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O DIREITO PENAL NA SOCIEDADE DO RISCO ANÁLISE TÓPICA E NOVAS TENDÊNCIAS POLÍTICO-CRIMINAIS...

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1 PAULO SARAGOÇA DA MATTA O DIREITO PENAL NA SOCIEDADE DO RISCO ANÁLISE TÓPICA E NOVAS TENDÊNCIAS POLÍTICO-CRIMINAIS ESCOLA SUPERIOR DE MAGISTRATURA DE PERNAMBUCO CONFERÊNCIA PROFERIDA EM 21/01/2010 LISBOA 2010
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PAULO SARAGOÇA DA MATTA

O DIREITO PENAL NA SOCIEDADE DO RISCO

ANÁLISE TÓPICA E NOVAS TENDÊNCIAS POLÍTICO-CRIMINAIS

ESCOLA SUPERIOR DE MAGISTRATURA DE PERNAMBUCO

CONFERÊNCIA PROFERIDA EM 21/01/2010

LISBOA

2010

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Nota Prévia

Todos tivemos, nas nossas vidas académicas, mestres que nos auxiliaram a

cunhar uma forma de pensar e um modo de reflectir. Mesmo quando não logramos

copiar o estilo ou o raciocínio desses mestres, certo é que eles representam para nós

sempre um modelo de abordagem dos problemas do Direito. Um mestre é isso

mesmo: alguém que nos mostra como abordar os problemas e como os tratar.

Consigamos ou não fazê-lo, nos caminhos universitários que percorremos, o certo é

que essas “mostrações” do método e do espírito vivo de análise, jamais se esquecem.

Ora, foi precisamente um indeclinável convite de um desses meus Mestres –

meu Professor no Curso de Mestrado de 1995-1996 na Faculdade de Direito da Universidade de

Lisboa e que a final presidiu ao Júri que apreciou a dissertação de Mestrado então por mim defendida

em provas públicas – a causa próxima da minha vinda à Cidade de Recife, e a esta

Escola Superior de Magistratura de Pernambuco, para apresentar algumas tópicas

reflexões sobre o direito penal na e para a sociedade de risco – novas tendências político-

criminais.

Na verdade, poucas pessoas me lançariam um repto tão próximo da data em

que esta conferência tem lugar, e ainda assim eu aceitaria. O Senhor Professor

Oliveira Ascensão é uma dessas pessoas. E por isso o convite era, e foi, indeclinável.

O desejo, sincero e íntimo, de estar disponível, falou mais alto do que considerações

de maior comodismo de agenda.

Permitam-me assim V.Exas. iniciar por uma palavra pública de

agradecimento ao Senhor Professor José de Oliveira Ascensão, por tudo quanto me

ensinou, a mim e a muitas gerações de juristas portugueses e brasileiros, bem como

pelo convite para aqui estar presente. É este encontro apenas mais uma das justas

homenagens que o nosso comum Professor inequivocamente merece.

Lisboa, 18 Janeiro de 2010

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Qué el mundo fue y será una porquería ya lo sé… (…)

Pero que el Siglo Veinte es un despliegue de maldad insolente ya no hay quien lo niegue

Vivimos revolcados en un merengue y en el mismo lodo todos manoseados (…)

Siglo Veinte, cambalache, problemático y febril…

(Cambalache, Julio Iglésias)

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PLANO GERAL

I – Os termos da discussão

1. O problema

2. A sociedade do risco

3. A importação do conceito para a ciência penal

II – Apreciação Crítica

1. Cada um só pensa com as palavras que conhece

2. A suficiência do direito penal em adaptação às novas realidades

3. As mudanças impostas pela sociedade do risco no âmbito do direito

III – Conclusões

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I. Os termos da discussão

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1. O problema

1. É conhecida de todos os presentes a fonte doutrinal da questão que

dá o tema à presente conferência: o direito penal na sociedade do risco. Com efeito, não

caberá aqui recordar que o conceito sociedade de risco não é um conceito cunhado nas

forjas da dogmática jurídica. Nascido no âmbito da sociologia do último quartel do

Século XX, pela mão de Ulrich Beck1, rapidamente foi erigido como um dos temas

fundamentais do direito penal2/3.

Abaixo teremos a oportunidade para recordar os pressupostos fundamentais

em que assentava o conceito gizado por Ulrich Beck, bem como para esquematizar

os problemas que os Juristas fizeram emergir da problematização desse mesmo

conceito no seio da dogmática jurídico-penal.

Neste momento, porém, o objectivo destas linhas iniciais é outro: é

identificar o problema cuja reflexão nesta sede nos (pre)ocupa. E esse problema será,

certamente, bem singelo, mas de uma oportunidade que se nos afigura ser questão

maior e central no final da primeira década do III Milénio, para todos quantos fazem

do Direito, e das ciências penais em particular, objecto de estudo.

E o problema que enfrentamos é o seguinte:

As características da sociedade de risco, tal como esse conceito é hoje

entendido, são geradoras de autónomos, novos e insolúveis problemas para a

dogmática penal? Ou, ao invés, nos últimos vinte e quatro anos temos vivido uma

histeria dogmática colectiva no seio da doutrina penalista stricto sensu, porquanto tais

1 Ulrich Beck, Risikogesellschaft. Auf dem Weg in eine andere Moderne, Frankfurt, Suhrkamp, 1986,

posteriormente traduzido para castelhano por Jorge Navarro, Daniel Jiménez e Maria Rosa Borrás,

Paidós, Barcelona, 1998.

2 Alude-se aqui ao título da obra de Jorge de Figueiredo Dias, Temas fundamentais de Direito

Penal, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, no qual aparece, sobre o 6º Tema, “O direito penal na „sociedade

do risco‟.” (pp. 155-185).

3 O impacto da sociedade do risco nos estudos de direito penal é tal que a Faculdade de Direito

da Universidade de Lisboa consagra ao direito penal do risco o Curso de Mestrado em ciências jurídico-

criminais do ano de 2009-2010, tal como o já tinha feito no I Curso de Post-Graduação de 2008-2009

(reforma e crise do direito penal e do direito processual penal na sociedade do risco).

12

características não têm a virtualidade de fazer perigar os paradigmas em que

assentamos as nossas construções acerca da teoria da infracção, mas antes em colocar

novos problemas em áreas outras da ciência penal lato sensu4, como as da política

criminal, da penologia e do processo penal?

Vejamos, pois, o que se nos afigura serem os caminhos a trilhar para obter a

resposta desejada.

2. Identificado o problema, uma linha mais para a justificação do

método. Nenhuma análise crítica se nos afigura consequente se não fornecermos

àqueles que acompanham as nossas reflexões os diversos degraus percorridos para

atingirmos as conclusões a que chegámos.

Sendo assim, caberá iniciar por recordar as características da sociedade que

Beck crismou como de risco, enunciar os problemas que a dogmática jurídico-penal

fez nascer no seu próprio seio ao importar o conceito sociológico para este âmbito, e,

apenas a final, tentar dar resposta às questões em que o problema enunciado se

analisa.

Só depois disso poderemos tentar abordar as tendências político-criminais que de

toda esta problemática emerge.

Com este programa de análise, avançamos.

2. A Sociedade de Risco

Ulrich Beck cunhou o conceito de sociedade do risco (Risikogesellschaft) após

descrever aquilo que considerava ser o estado actual da sociedade em que vivemos.

Com efeito, depois de analisar os diversos momentos históricos em que analisava a

evolução da sociedade humana, concluiu que, apesar de sempre terem existido riscos

durante a história da humanidade, aqueles que povoam as sociedades post-modernas são

4 Comummente identificada, desde Von Liszt como gesamte Strafrechtswissenschaft – ciência

conjunta do direito penal –, compreende a política criminal, a dogmática penal (ou ciência penal stricto

sensu) e o processo penal.

13

de tal dimensão e em tal volume que passam a ser eles a característica fundamental

das sociedades nos tempos em que vivemos5.

Ou seja: sendo certo que sempre houve em todas as sociedades riscos pessoais, a

dado momento da história da humanidade esses riscos passaram a ser colectivos. Mais

recentemente o grau e a extensão desses mesmos riscos assumiu tais proporções, que

os riscos atingem a sociedade humana na sua globalidade, passando a ser tal situação

a característica fundamental e mais marcante destas sociedades ditas de post-modernas.

Na análise desta modernidade Ulrich Beck identifica a sociedade moderna industrial,

ou primeira modernidade, por um lado, e a segunda modernidade, ou modernidade

reflexiva, ou ainda modernidade da modernidade.

A primeira modernidade caracterizou-a como a de uma sociedade estatal e

nacional, assente em estruturas colectivas, caracterizada pela rápida industrialização,

pela exploração da natureza não visível, pelo pleno emprego, etc. Seria o período

compreendido pelos Séculos XVIII e XIX.

Quanto à segunda modernidade, centrada já no Século XX, caracteriza-se

precisamente por ser uma sociedade de riscos com dimensões diferentes dos vividos

até aí. Os riscos deixam de ser individuais, e mesmo colectivos, como já o haviam

sido na primeira modernidade, passando a ser riscos transversais a toda a

humanidade, extrapolando mesmo as fronteiras territoriais e temporais.

Esses riscos, que utilizou como paradigmáticos da segunda modernidade, eram

vários e impressionantes: as contaminações hídricas e dos solos (todo o vasto problema

da poluição e da ecologia), os acidentes nucleares, as turbulências dos mercados, as fortes

desigualdades sociais, o crime organizado, etc.

E escrevendo Beck em 1986, ainda não pôde fazer uso de fenómenos como

as crises financeiras mundiais de 2009, os actos terroristas do 11 de Setembro de

2001 nos EUA, do 11 de Março de 2004 em Madrid, e de 7 de Julho de 2005 em

Londres. Estes riscos, diga-se, serão ainda mais horríficos do que aqueles atrás

enunciados, quanto mais não seja pela imediatividade das consequências respectivas,

patentemente mais aflitivos a curto prazo do que os problemas das chuvas ácidas, da

degradação da camada de ozono, etc.

5 Paulo Silva Fernandes, Globalização, „Sociedade de Risco‟ e o futuro do direito penal – panorâmica de

alguns problemas comuns, Almedina, Coimbra, 2001, pp. 31 e ss.

14

Os meios de comunicação globais, a evolução quase que incompreensível da

tecnologia e a massificação do seu uso, a vulgarização da internet, a criação dos

mundos virtuais (tão ou mais importantes, nalguns casos, do que o mundo real), potenciam

ainda mais as características desta segunda modernidade apontadas por Beck: a não

distinção entre presença e ausência e a intemporalidade (no sentido de ausência de conexão

temporal entre as acções humanas e os respectivos resultados).

Todos os avanços da tecnologia são, paradoxalmente, factores de conforto e

de insegurança, de estabilidade e de imprevisível, de determinação e de

indeterminismo. O que é uma conquista do espírito humano é também, do mesmo

passo e no mesmo cenário, um risco para esse mesmo espírito humano.

A volatilidade dos capitais, a mobilidade das indústrias, a transnacionalidade

do crime, a perda de credibilidade das instituições, atacadas que são desde dentro

pelos seus servidores ou por terceiros que exploram as respectivas debilidades, dão-

nos a todos uma sensação de insegurança, de receio, de instabilidade. Para já não

referir o permanente medo do poder nuclear, e sua detenção por Estados de cultura

„não ocidental‟, de novo tão exacerbado na última década.

É nesta sociedade bipolar, oscilando entre os píncaros da auto-confiança e a

depressão medrosa causada pela sensação de incapacidade de nos conservarmos, que

pensava Beck. E ainda não havia vivido estes últimos vinte e quatro anos de sustos

económico financeiros, de desemprego global, de insegurança post-moderna.

Escrevera Beck em 2009, e em vez de risco falaria em sociedade de horrores,

certamente.

Mas quando Beck assim caracterizava esta segunda modernidade, crismava-a,

alternativamente, de modernidade reflexiva. E fazia-o porque entendia que as

contradições geradas na primeira modernidade deveriam nesta segunda modernidade

ser objecto de reflexão, para que se encontrassem as linhas mestras de uma nova

sociedade, assente em coerência e continuidade. Em suma, a modernidade reflexiva era-

o porque impunha novas reflexões antropológicas, sociológicas, políticas e jurídicas.

A segunda modernidade impunha pois um revisionismo dos padrões prévios, à luz dos

novos conhecimentos, das novas realidades, dos muitos, e mais perigosos, riscos a

que está exposta a sociedade.

Ora, que a nossa sociedade pode caracterizar-se como uma sociedade de

risco, afigura-se-nos inequívoco. Mas não nos esqueçamos que os actuais riscos

15

assustar-nos-ão tanto, daqui a meio século, como nos assustam hoje as lembranças

dos salteadores de estradas da época medieval. A esta crítica, porém, voltaremos

oportunamente.

3. A ‘importação’ do conceito para a ciência penal

1. Escreve Figueiredo Dias que este conceito, de sociedade do risco, “suscita ao

direito penal problemas novos e incontornáveis. Nas suas implicações com a matéria penal, ele quer

por em evidência a ideia de uma transformação radical da sociedade em que já vivemos, mas que

seguramente se acentuará exponencialmente no futuro próximo. Uma tal ideia anuncia o fim de uma

sociedade industrial em que os riscos para a existência, individual e comunitária, ou provinham de

acontecimentos naturais (para tutela dos quais o direito penal é absolutamente incompetente) ou

derivavam de acções humanas próximas e definidas, para contenção das quais era bastante a tutela

dispensada a clássicos bens jurídicos como a vida, o corpo, a saúde, a propriedade, o património;

para contenção das quais, numa palavra, era bastante o catálogo puramente individualista dos bens

jurídicos penalmente tutelados e, assim, o paradigma de um direito penal liberal antropocêntrico.

Aquela ideia anuncia o fim desta sociedade e a sua substituição por uma sociedade exasperadamente

tecnológica, massificada e global, onde a acção humana, as mais das vezes anónima, se revela

susceptível de produzir riscos também eles globais ou tendendo para tal, susceptíveis de serem

produzidos em tempo e em lugar largamente distanciados da acção que os originou ou para eles

contribuiu e de poderem ter como consequência, pura e simplesmente, a extinção da vida” 6.

Se acompanhamos a afirmação apresentada, convém tal concordância ser

complementada com o sublinhar do correcto sentido do afirmado neste parágrafo7, a

saber: que os problemas colocados pela sociedade do risco ao direito penal são

“incontornáveis” (i.e., não os podemos escamotear), mas não que são insuperáveis. Serão

novos, é certo, mas não incontornáveis no sentido de insusceptíveis de superação, e,

6 Figueiredo Dias, op. cit., p. 158. De referir, porém, que outra era a opinião anterior de

Figueiredo Dias, céptico quanto à potencialidade do conceito de sociedade do risco para suscitar novos

problemas, incontornáveis, ao Direito penal. O próprio recorda, em nota ao texto citado, o que

escrevera, nomeadamente, em Jornadas de Direito Criminal, A revisão do Código Penal, Vol. I, 1996, pp. 30 e

ss.

7 Aliás, uma leitura integral do texto citado permite concluir que Figueiredo Dias não

considera que os problemas novos colocados ao direito penal sejam insuperáveis. Bem pelo contrário.

16

o que mais é – do nosso ponto de vista –, serão mais problemas da ciência conjunta do

direito penal, do que problemas do direito penal stricto sensu. Ao que abaixo voltaremos.

Certo é, porém, que a doutrina penal votou boa parte dos seus esforços

nestes últimos vinte anos a encontrar problemas novos e incontornáveis trazidos para o

direito penal por esta sociedade do risco.

A questão é pela doutrina assente no seguinte patamar: para tutela destes

novos e grandes riscos não está o direito penal actual (de matriz iluminista liberal)

preparado. Estaria o direito penal confrontado, consequentemente, com a sua

própria incapacidade para tutelar os grandes riscos, as causas dos riscos globais, ficando

reduzido à tutela dos riscos menores, aqueles para os quais foi pensado nas últimas

duas centúrias8.

E essa (invocada) insuficiência do direito penal conhecido tem sido pela

doutrina sublinhada a todos os níveis e a todos os títulos:

a - Seria desadequado quanto à sua própria génese (o modo de produção legislativa

respectivo), porquanto o facto de a sua produção estar reservada à competência

legislativa dos Parlamentos determinava um “endémico atraso relativamente a uma

transformação social que agora se processa à velocidade de uma comunicação global e instantânea e

de um progresso tecnológico acelerado, radical e imprevisível; e, por isso, um modo de produção

inadequado a uma criminalidade organizada dominada por „senhores do crime‟, que ultrapassam já

de muito a figuração clássica do white-collar criminal” 9;

b - Seria desadequado na sua legitimação filosófico-política, porquanto busca

a sua legitimação num modelo que faz assentar o poder político no contrato social de

Rousseau, com o concomitante reconhecimento da liberdade regra do ser humano, e,

assim, tendo uma função exclusivamente protectora de bens jurídicos, assente em

princípios como o da secularização, o da intervenção mínima e o da ultima ratio; ora,

8 Assim Mário Ferreira Monte, na Nota Introdutória ao estudo de Paulo Silva Fernandes, op.

cit., p. 23, quando escreve: “Justamente, parece evidente que o direito penal tradicional de cunho liberal não está em

condições de responder a tais desafios”. Porém, na página imediata afirma: “E agora: até onde será necessário

caminhar? Na nossa opinião, curiosamente, não nos parece que o direito penal deva fazer muito mais do que aquilo que

já fez em termos de flexibilização”.

9 Figueiredo Dias, op. cit., p. 159.

17

os novos tempos exigiriam um direito penal promotor de novos valores e condutas,

independentemente da concreta protecção de bens jurídicos;

c - Seria desadequado porque os novos e grandes riscos não podem ser

combatidos por um direito penal que “continue a ter na individualização da responsabilidade

o seu princípio precípuo e cujo objecto de tutela seja constituído por bens jurídicos individuais reais e

tangíveis (…), quando o problema posto por aqueles riscos é por essência indeterminado no seu

agente e na sua vítima” 10/11;

d - Seria desadequado, a final, porque, ao assentar no princípio político

criminal da culpa, mantinha intocada a estrutura de imputação que conhecemos, i.e., a

exigência de imputação objectiva e subjectiva nos termos clássicos, além de que

desconsidera para um segundo plano as categorias de crime mais habituais na sociedade

de risco, i.e., os crimes negligentes e omissivos, tradicionalmente relegados para um

papel lateral em face da eminência do crime doloso por acção.

Estaríamos, pois, em face de uma circunstância que anunciava o óbito do

“nosso” (actual) direito penal.

2. Perante tais reflexões da doutrina penal, confessórias das (alegadas)

incapacidades do Direito Penal que conhecemos, fica-se com a ideia de que realmente

esse ramo do direito, tal como o conhecemos, também se aproxima do ocaso.

É que, como será patente – e sem necessidade de grande argumentação, até porque

ainda não é chegada a hora da apreciação crítica a que abaixo daremos lugar –, a estruturação de

um novo sistema de reacção global contra riscos de natureza global, necessariamente

implicaria que o grau de exigência posto no direito penal tradicional o votaria a um

paulatino desuso. Isto porque o poder, todo o poder, tem tendência natural para se

expandir, para ultrapassar as fronteiras que lhe são marcadas pela tutela do Humano, e

o caminho que percorremos desde o Iluminismo não tem sido outro que não o da

contenção do poder, o da civilização do poder.

10 Figueiredo Dias, op. cit., p. 160.

11 Paulo Silva Fernandes, op. cit., pp. 52 e ss.

18

Ora, reconhecendo-se ao poder a faculdade de, para combater os grandes

riscos, estar isento das contenções criadas pela evolução jurídica dos últimos 200 anos,

facilmente se antevê o incontrolável apelo que logo esse mesmo poder sentiria para

posteriormente fazer alastrar as novas estruturas de controle social para os âmbitos que

classicamente eram regidos e tutelados pelo Direito penal.

Assim que tenham que manter-se nos horizonte estas mesmas observações,

enquanto se apresentam, topicamente, os caminhos que essa mesma doutrina foi

apresentando nos últimos anos para enfrentar as contingências trazidas ao direito

penal pela sociedade do risco.

3. Vejamos, pois, sumariamente, quais as vias de superação do paradigma penal

que conhecemos, que foram sendo apresentadas pela doutrina que reconheceu a

incapacidade do direito penal para fazer face aos riscos contemporâneos.

a. Uma primeira via de superação do paradigma penal actual, para

conformação da realidade criada pela sociedade do risco, foi apresentada pela

designada Escola de Frankfurt 12. Entendendo que o direito penal deve manter o seu

âmbito de tutela e os seus critérios de aplicação, excluem-no do conjunto dos

instrumentos utilizáveis para tutela dos grandes riscos característicos desta segunda

modernidade.

Os mega-riscos da sociedade post-industrial não poderiam ser tutelados pelo

direito penal tal como o entendemos, porquanto este está estruturado, em última

análise, como um instrumento de defesa de direitos, liberdades e garantias.

Inexistindo, assim, a possibilidade de criar um direito penal do risco, deveria a sociedade

lançar mão de vias de controlo social não jurídicas, e, dentro do Direito, do ramo do

direito administrativo13.

12 Sustentaram esta posição, nomeadamente, W. Hassemer, Perspectivas del Derecho penal futuro,

Revista Penal, 1, 1997, p. 37, e F. Herzog, Limites del derecho penal para controlar los riesgos sociales, Poder

Judicial, 32, 1993, e Algunos riesgos del derecho penal del riesgo, Revista Penal, 4, 1999, p. 54.

13 Dando igual nota cfr. Paulo Silva Fernandes, op. cit., pp. 71 e ss.

19

b. Uma outra colocação do problema é a de todos aqueles que pretendem14

uma total funcionalização do direito penal às exigências de tutela destes mega-riscos da

post-modernidade. Estes propugnam a criação de um totalmente novo direito penal,

um direito penal do risco assente em novos paradigmas e princípios, paralelo ao direito

penal que conhecemos.

Nesta senda encontra-se: quem entenda que a agilização das reacções penais

impõe uma competência legiferante dos executivos; quem defenda uma “antecipação

da tutela penal para estádios prévios (e inclusivamente ainda muito distanciados) da eventual lesão

de um interesse socialmente significativo, até ao ponto em que se perde (…) toda a ligação entre a

conduta individual e o bem jurídico que em definitivo se intenta proteger”15; quem sustente a

necessidade de ultrapassar o princípio da personalidade da responsabilidade criminal,

a exigência de imputação objectiva e/ou subjectiva conforme as conhecemos, e,

mesmo, alterações profundas ao princípio da culpa.

A mais radical observação, nesta senda, é a daqueles que propugnam uma

alteração do princípio da intervenção mínima, advogando para o direito penal uma

função de instrumento de administração pública, de promoção das políticas

contingentes do governo de cada sociedade, ou da sociedade humana no seu todo.

4. Dediquemos breves linhas a apreciar as virtualidades destas duas

abordagens do problema.

a. Quanto à proposta da Escola de Frankfurt, refere Figueiredo Dias, e bem,

que “não valerá a pena, nem sequer será socialmente aceitável, o cultivo de um direito penal que,

seja em nome de que princípios for, se desinteresse da sorte das gerações futuras e nada tenha para

lhes oferecer perante o risco existencial que sobre elas pesa”16. Por outras palavras, e a nosso

ver, de que serve, e que dignidade terá, um direito penal que se demite de proteger a

sociedade contra os mega-riscos, limitando-se a fazê-lo quanto aos riscos que menos

14 E aqui estamos a referir-nos a uma plêiade de propostas e abordagens da questão não

encabeçáveis por uma única escola ou autor. Apresentação sistemática em Paulo Silva Fernandes, op.

cit., pp. 76 e ss

15 Figueiredo Dias, op. cit., p. 163.

16 Figueiredo Dias, op. cit., p. 165.

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intensamente fazem perigar a vida em sociedade e a própria sociedade?

Não que se não aceite, obviamente, que existam meios não penais, e mesmo

não jurídicos, que devem ser convocados para controlar os riscos da vida em

sociedade. A própria concepção do direito penal que defendemos, assente em

princípios como a ultima ratio e a intervenção mínima, impõe que assim seja.

Mas o reconhecimento de que o direito penal deve ser utilizado com

parcimónia e apenas em casos de imperiosa necessidade, atenta a gravidade das

respectivas consequências, não afasta que as normas de convivência social sejam

dotadas de protecção contra as mais violentas e perigosas violações de que sejam

alvo. Protecção essa a ser dada pelo meio de reacção mais forte ao dispor do Estado,

i.e., o direito penal, não apenas nos casos de riscos menores, mas, principalmente e por

argumento de maioria de razão, nos casos dos riscos maiores17.

E se é inequívoca a valia do direito administrativo sancionatório como

instrumento de consequente intervenção na regulação de algumas das actividades

geradoras dos maiores riscos (por força da consideração da função do Estado como regulador

das actividades sociais, em ordem à protecção da colectividade, o que é tanto mais de exigir quanto

mais o próprio Estado-Fisco exigir aos seus cidadãos a permanente contribuição tributária para o bem

comum), o certo é que nunca determinado tipo de consequências sancionatórias poderão

ser abandonadas ao descontrolado poder do Estado-Administração, sob pena de se

fazer entrar pela janela o que se havia feito sair pela porta quando se consagraram os

princípios que hoje norteiam o direito penal.

Ou seja, mesmo reconhecendo valias ao direito administrativo sancionador,

não poderia nunca entregar-se-lhe, sem mais, a função de protecção da sociedade

contra os mais graves ataques à sua existência, quando a extensão de tal direito

sancionador, e a panóplia dos respectivos instrumentos, nem sequer estão ainda,

para esses fins, claramente desenhados.

Dir-se-á mesmo mais: a utilização de um direito administrativo de

intervenção (Interventionsrecht), é mesmo fundamental para criar um fosso ou antecâmara

17 Bem anda, pois, Figueiredo Dias, quando afirma: “Em casos tais não se vê como possa pedir-se (e

esperar-se) uma protecção eficaz a meios não jurídicos de política social, como o hoje tão reclamado fomento das formas de

auto-protecção da vítima (como pode esta, suposto que seja determinável, auto-proteger-se da danificação da camada de

ozono?) ou com o apelo patético (e com sabor a pesada ironia, a de pedir o remédio ao causador da doença!) às forças

auto-reguladoras do mercado” (op. cit., p. 165 e s.).

21

à utilização dos mecanismos penais. Mas a existência daquele não pode nunca

dispensar a utilização deste como meio de reacção mais gravosa aos

comportamentos que comportem maior risco. Mesmo como modo de indicação à

colectividade da seriedade das mais graves violações. Isso é imposto, diríamos, pela

própria dignidade ínsita ao braço penal do Estado.

Como diz Figueiredo Dias, “uma tal solução significará nada menos que pôr o

princípio jurídico-penal da subsidiariedade ou de ultima ratio „de pernas para o ar‟, ao subtrair à

tutela penal precisamente as condutas socialmente tão gravosas que põem simultaneamente em causa

a vida planetária, a dignidade das pessoas e a solidariedade com as outras pessoas – as que existem

e as que hão-de vir”18.

Visto ao invés, poderia também afirmar-se que ao fim e ao cabo se poderia

resolver a questão através de uma simples etiquetagem ou rotulação das realidades

totalmente desconexa com a respectiva substância: chamar-se direito administrativo de

intervenção a verdadeiras reacções penais, encapotadas sob outra nomenclatura, e,

como tal, formalmente eximidas aos constrangimentos e procedimentos próprios

das reacções criminais.

b. Quanto às propostas de funcionalização do direito penal à promoção dos

valores de governo da sociedade, dir-se-á, numa palavra, que padece do vício de

transformar este direito penal naquilo que hoje é o direito administrativo, que seria quanto

bastava para merecerem o nosso total desacordo.

Além da questão de fundo que nos impede de aderir a tais construções – a da

dignidade da reacção penal e do especial estatuto que esta tem e merece, e que não autoriza qualquer

mudança seja à luz de que motivos circunstanciais se invoquem –, afigura-se-nos também que a

funcionalização do direito penal não é, nem pode ser, a razão única da sua existência.

Acresce que com tal funcionalização do direito penal se estaria

rigorosamente a fazer perigar os fundamentos últimos, ideológicos e práticos, da

sociedade que construímos, assente na dignidade da pessoa humana e na defesa dos

direitos fundamentais desta. “Por isso, numa palavra, deve manter-se a recusa de qualquer

concepção penal baseada na extensão da criminalização, onde o direito penal se transforme em

instrumento diário de governo da sociedade e em promotor ou propulsor de fins de pura política

18 Figueiredo Dias, op. cit., p. 167.

22

estadual” 19.

Dir-se-á, a terminar, que qualquer justiça criminal funcionalizada aos

objectivos contingentes do governo da sociedade, se transformará, mais cedo ou

mais tarde, em puro instrumento de imposição de uma visão do Homem e da

sociedade, num mecanismo de justiça de classes, ou de incontrolável e injustificável

domínio de uns sobre os outros, fora dos padrões impostos pelo paradigma penal em

que hoje assenta a defesa dos direitos fundamentais.

O direito penal não é, nem pode ser, um instrumento de governo da

sociedade: demonstram-no todas as experiências históricas totalitárias, que utilizaram

o terror penal como arma de controle social e da luta política, como instrumento da

sua própria auto-subsistência e da destruição do outro, e, por maioria de razão, de

aniquilamento do diferente.

5. As posições atrás apresentadas têm sido objecto de reflexão, e tentativa de

ultrapassagem por uma via média, por outras franjas da doutrina20, que vêm falar de

uma extensão do direito penal. Porém, mais do que uma verdadeira via média, afigura-se-

nos esta abordagem conter uma súmula das posições anteriores.

De um modo algo simplista, dir-se-ia ser defendida a criação de uma

dogmática penal dual: uma zona nuclear de direito penal que continuaria sujeita aos

princípios tradicionais do direito penal de matriz iluminista e garantista (a zona do

direito penal sujeito aos princípios da subsidiariedade e intervenção mínima, assente na acção e na

personalidade da responsabilidade penal, na exigência dos cânones tradicionais relativos à imputação

objectiva e subjectiva, e no princípio da culpa); e uma área periférica de direito penal

destinado a proteger a sociedade contra os novos e grandes riscos próprios da

segunda modernidade, onde os mesmos princípios seriam conformados ou

transformados (numa aproximação substancial ao direito administrativo ou de intervenção, mas

19 Figueiredo Dias, op. cit., p. 169. Sobre a eficiência do sistema penal na redução dos danos

criminais, cfr. Pedro Caeiro, Legalidade e Oportunidade: a perseguição penal entre o mito da justiça absoluta e o

fetiche da gestão eficiente do sistema, Revista do Ministério Público, 84, 2000. Dando nota de tudo quanto

referido em texto Mário Ferreira Monte, Nota introdutória ao estudo de Paulo Silva Fernandes, op. cit.,

p. 26.

20 Assim, v.g., Silva Sánchez, La expansión del derecho penal – aspectos de la política criminal en las

sociedades postindustriales, Madrid, Civitas, 1999.

23

formalmente incluídos no seio do direito penal) de molde a permitir uma mais consequente e

eficaz prevenção da verificação de tais riscos (como tal visando uma protecção antecipada –

por relação com a efectiva lesão – de interesses colectivos “mais ou menos indeterminados, sem espaço, nem

tempo, nem autores, nem vítimas, definidos ou definíveis e por conseguinte, numa palavra, de „menor intensidade

garantística‟.”21).

No caso de Silva Sánchez, porém, afirmava-se a necessidade de toda e

qualquer medida privativa de liberdade só poder ser aplicada no âmbito de normas

do núcleo clássico do direito penal, e não já deste novo direito penal periférico, em

homenagem à tutela dos direitos, liberdades e garantias.

A bondade da bipartição do direito penal num direito penal de justiça e num

direito penal secundário é, aliás, aceite num plano geral por boa doutrina lusitana,

como é o caso de Figueiredo Dias, com o argumento de que este direito penal

secundário deve ser penetrado com princípios dogmáticos relativamente autónomos e de que os

bens jurídicos por este protegidos deverão ter cobertura constitucional pelo elenco

de direitos económicos, sociais, políticos e constitucionais listado na Constituição da

República. Assim, concluímos nós do pensamento do dito Autor, não se tornará este

direito penal secundário num direito penal funcionalizado, administrativizado, e,

como tal, inexistirá óbice constitucional e dogmático à respectiva consagração22.

Porém, parece-nos, tal como a Figueiredo Dias23, que a criação de um direito

penal periférico proposta pelos corifeus da expansão do direito penal não se traduz

verdadeiramente num caminho equivalente ao sustentado por tanta doutrina para o

direito penal secundário ou económico-social.

É que esta proposta doutrinal de expansão do direito penal não só parece limitar-

se, como se disse relativamente à via da funcionalização do direito penal, a um jogo de

nomenclatura ou etiquetagem, como pretende incluir no seio do mesmo direito penal

duas realidades totalmente distintas, assentes em princípios e pressupostos

incompatíveis entre si. Além de que, tal como antecipámos atrás como crítica geral a

este modo de pensar, a admissão de dois paradigmas distintos no seio do mesmo

direito penal, levaria certamente a “uma invasão incontrolável do „cerne‟ pela „periferia‟.”24

21 Figueiredo Dias, op. cit., p. 171.

22 Paulo Silva Fernandes, op. cit., p. 96.

23 Figueiredo Dias, op. cit., p. 172.

24 Idem, ibidem.

24

Rapidamente o incontrolável poder do Estado acabaria por funcionalizar os

meios aos objectivos, e de duas, uma: ou transferiria, para o núcleo, os princípios da

periferia; ou faria transitar para a periferia todos os casos carentes de tutela que no

núcleo se revelassem de difícil consecução, atentos os espartilhos principiais a que

aqui estavam sujeitos.

Em ambos os casos a consequência seria a mesma: o esvaziamento ou o

desaparecimento do direito penal liberal de matriz antropológica, desenhado e

desenvolvido para protecção e tutela dos direitos, liberdades e garantias do Ser humano.

6. Resta, por fim, no que a esta apresentação concerne, analisar outras

soluções dogmáticas propostas pela doutrina para adequar o paradigma penal aos

problemas gerados pela sociedade do risco, que não passem por nenhum dos trilhos

atrás apresentados.

Porém, por comodidade da exposição, e porque se adere a muito de quanto

tem sido dito no sentido da desnecessidade de ser implementada uma qualquer

mudança radical de paradigma penal por força das características da sociedade do risco,

proceder-se-á a tal análise no capítulo seguinte desta conferência, destinada,

precisamente, à análise crítica da questão de fundo.

25

II. Apreciação crítica

26

27

1. Cada um só pensa com as palavras que conhece…

Começamos por afirmar este pressuposto do nosso raciocínio, que mais não

é que uma consideração sobre linguagem e pensamento… entendemos que cada um só

pensa com as palavras que conhece, e à medida que mais vocábulos enriquecem um

pensador, distintos serão os pensamentos de que o mesmo é capaz. Mas não só! É que

também os problemas gerados pelo pensamento serão outros, e por vezes maiores, à

medida que o mesmo domina novos vocábulos e conceitos. Assim compreendemos,

no nosso modesto modo leigo de ver, que o processo de filogénese tenha sido em

boa medida o factor determinante do desenvolvimento ontogenético de cada ser

humano.

Semelhante processo terá ocorrido, segundo cremos, com a importação do

conceito sociológico de sociedade do risco para o âmbito jurídico-criminal. E nem

sequer é um fenómeno inédito, se nos recordarmos do efeito (dir-se-ia devastador, perante

as confusões criadas por mais de um século nas discussões penais), da geração do conceito de

crime de colarinho branco por Sutherland, também ele, como Beck, um não jurista.

O conceito de sociedade de risco é, inequivocamente, um conceito rico, porque é

polissémico, comunicacional, “agarra-se” ao ouvido. É, como todos os grandes

conceitos da história, um conceito até “agradável”, além de “útil”, pois permite

albergar no seu seio uma pletora de significados muito distintos, de ideias variadas e

pouco cristalizadas, e, até, de situações totalmente desconexas e de matizes

totalmente diversos. Em bom rigor, o conceito não significa nada! Não tem nenhum

conteúdo homogéneo próprio.

O que têm, ou podem ter, de comum, o acidente nuclear de Chernobyl, os

atentados terroristas do 11 de Setembro, o buraco na camada de ozono e a poluição

hídrica, os crimes financeiros na base das crises bancárias de 2009, as fortes

desigualdades sociais, etc.?

De um ponto de vista substancial... nada! De um ponto de vista formal, todos

são epifanias de riscos, mas, ainda assim, uns próprios dos tempos modernos, os de

origem tecnológica e industrial, outros exactamente iguais aos que sempre existiram,

com a diferença única de terem sido globalmente conhecidos e de terem tido consequências

globais no que à reacção da sociedade humana respeita. E, neste último caso,

28

exclusivamente mercê do facto de a comunicação social ser hoje um fenómeno mundial,

e ter as características que lhe conhecemos25.

Expliquemo-nos melhor: o acidente nuclear de Chernobyl, o buraco na camada

de ozono e a poluição hídrica são resultados danosos emergentes da evolução

industrial e tecnológica da humanidade. Seriam impensáveis em momentos pretéritos

da história, pela tão simples razão de que a acção humana não podia causar danos

através de tecnologias apenas descobertas na modernidade industrial posterior à

revolução industrial.

Já a crise do sistema financeiro de 2009 constitui, em sim mesmo e a esta luz,

um fenómeno misto. À configuração do sistema financeiro mundial próprio da

actualidade (i.e., um sistema transnacional, quase globalizado, em que as economias mundiais estão

interdependentes devido ao facto de os investidores, os bancos, os projectos de investimento

circularem livremente ou quase), adicionam-se as peculiaridades próprias de um sistema em

que os respectivos intervenientes (players na linguagem anglo-saxónica) se encontram em rede

internacional, o que é possibilitado inequivocamente pela tecnologia em uso. Mas os

comportamentos básicos que levaram à falência de alguns dos players nada têm de

novo: são simples abusos de confiança, ou burlas, ou estados de insolvência dolosa,

tão pouco originais que aconteceram em múltiplas situações ao longo da história. A

diferença está no âmbito geográfico em que as ditas acções criminais foram praticadas,

bem como da extensão das respectivas consequências.

Também os crimes cometidos com e na internet são, todos eles numa primeira

apreciação, crimes clássicos, porém difundidos a uma escala global, ou quase global, seja no

que concerne à respectiva autoria, seja no que respeita ao número e identidade das

suas vítimas, seja, por último, no que se atém ao respectivo conhecimento global.

Inequívoco é, porém, que uma burla no Século XVIII podia igualmente

projectar as suas consequências em mais do que uma comunidade, e mesmo em mais

do que um Estado. E se não acontecia com a facilidade que hoje pode acontecer, tal

25 Será despiciendo recordar que em alguns Países do Mundo, em que a comunicação social

não é livre, esses mesmos eventos mundialmente conhecidos não foram noticiados, ou foram-no muito

diminutamente, senão mesmo, em alguns deles, transmitindo-se apreciações opostas àquelas que

foram feitas no Mundo de matriz ocidental.

29

em nada afecta, a nosso ver, a substância e tipo das reacções sociais que nesses tempos,

e hoje, se podem opor a tal comportamento.

Por último, neste cotejo tópico, também os actos terroristas imputados à Al-

Qaeda nada têm de original na sua substância, por relação com actos de homicídio

colectivo causados por razões políticas ou outras ao longo da história. E ainda menos

se se aceitar, o que todavia julgamos ser duvidoso, que a razão última que anima os

terroristas é de pendor religioso. Têm a peculiaridade, isso sim, de os respectivos

agentes utilizarem o que hoje têm à mão: bombas clássicas na Estação de Atocha em

Madrid e no Metro de Londres, aeronaves, utilizadas como meros instrumentos de

arremesso, nos Estados Unidos.

Atentados substancialmente iguais foram ao longo da história, e são hoje,

cometidos pelos Jacobinos26, pelo Ku Klux Klan, pelos Bolcheviques, pela ETA, pelo

IRA, pelas Brigadas Vermelhas, pela Organização de Libertação da Palestina, pelas

Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, pelo Grupo Combatente Islâmico

Marroquino, pelos Separatistas Chechenos, pela Brigada dos Mártires Al Aqsa, pelo

Hezbollah, pelos Tigres Tamil, etc. (uma recente listagem elaborada pela União Europeia

elencava mais cerca de 100 grupos terroristas em todo o mundo).

Se é verídico que o risco criado pelos terroristas pode hoje – nalguns casos –

ser crismado de global, tal em nada afecta a substância da conduta que se lhes imputa,

nem sequer, verdadeiramente, é uma característica de todos os actos terroristas que

anualmente vão acontecendo no nosso tempo: são violações dos bens jurídico-penais

clássicos, da vida, da integridade física, do património, cometidos por um modus agendi

que lança mão de artefactos que hoje existem e que inexistiam no Século XVIII. Assim

26 Convirá não olvidar que o termo terrorismo surge inicialmente no decurso da Revolução

Francesa, e sem qualquer conotação negativa: foi pela primeira vez consagrado oficialmente num

Suplemento, de 1798, ao Dicionário da Academia Francesa, sendo definido como sistema ou regime do

terror. De acordo com fontes históricas várias, o termo começou a ser utilizado no decurso da

Revolução Francesa pelos Jacobinos, para se referirem a si mesmos, num sentido positivo (!). Só apenas

o golpe do dia 9 do Thermidor é que terrorista passou a descrever um comportamento de natureza

criminal. Assim que ao período compreendido entre Março de 1793 e Julho de 1794 se tenha

chamado, precisamente, o período do terror. Em suma, nunca poderia o terrorismo ser característico de

uma segunda modernidade, como pretendeu Ulrich Beck, porquanto a sua natureza, e consequências, foi

cunhada, e foram sentidas, com grande impacto, ainda antes da primeira modernidade.

30

que nada impeça comparar a actuação da Al-Qaeda com a de todos os outros que

historicamente se opuseram a qualquer força de domínio opressora27. O que choca,

obviamente, tanto mais pela exacerbação mediática que lhe é dada, é a potencialidade

destrutiva da conduta (serem mais as vítimas dos crimes e ser mais difundido o conhecimento dos

eventos levados a cabo), bem como os engenhos utilizados para a prática do facto e a

rapidez com que um mesmo grupo terrorista consegue actuar em vários locais ao

mesmo tempo, ainda que distantes entre si (ou seja, o espectáculo do fenómeno).

Mas pergunte-se: qual a dificuldade de enquadrar jurídico-penalmente, à luz

dos cânones tradicionais do direito penal liberal de matriz antropológica em vigor nos

últimos duzentos anos, os atentados terroristas enunciados e as fraudes financeiras

referidas? A nosso ver, nenhuma!

Mais: ao abrigo do instrumentário jurídico-penal existente (nos finais do século

XX), qual a perplexidade de subsumir actos de poluição, dolosos ou negligentes,

activos ou omissivos, às regras, princípios e pensamento desse mesmo direito penal

liberal antropocêntrico?

É que a necessidade de superação dos paradigmas penais em vigor – motivada,

por exemplo, pelos comportamentos atrás referidos – apenas seria imposta se os sistemas

penais assentes nesses paradigmas desconhecessem os delitos omissivos, os delitos

negligentes, as regras sobre o lugar e tempo da prática do facto, as regras até hoje

pensadas de imputação objectiva e subjectiva, etc.

Recordemos, por um instante, a evolução que sofreu a teoria da imputação

objectiva, sem quebrar as baias do direito penal liberal antropocêntrico, quando

confrontado com o célebre caso do industrial que permitia aos seus trabalhadores

que trabalhassem com pêlos infectados de cabra chinesa, o que causou a morte de vários

por infecção de carbúnculo… Confrontado com essa situação, o Reichsgericht28

Alemão veio a ponderar algo importante: que não obstante a desinfecção possível, se

esta tivesse sido feita ainda assim não se teria excluído completamente o contágio.

Este caso, mais um, permitiu o desenvolvimento da teoria do comportamento lícito

27 Recorde-se, a este propósito, a célebre frase de Schiller segundo a qual o terrorismo seria a

ultima ratio de homens livres perante uma perseguição intolerável. Frase essa, aliás, que serviu de base filosófica a

gerações de terroristas desde então.

28 Cfr. Acórdão em Entscheidungen des Reichsgericht in Strafsachen, Vol. 63, pp. 211 e ss.

31

alternativo, e, assim, excluir a imputação de um resultado típico à acção negligente do

seu Autor, se e quando tal resultado teria surgido igualmente com um

comportamento diligente29.

Em suma: temos para nós que a importação para a discussão dogmática penal

do conceito sociológico de sociedade do risco, tal como foi feita, denota ter resultado de

um susto doutrinal, um eco no campo do jurídico do alarme sociológico, ou social,

dado por Beck. Que a sociedade de risco, a nossa sociedade actual, tem riscos outros que

não aqueles que existiam há um século atrás, é notório e inequívoco. Dir-se-ia

mesmo, aqui sim, ser da natureza das coisas. Mas daí a concluir pela imediata falência do

sistema penal para fazer face – com os instrumentos e princípios que o caracterizam – aos

comportamentos criminosos próprios deste mundo novo, vai mais do que um passo.

Vai um salto de gigante. Que apenas serviu, potenciando os medos da modernidade, para

uma histeria doutrinal, isso é que se nos afigura indesmentível, histeria essa que é (ela

sim) própria da modernidade reflexiva tal como caracterizada por Beck30.

Vejamos, pois, se o direito penal liberal de matriz antropológica tem virtualidades de

adaptação e conformação dessas novas realidades. Se é suficiente. Ou se, ao invés,

carece de uma reforma profunda, de uma alteração dos paradigmas sobre que tem

assentado.

2. A suficiência do direito penal em adaptação às novas realidades

29 Hans-Heinrich Jescheck/Thomas Weigend, Tratado de Derecho Penal, Parte General,

Trad. Miguel Olmedo Cardenete, 5ª Ed., Comares, Granada, 2002, p. 629.

30 No Jornal Expresso de 11/01/2010, Clara Ferreira Alves escreve, com acerto: “Estar em

guerra com o terror é tão estúpido como estar em guerra com o medo ou com o cancro. São factos, não são declarações de

guerra. São, às vezes, sentimentos. (…) Nunca será possível prever todos os terroristas, todos os desocupados, todos os

recrutados, todos os anarquistas, todos os psicopatas, todos os extremistas, todos os socialmente desadequados, todos os

vingadores e todos os vingativos. (…) A histeria trará consigo o desnorte. Desde o dia de Natal, data do atentado, a

América esqueceu-se da crise económica, do sistema de saúde, de tudo. A gritaria nos media é tanta que Obama será

empurrado para produzir afirmações inventadas pela Administração Bush para justificar o status quo.” (O terrorista

perfeito, in Jornal Expresso, 11/01/2010).

32

2.a. Sempre o Direito perseguiu a realidade, para a normativizar! Dada a sua

génese, bem como atenta a respectiva função, mal se compreenderia que fosse o

Direito a antecipar-se à vida. O Direito serve para resolver problemas do Homem31.

Quando eles surgem, não por antecipação. Nem poderia nunca, em bom rigor, uma

ordem normativa preceder a realidade a disciplinar.

Assim que, perante uma realidade de riscos incomensuráveis, para os quais o

Direito só teria acordado por força do alerta da sociologia (o que só por si é uma assunção

que nos motiva alguma perplexidade!), logo se alvitrou que a superação dos paradigmas em

que assentava o direito penal era inexorável. Isto sem antes se ter tentado levar ao

limite a adaptabilidade dos instrumentos conhecidos. Sem testar caminhos outros,

que permitissem a salvaguarda do património garantístico acumulado32.

E se assim era, perante tantos e tão graves riscos (mesmo sem se ter vivido os que

avassalaram o Mundo desde o Ano 2000), logo se defendeu que o propósito do direito

penal teria de deixar de ser o de sancionar comportamentos de seres humanos

individualmente considerados, ainda que actuando em conjunto, e encontrando a

justa medida da respectiva responsabilidade e castigo, passando antes a ser uma

regulação de condutas perigosas, de indivíduos incertos ou categorias deles, como

parte da gestão do risco da vida em sociedade.

Ora, a nosso ver, quer por força do que dissemos quanto à natureza das causas

da mudança anunciada, quer mercê das consequências que tal mudança nos traria, tal

caminho tem de ser evitado a todo o custo. Vejamos.

2.b. Vários eram os obstáculos que a Doutrina encontrava no direito penal

pré-existente para tutelar os mega-riscos da segunda modernidade. Desde logo o facto de

31 R. Stammler, La génesis del derecho, Comares, Granada, 2006, pp. 9 a 12.

32 Por isso se utilizou, atrás, a palavra “histeria” para caracterizar a reacção jurídica à descoberta

da sociedade do risco, porquanto o movimento de desconstrução do existente foi, a nosso ver, célere,

aflito, motivado também ele por um típico medo colectivo. Aliás, não deixa de ser curioso ter Figueiredo

Dias, numa primeira reflexão, resistido totalmente a tal movimento histérico, o que constitui um mérito

que lhe cabe reconhecer, e mesmo posteriormente ter mantido a serenidade suficiente para se opor à

ideia da necessidade de superação dos paradigmas existentes – assim Figueiredo Dias, op. cit., p. 158, n. 3.

33

este assentar na tutela de bens jurídicos33, de recusar a responsabilidade dos entes

colectivos e de ter exigências demasiado estreitas a nível de imputação objectiva e

subjectiva.

Dediquemos algumas breves linhas para sumariar o argumentário utilizado

por alguma da doutrina portuguesa mais autorizada34, no sentido de demonstrar que

nenhum desses alegados óbices é de molde a justificar uma qualquer revolução no

âmbito da dogmática penal.

i – Quanto à questão do bem jurídico – Como bem coloca o problema

Figueiredo Dias, “a questão básica que aqui se suscita, como Roxin lapidarmente a definiu,

reside em saber se a introdução do topos da „sociedade do risco‟ na função do direito penal tem por

força de significar o fim da protecção de bens jurídicos (…). À questão terá de responder-se

afirmativamente se se considerar que, (…), se torna indispensável guardar um seu carácter

extremadamente antropocêntrico, que dele só permite falar quando estão em causa interesses reais,

tangíveis e portanto também actuais do indivíduo. (…) E a resposta afirmativa continuará a impor-

se quando se defenda que bens jurídicos da comunidade só podem ser aceites se e na medida em que

eles se constituam em meros mediadores também com interesses das pessoas individuais”35.

Porém, o certo é que nada há que autorize defender que só existam bens

jurídicos penalmente tuteláveis se exclusivamente pessoais. É que, paralelamente a

bens jurídicos individualmente encabeçados, há bens jurídicos transpessoais, colectivos,

sociais, tão legítimos como os individuais para servirem de suporte às incriminações.

E assim é relativamente aos novos riscos, tal como sempre o foi relativamente a crimes

clássicos, como o crime de lesa-majestade (que nunca tutelou apenas a vida do monarca, pois

33 Neste sentido G. Stratenwerth, Zukunftssicherung durch die Mitteln des Strafrechts?, Zeitschrift

für die gesamte Strafrechtswissenschaft, 105, 1993, pp. 679 e ss. Cfr. igualmente Paulo Silva

Fernandes, op. cit., pp. 96 e ss.

34 Novamente Figueiredo Dias, op. cit., pp. 173 e ss., e Augusto Silva Dias, Protecção Jurídico-

Penal dos interesses dos cosumidores, Coimbra, Faculdade de Direito, policopiado, 2000, p. 16, e Entre „comes

e bebes‟: debate de algumas questões polémicas no âmbito da protecção jurídico-penal do consumidor, Revista

Portuguesa de Ciência Criminal, 8 e 9, 1998 e 1999, respectivamente p. 515 e p. 45. Paulo Silva

Fernandes, op. cit., pp. 82 e ss.

35 Figueiredo Dias, op. cit., p. 173. Cfr. ainda Paulo Silva Fernandes, op. cit., p. 84 e pp. 87 e ss.

34

para isso existia o homicídio), e, hoje, todos os crimes contra a soberania nacional e

contra a realização do Estado de Direito.

E nunca se viu ninguém que encarasse a incriminação dos atentados aos

Chefes de Estado prevista na generalidade dos Códigos Penais como servindo apenas

para tutela do bem jurídico vida ou integridade física do titular de tal cargo36.

Em suma, nenhuma novidade existe para a dogmática penal em uso, tal como

a não há para os direitos legislados, com a constatação de que há bens jurídicos de

ambas as categorias referidas.

Questão diversa é a de saber se a doutrina tem desenvolvido sobejamente a

dogmática dos bens jurídicos colectivos e sociais. Mas que o direito penal liberal de

matriz antropocêntrica tem em si a virtualidade de tutelar bens jurídicos supra individuais é

inequívoco, pelo que, pelo menos por esta razão, se não concebe como possam os

bens jurídicos sociais lesados ou perigados pelos mega-riscos ser insusceptíveis de tutela

com recurso ao armamento penal conhecido. Tanto mais num sistema constitucional em

que, como o Português, os direitos sociais, económicos e culturais (e bem assim a

natureza, a ecologia, etc.), têm consagração expressa, o que apenas reforça a

susceptibilidade de se erigirem como bens jurídico-penais caso tal tipo de tutela se

mostre necessária.

ii – Quanto à responsabilidade de entes colectivos – Um dos mais utilizados

argumentos de quantos apontam ao direito penal incapacidade para tutelar as

consequências da sociedade do risco é a manutenção do dogma da responsabilidade

penal individual ou personalizada. Ora, como bem afirma Figueiredo Dias “já antes e

independentemente de uma „dogmática do risco‟, o preconceito do carácter individual de toda a

responsabilidade penal (…) havia feito o seu curso e havia sido definitivamente abalado. E para

tanto a legislação e a doutrina penal portuguesas prestaram um contributo bem mais importante do

que tantas outras que só muito recentemente ultrapassaram (quando tenham já ultrapassado…) os

36 Só assim se compreende, aliás, que o art.º 327º do Código Penal português preveja uma

moldura penal de 5 a 15 anos para quem atente contra a vida ou a integridade física do Presidente da

República, sendo a pena a aplicar, se houver consumação do crime contra a vida ou contra a

integridade física, a pena prevista para esse crime, mas agravada de um-terço nos seus limites mínimo

e máximo.

35

escolhos da incapacidade de acção e da incapacidade de culpa jurídico-penais que tradicional e

axiomaticamente se considerava atingirem toda a responsabilidade penal de entes não individuais.”37

Ora, diremos nós, quer a actual conformação da responsabilidade penal das

pessoas colectivas, fruto do desenvolvimento do direito penal liberal antropocêntrico, quer

o mecanismo, conhecido e talvez pouco utilizado ainda, da responsabilidade penal pela

actuação em nome de outrem (tão importante nos casos de responsabilizar os quadros de todo o tipo de

instituições)38, permitirão inequivocamente e com passos seguros dar solução a muitos

dos problemas encontrados pelos defensores do direito penal do risco. E assim

desfazendo muitos dos problemas encontrados também ao nível da imputação

objectiva e subjectiva, do erro, da participação criminosa.

Aliás, a criminalidade organizada – conceito pretérito também à sociedade do risco –

tem encontrado soluções dogmáticas adequadas à luz do direito penal conhecido, sendo

os problemas experienciados por esta realidade muito mais de controlo material, i.e., de

enforcement, do que de natureza dogmática.

iii – Quanto aos problemas da imputação objectiva – Neste domínio é

amiúde afirmado que a sociedade do risco impõe uma nova dogmática, dotada de

novos e anómalos critérios de imputação, sob pena de deixar sem responsáveis muitos

dos comportamentos geradores de mega-riscos.

A tal conclusão se chega por se constatar que há “um acentuado enfraquecimento,

atenuação ou „amolecimento‟ da relação entre a acção e o bem jurídico (não necessariamente o

resultado!) protegido pelo tipo – mesmo para além do que era doutrinariamente aceite (com reservas

ou mesmo à contre-coeur) em matéria de crimes de perigo”39.

37 Figueiredo Dias, op. cit., p. 178.

38 Paulo Saragoça da Matta, O artigo 12º do Código Penal e a Responsabilidade dos “Quadros” das

“Instituições”, Coimbra Editora, Coimbra, 2001. Cfr., ainda, Paulo Silva Fernandes, op. cit., passim.

39 Figueiredo Dias, op. cit., p. 180, que linhas adiante conclui: “Isto dito, deve concluir-se que os

perigos para a dogmática jurídico-penal tradicional resultantes da „antecipação da tutela‟ podem ser, também no âmbito

da sociedade do risco, esconjurados, em certos casos mesmo, se tanto se afigurar necessário, tornando em crimes

formalmente de dano tipos que, substancialmente, são na realidade de perigo ou mesmo de perigo abstracto. Decisiva é a

opção legislativa de valorar ou não valorar tais comportamentos como crimes: onde, há que reconhecê-lo, se torna

particularmente sensível a „questão da legitimação‟, mas onde também, como ficou dito, não pode negar-se a existência de

bens jurídicos colectivos dignos e necessitados de tutela penal. Uma vez legitimamente tomada a decisão da

36

Certo é, porém, que demonstrado não está serem estéreis, para efeitos de

garantir a imputação objectiva relativamente a comportamentos geradores de mega-

riscos, os critérios já desenvolvidos relativos à criação ou potenciação de um perigo não

permitido, doutrina esta que tanto deve a Claus Roxin40.

Também quanto aos problemas da imputação subjectiva valem, mutatis

mutandis as considerações atrás expendidas41.

2.c. Assim que tenha de concluir-se que a tutela dos mega-riscos

característicos da sociedade actual deva fazer-se, ainda e sempre, por intermédio do

direito penal em uso, sujeito aos mesmos paradigmas e princípios que o têm

caracterizado. Não é necessária, pois, uma nova dogmática jurídico-penal.

Obviamente que tal afirmação não afasta a necessidade de se desenvolver

aspectos dessa mesma dogmática tradicional, nomeadamente no campo dos crimes

omissivos, dos crimes negligentes, dos crimes de organização, etc.42

Questão diversa, essa sim, será a do processo penal futuro, e, bem assim, dos

critérios de eleição a ser utilizados pela política criminal, bem como da penologia.

Temas que passamos a aflorar sumariamente.

3. As mudanças impostas pela sociedade do risco no âmbito do direito

3.a. Estamos em crer, pelo que atrás expendemos, que uma mudança de

paradigma na dogmática penal não é imposta pelos medos associados à sociedade do risco.

Porém, já entendemos, ao invés, que precisamente as características da sociedade

criminalização, não se vê onde tenham necessariamente de intervir „critérios atípicos de imputação‟ que ponham

definitivamente em causa os princípios da legalidade e da culpa jurídico-penal”.

40 Claus Roxin, Strafrecht – Algemeiner Teil, Band I, 2. Aufl., Verlag C.H.Beck, Munchen, 1994,

§ 11, B.

41 Far-se-ia uma excepção, apenas, à eventual necessidade de rever os critérios de distinção

prática entre duas categorias fronteiriças, e que mesmo para os crimes clássicos têm gerado algumas

dificuldades no momento da jurisdição: referimo-nos à fronteira entre o dolo eventual e a negligência

consciente, conceitos estes dogmaticamente distinguíveis sem dificuldade, mas cuja aplicação judicial

não tem sido caracterizada por grande homogeneidade nem perenidade.

42 Exactamente no mesmo sentido, Paulo Silva Fernandes, op. cit., pp. 114 e 115.

37

actual que levaram Beck a crismá-la de sociedade do risco, impõem reflexões novas, de

desenvolvimento, ao nível da política criminal, da penologia e, principalmente, do

processo penal. Seja para permitir uma actual e efectiva conformação legislativa às

necessidades do nosso tempo, seja para garantir que a violação da lei merece também

uma actual e efectiva perseguição e castigo.

3.b. Como breve apontamento relativo à penologia, de referir que um

aumento da importância do risco gerado por comportamentos negligentes levará,

concomitantemente com o atrás referido desenvolvimento necessário da dogmática

dos crimes negligentes, a uma reponderação das molduras penais para tal tipo de

criminalidade negligente, isto partindo da assunção dogmática de que a simples

previsão da ameaça da pena – e sua dureza – tem uma função de comando (por si só), dos

comportamentos sociais.

Paralelamente, e na mesma linha, se poderia fazer igual raciocínio para os

crimes omissivos, admitindo-se também aqui, v.g., que a posição de garante e a

solidariedade social podem ser potenciadas por tal via.

Por outra banda, a própria admissibilidade da responsabilidade penal de entes

institucionais imporá necessariamente um desenvolvimento da própria tipologia das

penas, procurando encontrar castigos outros que possam servir de punição e re-

socialização consequentes de tais entidades.

Ainda nesta senda, e sem ser propriamente consequência da sociedade do risco,

mas que esta igualmente impulsiona, sempre se terá de buscar por outro(s) tipo(s) de

sanção, mesmo para as pessoas singulares, demonstrada que está a relativa falência do

sistema carcerário no campo da resocialização dos criminosos, e o seu extraordinário

custo social e económico em geral.

3.c. Deixámos para o fim um breve bosquejo pelos desafios que a sociedade do

risco, e a especial criminalidade que a caracteriza, lançam ao Processo Penal. Aqui sim,

diríamos sem hesitar, se joga verdadeiramente a sorte e o sucesso de todo e qualquer

direito penal, e, assim, do direito penal que tem de fazer face à criminalidade típica

desta segunda modernidade.

E assim o entendemos mesmo perante legislações processuais penais actuais,

em permanente devir e adaptação aos novos desafios da sociedade, i.e., legislações

38

processuais penais não retrógradas nem desajustadas nos novos tempos, como cremos

ser o caso do direito processual penal português43.

i. Num primeiro momento, e sem prejuízo da amplitude considerável das

medidas de coacção e de garantia patrimonial já previstas no Código de Processo

Penal português (CPP), salientar-se-ia a eventual necessidade de adaptar ou clarificar

esse catálogo, de molde a satisfazer as necessidades investigatórias e cautelares de

alguns tipos de crime típicos da sociedade do risco.

Imaginem-se, meramente a título de exemplo, crimes ambientais e crimes

financeiros no âmbito dos quais fosse necessária uma suspensão de actividade da

instituição no âmbito da qual, ou através da qual, esses mesmos comportamentos

típicos tivessem sido desenvolvidos. Obviamente que a proibição genérica de

exercício de uma actividade vem já legalmente prevista, mas antecipa-se sem

dificuldade os obstáculos jurisprudenciais que seriam levantados na eventualidade do

decretamento de uma medida de tal natureza, por força da ponderação dos direitos

dos respectivos trabalhadores, fornecedores, credores, etc.

Também a muito recente incriminação, com penas até 10 anos (recorde-se),

dos donos de animais de companhia44 que ataquem, causando graves ofensas à

integridade física, de terceiros, levantará a questão da admissibilidade de uma ordem

43 Sublinhamos, aqui, expressamente, a nossa convicção da bondade geral e actualidade do direito

processual penal português, nos últimos anos tão discutida em Portugal, especialmente por quem do

direito processual penal tem um conhecimento mediano, senão fraco, mas goza de acesso ao poder

legislativo e aos meios de comunicação social. Todos esses críticos (muitos deles ocupando cadeiras

parlamentares no núcleo mais duro da produção legislativa), a quem dificilmente se reconhecem

méritos e saber justificadores da respectiva opinião, lançam o chaos ao desacreditar um instrumento

legislativo cuja matriz geral é incriticável (sendo os motivos de crítica existentes, na sua esmagadora

maioria, fruto de alterações legais irracionais levadas a cabo nos últimos anos por parte de um poder

político demasiado interessado na sorte de concretas investigações), tanto mais quando comparado com

iguais diplomas em vigor na Europa e na América.

44 E aqui não se pode esquecer que alguns dos proprietários desses animais são criadores que

se dedicam profissionalmente à reprodução de tal tipo de animais, v.g. PittBulls, Rotweillers, etc., e os

treinam especificamente para fins de combate, e por isso são procurados por gangs, grupos extremistas,

etc.

39

judicial que, v.g., ordene o abate do animal em questão, e mesmo de outros que o

dito titular tenha, ou crie, com as mesmas características do animal perigoso.

Por último, uma referência para o facto, notório, de algumas das medidas de

coacção já previstas carecerem necessariamente de uma adaptação à circunstância de o

Arguido poder ser um ente colectivo45.

Cremos, pois, que estas ponderações implicarão, com maior ou menor

brevidade, uma reponderação – que não uma revolução – destes fundamentais

instrumentos para o atingir dos fins do processo penal.

ii. Outra área processual penal em que seguramente se terá de proceder a um

profundo desenvolvimento é a das vias de contactos entre soberanias, i.e., da

cooperação judiciária internacional em matéria penal. Como bem tem sido

demonstrado pela União Europeia, ao procurar criar uma zona de liberdade, segurança e

justiça comum46, assim ultrapassando o patamar que até agora vigorou entre Estados,

a aproximação e tendencial homogeneização de regras processuais de investigação e,

até, de julgamento, é mecanismo essencial e imprescindível para um consequente

combate a toda a criminalidade transnacional.

Ou seja, a área da cooperação judiciária internacional será por certo um dos

nódulos dogmáticos em que maior terá que ser o desenvolvimento dos mecanismos

legais, e a implementação de efectivas relações de cooperação, sob pena de toda a

criminalidade que transborda das fronteiras dos Estados ficar impune. Mas não só! É

que se é certo que a nível de investigações a cooperação é conditio sine qua non para que

sequer os processos possam chegar à fase da acusação, não menos certo é que os

procedimentos de exequatur, relativamente a decisões de Estados exteriores ao espaço

da U.E., terão igualmente de sofrer um amplo desenvolvimento.

Tais desenvolvimentos, por se traduzirem em reformas no âmago dos

poderes de soberania que caracterizam cada Estado, serão por certo os mais difíceis

45 Situação esta que, todavia, poderá ser facilmente contornável por apelo aos mesmos

princípios que subjazem ao art.º 12º do Código Penal, i.e., à responsabilização penal pela actuação em

nome de outrem.

46 Anabela Miranda Rodrigues, A emergência de um „Direito Penal Europeu‟ – questões urgentes de

política criminal, in http://www.ieei.pt/files/Questoes_politica_criminal_Anabela_Rodrigues.pdf.

40

de implementar, não obstante deles depender a fatia de leão da eficácia do combate à

criminalidade mais grave da sociedade do risco.

Iguais desenvolvimentos terão igualmente de vir a verificar-se no domínio do

instituto da extradição, como parece resultar óbvio.

iii. Detecta-se, por outro lado, uma área em que as reformas processuais

penais se impõem não só mercê das características próprias da sociedade do risco

(nomeadamente a característica da extrema mediatização da própria justiça), mas também porque,

ainda antes dessa mesma mediatização, era já exigência posta pela sociedade a todos

os poderes, e, assim, também ao poder judicial. Referimo-nos à imperiosa

necessidade de um célere processamento dos pleitos criminais, dos quais depende,

não só, a restauração da paz social, mas, em particular, a confiança da sociedade nas

instâncias formais de controlo, e, em última análise, no próprio poder do Estado.

Com efeito, mesmo relativamente a alguma criminalidade tradicional, os

últimos anos têm sido caracterizados, em Portugal como na generalidade dos países

ocidentais, por uma atenção permanente da sociedade e dos meios de comunicação

social ao problema candente do atraso da justiça criminal47.

Ora, se assim é relativamente à criminalidade dita tradicional, imagine-se a

desconfiança na Justiça e o descrédito em que cairá o próprio Estado, para já não

falar no alarme social adjunto, se tais atrasos respeitarem a processos criminais

relativamente a crimes enquadráveis na categoria dos crimes próprios da sociedade do

risco. A título meramente exemplificativo recorde-se a extrema celeridade com que as

Justiças Americanas iniciaram, processaram e terminaram o processo criminal pela

maior fraude financeira dos últimos anos nos EUA, conhecido como Caso Madoff,

caso esse que, em Portugal, demoraria, mesmo apenas para um processamento em

primeira instância, longos anos.

Assim que se nos afigure imprescindível, para fazer face às exigências

inerentes à sociedade do risco, um repensar de toda a organização da investigação

criminal e até da jurisdição criminal, bem como da própria lei processual penal,

47 Atraso que é indesmentível, insusceptível de ser camuflado e que é a todos os títulos

injustificável, sendo responsável pela consequência tenebrosa de a justiça portuguesa ter sido lançada

na mais grave crise de credibilidade de que há memória.

41

dotando-a de instrumentos e mecanismos susceptíveis de, com celeridade e rigor,

fazer justiça nesses casos que mais profundamente ferem a estabilidade e confiança da

sociedade48.

iv. Por outro lado, embora seja matéria regulada, por tradição e por motivos

dogmáticos, no Código Penal, afigura-se-nos, dada a sua projecção de consequências

no exercício da jurisdição, dever ser tratada nesta sede: referimo-nos ao instituto da

prescrição dos crimes e das penas.

Quanto à prescrição, e precisamente atenta a consequência esmagadora, num

plano social e comunitário, dos comportamentos potenciadores de mega-riscos, tal

como mercê da imperiosa necessidade de garantir uma restauração da paz social,

assente na consciência colectiva de que o pecador purgou o respectivo pecado, entendemos

que tal instituto terá de ser objecto, pelo menos relativamente a esta categoria de

crimes que lesam bens jurídicos de toda a sociedade, de uma profunda revisão.

Relativamente a todos esses crimes que lesem bens jurídicos que são,

reconhecidamente, de toda a colectividade, como o são os crimes financeiros

geradores de danos para o sistema bancário, nacional e/ou internacional, os crimes

ambientais, os crimes de terrorismo, etc., deveria o sistema legal excluí-los da

prescritibilidade. Na verdade, a segurança que será dada à sociedade no seu todo de

que o tempo não será o factor determinante da impunidade, termos em que uma tão

grave lesão de bens da colectividade não fica nunca sem castigo pelo mero decurso

do tempo, permitirá um aumento considerável da confiança dessa mesma sociedade no

48 Precisamente cientes desta situação de crise, elaborámos e apresentámos ao Sindicato dos

Magistrados do Ministério Público de Portugal um projecto de reforma das formas especiais de processo

penal, projecto esse que tendo sido acolhido – neste aspecto na quase totalidade – por tal Sindicato, foi

pelo mesmo apresentado ao Governo português – em Dezembro de 2009 –, que o terá transmitido a

uma Comissão que se encontrava encarregue de apresentar uma urgente e tópica reforma do CPP

português que corrigisse alguns dos lapsos resultantes de uma infeliz reforma do Ano de 2007, e

permitisse agilizar o processo penal em Portugal. Os trabalhos da referida Comissão ficaram

concluídos no dia 11 de Janeiro de 2010, encontrando-se a dita proposta, no momento em que as

presentes linhas são escritas, nas mãos do Governo da República para elaboração de uma proposta de

Lei a ser votada no Parlamento. Ver-se-á até que ponto há o discernimento e coragem para atacar

algumas das causas já detectadas do atraso da justiça criminal portuguesa.

42

império do poder do Estado e na vigência do princípio da retribuição49, que não sendo

o fim único a justificar a aplicação das penas, é contudo fundamental para evitar uma

boa parte do descrédito da Justiça e do desrespeito pela Lei nas sociedades

massificadas.

Ademais, a declaração da imprescritibilidade desses crimes não só não é

inaudita em termos dogmáticos e legais50, como poderá certamente reforçar o papel

de prevenção que hoje já detém a geral ameaça da pena.

v. Quanto às afirmações que seguem admite-se que poderão, numa primeira

leitura, ser olhadas de soslaio por alguma doutrina, senão mesmo, em alguns casos,

despertarem reacções de alguma violência. Com efeito, é sabido o temor generalizado

no que respeita à constituição dos Tribunais. Temor legítimo, fruto da experiência

histórica confirmada de que por regra os poderes autocráticos se servem da Justiça para

criar instrumentos de perseguição aos seus adversários, sob uma capa aparentemente

legítima de juris dictio!

São conhecidos exemplos, em toda a história da humanidade e em todas as

localizações geográficas, de tribunais ad hoc, de tribunais plenários, de tribunais de Estado,

que serviram tais propósitos de justicialismo ideológico, de controlo autoritário ou

ditatorial, de perseguição do outro.

Porém, uma boa parte da repulsa dogmática aos tribunais especiais desapareceu

com a institucionalização de tribunais penais internacionais, seja o caso histórico do

Tribunal de Nuremberga, seja o mais recente Tribunal Penal Internacional para a Ex-

Jugoslávia.

Ora, temos para nós que a especialização é o caminho inexorável da justiça

em geral, e assim também da justiça criminal e respectiva jurisdição. Com efeito, o

especial conhecimento das polícias e dos magistrados (investigadores e julgadores) em

áreas específicas da criminalidade, principalmente em matérias de especial

49 A título exemplificativo imagine-se a dificuldade que haverá em justificar às sociedades,

nacionais e internacional, a prescrição de crimes como os que determinaram as mortes causadas no 11

de Setembro nos EUA ou no 11 de Março em Madrid.

50 Recorde-se que são vários os ordenamentos criminais que têm já categorias de crimes

imprescritíveis, incluindo nesse âmbito não só crimes maiores, como por exemplo contra a Soberania

Nacional ou o Estado, mas também crimes de geração mais recente, como é o caso dos crimes fiscais.

43

complexidade técnica e científica, será causa determinante do sucesso ou insucesso

das investigações e do consequente sancionamento, ou não, de comportamentos

ilícitos praticados nessas mesmas áreas especiais do conhecimento. Assim sucederá

em matérias de notória actualidade tecnológica, como o ambiente, a informática, a

ciência (medicina, química, farmácia, física, etc.), a finança internacional, etc.

Assim sendo, como se nos afigura indesmentível, estamos em crer que no

que respeita à competência e composição dos Tribunais criminais terá de caminhar-se

no sentido de uma sub-especialização. I.e.: a criação de tribunais criminais cuja

competência em razão da matéria lhes permita dominar tais matérias e

conhecimentos especialíssimos, independentemente da área territorial sobre a qual

têm jurisdição, e do mesmo passo permitirão uma maior celeridade no

processamento dos casos cujo objecto seja integrado por essa criminalidade

especialíssima.

vi. Uma outra matéria em que terá de haver evolução em alguns

ordenamentos processuais penais, o que não é o caso do CPP português, assim

garantindo a inexistência de buracos na cobertura jurisdicional de todo o espaço

geográfico vivido pelo Homem, é o da determinação dos factores atributivos de

competência às jurisdições nacionais, consagrando-se, sem excepção, o princípio da

ubiquidade, modo único de garantir que não surgirão conflitos negativos de

competência em casos de criminalidade transnacional e internacional.

Neste particular, e sendo uma consequência dos desenvolvimentos da

tecnologia característica da sociedade do risco, mas aplicando-se à investigação e

julgamento de crimes que nada têm que ver com as características dessa mesma

sociedade (porquanto valerá antes de mais para crimes clássicos cometidos para além das fronteiras

de todas as soberanias), convirá à dogmática começar a reflectir sobre a competência

territorial relativa a crimes cometidos fora do território de todo e qualquer Estado, i.e.,

os crimes cometidos no espaço suborbital (mas ainda assim tão distante da terra que

44

dificilmente se poderia determinar o factor de competência de um determinado

Estado), no espaço inter-planetário, no espaço galáctico e inter-galáctico51.

Com efeito, se é certo que ainda se não fizeram viagens tripuladas para fora

do espaço inter-planetário, seria de toda a conveniência que os critérios de atribuição

de competência estivessem pensados com anterioridade a qualquer evento aí

ocorrido e carente de julgamento. Ademais, com as constantes viagens orbitais

tripuladas que já se fazem, afigura-se-nos pouco curial que se mantenha o princípio

do pavilhão para resolver estes casos, tanto mais que é sabido que muitas dessas

mesmas viagens são resultado de associações de Estados, e como tal o princípio do

pavilhão não poderá ser de grande utilidade.

vii. Outra área do processo penal que terá de ser objecto de alguma reflexão,

no sentido da adequação às situações criadas nesta segunda modernidade, é a que respeita

aos sujeitos do processo penal. Tradicionalmente são sujeitos do processo penal, na

maioria dos ordenamentos jurídicos, o Tribunal, o Acusador e o Arguido. Nalguns

ordenamentos, como o português, existe ainda o Assistente, i.e., o Acusador privado,

de certo modo a institucionalização no processo da vítima do crime ou de outras entidades

a esta equiparadas (situação esta que constitui uma verdadeira originalidade do processo penal

português no quadro das leis processuais penais europeias).

Ora, no que concerne ao Tribunal, já atrás antecipámos o que é o nosso

entendimento sobre as mudanças que se impõem relativamente a este sujeito

processual: não vemos necessidades de alteração estrutural à posição deste sujeito,

mas consideramos imprescindível uma modificação no que respeita à especialização e

composição dos Tribunais adequados aos tipos de criminalidade referidos.

Também no que respeita ao Acusador, o Ministério Público no ordenamento

jurídico português, a única modificação que se antevê é relativa à especialização de

procuradores em razão das matérias, o que permitirá uma maior consequência das

investigações criminais.

51 R. Stammler, La génesis del derecho, Comares, Granada, 2006, pp. 17 a 19, 22, 25 e ss., apesar

de nesse texto se referirem os problemas existentes em 1922 postos à territorialidade pela navegação e

pela navegação aérea.

45

Já no que respeita à posição de Assistente, consideramos que a tradição

portuguesa tem há muito um mecanismo que pode servir de pedra de toque da

resolução dos problemas que são e serão postos pela criminalidade da sociedade do

risco, i.e., um instrumento de alargamento da posição de vitima / acusador particular no

âmbito dos processos penais. Historicamente qualquer um do povo podia constituir-se

como Assistente nos processos criminais sempre que estivessem em causa certos

crimes que se consideravam ofender a generalidade dos cidadãos. Tal filosofia base

acabou por ser parcialmente acolhida no actual CPP, que no respectivo art.º 68º n.º 1

al. e) permite a qualquer pessoa constituir-se assistente em determinado tipo de

crimes elencados pelo legislador: assim sucede, actualmente, nos crimes contra a paz e a

humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por

funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em

negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção.

Por outro lado, o próprio corpo do n.º 1 do referido art.º 68º refere que

Podem constituir -se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais

conferirem esse direito… i.e., leis especiais podem conferir a determinadas pessoas ou

entidades o poder de se constituírem Assistentes no processo criminal, o que

significará que leis avulsas podem reconhecer a conveniência e necessidade de,

relativamente a determinados tipos de crime, permitir a tais entidades participarem

no processo criminal com tal estatuto.

Ora, precisamente levando em linha de conta quanto atrás expendido

relativamente à manutenção da valia do conceito de bem jurídico protegido no âmbito do

direito penal que tutelará os mega-riscos emergentes da sociedade do risco, dir-se-ia

que de duas, uma: ou o elenco do art.º 68º n.º 1 al. e) CPP deveria ir sendo

actualizado conforme as considerações de política criminal demonstrassem a

necessidade de permitir às vítimas dos crimes (sempre que se trate de vítimas múltiplas ou

pulverizadas) que interviessem enquanto sujeitos nos processos penais; ou se eliminaria

o elenco fechado da referida alínea e), bem como a referência a maiores de 16 anos na

alínea a) (que foi pensada exclusivamente para pessoas singulares), assim consagrando nessa

mesma alínea a) uma categoria geral que abrangeria todos os titulares dos interesses que a

lei especialmente quis proteger com a incriminação. Com tal configuração, a concreta

46

admissão à posição de assistente em processo penal seria administrada e construída

paulatinamente pela jurisprudência52.

Em suma, partindo da consideração de que existem bens jurídicos supra

individuais, sejam os bens jurídicos sociais lesados ou perigados pelos mega-riscos, sejam

os bens jurídicos colectivos já conhecidos há muito, permitir-se a constituição como

assistentes de todos quanto sejam titulares desses mesmos bens jurídicos, ainda que

com limitações tendentes a não tornar o processo insusceptível de tramitação.

viii. Também no que concerne a todo o universo da prova terão de ser feitos

alguns desenvolvimentos necessários, se quisermos ter um processo penal adaptado às

exigências postas pela criminalidade típica da sociedade do risco.

Com efeito, embora se mantenha o paradigma da impossibilidade – mesmo no

que respeita aos mais emblemáticos crimes que a doutrina inscreve no círculo da criminalidade da

sociedade do risco, como é o caso do terrorismo – de alterar princípios gerais como o da

nulidade das provas (art.º 126º CPP), já se considera quase que impossível não pensar

em novos meios de obtenção de prova e/ou, concomitantemente, em novos meios

de prova. Isto apesar do carácter aberto dado ao sistema pelo princípio da legalidade

da prova (art.º 125º CPP). Tal alargamento, porém, terá de estar em estrita conexão

com os avanços tecnológicos e científicos, bastando, portanto, uma atenção

permanente da doutrina a esses mesmos desenvolvimentos, em ordem a evitar que o

sistema processual penal seja apanhado de surpresa por uma qualquer novidade

tecnológica que imponha novas respostas à questão como se faz a prova.

52 Não deixando esta solução (que seria dogmaticamente a mais adequada e a que

preferiríamos), de ser um risco, conhecendo a jurisprudência portuguesa, tão atavicamente defensora

de um conceito restritivo de assistente (como o demonstraram anos e anos de jurisprudência que

recusavam a obviamente necessária intervenção como assistentes dos particulares vítima dos crimes de

falsificação de documentos, de violação de segredo de justiça, de violação de segredo fiscal, etc.). Em

suma, não fosse uma desconfiança fundada na capacidade da jurisprudência portuguesa para conformar e

desenvolver o conceito de Assistente, consideraríamos que a solução da cláusula geral era a preferível.

Porém, como a prática milita contra a bondade de tal solução, talvez o ideal fosse o legislador

comandar a Justiça, neste particular, obrigando os Tribunais a reconhecer que em determinados tipos

de crime seria qualquer um do povo a poder constituir-se como Assistente.

47

Sucederá até, com grande probabilidade, que mais do que alterações aos

meios de prova tenha de ser aumentada a amplitude de um concreto meio de prova.

Referimo-nos à prova pericial, dentro de cuja categoria se jogará principalmente a

sorte dos processos penais relativos às mais recentes e tecnológicas formas de

criminalidade53.

Uma última referência a um dos princípios probatórios mais radicalmente

fixado no eixo do processo penal garantista que hoje defendemos, e que certamente

poderá vir a ser beliscado por entendimentos menos correctos do que sejam os meios

admissíveis de recolha de prova: referimo-nos ao princípio nemo tenetur se ipsum

incriminare. Na verdade, tal princípio não poderá deixar de ser mantido, e reafirmado,

em homenagem à perenidade e intangibilidade dos direitos de defesa do Arguido,

seja ele uma pessoa singular ou uma instituição (com a particular dificuldade de concretizar o

que seja o corpo do ente colectivo, para este efeito).

Deve dizer-se que questões relativas à violação deste princípio estão já a ser

colocadas, mesmo no domínio de processos criminais em que se investigam crimes

clássicos, porquanto tem vindo a ser admitido pela jurisprudência portuguesa que se

recolham provas no âmbito de procedimentos administrativos sancionatórios por

força de um dever de colaboração dos administrados, provas essas obtidas para o

processamento de tais procedimentos administrativos, mas que depois são exportadas

para processos criminais, onde as mesmas não teriam qualquer valor porque

literalmente extorquidas ao Arguido em violação do dito princípio54.

53 E terá necessariamente de discutir-se, também, a regra actualmente em vigor no art.º 163º

CPP, i.e., a do valor probatório das perícias, em princípio excluídas à livre apreciação do julgador. É

que se já é difícil admitir, em geral, que o relatório elaborado por técnicos dotados de especiais

conhecimentos científicos, técnicos ou artísticos, possa ser afastado pelo julgador. mais difícil ainda o

será se a matéria da especialização for de tal modo especialíssima que nem sequer todos os técnicos na área

da especialidade seriam capazes de integralmente entender as questões científicas, técnicas ou artísticas

em causa. Ou seja: se a prova pericial já só é admitida para matérias que exigem especiais

conhecimentos científicos, técnicos ou artísticos, e se nesses campos mal se compreende que um

Tribunal possa afastar-se das conclusões dos peritos, menos ainda se poderá aceitar que tal suceda em

matérias de especialidade tão avançada que permitam colocar o tipo de criminalidade em causa no

âmbito da criminalidade própria da sociedade do risco.

54 Tal tem sido particularmente notório em Portugal nos últimos anos, com entidades como

o Banco de Portugal e a Comissão de Mercado de Valores Mobiliários a exigir legalmente a colaboração

48

Em suma, nesta matéria da prova, que é aquela em que, em definitivo, se joga

toda a sorte do processo e todas as garantias nucleares de defesa do Arguido – temos

para nós que todo o processo é prova, e nada mais do que prova –, terá a doutrina de estar

particularmente atenta, bem como os Tribunais, para evitar que na aplicação prática

da Lei venham a surgir decisões que infirmem em concreto todos os princípios

fundamentais do sistema instituído.

ix. Uma referência final à matéria das medidas cautelares ou de polícia, i.e., às

providências urgentes que têm e devem ser tomadas por todas as instâncias formais

de controlo perante a descoberta de um crime, tendo em vista a conservação do

cenário do crime, a obtenção da prova disponível de imediato e a disponibilidade dos

suspeitos à ordem da Justiça.

Ponderando a extrema velocidade dos acontecimentos na nossa era, bem

como a volatilidade dos instrumentos e dos cenários dos tipos de crime nucleares à

sociedade do risco, afigura-se-nos imprescindível a circunscrição de medidas

cautelares ou de polícia efectivamente urgentes, que assegurem a mais rápida reacção

possível em cenário de crime. Consabidamente que essa reacção imediata será condição

necessária ao sucesso das investigações e à efectivação da Justiça, além de ser factor

maior de restauração da segurança e confiança da sociedade na prontidão da Justiça e

da eficácia do poder do Estado.

Nestas matérias, contudo, também o equilíbrio se estabelecerá entre os

poderes amplos das polícias criminais para a realização de tais medidas cautelares, com

os propósitos referidos, e os direitos de cidadania dos visados com tais medidas,

termos em que por mais amplos que sejam os poderes de emergência conferidos

àquelas, se terá por definição de assegurar uma fiscalização e validação das mesmas

das instituições arguidas e das pessoas singulares arguidas, para efeitos do direito administrativo

sancionatório de que são instrumentos de aplicação, mas a remeterem tais provas, assim obtidas,

posteriormente ao Ministério Público para que as utilizem em sede de processo criminal. Bons

exemplos destas situações são os processos contra-ordenacionais e criminais movidos ao Banco

Comercial Português e seus Administradores, ao Banco Português de Negócios e seus quadros, etc.

De espantar, essencialmente, a indiferença jurisprudencial a este tipo de comportamento, a todos os

títulos inadmissível quando olhado na perspectiva da Lei e da Constituição da República em vigor.

49

medidas, também com urgência máxima, por parte do sistema judicial. Sob pena de

se fazer através do processo penal aquilo que atrás se censurou aos que defendem um

direito penal do risco isento dos princípios garantistas e atropocêntricos do direito penal

liberal actual.

50

51

III. Conclusões

52

53

Terminado este breve bosquejo sobre o conceito do direito penal do risco e

sobre os desafios que o mesmo coloca à ciência conjunta do direito penal, julgamos

poder concluir com as duas seguintes ideias força:

Ser desnecessária, e profundamente inconveniente, a implementação

de uma qualquer mudança radical de paradigma penal por força das

características da sociedade do risco;

Ser conveniente e necessário desenvolver esse mesmo paradigma penal,

como sempre se fez, para permitir que o Direito acompanhe os

tempos e as realidades que a Humanidade cria e tem de enfrentar;

Ser imperioso que a política criminal, a penologia e o processo penal

desenvolvam novas e profundas reflexões que lhes permitam,

respectivamente, plasmar em lei as mudanças necessárias para a

disciplina da sociedade e para a conformação das reacções penais, seja

no plano das penas em uso doravante, seja no campo das regras

processuais necessárias à realização das investigações processuais

penais e à aplicação das sanções respectivas.

Sendo a verdade filha do tempo55, caberá aguardar pelo julgamento que este

último venha a fazer das ideias defendidas nas breves linhas apresentadas e que

deixamos à reflexão da doutrina e da jurisprudência.

55 Veritas filia temporis (Aulo Gellio, Noctes Atticae, 12,11).


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