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ECOLOGIA E CONDIÇOES FISICAS DA REPRODUÇAO SOCIAL

Date post: 28-Apr-2023
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"Ecologia" e condi\=Oes flsicas da reprodu\=ao social: alguns fios condutores marxistas n1arxista FRANCO IS CHE SNA /5 e CLAUDE SERFATI* .> 1. A ideia central apresentada neste artigo e a seguinte: hoje em dia, por tras de paJavras como "ecologia" e "meio ambiente", ou ainda nas express5es "questoes ecol6gicas" e "questoes ambientais", encontra-se nada menos do que a perenidade das condi96es de reprodu9ao social de certas classes, de certos povos e, ate mesmo, de certos pafses. Como esses estao, mais freqiientemente, situados seja no que se denomina, hoje, de "Sui" ou no antigo "Leste", a amea9a parece longfnqua e, par- tanto, abstrata nos pafses do centro do capitalismo mundjal. 0 tempo de gesta9ao muito Longo dos plenos efeitos de mecanismos presentes no capitalismo desde suas origens foi e continua sendo, mais do que nunca, urn fator de inercia nos pafses capitalistas avan9ados 1 Os grupos industriais e os govemos dos pafses da OCDE tiram, amplamente, partido desse fato para difundir a ideia de que a degrada9ao das condi96es ffsicas da vida social faria parte dos males "naturais" a que alguns povos seriam chamados a submeter-se. Para esses, seria uma "infelicidade" suplementar. Na apresenta9ao dominante, as degrada96es ambientais planetarias exigiriam, pois, dos pafses avan9ados que adotassem, quando muito, mudan9as marginais em suas * Franc;ois Chesnais e Claude Serfati sao professores, respectivamente, na Universite de Paris- Nord (Villetaneuse) e na Universite de Versailles-Saint Quentin. Traduc;ao de Maryse Farhi. 1 Sobre a questao de durac;ao e dos longos tempos pr6prios a ecologi a, ver Jean-Paul Deleage, Une histoire de l'ecologie. Paris, Ed itions de Ia Decouverte, 1991, e novamente publicado no Points Seuil, p. 246 e ss. CR{TJCA MARXIST A 39
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"Ecologia" e condi\=Oes flsicas da reprodu\=ao social: alguns fios condutores marxistas

t3ji;t~ n1arxista

FRANCOIS CHESNA/5 e CLAUDE SERFATI* .>

1. Introdu~ao A ideia central apresentada neste artigo e a seguinte: hoje em dia, por tras de

paJavras como "ecologia" e "meio ambiente", ou ainda nas express5es "questoes ecol6gicas" e "questoes ambientais", encontra-se nada menos do que a perenidade das condi96es de reprodu9ao social de certas classes, de certos povos e, ate mesmo, de certos pafses. Como esses estao, mais freqiientemente, situados seja no que se denomina, hoje, de "Sui" ou no antigo "Leste", a amea9a parece longfnqua e, par­tanto, abstrata nos pafses do centro do capitalismo mundjal. 0 tempo de gesta9ao muito Longo dos plenos efeitos de mecanismos presentes no capitalismo desde suas origens foi e continua sendo, mais do que nunca, urn fator de inercia nos pafses capitalistas avan9ados1

• Os grupos industriais e os govemos dos pafses da OCDE tiram, amplamente, partido desse fato para difundir a ideia de que a degrada9ao das condi96es ffsicas da vida social fari a parte dos males "naturais" a que alguns povos seriam chamados a submeter-se. Para esses, seria uma "infelicidade" suplementar. Na apresenta9ao dominante, as degrada96es ambientais planetarias exigiriam, pois, dos pafses avan9ados que adotassem, quando muito, mudan9as marginais em suas

* Franc;ois Chesnais e Claude Serfati sao professores, respectivamente, na Universite de Paris­Nord (Villetaneuse) e na Universite de Versailles-Saint Quentin. Traduc;ao de Maryse Farhi.

1 Sobre a questao de durac;ao e dos longos tempos pr6prios a ecologia, ver Jean-Paul Deleage, Une histoire de l'ecologie. Paris, Editions de Ia Decouverte, 1991 , e novamente publicado no Points Seuil, p. 246 e ss.

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escolhas tecnol6gicas e em seu modo de vida quotidiano. Da mesma forma, o unico "modele de desenvolvimento" proposto aos pafses "atrasados" continuaria sendo aquele difundido pelos meios de comunica96es a partir dos centres do capitalismo mundial e a ter por base as mercadorias e as formas de vida social produzidas pelos grandes grupos 1ndustriais e financeiros.

As palavras "ecologia" e ''meio-ambiente" mantem urn grau elevado de neutra­lidade diante dessa realidade. Elas tomaram-se impr6prias e perigosamente inade­quadas, de fmma que seria necessaria substituf-las por outras mais apropriadas. Isso s6 podera ser feito no quadro de uma crftica renovada do capitalismo que viiu:ularia, de forma indissociavel, a explorar;ao dos dominados pelos possuidores de riqueza e a destruir;ao da natureza e da biosfera. Esse objetivo te6rico e partilhado por outros alem de n6s, mas ainda esta Ionge de fazer parte das posi<;6es comuns a todos os marxistas ou ao conjunto das correntes revolucionarias. Essas notas2 expoem fios condutores marxianos ou marxistas, mas elas se dirigem a todos os que se preocupam com a renova9ao de uma critica radical do capitalismo e que buscam, pois, ase apro­priar novamente o pensamento das correntes fundadoras de tal crftica.

1 .1. R etorrwr aos fundamentos das relar;oes sociais capitalistas Se n6s (entendido, aqui, como a civiliza9ao humana) entramos numa fase da

hlst6ria do capitalismo em que as conseqiiencias ambientais da acumula<;ao no quadro da domina<;ao mundial do capital financeiro tendem a materializar-se sob formas extremamente graves e num ritmo que se acelera, os mecanismos que leva­r~ a essa situa~ao estavam presentes dcsde as origens do capitalismo. Para en ten­der as rela9oes do capitalismo com suas condi<;5es de produ<;ao "extemas", e ne­cessaria retornar as origens e aos fundamentos sociais desse modo de produ<;ao e de domina9ao social. Esse eo objeto da primeira parte deste texto. A guerra travada pelo capital para arrancar o campesinato a terrae para submeter a atividade agricola inteira e exclusivamente ao lucro, da qual vivemos novos epis6dios hoje em dia, e uma guerra fundadora do novo modo de produ<;ao e das formas sociais de domina9ao que lhe sao pr6prias. Os dois mecanismos complementares de preda<;ao capitalista, dos quais se pode analisar o jogo e os efeitos, remontam a primeira fase do capita-· llsmo. Urn deles tern por fundamento a propriedade privada da terrae dos recursos do subsolo permitindo a apropria9ao das rendas. 0 outro repousa sobre uma das afirrna96es fundadoras da economia polftica (denominada, hoje em dia, de "ciencia economica"), a de que os elementos do mundo natural, outros que a terrae o subsolo, inicialmente abundantes em demasia para serem facilmente submetidos, como hoje,

2 0 termo "notas" traduz, ao mesmo tempo, o fato de que e a primeira vez que n6s (os autores) abordamos essas questoes de uma forma que nao seja alusiva e que, por essa razao, somos obrigados a tratar de urn leque bastante amplo de questoes sem realmente aprofunda-las.

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a urn mecanisme de apropria~ao ou de explora~ao privado - a agua e o ar e, por extensao, a biosfera - seriarn inesgotaveis e, portanto, gratuitos. Os fundamentos sociais do capitalismo fornecem igualrnente a chave dos rnecanismos bern especffi­cos de sele9ao social das tecnicas que esse modo de produ~ao e de domina~ao social criou, das quais a civiliza~ao do autom6vel e os organismos geneticamcnte modificados (OGM) sao a expressao contemporanea. Todos esses mecanismos e as tendencias que eles suscitam estavam inscritos nos pr6prios fundamentos do modo de produ9ao, bern como nos modes de domina9ao de classe, nacionais e internacio­nais (imperialistas ).

Ao Iongo das tres decadas de forte crescimento do pas-guerra, houve consi­deravel acelera9ao do jogo dos mecanismos cumulativos, destruidores dos equi­lfbrios ecol6gicos, sob o efeito <.las formas de produ9ao e de consume tanto do "fordismo" quanto da economia "planificada" staliniana. A crise ecol6gica pla­netaria tern sua origem nos fundamentos e nos princfpios de funcionamento do capitalismo, desdobrados das conseqi.iencias da organiza9ao polftica e econorni­ca dos Estados burocniticos, inclusive a China. Mas, ja que esses rnecanismos estavam associados a uma importante eleva~ao do nfvel de vida, em bora prepon­derantemente nos pafses desenvolvidos, reflexes de cegueira coletiva prevalece­ram. Governos, empresas, partidos e sindicatos operarios entenderam-se de for­ma tacita para silenciar as questoes ecol6gicas. Hoje, a gravidade das agressoes a biosfera e conhecida. Os trabalhos da comissao cientffica, criada pelas Na<;oes Unidas para estudar as mudan~as climaticas3, estabeleceram que em certos domf­nios, tais como os recursos nao-renovaveis e, possivelrnente, a biodiversidade, as degrada~oes atingiram patamares de irreversibilidade ou, pelo menos, estao pr6-ximos a eles. Nern por isso, os governos dos pafses capitalistas desenvolvidos e as institui96es intemacionais deixarn de engajar-se na via de urn agravamento da situa~ao pela arnplia~ao de "direitos a poluir" que sisternatizam o carater intangf­vel da propriedade privada bern como o direito do. capital a pilhagem da natureza. Do I ado daqueles que, hoje, sao design ados sob o termo de "antimundialistas", constata-se simultaneamente uma consciencia bastante forte da existencia de urn vfnculo entre tais degrada~oes e a liberaliza9ao e a desregulamenta9ao que colo­cam o poder economico efetivo entre as maos dos "mercados", e uma forte relu­tancia em por em causa o capitalismo, bern como as formas dominantes da proprie­dade dos meios de produ~ao, de comunica9ao e de troca. Hoje, "nossa especie violenta o movimento global da natureza"4: e]a o faz no quadro de urn modo de

3 No que concerne a questao do aquecimento eli matico e suas -conseqUencias sociais, essa acelera­~ao constitui um rJo~ principais resultados do segundo relat6rio da Comissao das Nar;6es Unidas.

4 Jean-Paul Deleage, Une histoire de J'ecologie, op. cit., p. 289.

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produ~ao bern especffico. Tra~os contemporaneos aceleram seu ritmo, s6 deixan­do a cada indivfduo ou a cada conjunto microssocial uma margem de manobra muito fraca em rela~ao a sua participa~ao ou nao nesse processo. Em muitos casos, as respostas sao mundiais e se situam no modo de produ~ao e de domina­~ao tornado enquanto tal. Este texto pretende contribuir, na Fran~a, a dar as ques­toes relativas as condi~oes fisicas da reprodu~ao da vida em sociedade (no ime­diato, aquela de sociedades determinadas) o estatuto de questoes te6ricas e polfticas de primeira grandeza.

A ideia explorada na segunda parte deste texto e que a situa~ao que se criou constitui urn a crise para a humanidade, uma crise da civiliza~ao humana; mas, no que tange ao capitalismo, as coisas nao podem ser analisadas tao simplesmente. A crise ecol6gica planetaria ou as crises ecol6gicas, cujos efeitos se repartem de forma muito desigual, sao produto do capitalismo, mas nem por isso sao fator central de crise para este. Hoje, ela se desenvolve de modo acelerado sob o efeito da busca pelo capital de "solu~oes" para suas contradi~oes profundas (taxa e massa de mais-valia, taxa de lucro, superacumula~ao endemica etc.) numa desa­brida fuga para a frente, tornada possfvel pela liberaliza~ao, a desregulamenta~ao e a globaliza~ao. Tomada por este angulo, a crise eco16gica planetaria e, pois, uma "crise capitalista". Mas, ela testemunha a plena reafirma~ao da vontade e da recorrente capaci dade do capital em transferir a seu me io (( externo" geopolftico e ambiental (a biosfera) as conseqi.iencias de contradi~oes que sao, exclusiva­mente, suas, no sentido de que surgiram das rela~5es de produ~ao e de proprieda­de que o fundarn.

Ficou claro que n6s (neste caso, os autores desta nota) nao compartilhamos a ideia de que, pelo vies da destrui~ao ou de danos graves ao ambiente natural, o capitalismo poria em perigo, e ate destruiria, suas pr6prias condi~oes de reprodu­~ao e de funcionamento enquanto capitalismo. Nao aderimos a tese da "segunda contradi~ao"5. E no amago dos mecanismos de cria~ao e de apropria~ao da mais­valia que jazem as contradi~5es que fazem com que "a verdadeira barreira da produ~ao capitalista seja o proprio capital"6• Na esfera do ambiente natural, o capital representa uma barreira, ou, mais exatamente, uma amea~a premente para a humanidade- e, no imediato, para certas parcel as especfficas dessa -, mas rwo para o capital em si. No plano economico, o capital transforma as polui~oes industriais, bern como a rarefa~ao e/ou a degrada~ao de recursos, como a agua e ate oar, em "mercados", isto e, em novos campos de acumula~ao. Em domfnios

5 James O'Connor, "La seconde contradiction du socialisme: causes et consequencesi/, Actuel Marx, n. 12, "L;ecologie, ce materialisme historique", Paris, 1992, p. 30-6.

r. Karl Marx, Le capital. Paris, Editons Sociales, liv. Ill, t. 6, cap. XV, p. 263. [Ed. bras.: 0 capital, Sao Paulo, Abril Cultural, Cole<;ao Os Economistas, 1983.]

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como o das repercussoes da decodificac;ao do genoma ou o dos OGMs, vemos estrategias de domina~ao economica e polftica sem precedentes em sua forma e seus objetivos7

, acompanhadas por "apostas" tecnol6gicas cegas, de uma irrespon­sabilidade social total. Freqi.ientemente, seu motor e a satisfac;ao do "valor aciomirio" demandado por investidores institucionais e pelos mercados de ac;oes. No plano politico, o capital e plenamente capaz de transferir o peso das degrada­~6es para pafses e classes mais fracas. Em caso de necessidade, ele pode, em ultimo recurso, dirigir toda a potencia militar dos imperialismos dominantes para tarefas de "manuten~ao da ordem" em todas as partes do mundo em que as degrada­~6es das condi~6es de existencia dos povos, sob efeito das destrui~oes ambientais, possam provocar levantamentos.

}.2. 0 que e um modo de produfii.O 0 que esta em causa, no plano te6rico, eo conteudo que seria necessaria dar

a no~ao de "modo de produ~ao". Pensamos que, para Marx, o termo designa urn m,odo de domina9iio social tanto quanta uma forma de organiza~ao da produ~ao material. Parece-nos, igualmente, profundamente erroneo reduzir a reprodu~ao do capital as suas simples dimensoes economicas8. A esse respeito, o trabalho te6rico sobre a mundializa~ao contemporanea do capital9 e do imperialismo em suas formas mais atuais (as da guerra do Kosovo e do "p6s 11 de setembro") e de grande utilidade10• E evidente que estamos diante de mecanisinos e de polfticas conscientes de reprodztfiiO de uma domina9iio social mundializada. No nfvel atingido pela polariza~ao da riqueza, essa domina~ao e aquela, na escala global, de uma pequena, ou ate mesmo de uma muito pequena, fra~ao da humanidade, em sua maioria, concentrada nos pafses capitalistas avan~ados. A domina~ao repousa em bases onde o "economico" e o "polftico" estao, inextricavelmente, emaranhados. E impossfvel dissociar as destrui~6es ambientais e ecol6gicas das agressoes desfechadas contra as condi~oes de vida dos proletarios urbanos e ru­rais e de suas famflias, notadamente dos que vivem nos pafses ditos do Sui, sob

7 lsto foi estabelecido, com todos os detalhes cientfficos necessaries, em Jean-Pierre Berlan (coor­denador e principal autor), La guerre au vivant, OGM et mistifications scientifiques, Marselha, Agone, 2001 .

8 Alain Bihr, em La reproduction du capital: prolegomenes a une theorie generale du capitalisme. lausanne, Editions Page Deux, 2001, fornece elementos uteis nesse sentido.

9 Franc;ois Chesnais, La mondialisation du capital. Paris, Syros, 1994 e 1997 (edi~o revista e ampliada).

10 Sobre as dimens5es militares cujos la<;os com as "desordens" de origem ecol6gica serao cada vez mais estreitos, ver Claude Serfati, La mondialisation armee, le desequilibre de Ia terreur, Textuel, La Discorde, 2001.

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domina9aO imperialista. Tambem e impossfvel dissociar as formas economicas da domina9ao e da violencia de suas formas polfticas e rnilitares11

• Tomadas em seu conjunto, as destrui96es ambientais e ecol6gicas e as agressoes contra as condi96es de vida dos proletarios sao resultado dos efeitos cumulativos de meca­nismos secretados pelo funcionamento, ha decadas, do modo de produ9ao capita­lista e da domina9ao contemporanea, renovada e quase sem limites, do capital financeiro.

A essencia rentista da finan9a e suas estreitas rela96es com as situa96es de renda do solo e das produ96es do subsolo sao fatores particularmente crfti­cos no bloqueio de solu96es, mesmo muito parciais e insuficientes, propostas para diferentes aspectos da crise ecol6gica. Contrariamente a tese da "segunda contradi~ao", o capital entende fazer urn mercado da "repara9ao" das degrada-96es ecol6gicas. Longe de afetar sua reprodu9ao como capital, essas se torna­rao uma imensa fonte de lucros e de sustenta9ao dos pre9os das a96es. Parale­lamente, os governos dos pafses ricos, ou pelo menos alguns dentre eles (os que tern a "fibra ecol6gica" no sentido banal e, finalmente, bastante reacionario do termo ), cuidarao para que as conseqiiencias da "crise ecol6gica" afetem o me­nos e o mais tarde possfvel as condi96es de reprodu~ao do modo de vida dos proprietarios do capital, de seus dependentes e das camadas sociais que fazem causa comum com eles. Desse ponto de vista, ao afirmar a intangibilidade do modo de existencia material dos norte-americanos, unico fundamento possfvel de seu nivel de vida, George Bush exprimiu em voz alta uma posi9ao partilhada pelos principais grupos industriais e financeiros mundiais (nao somente norte­americanos), bern como por numerosos governos que nao ficaram zangados que ele tenha tornado a si a responsabilidade de torpedear o acordo ad minima de Kyoto. A situa9ao que esta reservada aos "pafses do Sui" testemunha a pere­nidade das rela96es de domina9ao imperialista, mas num contexte em que as popula~oes dos pafses podem ser deixadas sob o controle de " leis naturais" propostas por Malthus na alvorada do seculo XIX.

2. Algumas questoes previas Antes de aprofundar urn pouco o enunciado dessas duas ideias que coman­

dam nossa reflexao neste texto, queremos dizer algumas palavras sobre pontos de natureza previa. Trata-se para n6s de uma obriga9ao pessoal, no momenta em que abordarnos pela primeira vez urn terreno em que obram muitos especialistas, mas que os te6ricos do capitalismo pouco exploraram.

11 Sobre o Iugar da Otan na defesa do regime de propriedade privada, ver os materia is reunidos em Claude Serfati, La mondialisation armee, op. cit.

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2.1. Um. imenso atraso te6rico e polftico a recuperar 0 atraso e aquele que nos (os autores deste texto) reconhecemos a tftulo

pessoal, do ponto de vista de nosso trabalho sobre a crftica do capitalismo. Mas nos parece que, de forma geral, esse mesmo atraso tambem e o da mais runpla maioria daqueles que se reclamam do marxismo. A analise e a discussao das quest5es relativas ao meio ambiente e as ameac;as ecol6gicas cada vez mais pre­mentes que pesam sobre as condi~5es ffsicas e sociais da reproduc;ao em partes determinadas do globo se fizeram- e continuam ainda a se fazer- muito larga­mente fora de uma referenciaforte a uma problematica marxiana e/ou rnarxista12

Elas se fizeram, salvo excec;ao, sem que se estabelecessem la9os fortes com as molas da acumulac;ao capitalista, que se efetua, hoje, sob a egide de uma nova configurac;ao do capital financeiro. Elas se fizeram sem que houvesse urn enuncia­do claro do fato de que as rela96es de produ9ao capitalistas sao tambem, e de forma simultanea, relac;oes de dominac;ao, cuja reproduc;ao e expansao se operam no quadro de relac;oes imperiali stas renovadas. Elas se fizeram fora da analise crftica das relac;oes sociais fundadas sabre a propriedade privada e da demonstra­c;ao de suas implicac;oes cotidianas. 0 fato de que seu tempo de gestac;ao tenha sido muito Iongo perrnitiu seja ignoni-los quase totalmente seja trabalhar te6rica e politicamente na ideia de que tais tendencias seriam barradas e suas conseqtien­cias retificadas, consertadas ap6s a revoluc;ao, no quadro do socialismo.

A responsabilidade dessas carencias e desses atrasos incumbe aos marxistas tanto e, no que nos conceme, mais do que aos ecologistas. E, evidentemente, inegavel que, em sua grande rnaioria, os ecologistas acreditaram poder ou quiseram, deliberadamente, evitar fundamentar suas propostas numa crftica do capitalismo de tipo marxiano ou marxista. Atenuaram, ou ate apagararn, a importancia das rela­c;oes entre o que chamam de "produtivismo" e a l6gica do Iucro, da mesma forma que fizeram silencio sabre o papel central da propriedade privada na crise ecol6gi­ca. Isso contribui fortemente para explicar que seu combate tenha sido destinado ao fracasso ou, pior, a recuperac;ao pelo sistema. A ausencia de uma postura anticapitalista levou a maioria dos partidos verdes europeus a se tomarem simples parceiros "ecorreformistas" da gestao social-liberal do capitalisrno pelos govemos dirigidos por partidos sociais-dernocratas ou stalinistas arrependidos. Mas a subida do pensamento ecologista e das forma~oes polfticas que dele se reclamam nao teria

11 0 importante livro, de origem marxiana, de Christian DeBresson, sobre a mudan~a tecnica, se baseia, quase que exclusivamente, em suas rela~oes com e seus efeitos sobre o trabalho, bern como sobre as maneiras que os operarios podem tentar para transformar esse terreno em urn campo de mobiliza~ao. A questao ecol6gica e apenas mencionada. Ver Christian DeBresson, Comprendre le changement technique, Otawa/Bruxelas, Les Presses de I'Universite d'Ottawa e Les Editions de l'l.Jniversite de Bruxelles, 1993.

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sido possivel sem o terrfvel vacuo te6rico e politico que se formou do lado dos marxistas e que durou ao menos ate o inicio dos anos 199013

.

Esse atraso muito importante da analise marxista eo resultado combinado de numerosos fatores. Suas rafzes estfio mergulhadas na leitura unilateralmente "produtivista" do trabalho de Marx e de Engels efetuada durante decadas. Na concep<;ao que prevaleceu, o "envelope" institucional e organizacional no qual se efetua o desenvolvimento produtivo, incluindo o da ciencia, e reconhecido como sendo capitalista de cabo a rabo, mas sem que isso afete, senao de forma superficial, a orientac;ao e os resultados desse desenvolvimento. A ciencia, a tecnologia e as "formas de cultivar e de fabricar" ou, dito de outra forma, as formas das rela<;6es com a natureza seriam para o socialismo ao mesmo tempo uma "heranc;a" e urn "trampolim". Elas constituiriarn primeiro urna "heran<;a" que o socialisrno poderia aceitar ap6s inventario, mas urn inventario bastante surnario. Em seguida, seriarn urn "trampolim" a partir do qual a humanidade po­deria avan<;ar sem ter que realizar mais do que inflex6es de rota e sem ter de gerenciar imensos estragos ao ten tar reverter, pelo rnenos parcialmente, suas con­seqi.iencias. E sabre essa base que o movimento operario tradicional- os sindica­tos e os partidos sociais-democratas, bern como os comunistas - puderam cons­truir as posi<;6es que fazem deles os defensores tanto da energia nuclear quanto da industri.a automobilfstica. Para os PCs ocidentais e os sindicatos ligados a Federa<;ao Sindical Mundial (FSM), tratava-se de defender a experiencia desas­trosa, do ponto de vista ecol6gico como em todos os outros pianos, do "socialis­mo real" e da domina<;ao social da burocracia staliniana14.

As mudan<;as nas correlac;oes de for<;a entre o capital e o trabalho nascidos da "contra-revoluc;ao conservadora" e da Iiberaliza<;ao e desregulamentac;ao, im­postas as classes operarias e aos assalariados de todos os pafses, s6 pioraram as coisas. A "salvaguarda do emprego" tornou-se o objetivo prioritario, senao ani­co, da a<;ao do movimento operario, transformando-se num dos maiores argu­mentos contra toda proposta seria de Iimitac;ao do uso do autom6vel e ate da simples aplicac;ao dos textos de lei, bastantes Jimitadas, em materia de controle de certas po1uic;5es, por exemplo, nas industrias qufmicas. A "defesa do empre­go" e mobilizada para que a agricultura produtivista e poluidora, bern como os

u Michael Lowy, em seu artigo uoe Marx a l'ecosocialisme", atraiu nossa atenc;ao para textos de Walter Benjamin e do militante socialista austrfaco julien Dickmann datados dos anos trinta. Mas, foi necessaria esperar ate os anos 1990, com os ensaios de James O'Connor, de Tiziano Bagarolo [ver "Essai sur marxisme et ecologie", Quatrieme lnternationale, n. 44, maio-julho (de 1992) e numeros especiais de revistas americanas como Science and Societye Monthly Review].

14 Na Franc;a, o unico autor de esquerda que reuniu elementos sobre essa experiencia e Jean-Paul Deleage, Une histoire de f'fkologie, op. cit., p. 287 e ss.

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poderosos interesses agroalimentares, a ela ligados e gravemente postos em cau­sa devido a "doen~a da vaca louca", sejam atingidos da forma mais limitada pos­sfvel, ou nem urn pouco.

No que conceme a corrente trotskista da qual somas oriundos, a repeti~ao das posi~6es dos principais dirigentes e te6ricos do partido bolchevista datando dos anos 1920 veio confortar posi~oes largamente conformes as dos aparelhos da CGT e da FO. A posi~ao dos dirigentes do partido bolchevique em atraso te6rico e polftico em rela~ao aqueles que, por outras vias, mantiveram e desenvolveram a crftica do capitalismo e a estenderam, de forma sistematica, por exemplo ao mili­tarismo, deve evidentemente ser situada no contexte preciso em que se desenvol­veu. A vit6ria da primeira revolu~ao proletaria num pafs pouco industrializado e com fraco desenvolvimento das capacidades de pesquisa cientffica e tecnica acen­tuou, muito fortemente, a abordagem fundada na "domina~ao das leis naturais" e na domina~ao da "natureza". Ela explica o elogio de Lenin ao taylorismo, os discursos sobre a ciencia e a tecnica de Trotski15, naquela epoca, e as posi~oes sobre a ciencia e a tecnica de Bukharin, fortemente tingidas de positivismo16•

2.2. Reler Marx e Engels e utilizar essa leitura no contexto hist6rico atual Assim, e preciso retornar a Marx e Engels para rele-los e voltar a trabalhar

a crftica do capitalismo, da qual eles lan~aram os fundamentos. Da mesma forma, e precise recusar tambem, e de forma muito mais firme do que se tern feito ate agora, a crftica "ecologista" das formas materiais da civiliza~ao do capital finan­ceiro monopolista.

Retornar a Marx niio quer dizer tentar sustentar que ele, bern como Engels, com ele e ap6s ele, nao tenham escrito coisas contradit6rias ou defendido posi­~6es cuja concilia~ao nem sempre e evidente. Ao I ado de elementos crfticos mui­to importantes, que foram durante muito tempo completamente negligenciados pelos te6ricos marxistas ap6s Marx, o fato e que existem em seu trabalho nume­rosos textos- de que puderam, e ainda podem, se valer os defensores da "ciencia, fator de progresso"- que fazem o panegfrico do capitalismo no plano da ciencia e da tecnologia.

15 Ver, em particular, leon Trotski, Marxism and Science. Trata-se de dois discursos de 1925 e 1926, publicados em ingles em 1938, com fortes avisos no curto prefacio escrito por Trotski e que nao foram levados em conta pelas organizac;oes trotskistas que o uti lizam como urn texto de formac;ao.

u. John Belamy Foster, em Marx's Ecology: Materialism and Nature, Nova York, Monthly Review Press, 2000, acha que Bukharin foi, apesar de tudo, o (mico dirigente bolchevista a ter udo algumas intuic;oes sabre a importancia da biosfera.

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Esses textos a gloria da ciencia, bern como OS que fazem 0 panegfrico da obra realizada pelo capitalismo e pela burguesia, devem ser recolocados em seu contexte, aquele das primeiras grandes exposi96es universais que marcaram todos que as vi ram. Se Marx e Engels nao tivessem sido sensfveis a elas, pode-se estar certo de que os que lhes movem urn processo acusando-os de positivismo e de cientificismo, os acusariam deter vivido fora de seu tempo! Esses textos devem tambem, e sobretudo, ser situados na perspectiva hist6rica enos prazos de trans­fonna~tao social que sao os de Marx, como de todos os te6ricos revolucionarios, pelo menos ate a Segunda Guerra Mundial. No espfrito de Marx, enquanto siste­ma, marcado por crises economicas graves e recorrentes, o capitalismo deveria desaparecer bastante depressa. A humanidade dele poderia se desfazer pela revo­lu~tao assim que fossem reunidas as condict6es objetivas e subjetivas de sua ultra­passagem: os novos meios de produ~tao e de transporte marftimo e terrestre, os primeiros meios de comunicavao e uma classe operaria concentrada, pronta a ser organizada no plano sindical e no plano polftico numa perspectiva de derrubada do capitalismo.

E bastante sabido que os textos sobre o carater progressista do capitalismo no plano da cria~ao cientffica e tecnol6gica sao constantemente qualificados sob o angulo de suas conseqtiencias muito negativas para os trabalhadores17

. Menos freqtientemente, apontou-se que alguns desses textos18 foram igualmente qualifi­cados sob o angulo de suas conseqtiencias nefastas para a "terra", termo que e precise considerar como uma abrevia~tao para designar de modo muito mais am­plo as condict5es naturais, ffsicas, da prodU<;ao e da reprodu9ao.

Urn a das passagens em que Marx e mais explfcito em rela9ao as conseqtiencias "ecol6gicas" do capitalismo e aquele que encerra a longa quarta se9ao do livro I de 0 capital, sabre a produ9ao da mais-valia relativa. Nessa passagem, ele trata da explora9ao (do "martirol6gio") dos operarios agrfcolas e industriais no quadro de desenvolvimentos mais amplos sobre a rela9ao entre a agricultura e a grande industria. Uma leitura minimamente atenta indica ate que ponto, para Marx, a ideia de progresso esta subordinada a de revolufiio:

Com a crescente preponderancia da popula9ao das cidades que ela aglomera em grandes centros, a produ9ao capitalista, de urn I ado, acumula a for9a motora da hist6-ria~ de outro lado, destr6i nao somente a salide ffsica dos openirios urbanos e a vida

17 Na medida em que esses textos sao muito sistematicamente negligenciados ou, em todos os casos, minorados em seu conteudo analftico de transformac;ao das forc;as produtivas em fatores destrutivos, permitimo-nos recomendar a releitura dos capftulos X a XV do livro I de 0 capital.

18 Esses textos crfticos acabam de ser reunidos e reapreciados por Paul Burkert, Marx and Nature: A Red and Green Perspective, e por John Bellamy Foster, Marx's Ecology: Materialism and nature, op. cit.

48 • "ECOLOGIA/1 E COND!r;6ES FfSICAS DA REPRODUr;Ao SOCIAL

inte)ectual dos trabaJhadores rusticos, mas ainda perturba a circulayaO material entre o homem e a terra (etc.).19

Hoje como ontern, ern condis:oes hist6ricas distintas, toda a questao esta na capacidade de auto-organiza9ao dessa popula~ao20, rnajoritariarnente urbana, de vendedores de sua for9a de trabalho (de assalariados e de desempregados que sao "proletarios" rnesrno se, ern sua rnaioria, deixaram de ser operarios), a ponto de ser capaz de desempenhar esse papel de "for~a rnotriz da hjst6ria", isto e, de sujeito politico decidido a acabar com o capitalismo.

Na ausencia ou numa situa~ao de paralisia de tal sujeito polftico, o que domina e a consolidas:ao e a acentua9ao de urn processo em que

cada progresso da agricultura capitalista e urn progresso nao somente na arte de ex­plorar o trabalhador, mas tambem na arte de depenar o solo; cada progresso na arte de aumentar a fertilidade por urn certo tempo torna-se urn progresso na rulna das fontes duradouras da fertilidade. Quanto mais urn pais, os Estados Unidos por exem­plo, se desenvolve na base da grande industria, mais nipido ocorre esse processo de destrui9ao.

E Marx terminava corn essa frase, da qual se fez urna utiliza9ao te6rica rnuito limhada: "A produ9ao capitalista s6 desenvolve a tecnica ( ... ) esgotando as duas fon­tes das quais jorram toda a riqueza: a terra e o trabalhador" 21

3. Tra«;os predadores e processos destruidores . com tempo de gesta~ao Iongo As revolu96es do seculo XX foram desfeitas - por seu interior tanto ou ate

mesmo mais do que pelo exterior. Nao ocorreu a passagem do capitalismo para uma forma de organiza9ao social na qual a humanidade passaria a controlar as condi96es materiais de sua reprodus:ao, incluindo, ou melhor, come9ando sobre­tudo por seu ambiente natural planetaria e sua biosfera. E, pois, no quadro da hip6tese pessimista, em que "o processo de destrui9ao se realiza rapidamente", que estamos obrigados a nos situar. Certamente, Marx pensava poder indica-lo simplesmente "para manter em memoria", por assim dizer. Bancando a aposta da extensao da revolus:ao, notadamente na Alemanha, os bolchevistas ainda podiam pensar, algumas decadas depois, em tomar emprestado do capitalismo suas

19 "A grande industria e a agricultura", Le capital, livro I, ultima se~ao do capitulo XV. 10 No Manifesto do Partido Comunista, a forma~ao do "partido" e indissociavel desse movimento

de auto-organiza~ao. Longe de ser exterior a ela, esse movimento e uma de suas formas.

21 Karl Marx, op. cit., livro I, ultima sec;ao do cap. XV.

CR{T/CA MARXISTA • 49

tecnologias como trampolim para uma situa~iio em que liberariam a ciencia e a tecnica de seu inv6lucro capitalista. Hoje, somos obrigados a proceder de forma bern diferente.

Somos constrangidos a tentar desvencilhar-nos do economicismo ambiente. Nada seria mais urgente do que modificar o terreno e os termos atuais do diaJ.ogo dos marxistas com as correntes de pensamento dominantes, mesmo as "heterodo­xas", com o fim de voltar a se apropriar de urn a crftica tao radical quanto possfvel do capitalismo, bern como da domina~iio burguesa. Hoje, ser fiel a Marx e rele-lo para procurar com ele ( e nao apenas em seu trabalho) todos os tra~os predat6rios e parasitarios, assim como todas as tendencias a transforma~ao das for~as inicial­mente ou potencialmente produtivas em for~as destrutivas, que estavam inscritas nos fundamentos do capitalismo desde o infcio, mas cujo tempo de gesta~ao e de matura~ao foi muito longo. Sempre houve, em Marx, uma incita9ao a crftica a mais radical possfvel, ao "catastrofisrno", como alguns gostam de chama-la. Hoje, pare­ce que se tomou necessaria deixar livre curso a essa crftica radical, "pessimista".

E, entiio, necessaria buscar levar mais Ionge observa~oes do tipo da que se encontra em A ideologia alemii, quando Marx observa que,

no desenvolvimento das for~as produtivas, chega-se a urn estagio em que nascem for~as produtivas e meios de circula~ao que s6 podem totnar-se nefastas no quadro das rela'.r6es existentes; elas nao sao mais for'.ras produtivas mas for~as destrutivas (o maquinismo eo dinheiro).22

Em A ideologia alemii, Marx nao leva a ideia alem dessa constata<;ao. Tampouco e certo que, ao falar desses dois mecanismos destrutivos, Marx pensasse na destrui~ao da "natureza". Aqui, como nos escritos filos6ficos anteriores e como depois em 0 capital, Marx se refere sobretudo ao destino dos proletarios e de suas Jamflias, bem como das camadas nao proletarizadas mais exploradas. Lembremos em que termos Marx enunciava, no livro I de 0 capital, a maneira pela qual

a lei que poe o homem social em condi'.rao de produzir mais com menos trabalho transforma-se no meio capitalista - onde nao sao os meios de productao que estao a servic;o dos trabalhadores, mas os trabalhadores que estao a servi'.ro dos meios de produ'.rao- em uma lei contniria, isto e, quanta mais o trabalho ganha em recursos e em potencia, quanta mais ha pressao dos trabalhadores sobre seus meios de empre­go, mais a condi'.raO de existencia do assalariado, a venda de sua forya de trabalho, torna-se precaria.23

12 Idem, L 'Jdeologie Allemande. Paris, Editions Sociales, p. 67-8.

13 Idem, Le capital, op. cit., livro I, cap. XXV, par. IV.

50 • NECOLOGIA// E CONDI<;OES FfSICAS OA REPRODU<;AO SOCIAL

Hoje, Marx enunciaria uma "lei" (isto e, urn mecanisme macrossocial que repousa sobre as relac;oes de propriedade e as finalidades decorrentes da valori­zac;ao do capital e que possui efeilos muito amplos) complementar, relativa a destruic;ao pelo capitalismo do ambiente natural, dos recursos naturais e da biosfera 0 termo complementar e indispensavel, ja que e no processo de constituic;ao inicial, isto e, da expropriafiio das condic;oes de existencia anteriores dos "prole­tarios", dos homens e mulheres que formarao o "proletariado" (aqueles que s6 devem viver da venda de sua fon;a de trabalho), e de sua dominac;ao pelo capital, que jazem alguns dos mais importantes mecanismos de destruic;ao deste meio ambiente.

Ao se colocar numa perspectiva de gestac;ao longa, esta sec;ao ira, assim, focalizar-se nos mais importantes mecanismos econ6micos e sociais que sao a origem das tendencias, despercebidas por muito tempo, do capitalismo a predac;ao, ao parasitismo e a transforma<;ao de forc;as inicialmente ou potencialmente pro­dutivas em forc;as destrutivas24 no campo do meio ambiente naturale da biosfera. Embora coexistam com as tendencias "progressistas" sobre as quais a enfase foi posta por todos os comentadores de Marx ate os trabalhos acima citados, elas caracterizam, desde o infcio, as relac;oes que o capitalismo estabelece com as condic;oes externas de produc;ao encontradas no momento de seu surgimento e no quadro das quais se move. A ultima parte dessa sec;ao buscara apontar, muito brevemente, as conseqtiencias da centralizac;ao e da concentrac;ao do capital e a formac;ao de alguns dos mais poderosos oligop6lios ao redor de atividades, de industrias e de formas da vida quotidiana, que tern os mais fortes efeitos destrui­dores das condic;oes naturais de reproduc;ao da· vida.

3.1. Da expropriafiiO do campesinato a "expropriafiiO do vivente"25

E no mundo rural e pela penetrac;ao das relac;oes de produc;ao capitalistas na agricultura e na pecuaria que e precise comec;ar. Ali se situ a urn dos fundamentos mais cruciais do modo de produc;ao e de dominac;ao ao qual estamos submetidos e encontra-se tambem a origem de urn dos mais permanentes mecanismos de agressao aos metabolismos sobre os quais a reproduc;ao ffsica da sociedade hu­mana repousa. Estamos em presenc;a de uma esfera em que o capital financeiro

24 Esta e a posi\=ao doravante assumida por Michael Lowy, pelo menos no campo da ecologia, na linha de Tiziane Bagarolo (ver nota 6 para as duas referencias). Nosso primeiro trabalho te6rico sobre a transforma\=aO de for\=aS inicialmente ou potencialmente produtivas em fon;as destrutivas remonta, para um de n6s (Chesnais) a urn artigo de 1967 em La Verite (sob o nome Etienne Laurent). 0 artigo aplicava a ideia ao proletariado, as crises e ao desenvolvimento da ciencia sob o imperio do mi litarismo e das industrias de guerra.

15 No sentido desenvolvido por R. Lewontin e J. P. Berlan; ver La guerre au vivant, op. cit.

CRfTICA MARXIST A • 51

prossegue, mais ferozmente ainda, sua busca simuWinea de lucro e de for9as renovadas de domina9ao social. Ele se ap6ia num processo que remonta aos prim6rdios do capitalismo, mas que conheceu fases de tregua que, hoje, fazem figura da "idade de ouro".

A expropria9ao dos produtores camponeses diretos e a submissao da produ­~ao agrfcola e animal ao mercado e ao lucro sao mecanismos que datam da f9r­ma~ao do capitalismo na Inglaterra26. E sabido o papel fundamental que desem­penbou aqui a expropria~ao dos agricultores ingleses do seculo XVI ao seculo XVIII, notadamente pelo movimento de apropria9ao privada dos terrenos comu­nais, dito das enclosures, decretado porThomas More como urn mecanismo social ao fim do qual os rebanhos "comem os homens" ("sheep devouring men"). Marx colocou o processo de expropria~ao do campesinato no cerne dos mecanismos de acumula9ao primitiva. Mas, esse processo nunca deixou de existir e prossegue ate nossos dias, e nao e atribufvel sornente as po1fticas do Fundo Moneta.rio Inter­nacional (FMI), por mais que seja necessaria incrimimi-las. E no nucleo das rela­~6es de produ~ao e de domina9ao que ele se situa.

Desde as primeiras coloniza~oes, a hist6ria economica e social dos pafses do "Sui" subordinados ao imperialismo e aquela, no que aqui nos concerne, de ondas sucessivas de expropria~ao dos camponeses em proveito de formas con­centradas de explora~ao da terra (desflorestamento, planta96es, pecmiria extensi­va etc.) para a exporta9ao aos pafses capitalistas centrais. Quando se examina a situa9ao dos maiores exportadores de materias-primas nao minerais - o Brasil, a Indonesia ou os pafses do Sudeste da Asia - encontrarno-nos diante de urn pro­cesso em que as destrui~6es ambientais e ecologicas cada vez mais irreversfveis esUio acompanhadas por agress6es constantes desferidas contra as condi~6es de vida dos produtores e de suas famflias, de forma que e impossfvel dissociar a questao social da questao ecol6gica. Os beneficiaries sempre foram os mesmos: os grandes grupos de comercio e, depois, de produ9ao agroalimentar, aliados, em configura~oes multiplas e mutaveis, as classes dominantes locais, oligarquias rentistas ou capitalistas. 0 ataque do capital contra a produ~ao direta fomentou a I uta de classes no campo, primeiro nos pafses capitalistas mais antigos e, no secu­lo XX, nos pafses do Sui. Hoje, a novidade consiste numa tom ada de consciencia da interconexao entre as destrui~oes eco16gicas e as agressoes contra as condi­<;5es de existencia dos produtores, que e urn dos tra<;os- na America Latina como na Asia - dos movimentos camponeses contemporaneos (por exemplo, o Movi­mento dos Sem-Terra do Brasil).

Lc. Ver, para urn a slntese recente, E. M. Wood, Tile Origin of Capitalism. Nova York, Monthly Review Press, 1999.

52 • /IECOLOGIA" E CONDJc;OES F[SJCAS DA REPRODU(:AO SOCIAL

0 interesse te6rico da agricultura e a ilustra~ao das implicafoes da questiio do controle pelos produtores diretos de suas condifoes de produfiio. E uma das dimen­s5es de sua imensa importancia social. Na agricultura, a separa~ao ou a perda de controle ocorreu duas vezes, em dois contextos economicos, sociais e recnicos distin­tos. No caso dos pafses com implanta~ao capitalista mais remota, essas duas expro­pria96es sucessivas tiveram lugar com seculos de intervale. Na primeira vez, a sepa­ra9ao dos produtores diretos de suas condi96es de produ9ao confundiu-se com o movimento de expropria~ao maci9a do campesinato. Em muitas passagens de 0 ca­pital ou dos Grwulrisse, Marx, ao mesmo tempo em que explicita as condi~oes e as conseqtiencias humanas, considera-a como inevitavel e ate mesmo necessaria. A pas­sagem a uma agricultura modema, se apoiando-se na agronomia dos "gentlemen fanners" dos seculos xvm e XIX c capaz de reciclar seus refuges segundo OS pre­ceitos da nova qufmica do solo, lhe parece-lhe urn ponte de passagem incontomavel num desenvolvimento social que ele considera ainda como colocado sob o signo do progresso. Isso ocorre mesmo depois que ele toma rapidamente consciencia que a submissao da agricultura aos ritmos de crescimento comandados pela rapida industri­aliza9ao vai transtomar os metabolismos naturais e dar infcio ao movimento de fuga para a frente, em que "cada progresso da arte de elevar a fertilidade por urn tempo [e] urn progresso na rufna de suas fontes duradouras de fertilidade" 27

Na Inglaterra primeiro e depois, com muito tempo de atraso, em quase todos os pafses que tiveram uma revoluyao democnitica burguesa e desenvolvimento ca­pitalista, o primeiro movimento de expropria9ao foi seguido por uma fase mais ou menos longa em que parece se formar urn novo equilibria. Tem-se a impressao de assistir ao estabelecimento de uma nova forma de controle pelos produtores diretos de suas condiy5es de produ9ao capitalista na base de pequenas ou medias explora­y5es trabalhando para os mercados locais e urbanos. Somente os Estados Unidos constituem aqui, como em tantos outros dominies, uma exce9ao. Sao os primeiros a destruir seus "agricultores" e a implantar, muito mais cedo do que em qualquer outro lugar, uma agricultura altamente mecanizada, com utiliza~ao intensa de pro­dutos qufmicos e com urn forte dispendio de energia28

• Esse controle parcialmente recuperado, sem duvida largamente em aparencia e de forma totalm.ente momentfi­nea, se da no quadro das propriedades capitalistas de tamanho medic e nas explora-95es camponesas cujos proprietaries beneficiaram-se de uma formayao agronomi­ca. Born nlimero dentre eles pode praticar uma agricultura aproximando-se, pelo menos urn pouco, do tipo ideal descrito por Berlan,

1; Sabre a noc;:ao de metabolismo, bern como da divida de Marx em rela~ao a Leibig, consultar John Belamy Foster, Marx's Ecology: Materialism and Nature, op. cit.

28 David Pimentel, "Food Produdion and the Energy Crisis", Science, n. 182, 1973.

CRJTICA MARXISTA • 53

ilwvafoes resultantes de uma inteligencia coletiva, associando o conhecimento cien­

tifico com o conhecimento campones para, em seguida, se prestar a partilha e sa­bendo convencer a natureza a trabalhar amigavelmente para n6s.29

Esse controle recuperado foi tornado passageiro pelo ri tmo da industrializa~ao e da urbaniza~ao e sobretudo pel a necessidade absoluta, do ponto de vista da acumu­la~ao do capital, que as rnercadorias desempenhando urn papel central no custo da reprodus;ao da for~a de trabalho (os "bens-salario") fossem as mais baratas possfveis. 0 aumento, custe o que custar, da produtividade agricola teve do is efeitos: ela desem­bocou no que hoje se chama e se critica muito hipocritamente como o ~'produtivismo a toda" e a "agricultura poluidora". Faz-se de conta que e possfvel "esquecer" que eles sao o resultado de polfticas deliberadas, altamente subvencionadas, que tiveram tambem por resultado entregar a agricultura a grande industria agroqufrnica, onde se desenvolvem hoje as biotecnologias. Passo a passo, o agricultor e submetido, ha trinta anos na Europa (e muito antes nos Estados Unidos), a uma nova fase de expropria­~ao. Seu objetivo e a instala~ao de urn imenso dispositive tecnol6gico e institucional destinado a p6r fim ao que sempre tinha parecido urn processo imutavel, isto e, a manuten~ao do controle dos agricultores sabre suas reservas de sementes. Trata-se de proibir aos agricultores o plantio de parte dos graos que colhem, tanto pel a lei intema­cional, a da prote~ao pela Organiza~ao Mundial do Comercio (OMC) do paten­teamento sabre o vivente, quanta por uma tecnica de transgenese- batizada pela Monsanto pelo nome explfcito e ja celebre de Terminator -, que permite produzir urn grao (e, em breve, muitas outras sementes) esteril, que nao pode ser novamente plan­tado. As conseqtiencias previsfveis em caso de sucesso do capital financeiro sao de uma gravidade incomensunivel nos pafses pobres com grande popula~ao campone­sa. A menos que haja uma resistencia social e polftica de grande for~a, o capitalismo tera conseguido a1can~ar o termino de seu processo de expropria~ao dos produtores e de domina~ao do vi vente. Teni passado da expropria~ao dos camponeses a expropria­~ao do direito geral dos seres humanos de reproduzir, e em breve de se reproduzir, sem ernpregar tecnicas patenteadas, sem pagar urn pesado tribute ao industrial e, por detras desse, a seus acionistas e as balsas de valores30

3.2. A renda no corat;iio do esgotamento dos recursos naturais A chave da posi~ao do capital em rela~ao aos recursos naturais foi formulada

por Jean-Baptiste Say, quando disse que as riquezas naturais que nao podem ser

29 Jean-Pierre Berland, Laguerre au vivant, op. cit., p. 47. 30 Sobre todas essas questoes, e indispensavel le r Jean-Pierre Berland, Laguerre au vivant, op. cit.

54 • /'ECOLOGIA" E CONO/(XJ£5 FiSICAS DA REPRODU(:AO SOCIAL

"nem multiplicadas, nem esgotadas, nao sao_ o objeto da ciencia economica"31•

Por af, ~e pretende afirmar que o capital s6 se interessa por urn recurso natural em dois tasos. 0 primeiro e quando esse pode ser "multiplicado,, isto e, produzi­do com lucro no quadro da valorizacao do capital, seja ao ser submetido a urn processo de transforma~ao ou de presta~ao de servi~os, seja ao ser oferecido no mercado sob forma de substituto industrial que, se necessaria, sera impasto con­tra o verdadeiro produto natural pelo emprego de estrategias sernelhantes as ern­pregadas pelos grupos de agroqufmica para os produtos hfbridos e os OGM. 0 segundo caso eo do recurso natural, inicialmente considerado inesgotavel, cuja rarefacao progressiva ou mesmo as perspectivas de esgotamento toma suscetfvel de dar margem a rendas para os que controlam seu acesso.

A renovacao de uma economia crftica e radical pressup5e que se de a teoria da renda o maior desenvolvimento possfvel e se aprofunde a analise do Iugar reservado no capitalismo aos rentistas de todas as categorias. Ao mesmo tempo, a questao da propriedade se torna incontornavel. A propriedade privada do solo e dos recursos naturais agrfcolas e rninerais a ela relativos, e portanto a possibilida­de que se abre de receber urn certo tipo de rendimento- a renda- cuja particula­ridade e de s6 estar fundado no fato de gozar da propriedade exclusiva dos recur­sos em questao, nasceu antes do capitalismo. A relacao que deve ser qualificada objetivarnente, cientificamente, de parasitaria (rnesrno se alguns podem objetar que esse terrno cornporta urn julgarnento de valor) - aquele que o proprietario estabelece com os recursos sabre os quais esta "sentado" e corn aqueles que os valorizam por seu trabalho - e bern anterior ao capitalismo. Para nos rnantermos apenas na hist6ria ocidental, ela foi a fundacao da economia rural na epoca feu­dal. Mas a economia mercantil em sua fase de expansao primeiro mundial e no capitalismo, em seguida, deu a renda urn formidavel desenvolvimento. E facil en tender porque. Urn sistema e urn modo de domina~ao social, que se baseiarn na propriedade privada dos meios de producao e sabre o dinheiro como forma de riqueza universal e de poderio social, sao naturalmente inclinados a legitirnar a propriedade privada sob todas suas formas .

. Passado urn muito curta per{odo de conflito entre os capitalistas e os proprietarios fundiarios agrfcolas (conflito largamente circunscrito a Fran~a, com o desmantelarnento da propriedade eclesiastica e a aboli9ao dos direitos feudais, e a Inglaterra, corn a estigmatizacao da renda na teoria da acumula9ao de Ricardo e a disc6rdia sobre as leis que taxavam a irnportacao de trigo), o lucro fez as pazes

31 J.-B. Say, Cours complet d'economie politique, 1840. [Ed. bras.: Sao Paulo, Abril Cultural, Cole­<;ao Os economistas, 1983.] Devemos essa dta<;ao a J.-M. Hambey em L 'economie econome: le developpement soutenable par fa reduction du temps de travail, Paris, 1997, L'Harmattan, p. 93, mas propomos uma interpretac;ao distinta da sua.

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