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O FUTURO NAS MÃOS DA TÉCNICA: O DESTINO DO HOMEM E DA NATUREZA SEGUNDO HANS JONAS

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Oliveira, J. R. O futuro nas mãos da técnica 16 | Pensando Revista de Filosofia Vol. 4, Nº 7, 2013 ISSN 2178-843X O FUTURO NAS MÃOS DA TÉCNICA: O DESTINO DO HOMEM E DA NATUREZA SEGUNDO HANS JONAS The future in the hands of the technique: the destiny of man and nature by Hans Jonas Jelson R. de Oliveira PUCPR Resumo: Pretende-se, no presente artigo, analisar as raízes ontológicas da noção de técnica, demonstrando como ela faz parte do movimento de abertura - e de liberdade, portanto - da vida humana em direção ao futuro. Para isso, analisar-se-á como a técnica toma em suas mãos o destino do homem e da natureza, sob os riscos e os perigos que acompanham essa tarefa, pois onde habita a liberdade também cresce o perigo. Dada tal condição, é preciso ainda perguntar sobre as consequências éticas da manipulação do mundo provocada pela unificação entre teoria e prática (base da técnica moderna), cuja intervenção, dada a magnitude e a ambiguidade, torna tal poder dependente de um controle ético. Mostrar-se-á, assim, como o tema da técnica está no centro de uma proposta que faz da ontologia um fundamento para a ética. Palavras-chave: Hans Jonas; Técnica; Ontologia; Ética. Abstract: It is my intended, in this article, analyze the ontological roots of the concept of technique, demonstrating how it is part of the opening movement - and freedom, so - of human life toward the future. For this, it will be analyzed how the technique takes into their hands the destiny of man and nature, on the risks and dangers that accompany this task, because where freedom dwells also increases the danger. With this condition, we must still ask about the ethical consequences of the manipulation of the world caused by the unification of theory and practice (basis of modern technique), whose intervention, given the magnitude and ambiguity becomes such power dependent on an ethical control. We’ll show, how the theme of the technique is in the center of a proposal that consider the ontological foundation of the ethics. Keywords: Hans Jonas; Technique; Ontology; Ethics.
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Oliveira, J. R. O futuro nas mãos da técnica

16 | Pensando – Revista de Filosofia Vol. 4, Nº 7, 2013 ISSN 2178-843X

O FUTURO NAS MÃOS DA TÉCNICA: O DESTINO DO HOMEM E DA NATUREZA SEGUNDO HANS JONAS

The future in the hands of the technique: the destiny of man and nature by Hans Jonas

Jelson R. de Oliveira PUCPR

Resumo: Pretende-se, no presente artigo, analisar as raízes ontológicas da noção de técnica, demonstrando como ela faz parte do movimento de abertura - e de liberdade, portanto - da vida humana em direção ao futuro. Para isso, analisar-se-á como a técnica toma em suas mãos o destino do homem e da natureza, sob os riscos e os perigos que acompanham essa tarefa, pois onde habita a liberdade também cresce o perigo. Dada tal condição, é preciso ainda perguntar sobre as consequências éticas da manipulação do mundo provocada pela unificação entre teoria e prática (base da técnica moderna), cuja intervenção, dada a magnitude e a ambiguidade, torna tal poder dependente de um controle ético. Mostrar-se-á, assim, como o tema da técnica está no centro de uma proposta que faz da ontologia um fundamento para a ética. Palavras-chave: Hans Jonas; Técnica; Ontologia; Ética. Abstract: It is my intended, in this article, analyze the ontological roots of the concept of technique, demonstrating how it is part of the opening movement - and freedom, so - of human life toward the future. For this, it will be analyzed how the technique takes into their hands the destiny of man and nature, on the risks and dangers that accompany this task, because where freedom dwells also increases the danger. With this condition, we must still ask about the ethical consequences of the manipulation of the world caused by the unification of theory and practice (basis of modern technique), whose intervention, given the magnitude and ambiguity becomes such power dependent on an ethical control. We’ll  show, how the theme of the technique is in the center of a proposal that consider the ontological foundation of the ethics. Keywords: Hans Jonas; Technique; Ontology; Ethics.

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Introdução “Se  Napoleão  dizia:  ‘A  política  é  o  destino’,  

hoje bem se pode  dizer:  ‘A  técnica  é  o  destino’”  (Hans  Jonas).

Hans Jonas identifica na técnica um dos maiores desafios éticos dos tempos modernos. Como todas as demais ações humanas, a técnica guarda um potencial de ambiguidade quanto ao bem e ao mal que tangenciam suas consequências e efeitos no mundo natural e na imagem do ser humano. Tal ambiguidade é agravada do ponto de vista moral quando a ela se soma o diagnóstico a respeito da magnitude que vigora juntamente com esse novo poder: como nunca antes na história, um ser (o ser humano) detém em suas mãos o poder de intervir de forma tão definitiva no destino da vida sobre o planeta. A técnica desvela a natureza (incluídos aí o mundo natural e também o próprio ser humano) como passíveis de serem reconfigurados. O que está em jogo, portanto, é o destino da vida, tanto do ponto de vista formal (qual modo de vida queremos deixar de herança para as gerações futuras) quanto substancial (se, de fato, queremos deixar a vida para o futuro ou, ainda, se queremos mesmo um futuro e se, para isso, estamos dispostos a alterar nossas ações no presente).

A técnica como vocação Jonas pensa a técnica como um evento vital (ligado à condição mesma do destino humano sobre a terra) e como uma prerrogativa para que a vida humana, reconhecida em sua fragilidade em relação à morte e dependência em relação ao não vivo e às demais formas de vida, se mantenha na existência. Em outras palavras, a técnica é uma forma de liberdade como abertura da vida humana para o mundo a fim de vencer a fragilidade e o risco que esse grau ou estágio de autoafirmação contém. A técnica está inserida, então, no plano ontológico da liberdade que marca de forma crescente a essência da vida, desde o metabolismo, passando pelo movimento e apetição, sensação e percepção, imaginação, arte e conceito. Nas palavras de Jonas, trata-se  de  “uma  escala  ascendente  de  liberdade  e  risco  que  culmina  no  ser  humano”  (PV1, p. 8).

Para Jonas, porque a técnica, condição do homo faber, é uma expressão da atividade da vida em sua autoafirmação e em sua tentativa de preservação diante da ameaça do não-ser, ela está articulada com a atividade imaginativa do homo pictor e

1 No presente trabalho usaremos as siglas convencionais para citação das obras de Jonas, às quais se seguirá o número da página da edição que consta nas referências finais: PR (O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica); SDD (O século dezessete e depois: o significado da revolução científica e tecnológica); PV (O princípio Vida: fundamentos para uma biologia filosófica); PSD (Pensar sobre Deus e outros ensaios); TME (Técnica, Medicina e ética), MPF (Mais perto do perverso fim e outros diálogos e ensaios); FBM (O Fardo e a bênção da mortalidade). Os demais textos serão citados conforme as regras da ABNT. Todas as traduções são de nossa autoria.

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da racionalidade do homo sapiens. A capacidade de racionalidade, que envolve também linguagem e comunicação, gera também, do mesmo modo, a técnica como meio para a sua manutenção. A produção de imagens, como atividade na qual se revela  a  “liberdade  espiritual  e  corporal  que  nós  chamamos  de  humana”   (PV,  197)  e  que demanda certa capacidade de abstração que distingue o homem do reino dos animais que passa para forma geométrica e segue até o conceito racional. E que, depois   disso,   “o   controle   físico   demonstrado   em   sua   produção,   em   conjunto   com  aquela  abstração,  pode  em  algum  momento  levar  à  tecnologia”  (PV,  197).  A  atividade  da formação  de  imagens  está,  assim,  intimamente  ligada  à  capacidade  técnica  e  ela  “é  um  sinal  preliminar  e   inconfundível”  (PV,  197)  dos  graus  crescentes  de  liberdade  que  caracterizam o ser humano em sua transanimalidade e que se apresenta também como  uma  “diferença”  em  relação  às  demais  formas  de  vida.  A  imagem  dá  o  indicativo  das  “possibilidades”  que  marcam  a  forma  de  vida  humana  e  que,  no  âmbito  da  técnica,  dá concretude àquilo que, de início, é uma mera abstração.

A racionalidade, na forma de uma adequação da imagem à coisa, ou do intelecto   à   realidade   é   apontada   por   Jonas   como   “a   primeira   forma   da   verdade  teórica”  (PV,  194)  e,  assim,  senão  o  primeiro  benefício  para  o  avanço  da  técnica,  que  já  existia no estágio transanimal anterior (quando o homo faber ainda pertencia ao reino do animal e nem o homo pictor ou o homo sapiens tinham se desenvolvido hipoteticamente),  pelo  menos  uma  aliada  importante.  Como  as  imagens  “precisam  ser  produzidas,  não  apenas  concebidas”  (PV,  p.  195)  então  significa  que  a  técnica  é   irmã gêmea   da   capacidade   imaginativa,   pois   o   “recriador   de   coisas   é   potencialmente  também  o  criador  de  coisas”  (PV,  195).  Jonas  acentua  que  conceber  uma  imagem  é  a  condição primeira para a produção de um objeto ou de um processo de intervenção sobre o mundo. Eis o poder que liga a imagem à técnica.

Tal poder começa no poder do próprio corpo: escrever e dançar são formas de condução corpórea que derivam de uma ideia prévia – a mão desenha ou escreve o que  é  antes  imaginado  “em  seu  alcance  mais  amplo,  como  condição para toda imagem humana,  portanto   também  para   toda  a   técnica”   (PV,   195).  Na  dança,   por   sua   vez,  a  imagem  está  ligada  à  capacidade  de  “traduzir  um  aspecto  visual  para  uma  semelhança  material”   (PV,   193)   e,   em   seguida,   desprender-se do objeto para constituir-se como uma ideia. O corpo que se lança no espaço geográfico precisa, antes, imaginar tal espaço. Isso significa que é a capacidade imaginativa que possibilita a locomoção do corpo no espaço e que, por permitir a mobilidade, possibilita a expressão artístico-corporal da dança.

Onde habita a liberdade também cresce o perigo

Com essa argumentação, Hans Jonas pretende invalidar a posição metafísica que isolou o ser humano no reino da racionalidade e da subjetividade, para religá-lo ao horizonte de transcendência que marca toda a vida em sua unicidade. O homem passa

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a  ser  entendido  como  parte  do  “grandioso  panorama  da  vida  em  nosso  planeta”  (PV,  p. 11), vindo a partilhar a atividade espiritual, em diferentes graus, com as demais formas de vida: se há liberdade já desde o metabolismo, é porque lá já reside o embrião do espírito que avançou até a capacidade racional humana. Para o autor, a vida é uma espécie de acúmulo e armazenamento de resultados aleatórios que formam os eventos físicos no mesmo tempo em que produzem os fenômenos subjetivos:  o  espírito  está,  portanto,  “prefigurado  no  orgânico”  desde  os  primórdios  da  vida (PV, p. 13). A vida, em outras palavras, para afirmar-se, cresce em degraus sequenciais de complexificação e diferenciação de funções orgânicas  que   “culminam  no   pensamento   humano”   (PV,   p.   12),   fazendo   com   que   a   biologia,   aos   poucos,   se  converta em ética ou ainda, que a biologia forneça o fundamento ontológico para a ética:   “a   filosofia   do   espírito   inclui   a   ética   – e pela continuidade do espírito com o organismo e do organismo com a natureza, a ética passa a ser uma parte da filosofia da   natureza”   (PV,   271),   escreve   Jonas   no   epílogo   ao     The Phenomenon of life. Eis a tentativa que, segundo o autor, pretende contrariar um dos dogmas modernos, a separação entre ser e dever ser ou , ainda, entre realidade objetiva e realidade subjetiva. É pela revisão da própria ideia de natureza, portanto, que ele pretende, usando   para   isso   o   método   fenomenológico,   resgatar   “o   ponto   de   vista   original   da  filosofia”  (PV,  p.  272)  segundo  o  qual  a  ontologia  era  o  fundamento  da  ética.  

Na história da vida, quanto mais liberdade, mais risco e mais perigo. A aventura da vida inclui, segundo Jonas, a possibilidade das perdas, porque a abertura necessária da vida para o mundo é também o seu gesto de exposição ao perigo de seu próprio desaparecimento. Ao dizer sim para si mesma, a vida amplia seus horizontes mas também inclui sempre novos perigos na zona dos progressos que precisa alcançar para elevar-se em direção ao futuro. A cada novo lance de sobrevivência, novos prejuízos e novas avarias adentram no plano vital: ao recusar o otimismo de Teilhard Chardin e mesmo  de  Whitehead,  Jonas  afirma  que  “o  destino  do  ser  humano  para  a  liberdade”,  como  parte  do  experimento  vital,  “pode  levar  tanto  à  catástrofe  quanto  ao  êxito”  (PV,  p. 8). Ao mover-se de um lugar a outro (a mobilidade é uma expressão da liberdade) devido ao medo e ao desejo, um ser vivo corre o risco de ser devorado por outro predador e mesmo de não satisfazer as suas necessidades nesse deslocamento. Mover-se, como gesto de maior liberdade, guarda, assim, novos perigos.

Como  “conceito  ontologicamente  descritivo”   (PV,  p.  13),   à   liberdade   também  pertence o âmbito da técnica. Para Jonas, a técnica está ligada à atividade da representação que é parte dessa aventura de riscos e apostas. Alargando o horizonte humano, a representação permite ao homem exercer a sua liberdade em relação ao mundo e também controlar os seus corpos. A técnica é parte da história da resistência da vida contra a morte: ela se introduz como expressão da liberdade diante da carência, da fragilidade e da precária independência que marcam o organismo, que é “dono  de   seu   ser   apenas   de  modo   condicional   e   revogável”   (PV,   p.   14)   e,   portanto,  dependente de instrumentos  e  processos,  sem  os  quais  não  teria  sobrevivido.  Se  “viver  

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é   essencialmente   estar   relacionado   com  algo”  e   se   “relação   implica   transcendência”  (PV, p. 15), então a técnica é a forma especial da relação do homem com o mundo e sua forma de transcendência. Como nos outros casos, também aqui cresce a ambiguidade, ou seja, tanto a possibilidade de fracassos quanto de êxitos. Precisamente porque é vida, a vida é mortal e para sobreviver à morte, a técnica se transformou na principal ferramenta aos mais frágeis e perecíveis no reino da vida, a espécie humana. É por ela que a vida humana se equilibra entre o poder e a fragilidade. Em termos históricos, as principais inovações evolutivas da humanidade, desde os primórdios, ligam-se diretamente à capacidade de desenvolvimento técnico: o próprio desaparecimento do homo neanderthalensis e o sucesso da espécie do homo sapiens é explicado por muitos especialistas como resultado do avanço tecnológico do segundo, o qual adquiriu condições de sobreviver às intempéries da existência. Se essa não é uma tese unânime, pelo menos ela projeta sobre nossos primórdios uma interpretação de fatos que ocorreram muitas vezes depois na história humana: o uso de técnicas diversas como base para a sobrevivência cotidiana. A revolução tecnológica moderna

É também pela técnica, contudo, que a vida se vê ameaçada: o projeto

moderno, ao desligar a ontologia da ética, fez com que a técnica se transformasse num mero exercício de exploração de uma realidade objetiva que, em si mesma, estava destituída de qualquer orientação segundo fins e, portanto, sem nenhuma fonte de valor:   “a   total   ausência   de   causas   finais   significa   que   a   natureza   é   indiferente   às  distinções   de   valor”   (SDD,   p.   106).   O   projeto   moderno,   cujo   estímulo   principal   é   a  filosofia cartesiana, reduziu a referência a qualquer valor em si apenas ao âmbito da vida humana, não mais considerada como um fato ou mesmo como uma parte constitutiva  da  natureza.  Com  a  aliança  da  teoria  com  a  prática,  ou  melhor,  com  o  “uso  prático da teoria”  (PV,  p.  211),  a  técnica  passa  a  representar  a  criação  de  um  estado  de  artificialidade em vista de aplicações práticas cuja função é, pelo menos inicialmente, a manutenção da vida da espécie, incluindo, para isso, a modificação do meio ambiente. Eis   a   “implicação   tecnológica”   (PV,   224)   do   conhecimento   moderno:   o   aspecto  manipulativo da nova ciência, aliada à des-valorização do mundo em si mesmo e à intenção de compreender analiticamente e compor criativamente a realidade, passam a representar a tarefa técnica do homem, dando início ao que Jonas chama de civilização tecnológica. Perde-se a distinção entre natural e artificial na busca pelo conhecimento e pela intervenção no mundo. Segundo o programa baconiano, essa seria a aliança entre conhecer e modificar o mundo. Para Jonas,

Sob dois aspectos a ciência moderna esta ligada ao modificar ativo das coisas: na pequena escala do experimento ela provoca a variação, como meio necessário para o conhecimento da natureza, isto é, usa a

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prática para os fins da teoria; e a teoria assim adquiria está habilitada às modificações de larga escala de sua aplicação técnica – e a ela convida. A aplicação técnica, por sua vez, passa a ser uma fonte de conhecimentos teóricos, que não poderiam ter sido alcançados em escala laboratorial – abstraindo-se do fato de que ela fornece os instrumentos para um trabalho laboratorial mais eficiente, que por sua vez fornece também novos acréscimos à ciência, e assim por diante, em um círculo contínuo. (PV, p. 227)

Em outras palavras, inicia-se assim o que Jonas chamará, em Técnica, medicina

e ética,   de   “dinâmica   formal  da   técnica”  ou   seja,   uma  “empresa   coletiva   continuada  que   avança   conforme   ‘leis   de   movimento’   próprias”   (TME,   p.   15).   Esse   conjunto  abstrato de conhecimentos que geram novos conhecimentos nasce da fusão entre teoria   e   prática,   vindo   a   “provocar   mudanças   na   natureza   como   um   meio   para  conhecê-la   melhor”   (PV,   p.   227)   levando,   com   isso,   à   potencialização   dos   riscos.   A  análise   formal   começa   com   uma   “abstração   dos   resultados   concretos   da   técnica”  (TME, p. 16) e, por isso, ela se distingue do conteúdo substancial (as coisas e processos que   a   técnica   produz).   Tal   dinâmica   caracteriza   o   que   Jonas   chama   de   “tecnologia”  moderna  já  que  ela  se  “distingue  formalmente das  anteriores”  (TME,  p.  16). Ou seja, a técnica moderna se estabelece com um modo próprio: aquele que deixa de ser uma posse e um estado em vista da realização das necessidades humanas e passa a ser um processo. Por isso, segundo Jonas,

O   conceito   de   “técnica”,   grosso   modo,   denomina o uso de ferramentas e dispositivos artificiais para o negócio da vida, junto com sua invenção originária, fabricação repetitiva, contínua melhora e ocasionalmente também adição ao arsenal existente, tão tranquila descrição serve para a maior parte da técnica ao longo da história da humanidade (a qual tem a mesma idade que ela), mas não para a moderna tecnologia. (TME, p. 16)

A era moderna não alcança mais o anterior equilíbrio entre necessidade e

realização. A nova dinâmica da técnica é marcada por uma  negação  da  “adequação  dos  meios aos objetivos pré-fixados”  (TME,  p.  18)  e  por  um  impulso  insaciável  em  todas  as  direções, sempre com novos êxitos e com a diluição mesmo dos objetivos que a motivam. A rápida difusão dos conhecimentos e a imediata aceitação pela comunidade científica e pela sociedade em geral, fazem com que esse sistema se retroalimente infinitamente pela busca constante da novidade. Nasce a ideia mesma de progresso: que   “não   é   um   adorno   da   moderna   tecnologia   nem   tampouco   uma   mera   opção  oferecida por ela, como algo que podemos exercer se queremos, mas um impulso incerto  nela  mesma,  muito  além  de  nossa  vontade”  (TME,  p.  19).  

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Além da ascensão da ideia de progresso aliada à técnica, a relação entre técnica e ciência é uma das consequências levantadas por Jonas para afirmar que essa situação transforma a técnica num problema filosófico. Tal associação entre a teoria e a prática passam a comandar os avanços técnicos, transformando a teoria em algo somente viável se estiver mantida sob a égide da manipulação do mundo. Muda, além disso,  a  própria   ideia  de  natureza:  “Em  um  dramático   jogo  de  estímulos  e   respostas,  com a crescente sutileza da investigação, a natureza mesma mostrou-se cada vez mais sutil.”  (TME,  p.  22).  A  técnica  invade  o  âmbito  da  natureza, entendida como algo inerte e  sem  valor,  e  o  mais  curioso  é  que  “ao  invés  de  reduzir  a  margem  do  que  resta  para  ser descoberto, a ciência surpreende-se a si mesma hoje com dimensão após dimensão  de  novas  profundidades”   (TME,  p.  22).  Muda,  portanto,   a própria ideia de verdade, agora nunca alcançada, mas incessantemente buscada.

A nova verdade carrega em si mesmo tal perigo: na medida em que ela não deriva mais de uma contemplação do ser, mas de uma manipulação insaciável do mundo, já que nenhum saber verdadeiro para ser alcançado de forma satisfatória. Por isso,   segundo   Jonas,   “a   ideia   de   um   progresso   potencialmente   infinito   perpassa   o  moderno   ideal   do   conhecimento”   (PV,   p.     229)   de   forma   alheia   a   qualquer   tipo   de  reflexão sobre o valor dos objetos manipulados.

A técnica, entre o presente e o futuro

O   resultado   desse   processo   chamado   de   tecnologia   é   um   “incessante  

dinamismo”   (PV,   230)   que   está,   de   um   lado,   pleno   de   uma   atitude   em   direção   ao  futuro   e,   de   outro,   esvaziado   da   pergunta   sobre   o   “para   onde”   desse   futuro.   A  consequência mais nefasta parece ser a afirmação paradoxal de um presente absoluto no próprio movimento do vir-a-ser: valoriza-se   “a  mudança  pela  mudança,   o   infinito  avanço  da  vida  para  o  sempre  novo  e  desconhecido,  o  dinamismo  em  si”  (PV, p. 230). Sem a pergunta sobre o valor e o sentido, ou seja, sem a pergunta teleológica, o sentido do dinamismo se perde e a técnica reduz a vida humana a uma atividade incessante  que  “deixa  aberto  a  radical   indefinição  do  conceito  de  ‘felicidade’”  (PV,  p. 230) porque não pergunta mais sobre os fins. Ora, qual era a função da liberdade presente na transcendência técnica do homem senão garantir as condições para a manutenção da vida e para a aquisição de um modo de vida boa? Agora, nesse mecanismo, a técnica perde sua função vital e escolhe unicamente o lado do perigo. Sem sequer saber qual é o bem que o ser humano deve buscar ou qual deseja para si mesmo (algo que, ademais, só se alcança no âmbito ético, do qual a técnica se desvencilhou) a atividade técnica perde sua ligação aos interesses humanos e passa a apresentar-se  sob  o  mote  da  catástrofe.  A  técnica,  com  o    “automatismo  do  seu  uso”  (PV, p. 231) prejulgou a resposta sobre a felicidade ao afirmar simplesmente que o conteúdo   da   felicidade   é   “deixar-se levar   ao   emprego   das   coisas”   (PV,   p.   231).  

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Hedonismo e irresponsabilidade são as duas faces terríveis para o qual a técnica nos isentou da atividade ética.

Eis a preocupação e a proposta de Jonas, para a qual seria necessário uma “‘outra’  teoria  a  que  se  dá  o  nome  de  filosofia”  (PV,  p.  231),  a  qual  deveria  vislumbrar  os custos que a técnica cobra para efetivar-se no cenário da vida, a fim de que a “habilidade   toma   posse   do   que   a   possui”   (PV,   p.   232),   ou   seja,   que   o   homo faber sequestra o homo sapiens.

Essa articulação entre vida e técnica demonstra que essa última é o modo como a vida se dispõe para o futuro. Ela é a condição mesmo da continuidade da aventura vital como uma forma de orientação da vida para o futuro. Mas curiosamente a técnica moderna tem negado essa condição, aprisionado o homem no presente imediato, no afã das novidades que marcam a vida moderna, anulando o passado e o futuro. A técnica torna o homem refém da simultaneidade da vida e anula a responsabilidade para com o futuro, na medida em que seus experimentos incluem riscos que, por não serem pensados sob a égide da responsabilidade, caracterizam-se como apostas perigosas em relação ao futuro, mobilizadas e motivadas por interesses e necessidades do tempo presente. Necessidades que, não raro, foram recentemente inventadas.

Se antes a atividade técnica dispunha e orientava o homem para o futuro, agora ela desestimula e desorienta porque se atrela ao tempo presente, negando o horizonte da temporalidade no qual a vida se desloca. Em nome do elemento temporal que inclui o ontem e o amanhã, a técnica centra-se no instante e faz do presente a meta dos desejos e anseios humanos. O único destino passa a ser a realização de tais desejos no presente imediato e esse é o princípio básico da ação técnica – e é justamente sobre ele que Hans Jonas pretende aplicar a proposta de uma ética do futuro. Como sugeriu Nietzsche, num outro contexto, é em tempos de epidemias é quando os médicos se fazem mais necessários.

A técnica, como expressão da transcendência afirmativa da vida revelada na “liberdade   necessária”   que   caracteriza   tal   abertura   do  mundo,   é   um   estágio,   senão  último, pelo menos um dos mais novos de enfrentamento dos limites impostos ao organismo pelo meio não-vivo e pela própria possibilidade da morte. Como tal, esse estágio promove uma reviravolta ontológica importante: se os demais degraus se deram em respeito aos limites da própria vida, agora a abertura inclui a superação de tais limites, ou seja, vinda do campo biológico, a técnica alcança a possibilidade de alterar tal campo, tentando ultrapassar as balizas biológicas e naturais, em vista do exercício da liberdade que ela representa e que ela mesma agora quer produzir. Em outras palavras: a técnica re-fabrica a natureza porque quer dar vazão àquela espécie de liberdade que agora pretende romper com os fronteiras que separavam o natural do artificial. A ampla liberdade ocorre como geração de uma também ampla artificialidade, entendida como um artefato vital, ou seja, uma vida reconstruída em laboratório.

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A pergunta ética nasce da pergunta sobre em que momento e em que condições a técnica passa de sua perspectiva de afirmação da vida para a sua negação. Não seria a técnica, em seu avançar sempre adiante, uma contínua afirmação do interesse vital, o que lhe daria uma liberdade de seguir com suas pesquisas sem nenhum   pretenso   “freio   voluntário”   imposto   pelo   campo   da   ética.   Para   continuar  habitando o mundo o homem atual não precisaria justamente continuar avançando tecnicamente em direções sempre novas? Ou ainda, não teria justamente que ultrapassar os limites impostos pela natureza no campo genético e biológico para afirmar a artificialidade como campo de realização plena da condição humana? A técnica  não   seria,   enfim,   como   tematizou  Pommier   “o  braço  deste progressismo, de uma  ética  do  futuro  convidando  o  homem  a  se  projetar  livremente  adiante”  (2013,  p.  241)? Ou seja, como braço ético, a técnica poderia ser usada como mais uma fase da afirmação ética da vida, tal como prometeu, segundo Jonas, Ernest Bloch, no seu Princípio Esperança, de 1976? Seria justo exigir atitudes que comprometem as realizações de necessidades atuais em benefício da realização das necessidades de gerações futuras?

Para Jonas, posições afirmativas para essas questões continuariam a ser classificadas entre as éticas da simultaneidade e do tempo presente e não poderiam ser classificadas no âmbito de uma urgente ética do futuro – não aquela que está insatisfeita com o presente ou com o homem presente, mas aquela que tenta garantir que o futuro, que é resultado do presente, exista. A ética do futuro é, além disso, aquela que pretende preservar no homem a sua própria ambiguidade e imperfeição, como parte da sua constituição, ao invés de prometer a correção desses elementos por parte da técnica,   no   seu   poder   de   “refabricar   inventivamente”   (PR,   p.   57)   a   si  mesmo e ao mundo natural. Eis a formulação da dinâmica utópica da técnica que é recusada por Jonas.

Conclusão

A dinâmica da técnica, tal como analisada por Jonas, assinala o caráter utópico

que nasce de certo modo de representar a natureza pela via do descontentamento. Ou seja, o projeto de correção do homem e do mundo é uma estratégia derivada do niilismo que funda o avanço da técnica moderna. Ele revela o cansaço que marca uma cultura que perde o passado pela via do esvaziamento do sentido do futuro e vive o presente absoluto: usufruir o agora pleno passa a ser o mecanismo de funcionamento da atividade tecnológica que visa livrar o homem de sua própria natureza de ser submetido à temporalidade e à finitude.

A   ansiedade   da   técnica,   “ébria   de   si   mesma” (PSD, p. 142), é contraposta, assim, à proposta de uma ética do futuro. O objetivo é resgatar a técnica de sua alienação e negatividade para devolver-lhe a potencialidade de afirmação da vida através do princípio responsabilidade. Não uma ética do quietismo e da renúncia,

Oliveira, J. R. O futuro nas mãos da técnica

25 | Pensando – Revista de Filosofia Vol. 4, Nº 7, 2013 ISSN 2178-843X

segundo  os  moldes   heideggerianos,  mas   um   “poder   sobre   o   poder”   (TME,   48),   uma  ética ativa e transformadora das ações humanas no presente. Jonas está convencido de que “o  galope  tecnológico  deve  ser  colocado  sob  controle  extratecnológico”  pois  há  uma  ameaça  à  autonomia  humana    “de  que  nos  possuamos  a  nós  mesmos  e  não  nos  deixemos  possuir  por  nossa  máquina”  (TME,  p.  39). Referências DEWITTE, J. La refutatión du nihilisme. In: HOTTOIS, G. (éd.). Aux fundaments d´une éthique contemporaine, H. Jonas et H. T. Engelhardt. Paris: Vrin, 1993. FROGNEUX, Nathalie. Hans Jonas ou la vie dans le monde. Bruxelles: De Boeck & Larcier s. a., 2001. (Le point Philosophique). JONAS, Hans. Más cerca del perverso fin y otros diálogos y ensaios. Trad. Y edición de Illana Giner Comín. Madrid: Cataratas, 2001. (Col. Clássicos del pensamiento crítico). JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Trad. Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUCRio, 2006. JONAS, Hans. O princípio vida: fundamentos para uma biologia filosófica. Trad. Carlos Almeida Pereira. Petrópolis: Vozes, 2004. JONAS, Hans. Pensar sobre Dios y otros ensayos. Trad. Angela Ackermann. Barcelona: Herder, 1998. JONAS, Hans. Técnica, medicina y ética. La práctica del principio de responsabilidad. Trad. Carlos Fortea Gil. Barcelona: Paidós, 1997. JONAS, Hans. Frontiere della vita, frontieri della tecnica. Traduzione di Giovanna Bettini. Edizione italiana a cura di Vallori Rasini. Nuova edizione ridotta (cap 1, 3, 9,10). Bologna: Società editrice il Mulino, 2011. JONAS, Hans. Poder o impotencia de la subjetividad. Introd. De Illana Giner Comín. Barcelona: Paidós; I. C. E. de la Universidad Autónoma de Barcelona, 2005. OLIVEIRA, J. R. Da magnitude e ambivalência à necessária humanização da tecnociência segundo Hans Jonas. Cadernos IHU Idéias (UNISINOS), v. 176, 1-20, 2012. OLIVEIRA, J. R. Por que uma ética do futuro precisa de uma fundamentação ontológica segundo Hans Jonas. Revista de Filosofia: Aurora, v. 24, 387-416, 2012. POMMIER, Eric. Ontologie de la vie et étique de la responsabilité selon Hans Jonas. Paris: Librairie philosophique J. Vrin, 2013. SANTOS, R. (Org.) ; OLIVEIRA, J. R. (Org.) ; ZANCANARO, L. (Org.) Ética para a civilização tecnológica: em diálogo com Hans Jonas. 1. ed. São Paulo: São Camilo, 2011. THEIS, Robert. Jonas: habiter le monde. Paris: Michalon, 2008. (Col. Le Bien commun).

Doutorado em Filosofia (UFSCAR)

Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PUCPR) E-mail: [email protected]


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