissodosquedefendemodireitoàsaúdeassumiremodesafiode revistarem criticamente suas análises e atualizar o debate e a agenda po-lítica. No entanto, isso deve ser realizado sem afastamento das bases consti-tucionais que são comprometidas com os interesses públicos e com a matriz conceitual e política da saúde coletiva. Estas bases preconizam um modelo de desenvolvimento justo e igualitário com intervenções sobre diversos setores identificados com questões estruturantes que são os determinantes sociais, das condições de vida, das desigualdades e iniquidades sociais e de saúde.

Centro Brasileiro de Estudos em Saúde

Brasília, julho de 2011

Filie-se ao CEBES, procure o Núcleo de seu estado.

Visite nosso site, participe dos debates: http://www.cebes.org.br

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DOCumEnTO • docuMENt

Saúde em debate, rio de Janeiro, v. 35, n. 91, p. 650-653, out./dez. 2011

CARTA DA 14ª CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE À SOCIEDADE BRASILEIRA

todos usam o SuS: SuS na Seguridade Social! Política Pública, Patrimônio do Povo Brasileiroacesso e acolhimento com Qualidade: um desafio para o sus

Nestes cinco dias da etapa nacional da 14ª conferência Nacional de Saúde reunimos 2.937 delegados e 491 convidados, representantes de 4.375 conferências Municipais e 27 conferências Estaduais.

Somos aqueles que defendem o Sistema Único de Saúde como patrimônio do povo brasileiro.Punhos cerrados e palmas! cenhos franzidos e sorrisos.

Nossos mais fortes sentimentos se expressam em defesa do Sistema Único de Saúde.defendemos intransigentemente um SuS universal, integral, equânime, descentralizado e estruturado

no controle social.

os compromissos dessa conferência foram traçados para garantir a qualidade de vida de todos e todas.

A Saúde é constitucionalmente assegurada ao povo brasileiro como direito de todos e dever do Estado. A Saúde integra as políticas de Seguridade Social, confor-me estabelecido na Constituição Brasileira, e necessita ser fortalecida como política de proteção social no País.

Os princípios e as diretrizes do SUS – de descentralização, atenção integral e participação da comunidade – continuam a mobilizar cada ação de usuários, tra-balhadores, gestores e prestadores do SUS.

Construímos o SUS tendo como orientação a universalidade, a integralidade, a igualdade e a equidade no acesso às ações e aos serviços de saúde.

O SUS, como previsto na Constituição e na legislação vigente é um modelo de reforma democrática do Estado brasileiro. É necessário transformarmos o SUS previsto na Constituição em um SUS real.

São os princípios da solidariedade e do respeito aos direitos humanos funda-mentais que garantirão esse percurso que já é nosso curso nos últimos 30 anos em que atores sociais militantes do SUS, como os usuários, os trabalhadores, os gesto-res e os prestadores, exercem papel fundamental na construção do SUS.

A ordenação das ações políticas e econômicas deve garantir os direitos sociais, a universalização das políticas sociais e o respeito às diversidades etnicorracial, geracio-nal, de gênero e regional. Defendemos, assim, o desenvolvimento sustentável e um projeto de Nação baseado na soberania, no crescimento sustentado da economia e no fortalecimento da base produtiva e tecnológica para diminuir a dependência externa.

A valorização do trabalho, a redistribuição da renda e a consolidação da de-mocracia caminham em consonância com este projeto de desenvolvimento, garan-tindo os direitos constitucionais à alimentação adequada, ao emprego, à moradia, à educação, ao acesso à terra, ao saneamento, ao esporte e lazer, à cultura, à segurança pública, à segurança alimentar e nutricional integradas às políticas de saúde.

Queremos implantar e ampliar as Políticas de Promoção da Equidade para reduzir as condições desiguais a que são submetidas as mulheres, crianças, idosos, a população negra e a população indígena, as comunidades quilombolas, as popula-ções do campo e da floresta, ribeirinha, a população LGBT, a população cigana, as

COmIssãO ORgAnIzADORA DA 14ª Cns • CARTA DA 14ª Cns À sOCIEDADE BRAsILEIRA

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pessoas em situação de rua, as pessoas com deficiência e patologias e necessidades alimentares especiais.

As políticas de promoção da saúde devem ser organizadas com base no terri-tório com participação inter-setorial articulando a vigilância em saúde com a Aten-ção Básica e devem ser financiadas de forma tripartite pelas três esferas de governo para que sejam superadas as iniqüidades e as especificidades regionais do País.

Defendemos que a Atenção Básica seja ordenadora da rede de saúde, carac-terizando-se pela resolutividade e pelo acesso e acolhimento com qualidade em tempo adequado e com civilidade.

A importância da efetivação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, a garantia dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos, além da ga-rantia de atenção à mulher em situação de violência, contribuirão para a redução da mortalidade materna e neonatal, o combate ao câncer de colo uterino e de mama e uma vida com dignidade e saúde em todas as fases de vida.

A implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra deve estar voltada para o entendimento de que o racismo é um dos determinantes das condições de saúde. Que as Políticas de Atenção Integral à Saúde das Popu-lações do Campo e da Floresta e da População LGBT, recentemente pactuadas e formalizadas, se tornem instrumentos que contribuam para a garantia do direito, da promoção da igualdade e da qualidade de vida dessas populações, superando to-das as formas de discriminação e exclusão da cidadania, e transformando o campo e a cidade em lugar de produção da saúde. Para garantir o acesso às ações e serviços de saúde, com qualidade e respeito às populações indígenas, defendemos o forta-lecimento do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. A Vigilância em Saúde do Trabalhador deve se viabilizar por meio da integração entre a Rede Nacional de Saúde do Trabalhador e as Vigilâncias em Saúde Estaduais e Municipais. Busca-mos o desenvolvimento de um indicador universal de acidentes de trabalho que se incorpore aos sistemas de informação do SUS. Defendemos o fortalecimento da Política Nacional de Saúde Mental e Álcool e outras drogas, alinhados aos preceitos da Reforma Psiquiátrica antimanicomial brasileira e coerente com as deliberações da IV Conferência Nacional de Saúde Mental.

Em relação ao financiamento do SUS é preciso aprovar a regulamentação da Emenda Constitucional 29. A União deve destinar 10% da sua receita cor-rente bruta para a saúde, sem incidência da Desvinculação de Recursos da União (DRU), que permita ao Governo Federal a redistribuição de 20% de suas receitas para outras despesas. Defendemos a eliminação de todas as formas de subsídios públicos à comercialização de planos e seguros privados de saúde e de insumos, bem como o aprimoramento de mecanismos, normas e/ou portarias para o res-sarcimento imediato ao SUS por serviços a usuários da saúde suplementar. Além disso, é necessário manter a redução da taxa de juros, criar novas fontes de re-cursos, aumentar o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) para a saúde, tributar as grandes riquezas, fortunas e latifúndios, tributar o tabaco e as bebi-das alcoólicas, taxar a movimentação interbancária, instituir um percentual dos royalties do petróleo e da mineração para a saúde e garantir um percentual do lucro das empresas automobilísticas.

DOCumEnTO • docuMENt

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Defendemos a gestão 100% SUS, sem privatização: sistema único e comando único, sem ‘dupla-porta’, contra a terceirização da gestão e com controle social am-plo. A gestão deve ser pública e a regulação de suas ações e serviços deve ser 100% estatal, para qualquer prestador de serviços ou parceiros. Precisamos contribuir para a construção do marco legal para as relações do Estado com o terceiro setor. Defendemos a profissionalização das direções, assegurando autonomia adminis-trativa aos hospitais vinculados ao SUS, contratualizando metas para as equipes e unidades de saúde. Defendemos a exclusão dos gastos com a folha de pessoal da Saúde e da Educação do limite estabelecido para as Prefeituras, Estados, Distrito Federal e União pela Lei de Responsabilidade Fiscal e lutamos pela aprovação da Lei de Responsabilidade Sanitária.

Para fortalecer a Política de Gestão do Trabalho e Educação em Saúde é estra-tégico promover a valorização dos trabalhadores e trabalhadoras em saúde, investir na educação permanente e formação profissional de acordo com as necessidades de saúde da população, garantir salários dignos e carreira definida de acordo com as diretrizes da Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS, assim como, realizar concurso ou seleção pública com vínculos que respeitem a legislação tra-balhista. e assegurem condições adequadas de trabalho, implantando a Política de Promoção da Saúde do Trabalhador do SUS.

Visando fortalecer a política de democratização das relações de trabalho e fixação de profissionais, defendemos a implantação das Mesas Municipais e Es-taduais de Negociação do SUS, assim como os protocolos da Mesa Nacional de Negociação Permanente em especial o de Diretrizes Nacionais da Carreira Multi-profissional da Saúde e o da Política de Desprecarização. O Plano de Cargos, Car-reiras e Salários no âmbito municipal/regional deve ter como base as necessidades loco-regionais, com contrapartida dos Estados e da União.

Defendemos a adoção da carga horária máxima de 30 horas semanais para a enfermagem e para todas as categorias profissionais que compõem o SUS, sem redução de salário, visando cuidados mais seguros e de qualidade aos usuários. Apoiamos ainda a regulamentação do piso salarial dos Agentes Co-munitários de Saúde (ACS), Agentes de Controle de Endemias (ACE), Agentes Indígenas de Saúde (AIS) e Agentes Indígenas de Saneamento (AISAN) com financiamento tripartite.

Para ampliar a atuação dos profissionais de saúde no SUS, em especial na Atenção Básica, buscamos a valorização das Residências Médicas e Multiprofissio-nais, assim como implementar o Serviço Civil para os profissionais da área da saú-de. A revisão e reestruturação curricular das profissões da área da saúde devem estar articuladas com a regulação, a fiscalização da qualidade e a criação de novos cursos, de acordo com as necessidades sociais da população e do SUS no território.

O esforço de garantir e ampliar a participação da sociedade brasileira, sobre-tudo dos segmentos mais excluídos, foi determinante para dar maior legitimidade à 14ª Conferência Nacional de Saúde. Este esforço deve ser estendido de forma permanente, pois ainda há desigualdades de acesso e de participação de importan-tes segmentos populacionais no SUS.

COmIssãO ORgAnIzADORA DA 14ª Cns • CARTA DA 14ª Cns À sOCIEDADE BRAsILEIRA

Saúde em debate, rio de Janeiro, v. 35, n. 91, p. 650-653, out./dez. 2011 653

Há ainda a incompreensão entre alguns gestores para com a participação da comunidade garantida na Constituição Cidadã e o papel deliberativo dos conse-lhos traduzidos na Lei nº 8.142/90. Superar esse impasse é uma tarefa, mais do que um desafio.

A garantia do direito à saúde é, aqui, reafirmada com o compromisso pela implantação de todas as deliberações da 14ª Conferência Nacional de Saúde que orientará nossas ações nos próximos quatro anos reconhecendo a legitimidade da-queles que compõe os conselhos de saúde, fortalecendo o caráter deliberativo dos conselhos já conquistado em lei e que precisa ser assumido com precisão e compro-misso na prática em todas as esferas de governo, pelos gestores e prestadores, pelos trabalhadores e pelos usuários.

Somos cidadãs e cidadãos que não deixam para o dia seguinte o que é neces-sário fazer no dia de hoje. Somos fortes, somos SUS.

CoMISSÃo orgaNIZadora da 14ª CNS

Brasília, 4 de dezembro de 2011

Saúde em debate, rio de Janeiro, v. 35, n. 91, p. 654, out./dez. 2011654

AgRADECImEnTOs • ackNowlEdgEMENt

Lista de pareceristas que atuaram em 2011

agradecemos a todos, em especial para nossos consultores ad hoc listados abaixo, que colaboraram no processo editorial do volume 35 da revista Saúde em debate

abilio da Costa-rosa

alexandre Keusen

alvaro Escrivão Junior

ana luiza Stiebler Vieira

aquilas Mendes

Carlos Eduardo Freire Estellita-lins

Carlos Minayo gomez

Catalina Eibenchutz

Claudia garcia Serpa osorio de Castro

Cornelis Johannes Van Stralen

Cristina amelia luzio

denise dias Barros

divanise Suruagy

dulce Maria Senna

Edir Nei teixeira Mandu

Eduardo Maia Freese de Carvalho

Eleonor Minho Conill

Eliete Maria Silva

Elisabete Ferreira Mângia

Elizabethe Cristina Fagundes de Souza

Ernani tiaraju de Santa Helena

Fatima Correa oliver

Fermin roland Schramm

gastao Wagner de Sousa Campos

guacira Corrêa de Matos

Heleno rodrigues Correa Filho

Hillegonda Maria dutilh Novaes

Jorge umberto Béria

Jose augusto Cabral de Barros

Jose Jackson Coelho Sampaio

Jose leopoldo Ferreira antunes

Jose luiz telles de almeida

Juan Stuardo Yazlle rocha

laura Camargo Macruz Feuerwerker

lucia Cristina dos Santos rosa

luciene Kantorski

luiz Carlos de oliveira Cecílio

Magda Vaissman

Marcia regina Car

Maria Ceci araújo Misoczky

Maria Ercilia de araujo

Maria goretti Queiroz

Maria Ines Souza Bravo

Maria Inez Padula anderson

Maria lucia Frizon rizzotto

Maria Salete Bessa Jorge

Maximiliano loiola Ponte de Souza

Miriam thais guterres dias

Monica Silva Martins

Neide tiemi Murofuse

Paulo Capel Narvai

Paulo Frazão

Pedro gabriel godinho delgado

Pedro Paulo Freira Piani

roberto Passos Nogueira

roberto X. Piccini

rogerio Nogueira de oliveira

rogerio renato Silva

rosa Maria Marques

rosana teresa onocko Campos

rubens Kon

Sandra lucia Correia lima Fortes

Sarah Maria Escorel de Moraes

Sergio luiz Bassanesi

Sidnei Martins dantas

Silvia Helena tedesco

Silvia Matumoto

Silvio Yassui

tatiana Wargas de Faria Baptista

thomas Josué Silva

Vera lúcia Edais Pepe

Vilma Sousa Santana

Virginia alonso Hortale

Volnei garrafa

Walter Ferreira de oliveira

Wilza Vieira Villela

INSTRUÇÕES AOS AUTORES – SAÚDE EM DEBATE

a revista Saúde em debate, criada em 1976, é uma publi-cação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) voltada para as Políticas Públicas na área da saúde. Publi-cada trimestralmente, desde 2010, nos meses de março, junho, setembro e dezembro, é distribuída a todos os asso-ciados em situação regular com o CEBES.

aceita trabalhos inéditos sob forma de artigos origi-nais, resenhas de livros de interesse acadêmico, político e social, além de depoimentos.

os textos enviados para publicação são de total e ex-clusiva responsabilidade dos autores.

É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desde que identificadas a fonte e a autoria.

a publicação dos trabalhos está condicionada à apro-vação de membros do Conselho ad hoc, selecionados para cada número da revista, que avaliam os artigos pelo méto-do duplo-cego, isto é, os nomes dos autores e dos pare-ceristas permanecem sigilosos até a publicação do texto. Eventuais sugestões de modificações da estrutura ou de conteúdo, por parte da Editoria, serão previamente acor-dadas com os autores, por meio de comunicações via site e e-mail. Não serão admitidos acréscimos ou modificações depois da aprovação final para publicação.

Modalidades de textos aceitos para publicação

Artigos originais

1. Pesquisa: artigos que apresentem resultados finais de pesquisas científicas, com tamanho entre 10 e 15 laudas. artigos resultantes de pesquisas que envolvem seres humanos devem ser enviados junto de cópia do documento da Comissão de Ética da instituição.

2. Ensaios: artigos com análise crítica sobre um tema específico de relevante interesse para a conjuntura das políticas de saúde no Brasil, com tamanho entre 10 e 15 laudas.

3. revisão: artigos com revisão crítica da literatura so-bre um tema específico, com tamanho entre 10 e 15 laudas.

4. relato de experiência: artigos com descrições de ex-periências acadêmicas, assistenciais e de extensão, com tamanho entre 10 e 15 laudas.

5. opinião: de autoria exclusiva de convidados pelo Edi-tor Científico da revista, com tamanho entre 10 e 15 laudas. Nesse formato não são exigidos o resumo e o abstract.

Resenhas

Serão aceitas resenhas de livros de interesse para a área de Políticas Públicas de saúde, a critério do Conselho Edi-torial. os textos deverão apresentar uma noção do con-teúdo da obra, de seus pressupostos teóricos e do público a que se dirige, em até três laudas.

Documentos e depoimentos

Serão aceitos trabalhos referentes a temas de interesse his-tórico ou conjuntural, a critério do Conselho Editorial.

Seções da publicação

a revista está estruturada com as seguintes seções:

Editorialapresentaçãoartigos de debateartigos temáticosartigos de tema livreartigos Internacionaisresenhasdepoimentosdocumentos

Apresentação do texto

Sequência de apresentação do texto

os artigos podem ser escritos em português, espanhol ou inglês.

os textos em português e espanhol devem ter título na língua original e em inglês. os textos em inglês devem ter título em inglês e português.

o título, por sua vez, deve expressar clara e sucinta-mente o conteúdo do artigo.

a folha de apresentação deve trazer o nome com-pleto do(s) autor(es) e, no rodapé, as informações profis-sionais (contendo filiação institucional e titulação), ende-reço, telefone e e-mail para contato. Essas informações são obrigatórias. Quando o artigo for resultado de pesquisa com financiamento, citar a agência financiadora e se houve conflito de interesses na concepção da pesquisa.

apresentar resumo em português e inglês (abstract) ou em espanhol e inglês com, no máximo, 900 caracteres com espaço (aproximadamente 135 palavras), no qual fi-que clara a síntese dos propósitos, métodos empregados e principais conclusões do trabalho. devem ser incluídos,

ao final do resumo, o mínimo de três e o máximo de cinco descritores (keywords), utilizando, de preferência, os ter-mos apresentados no vocabulário estruturado (deCS), dis-poníveis no endereço http://decs.bvs.br. Caso não sejam encontrados descritores relacionados à temática do artigo, poderão ser indicados termos ou expressões de uso co-nhecido no âmbito acadêmico.

Em seguida apresenta-se o artigo propriamente dito:

as marcações de notas de rodapé no corpo do tex-a. to deverão ser sobrescritas. Por exemplo: reforma Sanitária1.para as palavras ou trechos do texto destacados a b. critério do autor, utilizar aspas simples. Por exemplo: ‘porta de entrada’. aspas duplas serão usadas apenas para citações diretas.quadros, gráficos e figuras deverão ser enviados em c. arquivo de alta resolução, em preto e branco e/ou es-cala de cinza, em folhas separadas do texto, nume-rados e intitulados corretamente, com indicações das unidades em que se expressam os valores e as fontes correspondentes. o número de quadros e de gráficos deverá ser, no máximo, de cinco por artigo. os arquivos devem ser submetidos um a um, ou seja, um arquivo para cada imagem, sem informações sobre os autores do artigo, citando apenas a fonte do gráfico, quadro ou figura. devem ser numerados sequencialmente, respeitando a ordem em que aparecem no texto. os autores citados no corpo do texto deverão estar es-d. critos em caixa-baixa (só a primeira letra maiúscula), observando-se a norma da aBNt NBr 10520:2002 (dis-ponível em bibliotecas). Por exemplo: “conforme ar-gumentam aciole (2003) e Crevelim e Peduzzi (2005), correspondente à atuação do usuário nos Conselhos de Saúde…”as referências bibliográficas deverão ser apresentadas, e. no corpo do texto, entre parênteses com o nome do autor em caixa-alta seguido do ano e, em se tratando de citação direta, da indicação da página. Por exemplo: (FlEurY-tEIXEIra, 2009, p. 380; CoSta, 2009, p. 443).

as referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do artigo, observando-se a norma da aBNt NBr 6023:2002 (disponível em bibliotecas), com algumas adap-tações (abreviar o prenome dos autores). Exemplos:

Livro

FlEurY, S.; loBato, l. V. C. (org.). Seguridade social, cidada-nia e saúde. rio de Janeiro: CEBES, 2009.

Capítulo de livro

FlEurY, S. Socialismo e democracia: o lugar do sujeito. In: FlEurY, S.; loBato, l. V. C. (org). Participação, democracia e saúde. rio de Janeiro: CEBES, 2009.

Artigo de periódico

alMEIda-FIlHo, N. a problemática teórica da determina-ção social da saúde (nota breve sobre desigualdades em saúde como objeto de conhecimento). Saúde em debate, rio de Janeiro, v. 33, n. 83, set./dez. 2010, p. 349-370.

Material da internet

CENtro BraSIlEIro dE EStudoS dE SaÚdE. Normas para publicação da revista Saúde em debate. disponível em: <http://www.saudeemdebate.org.br/artigos/normas_pu-blicacoes.pdf>. acesso em: 9 jun 2010.

Submissão

os artigos devem ser submetidos exclusivamente pelo site: www.saudeemdebate.org.br, após realizar login for-necido junto da senha após o cadastro do autor respon-sável pela submissão. todos os campos obrigatórios de-vem ser devidamente preenchidos. o artigo submetido e o arquivo enviado devem ser iguais, contendo as mesmas informações.

No corpo do texto não deve conter nenhuma infor-mação que possibilite identificar os autores ou instituições. todas as informações relacionadas aos autores devem constar apenas no arquivo submetido.

os arquivos referentes a tabelas, gráficos e figuras devem ser submetidos separadamente do arquivo com o texto principal e não devem conter identificações sobre os autores.

o artigo deve ser digitado no programa Microsoft® Word ou compatível (salvar em formato .doc ou .docx), em página padrão a4, com fonte times New roman ta-manho 12 e espaçamento entre linhas de 1,5.

os documentos solicitados (relacionados a seguir) deverão ser enviados via correio, devidamente assinados.

Declaração de autoria e de responsabilidade

Segundo o critério de autoria do international committee of Medical Journal Editors, os autores devem contemplar as seguintes condições: a) contribuir substancialmente para

a concepção e o planejamento, ou para a análise e a in-terpretação dos dados; b) contribuir significativamente na elaboração do rascunho ou revisão crítica do conteúdo; c) participar da aprovação da versão final do manuscrito. Para tal, é necessário que todos os autores e coautores assinem a declaração de autoria e de responsabilidade, conforme modelo, disponível em: http://www.saudeemdebate.org.br/artigos/index.php

Conflitos de interesse

os trabalhos encaminhados para publicação deverão con-ter informação sobre a existência de algum tipo de confli-to de interesse entre os autores. os conflitos de interesse financeiros, por exemplo, não estão relacionados apenas ao financiamento direto da pesquisa, mas também ao pró-prio vínculo empregatício. Caso não haja conflito, apenas a informação “declaro que não houve conflito de interesses na concepção deste trabalho” na página de rosto (folha de apresentação do artigo) será suficiente.

Ética em pesquisa

No caso de pesquisas iniciadas após janeiro de 1997 e que envolvam seres humanos nos termos do inciso II da reso-lução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (pesquisa que, individual ou coletivamente, envolva o ser humano de forma direta ou indireta, em sua totalidade ou partes dele, incluindo o manejo de informações ou materiais) deverá ser encaminhado um documento de aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa da institui-ção onde o trabalho foi realizado. No caso de instituições que não disponham de um Comitê de Ética em Pesquisa, deverá ser apresentada a aprovação pelo CEP onde ela foi aprovada.

Fluxo dos originais submetidos à publicação

todo original recebido pela secretaria do CEBES é encami-nhado ao Conselho Editorial para avaliação da pertinência

temática e observação do cumprimento das normas ge-rais de encaminhamento de originais. depois, é verificado pela secretaria editorial, para confirmação de adequação às normas da revista. uma vez aceitos para apreciação, os originais são encaminhados a dois membros do quadro de revisores ad-Hoc (pareceristas) da revista. os parece-ristas serão escolhidos de acordo com o tema do artigo e sua expertise, priorizando-se conselheiros que não sejam do mesmo estado da federação que os autores. os conse-lheiros têm prazo de 45 dias para emitir o parecer. ao final do prazo, caso o parecer não tenha sido enviado, o con-sultor será procurado e será avaliada a oportunidade de encaminhamento a outro conselheiro. o formulário para o parecer está disponível para consulta no site da revis-ta. os pareceres sempre apresentarão uma das seguintes conclusões: aceito para publicação; aceito para publicação (com sugestões não impeditivas); reapresentar para nova avaliação após efetuadas as modificações sugeridas; recu-sado para publicação.

Caso a avaliação do parecerista solicite modificações, o parecer será enviado aos autores para correção do artigo, com prazo para retorno de sete dias. ao retornar, o parecer volta a ser avaliado pelo parecerista, que terá prazo de 15 dias, prorrogável por mais 15 dias.

Caso haja divergência de pareceres, o artigo será en-caminhado a um terceiro conselheiro para desempate (o Conselho Editorial pode, a seu critério, emitir um terceiro parecer). No caso de solicitação de alterações no artigo, poderá ser encaminhada em até três meses.

ao fim desse prazo e não havendo qualquer mani-festação dos autores, o artigo será considerado retirado.

o modelo de parecer utilizado pelo Conselho Cien-tífico está disponível em: http://www.saudeemdebate.org.br

Endereço para correspondência

avenida Brasil, 4.036, sala 802CEP 21040-361 – Manguinhos, rio de Janeiro (rJ), Brasiltel.: (21) 3882-9140Fax: (21) 2260-3782E-mail: [email protected]

INSTRUCTIONS TO AUTHORS – SAÚDE EM DEBATE

the journal Saúde em debate, created in 1976, is a pub-lication by centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) which is directed to the public policies of the health field. Published quarterly since 2010, that is, in March, June, September and december, the journal is distributed to all associates in regular situation with CEBES.

unpublished articles structured as original articles, reviews of books of academic, politic and social meaning, as well as statements, are accepted.

the authors are entirely and exclusively responsible for the papers submitted for publication.

total or partial reproduction of the articles is al-lowed under the condition of indicating the source and the authorship.

the publication of the papers is conditioned to ap-proval by members of the ad-hoc council, who are se-lected to each issue of the journal and assess the articles by the double-blind method, that is, the name of the au-thors and reviewers remain confidential till the paper is published. Eventual suggestions of structure or content modifications by the editors will be previously decided together with the authors via website or e-mail. additions or modifications will not be accepted after the final ap-proval for publication.

Types of texts accepted for publication

Original Articles

1. research: articles that present final results of scientific research, presented in 10 to 15 pages. articles result-ing from research involving human beings must be sent with a copy of the form by the Ethics Committee of the institution.

2. Essays: articles presenting critical analyses on a spe-cific theme of relevance for the assemblage of health policies in Brazil, presented in 10 to 15 pages.

3. review: articles presenting literature critical comments on a specific theme, presented in 10 to 15 pages.

4. Experience report: articles describing academic, assis-tance and extension experiences, also presented in 10 to 15 pages.

5. opinion: the authorship is exclusive to persons in-vited by the journal’s scientific editor, also presented in 10 to 15 pages. In this modality, the abstract is not required.

Review

review of books directed to the field of health public poli-cies will be accepted according to the editorial board’s criteria. the papers must present a view of the content of the book, as well as its theoretical principles and an idea of the public to which it is directed, being presented in up to three pages.

Documents and statements

Papers referring to historical or conjunctive themes will be accepted according to the editorial board’s criteria.

Publication sections

the journal is structured in the following sections:

EditorialPresentationdebate articlesthematic articlesFree articlesInternational articlesreviewsStatementsdocuments

Text presentation

Sequence of text presentation

the papers may be written in Portuguese, Spanish or English.

texts in Portuguese and Spanish must present the title in the original language and in English. texts in Eng-lish must present the title in English and in Portuguese.

the title, in turn, must express clearly and briefly the content of the paper.

the presentation page should present the complete name of the authors and, in the footnote, their professional information (institutional bond and titles), address, phone number and e-mail address for contact. this information is obligatory. When the article depicts the result of financed research, the financial source must be indicated, as well as the existence or not of conflict of interests during the pro-duction of the paper.

the manuscript must present an abstract in Portu-guese and in English or Spanish with up to 900 charac-

ters with space (approximately 135 words), in which the synthesis of the purposes, methods employed and main conclusions of the paper must be clear. In the end of the abstract, a minimum of three and maximum of five key-words should be included, using preferentially the terms presented in the structured vocabulary Health Science descriptors (deCS), available at http://decs. bvs.br. If the keywords related to the article’s theme are not found, other terms or expressions of common knowledge in the field may be employed.

Next, the article itself is presented:

the indication of footnotes in the body of the text must a. be superscript. For example: Sanitary reform1.as to words or passages emphasized to the author’s b. discretion, simple quotation marks must be used. For example: ‘entrance door’. Quotation marks will be used only for direct citations.charts, graphs and figures must be sent in high printing c. quality, in black and white or grayscale, separately from the text and correctly numbered and entitled, with in-dication of the value’s units and respective sources. the number of charts and graphs should not exceed five per article. the files must be submitted one by one, that is, one file for each image, without information about the authors, being mentioned only the source of the graph, chart or figure. these elements must be sequentially numbered, being respected their order of appearance in the text.the authors mentioned in the body of the text must d. be written in small letters (only the first in capital letter), being observed the aBNt NBr 10520:2002 patterns (available in libraries). For example: “according to aciole (2003) and Crevelim and Peduzzi (2005), it corresponds to the clients’ participation in Health Councils…”the bibliographical references must be presented, in e. the text body, in parenthesis, being the name of the authors fully written in capital letters followed by the year of publication and, in case of direct citations, by the page number. For example: (FlEurY-tEIXEIra, 2009, p. 380; CoSta, 2009, p. 443).

the references must be indicated in the end of the article, being observed the aBNt NBr 6023:2002 patterns, with some adaptations (abbreviate the author’s first name). Examples:

Book

FlEurY, S.; loBato, l. V. C. (org.). Seguridade social, cidada-nia e saúde. rio de Janeiro: CEBES, 2009.

Book chapter

FlEurY, S. Socialismo e democracia: o lugar do sujeito. In: FlEurY, S.; loBato, l. V. C. (org). Participação, democracia e saúde. rio de Janeiro: CEBES, 2009.

Periodical article

alMEIda-FIlHo, N. a problemática teórica da determina-ção social da saúde (nota breve sobre desigualdades em saúde como objeto de conhecimento). Saúde em debate, rio de Janeiro, v. 33, n. 83, set./dez. 2010, p. 349-370.

On-line material

CENtro BraSIlEIro dE EStudoS dE SaÚdE. Normas para publicação da revista Saúde em debate. disponível em: <http://www.saudeemdebate.org.br/artigos/normas_publicacoes.pdf>. acesso em: 9 jun 2010.

Submission

the articles must be submitted exclusively through the site: www.saudeemdebate.org.br, after logging in and in-dicating the password provided after the registration of the author who is responsible for the submission. all re-quired fields must be correctly filled out. the file submit-ted and the file sent must be equal, containing the very same information.

the text body should not present any information that may allow the identification of the authors or institu-tions. Information related to the authors must be indicated only in the submitted file.

the files containing tables, graphs and figures must be submitted apart from the file containing the main text, and should not provide identification of the authors.

the article must be typed in Microsoft® Word or com-patible software (save as .doc or .docx), in a4 page, times New roman typeface 12 pt and 1.5 line space.

the required documents (indicated next) should be sent by mail and properly signed.

Declaration of authorship and responsibility

according to the authorship criteria by the International Committee of Medical Journal Editors, the authors must observe the following conditions: a) contribute substan-tially to the conceiving and planning, or to the analysis and data interpretation; b) contribute significantly to the elaboration of rough copy or critical review of the content; c) participate in the approval of the manuscript’s final ver-

sion. In order to do that, it is necessary that all authors and co-authors sign the declaration of authorship and respon-sibility, in conformity with the model available at <http://www.saudeemdebate.org.br/artigos/index.php>

Conflicts of interest

the papers submitted for publication should contain in-formation about the existence or not of any kind of con-flict of interests among the authors. Financial interests, for instance, are not only related to the direct financing of the research, but also to the employment relationship it-self. If there is no conflict, the following information in the presentation page will do: “the authors declare that there are no conflicts of interests with regard to this article”.

Research ethics

as to research initiated after January 1997 and involving human beings, in compliance with item II of the resolution 196/96 of the National Health Council (research involving individually or collectively, directly or indirectly, totally or partially a human being, including the handling of informa-tion and material), a document of approval by the research Ethics Committee of the institution where the study was carried out must be sent. In case of institutions that do not dispose of an Ethics Committee, an approval by other com-mittee must be sent.

Flow of manuscripts submitted for publication

all manuscripts received by the CEBES bureau are con-ducted to the editorial board to assessment of thematic relevance and observation of the accomplishment of the manuscript submission general rules. later on, the edito-rial bureau verifies the paper as to confirm its adequacy

to the journal’s patterns. once accepted for appreciation, the manuscripts are sent to two ad-Hoc technical review-ers of the journal (peer-review). the reviewers are chosen accordingly to the theme of the article and his/her exper-tise, and priority is given to counselors that do not pertain to the same federation state as the authors. the counsel-ors are given a 45-day deadline to issue their opinion. If the opinion is not issued at the end of the deadline, the counselor is contacted and the opportunity of sending the manuscript to other counselor is considered. the review form is available for consultation in the journal’s website. the opinions always present the following conclusions: accepted for publication; accepted for publication (with non-hindering suggestions); resubmit for new assessment after accomplishing the suggested modifications; refused for publication.

If the reviewer’s assessment requires modifications, the opinion will be sent to the authors, so they correct the manuscript within a seven-day deadline. When the manuscript is sent back, the opinion is reassessed by the reviewer within a 15-day deadline, which may be proro-gated to another 15 days.

If there is divergence of opinions, the article is sent to a third counselor for decision (the editorial board may issue a third opinion to its discretion). If other alterations are requested, they may be sent in up to three months.

at the end of the deadline and not having any manifestations by the authors, it will be considered as a withdrawal.

the model of opinion used by the scientific board is available at: http://www.saudeemdebate.org.br

Mailing address

avenida Brasil, 4036, room 802CEP 21040-361 – Manguinhos, rio de Janeiro (rJ), BrazilPhone: (21) 3882-9140Fax: (21) 2260-3782E-mail: [email protected]

Quem somos?o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) é uma associação civil sem fins lucrativos, de âmbito nacional, que tem como eixo de seu projeto a luta pela democratização da saúde e da sociedade. tem como missão a luta pela compreensão da saúde coletiva como bem público propugnando um sistema de atenção à saúde baseado nos valores de solidariedade e garantia de direitos, na integralidade do cuidado e exigência de participação ativa dos cidadãos nas decisões sobre saúde e sobre a política de saúde. Seu objetivo é contribuir para difusão da consciência sanitária e favorecimento da constituição de sujeitos políticos, aptos a disputar projetos voltados à conquista de uma sociedade mais justa.

o espaço de atuação do CEBES está demarcado pela produção e difusão de conhecimentos que se articulem a uma prática política concreta e a mobilização da sociedade pela transformação democrática das instituições e valores que perpetuam desigualdades injustas. Suas alianças estratégicas incluem os movimentos sociais e organizações da sociedade civil engajadas na ampliação da esfera pública no Brasil e na américa latina, atuando junto ao parlamento e às instituições governamentais.

o CEBES é um ator autônomo, plural e não partidário, que trabalha para forjar redes políticas que exerçam a crítica como instrumento de reflexão e ação, na defesa de uma ética pública que assegure o direito universal à saúde.

o CEBES forjou sua tradição de luta pela democracia desde sua fundação em 1976, tendo elaborado em 1978 o documento “a Questão democrática na Saúde”, que lançou as diretrizes da reforma Sanitária Brasileira e os princípios organizacionais do SuS. Essas proposições fundamentaram a inscrição na Constituição de 1988 do direito à saúde, como direito de cidadania.

o CEBES é composto por uma diretoria Nacional e núcleos regionais e publica desde a sua fundação a revista Saúde em debate. Por meio de suas publicações estabelece com seus associados e público em geral um amplo debate sobre as questões atuais da política de saúde, resgata a história da saúde coletiva e avança no conhecimento e na prática política em questões estratégicas dos grandes temas da conjuntura política nacional.

who are we?Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) is a national non-profit civil association, and the center of its project is based on the struggle for democratization of health in society. Its mission is the fight for the understanding of collective health as a public estate, defending a system of attention to health based on the values of solidarity and security of rights, in the integrality of care and in the demand for active participation of citizens on the decisions about health and health policies. the aim is to contribute with the diffusion of sanitary conscience and to favour the constitution of political subjects who are able to dispute projects directed to the accomplishment of a fairer society.

CEBES actuation space is marked by the production and diffusion of knowledge that is articulated to a concrete political practice and to the mobilization of society for a democratic transformation of institutions and values that perpetuate unfair differences. Its strategic alliances include the social movements and the organizations of civil society that are committed to amplify the public scope in Brazil and in latin america, acting with the parliament and the governmental institutions.

CEBES is an autonomous, plural and non-party actor, which works to form political networks that carry out criticism as an instrument of reflection and action in defense of public ethics to insure the universal right to health.

CEBES is developing its tradition of struggle for democracy since its foundation, in 1976, and elaborated, in 1978, the document a questão democrática na saúde (the democratic issue in health), which released the policies of the Brazilian Sanitary reform and the organizational principles of National Health System (the so called SuS in Brazil). these propositions have established the registration, in the Constitution of 1988, of the right to health as a citizenship right.

CEBES is composed of a National Board and regional branches and publishes since its foundation the magazine “Saúde em debate” (Health

in debate). through their publications, they establishes a broad debate, with their affiliates and the general public, on current issues of health policy, rescues the history of collective health and advances in knowledge and political practice on strategic questions about major themes of the national political environment.

¿Quienes somos?El Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) es una asociación civil sin fines de lucro, de ámbito nacional, que tiene como eje de proyecto la lucha por la democratización de la salud en la sociedad. Su misión es luchar por la comprensión de la salud colectiva como un bien público, defendiendo un sistema de atención a la salud basado en los valores de solidariedad y garantía de derechos, en la integridad del cuidado y en la exigencia de participación activa de los ciudadanos en lãs decisiones sobre la salud pública y la política de salud. El objetivo es contribuir con la diseminación de la conciencia sanitaria y favorecer la formación de sujetos políticos capaces de demandar proyectos vueltos a la conquista de una sociedad más justa.

El espacio de actuación del CEBES está delineado por la producción y difusión de conocimientos que se articulan a una práctica política concreta, y a la movilización de la sociedad por la transformación democrática de las instituciones y valores que perpetúan desigualdades injustas. Sus alianzas estratégicas incluyen los movimientos sociales y las organizaciones de la sociedad civil involucradas en la ampliación de la esfera pública en Brasil y américa latina, actuando junto al parlamento y a las instituciones gubernamentales.

CEBES es un actor autónomo, plural y no partidario que trabaja para crear redes políticas las cuales ejerzan la crítica como un instrumento de reflexión y acción en la defensa de una ética pública que asegure el derecho universal a la salud.

viene creando su tradición de lucha por la democracia desde su fundación, en el año 1976, teniendo elaborado en 1978, el documento a questão democrática na saúde, que ha lanzado las directrices de la reforma Sanitaria Brasileña y los principios organizacionales del Sistema Único de Salud (SuS). Esas proposiciones han fundamentado la inscripción, en la Constitución de 1988, del derecho a la salud como derecho de ciudadanía.

CEBES viene creando su tradición de lucha por la democracia desde su fundación, en el año 1976, teniendo elaborado en 1978, el documento a questão democrática na saúde, que ha lanzado las directrices de la reforma Sanitaria Brasileña y los principios organizacionales del Sistema Único de Salud (SuS). Esas proposiciones han fundamentado la inscripción, en la Constitución de 1988, del derecho a la salud como derecho de ciudadanía.

CEBES se compone de una Junta Nacional y oficinas regionales y publica, desde su fundación, la revista “Saúde em debate” (Salud en debate). a través de sus publicaciones, establece un debate amplio, con sus afiliados y el público en general, sobre cuestiones actuales de política sanitaria, rescata la historia de salud colectiva y avanza en el conocimiento y en la práctica política en cuestiones estratégicas sobre los grandes temas de la coyuntura política nacional.

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TiragemNumber of Copies

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Revista foi impressa no Rio de Janeiro em dezembro de 2011

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Miolo em papel kromma silk 90 g/m²

This publication was printed in Rio de Janeiro in september, 2011

Cover in premium card 250 g/m²

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Saúde em Debate, Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES – v.1 (out./nov./dez.1976) – São Paulo: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES, 2011.

v. 35; n. 91; 27,5 cm Trimestral ISSN 0103-1104

1. Saúde Pública, Periódico. I. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES

CDD 362.1

CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE (CEBES)

DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2011-2013)NATIONAL BOARD OF DIRECTORS (YEARS 2011-2013)

Presidente: Ana Maria CostaVice-Presidente: Alcides Silva de MirandaDiretora Administrativa: Aparecida Isabel BressanEditor de Política Editorial: Paulo Duarte de Carvalho AmaranteDiretores Executivos: Eymard Mourão Vasconcelos Luis Bernardo Delgado Bieber Lizaldo Andrade Maia Maria Lucia Frizzon Rizzotto Pedro Silveira CarneiroDiretores Ad-hoc: Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato Paulo Navarro

CONSELHO FISCAL • FISCAL COUNCIL

Armando RaggioFernando Henrique de Albuquerque MaiaJúlio Strubing Muller Neto

CONSELHO CONSULTIVO • ADVISORY COUNCIL

Ary Carvalho de MirandaCornelis Van StralenEleonor Minho ConillEli Iola Gurgel AndradeFelipe Assan RemondiGustavo Machado FelintoJairnilson Silva PaimLigia BahiaLuiz Antônio Silva NevesMaria Fátima de SouzaMario Cesar SchefferNelson Rodrigues dos SantosRosana Tereza Onocko CamposSilvio Fernandes da Silva

SECRETARIA • SECRETARIES

Secretária Geral: Gabriela Rangel de MouraPesquisadora: Suelen Carlos de Oliveira

SAÚDE EM DEBATE

A revista Saúde em Debate é uma publicação trimestral editada pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

EDITOR CIENTÍFICO • CIENTIFIC EDITOR

Paulo Duarte de Carvalho Amarante (RJ)

CONSELHO EDITORIAL • PUBLISHING COUNCIL

Alicia Stolkiner – UBA (Argentina)Angel Martinez Hernaez – Universidad Rovira i Virgili (Espanha)Carlos Botazzo – USP (SP/Brasil)Catalina Eibenschutz – UAM-X (México)Cornelis Johannes Van Stralen – UFMG (MG/Brasil)Diana Mauri – Universidade de Milão (Itália)Eduardo Maia Freese de Carvalho – CPqAM/FIOCRUZ (PE/Brasil)Giovanni Berlinguer – Università La Sapienza (Itália)Hugo Spinelli – UNLA (Argentina)José Carlos Braga – UNICAMP (SP/Brasil)José da Rocha Carvalheiro – FIOCRUZ (RJ/ Brasil)Luiz Augusto Facchini – UFPel (RS/Brasil)Luiz Odorico Monteiro de Andrade – UFC (CE/Brasil)Maria Salete Bessa Jorge – UECE (CE/Brasil)Paulo Marchiori Buss – FIOCRUZ (RJ/Brasil)Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira – UFPA (PA/Brasil)Rubens de Camargo Ferreira Adorno – USP (SP/Brasil)Sonia Maria Fleury Teixeira – FGV (RJ/Brasil)Sulamis Dain – UERJ (RJ/Brasil)

EDITORA EXECUTIVA • EXECUTIVE EDITOR

Marília Fernanda de Souza Correia

SECRETARIA EDITORIAL • EDITORIAL SECRETARY

Frederico Tomás Azevedo

INDEXAÇÃO • INDEXATION

Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde – LILACSHistória da Saúde Pública na América Latina e Caribe – HISASistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas deAmérica Latina, el Caribe, España y Portugal – LATINDEXSumários de Revistas Brasileiras - SUMÁRIOS

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA

Avenida Brasil, 4036 – sala 802 – Manguinhos21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – BrasilTel.: (21) 3882-9140 | 3882-9141Fax.: (21) 2260-3782Site: www.cebes.org.br • www.saudeemdebate.org.brE-mail: [email protected][email protected]

A Revista Saúde em Debate éassociada à Associação Brasileirade Editores Científicos

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ISSN 0103-1104

Rio de Janeiro • v. 35 • n. 91 • out./dez. 2011

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