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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Maria Elise Gabriele Baggio Machado Rivas
TEOLOGIA USA SAIAS?
MULHERES NA TEOLOGIA: DA EXCLUSÃO À PROFISSIONALIZAÇÃO
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
São Paulo
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
2
PUC-SP
Maria Elise Gabriele Baggio Machado Rivas
TEOLOGIA USA SAIAS?
MULHERES NA TEOLOGIA: DA EXCLUSÃO À PROFISSIONALIZAÇÃO
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora como exigência parcial
para obtenção do título em Mestre em
Ciências da Religião, pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
sob a orientação da Profa. Doutora
Maria José Rosado Nunes.
São Paulo
2012
3
Banca Examinadora
________________________________
Dra Maria José Rosado F. Nunes
_________________________________
Dra Maria Lúcia Carvalho da Silva
_______________________________
Dra Regina Jurkewitz
4
Dedicatória
Dedico esta pesquisa a meu Mestre, que me recebeu em seu terreiro,ainda em
minha adolescência, meproporcionando a vivência espiritual e a devoção aos
meus ancestrais. Ensinou-me a respeitar o sagrado, a humanidade, a natureza
e a mim mesma. Agradeço a ele por ter me formado com seu próprio exemplo,
me mostrando que é necessário ser forte enão desistir em meio a intempéries.
Ao meu querido e amado companheiro, com quem tenho dividido meus
amores, ideais e conquistas nos últimos vinte e cincoanos e com quem desejo
dividir muitas conquistas pelo resto de minha vida. Esta obra também é sua,
pois dividiu comigo muitos momentos de sua elaboração.
Aos tesouros de minha vida: Thales, Athus, Thetis e Mariah, que são minha
alegria e amor, que colaboraram na conquista deste trabalho, cedendo
momentos de nosso convívio, mas no êxito de tudo que realizei até hoje.
Agradeço a Sumaia Miguel Gonçalves (Aracyauara) e Érica Ferreira da Cunha
Jorge (Yacyrê). A Sumaia por dividircomigo dias consecutivos de alegrias,
dificuldades e trabalho durante anos de nossas vidas. A Érica Cunha Jorge, por
ter em muitos momentos me levado aos desafios do mundo acadêmico e ter
me dado um grande presente, a pequena Mariah.
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Agradecimentos
Agradeço a minha orientadora, Maria José Rosado Nunes, por ter me recebido
como sua orientanda e me conduzido no caminho da pesquisa e por ter me
levado a reflexões que ultrapassam o saber acadêmico e permeiam a vida
cotidiana com uma conduta mais humanzada.
Agradeço àCAPES pelo apoio financeiro, fundamental para o desenvolvimento
de minha pesquisa.
Agradeço ao Programa de Pós-graduação de Ciências da Religião da PUC- SP
e aosseus professores, que colaboraram para a concretização de meu
trabalho.
Agradeço a Alexandra Abdala por ter me acompanhado em muitas das
entrevistas realizadas.
6
“La ausência de lamujereneste discurso, como toda ausência sistemática, es
difícil de rastrear. Esla ausência que nisiquierapuede ser detectada como
ausência porque nisiquierasu lugar vacío se encuentra em ninguna parte;
laausencia de la ausência...”
Célia Amorós(1991)
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RESUMO
O objetivo de minha pesquisa é analisar o campo profissional da
Teologia pós-regulamentação para mulheres, tendo em vista a oficialização do
bacharelado em Teologia, que estabeleceu o caráter isonômico e o escopo da
formação de profissionais. Para atingi-lo, retomei o início do ensino superior no
país e a exclusão das mulheres do mesmo, o que gerava desigualdades de
acesso ao saber a partir da concepção de gênero. Desigualdadesustentada
pela ciência e pelo poder simbólico da tradição judaico-cristã, que estabelecia o
que cabia aos homens e mulheresfazer e saber.Fiz um breve relato da
dificuldade vivida pelas mulheres neste processo de formação e
profissionalização.
Desta forma, a oficialização da Teologia,pelo Ministério da Educação e Cultura,
não é deslocada da situação geral do ensino superior e consequente
profissionalização no Brasil, porém tem sobre si a valência da formação
religiosa vocacional, difundido no seio das religiões judaico-cristãs como
inerente aos homens. Contudo, a Teologia, ao serreconhecida como curso
superior,passou a ser regida pelas leis educacionais de nosso país, e o
princípio de isonomia, permitiu,assim, que qualquer pessoa, inclusive as
mulheres e leigos que sofriam restrições nesta área, tivessem acesso ao curso,
bem como a exercer a Teologia como profissão após sua formação.
A partir disso, discutimos a profissionalização das mulheres na Teologia, a
questão de gênero e relações de poder, bem como a divisão sexual do trabalho
presente na formação e campo profissional da Teologia. Para investigar esta
questão, optei por pesquisa de campo, entrevistando alunos e alunas egressos
(as) de cinco instituições, reconhecidas pelo Ministério da Educação e Cultura,
da grande São Paulo, para saber se mudanças ocorrerem no campo
profissional para teólogasformadas no período pós-regulamentação.
Palavras-chave: Teologia, profissão, gênero, poder, divisão sexual de
trabalho,mulheres, religião e gênero.
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ABSTRACT
The aim of our work is to analyze the professional field of Theology after the
regulation for women, considering that the formal status of the graduation
course in Theology has provided an aspect of equality, and defined the
vocational training and career.The formalization of the course of Theology,
approved by the Ministry of Education and Culture, provides a new situation
concerning the religious training as well as the vocational training path.
When Theology was recognized as a discipline, it consequently turned to be
ruled by the educational system of the country, allowing everyone to apply for
the course, and to take it as a career.
Taking into account this new situation, this dissertation intends to discuss the
professionalization for women in the field of Theology in the context of
patriarchy.Our sources include interviews with graduated and undergraduated
students from five different institutions officially authorized by the Ministry of
Education and Culture in the city of São Paulo in order to verify whether
changes occurred for the female theologians and their careers.
Key words: Theology, Career, Patriarchy, Labour Sexual Division,
Women, Religion and Gender.
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Sumário
Lista de siglas……..……………………………………………………………........10
Introdução..........................................................................................................11
1. Mulheres e universidades no discurso religioso............................................14
1.2. Onde está a mulher nesta história? Um breve histórico do ensino
superior no Brasil sob o olhar de gênero.......................................................25
1.3. Século XX – lutas e conquistas das mulheres na sociedade brasileira
contemporânea..............................................................................................34
2. A Teologia: da vocação à profissionalização – histórico da regulamentação
da disciplina de Teologia no Brasil....................................................................45
2.1. As mulheres e a Teologia.......................................................................56
2.2.Por que elas não foram convidadas?.....................................................73
2.3. Um olhar de gênero sobre as fontes bibliográficas que discutem a
profissionalização da Teologia......................................................................82
2.4. A metodologia nos escolhendo...............................................................87
2.4.1. Caminhos teóricos...........................................................................96
2.4.2. A formação de uma categoria analítica: do conceito de patriarcado
à categoria de gênero..............................................................................101
2.4.3. Divisão sexual do trabalho............................................................107
3. Gênero e poder nas instituições pesquisadas.............................................110
3.1. O discurso religioso/teológico e poder nos espaços de formação.......127
3.2. Gênero e poder na formação e atuação profissional da Teologia........131
3.3. Divisão sexual de trabalho com base no discurso religioso.................154
Conclusão........................................................................................................166
Referências bibliográficas................................................................................170
Apêndice I: Roteiro de entrevistas (dirigentes)................................................189
ApêndiceII: Roteiro de entrevista (formados/as).............................................190
Apêndice III:.....................................................................................................191
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Lista de siglas
ABIEE- Associação Brasileira de Instituições Educacionais Evangélicas
ABRUC- Associação Brasileira das Universidades Comunitárias
ANEC- Associação Nacional de Educação Católica do Brasil
CFE – Conselho Federal de Educação
CNE – Conselho Nacional de Educação
DCNs- Diretrizes Curriculares Nacional
MEC- Ministério da Educação e Cultura
UDF- Universidade do Distrito Federal
SESU- Secretaria de Ensino Superior
11
Introdução
O objetivo de nossa pesquisaé o de analisar o campo profissional da
Teologia, pós-regulamentação, para mulheres, tendo em vista quea
oficialização do bacharelado em Teologiaestabeleceu o caráter isonômico,ou
seja, permitindo o acesso tanto de homens como de mulheres, e tambémo
escopo da formação dos mesmos como profissionais.
O histórico de nossa pesquisa tem início no ano de 2010 e se
desenvolve a partir de circunstâncias relacionadasa nossa tarefa
administrativa, por meio da qual fomos levadas a participar da plenária
desenvolvida pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) que objetivava a
discussão das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) de Teologia.
No mês de novembro de 2010 participamos de uma reunião em
Brasília, plenária pública desenvolvida no Conselho Nacional de
Educação,quando nos deparamos com algo inusitado para nós: uma mesa com
muitos homens, tendo apenas uma mulher como membro da mesa de
discussão.
Pela primeira vez no Brasil, deu-se oportunidade para discutir Teologia
e suas diretrizes, principalmente na constituição de uma disciplina, de um
campo de saber autônomo. Desta forma, esse evento foi distinto não só pela
discussão epistemológica, mas tambémpelo seu caráter político. Ali, naquele
momento, seria possível interferir, modificar, sugerir e dar novas contribuições
para as futuras Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) de Teologia.
A ausência feminina à mesa de discussões me levou a questionar o
campo profissional para mulheres formadas em Teologia no período pós-
regulamentação. Assim, fiquei instigada a verificar comoa religião,mesmo
depois da regulamentação da Teologia, ainda é um fator determinante na
restrição do campo profissional para mulheres teólogas.
A questão específica que perpassa este estudo, portanto, é a de
analisar o campo profissional para mulheres teólogas formadas pós-
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regulamentaçãoe se as questões religiosas continuam influenciando e
restringindo suaatuação mesmas nesta profissão.
O primeiro capítulo divide-se em dois subitens: uma visão panorâmica
da formação do ensino superior no Brasil e o histórico da formação da Teologia
como disciplina reconhecida pelo governo brasileiro. No primeiro tópico,
trabalhei com a formação do ensino superior desde a criação da primeira
faculdade, no ano de 1808.Busquei discorrer de que forma o ensino superior
excluía as mulheres de seu meio e como eram criadas possibilidades
hierarquizadas de acesso ao saber, a partir da concepção de gênero,
sustentada pela ciência da época e pelo poder simbólico da tradição judaico-
cristã, que estabelecia o que cabia ao homem e à mulher fazer e saber.
Apontamos também os constantes conflitos da concepção de um
Estado laico e a formação de um saber teológico associado, tanto pelas igrejas
como pelo Estado, com a religião. Relatamos fatos ocorridos no século XX que
conduziram a Teologia a ser entendida e legitimada como uma disciplina de
ensino superior.
Ainda neste capítulo utilizamos falas de nossos entrevistados como
forma de melhor compreendermos tanto as questões presentes nos cursos de
Teologia estudados quanto asconcepções religiosas subjacentes àTeologia
como profissão. Optei por usar os nomes verdadeiros dos diretores ou
responsáveis pelo processo de reconhecimento, tendo em vista que seus
nomes estão disponibilizados na rede ou nas instituições, mas não fiz o mesmo
com alunos(as) egressos(as) para preservar suas identidades.
No segundo capítulocontextualizei como nasceu nossa pesquisa, a
categoria analítica de gênero, relações de poder e a divisão sexual de trabalho.
Discuti a escassez de bibliografia que aborda o campo profissional da Teologia
e explorei o quadro metodológico, que é conduzido pelo instrumento de
pesquisa de campo realizado por meio de entrevistas semiestruturadas. A
amostra é composta por vinte formados e formadas eminstituições eleitas,
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focando na busca empírica para responder quem foi absorvido pelo campo
profissional da Teologia.
Elenquei cinco Faculdades de TeologianaGrande São Paulo, que
passarei a denominar F1, F2, F3, F4 e F5 Sendo elas de confissão batista,
metodista, luterana, católica e afro-brasileira. Usamos como critério para a
escolha as instituições presentes no grupo de trabalho do Conselho Nacional
de Educação.
O terceiro e último capítulo trata propriamente da análise qualitativa
dos dadosobtidos em minhas entrevistas junto aos discentes egressos das
instituições eleitas e sua inserção ou não no campo profissional da
Teologia.Analisei as relações de poder, a construção de gênero e divisão
sexual de trabalho presente na formação e profissionalização da Teologia. Para
melhor atender o desenvolvimento de minha pesquisa, fiz a opção pelo
caráterinterdisciplinar, o que possibilitou uma abordagem.
14
1. Mulheres e universidades no discurso religioso1
Falar de universidades e mulheres no ocidente é também falar de
cultura religiosa, mais especificamente o cristianismo. Busquei fazer uma breve
incursão em ideias que influenciaram o lugar das mulheres no universo da
educação e, para tanto, terei deabordar a religião cristã e as influencias que
recebeu da cultura grega2. Fiz esta opção para melhor localizar a influência dos
valores religiosos na concepção de gênero na sociedadeocidental.
A associação da figura feminina ao corpo,àsexualidade
earepresentação dos mesmos como algo poluídoe impuro nasce na religião e
cultura gregas. A ideia de impureza, num primeiro momento, está presente na
cultura popular grega, segundo a qualo coito e o nascimento eram vistos como
atos de impuridade.
Mas eram atos que poderiam ser purificados, por meio de rituais
específicos, porém esta concepção se modifica com a influência do culto órfico,
que passa a adotar o estado de pureza e não mais o ato de purificação vigente.
Com a nova visão defendida pelos órficos, o coito e o nascimento
deveriam ser evitados, ou seja, o caminho mais adequado era a anulaçãodo
desejo sexual. Contudo, o desejo sexual era estimulado por Eros, entendido
como uma força muito poderosa.
Homens e mulheres estariam à mercê de Eros, mas as mulheres eram
muito mais suscetíveis às suas influências eróticas. Isso gerou e justificou a
aplicação de restrições das atividades sexuais, pois sua sexualidade era
temerária. Os gregosafirmavam seremelas mais propensas a tornarem-se
impuras, em razão desuas suscetibilidades.
A ameaçadora sexualidade feminina ainda recebia uma
complementação negativa oriundados mitos de origem grega. Nesses mitos,as
1 Ao abordar a formação da universidade e as mulheres, tomamos como base as ideias defendidas por Robin Schott na obraEros e os processos cognitivos, tradução de Nathanel C. Caixeiro, de 1996.
15
mulheres eram vistas como o símbolo de todo o mal, fato este descrito na
lenda de Pandora, por Hesíodo, e também na obraTimeu, de Platão, na qual
discorre sobre o ato da criação enfatizando que a mulher surgiu de homens
que decaíram após cometerem ações indignas.
Essas concepções estão presentes e são defendidas no pensamento
filosófico desenvolvido por Platão e Aristóteles. Nas ideias de ambos havia um
menosprezo da mulher e eles as entendiam como “a encarnação dos perigos
suscitados àrazão pela sexualidade”, (SCHOTT, 1996, pag.61).
Os dois filósofos gregos idealizavam a busca da pureza e da
verdade,que eram contrárias ao estado das sensações e dos sentimentos, o
que levou ao desprezo pelo corpo, sede dos mesmos, e da mulher, por estar
ligada ao corpo com sua sexualidade exacerbada. Ambos foram considerados
obstáculo para o “estado idealizado” que almejavam.
Essas visões presentes no pensamento de Platão foram expressas em
suas construções epistemológicas e ontológicas, que defendiama busca da
pureza do pensamento e o distanciamento do corpo poluído, que era associado
às mulheres, logo,manter distância das mulheres seria uma forma de alcançar
a pureza.
Aristóteles, por sua vez, entende que existe a matéria e a forma, e, se
se diferencia de Platão, que concebia apenas o mundo das ideias, apesar de
algumas diferenças de pensamento, mantém a mesma linha em relação às
mulheres.
O filósofo passa a estabelecer categorias distintas, sejam elas: forma e
matéria, racionais e afetivas, ativas e passivas, criando um processo de
hierarquização entre as mesmas. Em Aristóteles, o racional é apresentado
como superior ao sentimento, assim como em Platão. “O argumento de
Aristóteles quanto ao domínio do racional sobre o passional ser natural é
também utilizado para justificar o domínio do masculino sobre o feminino”
(SCHOTT, 1996, pag.32). Após Aristóteles, seu conceito de
hierarquizaçãoentre os opostos passa a atuar no campo social.
16
As ideias defendidas pela cultura e religião gregas são assimiladas
pela religião cristã, que é impregnada pelos conceitos de pureza e impureza,
de verdadeiro e falso, bem e mal.
O cristianismo não deixou de tomar para si a associação feita entre os
gregos de que a mulher é o epíteto da impureza e do mal. Pensadores como
Agostinho no início da era cristã difundiam a ideia da mulher como ser impuro e
muitas vezes associada ao mal, tal e qual os gregos. Em seus escritos também
enfatizavamque as mulheres estão mais próximas do corpo impuro do que o
homem e, desta forma, justificavam como algo natural a subordinação delas
aos homens.
Agostinho desdobra esta mesma concepção à luz da razão. Ele
apresentava as mulheres divididas em corpo e alma. Afirmando que a alma das
mulheres tem a mesmacapacidade racional dos homens, mas não estende a
seus corposàmesma propriedade de raciocínio, pois incoerentemente identifica
os corpos das mulheres como a representação simbólica da irracionalidade,
justificando a submissão das mulheres também no campo da razão.
Assim, o controle racional que os pensadores ascéticos têm procurado como uma meta religiosa e filosófica torna-se encarnado numa existência física que exige o desempenho social do poder [...] está vinculada não apenasao controle racional no seio da alma, mas também ao controle dos homens sobre as mulheres no mundo social. (SCHOTT, 1996, pag.78)
Sendo este feito reiterado por Tomás de Aquino no advento da
escolástica, mas com uma inovação, expande seu interesse e ideias para a
ciência.O saber científico se torna foco da Igreja e a educação passa a ser uma
das metas do cristianismo. Os “monastérios” adentram o mundo “secular”3
reproduzindo na educação a vida monástica e as restrições às mulheres.
Tomás de Aquino declara que “as diferenças biológicas entre macho e
fêmea levam em conta a separação, através dos sexos, dos poderes ativo e
3 Secular entre aspas, pois não podemos negar que a Igreja determinava muito do comportamento na vida cotidiana dos leigos. Segundo Schott (1996), a ideia de pureza e descrença na mulher era vigente entre as práticas populares.
17
passivo na geração. A distribuição dos poderes possibilita ao homem a
execução da nobre “operação vital” do pensamento”. (SCHOTT, 1996, pag. 85-
86). Desta forma, cabe ao homem o privilégioda educação, de modo que o uso
da razão é essencial.
Aquino ainda recorre à ideia de que foi o homem criado àimagem e
semelhança de Deus e a ele foi estendida a razão, pois às mulheres não seria
necessário o intelecto, e, embora argumente que as mulheres também sejam
possuidoras da razão, ressalva que as mesmas não têm aptidão para exercê-
la.
Em seu discurso alega que a natureza sexual das mulheres diminui o
critério racional delas. Ele também associa aos homensaqualidade intelectual,
ativa e dominante, eàs mulheres a passividade, subordinação e luxuria. Isso
levou Tomás de Aquino a defender, assim como Aristóteles, que as mulheres
deveriam ser subordinadas aos homens. As ideias de Tomás de Aquino se
consolidam na
[...]Igreja, marcada pelo antifeminismo profundo deum clero pronto a condenartodas as faltas femininas à decência, sobretudo em matéria de trajes, e a reproduzir, do alto de sua sabedoria, uma visão pessimista das mulheres e da feminilidade, ela inculca (ou inculcava) explicitamente uma moral familiarista, completamente dominada pelos valores patriarcais e principalmente pelo dogma da inferioridade das mulheres. Ela age, além disso, de maneira mais indireta, sobre as estruturas históricas do inconsciente, por meio sobretudo da simbólica dos textos sagrados, da liturgia a fé e do espaço e do tempo religioso.(BOURDIEU, 2010, pag.103)
Os valores da Igreja não se restringiam aos(às) religiosos(as), mas
adentrava a cultura popular que incorporava e reproduzia nas práticas
cotidianas os preceitos cristãos. A sociedade ocidental a queo cristianismo teve
acesso passou a replicar os valores defendidos por estes pensadores. As
mulheres passam a ser vistas tal e qual eles propugnavam. A cultura foi
permeada e condicionada a responder aos estímulos religiosos, e as
18
instituições, de forma geral e em nosso caso específico as educacionais,
nãotiveram comportamento diferente.
As universidades nasceram no meio religioso, sendo seu berço
inspirador e executor a Igreja. Foi a partir das instituições monásticasque elas
foram organizadas e isto acarretou influências para este novo cenário em
construção, trazendo para o ambiente acadêmico a concepção de um
“compromisso ascético cristão em purificar a alma da poluição do corpo e
excluir as mulheres [...]”4.(SCHOTT, 1996, p. 107).
As escolas episcopais inspiraram e forneceram a estrutura para a
primeira universidade nascida em Paris e que se tornou modelo para as demais
instituições de ensino superior da Europa. As universidades eram constituídas
através de bula papal,consolidando desta maneira os laços com a Igreja, que
não se restringiam ao ato de fundação, mas permaneceram nos interstícios da
formação universitária.
O vínculo entre a Igreja e a universidade se concretizava naqueles que
assumiam o papel de educador e também para aqueles que seriam agraciados
com a formação. Na Idade Média, os professores em sua maioria eram
religiosos que só poderiam lecionar mediante sanção eclesiástica. Esse
procedimento, de ter professores ligados à Igreja, avalizava a extensão das
práticas monásticas para dentro das instituições de ensino superior, uma delas
era o uso do latim, língua vernácula.
Além disso, as normas e disciplinas que regulavam a vida cotidiana dos estudantes e professores medievais demonstravam o caráter monástico da instituição. Em Paris, todo estudante universitário tinha de ser clérigo e usar o hábito clerical. A adoção do traje clerical era garantia, para o usuário, desde que continuasse celibatário. [...] A única obrigação séria que isto impunha era o celibato. (SCHOTT, 1996, p. 110)
4 Schott, em sua obra Eros e os processos cognitivos, afirma que a ideia da razão pura é consequência do processo de secularização do pensamento religioso de pureza e ascetismo, desenvolvido pela Igreja, que penetrou o conhecimento científico.
19
No caso de alunos casados que desejassem entrar para a
universidade, exigia-se que se divorciassem, como pré-requisito para assumira
condição de estudante. A vida monástica percorria os corredores das
universidades na Idade Média e se consolidava no estudo da Bíblia,
desenvolvimento do pensamento teológico, exigência do silêncio, entre outras
regras.
Considerando a natureza religiosa das instituições de ensino superior,
as mulheres acabavam por ser excluídas deste espaço e mais:a restrição a
elas foi estendida até asociedade moderna, impossibilitando o seuacesso à
educação.5
O modelo parisiense de universidade influenciou as instituições de
ensino superior da Alemanha e, num primeiro momento, foi avalizadopor bulas
papais e, em um segundo momento, fortemente influenciado pelo pensamento
defendido na Reforma. As universidades alemãs não perderam seu caráter
confessional e permaneceram ministrando ensino religioso para futuros
pastores e leigos. Embora o caráter religioso fosse conservado:
em certo sentido, deve-se à Reforma o ter ensejado uma secularização maior do ensino. O empreendimento escolástico teve por objetivo a justificação racional da fé. [...] a Reforma, ao contrário, trouxe uma separação de razão e fé. Em consequência, filosofia e ciência já não estavam ligadas para servirem de suportes para a crença religiosa, e o conhecimento das universidades tornou-se cada vez mais secularizado. (SCHOTT, 1996, p. 113)
O que não indicava um esvaziamento dos valores religiosos das
instituições de ensino superior, e sim uma transferência dos mesmos, com um
discurso reformado, para a esfera secular. A tentativa de purificar a alma que
imperava na filosofia cristã é substituída pela ideia depureza do pensamento,
de purificação da razão,que veio a se constituir no método científico. O papel
5Segundo Schott (1996), essa discussão levantará a questão quanto à transmissão do conceito de pureza a partir das
fontes clássicas para o pensamento moderno, que traz consigo os pilares misoginistas dos antepassados ascéticos da
filosofia que vieram a constituiros pilares da Igreja e das universidades.
20
de unificação do conhecimento, até então nas mãos da Igreja, passa agora
para a prática científica.
O caráter eclesiástico da universidade alemã – estilo de vida monástico, exclusão das mulheres, preparo para as funções da Igreja e a dominância da faculdade de teologia –reflete-se no trabalho intelectual nessas condições. A influência da religião ascética é evidente inclusive na estrutura avultada da ciência.(SCHOTT, 1996, p. 114)
A exclusão das mulheres tida como natural na religião é transferida
para a vida universitária, que passa a ter um caráter unissexual de formação.
Somado a este fator havia as ideias defendidas por Agostinho e Aquino,
segundo as quaisas mulheres não tinham qualidades racionais.
Esse modo filosófico de encarar a capacidade racional limitada das mulheres justifica sua exclusão prática da universidade, e, consequentemente, de outras formas de atividade social. Esses valores ascéticos, portanto, garantiram, em última análise, a aceitação das hierarquias de sexo existentes. (SCHOTT, 1996, pag.117)
LondaSchiembingerdizem sua obra O feminismo mudou a
ciência?(2001) que as universidades, desde o momento de sua fundação, no
século XII, não foram boas instituições para as mulheres e assim prosseguiram
até o século XIX. Poucas foram asmulheres que tiveram acesso ao estudo e
mais escassoé o número das que lecionaram nessas instituições de ensino
superior.A mesma autora relembra que as únicas instituições que aceitavam as
mulheres eram as italianas, mas este modelo foi rejeitado pela Europa, que
optou pelo modelo alemão, baseado, por sua vez, no modelo francês.
Desta forma, o aceso das mulheres àciência e ao conhecimento
ocorriam ora pela prática desenvolvida em seu cotidiano, sem uma
formalização do mesmo, ora pelo ingresso aos ambientesaristocráticos (que
apenas aceitavam a entrada de mulheres de alta estirpe), onde muitas vezes
trocavam prestígio social por acesso ao conhecimento. (SCHIEBINGER, 2001)
As mulheres caminharam de forma marginal nas universidades. A elas
não era concedido os bancos acadêmicos, embora trabalhassem e
21
desenvolvessem pesquisas no âmbito doméstico6. Muitas foram as mulheres
que executaram atividade de astrônomas, que junto de suas famílias,
fossedopais ou maridos, desenvolviampesquisas em observatórios.
(SCHIEBINGER, 2001. Outras contribuições foram dadas por mulheres à
ciência desenvolvidas a partir de suas atividades como parteiras, artesãs e
produtoras de medicamentos da medicina popular, porém não ganharam o
status de profissionais. Embora desenvolvessem trabalhos diversos, elas não
foram incluídas como:
[...] membros regulares das comunidades científicas. [...]. No século XIX, o rompimento da velha ordem (o sistema de guildas de produção artesanal e o privilégio aristocrático) fechou às mulheres o acesso informal à ciência de que podiam ter desfrutado. Numa época em que as atividades domésticas passavam por privatização, a ciência estava sendo profissionalizada (um processo gradual no decorrer de vários séculos).(SCHIEBINGER, 2001, p. 69)
Este movimento de profissionalização acentuou o distanciamento da
esfera públicae privada. A ciência praticada no ambiente familiar é transferida
para as universidades e indústrias, migrando para o espaço público. Por outro
lado, a esfera privada se torna afeta àfamília e se distancia dos acontecimentos
científicos. Assim, as instituições universitárias, acadêmicas e industriais
calcadas na mentalidade moderna se fundam, limitando a participação das
mulheres, que por sua vez passaram a ser vinculadas à ideia de esposa e mãe.
Se as mulheres são idealizadas como mães, os homens são idealizados como
cientistas.
Este movimento tendencioso que definia o perfil masculino como ideal
para o modelo científico tem seu apogeu no século XVIII e prosseguiu nos
séculos seguintes. S, por um lado existe a afirmação do homem como ideal
para a ciência, por outro existe a negação da mulher como cientista.
(SCHIEBINGER,2001) 6 Gostaríamos de retomar as palavras de Hannah Arendt (1981) quando ela discorre que o privado, o ambiente doméstico, define‐se como o lugar privado de luz, da invisibilidade, que se constitui na inexistência social.
22
De fato, é toda a cultura acadêmica, veiculada pela instituição escolar, que, em suas variáveis tanto literárias ou filosóficas quanto médicas ou jurídicas, nunca deixou de encaminhar até época recente, modos de pensar e modelos arcaicos (tendo, por exemplo,o peso da tradição aristotélica que faz do homem o princípio ativo e a mulher o elemento passivo)em um discurso oficial sobre o segundo sexo, para o qual colaboram teólogos, legistas, médicos e moralistas[...]. (BOURDIEU, 2010, p. 104)
A ciência defendida e executada por homens passa a prescrever
padrões de uma cultura científica que pudesse excluir as mulheres e é nesse
momento que vemos a bandeira da privatização da família enaltecendo a figura
feminina como própria desse espaço. A construção do espaço privado como o
lugar da mulher se transforma em um sistema de controle das atividades
femininas. Em contrapartida, o espaço públicopassa a usar “barbas” e é neste
espaço que tudo acontece e se transforma, da ciência ao campo profissional.
No século XVII e cada vez mais no século XVIII, a sociedade europeia divergiu política e economicamente em duas esferas separadas: a esfera pública do governo e das profissões e a esfera privada da família e do lar. Os homens (da elite e da classe-média) encontravam seu valor “natural” na esfera pública, enquanto as mulheres dessas classes tornaram-se mães recém-habilitadas dentro do lar.(SCHIEBINGER, 2001, p. 69)
A sociedade moderna se estrutura em espaços predeterminados,
configurando uma divisão sexual do trabalho, sendo atribuído ao homem o
trabalho profissional e às mulheres o trabalho doméstico. As universidades que
formavam para a atuação profissional no espaço público são consideradas
“naturalmente”incompatíveis com a natureza feminina. Pensar a mulher no seio
da ciência era ir contra a sua natureza de mãe e esposa. “A teoria da
complementariedade sexual – de que as mulheres não são iguais aos homens,
mas seus opostos complementares” sustentava os lugares que homens e
mulheres ocupavam na sociedade e, muitas vezes, ainda ocupam na
sociedade. (SCHIEBINGER, 2011)
23
Os complementaristas procuravam eliminar a competição entre homens e mulheres na esfera pública, removendo as mulheres dessa esfera. Esta nova doutrina trazia consigo as respostas à questão da participação das mulheres na ciência. Para os complementaristas, os propósitos e atividades do domínio público diferem essencialmente daqueles do lar. [...]) A ciência fazia parte do território que cabia àparte masculina [...]. Porque a ciência, como qualquer outra profissão, habita o domínio público [...]. (SHIEMBINGER, 2001, p.143)
Essa teoria se desenvolveu com o apoio acalorado da comunidade
científica masculina.
Dentro desse esquema, a feminilidadeveio a representar um conjunto de qualidades antitéticas ao ethos da ciência. As virtudes ideais da feminilidade –requeridas para a alegria da vida doméstica–eram retratadas como falhas pessoais das mulheres no mundo da ciência. (SCHIEBINGER,2011, p. 143)
A promessa de um mundo de igualdade desenvolvida a partir do
Iluminismo, como a proposta de atingir a todos, não se realiza. A ideia de uma
ciência que caminhava para uma universalidade metodológica e
epistemológica, que ultrapassaria todas as barreiras, não se concretizou. As
mulheres foram excluídas desse espaço e as assimetrias de gênero nessas
instituições influenciaram a produção do conhecimento.
Para poder ter acesso a essas instituições foi necessário um processo
longo e que contou com mulheres em vários locais do mundo na busca de seus
direitos à profissionalização e formação, sendo fundamental para esta
conquista a atuação de mulheres que desbravaram meios profissionais em
queapenas os homens tinham acesso. Podemos citar Flora Tristan, uma
pesquisadora social do século XIX na França (PERROT, 2005), que encontra
inúmeras dificuldades por ser mulher, mas, mesmo assim, prossegue com seu
trabalho como cientista social.
Em 1875, Antoinette B. Blackwell publicou o livro The sexestroughoutnature, afirmando que Darwin havia interpretado mal a evolução ao dar indevida proeminência à evolução
24
masculina. Procurando adotar uma visão igualitária, argumentava que para cada característica desenvolvida pelos homens as mulheres teriam desenvolvido outra complementar. (CITELI,2000).
Embora não tenha sido divulgado como a teoria de Darwin, seu
papel de contrapor as ideias dominantes foi importante.
Madame Currie, junto com seu marido,Pierre Curie, e o cientista Henri
Becquerel éa primeira mulher a ganhar um prêmio Nobel7(1867-1934)de Física,
em 1903. Isso não a isentou de enfrentardificuldadese obstáculos impostos às
mulheres que ousavam adentrar o campo da pesquisa científica.
Em um depoimento, Albert Spear Hitchcock (1865-1935), um
agrostólogo– especialista em gramíneas – do Bureau ofPlantIndustrydo
Departamento de Agricultura dos Estados Unidos e curador honorário do
Herbário Nacional da Smithsonian,declara que sua assistente, Agnes Chase,
era “seu melhor pesquisador” (grifo meu para a forma com que seu depoimento
foi registrado), com quem trabalhoua maior parte de sua carreira (HAENSON,
2000, p.165-197).Embora seu depoimento tenha sido registrado o nome da
pesquisadora raramente apareceria nos trabalhos ficando como um(grifo meu)
excelente assistente.
Citamos alguns dos inúmeros casos que se passaram pelo mundo.
Este processo de dificuldade se deu com as mulheres de forma mais
acentuada do que comos homens, desde a formação até a atuação como
profissionais, mas hoje, no século XXI, as conquistas já se instalaram em
alguns setores e isto se deve ao esforço de muitas mulheres, que em sua
maioria no anonimato, não porque assim o desejassem, mas forçosamente
colocadas em tal condição, lutaram pelolugar das mulheres no espaço público.
25
1.2 Onde está a mulher nesta história? Um breve histórico do ensino
superior no Brasil sob o olhar de gênero8
Não posso pensar a Teologia como ensino superior sem antes refletir
sobre o próprio ensino superior no Brasil. O terceiro grau em nosso país só foi
introduzido no início do século XIX (ANDRADE, 2011, p.25), no período em que
o Brasil ainda era possessão estrangeira. Portugal, como conquistador,
demonstrava pouco interesse na colônia e em seu desenvolvimento, que era
vistacomo um celeiro, e não como um espaço social ativo. “Apesar da política
de isolamento e controle por parte do governo português, a colônia ainda era
mais dinâmica e criativa do que a decadente e estagnada metrópole. Isto
acontecia na economia, mas também nas artes e nas ciências” (GOMES, 2008,
p.6).
A mentalidade de colonizador que via no domínio apenas um meiode
angariar bens com uma “política deliberada [...] que tinha como objetivo manter
o Brasil, uma joia extrativista e sem vontade própria” (GOMES, 2008, p.125), se
modificará a partir da vinda forçada da família real para o Brasil no ano de
1808. Os motivos políticos que compeliram a família real a se instalar na
colônia possibilitaram a modificação do modus operandi da vida em sociedade
no solo brasileiro, bem como a introdução de alguns costumes e conquistas
presentes na vida europeia calcada na mentalidade iluminista.
O esforço de mudar o Brasil não se limitou ao aspecto administrativo. Enquanto mandava abrir estradas, construir fábricas, escolas e organizar a estrutura do governo, D. João também se dedicava ao que o historiador Jurandir Malerba chamou de “empreendimentos civilizatórios”. Nesse caso, a meta era promover as artes, a cultura, e tentar infundir algum traço de refinamento e bom gosto nos hábitos atrasados da colônia (GOMES, 2008, p.129).
8Este capítulo tem por objetivo a contextualização de nosso objeto de pesquisa. Não pretendemos aqui entrar em conceitos ou categorias defendidos pela história ou repassar toda a história da educação no Brasil.
26
Podemos apontar a entrada da imprensa, das bibliotecas, teatros,
saraus de música e literatura, bem como o ensino superior. Apenas atrelada ao
atendimento das necessidades da corte é que a colônia ganha novos ares e,
desta forma, iniciaaintrodução da mentalidade moderna e científica que
dominava alguns setores da Europa.Assim, o movimento de melhoramento da
colônia para poder acolher a família real e sua corte foi o que possibilitou a
criação da primeira faculdade, em 18 de fevereiro de 1808, ligada à área
médica. “Ainda em Salvador, D. João aprovou a criação da primeira escola de
Medicina do Brasil [...]” (GOMES, 2008, p.118).Ela foi instalada no Hospital
Real Militar, que ocupava parte das dependências do Colégio dos Jesuítas, e
foi denominada FAMEB (Faculdade de Medicina do Brasil)9.
A segunda faculdade foi inaugurada no Rio de Janeiro, em 5 de
novembro de 1808, denominada Escola de Anatômica, Cirúrgica e Médica, “a
sede inicial se localizou nas dependências do Hospital Real Militar e Ultramar
Morro do Castelo até 1813, empenhando-se na formação de cirurgiões civis e
militares” (GOMES, 2008, p.6).
Os cursos de ensino superior surgiam em atendimento às demandas
da sociedade, acentuadamente com caráter científico-prático ligado às áreas
de exatas e de biológicas em conformidade com ideias positivistas. Se, por um
lado, o Brasil, sob a batuta do imperador, buscava implementar o ensino
superior, por outro lado issonão significava que iria contemplar toda a
população, e sim a elite, uma minoria da população brasileira.
O Brasil contava com um grande contingente de analfabetos entre
homens e mulheres e este quadro foi agravado com a expulsão, pelo Marquês
de Pombal, dos jesuítas no século XVIII, os quais, por sua vez, desde o início
da colonização detinham o monopólio da educação na colônia. Além disso, a
educação era proibitiva para as mulheres, as classes menos favorecidas e toda
a população escrava.
9 Informação retirada do sítio eletrônico da UFBA, Cf. <http://www.fameb.ufba.br/index.php?option=com_content&view=article&id=54&Itemid=73.>Acesso em 26 mar. 2012.
27
Nesse momento, como propõe Foucault, a existência de focos de
saber-poder é sustentada por estratégias institucionais, como observamos na
formação educacional. Enquanto “predispunham os homens aí formados ao
papel de poder, [...] as mulheres vão tender a uma formação de submissão à
autoridade nas esferas públicas e privadas” (BRITO, 2011, p.16).
O ensino estruturado pelos jesuítas, embora fosse deficitário e
acentuadamente dividido por características de gênero, era o único de maior
atuação no Brasil. Embora a educação transmitida nos colégios jesuíticos não
fugisse dos valores patriarcais e deixasse suas marcas da divisão de gênero na
sociedade, era basicamente a única nesse período.
A ausência de escolas para a formação básica produzia dificuldades e
era um óbice ao acesso da educação superior. A ela vinham associadas de
forma contundente as questões classistas, de gênero e de raça, pois quem não
possuísse algum tipo de vínculo com as classes dominantes, não fosse homem
e branco teria muita dificuldade no ingresso em tais instituições. Poucos
chegavam à faculdade, um privilégio apenas da elite masculina e branca
(NASCIMENTO, 2007).
Se, por um lado, as dificuldades abrangiam as questões mais
elementares, como ser alfabetizado, por outro lado, para as mulheres a
situação era ainda mais grave10. A elas era negado o direito ao saber, pois,
como afirma Perrot, o saber era considerado contrário à feminilidade. Assim, o
saber passado às mulheres se restringia ao papel social que deveriam exercer.
“Ao longo do século XIX, reitera-se a afirmação de que a instrução é contrária
tanto ao papel das mulheres quanto a sua natureza: feminilidade e saber se
excluem. [...] Uma mulher culta não é uma mulher” (PERROT, 2008, p.91).
As faculdades não foram “criadas” para serem frequentadas por
mulheres, que eram direcionadas, quando eram, às escolas de formação. 10Ao citarmos as mulheres, não estamos usando uma categoria universal, negando ou esquecendo que na dependência de sua raça ou classe todo o contexto se modifica. Neste primeiro período, ao falarmos de mulheres, estamos falando de mulher branca de classe alta, pois neste momento histórico as negras e as mulheres brancas de classe menos favorecida e escravas eram em sua maioria arrasadora analfabeta e o ensino era‐lhes algo inatingível.
28
Lembrando que o ensino superior assentava-se na estrutura francesa, há que
se ressaltar que em solo Francês, anos antes de a primeira faculdade ser
inaugurada no Brasil, o mundo franco, por meio do babouvistaSylvainMaréchal,
publicara, em 1801, um projeto de lei sobre a proibição de ensinar as mulheres
a ler. Este projeto continha o seguinte:
Artigo 52: A razão quer que enquanto se espere a total realização desta lei, as mulheres se abstenham de ler e até mesmo de assistir às sessões públicas ou particulares dos Institutos, Academias, Círculos ou Sociedades Literárias, Pórticos ou Vigílias das Musas, Museus, Liceus, Pritaneus, Ateneus; assim acompanhar catecismos e cursos, assombrar bibliotecas, etc. Não é o seu lugar: As mulheres só estão bem em suas casas ou em uma festa de família. Artigo 60: A razão quer que todos os bons livros sejam lidos para as mulheres, mas não por elas. (PERROT,2005, p.351)
São os haustos franceses enclausurando a mulher no espaço privado
e, como disse Perrot (2005, p.502), impondo-lhe a ideia de que “sua única
vocação é para a reprodução, que as fixava em um tempo imóvel quase fora da
história”.
Enquanto o ensino superior se instaurava para os homens, o governo
criava nos “idos de 1827 [...] as ‘escolas de primeiras letras’, as chamadas
‘pedagogias’. [...] Os deputados regulamentaram com a primeira lei de
instrução pública, o ensino das pedagogias – aliás, o único nível a que as
meninas teriam acesso” (LOURO, 1997, p.44). Enquanto o ensino superior
abria as portas aos homens, o governo criava um ensino restritivo para as
mulheres.
A lei de 15 de outubro de 1827definia em seu artigo 12 a exclusão das
mulheres do ensino de geografia, limitava a instrução de aritmética, mas
determinava o ensino de prendas que servem à economia doméstica. Aos
meninos constava no artigo 6 da mesma lei a aritmética, prática de quebrados,
decimais e proporções,noções mais gerais de geometria prática,gramática de
língua nacional, leituras da Constituição do Império e história do Brasil.
29
Segundo Adélia Woellner, caberia ao homem o lado material, concreto, o
poder, a decisão, o heroísmo, a força, a glória, a capacidade de pensar, o
domínio, ao passo que para a mulher concede-se uma espécie de transitar
etéreo, sublime, divinal, o sonho, o poético (WOELLNER, 2008).
Demonstrava-se claramente que a educação nascente do século XIX
continuava marcada pela divisão de gênero, explicitando que a educação dada
às mulheres não as preparava para o ingresso no nível superior, mas antes
visava “formá-las para seus papéis futuros de mulher, de dona de casa, de
esposa e mãe. Inculcar-lhes bons hábitos de economia e de higiene, os valores
morais de pudor, obediência, polidez e sacrifício [...] que tecem a coroa das
virtudes femininas” (PERROT, 2008, p.93).
Dando continuidade ao processo de escolarização na colônia no século
XIX, um novo espaço é inaugurado, no ano de 1830. São abertas as primeiras
escolas normais, na província do Rio de Janeiro e na Bahia, sendo uma para
homens e outra para mulheres, com as mesmas características das
pedagogias, abertas três anos antes.
A divisão por gênero dos espaços da educação iniciava-se nos
primeiros anos de escola e seguia até as escolas normais. Já o ensino
superior, que não previa separação de currículos, permanecia “imaculado” da
presença feminina.
A declarada divisão de currículos se estendia nos anos iniciais da
educação, mas não ocorria nas faculdades, que representava exatamente o
oposto, currículo único, pressupondo acesso igual ao conhecimento para
homens e mulheres. Além de pressupor uma forma igualitária de ensino,
também preparava para o trabalho profissional, algo nada palatável à
sociedade da época. O trabalho da mulher era restrito ao espaço privado e
impensado no espaço público, majoritariamente masculino. Segundo
Habermas (2003, p.16), a esfera pública representava:
[...] reino da liberdade e da continuidade. Só à luz da esfera pública é que aquilo que é consegue aparecer, tudo se torna
30
visível a todos. Na conversação dos cidadãos entre si é que as coisas se verbalizam e se configuram, na disputa dos pares entre si [...].
Assim, a presença das mulheres em uma situação de diálogo ou de
disputa e de consequente visibilidade possibilitaria explicitarque a desigualdade
de aptidões que defendia a sociedade patriarcal era fruto de uma construção
social, e não algo inato.
A ciência dentro das faculdades do século XIX era conivente com o
preconceito opressor com base nas diferenças de gênero, utilizando os
“estudos científicos” para “comprovar” a incapacidade das mulheres:
Os biólogos e médicos do século XIX afirmavam que o cérebro da mulher era menor que o do homem e que o ovário e útero exigiam muita energia e repouso para funcionar adequadamente. “Provaram” que, em consequência, as meninas deveriam ser mantidas longe das escolas e faculdades a partir do momento em que começassem a menstruar que, sem esse tipo de preocupação, os úteros e ovários das mulheres poderia se atrofiar e a raça humana se extinguir (HUBBARD, 1993, p.27).
Tais “teorias” científicas não eram aceitas sem contestação pelas
mulheres. Elas resistiam e procuravam meios de dar voz aos seus anseios e
opiniões. As mulheres lutavam contra o status quo dominante e procuravam
seus espaços sociais. Fortemente influenciadas pelo liberalismo europeu,
criavam meios de se manifestar contra as limitações impostas. Uma de suas
conquistas foram as escolas para meninas citadas alhures, que nascem de um
movimento de luta das mulheres que levantam a bandeira do direito básico de
aprender a ler e escrever, até então reservado ao sexo masculino.(HAHNER,
2003)
Nísia Floresta Brasileira Augusta (DUARTE, 2003) é um dos exemplos
de mulheres que trabalhavam arduamente para conquistar direitos para a
comunidade feminina. Ela rompe com o espaço privado dedicado às mulheres
e escreve em jornais da época, chamados de a “grande imprensa”. Em 1832
31
lança seu primeiro livro, intitulado Direito das mulheres e injustiça dos homens,
fruto de uma tradução livre da obra da feminista Mary Wollstonecraft,
impactando a sociedade brasileira.
Nísia literalmente traduz a voz do feminismo europeu para o português,
recria para a realidade brasileira a ideia de liberdade feminina. Foi o primeiro
livro no Brasil a abordar o direito das mulheres à instrução, pois afirmava que
as mesmas eram inteligentes e merecedoras de respeito. Na mesma obra
também luta pelo direito de as mulheres trabalharem. A escritora ridicularizava
a ideia dominante da superioridade masculina e apontava que as
desigualdades eram produto das circunstâncias da vida, bem como que os
homens se beneficiavam com a opressão feminina. Sua conduta desafiadora
possibilitou a Nísia, em 1838, fundar o Colégio Augusto, no Rio de Janeiro, que
propunha uma educação feminina completamente inusitada para a sociedade
da época (SANTOS, 2009).
Nísia promove uma onda, a primeira onda do feminismo no Brasil.
Desencadeia diversos movimentos que no início nascem tímidos, mas depois
se espalham pelo território nacional e ganham força, sendo capazes de
pressionar as autoridades. Esse processo é constatado com o nascimento do
jornal Nova Luz Brasileira, e a divulgação de 108 conceitos políticos, chamando
a atenção para a inovadora concepção de cidadãos ao admitir os direitos
políticos da mulher, como direito a votar e ser eleita. (PEREIRA, 2007).
Após este jornal, muitos outros nasceram. Mesmo sendo considerados
como segunda imprensa, estimulavam as mulheres a exigir seu espaço social,
seus direitos políticos, incitando campanha nacional a favor do sufrágio
feminino, o direito ao ensino superior e questionando a construção ideológica
do lugar da mulher.
Se, por um lado, as mulheres eram excluídas do espaço público, entre
eles o da educação superior, por outro elas não aceitavam submissas esta
situação. A entrada das mulheres no ensino superior não foi algo concedido,
mas sim conquistado. Essa conquista foi resultado de um movimento complexo
32
que envolvia modificação no âmbito da cultura, da sociedade, da política, da
economia e das relações de poder. A busca do direito de sentar nas cadeiras
das faculdades fazia parte de um movimento de árduas lutas travadas pelas
feministas brasileiras do século XIX. (HAHNER, 2003)
Após longos anos de protestos em várias instâncias da sociedade, as
mulheres ganham o direito de cursar o ensino superior em 1879, quando o
governo brasileiro dá autorização para que ingressassem nas faculdades, pois
as “sociedades que proíbem às mulheres a educação impedem-lhes a
participação política” (TRAINA, 2008, 94), dificultando sua atuação como
sujeito proativo.
As primeiras mulheres a frequentar o ensino superior foram
estigmatizadas negativamente pela sociedade da época, embora o hausto do
liberalismo tivesse penetrado o Brasil desde 1820 (TELES, 1993). As
faculdades, como as escolas, não eram espaços democráticos, mas sim
reprodutores dos valores patriarcais da sociedade: elas haviam nascido para os
homens. Segundo Pierre Bourdieu (2005, p.104), “a escola, mesmo quando já
liberta da tutela da igreja, continua a transmitir os pressupostos da
representação patriarcal”. A ideia de que era preciso educar as meninas, e não
exatamente instruí-las, prevaleceu durante muitos anos, o que levou à entrada
tardia das mulheres no ensino superior, pois “todas as classes sociais livres da
sociedade brasileira se mostravam receosas com a educação das mulheres”
(MANOEL, 2008, p.34). Entre a inauguração da primeira faculdade e a
autorização do governo para que as mulheres pudessem estudar em
instituições de ensino superior passaram-se setenta e um anos de
discriminação.
Apenas no ano de 188711 a primeira mulher se forma em medicina,
após setenta e um anos da inauguração da primeira faculdade de Medicina na
Bahia. O que não significou a efetiva aceitação da igualdade entre homens e
11 Informação retira do sítio eletrônico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Cf. <www.ibge.gov.br/ibgteen/datas/mulher/mulherhistoria.html>. Acesso em 20 mar. 2012.
33
mulheres na educação. A possibilidade de ingressar nos cursos do ensino
superior com os mesmos direitos concedidos ao homem não possibilitou a
mudança radical da ordem hierárquica vigente em nossa sociedade. “O público,
embora estivesse mais ou menos firmemente inserido na representação
hierarquizada, comunalmente previsível, das categorias sociais, podia ser,
mesmo assim, interpretado como um público de indivíduos livres”
(HABERMAS, 2003, p.157). Representava o início da conquista de novos
caminhos a serem percorridos pelas mulheres a partir de então.
As mulheres tinham e ainda têm restrições na formação profissional do
ensino superior e, muitas vezes, eram e são direcionadas para os cursos de
“formação mais adequada” a seu gênero. Cabiam às mulheres os cursos que
coadunassem com seu papel de cuidadora e sua função maternal. Desta
forma, eram direcionadas ao magistério, à área da saúde (enfermagem) e à
assistência social,permitindo uma divisão de gênero na profissionalização dos
homens e das mulheres, ainda presente na atualidade no Brasil.
A segregação ocupacional no ensino superior continuou resistente à expansão feminina [...] o crescimento, norteado por fatores culturais, não foi uniforme entre os cursos, o que gerou uma “feminização” de determinadas carreiras, influenciada também pela maior expansão do número de vagas de tais áreas em relação às demais (BOHN, 2010).
Retomando a implantação do ensino superior no Brasil, destacamos
que muitas décadas haviam se passado após a inauguração da primeira
faculdade e o Brasil continuava a possuir apenas cursos em faculdades
isoladas, afeitos diretamente ao poder público, e nenhuma universidade.
Enaltecer as faculdades em detrimento das universidades atendia aos ideais
dos seguidores de Comte, que valorizavam as ciências exatas e biológicas,
bem como enalteciam o espaço acadêmico como lugar de homem.
Dentro do ensino superior no Brasil do século XIX, ocorreram
conquistas incontestáveis na educação e o avanço da ciência foi extraordinário,
mas essas conquistas sempre foram apresentadas como conquistas
34
masculinas.12 O positivismo, “pai” da educação superior do Brasil, herança do
pensamento de Augusto Comte, sabidamente desvalorizava a capacidade das
mulheres, bem como sua presença no espaço público, logo, no espaço
acadêmico. Também afirmava a inaptidão da mulher ao governo e à educação,
bem como defendia sua permanência no espaço privado “em virtude da
espécie de estado infantil contínuo que caracteriza o sexo feminino” (PERROT,
2006, p.178).
Contrariando as ideias de Comte, as mulheres brasileiras saem do
século XIX e entram no século XX determinadas a conquistar espaços sociais,
a romper com o sistema complexo que as mantinha marginalizadas (TELES,
1993). No final do século XIX, o movimento das mulheres mais organizado
pressiona a sociedade e busca conquistar seus direitos. Uma primeira
conquista básica foi o direito de voto para a mulher no Brasil. Na Constituinte
de 1890 surgem as primeiras manifestações em favor do direito político para as
mulheres. “Mas a ementa que concedia expressamente o voto à mulher não foi
aprovada, talvez porque os debates parlamentares não foram acompanhados
por um movimento feminista de apoio à iniciativa” (TABAK, 1989, p.125).
1.2. Século XX – lutas e conquistas das mulheres na sociedade brasileira
contemporânea
A formação acadêmica e a circulação das mulheres nos espaços
públicos possibilitaram maior articulação e organização das mesmas.Nas
novas conjunturas da segunda década do século XX, as mulheres entram em
evidência na área da educação, mas também na política. Movimentos
feministas iniciados no século XIX ganhavam força e se “ressignificavam” em
todo o país. As mulheres se organizavam fundando federações em prol do fim
35
da opressão feminina e pela busca de seus direitos. As resistências ocorriam
de modo formal ou informal.
Bertha Lutz (SOIHET, 2000), defensora do voto feminino e dos direitos
iguais para homens e mulheres, fundou a Federação Brasileira pelo Progresso
Feminino por volta de 1918 e assinou o manifesto intitulado Manifesto
Feminista ou Declaração dos Direitos da Mulher, junto com outras ativistas,
como Jerônima Mesquita, Marta Eugênia e Clotilde de Mello Vianna. O
manifesto foi elaborado após as primeiras mulheres terem ganhado o direito de
voto no Estado do Rio Grande do Norte no ano de 1927. O então governador
do Rio Grande do Norte, ao dar direito de voto às mulheres, cria uma polêmica,
não apenas em seu Estado, mas em todo o país, ao conseguir a alteração da
lei eleitoral. Quinze mulheres votaram, porém seus votos foram anulados no
ano seguinte. (DUARTE, 2003).
As resistências continuaram e penetraram o campo político de forma
direta. As mulheres fundaram o Partido Republicano Feminino, cujo objetivo
era instituir um grupo de mulheres capazes de defender a luta pelo sufrágio.
Com os movimentos das sufragistas que se fortaleciam dia a dia no país e
pressionavam o governo, na chamada era Vargas, no ano de 1930 conseguem
uma conquista histórica, a promulgação do novo Código Eleitoral, garantindo o
direito de voto às mulheres. (HAHNER, 2003)
Em 1932, no Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro13, foi aprovado o
código eleitoral, estipulando que “é eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem
distinção de sexo, alistado na forma deste código”. (MONTEIRO, 2010).
As lutas das mulheres por seus direitos não permitiam mais ignorar as
demandas que as envolviam, somados a isto o discurso do progresso e a
política pública para a educação não dispensavam o maior número de pessoas
envolvidas para que tivesse êxito. Desta forma, a confluência das lutas das
mulheres e as mudanças políticas conduziram a modificações significativas,
13 Informação disponível no sítio do governo. Disponível em <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=33626>. Acesso em 8 jul. 2012
36
que possibilitaram a entrada no campo do saber, que está intimamente atrelado
ao poder, até então dominado por homens, reafirmando que as relações de
poder não são estáticas, mas podemser modificadas com as circunstâncias,
como defende Foucault.
O governo de Getúlio Vargas avançou muito neste sentido, criando o
Ministério da Educação e Saúde (MONTEIRO, 2010, p.94) e logo depois o
Conselho Nacional de Educação. Desta forma:
A educação em geral e, em particular,a educação feminina se tornaram um tema de debate público nos anos 20 e 30. O crescimento notável do ingresso de mulheres na escola, durante as primeiras décadas da República, constituiu um fato historicamente relevante para compreendermos como foram forjadas as condições culturais e institucionais [...] que permitiram a presença das mulheres em todos os níveis de ensino, sobretudo nos cursos superiores [...]. (SANTOS, 2009)
Porém, no início da República, uma nova conjuntura dentro da política
nacional possibilitou inovações e reinterpretações que se refletiram no ensino e
permitiram uma releitura de suaestrutura. Entre elas, a criação das primeiras
universidades e com elas novas alternativas para a inclusão das mulheres no
ensino superior.
O início das universidades, que marca um segundo momento do ensino
superior no Brasil, também é caracterizado pela intenção da ampliação da
função do ensino superior, bem como do desenvolvimento da pesquisa
científica. Para atingir este objetivo nascem instituições como a Associação
Brasileira de Ciência (ABC), em 1916, e a Associação Brasileira de Educação
(ABE), em 1924.
A inauguração da primeira universidade no país aconteceu na cidade
do Rio de Janeiro, em setembro de 1920. A instituição foi fruto da união de três
institutos: o de Direito, o de Medicina e a escola Politécnica. Conquanto já
conhecesse o desejo de se fazer pesquisa no país, ainda permaneceu única e
exclusivamente como escola de formação profissional sem agregar a pesquisa.
37
O ensino superior levantou inúmeros debates e tanto a Associação
Brasileira de Ciência (ABC) quanto a Associação Brasileira de Educação (ABE)
elaboraram manifestos e documentos em prol de uma nova educação. Estes
fatores conduziram o Governo Getúlio Vargas a mudanças no ensino que se
consolidaram na lei geral promulgada sobre o ensino superior em 1931, a partir
do Decreto n. 19.851 de 11 de abril, assinado por Getúlio Vargas e Francisco
Campos. Por meio deste documento é instituído o “Estatuto das Universidades
Brasileiras”, que estruturava a oficialização, institucionalização e padronização
do sistema público de educação. Após este documento,os conflitos entre as
correntes estendeu-se por mais alguns anos.
A lei promulgada por Francisco Campos “implementou umasignificativa
reforma na educação nacional, com destaquepara a criação do Conselho
Nacional de Educação (CNE), o ministério da Educação e Saúde e
areorganização do ensino secundário e superior” (DALLABRIDA, 2009).
Nesse período, segundo Bohn e Bonilha (2011), Getúlio Vargas, em
sua fase populista, criou maiores chances de as mulheres ingressarem na
universidade. O decreto, em seu segundo artigo, determina que “atenderá
primordialmente ao critério dos reclamos e necessidades do país” e um dos
reclamos era a pressão das mulheres ao direito à vida pública, com direito à
política de votar e ser votada e ao ensino superior.
O contorno geral para as universidades públicas brasileiras estabelecia
no decreto, como requisito básico para a sua construção, congregar pelo
menos três das seguintes unidades: direito, medicina, engenharia e educação,
ciências e letras, mas sem referência alguma à filosofia. O ensino superior
brasileiro:
a despeito de serem escolas profissionais, cultivava um grande amor à qualidade acadêmica do ensino, entendida aícomo ensino desinteressado. As escolas superiores, resumindo-se às duas carreiras de alto prestígio, a do médico e cirurgião e a do jurista, depois à de engenharia, para cujo modelo se inspirou na escola politécnica francesa, eram o que foram para a França as grandes écoles, que não soubemos copiar. [...] O
38
ensino nessas escolas era enciclopédico, dentro de cada ramo, compreendendo um extremo currículo, sem qualquer especialização, sendo, a rigor, propedêutico à profissão, para o qual o diplomado se iria formar pela prática depois de deixar a escola (TEIXEIRA,1968a, p.34).
As universidades que se formavam reproduziam em sua estrutura as
mesmas particularidades expressas no projeto do Estado desenvolvimentista.
Avritzer (2002), na obra A crise da universidade, relembra que o Estado é
quem legislava sobre elementos fundamentais das universidades, como: a
estrutura funcional (sistema de departamentos), a democracia interna (órgãos
decisórios) e a forma de produção e reprodução de conhecimento.
Segundo Trindade (2004), na terceira década do século XX, após a
Revolução de 30, surge um novo contexto político e econômico e duas novas
propostas para a educação no país, propostas estas que se confrontavam.
Uma proposta era a liberal-elitista, que logo passou a liberalismo igualitarista,
que se identificava com as camadas médias e trabalhadoras. A outra, a
nacional-autoritária, que havia se enraizado desde a década de 1920, no
governo Arthur Bernardes, com o objetivo de “impedir contestações à ordem
social”.
A corrente nacional-autoritária prevalece e, após o ano de 1935,
consegue obstruir as ideias liberais da educação. Como resultado de sua
prevalência fecham-se universidades com propostas liberais, como a criada por
Anísio Teixeira, a Universidade do Distrito Federal (UDF). No momento do
fechamento da UDF já é explícita a influência da Igreja no processo14. Antes de
seu fechamento, a UDF incorporara, no ano de 1935, o resultado da inusitada
experiência realizada por Anísio Teixeira e Manoel Lourenço Filho no Instituto
14Atendendo a Constituição de 1889, o Estado era laico.O § 7º do Art. 72 determina que “nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União, ou o dos Estados”. O governo Getulista reaproxima Estado eIgreja por interesses políticos, bem como “o advento do Estado Novo pôs fim ao modesto movimento feminista dos anos 20 e 30. Os líderes do novo regime, com sua crença nos papéis de gênero fortemente diferenciados, mostram‐se hostis à demanda feminina por maior igualdade. Getúlio Vargas, dono de um pragmatismo político, nunca se comprometeu com os direitos das mulheres [...]”. (HAHNER, 2003, p. 361)
39
de Educação do Rio. Ambos introduziram o magistério como um curso de
ensino superior, que obrigava a passagem pelo ensino secundário oferecido na
própria instituição. O diferencial deste projeto era o fato de os cursos de
magistério ser constituídos em sua maioria por mulheres, que estariam se
habilitando em grande número para o ensino superior. Considerando que as
escolas de magistério não possuíam um currículo competitivo,as
moças com diploma de professora primária que quisessem entrar na universidade, provavelmente limitariam suas opções de curso (entre ciências humanas e letras) já que as carreiras universitárias mais “nobres” eram as mais concorridas e exigiam, para tanto, uma maior preparação no ensino médio (SANTOS, 2011).
Ao ser incorporada pela UDF, a Escola de Professores passa a ser
denominada de Faculdade de Educação. Porém, com o fechamento da
universidade, em 1939, a Escola de Professores retorna ao Instituto de
Educação do Rio de Janeiro e, assim, restringe-se um dos espaços de acesso
ao ensino superior, potencialmente ocupado pelas mulheres. Com certeza, a
Faculdade de Educação era um progresso, mas continuava determinando uma
visão patriarcal ao relacionar, mais uma vez, as mulheres a uma profissão que
enaltece os dons femininos, colocando a “escolha” profissional como um
prolongamento das atividades domésticas e do cuidado materno. Além de
possibilitar:
[...] um corpo docente a baixo custo, para realizar a grande “cruzada pedagógica” de transformar os súditos coloniais em cidadãos das novas repúblicas: as mulheres latino-americanas passaram a ser consideradas “educadoras por excelência”, visto que eram uma mão de obra barata, eram dóceis e, sem outras oportunidades laborais “decentes”, se tornam mais atrativas. A professora possuía vantagens comparativas em relação aos professores,pois políticos e pedagogos da época afirmavam que “as mulheres instruem menos, porém educam mais”. Além disso, se as mulheres tinham sido definidas como as responsáveis pelas crianças no lar, nada mais razoável do que encomendar a elas a transição para o mundo do público
40
com a transferência de responsabilidade sobre o ensino das primeiras letras (YANNOULAS, 2011, p.279).
Mesmo com a inferiorização do campo profissional feminino, era
inegável que elas estudavam e trabalhavam. Se há um aparente retrocesso
com o fechamento da faculdade e a volta ao Instituto de Educação do Rio de
Janeiro, sua herança estava instaurada, a mulher havia entrado no ensino
superior e se profissionalizava.
Se considerarmos que profissão é uma atividade laboral que requer uma preparação ou qualificação específica, a profissão docente redefinida era ideal para as mulheres, pois outorgava uma formação específica para duas funções: professora e mãe (YANNOULAS, 2011, p.279).
O novo regime instituído pelo Estado Novo possibilitou o acesso ao
ensino superior e àprofissionalização das mulheres, mas também a reconquista
por parte da Igreja de seu lugar no espaço público e a sua capacidade de
ingerência nos poderes públicos.Embora a Igreja católica perdesse sua
hegemônica enquanto produtora de bens simbólicos, ela se mantinha com seu
poder no plano cultural, social, intelectual e – porque não? – no econômico.
A separação entre Igreja e Estado15 que se havia mantido por quatro
décadas, desde 1890 até os anos 30 do século XX, chega ao fim, e a Igreja
toma novos rumos, reorganiza-se inclusive na área de educação.Jurkewicz
(1999)em sua pesquisa aponta para um novo momento em que Igreja e Estado
respeitando-se a distinção entre poderes temporais e espirituais, dão início a
uma nova relação, do qual a advém a colaboração da Igreja com o Estado na
manutenção da ordem social, por sua vez, o Esxtado passa a reconhecer a
autoridade da Igreja na família e na moral, garantindo-lhe privilégios.
15 “A desestabilização decorrente da mudança de regime político no Brasil, em 1889, e o corte das subvenções estatais que a Constituição de 1891 consubstanciou deixaram a Igreja institucionalmente fraca. Contudo, em face dos laços estreitos com Roma, beneficiou‐se com a transferência de padres e freiras estrangeiras, e passou, nos anos 20, por um renascimento político e intelectual.” (HAHNER, 2003, p. 322)
41
Um dos privilégios concedidos à Igreja é a criação de escolas e
faculdades. Enfatizamos que, ao colocar a Igreja, Jurkewicz(1999) não afasta o
protestantismo norte-americano, ainda que minoritário,que já se encontrava
instalado no Brasil e teve um papel importante no estímulo ao ensino superior,
pois trazia todo um conceito liberal, democrático e individualista.
Somado a isto, o decreto de 1931 previa em seu artigo sexto que as
universidades poderiam ser mantidas pela União, por Estados ou sob a forma
de fundações ou de associações, por particulares, constituindo universidades
federais, estaduais e livres, bem como “recursos financeiros concedidos pelos
governos, por instituições privadas e por particulares”16.
Envolvida neste amplo contexto, a Igreja aproveita esta abertura para a
criação de novos espaços, não estatais, para a educação superior e que se
constituiriam em faculdades e, depois, em universidades, como o caso da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) no ano de 1946
(Decreto n. 8.681 de 15/03/1946).
A reconquista do espaço público para a Igreja foi incontestável, porém,
o cenário da década de 1940 era outro. A configuração do momento histórico
era muito diferente de quatro décadas atrás. O espaço público e privado estava
reconfigurado, como diz Perrot (2006, p.176): “as fronteiras entre público e
privado [...] mudam com o tempo” e, assim, a figura feminina agora transitava
entre eles, ainda com dificuldade, mas já transitava.Santos e Massena (2011)
dizemque a ampliação do acesso das mulheres ao nível superior,que começa
ocorrer a partir dos anos 1940, foi um efeito inesperado das reformas
educacionais ocorridas nas duas décadas precedentes. Nesta mesma década,
no ano de 1943, surge a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).
A sociedade brasileira se transformava a cada dia, tudo parecia estar
mudando. A política desenvolvimentista iniciada na década de 1930 marcou
grandes modificações nas áreas: cultural, social, política e econômica.
16 Informação retirada da Casa Cível do sitio do governo. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930‐1949/D19851.htm> Acesso em: 5 ago. 2012
42
Segundo Monteiro (2010), essas mudanças continuaram sendo incentivadas
por Juscelino Kubistchek, perpassando as décadas de 1950 e de 1960. Como
decorrência da política desenvolvimentista houve o crescimento do processo
de industrialização e consequente urbanização. As mulheres foram absorvidas
pelo mercado de trabalho, mas não apenas aquelas com formação no ensino
superior:
Este período é marcado por continuidades no que diz respeito à inserção das mulheres no mundo do trabalho extra-doméstico– um grande contingente de mulheres ocupa posições não qualificadas, com vínculo empregatício e condições de trabalho precários, mal remuneradas e sem proteção social. Elas estão predominantemente nas ocupações femininas tradicionais –, trabalho doméstico, atividades de produção para consumo próprio e do grupo familiar – e em certos nichos – magistério, enfermagem, comércio, telefonia, alguns setores industriais, como os ramos têxtil e do vestuário, e nos serviços pessoais como cabeleireiras, manicures, lavadeiras (ARAÚJO, 2002, p.19).
Além dessas grandes transformações, a década de 1960é marcada
pelo advento da pílula anticoncepcional17, provocando um forte impacto sobre a
vida das mulheres, especialmente da classe média. Com o advento do
anticoncepcional as mulheres têm mais controle sobre a reprodução, o que
facilita frequentar o ensino superior sem restrições ou interrupção, bem como a
se inserir no mercado de trabalho. Vemos então aumentar sensivelmente o
número de mulheres, de classe média, com formação no ensino superior a se
inserir no mercado de trabalho.
A modernização da mulher brasileira acontecia, mas de forma desigual,
pois a sociedade apresentava um desenvolvimento hierarquizado em termos
de classe, raça e gênero (SARTI, 1980, p.199). Se as mulheres brasileiras
conseguiam adentrar e expandir seu campo de atuação no espaço público, isso
não ocorria de forma homogênea para todas. Uma grande parcela da
17O comércio da pílula anticoncepcional teve início no Brasil em 1962, dois anos após ter sido aprovada nos Estados Unidos pela FDA — FoodandDrugAdministration.
43
população feminina ficou à margem deste processo. As conquistas se
restringiam às mulheres brancas e de classe média.
Os novos ares bafejavam sobre a educação, mas a marca do
positivismo e do patriarcado cristão ainda se expressava nas instituições de
ensino superior e assinalava seu caráter restritivo em alguns aspectos. A
restrição tanto para as mulheres quanto para a Teologia é um exemplo, pois o
Estado, alicerçado no pensamento de Comte e de seus seguidores, não
incentivava a presença da mulher no espaço acadêmico, do mesmo modo que
era avesso à religião, pois a entendia como um estágio a ser superado. Como
consequência, a Teologia, como disciplina, não era considerada algo
necessário nas recentes inauguradas universidades públicas. (TELES, 1993)
Contudo, a Igreja, que tinha a Teologia guardada em seus seminários
vocacionais, não queria a interferência do Estado em seus currículos. A
restrição à Teologia no cenário nacional é consequência do confronto da
mesma com a razão moderna em solo europeu. A Teologia no Brasil, mesmo
com a fundação de faculdades e universidades,confina-se a um espaço
próprio, sem oficialização, atrelada a uma Igreja específica, afeta aos
seminários. A Teologia, “restrita a sua função clerical, não era uma profissão,
um campo de atividade de atividade humana socialmente reconhecida”
(MENDONÇA, 2005, p.9). Constituía-se emsaber endógeno, preocupando-se
com questões particulares dos meios confessionais e não com as
necessidades e interesses da sociedade. Mas isso não significava que a
Teologia não tenha sido influenciada.
As diversas denominações, por sua vez, consideravam as “faculdades”
eclesiásticas como lugares distintos e assumiam para si a emissão de diplomas
independentemente do reconhecimento dos órgãos de regulação do ensino
superior. Porém, na primeira metade do século XX, com a instituição das
universidades confessionais (a primeira a ser fundada é a católica, PUC-Rio,
na cidade do Rio de Janeiro, então capital Federal do Brasil), a Teologia
adentra o espaço universitário, mas sem o reconhecimento acadêmico. Apenas
44
com as universidades privadas, num segundo momento, que o ensino superior
ganha uma pequena liberdade de seu fazer acadêmico. Foi a partir de então
que se abriram novas possibilidades trazendo velhas e, ao mesmo tempo,
novas questões. Entraem discussão, novamente, entre outros temas, a
disciplina de Teologia.
Salientamos, num primeiro momento, que quando falamos de ensino
superior no Brasil estamos falando de duzentos e quatro anos, um breve tempo
para a constituição de uma cultura, que veio tomar impulso na primeira metade
do século XX com a criação das universidades.
As mulheres nesse período tiveram muitas dificuldades para penetrar
nas diversas profissões. Nos depoimentos registrados na coletânea Gênero e
Educação: lutas do passado, conquistas do presente e perspectivas do futuro,
organizadapor Tânia Suely Marcelino Brabo, constam depoimentos de
mulheres que romperam com o estereótipo masculino de algumas profissões.
Renata Cesar Vilardi Tenente, em seu capítulo intitulado a Natureza
das profissões, relata suas dificuldades para fazer o curso de engenharia
agrônoma, cuja tradição previa perfil masculino. Coloca que as resistências
iniciaram com a própria família, pois seu pai no início não apoiava sua escolha,
apenas sua mãe a estimulava a concretizar seu desejo. Lembra que após
passar no vestibular veio a cursar a Universidadede Brasília e sua turma era
composta de 200 homens e apenas 4 mulheres.
Silvia Helena Guidi Lima conta sua história no tema intitulado Uma
mulher no corpo de bombeiros. Relata que frequentou o Curso de Formação de
Soldadosna cidade de Marília no ano de 1987 e lá permaneceu até o ano de
2003, quando prestou um concurso e ingressou no Corpo de Bombeiros, cujo
batalhão era composto por 77 homens e 4 mulheres.
No artigo Myrthes Gomes de Campos (1875-?): pioneirismo na luta
pelo exercício da advocacia e pelaemancipação feminina(GUIMARÃES, 2009),
as primeiras mulheres a se formarem em direito, Maria Coelho da Silva
Sobrinho, Delmira Secundina e Maria Fragoso nunca exerceram a profissão,
45
pois os debates sobre a profissionalização entre os magistrados nunca
chegarama aprovar o ofício para mulheres, ou seja, se formaram, mas nunca
ganharam o status de profissional.
2. A Teologia: da vocação à profissionalização – histórico
daregulamentação da disciplina de Teologia no Brasil
A Teologia é uma articulação entre fé e razão (ANDRADE, 2010), e
esta definição levou à discussão da questão de sua cientificidade. Inúmeras
polêmicas foram levantadas sobre sua legitimidade como ciência, mas Tomás
de Aquino, em sua obra magna, Suma Teológica, com base em Aristóteles,
estabeleceu seu status epistemológico e metodológico (PASSOS, 2011,p. 62)
e, desta forma, a Teologia adquiriu o caráter científico.
Tanto Aristóteles, que deu aporte científico à ciência moderna, como
Tomás de Aquino, que caracteriza a Teologia como ciência produziram leituras
muito preconceituosas na construção de gênero. Como observamos na crítica
feita por Simone de Beauvoir (1980,p.10) a Aristóteles em seu livro O segundo
sexo, por ele ter afirmado que a “mulher era fêmea em virtude de certa
carência de qualidades” e aTomás de Aquino, séculos mais tarde, por afirmar
que “a mulher é um homem incompleto, um ser ocasional”.
De um lado, o discurso científico na construção da inferioridade,
sustentada desde Aristóteles até seus sucessores no século XX, de outro, um
discurso religioso sustentado no mito judaico-cristão da criação da
humanidade, que defende a inferioridade de Eva por ter sido criada de uma
costela de Adão. Simone de Beauvoir (1980, p.16) rememora que “as religiões
forjadas pelos homens refletem essa vontade de domínio: buscaram
argumentos nas lendas de Eva, de Pandora, puseram a filosofia e a Teologia a
serviço de seus desígnios, como vimos pelas frases de Aristóteles eTomás de
Aquino”:
embora procurando superar a concepção dualista agostiniana e afirmando a criação contemporânea do corpo e da alma por
46
meio de Adão, no que diz respeito a criação de Eva, São Tomás segue a doutrina de Agostinho. Para eles, a mulher foi criada como “auxílio” exclusivo para a geração, “porque, para qualquer outra função, o homem pode ser ajudado melhor por outro homem do que pela mulher (TOMAS, I, 92,1). [...] São Tomás aceita a interpretação de Aristóteles, segundo a qual se trata da conjunção de uma virtude ativa masculina e uma potência feminina passiva (BELLO, 2011, p.21).
A Teologia, uma vez concebida como ciência, trazia em seu bojo
preconceitos negativos tanto da religião como da ciência ao se referir ao sexo
feminino. Se a Teologia clássica trabalhava com a premissa da epistemologia
do sagrado, ou seja, era o esforço humano e limitado que buscava
compreender o que foi historicamente revelado, incluindo a construção
simbólica do feminino, ao buscar novos caminhos, no caso, o científico, ela
abria as “portas” para uma nova releitura de si, por meio do método científico,
que pressupõe transformações.
As mudanças históricas e dos novos paradigmas científicos levaram a
Teologia a uma progressiva e dolorosa mudança no discurso Teológico, até
então considerada pela Igreja católica a mais importante das ciências, e mais,
era “[...] vista, na sua proximidade com a revelação, como uma imagem da
ciência divina, que é uma ciência abrangente de tudo. Enquanto busca
conhecer tudo à luz de Deus, sobre passa todas as ciências” (sic) (ANJOS,
1996, p.15). Dentro desta perspectiva a Teologia era livre, e podia apregoar
uma ciência “revelada” apoiada em mitos primordiais formadores de uma
simbologia religiosa específica.
A tradição teológica defendida dentro deste prisma trouxe pouco
espaço e liberdade para a mulher, que ficou subjugada ao homem. A violência
simbólica imposta à mulher, negando sua condição de sujeito proativo,
amparada e justificada pelos textos sagrados, configurou a assimetria das
relações sociais de sexo em nossa sociedade.
Simone de Beauvoir recusava-se a aceitar a diferença entre os sexos,
fosse ela baseada na cosmovisão cristã ou na própria naturalização biológica,
47
considerando-a discriminação que se consubstanciava em estratificações
culturais, o que facilitava a dominação masculina.
Todavia, sabemos não serem os textos sagrados os únicos causadores
de tal estado, porém, dentro da sociedade ocidental a cultura vem carregada
dos valores, padrões de comportamento e modelos a serem seguidos.
Segundo Ruether (1993), a Bíblia ainda é um instrumento de formação da vida
das pessoas, até mesmo das não religiosas. Esta simbologia sobre a mulher
consolidou um cenário de pouco ou nenhum acesso do feminino como sujeito.
Ivone Gebara (2010) afirma que as religiões judaico-cristãs, calcadas
no patriarcado, de uma maneira geral viam a mulher como dependente do
homem não só nos limites da história, mas nos limites da simbologia religiosa.
Projeta-se a partir do mito uma ordem social hierárquica, bem como delimita-se
o que é naturalmente pertencente ao homem e à mulher, cabendo ao homem a
produção e à mulher a reprodução. Desta forma, não cabe à mulher produzir
conhecimento, muito menos na Teologia.
O mito de Eva sustenta a ideia do feminino como símbolo do mal,
hierarquicamente inferior e dependente do masculino. Sendo a Teologia o
estudo de Deus, a rigor o estudo do “macho”, considerado o símbolo do bem
eterno, havia aí uma incompatibilidade natural. A abordagem científica da
Teologia não abdicava da abordagem mitológica que segregava a mulher. Ela
passou a enfrentar o desafio de acomodação aos paradigmas científicos,
esforçando-se sempre por harmonizar, no fiel da balança, filosofia e fé,mas
sem preocupação alguma com a revisão de sua concepção patriarcal e
androcêntrica, segundo a qual o feminino não é considerado. Para Brunelli
(2000, p.212):
A Teologia é masculina não só porque sempre foi produzida por homens, mas porque se desenvolveu numa cultura na qual o masculino era o normativo, e porque se serviu de um conhecimento filosófico produzido desta forma. Por isso o discurso teológico “universal” é androcêntrico. Muitas afirmações apresentadas como sendo “humano”, na realidade, referem-se à experiência e à percepção masculina.(sic)
48
A Teologia, sobre o pilar patriarcal e androcêntrico, passou a se
estruturar segundo o paradigma da ciência aristotélica, ocupando, assim, um
espaço dentro das universidades em diversos locais da Europa, mas com a
presença irrisória das mulheres. Com o avanço do Iluminismo, em outro
momento histórico, colocou-se em questão a importância do conhecimento
teológico e seu caráter de saber científico. O que motivou um comportamento
dualista, levando muitas instituições a se erigir a partir dela e outras a entrar
em constante luta na buscado afastamento da mesma.
As instituições francesas se encontram entre aquelas que preferiram o
distanciamento da Teologia, diferentemente de outros países como Alemanha,
Itália, Espanha e Inglaterra. O Brasil, por sua vez, importou a visão da cultura
francesa que excluía a Teologia18 do espaço acadêmico, pois a entendia como
uma extensão da religião e, como já citamos alhures, o mesmo pensamento
francês alicerçado no positivismo também era resistente à presença das
mulheres no ensino superior.
Assim, falar de Teologia e ensino superior não obrigatoriamente estaria
incluindo mulheres, visto que os dois espaços eram majoritariamente ocupados
por homens. O movimento positivista corroborou e muito para a tardia
18O século XIX e início do século XXno ocidente foram marcados pela racionalização. A ciênciadesencanta o mundo com sua racionalização intelectualista e técnica científica orientada (PIERUCCI, 2003). Este período marca uma nova forma de entender a realidade alheia à religião que até então detinha a supremacia da interpretação da mesma e imprimia um modus operandià vida estabelecendo sentido ao mundo com base em seus mitos. “A atitude científica diante do mundo é especificamente ‘alheia ao divino’ [...] da mesma forma que a natureza é ‘alheia ao sentido’”. (PIERUCCI, 2003, p. 155). Isso provocou umaemancipação em relação à religião, mudando a forma de se entender a sociedade e tudo que a envolvia. O status religioso até então soberano é reduzido ou até mesmo abandonado. Pierucci no texto Secularização em Max Weber- da contemporânea serventia de voltarmos a acessar – aquele velho sentido retoma o conceito werberiano de secularização e afirma que este processo “nos remete a luta da modernidade cultural contra a religião tendo como manifestação empírica no mundo moderno o declínio da religião como potência in temporalibus[...] a depressão de seu valor cultural e sua demissão/liberação da função de integração social.”O lugar da religião neste processo de racionalização do ocidente já não era mais o mesmo, porém a religião não passou ao largo pelo mesmo.Embora a Teologia não fosse aceita pelas instituições de ensino superior que abraçavam abertamente a racionalização, ela se encontrava imersa na sociedade ocidental que defendia “as condições técnicas e sociais da cultura racional-intelectualista” (apudPIERUCCI, 2003, p. 156). Weber afirmava “que o destino de nosso tempo, com suas características de racionalização, e, antes de tudo, de desencantamento do mundo” (apud PIERUCCI, 2003, p. 165) imprimiam um percurso revolucionário e transformador atrelado ao progresso. A religião não passou por este processo de racionalização e secularização da sociedade de maneira indiferente, pois ela se encontrava inserida neste universo e também sofreu fortes influências da mesma.
49
conquista em terras brasílicas do saber teológico como disciplina, bem como
dificultou a entrada das mulheres no ensino superior, mas as Igrejas tiveram
sua contribuição no mesmo sentido, pois preferiam uma Teologia “[...]
endógena, voltada para a reprodução de conhecimentos, no mais das vezes
importado e de caráter etnocêntrico” (GOMES, 2009, p.211).
Dentro desta perspectiva, os seminários teológicos foram fundamentais
e se constituíam em fonte formadora de teólogos, cabendo a eles, como alega
Hack (2005, p.169), “receber jovens para moldá-los segundo seus critérios e
forma religiosa, como se fossem peças de barro para reproduzir líderes
utopicamente preparados e prontos para dirigir uma comunidade religiosa”.
O Professor AntonioMáspoli de Araújo Gome 19 , docente da
Universidade Mackenzie, afirma que “a Teologia brasileira, ela nunca saiu do
gueto, ela é uma Teologia de gueto, ela circulava onde? Nos 300 seminários
católicos e 400 seminários evangélicos sem nenhum diálogo com a sociedade,
sem nenhum diálogo com a academia”. A liberdade nos seminários e institutos
teológicos na formação dos parâmetros da transmissão da Teologia era fato, e
mais, permitia delimitar a quem seria transmitido o saber teológico garantindo
restrições à sociedade, à academia e às mulheres. As igrejas vinculadas à
formação eclesiástica não estavam interessadas na instauração de uma
identidade teológica, principalmente porque o discurso hegemônico cristão,
expresso no regime patriarcal, já preconizava, como sendo líquido e certo, que
a Teologia era algo vocacional e masculina. Como discorremos acima, todo
este processo era algo “natural” e plenamente “justificado” na cosmovisão
judaico-cristã. Segundo Aquino (1997, p.19):
A Teologia sempre foi considerada disciplina própria de homem, e além disso, em nossos contextos, implica maiores cotas de esforço para as mulheres, tanto à limitação de recursos para ter acesso a ela [...]. Salvo escassas exceções,
19 Trecho retirado da entrevista de Antônio Máspoli de Araújo Gomes a nós concedida em maio de 2012 na Faculdade de Teologia Mackenzie.
50
as teólogas latino-americanas pertencem ao setor chamado “leigo”.
Seria bom frisarmos que dentro dos aspectos vocacionais defendidos
pela Igreja a mulher tem a condição de leiga, mesmo quando dedicada à vida
religiosa, o que permitia que a Teologia confessional pudesse permanecer com
seu perfil “histórico”, como encontramos nas palavras de Furlin (2011), ou seja,
continuaria como produção do “saber verdadeiro, gerenciada e controlada por
homens, em geral celibatários e eclesiásticos”. No espaço eclesial, sem dúvida,
a tradição judaico-cristã e o discurso simbólico androcêntrico atuaram como
procedimentos que determinaram e validaram as desigualdades de gênero e
hierarquias de poder. (GOMES, 2009, p.156).
Olga Caro afirma em seu artigo “A mulher em documentos eclesiais”
que a cultura patriarcal e a institucionalização da Igreja desconsideraram a
participação da mulher nos diferentes momentos de sua história. Assim sendo,
a mulher tinha poucas possibilidades de estar presente na elaboração do
pensamento teológico e na consagração da mesma como disciplina.
A matéria da profissionalização não interessava às igrejas, por uma
questão religiosa, mas também não descartava a questão econômica, pois a
ênfase no caráter vocacional permitia ter em seu meio um profissional não
assalariado, homem, exercendo a função sacerdotal alicerçado na ideia de
carisma.
Certamente, as ideias de carisma, de vocação e de ministério fornecem a base teológica para esse comportamento. O imaginário subjacente de que o carisma recebido do Espírito precede e sucede à profissionalização como critério de escolha dos sujeitos vocacionais a determinado serviço e como critério de avaliação do exercício, coloca os sujeitos eclesiais em uma dinâmica diferente daquela exigida pelas práticas profissionais nas sociedades modernas racionalizadas. (PASSOS, 2011, p.9)
Com o desinteresse das igrejas na regulamentação e consequente
profissionalização, e com a recusa das universidades na aceitação de um curso
51
de Teologia em seu seio, constitui-se um campo desfavorável para a sua
oficialização. Antônio Maspoli de Araújo Gomes diz que, quando sugeriu o
reconhecimento da disciplina, no final da década de 90 do século XX, ele foi:
[...] zombado, desacreditado, perseguido. [...] Assim, as igrejas reagiram com muita violência à organização da Teologia dentro da universidade. Por quê? Porque de certa forma isso vai arejar a própria igreja. É um feedback que o leigo dá. De repente você tem aqui menina onde a igreja não ordena pastora, fazendo monografia defendendo o ministério feminino, fazendo dissertação de mestrado. Então, você tem um feedbackdado pela própria comunidade religiosa e é um caminho sem volta. Foi por isso que as igrejas reagiram com tanta violência. Dentro de minha denominação eu fui acusado, acusado formalmente. Eu fui processado. Fui processado dentro da Igreja presbiteriana por liberalizar a Teologia, secularizar a Teologia.20
Se no final do século XX constata-se uma retaliação desta monta,
como a ocorrência descrita pelo professor Antônio Maspoli, o que não seria
falar de reconhecimento da Teologia nas primeiras décadas do século XX? A
Teologia comodisciplina no Brasil, embora vigente e atuante, só existia no
campo privado e vocacional, e não era bem vista nos espaços públicos, nem
mesmo pelas próprias igrejas. A Teologia no Brasil fica “[...] marcada por regras
de um serviço, intracomunitário, e, sem pôr em dúvida a competência com que
é feito, mas de certo modo ‘caseiro’ [...]” (ANJOS, 1996, p.19).
Foi apenas em 1928, com a explosão do ensino superior, que Thomas
Porter elaborou um documento com a proposta para formação dos pastores
presbiterianos, quando destacou a necessidade de buscar o reconhecimento
dos títulos oferecidos no Brasil (GOMES, 2009). Para Porter, um norte-
americano que vinha de uma cultura na qual a Teologia era um campo já
consagrado do saber dentro das universidades, era natural buscar o
reconhecimento do governo brasileiro. Porém, seu intento trouxe a discussão
sobre a oficialização da Teologia, mas não repercutiu o suficiente para que
20 Trecho retirado da entrevista de Antônio Maspoli de Araújo Gomes a nós concedida em maio de 2012.
52
obtivesse um resultado positivo, pois as universidades permaneciam refratárias
e as igrejas continuaram fazendo valer seu modo próprio “de formação de seus
quadros em seminários e institutos teológicos longe do reconhecimento oficial”
(GOMES, 2009, p.211).
Neste ponto, levantamos a questão se o protestantismo norte-
americano, que pleiteava o reconhecimento dos títulos de Teologia no Brasil,
trazia em seu seio a temática das mulheres protestantes. Rita Gross, em sua
obra Feminism&Religion, aponta que o protestantismo norte-americano já vivia,
no século XIX,a luta das mulheres por espaço na religião. Segundo Gross, elas
buscavam reverter os tradicionais estereótipos cristãos sobre a mulher. A
autora rememora que a mulher foi fundamental para o sucesso dos
movimentos missionários protestantes do século XIX, que por meio das
sociedades missionárias espalhavam a mensagem cristã. O papel exercido por
elas nas campanhas missionárias que se realizavam no início, dentro dos
Estados Unidos, em encontros campais, foi estendido mais tarde a outros
países.
As Sociedades Missionárias Femininas foram incrementadas na metade do século XIX. Nessa época, a mulher missionária começou a se tornar alvo de grande interesse nas Igrejas para ocupar diferentes posições e trabalhos. [...] Estava muito clara para as sociedades missionárias a falta de preparo intelectual da maioria das mulheres e a de formação profissional para todas aquelas que partiam para a missão evangélica. Após a Guerra de Secessão, a participação das mulheres no trabalho missionário foi profissionalizada [...] (SILVA, 2008, p.35).
As mulheres se organizavam na formação do pensamento teológico no
campo protestante. Verificamos este processo com Elizabeth CadyStaton, uma
protestante que formou um grupo de mulheres que, após uma série de estudos
sobre a Bíblia na perspectiva feminina, compõe a maior interpretação feminista
do século XIX, a Bíblia da Mulher (Woman’sBible). Esta obra foi publicada em
duas partes, a primeira parte no ano de 1895 e a segunda no ano de 1898. A
ousadia feminina de lançar uma releitura da Bíblia causou uma polarização no
53
público do entorno. Muitos ficaram desconfortáveis com a discussão dentro no
universo protestante, outros passaram a evocar os ideais feministas.
Essas questões, rejeitadas ou não, acabaram por disseminar novas
ideias e foido meio protestante onde o feminismo vinha apontando questões
relativasàs mulheres que veio Martha Hite Watts, de 36 anos,no ano de 1888,
trazendo esses novos conceitos ao Brasil.Na qualidade de missionária por
meio da Woman’sMissionarySociety. Professora formada e membro da Igreja
Metodista, Watts trouxe novos ares para o papel da mulher no espaço religioso
brasileiro. Trabalhou de 1888 até o final da primeira década do século XX como
missionária, mas também na área da educação e política. Escreveu sobre
sufrágio, direitos das mulheres, emancipação e educação para as jovens que
procuravam emancipação e liberdade. Ela colaborou para a formação de uma
geração de ativistas dentro das religiões protestantes, que foi criticada e
reprimida pelos protestantes evangélicos conservadores, que consideravam tal
comportamento uma “erosão e ruptura da ideologia dominante masculina”
(SILVA, 2008, p.35).
O principal foco de repressão à sua atuação foi no sul do país, na
Conferência Geral da Igreja Metodista (SUL) de 1910, e prosseguiu até o ano
de 1930. Foi na região sul do país, a mesma região na qual Porter expressara
o desejo de legalizara Teologia no Brasil. No mesmo período, o comportamento
patriarcal reprimia movimentos de liberdade das mulheres.
A primeira tentativa na busca de regularizar a Teologia não fez
nenhuma menção de espaço para as mulheres, mesmo quando defendida por
um protestante que vinha das terras norte-americanas, onde o panorama das
lutas já era instituído e muitos membros femininos lutavam pelo direito de
expressão e participação da mulher.
Após a tentativa de regularização de 1929, as faculdades de Teologia
que foram sendo inauguradas tinham vínculos com as igrejas. Em 1949, a
Santa Sé reconheceu uma Faculdade Eclesiástica de Teologia em São Paulo.
A Faculdade de Teologia Metodista, que tinha sua sede em Juiz de Fora desde
54
1888, como nos informa Paulo Nogueira, mudou-se para São Bernardo em
1948. Os batistas inauguram sua primeira faculdade no ano de 1957. No ano
de 1972, a PUC-Rio também inaugurou sua faculdade de Teologia e ampliou
para os cursos de pós-graduação, mestrado e doutorado, que gozavam do
reconhecimento da Santa Sé. As instituições confessionais inauguravam suas
faculdades sem a preocupação da oficialização do curso pelos órgãos
governamentais.
Entretanto, vemos instituições públicas, de caráter leigo, demonstrando
interesse na regulamentação da disciplina de Teologia. A ousada tentativa se
deu no projeto da formação da Universidade Federal de Brasília (UNB) na
década de 1960. Darcy Ribeiro incluiu em seu diagrama estrutural dos cursos a
disciplina de Teologia no ano de 1962. Após saber que a Igreja Católica, por
meio dos jesuítas, pleiteava junto ao presidente Juscelino apropriar-se do
projeto da UNB, Darcy Ribeiro se uniu aos dominicanos e propôs a frei
Matheus Rocha que fosse a Roma falar com o Papa e dizer que o projeto da
universidade que ele pretendia implantar em Brasília contaria com o curso de
Teologia.
O papa João XXIII aceitou e, nesse momento, Darcy Ribeiro procurou o presidente e mostrou que não existia mais oposição nenhuma, mas com um detalhe: a Universidade de Brasília iria ter um instituto de Teologia. [...] O projeto do Instituto de Teologia começou a ser feito pelos dominicanos, orientados pelo frei Matheus Rocha (MONTEIRO, 2010, p.99).
Esse projeto jamais se concretizou por causa de conflitos com a Igreja,
que não desejava interferência do Estado nas concepções teológicas
confessionais. A segunda tentativa ocorreu em outra instituição pública em
1967:
[...] foi feita uma tentativa de reconhecimento de graduação em Teologia no antigo Conselho Federal de Educação. Tratava-se do curso de Teologia que deveria ser criado na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFRJ), dentro de um plano de
55
reestruturação que buscava atender aos novos preceitos da reforma universitária de 1966-1967 (ANDRADE, 2011, p.25).
O projeto não foi aceito. Para refutá-lo reuniram-se membros da
comunidade religiosa católica e membros da comunidade política, que
alegavam o princípio republicano da separação Igreja e Estado. Envolvidos
com o mesmo propósito, Igreja e Estado desenvolveram o Parecer 190 de 15
de março de 1968, redigido por Newton Sucupira, em querejeitavam a criação
da disciplina de Teologia e recomendavam a criação da disciplina de Ciências
da Religião.
Uma exceção se abriu, entretanto, em favor dos cursos oferecidos pelas chamadas Faculdades Eclesiásticas Pontifícias, graças ao Parecer nº 34/67 de autoria do ilustre Conselheiro Newton Sucupira, e isso pelo fato de se reconhecer que, embora “destinadas à formação filosófica dos futuros sacerdotes, possuem também objetivos puramente acadêmicos que os distinguem dos cursos de Filosofia dos Seminários comuns”.21
Desta forma, Newton Sucupira, com seu Parecer, livra as igrejas da
interferência do Estado, mas cria um subterfúgio para a questão dos diplomas
não reconhecidos. Em nossa narrativa, em nenhum momento até este período
histórico citamos nomes de mulheres envolvidas com a regulamentação da
Teologia, fosse no âmbito político, fosse no âmbito religioso.
2.1. As mulheres e a Teologia
Pensar as mulheres no contexto da Teologia só se torna realidade, na
América Latina, a partir da Teologia da Libertação. Embora a Teologia da
Libertação tenha sido feita majoritariamentepor homens, ela possibilitou que as
mulheres assumissem para si a sua reflexão libertadora. Essa nova vertente da
21 Informação retirada do sítio do governo do Ceará. Disponível em <http://www2.cec.ce.gov.br/p1641‐96.htm>. Acesso em 5 ago. 2012.
56
Teologia atravessava o mundo dos pobres e das mulheres, que por meio dela
encontraram um espaço para dar voz aos seus clamores, lutas e expectativas.
Isso não ocorria sem resistência do poder central da Igreja, “mas feministas
brasileiras em geral evitavam atacar os aspectos dogmáticos da doutrina da
Igreja Católica Romana que fomentavam a subordinação da mulher, e a igreja,
por sua vez, também não atacava publicamente o movimento feminista”
(HAHNER, 2003, p. 323)
Foi nesse contexto religioso do cenário brasileiro que a mulher
entrouna Teologia. Duascircunstâncias vieram auxiliar as mulheres: a primeira
foi a abertura dada pela Teologia da Libertação, e a segunda se deu em função
do momento político vivido no Brasil, o regime militar ditatorial.
Enquanto a Igreja católica acreditava, por meio de sua hierarquia, que
a regulamentação da Teologia acarretaria interferência no currículo econtrole
do ensino teológico e consequente intervenção na formação religiosa, o
momento político pedia por uma maior participação feminina.
As dificuldades impostas pela ditadura militar, nas décadas de 1960 e
1970 do século XX, causavam um ambiente de insegurança e temeridade
sobre a possível postura que o Estado poderia adotar. As igrejas, por sua vez,
temiam a repressão que já se instalava. Com o panorama de estresse político e
social imposto pelo governo militar, os membros da comunidade católica, em
especial, buscaram alternativas de ação, considerando que o Concílio do
Vaticano II (1962-1965) trouxe abertura política, social e cultural, o que
viabilizou abraçar as novas ideias defendidas pela Teologia da Libertação,
recorrente na América Latina. Este movimento que nasce de uma forma
inversa, não nas elites eclesiásticas, mas sim de seu plano oposto
hierarquicamente, possibilitou situações até então inusitadas.
Com a Teologia da Libertação, as mulheres conseguiram ter
participação como sujeito histórico no trabalho teológico. O campo, até então
discreto para as mulheres, abria um hiato para atuação feminina efetiva. A
Teologia da Libertação buscava trabalhar com os pobres e oprimidos, no
57
entanto Rosado (2006) frisa que embora a teologia da Libertação clamasse por
justiça social isso não incluía no processo a justiça e igualdade de gênero,que
não eram foco naquele contexto social e político.
Porém, as questões sociais impostas possibilitaram àTeologia
Feminista brasileira, nascida no contexto sociocultural das lutas feministas,
buscar seu espaço no pensamento teológico, político e social como uma área
contígua, produzindo deslocamentos na territorialidade da Teologia até então
essencialmente patriarcal. Foi no seio da ditadura que a Teologia permitiu a
atuação das mulheres não só na área social, mas também na elaboração de
questionamentos sobre as práticas do cristianismo.
ElinaVuola (2000, p.101.Tradução nossa) coloca, em linhas gerais, que
as teorias feministas “buscam criar um entendimento mais profundo da
situação das mulheres e iniciam com a experiência da opressão das mulheres
e argumenta que a subordinação das mulheres vai desde circunstâncias
privadas a condições políticas”.
Contudo, é inegável que os espaços das instituições teológicas, nos
seus procedimentos cotidianos e em sua constituição, ainda permaneciam
comprometidos com as relações assimétricas de gênero e não tinham interesse
no que pensavam e queriam as mulheres. A marginalização das mulheres na
construção do discurso teológico, a hierarquização dos sexos, a centralização
das práticas litúrgicas nas mãos dos homens, a apropriação do sagrado pelo
masculino, representação simbólica a partir do masculino, entre outros temas,
permaneciam vigentes.
As mulheres ganhavam voz e evidenciavam-se na Teologia e sua luta
por inovação, interpretação e desconstrução do modus operandi da sociedade
e das suas organizações políticas, sociais, culturais e teológicas, mas ainda
não haviam se tornado sujeitos avalizados para discutir a Teologia nos espaços
públicos em “pé” de igualdade com os homens.
58
A Igreja, por meio da Encíclica Pacemin Terris (1963), reconhece que a
emergência das mulheres era “sinal de Deus”22. Anos depois, o Concílio do
Vaticano II também reafirma a dignidade da mulher como ser humano, o direito
de igualdade em relação ao sexo masculino esua participação nos espaços
públicos.
A Igreja,embora considerasse em documentos a condição da mulher,
na prática realiza um movimento oposto, pois, incoerentemente, mantém o
sacerdócio apenas para os homens, sustentando a doutrina tradicional.
Embora as mulheres lutassem por seus direitos, inclusive na
construção do saber teológico, elas não desestruturavam o modo patriarcal no
qual as igrejas de alicerçavam. Como demonstram os relatos históricos, a
Igreja no Brasil, na década de 60 do século XX, preferiu lutar contra a
legalização da Teologia, pois a mesma exigia para os cursos de bacharelado
de Teologia um currículo mínimo e obrigatório, sem mobilidade, que deveria ser
comum às diversas denominações.
Além disso, havia o desconforto que a isonomia traria, permitindo o
livre acesso de qualquer pessoa que desejasse se tornar um profissional da
Teologia. Assim sendo, prevenir que a Teologia não entrasse nas malhas do
governo era mais conveniente.Afinal, garantiria sua ampla e irrestrita liberdade
de formação teológica, bem como assegurava a exclusão das ideias femininas
da Teologia. Lourenço Rega, em entrevista, ao se referir à regulamentação,
nos dizque:
Havia um desejo, uma aspiração, mas ao mesmo tempo havia uma preocupação, uma inquietação. Havendo o reconhecimento, pode haver intervenção do governo nos currículos, a primeira coisa; a segunda coisa, havendo o reconhecimento, você teria, digamos, haveria descontrole, no
22 Informação disponível no sítio eletrônico do Vaticano. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/encyclicals/documents/hf_j‐xxiii_enc_11041963_pacem_po.html>.Acesso em1 ago. 2012.
59
ingresso dos alunos, podendo entrar qualquer tipo de aluno, por exemplo, um ateu [...]23.
Mas também poderiam ser mulheres a ingressar sem reservas no
curso. A manutenção do corpo e das ideias femininas à margem do saber
teológico é algo estratégico para a manutenção nas relações poder. “A
constituição do saber, como espaço masculino por excelência, articula-se com
a questão da exclusão feminina do poder na sociedade em geral, e nas igrejas,
em particular” (ROSADO, 1996, p.92).
Se, por um lado, não havia consenso sobre a disciplina de Teologia por
parte das igrejas e do Estado, por outro mantinha-se o consenso do discurso
sobre o feminino nos dois espaços, como afirma Rosado Nunes, um discurso
masculino sobre as mulheres e para as mulheres. Discurso este reforçado e
legitimado por ambos, cada qual dentro de sua lógica.
Neste ínterim, em nível de América Latina, no ano de 1968, é realizada
a Conferência de Medellín, onde são retomadas as questões de desigualdade
entre homens e mulheres, e, no ano de 1979, a Conferência de Puebla dedica
onze parágrafos para abordar a situação das mulheres.
Os documentos tanto de Medellín como de Puebla foram marco decisivo para um novo sujeito teológico. Neles, as mulheres retomaram e reformularam as principais opções, contribuindo para que a Igreja descobrisse o seu rosto humano que foi obscurecido historicamente por uma visão clerical e masculina. (FURLIN, 2011, p.149)
Enquanto a Igreja procurava manter seu poder na formação endógena
da Teologia, as teólogas brasileiras, na segunda metade da década de 1970,
lançam suas produções expondo suas dificuldades no interior dos cursos de
Teologia e as discriminações nas comunidades eclesiais, quando tentavam
compartilhar seus conhecimentos teológicos, o que reputavam ao fato de
serem mulheres. (FURLIN, 2011) 23 Trecho retirado de entrevista concedida pelo diretor da Faculdade Teológica Batista em 23 de maio de 2012.
60
De forma “natural”, o curso de Teologia, que negava o espaço à mulher
como produtora de saber, ainda sem reconhecimento pelo governo brasileiro,
corria atrás de mecanismos ou de artifícios, resolvendo parcialmente o
problema dos diplomas. Paulo Nogueira, da UMESP, fala de “[...] outro
caminho, muito ruim, que foi permitir que o curso de filosofia aproveitasse
crédito de Teologia para a integralização da filosofia e aí, várias universidades,
faculdades de filosofia criaram curso de complementação.”
O Professor Paulo Nogueira refere-se ao Decreto-Lei nº 1051 de 1969,
que permitia o ingresso, sem vestibular, em instituições de ensino superior
onde houvesse vagas excedentes, daqueles que tivessem cursado os
seminários maiores, com duração mínima de dois anos.
À margem das questões femininas, anos depois, o Conselheiro B. P.
Bittencourt complementa o Decreto-Lei nº 1051/69, com o Parecer nº 48/74,no
qual inclui a necessidade de comprovação do 2º grau ou equivalente, por parte
dos candidatos que ingressaram nos seminários, faculdades ou institutos
teológicos. Também determinava a comprovação de que, pelo menos, duas
disciplinas específicas, que eram oferecidas nos cursos confessionais,
estivessem presentes no curso de licenciatura que pretendiam frequentar. Este
parecer levou muitos dos seminários, faculdades e institutos teológicos a
mudar seu currículo para promover a compatibilidade.
As faculdades de Filosofia tornaram-se o caminho da legitimação dos
diplomas de Teologia, por meio da licenciatura reconhecida pelo governo.
Muitos seminaristas usufruíam do benefício da lei e, desta maneira, não
perdiam seus anos de estudos no campo vocacional. Esse benefício foi
ampliado, permitindo o ingresso nos cursos de Letras e Ciências, entre outros.
Este procedimento legal fez surgir solicitações no Ministério da
Educação e Cultura de cursos de curta duração, com a finalidade de graduar
candidatos “formados” nos seminários maiores. Esta mesma lei abriu
precedentes para pedidos de validação de diplomas, de forma imprevista,
como é o caso de João Moreira de Coelho, Oficial de Chancelaria do Ministério
61
das Relações Exteriores, que fez sua formação secundária no Brasil, em Minas
Gerais, e o curso de Teologia na Faculdade de Teologia Presbiteriana do Brasil
em Campinas, pela qualobteve o “diploma” de Bacharel no ano de 1958.
Prosseguindo sua formação no exterior em cursos de extensão e depois pós-
graduação em Ciências Linguísticas, ele alcançou o grau de mestre. João
Moreira de Coelho entrou com o pedido de revalidação do título na
Universidade de Brasília e conseguiu seu intento. A relatora do processo,
Esther Figueiredo Ferraz, votou a favor de seu pedido no Parecer 345/81.
Contudo, no ano de 1987, esta política de validação dos cursos de
Teologia foi desaconselhada pelo Conselho Federal de Educação, que no
Parecer 35/87 acentua a nulidade dos “diplomas que tenham sido expedidos,
irregularmente, sob o calor do benefício do Decreto-Lei 1051/69, lei
excepcional que não comporta aplicação extensiva” (ANDRADE, 2011, p. 27).
Mas isso não impediu que outros casos isolados surgissem e, no ano
de 1988, outro pedido de revalidação de diploma é concedido. O professor
Miguel Castilhos solicitou ao MEC a expedição do registro de seu diploma de
especialista em Educação Musical, com base em seu título de Bacharel em
Música Sacra, expedido pelo seminário Teológico Batista do Sul do Brasil.
Diploma este que não havia sido validado, por meio de adaptação, conforme
permitia a legislação. Professor Miguel Castilhos consegue sua revalidação por
questão de isonomia tendo como referência o parecer emitido por Esther de
Figueiredo Ferraz a João Moreira Coelho no Parecer de nº 345/81.
Os grandes esforços de reconhecimento da Teologia na qualidade de
curso superior têm início após a restrição de tais benefícios. Foram esforços
que surgem num primeiro momento de indivíduos isolados interessados em
regularizar seus estudos. Num segundo momento são instituições isoladas ou
pequenos grupos organizados que tentam o reconhecimento. Mas todos dentro
de sua capacidade passam a pressionar o governo.
Paulo Nogueira, em entrevista concedida, nos informou que entre os
anos 80 e 85 do século XX têm início vários esforços para a consolidação da
62
Teologia como disciplina reconhecida e assinala os esforços de sua
denominação. Membros da Igreja Metodista e componentes do Conselho de
Educação, Almir Maier e Ulisses Panisset, segundo Paulo Nogueira, foram
pessoas que incentivaram o trabalho a favor do reconhecimento da Teologia
desde a década de 80. O estímulo constante levou São Leopoldo, então
seminário, a pedir a autorização de funcionamento do curso superior de
Teologia. “Nesse processo, São Leopoldo fez um balão de ensaio muito bom.
Eles pediram a autorização de funcionamento do curso superior deles. Isso
bateu lá e ficou engavetado, ora desengavetava, ora voltava para engavetar,
era uma briga”.24
Os ensaios para o reconhecimento da disciplina de Teologia
prosseguiam e as denominações iniciavam seus intentos junto ao MEC, porém,
as mulheres continuavam a assinalar sua posição inferiorizada no Cristianismo.
As teólogas brasileiras, por meio de suas produções, buscavam a defesa de
uma perspectiva feminista da Teologia, embora permaneçam marginalizadas
pela Igreja, sem acesso ao direito de exercer a Teologia.
O fato de estarem marginalizadas não as retirava das lutas por
espaços onde tivessem voz e, para tanto, iniciaram, de maneira autônoma em
relação àIgreja, encontros de mulheres teólogas ou não. Podemos citar os
encontros que ocorreramna Argentina no ano de 1986 eno Brasil no ano de
1988.
A partir da década de 90 do século XX, os movimentos em prol do
reconhecimento da Teologia se acirram, mas também se acirram as lutas das
teólogas por seus direitos, mesmo que ignoradas por suas Igrejas.
Se, por um lado, as mulheres permaneciam brigando por direito a
maior participação e igualdade nas Igrejas, conquistando espaços pontuais, por
outro a Teologia conseguia grandes avanços. O primeiro deles foi o
credenciamento da Teologia, que ocorreu em ordem inversa, iniciando com a
24 São declarações dadas por Paulo Nogueira, reitor da faculdade de teologia da UMESP, em entrevista concedida em junho de 2012.
63
pós-graduação, no ano de 1990. A UMESP–Universidade Metodista de São
Paulo abriu um novo momento histórico ao conquistar o primeiro
credenciamento de um curso de pós-graduação em Teologia.
Anos depois, o governo, por meio da Portaria Ministerial 2.264/97,
reconheceu os cursos de mestrado e doutorado, que passaram a ser
vinculados àCAPES, mas o Bacharelado em Teologia ainda permanecia nas
mãos dos seminários.
No mesmo ano de 1997, Paulo Nogueira nos relata ter ocorrido uma
reunião em Porto Alegre da COGEME–Coordenação Geral das Instituições
Metodistas de Educação, reunião esta intermediada por Ulysses de Oliveira
Panisset e Almir Maia, então presidente do COGEME e membro da Câmara de
Educação Superior. “Foi convidado para participar desta reunião o presidente
da Câmara Superior de Educação, que era Éfrem Maranhão, e foi montada
uma reunião com ele, com o pessoal da Teologia, para discutir sobre o
reconhecimento da Teologia.” (NOGUEIRA, 2012)
Segundo Paulo Nogueira, Éfrem Maranhão, que tinha sua formação na
Alemanha, ficou surpreso ao saber que a Teologia no Brasil não tinha seu
reconhecimento e propôs que se trabalhasse nisso, criando uma comissão e
um documento visando à oficialização da disciplina. Foi pedido a Pedro Demo,
então Reitor da Universidade da Bahia, para ser um assessor na formulação e
solicitação do reconhecimento da Teologia. Pedro Demo criou o documento
pedido e posteriormente levado à discussão, no ano de 1998. Em seguida
encaminhado a Brasília para análise. No ano imediato, 1999, o reconhecimento
foi homologado.
Quase no mesmo período, segundo Antônio Maspoli, na Universidade
Mackenzie, o reitor,Dr. Cláudio Lemo, Osvaldo Hacker, chanceler da
Universidade Mackenzie e ele próprio convidavam para um almoço o então
Ministro da Educação, Paulo Renato. Neste almoço, conforme relato de
Antônio Maspoli, o Dr. Cláudio Lemo pergunta ao Ministro Paulo Renato:
64
–Paulo, porque vocês, que criaram esse Conselho Federal de Teólogos25, também não credenciam os cursos de Teologia? E o Paulo Renato falou uma coisa muito curiosa, ele falou: – Mas os cursos de Teologia já são reconhecidos. E o Cláudio Leme começou a rir e falou: –Ministro, não tem nenhum reconhecido. Aí ele falou: – Então façam um anteprojeto para o credenciamento. Junto nos deu o nome de um Conselheiro, que era Dr. Lauro Zimmer. Dr. Lauro Zimmer veio aqui [Universidade Mackenzie]. Eu, Lauro Zimmer e Osvaldo Hacker fizemos três parágrafos e, no mês seguinte, Paulo Renato assinou [...].26
Como pudemos verificar na transcrição de trecho das entrevistas, cada
denominação clama para si a conquista da regulamentação da disciplina de
Teologia, todavia sabemos que não se tratava de “uma conversa ou de uma
reunião”, mas de um longo e complexo processo que foi amadurecendo a ideia
da oficialização da Teologia, bem como operacionalizando a mesma por meio
de mecanismos estatais. A religião também fez uso desses mecanismos
jurídicos disponibilizados pelo Estado para encontrar o lugar da Teologia na
sociedade.
Emerson Giumbelli (2008), em seu artigo “A presença do religioso no
espaço público: modalidades no Brasil”, fala sobre a modernização e
secularização do Estado e defende que em meio este processo houve
certoacolhimento da religião no espaço público. Ele defende que algumas
“formas de presença da religiãono espaço público não foram construídas em
oposição à secularização, mas por assim dizer no seu interior”. Esse processo
possibilitou a presença e reconhecimento da religião através dos dispositivos
jurídicos que aludem o aparato e poder do Estado, que por sua vez
abrangemalegalidade social.
25Projeto de Lei ao Senado114/2005 do Senador Crivella para a criação de um órgão regulador da profissão. Este Projeto de Lei foi uma releitura de outras tentativas que já haviam ocorrido no Brasil, como: Projeto de Lei nº 1.506, de 1999, do entãoDeputado Benedito Dias, Projeto de Lei nº 4.922, de 2005, do entãoDeputado José Divino (Arquivado nos termos do Artigo 105 do RegimentoInterno da Câmara dos Deputados) e Projeto de Lei nº 2.407, de 2007, do então Deputado VictórioGalli. 26 Este diálogo foi reproduzido por Antônio Maspoli de Araújo Gomes em entrevista concedida em maio de 2012.
65
Giumbelli entende que foi no interior do Estado moderno, marcado pela
secularização, envolvido com os princípios de laicidade que a religião
encontrou meios de se fazer presente.
“secular” e “religioso” constituem pares indissociáveis na modernidade [...] sendo possível constatar acomodações de agentes religiosos em Estados seculares, mas também definições seculares do religioso. [...] Seja como for, a presença do religioso na sociedade está sempre relacionada com os dispositivos estatais, apesar ou por causa da laicidade. (GIUMBELLI, 2008)
Pude constatar por meio de pesquisas e levantamentos que houve,
sim, ações multifocais que fizeram uso de meios jurídicos para marcar a
presença da Teologia, que tem seu caráter confessional, e culminaram com o
advento do reconhecimento, ou seja, o poder do Estado legitimando a
Teologia, que é uma certa presença da religião. Assim, em 15 de março de
1999, o Conselho Nacional de Educação aprovou o Parecer CES 241/99,
assinado pela relatora Eunice Durhan e os Conselheiros Lauro Ribas Zimmer,
Jacques Velloso e José Carlos de Almeida.Os termos definidos no Parecer
CES 241/99 foram:
1- Que os cursos de bacharelado em Teologia sejam de
composição curricular livre, a critério de cada instituição,
podendo obedecer às diferentes tradições religiosas.
2- Ressalva a autonomia das universidades e centros
universitários para a criação de cursos, os processos de
autorização e reconhecimento obedeçam a critérios que
considerem exclusivamente os requisitos formais relativos ao
número de horas/aulas ministradas, a qualificação do corpo
docente e as condições de infraestrutura oferecidas.
3- O ingresso seja feito através de processo seletivo próprio da
instituição, sendo pré-condição necessária para admissão
aconclusão do ensino médio ou equivalente.
66
O grande divisor de águas para que se buscasse com mais afinco a
legalização da Teologia foi a questão econômica, pois todos que atuavam
gratuitamente como teólogos nas diversas instituições religiosas passariam a
ser assalariados. Professor Antônio Máspoli, que acompanhava o processo de
regulamentação, afirma que a iniciativa de:
um grupo de pessoas, que nem são teólogos, na realidade ligados àAssembleia de Deus e àIgreja Universal do Reino de Deus, eles criaram o Conselho Federal de Teologia, que não exige título nenhum para o sujeito participar deste conselho. [...] Aí, nós percebemos que era necessário uma discussão maior da sociedade e que se criassem normas para a formação desse teólogo que iria compor esse Conselho Federal de Teologia. Porque nas normas do Conselho não precisava nem de título de Teologia [grifo meu]. Então, como se tem um Conselho Federal de Teologia sem formados em Teologia?Então na época, em 1998, nós fizemos um levantamento e havia 60 milformados em seminários com título de bacharel em Teologia, mas sem nenhum credenciamento.27
Quando o senador e bispo da igreja Universal do Reino de Deus,
Marcelo Crivela, buscou a profissionalização do clero por meio da criação de
um Conselho Federal de Teologia, pela Lei nº 3.860 de 9 de julho de 2001,
legitimando “teólogos” que nunca cursaram o bacharelado em Teologia, isto se
torna, segundo o professor AntonioMáspoli, um estímulo à regularização da
disciplina. Esta é uma preocupação que também apareceu nas falas de
Lourenço Rega e de Paulo Nogueira. Lourenço Rega coloca que esta tentativa
via Câmara e Senado:
no fundo tem um grupo por trás [...], que não está interessado no trabalho do teólogo. Está interessado em criar uma associação, uma federação, um Conselho Federal de Teologia, que já foi criado, um tipo de sindicato, mas capturar dinheiro. [...] se você cobrar 100 reais de anuidade de cada um, quantos milhões essa associação ou Conselho Federal vai ganhar?28
27 Trecho oriundo de entrevista concedida a nós pelo professor Antônio Máspoli em maio de 2012. 28 Trecho de entrevista concedida a nós pelo professor e diretor da Faculdade Teológica Batista Lourenço Stelio Rega em maio de 2012.
67
A ânsia em regulamentar uma profissão e a formação de uma categoria
profissional, por meio de um Conselho, antecipou-se inclusive ao
amadurecimento da ideia de se ter a Teologia como profissão, e isto causou
um desconforto em quem estava na batalha pela regulamentação da disciplina
junto ao Ministério da Educação e Cultura.
Então, vemos as diferentes denominações se organizando contra o
projeto do senador Marcelo Crivela, buscando inclusive os órgãos
governamentais para esclarecimento do que se tratava o tal projeto. Lourenço
Rega dirige-se a Brasília para discutir com o senador relator do projeto
colocando que havia um desencontro sobre a definição de teólogo defendida
no projeto de Marcelo Crivela e a definição de teólogo defendida pelo Ministério
da Educação e Cultura. O projeto do senador Marcelo Crivela nomeava como
teólogos ministros e pastores religiosos que nunca haviam cursado o
bacharelado de Teologia.
Em meio a conflitos políticos e econômicos, a nova situação em seu
conjunto, ainda mais complexo, abre uma nova reflexão sobre a situação
peculiar da Teologia no Brasil. A práxis teológica, até então identificada com a
prática pastoral, buscava seu perfil acadêmico e profissional.
O conflito estava instalado entre a formação teológica nos seminários e
a formação teológica nas poucas faculdades de Teologia. Esta situação foi
agravada pelo fim do aproveitamento dos créditos adquiridos nos cursos
ministrados nos seminários, conforme determinava o Decreto Lei nº 1.051/69,
revogado em 1987 pelo Parecer 35/87. Assim, instalavam-se circunstâncias
muito distintas na formação teológica, uma formal e outra informal.O governo
atenuou esta situação homologando a:
Resolução da Câmara de Ensino Superior (CES) 63/2004, que trata do aproveitamento dos estudos por parte daqueles que haviam concluído cursos livres de Teologia. Para fins de aproveitamento, o curso de origem deveria, também, ter tido a duração de pelo menos 1.600 horas. Assim, reabriu-se a possibilidade de aproveitamento dos estudos seminarísticos
68
para fins de obtenção de um diploma válido na área de Teologia. (ANDRADE, 2001, p.31)
Marília Ancona Lopez, relatora do Parecer 118/2009, em um capítulo
de livro intitulado “A graduação em Teologia e o sistema de ensino oficial”, no
livro Teologia Pública, registra que o período posterior àResolução 63/2004 foi
marcadopor desencontros nos órgãos governamentais.
Os membros do Conselho de Educação Superior (CES) e do Conselho
Nacional de Educação (CNE), no período de 2004 a 2008, tinham diferentes
opiniões sobre o reconhecimento da Teologia. Entre elas, apontavam que a
Teologia era assunto de religião e não do Estado, que tem por base ser laico.
Alegavam se tratar de questão de fé e deveria ser discutida no âmbito das
igrejas, bem como voltar a considerar a Teologia como curso livre.
O histórico da constituição da disciplina da Teologia
tem novos desdobramentos no ano de 2009. Aos 6 de maio de 2009 é aprovado por unanimidade o Parecer CNE/CES 118/2009. Propõe-se que os currículos dos cursos de graduação em Teologia, bacharelado, desenvolvam-se a partir dos seguintes eixos:
1. eixo filosófico – que contemple disciplinas que permitam avaliar as linhas de pensamento subjacentes às Teologias, conhecer as suas bases epistemológicas e desenvolver o respeito à ética;
2. eixo metodológico – que garanta a apropriação de métodos e estratégias de produção do conhecimento científico na área das ciências humanas;
3. eixo histórico – que garanta a compreensão dos contextos culturais e históricos;
4. eixo sócio-político – que contemple análises sociológicas, econômicas e políticas e seus efeitos nas relações institucionais e internacionais;
5. eixo linguístico – que possibilite a leitura e a interpretação dos textos que compõem o saber específico de cada Teologia e o domínio de procedimentos da hermenêutica;
6. eixo interdisciplinar – que estabeleça diálogo com áreas de interface, como a psicologia, a antropologia, o direito, a biologia e outras áreas científicas.
Vale dizer que, no Brasil, existem cerca de uma centena de cursos de Teologia, já autorizados ou
69
reconhecidos, presentes em vários Estados. Eles são oferecidos por instituições públicas e particulares, pertencentes a mantenedoras confessionais ou não e contemplam Teologias subjacentes a diferentes confissões: adventista, batista, católica, espírita, evangélica, luterana, messiânica, metodista, umbandista, entre outras. Trata-se de cursos de graduação com duração entre 1.500 e 4.500 horas. Considerando que se trata de cursos de graduação, orienta-se que respeitem um mínimo de 2.400 horas.29
Este Parecer levantava novas questões sobre o pressuposto do que
vinha a se entender por Teologia. Paulo Fernando Carneiro de Andrade, por
exemplo, aponta a confusão estabelecida no Parecer “entre Teologia e religião,
de um lado, e entre Teologia e estudos da religião (ou Ciências da Religião) de
outro” (ANDRADE, 2011, p.31). Além desta questão exposta havia também o
problema da sistematização da Teologia, mas excluindo-se a transcendência e
algumas confessionalidades, criticavam a eliminação do caráter prático,
formando apenas acadêmicos e, ainda, a supressão de um eixo de Teologia
entre os seis eixos determinados.
Com vistas a esses equívocos, a Universidade Mackenzie, por intermédio de sua Chancelaria, e a ABIEE conseguiram um encontro com o Ministro da Educação, professor Fernando Haddad, em setembro do ano passado. A ABIBET esteve representada por intermédio do atual vice-presidente, Dr. Lourenço Stelio Rega, que participou ativamente na elaboração da carta ao Ministro. No encontro foi entregue a carta e feitas as explicações conforme acima descrito. O Ministro solicitou o apoio do grupo de líderes ali presentes para a elaboração de uma minuta de proposta de emendas ao referido Parecer. A proposta foi entregue na Secretaria do Ensino Superior (SESu) do MEC em outubro do ano passado. O assunto foi remetido pela SESu ao CNE quando foram adicionadas outras participações (EST, Faculdade de Teologia e Ciências da religião da PUC-Campinas, ANPTECRE e SOTER). Concluído o reexame do Parecer 118/2009 pela Comissão foi encaminhado ao CNE, que, em sua sessão de março de 2010, deu origem ao Parecer CNE/CES 51/2010 efetuando as
29 Cf. Informações disponíveis no sítio eletrônico do governo:<http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/pces118_09.pdf>.. Acessada em: 21/08/2012
70
correções necessárias, mas mantendo a ideia dos eixos, incluindo o eixo de Teologia. (REGA, 2001, p.295)
O lugar da Teologia no âmbito acadêmico foi repensado e discutido
pelos órgãos governamentais, pelas igrejas e pela sociedade durante muitas
décadas. Dr. Paulo Wollinger, então presidente da SESu, em uma palestrana
Conferência Teológica, da Associação Brasileira de Instituições Batistas de
Ensino Teológico (ABIBET), em Brasília, no ano de2010, ao discutir a
regulamentação da Teologia, referequea disciplinaapresenta um conjunto
complexo de saberes própriosjá consolidado e que deve, assim, merecer o
status de graduação.
Segundo Paulo Wollinger, a Teologia não é entendida como uma
ciência, afirmando que o “ensino superior não é composto apenas de ciência,
mas também de arte, humanidades e outros saberes que são estruturados
academicamente e que são de conhecimentos consolidados”30.
A Teologia foi consagrada em seu lugar na academia, com opiniões
muitas vezes divergentes quanto a seu caráter científico, mas ganha relevância
perante a comunidade científica em seu fazer teológico. Neste sentido, as
conquistas foram concretizadas com êxito. A Teologia passou a compor o
espaço público, proclamando sua igualdade com outras disciplinas, e se
reorganizou por meio do Parecer CNE/CES nº 51/2010. Este documento é
resultado do Parecer CNE/CES nº 118/200931.
Propõe-se que os currículos dos cursos de graduação
em Teologia, bacharelado,desenvolvam-se a partir dos seguintes eixos:
1. eixo teológico – que contemple os conhecimentos que caracterizam a sua identidade e prepare o aluno para a
30 Trecho retirado da gravação da reunião da ABIEE ocorrida entre 13 e 15 de outubro de 2010. Disponível no sítio eletrônico da instituição, em <http://www.youtube.com/watch?v=f4H6lQugLO8>. Acesso em 7 out. 2011 31 Informação retirada do sítio eletrônico do Ministério da educação e Cultura. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?Itemid=866&id=12877&option=com_content&view=article>. Acesso em 20 maio 2011.
71
reflexão e o diálogo com as diferentes Teologias nas diferentes culturas;
2. eixo filosófico – que contemple conteúdos curriculares que permitam avaliar as linhas de pensamento subjacentes às Teologias, refletir sobre as suas bases epistemológicas e desenvolver o respeito à ética;
3. eixo metodológico – que garanta a apropriação de métodos e estratégias de produção do conhecimento científico na área das Ciências Humanas;
4. eixo histórico-cultural – que garanta a compreensão dos contextos histórico-culturais;
5. eixo sociopolítico – que contemple análises sociológicas, econômicas e políticas e seus efeitos nas relações institucionais e internacionais;
6. eixo linguístico – que possibilite a leitura e a interpretação dos textos que compõem o saber específico de cada Teologia e o domínio de procedimentos da hermenêutica;
7. eixo interdisciplinar – que estabeleça diálogo com áreas de interface, como a Psicologia, a Antropologia, o Direito, a Biologia e outras áreas científicas.
Agora, qual a situação das mulheres na Teologia que penetram o
campo da ciência e da profissionalização? Como pudemos observar, coube
aos homens, em maioria arrasadora, o espaço da legitimação da Teologia. Eles
discutiram, eles formularam, eles encaminharam, eles aplaudiram a decisão do
governo.
Onde estavam as teólogas formadas? Não haviamulheres capacitadas
a discutir, formular, encaminhar, aplaudir, ou assistimos mais uma vez, como
conceituou Margareth Rossiter,à “segregação territorial?” (SCHENBINGER,
2001, p.76). Trata-se de uma disparidade territorial em queas mulheres não
têm presença representativa por terem sido excluídas por questões religiosas?
A herança da tradição judaico-cristã é excludente e não possibilita uma atuação
efetiva das mulheres teólogas?
A condição material, institucional e ideológica tem favorecido a
atribuição do saber e fazer teológico aos homens. Observamos que são os
processos materiais e simbólicos de cunho religioso, que enaltecem o
72
patriarcado, que dão significado às diversas formas de relação social de sexo e
relações de poder dentro da Teologia.
Aí está claro um dos sintomas do patriarcado, que imprimiu no campo
teológico um estereótipo calcado na cosmovisão judaico-cristã, que se
estendeu na construção do espaço de produção política, social e científica da
Teologia, bem como nas relações sexuais de trabalho, pois neste primeiro
momento de nossa pesquisa a Teologia continua sendo “coisa” (trabalho) de
homem.
2.2. Porque elas não foram convidadas?
A Teologia que se desenvolveu no Brasil seguiu o modelo cristão
europeu, que se baseava na revelação e na tradição escrita, ou seja, a
Teologia brasileira em sua totalidade era de formação da “confessionalidade”
cristã. Esse modelo foi vigente até o ano de 1999. Porém, com a
regulamentação da Teologia como curso superior, surgem instituições de perfis
distintos.
Nesse contexto diverso fiz minha formação. O campo das religiões
afro-brasileiras, até então intocável pelo olhar da Teologia, lançou mão da
regulamentação para construir uma nova abordagem teológica. E foi nesse
campo que me formei e no qual atuei, inicialmente, no âmbito administrativo
educacional do curso de Teologia. O conhecimento da área tornou-se
fundamental para a organização dos aspectos administrativos pedagógicos.
Passei a ocupar o cargo device-diretora, que exerço até hoje,
justamente por ser formada em Teologia. Para mim não havia estranheza no
fato de mulheres trabalharem como profissionais da Teologia. No entanto, tudo
se modificou quando atravessei os muros da instituição onde trabalho e
adentrei um cenário mais amplo, que envolveu diversas faculdades de Teologia
reconhecidas pelo Ministério da Educação e Cultura. Foi a partir desse
73
encontro, ou melhor, desse desencontro de ideias, que desenvolvi
interrogações que fomentaram minha investigação.
O histórico de minha pesquisa tem início no ano de 2010 ese
desenvolve a partir denossa atuação profissional na área administrativa em
uma faculdade de Teologia. Na instituição, sou membro da diretoria e atuo na
área educacional junto com uma pequena equipe, composta em sua maioria
por mulheres.
Passeia ocupar este cargo em virtude deminha formação em Teologia
e meu envolvimento com a área educacional de nossa formação. Por
circunstâncias de minhas tarefas administrativas, fui levada a contatar o diretor
da Faculdade Teológica Batista, Lourenço Rega, no mês de setembro do ano
de 2010.
Após esse contato, a instituição em que trabalhei, por intermédio de Dr.
Lourenço Rega, foi convidada a participar da plenária desenvolvida pelo
Conselho Nacional de Educação (CNE), que objetivava a discussão das
Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) de Teologia.
Nesta reunião, em Brasília, na plenária do CNE, deparei-me com algo
inusitado, uma mesa com muitos homens, mas apenas uma mulher.Desse
modo, entrei neste cenário que me descortinaria um universo sem
mulheres.Nessa mesa masculina, as questões institucionais, que privilegiam os
homens como profissionais da Teologia, ficaram mais explícitas.
A plenária de 22 de novembro de 2010, da qual participei, marcou a
iniciativa do Conselho Nacional de Educação da discussão das DCNs, que veio
a constituir um Grupo de Trabalho (GT) da Teologia composto por
representantes de várias denominações com a mesma finalidade. Após minha
experiência na plenária, passamos a compor o Grupo de Trabalho (GT)
constituído, num momento subsequente, para a discussão das Diretrizes
Curriculares Nacionais (DCNs) de Teologia e percebemos que a discussão
teria como voz central a masculina. Esta iniciativa,que partiu de uma comissão
74
do Conselho Nacional de Educação (CNE), no ano de 2010, prosseguiu até
fevereiro do ano de 2011.
O projeto do Conselho Nacional de Educação de formar um grupo de
trabalho para discutir as DCNs de Teologia contou com “certa herança” deixada
pela comissão do conselheiro Aldo Vanucchi.
O atual presidente do Conselho Federal de Educação,Gilberto Garcia,
que integrava a comissão atuante das DCNs de Teologia(no ano de 2010 e
2011), em entrevista nos relata quehouve uma comissão anterior àvigente no
ano de 2010 da qual participamos. A comissãoque antecedeu a de 2010 era
presidida pelo conselheiro Aldo Vanucchi,que já havia minutado a proposta de
DCNs para o curso de Teologia (o Parecer 118/99), porém, a mesma não
agradara as bases32.
Quando a comissão do conselheiro Aldo Vanucchifoi reorganizada em
nível de Conselho Nacional de Educação, em atendimento ao vencimento do
prazo daqueles conselheiros, foi constituída uma nova comissão da qual o
conselheiro Dr. Gilberto Garcia passou a ser membro. Da comissão anterior
ainda permanecia o conselheiro Antônio de Araújo Freitas Junior, que
trabalhava em conjunto com o conselheiroDr. Gilberto Garcia, que nos
descreve que, ao iniciar seu trabalho na nova comissão:
Ao invés de fazer um trabalho de gabinete, eu aproveitei o trabalho de uma comissãojá constituída pela SESU, que já havia formado um grupo interinstitucional. Para que aquele trabalho pudesse ser aproveitado de alguma forma, era necessário conhecer aquele grupo. Então, a primeira providência que nós fizemos foi organizar uma comissão de organização interna. Nessa comissão, eu contei com o apoio da ABRUC33, que eu conhecia muito das comunitárias que
32 O atual presidente do Conselho Federal de Educação, Dr. Gilberto Garcia, se refere às diversas denominações evangélicas e católicas, que já tinham seus cursos como Teologia livre. 33A Associação Brasileira das Universidades Comunitárias (ABRUC), fundada em 26 de julho de 1995, com sede em Brasília, atualmente reúne 62 Instituições Comunitárias de Ensino Superior (ICES), que apresentam conceitos de 3 a 5 no IGC, encontrando‐se bem colocadas e bem avaliadas pelos instrumentos aplicados pelo Sinaes. Trata‐se de instituições sem fins lucrativos que desenvolvem ações essencialmente educacionais, como ensino, pesquisa e extensão, com notória excelência em suas
75
tinha os confessionais ali dentro, e da própria ABIEE 34 . A ABIEE já pegava o segmento evangélico em vários leques e a ABRUC, que eu já conhecia, e me traziao segmento das confessionais também como universidades. Esse era o segmento católico, muito importante e muito forte dentro da ABRUC; também a metodista, presbiteriana e a luterana. Então, eu peguei esses segmentos já na assessoria antes de criar a comissão, a audiência pública.Essa comissão organizou a audiência pública. Então, o Freitas tinha a preocupação de que fosse o mais democrático possível[grifo meu]. E nós abrimos o leque das instituições que já mantinham cursos de Teologia pelo menos credenciados, muitas iam “recredenciar” ainda. Já tinham credenciados, então fizemos diferente da comissão anterior, procuramos pegar todos[grifo meu]os representantes, mesmo aqueles que só tivessem um, como o centro espírita e umbanda, que só tinha um, diante da esmagadora maioria católica” (GILBERTO GARCIA).35
Este evento,organizado pela comissão do conselheiro Gilberto Garcia e
o conselheiro Antônio de Araújo Freitas Junior,marcava uma discussão
epistemológica, mas também era de ordem política. Ali, naquele momento,
seria possível interferir, modificar, sugerir e dar novas contribuições para as
futuras Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) de Teologia.
Neste espaço público, como afirma o presidente do Conselho Federal
de Educação,Dr. Gilberto Garcia,tinha-se como objetivo reunir o maior número
de instituições para discutir as questões que envolviam a oficialização do curso
de Teologia e possibilitar a instrumentalização, com mais informações,
oriundas das diversas denominações, do Conselho Nacional de Educação, que
buscava um consenso mínimo das diferentes denominações na estrutura do
documento final, que seria constituído em um Parecer.
atividades. A este cenário soma‐se sua forte vocação social, com expressiva presença na área de saúde por profissionais altamente qualificados. 34 Associação Brasileira de Instituições Educacionais Evangélicas (ABIEE): Tem por objetivo promover a integração das Instituições Evangélicas de Ensino, fortalecendo a natureza confessional o seu desenvolvimento e a defesa dos interesse das associadas, atuando, para este fim, junto a quaisquer órgãos dos poderes constituídos e instituições do setor privado. 35Trecho de entrevista com o presidente do Conselho Federal de Educação, que nos foi concedida no dia 20 de agosto de 2012, no aeroporto de Viracopos, na cidade de Campinas.
76
Contudo, também configurava um espaço de poder que foi ocupado
por homens, pois a discussão deste grupo de trabalho forneceria elementos
para a regulamentaçãodas DCNs do bacharelado em Teologia. O discurso
vigente é que a discussão evitaria as divergências que ocorreram com o
Parecer 118/2008 36 , que provocou muito debate em razão deseu caráter
restritivo, que limitava o desenvolvimento do núcleo central do curso, a
formação teológica, pelas diversas denominações, principalmente evangélicas.
A proposta de uma democracia política na participação das
denominações encobria a falta de democracia em relação à participação das
mulheres. A “prioridade” não era saber se havia ou não mulher à mesa de
discussão, mas a definição das DCNs da Teologia.
Apontaremos os participantes da plenária para que se torne possível
observarmos a assimetria entre os participantes masculinos e femininos. Do
CNE estavam presentes os conselheiros Dr. Antonio Araújo Freitas Junior e Dr.
Gilberto Gonçalves Garcia. O então presidente da SESU, Paulo Wollinger,
compôs a coordenação no decorrer do evento.
A mesa de discussão era composta pelos(as) seguintes
convidados(as): Antonio Cesar Perri de Carvalho, secretário-geral do Conselho
Federativo Nacional da Federação Espírita Brasileira, sediado em Curitiba, de
“confessionalidade” kardecista; Cleto Caliman, membro da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais-PUC-MG, sediada em Belo
Horizonte,de “confessionalidade” católica; Rudolf vonSinner, membro da EST-
Escola Superior de Teologia, sediada na cidade de São Leopoldo, de
“confessionalidade” luterana; Lourenço Stelia Rega, membro da Faculdade
Teológica Batista,sediada em São Paulo, de “confessionalidade” batista; Paulo
Fernando Carneiro de Andrade, membro da Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro-PUC-RIO, sediada no Rio de Janeiro, de “confessionalidade”
católica, e Maria Elise Gabriele Baggio Machado Rivas, membro da Faculdade
36 Informação retirada do sítio eletrônico do Ministério da educação e Cultura. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/pces118_09.pdf>. Acesso em 21 nov. 2012.
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de Teologia Umbandista, sediada em São Paulo, de “confessionalidade”
umbandista.37
As palestras giraram em torno de temas previamente determinados e
foramexpostas pelos teólogos convidados e por nós, a única teóloga presente.
Os temas debatidos foram distribuídos da seguinte forma:
a) as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de
Teologia e os conteúdos curriculares – Dr. LourençoStelio
Rega;
b) interdisciplinaridade, transdiciplinaridade, habilitações e
ênfase – Dr. Antonio Cesar Perri de Carvalho;
c) perfil do formando/egresso/profissional – Dr. Cleto Caliman;
d) abrangência das Diretrizes na diversidade religiosa – Profa.
Maria Elise Gabriele Baggio Machado Rivas;
e) as Diretrizes Curriculares Nacionais e a natureza própria do
campo da Teologia – Dr. Paulo Fernando Carneiro de
Andrade;
f) Ética, Bioética e as Diretrizes Curriculares Nacionais para o
campo da Teologia – Dr. Rudolf vonSinner.
No ambiente havia outras mulheres trabalhando, mas como secretárias
e assistentes e, desta forma, não se “sentavam” à mesa para a discussão da
elaboração das DCNs de Teologia. Nesta ocasião, senti numa situação real as
palavras de Perrot (2005, p.464): “O que é recusado às mulheres é a palavra
pública. Sobre ela pesa uma dupla proibição pública e religiosa”.
O que eu percebia é que pude contar com a assessoria de secretárias,todasmulheres. O segmento católico destacou a Francine, da ABRUC veio a Eulália, aí veio a Klaudy do segmento evangélico. Elas eram alinha de frente e chegou um
37 Informação retirada do sítio do Ministério da Educação e Cultura. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=15993&Itemid=1098>Acesso em3 fev. 2012.
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momento que elas tinham mais força do que até a própria comissão. Elas tinham os bastidores (GILBERTO GARCIA).38
Em uma segunda reunião, no dia 7 de fevereiro de 2011, realizada em
Brasília, no Conselho de Educação Superior (CSE), estavam reunidos: Paulo
Wollinger, Diretor SESu/MEC; Conselheiro Dr. Antonio de Araújo Freitas Junior,
Presidente da Comissão, Conselheiro Dr. Gilberto Garcia Gonçalves, Relator
da Comissão, professor Wilson Lopes da Associação dos Advogados de São
Paulo(AASP); César Perri – Federação EspíritaBrasileira (FEB); Professor
Cleto Caliman, daPUC/MG; Maria Elise Gabriele Baggio Machado Rivas, da
Faculdade Umbandista (FTU); Professor Euler Pereira Bahia, do Centro
Universitário Adventista de São Paulo(UNASP),José Carlos Aguilera, como
Secretário Executivo da Associação Brasileira das Universidades Comunitárias
(ABRUC); Professor César Augusto Kuzma – PUC/PR;Professor Dr. Paulo
Fernando Carneiro de Andrade,da PUC-RJ; Eulália Sombra, daAssociação
Brasileira das Universidades Comunitárias (ABRUC), e Francine Junqueira
(ANEC) secretariando o evento.
Nesta segunda reunião, mais uma vez, a presença das teólogas era
rarefeita sendo representada por minha figura isolada naquele universo
masculino. Às mulheres,mais uma vez, era destinado o papel de secretariar,
como pudemos constatar nessa segunda reunião, com a atuação de Eulália e
Francine.
Na vivência dessas experiências, perguntava-me se em todas as
religiões, ali reunidas, não havia mulheres teólogas que desejassem participar
da discussão, ou ainda, se nas várias denominações eranegada a capacidade
das mulheres enquanto sujeitos adultos capazes de atuar como uma
profissional da Teologia.
Na terceira reunião que se realizouna FTU-Faculdade de Teologia
Umbandista, na cidade de São Paulo, o panorama se repetiu. Nesta reunião 38 Trecho de entrevista com o presidente da Câmara de Educação Superior, que nos foi concedida no dia 20 de agosto de 2012, no aeroporto de Viracopos, na cidade de Campinas.
79
estavam presentes: Conselheiro Dr. Gilberto Garcia Gonçalves erelator da
Comissão, professor Wilson Lopes,da Associação dos Advogados do Brasil
(AASP); Paulo Nogueira, da Universidade Metodista de São Paulo
(UMESP);Lourenço Rega, da Faculdade Teológica Batista; Professor Cleto
Caliman – PUC/MG; Maria Elise Gabriele Baggio Machado Rivas,da Faculdade
de Teologia Umbandista (FTU); Professor César Augusto Kuzma, da PUC/PR;
Professor Dr. Paulo Fernando Carneiro de Andrade,da PUC-RJ, eKlaudy
Garros e Sumaia Miguel Gonçalvessecretariando o evento.
Essas experiências nos fizerem pensar este trabalho. O fato de o
cenário do grupo de trabalho das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) de
Teologia ser essencialmente masculino, um espaço no qual era evidente a
ausência de mulheres. A difícil arte de dialogar e dividir com mulheres este
campo de conhecimento tornava-se um dado real.
Finalmente, todo esse contexto levou-nos a questionar o campo
profissional para mulheres formadas em Teologia no período pós-
regulamentação e a elaborar nossa hipótese:se os homens persistem maioria
como profissionais da Teologia, a atuação das mulheres teólogas, mesmo que
restrita, é efetiva no meio.
Tomita, em seu artigo “A Teologia feminista libertadora: deslocamentos
epistemológicos”refereque aperspectiva de gênero se constitui:
num instrumental feminista que revelou não apenas as estruturas sexistas das instituições contemporâneas como também mostrou como as tradições religiosas cristãs teriam sido formadas no bojo do patriarcado romano, marginalizando as mulheres dos espaços de poder nas igrejas, impedindo-as de receber a ordenação sacerdotal assim como quaisquer cargos significativos na hierarquia eclesial (TOMITA, 2010)39
39 TOMITA, Luiza Etsuko. A Teologia feminista libertadora: deslocamento epistemológicos. In: Fazendo gênero. 9, 23 a 26 de agosto de 2010. Florianópolis. Anais. Disponível em: <www.fazendogênero.ufsc.br/9resourses/anais/1278455084_ARQUIVO_FAZENDOGÊNERO.final.pdf>. Acesso em 7 ago. 2012.
80
Gostaríamos de ressaltar que, pressupondo o princípio da isonomia na
formação profissional da Teologia,o perfil do egresso previsto no Projeto
Pedagógico das instituições pesquisadas que preveem profissionais capazes
de trabalhar em conselho de ética, Organização da Sociedade Civil de
Interesse Público (OSCIP)e Organização não Governamental (ONG),a
profissão deveria romper com os muros das igrejas e seminários, permitindo
aos profissionaisir além dela. A profissão deveria possibilitar uma formação
capaz de atuar em diferentes instituições, e não apenas nas instituições
religiosas.
Como profissão, insere-se no mercado de trabalho, que é regulado por
instituições trabalhistas internacionais e nacionais, bem comopor nossa
Constituição, de forma a coibir diferenças tão discrepantes como a que
encontramos no Grupo de Trabalho formado para a discussão das Diretrizes
Curriculares de Teologia.
AConvenção 100 da Organização Internacional do Trabalho (OIT),
realizada em 1952, que passou a vigorar em 1953, e foi ratificada pelo Brasil
em 1957, já tinha como objetivo a proteção da mulher, visando garantir-lhe
igualdade de remuneração, para o mesmo tipo de trabalho, em comparação
com os homens, tendo em vista reduzir a discriminação por gênero nas
relações de trabalho.A Convenção 111 da OIT, que trata da discriminação de
forma mais ampla, ratificada pelo Brasil em 26/1/1965, contémregras que
regulamentam a proibição de discriminação contra a mulher no mercado de
trabalho.
A criação de leis que proíbem a discriminação só comprova e explicita
o fato de a discriminação ser uma realidade na sociedade. É deplorável a
necessidade de leis para a “proteção” dos direitos das mulheres, pois esta é a
prova de que nossa sociedade “écomposta” de um único sexo, o masculino,
que detémos direitos, inclusive no mercado de trabalho.
E ainda mais deplorável: sabe-se que essas leis não funcionam, que elas não impedem nem a discriminação na
81
contratação nem as desigualdades de salário, de carreira, e que a vontade de igualdade de oportunidades só existe no papel. O balanço dessas leis é conhecido por todos, mas nada foi feito para modificar, transformar ou, mais simplesmente, aplicar os dispositivos legislativos e regulamentares(MARUANI, 2003, p.24).
A partir da década de 1970, o advento em massado ingresso das
mulheres no ensino superior, que tinha se iniciado na década de 1940, eo
controle da reprodução com o uso do anticoncepcionalpossibilitaramque mais
de 25 milhões de mulheres no Brasil adentrassem ao mercado de
trabalho,entre 1976 e 2002, progredindo em postosaté então ocupados pelo
sexo masculino.40
Este fatorprovocou uma mudança de comportamento e também o
aumento da discriminação. Segundo Manuel Castells (2010, p.231), “o impacto
dos movimentos sociais, e do feminismo, em particular, nas relações entre os
sexos deu impulso a uma poderosa onda de choque: o questionamento”.Os
questionamentos da ordenação de nossa sociedade e de suas instituições
possibilitamrefletir e repensar estes espaços.
A ausência de mulheres no Conselho Nacional de Educação é um
processo de discriminação do mercado de trabalho da Teologia, mas o que nos
preocupa é a extensão desta discriminação. Resgatando o que nos coloca
LuceIrigaray (1985)41 sobre a necessidade deas mulheres se libertarem do
discurso repressivo masculino, senti necessidade de me aprofundar
nasquestões que envolvem o pouco espaço dado as mulheres na
profissionalização da teologia e dividir minhas descobertas com outras
pessoas. Expondo situações em que ocorreo discurso repressivo e
discriminatório, buscando retirar a naturalização dos mesmos.
40ALMEIDA, Jane Soares de;SOARES, Marisa. Mudaram os tempos; mudaram os tempos; mudaram as mulheres? Memórias de professoras do Ensino Superior. In: Avaliação (Campinas) vol.17, n.2, Sorocaba, julho de 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1414-40772012000200013&script=sci_arttext>. Acessoem: 12dez2012. 41 IRIGARAY, Luce. This sex which is not one, translated by Catherine Porther with Carolyn Burke.Cornell University Press. Ithaca, NY. 1965
82
2.3.Um olhar de gênero sobre as fontes bibliográficas que discutem a
profissionalização da Teologia
Depois de explicitada a proposta, partimos para a busca de fontes
bibliográficas. A preocupação inicial era encontrar bibliografia capaz de suprir
nossa necessidade, mas no decorrer do levantamento nos tornávamos cientes
da escassez de material sobre a regulamentação da Teologia e a consequente
discussão sobre a criação deste campo profissional, o que nos remeteu
àpesquisa de campo para obtenção de maiores informações.
A partirdo escasso material ao qual tivemos acesso, pudemos observar
que as discussões, pesquisas e levantamentos históricos sobre a
profissionalização da Teologia haviam sido realizados por homens, assim como
no grupo de trabalho do qual participamos. Em um primeiro momentoisso seria
apenas mais um elemento, porém, como o objeto de pesquisa de nosso
trabalho é justamente o campo profissional para mulheres formadas em
Teologia, esse dado tornou-se relevante.
Encontramos apenas três mulheres envolvidas diretamente com os
títulos que utilizaremos, sendo a primeira a socióloga Dra. Maria José Fontelas
Rosado Nunes, atualmente membro da pós-graduação deCiências da Religião
da PUC-SP,Marília Ancona Lopez, relatora do Parecer 118/ 2009, no qual nos
ateremos ainda neste capítulo e, por fim, a teóloga Maria Clara L.
Bingemer,doutora em Teologia sistemática, professora associada do
Departamento de Teologia, Brasil.
Maria José Fontelas Rosado Nunes escreveu um capítulo na
coletânea que deu origem ao livroTeologia e novos paradigmas,que tem como
organizador Marcio Fabri dos Anjos. A segunda autora, Marília Ancona Lopez,
também participa de um livro de coletânea: Teologiapública, que tem como
organizadores Afonso Maria Ligorio Soares e João Décio Passos. A terceira, a
83
teóloga Maria Clara L. Bingemer, participa com um capítulo em Teologia:
profissão, que foi resultado de discussões apresentadas na Sociedade de
Teologia e Ciências da Religião (SOTER)no ano de 1996.
Na amostragem decinquenta trabalhos divididos em artigos, capítulos,
anexos e introduções, constatamos a autoria de quarenta e sete homens ante a
autoria detrês mulheres.
Teologia e novos paradigmas, obra na qual localizamos o capítulo
assinado por Maria José Fontelas Rosado Nunes,intitulado “Gênero, saber,
poder e religião”, é um livro constituído de nove artigos, oitodos quaisassinados
por homens e apenas um assinado por uma mulher.
Aobra Teologiapública, em que localizamos o capítulo assinado pela
conselheira do CNE, intitulado “A graduação em Teologia e o sistema de
ensino oficial”,é composta de dezoito artigos, sendo dezessete deles assinados
por homens e apenas um por Maria Ancona Lopez, do sexo feminino.
Na obraTeologia: profissão,encontramos a teóloga Maria Clara L.
Bingemerassinando um dos oito artigos que compõem o livro.
Na obra Teologia, ciência e profissão, organizada por AntônioMaspoli
de Araújo Gomes, constam cinco artigos e um anexo, todos assinados por
homens. Nesta obra se encontra redigido um comentário nas considerações
finaisno qual o autor, AntônioMaspoli, deixa registrado o convite estendido a
quatro professoras de pós-graduação em universidades para escrever no
referido livro, porém nenhuma delas se manifestou.Isto levou Maspoli a afirmar
que “o silêncio pode ser um indicativo do papel feminino nesta área ainda tão
rarefeita de mulheres” (GOMES, 2005, p.107), mas não a questionar o porquê
desta ocorrência.
Por que citamos as obras e seus respectivos autores e autoras?
Consideramos relevante por ser nossa bibliografia referente ao reconhecimento
e profissionalização da Teologia majoritariamente redigida por homens, tendo
apenas três capítulos escritos por mulheres, o que caracteriza as questões da
profissionalização da Teologia marcadas pelo “olhar” masculino. São eles que
84
levantaram pontos e assinalaram possíveis soluções nos trabalhos escritos ou
nos grupos de trabalho, que nasceram como forma de discutir o futuro da
Teologia com caráter profissional.
Rosado Nunes (1996, p.96) destaca que “a constituição do saber,
como espaço masculino por excelência, articula-se com a questão da exclusão
feminina do poder na sociedade em geral, e nas igrejas, em particular”. Ainda
segundo aautora, a discussão no espaço público daTeologiafoi dominada pelos
homens, se apresentando como um:
discurso que institui os homens em “instância epistemológica” à qual todo conhecimento se refere, e evacua, no mesmo movimento as mulheres, suas vidas, suas questões, relegadas ao espaço inferiorizado de um “privado!”que não penetra o círculo da hermenêutica sábia (Idem,1996, p.93).
Por isso, estranhamos os trabalhos com uma proposta democrática,
incluindo convite a pouquíssimas mulheres para discutir e escrever, como
enfatizou Maspoli na sua obra Teologia, ciência e profissão.Este convite que
explicitaexclusão podeser dúbio ou até regressivo na medida em que flagra e
reitera um tipo de identidade masculina atuante na área. Podendo, desta forma,
ser transformado de atos “democráticos” em sutis mecanismos de controle de
um espaço (saber) e poder já constituído entre homem e mulher na Teologia.
Essas situações de forçoso silêncio enfatizam a pertinência de
sabermos se há mulheres envolvidas profissionalmente com a Teologia pós-
regulamentação e averificação se as mulheres ganham espaço de participação
profissional, podendo inclusive opinar sobre as questões que envolvem a
Teologia.
A história das mulheres como profissionais da Teologia só será posta
em relevo por uma análise que possibilite identificar a ausência feminina no
meio. É necessário que ponderemossobre situações como as identificadas nas
coletâneassobre a profissionalização da Teologia, nas quaisas mulheres ainda
têm de ser convidadas, ou seja, demonstrando a ausência e o silencio das
85
mesmas,na produção e participação da construção do saber e fazer teológico,
e mais, no próprio momento histórico da profissionalização da Teologia.
O nosso olhar sobre a experiência que tivemos no grupo de trabalho do
Conselho Nacional de Educação, dominado por homens, as fontes analisadas,
em sua maioriaescritas por acadêmicos, e os cargos de direção nas
Faculdades de Teologiaselecionadas, ocupados por homens, leva-nos a refletir
acerca dos estreitos espaços concedidos às mulheres como profissionais da
Teologia, que são apresentados de forma natural.
Observando, por meio de nossa participação no grupo de trabalho das
Diretrizes Curriculares Nacionais, como a Teologia se organiza nos espaços
institucionais e como ela se apresentou através da fala nas primeiras
entrevistas de nossa pesquisa de campo,compreendemosque,embora as
sociedadestenham se modificado, as releituras sociais vêmacontecendo
alavancadas pelo evento da modernização, da globalização, a
Teologiapermanece calcada num comportamento patriarcal que acentua a
assimetria entre homens e mulheres, que vem sendo reafirmada nos espaços
deformação profissional nas diferentes instituições de Teologia.
Gostaríamos de destacar que naConstituição da República a igualdade
entre os sexos é estabelecida e define que “homens e mulheres são iguais em
direitos e obrigações”, juntamente com a proibição, constante no artigo 7º,
XXX42,de se estabelecer salários distintos em função de sexo, idade, cor ou
estado civil. A Constituição deu fundamentoàs normas da legislação trabalhista
no que regulamenta o trabalho feminino de modo a estabelecer a igualdade
preconizada na Carta Magna, que também prevê em seu art. 7º, inciso XX: a
“proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos,
nos termos da lei”.
A própria lei é a constataçãoda posição de dificuldade da mulher no
mercado de trabalho e determina que o Estado não apenas proteja a sua
42 Informação retirada do sítio eletrônico da Casa Civil do governo do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 3 maio 2012.
86
entrada no mesmo, mas implemente políticas aptas a estimulá-la. A lei só
passa a existir porque homens e mulheres ocupam diferentes lugares de poder
no mundo do trabalho
Sabemos das dificuldades das mulheres, em âmbito nacional, na
questão do trabalho profissional e do esforço de políticas públicas para a
redução de tal discriminação. Mas, na Teologia, dentro das instituições
analisadas, apesar da existência de legislação que ampara a trabalhadora
brasileira e a protege contra as discriminações decorrentes do seu sexo,a
igualdade é relativizadae mereceunossa discussão.
2.4.Ametodologianos escolhendo
O material utilizado para o desenvolvimento de nossa pesquisa tem
duas formas: escrito e gravado (filmado). Os materiais escritos foram retirados
de fontes impressas ou disponibilizadas na rede: livros, teses, dissertações,
periódicos, Diário Oficial da União, anúncios e informações no sítio das
instituições selecionadas, documentos disponibilizados pelas instituições
elegidas (Projeto Pedagógico de Curso, relatórios de direção e coordenação,
cadernos de resumo de seminários e congressos), fotografias e jornais.
Com base na revisão bibliográfica e no material escrito, que se mostrou
insuficiente para a análise do campo profissional em Teologia pós-
regulamentação, que ainda não conta com produções anteriores que abordem
esta questão, a opção metodológica eleita foi o dapesquisa de campo.
A pesquisa de campo é um instrumento desenvolvidopor meio de
entrevista abertasemiestruturada (MANZINI, 2003), entendendo ser esta uma
boa alternativa, na qual pesquisadores e pesquisados são sujeitos ativos na
produção do conhecimento.Do mesmo modo, as perguntas serão fundamentais
para fornecer dados para o perfil dos entrevistados (VEIGA, 1985).
Segundo Maria Isaura Pereira de Queiroz (1987, p.39), o contato prévio
com a realidade estudada auxilia no direcionamento, egarante adequação do
87
roteiro de entrevistas abertas semiestruturadas, ao universo da situação em
que os sujeitos se encontram inseridos, garantindo que o conteúdo que vai ser
obtido seja frutífero para análise. Desta forma, nossa experiência profissional
na atuação do campo profissional da Teologia nos fornece subsídios para a
elaboração do roteiro de entrevistas mais adequado e que atenda o objetivo de
nossa pesquisa.
Para a realização da entrevista,elaboramos um roteiro com perguntas
principais, o que proporcionou para nós, que não temos muita experiência,
mais segurança.Além do mencionado, nossa opção pela entrevista aberta
semiestruturada foi pelo fato de facilitar novas informações de forma mais livre,
aproveitando da espontaneidade por parte do entrevistado, pois as respostas
não estão atreladas a uma uniformização de alternativas, possibilitando que
outras questões próprias ao tema por nós trabalhado pudessem emergir no
momento da entrevista.
No momento da coleta, a entrevista abertasemiestruturada abre a
possibilidade de introduzir outras perguntas, se necessário, para melhor
compreensãoda informação que nos foi fornecida, ou mesmo a possibilidade
de investigar questões momentâneas surgidas durante nossa entrevista que
tenham relevância para nossa pesquisa. Queiroz, em sua obra Relatos orais:
do “indizível” ao “dizível”, defende que a entrevista aberta promove a interação,
verbal e não verbal (gestos, silêncios, sons, imagens e sinais) com o nosso
entrevistado.
Reiteramos que os roteiros foram utilizados como norteadores no
momento da realização das entrevistas com os entrevistados e não
significaram um sinal de engessamento. Ao contrário, o roteiro foi norteado de
forma que haja espaço para o estabelecimento de um diálogo entre o
entrevistado e a pesquisadorana expectativa de obter dados que surjam
espontaneamente do convívio e das conversas, principalmente com a
confiança que se estabelece paulatinamente dos pesquisados com a
pesquisadora.
88
O material utilizado para a execução dasentrevistas foi uma filmadora
Sony manual, ano 2008. Para a transcrição utilizamos um fone de ouvido e um
notebookda DELL, ano 2010.
Para realizarmos nossa pesquisa, elegemos cinco Faculdades de
Teologia na grande São Paulo, que estiveram presentes no grupo de trabalho
do Conselho Nacional de Educação. Sendo elas a Faculdade Teológica
Batista, sediada em São Paulo, no bairro de Perdizes; a Faculdade de Teologia
da Universidade Presbiteriana Mackenzie (CEFT), sediada em São Paulo no
bairro Consolação; a Faculdade de Teologia Umbandista (FTU), sediada em
São Paulo no bairro Vila Santa Catarina; a Faculdade de Teologia da UMESP
(FATEO), sediada em São Bernardo do Campo, no bairro Rudge Ramos, e a
Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, sediada em
São Paulo, no bairro do Ipiranga.
Para a entrevista, optamos por dois grupos, o primeiro grupo é o da
direção das instituições, constituído por cinco entrevistados. As entrevistas nas
Instituições de ensino superior selecionadas foram efetuadas com seus
respectivos reitores, com os quais havia sido feito contato no grupo de trabalho
das Diretrizes Curriculares Nacionais, ou com pessoas indicadas pela própria
instituição, que para a indicaçãoconsiderou a relevância da mesma para a
constituição do curso de Teologia ou para seu andamento.
Todas as pessoas elencadas pela instituição, que tiveram participação
relevante no processo de formação das faculdades ou que ocupam cargos de
direção, são homens, demonstrando que esta função é ocupada pelo sexo
masculino. Não tivemos acesso a nenhuma voz feminina que falasse sobre o
processo de reconhecimento da Teologia.O silêncio das mulheres é uma forma
de negá-las, pois o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito
de poder, e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto de partida
oposto. O discurso veicula e produz poder; reforça-o, mas também o mina,
expõe, debilita e permite barrá-lo. (FOUCAULT, 2011)
89
A carência e o silêncio das mulheres nos espaços de atuação
profissional da Teologia explicitam o campo restrito e garantem que “a
sociedade se encarrega, através de suas tradições e costumes, de classificar
algumas profissões de masculinas ou femininas, criando mitos em torna delas”
(TENENTE, 2007, p.72).
Foi neste universo masculino que colhemos nossos dados das
instituições. “Lugar” em que a ausência da mulher em cargos de poder não é
lembrada, pois ela ainda não passou por lá.
O segundo grupo, para o qual elucidaremos os procedimentos para a
entrevista mais adiante,é composto de vintepessoas (homens e mulheres)
formadas nas instituições selecionadas pós-reconhecimento. Sendo quatro de
cada instituição, dois homens e duas mulheres, permitindo uma análise
comparativa da absorção dos homens e mulheres pelo mercado de trabalho.
Pode ou não recorrer a um maior número de entrevistados(as)
egressos(as) se as informações não forem suficientes para uma análise do
campo profissional para mulheres pós-regulamentação, caso não haja
saturação dos dados.
O contato com as instituições para marcar as entrevistas ocorreu via e-
mail institucional e também via telefone, ambos disponibilizados no site das
faculdades, sendo que os e-mailseram da própria direção ou particular e o
telefone de contato era da secretaria das faculdades.
Neste contato nos apresentávamos, apresentávamos nossa pesquisa,
a instituição e o programa ao qual estamos vinculadas, bem como a proposta
da entrevista a ser realizada.Ressaltamos que as entrevistas, por ter um perfil
qualitativo, não tinham tempo previsto, que isto dependeria do próprio
entrevistado.
Quatro das entrevistas foram realizadas no mesmo período, durante o
mês de maio de 2012. Apenas na Faculdade de Teologia Nossa Senhora da
Assunção, por dificuldade de retorno por parte da instituição, a entrevista só foi
realizada no dia 17 de agosto de 2012.Dos entrevistados, apenas o professor
90
Paulo Nogueira, da Faculdade de Teologia Metodista, nos pediu o roteiro com
antecedência, os demais entrevistados não demonstraram interesse em tomar
contato com o roteiro previamente. A apresentação do mesmo realizou-seantes
de iniciarmos a entrevista.
Neste momento, reiteramos o que já havíamos informado no primeiro
contato por e-mail ou por telefone, a finalidade da pesquisa e o procedimento,
acrescentando o roteiro. Após os contatos iniciais pedimos que assinassem um
termo de declaração de imagem em nosso nome. Estendemos o mesmo
procedimento aos alunos e alunas egressos que entrevistamos.
Nossa primeira entrevista aconteceu com o diretor Lourenço Rega, na
Faculdade Teológica Batista, no período da tarde, em uma sala de reunião na
área da direção da instituição. Na entrevista estávamos eu, o diretor Lourenço
Rega e uma terceira pessoa como assistente de filmagem.
A segunda entrevista ocorreu com o professor Antônio de Araújo
Maspoli, do programa de pós-graduação de Ciências da Religião da
Universidade Presbiteriana Mackenzie. O professor entrou em nossa lista de
entrevistados por ter participado da coordenação da comissão responsável
pela criação, implantação e reconhecimento junto ao MEC/INEP do Curso de
Bacharel em Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, de 1999 a
2004, bem como pela coordenação da comissão responsável pela reforma do
curso de Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie em 2000.Ele nos
concedeu a entrevista no período da tarde, em uma sala de reuniões no prédio
da Teologia, adida à secretaria. Na entrevista estávamos eu, o professor
Maspoli e uma terceira pessoa como assistente de filmagem.
Na Faculdade de Teologia Metodista, o reitor Paulo Nogueira nos
concedeu a entrevista em seu gabinete de trabalho, no período da tarde, na
área da direção da instituição. Na entrevista estávamos eu, o diretor Paulo
Nogueira e uma terceira pessoa como assistente de filmagem.
91
O diretor Francisco Rivas Neto nos concedeu a entrevista no jardim da
Faculdade de Teologia Umbandista, no período da tarde. Na entrevista
estávamos eu, o diretor e uma terceira pessoa como assistente de filmagem.
A indicação de nomes dos alunos e alunas egressos para entrevistas
foi pedida, num primeiro momento, às próprias instituições. Não
disponibilizamos de outro meio, pois a Teologia não possui um órgão que
centralize as informações destes profissionais. O único “sindicato” constituído
não possui informações sobre os profissionais.Embora constituído por lei, não
tem vigência de fato.No entanto,sentimos dificuldades na disponibilização dos
nomes, o que retardou o início do processo de coleta. Apenas a Faculdade
deTeologia da Metodista e a Faculdade de Teologia Umbandista nos
forneceram nomes sem dificuldades. No entanto, três dos telefones e e-mails
se encontravam desatualizados.
Então, optamos por outro método para conseguir entrevistas com os
alunos e alunas e o fizemos de três formas: a primeira, por indicação de nomes
pela própria instituição; a segunda, por pessoas que conhecemos em ambiente
acadêmico e a terceira forma foi resultado de nosso pedido de indicação aos
próprios entrevistados e entrevistadas.
Outra questão relevante sobre as entrevistas com as pessoas
formadas foi o fato de termos mais dificuldades de contatar e marcar com os
homens. As mulheres se predispuseram com mais facilidade ao encontro para
a entrevista, enquanto os homens demandavam várias tentativas via e-mail e
telefone.
A Faculdade de Teologia da Metodista nos forneceu dois nomes, de
uma mulher e de um homem,em um primeiro momento. Tentamos contato via
e-mail e telefone, mas obtivemos êxito apenas com a mulher. Para atingir o
número previsto de nossos entrevistados pedimos a ela a indicação de outros
nomes e também nos dirigimos a uma aluna de nosso programa de pós-
graduação, Ciências da Religião da PUC-SP, formada na instituição.A primeira
entrevista com a aluna egressa da Metodista, que está inserida em nosso
92
programa de pós-graduação da PUC, foi realizada na sala de reuniões do
Programa de Ciências da Religião a portas fechadasno próprio programa,
antes do período da aula. A segunda entrevista com outra aluna egressa,
também da Metodista, ocorreu na sala de estudos da biblioteca da própria
Metodista.A segunda entrevistada nos indicou um colega de turma, que nos
concedeu entrevista em sua igreja, no período da tarde. O último entrevistado
nos concedeu entrevista em sua residência.
Para conseguirmos a entrevista com os homens formados na
Faculdade de Teologia Metodista, tivemos mais dificuldade por eles não
responderem nossos e-mails. Pedimos indicação a nossas entrevistadas e
procuramos novamente a secretaria da direção para obtenção de novas
indicações.
A Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, com
a qual tive muita dificuldade de contato, inclusive para agendar a entrevista
com a própria direção, só feita após três meses das demais entrevistas já
terem sido realizadas, foi concedida pelo professor Antônio Manzatto. A mesma
dificuldade também se reproduziupara a entrevista com os formados e
formadas.
Visando àotimização do tempo,buscamos um caminho alternativo,indo
à busca de pessoas formadas em Teologia nas instituições selecionadas para
a pesquisa em nosso próprio meio. Somos alunado programa de pós-
graduação em Ciências da Religião na PUC-SPe durante o período em que
cumpríamos nossas disciplinas tivemos contato com uma religiosaformada na
Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção e aproveitamos
essa relação para fazer o convite para entrevista, que nos foi concedida em
uma sala de aula da PUC-SP no quinto andar. Após a entrevista, ela nos
indicaoutra colega de sua turma da Teologia para entrevista e nos fornece o
telefone e e-mail para contato.
A religiosa formada na Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa
Senhora da Assunção indicada por nossa colega havia se formado em sua
93
turma. Ela nos concedeu a entrevista em sua casa, uma casa de religiosas, no
período da noite. Com os homens tivemos mais dificuldade, de localizar e
realizar as entrevistas, mas conseguimos duas fichas de egresso, com
permissão do professor Manzatto,com a secretária da Faculdade Nossa
Senhora das Assunção, porém tivemos êxito com apenas uma das fichas e o
segundo foi indicação de nossa primeira entrevistada, sendo que ambas as
entrevistas se realizaram na PUC-SP.
Gostaríamos de pontuar que até este momento não havíamos
conseguido contato com a direção da Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa
Senhora da Assunção, por isso nossa opção de buscarmos no meio onde
estudávamos.
Os alunos e alunas da Faculdade de Teologia Umbandista foram
agendados na medida dassuas disponibilidades. Duas delas concederam
entrevista em suas casas e os dois alunos preferiram realizar as entrevistas na
instituição onde se formaram.
Na Faculdade de Teologia do Mackenzie os nomes não foram
disponibilizados pela instituição, mas pudemos obtê-los por indicação de
pessoas que contatamos.As entrevistas foram realizadas, duas delas, na praça
de alimentação da Universidade Mackenzie. Uma com um egresso atualmente
no final da pós-graduação na própria instituição, a outra com uma aluna
egressa que atualmente trabalha na própria instituição como professora, mas
não com sua formação de teóloga. A terceira entrevista ocorreu em uma igreja
presbiterianae a última foi realizada por meio do softwareSkype.
Procureia coordenadora do cursoda Faculdade Teológica Batista, com
quem mantive contato via telefone e e-mails, e ela nos indicou quatro nomes,
duas mulheres e dois homens. Porém, obtivemos resultado positivo com
apenas um dos indicados, que ocupa o cargo de assistente de coordenação de
curso.
Marcamos a entrevista por e-maile a mesma foi realizada na sala da
coordenação de curso da faculdade; após encerrarmos, me indicaram uma
94
outra pessoa que trabalha na instituição para ser entrevistada. Assim,
realizamos a segunda entrevista. A terceira foi realizada com um egresso que
se encontra cursando a pós-graduação na UMESP, onde realizamos a
entrevista em uma sala de estudo da biblioteca. A quarta, na residência do
egresso.
Iniciei as entrevistas com a ideia de que os entrevistados
respondessem por escrito o roteiro e assim realizei, em caráter experimental,
com duas alunas, uma da Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da
Assunção e outra da Faculdade de Teologia Umbandista. Nos dois casos,
observamos que a tendência ao responder o questionário privilegiava a
rapidez, tendendo a respostas curtas. No entanto, ao término do mesmo,
elaboravam comentários e colocações relevantes para nossa pesquisa, que
não haviam escrito anteriormente. Então, optamos por adotar o mesmo
procedimento de gravação executado com os dirigentes das instituições, e
passamos a gravar as entrevistas, inclusive retomando as duas entrevistadas,
que nos possibilitaram a reavaliação do método a ser aplicado.
Ainda não encerrada a etapa da gravação das entrevistas, que
continuava em andamento,iniciamos a transcrição. Zaia Brandão (2000,
p.173)nos chama a atenção para o fato de que a entrevista significa trabalho e
como tal “reclama uma atenção permanente do pesquisador aos seus
objetivos, obrigando-o a colocar-se intensamente à escuta do que é dito, a
refletir sobre a forma e conteúdo da fala do entrevistado”. Por isso,optamos
pela transcrição das entrevistas manualmente, o fizemos de forma gradual no
decorrer das mesmas, como forma de analisarmos atentamente o conteúdo e
sua referência com o objetivo de nossa pesquisa e, assim, para iniciar a análise
dos dados,e as questões que incidem o objetivo de nossa pesquisa, com o
apoioda categoria analítica gênero, relações de poder e divisão sexual de
trabalho. Para a análise dos dados,Alves e Silva entendem que:
A análise qualitativa se caracteriza por buscar uma apreensão de significados na fala dos sujeitos, interligada ao contexto em
95
que eles se inserem e delimitada pela abordagem conceitual (teoria) do pesquisador, trazendo à tona, na redação, uma sistematização baseada na qualidade, mesmo porque um trabalho desta natureza não tem a pretensão de atingir o limiar da representatividade (ALVES, 1992).
Com base na abordagem defendida por Alves e Silva, a análise dos
dados será realizada por meio da análise de conteúdo (COUTINHO, 2004,
p.138), com a interpretação das falasde nossos entrevistados e entrevistadas,
permeadas pelo referencial da categoria do patriarcado e divisão sexual do
trabalho, elencadas com vistas ao objetivo de nosso trabalho.
Ao término da coleta de dados inicieia fase de análise. A forma de
análise dos dados foi baseada em dois momentos: organização e análise
interpretativa dos dados. Na fase de organização foram elencados dados
relevantes como forma e conteúdo da interação verbal dos participantes, forma
e conteúdo da interação com o pesquisador, comportamento não verbal,
padrões de ação e reação, análise discursiva e expressões mais
utilizadas.Nosso desafio foi analisar a fala de nossos entrevistados sem nunca
perder o conjunto complexo da pesquisa.A voz de nossos entrevistados e
entrevistadasdeveria ser equilibrada, como em um fio de navalha, no eixo trino
proposto por nossa pesquisa.
2.4.1. Caminhos teóricos
O pensamento crítico feminista, com suas reflexões e interpretações,
contribuíram para tornar visível a sexualização do social. O movimento
feminista explicitou, desde a década de 1960, a opressão sofrida pelas
mulheres e a partir de então vem desenvolvendo trabalhos de pesquisa que
constituem instrumento valioso para uma leitura do social. Levandodiscussões
como a desnaturalização do papel social determinado pelo biológico,
hierarquização de gênero, a subordinação feminina, a ideologia das
representações culturais, a separação das esferas pública como masculina e
96
privada como feminina 43 , gênero, igualdade, patriarcado, divisão social de
sexo, divisão sexual de trabalho, entre outros.
Os estudos feministas permitem a visibilidade das mulheres e destitui
qualquer possibilidade de posturas neutrasem relação aos valores dados pela
sociedade. Discute a participação tanto de homens como de mulheres na
prática e na teoria da construção do conhecimento, nas relações de trabalho,
nas questões sociopolíticas e culturais.
A epistemologia e a metodologia do feminismo propõem um modelo de
análise que permitam esclarecer a transformação das relações entre os
gêneros na sociedade.
A perspectiva de gênerocomporta pensar as diferençasem relação aos
diversos lugares que ocupam as mulheres no campo de trabalho e como no
conjunto das práticas sociais, dos símbolos, das representações, das normas e
dos valores sociais as sociedades delimitam os papéis femininos e masculinos.
A questão da profissionalização persiste com a concepção de que há:
[...] campos de saber ligados a distintas áreas disciplinares que são valorizadas como "femininas" ou "masculinas" e demarcadas de maneira desigual pela sociedade. A posição sexuada do sujeito que decide, os estereótipos sexuais socialmente atribuídos a mulheres e homens, a feminização e feminilização de determinadas carreiras, as formas de discriminação explícitas ou sutis, a auto-discriminação no acesso [...] (YANNOULAS, 2000, p.4).
Segundo Mosconi (1998), os saberes distintos são transmitidos a
públicos distintos, muitas vezes em função das próprias relações de gênero
que configuram os campos dos saberes. Há “tradições” acadêmicas, como na
Teologia, que defendem um imaginário de gênero na formação profissional, 43 “Ser mulher, até aproximadamente o final dos anos 1960, significava identificar‐se com a maternidade e a esfera privada do lar, sonhar com um ‘bom partido’ para um casamento indissolúvel e afeiçoar‐se a atividades leves e delicadas, que exigissem pouco esforço físico e mental” (RAGO, Margareth. Ser mulher no século XXI ou carta de alforria. In: VENTURINI, Gustavo; RECAMÁN, Marisol; OLIVEIRA, Suely (orgs), A mulher nos espaços públicos e privado. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004,pag. 31.
97
que se consolida em um discurso institucional queincentiva o estereótipo do
profissional a ser formado. O homem tem lugar privilegiado na formação
profissional da Teologia. Ser homem é uma qualificação prévia para a atuação
profissional.
O discurso, na voz dos diretores entrevistados e as estratégias das
instituições selecionadas, que ainda apresentam como objetivo de seu curso a
formação de pastores, presbíteros e ministros44 acaba por defender a Teologia
como um espaço majoritariamente masculino, pois as mulheres ainda têm
pouco acesso a cargos religiosos.
O olhar sobre minha experiência no grupo de trabalho do Conselho
Nacional de Educação, dominado por homens, as fontes analisadas, em sua
maioriaescrita por acadêmicos, e os cargos de direção nas Faculdades de
Teologia elegidas, ocupados por homens, e o discurso sobre profissional a ser
formado nas instituições me levarama refletir sobre osestreitos espaços
concedidos às mulheres como profissionais da Teologia, que são apresentados
de forma natural e reproduzidos nas relações de poder dentro das instituições e
no discurso dos entrevistados e entrevistadas.
Para Foucault, o poder se manifesta em relações de poder, em relações
sociais entre certos indivíduos ou grupos que se constituem em linhas
divisórias que separam os diferentes grupos sociais em gênero, classe e raça.
Assim, em vez de coisas, o poder é um conjunto de relações; em vez de derivar de uma superioridade, o poder produz a assimetria; em vez dese exercer de forma intermitente, ele se exerce permanentemente; em vez de agir de cima para baixo, submetendo, ele se irradia de baixo para cima, sustentando as instâncias de autoridade; em vez de esmagar e confiscar, ele incentiva e faz produzir. (ALBUQUERQUE, 1995)
O poder é concebido por Foucault (1979) como um conjunto de práticas
sociais e discursos construídos historicamente, que disciplinam o corpo e a
44 Enfatizamos que a linguagem apresentada no sítio das instituições são sempre voltadas para o homem e nunca fazem menção a pastoras, ministras e presbíteras. Chamamos a atenção para este fato, pois mesmo as instituições que formam pastoras não fazem menção a esse diferencial.
98
mente de indivíduos e grupos e que é exercido a partir de numerosos pontos e
em meio a relações desiguais e móveis.
O mesmo autor (1989, p. 104) defende que “as relações de poder são ao
mesmo tempo intencionais e não subjetivas”e que“não há poder que se exerça
sem uma série de miras e objetivos. [...] Da mesma forma que a rede das
relações de poder acaba formando um tecido espesso que atravessa os
aparelhos e as instituições, sem se localizar exatamente neles.” (1989, p. 105)
Para análise do poder, Foucault indica uma metodologia de“prescrições
de prudência”, a primeira a ser considerada é a regra de imanência, segundo a
quala produção de saberes se relaciona com relações de poder, ou seja, a
existência de focos de saber-poder como encontramos na Teologia.
A segunda regra é a das variações contínuas,segundo a qual as
relações de poder não são estáticas, podendo ser modificadas com as
circunstâncias. A terceira regra do duplo condicionamento aborda os focos
locais de poder e seu condicionamento alicerçado em estratégia global e a
forma inversa do mesmo, que se apoia em relações precisas e tênues que lhe
servem de suporte e ponto de fixação.45
A quarta e última regra é da polivalência tática do discurso. Foucault
defende que é no discurso que o poder e o saber são articulados e que o
mesmo não se dá de maneira polarizada em dominante e dominado, mas sim
de forma múltipla com estratégias diversificadas
O discurso se torna relevante em minha análise por
permitirrecompor“coisas ditas e ocultas, em enunciações exigidas e interditas
[...], variantes e efeitos diferentes segundo quem fala, sua posição de poder, o
contexto institucional em que se encontra.”46
Poder e visibilidade são constructos históricos, determinados
nas e pelas relações sociais. Em cada conjuntura sócio-histórica
é preciso, portanto analisar os elementos de determinação do
45Ibidem, p. 110. 46Ibidem, p. 111.
99
ponto de vista econômico, político e cultural que incidem na vida
cotidiana dos indivíduos e estruturam valores, modos de pensar,
de ser e agir. Ou seja, trata-se não apenas de reconhecer quem
tem poder e visibilidade, mas em quais condições materiais
foram alicerçados e são efetivados.(SANTOS; OLIVEIRA, 2010)
Essas questões nos levaram a escolher três categorias analíticas para
melhor contextualizar nosso objeto de pesquisa: gênero, relações de poder e
divisão sexual de trabalho.De modoque faremos um breve histórico de como o
conceito patriarcado desenvolvido num primeiro momento pelas feministas
contribuiu para novas leituras do social, permitindo questionamentos do mesmo
pelas categorias elegidas.
2.4.2. A formação de uma categoria analítica: do conceito de patriarcado
àcategoria de gênero
As primeiras definições dadas ao patriarcado faziam menção ao
sentido religioso e referiam-se aos “dignitários da Igreja, seguindo o uso dos
autores sagrados, para os quais patriarcas são os primeiros chefes de família
que viveram antes e depois do dilúvio” (DELPHY, 2009, p.173).
Apenas nos anos 70 do século XX o conceito de patriarcado é adotado
pelo feminismo e passa aludir à hegemonia masculina da qual deriva o
androcentrismo cultural. O patriarcado foi designado pelas feministas radicais
como uma “situação de dominação masculina em que os homens em particular
aparecem como agentes ativos da opressão feminina”(PUELO, 1995, p.23).
Kate Millet (1969), que marca a corrente neofeminista, por sua vez, define o
patriarcado como uma política sexual exercida fundamentalmente pelo coletivo
de varões sobre o coletivo de mulheres.
100
Saffiot afirma que “as relações patriarcais, suas hierarquias, sua
estrutura de poder contaminam toda a sociedade, o direito patriarcal perpassa
não apenas a sociedade civil, mas impregna também o Estado”.(SAFFIOTI,
2004, p. 54).
Muitos foram osdebates em torno do patriarcado. Esses debates foram
aguçados pelacrítica que afirmava o “caráter generalista do patriarcado, que
universaliza a forma de dominação no tempo ou no espaço, ou então correr o
risco de cair na falha inversa, de ser trans-histórico e
transgeográfico”(DELPHY, 2009, p.177).
Sheila Rowbothan (2009) configura sua crítica à definição na qual
afirma-se o patriarcado como ordem hierárquica sexual do capitalismo e
controle político, pois segundo ela esta definição reproduz um conceito de
sistema econômico.Algumas feministas socialistas qualificam este conceito de
abstrato e “ahistórico”, além de o mesmo apontar para o que há de comum e
não para as variações da hegemonia masculinanas distintas sociedades e
épocas históricas, assim, como nos diversos sistemas econômicos e políticos.
(DELPHI, 2009, p.28.)
As próprias pesquisadoras feministas que fizeram uso do conceito
patriarcado “apontam para impasses e dúvidas sobre as representações do
sexo biológico” (LOBO, 2011, p.189), mas Pateman(1993) alega que o
abandono do conceito patriarcado levaria àperda de uma história política que
ainda está para ser mapeadae é neste sentido que buscamos discorrer sobre
ele antes de entrarmos com a categoria analítica gênero. Optei por abordar o
patriarcado por ser ele o primeiro macroconceito que cunhou a teoria feminista
e trouxe elementos que nos auxiliam a entender a sociedade na qual a teologia
se encontra inserida. (BEDIA,1995)
O conceito de patriarcado defendido por Célia Amorós (1991) é
definido como um conjunto de práticas reais e simbólicas, não se tratando de
uma essência, mas uma organização social ou conjunto de práticas que
101
instituem a esfera material e cultural que lhe seja favorável, bem como a
constituição de meios ideológicos que favoreçam sua continuidade.
A construção social do que deva ser o homem e a mulher em nossa
sociedade está relacionado com a construção do sistema patriarcal, que
privilegia ideologicamente a dominação masculina e é ela quem define os
parâmetros socioculturais. São os homens, na maior parte das instituições, que
detêm o poder de organizar e estabelecer o social.(SAFFIOTI,2004)
Saffioti (2004) entende o patriarcado como o “regime atual de
relaçõeshomens e mulheres” e assinala alguns fatores presentes na sociedade
contemporânea de forma sistematizada: os direitos concedidos aos homens
sobre as mulheres, uma hierarquização nas relações entre homens e mulheres,
que invade todos os espaços da sociedade, constitui-se de uma base material,
corporifica-se e representa uma estrutura de poder baseada tanto na ideologia,
quanto na violência (SAFFIOTI, 2004, p. 57)
A base material e hierarquizada dada pelo patriarcado foi utilizada pelo
sistema capitalista, que se apropriou das estruturas simbólicas e das condições
objetivas criadas pelo mesmo.
Tomando o patriarcado como indissociável dos mecanismos de dominação-exploração do sistema capitalista, é, pois, impossível trabalhar as dimensões de gênero fora desse contexto.[...] As relações desiguais de gênero se apresentam como objetivação atualizada do patriarcado, enquantosistema que domina e oprime as mulheres. (SANTOS; OLIVEIRA, 2010)
A teoria feminista nos estudos de gênero, oriundadas pesquisadoras
norte-americanas, vem desenvolvendo alguns temas, entre eles,o questionar a
hierarquização dos sexos e a divisão sexual do trabalho (BEDIA, 1995). Para
tanto, as teorias feministas se orientam em duas direções: analisar criticamente
as construções teóricas patriarcais, bem como dar voz às mulheres
historicamente silenciadas, e a construção de uma nova forma de interrogar a
realidade (BEDIA, 1995).
102
CoboBedia enfatiza que a grande contribuição dos estudos de gênero
foi propor uma redefinição de todos os grandes temas das ciências sociais, se
tornando uma categoria analítica que percorre todos os âmbitos e níveis da
sociedade. “Deste modo, a teoria feminista abre um espaço teórico novo na
medida em que desvela e questiona tanto os mecanismos de poder patriarcal
mais profundos como os discursos teóricos que pretendem legitimar o domínio
patriarcal” (BEDIA, 1995, p. 61, tradução nossa).
Gênero é um campo de estudos que adentrou o Brasil na década de
1970/1980 e desenvolveu-se a partir da problemática da condição feminina.
Neste período, muitos estudos foram realizados em torno da opressão sofrida
pelas mulheres, retratando as questõesde classe e sexo. (GROSSI, 1999)
Mas nos anos 1980 a condição feminina dá lugar aos estudos sobre as
mulheres, poisconcluiu-se que havia uma diversidade de aspectos que as
envolvia além de classe e sexo, os quaisdeveriam ser considerados como:
aspectos regionais, faixa etária, entre outros.
Gênero possibilitou o estudo não apenas das condições objetivas, mas
introduziu a perspectiva subjetiva das identidades construídas socialmente.
Este campo de estudos buscou ir além da suposta determinação biológica
como ordem natural, que definia ideologicamente os papéis sociais dos
homens e mulheres (Grossi, 1999, p. 329-343).Na abordagem de Saffioti, “o
sexismo não é somente uma ideologia, reflete, também, uma estrutura de
poder, cuja distribuição é muito desigual, em detrimento das mulheres”
(SAFFIOTI, 2004, p. 35).
“Os diferentes poderes detidos e sofridos por homens e mulheres”
(SAFFIOTI, 1992, p. 193) puderam ser analisados a partir da categoria gênero
de forma a desnaturalizar e historicizar as desigualdades, bem como
considerar aarticulação das diferentes dimensões da vida social. A categoria
gênero possibilitou uma compreensão da complexidade que envolve as
relações e particularidades entre os sexos, suas especificidades históricas e as
respectivas determinações socioestruturais.
103
Assim, as relações entre os sexos são consideradas um produto
social, proveniente da organização, assimilação e reprodução dos poderes e
valores, numa dinâmica temporal, por elementos que são, ao mesmo tempo,
significativos no que se refere entre sociabilidade e cultura. (SANTOS;
OLIVEIRA, 2010).
Desta forma, refletir sobre gênero é estabelecer uma relação que
abarca a forma como a sociedade é estruturada, seja no âmbito político,
econômico ou cultural nos diferentes períodos históricos. Pensar a condição e
a opressão vivida pelas mulheres,sejamelas objetivas ou subjetivas, é pensar
as relações sociais em toda a sua complexidade.
Considerando estes fatores, Joan Scott propõe o estudo das relações
de gênero com base nas identidades socialmente construídas e suas
respectivas relações com as organizações sociais e representações culturais,
mas também presente nas instituições, nas estruturas sociais, nas práticas
cotidianas e nos diversos rituais que constituem as relações sociais. (SCOTT,
1995)
“Os estudos de gênero, portanto, surgem da ideia de que o gênero é
uma construção cultural que foi constituída historicamente em forma de
dominação e sujeição feminina. Esta hierarquização sexual tem se
materializado em sistemas sociais e políticos patriarcais.” (BEDIA, 1995, p. 62,
tradução nossa)
Então ser mulherou ser homem é uma construção social estabelecida
por uma sociedade patriarcal 47 (SAFFIOTI, 2004)onde o homem institui e
conduz a vida social promovendo o aumento da desigualdade social e
exploração das classes trabalhadoras, gerando uma situação de dominação
ideológica e exploração do trabalho da qual o capitalismo se apropriou.
47[...] As relações patriarcais, suas hierarquias, sua estrutura de poder contaminam toda a sociedade, o direito patriarcal perpassa não apenas a sociedade civil, mas impregna também o Estado” (SAFFIOTI, 2004, pag. 55)
104
No mundo do trabalho, as desigualdades de gênero se mantêm entre
homens e mulheres 48 e novas configurações vão sendo construídas. A
organização social vai se tornando cada vez mais sexuada, impondo e
atualizando a Divisão Sexual do Trabalho. Antunes (1999, p. 109) afirma que:
As relações entre gênero e classe nos permitem constatar que, no universo do mundo produtivo e reprodutivo, vivenciamos também a efetivação de uma construção social sexuada, onde os homens que trabalham são, desde a infância e a escola, diferentemente qualificados e capacitados para o ingresso no mundo do trabalho. E o capitalismo tem sabido apropriar-se desigualmente dessa divisão sexual do trabalho.
As mulheres foram incumbidas do papel reprodutivo, cuidado com
filhos, marido e familiares no espaço privado e os homens,do trabalho
profissional no espaço público onde prevalece o poder, a visibilidade e o
discurso dominante (PERROT,2005). Com a delimitação, definição e
hierarquização dos papéis e espaços sociais específicos para homens e
mulheres gerou-se uma divisão sexual do trabalho que perdura e resiste até os
dias atuais.
“O sistema do capital se beneficia da opressão vivenciada pelas
mulheres, tanto do ponto de vista ideológico, por meio da reprodução do papel
conservador da família e da mulher, como na perspectiva da inserção precária
e subalterna no mundo do trabalho.” (SANTOS: OLIVEIRA, 2010)
.
2.4.3.Divisão sexual do trabalho49
48 Não estamos negligenciando a diversidade de gênero, classe, raça, orientação sexual, faixa etária, mas me aterei às relações entre homens e mulheres no campo profissional. 49Optei pela divisão sexual de trabalho, mesmo sendo ciente de que ela e gênero pertencem a escolas distintas. Fi-lo
por ser a divisão sexual do trabalho mais apropriada à discussão da atuação profissional da Teologia, pois ela me
permite entender a Teologia em seu processo de construção social e coloca a questão da mudança como foco.
(HIRATA, 1995)
105
Pensar a divisão sexual do trabalho é pensar a concepção da
naturalização da divisão de tarefas para o sexo masculino e feminino. Esse
conceito promove a visualização de que há uma naturalização das funções e
atividades profissionais designadas aos homens e às mulheres, uma
construção cultural de divisão social de sexo que assinala a desigualdade de
gênero.
As pesquisas mostram que a divisão sexual do trabalho assumeformas conjunturais e históricas, constrói-se como prática social, ora conservando tradições que ordenam tarefas masculinas e tarefas femininas [...], ora criando modalidades da divisão sexual das tarefas. A subordinação de gênero, a assimetria nas relações de trabalho masculinas e femininas se manifesta não apenas na divisão de tarefas, mas nos critérios que definem a qualificação das tarefas, nos salários, na disciplina de trabalho (LOBO, 2011, p.169).
Assim, as práticas sociais são utilizadas como uma noção
indispensável que permite a passagem do abstrato ao concreto; permitindo
pensar concomitantemente o material e o simbólico; levando os atores sociais
àreflexão do sentido de suas práticas, para que o mesmo não seja dado de fora
por puro determinismo (KERGOAT, 1996).
O conceito de divisão sexual de trabalho foi utilizado pela primeira vez
por etnólogos para designar uma distribuição complementar dos trabalhos
entre homens e mulheres nas sociedades que estudavam, entre eles estava o
antropólogo Lévi-Strauss. Contudo, as feministas impõem uma nova
concepção à divisão sexual do trabalho, retirando a ideia de
complementaridade e introduzindo uma nova leitura, que propunha a relação
de poder dos homens sobre as mulheres.
Atualmente a sociologia, segundo Hirata, tem duas grandes teorias da
divisão sexual do trabalho que são opostas e divergentes. A primeira está
vinculada àconceitualização de “vínculosocial”, por meio de seus conteúdos
106
conceituais (solidariedade orgânica, complementaridade, conciliação,
coordenação, parceria, especialização e divisão de papéis). A segunda remete
mais a umaconceitualização em termos de “relação social” (divisão do trabalho,
contradição, antagonismo, oposição, dominação, opressão, poder) (HIRATA,
2007).
A divisão sexual do trabalho é considerada como um aspecto da
divisão social do trabalho;assim, conceituar a divisão sexual em termos da
relação social funda-se na ideia de uma relação antagônica entre homens e
mulheres.Mas também “são relações assimétricas porque são assimétricas
suas relações com a sociedade. São também relações de poder, regidas por
leis e normas, tradições e hábitos” (LOBO, 2011, p.175).
Para Helena Hirata (2002, p.281), a divisão sexual do trabalho é
indissociável das relações sociais entre homens e mulheres e ela permite
romper com o enfoque em termos de funções e papéis. A dimensão
opressão/dominação está contida nesta categoria e baseia-se na ideia de uma
relação antagônica entre homens e mulheres (Idem, 2002,p.280). Para a
mesma autora é necessário que se considere que “[...] há uma extrema
variabilidade das formas de divisão do trabalho relacionada à evolução das
relações sociais de sexo em toda a sociedade [...]” (Idem, 2002, p.286) que
deve ser ponderada nas pesquisas.
Em busca de melhor entendermos como essas desigualdades e
assimetrias sistemáticas entre homens e mulheres se articulam na divisão
sexual do trabalho, Helena Hirata e DanièleKergoat (2007)propõem-nos dois
princípios organizadores. O primeiro princípio é o da separação, que indica a
existência de trabalhos de homens e trabalhos de mulheres, e o segundo
princípio, o hierárquico, que aponta que um trabalho de homem vale mais que
um trabalho de mulher.
O primeiro princípio, o da separação, que será utilizado por mim, indica
a existência de trabalhos de homens e trabalhos de mulheres e está inserido
na divisão sexual do trabalho como uma construção social e histórica. As
107
profissões historicamente vão sendo personificadas como masculinas ou
femininas. A sexualização do trabalho:
pode se reproduzir por tradição cristalizada através da articulação de estratégias patronais e resistências [...], uma vez cristalizadas as tradições, a tendência à inércia é forte e a divisão sexual do trabalho tende a se reproduzir reforçando a imagem da naturalidade. (LOBO, 2011, p.154)
Assim, as profissões, segundo Lobo, acabam desenvolvendo uma
“tradição” e esta tradição também está vinculada àsexualização das tarefas. A
Teologia não fugiu deste estigma da sexualização profissional e, ao utilizarmos
a teoria da divisão sexual do trabalho,ela nos possibilitará entender melhor a
prática profissional da mesma na atualidade.
A Teologianasce e se desenvolve como disciplina no seio da religião
cristã, que por sua vez estende o exercício teológico aos homens. Neste
momento, estamos nos referindo ao saber e fazer teológico como extensão
religiosa, ofício de sacerdotes, mas, independentemente de como venhamos a
defini-la, é fato que a Teologia tradicionalmente foi exercida pelo sexo
masculino durante séculos. Isso levou àcristalização e naturalização de que é o
homem quem faz Teologia.
Considerando este contexto da Teologia, torna-se crucial refletirmos
como analisar a relação entrecampo profissional da Teologia e as mulheres.
Trata-se muito mais de refletir sobre as trajetórias femininas, mediante as
tradições e representações simbólicas deste campo profissional, que
propriamente sobre adinâmica do mercado de trabalho da Teologia,
ponderando que o papel da mulher como profissional da Teologia é tratado
como um devir surgido após regulamentação, enquanto o homem “nasce” com
a qualidade inata para a profissão.
Desta forma, torna-se imprescindível a voz de nossas(os) entrevistadas
(os). Ouvir o discurso dos(as) entrevistados(as) é a forma de apontar a questão
da profissionalização feminina e analisar as assimetrias de gênero nesta
profissão.Nesse momento, Kergoat ganha relevância, pois afirma que:
108
A divisão sexual do trabalho não é um dado rígido e imutável e varia fortemente no tempo e no espaço, e que problematizar em termos dedivisão sexual do trabalho não remete a um pensamento determinista; ao contrário, trata-se de pensar a dialética entre invariantes e variações [...] esse raciocínio implica estudar ao mesmo tempo seus deslocamentos e rupturas, bem como a emergência de novas configurações que tendem a questionar a própria existência dessa divisão(KERGOAT, 2003, p.56).
O discurso teológico ainda permeia a profissionalização da Teologia e
tem grande relevância, mas o marco isonômico constituído pela oficialização
tende a levar ao questionamentoda existência da divisão instituída pela religião.
O professor Antônio Máspoliafirma que: “Era raríssimo encontrar uma
mulher fazendo Teologia50”.
3.Gênero e poder nas instituições pesquisadas
Para desenvolver minha pesquisa, escolhi como campo empírico cinco
faculdades de Teologia. A escolha pautou-se em dois critérios: primeiro, porque
elas tinham representantes no grupo de trabalhos constituído pelo Conselho
Nacional de Educação para a discussão e elaboração das DCNs de Teologia
entre os anos de 2010 e 2012; segundo, por estar inseridas na grande São
Paulo. Vamos chamá-las por faculdades F1, F2, F3, F4 e F5 para preservar os
informantes, pois não foi unânime entre os mesmos a divulgação de seus
nomes, o que nos fez optar pela exclusão dos nomes das instituições e
entrevistados(as). Entre as cinco faculdades pesquisadas, quatro delas são de
Tradição cristã, consistindo em diferentes denominações: católica, luterana,
batista e metodista, a quinta faculdade é de confissão afro-brasileira.
A F1, de confissão batista, tem o status de faculdade isolada, ou seja,
sem vínculo com universidade. Seu histórico inicial está vinculado à fundação
de uma igreja e posterior formação de seminário para formação de pastores
50 A frase foi retirada da entrevista que o professor Máspoli nos concedeu no Mackenzie em maio de 2012.
109
que veio a se constituir em curso livre de Teologia na década de 1950. Pediu o
credenciamento ao MEC no ano de 2003 e foi autorizada no ano de 2005.
A instituição possui as seguintes funções administrativas: direção,
direção administrativa, tesouraria, coordenação de curso, assistência de
coordenação de curso e secretaria executiva. Os cargos de diretor, diretor
administrativo, tesoureiro e assistente de coordenação são ocupados por
homens, e a coordenação de curso e secretaria executiva são executados por
mulheres. Os membros do corpo administrativo da instituição são membros da
hierarquia da igreja mantenedora ocupando cargos eclesiásticos, o que não
ocorre com as mulheres da instituição, pois a igreja mantenedora não possui
cargos eclesiásticos para o sexo feminino. Mesmo com forte presença das
influências eclesiásticas na direção da instituição, é possível identificar a
presença feminina em cargos de poder na faculdade. Demonstrando que as
mulheres já têm acesso a eles na instituição.
A faculdade F2, de confissão metodista, é vinculada à universidade. Seu
histórico inicial está assentado à fundação de uma igreja e posterior formação
de seminário, que também veio a se constituir em curso livre de Teologia na
década de 1930. Como está vinculada a uma universidade que goza do direito
de implantar cursos sem a prévia autorização do MEC51, isso dispensou o
pedido inicial de autorização junto aos órgãos competentes, sendo fundada
logo após a oficialização do curso pelo Ministério da Educação e Cultura no
ano de 1999. O reconhecimento do curso junto ao MEC se deu no ano de
2001. A instituição possui as seguintes funções administrativas: direção, vice-
direção, direção administrativa, coordenação de curso e secretaria executiva,
51 A lei de ensino superior que rege nosso país, LDB (Lei de Diretrizes e Base), concede o direito das universidades e centros universitários a execução da abertura de cursos sem o pedido antecipado de autorização e credenciamento junto ao MEC. O artigo 5º do Parecer Nº: CES 968/98 determina que: ”Os cursos superiores de formação específica estarão sujeitos a processos de autorização e reconhecimento com procedimentos próprios e que resguardem a qualidade do ensino, ressalvada, quanto à autorização, a autonomia das universidadesnos termos do art. 53 da Lei 9.394, de 1996, e a dos centros universitários, nos termosdo parágrafo 1º do art. 12 do Decreto 2.306, de 1997”. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/1998/pces968_98.pdf>. Acesso em: 15 out. 2013.
110
todas ocupadas por homens membros da hierarquia eclesiástica pertencente a
igreja mantenedora, com exceção da vice-direção, que é ocupada por uma
mulher, esposa de pastor e secretaria executiva, que é ocupada por um
homem sem vínculo com a igreja mantenedora.
A faculdade F3, de confissão presbiteriana, é vinculada à universidade.
Tem em seu histórico a vinculação com o movimento de implantação e
desenvolvimento da igreja presbiteriana no Brasil e dentro desse processo
implementou no início da década de 1940 um curso livre de Teologia. A
vigência do curso como oficial dispensou o pedido de autorização inicial ao
MEC, pois foi criado no seio de uma universidade que tem autonomia de fundar
seus próprios cursos, sendo reconhecido pelo MEC no ano de 2004. A
faculdade possui os seguintes cargos administrativos: diretor, auxiliar
administrativo e secretário executivo, todos ocupados por homens. Sendo os
três pertencentes à hierarquia eclesiástica luterana. O diretor e secretário são
presbíteros, e o coordenador é pastor.
A faculdade F4, de confissão católica, é vinculada à universidade. Seu
histórico inicial está atrelado à congregação religiosa, que também veio a
constituir um curso livre de Teologia na década de 1940. Embora, se encontre
unida a uma universidade no momento atual, isso não ocorria no período de
sua autorização, dessa forma, teve de pedir junto ao MEC seu credenciamento
e autorização para o funcionamento do curso no ano de 2004. A instituição
possui os seguintes cargos administrativos:Grão-chanceler, diretor, diretor
adjunto e coordenador de curso. Todos os cargos são ocupados por homens,
membros da hierarquia eclesiástica da igreja mantenedora.
A F5, uma faculdade de confissão afro-brasileira, é uma instituição
isolada como a F1 e não possui vínculo com universidade. A faculdade de
Teologia nasce da iniciativa de um pai de santo das religiões afro-brasileiras
que implementa o projeto, pedindo no ano de 2001, a autorização de
funcionamento, que foi emitida pelo MEC no ano de 2003. Essa é a única
instituição que não funcionava como curso livre antes do pedido de
111
autorização. Todas as demais já atuavam como cursos livres que visavam à
formação de contingente para a área ministerial e pastoral.
Os cargos administrativos da instituição são os seguintes: direção, vice-
direção, direção administrativa e secretaria executiva. Nessa instituição todos
os membros pertencem a hierarquia eclesiástica da mantenedora, dois(duas)
deles são sacerdotes(isas) das religiões afro-brasileiras em atividade em seu
ministério. Os cargos de direção e direção administrativa são ocupados por
homens e o cargo de vice-diretora e secretária executiva, por mulheres.
Ao concluir a apresentação das instituições pesquisadas, gostaria de
ressaltar que, das cinco instituições pesquisadas, quatro nasceram por meio de
uma igreja ou seminário que veio a constituir cursos livres de Teologia e
apenas uma é formada diretamente como faculdade sem antes constituir um
seminário, mas vinculada a templo religioso; assim sendo, o vínculo com as
instituições religiosas é fundamental para sua existência e atual funcionamento
tanto a nível econômico. Todas as instituições pediram a autorização de
funcionamento logo após o reconhecimento do curso pelo Ministério da
Educação e Cultura no ano de 1999, por meio da Portaria CNE/ CSE 249 de
1999.
Assim, os cursos livres de Teologia para a formação de presbíteros,
ministros e pastores mudam seu status para curso regulamentado pelo MEC e
atingem sua habilitação perante os órgãos governamentais. Ao constituírem
seus componentes curriculares, fizeram uso da liberdade expressa na Portaria
CNE/ CSE 249 de 1999, que permitia que a composição dos mesmos fosse
contemplada pelas especificidades confessionais.
Desta forma, cada faculdade pode manter suas características
denominacionais, bem como concretizá-las nos componentes curriculares e em
suas políticas institucionais. Faço ressalva com relação a essas diferenças,
pois isto estará presente nos discursos de meus entrevistados e minhas
entrevistadas em consonância com a diversidade dos ambientes de formação.
112
Entre as cinco instituições pesquisadas, quatro delas mantêm em seus
interstícios marcas dos valores culturais defendidos pelo discurso religioso
judaico-cristão e a quinta traz um discurso pautado na teologia afro-brasileira,
uma nova perspectiva no campo teológico brasileiro.
Para adentrar nos elementos de minha análise, busquei em primeira
instância reconhecer quem ocupava os cargos da direção, vive-direção,
coordenação de curso e secretaria executiva nas faculdades, identificando se
são do sexo masculino ou feminino, pois esses cargos se tornam relevantes
por ser lugar do exercício de poder. Os dados encontram-se no Quadro A do
Apêndice.
Como é possível observar no Quadro A, as colocações de importância
hierárquica são ocupadas em sua maioria por homens. Os cargos de direção
em totalidade são exercidos por homens, que também se encontram
posicionados nas hierarquias eclesiásticas; o cargo de vice-direção aparece
apenas em duas das instituições pesquisadas e é ocupado por mulheres, a
diretoria administrativa é ocupada por homens em todas as instituições, a
coordenação de curso é desempenhada por quatro homens e uma mulher
entre as cinco faculdades pesquisadas e na secretaria executiva encontramos
três homens e duas mulheres. Os dados apontam a presença masculina na
maioria dos cargos de poder dentro das faculdades e, também, que as
mulheres marcam presença no meio, mesmo que em minoria. Elas ocupam
cargos subordinados de vice-diretora ou coordenação de curso, no entanto,
mesmo sob o comando dos homens, elas se encontram em espaço onde têm
condições de exercer o poder.
Embora os homens ainda apareçam nas funções com maior valor
social, como os cargos de direção (HIRATA; KERGOAT, 2007) e permaneçam
a maioria em “cargos de ponta”, as mulheres, em certa medida, mesmo
ocupando cargos em que são subordinadas ao sexo masculino, conseguem
acesso a colocações de relevância nas instituições e, assim, exercem e
participam de tomada de decisões dentro da rede de poder (FOUCAULT, 1979)
113
interno das instituições. Como afirma Foucault (1979), não há subordinação e
dominação sem resistência e a presença das mulheres nos cargos de
relevância hierárquica reflete a luta das mesmas e a consequente resistência
que marca sua presença no meio da Teologia.
Para melhor entender como esses cargos são ocupados, questionei
meus(inhas) entrevistados(as) sobre o critério utilizado para a contratação e a
resposta para minha pergunta era a capacidade e competência para o
exercício do mesmo. Reiteraram que, como se tratava de um ambiente
acadêmico, era necessária a titulação adequada na área (mestrado e
doutorado). Mas Hirata (p. 46) coloca "que o modelo de competência (...) face à
hierarquia e ao coletivo de trabalho é jogado de maneira diferente, senão por
vezes oposta no caso dos homens e das mulheres” 52 . Dessa maneira é
possível entender que a competência e qualificação têm pesos diferentes na
dependência do sexo, mas mesmo, assim, a relevância da capacitação
acadêmica é utilizada como discurso e reiterada nas narrativas dos homens e
mulheres entrevistados(as). Como na fala de Glória (56), que ocupa o cargo de
vice-diretora da F2 desde 2009:
“(...) cargos de direção no meio acadêmico além da competência necessária está profundamente associado à formação acadêmica. Eu mesma só tive acesso avice-direção após conquistar meu doutorado, mas também considero tão fundamental quanto minha formação a indicação que obtive da mantenedora. Historicamente os vários espaços da Teologia não é um ambiente acolhedor para as mulheres, sempre é necessário um plus para entrarmos nesse meio. Minha formação na área não foi simples. Querer a capacitação na área é uma coisa ir em busca e realiza-la é outra. Tem de se contar com uma rede de apoio, que é constituída praticamente por homens. Sem isso creio que ser muito mais difícil.”
Em sua narrativa, Glória aponta algumas questões relevantes: a
competência, a formação acadêmica, a indicação da mantenedora e a rede de
apoio. Se por um lado o depoimento de Glória explicita a relação entre poder-
114
saber, quando afirma ser necessária a formação por outro também vincula a
“distribuição” do poder na faculdade onde atua profissionalmente a indicações
realizadas pela mantenedora, lugar por excelência do poder eclesiástico. Como
disse Glória sua formação foi importante, mas a indicação da mantenedora foi
um plusfundamental, ou seja, no caso referido a formação não seria suficiente.
Ambos os lugares: na academia e na religião (mantenedora) são
espaços historicamente androcêntricos que privilegiam a atuação masculina.
Regina Jurkkewicz, em sua pesquisa Gênero, poder e religião – ONGs em São
Paulo: um estudo de caso (1999) colocaque não basta ter acesso ao
conhecimento, mas é necessária a quebra de condicionamentos sociais, que
diferenciam as possibilidades de acesso para homens e mulheres em lugares
saber-poder. No caso retratado por Glória ela descreve o uso de uma rede de
apoio, praticamente constituída por homens e ressalta que seria muito difícil
conseguir algo sem fazer uso da mesma. Mediante a narrativa de Glória, é
possível identificar que a rede de apoio, formada por homens, está constituída
por “poder” e funciona como um centro de acesso e distribuição do mesmo, ou
seja, segundo Foucault ela não “tem” o poder, mas o detêm e é capaz de
influenciar quem entra ou não no espaço da profissionalização da Teologia.A
segunda mulher que ocupa o cargo de vice-diretora, da F5, Mara (48), foi
designada para o cargo em 2008 e faz relato similar:
Meu cargo atual na instituição foi indicação da mantenedora. Isso se deu para resolução de algumas questões administrativas. Eu vinha trabalhando junto à diretoria da mantenedora há alguns anos e a mesma chegou à conclusão que minha contribuição na diretoria da mantida seria positiva. Minha formação acadêmica teve início após assumir o cargo para que pudesse obter maior adequação ao mesmo.
As duas mulheres indicam em seus relatos que a competência e
formação foram necessárias, mas não foram os únicos fatores determinantes
para que viessem a ocupar o cargo de vice-direção nas faculdades F2 e F5. Os
relatos apontam para a influência e extensão do poder eclesiástico, presente
nas mantenedoras na constituição e formação dos quadros de direção das
115
faculdades, e não apenas para a capacidade e formação na área, como foi
relatado pelos diretores das cinco instituições. A capacidade de administrar e
conhecer a área foi um dos fatores determinantes para a entrada no campo,
mas a formação é imprescindível para se manter no cargo.
Mas, no caso de Mara, assumir o cargo foi um facilitador para sua
formação acadêmica, pois ela relata que sua capacitação se deu após assumir
a vice-direção da instituição F5, ou seja, ela fez uso da oportunidade associada
à necessidade de maior capacitação para permanecer no lugar de vice-diretora
e buscou sua formação. O cargo foi um facilitador para a capacitação
profissional, e não o contrário, como apontado pelos gestores.
No relato das duas vice-diretoras evidencia-se que elas abriram seus
próprios caminhos e construíram suas trajetórias, mesmo dentro de um
contexto em que as mulheres não encontram facilidades, pois ele foi criado e
dominado por homens ao longo da história da Teologia, ou seja, elas se
apropriaram das relações de poder existente para se projetar num meio
inóspito.
Mesmo considerando as indicações das mantenedoras53, as mulheres
conquistaram um espaço de poder na direção das instituições e buscaram sua
capacitação na área para a manutenção de seus cargos. Apontando para a
existência de pontos de resistência e conquistas, que se estendem às
faculdades como espaços em que as mulheres articulam-se e buscam a
formação como uma forma de luta para permanecer no local conquistado
rompendo com a histórica subordinação feminina na área. Dessa maneira
podemos compreender o poder nas instituições na perspectiva de Foucault
como algo que circula e, não como algo que se encontra nas mãos de alguém.
Não é possível excluir o momento e o contexto histórico-cultural atual de
conquistas e mudanças sociais do “lugar” das mulheres na sociedade, mas
também não há como negar que essas mulheres construíram estratégias na
53 O fato de as mulheres serem indicadas aos cargos pela mantenedora demonstra que elas estão conquistando espaço dentro das respectivas igrejas.
116
relação com suas igrejas (mantenedoras) e faculdades (mantidas) e
reconfiguraram as dinâmicas de gênero androcêntricas presentes nas mesmas.
As igrejas, que tinham plena liberdade para definir, criar ou interditar,
bem como estender o exercício do poder única e exclusivamente para os
homens, também passam a indicar mulheres a cargos de poder nas faculdades
estudadas.
3.1. Mulheres em “lugar” de poder nas faculdades
Ao nos referirmos às mulheres em lugar de poder nas faculdades
pesquisadas nosso objetivo era compreender as relações de poder e as
dinâmicas estabelecidas por elas nas instituições. Entendo relações de poder
segundo Foucault: primeiro que o poder não é algo que se detêm, segundo que
ele não se exerce sem resistências e terceiro que as relações de poder não
são produtos mecanicistas e envolvem vários componentes.Considerando a
perspectiva foucaultiana das relações de poder, na qual o poder é algo que se
exerce e não se encontra localizado em nenhuma parte específica, mas sim,
com a ideia de circularidade é possível compreender o que Foucault chamou
de microfísica do poder na qual o poder se desloca etransita.
“O poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os lugares (...). O poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certapotência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada. (FOUCAULT; 2012, p. 88-89)
A questão de poder em Foucault apresenta outro elemento relevante
que utilizarei nesse item: a relação de poder-saber, pois ele defende que o
saber não tem neutralidade e sim, se encontraassociado a relações de poder.
Para Foucault:
“(...) o fundamental da análise é que saber e poder se implicam mutuamente: não há relação de poder sem constituição de um campo de saber, como também, reciprocamente, todo saber constitui novas relações de
117
poder. Todo ponto do exercício do poder é, ao mesmo tempo, um lugar de formação de saber”. (FOUCAULT: 2013, p. 23)
Assim, fazendo uso da perspectiva foucaultiana é possível analisar a
presença de duas mulheres no cargo de vice-direção das faculdades, num
lugar de saber-poder tradicionalmente masculino. A presença de mulheres na
vice-direção das faculdadesé resultado de práticas de resistências e de micro
relações de poder, que foram exercidas por elas no interior das mantenedoras
ao longo do tempo, pois por meio do desempenho profissional demonstraram
capacidade e liderança.
A ação profissional das mulheres em cargos de vice-direção não só as
legitima como sujeitos de poder, mas também cria possibilidades para que as
posições tradicionais de gênero no meio, que foram frutos das práticas e
discursos hegemônicos, sofressem um abalo, servindo em certa medida de um
desequilíbrio nas relações de gênero que deram significado às relações de
poder presentes na área. Foucault(1989, p. 104) defende que “as relações de
poder são ao mesmo tempo intencionais e não subjetivas”.
Assim, é a objetivação do poder que as leva a se produzirem, bem
como ganhar legitimidade por meio de seu trabalho em um espaço do qual
historicamente foram excluídas e invisibilizadas. Essas mulheres, mesmo tendo
o seu sexo como algo que restringe a ocupação de cargos em instâncias
superiores no campo, passaram a compor e lidar com possibilidades
semelhantes à dos homens nas posições de poder. Nas narrativas das vice-
diretoras é possível identificar as dificuldades de estar nesse “lugar” onde as
mulheres ainda são exceção, mas também as estratégias utilizadas pelas
mesmas nos “jogos de poder” que envolvem sua permanência na área:
Como eu cheguei ao cargo de vice-direção? É uma longa história, mas tentarei ser o mais sucinta possível. Comecei minha trajetória como a maioria das mulheres: prestando serviços assistenciais à comunidade em regime de voluntariado. Fazendo Teologia com o objetivo de me instrumentalizar para esses trabalhos. Nessas atividades, aos
118
poucos fui assumindo responsabilidades por projetos, equipes, e isso me levou a uma aproximação com a diretoria da mantenedora. Sou de uma personalidade muito ativa e determinada e esse fator acabou me fazendo construir novas dinâmicas de trabalho que apresentei à direção da mantenedora que foram aceitas, adotadas e compartilhadas e após esse episódio passei a ser uma espécie de “consultora” da diretoria da mantenedora, mas sem vínculos, porém, com o passar dos anos, porque foram anos, eles me fizeram o convite para compor a diretoria. Eu aceitei e foi um desafio, pois estar como voluntária era uma coisa, e estar como membro da direção era outra. Acho que eles só se deram conta disso depois que eu já estava lá [risos]. Os espaços de poder na religião “não são” [a entrevistada faz o gesto das aspas com as mãos nesse momento- grifo meu]para serem usufruídos por mulheres e, assim, conferir a elas isso foi um tumulto naquela diretoria. Nesse momento começa a minha luta para a conquista de meu espaço num cargo de poder. Esperar que me concedessem seria inútil, eu teria que lutar por ele. Eu não sou muito pacífica nos meus intentos, ou melhor, tenho uma postura de ir atrás. Não poderia esperar que alguém simpatizasse com ideia de me apoiar. Como se conquista um cargo? Trabalhando duro e de forma eficaz, e assim o fiz. Depois de alguns anos, a mantenedora começou a detectar alguns ruídos na comunicação com os membros da mantida e os problemas administrativos da faculdade começaram a crescer. Como a mantenedora sempre tem um membro na mantida, eles me encaminharam para o cargo de vice, e não da direção. Quando assumi o cargo na faculdade, propus que outras mulheres viessem a compor a direção da instituição, mas consegui a introdução de apenas uma. (MARA, 49 anos)
A fala de Mara descreve a forma com que utilizou sua capacidade e
potencial de trabalho como uma estratégia para se tornar reconhecida
profissionalmente, pois, como ela afirmou em sua narrativa: “Não poderia
esperar que alguém simpatizasse com ideia de me apoiar. Como se conquista
um cargo? Trabalhando duro e de forma eficaz, e assim o fiz”. Afinal, ela
mesma fala que contar com agentes facilitadores seria muito difícil. Ela resistiu
às dinâmicas hierárquicas de poder na áreae conseguiu assumir um lugar de
liderança, mas estar lá foi um longo processo de lutas, disputas e estratégias
políticas.Mara demonstra consciência de que as mulheres possuem
119
capacidade para as instâncias de poder, ao propor a contratação de mais
mulheres para a direção da faculdade, mas também “trata-se de uma mudança
de estrutura fundamental que permitiu a realização, com uma certa coerência,
da modificação dos pequenos exercícios de poder” (FOUCAULT, 2013, p. 215)
que lhe permitiu ousar uma indicação, mesmo que ela tenha sido rejeitada.
Na outra faculdade, onde também ocupa o cargo de vice-diretora,
Glória (50 anos)narra situação similar à de Mara, porém refere como estratégia
de permanência no cargo o fato de ter conduzido as “coisas bem devagar” e
sendo reconhecida pelos seus pares:
Eu não tinha expectativa de conseguir um cargo na direção da faculdade. Esses cargos e as hierarquias eclesiásticas são praticamente a mesma coisa. Nunca imaginava uma mulher na direção, muito menos eu. Historicamente, isso não havia acontecido. Tenho ciência que sou exceção e faço parte de um marco histórico ao ocupar esse cargo e só consegui estar aqui devido aos meus anos de trabalho e dedicação à vida profissional. Eu conquistei bem devagar e de maneira silenciosa o meu cargo. Na minha área, mulher tem de trabalhar em dobro para poder ser indicada a qualquer tipo de cargo e estar aqui é muito significativo para mim e para meus pares. Meu cargo foi indicação, como se os outros não fossem, mas uma mulher ser indicada gera muitos falatórios, enquanto um homem ser indicado é algo natural. Se fui indicada, foi por competência, e se mantenho no cargo, é pelo mesmo motivo.
Glória tem ciência de ocupar um lugar historicamente de homens e, de
preferência, de clérigos, por isso demonstrou certo assombro com a indicação
para o cargo, mas, ao mesmo tempo, um orgulho pela conquista de marcar a
presença feminina em um espaço onde sua ausência era a constante. Por
outro lado, o fato de não esperar ocupar esse tipo de cargo se deve ao
processo de internalização das dinâmicas de gênero reproduzidas pela lógica
da ordem social androcêntrica e não se trata de falta de capacidade das
mulheres para assumir essas atividades.
A experiência narrada por Glória demonstra que o ambiente de
trabalho da Teologia, onde imperam os valores clericais, são concebidos no
imaginário como “não lugares” para as mulheres. Mas, ao mesmo tempo, estar
120
ali em um espaço de poder que era destinado aos homens e clérigos a
confirma como pessoa capaz de ação, mas também estende aos seus pares
do sexo feminino a mesma capacidade de atuar em ambientes que, há até bem
pouco tempo, lhes era negado. Estar na direção da faculdade de Teologia é
uma forma de visibilizar as mulheres como pessoas capazes de exercer o
poder, mesmo que dentro de um universo masculino e clerical.Mas, como
retrata Foucault “(...) não é possível que o poder se exerça sem saber, não é
possível que o saber não engendre poder." (FOUCAULT; 2013 p. 141-142).
Elas edificaram seus lugares como sujeitos capazes de exercer poder-saber.
Esse cargo apresenta uma “estimação do valor social” e religioso, que
“ditam a visibilidade e a invisibilidade das competências, sua legitimidade e, no
fim das contas, a verdade dos atores e das relações de forças [...]” (RICHARD,
2003, p.76).A ocupação estratégica dos cargos por essas mulheres, se não foi
capaz de abalar as imagens masculinas que os caracterizam, ao menos
constitui base de manobra para futuras conquistas delas ou de outras que
venham a se inserir no campo.
Restringir o acesso das mulheres a cargos de poder era uma forma de
manter o campo generizado e obstruir o uso de dinâmicas de gênero que
pudessem alterar o quadro até então existente. A conquista desses cargos
demonstra que algo está mudando e contribui no sentido de desconstruir os
papéis de gênero que estruturavam as práticas, definiam e determinavam os
“lugares” de homens e mulheres na Teologia. Essas duas mulheres
representam o desafio aos códigos normativos de gênero no campo e reiteram
novas possibilidades para as mulheres no campo profissional da Teologia.
3.2. Entre as dinâmicas de gênero e relações de poder: situando
meus(inhas) entrevistados(as) no processo de formação e inserção
profissional
A fim de obter a maior abrangência analítica das relações de gênero é
necessário considerar e estabelecer as especificidades do espaço social em
121
análise, o campo profissional da Teologia, a organização do mesmo, as
particularidades dos seus membros e do contexto sócio-histórico em que estão
inseridos, e a configuração das relações de poder que se interpõem nesse
meio, bem como os circuitos de poder que permitem distinguir seus efeitos nas
relações e interações entre indivíduos, bem como nas práticas e discursos
institucionais que promovem e reforçam as assimetrias de gênero.
Ao ir a campo e ouvir meus(inhas) entrevistado(as) tinha como objetivo
saber sua inserção profissional, mas percebi no decorrer da pesquisa que estar
ou não inserido profissionalmente se tratava de uma situação complexa e tinha
vínculos com as influências familiares, questões religiosa e com o processo de
formação dos mesmos como é possível observar nas narrativas abaixo. Algo
que me foi relatado nas entrevistas e me levou a analisar o que havia
estimulado a opção pelo curso, bem como o que envolveu o processo de
formação desde a graduação.
Sou de família de pastores, Meu avô foi pastor, meu pai é pastor e eu segui o pastorado também. Todos éramos da Assembleia (refere-se a Igreja Assembleia de Deus- grifo meu). Comecei o pastorado com 18 anos. Hoje não sou mais da Assembleia. Fundei minha própria igreja. Foi assim, que cheguei na Teologia motivado pelo pastorado e o desejo de ser um bom pastor. Eu trabalhava como operário nas linhas de montagem e todo mundo falava para mim que fazer Teologia era perda de tempo, mas como eu queria seguir como pastor nem ligava. Eu comecei a estudar com bolsa do sindicato e ficava essa cobrança, mas depois eu consegui bolsa do Pro-uni e as cobranças acabaram. (MARCOS, 26 anos) Me casei com uma batista e comecei a participar de algumas atividades na comunidade da igreja e fui me envolvendo com a religião. Sou da aeronáutica, mas essa não é uma profissão que preencha. Foi então que pensei que ser pastor seria uma forma de redirecionar minha vida além de poder ajudar as pessoas. Decidi ser teólogo. Fuie me formei. (GLAUCO, 44 anos) Fiz Teologia porque queria estudar a história da Igreja e lá era o lugar ideal. Sempre tive a pretensão de ser
122
acadêmico na área de história, mas era fascinado por essas coisas de poder que envolviam a história da Igreja. (Jorge, 36) Meu pai um devoto, minha mãe conselheira na comunidade e eu filha de religiosos. Não podia ser muito diferente. Era inevitávelconhecer a religião. Pensei muito se valeria a pena pagar um curso que me traria pouco retorno, mas apostei porque conhecer minha religião era algo que desejava.(Fatima, 50 anos) Sou esposa de pastor. Viver, respirar e estar com a religião era uma constante. Ele foi fazer Teologia e eu me motivei a ir com ele sem grandes pretensões, mas com a ideia de melhorar minha atuação na comunidade. (Sara, 36 anos)
Para melhor localizar o contexto faço uma breve apresentação do grupo
que compôs minha pesquisa, sua trajetória na formaçãoe das estratégias
utilizadas por eles(as) para alcançar sua capacitação considerando as relações
de poder e dinâmicas de gênero.Procurei a perspectiva que aceita a existência
de pontos de adesão e resistência ao poder, capazes de legitimar ou negar as
ações de nossos(as) entrevistados(as), entendendoas diferentes instituições
(família, religião e faculdades de teologia) como espaços em que homens e
mulheres articulam suas relações por meio de movimentos de negociação,
debate e de luta de acordo com interesses em jogo. “As relações de gênero,
assim, são percebidas como mecanismos e práticas sociais que são instituídos
e instituem ações e comportamentos” (CAPELLE, 2004) 54 . Dentro dessa
perspectiva é possível abordar o gênero como uma forma de expressão das
relações de poder no espaço de formação e atuação profissional, assim como
consideraros jogos de interesses que as envolvem.
As dinâmicas das relações de gênero aliada a concepção de poder
defendida por Foucault remetem a um “sistema” de redes tensas e
continuamente ativas, em que não se permite a posse do poder, mas tão-
somente a capacidade de exercê-lo em múltiplas instâncias e intensidades
123
diversas. Dessa forma, como afirma Foucault em a Microfísica do poder (2013)
o poder passa a ter seus efeitos vinculados a manobras, técnicas, táticas e
mecanismos, tendo implicações sobre as ações dos sujeitos que o exercem.
O ponto de vista foucaultiano de poder aplicado às relações de gênero
admite o rompimento com a polarização de que o poder está nas mãos dos
homens ou das mulheres, poisdescentraliza o poder e o faz circular. Porém,
isso não anula o fato de que em certosmomentos algumas pessoas estejam
mais submetidas a manobras de poder do que outras, como é possível
observar na fala de nossos(as) entrevistados(as).
É esse processo das dinâmicas das relações de gênero e poder que
busquei analisar a partir das narrativas de meus(inhas) entrevistados(as). Para
melhor localizar meus informantesapresento nos quadros B e C, no Apêndice,
(os) entrevistadas (os) das cinco instituições pesquisadas, bem como elucido o
caminho que percorri para chegar a eles(as). Foram selecionados quatro
discentes de cada instituição divididos em 2 homens e duas mulheres somando
o total de 20 entrevistados (as). Os critérios de escolha foram baseados em
indicações das faculdades, dos próprios entrevistados ou da busca em
programas de pós-graduação nas próprias instituições pesquisadas.
Ao buscar qual a motivação de ambos os sexos para cursar Teologia
foi possível identificar que os homens entrevistados fizeram essa opção devido
à expectativa de uma formação ligada à área seminarística e inserção na
carreira acadêmica. Entre os dez entrevistados oito tinham ou pretendiam ter
ligação com as hierarquias eclesiásticas. Ao passo que entre as mulheres o
objetivo com a formação era seguir carreira acadêmica, oportunidade de se
inserir no ensino superior, conhecimento da própria religião ou preparar-se para
trabalho voluntário, apenas uma passou a pertencer à hierarquia eclesiástica,
mas no início não tinha essa pretensão. “Nesse caso, as estratégias de poder
que envolvem as relações de gênero apontam para uma diferenciação entre os
sexos que delimita comportamentos e condutas e é delimitada por eles”
(CAPELLE, 2004).
124
Ao analisar a questão geracional, entre meus(as) entrevistados(as) foi
possível averiguar, que nesse grupo pesquisadotanto os homens como as
mulheres mais novas, que entraram no curso após a oficialização, buscaram a
Teologia vislumbrando a inserção no campo, fosse na área ministerial e
acadêmica, no caso dos homens, fosse na área acadêmica, no caso das
mulheres. Em contrapartida, as gerações mais velhas, que ingressaram no
mesmo período, procuraram a Teologia para conhecer melhor a religião ou se
instrumentalizar para trabalhos voluntários. Considerando que, já se
encontravam inseridas profissionalmente em outra área ou aposentadas.
Nesse momento o reconhecimento do curso ganha certo destaque, pois as
gerações mais novas em seu processo de formação já puderam usufruir de um
curso de Teologia reconhecido e como tal com viés profissionalizante.
Enquanto, as gerações mais velhas no período de sua formação não contavam
com esse fator, ou seja, buscaram cursos que lhe permitissem a inserção no
mercado de trabalho. Não é possível afirmar que as gerações maisnovas
fizeram a opção pelo curso para sua profissionalização devido a oficialização
da disciplina de Teologia, mas é possível dizer que o reconhecimento do curso
permitiu abrir um novo horizonte profissional para as gerações mais novas de
ambos os sexos.
Outra questão significativa está vinculada à formação em nível de
graduação. As mulheres possuem mais graduações que os homens e, em nível
de pós-graduação, os homens têm maior formação que as mulheres (ver
quadros D e E, no Apêndice).
Entre as mulheres, encontramos 1 doutoranda, 1 mestra, 5 mestrandas
e 3 bacharelas; em contrapartida, entre os entrevistados temos 1 doutor, 2
doutorandos, 3 mestres, 3 mestrandos e 1 em pós-graduação lato sensu. Isso
demonstra que o sexo masculino investiu mais em sua formação stricto sensu,
mestrado e doutorado, de forma a preparar-se para a vida acadêmica. O nível
de formação já é um demarcador dos lugares que homens e mulheres
125
ocuparão no campo profissional, assim como a persistência da reprodução da
assimetria de gênero na área.
Outro ponto que se destacou nas entrevistas foi o fatodos homens
passarem a atuar com o status de pastor antes mesmo do término do curso de
graduação. Como nos narra Mariana (28 anos):
Eles eram chamados de pastores, mas oficialmente eles só seriam pastores após a formação quando passariam a ser chamados de pastor acadêmico. Quando eles faziam estágio ministerial nas igrejas eram tratados como pastores e, já tinham grandes influências nas igrejas, eram vistos como pastores porque estavam cursando a Teologia, mas oficialmente não eram reconhecidos como tal. Só depois da graduação.
Enquanto, alguns de meus entrevistados conseguiam exercer o
pastorado antes mesmo de concluir sua graduaçãoas mulheres pesquisadas
por mim, que pretendiam atuar na área tinham de buscar maior qualificação.
Tendo de se dedicar durante um período maior à sua capacitação para
conseguir algo na área. Para atuação na área ministerial as mulheres não
dependem apenas de sua formação, mas também do fato da denominação
aceitar ou não o ministério feminino. A pesquisa demonstrou critérios
particulares para cada gênero na inserção profissional, com nítida
desvantagem para as mulheres entrevistadas.
Desta forma, ficasempre a dúvida da inserção das mulheres como
profissional da área, uma vez que os homens estão em franca vantagem e são
ainda idealizados como profissionais no campo. Como coloca Schiebinger
(2001,p. 351): “o ingresso das mulheres é geralmente considerado o mais fácil
das tarefas”, mas o início de sua inserção profissional é sempre um
complicador, pois “as disciplinas estabelecem limites ao que pode ser
perguntado e por quem (grifo meu). (...) Elas fornecem critérios para o
conhecimento e métodos e regulam o acesso às profissões (grifo meu)”
(SHIEBINGER, 2001, p. 290).
126
Assim, as narrativas de nossos(as) entrevistados(as) indicam que a
própria estrutura do campo profissional da Teologia é atravessada por
dinâmicas que se colocam contra o desejo pessoal das mulheres de seguir
carreira. A articulação das estratégias de poder reflete-se nos discursos e
práticas das faculdades e no processo de formação e capacitação acadêmica
de maneira objetiva e subjetiva constituindo políticas que levam as mulheres ao
desestímulo de sua permanência. “O poder não se dá, não se troca nem se
retoma, mas se exerce, só existe em ação (...)” (FOUCAULT, 2013, p 175) e a
ação no seio das faculdades é de estímulo aos homens e desestímulo às
mulheres como nos relata Luana (26 anos):
Fazia parte do currículo educacional no sentido do seguinte, para o teólogo é interessante você participar, você conhecer, como se fosse seu objeto de estudo, como a reação das pessoas. Na formação de meus colegas que iam ser pastores eles tinham a experiência de como fazer a liturgia, de como lidar e organizar as pessoas. Eu não participava dessa maneira porque eu não ia ser pastora, então eu não podia me envolver diretamente com essa atividade. Eu ficava lá lia alguma coisa no púlpito. Era assim.
Apesar do curso reconhecido pelo MEC, o privilégio da prática do saber
teológico ainda se encontra nas mãos dos homens e, principalmente, daqueles
que pretendem serem clérigos. A dificuldade criada para as mulheres no meio
de formação é um dos fatos que justificamcinco de minhas entrevistadas se
declararem inseridas profissionalmente em outras áreas e de apenas três
apresentarem o desejo de atuar profissionalmente na Teologia ou buscar
inserção profissional em áreas afins, grupo este representado pelas gerações
mais novas. Como nos afirma Luciana (44 anos): “Eu fui para Ciências da
Religião na pós-graduação porque a Teologia ainda é um campo muito fechado
para mulheres.”
Em contra partida entre os entrevistados, três ingressaram na Teologia
já atuando como pastores ou evangelistas etrês buscavam a formação para
atuar no ministério. Como é possível constatar na narrativa de um deles,
Francisco (28 anos):
127
Venho de família de pastores. Meu avô, meu pai e alguns tios são pastores. Eu inclusivepregava junto com meu pai na igreja e foi esse um dos motivos para fazer Teologia.
Dois deles desejavam apenas conhecer a religião, um deles, se
instrumentalizar para trabalhos voluntários nas comunidades religiosas, e o
outro desejava apenas a atuação na carreira acadêmica. A maioria dos
homens declarou em entrevista buscar a Teologia para a capacitação
ministerial mediante as exigências de sua inserção como padres, pastores e
ministros, mas, no decorrer do processo de formação, cinco deles optaram por
seguir carreira ministerial e também acadêmica de forma concomitante. A
supremacia dos homens na área, foi construída socialmente no seio das
religiões judaico-cristãs e, está imbricada aos privilégios implícitos no processo
de inserção no campo dos quais são portadores. Na Teologia ainda imperam
os pressupostos estruturais que reproduzem a figura do homem e clérigo,
como uma norma de gênero que se reproduz nas práticas que validam a
hierarquia de sexo, legitimando-a como norma.
Como afirma Scott (1990,p. 13) “gênero é um elemento constitutivo das
relações sociais, baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e mais, o
gênero é uma forma primeira de dar significado às relações de poder”a
situação da Teologia mostra como as conjunturas do meio naturalizam
posições diferenciadas para cada sexo desde a formação à profissionalização
sendo capaz de influenciar aspolíticas institucionais, como podemos observar
no Quadro F, no Apêndice, de concessão de bolsas:
De acordo com o Quadro F (ver no Apêndice), é possível constatar que
os homens de nossa pesquisa receberam mais bolsas que as mulheres para a
formação na graduação, mas, o que é mais significativo, eles foram favorecidos
com bolsas da própria instituição onde fizeram o curso, enquanto a maioria das
bolsas conquistadas pelas mulheres foi pleiteada junto a órgãos como o
ProUni, ou seja, elas obtiveram pouco apoio financeiro das faculdades para a
formação. Entre os(as) entrevistados(as), o sexo masculino recebeu mais
128
bolsas das próprias faculdades do que o sexo feminino. As mulheres
receberam menos incentivo financeiro que eles. Segundo os dados analisados,
é possível apontar que, em termos de apoio financeiro, os homens são
favorecidos e o incentivo financeiro facilita que a área permaneça inalterável.
Não obstante todos esses fatores que se interpõem como desafios para as
mulheres, o seu acesso e permanência na área, mesmo que de forma reduzida
e restrita, é significativo e retrata um tipo de resistência.
O Quadro G (ver Apêndice) ilustra como os diferentes tipos de apoio
institucional ainda mantêm os homens como os profissionais idealizados da
área:
Os dados coletados evidenciam que os discentes do sexo masculino
permanecem maioria nas instituições pesquisadas, demonstrando que os
cursos de Teologia ainda são “lugares de homens”. Em todas as outras
faculdades, no decorrer dos últimos cinco anos, o quadro continua estável, com
a maioria masculina, com exceção da F5, uma faculdade não cristã, de
confissão afro-brasileira, a única que apresentou no mapa de discentes do ano
de 2009 um número maior de mulheres do que de homens matriculados e, nos
demais anos, observa-se um equilíbrio entre o sexo masculino e feminino. Esse
dado demandaria novas interrogações sobre a teologia afro-brasileira e as
mulheres, o que poderia ser trabalhado futuramente, mas a Teologia
historicamente difundida ainda preserva seu meio como masculino.
Tanto os dados quantitativos como as narrativas de nossos(as)
entrevistados(as) dentro do grupo pesquisado indicam um número reduzido de
mulheres na área, bem como políticas que facilitem sua entrada na Teologia e
apontam que os principais destinatários da Teologia são os homens, embora
as mulheres se façam presentes. Esse fator facilita a reprodução da cultura
androcêntrica e a hegemonia dos homens no interior da profissão. Apesar dos
avanços na democratização do acesso à formação da Teologia, em virtude do
reconhecimento do curso, as relações de poder e gênero em seu meio ainda
persistem assimétricas.
129
3.3. Relações de gênero na formação e profissionalização da
Teologia
Se, por um lado, a Teologia é apresentada nas falas de nossos(as)
entrevistados(as) como resistente à presença e atuação feminina, sendo um
ambiente ainda com reservas, por outro lado é necessário considerá-la em um
contexto social mais amplo, que impõe certas restrições às mulheres, ou seja,
não é possível isolá-la ou mesmo desconsiderar como afirma Hirata e Kergoat
(2007) que, de uma forma geral, as mulheres enfrentam mais dificuldades que
os homens em suas conquistas profissionais e de capacitação. Como é
possível constatar na narrativa de nossa entrevistada Sara (F2), de 36 anos,
em que aborda a dificuldade e os desafios que as mulheres enfrentam para a
capacitação e profissionalização por conta da dupla ou às vezes tripla jornada
(casa, trabalho e formação). Embora as mulheres tenham conquistado mais
espaço, elas ainda são responsabilizadas por tais tarefas. “O processo que
legitima a fundamentação biológica dos gêneros empurra as mulheres para
certos tipos de trabalhos e papéis sociais que elas devem desempenhar”
(SCHMID, p.8)impondo a elas um excesso de tarefas e, são poucas as
mulheres que conseguem conciliar a sobrecarga de atividades e sobrepujá-las
para conseguir a capacitação ou mesmo condições para poder assumir
compromissos profissionais que exijam mais tempo e dedicação. Essa
dificuldade é descrita por Sara (36 anos), que cursou a F4, em sua narrativa,
na qual rememora sua experiência:
Eu fiz Teologia, mas sempre gostei da área de educação, então procurei no mestrado fazer pesquisa nesse sentido e estudei projetos na área de educação para cursos em EAD. Analisei muitos projetos pedagógicos e mesmo didáticas e estratégias utilizadas para esse tipo de curso para fazer meu mestrado e isso me abriu uma oportunidade muito boa de emprego. A universidade em que me formei começou um projeto nesse sentido e eu fui convidada para compor a equipe de gerenciamento e implantação do projeto, mas eles exigiam
130
oito horas de trabalho diário e tempo disponível para avaliar os possíveis polos que fossem surgindo em outras cidades. Eu teria que viajar periodicamente, aí tive de abandonar a proposta porque tenho família e na época meus filhos eram muito pequenos. A lógica do trabalho é escolher quem não é tão dividido, como meu marido, por exemplo. Isso não é piada, não! Eu não tenho as mesmas condições dele profissionalmente. Nós fizemos graduação juntos e ele já é doutor há muito tempo, bem colocado profissionalmente, e eu parei no mestrado e vivo de empregos que ofereçam certa flexibilidade de horários para poder dar conta dos filhos e das atividades que fazem parte da rotina de uma casa.
A narrativa de Sara expõe a existência de assimetrias nas dinâmicas de
gênero e aponta para o fato de as mulheres serem impossibilitadas de se
dedicar à capacitação e trabalho na mesma proporção que os homens, pois a
elas ainda é designado às tarefas do espaço privado. Segundo Scott (1990)
essas características atribuídas a homens e mulheres são construções sociais,
um sistema de aprendizado, que se refere a diferentes hábitos, costumes e
formas de pensar atribuídos a cada um dos sexos, que acabam por indicar as
funções que os mesmos devam assumir em nossa sociedade algo que é visto
criticamente por Sara quando ela narra as diferentes condições dela e do
esposo:“(...) aí tive de abandonar a proposta porque tenho família e na época
meus filhos eram muito pequenos. A lógica do trabalho é escolher quem não é
tão dividido, como meu marido (...)”. Segundo Buschini(1994), “a presença ea
idade dos filhos são os fatores que mais interferem na participação feminina no
mercado de trabalho, porque as mães ainda são as principaisresponsáveis
pelos cuidados com as crianças pequenas” e isso é possível constatar na
narrativa de Sara. Esse fato implica perceber uma diferenciação entre os sexos
nas atividades sociais que, para Kergoat (1996), trata-se de um desculpa
muitas vezes empregada pela sociedade para hierarquizar as atividades entre
homens e mulheres.
No depoimento de Sara ela expõe suas dificuldades de conciliar vida
acadêmica, profissional e de seus compromissos familiares. Ele demonstra
consciência de que sua formação e inserção no mercado de trabalho
131
ultrapassam a capacitação como o caso de seu marido devido às tarefas que
lhe são atribuídas socialmente (dona de casa e papel de mãe) das quais os
homens são liberados. É possível verificarque, apesar da participação feminina
ter experimentado um crescimento, e, por conseguinte, ter obtido um
posicionamento mais favorável no mercado de trabalho, as mulheres, como
Sara, continuam se engajando preferencialmente nas atividades que permitam
combinar os trabalhos da vida privada com o trabalho da vida pública. Segundo
Oliveira (1999) o fato das mulheres optarem por trabalhos que não prejudiquem
as tarefas na vida privada é uma clara indicação da continuação do padrão de
segregação ocupacional, o qual marca as condições do trabalho feminino.
Se na fala de Sara há “tensão” e conflito ao narrar a incumbência de ter
que assumir de forma simultânea responsabilidades profissionais e familiares
por outro ela reforça que esse papel cabe as mulheres quando abandona uma
oportunidade de trabalho eaceita a divisão de tarefas no que concerne ao
cuidado dos filhos. Sara arca com o cuidado dos filhos e afazeres da casa em
geral tornando comum o desdobramento das mulheres no desempenho do seu
duplo papel. Ela assume que cabe à mulheres, portanto, além do seu trabalho
fora de casa, a incumbência da execução dopapel de mãe, esposa e dona-de-
casa. Assim, segundo Oliveira (1999, p. 35), “está colocado a dupla jornada de
trabalho, ou melhor, a jornada extensiva de trabalho, que começaem casa,
passa pelo mundo do trabalho evai terminar novamente em casa”.
Ao contrário do marido, Sara ao desempenhar uma atividade profissional
também assumia as responsabilidades de esposa, mãe e trabalhadora e
cumpria dois trabalhos. A constatação de desigualdades presente na fala de
Sara na divisão de trabalhos entre ela e o esposo de acordo com Kergoat
(2003, p. 59), é fruto de “processos pelos quais a sociedade utiliza a
diferenciação para hierarquizar essas atividades”.
Asociedade androcêntrica acaba delegando as mulheres por meio de
convenções sociais as atividades relativas a vida privada. Sara explicita sua
dificuldade, ora de assumir compromissos profissionais, ora de continuar sua
132
formação em razão de sua dupla jornada, bem como as restrições do tipo de
trabalho que as mulheres conseguem assumir para conciliar o trabalho no
campo privado e profissional, o que ocasiona mais dificuldades para elas do
que para os homens com relação ao tipo de cargo, pois os cargos de maior
poder pedem mais dedicação em questão de horários e acúmulos de
responsabilidades. Isso permite aos homens a apropriação das funções com
maior valor social adicionado(HIRATA; KERGOAT, 2007).
O desdobramento das mulheres no desempenho do seu duplo papel
dificulta a conquista da capacitação e profissionalização e, quando essa
capacitação e profissionalização ocorrem, as mulheres têm de se esforçar o
dobro dos homens, pois a elas cabe, portanto, “além do seu trabalho fora de
casa, a incumbência da execução do papel de mãe, esposa e dona de casa.
(OLIVEIRA, 1999, p. 35)55. As mulheres, para se manterem na profissão, se
submetem à dupla jornada para fazer valer a sua vontade de permanecer
exercendo a profissão. Na cultura de nossa sociedade, a construção social dos
papéis específicos para as mulheres e homens sobrecarrega as mulheres, mas
também apresenta “a força de trabalho masculina como força livre, a força de
trabalho feminina como sexuada. Ou seja, as condições de negociação da
força de trabalho não são as mesmas (...)” (LOBO, 1991, p. 152).
Fátima (50 anos), uma das teólogas entrevistadas, pertencente a uma
geração mais velha, que cursou a F1,diz que não conseguiu conciliar a vida
familiar, atividades do voluntariado e trabalho profissional:
Eu trabalhava, cuidava de minhas duas filhas, prestava serviços comunitários na igreja e estudava. Eu estava dando conta apesar da correria. Fiz a minha graduação assim, trabalhando meio período, cuidando da casa no outro meio período, estudando à noite e realizando trabalhos comunitários aos finais de semana. Foram quatro anos que eu nem sei direito como eu sobrevivi. Parecia uma máquina. Foi por isso que não continuei a estudar, tinha que ter um horário para descansar. Eu me acabei. Todo mundo me pergunta: “e o seu marido não ajudava”, e eu sempre respondo “não, ele assistia futebol” [risos].
55Ibidem, 1999.
133
Em nossas entrevistas, as mulheres de gerações mais velhas narraram
não ter encontrado apoio dos maridos com relação à divisão dos trabalhos
domésticos, como no caso de Fátima. Em sua narrativa, ela fala de forma
crítica que em seu cotidiano não contava com o auxílio do esposo, pois o
comportamento do marido refletia a cultura machista, que compreende que
essas atividades são tarefas das mulheres, reafirmando a clássica divisão
sexual de trabalho que destinou aa mulheres o trabalho do espaço privado.
Fica claro em sua narrativa que ela acaba internalizando a ideologia da cultura
androcêntrica, que deposita sobre ela toda a responsabilidade no cuidadocom
os filhos, com a casa e quando sente que não está dando contade suas
funçõessociais, ela faz a opção de abandonar suas atividades no espaço
público ou como diz Hirata (2005;p. 155) “que atrás de cada uma delas estão
sujeitos e sujeitas (indivíduos) que com toda sua subjetividade são muitas
vezes obrigados a desistir, seja por pressão familiar, ou por incompreensão do
marido ou por auto pressão (...)”.
É possível observar certa contradição existente na vida de Fátima e
também na voz de outras entrevistadas: elas se encontram divididas entre os
velhos e os novos valores, pois ao mesmo tempo, que a sociedade moderna as
incentiva a terem uma profissão também lhes cobra a responsabilidade sobre o
trabalho no espaço privado: casa ecuidados com os filhos. Assim, as mulheres
que desejam trabalhar no espaço público têm de assumir a sobrecarga de
trabalho do público e privadose desdobrando como Sara ou fazer como Fátima
abandonar um dos trabalhos, no caso de nossa entrevistada abdicou do
trabalho no espaço público.
Outras circunstâncias se evidenciam na fala de minhas entrevistadas
que apontam a dupla jornada, mesmo aquelas que são religiosas e não
constituíram família. Dalva (52 anos) narra seu cotidiano como estressante:
Na minha congregação, temos compromissos diversos, desde lavar, cozinhar, passar até as tarefas nas comunidades, trabalhar para ganhar dinheiro e fazer retiros espirituais
134
periódicos. Quando fazemos a opção de estudo, piora tudo. A que horas estudamos? Quando dá. Bem diferente dos padres, que não lavam, não passam, não cozinham e ainda ganham para estudar. Todo mundo pensa que religiosa tem tempo de sobra, é exatamente o oposto, não temos tempo para nada. Uma tenta dar apoio para a outra na hora do sufoco.
As religiosas também apontam para a sobrecarga de atividades em sua
vida cotidiana, que não difere das mulheres casadas e com filhos, mas afirmam
contar com uma rede de apoio de seus pares na “hora do sufoco”, mas, mesmo
assim, têm que fazer um esforço redobrado para conciliar todos os
compromissos. A narrativa de Dalva (52 anos) também aponta no sentido de
dinâmicas de gênero desiguais quando diz que os padres disponibilizam de
muito mais tempo para o estudo e menor sobrecarga de atividades diárias com
os afazeres domésticos.
Inês, que pertence a uma geração mais nova, já descreve outra
situação na qual pode contar com o apoio do esposo, mas descreve que isso
foi fruto de sua insistência na mudança dos padrões culturais estabelecidos de
que tarefas domésticas cabem às mulheres.
Eu sempre trabalhei fora. Minha família não tinha muitos recursos, sabe? Estudar e trabalhar para mim era comum, natural. Quando eu casei, assumi mais uma função: de dona de casa, que quando era solteira eu não tinha. Meu marido no começo quis se encostar. Não queria me ajudar. Aí eu comecei a falar que nós fazíamos as mesmas coisas fora de casa: trabalhar e estudar, então era justo que fizéssemos as mesmas coisas dentro de casa. Ele reclamava até no começo, mas depois isso se tornou parte da rotina de nossa vida.
O apoio do esposo foi algo construído na relação do casal e contou
nesse processo com as estratégias de resistência de Inês, que utilizou como
argumento para a mudança da postura do marido as próprias circunstâncias
vividas pelo casal no espaço público, que eram semelhantes, e afirmou que no
espaço privado deveria acontecer o mesmo. Com essa postura, ela construiu o
próprio caminho e foi capaz de “negociar” as tarefas e apoio do esposo. A
135
necessidade de Inês de conciliar sua vida de profissional, estudante e dona de
casa foi um fator determinante para ir à busca de uma nova constituição das
relações familiares e dos trabalhos no espaço privado. Assim, ela aponta um
caminho para desconstruir e ressignificar as relações de gênero no próprio
ambiente familiar e terminar com sua reprodução no espaço privado.
Nas narrativas de minhas entrevistadas foi possível identificar as
dificuldades sofridas e as estratégias utilizadas por elas para se manter ou não
no processo de capacitação e profissional. Algumas apontam a falta de apoio,
enquanto outras apontam o apoio negociado das atividades domésticas que
conseguiram com seus cônjuges, mas todas elas relatam a sobrecarga de
atividades, que recaem sobre elas, restringindo ou dificultando a ação
profissional. As mulheres, para permanecer no campo, fazem uso de
estratégias específicas, cada qual dentro de seu contexto, para construir suas
próprias possibilidades de continuar em atividade na área. No compito geral
entre nossas entrevistadas foi possívelverificar que no tocante às divisões das
tarefas domésticas existem relações mais igualitárias e relações mais
tradicionais, quese mesclam. Isto sugere facetas modernas e facetas
conservadoras entre os entrevistados (as).
3.4. Vantagens dos homens clérigos e desvantagens dos(as) leigos(as) na
formação
Luciana, uma religiosa de 44 anos que estudou na F4, de confissão
católica, relata sua experiência de mulher sem filhos e sem família, mas
pertencente a uma congregação. Ela narra os desafios de sua vivência de
religiosa e de seus pares na profissionalização da Teologia e as dinâmicas de
gênero presentes no meio, bem como as dificuldades que enfrenta para a o
sustento e formação na área:
O meu curso é revalidado. Eu já tinha feito o curso antes, mas só tinha valor para a igreja. Então, quando o curso passou a dar diplomas válidos fora do meio eclesiástico, eu resolvi voltar
136
e validar. A turma que eu iniciei, quando não era... era reconhecido, nós éramos em duas mulheres, e na outra que eu terminei na revalidação a maioria também era de homens. Eu fiz a noite porque de manhã são só os homens que vão ser padres. Existia também uma carta para leigos e religiosas. No caso dos leigos, para fazer o curso tinha de ser apresentada uma carta do padre. Teria que passar pelo padre para ele dar uma carta de autorização para poder estudar. O leigo só conseguia fazer Teologia com uma carta de apresentação do padre. Na minha época, eu não sei como está hoje, a cada renovação de matrícula tínhamos que apresentar uma carta. Era uma carta de apresentação. A minha coordenadora, a provincial, tinha que me apresentar, como eu sou religiosa. Era uma coisa que a gente questionava, pois o direito canônico diz que todos os fiéis podem cursar Teologia e a faculdade tinha essa exigência na época. Como religiosa, para nós mulheres não é obrigatório estudar Teologia. Ao contrário dos padres, que é obrigatório estudar Teologia e Filosofia. Para nós mulheres não há exigência, somos incentivadas a ficar apenas com a formação interna da Congregação. Eu sempre falei: Como vou ser religiosa sem estudar Teologia? Eu queria aprender, eu queria saber, ser religiosa com qualidade. Aprender história da igreja, entender da Bíblia, da espiritualidade. Eu pensava que deveria ser uma exigência para nós, religiosas, como é para os homens. [...] Após minha formação, nunca busquei atuar como teóloga para me sustentar, trabalho em uma ONG. Eu acho que o campo é muito restrito para as mulheres, por isso fui para Ciências da Religião na pós-graduação, que é mais aberta. As minhas colegas, irmãs, que trabalham diretamente com as comunidades, têm muita dificuldade na inserção e na atuação como teólogas nas igrejas e paróquias. Não há remuneração. Antes as irmãs iam para as paróquias, havia uma remuneração, mas hoje não há mais. As dioceses cortaram isso. Os padres têm remuneração. Os padres têm o seu salário, seja religioso ou diocesano, mas para nós religiosas não há. Para autossustentação não há como sobreviver de Teologia. O campo é muito restrito e mais ocupado por homens. Alguns colegas meus que se formaram comigo estão atuando nas comunidades. A aceitação das mulheres teólogas não é a mesma coisa. A aceitação das pessoas é muito maior dos seminaristas do que das religiosas. [...] Muitos amigos meus me incentivam a fazer outra graduação. (Luciana, 44 anos)
Luciana, ao relatar sua experiência, aponta para o fato de os homens
clérigos terem mais possibilidade de ação, mais liberdade e acesso à formação
137
da Teologia e ao campo profissional, pois faz parte da política e gestão das
igrejas, à qual pertence exercer seu poder institucional a favor do sexo
masculino e, assim, incentivar a formação dos homens, como parte de seu
“quadro” na área de Teologia, muitas vezes com apoio financeiro. A
“naturalização” das normas e regras institucionalizadas pelo discurso religioso
tradicional dominante estabelece assimetrias de gênero no processo de
formação que favorecem os homens. As mulheres, por sua vez, não contam
com apoio institucional e dependem de iniciativas pessoais, sem ajuda de suas
igrejas. A narrativa de Luciana aponta criticamente a existência dessas
dinâmicas de gênero nas políticas institucionais que facilitam a manutenção do
status quo da Teologia como um “lugar” de homens e preferencialmente
clérigos. Enquanto as mulheres, como ela, buscam de forma individual criar
estratégias para conseguir sua formação no meio assumindo uma postura de
resistência às relações de gênero difundidas na formação da Teologia. Luciana
“mesmo sob a influência de determinadas características institucionais,
organizacionais, bem como do tipo de socialização” (CAPELLE, 2005;p. 365)
ao qual foi submetida ela foi capaz “de produzir conhecimento acerca do
contexto e de agir ativamente no sentido de exercer poder” (CAPELLE, 2005;
p. 365) buscando alternativas para seu acesso ao saber da Teologia.
Luciana questiona as políticas de reprodução das relações de “lugares”
e papéis de gênero, assim como apresenta uma consciência reflexiva da
existência de normas androcêntricas e patriarcais que inferiorizam e excluem
as mulheres por meio de práticas e políticas institucionais. Sua iniciativa em um
espaço acadêmico que tem restrições à presença feminina pode ser
interpretada em termos foucaultianos como iniciativa que desponta como força
e resistência as dinâmicas de gênero na área.
A narrativa de Inês (26 anos), que cursou a faculdade F2, relata as
experiências que ela viveu de dinâmicas de gênero na área, e também explicita
como afirma Scott o quanto “o gênero está implicado na concepção e na
138
construção do poder em si” (1991,p. 14) seja na prática profissional como nos
meandros da formação:
O forte da Teologia é a cristã, que forma padres, pastores, diáconos e ainda não é tão aberto para mulheres. Os protestantes aceitam, mas também não são todas as igrejas. Se a gente pensar, as mulheres são muito prejudicadas, mas a gente não ouve nada disso durante a graduação.
A narrativa de Inês faz a memória de sua experiência em um contexto
específico de formação vinculado à denominação metodista, mas que pode
trazer novos significados com relação ao que concerne às dinâmicas de
gênero. A atitude dela de questionamento dos conteúdos passados, ou melhor,
não passados, no bacharelado é uma maneira de reavaliação da ação e
postura institucional no que tange a abordagem das relações de gênero.
Inês, quando discorre: “Se a gente pensar, as mulheres são muito
prejudicadas, mas a gente não ouve nada disso durante a graduação”,
apresenta uma fala crítica em relação ao papel de cumplicidade e indiferença
que as instituições desempenham com relação à transformação dos papéis de
gênero na área, sem demonstrar comprometimento com políticas que venham
a favorecer a mudança. Se por um lado Inês cobra mudança dos conteúdos
passados na formação por outro lado existe que defenda a permanência dos
conteúdos na maneira “tradicional”. Como é possível identificar na fala de um
de meus entrevistados Osvaldo (61 anos) da F4, no qual apoia a permanência
do discurso teológico tradicional:
“Eu gosto muito de exegese. Essa é minha área, quero me aprofundar nela. É um conhecimento difundido há séculos na Teologia. Tem algumas pessoas que querem inovar a exegese. Eu acredito na visão mística da bíblia, a visão histórica, a visão moderna compromete alguns pontos da Tradição. Falo de tradição com T maiúsculo. Aquela que vem de longe, que passou por grandes pensadores da Igreja. Colocar coisas diferentes, tentar assim... questionar a sua estrutura é pôr em risco a Tradição. O que eu quero dizer é que muitas coisas mudaram no mundo. Você vê hoje nas faculdades de Teologia discutimos se o aborto deve ou não ser praticado, diversidade sexual, eutanásia por
139
exemplo. Eu sou uma pessoa que defendo os direitos de todo cidadão, mas não é possível confundir isso com a Tradição. Essas ideias de questionar por exemplo se Deus é homem, se é mulherisso já é deturpar a Tradição. Isso é uma coisa que respeito, mas não aceito na Teologia. Afinal é algo que nasceu com um pequeno grupo, mas não tem uma fundamentação. Você pode achar que sou conservador, mas não sou, apenas respeito a Tradição e o modo clássico de se fazer exegese.
Osvaldo faz críticas às novas formas de se interpretar e fazer exegese
da Tradição proposta pela perspectiva feminista. Ele relata de maneira
pejorativa as ideias feministas em sua narrativa: “Essas ideias de questionar,
por exemplo, se Deus é homem, se é mulherisso já é deturpar a Tradição”.
Discursos que fujam da visão tradicionalista não são bem visto por Osvaldo,
enquanto são desejados por Inês.
São duas perspectivas uma que defende o discurso religioso tradicional
vigente e outra que defende uma reinterpretação das questões de gênero na
área. Essas duas perspectivas podem ser entendidas como luta em torno dos
significados, da verdade e dos valores das dinâmicas de gênero no campo da
Teologia. Segundo, Foucault (2013,p. 138) “cada luta se desenvolve em torno
de um focoparticular de poder”, dessa maneira, um contra discurso sobre
gênero, que fuja dos padrões teológicos tradicionaisapresenta um risco ao
poder instituído no meio, pois não constituem apenas intervenção intelectual,
mas também política e religiosa. Excluir as questões de gênero do projeto
pedagógico do curso, não possibilitando disciplinas que venham discutir esses
pontos é uma ação política que obstrui o acesso a um contra discurso e
possibilita, assim, a manutenção das representações de gênero, com viés
androcêntrico, defendidas pelo discurso religioso tradicional. Nas duas
narrativas é possível identificar tensões entre ter ou não contra discursos, que
venham a discutir a posição tradicional do discurso teológico na formação da
Teologia.
A posição mais ortodoxa do discurso religioso tradicional tem justificado
processos de segmentação de gênero na formação da Teologia, muitas vezes
140
por determinação de lideranças da cúpula da Igreja que defendem a
segregação entre turmas de leigos (mulheres e homens) e de seminaristas.
Introduzir um contra discurso nesse meio é mexer nas estruturas constituídas.
Na narrativado gestor Márcio, da instituição F3 é possível observar como o
discurso religioso tradicional justifica e objetiva em suas práticas de formação
as dinâmicas de gênero:
Os alunos continuam maioria masculina. Dois períodos do curso da manhã são majoritariamente masculinos. Não encontramos a presença feminina pela manhã porque o curso é basicamente voltado para presbíteros. O currículo noturno e diurno é o mesmo, as exigências são as mesmas e na maioria das vezes repete o conteúdo [grifo meu]. O curso diurno suscita menos discussões porque é para a formação de padres e pronto, e também exige mais horas de estudos, o que dificulta aos leigos e leigas porque tem menos possibilidade de estudar de manhã, a maioria trabalha ou tem outros afazeres.
A Teologia presente nas faculdades que postulam a segregação das
turmas que ocultam as dinâmicas de poder de uma ordem patriarcal e
androcêntrica.A oficialização da Teologia abre o acesso ao saber teológico, até
então quase que exclusivo dos homens clérigos. A Teologia oficializada “fora”
dos seminários vive hoje dois universos concomitantes: o primeiro é o da
formação eclesiástica, que buscam dinâmicas e políticas para manter seu
espaço preservado, e o outro é o da formação que permite aos leigos, entre
eles se encontram as mulheres, ter acesso ao curso de Teologia reconhecido
pelo MEC, ou seja, a oficialização do curso permitiu às mulheres fazer uso de
nova estratégia, a capacitação na área, que lhes possibilite marcar presença
num meio antes vedado a elas. Mas, é possível constatar nas palavras do
gestor da F3 que as instituições criam mecanismos e políticas para afastar as
mulheres e leigos com determinadas políticas internas: “o curso diurno é para
formação de presbíteros”. A narrativa do gestor da F3 apresenta a restrição
como uma simplicidade e naturalidade, mas dentro da perspectiva de Foucault
ele nos remete a códigos normativos e, “uma perpétua articulação do poder
141
com o saber e do saber com o poder” (FOUCAULT, 2013,p. 230) instituídos no
processo de formação, ou seja, que o curso diurno não é para leigos(as). Isso
são práticas institucionais que delimitam aos alunos e alunas (leigos/as) o
horário que podem estudar, bem como retiram a liberdade e a possibilidade de
ação dos(as) mesmos(as).
A fala do gestor da F3 traz as tensões de gênero presentes no processo
de formação em sua instituição, que privilegia os homens e clérigos e os coloca
em posição privilegiada na formação teológica. Na narrativa de nosso
entrevistado, o status de padre e homem confere a eles, vocacionados, certas
exclusividades na área, com posições distintas que facilitam o acesso ao
saber-poder, da mesma forma, que desqualificam leigos e leigos, para as
atividades “mais intensas” da intelectualidade.
Outra questão presente na narrativa do gestor da F3 é quando ele
coloca que “o curso diurno suscita menos discussões porque é para a
formação de padres e pronto”, ou seja, nesse ambiente não há espaço para
questionamentos e discussões sobre as “verdades” do discurso teológico e a
presença feminina seria um perigo às “verdades” dadas, pois algumas delas
questionariam como questionam o lugar dado a elas na hierarquia eclesiástica,
como a restrição ao exercício do ministério, bem como as limitações do próprio
discurso religioso que se concretizou em restrições no campo56. Para “algumas
pesquisadoras e para um certo número de teólogas, o androcentrismo é parte
inerente das religiões (...) para outras, o problema das religiões históricas foi a
sua apropriação pelos homens” (ROSADO, 2001, p. 96) mas ambas apontam
para a exclusão das mulheres.
56Gostaria de ressaltar que no período da Alta Idade Média as mulheres foramculpabilizadas por muitas das catástrofes que aconteciam na região, sendo-lhes imputada a causa, a falta de fé e sexualidade exacerbada das
mesmas, como podemos ver num breve trecho do documento denominado MalleusMaleficarum. “A razão natural é que ela é mais carnal que o homem, sendo justificável, a seus olhos, a maioria das abominações carnais. E deve ser notado que existiu um defeito na formação da primeira mulher, uma vez que ela foi formada de uma costela curva, ou seja, a costela do peito, a qual é arqueada como se fosse em direção contrária a um homem. Quando uma mulher chora, ela obra para iludir o homem. [...] Em conseqüência ela mostra que duvida e tem pouca fé na palavra de Deus. E tudo isso é indicado pela etimologia da palavra: pois feminaprocede de fee minus, uma vez que ela é sempre fraca para manter a preservar a fé. Portanto, uma mulher é por sua natureza mais rápida em hesitar em sua fé, e conseqüentemente mais rápida em abjurar a fé, que é a causa da bruxaria” (KRAMER; SPRENGER, 2010, p. 115).
142
Se foi possível identificar narrativas que apoiam o status quovigente
também foi possível identificar pensamentos críticos no próprio meio contra a
discriminação das mulheres, como na fala do Frei Gilson (50 anos).
O tabu estava muito claro. Era questão de gênero. Misturar seminarista com mulher era um perigo [risos]. Assim, na cabeça dos conservadores. Como se o mundo verdadeiro não existisse. Havia sempre uma prevenção. Ainda há institutos hoje, que, quando fala assim, os leigos; mesmo nos cursos reconhecidos pelo MEC, que falam assim: os leigos não têm muita formação para acompanhar o curso. Porque tem pré-requisitos, mas no fundo é uma desculpa, dentro desses leigos tem mulher, mas não se fala a palavra leiga para não cair na discriminação de gênero, mas embutido nessa palavra leigo está escrito leiga, leia-se leiga.
O frei aponta criticamente a discriminação existente com relação às
mulheres e rememora a extensa tradição de prevenção e medo para com elas.
O sexo feminino, com todas as coisas que lhe são “próprias”, ainda é
considerado perigoso. Frei Gilson retrata a cultura patriarcal e descreve como
ela está impregnada nos espaços de ensino superior, reconhecidos pelo MEC,
do saber teológico. Assim, a segregação entre leigos (entenda-se mulheres
como leigas) e clérigos tende a garantir a reprodução do poder hierárquico e o
androcentrismo na Teologia, que reflete as questões confessionais e
denominacionais. Frei Gaspar retrata as tensões de gênero no ambiente de
formação assinalando que a presença feminina ainda é um tabu. Em frente a
essa cultura androcêntrica, as mulheres que desejam entrar e permanecer
como profissionais da Teologia enfrentam desafios e preconceito e precisam
constantemente buscar estratégias e dinâmicas para o enfrentamento dos
valores normatizados na Teologia.
Essa postura pautada em políticas institucionais reguladas por meio do
discurso religioso não tem sido mais suficiente para desencorajar as mulheres
a entrar na luta pela busca de seu “lugar” no campo profissional da Teologia.
Lourdes (F4), uma jovem teóloga de 36 anos que tem batalhado para
143
conquistar um espaço no campo, faz menção em sua narrativa à necessidade
da desconstrução das imagens projetadas sobre as mulheres no meio:
Tudo na Teologia parece ter o lugar certo, os homens, as mulheres, até mesmo a forma com que as pessoas devem se comportar. É tudo muito quadrado. Sei lá é difícil porque os tempos mudaram, mas às vezes parece que não mudou. As mulheres sempre são estigmatizadas de uma maneira ou de outra. Onde eu trabalho, como não sou pastora, fica mais difícil. Às vezes [gaguejou]nos deixam pouco espaço para atuar como pastoras, não que eu queira, as minhas amigas que enveredaram por esse caminho são sempre alvo de críticas. Isso não quer dizer que eu não sofra críticas. Preferi o espaço acadêmico para trabalhar, mas aqui o fato de eu não ser pastora também pesa e provoca discriminação. Antes eu ficava triste e não falava nada, agora que eu estou determinada a continuar minha carreira acadêmica e consegui uma indicação para trabalhar na área, comecei a pensar com minha cabeça e não mais com a cabeça eclesiástica. Eu sou capaz, antes eu até duvidava um pouco disso de tanto ouvir na graduação o que falavam das mulheres no Novo Testamento, mas depois do mestrado não penso mais nisso. Os estudos na pós-graduação me levaram a ter contato com algumas teólogas feministas e passei a entender melhor toda essa história de que mulher não pode isso, não pode aquilo e estou indo à luta. Consegui trabalhar na área, sou uma das raras mulheres que trabalham lá, mas com ou sem críticas estou mostrando que posso fazer o mesmo que os professores.
A narrativa de Lourdes (F3) ainda remete à força dos estigmas
difundidos sobre as mulheres e ilustra a sutileza da forma como os
mecanismos de desqualificação das mesmas vão sendo construídos na
formação do bacharelado de Teologia na instituição onde estudou. Relata que
o discurso teológico sobre as mulheres prejudicou sua autoestima e gerou
dificuldades para ela crer em seu próprio potencial. Em sua fala, revela que de
certa forma havia internalizado as lógicas de gênero reproduzidas pelo discurso
teológico cristão referentes à assimetria e hierarquia dos sexos. Após a tomada
de consciência dos dispositivos que se inscreviam nas relações de gênero em
sua formaçãoLourdes alega ter despertado para o fato de as mulheres
possuírem capacidade e que a interdição das mesmas na profissionalização da
Teologia era em função de dinâmicas androcêntricas e hierárquicas de poder.
144
Ela superou os mecanismos de gênero que internalizou e conseguiu se
estabelecer como profissional na área afirmando conscientemente: “Eu sou
capaz, antes eu até duvidava um pouco disso [...]. Consegui trabalhar na área,
sou uma das raras mulheres que trabalham lá, mas com ou sem críticas estou
mostrando que posso fazer o mesmo que os professores”.
Isso demonstra que a limitação das mulheres no meio sofre fissuras,
em geral pequenas e pouco disseminadas, mas fissuras, e, quando se leva em
conta o histórico de exclusão das mulheres da Teologia ou seu processo de
invisibilização na área, esses pequenos espaços se transformam em mudanças
significativas e concretas da conquista de um “lugar” antes apenas ocupado por
homens.
Ela também destaca o fato de não pensar mais com a “cabeça
eclesiástica” após ter contato com outro tipo de discurso: o discurso da teologia
feminista. Contatar outros discursos teológicos elaborados e difundidos pelas
feministas provocou em Lourdes uma reavaliação e reconstrução do que havia
interiorizado em seu aprendizado na graduação. Ela demonstra a importância
de um contradiscurso que possibilite resistências e reinterpretações. A
presença da Teologia Feminista nos meios de formação é politicamente
importante e significativa, pois permite levar a questionamentos e revisitar de
forma crítica o discurso teológico tradicional, queimpõe em certa medida uma
dominação masculina que controla e estabelece regras formais de poder e de
saber, que são objetivadas nas faculdades de forma a excluir discursos que se
contraponham ao vigente.
A exclusão das disciplinas que discutem gênero, como Teologia
Feminista, é uma forma de exercício de poder que possibilita o controle do
saber, porém o momento atual de grande acesso à informação e de conquistas
de espaços pelo pensamento feminista, principalmente no meio político e
acadêmico, tem facilitado o acesso do contradiscurso, o que permitiu a Lourdes
a reflexão sobre seu potencial. No processo de capacitação acadêmica,
Lourdes encontrou o poder de reconstrução e de ressignificação do discurso
145
teológico tradicional e refletiu como ele a influenciou de maneira negativa. O
acesso a um “novo” saber possibilitou-lhe a mudança. Segundo a visão
foucaultiana, “não é possível que o poder se exerça sem saber, não é possível
que o saber não engendre poder” (2013, p. 231). Ela soube se conduzir para
novas perspectivas do que é ser mulher na Teologia e ter soberania de suas
ações, e isso envolveu uma relação político-social em seu meio profissional.
Segundo a perspectiva foucaultiana, pode se dizer que o mesmo poder
impresso no discurso teológico tradicional que disciplina também pode ser
aplicado ao discurso da teologia feminista que liberta.
A narrativa de Lourdes destaca uma dupla discriminação: por ser
mulher e não ser pastora. O que remete à existência de hierarquia entre as
mulheres que atuam na área. Lourdes aponta para uma conduta de
segregação no campo segundo a qual as mulheres leigas são mais
discriminadas do que as mulheres pastoras. É um duplo esforço para as leigas,
pois é necessário superar a segregação de gênero e a segregação
eclesiástica. Há normas especificadas dentro do campo profissional, onde não
basta a qualificação na área, sendo necessário o diferencial da formação
eclesiástica para haver maior oportunidade de atuação profissional.
O fato de mulheres pastoras conseguirem com mais facilidade sua
inserção também revela um processo de discriminação, mas também é a
demonstração de que as mulheres conseguiram conquistar um espaço nas
hierarquias eclesiásticas.
É importante destacar que minhas entrevistadas demonstraram
consciência da existência das dinâmicas de poder no meio que reproduzem a
desigualdade de gênero, bem como a influência das hierarquias eclesiásticas
que acabam por estabelecer hierarquização não apenas entre os gêneros, mas
também em seus pares. O que leva algumas mulheres a novas condutas,
outras escolhas e opções, como no caso de Lourdes, de romper com os
padrões estabelecidos (“cabeça eclesiástica”) no meio e ter crença em seu
146
potencial profissional, o que segundo Foucault só é possível quando se
assume uma posição de resistência ao poder instituído.
Lourdes se reconstrói, reconstrói sua trajetória ao interagir com a
realidade no campo profissional da Teologia e suas dinâmicas de poder. Sua
inserção no campo profissional demonstra um avanço nesse espaço de saber e
poder historicamente masculino e representa um foco, mesmo que pontual, de
resistência da assimetria de gênero na Teologia, assim como o fato de as
mulheres conquistarem a existência pública nesses espaços de saber tem um
aspecto político significativo.
Outras questões que permeiam o meio de formação e
profissionalização da Teologia acabam se tornando critérios seletivos, no
entanto considerados aceitáveis socialmente, pois estão em “consonância” com
a dinâmica androcêntrica de nossa sociedade, que reproduz nos seus diversos
espaços a discriminação de gênero. Dentro dos espaços acadêmicos
reverberam os valores culturais presentes na sociedade, como a questão da
sexualidade retratada por Susana, da (F4), uma jovem de 28 anos que narra
uma vivência que teve nas aulas de pós-graduação na universidade em que
estuda:
Eu estou sempre correndo. Moro longe da universidade e até foi por isso que eu atrasei para encontrar você aqui. Demoro quase duas horas para chegar aqui. E essa coisa de entrar em ônibus, sair e entrar em metrô e sempre com a preocupação de que cidade é perigosa, que quanto menos chamar a atenção é melhor, a gente nunca se arruma, procura ser discreta. Enfim, isso me fez lembrar de um dia aqui na pós... depois que você me mandou o e-mail fiquei pensando em que eu podia ajudar se não trabalho ainda. Aceitei mais para ajudar porque eu sei que pesquisa de campo não é fácil. Aí procurei pensar como podia ajudar e tem que ser com minha experiência na formação. Afinal é sobre mulher na Teologia que você quer saber. Foi aí que lembrei de um dia que me marcou muito. Um dia que eu queria me sentir bem bonita [risos], mesmo com medo de andar de ônibus chamando a atenção. Mulheres têm esses dias, não têm? Eu me arrumei. Coloquei uma roupa bem bonita, passei rímel, batom, só não passei uma sombra porque eu não tinha, arrumei o cabelo e fui para a aula. Quando desci do ônibus intacta [grifo meu] foi um alívio, porque a gente tem
147
medo. Cheguei à aula e todo mundo começou a me olhar estranho. Fiquei até sem jeito, me senti mal. Deu vontade de sumir. Eu sou um pouco tímida e não tinha muita liberdade com o grupo, só com um que é muito meu amigo, nós sempre estudamos juntos, mas ele não foi naquele dia. Ele não estava lá. Quando a aula acabou, achei melhor tirar tudo. Fui ao banheiro e tirei tudo. Nem sei se o negócio era porque eu estava daquele jeito bonitona, mas achei melhor tirar tudo. Achei melhor não chamar a atenção. E isso ficou guardado, sabe? Até hoje fico encafifada e eu acho que tem a ver com a ideia que mulher na Teologia não pode chamar a atenção. Foi pior na aula do que no ônibus [risos].
Ao narrar sua experiência, Susana explicita que há preconceitos com a
sexualidade feminina em nossa sociedade e ele se faz presente nos diversos
ambientes sociais, desde o ônibus até os cursos de pós-graduação, ambiente
que deveria ser um espaço “mais aberto” por envolver pesquisadores. Susana
relata sua experiência na universidade e chama a atenção para os
preconceitos ainda presentes, mesmo que mais velados, com uso de olhares
que recriminam, inibem e constrangem. Nessa área de saber, onde o sexo
masculino é considerado a figura idealizada, estar “bonitona” como ela
desejava não foi algo confortável. Os atributos da sexualidade feminina passam
a ser motivo de constrangimento e continuam sendo problema dentro dos
espaços sociais, incluindo os espaços acadêmicos da Teologia.
Os atributos da sexualidade feminina podem ser entendidos como um
mecanismo de resistência segundo o qual o perfil concebido para o meio é o
masculino. Desta forma, as características femininas são tratadas como tabus.
Quando Susana diz “Até hoje fico encafifada e eu acho que tem a ver com a
ideia que mulher na Teologia não pode chamar a atenção”, remete a um
simbolismo da negatividade da sexualidade feminina e seus contornos
corporais, mas, ao mesmo tempo, que, enquanto o corpo e a sexualidade
feminina são mal vistos, há uma garantia de que o modelo masculino
permaneça o ideal.
Desse modo, há um preconceito com a “figura” feminina fora dos
padrões “naturais”. A experiência de Susana recortada por mim está
148
relacionada a uma expectativa do perfil ético-moral que devam ter as mulheres.
Isso pode ser entendido como discriminação de gênero. Expectativa reforçada
na fala José (43 anos):
A Teologia é a porta da religião para sociedade. Ela carrega consigo mais que um saber ela carrega uma proposta do indivíduo perante a sociedade, mas principalmente com Deus. O porta voz da Teologia, o teólogo tem que ser uma pessoa capaz de atuar ativamente na sociedade e na religião. Há uma expectativa de quem deva ser esse porta voz (grifo meu). Creio que as mulheres são um pouco lesadas nesse momento.
Na narrativa de José ele fala sobre criticamente da “expectativa de como
quem ser esse porta voz”e essa expectativa é interpretada por ele como um
fator que prejudica o ingresso das mulheres no meio e assim, pode ser
assinalada como um dos fatores que promoveu o ingresso tardio das mulheres
na Teologia. No Brasil ele se deu por meio de disputas e negociações, em
meados do século XX, motivado pela Teologia da Libertação (que levou à
inserção de mulheres e leigos para melhor atender seus\trabalhos nas
pastorais), movimento feminista (criou pressão sobre o lugar da mulher na
sociedade) e Concílio do Vaticano II (trazia, entre muitas deliberações, a
questão da participação das mulheres). A entrada das mulheres aconteceu e
configurou um novo arranjo e uma forma de subversão frente ao poder
patriarcal e androcêntrico.
Entretanto, a continuidade da permanência e crescimento das
mulheres na Teologia continua esbarrando na cultura androcêntrica e patriarcal
do meio e nas dinâmicas de gênero defendidas por ela, que impregnam as
relações cotidianas da formação na área, bem como a atuação profissional.
Nos depoimentos que recolhi é possível identificar que a experiência de
estar inserida na Teologia tanto no papel de docente como no papel de
estudante exige um esforço redobrado por parte das mulheres (leigas ou
religiosas), mas também por parte dos homens leigos. Enquanto o sexo
149
masculino e clérigo já tem “seu lugar ao sol”, as mulheres e os homens leigos
estão em constante processo de conquista e essa conquista atravessa as
relações que estabelecem com as instituições, com as dinâmicas de ensino
que as mesmas organizam em seus projetos pedagógicos de curso e nas
relações, com professores, com colegas de trabalho e com seus colegas de
formação.
De maneira geral, as narrativas colocam que as dinâmicas envolvidas
nas relações da inserção são mais críticas quando se tratam das mulheres no
campo e sempre regadas por microrrelações de poder e de gênero, de maneira
a garantir que a figura masculina e, principalmente, clerical, permanecem como
centrais. As diversas experiências relatadas, que se encontram dentro de
contextos distintos, das cinco faculdades, em suas práticas e lógicas,
favorecem o sexo masculino.
Mas esse espaço teológico masculino e eclesiástico, com o
reconhecimento do curso, sofre mais um golpe e descontinuidade histórica com
o ingresso de mulheres e leigos e abala a confortável ordem hierárquica
estabelecida na Teologia como sendo um “lugar” só de homens. A Teologia é
levada a repensar-se e abrir novas possibilidades para o campo.
Assim, a participação das mulheres é um foco de resistência aos
códigos normativos de gênero ditados no meio. Dessa forma, a presença
feminina pode ser entendida como ressignificação das dinâmicas de gênero na
lógica androcêntrica da profissionalização da Teologia, que assume a
característica de uma estratégia de enfrentamento, que é assumida pelas
mulheres que perseveram no meio, mesmo com todos os mecanismos de
resistências criados.
O novo status da Teologia gerou algumas mudanças nos conteúdos e
métodos para melhor atender o andamento histórico. Foram abandonadas as
estruturas teológicas sólidas e repensada a proposta dos cursos de forma a
incluir uma formação teológica para as(os) leigas(os). Embora as mudanças
150
tenham ocorrido, não bastaram para mudar o discurso dominante e as
diferentes posições dadas a homens e mulheres na Teologia.
3.5. Elas não aceitam a exclusão e falta de apoio: mulheres construindo
suas trajetórias na Teologia
No item anterior foi possível constatar que nas instituições pesquisadas
os homens permanecem maioria e no processo de capacitação estão à frente
das mulheres, demonstrando que dominam não só a área profissional do
ministério, mas também do meio acadêmico. Os motivos que levam à
manutenção masculina na área vão do discurso hegemônico judaico-cristão,
que concebe o sexo masculino como ideal, até os desdobramentos do mesmo
em políticas tendenciosas nas instituições que visam manter o meio como afeto
aos homens. Essa desigualdade em relação aos sexos na Teologia, presente
em diferentes instituições, demonstra que a Teologia carrega marcas de uma
cultura social-androcêntrica e que a profissão permanece generizada.
Dentro de um contexto no mínimo indiferente às mulheres, sem apoio
institucional, é necessário que elas se articulem em busca de estratégias que
permitam a construção de uma trajetória na Teologia. Uma dessas estratégias
utilizada foi a mudança na configuração do curso de Teologia, que passa ao
status de curso reconhecido e permite pleitear apoio financeiro em órgãos
como o ProUni.
Essa estratégia de apoio financeiro está presente na narrativa de três
de nossas entrevistadas. Mariana (26 anos), da faculdade F2, esposa de pastor
e que fez uso do ProUnipara ingressar na Teologia. Ao relatar suas
motivações, explicita que buscou a Teologia como segunda opção no
ProUnipor conta do fato de sua denominação evangélica não aceitar mulheres
no pastorado e por ter o desejo de fazer história. Isso a influenciou a não
colocar como primeira opção a Teologia no ProUni, porém no decorrer do
processo redirecionou sua formação para a carreira acadêmica na área:
151
A opção que eu coloquei no ProUniera uma das várias opções. Tinha colocado história na PUC e Teologia no Mackenzie e Metodista, mas eu nem sabia se eu ia conseguir ou não. Eu não esperava ser chamada para Teologia. Teologia era uma vontade porque eu era cristã e queria conhecer a fé, a história da Igreja. Ainda no final de meu primeiro ano de Teologia prestei vestibular de novo para história e eu não passei. Foi quando eu assumi mesmo a Teologia e acabei gostando. Vou ser teóloga mesmo. Assumi a profissão. Então eu resolvi seguir carreira acadêmica e continuar minha qualificação. E fazer Teologia para dar aula, dar palestras e escrever. Não foi a intenção do ministério pastoral. É claro que poderia ser uma ferramenta para isto, como é, mas a intenção nunca foi o ministério pastoral. Por questões históricas, a Teologia era para formar padres, no caso da Igreja católica não há ordenação feminina, e as igrejas protestantes não são todas que ordenam mulheres. Existem algumas igrejas que não têm necessidade da Teologia para exercer o ministério pastoral, porque não há ministério pastoral para mulheres. A (F2) tem ordenação para mulheres há 30 anos, o que é muito recente na história. A inserção das mulheres na Teologia ainda é incipiente. Isso pensando na Teologia só para ministério pastoral, mas se você pensa na Teologia como estudo não necessariamente confessional apenas, aí acho que tem uma certa distinção. (Mariana)
Percebe-se uma reflexão no ato de Mariana, que redirecionou a sua
trajetória driblando as dinâmicas e limitações de gênero “inerentes” ao seu
campo de formação. Esse posicionamento de Mariana foi algo construído ao
longo do processo de formação, pois num primeiro momento ela desejava sair
do campo, mas encontrou no próprio processo de formação acadêmica uma
ressignificação do poder de fazer sua própria trajetória. Numa leitura
foucaultiana “trata-se (...) de demarcar as posições e os modos de ação de
cada um, as possibilidades de resistência e de contra-ataque (...)”
(FOUCAULT, 2013, p. 242) e, isso constitui uma posição estratégica de quem
reconhece os limites que essa área lhe impõe e mesmo assim opta por resistir
no meio recriando possibilidades que acabam se afirmando como forma de
resistência política mediante um saber/poder em domínio dos homens. Ela
usufrui de um poder que se desloca e se transforma em capacidade de ação e
152
recondução de sua formação. O que teve início como segunda opção no
ProUniacaba se tornando uma profissão almejada.
O desejo de Mariana de ser uma profissional da área e prosseguir sua
capacitação, como ela mesma coloca: “Vou ser teóloga mesmo. Assumi a
profissão. Então eu resolvi seguir carreira acadêmica e continuar minha
qualificação” é um devir, afinal, depende de um longo processo de formação.
Enquanto no caso dos homens a graduação já os capacita para atuação
profissional, como disse anteriormente, para as mulheres é necessário maior
esforço e anos de dedicação.
A narrativa de Mariana demonstra que, embora os desafios
permaneçam, ela os sobrepõe e vai em busca de seus estudos na área,
encontrando suas próprias possibilidades para prosseguir a capacitação. Ela
iniciou com o ProUnie hoje é bolsista da empresa de fomento CNPq, que já
havia financiado seus estudos no mestrado. Mariana está concluindo seu
doutorado fazendo uso de bolsas de estudos. Sua capacidade de produzir-se
como profissional da área demonstra que “cada um de nós, é no fundo, titular
de um certo poder (...)” (FOUCAULT, 2013, p. 255) e a ação de Mariana
aparece impregnada de poder.
Outra de minhas entrevistadas Lourdes (27 anos)ao rememorar sua
trajetória, entre o período em que decide cursar Teologia e seu ingresso na
faculdade, retrata a estrutura das dinâmicas de gênero e poder não apenas no
seio das faculdades, mas também nas igrejas e famílias. A fala de Lourdes
descreve sua família como conservadora adepta do discurso religioso
tradicional, que foi o primeiro foco de resistência encontrado por ela: “Já houve
resistência de minha família, que achava que Teologia não era coisa para
mulher”. O discurso teológico tradicional se manifesta em uma cultura patriarcal
e androcêntrica, na qual as pessoas aprendem a identificar-se com normas,
modelos e concepções de papéis de gênero, passando a entendê-los como
valores universais, e isso interfere no modo como as famílias se organizam e
entendem o status social de gênero como me declarou Lourdes:
153
Eu queria muito estudar. Vim de família evangélica muito conservadora, minha mãe só fez até o ensino médio depois ficou em casa cuidando dos filhos. Eu não queria isso para mim, mas também não tínhamos muito recurso. Foi aí que apareceu a oportunidade na igreja que frequentávamos de fazer Teologia com o apoio financeiro da comunidade. Era a novidade da Teologia reconhecida. Pediram aos interessados que se inscrevessem e eu fiz a minha inscrição e foi aí que tudo começou. Já houve resistência de minha família, que achava que Teologia não era coisa para mulher, mas não fiquei desestimulada, era uma oportunidade de obter uma bolsa de estudo, porém não fui contemplada porque a prioridade era formar pastores. Não me conformei, fui atrás de vestibular. Tinha certeza que passaria porque sempre fui muito estudiosa e minha mãe falava que não tínhamos como pagar e eu sempre dizendo que daria um jeito. Foi nesse momento que pensei no ProUni. Me inscrevi no programa e, quando fui chamada lá por volta de março, dava saltos de alegria. Deixei a família toda de boca aberta. (Lourdes, 27 anos)
Quando Lourdes narra sobre as suas experiências com a família
conservadora, revela que ela teve influências da “idealização” do papel de
gênero que deveria cumprir socialmente. Porém, na busca de sua formação
acadêmica, ela teve de romper em primeira instância com a concepção
defendida no seu meio familiar de que Teologia “não é coisa de mulher”. Nesse
momento, ela rompe com o poder de um discurso tradicional do que é ser
mulher descontruindo os modelos de gênero que havia internalizado. Para ela
e para sua família, sua decisão foi uma quebra de padrões. Esse esforço
redobrado que Lourdes produziu para conquistar sua formação na Teologia
aparece nas narrativas de nossas entrevistadas de maneira constante.
Entretanto, elas encontram maneiras particulares de driblar as dificuldades e
preconceitos, sejam eles no meio familiar ou acadêmico, mesmo que isso lhes
exija um esforço redobrado.
Lourdes também dribla as dificuldades de acesso ao ensino superior
criando mecanismos para usufruir de benefícios concedidos pelo ProUnipara
ocupar um lugar na formação da Teologia. É uma ação política significativa,
uma conquista e uma ação transgressora. Ela buscou alternativa para sua
154
inclusão na área aproveitando-se das brechas que vão sendo construídas
politicamente. A ação de Lourdes explicita que é possível que “todos aqueles
em que o poder se exerce como abuso, todos aqueles que o reconhecem como
intolerável, podem começar a luta a partir de onde se encontram e a partir de
sua atividade própria.” (FOUCAULT, 2013, p. 141).
O relato de Dalva (50 anos), aluna egressa da faculdade F3, de
confissão católica, é similar ao de Lourdes. Ela relata sua experiência
descrevendo a forma como construiu um caminho em busca de sua formação.
Dalva narra como conquistou bolsa da própria instituição rompendo com uma
tradição de favorecimento apenas para homens clérigos e homens leigos:
O curso que eu fiz tinha dois horários: o da manhã voltado apenas para a formação dos presbíteros e diáconos. Nesse horário não havia mulheres. Eles já entravam sem pagar nada porque faziam parte da formação do quadro da igreja. No meu horário já não tinham clérigos e nem muitas pessoas com bolsa. Eu mesma cursei sem bolsa um ano. Pagava todo mês a mensalidade direitinho. Quando eu descobri que um colega da turma, que era leigo, tinha conseguido entrar na faculdade com bolsa parcial eu fui atrás. Quando falei para minha colega de turma que pleitearia uma bolsa ela logo quis me desanimar dizendo que mulher é difícil ter bolsa. Passei o ano todo pedindo bolsa e era sempre negado, mas no final do ano entrei com uma carta que demonstrava o valor de meu salário e eles meio a contragosto me concederam bolsa de um ano e toda vez que chegava a rematrícula lá ia atrás da renovação quase implorando por ela. Seja lá como for eu consegui três anos de bolsa parcial. (DALVA, 52 anos)
O conteúdo da fala de Dalva demonstra criticamente como as questões
de gênero atravessam o apoio financeiro no universo da formação na Teologia.
Em sua narrativa ela aponta “a discriminação indireta que é em primeiro lugar
definida por uma medida aparentemente neutra que afeta de modo
desproporcional as pessoas de um sexo, na maioria das vezes as mulheres
155
(...)” (LANQUETIN, 2003, p. 141)57. Dalva inicia sua narrativa num primeiro
momento desaprovando a separação das turmas entre clérigos e leigos(as).
Em um segundo momento, censura o privilégio de os homens-clérigos
poderem fazer o curso gratuitamente, mas no decorrer de sua fala também
aponta para o fato de um homem leigo ter conseguido uma bolsa parcial para
cursar a faculdade e relata sua luta pessoal para conseguir o mesmo
benefício.Dalva, embora tenha encontrado resistência, não desistiu de seu
intento, pois entendia que os mesmos direitos concedidos aos homens
deveriam ser estendidos às mulheres. “Essa posição que as mulheres podem
ocupar como atrizes do social e negociadoras está ligada a sua capacidade de
reivindicar e afirmar seu poder (...)” e contribui “(...) para redefinir as relações
de poder entre os gênero epara revelar a necessidade de repensar a
organização da vida cotidiana”(LAUFER, 2003, p. 132) dentro de um espaço
de ensino superior.
Dalva, como um sujeito capaz de produzir mudanças, articulou-se na
busca para transformar a situação, apesar dos desafios e dos preconceitos de
gênero que imperam nesse espaço, que excluem e invisibilizam as mulheres.
Ela se fez visível e marcou sua conquista. A sua iniciativa, de certo modo,
1exerce poder, uma vez que luta para romper com esquemas institucionais
normatizados a favor dos homens. Dalva foi resistente às normas instituídas
que limitavam seus direitos e abriu novas possibilidades. O relato é o
reconhecimento dos pequenos avanços nas dinâmicas de gênero no universo
de formação da Teologia e retrata as tensões entre aqueles que desejam
manter a ordem estabelecida e de quem luta para modificá-la.
Na voz de meu entrevistado Marcos, gestor da instituição F3, uma
instituição católica, reitera-se que as políticas institucionais de apoio à
formação são pautadas em dinâmicas e hierarquização de gênero e priorizam a
formação do quadro (padres e bispos):
57 LANQUETIN, Marie Thèrése. A igualdade profissional: o direito sobre o crivo dos fatos. IN: MARUANI, Margareth; HIRATA, Helena. As novas fronteiras da desigualdade ‐ homens e mulheres no mercado de trabalho. São Paulo: editora Senac, 2003.
156
A clericalização atual que privilegia não apenas o papel masculino, mas o agente eclesiástico, que no catolicismo é preponderantemente masculino. Então, a mulher não tem muito o que fazer nesse ambiente [grifo meu]. A clericalização do curso corresponde a essa masculinização da Teologia [...] O investimento eclesiástico acaba sendo para a formação de seus quadros. Os seus quadros principais são masculinos: padres e bispos. As agências eclesiásticas investem mais em seus membros e as mulheres ficam prejudicadas. As mulheres, quando procuram a Teologia, elas visam se instrumentalizar para trabalhos nas comunidades, atendimentos assistências não têm a preocupação com uma formação específica para atuar na área. Muitas inclusive já atuam profissionalmente.
Embora no relato do gestor da instituição F3 o narrador discorra
criticamente sobre a falta de incentivo financeiro às mulheres, é fato que a
discriminação de gênero existe, sendo explicitada nas políticas das faculdades.
Nota-se que no processo de formação é priorizada a formação de homens e
clérigos, ou seja, o poder clerical e androcêntrico impõe limites aos homens
leigos e mulheres. Assim, os homens-clérigos nessa instituição são favorecidos
tanto pelos aspectos políticos como econômicos. Isso não significa que as
poucas mulheres que se encontram matriculadas no curso noturno não criem
resistências no interior dessas instituições, que lhes determinam papel
secundário ou mesmo as invisibiliza.
Luciana (44 anos) diz que não basta a inserção das mulheres na
Teologia, é necessário que se tenha consciência das dinâmicas institucionais e
das estruturas de gênero que circulam nesse espaço, para que essas
dinâmicas não se reproduzam sem resistência:
Nós mulheres temos que ter direitos iguais. O que tá faltando é conscientizar mais sobre as desigualdades que existem. Levar isso a discussão nas faculdades para acabar com esse preconceito e favorecimento. A mulher ter consciência dessa coisa de gênero faz toda a diferença e só assim conseguiremos mudanças de verdade. Não podemos esperar que as coisas mudem, temos que fazer com que elas mudem. (Luciana, 44 anos)
157
A aluna egressa da F3 fala de maneira consciente das discriminações
e falta de políticas instituídas nas faculdades que abordam as desigualdades
de gênero, mas pontua a necessidade de as mulheres se conscientizarem das
dinâmicas de gênero para que possam criar resistências às práticas presentes
nesses ambientes. Essa narrativa evidencia que ainda há certa inconsciência
das construções sociais de gênero nos “bancos das faculdades”, o que
corrobora a reprodução das dinâmicas de desigualdade no meio. A proposta de
Luciana é sensibilizar para a questão como forma de modificar a estrutura de
gênero na Teologia.
As narrativas descritas apontam para certa modificação no campo.
Novos espaços e configurações foram conquistados pelas mulheres por meio
das manobras que elas exerceram fazendo uso de poder. Isso demonstra que
elas não se curvam às imposições dos discursos institucionais e
androcêntricos, e sim buscam criar novas possibilidades para o sexo feminino
no interior das faculdades, bem como no campo profissional da Teologia.
3.6. Divisão sexual do trabalho: os homens têm trabalhos, as mulheres
executam tarefas?
A clericalização atual que privilegia não apenas o papel masculino, mas o agente eclesiástico, que no catolicismo é preponderantemente masculino. Então, a mulher não tem muito o que fazer nesse ambiente [grifo meu]. A clericalização do curso corresponde a essa masculinização da Teologia [...]
O conteúdo da narrativa de Mario (F3) revela como o campo
profissional é permeado pela discriminação de gênero, mas também justifica a
divisão sexual do trabalho na Teologia, bem como o não reconhecimento das
atividades femininas de atendimento a comunidade como uma forma de
atividade profissional, pois elas não executam o trabalho idealizado para a
área. Entendendo que o atendimento que prestam nas comunidades não é
atuar profissionalmente e está mais relacionado a trabalho voluntário, ou seja,
158
associado a ideia de “trabalho feminino”, não remunerado. Sendo entendido
como extensão da vida familiar “próprio” da responsabilidade das mulheres.
Essas responsabilidades acompanhadas pelas características como paciência, delicadeza e passividade, delineiam os papéis sociais atribuídos às mulheres como um aspecto natural do ser feminino. Isso equivale a dizer que as diferentes funções ocupadas por homens e mulheres em nossa sociedade se justificam em termos biológicos, pela suposta capacidade natural que um ou outro tem para realizar determinadas tarefas. (BUSCHINI, 1994,p. 173),
Dentro da perspectiva de gênero é possívelquestionar esses sistemas
de pensamento, e apontar para o processo social de construção das atividades
femininas e masculinas na profissionalização da Teologia. Scott (1995) entende
que as características de homens e mulheres não são de ordem natural ou
biológica, são construções sociais, e retrata as funções dos mesmos em nossa
sociedade, por meio de um sistema de aprendizado, que se refere a
diferenteshábitos, costumes e formas de pensar atribuídos a cada um dos
sexos. Assim, a ideia de que as mulheres têm de exercer sem remuneração as
atividades nas comunidades, enquanto os homens exercem trabalhosé um
processo de aprendizado social.
Segundo Hirata (2004), as mulheres são menos remuneradas e a
diferença salarial entre homens e mulheres é um fato no mundo inteiro, mas a
questão principal é que as competências em relação a cuidados e “relação de
serviço” não são avaliadas como tal, mas entendidas como atributos naturais
das mulheres, então são ignoradas, ficando sem reconhecimento e
remuneração. Desta forma, quando as mulheres buscam o mercado de
trabalho da Teologia nas comunidades, isso não apresenta o caráter
profissional. Além da naturalização de ser a Teologia trabalho para homens,
existe a desqualificação profissional de algumas funções que as mulheres têm
exercido no meio. Ou seja, segundo Hirata (2007) existe a separação entre os
trabalhos femininos e masculinos em que o trabalho do homem “vale” mais que
o da mulher.
159
As atividades profissionais podem ser consideradas femininas ou
masculinas em diferentes períodos da história e isso evoca a questão da
dimensão simbólica na formação das carreiras. A profissionalização da
Teologia se encontra em um momento de “virada” histórica, com o
reconhecimento do curso. De qualquer forma, é importante ressaltar que as
relações sexuais de trabalho se entrelaçam a outros determinantes sociais,
como o contexto de valorização de certa atividade no interior da sociedade.
Além disso, segundo Hirata e Kergoat (2007) os processos de precarização
das atividades laborais podem atingir homens e mulheres. Porém, em minha
pesquisa foi possível verificar que historicamente na Teologia as mulheres são
as mais atingidas.
As recentes mudanças proporcionaram o acesso das mulheres ao
diploma de teólogas, que de certa forma não as coloca diretamente
empregadas na área e nem as protege do desemprego, mas traz um progresso
indiscutível que pede uma reflexão sobre a profissionalização do campo. Ao
serem entrevistadas sobre o trabalho profissional na Teologia, as mulheres
apontaram para características negativas com relação às perspectivas de
inserção na área, desde piores condições de trabalho como também a
resistência à presença feminina no meio. O mesmo não ocorreu com a maioria
de meus entrevistados, que prontamente responderam estar inseridos ou terem
como certa a inserção no campo profissional. Mas um dado significativo foi que
todas as mulheres apresentaram queixas sobre a negação ou restrição do
trabalho na área ministerial para o sexo feminino, apontando que se trata ainda
como atividade reconhecida para o sexo masculino. Reafirmando que:
“A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais entre os sexos; mais do que isso, é um fator prioritário para a sobrevivência da relação social entre os sexos. Essa forma é modulada histórica e socialmente. Tem como características a designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com maior valor social adicionado (políticos, religiosos (grifo meu), militares etc.). (…) essa forma particular de divisão social do trabalho tem dois princípios organizadores: o
160
princípio de separação (há trabalhos de homens e trabalhos de mulheres) e o princípio hierárquico (um trabalho de homem “vale” mais que um trabalho de mulher).” (HIRATA & KERGOAT, 2008, p. 266).
É, portanto, fato que a Teologia sofre modificações e que as mesmas
permitem estratégias e margens de manobra às mulheres que desejam entrar
nesse meio profissional, mas a tardia profissionalização atesta e reproduz as
relações de um campo profissional sob o peso hegemônico da Teologia
“masculina”, que difunde a divisão sexual do trabalho, apoiada em um discurso
religioso tradicional e, como afirma Scott (1995, p. 90), “o discurso é um
instrumento de orientação do mundo”, assim, no “mundo” da Teologia ele
define, estabelece e determina o que cabe ao sexo masculino e feminino no
campo profissional da Teologia, com trabalhos distintos e determinado pelas
“qualidades” de cada sexo. A narrativa da teóloga Raquel deixa claro como são
definidos os espaços, a partir da abordagem de um campo hegemônico e
androcêntrico:
Nunca busquei atuar como teóloga. Eu acho que o campo é muito restrito, por isso fui para Ciências da Religião. As minhas colegas, irmãs, que trabalham diretamente com as comunidades, têm muita dificuldade na inserção e na atuação como teólogas nas igrejas e paróquias. Não há remuneração. Antes as irmãs iam para as paróquias, havia uma remuneração, mas hoje não há mais. As dioceses cortaram isso. Para você trabalhar, as congregações têm de te sustentar. Os padres têm remuneração. Os padres têm o seu salário, seja religioso ou diocesano, mas para nós religiosas não há. Para autossustentação não há como sobreviver de Teologia. O campo é muito restrito e mais ocupado por homens. Alguns colegas meus que se formaram comigo estão atuando nas comunidades. A aceitação das mulheres teólogas não é a mesma coisa. A aceitação das pessoas é muito maior dos seminaristas do que das religiosas. [...] Muitos amigos meus me incentivam a fazer outra graduação. (Raquel, 44 anos, mestranda)
Na narrativa de Raquel é possível identificar a discriminação
profissional no âmbito religioso que se estende à formação no campo
profissional da Teologia, quando fala sobre as possibilidades profissionais para
mulheres e homens. A preferência pelo sexo masculino como profissional
salariado está explicitada na narrativa acima e essa discriminação tem sua
161
base nas questões simbólicas disseminadas pelo imaginário do discurso
religioso tradicional, que se consolidou nas práticas do ministério, e não está
vinculada com a capacidade dos(as) profissionais. Embora o discurso vigente
nas entrevistas apontasse como critério de contratação justamente a
capacidade e formação na área, na prática a maioria das contratações se dão
por normas instituídas pelas igrejas. Se, por um lado, os trabalhos “delegados”
às mulheres são inferiorizados e muitas vezes não remunerados, por outro
lado, o trabalho dos homens é valorizado, remunerado e incentivado pelas
instituições.
Os dados coletados em entrevistas reforçam a complexidade que
envolve o que é ser teólogo e teóloga pós-regulamentação, pois não existe
uma fronteira definida entre o que é ser bacharel e bacharela com ser religioso
e religiosa. Segundo a narrativa abaixo, a estrutura religiosa por meio da
divisão sexual de trabalho prevê: homens no ministério e mulheres na
educação religiosa, e trabalhos voluntários promovem a entrada seletiva das
mulheres nesse espaço profissional apropriado cultural e socialmente pelo
sexo masculino.
Eu sei que para as mulheres conseguirem fazer parte de várias profissões foi muito difícil, mas na Teologia chega a ser cruel. Quem vai ser padre tem essa história de vocação e a vida fica voltada para estudar, e além do mais já está com o emprego garantido e nem tem que pensar como vai ganhar dinheiro e pagar as contas, é só entrar na faculdade e pronto. Com os pastores, se não é idêntico, é muito parecido. Afinal, eles entram na faculdade tranquilos porque o emprego na igreja é garantido. Faz parte do trabalho deles se aprimorar, se aprimorar e se aprimorar para melhor atender a comunidade e as igrejas. Ninguém quer um representante burro [risos]. Para as mulheres, aí a coisa é bem diferente. Eu, por exemplo, na minha religião, não posso fazer tudo o que eu quero. Tem coisas que são determinadas independentes da minha vontade. Quando fazemos Teologia, o que eles indicam para nós é trabalho voluntário, secretaria em projetos e sem ganhar nada. O trabalho nas comunidades é importante, mas sem ganhar é difícil. A dificuldade começa aí, mas não para não... Comecei a estudar com muita dificuldade para poder sair do voluntariado, porque para conseguir alguma coisa a gente, as
162
mulheres, nós temos que nos esforçar mais, estudar mais e contar com algum canal de contato. (Inês)
A narrativa de Inês deixa claro como os sistemas simbólicos religiosos
incidem sobre as dimensões do campo profissional e a forma como se
estabelecem critérios quanto aos postos e condições de trabalhos
considerados mais “adequados” a cada gênero. Trabalho e pertença religiosa
se misturam e são utilizados como forma de controle do campo profissional
“dentro e fora” dos muros das igrejas.
A experiência de Inês aponta para as modalidades de trabalho
voluntário, não assalariado, exercido pelas mulheres e o trabalho remunerado
exercido pelos homens. Logo, a atividade feminina é desvalorizada como
modalidade de trabalho e se relaciona a tarefas mais tradicionais de
cuidadoras. “A divisão, que é socialmente construída, segrega atividades entre
homens e mulheres e atribui um menor valor ao trabalho realizado pelas
mulheres” (SANTOS, 2010, p. 223). O status de voluntária acaba sendo
entendido como uma extensão das atividades de cuidadoras entendidas
culturalmente como trabalho feminino (SANTOS, 2010). No entanto, Inês
assinala que as mulheres deveriam seguir em sentido contrário, buscando
qualificação, para fugir da condição de trabalho voluntário. O caminho da
qualificação é apresentado na narrativa como solução, mesmo que parcial,
para sair dos trabalhos não remunerados. Esta forma de atuação das mulheres
na Teologia é um processo que reforça o “lugar” de reprodução para as
mesmas, negando e invisibilizando sua atuação profissional, e muitos trabalhos
são colocados como “naturalmente femininos” apenas para não serem
devidamente remunerados, como no caso da Teologia.
Na narrativa de Inês, a destinação das mulheres formadas é a esfera
do trabalho voluntário e reprodutivo, enquanto os homens são destinados ao
trabalho produtivo e remunerado, ou seja, há uma divisão sexual do trabalho.
Como nos reforça a fala de Isaura e Pedro:
163
Eu me formei para me instrumentalizar para os trabalhos voluntários. Não tinha expectativa alguma de sustento com a profissão. Sei que isso seria impossível. As mulheres na Teologia exercem tarefas que são muito similares a uma extensão das atividades de mãe. Há um aproveitamento do que eles chamam de dom feminino para as atividades que as mulheres devem exercer. (Isaura)
Os trabalhos que homens e mulheres realizam, todos são bons e necessários. Cada um tem uma função. No Novo Testamento, Maria não está alçada acima do domínio dos homens, então cabe aos homens representar Deus, como sempre aconteceu. No culto de Maria, a mulher representa a divindade materna que evoluiu, por isso as mulheres seguem sendo representantes de Maria e têm como parte de sua evolução exercer esse dom maternal. Por isso são tão importantes nos trabalhos das comunidades, onde podem cuidar e desenvolver seu dom. (Pedro)
A força do discurso religioso que se concretiza nas práticas está
presente na fala de Pedro e Isaura. Pedro reproduz o discurso dominante do
tipo “ideal” de trabalho para homens e mulheres com base nas “qualidades”
femininas e masculinas transformadas em qualificações profissionais e ao
mesmo tempo mantém a generização do campo profissional (HIRATA, 1995).
Já Isaura fala criticamente das “tarefas” dadas às mulheres na Teologia, bem
como da falta de expectativa do retorno financeiro.
Essa conduta segue a postura da profissionalização também
encontrada em outras áreas, nas quais as habilidades adquiridas pelas
mulheres em seu processo de socialização, que segundo Carvalho (2008) são
fartamente utilizadas no processo produtivo, são intencionalmente ignoradas
como componentes da qualificação de seus empregos, não constituindo,
portanto, nenhum reconhecimento salarial ou de status social para as
trabalhadoras. Foi possível constatar entre os homens e mulheres com a
mesma formação atuando no campo profissional da Teologia a existência de
um processo de inferiorização, quase sempre das mulheres, que, mesmo
apresentando a mesma formação dos homens, são consideradas menos
164
qualificadas, circunstância que só pode ser elucidada pela representação social
do feminino e pelas relações sociais de gênero como um todo e não pela
capacidade em si, e não apenas pelas características da tarefa (CARVALHO,
2008). Situação similar se encontra ilustrada na fala de nossa entrevistada:
Como eu estou interdisciplinarmente com religião e literatura, os teólogos mais ortodoxos acham que o que eu estudo não é Teologia porque não é um texto bíblico em si. Em contrapartida, se eu estou do outro lado da Literatura, alguns acham que religião não tem nada a ver. Ainda tem nichos literários que querem fazer a distinção. Então não há muito espaço para uma perspectiva religiosa dentro da literatura. Existe uma linha teológica que dialoga, mas não é geral. Aí quando você fala que é teóloga soa como algo exótico. Você vai ser freira? Vai ser pastora? Coisas do gênero. Tanto que eu prestei um concurso no SESC de São Paulo, quando eu terminei o curso, e tinham mais de 100 mil inscritos para 300 vagas. Eu passei na prova. Quando eu fui fazer a entrevista, eu era a única mulher e a única teóloga, não tinha nenhum outro currículo de teólogo entre os outros 300 candidatos aprovados. Eu percebi quando eu fui fazer a entrevista, na qual eu fui reprovada, que existe um pouco de medo porque pensam que vai misturar religião. Fazer proselitismo, sabe? Para as mulheres é mais complicado porque fora tem preconceito com a Teologia e dentro tem preconceito com as mulheres, que, se forem para as igrejas, fica sempre sob o comando de um homem e, muitas vezes, com qualificação superior a dele, mas mesmo assim recebendo muito menos e na vida acadêmica não é muito diferente. Nem pensar em cargos de direção ou qualquer cargo além de professora. Não dá para esquecer que quem manda nas faculdades de Teologia é sempre uma igreja. Tanto é que se você quiser estudar Teologia em uma universidade pública, não tem. Você tem que fazer em uma universidade confessional. (Luana, 26 anos)
Luana 26 anos faz uma análise crítica das condições que são impostas
à maioria das mulheres que buscam atuar profissionalmente na sociedade em
geral em razão das questões culturais construídas do “lugar” ou do “não lugar”
que as mulheres são levadas a ocupar no campo profissional, mas também
aborda a restrição do campo profissional das pessoas formadas em Teologia
fora dos “muros” da religião. No entanto, traz a problemática da falta de espaço
para as mulheres no campo profissional da Teologia, dentro dos “muros” da
165
religião, ou seja, há restrição para todos(as) fora da religião e para as mulheres
há mais reserva ainda dentro da religião, assim ela se torna “uma sem lugar”,
ou melhor, sem grandes perspectivas de atuar como teóloga. Em segundo
lugar, traz à tona a questão salarial, porque as mulheres não têm remuneração
igual à dos homens mesmo quando sua qualificação seja maior. Então, fala
sobre a subordinação das mulheres teólogas aos homens quando no meio
profissional da Teologia, da restrição profissional para teólogas em cargos de
poder nas faculdades de Teologia e, por fim, sobre o fato de a Teologia ter por
característica a confissão, demonstrando que “quem manda nas faculdades é
sempre uma igreja”.
No relato de Marcelo, um jovem pastor de 26 anos e casado, é possível
identificar a fala de Luana, segundo a qual quem de certa forma “manda” no
campo profissional são as igrejas e elas, por meio de sua hierarquia, criam
dificuldades para as iniciativas de apoio à mudança do quadro atual, no qual as
mulheres só podem ocupar posições subordinadas, não assalariadas, como
voluntárias e de preferência fora do ministério:
Eu sou pastor. Durante muitos anos fui pastor da Assembleia de Deus, mas eles eram muito radicais. Isso me levou a mudar de denominação. Aliás, fundei uma igreja evangélica com alguns dissidentes que queriam as coisas diferentes. Alugamos um lugar, fizemos um conselho e abrimos nossa igreja. Minha esposa ajudou em todo o processo. Ela trabalhou desde a reforma até a implantação dos projetos. Quando fiz Teologia, havia uma disciplina, Teologia e cidadania, e lá aprendi muitas coisas que busquei pôr em prática aqui na comunidade e minha esposa me ajudou. Ela depois foi estudar Teologia também para ficar mais instrumentalizada. Após três anos que a Igreja funcionava, ela começou a me ajudar no culto dando assistência e assumiu algumas partes do culto. Um dia ela me falou: Por que eu não assumo a função de pastora de vez? Na hora fiquei um pouco surpreso, afinal nunca imaginei isso antes, mas, de tanto ela falar que não era justo ela fazer tudo que outros pastores faziam, mas, mesmo assim, não ser considerada como tal, eu resolvi levar o caso dela ao conselho. Ela tinha razão. Éramos oito no conselho e eu cheguei com essa pauta, mas todos foram contra. Argumentei de várias formas. Apresentei os trabalhos que ela já exercia, mas de nada adiantou. Aí ela falou para mim que não faria mais o mesmo trabalho que os homens sem ganhar nada e sem poder
166
participar como pastora e eu estou até hoje lutando para conseguir que ela seja aceita como pastora.
A narrativa de Marcelo aponta para os sinais de mudança no campo e
demonstra que o peso de um pensamento hegemônico que defende a
divisão sexual de trabalho na Teologia está sofrendo mudanças e contando
com o apoio de alguns homens do meio; por outro lado, as mulheres
representadas pela “esposa do pastor” não aceitam sem resistência o
“lugar” concedido a elas como profissional da Teologia. As mulheres não se
deixam mais envolver por padrões institucionais que ditem a elas o tipo de
“tarefas” que devem assumir e desejam se profissionalizar no meio,
inclusive algumas estão revendo as atividades que exerciam de forma
voluntária. Considerando que a divisão sexual do trabalho na Teologia não
está insensível às mudanças sociais e culturais, pelas quais a Teologia pós-
regulamentação passou, entre outros fatores sociais mais amplos, é
possível observar que a trajetória das relações sociais entre os sexos e a
organização das suas práticas no campo profissional da área não têm se
mostrado rígidas e imutáveis, e sim têm apresentado novos
comportamentos que têm pressionado a transformação da área. O fato de
os homens ainda serem em maioria associados ao trabalho remunerado e
as mulheres ao não remunerado não significa necessariamente que estejam
confinados a essas situações sem que possam transitar e, ao contrário, eles
podem variar de acordo com os espaço de atuação profissional (KERGOAT,
2003, p. 56).
Utilizando como base os pontos levantados por Luana e Marcelo, pode-
se dizer que a atuação do sexo feminino e masculino no campo profissional
apresenta condições desiguais, o que dificulta que as mulheres alcancem o
mesmo status profissional dos homens, uma vez que a divisão sexual do
trabalho na Teologia é perpassada pelo imaginário do discurso religioso
tradicional, materializado em políticas e práticas no processo de contratação na
167
área. A manutenção dos homens em posições privilegiadas de poder e piso
salarial afasta as mulheres do reconhecimento de sua capacidade profissional
e contribui para não dar visibilidade no campo de trabalho para o sexo
feminino. A presença das mulheres em atividades não remuneradas e os
homens em atividades remuneradas vincula-se aos determinantes de cunho
religioso, que ainda impregnam a cultura da Teologia no Brasil. “As mulheres
sempre trabalharam. Elas nem sempre exerceram “profissões’”, (PERROT,
2005, p. 251), entre elas, a de teóloga. Como afirmou Dalva (52 anos) em sua
entrevista:
As mulheres sempre trabalharam na teologia, mas quem sempreaparece? Os homens? Elas ficam atrás das cortinas, anônimas. As mulheres anônimas de Paulo.
CONCLUSÃO
O início desta pesquisa se deu em virtude de minha inquietação sobre
o campo profissional para mulheres teólogas. Como disse na Introdução, fiquei
instigada a verificar como a religião, mesmo depois da regulamentação da
Teologia, ainda é um fator determinante na restrição do campo profissional
para mulheres teólogas.
Foi essa interrogação que me levou a campo para investigar os
bacharéis e bacharelas em Teologia e, antes deles, os dirigentes ou os
participantes do processo de regulamentação das instituições eleitas. Minha
interrogação defrontou-se com a questão de gênero, divisão sexual de trabalho
e relações de poder. Fiz uma revisão bibliográfica que pudesse me
instrumentalizar sobre as categorias eleitas e uma pesquisa histórica sobre a
implantação do ensino superior no Brasil para melhor localizar a
regulamentação da disciplina de Teologia.
Ao pesquisar a instalação das primeiras escolas no país, pude
constatar que a questão de gênero sempre acompanhou esse percurso com
uma clara divisão do que homens e mulheres deveriam aprender. No ensino
168
superior, o procedimento não foi diferente: a subordinação de gênero persistiu
e construiu uma assimetria do que era o campo de trabalho masculino e do que
era o campo de trabalho feminino, além de estabelecer critérios que definiam
os tipos de qualificações para cada gênero.
Ao abordar gênero, enfoquei as mulheres, mas, como este tema é
relacional, também abordei o papel dos homens. O gênero é uma categoria
importante para entender as relações de poder na atuação profissional e
sempre foi determinante nas políticas educacionais de nosso país, que
consubstanciaram várias modalidades de subordinação profissional das
mulheres. Mas, mesmo assim, proporcionaram a elas uma estruturação das
novas relações entre vida pública e privada, permitindo que as políticas fossem
abaladas pelas questões de gênero.
A pesquisa aponta para os conflitos dentro desse processo, no qual a
Teologia se encontra inserida, bem como para a discriminação de gênero, as
relações de poder e divisão sexual de trabalho, amparada por norma e
tradições e baseadas no discurso teológico da formação profissional.
A Teologia é uma articulação entre fé e razão (ANDRADE, 2010), e
esta definição levou à discussão da questão de sua cientificidade. Inúmeras
polêmicas foram levantadas sobre sua legitimidade como ciência, mas Tomás
de Aquino, em sua obra magna, Suma Teológica, com base em Aristóteles,
estabeleceu seu status epistemológico e metodológico (PASSOS, 2011, p. 62)
e, desse modo, a Teologia adquiriu o caráter científico.
A Teologia, uma vez concebida como ciência, trazia em seu bojo
preconceitos negativos tanto da religião como da ciência ao se referir ao sexo
feminino. Se a Teologia clássica trabalhava com a premissa da epistemologia
do sagrado, ou seja, era o esforço humano e limitado que buscava
compreender o que foi historicamente revelado, incluindo a construção
simbólica do feminino, ao buscar novos caminhos, no caso, o científico, ela
abria as “portas” para uma nova releitura de si, por meio do método científico,
que pressupõe transformações.
169
A matéria da profissionalização da disciplina de Teologia, no decorrer
da história, não interessava às igrejas, por uma questão religiosa, mas também
não descartava a questão econômica, pois a ênfase no caráter vocacional
permitia ter em seu meio um profissional não assalariado, com os homens
exercendo a função ministerial alicerçados na ideia de carisma.
Assim, as primeiras faculdades livres de teologia surgem envoltas em
uma teia complexa que envolve a religião e a formação profissional. Esse
processo tem continuidade nas primeiras faculdades livres de teologia no Brasil
e permanecem quando surgem as faculdades autorizadas pelo MEC após o
ano de 1999, que nascem por meio de uma igreja (seminários maiores) e
mantêm toda a estrutura, organização e hierarquia de sua denominação nos
cargos e projeto pedagógico do curso.
A tradição teológica trouxe inicialmente pouco espaço e liberdade para
a mulher, que ficou subjugada ao homem. A violência simbólica imposta à
mulher, negando sua condição de sujeito proativo, violência esta amparada e
justificada pelos textos sagrados, que configurou a assimetria das relações
sociais de sexo na sociedade ocidental, persiste no início da profissionalização
da teologia no Brasil.
Assim, a formação profissional da Teologia, perpassada pela tradição
religiosa, tem mantido a subordinação das mulheres e a discriminação de
gênero, favorecendo os homens com o “direito” natural de serem profissionais
da área.
Averiguei que isso não ocorria com o mesmo grau de intensidade nas
diferentes instituições. Algumas apresentaram um discurso mais radical,
segundo o qual a discriminação de gênero e a divisão sexual de trabalho são
explícitas, “sem” possibilidades de mudança, ao passo que em outras de
discurso mais moderado havia assimetria de gênero, porém as mulheres,
embora em franca desvantagem profissional, têm alguma possibilidade de
exercer a profissão, inclusive o ministério.
170
Outro fator a ser considerado é a naturalidade com que as faculdades
defendiam o “lugar” das mulheres na Teologia a partir do discurso teológico.
Esta postura deixa claro que não há nenhum interesse em implementação de
políticas que visem trabalhar a questão de gênero nas instituições, seja no
âmbito da gestão, seja na implantação de componentes curriculares do curso
de Teologia. Não é interessante discutir a questão de gênero já que ela está
dada e há muito pela religião.
A única instituição que trabalha laivos da questão de gênero é de outra
confessionalidade: afro-brasileira. Nessa instituição ocorrem ações isoladas,
como palestrae curso de extensão, com realização de forma concomitante a
um módulo da pós-graduação lato sensu, que trabalha gênero. Porém, ao
analisar os componentes curriculares da graduação, observei que não se
encontra incorporado ao curso uma disciplina de gênero, ou seja, as ações se
dão, mas não são institucionalizadas no bacharelado.
A presença das mulheres nas faculdades de Teologia não lhes tirou o
lugar bafejado pela discriminação de gênero. Esta discriminação se faz
presente nas políticas das faculdades, como no caso do financiamento à
formação dos homens em detrimento do financiamento para a formação das
mulheres.
A partir das declarações de nossos(as) entrevistados(as), constatamos
que a minoria das mulheres de minha amostra não se encontram trabalhando
como profissionais da Teologia. Elas, ao se formarem, têm de lutar mais por
um lugar e nesse processo buscam maior qualificação para aumentar suas
chances no campo, sendo que as teólogas que prosseguiram seus estudos
stricto sensu o fizeram em áreas afins, como ciências da religião, e não na
própria área.
Estão inseridas no campo profissional apenas as mulheres que
conseguiram inserção no campo profissional no ensino superior ou em outras
áreas. No entanto, os homens conseguem atuar como profissionais da
Teologia após concluir o curso de graduação, em sua maioria como pastores,
171
diáconos, presbíteros, ao passo que sua formação stricto sensu é uma
complementação de sua formação para adentrar no campo acadêmico, uma
segunda profissão.
Volto à minha questão inicial: como a religião, mesmo depois da
regulamentação da Teologia, ainda é um fator determinante na restrição do
campo profissional para mulheres teólogas?
Os dados coletados apontam que a religião, por meio de seu discurso
religioso-teológico, que preconiza o saber-poder nas mãos do gênero
masculino, é fator determinante para a restrição do campo profissional para
mulheres após o reconhecimento da disciplina.
Neste momento, retomo minha experiência profissional no CNE,
quando era a única mulher em uma mesa de discussão. Ao pesquisar as
faculdades elegidas, constatei que a viabilidade de minha presença no CNE se
deu por eu ser oriunda de uma faculdade de Teologia de confessionalidade
afro-brasileira, onde as restrições às mulheres se dão, mas não de maneira
radical.
Tal fato que me levou a novas interrogações: a Teologia afro-brasileira
foi passível de promover algum tipo de alteração no campo, mesmo que de
forma pontual, como no caso do CNE? O reconhecimento da disciplina de
Teologia foi capaz de abrir para discussão a problemática da discriminação de
gênero e divisão sexual de trabalho dentro dessa área e levar a políticas que
diminuam as assimetrias?
A análise aponta para esta direção, mas, para que os estudos sejam
mais conclusivos, é necessário ampliar as instituições estudadas para que se
possa analisar se este quadro com relação às mulheres permanece.
172
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Apêndice I Roteiro de entrevistas aplicado aos dirigentes das instituições eleitas O roteiro de entrevistas será dividido em quatro partes:
1- O processo de regulamentação da Teologia no âmbito nacional. 2- O processo de regulamentação da IES, entrando na especificidade de
cada instituição para seu credenciamento. 3- Perfil do egresso 4- Campo profissional
Entrevista: 1- Participou das discussões para o processo de reconhecimento da
disciplina de Teologia no Brasil? Em que ano? 2- Quais as instituições que participaram desta discussão?
189
3- De quantas pessoas era composto o grupo envolvido no processo? Pode citar o nome dos integrantes do grupo?
4- Na sua visão, quais os pontos que merecem destaque no processo de regulamentação?
5- Em que momento a sua instituição pediu o credenciamento? Já existia o curso, na qualidade de curso livre? Um breve relato da instituição desde sua origem como instituição livre até sua regulamentação.
6- O tempo médio para o credenciamento? 7- Quantas pessoas participaram do processo de credenciamento em sua
instituição? Quais os nomes dos participantes? 8- A procura pelo curso aumentou ou diminuiu pós-regulamentação? 9- Qual o perfil de quem procurava a Teologia antes da regulamentação? 10- Qual é o perfil de quem passou a procurar a Teologia pós-
regulamentação? (interesse na profissão, confessionalidade, classe social, raça, gênero, idade)
11- Qual o perfil das mulheres que ingressam no curso (por exemplo: esposa de pastor, ministros, religiosas com ou sem formação profissional)?
12- Os alunos seguem dentro da área de formação?Qual o perfil de quem prossegue?
13- Vocês concedem bolsas? Dentro da concessão de bolsas qual o critério utilizado?
14- O (a) profissional é absorvido (a) por qual mercado de trabalho? (ministro, pastor,área acadêmica, equipes multiprofissionais, ONGs e outros).
Apêndice II Roteiro de entrevistas aplicado aos(às) formados(as) 1-Nome:
2-Idade:
3-Sexo:
4-Faculdade de Teologia que cursou:
5-A Teologia é a sua primeira graduação:
6-Ano em que se formou:
190
7-Tempo de integralização do curso:
8-Turma de graduação era composta de maioria masculina ou feminina?
9- Porcentagem em média de homens?
10-Porcentagem em média de mulheres?
11-Faixa etária dos alunos abaixo ou acima de 25 anos:
12-Teve algum incentivo (bolsa)?Qual?
13-Tem alguma pessoa próxima envolvida com o sacerdócio ou religiosa? Grau
de parentesco.
14-O que motivou a escolha da Teologia?
15-Havia algum tipo de divisão de currículo para homens e mulheres?
16-Em sua turma cursavam pastores(as), ministros(as) ou sacerdotes(isas)?
17-Qual seu objetivo com sua formação?
18- Trabalha em sua área de formação? Especifique.
19- Qual o perfil do profissional da Teologia em sua opinião?
20- O campo profissional é mais propício para homens ou mulheres? Justifique.
21- Tem algo que considera relevante destacar?
Apêndice III - Tabelas
Quadro A: divisão dos cargos das instituições analisadas, de acordo
com o gênero
Faculdades Diretor Vice-diretor Diretor
Administrativo
Coordenação Secretaria
Executiva58
F1 Homem Não possui Homem Mulher Mulher
F2 Homem Mulher Homem Homem Homem
F359 Homem Homem Homem Homem Homem
59 Esta é a única instituição a possui chanceler, que não consta nessa tabela devido termos citado em momento anterior. No item vice‐diretor, a mesma instituição nomeia o cargo de diretor adjunto.
191
F4 Homem Não possui Homem Homem Homem
F5 Homem Mulher Homem Homem Mulher
Quadro B: relação das mulheres entrevistadas
Nome Idade Faculdade Formação específica Atuação profissional atual
Luana 26 F2 Doutoranda Literatura e Religião
Bolsista pela FAPESP
Inês 26 F2 Mestranda em Ciências da Religião
Bolsista da Capes
Mariana 28 F5 Mestranda Em Ciências Sociais
Bolsista da UFABC
Susana 36 F3 Mestra em Ciências da Religião
Professora de Ensino Superior
Sara 40 F3 Mestra em Ciências da Religião
Professora de Ensino Superior
Luciana 44 F4 Mestranda 60 em Ciências da Religião
ONG
Vera 46 F1 - Voluntária
Sônia 47 F5 Mestranda em Ciências da Religião
Prof. escola publica
Fátima 50 F1 - Secretária
Dalva 52 F4 - Voluntária
Quadro C: relação dos homens entrevistados
Nome Idade Faculdade Formação específica Atuação profissional atual Marcelo 26 F2 Mestre
Ciências da Religião Assistente de Coordenação de curso Ensino Superior
Lucas 26 F1 Doutorando em Literatura Bíblica
Pastor
Marcos 27 F2 Mestre Ciências da Religião
Pastor e professor de ensino superior
Francisco 28 F3 Mestre Literatura e Religião
Pastor Professor de ensino superior
Jorge 36 F3 Doutor Em História
Professor de ensino superior
Glauco 44 F1 Mestrando Ciências da Religião
Bolsista da CAPES e militar
José 43 F5 Doutorando Literatura e Religião
Padre e Bolsista da FAPESP
Fabio 44 F4 Especialização Em Teologia
Área comercial
Antonio 52 F5 Mestrando Ciências da Religião
Área Comercial
Osvaldo 61 F3 Mestrando Teologia
Aposentado
Quadro D: titulação das mulheres entrevistadas Idade Faculdade Número de graduações Formação atual
26 F2 1 Doutoranda
60 Já havia se formado no curso de Teologia livre e revalidou o diploma
192
26 F2 2 Mestranda
28 F5 2 Mestranda
36 F4 2 Mestra
40 F4 2 Doutoranda
44 F3 1 mestranda61
46 F1 1 -
47 F5 4 Mestranda
49 F3 1 -
52 F1 1 -
Quadro E: titulação dos homens entrevistados
Idade Faculdade Número de graduações Formação atual
26 F2 1 Mestre
26 F1 1 Doutorando
27 F2 1 Mestre
29 F4 1 Mestre 38 F3 1 Doutor
44 F1 1 Mestrando
44 F4 1 Mestre
44 F5 1 Especialização
52 F5 1 Mestrando
61 F3 2 Mestrando
Quadro F: divisão de bolsas de estudo de acordo com o gênero sexual
dos entrevistados
Gênero Total de
entrevistados
(as)
Total de
bolsistas
Total sem
bolsa
Concedida
pela
instituição
Bolsa do
ProUni
Integral Parcial
Masculino 10 8 2 7 1 5 2
Feminino 10 5 5 2 3 2 0
Quadro G: demonstrativo de discentes dos últimos cinco anos das faculdades
pesquisadas
Faculdade 2008 2009
2010 2011 2012
F M F M F M F M F M F1 48 344 48 361 53 397 78 376 61 436 F2 16 33 12 53 21 57 9 28 7 34 F3 12 240 13 283 9 274 10 213 8 281 F4* F5 11 14 9 5 6 9 4 9 12 13
* durante 9 meses buscamos obter os dados dos alunos dessa instituição, mas a mesma não colaborou.
61 Já havia se formado no curso de Teologia livre e revalidou o diploma