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Saeculum - Revista de História - nº 23 - Dossiê História e Memória - jan./jun. 2010

Date post: 23-Nov-2023
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sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [23]; João Pessoa, jul./ dez. 2010 1

N° 22 - Jan./ Jun. 2010

ISSN 0104-8929

sÆculum

2 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [23]; João Pessoa, jul./ dez. 2010.

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBAReitor: Rômulo Soares Polari

Vice-Reitora: Maria Yara Campos Matos

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISAPró-Reitor: Isac Almeida de Medeiros

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTESDiretora: Maria Aparecida Ramos de Meneses

Vice-Diretor: Ariosvaldo da Silva Diniz

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIAChefe: Damião de Lima

Sub-Chefe: Regina Maria Rodrigues Behar

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIACoordenador: Raimundo Barroso Cordeiro Junior

Vice-Coordenador: Elio Chaves Flores

COMISSÃO DE EDITORAÇÃO - SÆCULUMAngelo Emílio da Silva Pessoa

Carla Mary S. OliveiraCláudia Engler Cury (presidente)

Elio Chaves FloresMozart Vergetti de Menezes

Regina Célia GonçalvesRegina Maria Rodrigues Behar

Serioja Rodrigues Cordeiro MarianoTelma Cristina Delgado Dias Fernandes

Azemar dos Santos Soares Jr.(Colaborador Mestrando PPGH-UFPB/ bolsista CAPES)

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Departamento de HistóriaPrograma de Pós-Graduação em História

Universidade Federal da ParaíbaCENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTESCampus Universitário - Conjunto Humanístico - Bloco V

Castelo Branco - João Pessoa - Paraíba - CEP 58.051-970 - BrasilFone/ Fax: +55 (83) 3216-7915 - E-Mail: <[email protected]>

Sítio Eletrônico: <http://www.cchla.ufpb.br/saeculum/>

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4 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [23]; João Pessoa, jul./ dez. 2010.

Copyright © 1995-2010 - DH/ PPGH/ UFPB

ISSN 0104-8929 Capa, Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica: Carla Mary S. Oliveira.

Ilustração das Vinhetas: Albretch Dürer, “Moça Lendo” (detalhe), 1501;desenho a grafite e nanquim castanho sobre papel; 16,1 x 18,2 cm;

Boymans-van Beuningen Museum, Rotterdam, Holanda.

Impresso no Brasil - Printed in Brazil

Efetuado o Depósito Legal na Biblioteca Nacional,conforme a Lei nº 10.994, de 14 de dezembro de 2004.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio.A violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610/1998) é crime estabelecido no artigo 184 do Código Penal.

Indexada no Latindex (UNAM - México)e no DOAJ - Directory of Open Access Journals (Lund University - Suécia)

Periódico avaliado como QUALIS B2 na área de História pela Capes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Biblioteca Central - Universidade Federal da Paraíba

S127 Sæculum - Revista de História, ano 16, n. 23 (2010). - João Pessoa: Departamento de História/ Programa de Pós-Graduação em História/ UFPB, jul./dez. 2010.

ISSN 0104-8929

Semestral

190 p. BC/UFPB CDU 93 (05)

MISSÃO DA REVISTASæculum - Revista de História é publicada pelo Departamento de História da UFPB desde 1995 e, a partir de 2004, passou a ser também o periódico do Programa de Pós-Graduação em História da mesma universidade. Sua frequência é semestral, e se trata de uma revista voltada à divulgação e

debate de pesquisas no campo da História e da Cultura Histórica e suas diversas interfaces, abrindo espaço para pesquisadores do Brasil e do exterior.

CONSELHO EDITORIAL

Antônio Paulo Resende (UFPE)Antonio Clarindo Barbosa de Souza (UFCG)

Carlos Fico (UFRJ)Durval Muniz de Albuquerque Jr. (UFRN)

Ernesta Zamboni (UNICAMP)Gisafran Mota Jucá (UECE)

João José Reis (UFBA)João Paulo Avelãs Nunes (Univ. de Coimbra)

Jorge Ferreira (UFF)

Leonardo Guimarães Neto (CEPLAN)Luiz Geraldo Silva (UFPR)

Maria de Lourdes Janotti (USP)Pedro Paulo Funari (UNICAMP)

Peter Mainka (Univ. de Wüzburg)Ricardo Pinto de Medeiros (UFPE)

Sílvia Regina Ferraz Petersen (UFRGS)Tereza Baumann (MN-UFRJ)Valdemir Zamparoni (UFBA)

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Sumário

ISSN 0104-8929João Pessoa - PB, n. 23, jul./ dez. 2010

DOSSIÊ: HISTÓRIA E MEMÓRIAOrganizadoras: Telma Dias Fernandes e Vilma de Lurdes Barbosa

A Pedra que Arde: o direito à memória contraa sedução do esquecimento ............................................................................... 11Marta Gouveia de Oliveira Rovai

Biografias históricas e práxis historiográficas ............................................... 19Arrisete C. L. Costa

Memórias de velhos no Nordeste brasileiro ................................................... 35Alarcon Agra do Ó

De como lembrar o Semiárido e esquecer o Sertão ..................................... 51Maria Lucinete FortunatoMariana Moreira Neto

O folclórico Bar Palácio e os tempos da memória gustativa ....................... 61Mariana Corção

Limites e contribuições da história oral: a memória e a história nas interseções entre o individual e o coletivo .............................................. 75Willian Eduardo Righinni de SouzaGiulia Crippa

Cultura histórica, memória e comemorações: o centenário denascimento do Presidente João Pessoa na Paraíba em 1978 ...................... 91Genes Duarte Ribeiro

Entre a memória histórica e a prática cívica:os calendários culturais do MEC (1969-1974) ............................................ 111Tatyana de Amaral Maia

Acervos privados: indivíduo, sociedade e história ...................................... 123Rejane Silva PennaCleusa Maria Graebin

O uso de memórias como fonte de pesquisa para a História daEducação da população negra em São Paulo ............................................... 135Surya Aaronovich Pombo de Barros

Editorial ................................................................................................................ 7

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RESENHAS

História e memória dos Vikings ..................................................................... 147Johnni Langer

Entre a História e a memória dos mitos e lendas celtas ............................ 153Luciana Campos

“O mosaico falhado da memória”:composições da infância e da guerra ............................................................ 157Alômia Abrantes

ENTREVISTA

Trajetórias de vida, trajetórias de ofício:uma entrevista com Regina Beatriz Guimarães Neto .................................. 167

***

Normas para publicação .................................................................................. 187

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EDITORIAL

Prezados Leitores:

Discutir sobre História e Memória no âmbito do ofício dos historiadores tem constituído momentos recorrentes, e poderíamos sublinhar que eles estão presentes até mesmo nas espacialidades exteriores às academias (institucionais). As incursões nos meandros da memória estão instigando várias áreas dos saberes e o interesse das sociabilidades em geral. Há uma imensa curiosidade em desvendar os segredos que participam da lembrança e do esquecimento.

História e Memória estão imbricadas, uma e outra. São relacionais e estabelecem variadas possibilidades, da complementaridade à negação. Compartilham tessituras das nossas sensibilidades ao dizer das interfaces das nossas temporalidades e espacialidades plurais.

Nuances da relação entre história e memórias participam das diversas tendências teórico-metodológicas presentes nas produções historiográficas contemporâneas, sejam da eclética história cultural, da história social ou política, bem como dos esforços na verticalização dos aportes teóricos e, entre outros debates, podemos citar aqueles acerca dos sentidos atribuídos à cultura histórica e à cultura política.

A revista Sæculum, continuando sua trajetória editorial de edições no formato de dossiê, traz em seu número 23 a temática de História e Memória, intentando contribuir com as discussões coetâneas que atravessam as preocupações dos historiadores em problematizar as relações de alteridades e de consonâncias entre história e memória. Neste dossiê, apresentamos ensaios, resenhas e uma entrevista que refletem, de forma pertinente, questões em torno da temática proposta.

Os artigos que compõem o dossiê transitam sobre diversificados aspectos da relação entre história e memória, incluindo biografias, memórias gustativas, patrimônio, comemorações. Textos que nos possibilitam leituras quanto aos testemunhos orais, aos calendários cívicos e a memória individual e coletiva.

Duas resenhas abordam publicações sobre mitos celtas e sobre a história dos vikings, o que concorre para a compreensão das memórias e histórias preservadas e que ainda suscitam o interesse de muitos, inclusive constituindo temáticas responsáveis por sucessos editorais. As discussões dos historiadores apontam para a criticidade necessária em torno desses temas. Outra resenha se debruça sobre a relação da história com a literatura, palmilhando aspectos da escrita de si e da escrita da história e com isso iluminando sentidos quanto às biografias, os testemunhos.

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Para a última parte do Dossiê História e Memória, as editoras deste número, realizaram uma entrevista e a disponibilizaram, com o consentimento da Profª Dra. Regina Beatriz Guimarães Neto, a sua publicação. A entrevista enfocou, além da sua trajetória de estudos, questões importantes como a relação entre História e Memória, as possibilidades e enfrentamentos entre História e Filosofia, as práticas que envolvem memórias, registros orais e documentação escrita e as possibilidades da inserção da memória no ensino de história.

Assim, convidamos os leitores a usufruírem os escritos e pontos de vista dos autores que compuseram esse Dossiê, na perspectiva de nutrir uma profícua e permanente reflexão sobre História e Memória.

Os Editores

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dossiÊHistória

e

Memória

Organizadoras:Telma Dias Fernandes

Vilma de Lurdes Barbosa

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A PEDRA QUE ARDE: O DIREITO À MEMÓRIA CONTRA A SEDUÇÃO DO ESQUECIMENTO

Marta Gouveia de Oliveira Rovai1

Estes dentes não caíram sozinhos. Foram arrancados à força. Esta cicatriz que marca meu rosto não vem de um acidente. Os pulmões... a perna... Quebrei a perna quando escapei da prisão ao saltar um muro alto. Há outras marcas mais, que você não pode ver. Marcas visíveis no corpo e outras que ninguém pode ver. Se quebro a pedra, estas marcas somem. E elas são meus documentos, compreendes? Meus documentos de identidade. Olho-me no espelho e digo: ‘Esse sou eu’, e não sinto pena de mim. Lutei muito tempo. A luta pela liberdade é uma luta que nunca acaba. Ainda agora, há outras pessoas, lá longe, lutando como eu lutei. Mas minha terra e minha gente ainda não são livres, e eu não quero esquecer. Se quebro a pedra cometo uma traição, compreendes? 2

Nesse trecho do famoso livro de Eduardo Galeano, A Pedra Arde, o menino Carassuja encontra uma pedra com poderes mágicos de rejuvenescimento e a oferece a um homem velho, feio e só que não o reprimira por tentar roubar uma fruta e por quem teria desenvolvido um certo sentimento de pena. Encantada com a descoberta e com a possibilidade que ofertara ao velho de recuperar sua juventude e agradecer-lhe sua ajuda, a criança não entende porque alguém tão marcado por cicatrizes e pelo sofrimento recusa tocar na pedra que arde e que pode fazê-lo esquecer do passado. Enfim, o velho lhe revela suas razões: o direito e o dever de lembrar e de carregar suas marcas, que não são apenas particulares, mas frutos de uma experiência coletiva, de uma identidade que não deve ser esquecida e sim, honrosamente, preservada.

Galeano expõe metaforicamente um grande problema inaugurado, segundo Walter Benjamin3, a partir da Primeira Guerra Mundial, e acentuado nos anos 1970 pelo processo de inovação tecnológica, cultural e moral: a dilaceração da experiência pela aceleração do tempo, quando o novo se impõe enquanto libertação e ruptura com o passado. Experimentamos ainda os efeitos desse tempo avassalador: a destruição das memórias pela velocidade tecnológica e pelo poder massificador dos meios de comunicação; o presentismo, criador e criação dos homens modernos em busca do imediatismo; a construção de uma indiferença humana diante da sobrecarga de informações e imagens atrozes que esmagam nossa sensibilidade tornando-nos meros expectadores diante da vida. A “pedra que arde” e seduz é o tempo que faz

1 Doutoranda em História Social pela Universidade de São Paulo. Coordenadora e Pesquisadora do Núcleo de Estudos em História Oral da USP (NEHO). Desenvolve pesquisa sobre relações de gênero e memória acerca do período da Ditadura Militar, principalmente no ano de 1968, na cidade de Osasco. E-Mail: <[email protected]>.

2 GALEANO, Eduardo. A pedra arde. São Paulo: Loyola, 1989, p. 18.3 BENJAMIN, Walter. O narrador. In: __________. Magia e técnica, arte e política. São Paulo:

Brasiliense, 1986.

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desaparecer o elo entre as gerações e reduz a experiência, o sentido da narrativa e o significado do passado à “coisa morta”, a ser esquecida.

Nessa quase ausência de espaços para a memória, o corpo e a voz passam a ser um portal para a construção dos marcos de autorreconhecimento e autodiferenciação, sinais de pertencimento afetivo, num mundo que dilui emoções e ilusões rapidamente e esfacela os meios para a memória. A modernidade trouxe um misto de desejos e prazeres consumíveis, efêmeros e líquidos, e relações facilmente diluídas pela facilidade e rapidez temporal, como nos diz Zigmunt Bauman:

O advento da proximidade virtual torna as conexões humanas simultaneamente mais frequentes e mais banais, mais intensas e mais breves. As conexões tendem a ser demasiadamente breves e banais para poderem condensar-se em laços. (...) Os contatos exigem menos tempo e esforço para serem estabelecidos e também para serem rompidos. A distância não é obstáculo para se entrar em contato – mas entrar em contato não é obstáculo para se permanecer à parte. Os espasmos da proximidade virtual terminam idealmente, sem sobras nem sedimentos permanentes. Ela pode ser encerrada, real e metaforicamente, sem nada mais que o apertar de um botão.4

A banalização da violência, apresentada continuamente pelos canais de televisão como espetáculos a serem digeridos como “normais” também provoca a sensação de frustração no espírito e o cansaço físico, que transforma traumas individuais e coletivos em fatos aceitáveis, relegando-os ao silenciamento doloroso.

O silenciamento é cruel quando reduz as experiências às sombras da história, não reconhecendo o direito à lembrança. Michael Pollak5 e Friedhelm Boll6 que trabalharam com a memória de judeus acerca da violência nazista, chamam a atenção sobre o fardo de falar sobre a perseguição sofrida numa sociedade que não tem espaço para ouvir e é estimulada constantemente para “não sofrer”. Partilhar sofrimentos exige compromisso, tempo para reflexão, e na “sociedade líquida” isso representa perder tempo na concorrência. Desta forma, na ausência de ouvidos atentos, quase não há coragem para se dizer. Diante de traumas vivenciados, como o holocausto nazista, a necessidade também de se proteger de lembranças dolorosas torna as palavras inadequadas para descrever experiências e torná-las críveis para quem as ouve. A memória de mulheres e homens que viveram em campos de

4 BAUMAN, Zigmunt. Amor Líquido. Sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 82.

5 Michael Pollak trabalha com as “memórias subterrâneas”, silenciadas pela “memória enquadrada”, oficializada, acerca das atrocidades nazistas.

6 Boll analisa as razões do silêncio de um sobrevivente dos campos de concentração em se recusar a descrever sua experiência: a culpa por ter sobrevivido e a impossibilidade da comunicação, a falta de uma linguagem para se fazer compreender ou que fosse considerada crível. BOLL, Friedhelm. O fardo de falar sobre a perseguição nazista na Alemanha. In: FERREIRA, Marieta de Moraes. História Oral: desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Fiocruz; Oswaldo Cruza; CPDOC, 2000, p. 135-142.

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concentração permaneceu ignorada nos anos pós-guerra, por uma sociedade que ampliou os meios de se dizer, mas não se mostrou disposta a escutar aquilo que não experienciou.

Os oralistas José Carlos Sebe Bom Meihy e Alessandro Portelli7, em seus estudos sobre a memória, procuram construir um novo caminho no trabalho com histórias de vida marcadas fortemente por eventos traumáticos, difíceis de serem traduzidos em palavras. Nomeiam os projetos ligados a essas vivências como História Oral Testemunhal, um trabalho sensível em que não apenas os ouvidos devem estar atentos, mas o olhar e a alma do pesquisador também devem estar preparados, especialmente para os significados que vão muito além da enunciação verbal.

Na América Latina, ditaduras como a brasileira poderiam, em certa medida, significar um evento traumático e se inserir na História Oral Testemunhal. As tentativas de apagar da memória os acontecimentos relacionados à Ditadura Militar no Brasil produziram uma sensação de apatia e indiferença nas novas gerações em relação às perseguições, torturas, mortes e desaparecimentos. A velocidade da vida contemporânea e a circulação frenética de informações tornaram o passado algo distante e o acesso aos eventos pouco divulgado. Fala-se da Ditadura Militar no Brasil como um evento, mas não exatamente das experiências dolorosas, dos efeitos físicos e psicológicos da violência sofrida. A possibilidade da Anistia, decretada no ano de 1979, parece ter borrado a memória, neligenciando-a. Mais terrível do que isso, talvez, seja a negociação dessas lembranças com a política de indenizações utilizada pelos governos democráticos. Afinal, num mundo onde as relações são mercantilizadas e em que se exige que o conhecimento tenha sentido prático, mesmo as relações mais íntimas e o sofrimento recebem um preço e devem sucumbir à história. Corpos e almas, no entanto, continuam a ser violentados, pois as dores e traumas dos que foram perseguidos politicamente ainda não foram superados. O passado continua constantemente presentificado pelas lembranças que emergem a todo o momento.

A memória traumática não é um lamento, mas a possibilidade de digerir a experiência dolorosa. É assumir, como na história de Eduardo Galeano, as marcas, as cicatrizes, o compromisso com uma trajetória, um destino em comum. Nesse sentido, torna-se de extrema relevância trabalhos da envergadura e da dimensão como o que se desenvolve no Brasil acerca do “direito à memória e à verdade”. Trata-se não de “dar voz” aos silenciados, porque a voz sempre lhes pertenceu. Trata-se da conquista do espaço social da escuta, da apropriação das palavras que sejam capazes de mover a indiferença ou acomodação social em relação ao passado. A campanha pela abertura dos arquivos e a intensificação das pesquisas com a história de vida de torturados, exilados e perseguidos pela repressão implica em entender dois processos distintos e complementares: o direito e o dever de lembrar e falar sobre os traumas psicológicos e físicos, e o direito ao registro, à interpretação e à análise histórica desse período traumático no Brasil.

7 Os dois oralistas desenvolvem discussão, no momento, sobre uma nova forma de pesquisa em História Oral, com pessoas que testemunharam grandes tragédias, como genocídios ou mesmo tragédias naturais. Sobre isso ver: José Carlos Sebe Bom Meihy em entrevista concedida a esta autora na revista eletrônica História Agora, n. 9, Dossiê “Memória Escrita e Memória Oral: desafios interpretativos”, jul./dez. 2010.

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A memória, nesse sentido, provoca uma “guinada subjetiva” na história, como afirma Beatriz Sarlo em seu livro Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva8, trazendo para a discussão histórica o testemunho. Nesse sentido, as histórias de vida são narradas de um modo coletivo – apesar da singularidade de cada narrador – porque há a construção de uma identidade marcada por trajetórias em comum. O testemunho ganha força, encontra ecos, alinha-se a outros testemunhos quase como para reparar essa identidade machucada; torna-se ícone de verdade na luta pela restauração moral e até mesmo jurídica da experiência passada. Luta, inclusive, para se falar em nome das “presenças ausentes”, aqueles que perderam o direito à palavra, os que morreram ou são chamados juridicamente de desaparecidos. A memória, bem lembra Sarlo é um campo de conflitos

entre os que mantêm a lembrança dos crimes de Estado e os que propõem passar a outra etapa, encerrando o caso mais monstruoso de nossa história. Mas também é um campo de conflitos para os que afirmam ser o terrorismo de Estado um capítulo que deve permanecer juridicamente aberto, e que o que aconteceu durante a ditadura militar deve ser ensinado, divulgado, discutido, a começar pela escola. É um campo de conflitos também para que os que sustentam que o ‘nunca mais’ não é uma conclusão que deixa para trás o passado, mas uma decisão de evitar, relembrando-as, as repetições.9

Assiste-se ao processo gradativo de conquista e devolução da palavra, tomada como instrumento dos que foram perseguidos contra os estereótipos construídos por uma história oficializada durante o regime de exceção. Sarlo chama a atenção para o perigo da primazia do testemunho sobre a história. O reconhecimento do relato da experiência como uma verdade pode tornar, segundo a autora, lembrar mais importante do que entender. A memória é contínua, atualizada constantemente pelo vivido e, portanto, não poderia ser capaz de dar conta de outra temporalidade, do acontecer passado:

Nada resta da autenticidade de uma experiência posta em relato, já que a prosopopéia é um artifício retórico, inscrito na ordem dos procedimentos e das formas dos discursos, em que a voz mascarada pode desempenhar qualquer papel: avalista, conselheiro, promotor, juiz, vingador.10

O “dever da memória” que assistimos em países como Argentina (tema trabalhado por Sarlo em seu livro) Chile e Brasil, é, sem dúvida, uma relação afetiva e moral com o passado, principalmente por ser um passado recente e doloroso. Não se pode esperar das narrativas um distanciamento e a inteligibilidade própria do historiador. Por outro lado, é preciso reconhecer que a história jamais poderá dar conta dos

8 SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.18.

9 SARLO, Tempo passado..., p. 20.10 SARLO, Tempo passado..., p. 31.

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acontecimentos traumáticos da Ditadura Militar, dos descaminhos e, principalmente dos silenciamentos. É necessário que não se assuma um olhar ingênuo nem sobre a memória nem sobre a história.

É inegável e inevitável que seja uma marca do narrador a angústia do presente, e que se busque no relato o preenchimento de vazios e a auto explicação para os eventos vivenciados. A memória é anacrônica porque marcada por uma coerência do discurso, do momento, como nos diz Halbwachs:

Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. (...) A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto das representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor.11

O valor de verdade da memória é, muitas vezes, a busca de uma reparação dos danos sofridos (a tortura, o exílio, a perda de filhos e parentes), procurando uma redenção do passado, como diria Walter Benjamin12. É a verdade do testemunho que busca a abertura dos arquivos, o julgamento e a possível condenação dos algozes. Pelas narrativas é possível tecer o fio de dores, entrelaçando medos, angústias e (des)esperanças à violência do Estado Militar, dando a conhecer uma verdade desconhecida da maioria do público; uma verdade moral e ética comprometida com o esclarecimento dos desaparecimentos, assassinatos e torturas cometidos.

O narrador se impõe a tarefa de contar a sua própria história, emaranhada a outras que lhe ajudam a dar testemunho, falar e refletir sobre as perseguições sofridas durante o regime militar, ao mesmo tempo em que se constrói um processo terapêutico, em que se compartilham as emoções, quebrando-se o silêncio de tantos anos. A verdade do testemunho e da memória reúne elementos dispersos e constrói um retrato pessoal e identitário, através do qual homens e mulheres reconstituem sua própria unidade e sua identidade num tempo ao mesmo tempo subjetivo, emotivo e racionalizado pela narrativa. Não se trata da “verdade histórica”, crítica, distanciada pelo método, decifração e análise dos signos, mas a “verdade do testemunho”, dinâmica, incompleta e subjetiva. Como lembra Ecléa Bosi, alma, olho e mão entram em acordo com o narrador. Segundo ela, “O narrador é um artesão que torna visível o que está dentro das coisas. As mãos sustentam a história, que dão asas aos fatos principiados pela voz. A arte de narrar é uma relação alma, olho e mão: assim transforma o narrador sua matéria, a vida humana”13. Conta-se a partir

11 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006, p. 17.12 Para Walter Benjamin, o passado, como experiência, é uma luz, uma esperança, a redenção e

reconstrução a partir do presente que se abre para o futuro. BENJAMIN, O narrador...13 BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras,

1983, p. 49.

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da experiência e dela é possível extrair lições da própria dor, aconselhar.

Falar de suas dores e marcas, no corpo e na alma, é restabelecer uma certa justiça em relação ao que a história não registrou, não mostrou. É deixar de ser vítima e passar a ser cidadão, em busca do reconhecimento e da justiça. A memória, as motivações íntimas e a subjetividade são uma revanche contra o esquecimento, um alerta às novas gerações. O primado da existência, o espaço interior e a alma, presentes na narrativa, ganham maior importância do que a cronologia e os marcos estabelecidos pela história. O passado evocado atende às necessidades do presente, recuperando o tempo perdido e ignorado pela história. O presente no qual esses narradores estão inseridos colabora para essa busca constante de um passado redimido e “justiçado”.

O envolvimento em organizações políticas e as disputas de poder na atualidade fazem a memória parecer mais do que uma questão jurídica; ela ganha sentido ético e moral. A recapitulação da participação nos movimentos, nos debates estudantis ou operários, dos sonhos construídos e das pequenas lembranças, aquelas relacionadas a olhares, piscadelas, sorrisos, resíduos de grandes relações de renúncia a uma vida mesquinha e privada em nome da confiança coletiva num “mundo de igualdade”, tudo isso constitui um caminho de retorno a si mesmo, de leitura e construção de sentidos e de busca de legitimação da luta para a sociedade. Pollak entende que “as memórias subterrâneas” aguardam o momento de vir à tona e evocar esses sentidos subjetivos e políticos contra os enquadramentos de uma história oficializada:

O trabalho de enquadramento da memória se alimenta do material fornecido pela história. Esse material pode sem dúvida ser interpretado e combinado a um sem-número de referências associadas; guiado pela preocupação não apenas de manter as fronteiras sociais, mas também de modificá-las, esse trabalho reinterpreta incessantemente o passado em função dos combates do presente e do futuro. (...) Toda organização política, por exemplo - sindicato, partido etc. -, veicula seu próprio passado e a imagem que ela forjou para si mesma. Ela não pode mudar de direção e de imagem brutalmente a não ser sob risco de tensões difíceis de dominar, de cisões e mesmo de seu desaparecimento, se os aderentes não puderem mais se reconhecer na nova imagem, nas novas interpretações de seu passado individual e no de sua organização. O que está em jogo na memória é também o sentido da identidade individual e do grupo.14

A memória permite uma certa perspectiva sobre escolhas, inspirações éticas, erros e acertos cometidos durante a Ditadura Militar. Diferente do historiador, o narrador busca a si mesmo quando está contando sua história, numa obra de justificação e salvação pessoal e não numa ocupação desinteressada e objetiva. A análise do narrador, quando ocorre, está colada em sua trajetória de vida e muitas vezes é

14 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, CPDOC-FGV, v. 2, n. 3, 1989, p. 8.

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negociada com a comunidade de destino15 na qual se insere e com o destinatário de sua narrativa. Não se trata apenas de uma enunciação verbal pela qual se fica sabendo sobre nomes e datas, mas a linguagem transcende o visível e o factual. Trata-se de manter-se fiel a si mesmo, a uma comunidade que partilhou o mesmo destino de perseguição e dor, às suas marcas, dando sentido ao que se perdeu e validando o que se viveu: elegem-se fatos, descartam-se outros, alguns detalhes são mais valorizados enquanto cala-se sobre outros. Lacunas e deformações também aparecem e têm significado: a descrição de torturas é ainda ausente em muitos relatos e está além da linguagem verbal. Porém, crescem os trabalhos que estimulam a coragem para dizer o indizível e significar os silêncios mais do que as palavras.

A narração não é o próprio espelho da vida, o seu duplo fiel, nem a simples recapitulação do vivido, mas está permeada pelas inseguranças e exigências do presente, pelos impulsos do inconsciente, que unem passado, presente e a perspectiva de futuro; é um diálogo do narrador consigo mesmo e com a sociedade para quem se quer dizer sobre o que ela foi e sobre como poderá ser a partir do reconhecimento um passado ainda não dito.

Ao contrário da análise histórica – pretensamente objetiva – a memória ultrapassa a questão da verdade e da falsidade histórica. Dizer que não há mentiras para a memória é considerar que a experiência é significada pelo narrador e não é exata, pois a ideia de veracidade é colocada em outra dimensão. As histórias de vida não têm autoridade definitiva, não só porque cabe ao historiador – e não ao narrador - mostrar as distorções, falhas e silêncios, mas porque a busca de si mesmo é um processo que nunca finda. Lidar, no momento atual, com “o direito à memória e à verdade” implica menos em buscar a verdade dos fatos do que entender a qualidade e a importância subjetiva e até mesmo histórica de sentimentos, angústias e sonhos no contexto de reconquista plena da democratização e da cidadania em nosso país. Compreender a importância do testemunho, nesse momento tão delicado de nossa vida política, é perceber porque tantas pessoas se recusam a tocar na pedra que arde e preferem assumir as suas cicatrizes.

15 “Comunidade de destino é o resultado de uma experiência que qualifica um grupo, dando-lhe princípios que orientam atitudes de maneira a configurar uma coletividade com base identitária”. MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. São Paulo: NEHO/USP, 2005, p. 72.

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RESUMOEste artigo procura refletir sobre a importância do “direito à memória e à verdade” em relação aos eventos da Ditadura Militar brasileira, ressaltando o testemunho como uma contribuição para a história. O relato dos perseguidos políticos deve ser compreendido como uma discussão necessária contra o imediatismo do presente e como a construção da verdade subjetiva diferentemente da objetividade histórica. A memória, nesse sentido, é a possibilidade de que a experiência repense e dialogue com o passado. Palavras Chave: Ditadura; Memória; História; Verdade.

ABSTRACTThe aim of this article is to reflect about the importance of the right to memory and truth related to the facts that happened during the military Brazilian Dictatorship putting on highlights the testimony as a contribution to the history. The narrative of politician pursuited must be seen as a necessary discussion against the presentimeditism and as a construction of the subjective truth, differently from the historic objectivity. The memory, in this point, is the possibility to the experience rethink and talk with the past.Keywords: Dictatorship; Memory; History; Truth.

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BIOGRAFIAS HISTÓRICAS E PRÁXIS HISTORIOGRÁFICA

Arrisete C. L. Costa1

Há um consenso na comunidade dos historiadores no que diz respeito ao reconhecimento das biografias históricas como uma legítima forma historiográfica. Ao traçar um inventário das relações entre história e memória na cultura historiográfica ocidental, tendo como fio condutor a trama das memórias biográficas, acesso, nos termos de Hilda Noemí Agostino, “otras posibilidades de conocimiento, que nos aportan mas protagonistas y más colectivos sociales com la axiologia que los caracteriza y sus costumbres epocales”2. Tenciono demonstrar, por meio das diferentes modalidades do saber/ fazer biográfico, o trabalho de reconstrução das memórias individuais que aludem ao passado coletivo da humanidade, e, por isso, destaco aquelas produzidas no contexto das renovações da historiografia crítica contemporânea que ocorreram a partir de 1968, cuja práxis materialista arrebatou do esquecimento a história dos anônimos.

O termo biographia - grafia da vida - foi cunhado na Grécia no fim do período antigo. Desde então, a biografia é definida como a narração da vida de um indivíduo3. Leonor Arfuch define-a como um horizonte de inteligibilidade, onde é possível articular diversos gêneros e formas, dos mais canônicos às múltiplas variações contemporâneas, e, ao discorrer sobre a multiplicidade das formas que integram o espaço biográfico, ressalta o traço comum existente entre elas:

[...] contam, de distintas maneiras, uma história ou experiência de vida. Estão inscritas numa das grandes divisões do discurso, na narrativa, e estão sujeitas a certos procedimentos compositivos, entre eles, e prioritariamente, aos que remetem ao eixo da temporalidade. 4

Para o historiador François Furet, narrar ou contar uma história é dizer “aquilo que aconteceu”, “restituir o caos dos acontecimentos que constituem o tecido de uma vida”5, cujo modelo é a narrativa biográfica. Para Jacques Le Goff a

[...] biografia histórica deve se fazer, ao menos em um certo grau, relato, narração de uma vida, ela se articula em torno de certos acontecimentos individuais e coletivos – uma

1 Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora Adjunta do Curso de Graduação em História da Universidade Federal de Alagoas.

2 AGOSTINO, Hilda Noemí. Biografia e História. Debates, Cataluña, jul. 2002. Disponível em: <http://www.h.debate.com/>. Acesso em: 27 abr. 2004.

3 LUFT apud SCHMIDT, Benito Bisso. Biografia: um gênero de fronteira entre a história e a literatura. In: RAGO, Margareth & GIMENES, Renato Aloizio de Oliveira. Narrar o passado, repensar a história. Campinas: Editora da UNICAMP, 2000, p. 193.

4 ARFUCH, Lenor. La vida como narración. Palavra – Revista do Departamento de Letras da PUC-Rio, Rio de Janeiro, Editora Trarepa, n. 10, 2003, p. 45.

5 FURET, Furet. Da história-narrativa à história-problema. In: __________. A oficina da história. Lisboa: Gradiva, 1975, p. 81.

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biografia não ‘événementielle’ não tem sentido.6

Sua produção perpassa por todos os períodos da história humana: Antiguidade, Idade Média, Renascimento, Iluminismo, Idade Moderna e Pós-Moderna. É possível notar a sua presença numa linha de continuidade e rupturas epistemológicas, cuja genealogia se localiza entre os gregos, embora os primeiros a se destacarem pelos seus modelos de biografias históricas tenham sido os romanos, sobretudo aqueles estabelecidos por Suetônio Tranquilo e Plutarco: o esboço da personalidade e a análise dos tipos ideais7. Por exemplo, a obra Vida dos Césares, de Suetônio, caracteriza-se por uma forma de organizar os relatos conhecida como “eidológica”, que organiza os tópicos “per species”: nascimento, família, infância, educação e etc. Para separar os itens e tornar clara a passagem de um tópico para outro, recorria às “divisões”. Seguindo a mesma tradição, sobressaí-se na historiografia latina a História Augusta, uma coletânea de seis biografias de imperadores, elaborada progressivamente, do final do século III ao início do século IV. Dentre elas, destaca-se a biografia do imperador Aureliano, atribuída a Flávio Vopisco de Siracusa, considerado, na opinião da historiadora Maria Luiza Corassin, “imitador de Suetônio, tanto no estilo como em assunto”8. Plutarco escreveu a biografia de Alexandre, o Grande, onde faz uma distinção entre História e relato de vidas passadas em que havia espaço para trabalhar com os episódios, anedotas, chistes, pistas, seja na esfera privada, seja na pública. Nas biografias citadas, reconhece-se a valorização da mimese, o uso dos exempla como instrumentos de instrução moral, recurso comum à maioria das escolas retóricas. Foram tecidas a partir de um material factual: incidentes, frases e ditos, conversas, cartas e outros documentos considerados relevantes e, na falta desses, seus autores criaram livremente para preencher as lacunas de suas informações.

Na Idade Média, predominou a produção hagiográfica: vidas de santos, relatos de milagres, listas episcopais, Anais e Crônicas. As biografias de santos9 apresentavam, comumente, um teor panegírico que se inspirava em modelos antigos impelidos à exemplaridade. As hagiografias consistiam, segundo Michel de Certeau, um gênero literário que privilegia os atores do sagrado, ou seja, os santos, e visa à edificação. Sua construção narrativa estava baseada numa retórica tautológica do culto. E, muito embora Michel de Certeau não o considere um texto historiográfico, o documento hagiográfico se caracteriza por uma organização textual, na qual se desdobram lugares e temas que se referem “àquilo que é exemplar”. A partir de 1643, com a atuação dos Bollandistas, “as vidas de santos gerais e particulares são uma grande parte da história eclesiástica”10. Daí em diante, opera-se uma divisão: por um lado, a austeridade da exatidão nas biografias eruditas; de outro, uma “folclorização”

6 LE GOFF apud SCHIMIDT, Benito Bisso. Construindo biografias... historiadores e jornalistas: aproximações e afastamentos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, CPDOC-FGV, n. 19, 1997, p. 4.

7 LEVILLAIN, Philippe. Os protagonistas: da biografia. In: RÉMOND, René. Por uma História Política. Tradução de Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1996, p.148-149.

8 CORASSIN, Maria Luiza. Biografia e História na Vita Aureliana. Revista Brasileira da História, São Paulo, ANPUH/ Ed. Unijuí, v. 17, n. 33, 1997, p. 104.

9 São exemplos obras como: A vida de Santo Antônio, de Atanásio; A vida de Constantino, de Eusébio.

10 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes, com revisão técnica de Arno Vogel. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p. 268.

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popular, uma literatura devota, que culmina com o afetivo e o extraordinário das vidas edificantes. Ambas as formas narrativas trabalham com uma poética do sentido e produzem uma simbolização moral.

Na Renascença, nos séculos XIV e XV, despontam as crônicas relatando grandes feitos. No prefácio de uma obra ilustrativa do período, intitulada Carlos VII, Basin define sua missão de historiador como “escrever e transmitir à posteridade, sob a forma de relatos verídicos, a história do passado e, sobretudo, a vida dos personagens ilustres”11. Dentre as convenções das biografias renascentistas, Peter Burke arrola as seguintes características: os biografados eram, via de regra, governantes, filósofos, generais, literatos; tinham um objetivo didático; eram frequentemente utilizadas para indicar o contexto de publicação da obra de um determinado autor. Sua estrutura narrativa tinha uma organização cronológica, mas priorizava-se a estrutura temática: origens, formação, trabalho, sociabilidade, personalidade e epitáfio funerário. Seguindo a tradição elegíaca, a grandeza do herói é um tema recorrente nas biografias renascentistas; aos eventos como, por exemplo, os rituais e leito de morte, era dada uma atenção considerável, pois eram os marcos das cenas biográficas. Peter Burke faz, ainda, uma analogia entre o estilo da biografia e a ficção do período: ambas eram anedóticas, romanceadas, dramáticas. E, comumente, apresentavam o formato biográfico do “diálogo”. Exemplos ilustrativos dessa temporalidade são: a biografia de Marco Aurélio, por Antonio de Guevara, Libro Áureo de Marco Aurélio, 1528; a vida do poeta Ronsard, por Claude Binet, La vie de P. de Ronsard, 1586, e a biografia anônima Anonymous life of William Cecil Lord Burghley (c. 1600)12.

Os séculos XVI, XVII e XVIII foram marcados por mudanças historiográficas, envolvendo a erudição metódica, a história diplomática, o sentimento nacional e a acentuação do lado literário e retórico da história. Nesse período, os historiadores consideram que a história deve estudar os motivos e as paixões que guiam as ações humanas e apresentar heróis de alto relevo, como o fez, por exemplo, Gibbon, cujo “objeto principal, e praticamente único, de suas histórias é o homem e suas paixões [...]”, “[...] a tarefa suprema do historiador consistia em devassar os atores históricos em suas profundezas”13. Durante o século XIX, o número de produções das biografias históricas é expressivo. Nas primeiras décadas do século, prevalecia uma concepção de história como sendo uma biografia em escala mais ampla. O historiador Carlyle afirmava que a “história do mundo é a biografia dos grandes homens”, e, para Emerson,“não existe história, propriamente, só biografia”. O entrelaçamento de história e biografia revela-se na produção de historiadores e investigadores como Leopold von Ranke, que inseria “esboços biográficos em suas volumosas histórias”; Michelet, que "passou toda a sua carreira escrevendo a biografia coletiva do povo francês", e Heinrich von Sybel, que descreveu a biografia “como um ramo da história”. Prevalece, em suas abordagens, a apologia clássica do herói. Para Peter Gay, o fenômeno – qualificado pelo historiador inglês Coleridge como “era da personalidade” e pelo editor e ensaísta Charles Whibley como a “loucura moderna 11 BASIN apud GAY, Peter. O coração desvelado: a experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud.

Tradução de Sérgio Bath. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.12 BURKE, Peter. A invenção da biografia e o individualismo renascentista. Estudos Históricos, Rio de

Janeiro, CPDOC-FGV, n. 19, 1997.13 GAY, Peter. O estilo na história: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt. Tradução de Denise

Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 37.

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pela biografia” – concorre para a expansão e o contínuo aumento da popularidade das biografias, particularmente na segunda metade do século. O historiador enfatiza que, entre as décadas de 1870 e 1880, o “apetite biográfico era insaciável”, revelado com o lançamento de séries como: English men of letters; English Leaders of Religion; Who’s Who; Dictionary of Nacional Biography14. A partir de meados do século XIX, quando os avanços da metodologia histórica tornam mais exigentes, cuidadosos e severos os procedimentos científicos, alguns historiadores contestam a identificação da biografia com a história15.

As modificações de caráter profissionalizante na historiografia motivaram a substituição de uma literatura de celebração (biografias encantadas) por uma crítica (biografias desencantadas). Marly da Silva Motta afirma que, no fim do século XIX, as biografias continuavam a plataforma apropriada para o culto dos heróis e figuravam com equidade, ao lado de outras ricas fontes históricas nacionais, enciclopédias e coleções de documentos para o estudo do passado. Discute, ainda, as estreitas relações entre o gênero biográfico e a história política, destacando o exercício apologético dos heróis nacionais como um dos pilares do complexo processo de construção da nação, filiado à concepção de história como “mestra da vida” e com o uso das biografias como modelos exemplares a serem seguidos. Mesmo um historiador como Leopoldo Von Ranke, que demonstrava excessiva preocupação com a objetividade, estudava o Estado como uma entidade viva, “um indivíduo”. Sabina Loriga reforça estas características peculiares relativas à consideração das ações individuais como base da história, principalmente no mundo anglo-saxão e outros países da Europa e, muito apropriadamente, cita Gustav Droysen como ilustração da concepção que sublinha a importância dos acontecimentos específicos e dos feitos individuais.

A retrospectiva feita até o momento revela o modelo da narrativa biográfica construída numa linha temporal contínua entre o nascimento e a morte, onde lhes são atrelados os eventos que perfazem uma vida individual. A memória é vista como substrato para a reconstrução histórica a partir de processos da rememoração de acontecimentos vividos, pessoas, personagens, lugares, costumes. A história assemelha-se ao duplo científico da memória16. No início do século XX, as biografias com tal feitio foram rejeitadas. Peter Burke comenta o fato de que, tanto a primeira quanto a segunda geração dos historiadores franceses da Escola dos Annales não levaram a sério a biografia17. Os historiadores desse grupo, surgido em 1929, combatem a história política tradicional, centrada na atuação dos grandes homens; propõem a colaboração com as ciências humanas menos atentas às ações individuais (especialmente a geografia, a sociologia e a economia); introduzem 14 GAY, Peter. O coração desvelado: a experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud. Tradução de

Sérgio Bath. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 207, 176, 208.15 Marx e Tocqueville. Para estes historiadores, o choque de classes, o desenvolvimento de estruturas

econômicas e sociais eram os verdadeiros impulsos das transformações históricas. GAY, O coração desvelado: a experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud. Tradução de Sérgio Bath. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 211.

16 MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. A crise da Memória, História e Documento: reflexões para um tempo de transformações. In: SILVA, Zélia Lopes da (org.). Arquivos, patrimônio e memória: trajetórias e perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP, 1999.

17 BURKE, Peter. A Revolução Francesa na historiografia: a Escola dos Annales, 1929-1989. Tradução de Nilo Odália. São Paulo: Editora da UNESP, 1991, p. 103.

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a noção de história problema e reivindicam uma história total, preocupada com todos os aspectos do fazer humano. Mas, apesar da refração da biografia enquanto história política e da narrativa memorialística a ela associada, a Escola dos Annales produziu, durante a primeira metade do século XX, estudos biográficos inspirados em personagens históricos. Esse tipo de biografia é da primeira fase dos Anais, datada aproximadamente até a Segunda Guerra Mundial, e pode ser exemplificado pelas obras biográficas de Lucien Febvre: Un destin, Martin Luther, 1928; Le problème de l’incroyance au XVIe siècle. La réligion de Rabelais, 1942; Margarida de Navarro, 1944 – livros que utilizaram o procedimento biográfico combinando a erudição e a história-problema. Uma das características dessa produção biográfica é a redução da autonomia dos grandes personagens, inserindo-os no contexto em que viveram, visto aqui como um limite para a livre atuação individual. Para Febvre o indivíduo é sempre o que sua época e o seu meio permitem. Essa perspectiva, influenciada pela hermenêutica diltheyana, “dá grande importância à biografia: a época explica o indivíduo e o indivíduo exprime a sua época”18.

Com a chamada Era Braudel, a biografia perdeu seu espaço nos Annales, pois a maioria dos historiadores desse grupo menosprezou as possibilidades, que foram preteridas em nome dos enfoques macro-estruturais totalizantes. Os historiadores, influenciados pelo paradigma estruturalista, voltaram-se para a história econômica e social. Essa fase foi marcada pela quantificação, em que qualquer ação humana servia como um dado para a construção de amplas séries estatísticas, único meio capaz de captar os movimentos de longa duração. Imbuídos desse espírito, Pierre Chaunu e Le Roy Ladurie proclamaram a morte da biografia. Fernand Braudel, por sua vez, não a eliminou, considerando-a constituinte do vivido: “[...] o problema não consiste em negar o individual sob o pretexto de que ele é contingente, mas de ultrapassá-lo, distinguir nele forças diferentes dele, reagir contra uma história reduzida ao papel dos heróis [...]”19. Embora, na obra intitulada O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Felipe II, Fernand Braudel tenha como ponto de referência um grande personagem, o rei da Espanha Felipe II, “o herói é o Mediterrâneo e não Felipe II”. O mediterrâneo é o herói coletivo na cena da história mundial. Como nos adverte Paul Ricoeur, na estruturação da obra de Fernand Braudel há uma analogia “[...] entre o tempo dos indivíduos e das civilizações [que] deve ser preservada: crescimento e declínio, criação e morte, destino [...]”20. Entrevemos essa analogia em trechos da própria obra “O Mediterrâneo é tal como o fazem os homens, a roda do seu destino fixa o deles, amplia e restringe seu campo”21. Paul Ricoeur questiona o porquê de Fernand Braudel querer contar a história do Mediterrâneo, escrever e terminar a obra com “páginas suntuosas sobre a morte de Felipe II a 13 de setembro de 1598?”22. Ao que responde, comentando que tal morte não era um grande acontecimento do ponto de vista da história do Mediterrâneo, mas tinha o significado de um acontecimento de “primeira grandeza” para todos os protagonistas. No âmbito da estruturação da obra, a morte que revela um destino individual não se inscreve

18 REIS, José Carlos. Annales: a renovação da História. Ouro Preto: Editora da UFOP, 1996, p. 43.19 BRAUDEL apud REIS, Annales…, p. 109.20 REIS, Annales…, p. 114.21 BRAUDEL apud RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa - tomo I. Tradução de Constança Marcondes

César. Campinas: Papirus, 1994, p. 298.22 RICOEUR, Tempo e narrativa, tomo I, p. 304.

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na trama da explicação, mesmo que o historiador marque uma distância entre a história biográfica e a história das estruturas; sem essa referência, não saberíamos que a história é humana: “Por si só Felipe era a súmula desse império, das suas forças e das suas fraquezas”23.

Philippe Levillain aponta o fim dos anos 70 como o período do florescimento da biografia na França, mas adverte-nos que a sua reabilitação na Universidade francesa acontecera já nos anos 6024. Se, em 1974, na obra Fazer a História, Jacques Le Goff denuncia a insuficiência metodológica e científica dos vulgarizadores e “escrevinhadores de historietas”, referindo-se àqueles que escrevem biografias sintonizadas a “um mercado condicionado às regras da sedução”, em 1981 faz declarações atenuantes a esta posição inicial quanto às biografias, afirmando sua prática no âmbito da Escola dos Annales. A coleção francesa intitulada Archives, série dos anos 197025, estava dirigida para a publicação de fontes sobre casos judiciários célebres ou extravagantes26. É à Nova História que se atribui o renascimento da biografia na historiografia francesa como uma nova prática que envolve diferentes razões e que assume formas diferentes. A Nova História resgata a biografia a partir de uma perspectiva conhecida como “história-problema”, que visa ultrapassar os enfoques tradicionais e fazer a reapropriação de antigos gêneros em função de uma problemática renovada. Na historiografia francesa, a volta da biografia vai estar associada ao fenômeno conhecido como “retorno da narrativa”, que sinaliza novas experimentações historiográficas.

No cerne dessas renovações, acrescenta-se, ainda o retorno à história política, pela chamada terceira geração de historiadores franceses, entendido como uma reação às formas de determinismo “estruturalista braudeliano” e, especialmente, o “economicismo marxista”. Observa-se a preocupação com a liberdade humana e o interesse por uma escala de análise micro, fundamentada na filosofia do sujeito, que desencadeia o ressurgimento da biografia histórica, fora e dentro dos quadros da historiografia francesa. Dentre as biografias produzidas pela corrente historiográfica Nova História, cito a de São Luís, 1996 e a de São Francisco, 1999, por Jacques Le Goff; a do burguês Joseph See, por Michel Vovelle; a do artesão parisiense Jean Louis Ménétra, por Daniel Roche; a de Louis-François Pinagot, por Alain Corbin, 1998, e a biografia intitulada Guilherme Marechal ou o melhor cavaleiro do mundo, 1984, da autoria de Georges Duby. Esta última discorre sobre a vida de um cavaleiro medieval inglês. Ela foi escrita como um romance, sem pausas analíticas e com as citações documentais, não referenciadas, intercaladas com a fala do autor. A narrativa acompanha a vida de Guilherme que, partindo do nada, morreu rico e celebrado como o “melhor cavaleiro do mundo”.

Nos anos 70, na Itália, a coleção intitulada Microstorie, publicada pela editora Giulio Einaudi é dirigida, principalmente, para pesquisas biográficas. E, em 1976,

23 BRAUDEL, apud RICOUER, Tempo e narrativa, tomo I, p. 304.24 Entre as 756 Teses de história contemporânea computadas em 1º de outubro de 1966, constata-se

que 46 delas eram biografias.25 Coleção dirigida por Jacques Revel e Pierre Nora. Publicou mais de 100 livros. Ver FERREIRA,

Marieta de Moraes. “Entrevista com Jacques Revel” In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, CPDOC-FGV, v. 10, n. 19, 1997, p. 125.

26 Nesta coleção, Michel Foucault publica a obra Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão.

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quando ainda prevalecia a história serial e quantitativa e a biografia consistia numa tópica provocadora frente às ortodoxias da historiografia, Carlo Ginzburg escreve O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Mas é nas décadas de 80 e 90 que se assiste a um boom das biografias no mercado editorial, chegando a ocupar os primeiros lugares na lista de best-sellers, provocando o surgimento, em livrarias e bibliotecas, de seções especializadas. Em 1982, O retorno de Martin Guerre é lançado e torna-se um “best-seller acadêmico”. Em 1984, a Encyclopaedia Universalis fazia, em seu suplemento, sob a rubrica “A biografia hoje”, um inventário segundo o qual, na expressão de seu autor, Daniell Madelénat, em alguns anos havia-se operado a recuperação da biografia e de seu estilo eminentemente narrativo. Em 1985, Peter Gay publica Freud: uma vida para o nosso tempo. Em 1992, na Espanha, Jaimes Contreras lança a obra Sotos contra Riquelmes. Peter Burke, historiador inglês, além de publicar a obra biográfica A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV, 1994, publica também Veneza e Amsterdã, recuperando uma tradição de estudos de biografias coletivas das elites (prosopografia), difundidos nas décadas de 1920/ 30 na Inglaterra e nos Estados Unidos, quando as biografias coletivas estavam em uso, com destaque para as obras clássicas de Lewis Namier, 1929, Robert K. Merton, 1938, e Ronald Syme, 1939. Acrescentam-se ainda nesta tradição as biografias elaboradas por Andrée Mansuy-Diniz Silva, 1979, e Linda Colley, 2002.

A English Social History – o grupo contemporâneo de historiadores britânicos de inspiração marxista – constitui-se nos anos 40, congregando historiadores como Eric Hobsbawm, Edward Thompson e Christopher Hill. Essa corrente historiográfica recupera, com a biografia, a "dimensão subjetiva dos processos sociais, negligenciada pelas tendências estruturalistas do marxismo”27. Christopher Hill, um de seus expoentes, escreveu Oliver Cromwell, 1988, uma biografia do líder da Revolução Inglesa do século XVII, em que se esforça por destacar a importância decisiva da ação de um personagem para a história da Inglaterra. Sua formação marxista faz com que privilegie a “inserção classista do personagem”, considerando-o como um precursor dos “grandes plebeus”, ou seja, da burguesia inglesa. Destaca a importância decisiva da ação do personagem para a história da Inglaterra como, por exemplo, na seguinte passagem: “[...] assim, para o bem ou para o mal, Oliver Cromwell presidiu as grandes decisões que determinaram a futura trajetória da história inglesa e mundial”28. Ao articular a atuação do indivíduo biografado com o contexto no qual esta se realizou, privilegia a ação das classes sociais e os conflitos religiosos.

A Psico-História refere-se, de um modo geral, aos historiadores que, em diversos momentos e em diferentes lugares, buscaram, no instrumental da psicologia e da psicanálise, elementos para explicar as ações humanas na história. A Psico-História tem como meta desvendar os caminhos que ligam a subjetividade individual ao contexto social. O destaque desta tendência é o historiador alemão, atuante nos Estados Unidos, Peter Gay, que vai extrair da psicologia freudiana os elementos para analisar a relação dos indivíduos biografados com os seus contextos. Na obra 27 SCHMIDT, Benito Bisso. O gênero biográfico no campo do conhecimento histórico: trajetória,

tendências e impasses atuais e uma proposta de investigação. ANOS 90 – Revista do Programa de Pós-Graduação em História, Porto Alegre, UFRGS, n. 6, dez. 1996, p. 174.

28 HILL, Christopher. O eleito de Deus: Oliver Cromwell e a revolução inglesa. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 14.

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intitulada Freud: uma vida para nosso tempo, 1989, Peter Gay utilizou o método psicanalítico para biografar o fundador da psicanálise, Sigmund Freud. Peter Gay usa a teoria psicanalítica como um recurso para a construção da história mental do indivíduo, na qual a experiência cultural ocupa um lugar importante. Excursionando pelo modelo psicanalítico do desenvolvimento humano o historiador lê a cultura através do indivíduo.

No Brasil, a popularidade da biografia é comentada pelos historiadores Benito Schimidt, Magda Ricci, Marly da Silva e Francisca L. Nogueira de Azevedo29. Nas duas últimas décadas, têm sido férteis as produções de biografias históricas por historiadores brasileiros, dentre eles, destaco Maria Odila da Silva Dias, Eduardo Silva, Elciene Azevedo, Glória Kaiser, Kenneth Maxwell, Lia Moritz Schwarcz, Magda Ricci, Dênis de Moraes, Margareth Rago, Laura Maria de Mello e Souza, Nicolau Sevcenko, Francisco Falcon, Evaldo Cabral de Mello, Janaína Amado, José Murilo de Carvalho, Mary Del Priore, Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke, Maria Lacerda de Moura, Miriam Moreira Leite, Alexandre Hecker, Regina Horta Duarte, Maria Elena Bernardes e um expressivo contingente de cientistas sociais que defendem o uso da biografia. Chamo atenção também para os inúmeros ensaios sobre o gênero biográfico que despontam na década de 80 e para os dicionários que lhe consagram verbetes. Artigos são publicados na Itália, Suíça e Alemanha. Organizam-se seminários e simpósios sobre o tema. Essas tantas evidências apontam para o lugar central que as biografias ocupam na reflexão dos historiadores. Ela tornou-se um objeto privilegiado de estudos no âmbito da corrente historiográfica da Micro-História, e será a seguir particularizada, a fim de apontar os parâmetros que a informam: epistemológicos, metodológicos e políticos, detalhando as imbricações entre a história, entendida como operação cognitiva e a memória, seu objeto.

A Micro-História inicia-se como um projeto oriundo das questões e proposições formuladas por um grupo de historiadores italianos. Dentre eles, Carlos Ginzburg, Giovanni Levi, Carlo Poni, Eduardo Grendi, Maurizio Gibaudi, Simona Cerrutti, Franco Ramella, Pietro Redondi, Ângelo Ventura, Ernesto Galli Della Loggia, Raffaele Romanelli. Estavam ligados à revista Quaderni Storici, publicada pela editora Il Mulino de Bolonha, a partir de 197030, e à coleção intitulada Microstorie, publicada pela editora Giulio Einaudi, em Turim, a partir de 1981. A micro-história, através de uma trajetória que envolve mais de três décadas, não apenas formulou novas e singulares interrogações, mas estendeu suas temáticas, elaborou sugestões comuns, criando uma coerência; uma “comunidade de estilo”31, que, indubitavelmente, alcançou uma difusão internacional e um lugar importante nos debates historiográficos 29 SCHMIDT, Benito Bisso. Trajetórias e vivências: as biografias na historiografia do movimento

operário brasileiro. Cultura e Trabalho, São Paulo, PPGH/ DH/PUC-SP, fev. 1998, n 16, p. 233-244, p. 237. SCHMIDT, Benito Bisso. A biografia histórica: o ‘retorno’ do gênero e a noção de ‘contexto’. In: BARCELLOS, César et al. Questões de teoria e metodologia da história. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2000, p. 121-129; RICCI, Magda. Como se faz um vulto na História do Brasil; AZEVEDO, Francisca L. Nogueira de. Biografia e gênero. In: BARCELLOS et al, Questões de teoria..., p. 131-146. SILVA MOTTA, Marly da. O Relato biográfico como fonte para a História. Vidya, Santa Maria, v. 19, n. 34, jul./ dez. 2000, p. 101-122.

30 Ver a minuciosa pesquisa empreendida por Enrique Espada Lima. LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

31 Entendida como um grupo de indivíduos com uma identidade historiográfica.

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contemporâneos e nas obras dedicadas às questões epistemológicas do conhecimento histórico. A operação da escrita da história efetuada pela micro-história recorre a procedimentos de exposição de enredos e às técnicas narrativas contrastantes com as maneiras habituais da “corporação historiadora”. Alguns historiadores romperam com as formas convencionais empregadas pelos historiadores para a apresentação de sua produção. Todas as produções historiográficas consideradas como micro-analíticas destacam-se por suas qualidades eminentementes narrativas.

As narrativas biográficas, classificadas como micro-históricas, mais difundidas no mundo historiográfico ocidental são as seguintes: O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição, 1976, e Indagações sobre Piero: o batismo, o ciclo de Arezzo, a flagelação, 1981, de Carlo Ginzburg; Galileu eretico, de Pietro Redondi, 1983; Biografia di una città: storia e racconto: terni 1830 – 1985, de Alessandro Portelli, 1986; Soldati: l’istituzione militare nel Piemonte del Settecento, de Sabina Loriga, 1992; O retorno de Martin Guerre, 1982, Nas margens: três mulheres do século XVI, 1997, de Natalie Zemon Davis; Southern Honor, 1982, de Wyatt Brown; Logiques de la foule. L’affaire dês enlèvements d’enfants, 1988, de Jacques Revel e Arlette Farge; Atos impuros: a vida de uma freira lésbica na Itália da Renascença, 1984, de Judith Brown; A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII, de Giovanni Levi, 1985. Dentre aquelas produzidas no Brasil, destacam-se: O diabo e a terra de Santa Cruz, 1986, de Laura de Mello e Souza; Trópicos dos Pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil Colonial, 1989, de Ronaldo Vainfas; Rosa Egipcíaca: uma santa negra no Brasil Colonial, 1992, de Luiz Mott; Um herege vai ao paraíso: cosmologia de um ex-colono condenado pela Inquisição, 1997, Plínio Gomes; O nome e o sangue: uma parábola familiar no Pernambuco colonial, 1989, Evaldo Cabral de Mello; D. Oba II D’África, o Príncipe do Povo: vida, tempo e pensamento de um homem livre de cor, 1997, de Eduardo Silva. A seguir, com o intuito de exempla, comento algumas dessas biografias a fim de ressaltar suas qualidades cognitivas vislumbradoras das relações entre a história e a memória.

A biografia A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII, 1985, de Giovanni Levi, resulta de um trabalho sistemático e exaustivo em arquivos, principalmente notariais e cadastrais, onde o autor desenvolveu uma vasta pesquisa prosopográfica. O relato começa como uma história de vida do padre Giovan Battista Chiesa, vigário da paróquia de Santena; todavia, no decorrer do relato, sua trajetória desaparece a ponto de Jacques Revel perguntar: trata-se mesmo de uma biografia? Ao que responde negativamente, se tomarmos como parâmetro o modelo clássico da biografia; por outro lado, reconhece sê-lo, ao considerar as condições e os contextos nos quais a história se consubstancia a partir de uma “série de destinos inscritos no espaço de uma comunidade restrita”. Sua narrativa nos mostra a história ao “rés do chão”: as relações sociais, a vida política, as regras econômicas, as reações psicológicas. Ela coloca “ordem na desordem aparentemente não-essencial do cotidiano”. Vê-se que essa ordenação executada pela operação configurativa do enredo opera uma síntese do heterogêneo, mas sem descaracterizar a principal “figura” através da qual os homens de Santena apreendem seu tempo: a incerteza. Assim, Giovanni Levi não tece uma intriga simplificadora; ao contrário, respeita-lhe a complexidade.

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As sequências narrativas são tripartites: a contextual, em que são enquadradas as generalizações ou, como bem o diz Jacques Revel, “a moldura referencial que torna inteligível sua Ilíada camponesa”, alertando-nos para a intrincada mobilidade das relações de poder e forças de resistência; a construção de quadros descritivos, cuja estratégia do historiador são as “frentes familiares”, identificadas por seus laços de parentesco consanguíneo, por alianças ou relações de parentesco fictícias, e o trabalho de conceitualização: o tema do poder. Nessa série, Giovanni Levi retraça a simbologia de uma rede tradicional móvel, a pragmática da herança imaterial, cujo protagonista principal tem o papel de um mediador. O resgate dos acontecimentos em escala micro (multiplicação das vendas e compra de terra, o crédito, o destino coletivo dos conjuntos familiares, a luta pelo prestígio e pelo poder local) movimenta-se circunscrevendo a modulação local de uma grande história. O modelo de análise estratégico de Giovanni Levi adota como tropo principal a noção de incerteza, que lhe permite trabalhar com uma complexidade do social que vai das ambiguidades, limitações e forças que operam no ambiente social em estudo às formas de entidades abstratas (Estado, zonas rurais, reforma católica etc.) e à cartografia do social. O recurso sistemático a variações de distância focal revela, a cada nível de leitura, uma realidade diferente. Ao historiador coube fazer as conexões das múltiplas experiências e representações sociais, que sabemos comportar contradições num sistema de contextualização múltipla.

O retorno de Martin Guerre, 1982, da historiadora da Nova História Cultural norte-americana32, Natalie Zemon Davis, é notabilizado por ter sido contado por juristas, romancistas, historiadores e cineasta (filme dirigido por Daniel Vigne, 1982). A elaboração do seu enredo narra um caso de impostura de uma pequena vila francesa ocorrido em 1540, quando um camponês abandona sua mulher, filho e propriedades durante oito anos. Três anos após a partida, sua identidade é assumida por outro homem. A historiadora, a partir de processos notariais, anais judiciais e das reelaborações literárias intituladas: Arrest memorable do juiz Jean de Coras e da Admiranda historia de Le Sueur, mediados pela invenção e como ela mesma afirma, pela atenta escuta das vozes do passado, reconstitui, sagaz e poeticamente, as micro-histórias biográficas de Martin Guerre (marido que parte), Bertrande de Rols (esposa abandonada) e Arnauld du Thil (impostor). Uma narrativa fértil para esclarecer questões relativas à investigação e escrita da história e às questões conceituais sobre memória, representação e formação de identidade no século XVI.

O apelo dramático da história de Martin Guerre inspirou uma peça, três romances, uma opereta e um filme e, segundo Natalie Zemon Davis, “ainda é lembrada na aldeia de Artigat, nos Pirineus, onde os acontecimentos ocorreram há quatrocentos anos”. Sua trama conceitual pauta-se em operações dialéticas centradas na construção conflitante de sentido interposta nas relações sociais da sociedade rural do século 16 (entre pai e filho, marido e mulher, ricos e pobres, protestantismo e cristianismo), expressando-a através de recursos linguísticos de nuances, de contrastes, de oposições. A trama de Martin Guerre denuncia as condições sociais e existenciais opressivas com que lutam e sob as quais sucumbem os sujeitos: o

32 Na esfera desta corrente, segundo Peter Burke, estariam os “estudos culturais”, seguindo o modelo do Centro de Estudos culturais Contemporâneos, da Universidade de Birmingham, dirigido por Stuart Hall.

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destino trágico do impostor Arnauld du Thil – o desviante, que é preso, processado e punido com a morte. Todavia, metáforas oníricas dimensionam manifestações libertárias como: a vontade de Martin Guerre de viver uma outra vida, os desejos de Arnauld du Thil ao aspirar “forjar uma nova identidade e construir uma outra vida”, o sonho de Bertrande “com um esposo e amante que voltaria e seria diferente” e, sobretudo, configuram o eixo hipotético “de uma rara identificação entre o destino dos camponeses e o destino dos ricos e instruídos”. E Natalie Zemon Davis mostra-nos como as coerções socioculturais foram circunstancialmente superadas por fórmulas “insólitas e inesperadas”, modeladas individualmente. Na narrativa de Martin Guerre, Natalie Davis conjetura os pensamentos e sentimentos de Bertrande numa investigação que liga o caso específico ao contexto “enquanto campo de possibilidades historicamente determinadas”. Como afirma a própria historiadora, sonda as profundezas do passado, presume os sentimentos e reações plausíveis de seu homem ou sua mulher, “imaginando o seu conteúdo a partir de muitas outras que lhe sobreviveram [...] através de outras fontes de época e do local”. A biografia dos personagens de Natalie Davis torna-se, de vez em quando, a biografia de outros homens e mulheres do mesmo tempo e lugar.

O Queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição33: trata-se da biografia intelectual de um esquecido e anônimo moleiro herético: um remontar de sua história, uma explicação das correntes intelectuais que o influenciaram, um estudo meticuloso dos livros que leu e de suas interpretações. Segundo Carlo Ginzburg, uma primeira consideração que se deve levar em conta nessa obra é “[...] uma tentativa de expandir a relevância da noção de indivíduo na história – transferir o retrato da individualidade da ‘elite cultural’ ao que geralmente nos referimos como ‘as massas’”34. Note-se que, em meados dos anos 70, a biografia consistia numa tópica provocadora frente às ortodoxias da historiografia. Prevalecia a história serial e quantitativa e, justo neste momento, “propor uma investigação capilar sobre um moleiro pode parecer paradoxal ou absurdo, quase como um tear mecânico numa era de teares automáticos”. Declara o autor no prefácio de O Queijo e os Vermes que “não é um objetivo de pouca importância estender às classes mais baixas o conceito histórico de ‘indivíduo’”.

Na abertura do prefácio da edição italiana de O queijo e os vermes, há uma epígrafe que é um trecho de um poema de Berthold Brecht: “Quem construiu Tebas das sete portas?”. O historiador diz que “As fontes não nos contam nada daqueles pedreiros anônimos, mas a pergunta conserva todo o seu peso”. Ela remete a uma perspectiva política: a história vista de baixo. Para Carlo Ginzburg, o anonimato de uma vida pessoal é transcendido por horizontes mais amplos. Foi o que o motivou para escrever um livro sobre uma pessoa totalmente desconhecida, que não poderia reivindicar, até então, qualquer significado histórico tradicional. Essa intencionalidade biográfica da obra, eminentemente política, é instigante para, com um gesto

33 É o livro mais conhecido e difundido dentro do conjunto de toda a produção intelectual de Carlo Ginzburg. Em levantamento realizado no ano de 2004, foram localizadas vinte traduções. Simultaneamente, teve, até 1997, 15 reimpressões na Itália e, em alguns outros países, teve mais de uma edição; no Brasil, teve quatro edições: 1987, 2001, 2002 e 2006.

34 GUNDERSEN, Trygve Riiser. No lado negro da história: uma entrevista com Carlo Ginzburg. Tradução de Maria Betânia Amoroso. 10ª reimp. Eurozine, jul. 2005. Disponível em: <http://www.eurozine.com/articles/2005-07-20-ginzburg-pt.html>. Acesso em: 12.01.2006.

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hermenêutico, prescrutar-lhe os meandros da operação historiográfica constitutiva de sua narrativa e interpretá-la enquanto um artefato textual, uma história, artesanada e contada pela intencionalidade histórica e política do historiador. Isso significou, para além das propostas annalistas da história social, vigentes nos anos de 1960/70, que primavam pela serialização e anonimato, uma atitude de contraposição e a adesão a uma nova opção, que tinha por alvo tirar do esquecimento a ação das classes populares, que, aliás, haviam deixado poucos rastros e escassos vestígios documentais. Nos anos 70, François Furet defendia as reconstruções estatísticas, de grandes magnitudes, despersonalizadoras e homogeneizadoras – alheias, portanto, ao rastreamento das vidas pessoais. Carlo Ginzburg, Carlo Poni e Eduardo Grendi, Giovanni Levi sustentaram pressupostos distintos que, enfim, reprovavam o cartesianismo de tal postura e defendiam a individualização da história, ou seja, buscar o mesmo indivíduo ou grupo de indivíduos em contextos sociais diferentes.

Segundo Paul Ricoeur, o modo como determinada situação histórica deve ser pré-configurada depende da sutileza com que o historiador harmoniza a estrutura específica do enredo: a vida de Menocchio, com o conjunto de eventos e circunstâncias (a invenção da imprensa, a Reforma Protestante, a Contra Reforma, a Cultura oral) aos quais deseja conferir um sentido particular. Portanto, trata-se, essencialmente, de uma operação integradora. A escrita vai dando corpo significante aos eventos, e os eventos se articulam em um lugar que é o espaço (Europa pré-industrial) – tempo narrativo (século XVI). A abordagem micro-analítica demonstra uma capacidade de conceitualizar, de pôr em dúvida a noção de regularidade evolutiva, de reintroduzir o provável, quando não o aleatório, nas sucessões temporais35. De forma que o passado e suas circunstâncias surgem em fragmentos, em micro-histórias, rompendo com a imagem de um mundo ordenado e hierárquico. A originalidade de Carlo Ginzburg, ao esclarecer um caso “excepcional” ou “extraordinário” como o do moleiro Menocchio, que escapava tanto da costumeira tipologia dos processos inquisitoriais quanto da tipologia da amostra coletiva “representativa” ou “média” (geralmente utilizada no âmbito dos estudos sociológicos), foi estender às classes mais baixas o conceito histórico de “indivíduo”. Mas a análise particularizada não é restrita, nem arbitrária; ela tem a ambição de incorporar, integrar e articular o maior número possível de propriedades, que lhe permitam a reconstituição do vivido, das experiências sociais em sua máxima complexidade e amplitude. Por essa perspectiva, o historiador Carlo Ginzburg faz emergir, da “cultura” de Menocchio, uma modulação em escala global da cultura camponesa da Europa pré-industrial do século XVI, apreendendo os fenômenos históricos e os enclaves socioculturais em circulação.

Ele procura dar conta das certezas e incertezas das escolhas daquele homem, diante da conjuntura do momento histórico em que ele viveu: a Europa pré-industrial. As condições daquele presente, tal como ele foi vivido, poderão tornar-se acessíveis para nós a partir da sua experiência individual, traços ou rastros, que perduraram até nós. Carlo Ginzburg afirma que esse modelo permitiu-lhe, também, demonstrar a incerteza do processo de pesquisa e de seus procedimentos analíticos, 35 GRIBAUDI, Maurizio. Escala, pertinência, configuração. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escala:

a experiência da micro-análise. Tradução de Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 139.

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em particular, o do Estranhamento. Este consiste num movimento retrospectivo, de retornos no tempo, às avessas (técnica denominada flashback), um movimento de frente para trás e de trás para frente, isento de linearidade, que alterna e envolve a relação do presente com o passado e deste com o presente. Com o uso do método retrospectivo aplicado ao saber historiográfico, o autor tentará reconstituir, no mesmo nível da investigação, o mundo cultural na Europa do século XVI. A dinâmica do jogo interpretativo de Carlo Ginzburg reside na combinação entre dados seguros e conjecturais, entre provas e possibilidades. Neste sentido, O queijo e os vermes experimenta a dimensão integrativa da narrativa, articulando a perspectiva que privilegia a análise das formas com a focada na análise das funções36. Daí a problemática da “representância”, vinculada à problemática dos rastros – na medida em que os rastros valem pelo passado –, encontra no ver-como uma saída parcial. Essa operação construída, que não esconde a sua artificialidade, é realizada pelo questionamento às avessas e pela intencionalidade histórica, que possibilitarão a reconstrução analítica de rastros, vestígios ou fragmentos do passado. E indicam a consciência do historiador, no que diz respeito a todas as fases da investigação como construídas e não “dadas”. Para Paul Ricoeur, esse projeto designa “a expectativa ligada ao conhecimento histórico das construções que constituem reconstruções do curso passado dos acontecimentos”37 e, nela, reside uma articulação da história com a memória:

Nem por isso se deve esperar uma ressurreição da vivência dos agentes sociais, como se a história deixasse de ser história e se juntasse à fenomenologia da memória coletiva. O respeito por essa sutil fronteira importa a nosso assunto, que jamais desmente a implícita profissão do corte epistemológico que separa a história da própria memória coletiva. São sempre interações que são recolhidas e reconstruídas.38

É justamente no interior da práxis historiográfica que se efetiva uma síntese, aparentemente antinômica, entre história e memória, visto que se utiliza de um mesmo princípio: a imaginação para a (re)criação das experiências humanas nos tempos, a fim de alcançar o “que um dia poderia ter sido” e contá-las, não mais através de convenções linguísticas opostas, mas confluentes. A imaginação pode ser considerada como uma iniciação à função crítica, na medida em que ensina a sonhar de outra maneira, igual ao relato que ensina a contar de outra maneira. É, nesse duplo “de outra maneira” que, segundo Paul Ricoeur, se encontra in nuce uma força crítica. Já que a dialética da memória e da imaginação, iniciada no plano individual, segue seu curso no plano coletivo e político sob as formas do imaginário popular e da utopia, constituindo o discurso contestatório em relação com as posições de poder. Assim, abrem-se as possibilidades para uma comunicação que não apenas preserva o reconhecimento de diferentes saberes como também nos orienta na busca dos encontros profícuos entre eles. É a consciência de que as fontes documentais

36 LIMA, A micro-história italiana..., p. 327. 37 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François [et al.].

Campinas: Editora da UNICAMP, 2007.38 RICOEUR, A memória..., p. 225.

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são representações e que, por isso mesmo, o externo, o ocorrido e o desaparecido, são, por princípio, irrecuperáveis, mas não incognoscíveis, que o investigador as utiliza para referir-se ao mundo extratextual.

Paul Ricouer ressalta o papel da linguagem como portadora da memória. É através de uma espécie de narração da memória que a mediação linguística se processa. A memória carece de nomes e de números. Para Bachelard, as recordações só se fixam se obedecerem antes de tudo às condições de evocação. Só nos recordamos de algo ao proceder a escolhas, ao recortar fatos da corrente da vida para neles colocar razões. Os fatos prendem-se na memória graças a eixos intelectuais. O que equivale a dizer que não nos recordamos por simples repetição, automatismos e que devemos compor nosso passado. A memória carece de testemunhos: “[...] o reconhecimento que se dá ao outro que encarna e exemplifica ante meus olhos o ideal de uma vida correta. O discurso do historiador ambiciona representar em verdade o passado. E a memória ambiciona a fidelidade. A noção de testemunho possibilita a adequação dos relatos de memórias individuais à veracidade histórica. A memória individual e coletiva, enquanto domínio das representações sociais, passa, assim, a integrar o "território do historiador”. A partir daí, a história da relação da história com a memória será a de uma autonomização da história em relação à memória.

Para a historiadora Rosa Maria Godoy Silveira, o exercício da mediação do historiador exige um atributo: ser portador de conhecimento histórico e saber realizar a operação historiográfica, que demanda uma interlocução dos vivos com os mortos, transpondo para estes as vozes do seu futuro, mesmo quando o historiador silencia, o próprio presente. Mediação, pois, no tempo e com o tempo, expressa pela narrativa como o ato, processo e relato/produto de transmissão das experiências temporais39. Experiências que têm o mundo como horizonte40. Essa inspiração ricoeuriana lida com as noções de “horizonte de expectativa” e de “espaço de experiência”, constitutivas da consciência histórica, para demonstrar no estudo da memória a pertinência da noção agostiniana dos três presentes: um presente das coisas futuras, um presente das coisas passadas e um presente das coisas presentes. O “horizonte de expectativa” e o “espaço de experiência” se entrecruzam na experiência do presente histórico, do mesmo modo que a espera (a promessa) e a lembrança na experiência de vida de cada pessoa no presente. A memória para Paul Ricoeur é sempre a memória de alguém que faz projetos e que visa ao devir. A História enquanto operação cognitiva, é um espaço de liberdade, que, inspirada pela tradição, comporta a invenção, dentro, decerto, do domínio da cultura ocidental (no nosso caso); assim, instaura um gesto ético-político no âmbito da prática historiográfica. Foi o que fizeram os historiadores Carlo Ginzburg, Giovanni Levi e Natalie Zemon Davis, ao restituir a Menocchio, a Martin Guerre e a Giovan Battista Chiesa, os seus papéis de protagonistas da História.

39 SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. História e ensino: acontecimento e narrativa, acontecimentos e narrativas. Conferência apresentada no XXII Simpósio Nacional de História, João Pessoa – PB, jul. 2003. 01 CD-ROM. Anais Eletrônicos do XXII Simpósio Nacional de História.

40 RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Tradução de de Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, p. 119.

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RESUMONeste artigo, optei por traçar o inventário das biografias históricas na cultura historiográfica ocidental tendo como fio condutor as articulações entre a história, a memória e o esquecimento na produção do conhecimento histórico e na práxis das diversas correntes historiográficas. Com a mediação da hermenêutica ricoeuriana, ensaio uma interpretação que particulariza, na Micro-História, os parâmetros epistemológicos, metodológicos e políticos que a informam, focando as práticas de um saber/ fazer que visa ao deslocamento da condição de esquecimento na historiografia em que estiveram proscritos os segmentos sociais populares.Palavras Chave: Biografias Históricas; Historiografia; Memória.

ABSTRACTIn this article, I decided to draw up an inventory of historical biographies in Western historiographical culture as a common thread with the links between history, memory and forgetfulness in the production of historical knowledge and praxis of the various historiographical trends. With the mediation of ricoeurian hermeneutic an interpretation that particularizes, in micro-history, the epistemological, methodological and political parameters are tested, focusing on the practices of a knowledge and practice that aims to shift the condition of forgetting in historiography, in which popular social segments were outcasted.Keywords: Historical Biographies; Historiography; Memory.

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MEMÓRIAS DE VELHOSNO NORDESTE BRASILEIRO1

Alarcon Agra do Ó2

Escrevendo suas memórias na primeira metade do século XX, Júlio Bello3, Pedro da Cunha Pedrosa4 e Graciliano Ramos5 compuseram uma espécie de retrato do Brasil6. Falando cada um do seu lugar, operando ali com as suas próprias crenças e em meio às singulares condições de possibilidade do seu dizer memorialístico, eles produziram, quando vistos em bloco, um conjunto mais ou menos homogêneo de verdades quanto ao Brasil e quanto à sua experiência social.

Ao cumprir aquele movimento, o de pensar o país através da escrita, eles não estavam sozinhos. Ora, ao longo do século XX, especialmente na sua primeira metade, produziram-se os variados textos que acabariam por ser conhecidos como os “retratos do Brasil”. Eles foram dados a público, em geral, sob a forma de “ensaios de história e ciências sociais”, e se dedicavam a dar uma forma escrita ao país, e ao que se imaginava, ou se desejava, que ele exibisse como suas características mais definidoras7.

Aquele conjunto textual era composto por obras comprometidas com o exercício de experimentação da escrita sobre o Brasil. O seu horizonte do desejo se delineava como sendo a tentativa de ponderar uma série heterogênea de transformações pelas quais passava o país já desde as décadas finais do século XIX. Os “Retratos do Brasil”, assim, se estabeleciam, guardadas as peculiaridades de cada texto, como uma série discursiva que se embaralhava com outras tantas, mesmo as que se mostravam situadas no espaço de fora do discurso.

Em linhas bastante gerais, cabe lembrar apenas que o Brasil, nos momentos iniciais da sua experiência republicana, tanto dava sinais de crescimento econômico e de urbanização, como também se transformava no palco de novas sociabilidades, de novas relações entre os sujeitos sociais (e destes para consigo mesmos, inclusive).

Em paralelo, aquela foi uma época em que certas dimensões da vida brasileira passaram a ser enunciadas, de forma sempre mais intensa, como problemas sociais, como problemas nacionais: o crescimento visto como desordenado das cidades, o

1 O artigo consiste em versão reduzida do último capítulo da tese de doutorado custeada em parte por Bolsa CAPES e orientada pelo Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior.

2 Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor Adjunto da Unidade Acadêmica de História e Geografia e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Campina Grande. E-Mail: <[email protected]>.

3 BELLO, Júlio. Memórias de um senhor de engenho. Recife: Governo de Pernambuco; Fundarpe, 1985.

4 PEDROSA, Pedro da Cunha. Minhas próprias memórias (Vida Pública). Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1963.

5 RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1980.6 Cf. Ó, Alarcon Agra do. Velhices imaginadas: memória e envelhecimento no Nordeste do Brasil

(1935, 1937, 1945). Tese (Doutorado em História). Universidade federal de Pernambuco. Recife, 2008.

7 Cf. BOLLE, Willi. grandesertão.br. O romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2004, p. 23-24.

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aumento descrito como descontrolado da população, a angústia de setores sociais frente à miscigenação, a crescente delinquência urbana, a maior visibilidade de algumas endemias e o susto trazido por algumas epidemias.

O cenário internacional, por seu turno, também oferecia sinais de reinvenção do mundo, com a nova distribuição espacial inventada pelo imperialismo, com as novas sensibilidades trazidas pelo novo século, com as novas formas de arte que se mostravam possíveis desde os anos 1870, com a Primeira Guerra Mundial. Não faltava quem pensasse que os anos iniciais do século XX, inclusive, fossem uma época especialmente destinada a uma crise geral na humanidade (e da humanidade), a qual cumpria enfrentar com novas narrativas acerca do passado, do presente e do futuro das sociedades.

Para os autores dos “retratos do Brasil”, homens em geral sensíveis aquelas novidades do tempo, fossem elas as locais ou as mundiais, parecia importante – talvez se pudesse dizer, até mesmo, que aquilo lhes parecia necessário – capturar em palavras o mundo que se descortinava à sua frente, ou que se esgarçava sob seus olhos. Havia naquela empresa ora o orgulho de se mostrar ao mundo um país embebido do seu próprio futuro, ora o desespero que derivava de uma compreensão pessimista acerca do vivido, e do por viver. O texto, cada texto, era o resultado, não raro surpreendente, de um susto, de um estranhamento – ou, por outro lado, de um reconhecimento, de uma identificação profunda.

* * *Seria, em boa medida, numa transversal àquela série textual, às suas condições

de possibilidade, às suas formas, aos seus efeitos, que emergiria a memorialística nordestina que estudo aqui – uma maquinaria literária que emprestou um rosto, um passado e um presente ao Brasil.

Tanto quanto qualquer um dos títulos canonizados pela crítica como sendo os “retratos do Brasil”, a memorialística nordestina dedicou-se a pensar com saudade no ordenamento histórico brasileiro anterior a 1870, tomando-o como uma época de autenticidade, como o momento no qual se depositavam as raízes do país. Também ela identificou, no panorama brasileiro após aquela fatídica data, a eclosão de séries heterogêneas, mas interdependentes de eventos que mudariam o rosto do país e transformariam – para muitos deles, transtornariam – o seu destino.

E, conforme apontei antes, elas também reforçaram a ideia de que tantos e tão variados deslocamentos de sentido só poderiam ser compreendidos mediante a sua transformação em palavras dispostas por sobre o papel. As margens da folha conteriam os fluxos da história, reteriam naquele espaço construído justamente a partir da indicação do limite os delírios de um país e de um povo que se afastavam de si em busca do desconhecido.

Ao realizar aquele movimento escriturístico, os autores daquela prosa singular construíram a si mesmos como personagens de um diálogo com a experiência de se recorrer à memória para a interpretação do mundo. Para que se possam compreender as razões pelas quais se estruturou aquela empresa textual, cabe lembrar que, num movimento que datava de muito antes, mas que se acentuara ao longo do século XIX, a memória havia se tornado o horizonte de incontáveis práticas culturais. Talvez

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a aceleração da experiência, já comum no ocidente desde pelo menos o começo do século XIX, e crescente com a inauguração do século XX, tenha contribuído de alguma forma para imprimir nas pessoas uma sensibilidade especial em relação ao passado.

Ora, o século XIX foi marcado por uma especial centralidade do olhar histórico na construção de explicações sobre o mundo – como se, a um tempo que mudava cada vez mais rápido, correspondesse uma sensibilidade marcada pela valorização do que ia, a cada dia, sendo deixado para trás. Para destacar apenas alguns exemplos da valorização do passado naquele momento, posso mencionar o culto à memória, visível desde a segunda metade do século XIX, e nas primeiras décadas do século seguinte. Cabe citar, quanto a isso, as obras de Marcel Proust, Sigmund Freud, Henri Bergson, Maurice Halbwachs, além de todo o empreendimento de ordem autobiográfica ou memorialística que se produziu após a Primeira Guerra.

Lembrar, a partir daquele momento, no entender de muitos letrados, seria reescrever a história, restaurando espaços subjetivos perdidos em meio a uma experiência histórica cada vez mais veloz e voraz, a qual se faria mediante a destruição de territórios existenciais os mais variados. Entendia-se que a força do tempo condenava a uma espécie de orfandade simbólica cada vez mais indivíduos e grupos, que se sentiam desnorteados no seu presente pela desaparição dos seus marcos referenciais mais significativos. Cabia resistir a tudo aquilo.

Àquela civilização do descarte, que idolatrava não mais o passado ou a permanência, mas, sim, o futuro e a volatilidade, corresponderia, de forma a potencializar a dimensão ambígua da própria modernidade, uma tendência à produção da memória. Imersos numa história que invadia e reordenava os corpos no que dizia respeito ao seu espaço psíquico e ao seu espaço social, os indivíduos e grupos mais sensíveis à perda de referências simulavam alguma densidade monumentalizando a si e às suas recordações. Exilado tragicamente no próprio presente, o protagonista daquele gesto se resguardava num passado que, pouco importando até mesmo seu deslocamento ou sua relação de estranhamento em relação à história oficial, lhe dava alguma segurança ou, quem sabe, alguma esperança.

O presente, naquele contexto, era o tempo a partir do qual se falava – mas era, de muitas formas, também, o tempo sobre o qual se falava. Ou, ao menos, era o tempo para o qual se falava. Assim, a narrativa memorialística, referida às experiências vividas, era construída tendo em vista tensões e exigências do instante em que ela estava sendo elaborada e estabelecida. E, além disso, ela incidia por sobre a sua atualidade, reconstruindo seus contornos à medida que lhe emprestava uma nova imagem para o seu passado.

Era construído no âmbito daquele conjunto textual um passado que, por definição, apartava-se do presente – tanto porque o presente era ali inventado como um instante de ruptura em relação ao tempo idealizado, quanto porque as marcas daquele tempo encenado pela memória em quase nada se assemelhavam ao que afinal estava sendo vivido no presente dos autores. Esta ideia de ruptura é explorada pela historiografia na sua ambiguidade, visto que as interpenetrações entre tempos distintos são comuns à experiência social. Entretanto, fazia parte da

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aposta dos memorialistas na acuidade do seu olhar a acentuação dos rompimentos entre o passado e o presente.

A apropriação desta tendência pelos letrados brasileiros, especificamente, foi praticada em várias frentes da vida cultural. Pensar a realidade como algo cindido em campos opostos era uma tradição recorrente na prática intelectual dos letrados brasileiros, atualizada nos fins do século XIX e começos do século XX, face às novas e intrigantes configurações que vinha assumindo a vida social e cultural do país. Tal tendência tornava possível a cisão entre o passado e o presente, condição do discurso memorialístico8.

Como talvez dissesse Michel de Certeau, ocorre com certa frequência que a elaboração dos homens seja como a coruja de Minerva, que canta tarde demais. A memória, assim, tornou-se a forma expressiva quase universal dos letrados comprometidos com a invenção histórica da região Nordeste justamente porque ela lhes parecia apta a dar conta do presente inóspito que havia lhe tocado por destino. Aquele era, a seu ver, um tempo marcado ao mesmo tempo pela dissolução de todo um mundo, que sucumbia frente a mutações históricas que se deixavam ler como sendo a modernização e a urbanização da sociedade brasileira9.

Personagens diversos da cena social – elites agrárias ligadas ao algodão e ao açúcar, comerciantes e intelectuais – passaram a se perceber como participantes de uma mesma trajetória histórica, definida pelo seu pertencimento a uma região árida e sofrida, vítima não somente do destino geográfico e climático, mas também de uma divisão injusta das riquezas no âmbito do país. Na medida em que sua vida estava sendo transformada por conta da emergência de novos padrões de produção, distribuição e acumulação de riqueza, os quais acabavam, a seu ver, por centralizar as benesses nacionais no sul do país, homens e mulheres do norte, em especial de Pernambuco, inventaram-se como naturais do Nordeste. Logo, eles e elas se disseram nordestinos. O que desejavam, eles e elas? Não outra coisa a não ser sobreviver à sua própria ruína, ultrapassar a terrível “sensação de perda de espaços econômicos e políticos” que então os atormentava10.

Lembrar e esquecer, assim, são gestos que se combinam num instante de perigo, como diria Walter Benjamin, o resultado de seu entrelaçamento sendo a construção, mais ou menos precária ou eficiente, de um espaço de segurança para alguém que se sente em meio ao despedaçamento. A memória, neste sentido, é uma resposta do indivíduo, ou do grupo, a uma invasão da história por sobre os domínios de sua vida (extra)ordinária11.

8 Cf. NAXARA, Márcia Regina Capelari. Cientificismo e sensibilidade romântica: em busca de um sentido explicativo para o Brasil no século XIX. Brasília: Editora da UnB, 2004; VIANA, Maria José Motta. Do sótão à vitrine: memórias de mulheres. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1995.

9 CERTEAU, Michel de. A beleza do morto. In. __________. A cultura no plural. Campinas: Papirus, 1995, p. 55-85.

10 ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. Enredos da tradição: a invenção da região Nordeste do Brasil. In: LARROSA, Jorge & SKLIAR, Carlos (orgs.). Habitantes de Babel: políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 141.

11 MONTENEGRO, Antonio Torres. História oral e memória: a cultura popular revisitada. São Paulo: Contexto, 1994, p. 19-20. Cf. LARRETA, Enrique Rodriguez. “À procura do menino perdido”: Gilberto Freyre, modernidade e memória. In: LEIBING, Annette & BENNINGHOFF-LÜHL (orgs.). Devorando o tempo: Brasil, o país sem memória. São Paulo: Mandarim, 2001, p. 29.

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Elaborar a discursividade memorialística era construir uma simbolização acerca do vivido, e acerca do papel do vivido na atualidade. Era reinventar o passado à luz do presente, tanto quanto era reinventar o presente à luz do passado lembrado. Analisar sua materialidade é, assim, explorar sentidos que não existem em outros espaços, em outras práticas – ou, ao menos, sentidos que se espalham socialmente a partir de sua enunciação naquela série discursiva especial12.

O gesto do memorialista nordestino, neste sentido, era o de veneração de algo que já não estava no mundo, de algo que só existia como exotismo, como experiência extemporânea. Era apenas quando a vida parecia esgotada que os letrados se voltavam para ela, enfim: ela se tornava matéria de expressão unicamente quando a sua presença mesma no cotidiano dos sujeitos parecia apenas a sombra pálida do que fora no passado. A sua transformação em memórias era realizada, deste modo, mediante uma naturalização de suas características, aliada a uma idealização de suas formas e sentidos, com o quê se reforça a ideia de que no passado estava sua verdade, sua essência, seu vigor.

Ao ver de Oscar Mendes, num texto originalmente publicado em 1940, a literatura memorialística era uma espécie de avesso da história, no sentido de que, longe de se dar espaço privilegiado “aos grandes acontecimentos, àqueles fatos que abalam o curso natural das coisas e modificam as sociedades”, os memorialistas estavam mais interessados em tratar de coisas miúdas, anedóticas, pitorescas. Sua literatura, assim, era uma obra “mais divertida, mais interessante, mais humana, pois nos mostra a vida no seu cotidianismo, no seu ramerrão, nas suas miudezas secretas, que são a própria trama da vida individual e social”. Naquele tipo de publicação poderiam ser encontradas, diz Mendes, o habitual das sociedades, aspectos conhecidos e importantes, mas que se dissolvem no tempo, e que, quando lembradas, “vêm encharcadas de saudade e falam aos nossos corações como vozes de amigos queridos que já se foram e que jamais voltarão”13.

* * *Em paralelo a isso, e numa direção que a mim interessa destacar, eles também

se colocaram em perspectiva em relação à série de práticas históricas que, ao seu redor, se enredavam na construção histórica da experiência moderna da velhice no Brasil. De várias formas o dispositivo memorialístico de Bello, Pedrosa e Ramos se aproximou do debate em torno da velhice, caro ao seu tempo – e ele deve ser pensado como uma das condições de possibilidade mais consistentes daquela literatura.

Ora, aqueles autores traçaram, nas suas obras dedicadas ao registro do seu passado vivido e lembrado, a imagem de um país que passava a conhecer, no tempo contado nos seus livros, uma nova modalidade de segmentação social, a qual tomava a idade das pessoas como critério de individualização. Eles apontavam também para a visualização, no âmbito geral da população, de grupos organizados em faixas etárias.

12 MONTENEGRO, História oral..., p. 12-13.13 MENDES, Oscar. Tempo de Pernambuco: ensaios críticos. Recife: Editora da UFPE, 1971, p. 85-

86.

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Se, antes, no Brasil anterior a 1870, o tecido social se repartia em brancos e negros, em homens e mulheres, em párvulos e adultos, entre outras possibilidades de agrupamento e segmentação, diziam aqueles autores, desde ali tudo mudara. Emergira e tomara força a ideia de que, ao lado daquelas divisões, e com elas associada, deveria ser observada a diferenciação que estava implicada na idade das pessoas. E, mais que isso, agrupamentos humanos deveriam ser organizados em função da idade dos indivíduos, de sorte a que fosse facilitado o seu controle.

Principalmente, Bello, Pedrosa e Ramos diziam ver como uma das dimensões mais características do Brasil que vivia a passagem entre os séculos XIX e XX a produção de uma lógica hierárquica implicada na repartição etária da população – de sorte a que à valorização da infância, da juventude e, mesmo, da idade adulta, aliava-se o desprestígio crescente da velhice. A seu ver, estava se esgarçando aquela época em que os velhos eram tão importantes que era errado dormir ou acordar sem sua bênção, sinal de que através deles o homem comum se conectava com Deus14.

Tudo isso, no entender daqueles letrados, trazia consigo uma inversão de valores e um deslocamento de sentidos no âmbito da experiência histórica brasileira, o que cumpria registrar e analisar. No seu passado, ou, ao menos, no passado mais imediato dos seus pais ou avós, o ordenamento etário era simples: as crianças eram apartadas dos adultos por um grande número de mecanismos de contenção. Elas, as crianças, tentavam burlar aqueles mecanismos à medida que cresciam, simulando um envelhecimento que atestava o maior prestígio da idade avançada naquela sociedade. No mundo novo que se descortinava sob seus olhos, as idades se complexificaram, com mais sutilezas a distribuir os indivíduos por sobre uma escala cada dia mais minuciosa15.

Ainda mais, crescia a legitimidade do estatuto da infância, e sobre ele se voltavam olhares diferenciados, mas cúmplices na defesa da singularidade daquele recorte etário singular. A pedagogia, a assistência social, o saber jurídico e a pediatria eram os mais visíveis protagonistas da maior visibilidade da infância, e de sua defesa contra a pressa em envelhecer.

Como diria Gilberto Freyre, num esforço de entendimento do país em muito paralelo e correspondente às memórias que estudo aqui, o fim do Império e o começo da República foi marcado pelo aprofundamento do gosto pela fotografia (eram tempos de culto da imagem de si, enfim) – e, naquela prática, se atualizava o culto crescente à infância. Naquele tempo, afirmava-se

(...) uma tendência já contrária à mística, então ainda dominante, em torno dos valores e símbolos patriarcais: a exaltação da figura da criança sobre a figura do ancião, do antepassado, do velho.16

Em contrapartida, os esforços que se dirigiam à velhice por aquela época não a tomavam como uma faixa etária na qual se depositassem esperanças, mas, apenas, amparo e controle. Assim, se em relação à infância se sobressaiam estratégias 14 Cf. RABELLO, Sylvio. Cana de açúcar e região: aspectos sócio-culturais dos engenhos de rapadura

nordestinos. Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisa Sociais; MEC, 1969, p. 69.15 Cf. MOTTA, Alda Britto da. Gênero, idades e gerações. Cadernos do CRH, Salvador, v. 17, n. 42,

2004, p. 349-355.16 FREYRE, Gilberto. Ordem e progresso. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2000, p. 142.

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formativas que nela preparavam o homem do futuro, em relação à velhice o que se praticava era o controle médico da geriatria, o controle social da assistência asilar, o controle do trabalho pela aposentadoria e pelas pensões. Ser velho estava deixando de ser venerável e respeitado para se tornar no estatuto de alguém que se diferenciava dos demais indivíduos pela idade avançada e que só encontrava a si mesmo entre iguais, entre outros velhos, seres destinados apenas à margem da sociedade.

Todos eles, cada um ao seu modo, viam ao seu redor a instalação de uma nova sensibilidade em relação à importância das idades na configuração social e subjetiva. Esta nova sensibilidade se pautava pela afirmação, em primeiro lugar, da ideia de que, efetivamente, a vida das pessoas, das coisas, dos valores, das práticas, de tudo, poderia ser dividida em etapas que simulavam a curva de uma montanha.

No caso da existência de uma pessoa, o que se dava, segundo aquela crença crescentemente legitimada, era que ao nascimento se sucedia a infância, fase de preparação da vida, momento de se forjar o caráter e o destino; à infância se sucedia a juventude, quando o indivíduo deveria definir com mais precisão aquilo que enfim seria para sempre e quando ele experimentaria com maior ou menor vigor a sensação de eternidade e de imortalidade que marcaria aquela fase da vida; ainda em seguida, viria a fase adulta, momento de gozo dos prazeres, mas também de exercício das obrigações para consigo, para com a família, para com o mercado de trabalho, para com a sociedade e para com o Estado.

Por fim, após a culminância da idade adulta, o homem desceria a montanha da sua existência em direção ao fim da vida, ou seja, à sua morte. Antes de alcançar este ponto sem volta, caberia atravessar a velhice, fase de esvaziamento do sentido da vida, de degradação física e social, de amolecimento das carnes outrora rijas e enrijecimento das juntas outrora flexíveis.

Tais ideias evolucionistas e profundamente agressivas em relação ao envelhecimento, dizem Bello, Pedrosa e Ramos, estavam se tornando na sua época moeda de troca simbólica na construção de explicações sobre o país, seu povo, sua história, seu destino. E eles se sentiam particularmente tocados por aquilo, na medida em que se identificavam, em maior ou menor grau, como tudo aquilo que estava sendo alvo da deslegitimação – a partir da sua própria velhice, mas, também, por conta de sua identificação com aquele mundo do passado que se esboroava entre dores e lamentos.

Os próprios memorialistas diziam-se, eles mesmos, vítimas disso, personagens dessa história, visto que tanto podiam contar, páginas após páginas, de velhos outrora poderosos e, naquele instante, enfraquecidos, quanto podiam, em si, dar provas do que diziam. Afinal, eles mesmos eram, quando da escrita de suas obras, homens que descreviam a si mesmos como velhos, e sua trajetória era tematizada como sendo marcada pela fraqueza, pela perda do mando. Eles haviam em algum momento capturado nas tramas da sua própria subjetividade uma singular condição de velhos, e era a partir dela que eles lembravam.

Aliás, creio ser importante chamar a atenção para isso de forma enfática. Os memorialistas, pelo que dão a entender nos seus textos, apenas conseguiam pensar em si mesmos como figuras dotadas de três dimensões, simultâneas e entrelaçadas. Eles eram, de acordo com a sua própria elaboração de si, nordestinos, velhos e

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homens da memória. Essas três formas possíveis do ser se atualizavam na trajetória subjetiva de cada um daqueles sujeitos, como se aquelas palavras indicassem limites que ao se deveriam, ou não se poderiam transpor.

Outra questão a ressaltar é que, se a escrita de seus textos acabaria por ser, de muitas formas, a última realização de sua existência, ela se dava de sorte a que acabava por condensar, por sua existência mesma, a ideia de que ao escrever, aqueles homens estavam dando corpo e vida a uma série de histórias que, de outro modo, se perderia. E, mais, aquelas histórias se lançariam num cataclismo que levaria nos seus movimentos violentos aqueles sujeitos, incapazes de, por si próprios, sobreviverem ao seu tempo, à sua história.

Ao escrever suas memórias, aqueles homens não apenas emprestaram um derradeiro sopro de vida a um mundo que a seu ver se esgarçava, mas repetiam este movimento em direção à sua vida mesma, na medida em que ela era a encenação, a realização mais imediata do fim de uma era. A autoria que ali se empreendia era, tragicamente, a de um morto que só tinha de fôlego aquele sopro que levava as palavras da memória ao papel17.

Conforme ressalta Albuquerque Jr., o dispositivo memorialístico nordestino teve como uma de suas dimensões mais recorrentes a tematização da decadência dos grandes senhores. Na história dos velhos é contada a história do patriarcado: seus dias de glória, sua crise. Na figuração daqueles personagens é contada a única história possível (no sentido de que na sua tematização é empreendida a única manifestação, naquelas narrativas, de movimento, de devir): a de um mundo que ruiu e que levou consigo formas de ser, de existir. A tematização da velhice, naquelas narrativas, é a força que empresta a densidade histórica àqueles relatos, porque obriga o narrador a encenar mudanças, deslocamentos, fluxos. Importa ressaltar que a atribuição da historicidade àqueles personagens se faz de sorte a que eles acabam sendo tecidos como um fracasso, o que impactará na construção subjetiva dos seus descendentes, de súbito privados daquela importante referência18.

A partir daquele olhar, e de suas conclusões, Júlio Bello, Pedro da Cunha Pedrosa e Graciliano Ramos executaram um movimento de interpretação do país, de sua história mais recente e, em alguns momentos, chegaram a preconizar o que seria o seu futuro.

* * *Numa tendência que acabaria por atravessar todas as questões acima

mencionadas, aqueles memorialistas problematizaram algo que, a seu ver, estava se tornando numa marca característica do seu tempo: o uso indiscriminado das ideias de juventude e de velhice na construção de explicações sobre o mundo e sobre a sociedade, bem como na tessitura de práticas de governo individual e coletivo cada vez mais abrangentes. Bello, Pedrosa e Ramos denunciam, nas suas memórias, o 17 Cf. FOUCAULT, Michel. Um nadador entre duas palavras In. __________. Ditos e Escritos III.

Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 243-246.

18 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Os nomes do pai: a edipianização dos sujeitos e a produção histórica das masculinidades – O diálogo entre três homens: Graciliano, Foucault e Deleuze. In. RAGO, Margareth et al (orgs.). Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2002, p. 111-121.

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quanto aquela simbologia singular estava eivada de preconceitos e de estereótipos, e o quanto ela acabava por reforçar a ideia de que era legítima a hierarquia que valorizava os jovens em detrimento dos mais velhos.

Termos que, por longo tempo, apenas se deixavam capturar pela linguagem quando ela se ocupava de nomear indivíduos tomados um a um, ou práticas históricas ocasionais, o novo e o velho ascendiam, no mundo inaugurado pelos começos do século XX, à condição de metáforas eficientes e reiteradamente acionadas para a construção de interpretações para as ações dos homens, especialmente as que podiam ser pensadas como experiências coletivas e de interesse geral. E, ainda mais importante, aquilo se dava, dizem os memorialistas que estudo, de sorte a que aquela nova utilização dos nomes da juventude e da velhice trazia implicada em si uma hierarquização de muitas formas impactante. Dizer, desde então, que algo ou alguém se aprisionava nas malhas da velhice se mostrava então como a afirmação de um anátema, vez que os signos legitimados socialmente eram cada vez mais associados ao que cabia dizer com as palavras da juventude.

Decorria daquele diagnóstico que, em todos os livros daquela literatura, em maior ou menor grau, está posto o lamento pelo ocaso de uma organização social na qual alguns homens, marcados pelo seu sangue carregado de tradições e tanto mais venerados quanto mais avançados em anos, comandavam o mundo e faziam dos relatos do passado a crônica de suas ações e de seus feitos. Tudo aquilo estava sendo levado pelos turbilhões da história, mais sensível nos dias daquela modernização a heróis que se faziam por si mesmos a partir da força de sua juventude, a grupos populacionais que construíam o mundo a partir de sua condição coletiva e de sua abertura à experimentação. Obras escritas por homens que, afinal, além de velhos, pensavam a si mesmos como devedores de alguma solidariedade – ou pelo menos de algum temor – em relação aos velhos senhores do passado, as memórias dos letrados nordestinos não viam no que contavam senão um quadro de desalento e de desesperança.

O olhar de Júlio Bello discernia no horizonte de sua experiência a dissolução do mundo dos velhos patriarcas que governavam com rigor o espaço dos engenhos e suas cercanias. Atingido pela Abolição, pelas mudanças econômicas e sociais que já desde meados do século XIX faziam com que o eixo do país se deslocasse em relação ao Sul, pelas ideias novas que se implicaram na invenção do regime republicano, pelo crescimento e pela complexificação das cidades, o território existencial familiar a Bello e aos seus companheiros de classe e de geração se esgarçava sob seus olhos.

Trata-se ali, ao longo das memórias, por exemplo, da decadência dos engenhos que se emparelhava ao crescimento das usinas, movimento que, ali, naquele texto, era relacionado intimamente ao crescente desprestígio das regras de gestão dos corpos e das propriedades que, típicas da ordem patriarcal, se mostravam inaplicáveis na nova ordem capitalista, moderna, urbana. Tal decadência é contada não apenas nos termos da falência desta ou daquela propriedade ou família, mas, principalmente, através da descrição do destino trágico de alguns dos personagens daquelas histórias. Multiplicam-se pelas páginas das memórias de Bello os casos de velhos que empobreceram por não saber se conectar aos novos tempos, de moços que faliram porque não incorporavam em si os hábitos novos e não eram nem capazes de manter atualizados os velhos costumes.

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Para Pedro da Cunha Pedrosa, por seu turno, o que mais chamava a atenção, ao lado daquelas transformações enunciadas a seu modo por Bello, era a emergência de estranhas modalidades de experimentação da dinâmica político-partidária no país, a partir dos anos 1920. Até ali, diz ele, os choques entre indivíduos mais velhos e mais moços era visto ocasionalmente, e ele mesmo protagonizara algumas situações desta natureza ao longo de sua longa e dinâmica carreira. Entretanto, nunca ele havia visto nada sequer parecido com o que se descortinava ao seu redor naquele momento.

De forma abrupta, grupos políticos se organizavam e se transformavam em atores relevantes na cena pública a partir da explicitação de sua juventude. E, mais: eles auferiam mais prestígio, mais coesão, mais visibilidade, justamente porque brandiam como palavras de ordem e bandeiras de luta ataques a outros setores partidários, tornados como inimigos até mesmo do país e do regime em face da velhice de seus membros, ou de suas práticas. A velhice e a juventude tornavam-se formas de identificação, nomeação, classificação e hierarquização no interior dos partidos políticos e no âmbito da administração pública, e com grande desprestígio para os mais vividos.

Atualizava-se, na Paraíba, aquele fervor contemporâneo à queda de D. Pedro II – quando, numa busca estética e estratégica pelo rompimento em relação à encanecida Monarquia e ao seu não menos envelhecido Imperador,

(...) alguns dos homens públicos, já de alguma idade, que aderiram à República de 89, fizeram-no esmerando-se em tingir barbas ou bigodes, para não parecerem velhos ao lado de republicanos quase criançolas.19

Para Pedrosa, aquela era uma situação absurda, antinatural, odiosa – frente à qual só lhe restara sucumbir, atordoado.

Para Graciliano Ramos, por fim, o terceiro e último dos memorialistas que exploro neste estudo, a velhice era ao mesmo tempo o instante no qual o corpo biológico falhava e o momento de recordar o passado, principalmente a infância. Vivendo uma época que, a seu ver, tomava as primeiras fases da vida como o centro da experiência humana, como o momento mais importante a ser vivido, Ramos valia-se da sua tematização no âmbito do texto memorialístico para documentar e monumentalizar os movimentos através dos quais a velhice foi sendo desinvestida de sentido. Para ele, tratar do envelhecimento seria registrar, de forma metafórica, a decadência de uma região, de suas relações econômicas e sociais, de suas práticas sociais. Seria apontar para a emergência de um igualitarismo de fantasia, que apenas reforçava o poder dos empresários urbanos e dos moços voluntariosos, coveiros do mundo de antigamente e dos seus velhos senhores.

* * *Obras compostas em meio à ambígua relação que, no século XX, certos setores

letrados da sociedade brasileira estabeleceram para com o passado, aquelas memórias ao mesmo tempo sinalizavam para a diferença do hoje em relação ao

19 FREYRE, Ordem e progresso, p. 147.

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ontem e explicitavam a demanda da atualidade em relação ao conhecimento em relação aos tempos que a antecederam.

Naquele corpo textual se dava o acionamento de uma relação dos seus protagonistas em relação ao passado vivido e lembrado, a qual se deixava atravessar pelo culto a uma experiência extinta e idealizada. Ela se compôs, assim, como um jogo complexo em que esquecimentos, recordações, alegrias e tristezas, durações e esgotamentos, alegria e luto se mesclavam, na construção de um corpo escrito para o passado em que identidades grupais e regionais eram fundadas e naturalizadas.

Naquelas obras, principalmente, deu-se uma singular problematização da experiência do envelhecimento, quer dos autores dos livros em questão, quer de muitos dos seus personagens. Uma tensão, em especial, atravessou aquela literatura: a afirmação de que o percurso histórico da velhice no Brasil havia sido marcado por uma ruptura quando da instalação por aqui dos códigos modernos e urbanos. O capitalismo, afirmando-se aqui mediante a superação, quando não a destruição, de uma ordem antiga e patriarcal, teria levado de roldão modos de envelhecer carregados de dignidade. Teriam emergido naquele presente, em contraposição ao vivido no passado, formas aviltadas de velhice.

É no sentido de pensar a inserção da memorialística nordestina naquele fluxo, naquela política de verdade em relação à experiência das idades no Brasil que eu a exploro; eu a tomo como documentos/monumentos de uma significação peculiar elaborada para a velhice, e busco explicar a lógica do sentido que ali se aciona. Cada uma das obras que leio, tomada ao mesmo tempo em relação ao seu espaço de inscrição mais peculiar e em relação a outras séries históricas, dá forma e densidade a um debate que tanto a atravessa quanto a ultrapassa.

Os memorialistas chamavam à primeira cena da sua narrativa diversos personagens envelhecidos, quando não tratavam da própria condição de velhos – e, ao construir este rol de existências singulares, eles acabavam por tecer uma série mais ou menos coesa de imaginações acerca daquele recorte etário. A velhice aparece ali, naquele conjunto de narrativas, como uma forma de construir a experiência subjetiva, ou seja, ela é tematizada pelos memorialistas a partir da apresentação, nos textos, de personagens que se deixam dizer com as palavras e com os silêncios que ali se classificam como próprios ao envelhecimento.

Não se trata, naquele corpus, de existências vazias de significado, nomes que trariam sob si apenas a vacuidade de uma existência improvável. Ao contrário, a vontade de verdade daqueles autores só se satisfaz com a apresentação, no corpo do seu relato, de indicações mais ou menos precisas quanto a vidas que realmente ocorreram, e que em algum momento se viram presas sob a influência má dos signos de uma velhice indesejada. Mesmo o esforço eventual deste ou daquele memorialista em construir tipos sociais mais ampliados com o auxílio da apresentação das pequenas histórias nas quais aparecem seus personagens é solapado pela diferença que cada vida narrada traz consigo para a pele do texto.

A velhice figurada naqueles livros, sob a forma da condição etária dos personagens, não resulta, no entanto de uma idealização abstrata. Cada autor tem à sua frente, para compor o seu rol peculiar de imagens da velhice, as referências de sua própria recordação e o impulso oferecido pelas tensões e pelos conflitos do presente mesmo

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da enunciação do relato. A velhice tramada naqueles textos, portanto, é para o historiador uma porta para pensar a experiência cultural em que se inseriam aqueles autores, na medida em que ela, a velhice, se mostra visível apenas quando tramada como possibilidade a ser enunciada a partir dos jogos de poder e saber que são instituídos pelos movimentos da história.

O que os memorialistas se esforçam para fazer ver, cada um a seu modo, cada um frente a questões bastante peculiares, referentes à sua inserção histórica, é a paulatina construção histórica de uma oposição entre juventude e velhice. E uma oposição, dizem eles, que tinha como a sua face mais visível a hierarquia que então ia sendo estabelecida, a qual acabaria por sobrepor os jovens aos velhos, os primeiros ocupando crescentemente os lugares privilegiados da cena social, em detrimento dos últimos. De acordo com o que o olhar daqueles autores recortou como a face do seu mundo, o que estava ocorrendo ao seu redor era a construção de uma experiência histórica tal em que a velhice era quase o outro da cultura. Ser velho, ao longo do século XX, dizem eles, era mergulhar nas profundezas de um mar escuro e sem movimento, um afastamento das praias ensolaradas nas quais a história se dava realmente.

Cada memorialista, insisto nisso, teceu velhices que se multiplicavam ao longo de seu relato. E, quando as imaginações dos autores todos (ao menos, dos que tomo aqui por objetos de minha atenção) são postas em diálogo, o burburinho de um fluxo incessante emerge com particular intensidade dos papéis que me cercam. Os relatos com os quais trabalho falam de uma época, inserem-se em outra, jogam com tempos distintos, lançam-se ao teatro das idéias como encenações que se querem únicas e aparentadas. Uma cena ambígua se mostra, ali – o que parece seduzir ainda mais o historiador. Este se arma de um olhar que precisa ser atento: ele deve servir para dar forma e sentido aos movimentos por vezes sutis, por vezes impetuosos, em meio aos quais os memorialistas criticam o seu próprio tempo ao construir imagens sobre um tempo passado.

A recorrência, naquelas obras, da associação da velhice à exclusão social, ainda que tal gesto tenha sido praticado por cada autor de forma relativamente singular, atualizava no âmbito daquela literatura uma racionalidade que acabaria por marcar de forma intensa os modos pelos quais o século XX brasileiro viu ser construída a experiência do envelhecimento humano. Aquela racionalidade se definiu pela construção imagética da velhice como uma fase da existência humana na qual a vida se regularia pela degradação, pela involução, pela conquista da morte em detrimento da experimentação da vida. Tal se daria numa franca contradição com as experiências vividas naquele tempo quase mítico ao qual se fazia referência, na maioria das vezes, como antigamente.

Produzindo, entretanto, uma obra que, certamente, não se despia dos seus próprios preconceitos e tampouco de desviava da produção dos seus próprios estereótipos, Bello, Pedrosa e Ramos buscavam inverter a polaridade das hierarquias que viam legitimadas ao seu redor, e defendiam a ideia de que a velhice não implicava em nenhuma desqualificação. Antes, diziam eles, aquelas memórias transformadas em livros eram a prova de que o velho detinha saber, experiência, capacidade de entender e de explicar o mundo. Se, ao seu redor, a velhice metaforizava a margem do mundo, naqueles livros ela era o centro, a voz, o sentido.

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Assim, a eles jamais bastou o acolhimento, em si e nos seus textos, das marcas que os marginalizavam e estigmatizavam a velhice. Bello, Pedrosa e Ramos, como, aliás, outros memorialistas nordestinos, valiam-se da escrita de suas memórias para estabelecer a possibilidade de um embate com as forças históricas que lhes pareciam mais adversas, mesmo que o seu esforço acabasse por, também ele, produzir eventuais estereótipos em relação ao envelhecimento.

Lembrar e esquecer, para eles, era intervir, era agir politicamente, era recusar destinos impostos e afirmar a possibilidade do desejo do desvio em relação às forças abissais da história. Assim, numa espécie de negação daquela situação de ostracismo, os autores com os quais trabalho tramavam o corpo escrito de suas memórias de sorte a que os eventos de sua vida fossem compreensíveis, apenas, quando referidos em algum grau a movimentos ampliados da história.

Eles se faziam assim personagens, quando não protagonistas, do passado que lhes interessava recompor, reencenar. A história, força bruta e incontrolável que os silenciava, tornava-se personagem de suas memórias, razoavelmente subordinada à trama mesma do relato memorialístico.

Aquela memorialística testemunhava e protagonizava a crescente relevância que assumia, na experiência histórica brasileira e, especialmente, nordestina, a etarização da vida. Bello, Pedrosa e Ramos foram, é o que afirmo no meu estudo, espectadores e personagens da mutação histórica que, atravessando a constituição da modernidade ocidental, trouxe consigo a intensificação da ideia de que a idade do indivíduo é um marcador dotado de significado tal que seu acionamento pode imprimir uma lógica ao momento em que se está vivendo.

Não reluto, entretanto, em lembrar ao meu leitor o quanto aquelas memórias estavam comprometidas com a produção de estereótipos acerca da velhice – dois deles se sobressaindo. Num plano, Bello, Pedrosa e Ramos enfatizaram a ideia de que aos velhos cabia lembrar, ainda que para eles o laço com o passado das recordações fosse uma prática de liberdade mais que uma corveia limitadora. Noutro plano, aqueles autores contribuíram, cada um a seu modo, para dar força e corpo à ideia de que, no passado senhorial, patriarcal e tradicional do Brasil vigorava uma “Era de Ouro” da velhice, na qual os indivíduos ganhavam mais respeito tanto mais avançavam na idade.

É curioso, porém, que no movimento mesmo dos textos esta tese seja fragilizada pela aparição de um ou outro personagem velho e habitante daquele passado idealizado, desprovido deste suposto prestígio que a ancianidade lhe reservaria. No entanto, mesmo assim, a maior parte daqueles livros é dedicada à construção de um rosto mítico e excessivamente plano para a sociabilidade passada, num contraponto demasiado simplista em relação ao que era, para aqueles autores, a sociabilidade presente.

Como meu leitor deve imaginar, o que estou desejando realizar não é uma crítica àquelas memórias por sua talvez suposta incorreção na representação do passado; o que procuro acentuar é, apenas, uma dimensão humana, demasiado humana daqueles relatos: o seu compromisso com a crítica à perda de status dos seus autores, associada à sua experiência do envelhecimento, e transformação desta crítica numa espécie de teoria da modernização brasileira, com todos os riscos e as fragilidades

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que tais generalizações implicam.As memórias, assim, não afirmam apenas superfícies planas. Elas são o território

em que habitam velhices variadas, dispersas. Importa, neste sentido, ressaltar que aqueles autores se fizeram enquanto protagonistas de uma relação singular para com a velhice, relação esta que pode ser descrita sob os termos de uma apropriação. Os memorialistas não se fizeram simplesmente subordinados a imagens congeladas acerca do envelhecimento humano – ainda que aqui e ali eles tenham retomado nos seus textos enunciações marcadas pelo movimento da estereotipia – mas, ao contrário, compuseram a si e aos seus personagens velhos de forma relativamente heterogênea. Eles souberam marcar nos seus textos que a experiência da velhice, para lá dos índices que são gerais numa dada inscrição histórica, é plural e multiforme.

Cada autor, apesar dos pontos em comum que tornam todos mais ou menos próximos uns aos outros, tinha a sua própria história de vida, os seus modos peculiares de construir o corpo escrito do seu passado lembrado, as referências contextuais a servir de moldura para o olhar retrospectivo.

A memorialística lida aqui, afinal, foi composta em momentos distintos, num século marcado pela aceleração da experiência e pela diferenciação crescentemente intensa dos seus momentos, uns em relação aos outros. Uma narrativa composta em 1935 tem sua distância em relação àquela construída em 1945: em algum grau, tempos outros, histórias outras.

Naquele conjunto de textos, assim, são encontrados velhos pobres e ricos, do sexo masculino ou do sexo feminino, ligados ao mundo rural ou ao mundo urbano, letrados ou analfabetos, poderosos ou desprestigiados, falantes ou silenciosos, ativos ou dormentes – e muitas vezes estas tipologias se embaralham, se fundem, se refundem, sendo compostas ao fim e ao cabo imagens relativamente diversificadas da experiência do envelhecimento.

A velhice que se tece na memorialística que estudo é uma experiência ao mesmo tempo fixa e mutante. Ela se estabelece como um limite da existência dos homens num certo momento da história, mas, em paralelo, como um limite que é enfrentado de formas bastante particulares, ao sabor das circunstâncias históricas. O próprio gesto da recordação era um não à morte, um sim à vida.

Saber aquela velhice, enfim, é acompanhar estes percursos, atentando para suas continuidades e para as suas descontinuidades. E para a repercussão de sua retomada, nos dias do meu próprio presente.

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RESUMOA série de movimentos históricos que, a partir das décadas finais do século XIX e, principalmente, no início do século XX, permitiu a invenção do Nordeste do Brasil, teve como uma de suas dimensões a produção de certos discursos. Ali proliferaram, entre outras, narrativas memorialísticas. Aquele conjunto textual é explorado aqui no sentido de se pensar o seu compromisso para com um debate que se dava no Brasil na época mesma de sua emergência. Trata-se da problematização da experiência da velhice. Os autores da memorialística nordestina dialogaram com alguns dos vários pontos do debate que então se travava em torno da velhice, especialmente problematizando as relações entre as experiências do envelhecimento e as práticas do lembrar e do esquecer, bem como as mudanças implicadas nos modos pelos quais se experimentava o jogo etário em meio a experimentações da modernização capitalista no país. Algumas daquelas obras são aqui exploradas, em busca de sua contribuição àquela nova forma de se narrar a vida, as idades e a sua história no Brasil.Palavras Chave: Velhice; Memória; Nordeste.

ABSTRACTThe number of historical movements allowing the creation of Brazilian Northeast by the late decades of the nineteenth century and early in the twentieth century has had, as part of their dimensions, the production of certain speeches. Among a number of other productions, there were memorialists narratives. That textual aspect is investigated in this study in order to reflect on the commitment with the discussions held in Brazil when in state of emergency. It is related to the concern of elderly experience. Northeastern authors, memorialists, have discussed some of the various topics in debates about the elderly, especially focusing on the relations between the elderly experiences and recalling/ forgetting practices as well as changes in aging process during experimentations in the country capitalist modernization. Some of those works have been explored in this study in order to search for contributions to currently narrate lifestyle, age, and history in Brazil.Keywords: The Elderly; Memory; Brazilian Northeast.

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DE COMO LEMBRAR O SEMIÁRIDOE ESQUECER O SERTÃO

Maria Lucinete Fortunato1

Mariana Moreira Neto2

Introdução

É na imanência da história que as identidades se constituem [...[ é também ali que elas se desfazem.

Michel Foucault.Ao longo história, as questões que envolvem a região Nordeste tem sido debatidas

sempre apontando esse espaço como uma “região problema”, já que guarda em seu conjunto os piores índices de desenvolvimento econômico e social do país. O reconhecimento e a aceitação das condições sociais e históricas de produção dos discursos que cristalizam as imagens de “Sertão” e “Semiárido”, neste contexto, são enunciados importantes que permitem entender como as relações de força, os lugares sociais de onde se fala irão imprimir, historicamente, suas marcas.

Considerando que é na interseção entre história e identidade que a questão da memória é pensada como recurso fundamental para a produção do conhecimento histórico, Pierre Nora defende que uma das questões significativas da cultura contemporânea se situa no entrecruzamento entre o respeito ao passado – seja ele real ou imaginário – e o sentimento de pertencimento a um dado grupo; entre a consciência coletiva e a preocupação com a individualidade; entre a memória e a identidade. Para ele, entre a história-objeto e a história-conhecimento, é esta última o contraponto da memória. Desse modo, defende que

A memória é vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações.3

De acordo com essa compreensão, pode-se afirmar que, ao estabelecer conexões e descontinuidades, os discursos que caracterizam o Sertão e o Semiárido apreendem situações de cristalizações ou transformações que os estudiosos tem considerado com sendo de identidades, as quais são (re)elaboradas tendo como fundamento

1 Doutora em História Social pela Universidade Estadual de Campinas. Professora Associada da Unidade Acadêmica de Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande, Campus de Cajazeiras. Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em História da mesma instituição, Campus de Campina Grande.

2 Doutora em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba. Professora Adjunta da Unidade Acadêmica de Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande, Campus de Cajazeiras.

3 NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, PUC-SP, dez. 1993, n. 10, p. 9.

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alguns lugares de memória.Os binômios Sertão-Semiárido, seca-convivência, dependência-sustentabilidade,

são enunciativos das polarizações que fundamentam a construção de uma interpretação histórica sobre a região semiárida, como um espaço de degredo, de inviabilidade social, mas, também, como um território de muitas possibilidades, cuja memória deve ser repensada e se reconstituir, por meio de experiências e vivências culturais, como continuidade entre passado e presente, a partir de um distanciamento crítico que ressignifique e/ ou reelabore a relação do homem com o meio, o protagonismo social, e/ ou o desenvolvimento regional entre outros.

Assim sendo, os discursos sobre a convivência, à medida que repensam o espaço Sertão, ressignificam e cristalizam uma memória que o redimensiona. Nessa perspectiva, elege-se para o Semiárido a viabilidade da sustentabilidade, de uma convivência com as peculiaridades e especificidades da região, operacionalizando um deslocamento da memória, já cristalizada no imaginário social, do “Sertão” ausente de possibilidade de vivência e pressupondo novas formas, estratégias e táticas de lidar com este ambiente, suplantando os territórios rurais que sempre foram traços característicos da elaboração de memórias sobre o Sertão e lidando com uma nova dizibilidade que envolve também as cidades e centros urbanos que se inserem no Semiárido.

Contudo, ao tempo em que intentam construir um novo quadro sobre a região, os discursos da convivência evocam exatamente a memória que cristaliza uma identidade sobre o Sertão, cuja tessitura se pauta em enunciados como: seca, miséria, dependência, atraso econômico, relações de poder fundamentadas em práticas clientelísticas e oligárquicas. Tal memória é compreendida como uma lembrança que deve ser refutada para dar espaço à outra conformação, por meio da qual só o desenvolvimento de práticas institucionais deliberativas e de maior representatividade da população e o controle social passam a ser considerados como viabilizadores de mudanças das relações de poder e de afirmação do protagonismo social.

Este artigo problematiza os deslocamentos que se operacionalizaram nas memórias que cristalizaram uma identidade sobre o Sertão, a partir das mudanças que se instituíram no final do século XX, por meio do discurso da convivência, como forma de criação de novos lugares de memória para identificar o Semiárido.

De como lembrar o Sertão

Na virada do século XIX para o século XX, a associação entre o clima e a miséria da região Nordeste ganha contorno e assume uma postura identitária. As constantes secas, já descritas por muitos como terríveis e arrasadoras, passam a ser apontadas como a razão da miséria encontrada na região. Nesse cenário, passa a se configurar como característico do Sertão tudo o que traz a marca da seca e tudo que a ela se associa como: a fome, o degredo, a miséria, a desterritorialização, etc. Institucionalizada como problema, a seca emerge em discursos diversos que passam pela imagem da dependência, do subdesenvolvimento, de relações clientelísticas. E, sobretudo, como uma determinação da natureza que obriga homens e bichos ao exercício da resignação ou da arribação.

Essa “identidade” vai ser preponderante por quase toda a primeira metade do

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século XX, registrando-se que, para elaborá-la, são anotadas apenas referências a uma região espacialmente indefinida, onde a frequência das secas traz para a superfície um povo governado pelo seu próprio destino ou atrelado aos interesses e determinações de alguns senhores que assumem, de forma não institucional, uma autoridade “soberana”. Esse discurso, baseado em um encadeamento simples de causas naturais e efeitos sociais, ganha dimensão de verdade e é logo popularizado. Desse modo, o que vem a mente quando se pensa em Nordeste, e mais especificamente em Sertão, é uma região abandonada, seca e desprovida de beleza, com baixos níveis de densidade populacional, devido ao clima semiárido e à vegetação de Caatinga. Cristaliza-se, então, uma memória social que, ao longo do século XX, assume várias nuances, mas a base dedutiva causal é sempre a mesma: seca/atraso.

A imagem que se institucionaliza sobre o Sertão também é construída como contraponto a outro Nordeste, litorâneo, úmido e chuvoso, emergindo em discursos diversos, perpassada pelas ideias da dependência e do subdesenvolvimento; de modo que as políticas de combate à seca e as relações clientelísticas se configuram como as únicas soluções para minimizar a inviabilidade social e climática desse espaço.

O discurso da seca, ‘traçando quadros de horrores’, vai ser um dos responsáveis pela progressiva unificação dos interesses regionais e um detonador de práticas políticas e econômicas que envolvem ‘todos os Estados sujeitos a este fenômeno climático’. A descrição das ‘misérias e horrores do flagelo’ tenta compor a imagem de uma região ‘abandonada, marginalizada pelos poderes públicos’. [...] Este discurso da seca vai traçando assim uma zona de solidariedade entre todos aqueles que se colocam como porta-vozes deste espaço sofredor.4

De acordo com essa compreensão, os desdobramentos econômicos, sociais, humanos e culturais do fenômeno climático vão ser o cenário onde frutificam imagens e dizeres unificados acerca de quais territórios e em quais fronteiras discursivas se institui o espaço sertanejo.

A presença da seca como principal enunciado caracterizador do Sertão se faz sentir, pois, em diversos discursos que fundamentam a imagem dessa região, uma vez que

ao se considerar ‘o espaço [como] um lugar praticado’, o sertão e a seca, sobretudo a sua instrumentalização, são reelaborados como tática de disputa de poder e passam a ser, sobretudo, a partir do final do século XIX, o discurso que referencia o retirante em busca de novas terras e o feliz fazendeiro que, bafejado pelas graças e benesses do Estado, defende a seca como doença que precisa ser combatida com os lenitivos proporcionados pelas obras hídricas (açudes,

4 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 1999, p. 59.

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barragens, transposições, irrigações).5

No que diz respeito à instituição das políticas governamentais de “combate à seca” e, no seu curso, com a ação fundante da chamada indústria da seca e sua apropriação pelos sujeitos sociais e históricos que habitam o espaço sertanejo, a solução sugerida é a criação das bases de uma nova economia que apresente capacidade para autogerar as forças de seu próprio crescimento, com o desenvolvimento de uma nova agricultura que inclua,

[...] desde a abertura de grandes frentes de povoamento em terras públicas, na direção da Amazônia, até a criação de nova agricultura de base familiar na zona açucareira, passando por ampla irrigação das bacias dos açudes e outras áreas na região semi-árida; ao lado [de] uma multiplicidade de programas de caráter social, cujo objetivo é trazer para a maioria da população do Nordeste uma imediata melhora nas condições de vida, abrindo novos horizontes de esperança àqueles que terão de aguardar por algum tempo os efeitos positivos das ações de maior profundidade.6

A invenção do sertão se alimenta, assim, não só da institucionalização da seca, mas da sua compreensão como problema que precisa ser combatido, sobretudo a partir da intervenção estatal. E é através não só da destinação de recursos públicos, mas, do controle, manipulação e reinvenção dos mesmos, pelas elites regionais, que se dá sustentabilidade à chamada indústria da seca. Uma indústria que tem como principal pressuposto a construção de grandes obras hídricas e a apropriação privada dos recursos públicos destinados à região, sobretudo, em momentos de registro de calamidades climáticas, já que as memórias desse espaço trazem as marcas de uma realidade predominantemente povoada pela dispersão, pelo ermo dos sertões secos e sem vida.

De acordo com essa perspectiva, os discursos sobre o Sertão referenciam as estiagens que, frequentemente, desestruturam e desorganizam a vida humana, econômica e social, e as políticas de combate as secas, traduzidas, sobretudo, nas grandes represas e açudes e em perímetros de irrigação, instituindo dizeres sobre este espaço, e produzindo lugares de memória. Neste sentido, também promovem o esquecimento das agruras e dissabores de um tempo de miséria e desolação, positivando lembranças configuradas em torno de uma realidade marcada pelos grandes açudes e barragens já construídos e que se anunciam com impulsionadores da “resistência da economia do semi-árido, [que] de alguma forma [deve] incorporar a irregularidade climática ao viver de uma população preparada para enfrentar a seca”7.

A literatura também constitui um campo discursivo que, de forma recorrente, corrobora com a memória da seca como imagem de desolação do sertão. Ramos,

5 MOREIRA NETO, Mariana. Da seca a convivência, do sertão ao Semiárido: enunciados e territorialidades. Tese (Doutorado em Sociologia). Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2010, p. 15.

6 FURTADO, Celso. A fantasia desfeita. São Paulo: Civilização Brasileira, 1989, p. 115.7 FURTADO, A fantasia..., p. 75.

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por exemplo, afirma que a sina do retirante “era correr mundo, andar para cima e para baixo, à toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado pela seca”8. Almeida reforça esse pensamento ao argumentar que,

Ninguém pergunta ao retirante donde vem nem para onde vai. É um homem que foge do seu destino. Corre do fogo para a lama. (...) Baldara-se-lhe todo o heroísmo sertanejo. Ainda bem não se refazia de um cataclismo, sobrevinha-lhe outro. Horrendos desastres desorganizando a economia remanescente. O sertão vitimado: todo o seu esforço aniquilado pelo clima arrítmico, perturbador dos valores, regulador inconstante dos destinos da região.9

Como se pode observar, nestes discursos, a identidade que se elabora do sertão é pautada pela ideia de um espaço que se apresenta como o avesso da vivência e de uma gente vitimada pelo clima. Produz-se, assim, uma memória unificada de um lugar que, na experiência das diversidades de paisagens, culturas, trocas e práticas econômicas, sociais e culturais, não se harmoniza com a convivência como forma de enfrentamento social dos problemas, necessitando de inferências externas para suprir e/ou perpetuar uma dependência considerada “natural”.

É com base nessa concepção que se observa a instituição de uma “identidade sertaneja”, principalmente, a partir da década de 30 do século XX, momento em que a seca começa a receber, por parte do Estado, um tratamento “planejado”, legitimando uma miséria que deve ser reelaborada pelas políticas governamentais dirigidas à região.

Essa visão unificadora se insere num conjunto de processos dinâmicos de cunho histórico e social que contribui significativamente para que os sujeitos sociais ao mesmo tempo em que o elaborem ou dele se apropriem, sejam influenciados no seu pensar e agir.

De acordo com essa compreensão, Abrantes defende que

o próprio processo de construção da memória coletiva é, sem dúvida, um instrumento de inclusão de atores sociais tradicionalmente excluídos, no momento em que se valoriza sua participação na sociedade e os transforma em sujeitos produtores dessa memória.10

Neste sentido, a memória que se elabora sobre o sertão se constrói de referenciais sobre o passado e o presente dos diferentes grupos sociais que aí habitam, ancorada na ideia de “tradição” e intimamente associada a mudanças culturais. Esse território é tido como inviável, uma vez que o espaço e a gente são eivados pelo sofrimento e pela sujeição, seja em relação à natureza, ou às condições econômicas e sócio-políticas.

Contudo, a partir dos anos 1980 do século XX, quando novos dizeres são

8 RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 86. ed. São Paulo: Record, 2002, p. 19.9 ALMEIDA, José Américo de. A Bagaceira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p. 29-31.10 ABRANTES, Vera Lúcia Cortes. IBGE: retratos e relatos. In: VI Encontro Regional Sudeste de

História Oral. Anais... Juiz de Fora: 2005, p. 111.

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engendrados elaborando posturas diferentes para a vivência das relações sociais e de poder nesse espaço, operacionaliza-se um deslocamento da imagem do Sertão para a imagem do Semiárido, tendo como embasamento o desenvolvimento sustentável.

De como lembrar o semiárido

A ideia da convivência se apresenta dentro de uma realidade atualizada em função de novos saberes e novas demandas do mundo atual. Sugere uma nova racionalidade para o Semiárido, fundamentada na perspectiva da sustentabilidade e que encontra nos movimentos sociais, em sindicatos e organizações não governamentais, o espaço próprio de sua elaboração e legitimação. Segmentos que, sobretudo a partir da década de 1980, passam a representar ou expressar interesses da sociedade até então negligenciados, visando reelaborar as relações de poder que se estabelecem e possibilitar a instituição de novas formas de convivência social, de processos educativos, culturais e políticos pautados nos princípios democráticos e na solidariedade como resistência política.

Nessa perspectiva, uma questão se coloca como essencial: o conhecimento do Semiárido Brasileiro a partir de um enfoque plural. Para tanto, são apresentadas como necessárias a ruptura com as relações de poder ditas conservadoras e a sugestão de formas mais horizontais de gestão das políticas públicas, sobretudo aquelas instituídas com o objetivo de amenizar as consequências que a irregularidade climática provoca na região semiárida do Brasil.

O documento final do Seminário – Ações Permanentes para o Desenvolvimento do Semiárido Brasileiro – realizado em Recife, nas dependências da SUDENE, em maio de 1993, defende que:

A convivência do homem com a semi-aridez pode ser assegurada. O que está faltando são medidas de política agrária e agrícola, tecnologias apropriadas, gestão democrática e descentralizada dos recursos hídricos e da coisa pública – para corrigir as distorções estruturais seculares, responsáveis pela perpetuação da miséria e da pobreza no meio rural.11

Assim, a relação do homem com a região semiárida começa a ser pensada a partir do redimensionamento do lugar dos sujeitos e das imagens elaboradas sobre estes e o ambiente, como forma de superação de um passado marcado por desmandos políticos, e, simultaneamente, de construção de uma memória otimista que, desclassificando a memória que predominava até então, valoriza potencialidades e exige a busca por novas soluções que respondam, mesmo que em parte, às necessidades da região.

Nestes termos, a sustentabilidade e a convivência passam a ser consideradas como fundamentos dos programas e ações sociais interessados na melhoria das condições socioeconômicas da região, sejam estes desenvolvidos pela sociedade civil organizada ou pelo poder público. Impõe-se como referencial a construção de memórias que

11 FÓRUM NORDESTE, 1993, p. 5, apud DINIZ, Paulo César O. Ação coletiva e convivência com o semi-árido: a experiência da articulação do Semi-Árido paraibano. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2002, p. 44.

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possam subsidiar alternativas que tornem possível o princípio da convivência com o meio, a formação social e política das pessoas, a melhoria das suas condições de vida e a elaboração de uma nova identidade para o “ser Semiárido”.

Busca-se, através da elaboração de projetos e de sua execução, no âmbito da educação, da ambiência ou do desenvolvimento sustentável, entre outros, abrirem caminhos para solucionar o problema da falta de água; das deficiências do sistema educacional e do acesso e uso dos recursos naturais; bem como, da geração de trabalho e renda, no intuito de amenizar: a falta de planejamento da produção, a resistência e insensibilidade de alguns representantes do Poder Público frente à realidade do povo e outros impasses.

Portanto, as memórias que são elaboradas são ancoradas: na ideia da convivência por meio da autonomia dos sujeitos sociais e na positividade de ações valorativas do espaço semiárido, incluindo, entre elas, as estratégias de guardar água da chuva e conservar as sementes nativas ou adaptadas à região. Memórias que ressignificam a convivência do homem com o meio em prol da melhoria da qualidade de vida e do protagonismo da população semiárida, corroborando com a ideia de que “a memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para libertação e não para a servidão dos homens”12.

Nesse contexto, ser habitante do Semiárido é ter uma cisterna de placa no “oitão” da casa, uma barragem subterrânea nos leitos de riachos, desenvolverem cultivos agroecológicos em seus roçados, participar de visitas de intercâmbio e, sobretudo, ser um multiplicador dessa ideia para que novas mentalidades sejam formatadas e os dizeres sobre a convivência se legitimem como verdadeiros e modelem a identidade do ser Semiárido13.

Ou seja, emergem dos discursos que elaboram a imagem do Semiárido, os traços de um espaço que se pretende definido e conhecido, circunscrito aos limites das diversas experiências, ações e engenhos relacionados e referenciados como adequados e recomendados para a conveniente operacionalização de relações sociais mais simétricas e prazerosas. A região é pensada para ser conhecida, por seus eventos previamente anunciados e antecipados, onde a população é estatisticamente quantificada, solos e plantas são classificados como resultantes de uma proposta que tenta se legitimar e se institucionalizar como possibilidade única e trilha exclusiva de produção de uma nova realidade.

Com base nessa concepção, a Declaração do Semiárido preconiza, em seus princípios, que a convivência é possível, pois,

[...] homens e mulheres, adultos e jovens podem muito bem tomar seu destino em mãos, abalando as estruturas tradicionais de dominação política, hídrica e agrária; Que

12 LE GOFF, Jacques. Memória. In: __________. História e Memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994, p. 477.

13 Para melhor compreensão da discussão sobre identidade, nos parâmetros aqui considerados, cf. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de: Nos destinos de fronteira: história, espaços e identidade regional. Recife: Bagaço, 2008; __________. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar: as fronteiras da discórdia. São Paulo: Cortez, 2007; __________. Nordestino: uma invenção do falo (uma história do gênero masculino - Nordeste, 1920/1940). Maceió: Catavento, 2003.

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toda família pode, sem grande custo, dispor de água limpa para beber e cozinhar e, também, com um mínimo de assistência técnica e crédito, viver dignamente, plantando, criando cabras, abelhas e galinhas.14

A importância da família como foco de atenção e de atuação do discurso da convivência também representa a possibilidade de que, através de um processo educativo informal, sinonimizado e experienciado em oficinas, capacitações, visitas de intercâmbio e inúmeras outras modalidades que se apresentam fartas nas experiências das entidades que trabalham com a proposta da convivência15, sejam transformadas em concepções de mundo, sejam aceitas e reproduzidas como procederes e comportamentos.

Portanto, o Semiárido que o discurso da convivência delimita, organiza e institui, embora redimensione a lógica econômica e político-social que viabiliza a ideia de sertão, se assenta no campo e sua gente, sobretudo na agricultura familiar, produtora de orgânicos, nas alternativas de captação, armazenamento e uso da água da chuva, na valorização dos saberes do povo, disseminados e reproduzidos nas capacitações, na educação contextualizada que organiza e define as fronteiras do Semiárido e as incute nas novas gerações. São formas novas de dizer uma região, pensando-a em suas especificidades, mas tentando inseri-la de maneira propositiva no contexto mais amplo da sociedade contemporânea e instituindo novas relações de saber/poder.

Desse modo, novos corpos não mais individualizados em sertanejos, mas coletivizados em gente do Semiárido, começam a ser moldados. Corpos, cuja identidade se cristaliza pelo modo de viver, a forma de pensar e enquadrar o mundo e de inserção nas políticas públicas. Uma gente conhecida, classificada, nominada e rotulada nas fichas das cisternas de placas, nos dados cadastrais dos bancos de sementes e dos sindicatos de trabalhadores rurais, nas relações de assentados dos órgãos públicos que coordenam programas de reforma agrária etc. Uma gente identificável, de quem se conhece como planta, como colhe, quais recursos hídricos deve utilizar, como se relaciona com a natureza da caatinga.

As memórias que são construídas, nestes termos criam condições para se pensar esse espaço de tal modo que:

Esperança e recordação, ou mais genericamente, expectativa e experiência – pois a expectativa abarca mais que a esperança e a experiência é mais profunda que a recordação – são constitutivas, ao mesmo tempo, da história e de seu conhecimento, e certamente o fazem mostrando e produzindo a relação interna entre passado e futuro, hoje e amanhã.16

Dessa forma, no discurso da convivência, o pressuposto da sustentabilidade é referenciado como essencial para a reelaboração de relações de poder-saber que, 14 Articulação do Semiárido Brasileiro – ASA. Declaração do Semi-Árido, 2008, s/p.15 A exemplo da ASA, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Rede de Educação do Semiárido

Brasileiro (RESAB).16 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução

de Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora da PUC-Rio, 2006, p. 308.

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deslocando-se do tradicional discurso da dependência, procuram gestar novas possibilidades para o espaço do Semiárido, ancoradas na reflexão de questões como respeito à diversidade, solidariedade, coletividade, articulação em redes, autogestão etc. Esses aspectos são destacados como essenciais para a elaboração da nova identidade tecida para este território a partir do desenho de fronteiras, da demarcação de linhas divisórias, da produção de saberes e dizeres sobre o que é ser semiárido, da formatação de corpos, da contextualização da educação. Enfim, da construção de uma realidade que, cristalizada na memória da população, contribua para a consolidação de uma cultura histórica, por meio da qual, o Semiárido seja pensado de forma homogênea tendo como contraponto, o avesso da ideia de Sertão, que precisa ser esquecida.

Sertão e Semiárido: embate de memórias, lembranças e esquecimentos

A disputa entre as memórias elaboradas para lembrar e esquecer o sertão e para lembrar o semiárido, se institui, sobretudo, como um embate travado pela afirmação da identidade desse espaço que ora se apresenta como inviável, ora como inovador e propiciador de um futuro promissor.

A partir dessa compreensão, a memória do Semiárido, como contraponto à memória do sertão, passa a assumir duas funções essenciais: manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo que os habitantes do semiárido devem ter em comum17. Neste sentido, quando se trata de elaborar uma identidade para o Semiárido, prima-se por uma aproximação entre a memória e as categorias “experiência” e “expectativa”. E, nesse processo, as memórias que remetem a idéia de sertão, ao passo que são evocadas como pejorativas, como lembranças que devem ser esquecidas, são colocadas em suspeição a partir da proposta de sua substituição por uma convivência possível, por meio de novas tecnologias designadas de sociais, em razão de sua considerada sustentabilidade e de sua simplicidade, “(...) voltadas para os problemas básicos do povo, manejáveis, facilmente replicáveis e controláveis pelas populações”18.

A memória do Semiárido que o discurso da convivência vem tecendo, assim como a memória do Sertão, se propõe homogênea e se apresenta a partir de um conjunto de enunciados, tais como: a redução e eliminação dos impactos negativos da atividade produtiva sobre o meio ambiente; a relação de convivência com as especificidades climáticas regionais; a valorização econômica e política dos agricultores; a manutenção, em longo prazo, dos recursos naturais e da produção agrícola; o atendimento das necessidades sociais das famílias e das comunidades residentes neste território. Caracteriza-se a partir da associação entre lembrança e esquecimento e aponta para a necessidade de uma reflexão sobre as relações entre presente, passado e futuro, vinculando a memória que deve ser lembrada à identidade e às experiências e pensando-a como uma apropriação crítica do passado, como uma fonte provedora de recursos para a construção de um futuro possível, como cristalização de vivências culturais:

Esse debate aponta para a compreensão de que na memória

17 Cf. POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, CPDOC-FGV, v. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.

18 MALVEZZI, Roberto. Semiárido: uma visão holística. Brasília: CONFEA, 2007, p. 105.

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que se elabora para o ser Semiárido, se cruzam passados, presente e futuro; temporalidades e espacialidades; monumentalização e documentação; demissões materiais e simbólicas; identidades e projetos [...] a lembrança e o esquecimento; o pessoal e o coletivo; o individuo e a sociedade, o público e o privado [...].19

Cria-se, com isso, uma cultura histórica que, ao tempo em que desqualifica a memória do Sertão, configura um Semiárido uno, com uma identidade fechada e desenhada a partir da perspectiva da convivência e da imagem de uma territorialidade compreendida não simplesmente como uma delimitação geográfica, mas, também, como demarcação de espacialidades e temporalidades que se instituem em termos físicos, simbólicos e culturais e cuja memória ganha dizibilidade e visibilidade com a apresentação das diversas tecnologias e dos inúmeros engenhos elaborados para estabelecer a relação harmônica entre homem e meio ambiente e determinar o que é “memorável” e as formas pelas quais será lembrado.

É a partir destas condições de instituição que o discurso da convivência com o semiárido, as memórias que ele evoca e as que ele desqualifica, bem como as identidades que ele se propõe a instituir também deve ser pensado como um campo de disputas e de negociação gerado a partir de uma vontade e/ou da necessidade de se construir uma memória e uma história que se quer perpetuar e precisa ser problematizada em suas táticas e estratégias de homogeneização da temática da convivência e dos enunciados que a sustenta, assim como enquanto uma possibilidade entre outras de ver e de dizer o “Ser semiárido”. Que produz efeitos de poder e de saber.

19 NEVES, Frederico de Castro. História dos movimentos sociais no campo. Rio de Janeiro: Fase, 1989, p. 218.

RESUMONos discursos elaborados sobre o sertão e sobre a convivência com Semiárido, percebe-se a compreensão da necessidade de se valorizar os conhecimentos acumulados e as experiências dos sujeitos que habitam esse espaço para redimensionar as relações socioculturais e políticas e pensá-las enquanto formas de construção de saberes alternativos e desafiantes. Tais saberes se constituem, historicamente, como embate de formas de ver e dizer o ser Semiárido, em alguns pontos convergentes, em outros conflitantes. Com base nessa compreensão, problematizamos as memórias que cristalizam uma identidade sobre o sertão e os deslocamentos que se operacionalizam a partir da elaboração do discurso da convivência como forma de criação de novos lugares de memória para o Semiárido. Palavras Chave: Memória; Sertão; Semiárido.

ABSTRACTIn the speech elaborated about backwoods and coexistence with the semi-arid, they can percept the comprehension of the necessity of put on value to the background and the experience of the subjects that live in this place intending to size up the politic and socio-cultural relationships and think in them as mean of construction of alternative and defiant knowing. These knowing are constituted, historically, as an clash of way to see and saying about the semi-arid, in some converges points, in others conflicting. With this comprehension, we put in question the memories that crystallize an identifying about the backwoods and the dislocate that word from the elaboration of the speech of coexistence as a form of creation of new places of memories to the semi-arid.Keywords: Memory; Backwoods; Semi-Arid.

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O FOLCLÓRICO BAR PALÁCIO EOS TEMPOS DA MEMÓRIA GUSTATIVA

Mariana Corção1

Memória Gustativa: um Esboço Preliminar

Só comia frango, não comia outra coisa. [...] Não, frango assado. Aquele cheiro a gente via há três quadras de distância a gente já sentia o cheiro do Restaurante...e era gostoso...2

Ter a memória gustativa como elemento estrutural da reconstrução de experiências conduz a muitas lembranças e menções do Bar Palácio ao longo de suas décadas de existência e do uso que se fez dele pelos frequentadores. A citação acima é um enxerto da narrativa do ex-frequentador G. C.3, que recorda os tempos em que frequentava o Bar Palácio, entre as décadas de 1940 e 1950. Ao longo da fala do entrevistado o Palácio é pouco citado. Sendo que, inicialmente, ele sequer se lembra do nome, se referindo ao lugar como “restaurante que ficava aberto 24 horas” (o Bar Palácio foi uma das únicas opções de restaurante noturno de Curitiba entre 1930 e 1960). O cheiro do frango do Restaurante Palácio (note-se que o entrevistado elege o termo restaurante para designá-lo), contudo, se faz extremamente presente. É esse o retrato resultante da memória gustativa: o predomínio de cheiros e sabores do qual irradiam todo o resto de lembranças que os cercam.

O Bar Palácio, considerado como um espaço em que se vive, faz com que se manifestem sensações naqueles que experimentaram seu espaço e seu ambiente. Tais sensações são entendidas como manifestação da memória gustativa, a qual foi primeiramente identificada na narrativa literária de Marcel Proust:

Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa [...] tal como faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou antes, essa essência não estava em; era eu mesmo. [...] De onde vinha? O que significava? Onde apreende-la? [...] De ponho a taça e volto-me para o meu espírito. É a ele que compete achar a verdade. Mas como?4

A realidade na narrativa marcadamente subjetiva de Proust ultrapassa o que o homem é capaz de perceber concretamente. Nesse contexto, o real se faz através da associação entre os sentidos corporais (como a experiência do gosto), experiências

1 Doutoranda em História pela Universidade Federal do Paraná. Docente da Secretaria de Educação do Paraná.

2 G. C.; entrevista concedida a Mariana Corção, Curitiba, 4. jul. 2006.3 Os nomes dos seis frequentadores do Bar Palácio que foram entrevistados serão apresentados em

siglas de forma a preservar suas identidades.4 PROUST, Marcel. A la recherche du temps perdu. Vol. 1 - Du cotê de chez Swann. Paris: Gallimard,

La Pleiad, 1987, p. 44. Tradução do trecho de Lúcia Maria Salvia Coelho.

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passadas e lembranças presentes ou já quase esquecidas. Tal entendimento do real se associa com as referencias da psicanálise e da psicologia. O fragmento apresentado do romance de Proust, Em Busca do Tempo Perdido, revela de quê forma a sensação gustativa é capaz de ativar uma outra sensação, uma que transcende o tempo no qual o indivíduo está inserido. A sensação incita o indivíduo a buscar nele próprio uma resposta ao estímulo indagador.

A percepção do tempo na obra de Proust transcende o tempo social, colocando-o numa escala subjetiva que recorre a experiências vividas para compreender as sensações do presente. O presente, nesse sentido, é posto como um ponto móvel determinado pela relação passado-futuro. A filósofa Hannah Arendt, tratando da ruptura entre passado e presente, faz considerações sobre a posição do tempo presente na história, o qual se enquadra na perspectiva proustniana.

[...] Ele tem dois adversários: o primeiro empurra-o para frente, desde suas origens. O segundo bloqueia-lhe o caminho à frente. Ele luta contra ambos. Na verdade, o primeiro auxilia na luta contra o segundo, pois quer-lhe empurrar para frente, e da mesma forma, o segundo o auxilia na luta contra o primeiro, pois quer fazê-lo recuar. Isso é assim apenas teoricamente. Pois não há ali apenas dois adversários, senão também ele próprio; e quem conhece efetivamente suas intenções? De qualquer modo, seu sonho, que ele uma vez, em pequeno e inusitado momento sonhou, - e isto exige todavia uma noite tão escura como nenhuma outra foi – é o de saltar para cima da linha do combate e, em virtude de sua experiência de luta, posicionar-se acima de seus co-adversários.5

Hannah Arendt parte do conto de Kafka, citado acima, para refletir acerca da ruptura da tradição no período moderno percebendo o tempo segundo a filosofia de Heidegger (para quem a mente humana não é capaz de expressar toda a temporalidade, e para quem o “ser-no-mundo”, adquire autenticidade apenas na repetição resoluta do seu passado). O personagem, nessa perspectiva, representa o indivíduo que sofre forças advindas do passado, dele próprio e do mundo que o antecede e da mesma forma do mundo que ainda é futuro. O passado e o futuro apresentam sentido infinito em ambas as direções. Entretanto, a vivência do individuo é limitada pela luta entre ambas as forças infinitas, já que logo é limitada por elas na direção em que o atinge. Seria uma luta equilibrada se não fosse o pensamento do indivíduo, que na concepção de Hannah Arendt é o que leva à ação. Assim, a ação reflexiva do homem é a força que rompe o equilíbrio passado/futuro e faz com que se mova no presente. O pensamento-ação, dessa forma, possui um ponto de origem e se estende infinitamente numa direção, que é dada pelo conflito das forças passado-futuro6.

Proust considera o passado como elemento constituinte do presente. O passado,

5 Tradução de M. B. Magalhães, do original do alemão. In: MAGALHÃES, M.B. Pensamento e Ação na Obra de Hannah Arendt. História e Perspectivas, Uberlândia, jan./jun. 2001, n. 24, p. 32.

6 ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. 5 ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.

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por sua vez, é entendido como sendo constantemente modificado pelo presente, o qual é interpretado pelo indivíduo, atento aos elementos concretos. A realidade, desta forma, resulta do diálogo entre o concreto percebido pelo indivíduo, as representações mentais do passado e da interpretação do presente, as quais são reconstruídas constantemente.

[...] o sabor ainda recente daquele primeiro gole e sinto estremecer em mim qualquer coisa que teriam desancorado, a grande profundeza; não sei o que seja, mas aquilo sobe lentamente; (...) Por certo, o que assim palpita no fundo de mim, deve ser a imagem, a recordação visível que, ligada a esse sabor, tenta segui-lo até chegar a mim. Mas debate-se demasiado longe, demasiado confusamente; mal e mal percebo o reflexo neutro em que se confunde o ininteligível turbilhão das cores agitadas; mas não posso distinguir a forma, pedir-lhe, como ao único intérprete possível, que me traduza o testemunho de seu contemporâneo, de seu inseparável companheiro o sabor, pedir-lhe que me indique de que circunstância particular, de que época do passado é que se trata.7

O sabor da madeleine associado ao chá desperta no indivíduo um fragmento de memória, o qual conscientemente o ele seria incapaz de resgatar. A memória despertada pelo alimento, posta no âmbito do esquecimento, não seria rememorada se assim quisesse o indivíduo. Pode-se dizer que a narrativa de Proust apresenta a forma pura da memória involuntária definida por Benjamin. Para Benjamin, o fragmento de memória involuntária, desperta no indivíduo uma sensação que não tem correlacionamento direto com a experiência presente, e que conduz à rememoração de experiências que não estavam no foco principal de lembranças do indivíduo. Um fragmento de memória involuntária, despertada através de um estímulo sensorial externo, é capaz de resgatar lembranças que haviam sido postas às margens das rememorações8.

[...] Aquele gosto era o do pedaço de madeleine que nos domingos de manhã em Combray (pois nos domingos eu não saía antes da hora da missa) minha tia Leôcia me oferecia, depois de o ter mergulhado no seu chá ou de tília, quando ia cumprimenta-la em seu quarto.9

Proust apresenta, seguindo a citação acima, o gosto da madeleine como o único intérprete das reminiscências das representações imagéticas da mente do personagem que são despertadas pelas sensações da experiência presente. A varredura leva o indivíduo à lembrança de um acontecimento passado posto no âmbito do esquecimento.7 PROUST, A la recherche…, v.1, p. 46. Tradução do trecho de Lúcia Maria Salvia Coelho, grifo da

autora do artigo.8 BENJAMIN, WALTER. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.

São Paulo: Brasiliense, 1987.9 PROUST, A la recherche…, v.1, p. 46.

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A memória gustativa ultrapassa a experiência singular na medida em que está associada ao cotidiano dos indivíduos, das pessoas e dos grupos. Alimentar-se, no contexto de estudos da História e Cultura da Alimentação, é entendido como uma ação que engloba diversos aspectos sociais, tais como nutrição, economia, tradição, inovação, costumes, hábitos, sociabilidade. O universo alimentar é percebido como uma categoria histórica10 que da mesma forma que outros microcosmos das práticas sociais, “não é somente das inovações, das aquisições, das criações, é também dos desaparecimentos, das perdas, das destruições”11. O filtro do tempo posto em meio à dinâmica social, nessa perspectiva, releva algumas práticas e concomitantemente coloca outras práticas às margens.

A ação selecionadora de elementos resistentes ao longo dos anos associa-se a elementos residentes na memória coletiva. Para Halbwachs, a memória coletiva “retêm do passado somente aquilo que ainda está vivo ou capaz de viver na consciência do grupo que a mantêm”12. Desta forma, entre permanências e esquecimentos, persevera uma relação entre passado e presente.

Jan Vansina, que inovou os estudos sociais com a inserção das tradições orais como fontes de análises antropológicas, considera que as tradições se constituem em memórias de memórias13. A partir das considerações das lembranças e esquecimento ao longo da comunicação mnemônica entre diferentes gerações, a memória é constituída, segundo Vansina, como um elemento dinâmico. Nesse sentido, o autor compara as tradições a uma sucessiva série de documentos históricos, todos perdidos, com exceção do último que é interpretado, de acordo, com a contribuição de todos os elos da corrente de transmissão14.

Da mesma forma que as tradições, a memória é um fenômeno construído social e individualmente a qual se constitui num elemento essencial do sentimento de identidade, segundo o entendimento que é apresentado por Michael Pollak15. A identidade é percebida, nesse contexto, como fator que oferece ao indivíduo um sentimento de continuidade física, moral e psicológica, assim como um sentimento de coerência, em meio às permanências, inovações e perdas consequentes do decorrer do tempo16.

A modernidade e a ascensão da cultura do efêmero17 caracterizam a relação do indivíduo com o passado com tal dinamicidade que a memória involuntária de Benjamin não se apresenta de forma tão pura quanto na narrativa proustniana. A memória involuntária, desta forma, tende a se entrelaçar à memória voluntária (o

10 Ver: SANTOS, C. R. A. dos. Por uma história da alimentação. História: Questões & Debates, Curitiba, jan./dez. 1997, v. 14, n. 26/27, p. 154-171.

11 REVEL, Jean-François. Um banquete de palavras. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.314-315.

12 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990, p. 81-82.13 VANSINA, J. Oral tradition as History. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1985, p.

160.14 VANSINA, Oral tradition..., p. 29.15 POLLAK, Michel. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, CPDOC-FGV,

v.5, n. 10, 1992, p. 200-212.16 POLLAK, Memória e identidade..., p. 5.17 Ver: BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São

Paulo: Companhia das Letras, 1986.

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reconstruir constante das lembranças). Nesse sentido, a memória gustativa, que se enquadra nas formas espontâneas da memória- involuntária e coletiva, se manifesta timidamente no meio contemporâneo em meio às outras formas de memória.

O Bar Palácio, desta forma, se apresenta como um espaço que viabiliza uma experiência de memória, tanto voluntária quanto involuntária, porque apresenta características peculiares – tanto no condizente ao serviço, quanto na relação estabelecida com os clientes, no contexto da alimentação no novo milênio.

Bar Palácio: Onde as Lembranças Permanecem

O Bar Palácio, em suas mais de sete décadas de história, apresenta diversos tempos remetidos pelas lembranças. Pode-se dizer que há um primeiro tempo, uma época em que o Bar Palácio era um dos raros restaurantes que ficava aberto na madrugada de Curitiba. Em seguida, o tempo do Bar que proibia o serviço a mulheres desacompanhadas e que era reduto de sociabilidade masculina ao longo da noite. Há também o tempo da tradição, em que o Bar Palácio representa um marco da cultura boêmia curitibana. Mais recente é o tempo da rememoração, em que os frequentadores dialogam com os elementos tradicionais do espaço do Bar Palácio em busca da revivência das próprias lembranças, ou remeter às de alguém de quem fala o lugar, como amigos que o frequentavam e já faleceram.

No tempo em que restaurante era novidade em Curitiba (e ainda mais noturno) , nas décadas de 1930 e 1940, o Bar Palácio era destaque. Talvez seja esse o porquê dos frequentadores que o conheceram nessa época prefiram se referir ao Palácio como restaurante, como fizeram B. R. e G. C. ao longo da entrevista, e o antigo frequentador Rui Miranda, em seu depoimento no livro de Valério Hoerner Júnior18. Nesse sentido, cabe expor a citação de B. R.: “Que fique bem claro que eu nunca entendi porque era Restaurante Café Palácio, eu não sei o que o café fazia no meio desse restaurante que não tinha café. Eu sei que esse era o nome, mas eu não sei porquê”19.

Café e Restaurante Palácio é o nome do estabelecimento, como observamos no cartão de visitas, o lugar, contudo, é conhecido como Bar Palácio – apesar de sua estrutura e serviço serem marcados com características de um restaurante. As denominações “Bar” e “Café” estão relacionadas à intensa sociabilidade a qual o ambiente se pretendia, e que marcou o Palácio por muito tempo para quem o frequentava e para quem o conhecia.

O depoimento de G. C. sobre o Bar Palácio coloca a refeição que era lá feita como algo que excedia as três refeições diárias habituais. Mesmo ceando como cortesia no Cassino Ahú, ele e outros funcionários do Cassino iam para o Palácio após o expediente para comer. A refeição extracotidiana é um elemento comum entre os frequentadores do Bar Palácio, já que este permanece aberto de madrugada, é um fator interessante para se pensar no que leva as pessoas a irem ao Palácio. Em princípio a rotina do dia foi encerrada, todas as refeições foram feitas. Ir ao Bar Palácio de madrugada seria uma forma de estender a sociabilidade, acompanhada do churrasco. Pode-se dizer, nessa perspectiva, que parte da clientela do Bar Palácio é boemia, da qual se entende como o indivíduo ou o grupo de pessoas que não 18 HOERNER JÚNIOR, Valério. O folclórico Palácio. Curitiba: Vicentina, 1984, p. 82-84.19 B. R.; entrevista concedia a Mariana Corção, Curitiba, 25 mai. 2006.

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tem um objetivo definido ao sair à noite, não sai simplesmente pelo comer-fora ou para encontrar amigos ou familiares.

O Bar Palácio sofreu uma mudança de sede no início da década de 1990, na época, uma reportagem intitulada “Bar palácio: 61 anos de boemia agora em nova versão” conclui que do velho Palácio permaneceram os famosos pratos e a placa escrita num português que resistiu a reformas ortográficas20. Tal anúncio revela o entendimento do cardápio do Palácio como um núcleo firme de suas características. Fator que confere ao cardápio um aspecto relevante no condizente à relação Bar Palácio-frequentador, como transmissor e viabilizador da permanência da tradição.

Ao perguntar aos garçons do Bar Palácio quais os pratos mais pedidos, há uma grande possibilidade de se ouvir: “os pratos tradicionais”21. Considerando que o cardápio pretende-se tão invariável quanto todo o resto das características do Palácio, questiona-se: quais entre todos os pratos, que são tradicionais, seriam os prediletos?

As entrevistas apresentadas na presente pesquisa direcionam a resposta: B. R. vai ao Palácio comer Filet à Griset, já A. S. gosta do Griset, do Churrasco (que segundo ele, chamam de paranaense), e do “franguinho”. G. C. diz que comia frango assado. D. C. menciona o famoso Filet à Griset. I. O. se lembra do “paranaense”. A. K. cita os mignons e a dobradinha. E. K. disse adorar o Filet à Griset, o Churrasco, a salada verde, a farofa de ovos e o Mineiro com Botas (sobremesa de banana flambada). Nesse mesmo sentido, há um predomínio nos jornais de referências ao Filet à Griset, ao Churrasco Paranaense e ao Mineiro com Botas. Em sua coluna na Gazeta do Povo do dia 29 de março de 2004, o colunista social Reinaldo Bessa perguntou ao garçom Milton Coelho quais seriam os pratos mais pedidos ainda hoje. Milton respondeu: “Mignon Grisé e Churrasco Paranaense”22. Há, desta forma, uma notável aproximação do referidos “pratos tradicionais” dos garçons aos pratos mais pedidos, que são: o Filet à Griset, o Churrasco Paranaense, o Frango à Crapudine e o Mineiro com Botas.

A fumaça e o movimento de pessoas são referências constantes à antiga sede. O referido churrasco é um aspecto permanente do estabelecimento. O ambiente varia de acordo com a inserção do Bar Palácio: quem e porque o busca, as características intrínsecas à estrutura interna só sofrem variações de acordo com as imposições do contexto, mas a administração pretende a invariabilidade, o que permite que muitos aspectos permaneçam da mesma forma que eram desde a década de 1930. B. R., frequentador desde a primeira década de existência do Bar, afirma que sentiu muito pouco as mudanças relacionadas à oferta da casa. D. C. encerra a entrevista expondo: “A comida era boa, era saborosa, bem feita. Era um lugar que eu tenho boas recordações”23. A colocação do tempo verbal no passado, “era um lugar”, indica a relação atual do entrevistado com o Bar Palácio, ou seja, uma relação fundamentada de lembranças, mesmo o estabelecimento ainda existindo. O depoimento de E. K., que foi levada ao Bar Palácio pelo atual marido, diverge de D. C., na medida em

20 BAR PALÁCIO: 61 anos de boemia agora em nova versão. Indústria e Comércio, 9 set. 1991.21 L. G.; S. B. & M. C.; entrevista concedida a Mariana Corção, Curitiba, 26 ago. 2004.22 BESSA, R. Especto Giratório. Gazeta do Povo. Curitiba, 29 mar. 2004.23 D. L. C.; entrevista concedida a Mariana Corção, Curitiba, 4 jul. 2006.

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que se refere ao lugar no tempo presente:

Eu gosto de várias coisas lá. O churrasco é uma delícia, o Filé Grisset, eu sempre como o Filé Grisset e o churrasco, e aquela saladinha verde, sou vidrada na salada deles também. Como um prato, dois de salada só de verde e cebola, sabe? Adoro. A farofinha de ovos é muito especial. E a sobremesa que eles tem lá, Mineiro com Botas, é demais.24

A fala de E. K. demonstra a identificação familiar que tem com o Bar Palácio. Ao falar da comida no diminutivo: “saladinha”, “farofinha”, a entrevistada denota intimidade com a lembrança-gosto do que fala, como se estivesse sentido o cheiro daquilo a que se refere. O filho de E. K. , A. K., conheceu o Bar Palácio, levado pelos pais ainda quando era criança. O depoimento de A. K. é bastante significativo na medida em que revela impressões de sensações e experiências que dialogam entre o rememorar e o viver:

Essa história dos mignons, tem o grise, chateaubriand, não me lembro mais os nomes, mas se tiver uns cinco, seis tipos de mignon, esses eu experimentei. Eu acho uma delícia. Mas me chamava atenção a dobradinha que eu sempre achei uma coisa horrível e meu pai sempre comia. E depois eu comecei a ir sem ele e resolvi comer e daí eu só consigo comer lá. Eu sempre fui indicando a comida mesmo. Mas me chamava atenção. Eu gostava, por exemplo, de sentar perto da churrasqueira desde que era ela um pouco diferente do padrão de churrasqueira que tem, que é o tijolo quadradinho e tal, tantas assim que trabalham vários homens, ali tinha uma certa história, o formato dela era, não sei se, que eu ia desde criança eu imaginava alguma coisa, não sei como era a imagem direito, depois se transformou um monstro, alguma coisa, tinha um formato, tem um formato diferente, um sistema de alavancas assim, que sobe e desce a grelha, nunca vi isso em nenhum lugar, só lá. Acho que isso ajudou a formar o ambiente, a encantar. Tem umas placas assim em cima grande, escrito Bar Palácio, parece que está errado, mas é que como se escrevia naquela época. O ambiente me chamava muita atenção. E os garçons que tinham dois principalmente assim, que parece que era super amigo da gente, até hoje. Se eu for lá hoje, vai ser aquele abraço e tal, em que nunca foi nada mais do que simplesmente atender, mas tinha um carinho, alguma coisa assim, não sei se é porque o meu pai foi um bom freqüentador lá. Sempre foi agradável. Diferente de, ... nenhum outro restaurante, mesmo que a gente tenha freqüentado bastante, foi tão assim, como é que se diz, agradável. Todos os fatores. Indica assim, primeiro pela comida, depois o ambiente

24 E. K.; entrevista concedida a Mariana Corção, Curitiba, 8 ago. 2006.

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é muito bom, engraçado, não sei se hoje tem isso, mas sempre comentava isso com as pessoas, a faca, a mesma de sempre, assim acho desde que começou, porque vão afiando, afiando, afiando, que chega a ficar, que você vê que ela é uma faca antiga e ela perdeu já o formato dela. Está bem fina, de tanto que afiou a mesma faca, isso me chamou muita atenção também.25

A associação da lembrança do pai comendo dobradinha com gosto o levou a experimentar e substituir o tradicional pedido de mignons. A preferência por sentar perto da churrasqueira associada à impressão infantil que a peculiar churrasqueira apresenta. Segundo o entrevistado, a churrasqueira do Palácio é única, nunca viu outra igual. Talvez também porque não tenha estabelecido com nenhuma outra churrasqueira a impressão infantil sobreposta à impressão adulta. A antiga placa do Bar Palácio, cujo texto, para A. K., parece estar escrito de forma errada. As facas que em suas lembranças parecem bastantes antigas pelo desgaste do fio. A comida do Bar Palácio se associa a muitas outras impressões. A partir da fala de A. K., pode-se dizer que o Bar Palácio apresenta uma aura para quem tem lembranças da infância passadas lá.

A narrativa de A. S. conduz à perspectiva de que o Palácio já não possui o mesmo significado para a sociedade curitibana, por abarcar as consequências do envelhecimento dos frequentadores. A. S. frequenta o Palácio desde o final da década de 1960, e continua a ir com o mesmo objetivo de outrora, o de comer. Contudo, os elementos que envolvem a refeição mudaram: o horário, as companhias, a frequência, assim como, seus costumes:

[...] Ele já sabe o meu costume, então ele guarda mesa para mim. Enfim, eu me sinto em casa lá, eu me sinto em casa. E gosto de ir sozinho, eu culto ir sozinho. [...] É muito agradável degustar a comida, comer sozinho, beber...Ali me ajuda a pensar na vida, pensar numa maneira gostosa na vida. É um ato de prazer, eu cultivo isso. Eu não faço questão de ir com outras pessoas, nem com a minha mulher, gosto de estar sozinho. É uma coisa diferente. É o prazer de uma boa refeição.26

A. S. conecta o Bar Palácio a sua própria casa, como um espaço de privação do indivíduo na sociedade. Gostar de ir sozinho ao Palácio revela elementos significativos da perspectiva que este frequentador tem do Palácio. Degustar o que é servido no Palácio conduz o entrevistado ao prazer da refeição solitária, que mescla elementos já vividos e sensações passadas que veem à tona com o que o espaço do Palácio proporciona e principalmente, o que a comida desperta na memória gustativa: uma forma boa de pensar na vida. A colocação de A. S. conduz à consideração de que as experiências de vida, as quais tiveram como tema e/ ou cenário o Palácio, foram boas, na medida em que o exercício da refeição solitária no Bar Palácio é para ele uma forma de lazer. Lembrar daqueles que frequentavam e já morreram – e tudo

25 A. K.; entrevista concedida a Mariana Corção, Curitiba, 8 ago. 2006.26 A. C. S.; entrevista concedida a Mariana Corção, Curitiba, 29 maio 2006.

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mais que foi um dia e já não é mais –, uma nostalgia na qual se privilegia o resgate e não a perda, o que torna a ação mais agradável. No contexto contemporâneo, as reportagens publicadas nos jornais dialogam com o discurso dos fregueses na medida em que aludem ao Palácio como espaço pertencente à “boemia perdida” curitibana27.

Em novembro de 1999, o jornal O Estado do Paraná publicou um artigo intitulado: “Endereço da fase áurea”, em que o cartunista Dante Mendonça e o jornalista Manoel Carlos Karam, contam suas experiências no Bar Palácio da Rua Barão do Rio Branco. “Era ponto de honra ir até lá”, falou Dante. Segundo os entrevistados, a qualidade da cozinha era outro chamariz, como coloca o jornalista que escreveu o artigo. A referência ao Bar Palácio no tempo pretérito, mesmo este ainda existindo, é indicativo de que a perspectiva social da tradição do Palácio nos jornais regionais diverge das décadas de 1970 e 1980 e do período da mudança de sede. O ambiente, no sentido da frequentação, mudou. A cozinha, no entanto, permanece com as mesmas características, o marco do Palácio é a tradição alimentar28.

Experiências Saborosas: o Valor Da Tradição Alimentar

“O que que eu vou me identificar com esses restaurantes? Não tenho porque me identificar”29, desabafou o entrevistado B. R. ao comparar o significado do Bar Palácio para ele diante da grande oferta de restaurantes na Curitiba contemporânea. Considerando o forte laço identitário que o entrevistado estabelece desde a infância com o Bar Palácio, é, de fato, uma tarefa difícil para os “restaurantes modernos” realizarem o mesmo em qualquer nível de cliente. O molde do que B. R. denomina como “restaurante moderno”, é o que enfatiza a gastronomia, seja através da criatividade, da figura de um chef e da temática eleita, ou também na decoração do ambiente, caracteriza o restaurante como uma empresa lucrativa. Nesse sentido, a dinâmica do mercado gastronômico noturno, que é alta; seja na abertura e fechamento de novos restaurantes, seja em mudanças de administração, de proposta ou mesmo de cardápio; dificulta o estabelecimento de laços identitários como o que o frequentador B. R. tem com o Palácio.

No contexto contemporâneo, lugares que privilegiam a memória são significativos, já que segundo alguns autores como Ulpiano Meneses, vive-se a crise da memória. Para tanto, Ulpiano Meneses considera a ênfase à ideologia do novo como consequência da cultura capitalista, que valoriza o moderno. As inovações e mudanças se fazem presentes, nesse contexto, de forma tão dinâmica que passa a serem não percebidas, ou até mesmo esperadas. Os indivíduos se focam nas inovações contínuas e que marcam descontinuidades. Essa consideração é posta dado o alto fluxo de informações diárias que tornam os indivíduos hiperinformados, e que, no entanto, impossibilitados de refletir a respeito daquelas devido à dinâmica da rotina, os tornam também alienados, na medida em que não pensam, só percebem. Métodos tradicionais de conservação da memória, como a busca da permanência dos eventos tradicionais de uma sociedade, tornam-se assim obsoletos30.27 PERIN, A. Caçadores da boemia perdida. Gazeta do Povo, Caderno G, Curitiba, 5 set. 2004.28 ENDEREÇO da fase áurea. O Estado do Paraná. Curitiba, 16 nov. 1999.29 B. R.; entrevista concedia a Mariana Corção, Curitiba, 25 mai. 2006.30 MENESES, Ulpiano T. B. A crise da memória, História e Documento: reflexões para um tempo

de transformação. In: SILVA, Z. Lopes da (org.). Arquivos, patrimônio e memória: trajetórias e

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Essa discussão foi antecedida por Pierre Nora31, para quem o esfacelamento da memória, advém da ascensão da modernidade, a qual é responsável pela substituição do homem-memória pelos lugares de memória. Lugares de memória, nesse sentido, são espaços constituídos de representação do passado incompleto e, que segundo Pierre Nora, vivem de sua aptidão para a metamorfose, para a adequação ao presente constantemente renovado. A mídia, por exemplo, é considerada por Nora como “película efêmera da atualidade” 32, tende a enfatizar o novo na medida em que lança periódicos, estabelecendo uma relação temporal que torna todo anterior às novas notícias, ou o passado. Esse último, neste contexto, é percebido como uma apropriação de algo que não pertence mais ao presente. Nesta perspectiva, Pierre Nora afirma não haver mais manifestações da memória, em decorrência a essa se relacionar à vida, a algo que emerge de um grupo que a une, como estipulado por Halbwachs em suas reflexões sobre a memória coletiva33.

O Bar Palácio se integra à memória comum na medida em que, como espaço de tradição, privilegia a relação do sujeito com a memória que o cerca e o abrange. Nesta perspectiva, o Bar Palácio pode ser contemplado como lugar de memória. Segundo Mona Ozouf, tratar um objeto histórico como lugar de memória é dar fala ao presente não como uma forma de herança, mas como usuário do passado34. Nesse sentido, o Bar Palácio fala no presente de um tempo experimentado: do tempo em que se situava no centro de Curitiba que se relacionava mais intensamente e se apresentava ao contexto externo; do tempo em que seu tradicionalismo era o chamariz da clientela que enchia a casa, e do tempo em que o crescimento e desenvolvimento urbano conduzem à fragmentação dos espaços de sociabilidade e se vive o tempo da revivência e recordação entre àqueles que o procuram. Há, portanto, elementos que congregam o Palácio como lugar de memória, sobretudo às recordações associadas à ao sabor conservado pela cozinha tradicional. Para a entrevistada E. K. o Bar Palácio é:

Um lugar que agrada. É um restaurante diferente dos outros, não é muito chique, mas tem um ambiente bom e que tem fama, que já vem de anos, longa data a mesma coisa, desde 1930. Então, muitos...quantos anos até hoje? Muito tempo para manter o mesmo tipo de comida, de cardápio, manter a mesma linha deles sempre, não modificou, apesar da evolução de tantas coisas, o Palácio manteve o mesmo. Só melhorou as instalações, que mudaram. Um prédio melhor para ter instalações melhores. Mas é muito bom porque manteve a tradição, do churrasco. Começou com o churrasco, não é? E que é famoso, e que é gostoso por sinal, muito gostoso. Eu chego a comer um sozinha.35

perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP, 1999.31 NORA, Pierre. Entre memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo,

PUC-SP, n. 10, dez. 1993, p. 7-28.32 NORA, Entre memória..., p. 8.33 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.34 Apud CHANET, Jean-François. Le passé recompose. Magazine Litteráire, n. 307, fev. 1993, p. 23.35 E. K.; entrevista concedida a Mariana Corção, Curitiba, 8 ago. 2006.

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Pode-se dizer que o Bar Palácio é, para esta frequentadora, a extensão de sua própria casa. É relevante que ao falar do que foi e do que é o Bar Palácio, a entrevistada, dá preferência a colocar aspectos de permanência: como o cardápio, a comida, a tradição e o churrasco. Em relação ao ambiente, E. K. citou gostar as famílias amigas que costumavam frequentar o Palácio, algumas pessoas já falecidas, comentário que não é retomado ao fazer o contraste passado-presente. Pode-se dizer que isso se deve porque E.K. não vai mais tão frequentemente ao Palácio; ou porque, relembrar o que se viveu a partir do que a comida do Palácio desperta já é suficiente para cobrir a falta daquilo que costumava constituir o ambiente de antigamente. Seu filho, A. K. relata sobre a primeira lembrança que tem do Bar Palácio:

O Palácio foi super interessante a primeira vez que eu fui, porque eu fui com uma turma, aliás, eu fui com ele [pai], de madrugada. Ele foi me buscar numa festa, eu estava com fome, eram duas da manhã e a gente foi comer lá. Tinha atenção essa coisa, você chegar de madrugada e comer lá o file grise. Então, assim, uma comida pesada para a noite até. Eu achei o máximo. Estava morrendo de fome. E tinha a turma do abacaxi, que era uma turma que de pessoal que trabalha com rádio, Caiobá, Estúdio 96, Rádio AM, Rádio Cidade, juntava repórter, técnico em eletrônica, todo mundo e depois da balada deles, eles iam lá comer. Aí foi super bacana de ver isso, além de ter essa história da comida, a turma, uma turma mesmo imensa, uma bagunça. Marcou bastante restaurante.36

Apesar de ter sido levado pelos pais quando era criança ao Palácio, A. K. descreve a sua primeira experiência com o Bar Palácio quando já era adolescente. O pai foi buscá-lo numa festa e o levou para comer no Palácio. Tal experiência deve ter se passado no início da década de 1980. Da mesma forma que D. C., A. K. expõe a intensa sociabilidade do Palácio pela madrugada como fator marcante dessa primeira experiência consciente do lugar. Destaca-se a referência aos grupos das rádios de Curitiba, cujas sedes de trabalho ficavam nos arredores da Barão do Rio Branco e que foram, por muito tempo, um significativo grupo frequentador do Palácio. Nota-se que na citação anterior, A. K. se refere ao Bar Palácio como Palácio, e posteriormente como restaurante. Tal referência se associa ao uso que o usuário faz do espaço, que é o de ir comer.

No contexto de mudança de sede do Bar Palácio muito foi discutido respeito da inovação e da tradição do espaço, como é possível perceber nos jornais do período que aludem à questão. O tabloide de Aramis Millarch, por exemplo, publicou no domingo de 25 de agosto de 1991: “O sexagenário palácio vai mudar. Mas só de endereço!”. A chamada de Aramis Millarch atende à valorização dos aspectos tradicionais do Palácio, na medida em que anuncia a mudança e enfatiza que é só de endereço37.

36 A. K.; entrevista concedida a Mariana Corção, Curitiba, 8 ago. 2006.37 MILLARCH, A O sexagenário Palácio vai mudar. Mas só de endereço! O Estado do Paraná,

Almanaque, Tabloide. Curitiba, 25 ago. 1991.

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“Bar Palácio em três por quatro”, artigo de Adélia Maria Lopes38, revela aspectos do ambiente da antiga sede que juntamente com o cardápio e forma de serviço, serviam como estruturantes da identidade do Palácio. Nesse sentido, a mudança de sede, pode ser vista como fator que abala a identidade tradicional, que fez fama entre grupos mais diversos da sociedade curitibana no período em que ficou no número 438 da Rua Barão do Rio Branco. Os clientes tradicionais afirmam que “nada mudou”, fazendo referência ao cardápio e ao serviço, que na defesa de sua identidade tradicional, passarem a ser composta dedos principais fatores estruturantes, acompanhados da decoração da sede atual que exibe artigos, quadros, placas e imagens nas paredes indicadores das décadas de história do estabelecimento.

A inauguração da nova sede do Bar Palácio marca um novo tempo, no qual a tradição dá espaço à rememoração. Por isso, se no período anterior o Bar Palácio era dado como um retrato da tradição da boemia curitibana, a partir desse período - início da década de 1990- a maior parte dos frequentadores vai ser aquela que estabeleceu anteriormente identificação com o espaço. Tomando os seis entrevistados para a presente pesquisa, constata-se que apenas entre dois deles permanece o costume de ir ao Palácio: B. R. e A. S. Tal indicativo não exclui a possibilidade dos outros terem no Bar Palácio um ambiente de rememoração, mas a permanência do Bar Palácio na rotina desses entrevistados fez com que suas falas expusessem elementos significativos entre a tradição e a rememoração que o ambiente proporciona.

Para B. R., o significado social do Bar Palácio não reside somente na identificação pessoal com a história, com o espaço e com o “sabor” da comida, mas também com a sua permanência concreta e praticamente invariável. Tal aspecto se revela quando o entrevistado discorre sobre outros restaurantes de Curitiba que frequenta e frequentava, citando alguns que não existem mais. O comentário do entrevistado revela um diferencial do Bar Palácio diante dos outros restaurantes antigos de Curitiba, o Palácio não é só antigo, mas é tradicional, é resistência, é existência quase que imutável desde que B. R. o conheceu.

O que eu percebo: antes eu tinha vinte anos, e hoje tenho 70. Quer dizer, já tem uma diferença muito grande, não é?![...] Eu o vejo como um Restaurante que nunca foi barato, e que começou na boemia e hoje se mantém pela sua comida, mas ele já não é o que era.39

Após expor todas as impressões do Palácio em seu contexto espaço-temporal, essa citação de B.R. expressa seu entendimento de forma resumida do que se apresenta diante do confronto passado-presente, para o Bar Palácio e para seus clientes tradicionais. O Palácio não é mais o que era não porque sua administração o levou a isso, mas porque a vida dos seus frequentadores o tornou diferente. O assíduo frequentador afirma que ao contar a história do Café e Restaurante Palácio, que é o exercício de rememoração que faz durante toda a entrevista, está contando a sua própria história. Tal afirmação conduz à percepção de que o entrevistado tem a si próprio como protagonista da história do Palácio, estendendo sua identificação como de apenas cliente. Nesse sentido, a citação a seguir explicita de que forma B.

38 LOPES, A M. Bar Palácio em três por quatro. O Estado do Paraná. Curitiba, 5 set. 1991.39 B. R.; entrevista concedia a Mariana Corção, Curitiba, 25 mai. 2006.

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R. é percebido como a extensão da própria cozinha. “E não vou como festa e não vou como jantar fora, eu vou no Palácio, porque hoje não quero fazer comida em casa, o eu que estou dizendo é a minha mulher”40.

O Bar Palácio como espaço de vida remete à memória social e coletiva que o abrange, se associa ao seu caráter invariável em meio às transformações ocasionadas pela dinâmica espaço-temporal do meio urbano. A tradição, mesmo que não identificada na memória pessoal do indivíduo que a experimenta, se associa a dados da memória coletiva que podem coincidir com a memória individual. Nesse sentido, algumas características marcantes do lugar podem remeter a outras propostas semelhantes de outros meios urbanos. É possível que um indivíduo que vai pela primeira vez ao Bar Palácio se reconheça em seu espaço, através da identificação de elementos comuns a dados de sua própria vivência- por alguma associação do gosto da comida, ou mesmo da disposição do ambiente que traduz um molde de restaurante de meados do século XX. Esse indivíduo também faz exercício de revivência e rememoração que remetem ao valor das lembranças e da memória na construção de suas características como ser único em meio à sociedade que a cerca. Tal relação é possível porque o Bar Palácio não permanece num espaço transcendental em que se compõe por si próprio. O Bar Palácio agrega elementos externos a ele próprio para manter seu tradicionalismo. Nesse sentido, enquanto proposta, o Bar Palácio preza a imutabilidade; enquanto espaço social, contudo, ele se relaciona entre inovações, invenções e permanências. O Bar Palácio se situa no presente, mas possibilita através da preservação, que se reconheça um espaço passado, possivelmente comum a outro espaço da memória de alguém. Nesse sentido, experimentar o Bar Palácio é sentir o estranhamento perante a distância espaço-temporal da vida cotidiana de elementos tradicionais, e paralelamente identificar na tradição do Bar Palácio elementos comuns às próprias lembranças, ou mesmo à memória comum social, que é a memória coletiva.

O cardápio, considerado elemento menos flexível entre todos os elementos que o conferem marco tradicional ao Bar Palácio, é tido como o fator que possibilita tanto maior reconhecimento, quanto maior estranhamento na relação da experiência com o indivíduo – ambos meios de identificação. Diante do quadro contemporâneo em que a memória involuntária cede espaço ao exercício de rememoração, a possibilidade de recuperar reminiscências através do despertar sensorial ocasionado por pratos que viabilizam o reconhecimento de tempos passados experimentados pelo indivíduo, fenômeno que constitui a memória gustativa, é significativa. Perante tal perspectiva, o Bar Palácio, que agrega elementos constituintes da identidade palaciana (os quais lhe conferem caráter tradicional), é visto como um patrimônio para os frequentadores mais antigos, e pode ser entendido, além disso, como um patrimônio gustativo.

40 B. R.; entrevista concedia a Mariana Corção, Curitiba, 25 mai. 2006.

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RESUMO

O Bar Palácio, referenciado pelos antigos frequentadores como “Folclórico Palácio”, foi fundado na década de 1930 na cidade de Curitiba no estado do Paraná, e desde então tem sido refúgio para os noctívagos da cidade, persistindo com as mesmas características desde que foi estabelecido, o que o leva a ser entendido como um lugar de tradição da cidade. Entre os elementos permanentes do lugar destaca-se o cardápio, fator que viabiliza a vivência de rememorações a partir do sabor conservado pelo modo de fazer e servir ao longo dos anos. O cardápio é marcado pelos pratos tradicionais (mais conhecidos e pedidos): o Frango à Crapudine, o Mignon à Griset, o Churrasco Paranaense e o Mineiro com Botas. Tais pratos juntamente com outras características peculiares do Bar, englobam o que se define como uma “identidade palaciana”. O presente artigo introduz algumas reflexões no sentido de se pensar o Bar Palácio como um lugar da memória gustativa, partindo das experiências narradas pelos frequentadores.

Palavras Chave: Memória Gustativa; Tradição; Patrimônio Social.

ABSTRACT

Palacio Bar, known as “Folkloric Palacio” was founded in the 1930s in Curitiba, and since then it has been a refuge for the night-walkers, keeping its original’s characteristics, thus is it’s understood as a traditional space of the city. Among the permanent features of the restaurant, the menu stands, for it enables the experience of recollections considering the flavor that is retained by the atemporal cooking and serving processes . The menu is marked by traditional dishes (which are the most famous) such as: Chicken Crapudine, Mignon Griset, Paranaense Barbecue and the Mineiro com Botas. These dishes, along with with others peculiarities of the Bar, compose the “Palacio’s identity”. This article presents some reflections on Palacio Bar as a place of gustatory memory by analyzing the experiences narrated by visitors.

Keywords: Gustatory Memory; Tradition; Social Heritage.

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LIMITES E CONTRIBUIÇÕES DA HISTÓRIA ORAL:A MEMÓRIA E A HISTÓRIA NAS INTERSEÇÕES

ENTRE O INDIVIDUAL E O COLETIVO

Willian Eduardo Righini de Souza1

Giulia Crippa2

Introdução

Este artigo é resultado de uma pesquisa aplicada na cidade de Santa Rosa de Viterbo, no interior de São Paulo, que pretendeu analisar a relação de alguns moradores com o patrimônio cultural local. Para tanto, foram realizadas entrevistas a partir dos pressupostos da história oral, permitindo-nos apresentar as reflexões a seguir.

O objetivo é promover algumas discussões sobre os limites e possibilidades dessas memórias, principalmente, porque, quando lemos ou ouvimos os relatos, surgem questionamentos que merecem ser abordados, como a fronteira entre o individual e o coletivo na construção mnemônica, e a existência ou não de autonomia na seleção do que deve ser lembrado e esquecido, o que pode trazer uma ideia de dominação discursiva que apenas autoriza a reprodução.

Depois, nosso enfoque se dirige para a história construída a partir dessas memórias, na tentativa de compreender qual o papel que ela pode assumir perante o leitor, especialmente quando ele foi um dos entrevistados. Uma pergunta central é se na leitura do texto o entrevistado é instigado à crítica ou se recebe o escrito como a verdade dos acontecimentos. Assim, discorreremos sobre a possibilidade da história de ordenar, iluminar ou forjar uma realidade.

Memória

Ao pedirmos para alguém falar sobre sua trajetória de vida, de uma sociedade, do lugar onde cresceu, ela recorre à memória para temporalizar os eventos e significá-los segundo suas emoções e sentimentos. Porém, essa memória não é resultado apenas de experiências individuais, mas do meio social onde ela se desenvolveu, participando de uma rede de disputas que pode ou não ser reconhecida por este e outros grupos.

Podemos dizer que ela é fortemente marcada pelas relações sociais e grupos nos quais nos inserimos. Provavelmente, foi essa a maior contribuição de Maurice Halbwachs ao defender que “um homem, para evocar seu próprio passado, tem freqüentemente necessidade de fazer apelo às lembranças dos outros”3, e, portanto, ao pedirmos para alguém falar do passado, também damos voz à comunidade na

1 Mestrando em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo. E-mail: <[email protected]>.

2 Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto e da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. E-mail: <[email protected]>.

3 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004, p. 58.

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qual essa pessoa vive e que interfere na sua construção do social4.Para Gondar e Dodebei5, além de uma construção individual, a lembrança é uma

montagem da sociedade que a produziu e daquelas onde continuou a existir. Assim sendo, uma interpretação que parte das nossas lembranças já existiria antes mesmo do nosso nascimento, o que, à primeira vista, nos transmite a ideia de ausência de autonomia.

Quando as memórias analisadas são aquelas estimuladas por uma entrevista, também devemos considerar possíveis limitações de espontaneidade, pois para cada interlocutor/ ouvinte, o entrevistado assume um discurso com o objetivo de transmitir determinada mensagem, de acordo com o que ele considera correto, isento, imparcial, culto, etc. Ao levarmos em conta esta situação, quando instauramos um diálogo com a intenção de recolher relatos para uma pesquisa, devemos considerar que o que foi dito pelo entrevistado foi em um contexto não natural, no qual ele sabe que não ficará restrito apenas àquele momento, mas que é passível de ser divulgado e ouvido/ lido por pessoas que ele nem mesmo conhece, ou seja, de fora do seu círculo de confiança e intimidade.

Desta forma, algumas perguntas são relevantes na tentativa de entender quais os possíveis efeitos desse diálogo instituído com o entrevistado: aquele que conta pode tirar algum proveito da ação de questionar o passado a partir do presente? Em que medida, enquanto ser social, ele é autônomo em suas opiniões? Será que ele apenas reproduz representações de uma coletividade?

Para alguns autores, fazer parte do social não significa reduzir o indivíduo apenas em reflexo do coletivo. O indivíduo é membro dessa negociação de sentidos, e ao mesmo tempo em que reproduz, também é criador. Como observa Certeau6 na sua discussão sobre a vida cotidiana, se há uma disciplina, uma ordem, coexistem maneiras de fazer que impossibilitam a homogeneidade.

Analisando as teorias de William Wordsworth e Sigmund Freud, Assmann7 destaca, entre outras coisas, que a memória não é somente um ato de registrar-conservar-recuperar. Ela é sempre uma nova criação e, por conseguinte, o recordar é um processo ativo que permite uma nova percepção.

Marcuse, junto com outros teóricos da Escola de Frankfurt, como Adorno e Horkheimer, apontou a alienação e perda de autonomia do indivíduo perante a sociedade de massa, acreditava que a memória é capaz de ultrapassar a repressão, pois a interpretava como uma condição inerente ao sujeito, enquanto o social seria apenas um tipo de construção da memória, diferente, por exemplo, dos impulsos da infância que não foram rompidos pela esfera coletiva8.4 BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial,

2003, p. 54.5 GONDAR, Jô & DODEBEI, Vera (orgs.). O que é memória social? Rio de Janeiro: Contra-capa,

2005, p. 17.6 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano – Vol. 1: artes de fazer. 10. ed. Rio de Janeiro:

Vozes, 1994.7 ASSMANN, Aleida. Ricordare: forme e mutamenti della memoria culturale. Bologna: Il Mulino,

2007, p. 115.8 SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Memória coletiva & teoria social. São Paulo: Annablume, 2009,

p. 93-113.

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Não enfatizar esse processo de individualização é a principal crítica à teoria de Halbwachs. Apesar de perceber que cada indivíduo utiliza a memória de maneiras diferentes, ele a explica por quadros sociais, estruturas que o antecedem, negando, por exemplo, o papel dos sentimentos, julgamentos e experiências pessoais. Segundo sua teoria, as memórias individuais seriam apenas combinações aleatórias de memórias coletivas9. Deste modo, nega a existência de atores sociais, como salienta Ricoeur10, e consciência individual, ou seja, a capacidade de percepção e julgamento do mundo interior e exterior. Ao longo deste artigo, também recorreremos a outros autores, como Walter Benjamin, que apresentam outros caminhos para pensar a memória.

Ao contrário de Halbwachs, as pesquisas que utilizam entrevistas, como na história oral, reforçam o papel do indivíduo, que mesmo inserido no coletivo, não se dissolve nele. Para Portelli, “se toda memória fosse coletiva, bastaria uma testemunha para uma cultura inteira”11. Portanto, é necessário dar ênfase às maneiras pelas quais cada indivíduo organiza e dá sentido a essas memórias coletivas e à sua própria história. Nessa perspectiva, a memória continua social, mas reconhecemos que ela só “se materializa nas reminiscências e discursos individuais”12.

De modo geral, nas pesquisas com entrevistas, não se objetiva mostrar a percepção do coletivo, como uma síntese, uma voz única, mas expor as semelhanças individuais que reforçam a ideia de traços comuns, a vida inserida no social, sem negar o característico do singular. Por isso a importância de transcrever, inserir no texto e dar nomes a cada entrevistado quando se faz história oral, porque

o que se chama de ‘grupal’, ‘cultural’, ‘social’ ou ‘coletivo’ [...] é o resultado de experiências que vinculam umas pessoas às outras, segundo pressupostos articuladores de construção de identidades decorrentes de suas memórias expressadas em termos comunitários.13

Uma das explicações para essa individualização são as nossas emoções. Como sabemos, a memória é seletiva. Ela não é um depósito onde podemos preservar todas as nossas experiências e recuperá-las quando desejarmos. Entre todos os estímulos que recebemos, apenas alguns se transformarão, por meio dos nossos sentimentos e afetividade, em traços mnemônicos capazes de interferir em nossa visão do passado14.

9 SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. O pesadelo da amnésia coletiva: um estudo sobre os conceitos de memória, tradição e traços do passado. Cadernos de Sociomuseologia, Centro de Estudos de Sociomuseologia, n. 19, 2002, p. 151-155. Disponível em: <http://revistas.ulusofona.pt/>. Acesso em: 14 fev. 2010.

10 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2010, p. 132.

11 PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso comum. In: FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO, Janaína (orgs.). Usos & abusos da história oral. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 127.

12 PORTELLI, O massacre..., p. 127.13 MEIHY, José Carlos S. B. &HOLANDA, Fabíola. História oral: como fazer, como pensar. São

Paulo: Contexto, 2007, p. 27.14 GONDAR, Jô. Lembrar e esquecer: desejo de memória. In: COSTA, Icléia Thiesen M. & GONDAR,

Jô (orgs.). Memória e espaço. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000, p. 36.

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Segundo Markowitsch15, possuímos cinco principais sistemas de memória de longo prazo: memória de procedimento, mais comumente chamada de memória-hábito; memória implícita, referente à capacidade de reconhecer informações previamente percebidas; memória perceptiva, para o reconhecimento de estímulos; memória semântica, referente ao conhecimento e, por fim, memória episódica, que garante, por meio das emoções, destacarem momentos vividos perante todos os demais. É a partir dela que construímos nossa biografia, determinamos nossa personalidade e nos diferenciamos como indivíduos.

Mesmo todo indivíduo sendo membro e influenciado pela sociedade, sua capacidade de crítica e reflexão continua a existir pela própria instabilidade do social. Não há uma memória coletiva que nos unifica e organiza. O que existe são memórias compartilhadas que estão a todo o tempo em conflito, movimento e modificação em resposta a atitudes singulares. Assim, se o social pode ser coercivo, a confrontação de diferentes memórias permite questionamentos e escolhas, mostrando o indivíduo como parte do coletivo e não como seu resultado.

Ao considerarmos, portanto, que a memória não se explica apenas pela oposição entre quadros sociais e autonomia individual, mas por interseções que se apresentam em diferentes níveis, a diferenciação entre memória voluntária e involuntária contribui para melhor compreender as características do ato de lembrar na e em sociedade. Walter Benjamin observa que enquanto a memória voluntária é aquela que resulta de uma ação intencional de quem lembra, a involuntária é espontânea, natural, sem uma ação planejada, prevista. Deste modo, esses dois tipos de memória, que também podem ser denominados de lembrança (voluntária) e reminiscência (involuntária), nos mostram duas possibilidades de compreensão do mundo16.

Nesta dualidade, seria possível afirmar que estamos em constante contato com o passado, pois mesmo se não desejamos, existe a memória involuntária que não permitiria quebrar esse vínculo com os acontecimentos anteriores. Indo um pouco mais longe, a ideia de que a história oral contribui para que seus participantes entrevistados façam uma reflexão sobre o passado seria apenas mais uma possibilidade, pois sempre poderíamos defrontá-lo pela presença de estímulos involuntários.

Porém, tanto Walter Benjamin como Hannah Arendt acreditam que a memória involuntária ou espontânea, na modernidade, só é possível em um estado de exceção. Para Arendt17, revoluções, como a Francesa e Industrial, catástrofes, como as duas Grandes Guerras, entre outras condições do período, levaram a uma quebra entre o passado e o futuro que deixou a sociedade sem uma referência para compreender a nossa herança. Assim, sem memória involuntária ou, nas palavras de Arendt, sem tradição, o passado não teria mais sentido.

O testamento, dizendo ao herdeiro o que será seu de direito, lega posses de um passado para um futuro. Sem testamento, ou, resolvendo a metáfora, sem tradição – que

15 MARKOWITSCH, Hans J. Pré-requisitos emocionais e cognitivos da memória autobiográfica. In: GALLE, Helmut et al (orgs.). Em primeira pessoa: abordagens de uma teoria da autobiografia. São Paulo: Annablume; FAPESP; FFLCH, USP, 2009, p. 63-78.

16 SANTOS, Memória coletiva..., p. 141-144.17 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 54.

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selecione e nomeie, que transmita e preserve, que indique onde se encontram os tesouros e qual o seu valor – parece não haver nenhuma continuidade consciente no tempo, e portanto, humanamente falando, nem passado nem futuro, mas tão-somente e sempiterna mudança do mundo e o ciclo biológico das criaturas que nele vivem.18

Benjamin é da mesma opinião de Arendt ao dizer que na cidade moderna a memória não é mais capaz de trazer conhecimento, explicar nossas experiências e dar um significado à vida. Para ele, reduzidos apenas à memória voluntária, somos incapazes de alcançar o que não está latente, tornando-nos refém do mercado e das relações de poder, restringindo ou mesmo anulando nossa liberdade e capacidade de crítica19.

A memória involuntária continuaria a existir, mas apenas excepcionalmente e por meios artificiais, como mostrou Proust em sua obra “Em busca do tempo perdido”, analisada por Benjamin20. Na passagem mais conhecida do clássico francês, o protagonista Marcel, que praticamente não preservava lembranças de sua cidade natal, Combray, recorda-se de sua infância ao experimentar o doce madeleine:

E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray (pois nos domingos eu não saía antes da hora da missa) minha tinha Léonie me oferecia, depois de o ter mergulhado em seu chá da Índia ou tília, quando ia cumprimentá-la em seu quarto. O simples fato de ver a madalena não me havia evocado coisa alguma antes que a provasse; talvez porque, como depois tinha visto muitas, sem as comer, nas confeitarias, sua imagem deixara aqueles dias de Combray para se ligar a outros mais recentes; talvez porque, daquelas lembranças abandonadas por tanto tempo fora da memória, nada sobrevivia, tudo se desagregara; as formas – e também a daquela conchinha de pastelaria, tão generosamente sensual sob sua plissagem severa e devota – se haviam anulado ou então, adormecidas tinham perdido a força de expansão que lhes permitiria alcançar a consciência.21

Portanto, de acordo com concepções de Benjamin e Arendt, restar-nos-ia apenas a memória voluntária? Nem isso. Sem tradição e perdidos no que hoje chamamos de Sociedade da Informação, qualquer capacidade de interpretar o passado ficaria comprometida. Agora, quando nossa olhar se dirige a ele, não contaríamos mais como pontos fixos para nos situarmos, mas sempre precisaríamos criar uma nova

18 ARENDT, Entre o passado..., p. 31.19 SANTOS, Memória coletiva..., p. 144.20 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7.

ed. São Paulo: Brasiliense, 2008.21 PROUST, Marcel. No caminho de Swann. 3. ed. rev. São Paulo: Globo, 2007. p. 73. (Em busca do

tempo perdido; v. 1).

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imagem, o que, como mostrou Arendt22, também tem seu lado positivo, pela possibilidade de uma “visada direta”, não obstruída por nenhuma autoridade.

Foi nessa perspectiva que Nora afirmou que “fala-se tanto de memória porque ela não existe mais”23. Para ele, a construção de lugares de memória é uma tentativa de dar um sentido de continuidade onde só há ruptura. Assim, só nos restaria aquilo que chamamos de patrimônio cultural em uma perspectiva negativa, ou seja, vestígios que tentam reconciliar passado e presente sem sucesso, pois a vida do homem perdeu o seu sentido. Como Benjamin24 questiona, (...) “qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós?”25.

Isolado, sem referências para agir na cidade moderna, o homem só possuiria a memória de sua própria vivência (erlebnis), podendo falar apenas dos acontecimentos que presenciou, diferente daquele, que, inserido em uma comunidade, acumula saberes que percorrem gerações (erfahrung)26.

A erlebnis é caracterizada pela provisoriedade, pela necessidade de estar vivo quando um evento acontece, expondo a fragilidade da ligação entre passado e presente. Contar apenas com a erlebnis impossibilita de recorrer à tradição, restringindo o nosso conhecimento somente ao que é fugaz, à avalanche de informações que recebemos diariamente, as quais, descontextualizadas, não adquirem sentidos que ultrapassam o imediato27.

Já a erfahrung, ao contrário, é adquirida pela vida em comunidade, onde entre cada geração encontramos continuidade. Assim, não aprendemos apenas quando estamos presentes, pois os conhecimentos se acumulam e influenciam no dia-a-dia daqueles que estão vinculados a um passado compartilhado. Podemos dizer que a erfahrung é o que permite uma memória de longa duração.

Sem essa memória, o homem moderno teria perdido a capacidade de contar histórias. O que se diz hoje não duraria mais que uma geração, pois na seguinte, o que foi transmitido não é mais compartilhado entre transmissor e receptor, pela inexistência de traços comuns que garantem o interesse e utilidade do que foi contado. Para Benjamin, ficamos pobres de experiência. “Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do ‘atual’”28.

22 ARENDT, Entre o passado..., p. 56.23 NORA, Pierre. Entre memória e historia: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo,

n. 10, dez. 1993, p. 7.24 BENJAMIN, Magia e técnica..., p. 115.25 Segundo Hartog, o patrimônio é uma maneira de viver o tempo de crise, um desejo de

desenvolver vínculos ao mesmo tempo em que é um sinal de perda. Desta forma, toda a corrida pela “patrimonialização” demonstraria uma preocupação com o futuro, pois ele se apresenta como ameaça quando vivemos em uma época de amnésia. Ironicamente, o autor observa que quanto mais patrimônios, mais esquecimentos e memórias que negam o passado. HARTOG, François. Tempo e patrimônio. Varia Historia, Belo Horizonte, PPGH-UFMG, v. 22, n. 36, p. 261-273, jul./ dez. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/>. Acesso em: 14 fev. 2010.

26 BENJAMIN, Magia e técnica..., p. 11727 MEINERZ, Andréia. Concepção de experiência em Walter Benjamin. Dissertação (Mestrado em

Filosofia). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2008, p. 17-18.

28 BENJAMIN, Magia e técnica..., p. 119.

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Também segundo Benjamin29, ser um narrador não é transmitir uma informação explicando-a, como um jornalista imparcial, mas saber imergir na sua experiência e na alheia para dar um conselho, um ensinamento, que ao invés de explicar algo, é útil para a vida. Deste modo, sua crítica recai sobre o excesso de informações no mundo moderno que, ao se dirigir a todos e ninguém ao mesmo tempo, não carrega os sentimentos que garantem a sua reprodução.

Seu pensamento tenta mostrar o fim da vida em comunidade que, para Halbwachs30, é o que sustenta a memória coletiva. Enquanto para este autor a nossa memória se constituiu no convívio com o grupo no qual pertencemos espacial e temporalmente, para Benjamin31, o destino do homem moderno é o isolamento, ao esfacelarem-se as relações que garantiam nossa identidade perante as transformações mundanas. Assim, “todas as três comunidades de memória (nação, grupo étnico e família) são afetadas pelo crescimento da diferenciação da sociedade, globalização do mundo e pelo desenvolvimento dos novos meios de comunicação”32.

Nessa leitura, concluímos que a utilização de entrevistas para uma análise da memória social seria limitada e restrita, pela incapacidade de ultrapassar as experiências da nossa geração e lembrar além do pouco que nos restou. No entanto, nossa concepção se baseia não no fim da memória, mas na existência de diferentes vivências sociais que possibilitam novas relações espaço-temporais. Esse é o intuito, por exemplo, de Landsberg33, na tentativa de mostrar a importância de experiências e memórias “inautênticas”, como as originárias da cultura de massa.

Valendo-se de filmes, museus, livros, Landsberg34 questiona os limites tradicionalmente aceitos para a existência de memórias e afirma que hoje é representativa a sua formação além de contextos sociais vividos. Para o autor, ao contrário de produzir uma amnésia coletiva, a cultura de massa estimula o desenvolvimento de memórias artificiais e protéticas (prosthetic memory). Desta forma, construiríamos laços fortes com um passado distante mesmo quando ele não foi presenciado pela nossa geração. É o reconhecimento de comunidades imaginadas que ao compartilharem os mesmos produtos culturais estabelecem pontos de contato entre distantes35. Assim, as memórias protéticas nunca se restringem a uma única pessoa, mas há uma grande probabilidade de milhares assistirem ao mesmo filme, lerem o mesmo livro, etc.

Possivelmente, Benjamin defenderia que essas memórias não são autênticas, como reconhece Landsberg, e podem ser utilizadas como um instrumento de poder. Mas, por outro lado, elas também revelam que comunidades e compartilhamentos continuam a existir. Ainda, como citamos anteriormente, os indivíduos não recebem essas memórias, necessariamente, de forma passiva, podendo ressignificá-las de 29 BENJAMIN, Magia e técnica..., p. 119.30 HALBWACHS, A memória coletiva, p. 58.31 BENJAMIN, Magia e técnica..., p. 119.32 MISZTAL, Barbara. Memory experience: the forms and functions of memory. In: WATSON, Sheila

(ed.). Museums and their communities. London; New York: Routledge, 2007, p. 388. Tradução nossa.

33 LANDSBERG, Alison. Prosthetic memory: the transformation of American remembrance in the age of mass culture. New York: Columbia University Press, 2004.

34 LANDSBERG, Prosthetic memory.35 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do

nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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acordo com os seus interesses e contextos, ao contrário de levar à alienação. Nesse quadro, o passado segue a despertar interesse das pessoas e mesmo que não seja mais alcançado como tradição, ainda é uma referência para as nossas ações no presente. É por isso que acreditamos que as pessoas ainda têm o que contar e que há conexões entre o que elas dizem. As mudanças apontadas por Benjamin e Arendt são esclarecedoras, entretanto não significam o fim do testemunho, mas uma transformação que deve ser considerada.

Ao narrar sua vida inserida no social, o entrevistado a ordena para dar-lhe um sentido. Sua história adquire uma unidade, que, mesmo ilusória, proporciona-lhe parâmetros para a reflexão e ação. Organizando suas experiências pela narrativa e elaborando o que deseja transmitir aos outros, o entrevistado alcança condições para a crítica do que na realidade é complexo e transitório.

[...] essa é precisamente a qualidade da narrativa, que opera, performativamente, na construção de algo que como tal não existe em outra parte fora do relato: a distância insalvável entre a “vida” – como amontoado de experiências heteróclitas, temporalidades disjuntas, sensações, pulsões, memórias – e a organização forçada que impõe o discurso, tomado este em sua mais ampla acepção.36

A partir dessa unidade, constitui-se uma identidade narrativa. Ao contar e compartilhar algo com alguém que escuta, questiona, confirma ou nega, o indivíduo se insere em uma temporalidade própria, onde ele se localiza e se reconhece. Mais consciente do seu papel e da importância que atribui ao que ocorre ao seu entorno, aumenta a sua capacidade de discernimento, permitindo um estado de maior autonomia. As tensões e conflitos não são apagados ou esquecidos, mas, revelados, torna-se possível o encontro de explicações. Assim, narrar, principalmente na autobiografia, se configura uma busca constante de conhecimento sobre o eu, o outro e a sociedade37.

Entendemos que os indivíduos participam dos conflitos e embates pela formação de uma memória coletiva, mas que nunca será alcançada devido à impossibilidade de um consenso ou dominação total. Mesmo compartilhando ideias, suas memórias, carregadas de emoções, sempre serão, ao mesmo tempo, singulares e inter-relacionadas. Portanto, ao dar voz para uma pessoa se expressar, permitimos não somente que ela apresente as percepções e representações dos grupos aos quais ela se insere, mas também como ela interpreta e utiliza essas referências e interferências do social em sua experiência particular.

Ao invés de sustentar a concepção de um isolamento do homem moderno, que sem tradição perderia os laços com o passado, acreditamos que a modernidade permitiu o surgimento de novas experiências, e, por meio delas, a possibilidade de se conectar com diferentes “passados imaginados”, como os produzidos pelos meios de comunicação de massa. Diante de tantas opções, falar sobre a nossa biografia, 36 ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico na (re)configuração da subjetividade contemporânea. In:

GALLE, Em primeira pessoa..., p. 117.37 STRAUB, Jürgen. Memória autobiográfica e identidade pessoal. Considerações histórico-culturais,

comparativas e sistemáticas sob a ótica da psicologia narrativa. In: GALLE, Em primeira pessoa..., p. 83-84.

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o que pensamos ter acontecido e como vemos o mundo nos auxilia a ordenar e pensar sobre essas reconstruções e determinar o que consideramos merecedor de valorização, questionamento ou esquecimento.

Bauman utiliza a metáfora de um quebra-cabeça para exemplificar sua concepção de identidade na “modernidade líquida”38. Para o autor, a identidade é como um conjunto de peças de montar incompleto ou infinito, até porque, para garantir a nossa liberdade de escolha, nunca queremos finalizá-lo e fechar a porta para outras possibilidades de montagens. Desta maneira, sempre estamos mexendo nesse conjunto, juntando e tirando peças, trocando outras de lugar, o que mostraria o caráter transitório e movente de nossa identidade no tempo presente.

Valendo-se dessa metáfora, em vez de defendermos que instigar uma reflexão sobre o passado reforça a nossa identidade e sentimento de pertencimento, sugerimos que esse ato permite que alguns conjuntos sejam visualizados e discutidos, o que não muda nem o número de peças nem as alternativas para outras combinações, mas nos deixa mais conscientes de nossas escolhas e capazes para a crítica e ação na sociedade.

Somos seres sociais e nossa memória se constitui no convívio em sociedade. No entanto, é necessário complementar que o coletivo não é uma entidade pré-existente, mas um recurso teórico para mostrar os compartilhamentos entre indivíduos singulares. Porém, a recorrência constante ao que é comum reforça a ilusão de inexistência da diferença, mascarando as experiências pessoais que garantem o poder de criação e questionamento a cada um.

Convencidos disto, acreditamos que ao falar sobre suas opiniões e trajetória de vida, o entrevistado não apenas reproduz o que é legitimado socialmente, mas se vê diante de uma oportunidade para refletir sobre as suas percepções, representações e sentimentos. Além disso, o ato de contar permite a constituição de uma identidade narrativa, ordenando os eventos que por natureza são sobrepostos. Assim, mais fácil será saber, defender ou rever quem somos, o que pensamos e queremos, reconhecendo, inclusive, o papel exercido por uma memória cultural de longa duração.

História

Até agora, discutimos como a memória possibilita ordenar o passado e questioná-lo reflexivamente. Porém, outro estágio dos projetos baseados em lembranças pessoais deve ser analisado: a produção de um texto que apresenta as conclusões sobre os diversos relatos colhidos.

Neste momento, cabe ao pesquisador colocar em evidência as contradições e relações entre os testemunhos, indo além das visões parciais de cada entrevistado. Para tanto, ele institui um diálogo entre as diferentes perspectivas encontradas para compreender e discutir a representatividade das rememorações. A partir disto, nossa atenção recai sobre como é produzida essa narrativa e como ela é recebida pelo entrevistado/ leitor.

A historiografia já contribuiu com importantes discussões sobre a escrita da

38 BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

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história, apresentando tópicos que devem ser considerados quando desejamos entender as características que determinam a forma e a recepção desse tipo de pesquisa. Certeau39, por exemplo, problematiza a história ao situá-la entre dois termos aparentemente paradoxos, o real e o discurso, questionando o seu fazer entre a busca pela verdade e o reconhecimento da interpretação/ ficção. Ao contrário, Ginzburg40 defende que retórica e prova não são antagônicas, mas que as provas constituem o núcleo fundamental da retórica, e as fontes, inclusive as orais, não são nem evidentes nem impenetráveis, exigindo uma análise que situe o que foi transmitido em seu contexto e intencionalidade.

Deste modo, seu posicionamento se contrapõe a Veyne41 quando aborda a natureza lacunar da história. Para este último, o conhecimento não trata daquilo que foi, ocorreu, mas do que está disponível, em sentido restrito, nas fontes existentes. Assim, quando propõe preencher as lacunas, o pesquisador apenas suporia os acontecimentos ocorridos e “o número de páginas concedidas pelo autor aos diferentes momentos e aos diversos aspectos do passado é uma média entre a importância que estes aspectos têm a seus olhos e a abundância da documentação”42.

O que Veyne nega é o percurso apresentado por Ginzburg para a análise das fontes, como se não fosse possível um critério rigoroso, mas somente uma submissão à disponibilidade de documentos sobre o assunto pesquisado. No entanto, Ginzburg visualiza o documento como monumento, como faz Le Goff43, desconstruindo-o, contextualizando-o e analisando suas condições de produção.

Nesta perspectiva, documentos que foram produzidos pela e para a classe dominante podem explicar a cultura popular; uma crítica a determinada pessoa pode revelar suas qualidades, e assim por diante, desde que se faça uma leitura não positivista das fontes. Como diz Ginzburg44, “o fato de uma fonte não ser ‘objetiva’ (mas nem mesmo um inventário é ‘objetivo’) não significa que seja inutilizável. Uma crônica hostil pode fornecer testemunhos preciosos sobre o comportamento de uma comunidade camponesa em revolta”.

Ginzburg reconhece que o pesquisador lida todo o tempo com o erro, mas acredita na possibilidade de eliminá-lo ao assumir e explicar as lacunas documentais por meio do entrelaçamento/ comparação das fontes e estudo do contexto45. Mesmo admitindo os limites da investigação, o historiador italiano defende a existência de procedimentos que permitem ao pesquisador alcançar o conhecimento histórico, como não excluir da análise aquilo que é fugaz e transitório, pois são indícios, sinais

39 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.40 GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras,

2002.41 VEYNE, Paul. Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história. 4. ed. rev. Brasília:

Editora da UnB, 2008.42 VEYNE, Como se escreve a história..., p. 2743 LE GOFF, Jacques. História e memória. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.44 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela

Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 16.45 LIMA, Henrique Espada. Narrar, pensar o detalhe: à margem de um projeto de Carlo Ginzburg.

ArtCultura, UFU, Uberlândia, v. 9, n. 15, jul./dez. 2007, p. 109. Disponível em: <http://www.seer.ufu.br/>. Acesso em: 20 mar. 2010.

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para ler os documentos além do que é intencional e aparentemente evidente46.Outra crítica de Veyne47 e principalmente de Certeau48 é que para transmitir

um sentido de objetividade, a história suprime do seu discurso o lugar de onde ela se enuncia. Para Certeau, “toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção socioeconômico, político e cultural”49, mas que negado, impede uma explicação dos métodos, documentos e questões a partir desse lugar.

Estes apontamentos sobre a relação entre prova e retórica, o caráter lacunar da história, a crítica documental e o discurso histórico são temas recorrentes na historiografia, porém situá-los no contexto de nossa pesquisa, ou seja, em uma investigação que se fundamenta em transcrições de entrevistas, permite expressá-los de uma forma não generalizada, e, consequentemente, introduzir novos olhares sobre os limites e oportunidades da história oral.

Como esse campo do conhecimento desenvolveu suas próprias metodologias, um dos nossos interesses é discutir em que medida seus métodos e procedimentos reforçam ou refutam algumas dessas características da história apresentadas por Certeau, Veyne e Ginzburg, como influenciam a relação com os entrevistados e a produção de um texto final.

Um dos aspectos citados é que o pesquisador não expõe o lugar de onde ele se enuncia, impedindo que o leitor questione o discurso em relação à posição social do autor. Concordamos que em qualquer texto há proibições e silenciamentos, no entanto, na história oral, uma das obrigações do pesquisador é exatamente se dispor a dialogar e inserir no texto as diferentes interpretações dos entrevistados a partir de uma autoridade compartilhada ou história colaborativa50, realizando e explicitando a comparação entre as fontes dentro da própria escrita. Assim, o leitor tem acesso ao processo de argumentação, às contradições que se transformam em indícios e às evidências que se sustentam inclusive nessas diferenças, pois são através delas que o autor poderá comparar, questionar e, retoricamente, apresentar os caminhos do provável. Nesse sentido, ao contrário da crítica de Veyne de que “as lacunas da história se fecham espontaneamente a nossos olhos e que só as discernimos como esforço”, elas se transformam em um recurso para alcançarmos o saber. É verdade que isso não resolve o problema, mas não negar a existência de exclusões, esquecimentos e a impossibilidade de um discurso totalizante reforça a disponibilidade desta metodologia para questionar os seus lugares de enunciação.

Ao invés de revelar a fragilidade e inconsistência da história oral, explicar os procedimentos de coleta de dados e análise a partir do meio de sua elaboração não exclui a concepção de que a história tem critérios e regras, mas obriga o

46 GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

47 GINZBURG, Mitos, emblemas...48 GINZBURG, Mitos, emblemas...49 GINZBURG, Mitos, emblemas...50 Segundo Rouverol, “história oral colaborativa (...) envolve engajar nossos entrevistados na análise das

entrevistas que produzimos e/ ou na criação de quaisquer produtos provenientes dessas entrevistas. Pesquisa colaborativa é baseada na premissa que autoridade não permanece exclusivamente nas mãos do pesquisador”. ROUVEROL, Alicia J. Collaborative oral history in a correctional setting: promisse and pitfalls. The Oral History Review, Berkeley, v. 30, n. 1, 2003, p. 62-63. Disponível em: < http://ohr.oxfordjournals.org/>. Acesso em: 02 jul. 2010. Tradução nossa.

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historiador a expô-los e justificá-los, reforçando a ideia de que retórica e prova não são antagônicas.

A identificação da prova como núcleo racional da retórica, defendida por Aristóteles, se contrapõe, decididamente, à versão auto-referencial da retórica hoje difundida, baseada na incompatibilidade entre retórica e prova. Como foi possível remover, tão radicalmente, a tese central de um dos textos fundamentais da nossa tradição intelectual? Como foi possível dar por certa a idéia, profundamente ingênua, de que a noção de prova é uma ilusão positivista?51

Ao trabalhar com entrevistas gravadas, o pesquisador seleciona trechos e os compara, sincrônica e diacronicamente, no próprio texto para desenvolver uma argumentação. Entretanto, tanto para o leitor como para aquele que cedeu a entrevista, não se oblitera que o que se insere das transcrições é apenas um fragmento entre tudo o que foi colhido, devido ao recorte temático e espaço-temporal do projeto. Se pesquisarmos o que a população entende e classifica como patrimônio cultural, os intervalos selecionados serão aqueles que tratam desse assunto no período abrangido. Desta forma, ao contrário de induzir o entrevistado/ leitor a aceitar tal conclusão, ele é convidado a refletir e questionar as evidências e indícios apresentados. Assim sendo, a ideia de colaboração, tão citada na história oral, não se realiza apenas na produção da fonte, mas também na iniciativa do projeto de instigá-lo à crítica durante a leitura do texto final.

Um julgamento é que, ao receber o texto produzido pelo pesquisador, o entrevistado não se sentirá confortável para a crítica e muito menos para solicitar mudanças ao perceber o aspecto acabado, finalizado e conclusivo do documento. É por isso que em projetos que priorizam a participação e a mediação torna-se necessário sempre a valorização do interlocutor, demonstrando o seu papel e importância para o sucesso da pesquisa. Além disso, por mais que o colaborador atribua uma autoridade ao pesquisador, sua leitura sempre estará ligada às suas experiências e aos grupos aos quais ele pertence, o que desmistifica uma ideia de dominação e homogeneização interpretativa e enfatiza as diferentes formas de recepção, como faz Barbero52 ao discutir as relações entre a cultura de massa e popular.

Com este pressuposto, buscamos um diálogo contínuo com os participantes da pesquisa, sempre considerando os meios de contato e a linguagem a ser utilizada com cada pessoa e em cada momento. Desde o primeiro encontros, explicamos os nossos objetivos e a importância da colaboração para que eles fossem alcançados. Do mesmo modo, por sabermos que uma autoridade compartilhada também impossibilita que o pesquisador tenha controle de todos os desdobramentos do projeto, ainda discutimos os limites de cada intervenção, para que não houvesse dúvidas sobre as possibilidades de mudanças nos textos produzidos.

51 GINZBURG, Relações de força..., p. 74.52 BARBERO, Jesus Martín. Memoria narrativa e industria culturale. La Ricerca Folklorica, San Zeno

Naviglio, n. 7, abr. 1983, p. 9-17. Disponível em: <http://www.jstor.org/>. Acesso em: 24 mar. 2010.

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Certeau53 também observa que as citações (notas, remetimentos, inserções) estabelecem a falsa ideia de um “saber do outro”, pois, ao serem recortadas e inseridas em contextos diferentes, perdem o seu significado primário54. Para ele, desdobrando a história em discursos que não foram elaborados pelo pesquisador, o relato torna-se verossímil, produz credibilidade e reforça a autoridade daquele que os cita. Assim, “nesta posição na qual não tem mais nada de próprio, [a citação] permanece susceptível de trazer; como em sonho, uma estranheza inquietante: poder sub-reptício e alterador do recalcado”55.

É verdade que em história oral esse risco é ainda maior por colocar a citação das entrevistas como o cerne do conhecimento, reforçando a ideia do outro. No entanto, por outro lado, ao permitir que o entrevistado participe e leia os textos elaborados, ele é o primeiro a perceber como a sua fala é fragmentada e reempregada na escrita e, portanto, torna-se capaz de exigir mudanças que ao menos respeitem suas opiniões. Em nossa pesquisa, por exemplo, em um dos encontros com os participantes, uma entrevistada expôs que percebera que um trecho de sua entrevista utilizado no texto não expressava bem o seu pensamento. Desta forma, pediu para reler e modificar algumas partes, o que foi incentivado. Porém, depois de uma nova leitura, a mesma disse que deixaria a transcrição como estava, pois concluiu que o parágrafo anterior escrito pelo pesquisador complementava e explicava o que ela desejou expressar no momento da entrevista. Logo, nesse percurso, a participante repensou as maneiras como as suas falas foram utilizadas no texto, as prioridades estabelecidas, e mais do que aquele trecho dizia, analisou os sentidos que ele adquiriu ao ser vinculado e comparado com outros discursos, seja dos colaboradores como do pesquisador.

Confortáveis para participar, os entrevistados expressaram suas impressões sobre os escritos produzidos, reclamaram por reformulações e inseriram correções, demonstrando disposição para rever seus argumentos e mesmo refletir sobre como a história estava sendo contada. Alguns dos participantes até solicitaram mudanças em suas transcrições não porque discordavam do que haviam dito, mas por acreditarem que o leitor poderia entender de uma forma não desejada o que eles queriam dizer. Assim sendo, além de divulgar suas opiniões, os entrevistados também questionaram as maneiras como cada texto poderia ser interpretado, mostrando-se atentos com o que gostariam ou não de ver publicado. Se isso significa que em alguns momentos eles evitaram entrar em temas polêmicos e constrangedores, por outro lado fez com que refletissem sobre as diferentes recepções dessa narrativa e, consequentemente, pensassem sobre como cada assunto abordado nas entrevistas era visto pela sociedade.

Outro ponto é a natureza lacunar da história, reforçando a ideia de que ela é apenas uma interpretação subjetiva ou uma ficção que pode ser escrita de várias maneiras. Concordamos que a linguagem permite a apresentação da história em mais de uma forma e que um mesmo período pode ser abordado a partir de diferentes acontecimentos, mas não porque ela é incapaz de superar o relato, e sim pela necessidade de selecionar o que será estudado em um recorte espaço-temporal. Na história oral, especificamente, um conjunto de entrevistas nunca poderá ser visto

53 CERTEAU, A escrita da história, p. 24954 CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, p. 15.55 CERTEAU, A escrita da história, p. 249.

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como a síntese do social, uma explicação totalizante, mas respostas para perguntas desenvolvidas no presente. Como mostra Bloch, “o passado é, por definição, um dado que nada mais modificará. Mas o conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que incessantemente se transforma e aperfeiçoa”56.

O conhecimento histórico é produzido sob o olhar dos entrevistados, que, por não se distanciarem de sua produção, não são induzidos a pensar que os textos elaborados são a única forma de contar a história. Em nossa pesquisa, ao perceberem que a escrita privilegia certos assuntos e linguagem, os participantes não se intimidarem em solicitar mudanças ou revisões, pois sabiam que por trás de cada trecho podia haver interesses (da pesquisa, do pesquisador, da universidade, etc.) que muitas vezes não eram os deles57.

E, por fim, ao questionarmos a possibilidade do entrevistado ser um produtor/ autor consciente de seu discurso ou apenas um reprodutor de convenções e representações sociais, concluímos que nossa posição não se encontra em nenhuma das extremidades, mas na capacidade de crítica e reflexão do indivíduo, ou seja, uma característica de autonomia, sem se desvincular, o que consideramos impossível, do meio no qual ele se situa, que o influencia. Ginzburg58, por exemplo, utiliza as relações entre as classes dominantes e subalternas para defender a noção de “circularidade”, emprestada de Mikhail Bakhtin. Para ele, não há nem dominação nem autonomia absoluta entre essas classes, e as criações culturais se desenvolvem em um sistema de trocas que permite um equilíbrio das forças. No nosso caso, recorremos à noção de circularidade para pensar a relação entre o individual e o social, e ao invés de privilegiar apenas um aspecto da memória, como muitas vezes se fez ao pensá-la somente por quadros coletivos, também discutimos a sociedade por meio de discursos individualizados. Ao mesmo tempo, a escrita dos textos se fundamentou em uma relação dialógica, de contato contínuo, na qual pesquisador e entrevistados negociavam o que era de interesse tanto para a pesquisa como para aqueles que se dispunham a defender e publicar suas opiniões, fazendo das fontes orais não somente um material de consulta, mas um instrumento para provocar reflexões.

56 BLOCH, Marc. Apologia da história ou O ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 75.

57 Para Certeau, “antes de saber o que a história diz de uma sociedade, é necessário saber como funciona dentro dela. Esta instituição se inscreve num complexo que lhe permite apenas um tipo de produção e lhe proíbe outros. Tal é a dupla função do lugar. Ele torna possíveis certas pesquisas em função de conjunturas e problemáticas comuns. Mas torna outras impossíveis; exclui do discurso aquilo que é sua condição num momento dado; representa o papel de uma censura com relação aos postulados presentes (sociais, econômicos, políticos) na análise”. CERTEAU, A escrita da história, p. 76-77.

58 GINZBURG, O queijo e os vermes..., p. 10.

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RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar os limites e contribuições da história oral para uma discussão sobre a fronteira entre o individual e o coletivo na construção mnemônica, permitindo, entre outras coisas, um questionamento sobre a idéia de autonomia e/ ou dominação/ reprodução discursiva nos relatos produzidos. Ao mesmo tempo, pretende-se abordar a possibilidade da narrativa elaborada pela história oral incentivar nos entrevistados uma reflexão crítica sobre a sociedade e suas experiências pessoais, demonstrando suas especificidades na escrita da história. Em relação ao papel da memória, analisamos as diferenças de pensamento entre Maurice Halbwachs, com sua teoria dos quadros sociais de memória, e Walter Benjamin/ Hannah Arendt, que identificam, na modernidade, o declínio da experiência coletiva e tradição. Já sobre a construção de uma narrativa por meio de entrevistas, dialogamos com Michel de Certeau, Paul Veyne e Carlo Ginzburg para uma discussão sobre a validade de alguns tópicos da teoria da história para o contexto de produção da história oral.

Palavras Chave: Entrevista; Memória; História Oral; História.

ABSTRACT

The aim of this paper is to analyze the limits and contributions of the oral history for a discussion of the boundary between the individual and the collective in the construction mnemonic, allowing, among other things, a questioning on the idea of autonomy and/ or reproduction/ domination in the narratives produced. At the same time, it is intended to approach the possibility of the narrative developed by the oral history to stimulate in the interviewees a critical reflection on the society and their personal experiences, demonstrating its specificities in the writing of history. Regarding the role of the memory, we analyzed the differences of thought between Maurice Halbwachs, with his theory of social frameworks of memory, and Walter Benjamin/ Hannah Arendt, who identify, in modernity, the decline of the collective experience and tradition. On the construction of a narrative through interviews, we dialogued with Michel de Certeau, Paul Veyne and Carlo Ginzburg for a discussion on the validity of some topics of the theory of history to the production context of oral history.

Keywords: Interview; Memory; Oral History; History.

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CULTURA HISTÓRICA, MEMÓRIA E COMEMORAÇÕES: O CENTENÁRIO DE

NASCIMENTO DO PRESIDENTE JOÃO PESSOANA PARAÍBA EM 1978

Genes Duarte Ribeiro1

Reinventar o Passado: Comemorar Para Não Esquecer

Na opinião de Gaddis o passado é como algo que nunca poderemos possuir, “porque quando percebemos o que aconteceu, os fatos já estão inacessíveis para nós: não podemos revivê-los, recuperá-los, ou retornar no tempo como um experimento de laboratório ou simulação no computador”2.

Lowenthal concorda com a expressão que define o passado como “um país estrangeiro”, justifica que pela sua distância com o presente, o passado vive apenas como uma imagem idealizada e romantizada da história. No entanto, apesar desta separação entre o “passado” e o “presente” o autor afirma que “o passado nos cerca e nos preenche; cada cenário, cada declaração, cada ação conserva um conteúdo residual dos tempos pretéritos”3.

Neste caso, os acontecimentos e experiências vividas se tornam partes integrais da nossa existência e constituem as nossas lembranças do passado, porém quando reconhecemos que os nossos gestos, palavras, regras e artefatos advêm dele, não somente recordamos, mas tomamos consciência deste passado, isto é:

Uma consciência do passado mais completa envolve familiaridade com processos concebidos e finalizados, com recordações daquilo que foi dito e feito, com histórias sobre pessoas e acontecimentos – coisas comuns da memória e da história.4

Sendo assim, “todo ser humano tem consciência do passado”5, pois o passado é o período anterior aos eventos que ficam registrados na memória de um indivíduo. Porém, para Hobsbawm o que se constitui problema para os historiadores é analisar a natureza desse “sentido do passado” nas sociedades, incluindo as suas mudanças e transformações. Nesse caso, o autor investe contra os pensadores que considerariam o passado como apenas um “construto de nossas mentes”6.

Entretanto, no dizer de Le Goff duas situações conduzem para um “ceticismo” sobre a possibilidade de conhecer o passado, ou seja, a constatação de que a visão

1 Mestre em História pela Universidade Federal da Paraíba. Professor da Rede Estadual de Ensino da Paraíba. E-Mail: <[email protected]>.

2 GADDIS, John Lewis. Paisagens da História: como os historiadores mapeiam o passado. Rio de Janeiro: Campus, 2003.

3 LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado. Projeto História, São Paulo, PUC-SP, n. 17, nov. 1998, p. 28-46.

4 LOWENTHAL, Como conhecemos..., p. 47-63.5 HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.6 HOBSBAWM, Sobre História..., p. 22.

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de um mesmo passado muda segundo as épocas e que o historiador está submetido ao tempo em que vive, ou de eliminar as referências do presente, nesse caso o autor cita a “ilusão da história romântica à maneira de Michelet – a ressurreição integral do passado”, e a história positivista à Ranke – “aquilo que realmente aconteceu”7.

Portanto, Le Goff conclui com a seguinte afirmação: “o interesse do passado está em esclarecer o presente; o passado é atingido a partir do presente segundo, o método regressivo de Bloch”8.

Para exemplificar as diferentes “atitudes coletivas perante o passado” o autor apresenta a Antiguidade pagã, onde predominava a valorização do passado através das “recordações das épocas heróicas” ou ainda da “moralidade dos antigos”, lembramos aqui que em Roma paralelamente se admitia a ideia de um presente decadente.

Encontramos em Le Goff uma constatação interessante sobre a história hebraica encontrada na Bíblia, ou seja, por um lado o judaísmo tem o fascínio pelo seu passado, que envolve suas origens, desde a criação do mundo até a aliança de Yavéh com o seu povo, mas, por outro, argumenta o autor que “essa história também é voltada para um futuro igualmente sagrado: a vinda do Messias e da Jerusalém celeste que, com Isaías, se abre a todas as nações”9.

Há três momentos distintos de experiência com o tempo que são descritos por Le Goff durante a Idade Média, ou seja, a atração que se tem pelos “tempos míticos do Paraíso”, a espera de um “futuro escatológico” como também, um passado constante atualizado no presente: “O homem da Idade Média vive num constante anacronismo”10.

Seguindo a sua narrativa, o Renascimento apresenta duas tendências contraditórias. Para ele, parece que, de um lado, os progressos que foram realizados na medição, datação e cronologia permitem uma perspectiva histórica do passado, mas, é feita uma ruptura a partir do progresso científico que serviu ao otimismo iluminista onde Le Goff conclui que a “superioridade dos modernos sobre os antigos e a idéia de progresso torna-se o fio condutor do historiador que se orienta para o futuro”.

O autor encerra seu vasto esquema entrando na grande “manufatura do passado” ocorrida na França no século XIX, quando a “glória da França” era exaltada nos teatros, nas pinturas históricas, na água-forte, na gravura em madeira e na litografia, o “gosto romântico pelo passado” que alimentou os movimentos nacionalistas europeus 7 LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003.8 Marc Bloch propôs também ao historiador, como método, um duplo movimento: compreender o

presente pelo passado, compreender o passado pelo presente: “A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas é talvez igualmente inútil esgotar-se a compreender o passado, se nada se souber do presente”. Daí a importância da recorrência em história: “Seria um erro grave acreditar que a ordem adotada pelos historiadores nas suas investigações se deve modelar necessariamente pela dos acontecimentos. Para restituir à história o seu verdadeiro movimento, seria muitas vezes proveitoso começar por lê-la ‘ao contrário’, como dizia Maitland”. Esta concepção das relações passado/ presente desempenhou um grande papel na revista Annales – fundada em 1929 por Lucien Febvre e Marc Bloch –, que inspirou e deu nome à revista de história britânica Past and Present, a qual, no primeiro número, em 1952, declarou: “A história não pode, logicamente, separar o estudo do passado, do estudo do presente e do futuro”. BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

9 LE GOFF, História e Memória, p. 220.10 LE GOFF, História e Memória, p. 222.

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também ocorridos no século XIX e, por fim, a “aceleração da história” que fez as massas dos países industrializados ligarem-se nostalgicamente às suas raízes.

Essa forma de ligação com o passado se dá através de algumas manifestações descritas pelo autor: “a moda retrô, o gosto pela história e pela arqueologia, o interesse pelo folclore, o entusiasmo pela fotografia, criadora de memórias e recordações, o prestígio da noção de patrimônio”11.

Para Arruda, essa intrínseca relação entre “passado e presente” ocorre através de uma condição constante de reorganização do “evento do passado” pelo presente. Dentro dessa perspectiva o autor afirma que as sociedades não somente exprimem seu passado através das narrativas, mas, que a partir de outras dimensões apresentam a mesma vivacidade do passado e que se constituem focos essenciais para a organização da memória coletiva12.

Essa ressignificação permanente ocorre a partir da apropriação identitária do passado através de uma variedade de possibilidades, uma delas, que discutiremos aqui, é “o exercício da rememoração” ou ainda, as “reconstruções memorialísticas”.

Dessa forma Cardoso atribui à comemoração um processo ativo e dirigido da memória coletiva, a partir do presente, configurando-se como um poder de integração de sentidos, que é social, da reconstrução de uma identidade do evento, que deve ser digna de memória. Sendo assim, essa reconstrução é seletiva, sempre a partir do presente, e neste sentido o esquecimento, também como processo ativo, é constitutivo da comemoração e do seu poder de integração social de sentidos e de reconstrução da identidade do evento13.

É válido ressaltar que, a partir do significado etimológico da palavra comemoração, do latim, commemoratio, Cardoso sugere “um significado de um processo ativo e dirigido (ratio) da memória, um fazer lembrar, a partir de uma posição indicada pelo prefixo co, de conjunto, por extensão, social, coletiva”14.

Por sua vez Le Goff, utiliza a argumentação de que a comemoração, ou o ato de comemorar, organiza o evento passado, a partir de um tempo histórico que é sempre o do presente. De fato, como o mesmo autor afirma, o que sobrevive da memória coletiva são escolhas e não o conjunto daquilo que existiu no passado15. Por sua vez, compreendemos que “comemorar significa, reviver de forma coletiva a memória de um acontecimento considerado como ato fundador, a sacralização dos grandes valores e ideais de uma comunidade constituindo como objetivo principal”16.

Dessa forma,

A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade,

11 LE GOFF, História e Memória, p. 228.12 ARRUDA, José Jobson Andrade de. Cultura Histórica: territórios, temporalidades historiográficas.

Saeculum – Revista de História, João Pessoa, DH/PPGH/UFPB, n. 16, jul./ dez. 2007, p. 25-32.13 CARDOSO, Irene. 68: a comemoração impossível. Tempo Social, São Paulo, USP, v. 10, n. 2, out.

1998, p. 1-12.14 CARDOSO, 68: a comemoração..., p. 2.15 LE GOFF, História e Memória, p. 230.16 SILVA, Helenice Rodrigues da. Rememoração/ Comemoração: as utilizações sociais da memória.

Revista Brasileira de História, São Paulo, ANPUH, v. 22, n. 44, 2002, p. 425-438.

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mas também as oposições irredutíveis.17

Diferentes grupos da sociedade constroem suas memórias coletivas a partir das quais são montadas práticas, ritos, celebrações, comemorações e monumentos. Como a memória coletiva é uma construção social torna-se importante, então, como o autor já citado afirma, conhecer os “processos e os atores que intervêm no trabalho de constituição e formalização das memórias”.

Sendo assim, sobre os usos e tentativas de “manipulação da memória” através das comemorações, Le Goff lembra que a Revolução Francesa foi pródiga em construir símbolos nacionais capazes de garantir coesão social em substituição à antiga tradição monárquica e aristocrática. Bandeira, hino, datas comemorativas, cerimônias, procissões, marchas, festas para a deusa da razão e heróis objetivavam garantir a obediência, a lealdade e a cooperação dos súditos, ainda mais quando estes se tornaram cidadãos.

A utilização da festa revolucionária a serviço da memória nos aponta que comemorar fez parte do programa revolucionário. As comemorações alimentam a recordação da revolução. A própria Constituição Francesa de 1791 expressa este princípio, ao declarar: “Serão estabelecidas festas nacionais para conservar a recordação da Revolução Francesa”. A alteração do calendário pode ser tomada como um exemplo extremo de que controlar o tempo se torna essencial ao poder.

Le Goff ressalta que o “calendário revolucionário respondia a três objetivos: romper com o passado, substituir pela ordem a anarquia do calendário tradicional, assegurar a recordação da revolução na memória das gerações futuras”. Ou seja, para uma ruptura com o passado monárquico o início do calendário foi escolhido para fazer coincidir o dia da proclamação da República francesa com o equinócio de outono. A mudança do regime na França teria sido assim, um “milagre simultâneo” acompanhando a passagem do sol de um hemisfério a outro. O autor afirma ainda que foi através das datas instituídas para comemoração que os revolucionários franceses pretendiam garantir o futuro da Revolução perpetuando “a recordação e a vitalidade”18.

Para Ozouf a festa cívica é um rico momento ritualístico que permite um retrato, tanto dos discursos que pretendem dar forma e unidade ao coletivo nacional, quanto, aguçando o olhar, perceber as fragilidades e os conflitos internos e inerentes a essa pretensa unidade. Acima disso, entretanto, comemorar é ter a capacidade de anular, ou no mínimo de suspender indefinidamente os conflitos.

A autora também ressalta que toda comemoração vive da afirmação obsessiva do mesmo. Os programas das festas, os planos para os cortejos, os projetos de monumentos e os discursos martelam quatro afirmações pelo menos: de que nos honramos de ser os mesmos (entre eles), nós somos todos os mesmos (entre nós), nós somos sempre os mesmos que antes, nós permaneceremos os mesmos. Não há comemoração sem este conjunto, sem este permanente conjunto19.17 POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, CPDOC-

FGV, v. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br/>. Acesso em: 20 abr. 2007.

18 LE GOFF, História e Memória, p. 423.19 OZOUF, Mona. A Festa: sob a Revolução Francesa. In: LE GOFF, Jacques & NORA, Pierre (orgs.).

História: Novos Objetos. Tradução de Terezinha Marinho. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989, p.

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Os usos do passado, assim entendidos, passam a ser vistos como um campo de tensão de forças distintas e opostas. Esse entendimento permite pensar, teoricamente, que nesse território, nesse continente vastíssimo da memória, em um dos gêneros a ele referidos que são as comemorações cruzam-se valores, linguagens, práticas culturais, tradições, marcos a serem lembrados e rituais coletivos: “A comemoração pretende exorcizar o esquecimento”20.

No mundo ocidental percebemos uma acentuada “Cultura Histórica” nas comemorações. Concordamos com Abreu, Soihet e Gontijo quando afirmam que a investigação da cultura histórica é “bastante complexa”. No entanto, como categoria descritiva as autoras delineiam a seguinte noção:

um conjunto de fenômenos histórico-culturais representativos do modo como uma sociedade ou determinados grupos lidam com a temporalidade (passado-presente-futuro) ou promovem usos do passado. Neste sentido é possível pensar culturas históricas concorrentes, conflitantes ou concomitantes em um mesmo período ou local.21

Do mesmo modo, Gomes afirma “que os homens constroem e reconstroem permanentemente o seu passado” e dentro dessa operação está em conexão à formulação de uma identidade nacional e um aparelho de Estado. Portanto, entende que “cultura histórica” é “a relação que uma sociedade mantém com o seu passado”. Mas adverte a autora,

Assim, se os historiadores podem continuar sendo considerados os principais formuladores e intérpretes da ‘cultura histórica’ de uma sociedade em determinado momento, eles não detém o monopólio desse processo de construção, atuando interativamente com outros agentes que não homens do métier e que freqüentam outras esferas disciplinares ou ocupam outras funções sociais ‘fora’ do campo intelectual.22

Compreendemos que a cultura histórica abrange uma diversidade de operações as quais incluem as comemorações, entendidas aqui como investimentos empreendidos pelo poder público em função de suas lutas e bandeiras políticas, ou seja, os vários “usos do passado”. Aqui no Brasil temos alguns exemplos de comemorações que se tornam momentos valiosos para a observação de como os homens percebem o seu próprio tempo e de como a imprensa participa desta construção de uma inteligibilidade acerca do presente: Centenário da Independência (1922); Centenário da Abolição (1988) e da Proclamação da República (1989); o Tricentenário de

216-232.20 OLIVEIRA, As Festas que a República manda guardar. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, CPDOC-

FGV, v. 2, n.4,1989, p. 172-189. Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br/>. Acesso em: 15 abr. 2007.

21 ABREU, Martha; SOIHET, Rachel & GONTIJO, Rebeca (orgs.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

22 GOMES, Ângela de Castro. Historia e historiadores. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.

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Zumbi dos Palmares (1995); Centenário da Guerra de Canudos (1993-1997); o V Centenário do descobrimento (2000); Bicentenário da vinda da família real e o Centenário de Machado de Assis (2008).

Nesta linha de reflexão, em 26 de julho de 1977 o governador do Estado da Paraíba, Ivan Bichara Sobreira cria, através de um Decreto, uma Comissão para organizar os eventos a serem cumpridos durante o ano do Centenário do Presidente João Pessoa no estado. Por este documento oficial estariam na programação 35 itens, iniciando pelas comemorações de 24 de janeiro até o encerramento previsto em 22 de outubro de 1978. A primeira data era a abertura dos “festejos comemorativos” ao nascimento de João Pessoa, enquanto que a segunda celebrava o dia da sua posse como Presidente da Paraíba.

As reuniões para planejamento e discussão sobre a programação do centenário já tinham sido iniciadas no ano anterior, quando os membros da Comissão Executiva do evento se reuniram com o governador, Ivan Bichara, e o secretário de educação do estado, Tarcísio Burity, no Palácio da Redenção.

Durante aquele ano um número significativo de livros estavam programados para serem lançados, em cada lançamento os seus autores foram convidados para apresentarem suas obras e dialogar em universidades com professores e alunos sobre seu conteúdo (QUADRO I). Não temos a pretensão de discuti-los, uma vez que nos remeteria para uma discussão historiográfica que extrapolaria os objetivos deste artigo, no entanto, faremos breves comentários de algumas obras, no decorrer dessa narrativa a fim de percebemos, a partir dos títulos e autores, o caráter apologético ou não dos mesmos.

Outras atividades também estavam para ser realizadas naquele ano, bem como palestras, exposição volante de fotografias de João Pessoa, solenidades públicas, sessões solenes na Assembleia Legislativa em memória “da morte”, do “dia do Nego” e da “mudança do nome da capital paraibana para João Pessoa” e, ainda, partidas de jogos de futebol em Porto Alegre com as equipes de jogadores paraibanos e gaúchos.

Tais práticas tornam-se momentos valiosos para se pensar como a sociedade articula essas atividades e expectativas com a trajetória histórica e política de João Pessoa e como ela confere sentido a esta trajetória a partir da oficialização dessas festividades num “ciclo” que pretendia “celebrar” todos os “passos” de João Pessoa cem anos depois do seu nascimento. Igualmente o jornal A União publicou cinco cadernos especiais para acompanhar o calendário festivo, ou seja, em 24 de janeiro, em 26 julho, 29 de julho, 4 de setembro e 22 de outubro. Os cadernos especiais seriam lançados nas seguintes datas: 24 de janeiro – depoimentos e cobertura da festa do Centenário do nascimento na cidade de Umbuzeiro; 26 de julho – discussão e ritual de comemoração pela morte; 29 de julho – comemoração do “dia do Nego” em Campina Grande; 04 de setembro – o 48° aniversário da mudança do nome da capital para João Pessoa e, 22 de outubro, o 50° aniversário de posse de João Pessoa no estado da Paraíba.

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QUADRO I – PROGRAMAÇÃO DO LANÇAMENTO DOS LIVROS

O que observamos é que, desde o assassinato de João Pessoa, em 26 de julho de 1930, o personagem já foi tratado pela imprensa, pelas autoridades civis e religiosas e pelas pessoas comuns como o “mártir da Paraíba”. Essa difusão permaneceu em celebrações e romarias anuais aos “pés do monumento” que foi erguido na praça da capital e essa divinização encontra fôlego com a apoteose do seu enterro no Rio de Janeiro.

Outro ponto a considerar é a necessidade da elaboração de um calendário que atendia a um programa político intimamente ligado a um projeto de reconstrução do passado. No QUADRO II podemos observar alguns eventos a serem cumpridos naquele ano, e as diversas atividades, bem como o público alvo a serem atingidos.

Esse calendário de eventos ao eleger e selecionar datas a serem festejadas, indica o que deve ser lembrado e, consequentemente, os esquecimentos. Composição de hinos, inaugurações, concursos de redação, hasteamento de bandeiras, nomeação de escolas com o nome de João Pessoa e de seus familiares, exposição de fotografias, desfiles cívicos são atividades decisivas na constituição da memória coletiva oficializada.

Sendo assim, observaremos esta rememoração histórica divulgada nos jornais

DIA/ MÊS DO LANÇAMENTO NOME DA OBRA AUTOR (A)

14 de fevereiro João Pessoa, perfil de um homem público Humberto Melo

Abril João Pessoa e a música Domingos de Azevedo Ribeiro

Maio 1930: História de uma revolução na Paraíba Adhemar Vidal

Maio(2ª quinzena) O ano do Négo José Américo de Almeida

JunhoA Revolta de Princesa: uma contribuição

ao Estudo do Mandonismo local – Paraíba 1930

Inês Caminha Rodrigues

Julho Folhetos de cordel: a morte de João Pessoa Luiz Nunes

Agosto João Pessoa perante a História José Octavio de Arruda Mello

Agosto Soldado paraibano: orgulho do grande Presidente Eurivaldo Caldas Tavares

Setembro Nas vésperas da Revolução Álvaro de Carvalho

Setembro João Pessoa o sentido de uma época e de uma vida Epitácio Pessoa Albuquerque

Setembro História da Paraíba Mª Carmem de Miranda Freire

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através de reportagens em A União, O Norte23 e o Diário da Borborema24, no período em que estes jornais publicizaram os festejos do centenário.

QUADRO II – ALGUNS EVENTOS PROGRAMADOS PARA O ANO CENTENÁRIO DO PRESIDENTE JOÃO PESSOA

(PARAÍBA, JANEIRO/ OUTUBRO 1978)

23 O jornal O Norte foi fundado em 7 de maio de 1908, pelos irmãos Oscar e Orris Soares, filhos de comerciantes portugueses que fizeram fortuna na capital paraibana, à época chamada Parahyba do Norte, que do nome da cidade, provavelmente teria surgido a marca O Norte. Em 1930, o jornal se colocou como opositor do então Presidente da Parahyba, João Pessoa na candidatura a sucessão presidencial. Com o assassinato de João Pessoa teve suas dependências depredadas, máquinas e materiais destruídos. Em 1954, o Jornal passou a integrar o quadro dos Diários Associados. Fonte: <http://jornal.onorte.com.br/>.

24 O Diário da Borborema foi criado em 2 de outubro de 1957, na cidade de Campina Grande, dentro da Rede dos Diários Associados, como uma promessa do então senador Assis Chateaubriand, cumprido em pleno exercício de seu mandato. Nos anos 70 ostentava em suas páginas a circulação, que atingia 62 municípios paraibanos. Fonte: <http://jornal.onorte.com.br/>.

1

Na cidade de Umbuzeiro, abertura dos festejos comemorativos do Centenário do Presidente João Pessoa, pelo Exmo. Sr. Governador prof. Ivan Bichara Sobreira, com

missa concelebrada; desfile cívico- estudantil; concentração em frente à casa onde nasceu o homenageado na Fazenda Prosperidade, inauguração de calçamento e Grupo Escolar, pela prefeitura Municipal de Umbuzeiro. Inauguração da agência do Banco do Estado da Paraíba

e CIDAGRO pelo governo da Paraíba; oficialização do decreto da criação do Colégio Estadual de 1º e 2º graus Presidente João Pessoa; queima de fogos de artifício e a realização

de retretas e recitais em praça pública. (24/01, em Umbuzeiro)

2 Abertura do Centenário do Presidente João Pessoa em todas as cidades da Paraíba, com programação a cargo das prefeituras municipais e o MOBRAL (24/1)

3

Lançamento do concurso nacional da Sociologia Política sobre o Presidente João Pessoa. Oficialização do II Seminário Paraibano de Cultura Brasileira tendo por tema “João Pessoa

em face da Revolução de 30” Lançamento do concurso de cartazes e dissertações e apresentação de livros

4 Lançamento de concurso. Livros referentes a João Pessoa e debate sobre o livro da professora Inês Caminha (em Campina Grande, Universidade Regional do Nordeste)

5Seminário dos Centros Cívicos estaduais para estabelecimento de calendário estadual de palestras e debates sobre João Pessoa, na área dos diversos colégios estaduais em João

Pessoa (Centro de Treinamento do Miramar)

6 Início da exposição fotográfica volante sobre João Pessoa, a estender-se posteriormente, aos diversos colégios estaduais da Paraíba (Março)

7 Jogo de futebol entre as equipes da Paraíba e Rio Grande do Sul em Porto Alegre (julho)

8 Solenidades públicas em todas as cidades da Paraíba, de preferência em praças e ruas com denominação do homenageado (26 de julho)

9Exposição itinerante sobre o Presidente João Pessoa nas cidades de Belo Horizonte e Porto

Alegre, sob coordenação da PB-TUR, e Superintendência da Comunicação Social do Governo do Estado, com apoio da Companhia Aérea VASP (julho)

10Comemoração do 48º aniversário de morte do Presidente João Pessoa, com programação organizada pelo governo do Estado, Tribunal de Justiça e Assembleia Legislativa. (em João

Pessoa, 26 de julho)

11 Comemoração do “dia do Négo” com programação cultural e de inaugurações coordenadas pelo Governo do Estado e Prefeitura Municipal de Campina Grande (29 de julho)

12 Comemoração do 48º aniversário da mudança do nome da capital paraibana para João Pessoa, com programação a cargo da Prefeitura Municipal de João Pessoa, (4 de setembro)

13

Encerramento das comemorações do Centenário do Presidente João Pessoa com entrega de prêmios de todos os concursos literários realizados e programação, presidida pelo Exmo. Sr. Governador do Estado, a ser organizado pelo Governo da Paraíba (em João Pessoa, 22 de

outubro, data do 50º aniversário da posse de João Pessoa na presidência da Paraíba)

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A Mitificação do Nascimento do Presidente João Pessoa:o Mistério de Umbuzeiro?

Quando inferimos o pensamento sobre o mito geralmente se invoca uma ideia de falsidade, ficção, enganação ou ilusão que está ligado aos aspectos religiosos e mágicos, percebemos a necessidade de abordar em primeiro lugar, uma concepção deste conceito, sabendo das limitações que encontraremos em realizar essa tarefa, por isso recorremos à explicação etimológica desta palavra:

A palavra mito vem do grego, mythos, e deriva de dois verbos: do verbo mytheyo (contar, narrar, falar alguma coisa para outros) e do verbo mytheo (conversar, contar, anunciar, nomear, designar).25

Dessa forma, temos em Felix26, uma definição que nos orienta em relação à narrativa mítica, tirada das experiências gregas, nas quais “o mito é um discurso pronunciado ou proferido para ouvintes que recebem como verdadeira, a narrativa que escutam” sendo assim, a predominância da oralidade possibilitava aos poetas-cantores o registro e anúncio dos acontecimentos baseados na autoridade do seu testemunho comunicando aos ouvintes confiabilidade e veracidade de sua narrativa. Esses mitos eram distintos em três níveis: o da coisa falada, o da coisa mostrada e da coisa desempenhada. Entretanto os três entrariam sucessivamente no rito, tanto na contemplação tranquila de suas palavras como também em sua recitação.

A autora citada lembra que os poetas exerciam a tarefa de lembrar, sacralizando a memória dentro de um tempo não cronológico, pois a partir do seu canto verificamos que “antes mesmo da instituição da razão como instrumento de compreensão do mundo, no século V a. C. a memória já era valorizada como imprescindível à coesão dos laços sociais”. De fato, o fundamento mito-poético desempenhava um papel que articulava a memória e a imaginação. Lembra ainda a autora que essa aproximação entre memória e imaginação implica em uma noção de tempo que associa “o rememorar ao reinventar”.

Ainda segundo Félix no processo de transição entre o mito-poético para a razão-sagrado na Grécia, a palavra do aedo27 vai sendo substituída pela do historiador, que no seu papel de sentido social, exerce a função de trazer a memória dos mortos (dos fatos já passados) para os vivos.

A diferença entre o poeta e o historiador reside na concepção do tempo, uma vez que a palavra mítica reside na atemporalidade, a histórica se baseia na temporalidade. Os homens deveriam ser igualados à natureza, os seus feitos e palavras se erguem por si mesmos, não poderiam ficar no esquecimento porque são façanhas históricas, ou seja:

25 CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 12. ed. São Paulo: Ática, 1999.26 FÉLIX, Loiva Otero. História e memória: a problemática da pesquisa, Passo Fundo: Ediupf, 1998.27 Poeta cantor na sociedade arcaico-grega tinha uma função específica: a de celebrar os imortais

bem como as façanhas dos homens corajosos. Em uma sociedade que valorizava a excelência dos guerreiros, o domínio reservado a essa celebração, ao louvor e à censura é, precisamente os dos atos de bravura. Essa memória torna-se fundamental na medida em que se sabe que as façanhas silenciadas morrem e o homem sem façanhas morre, vitima do silêncio, abandonado ao esquecimento.

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A fama e a glória, engrandecidos pelo louvor, eram para os seres que já se distinguem ao natural, que já eram ‘grandes’ e, como tal merecedores de imortalidade. Nessa condição deveriam permanecer em companhia de tudo que perdurasse para sempre.28

Entendemos que a preocupação com a grandeza está relacionada com a proximidade que os gregos viam entre os conceitos de Natureza e História. Uma vez que a natureza era possuidora de imortalidade, o desejo dos homens mortais no seu curto espaço de tempo, mantidos na mortalidade e no perigo do esquecimento, era alcançar o acolhimento pela História para que permanecessem na companhia das coisas que duram pra sempre.

Assim, o mito vivificado através da construção de um herói imortal é o símbolo maior, um exemplo a ser seguido, o seu sacrifício, modos de fazer as coisas e suas vitórias sobre todos os obstáculos que se lhe puseram, possibilitou à coletividade dos que dele dependiam uma vida de liberdade, redenção e justiça com possibilidades de futuro. Nesse sentido, referenda-se o que Eliade afirma:

O mito em si mesmo, não é uma garantia de ‘bondade’ nem de moral. Sua função consiste em revelar os modelos e fornecer assim uma significação do mundo e à existência humana. Daí seu imenso papel na constituição do homem. Graças ao mito, como já dissemos, despontam lentamente as idéias de realidade, de valor, de transcendência. (...) Os mitos, em suma, recordam continuamente que eventos grandiosos tiveram lugar sobre a Terra, e que esse ‘passado glorioso’ é em parte recuperável. A imitação dos gestos paradigmáticos tem igualmente um aspecto positivo: o rito força o homem a transcender os seus limites, obriga-o a situar-se ao lado dos Deuses e dos Heróis míticos, a fim de poder realizar os atos deles. Direta ou indiretamente, o mito ‘eleva’ o homem.29

A partir dessa compreensão a figura do Presidente João Pessoa, “mártir da Revolução de 30”, tornou-se referência no imaginário político como herói e redentor. O seu exemplo, quando vivo, era o de estadista “reformador” e, a sua morte, foi transformada em verdadeira “expiação” em favor do Brasil. Essas ideias foram largamente difundidas, cantadas, faladas e escritas desde a sua morte até os dias atuais. Órgãos oficiais foram, em grande parte, responsáveis por essa construção. Jornais, revistas, livros publicados, o IHGP (Instituto Histórico e Geográfico Paraibano), bem como atos e comemorações em praças públicas. Mais tarde foram às leis e os decretos que batizaram avenidas e ruas com seu nome, bustos e monumentos foram erguidos, praças, altares e feriados foram criados. João Pessoa fomentou o ideal da “pequenina e forte Paraíba”, ao servir de “exemplo” na luta pelo seu Estado, salvaguardando os interesses dos paraibanos com a própria vida.

Nesse sentido, os traços de caráter pessoal exercem funções de sustentação 28 ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1963, p. 37.29 ELIADE, Mircea. Mito e realidade..., p. 128.

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do mito, ou seja, também estão presentes nesse imaginário mitológico. Além de traços públicos e de caráter político, devemos considerar também os traços de sua personalidade e do homem de Estado que ele era:

De um rosto, de uma silhueta, de um passado, de maneiras particulares de ser, de falar e de agir. [...] Quanto mais o mito ganha amplitude, mais se estende por um largo espaço cronológico e se prolonga na memória coletiva, mais deve esperar, aliás, ver os detalhes biográficos, as características físicas ganhar importância.30

Em todos esses acontecimentos é mostrado um João Pessoa possuidor das maiores virtudes, um homem à frente de seu tempo por ter sido capaz de antever os acontecimentos e perceber, com a sua “pureza”, o melhor caminho a seguir para ser sempre muito bem sucedido.

Aguiar busca o determinismo revolucionário de João Pessoa pela sua genealogia, uma vez que a mãe dele era neta de Henrique Pereira de Lucena, um dos chefes da Revolução Praieira. Pelo lado paterno, o seu avô era João Batista do Rego Cavalcanti de Albuquerque considerado “líder” da Revolução Pernambucana de 1817, desta forma, conclui Aguiar que “como se depreende, a rebeldia de sua personalidade, mais tarde demonstrada, é do sangue. E vem de longe!”31 (QUADRO III).

A comissão responsável pelo evento indicou o início das comemorações a partir da cidade de Umbuzeiro, terra natal de João Pessoa. A programação já anunciava a proximidade com outra comemoração na qual João Pessoa estava incluído. Em 1980 seriam festejados tanto os 50 anos do seu “holocausto”, bem como o aniversário da “Revolução de 30”. Para tanto, a intensa programação oficial iniciada em Umbuzeiro, se estendeu por outras cidades do estado, especialmente na capital, e amplamente divulgada pelos jornais locais. Quase meio século depois da “Tragédia da Confeitaria Glória” se consolidava a prática de tratar João Pessoa como “imortal”, “mártir da liberdade”, “Cristo do civismo”, “cidadão atemporal”, “herói” e outros epítetos do gênero.

O jornal A União divulga, em sua primeira página no dia 24 de janeiro de 1978, o início das comemorações e a agenda para aquele dia de comemorações. Na cidade de Umbuzeiro, e em toda a Paraíba, amanheceu com “redobrado júbilo” e “orgulho”, pelas festividades oficiais do Centenário do nascimento do “inolvidável” Presidente João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque (QUADRO IV).

30 GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.31 AGUIAR, Wellington. João Pessoa: o reformador. João Pessoa: Idéia, 2005.

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Fig. 1 – A heroificação pelo sangue.

QUADRO IV – PROGRAMAÇÃO DIA 24 DE JANEIRO DE 1978

HORAS EVENTO LOCALIDADE

8:30

Missa campal em frente à Matriz de Umbuzeiro concelebrada pelo bispo diocesano de Campina Grande D. Manoel Pereira da Costa e pelos vigários de Umbuzeiro e Aroeiras com a participação do

coral Madrigal e da banda de Música da Polícia Militar.

Umbuzeiro

9:00

O vice- governador do Estado Dorgival Terceiro Neto acompanhado da guarda de honra da Polícia Militar da Paraíba depositará uma coroa de flores no monumento a João Pessoa

localizado na praça que recebe o seu nome – em nome do Governo do Estado.

João Pessoa

9:30 Desfile cívico estudantil na Avenida Getúlio Vargas, com a participação de vários estabelecimentos de ensino. Umbuzeiro

10:30

Concentração em frente a casa onde nasceu o ex-Presidente, na Fazenda Prosperidade, com aposição da placa comemorativa

e discurso do chefe do executivo, abrindo oficialmente as comemorações.

Umbuzeiro

11:30Autoridades e convidados serão recepcionados na Fazenda

Prosperidade de onde seguirão para a fazenda regional de criação “João Pessoa”.

Umbuzeiro

15:30Inauguração, pela prefeitura, do Grupo Escolar Maria Pessoa

Cavalcante de Albuquerque e a assinatura do decreto para criação do Colégio Estadual de 1º e 2º graus “Presidente João Pessoa”.

Umbuzeiro

16:20 Comitiva regressará para João Pessoa -

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Na mesma edição do dia 24 de janeiro de 1978, a primeira página do primeiro “caderno especial” publicado pelo jornal A União utiliza uma página inteira com a fotografia do monumento que foi erguido na Praça João Pessoa nos anos de 1933, acompanhada de um texto biográfico do homenageado.

Celebrar o centenário com a representação desse espaço na primeira página do jornal demonstra, a nosso ver, um aspecto do investimento dessa memória construída há mais de quatro décadas e que permanecia tanto nas páginas dos jornais, quanto nos festejos do seu nascimento, nos relatos biográficos como também em praça pública. No dia seguinte o jornal A União trás a reportagem do primeiro dia das comemorações na cidade de Umbuzeiro. A missa campal concelebrada em frente à matriz de Umbuzeiro cumpria o primeiro evento do Centenário.

Fig. 2 – Primeira página do jornal A União, 24 de janeiro de 1978.

No dizer de Burke percepções de diferentes circunstâncias nas quais se tecem comentários a respeito de um evento (usualmente no passado) quando os comentadores estão, na realidade, ou mais intensamente, interessados em outro (usualmente no presente) podem ser denominadas de “alegorias históricas”, ou

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seja, “a percepção e representação de um evento ou de um indivíduo do passado em forma de outro evento ou outro indivíduo”32.

Outro ensinamento de Burke é que, na Bíblia, a interpretação linear dominante da história coexiste com a admissão da reencenação, ou seja, vários personagens do Velho Testamento são apresentados como “novos”, da mesma forma que, no Novo Testamento, os apóstolos descrevem suas ações na ideia de replay, isto é revivendo a vida, a morte e a ressurreição de Cristo.

No que concerne ao caso das cidades, são exemplos citados por Burke das práticas de alegorias históricas, uma vez que o autor apresenta o problema da ambiguidade quando muitas delas são descritas como “novas Romas” ou “Nova Jerusalém”, a exemplo de Treves, Constantinopla, Servilha e Moscou. O que, para o autor, não significava apenas uma descrição comparativa entre as cidades, mas uma reivindicação de afirmação e de destino histórico para elas.

Podemos, a partir dos textos de Burke, compreender que, em Umbuzeiro, essas alegorias históricas têm um caráter “metafísico ou místico”, pois assumem alguma espécie de conexão oculta ou invisível entre dois indivíduos ou eventos discutidos, por mais separados que estejam no espaço ou no tempo. Em outras palavras:

O que se deve enfatizar é que, de acordo com essa visão, o presente é tido como uma espécie de replay ou reconstituição de acontecimentos passados. É como se, talvez Deus, estivesse escrevendo o nosso script.33

Durante a missa, no dia 24 de janeiro de 1978, o cônego Eurivaldo Tavares começou seu sermão reconhecendo que “o legendário pé de umbu”, numa alusão ao nome da cidade, foi símbolo do desenvolvimento do município, lembrando que no passado se reuniram em torno dele alguns tropeiros que por ali passavam para descansar. No entanto, a “grande dádiva” do Umbuzeiro foi servir de “berço ao maior dos nossos irmãos, o inolvidável João Pessoa”. E sua “alegoria mística” continua:

E não seria demais imaginar que há um século atrás, exatamente a 24 de janeiro de 1878, embaixadores celestiais, tal como no Natal do Senhor, tenham daqui partido para o anúncio profético ao povo paraibano: ‘Comunico-vos uma alegre nova: Hoje, na Fazenda Prosperidade, nasceu João Pessoa, aquele que haverá de se tornar o redentor dessa gente’.34

Deveras, uma vez que o evento do passado é alegoricamente trazido ao presente, provavelmente sua fala fosse uma reivindicação de que Umbuzeiro seria uma “Nova Belém.” Ao indicar as necessidades da realização daquele ato celebrativo em Umbuzeiro, percebemos que as palavras do cônego são revestidas também de uma “memória cristianizada”, ou seja, o nascimento de João Pessoa foi transformado em uma intervenção divina, que precisa ser lembrada e reverenciada, da mesma forma,

32 BURKE, Peter. História como alegoria. Estudos Avançados, São Paulo, USP, v. 9, n. 25, 1995, p. 197-212 .Disponível em: <http://www.scielo.br/>. Acesso em: 24 set. 2008.

33 BURKE, História..., p. 201.34 TAVARES, Eurivaldo Caldas. Soldado paraibano orgulho do “Grande Presidente”: contribuição da

Polícia Militar do Estado ao Centenário de João Pessoa. João Pessoa: A União, 1978.

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como afirma Le Goff, citado anteriormente, que para os cristãos, os “atos divinos de salvação situados no passado formam o conteúdo de fé e objeto de culto”, de fato, pois a memória cristã se manifesta essencialmente na comemoração, sendo assim, o Natal de Jesus Cristo comemorado anualmente se constitui um evento essencial na liturgia católica.

É inegável que a narrativa bíblica inspirou as palavras do cônego, uma vez que ele mesmo afirmou que “não era demais imaginar” a semelhança entre os dois acontecimentos. No entanto, se faltaram animais e pastores para completar a cena do presépio natalino, pelo menos em seu discurso Belém e Umbuzeiro tiveram destinos iguais, “cidades escolhidas para ser berço de um salvador” e para justificar a concentração naquele lugar, utiliza a seguinte explicação

Eis o motivo por que, a exemplo dos Magos do Oriente, também nós empreendermos este roteiro sentimental, do litoral aos cariris, norteados pelo brilho refulgente da estrela de nossa fé patriótica, a qual nos guiou até aqui. E em chegando curvamo-nos todos, reverentes, diante desse chão bendito e da casa onde nasceu João Pessoa, enquanto abrindo o tesouro de nossos corações, ofereçamos em retribuição à Umbuzeiro, o ouro do nosso amor, o incenso do nosso louvor e a mirra do nosso reconhecimento.35

Na continuidade da homilia o cônego reafirma a fidelidade de João Pessoa a sua “missão” recebida do “Alto” culminando com a sua indicação para o governo da Paraíba, os conflitos causados durante a sua administração e definitivamente o seu “sacrifício cruento”, em 26 de julho de 1930, no Recife. Para o cônego, a vida de João Pessoa já estaria predestinada e por isso mesmo ele soube ser fiel à sua trajetória de “mártir”.

Dessa forma, percebemos como esses dois extremos: “o nascimento e a morte” de João Pessoa são apropriados pelos continuadores de sua “fama”, atestando ao homenageado uma dimensão sobrenatural explicados pelos “deuses do destino” em escolhê-lo para tão “horrível missão”. A cidade natal tornou-se o grande palco para as encenações, discursos políticos e inaugurações de obras, justificando a sua dignidade como “berço de grandes heróis”.

Como podemos perceber, são utilizados diversos recursos para a festa do Centenário. O investimento celebrativo inclui a produção historiográfica sobre “o grande Presidente”, com o lançamento de vários livros, mas também é usado um farto material iconográfico e várias cidades do estado entraram no itinerário da exposição volante de fotografias da vida de João Pessoa.

Burke, ao chamar a atenção para as estratégias de divulgação da imagem pública de Luís XIV e sua permanente revisão, mostra que o êxito em "persuadir o público da sua grandeza”, depende não só da atuação dos historiadores, mas também dos pintores, escultores, poetas. A manipulação de símbolos e rituais, retomando o sentido da persuasão presente na noção de espetáculo apresentada por Burke, é fundamental em momentos de redefinição política e social ou de construção de identidades. Segundo ele, as pessoas podem ser manipuladas por meio de 35 TAVARES, Soldado paraibano..., p. 41.

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construções simbólicas que envolvem atividades de produção, circulação e consumo de sentidos e valores36.

De fato, essas estratégias serviam para dar continuidade à cristalização de sua imagem, criada desde a sua morte, trazendo como lembrança os seus “feitos”, o “sacrifício” e naquele dia de comemorações, incluindo também o lugar em que ele nasceu, a cidade de Umbuzeiro recebe um alto teor “aurático”. O discurso do governador Ivan Bichara tem sua fala destacada nas páginas d ‘A União ao fazer a seguinte pergunta:

Que mistério, que força, que energias latentes se escondem nestes ares e nesta terra generosa e fecunda, matriz inigualável, geratriz de inteligências privilegiadas, de heróis espartanos temperados nas lutas da vida desde a mais tenra idade?

Este discurso foi pronunciado em frente a casa onde nasceu João Pessoa, esse “lugar de memória” enaltecido, bem como a paisagem local, “o céu, as serras e o campo”, passaram a ser cultuados como testemunhos materiais de sua presença para heroificar o seu nascimento. A inauguração de um grupo escolar batizado pelo nome da genitora de João Pessoa e a criação de um estabelecimento de ensino com o seu nome se tornavam outro investimento de sacralização dessa “genealogia heróica”, já indicada no Quadro III.

Para Ivan Bichara, estar em Umbuzeiro significa “ressuscitar João Pessoa”, como brada em sua última pergunta: “Morte tua vitória onde está?” Esse discurso inaugural em Umbuzeiro concretiza os ideais das comemorações bem como, o teor que conduzirá os eventos oficiais ocorridos naquele ano de 1978.

Umbuzeiro torna-se então uma “cidade-monumento”, evidenciada na fala do governador numa relação íntima entre aquele lugar, o morto e os que ali estão presentes “para [lhes] prestar culto”. Do mesmo modo, além da casa onde nasceu João Pessoa, outros lugares ganharam destaque na cidade. Por exemplo, na programação oficial, constava a inauguração do Grupo Escolar Maria Pessoa Cavalcante de Albuquerque e a assinatura do decreto para criação do Colégio Estadual de 1º e 2º graus Presidente João Pessoa.

Todavia, essa atitude de nomeação de espaços públicos com o sobrenome “Pessoa” foi uma constante na história política de Umbuzeiro, uma vez que vários prefeitos e vereadores que administraram a cidade desde a sua criação pertenciam à família Pessoa desde que chegaram à região.

Desde então, não somente a vida política bem como a construção de obras de caráter memorialístico em Umbuzeiro teve a participação ativa dos Pessoa. No ano do centenário, a prefeita Terezinha Lins Pessoa, além de dar continuidade às construções de “arquivos de pedra”, aposta também na idealização de símbolos oficializados, como um hino e uma bandeira, que nos possibilita perceber como o poder público em Umbuzeiro, significou tais símbolos.

No dizer de Carvalho, a bandeira e o hino de uma localidade são símbolos que carregam o “peso da tradição”, ou seja, quando são instituídos ganham estatuto 36 BURKE, Peter. A fabricação do Rei: a construção da imagem pública de Luís XIV. Tradução de

Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

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de legítimos representantes do passado e da memória coletiva37. A partir dessas observações podemos afirmar que, em Umbuzeiro, as comemorações do centenário em 1978, ao “rememorarem” o nascimento de João Pessoa ao devir, imprimiam, na memória histórica, símbolos da sua existência.

Assim, as homenagens a João Pessoa ganharam o aspecto da instituição de vários símbolos oficializados, algumas delas de caráter municipal, a prefeita Terezinha Lins Pessoa, no ano do centenário, através de um projeto de lei, oficializou o hino e a bandeira municipal de Umbuzeiro, que em seus elementos traziam uma significação histórica particular para aquela cidade, a festa do centenário deveria lembrar o passado de glórias de Umbuzeiro, no intuito de apresentar o futuro como promissor.

De fato, pois, ao observarmos a composição da letra do hino municipal oficializado naquele ano, percebemos a intenção do autor em divulgar a “glória” da cidade, representada pelos seus “filhos ilustres”. Numa das estrofes encontramos o seguinte:

No seu céu para sempre ecoaráum hino de fé imortal, imortal. Relembrando Epitácio Pessoa, João Pessoa, e Chateaubriand, esse trio ideal. Os seus nomes são a glória de Umbuzeiro, sua terra natal.38

Podemos perceber a monumentalização e o cumprimento deste “símbolo municipal” que a partir de sua letra apologética se tornaria um investimento político na tentativa de traduzir o sentimento coletivo dos moradores da cidade de Umbuzeiro na veneração “imortal” dos três conterrâneos. Nesse mesmo sentido, podemos perceber ainda como Umbuzeiro é construída, imaginada e sentida, e como nas palavras de Pesavento, é uma constante esta relação entre a cidade, seus habitantes e suas representações, ou seja,

Mas essa cidade do passado é sempre pensada através do presente, que se renova continuamente no tempo do agora, seja através da memória/evocação, individual ou coletiva, seja através da narrativa histórica pela qual cada geração reconstrói aquele passado. É ainda nessa medida que uma cidade inventa seu passado, construindo um mito das origens, recolhendo as lendas, descobrindo seus pais ancestrais, elegendo seus heróis fundadores, identificando um patrimônio, catalogando monumentos, atribuindo significados aos lugares e aos personagens, definindo tradições, impondo ritos.39

37 CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

38 Compositor Ivandro Souto. Letra disponível em: GOMES, J. Eduardo. Umbuzeiro 100 anos: nossa terra, nossa história, nossa gente. Umbuzeiro: A União,1995, p. 83.

39 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de uma outra história: imaginando o imaginário. Revista Brasileira de História, São Paulo, ANPUH, v. 15, n. 29, 1995, p. 9-27.

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Podemos perceber essa “invenção do passado”, quando comparamos a bandeira oficial do município com a bandeira da Paraíba. Num primeiro olhar já se percebe certa identidade gráfica entre as duas, na medida em que evocam a existência de um sentimento comum, ou seja, a semelhança na bipartição vertical das cores, vermelho e preto, vinda da inspiração memorialística dos acontecimentos de 1930.

Vendo a bandeira de Umbuzeiro observamos que ela se define por três elementos: (1) a bipartição de duas cores, o preto e o vermelho, símbolo da “Revolução de 30” (2) um brasão sobreposto entre as duas cores e, (3) a expressão “NEGO” disposta logo abaixo no quadro vermelho, semelhante à bandeira do estado.

No entanto se é possível reconhecermos algumas semelhanças, não podemos deixar de atentar para as particularidades do papel que representa o brasão, uma vez que a bandeira do estado pode ser abordada como símbolo da existência de uma Paraíba “revolucionária”, a presença do brasão lembra a cidade de Umbuzeiro, local em que nasceu o grande “mártir” desta “Revolução”. Nesse caso, aponta-se para o fato de que a “Revolução de 30” se tornou possível porque há cem anos nasceu naquele lugar o “herói” que “lutou” e “derramou seu sangue” para que, posteriormente, ocorresse finalmente a vitória dos liberais.

A “a riqueza do município”, lembrada no brasão, estampa produtos agrícolas (cana-de-açúcar e algodão) e um touro que faz lembrar os donos de terras e rebanhos, uma vez que a cidade surgiu debaixo de um frondoso umbuzeiro usado como parada obrigatória pelos tropeiros para se abrigarem em sua sombra, nas horas mais quentes, no pernoite e nas refeições. Nessa rotina semanal, algumas pessoas atraídas pelo comércio construíram as suas casas no local, pois eram confiantes que os tropeiros poderiam ser um bom negócio para comerciarem diversos produtos locais. (ver Fig. 3 e Fig. 4)

Fig. 3 – Bandeira do Estado da Paraíba.

Fig. 4 – Bandeira do município de Umbuzeiro – PB.

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É válido ressaltar que Aires trata do processo de elaboração de uma nova bandeira para a Paraíba como um investimento de memória pelo olhar, ou seja, estes símbolos, pelo seu uso obrigatório e presença constante no cotidiano, sempre estarão numa relação quase sagrada quando são usados40.

No caso de Umbuzeiro vemos a convergência com a idealização entre o poder público na Paraíba dos anos de 1970 e dos perrepistas nos anos de 1930 bem como uma tentativa de conciliar elementos de várias tradições institucionalmente cultuadas, tanto o passado da “glória” de Umbuzeiro bem como a morte e os festejos do nascimento do Presidente João Pessoa. Sendo assim, entendemos o ano de 1978 numa tentativa de reacender a partir de comemorações em caráter nacional, o mito João Pessoa, para exorcizar o esquecimento do “herói” de outros tempos.

40 Essa temática é tratada num dos tópicos da Dissertação de Mestrado de José Luciano Aires, intitulado “A memória pelos olhos: uma bandeira rubro-negra ou verde branca?”, onde são destacados os conflitos de memória em torno do processo de institucionalização da atual bandeira paraibana, bem como os embates políticos ligados aos grupos perrepistas e liberais que acompanharam a sua construção após assassinato do Presidente João Pessoa. AIRES, José Luciano de Queiroz. Inventando tradições, construindo memórias: a “Revolução de 30” na Paraíba. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2006.

RESUMO

Discutimos neste artigo as festividades ocorridas em 1978, por ocasião do centenário do aniversário do nascimento do Presidente João Pessoa na Paraíba, destacando Umbuzeiro, a sua cidade natal, que naquele ano de comemoração, tornou-se o grande palco para as encenações, os discursos políticos e as inaugurações de obras que justificaram a dignidade da cidade como “berço de grandes heróis”. Lançamos ainda um breve olhar sobre as formas de apropriação da memória coletiva e do passado através das programações envolvendo vários políticos nestas festividades e os marcos simbólicos construídos em Umbuzeiro. Nesse sentido, percebemos como a imprensa local, bem como, os órgãos oficiais, os políticos, obras literárias e os familiares de João Pessoa investiram numa cultura histórica heroicizante que se pretendiam atribuir a ele uma suposta imortalidade e heroísmo.

Palavras Chave: Presidente João Pessoa; Centenário; Memória; Comemorações.

ABSTRACT

In this article we discuss the festivities that took place in 1978 for the centenary of president João Pessoa’s birth anniversary in Paraiba, highlighting Umbuzeiro, his hometown, which in that year of celebration, has become the major venue for the staging, the political discourse and the inaugurations of work that justified the dignity of the city as a “cradle of great heroes”. We also took a brief look at the appropriation foms of collective memory and the past, through the schedules involving several politicians in those festivities and the symbolic landmarks that were built in Umbuzeiro. This way, we perceived as the local press and the goverment, politicians, literary works and João Pessoa’s family invested in a historical culture that wanted to give him immortality and the supposed heroism.

Keywords: President João Pessoa; Centenary; Memory; Celebration.

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ENTRE A MEMÓRIA HISTÓRICA E A PRÁTICA CÍVICA: OS CALENDÁRIOS CULTURAIS DO MEC

(1969-1974)

Tatyana de Amaral Maia1

Em busca da memória nacional:o Conselho Federal de Cultura e as políticas culturais do MEC(1967-1975)

O golpe civil-militar de 1964 promoveu uma drástica mudança na relação entre o Estado e a sociedade civil. Alijados de qualquer iniciativa política, os movimentos políticos e sociais, há muito organizados, foram sofrendo com as constantes censuras, perseguições e desaparecimentos de seus integrantes provocados arbitrariamente pelo Estado brasileiro. A sucessão de Atos Institucionais, cujo mais emblemático foi o AI-5 em 13 de dezembro de 1968, sufocou os movimentos sociais por reformas de base. As liberdades individuais e políticas garantidas pela constituição de 1946 foram suspensas em nome da “segurança nacional”. Ao lado de todo um aparelho de repressão e de censura, os governos militares criaram e financiaram importantes setores na construção de imagens ufanistas que se incorporadas ao imaginário social legitimariam a atuação repressora e autoritária de seus governos. A elaboração de representações ancoradas na formação do sentimento de civismo concebido como sinônimo de patriotismo foi considerada fundamental pelos grupos civis e militares atuantes no Estado. A ditadura civil-militar sobrepôs a ideia de civismo à de cidadania.

Na cerimônia de instalação do Conselho Federal de Cultura (CFC), em 27 de fevereiro de 1967, o presidente da República marechal Humberto Castelo Branco destacou que a cultura era o setor mais tranquilo e o que causava menos convulsões sociais, se comparado às inquietações provocadas pelo setor educacional. O ministro da Educação e Cultura Tarso Dutra, por sua vez, informava que a instalação do CFC começava a preencher as graves lacunas existentes na infraestrutura cultural, enfatizando que a política cultural a ser realizada pelo Ministério estaria dentro da realidade democrática do país, com o objetivo de construir uma nação desenvolvida e harmônica. Assim, caberia ao CFC elaborar políticas associadas ao projeto desenvolvimentista do governo militar, valorizando na cultura aqueles elementos considerados representativos da nação2.

A proposta deste artigo é apresentar como os Calendários Culturais criados pelo CFC construíam uma memória histórica associada à prática cívica entre 1969 1 Doutora em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora Adjunta da

Universidade Severino Sombra, em Vassouras – RJ. Bolsista do Programa Nacional de Bolsas da Biblioteca Nacional (2010-2011). E-mail: <[email protected]>.

2 A cerimônia de instalação do Conselho Federal de Cultura foi marcada pelos discursos do presidente do Conselho, Josué Montello, do presidente da República Marechal Castello Branco, do Ministro da Educação e Cultura, Tarso Dutra e do Secretário-Geral do Conselho, Manoel Caetano Bandeira de Mello. Todos os discursos foram publicados no primeiro volume da revista Cultura. CONSELHO Federal de Cultura. Cultura. Rio de Janeiro: MEC, ano I, n. 1, jul. 1967, p. 5-18.

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e 1974. Tais calendários funcionavam como lugares de memória e identificavam nas personagens históricas, nos grandes nomes da literatura e nos acontecimentos políticos os laços constitutivos da nossa identidade política. Os calendários eram anuais e distribuídos nas instituições de ensino e cultura como guias de comemoração cívica. Esperava-se que funcionassem como guardiões daqueles feitos ou daquelas personagens que mereciam ser lembrados por todos os cidadãos. Este artigo é fruto da minha tese de doutorado, “Cardeais da cultura nacional”: o Conselho Federal de Cultura e o papel cívico das políticas culturais na ditadura civil-militar (1967-1975), defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, em 2010.

O Conselho Federal de Cultura foi criado pelo Decreto-Lei n.74, de 12 de novembro de 1966, e funcionou no Palácio da Cultura, no Rio de Janeiro, até sua extinção em 1990. O início de suas atividades ocorreu em janeiro de 1967. O órgão tinha caráter normativo e de assessoramento ao ministro de Estado. A criação do Conselho Federal de Cultura teve como objetivo principal institucionalizar a ação do Estado no setor cultural.

Em 1964, Josué Montello foi convidado pelo ministro da Educação e Cultura, Raymundo Moniz de Aragão, para reformular o setor cultural e propôs como solução a criação de um Plano Nacional de Cultura e de um órgão responsável pela coordenação das atividades culturais do Ministério. Em 1965, foi composta uma comissão presidida por Josué Montello e formada por Adonias Filho, Augusto Meyer, Rodrigo de Mello Franco de Andrade e Américo Jacobina Lacombe que elabora o projeto do Conselho Federal de Cultura. Em 1966, Josué Montello, então diretor da ABL, aproveitando-se da presença do presidente da República Humberto Castello Branco na Academia Brasileira de Letras para uma conferência proferida por Afonso Arinos de Mello Franco, propôs ao presidente a criação de um Conselho dedicado à cultura. Josué Montello aproveitou a presença do presidente Castelo Branco para tecer uma estratégia de reação às críticas recebidas pela imprensa e por agentes da área cultural para convencer Castello Branco da importância de institucionalização do setor e do fomento estatal na cultura. Anos depois deste decisivo encontro, durante seu depoimento ao CFC, em 1971, para a comemoração do sétimo aniversário da – por eles designada – “Revolução de 1964”, Josué Montello narrou o episódio informando que Castello Branco demonstrava preocupação com as campanhas sistemáticas denominadas “Terrorismo Cultural” que se abatiam principalmente sobre o Rio de Janeiro e São Paulo, estados marcados pela hegemonia das esquerdas na produção cultural3.

As intervenções nas universidades, as aposentadorias compulsórias e demissões sumárias nas instituições de educação básica e superior, as invasões à União Nacional dos Estudantes (UNE), as perseguições e as prisões de jornalistas, professores, escritores, artistas e estudantes, além das cassações dos direitos políticos de vários parlamentares e intelectuais são alguns exemplos das práticas sistemáticas promovidas pela ditadura e nomeadas pela intelectualidade de “Terrorismo Cultural”. Tais práticas se espalhavam por todo o país e provocaram uma série de manifestos

3 Depoimento de Josué Montello durante reunião plenária no Conselho Federal de Cultura. Registrado na ata da 255ª sessão plenária em 31 de março de 1971. In: CONSELHO Federal de Cultura. Boletim do Conselho Federal de Cultura. Ano I, n. 2, abr./jun. 1971, p. 131-136.

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e artigos na grande imprensa denunciando o caráter repressor do governo instalado com o golpe de 1964. Foram redigidas e publicadas dezenas de cartas, manifestos e artigos nos principais jornais do país denunciando essas ações – ditas “terroristas” – organizadas pelo Estado.

A produção cultural brasileira era controlada por intelectuais e artistas articulados aos movimentos das esquerdas4 brasileiras bastante atuantes nas décadas anteriores. A arte engajada propôs como função política da cultura a conscientização das parcelas da população menos favorecidas economicamente, principalmente, o operariado urbano e os camponeses. No final da década de 1950 e durante os anos de 1960 surgem movimentos culturais identificados com as esquerdas sob a influência das teses do Instituto Superior de Estudos Brasileiros, do Partido Comunista ou inspirados em leituras de teóricos marxistas. Os movimentos culturais como o Centro Popular de Cultura da UNE (CPC), o Teatro de Arena e o Teatro Oficina tornaram o artista um militante e produziram uma dramaturgia revolucionária nos moldes marxistas5. No audiovisual, o Cinema Novo provocou uma revolução estética ao produzir filmes que buscavam descortinar a realidade brasileira, destacando as mazelas que afligiam parte considerável das classes operárias e camponesas, também com o intuito pedagógico de conscientizá-los e denunciar as ações imperialistas apoiadas pelas oligarquias e burguesia nacional6.

Ao lado da montagem de um aparelho repressor, o Estado, durante todo o período ditatorial, incentivou a criação de agências e órgãos fomentadores na área cultural. O Estado atuou em duas frentes: a repressão e a censura, que pretendia esvaziar a presença das esquerdas no setor, e o investimento estatal sob o controle dos órgãos ligados ao Ministério da Educação e Cultura7. Durante a ditadura civil-militar (1964-1985) o setor cultural sofreu profundas transformações com o aparecimento de novos atores e a participação decisiva do Estado na repressão e no fomento das ações culturais.

A criação do Conselho Federal de Cultura aparecia como uma opção à imagem negativa construída pela atuação extremamente repressora de setores do governo 4 A categoria “esquerdas” foi proposta por Daniel Araão Reis e Jorge Ferreira para retratar os

múltiplos grupos no Brasil identificados com projetos reformistas ou revolucionários alternativos ao modelo liberal e às propostas da elite política tradicional brasileira. Para os autores, é mais apropriado utilizar a categoria no plural, haja vista as diversas filiações e formatos desses grupos. In: FERREIRA, Jorge & REIS, Daniel Aarão. Nacionalismo e reformismo no Brasil (1945-1964). Vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

5 Os movimentos teatrais da década de 1960 compartilhavam os mesmos paradigmas ideológicos incorporados do Partido Comunista, do ISEB e de alguns teóricos marxistas. Contudo, os mecanismos de produção e execução dessa arte engajada e sua relação com o público variavam conforme o posicionamento de cada grupo sobre o formato das produções artísticas. Ver: GARCIA, Miliandre. A questão da cultura popular: as políticas culturais do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes. Revista Brasileira de História, São Paulo, ANPUH, v. 24, n. 47, jul. 2004. HOLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de Viagem/CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70. São Paulo: Brasiliense, 1980. HOLANDA, Heloísa Buarque & GONÇALVES, Marcos A. Cultura e participação nos anos 60. São Paulo: Brasiliense, 1986.

6 SIMONARD, Pedro. A geração do Cinema Novo: para uma antropologia do cinema. Rio de Janeiro: Mauad, 2006.

7 OLIVEN, George Ruben. A relação entre Estado e Cultura no Brasil. In: MICELI, Sérgio (org.). Estado e cultura no Brasil. São Paulo: DIFEL, 1984, p. 44-62. Rubem Oliven organiza cronologicamente as políticas culturais oficiais na década de 1970, expondo a diversificação de instituições, campanhas e atores que participaram dessas políticas.

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na cultura. Contudo, a percepção do Conselho sobre a função do Estado na cultura construiu uma prática que pouco interferia nos cenários ocupados pelas esquerdas. O Conselho permaneceu nos espaços tradicionalmente ocupados pelas elites culturais atuantes no Estado desde o primeiro governo Vargas (1930-1945). O objetivo do Conselho era fortalecer esses espaços considerados fundamentais na preservação da memória nacional. O CFC privilegiou a preservação, a defesa e a divulgação do patrimônio cultural. Para os membros do Conselho a ação estatal no setor deveria priorizar as áreas consideradas essenciais da cultura nacional: os conjuntos arquitetônicos, as obras da literatura, as comemorações dos acontecimentos históricos singulares, as manifestações folclóricas. Esses elementos apareciam em oposição aos “episódios de cultura” característicos da produção de bens culturais. O CFC incorporou e ampliou o modelo de preservação do patrimônio elaborado pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, criado e dirigido por Rodrigo Mello Franco de Andrade (1936-1969), minimizando seus investimentos nos setores de produção de bens culturais de massa.

O CFC foi estruturado em quatro Câmaras: Artes, Ciências Humanas, Letras e Patrimônio Histórico e Artístico. Esta divisão era considerada decisiva pela comissão que elaborou o projeto do Conselho por constituir os elementos considerados definidores da cultura nacional. Além disso, os conselheiros organizaram a Comissão de Legislação e Normas para garantir o suporte jurídico necessário à apresentação de portarias, anteprojetos de lei ou resoluções.

Os membros do Conselho foram divididos entre as Câmaras de acordo com sua formação e experiência profissional. Os conselheiros eram, em sua maioria, escolhidos pelo presidente do CFC e nomeados pelo presidente da República, cuja permanência no cargo, a princípio, vigorava durante o mandato de dois anos do presidente do Conselho. Na prática, os conselheiros eram reconduzidos ao cargo a cada nova posse dos presidentes do Conselho. No período pesquisado (1967-1975), o Conselho teve três presidentes: Josué Montello (1967-1968), Arthur Cezar Ferreira Reis (1969-1972) e Raymundo Moniz de Aragão (1973-1974). Os principais membros fundadores do CFC foram: Clarival do Prado Valladares, José Candido Andrade Muricy, Octávio de Faria, Adonias Aguiar Filho, Cassiano Ricardo, Arthur Cezar Ferreira Reis, Gilberto Freyre, Manuel Diégues Júnior, Afonso Arinos de Mello Franco, Pedro Calmon, Rodrigo Mello Franco de Andrade.

A constituição de uma rotina intelectual autoritária possibilitou a construção de um discurso que valorizava o papel das elites na organização social e “fomentou os recursos da autoridade sobre os da solidariedade social”8. Esses intelectuais se autoproclamavam os principais agentes sociais na organização e na modernização da sociedade brasileira.

A historiadora Angela de Castro Gomes, ao analisar as políticas culturais do Estado Novo, através do periódico Cultura Política e do suplemento literário do jornal A Manhã, entre 1941 e 1945, ambos veículos oficiais de divulgação do Estado Novo, demonstrou a importância da intervenção do Estado no setor cultural. O projeto estadonovista necessitava formar uma “consciência nacional” que aproximasse o executivo dos diversos setores sociais, favorecendo a governabilidade. A construção

8 OLIVEN, A relação..., p. 30.

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dessa “consciência nacional” não pôde prescindir de elementos culturais como a língua, a religião e o passado histórico comum. No caso do Estado Novo, buscou-se elaborar um “espírito de nacionalidade” pautado na cultura popular e numa leitura linear do passado através da valorização dos grandes fatos e personagens históricas. A propaganda do novo regime, elaborada através de uma leitura positiva dos elementos culturais, foi realizada graças a uma intervenção consciente dos intelectuais ligados à burocracia9.

A partir da ditadura civil-militar, há um redirecionamento na “função política da cultura”10, ainda que o papel intervencionista do Estado ficasse inalterado. Neste momento, não se tratava mais de consolidar o Estado-Nação, afinal esta tarefa foi concluída pelo Estado Novo. Na ditadura busca-se ampliar o que já foi construído, ou seja, enaltecer aqueles elementos anteriormente definidos como geradores desse Estado-nação, especialmente num período marcado pelas restrições dos direitos políticos dos cidadãos, onde a legitimidade do governo vigente era questionada por representativas parcelas da opinião pública. Esse movimento nacionalista de proteção e valorização do patrimônio cultural brasileiro foi considerado pelos membros do CFC fundamental como exercício cívico. Assim, os intelectuais do Conselho recuperaram práticas já instituídas pelo Estado Novo como a comemoração de efemérides, a criação de suplementos literários, a valorização da cultura popular, a defesa dos conjuntos arquitetônicos como valor histórico, a edição de obras clássicas da literatura etc. O próprio conceito de patrimônio, que será ampliado pelos conselheiros, recuperou as principais ideias-força do período getulista como “tradição”, “passado histórico”, “identidade nacional” e “memória nacional”, demonstrando a manutenção do projeto dos modernistas, ainda que observadas as especificidades do projeto executado pelo CFC nas décadas de 1960 e 1970.

Os Calendários Culturais do MEC: lugares de memória?

Os lugares de memória, tal como definidos por Nora, funcionam como guardiões dos estilhaços das memórias coletivas, selecionados por agentes socialmente legitimados para a tarefa de preservar os elementos singulares de identificação das sociedades modernas. Esses lugares, materiais ou não, surgem da necessidade de manter vivas as memórias ameaçadas pelos avassaladores processos de modernização e diferenciação sociais, forjando memórias capturadas pela construção histórica e que serão inseridas nos embates políticos dos diversos grupos sociais. Se as “memórias coletivas” transmitidas pelos rituais das sociedades tradicionais prevalecessem nas sociedades modernas, não criaríamos “lugares” para nos lembrar sobre os registros do passado; por outro lado, cabe aos sujeitos históricos apoiados na história e nos embates conjunturais definir quais serão esses lugares e como eles devem ser edificados. “É este vai-e-vem que os constitui: momentos de história, arrancados do movimento da história, mas que lhe são devolvidos”11 através dos agentes sociais responsáveis por construir os lugares de memória.

Dessa forma, os lugares de memória construídos pela incapacidade da transmissão 9 GOMES, Angela Maria de Castro. História e Historiadores. Rio de Janeiro: FGV, 1996.10 BOTELHO, André. O Brasil e os dias: Estado-Nação, Modernismo e rotina intelectual. Bauru:

EDUSC, 2005.11 NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo,

PUC-SP, n. 10, dez. 1993, p. 7-28.

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integral das memórias coletivas funcionam como espaços políticos na formação das identidades sociais. Dos diversos lugares simbólicos que podem ser classificados como “lugares de memória”, iremos analisar os Calendários Culturais produzidos pelo Conselho Federal de Cultura, que por sua função e constituição representam um tipo de lugar de memória.

O Calendário Cultural funcionava como um lugar de memória histórica, ao selecionar os acontecimentos históricos, eventos e personagens considerados representativos da nacionalidade. Como propõe Nora, com o advento da modernidade, ocorre um processo de perda das memórias coletivas que dependem de rituais cotidianos, impossíveis de serem transmitidos e realizados nas modernas sociedades industriais. A perda da memória coletiva, transmitida e transformada cotidianamente, foi substituída pela história e pelos lugares de memória. A incapacidade de transmissão das memórias coletivas a todo corpo social e o aparecimento de múltiplas memórias propiciou o aparecimento de lugares, materiais ou imateriais, para resguardar os fragmentos de memórias dos grupos sociais e possibilitar os mecanismos de auto identificação desses grupos12. Assim,

Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento de que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais.13

Esses lugares de memória atuam como espaços operacionais de reorganização dos elementos simbólicos já esfacelados pela organização social industrial. Esses lugares são criados com a finalidade de manter a coesão de um grupo e interessam, sobremaneira, na legitimidade almejada pelos Estados Nacionais. Assim, os ideólogos da identidade nacional encontram nos lugares de memória, no qual podem atuar como agentes produtores, um espaço adequado para reconstruções aparentemente inquestionáveis do passado.

A elaboração anual do Calendário Cultural era assunto de grandes divergências entre os conselheiros e as Câmaras; afinal, os nomes e instituições selecionados para o Calendário Cultural eram obrigatoriamente homenageados pelo Conselho nas reuniões plenárias. As atas registravam integralmente as comemorações das efemérides indicadas nos calendários culturais. Josué Montello creditava ao Calendário uma função educativa, pois seu objetivo era informar às instituições culturais e ao país as datas nacionais representativas, incluindo também datas internacionais consideradas significativas para a “Humanidade”. Na definição do Calendário de 1968, Andrade Muricy, representante da Câmara de Artes, criticou o calendário apresentado, identificando no projeto inicial a excessiva valorização das efemérides e a ausência de eventos contemporâneos de natureza cultural. Na tentativa de inserir outros itens, o conselheiro solicitou um prazo maior para apresentação das propostas14. Na 101ª sessão plenária, realizada em 25 de setembro de 1968, foram

12 NORA, Entre Memória..., p. 7-28.13 NORA, Entre Memória..., p. 13.14 Ata da 59ª sessão plenária realizada em 13 de dezembro de 1967. Cultura, n. 6, ano I, dez. 1967,

p. 155.

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debatidas as regras do Calendário. As Câmaras do Conselho apresentaram suas propostas para a definição dos critérios de organização do Calendário: a Câmara de Letras sugeriu que o Calendário fosse exclusivamente dedicado à vida cultural brasileira, excluindo-se datas cívicas e científicas; essa proposta recebeu apoio da Câmara de Artes e Ciências Humanas. A Câmara de Letras também propôs que nenhum acontecimento inferior a cem anos fosse incorporado ao Calendário. A Câmara de Artes sugeriu que o Calendário fosse dividido em duas partes: primeiro, as propostas do ano para o setor; depois, a comemoração das efemérides. Ariano Suassuna apoiou a proposta, sugerindo a criação de uma agenda da cultura com as datas dos eventos anuais e a manutenção do calendário com a descrição apenas das efemérides. Ficou aprovado que o Calendário trataria preferencialmente das temáticas relacionadas à cultura apenas através da comemoração de efemérides. Por sugestão de Pedro Calmon, as normas para a inclusão das datas comemorativas não foram rigidamente definidas. O debate foi então encerrado com a aprovação da proposta de Montello para a inclusão ao lado do Calendário das “Grandes Datas Universais”. Este último não se concretizou, porém algumas efemérides universais foram inseridas. Os calendários avaliados nesta pesquisa foram referentes aos anos de 1969, 1970, 1973 e 1974 e seguiram os parâmetros definidos pelos conselheiros na 101ª sessão plenária:

O Conselho Federal de Cultura, que elabora e divulga o Calendário Anual de Cultura para todo o país, pretende celebrar condignamente, nas épocas adequadas e a exemplo do que já vem fazendo, ora em sessões ordinárias, ora em solenidades especiais, as principais datas constantes da agenda do referido Calendário (...).15

O Calendário era organizado a partir das sugestões dos membros do Conselho, das instituições culturais e das secretarias/conselhos estaduais. A elaboração dos projetos dos calendários anuais ficava sob a responsabilidade de um intelectual escolhido pelo Conselho, que depois apresentava o projeto para aprovação, alteração ou inclusão de datas em sessão plenária. Os quatro calendários foram compostos apenas por efemérides, em sua maioria, com datas superiores a cem anos. Do total de cento e doze datas comemorativas apenas quatorze (12,5%) rompiam este padrão; em geral, trata-se de comemorações de cinquentenários de falecimento. As agendas dos calendários nem sempre eram constituídas por comemorações em todos os meses. A seção que encerrava os calendários de 1969 e 1970 era dedicada às “datas internacionais”. O Calendário Cultural de 1969 iniciou sua agenda no mês de setembro; já o calendário de 1970 iniciou a sua no mês de maio. Os calendários homenageavam reconhecidos literários, instituições culturais, personalidades políticas e acontecimentos históricos. Os calendários de 1973 e 1974 iniciaram suas agendas no mês de janeiro.

Para traçar o perfil das efemérides escolhidas para os calendários, iremos retratá-las resumidamente, apresentando-as no anexo III, e investigaremos os elementos que norteiam a sua seleção. Como metodologia para análise da composição do

15 CONSELHO Federal de Cultura. O Conselho Federal de Cultura e suas atividades a serviço do Brasil. Cultura, n. 25, ano III, jul. 1969, p. 17.

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calendário, subdividimos em cinco categorias: personalidade política; instituições educacionais/ culturais; literatos/ jornalista/ professor/ músico; personagens/ acontecimentos históricos; médicos/ cientistas/ engenheiros. O Calendário Cultural do ano de 1969 era composto por apenas seis datas comemorativas, dedicadas a: três literatos/ jornalista; duas personalidades políticas; um intelectual. No Calendário Cultural de 1970 foram comemoradas vinte e três datas dedicadas a: dez literatos/ jornalistas; cinco personalidades políticas; quatro personagens/ acontecimentos históricos; duas instituições; uma comemoração contemporânea do Ministério. No ano de 1973, foram comemoradas trinta e uma efemérides dedicadas a: nove literatos/ jornalistas; quatro personalidades políticas; quinze acontecimentos/ personagens históricos; três médicos/ cientistas/ engenheiros. No Calendário Cultural de 1974 foram comemoradas cinquenta e duas efemérides dedicadas a: trinta literatos/ jornalistas; três personagens políticas; nove acontecimentos/ personagens históricos; duas instituições; dez médicos/ cientistas/ engenheiros.

A escolha dos homenageados segue alguns padrões: todas as personalidades homenageadas eram falecidas; as efemérides eram dedicadas às datas de nascimento ou morte de uma personalidade, acontecimento histórico ou criação de uma instituição; essas datas são consideradas marcos delimitadores e servem para enfatizar a importância de determinada obra ou personagem na formação sociocultural brasileira. No caso das quatro instituições, todas tinham o caráter nacional e foram fundadas em cidades que exerciam a função de capital. As personalidades políticas exerceram cargos importantes no Império e nos anos iniciais da República; os literatos e jornalistas homenageados participaram de diversas entidades como as academias de letras e os institutos históricos e geográficos. As personagens homenageadas eram naturais de diversos estados da federação, indicando a pluralidade intelectual e política brasileira.

O hábito de homenagear grandes nomes da literatura não foi uma tradição inventada pelos conselheiros e já era praticado pela Academia Brasileira de Letras desde sua fundação em 1897. O investimento simbólico e financeiro para rememorar os homens que por aquelas cadeiras passavam e, por isso, eram considerados os “arautos” da nacionalidade, fomentou uma série de eventos, ensaios, biografias, monumentos, arquivos pessoais, etc.16. Os conselheiros, muitos dos quais imortais da ABL, incorporaram ao CFC a mesma prática da homenagem, neste caso, não restrita apenas aos vultos da literatura, mas a todos aqueles que podiam integrar a memória nacional.

A associação entre literatura e nacionalidade realizada pela intelectualidade brasileira percorreu as mais diversas correntes literárias, tornando-se uma tradição entre os escritores. A crença no papel da literatura como “espelho da nação”, ou seja, relato descortinador das estruturas sociais brasileiras foi estimulado pelos nossos escritores. Assim, como destaca Mônica Velloso, homenagear literatos, financiar a publicação de suas obras completas e retratá-los em biografias eram instrumentos de divulgação das bases da nacionalidade, ação cívica e de reconhecimento ao papel de descortinador nacional exercido pelos vultos da literatura.

16 FAR, Alessandra El. ‘A presença dos ausentes’: a tarefa acadêmica de criar e perpetuar vultos literários. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, CPDOC-FGV, n. 25, 2000/2001.

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Ao longo de nossa história político-intelectual, as mais diferentes correntes de pensamento tenderam a conceituar a literatura enquanto instância portadora e/ou refletora do mundo social. Assim, a produção literária aparecia como reflexo imediato e diretamente condicionado pela ordem social. (...) Seja ao defender a literatura como ‘escola de civismo’ (Olavo Bilac e Afonso Celso), seja ao considerá-la como instrumento de conscientização política (fase inicial da obra de Jorge Amado), a idéia acaba sempre incidindo sobre o mesmo ponto, literatura-sociedade via relação didático-pedagógica.17

O ritual de comemoração das efemérides incluídas nos calendários anuais previa a publicação de um artigo sobre a importância da efeméride na memória nacional, sua leitura em sessão plenária e uma salva de palmas. As homenagens eram verdadeiros rituais de glorificação da personagem escolhida e incluíam desde pequenos artigos até a publicação de uma biografia ou da sua obra completa.

Conforme propõe Regina Abreu, essas práticas modernas de recordar e indicar socialmente qual a “história de vida” merece destaque no conjunto social criam as performances sociais almejadas e demonstram a importância dos “mortos” na caracterização dos tipos sociais considerados ideais.

Relatos de personalidades desempenham um duplo papel na construção póstuma: de um lado, servem para demonstrar a perenidade do morto e de sua obra e, de outro, servem para atualizar o valor simbólico de vivos e mortos. Ao incluir nas biografias ou nos rituais póstumos depoimentos de pessoas consagradas, os construtores de memória realizam um movimento com alto teor ‘aurático’, onde todos os envolvidos participam de uma troca de bens simbólicos.18

O Calendário Cultural criado pelo CFC funcionava como instrumento ritualizado do universo político e cultural ao eleger os elementos simbólicos constitutivos da nacionalidade. No entanto, a construção dessas estratégias de preservação das memórias coletivas através dos resquícios de passado, produzidas por agentes sociais e legitimadas pelo Estado têm sua eficácia limitada. O desenvolvimento de uma história da história possibilitou a revisão da relação história-memória favorecendo a desritualização dos mecanismos de celebração da nação e o questionamento de sua legitimidade. Os lugares de memória oficial têm sua credibilidade questionada pelos cientistas sociais que criticam sua unanimidade, ainda que a força desses lugares consista na capacidade de gerar sentimentos de pertencimento.

A própria perda de nossa memória nacional viva nos impõe sobre ela uma olhar que não é mais nem ingênuo,

17 VELLOSO, Mônica. A brasilidade verde-amarela: nacionalismo e regionalismo paulista. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: CPDOC-FGV, v. 6, n. 11, 1993, p. 239.

18 ABREU, Regina. Entre a nação e a alma: quando os mortos são comemorados. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, CPDOC-FGV, v. 7, n. 14, 1994, p. 210.

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nem indiferente. Memória que nos pressiona e que não é mais nossa, entre a dessacralização rápida e a sacralização provisoriamente reconduzida. Apego visceral que nos mantêm ainda devedores daquilo que nos engendrou, mas distanciamento histórico que nos obriga a considerar com um olhar fraco a herança e inventariá-la. Lugares salvos de uma memória que não mais habitamos, semi-oficiais e institucionais, semi-afetivos e sentimentais; lugares de unanimidade sem unanimismo (...).19

Nos casos dos Calendários Culturais produzidos pelo Conselho, por exemplo, em alguns momentos foram incluídas datas comemorativas solicitadas por grupos tradicionalmente excluídos daquelas efemérides. Na 67ª sessão plenária, realizada em 19 de dezembro de 1967, Manuel Diégues Júnior leu uma carta enviada pelo grupo do Teatro Experimental do Negro, solicitando que no calendário de 1968 fosse incluída a comemoração pelo octogésimo aniversário da abolição dos escravos e que fosse realizado um concurso de monografias patrocinado pelo Conselho sobre a importância do acontecimento histórico. A efeméride foi incluída no Calendário, mas as divergências sobre a realização do concurso inviabilizaram-no.20 Dessa forma, o Calendário Cultural, lugar de memória, privilegiou a exaltação de símbolos tradicionais da história, reforçando a posição conservadora e nacionalista das políticas culturais destinadas ao setor.

O culto ao passado, realizado pelos conselheiros através da valorização de diversos tipos de lugares de memória, era considerado essencial na construção de um “estado de consciência cívica dignificadora”. A noção, apresentada por Arthur Reis em seu artigo “O Culto do Passado no Mundo em Transformação”, publicado no segundo número da Revista Brasileira de Cultura, em 1969, debatia a importância do conhecimento histórico na soberania nacional e no desenvolvimento dos países modernos. O passado teria a função prioritária de fornecer os elementos de “sustentação da ideologia política” necessários a todos os Estados independentes.

Não esqueçamos que, nos momentos mais difíceis da vida dos povos, o culto do passado, o tradicionalismo, hoje tão malsinado, serviu a manutenção das esperanças e valeu como fogo sagrado, necessário as energias que se perdiam ou interrompiam e estavam precisando de renovação, do rejuvenescimento que se foi buscar no que ele representava, isto é, nos valores do pretérito distante ou próximo como lição eterna a guiar o mundo.21

Para Arthur Reis, a função maior do Conselho e, logo, das políticas culturais, e que vinha sendo arduamente cumprida, era garantir a manutenção dos lugares de memória, materiais ou simbólicos. Tais lugares de memória guardavam os registros do passado, expressão cívica da grandeza nacional. A história nacional, ainda à 19 NORA, Entre Memória..., p. 13.20 Ata da 67ª sessão plenária realizada em 19 de dezembro de 1967. CONSELHO Federal de Cultura.

Cultura. Rio de Janeiro, ano I, n. 7, dez. 1967.21 REIS, Arthur. O Culto ao Passado num Mundo de Renovação. Revista Brasileira de Cultura. Rio de

Janeiro, out./dez. 1969, p. 59.

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espera de investigação, precisava ter suas fontes resguardadas através de políticas dedicadas à preservação dos acervos documentais, arquivos, museus etc. Por outro lado, cabia aos historiadores a tarefa de proceder a uma investigação profunda nos documentos em busca de uma “história autêntica”. Assim, a ênfase no investimento prioritário das verbas nos lugares de memória era justificada pela necessidade cívica de promover políticas de proteção aos monumentos, de fomentar pesquisas que descortinassem a história nacional e de garantir o funcionamento regular das instituições culturais.

A produção intelectual do Conselho expressa nos calendários, nas obras coletivas e nos periódicos oficiais, funcionava como políticas públicas em defesa do patrimônio e da cultura nacional. Tais estratégias compartilhadas em outros espaços de sociabilidade demonstram a importância do Estado na divulgação de projetos de grupos intelectuais específicos e retifica a tradição do intelectual como agente promotor do civismo a partir de 1920. A institucionalização do setor cultural só foi possível graças à inter-relação entre Estado e campo intelectual. Se a fragilidade do campo intelectual brasileiro os empurrava para as fileiras estatais, a presença dessas personagens no Estado consolidou o setor cultural como área de atuação governamental no Brasil, ainda que os parcos recursos fossem um entrave às ações políticas de maior abrangência.

Conclusão

Os Calendários Culturais organizados pelo CFC privilegiaram a construção de uma memória histórica capaz de fortalecer os laços de um passado comum e harmonioso. Esperava-se que essa memória fosse reverenciada em cerimônias cívicas destinadas a forjar o cidadão ideal. O civismo considerado o pilar constitutivo da relação entre o Estado e a sociedade civil tem no passado histórico o formador da unidade nacional almejada.

No civismo, tal como reelaborado na ditadura civil-militar, os direitos políticos, civis e sociais dos cidadãos podem ser restringidos em favor da harmonia social e da “segurança nacional”. O conceito foi habilmente utilizado para redefinir a relação entre o Estado e os cidadãos, num período marcado por Atos Institucionais que feriam os princípios da cidadania, mas que estavam perfeitamente ajustados aos princípios do civismo. Como neste período, a ideia de civismo sobrepõe-se ao ideal de cidadania, definindo prioritariamente os deveres dos cidadãos, qualquer ação do Estado em defesa da nação encontrava-se legitimada. O civismo, ideário-chave durante a ditadura civil-militar, foi incorporado aos discursos e ações políticas dos intelectuais atuantes no CFC através da associação do civismo, ideário político por excelência, à noção de cultura. Para os intelectuais do CFC, a elaboração de políticas culturais sistemáticas era fundamental na preservação e divulgação do patrimônio cultural e da memória nacional e, para os governos militares essa visão conservadora e otimista da cultura forneceria as bases da construção do civismo. Assim, o papel da cultura seria realçar os elementos que compõe a nação. A defesa da cultura foi considerada fundamental para a formação de cidadãos conscientes tanto de seu papel de devoção à pátria quanto da necessidade de solidariedade social. Ampliaram-se, dessa forma, os artefatos utilizados na elaboração do discurso cívico a partir 1ª República. Além da história, geografia e literatura pátria ensinadas nos bancos

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escolares era fundamental a encenação desses artefatos através de monumentos, comemorações públicas de efemérides, preservação dos conjuntos arquitetônicos, manifestações folclóricas etc. Tais artefatos serão incorporados aos Calendários Culturais que funcionariam como guias para a organização de comemorações das efemérides consideradas representativas da grandeza nacional.

A historiografia dedicada à análise da participação de civis no golpe e na organização do Estado ditatorial brasileiro rompe com explicações de simples dicotomias22. Os intelectuais do CFC mostram-se contrários aos excessos cometidos pelos órgãos de censura e, por vezes, chocados com a ação do aparato policial. Mas, ao contribuírem com o aparato ideológico promovido pela ditadura civil-militar, incorporando o civismo nas suas práticas discursivas e nos seus projetos, favoreceram a exacerbação do nacionalismo e da política autoritária do executivo. Por outro lado, o Conselho defendia o acesso à cultura; a valorização dos aspectos regionais; a atenção aos arquivos e bibliotecas; o investimento na produção e difusão da cultura. A relação de ambivalência existente entre os intelectuais do CFC e a cúpula do executivo produziu silêncios, protestos tímidos e negociações que também contribuíram para a vitalidade de um regime autoritário por mais de vinte anos.

22 . Nas últimas décadas, importantes pesquisas vêm intensificando os estudos sobre a participação dos civis no aparelho estatal e/ou na legitimação do regime ditatorial brasileiro. Ver: FICO, Carlos. Reinventado o Otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro, FGV, 1997; RIDENTI, Marcelo e MOTTA, Rodrigo Sá. O golpe militar e a ditadura. 40 anos depois (1964-2004). Bauru, EDUSC, 2004; ROLLEMBERG, Denise. “As trincheiras da memória: A Associação Brasileira de Imprensa e a ditadura (1964-1974). In: ROLLEMBERG, Denise e QUADRAT, Samantha Viz. (orgs.). A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, no prelo [2008]. pp. 1-38

RESUMOO Conselho Federal de Cultura, CFC, foi o principal órgão responsável pelas políticas culturais entre 1967 e 1975. O CFC era formado por vinte e quatro intelectuais com o objetivo de organizar o setor cultural e elaborar o inédito Plano Nacional de Cultura. A criação do Conselho está integrada à participação desses intelectuais no campo político e cultural brasileiro desde a década de 1920. Além disso, seus discursos e projetos incorporam o ideário cívico vigente na ditadura civil-militar (1964-1985). Dentre as ações do CFC, a criação de calendários culturais anuais destinados às instituições de ensino e cultura foi uma tentativa de valorizar os elementos cívicos que comporiam a cultura nacional. A associação entre memória e história aparece aqui traduzida na relação memória histórica e prática cívica, tão habilmente utilizada em períodos autoritários.Palavras Chave: Intelectuais; Civismo; Calendários culturais.

ABSTRACTThe Federal Culture Council of Brazil, CFC, was the main organ responsible for the cultural policies between 1967 and 1975. The CFC was formed by twenty-four intellectuals with the objective of organizing the cultural sector and elaborating the original National Culture Planning. The Council creation is integrated with the participation of these intellectuals in the Brazilian political and cultural sectors since the decade of 1920. The speeches and projects organized by the Council incorporate the current civil ideas in the civil-military dictatorship (1964-1985). The creation of an annual cultural calendar for schools and other institutions was a tentative for valorize the civility elements for national culture. The association into memory and history appear here translate in relationship between history memory and civility practice, use on dictatorships.Keywords: Intellectuals; Civility; Cultural Calendars.

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ACERVOS PRIVADOS:INDIVÍDUO, SOCIEDADE E HISTÓRIA

Rejane Silva Penna�

Cleusa Maria Graebin�

Memória e Acervos Privados

A expressão ”Acervos Pessoais” poderia ser definida como o conjunto dos documentos produzidos e/ ou pertencentes a uma pessoa, um indivíduo, resultado de uma atividade profissional ou cultural específica. Distinguem-se os acervos pessoais dos arquivos privados, que podem revelar uma instituição, e, também, dos acervos familiares, que supõem, geralmente, uma transmissão entre várias gerações. O alcance cronológico dos acervos pessoais não ultrapassa a vida do indivíduo que o constituiu:

Eu penso, por exemplo, nos arquivos dos cientistas, dos artistas. A leitura destes acervos pessoais remete o historiador ao nível microssocial. Por exemplo, tomemos o caso do diário íntimo, esta «meteorologia interior», segundo a definição dada por Henri-Frédéric Amiel (1821-1881). Sua leitura nos permite ter um acesso privilegiado à sensibilidade de um período, para entender de forma mais aguda como se articula uma vida pessoal com os acontecimentos mais gerais, como um indivíduo reage, antecipa ou encontra um descaminho para escapar de uma realidade difícil. A partir daí, é a compreensão da articulação entre os níveis micro e macro que está em jogo, entre o singular e o geral. Poderíamos dizer a mesma coisa das cartas. É só ver, hoje, o número de publicações relativas às correspondências entre cientistas, poetas. E é justamente este aspecto que me permite fazer a transição com a questão da memória coletiva.3

Concordamos com as inúmeras potencialidades à pesquisa proporcionadas pelos Acervos Pessoais, mas não adotamos critérios tão rígidos para sua nomenclatura. Na verdade, os locais que conservam, classificam e disponibilizam a memória da sociedade ao público, como os Arquivos, Centros Documentais, Memoriais, etc..., por vezes agregam em um mesmo fundo4 documentos reunidos pelo próprio detentor do

1 Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Historiógrafa do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.

2 Doutora em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (RS). Professora Adjunta do Mestrado Profissional em Memória Social e Bens Culturais do Centro Universitário La Salle (Canoas - RS).

3 VIDAL, Laurent. Acervos pessoais e memória coletiva: alguns elementos de reflexão. FCLAs – CEDAP, Campinas, v.3, n.1, 2007.

4 Conjunto de documentos de uma mesma proveniência. Termo que equivale a arquivo (NOBRADE – Norma Brasileira de Descrição Arquivística).

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acervo pessoal com documentos doados pela família. Ocorre que a maioria dos documentos pessoais somente chega a uma instituição após a morte do indivíduo. Dessa forma, quase sempre a ordem original é alterada e cartas, fotos e bilhetes relacionados ao indivíduo são incluídos na doação. Fica difícil, então, manter uma divisão rígida entre Acervos Pessoais, Arquivos Particulares e Acervos Familiares.

Frente a esta problemática, denominaremos os Fundos do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, doravante denominado AHRS, aqui mencionados, como Acervos Privados.

Esta documentação, de natureza variada, depende das atividades exercidas pelo personagem que se relaciona a ela, bem como a sua própria vontade de acumulação, ou seja, aos critérios que nortearam suas escolhas dentre o que seria preservado e o que seria descartado. Podem constituir-se em atas, jornais, proclamações, registros, fotografias, diários, vestígios orais e visuais, enfim, toda aquela gama de elementos que são a matéria prima para discutir o que já foi estabelecido ou reconstruir de outra forma trajetórias de grupos, cidades, pessoas e acontecimentos.

Utilizando documentação dos Acervos Privados como fontes históricas, pode-se desmistificar o acontecimento pronto e acabado, que sempre compõe uma imagem que ambiciona abranger a totalidade do processo, devendo ser decomposto para denunciar aos espectadores o arbítrio de sua construção5.

O fato é que a “memória de um acontecimento do qual não participamos depende da possibilidade de termos acesso a este acontecimento”. E este acesso, por sua vez, depende da existência de traços – traços escritos, orais, monumentais ou arqueológicos: “Sem estes, sobram apenas o silêncio e o esquecimento”6.

No caso de diários ou cartas, percebem-se práticas de escrita que podem evidenciar como uma trajetória individual tem um percurso que se altera ao longo do tempo, que decorre por sucessão. Também podem mostrar como o mesmo período da vida de uma pessoa pode ser ‘decomposto’ em tempos com ritmos diversos: um tempo da casa, um tempo do trabalho, etc. 7.

A seguir, vamos expor três exemplos de Acervos Privados e sua potencialidade para a pesquisa, todos sob a guarda do AHRS, instituição integrante da Secretaria de Estado da Cultura, que desde 1903 vem mantendo, sob sua custódia, documentos públicos e privados que remontam ao século XVIII, retratando a vida social, política, administrativa e econômica da região.

Acervos Privados: Uma Pequena Amostra

Conforme analisado por Belloto8, durante a fase de uso primário, em que o indivíduo em vida acumula documentos, estes servem eminentemente ao próprio titular. Passando à fase da preservação, estabelece-se o uso secundário “cujo objetivo não é mais o jurídico ou profissional do próprio titular do arquivo e, sim o da pesquisa

5 STEPHANOU, Maria. Instaurando maneiras de ser, conhecer e interpretar. Revista Brasileira de História, São Paulo, ANPUH, v.18, n. 36, 1998, p. 9.

6 VIDAL, Acervos pessoais � � � , p. 4.7 GOMES� Ângela de Castro (org.) � Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora FGV,

2004, p. 13.8 BELLOTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. Rio de Janeiro:

Editora FGV, 2006, p. 267.

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científica, feita por terceiros”9. Ocorre uma transformação em que a potencialidade informacional dos documentos alcança um campo mais “vasto que a vida e a obra do produtor/detentor dos papéis”10. E é dentro dessa perspectiva que relacionamos dois Acervos Privados: o de Julio de Castilhos e o de João Neves da Fontoura, constituídos de documentos colecionados e preservados para a posteridade, com um interesse especial na construção e modernização do Estado Republicado. Acrescentamos ainda outra modalidade de acervo privado, o diário pessoal de Manuel Lucas de Oliveira, com memórias da experiência da Guerra do Paraguai.

Arquivo Particular João Neves da Fontoura

O Acervo de João Neves da Fontoura (1887-1963) foi adquirido em 1979 pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul. O personagem teve uma intensa e variada participação política em nível estadual e nacional. Elegeu-se deputado federal em 1928 e passou a liderar a bancada gaúcha, acumulando o mandato com o cargo de Vice-Presidente do Estado, sendo um dos principais articuladores da Aliança Liberal e da Revolução de 1930. Exerceu o mandato mais duas vezes, em 1930 e 1935-1937, além de outras funções como Ministro das Relações Exteriores, Embaixador em Portugal ou ainda como membro da Academia Brasileira de Letras.

A organização deste acervo foi feita ao longo do ano de 199811. Verificando a inexistência de um arranjo original a ser preservado, realizou-se um levantamento biográfico do personagem, procurando elaborar grandes Séries onde a documentação seria inserida, de acordo com as atividades desenvolvidas pelo mesmo. Foram divididas em: Assembleia das Américas para o Rearmamento do Mundo, Atividades como Advogado� Atividades Diplomáticas, Atividades Literárias, Atividades Políticas, Comitê de Aproximação Bélgica – Brasil, Consultor Jurídico do Banco do Brasil, Documentação Complementar, Documentação Pessoal, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Instituto de Direito Comparado (Universidade Católica – Rio de Janeiro), Revolução Constitucionalista e Recortes de Jornal.

Tratando-se de um homem público, mesmo as suas correspondências “pessoais” trazem informações interessantes sobre os acontecimentos políticos. Fora do cargo de Ministro, João Neves da Fontoura continuou a receber correspondências de seus amigos e ex-colegas vindas do exterior, em que comentam as relações internacionais, como o contexto europeu e as relações de Getúlio Vargas com o General Perón.

Na Série Atividades Políticas, encontram-se papéis relativos aos períodos em que foi deputado, além daqueles em que tratava de questões político-partidárias por ser membro de destaque do Partido Social Democrático – PSD. Assim, nessa Série acham-se informações sobre a revolução de 1930, já que foi como líder da bancada gaúcha que João Neves da Fontoura participou da eleição Vargas e posteriormente da organização da Revolução de 30.

9 BELLOTO, Arquivos permanentes � � � � p. 267.10 BELLOTO, Arquivos permanentes � � � � p. 268.11 Trabalho realizado pelo historiógrafo do AHRS, Dr. Paulo R. Staudt Moreira. No tópico destinado a

João Neves da Fontoura, baseamos nosso texto nas próprias explicações escritas pelo historiógrafo, presentes no Instrumento de Pesquisa (AHRS).

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Arquivo Particular Julio de Castilhos

O Arquivo Particular Julio de Castilhos passou a integrar a documentação do Arquivo Histórico desde 200812, contendo um conjunto de documentos como cartas, atas de reunião, papéis oficiais, bilhetes pessoais, imagens, etc.. Lamentavelmente, também a ordem original perdeu-se ao longo do tempo e no período da doação já era impossível reconstituí-la. Os documentos, doados por familiares em 2002, dado o seu caráter íntimo de comunicação, provavelmente fizeram parte do acervo pessoal de um personagem que impôs forte marca na história do Rio Grande do Sul e do Brasil.

Julio de Castilhos talvez seja uma das figuras mais emblemáticas e decisivas na montagem do Estado Republicano Rio-grandense. Sabe-se que as revisões críticas ao processo de análise e escrita da história relegaram o culto ao personagem a um passado distante, substituindo pela inserção do indivíduo em seu contexto. Mesmo assim, dentro da nova perspectiva, o magnetismo de determinadas lideranças, possuidoras de características importantes para o encaminhamento de alternativas políticas no seu tempo histórico, tornam necessário o estudo detalhado dessas singulares equações. É o caso de Julio de Castilhos, nascido em 1860, que foi Presidente do Estado e Chefe do Partido Republicano Rio-Grandense até sua morte precoce. Redigiu a primeira constituição republicana do Estado, em que o Poder Executivo, hipertrofiado, mal disfarçava a autodenominada “ditadura científica”, legado da doutrina positivista. Faleceu em 1903, quando ainda dominava o cenário político do Rio Grande do Sul, incentivado por correligionários a colocar seu imenso prestígio na disputa à Presidência da República. Depois de morto, continuou sendo cultuado, contando hoje com magnífico monumento na praça central da capital do Rio Grande do Sul.

Originalmente o acervo compunha-se de objetos e documentos escritos, tendo sido realizada uma divisão de acordo com as características e funções das instituições designadas para a guarda do acervo a ser organizado. Ao Museu Julio de Castilhos coube à parcela referente aos objetos e ao Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul a documentação escrita.

A intensa correspondência com seu secretário Aurélio Virissimo de Bittencourt foi recentemente transcrita e publicada, no volume denominado “Política e Poder nos primeiros anos da República”, levando-se em consideração a fragilidade do seu suporte, o papel, que mesmo recebendo tratamento adequado ainda sofre a ação de agentes que o danificam. Estão previstas novas publicações deste acervo.

O nível de descrição é definido como Arquivo Particular, com Séries e Subséries, com 17 caixas-arquivo, contendo os maços de documentos. O período abrangido pela documentação compreende, desde as primeiras décadas do século XIX até 1903. Um pequeno grupo de documentos transcende esta data final e foram agrupados como “documentos post-mortem”.

O critério utilizado para organizar a documentação em Séries e Subséries foi temático ou tipológico. Levando em consideração que as correspondências, bilhetes, recortes etc., mesclavam diversas procedências e interesses, optou-se por organizá-los em Séries relativas a grandes temas. Dentro de cada Série, quando necessário, para

12 A documentação foi organizada pela Historiógrafa do AHRS, Dra. Rejane Penna.

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facilitar a consulta, subdividiu-se em Subséries, Foi o caso, por exemplo, da Série “Correligionários”, que reúne o maior número de correspondências e documentos e “Assuntos Familiares”. Nos dois casos, quando algum indivíduo destacava-se pelo número de contatos ou por sua significativa importância, configurou-se uma Subsérie. Devido ao singular papel do secretário particular de Julio de Castilhos, Aurélio Viríssimo de Bittencourt, a documentação relativa a ele transformou-se em uma Série.

Optamos por não efetuar descritores da documentação, à medida que a quase totalidade dos escritos misturavam diferentes assuntos. Para melhor compreensão é fundamental colocarmos na íntegra uma correspondência típica do Arquivo Particular Julio de Castilhos, mantendo a linguagem original:

8-1-1902, ás 5 pm.Dr Julio.- Boa tarde. Depois da expedição da segunda carta de hoje, recebi vossa correspondencia postal, que remetto agora, accrescentada de uma carta do Conrado, outra do Cherubim, outra do Evaristo e ainda outra de Domingos Barreto Leite. Vae tambem um telegramma.Escreveu-me o Ignacio Manoel Domingues, enviando a carta inclusa e dizendo não devolver na occasião o vosso telegramma por estar em mão da esposa do tenente Domingues. Tambem mandou-me o telegramma do Ministro da Fazenda, insistindo pela informação relativa á proposta da estrada de ferro de Porto Alegre a Uruguayana.Junto encontrareis nova carta do Fortuna e o numero do Diario Official que publica a nomeações da guarda nacional para a comarca de Taquary.Houve hontem noticia de uma notificação de outro caso de peste bubonica na rua João Telles. O dr. Montaury encarregou-se de tomar informações, chegando a este resultado: “Adelina Vieira Berucci, casada, 30 anos, moradora á rua general João Telles n. 49, mordida ha 12 dias por uma aranha venenosa na perna esquerda, cujos dentes foram extrahidos pelo dr. Luiz Masson, que receitou agua sublimada e acido phenico. Sobreveio depois uma pontada do lado direito, de que soffre ha dois annos. O dr. Masson receitou ha dois dias. Não tem febre. [1v]Diante disto, não houve como qualificar o caso de peste bubonica e não se falla mais no assumpto.Diz. o dr. Medeiros que o Protasio veiu communicar existir um bubonico no predio n. 115 da rua do Andradas. Sendo o 6º individuo que nessa casa adoece, foi combinada a demolição do predio, o que far-se-á no menor prazo possivel.Quanto ao Rio Grande, até agora nenhuma resposta quer do Felippe Caldas ao Protasio, quer do Crescentino

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ao Presidente. Este, si continuar o silencio do inspector da alfandega, reclamará contra o da saude do porto ao Ministro do Interior, baseado na Constituição e no proprio regulamento sanitario federal. Antes, porém, de ser expedido o telegramma, será este subjeito á vossa revisão. Nada mais. Estamos por aqui em completa pasmaceira. Acceitae saudades do dr. Medeiros e do vosso[a] AurelioMeus respeitos á Exma. Família.13

Então vejamos: o assunto principal é relacionado à peste bubônica, o que ensejou uma grande batalha política entre o Governo Positivista de Julio de Castilhos e a Faculdade de Medicina, tendo em vista a recusa do Governo em reconhecer o problema. Mas, misturam-se disputas eleitorais, controle político no interior do estado e a importante questão da estrada de ferro, essencial ao escoamento da produção do Estado. Logo, concluímos que o destaque a alguns temas poderia prejudicar as possibilidades de pesquisa de outros, bem como o sumário de todos os assuntos seria inviável em boa parte dos casos (existem cartas de várias páginas, inclusive).

Respeitando esta diversidade, a divisão, em Séries ficou como Série 01: Assuntos de Estado (documentos relacionados a assuntos e personagens em âmbito público); Série 02: Assuntos Familiares, (Correspondências, bilhetes e documentos tratando de temas familiares entre Julio de Castilhos e seus parentes ou apenas entre seus parentes); Série 03: Atas, Manifestos e Panfletos (Documentos de registro, propaganda ou opinião política); Série 04: Cargos Provimentos e Solicitações (Correspondências com a finalidade principal de pleitear e/ou preencher cargos públicos); Série 05: Assuntos Privados Julio de Castilhos (Documentação relacionada estritamente a interesses pessoais de Julio de Castilhos); Série 06: Conflitos e Sedições (Documentação que trata da movimentação de episódios de convulsão social); Série 07: Telegramas (Exclusivamente telegramas de caráter político. Em sua maior parte concentrados em determinadas datas. Ex.: telegramas enviados por Julio de Castilhos por ocasião do término de seu mandato de Presidente do Estado); Série 08: Correligionários (Correspondências e documentos que tratam da comunicação política entre Julio de Castilhos e membros do PRR (Partido Republicano Rio-Grandense) ou entre eles. As Subséries são nominadas pelo titular que envia e recebe correspondências); Série 09: Aurélio Viríssimo de Bittencourt Junior. (Correspondências trocadas entre Aurélio Bittencourt, Julio de Castilhos e diversos correligionários. Também inclusas as correspondências ditadas por Julio de Castilhos a seu Secretário); Série 10: Folhetos e Jornais (Fragmentos de periódicos e folhetos); Série 11: Cartas de Pêsames (Correspondências, cartões e bilhetes expressando pêsames pela morte de Julio de Castilhos); Série 12: Assuntos Diversos(Documentação de caráter diversificado, até 1903); Série 13: Documentos post-mortem (Documentação de caráter diversificado, pós 1903) e Série 14: Imagens (Fotografias, postais, etc.).

13 ARQUIVO Histórico do Rio Grande do Sul. Série Aurélio Viríssimo de Bittencourt. In: PENNA, Rejane & MOREIRA, Paulo Roberto Staudt (coord.). Política e poder nos primeiros anos da República: a correspondência entre Julio de Castilhos e seus secretário, Aurélio Viríssimo de Bittencourt. Porto Alegre: Edipucrs, 2009, p.318/319

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Além desses dois acervos, poderíamos listar diversos outros exemplos, mas concluiremos com um tipo diferente de Acervo Privado – o Diário do Coronel Manuel Lucas de Oliveira, já transcrito14.

Manuel Lucas de Oliveira nasceu 1797, falecendo em Rio Grande em 1874. Estancieiro nas proximidades do Rio Candiota, foi Capitão da Guarda Nacional de Piratini e um dos organizadores da Revolução Farroupilha naquela localidade, acompanhando o General Antônio de Souza Neto. Junto com Joaquim Pedro Soares, influiu para a proclamação da República Rio-Grandense em 11.09.1836 e foi eleito deputado à Assembleia Constituinte, reunida em Alegrete, em 1842. Nomeado Ministro da Guerra e da Marinha, participou dos entendimentos para a pacificação em 1845. Dois anos depois foi nomeado Coronel da Guarda Nacional e comandante dos municípios de Piratini, Bagé e Jaguarão. Participou das guerras platinas contra Oribe e Rosas, comandando uma brigada de reserva. Em 1º de dezembro de 1864 foi feita a primeira anotação no Diário, seguindo-se registros cotidianos até 2 de janeiro de 1866. Lucas de Oliveira acompanhava atentamente os acontecimentos que imediatamente antecederam e iniciaram a Guerra da Tríplice Aliança, através dos jornais ou das cartas trocadas com seus amigos, aliados e compadres. Especialmente interessante é que no diário do Coronel explica-se como se davam as relações de amizade, parentesco ou dependência, necessárias para o recrutamento dos contingentes necessários ao esforço de guerra.

Em suas anotações sobre o processo de arregimentação de soldados, verificam-se as deficiências do Exército Imperial, que ainda não contava com uma organização profissionalizada, o que ficou claro no conflito com o Paraguai, onde as formas de recrutamento tradicionalmente utilizadas demonstraram-se precárias para o esforço de mobilização requerido, bem como dificuldades na qualificação dos postos de comando. Exemplificamos com o trecho a seguir, em linguagem editada para a publicação:

18 de abril de 1865: fui ao Manduca e ali encontrei o Primo Chico Lucas e conversamos mais de 5 horas sobre as coisas da época, retirando-me deixando bem claros meus pensamentos sobre a guerra atual e sobre os homens que a dirigem, isto é, que nenhum deles presta para nada, e por isso me não subordino a ser comandado por tais imbecis. Voltei de tarde pelo Janjão e cheguei aqui felizmente. Escrevi ao Mano Valério sobre os Jornais pelo Caetano � 15

Também na leitura da documentação, em vários momentos, Lucas de Oliveira fala na compra de fardamento, montaria e gado para consumo das tropas, realizada com seus próprios recursos ou de outros companheiros, que talvez conseguissem ressarcimento mais tarde.

O estudo dos Diários tem o potencial de inserir-se de forma estratégica nos estudos que buscam “compreender os processos sociais em escala individual", defendendo 14 Transcrição pelo Historiógrafo do AHRS, Dr.Paulo R. Staudt Moreira. No tópico destinado a Lucas

de Oliveira, baseamos nosso texto nas próprias explicações escritas pelo Historiógrafo, presentes no Instrumento de Pesquisa (AHRS).

15 ARQUIVO Histórico do Rio Grande do Sul. Diário do Coronel Manuel Lucas de Oliveira – 1864�1865. Porto Alegre: EST. 1997, p. 50.

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a importância de "analisar o social também na escala do indivíduo”16. Um conflito cercado de mitologias e emblemas corre o risco de distanciar-se dos leitores e estudantes contemporâneos, ao aparentemente perder suas marcas de experiência humana e tornar-se apenas efeméride. Os pensamentos e sentimentos anotados por um indivíduo reavivam o processo e ensejam novos interesses e discussões.

Documentos Privados: Chaves Para a Leitura de Seu Tempo

A leitura mais apurada dos Acervos Privados mostra redes de sociabilidade, esboçadas através da prática de relacionamento pessoal, social e político marcado nas cartas, bilhetes e anotações. São indícios de acontecimentos, trocas intelectuais e práticas políticas, indicando, como afirma Prost, que “essas folhas que dormem há tanto tempo conservam o traço de existências múltiplas, de paixões hoje extintas, de conflitos esquecidos, de análises imprevistas, de cálculos obscuros”17.

O que é legado à posteridade, nestes acervos, resulta da seleção dos documentos a serem guardados, entre todos os papéis manuseados cotidianamente, e vai sendo feita ao longo do tempo. Muitas vezes, principalmente no caso de Acervos Privados de pessoas públicas, essa seleção também é feita por auxiliares e, após a morte do titular do arquivo, por familiares e amigos. Os Acervos Privados constituem valiosas fontes de pesquisa, seja pela especificidade dos tipos documentais que os caracterizam, seja pela possibilidade que oferecem de complementar informação constante em arquivos de natureza pública18.

E quando estes acervos contêm cartas (quase sempre), devemos ter presente que elas não são apenas veículos que propiciam encontro de pessoas fisicamente distantes, ao circular informação. A natureza e o conteúdo das cartas produzem sensações, mexem com o estado emocional tanto do autor quanto do destinatário.

Pesquisadores que se debruçaram sobre as correspondências, observam que “quando preservadas, permitem alimentar a esperança de tornar o passado legível, tocar o que de real restou de um tempo pretérito, vivendo a sensação de atingir de forma definitiva e próxima os testemunhos do passado”19.

Seguindo a mesma reflexão, no caso de cartas, percebem-se práticas de escrita de si que podem evidenciar como uma trajetória individual tem um percurso que se altera ao longo do tempo, que decorre por sucessão. Também podem mostrar como o mesmo período da vida de uma pessoa pode ser ‘decomposto’ em tempos com ritmos diversos: um tempo da casa, um tempo do trabalho, etc.20.

No trabalho com os Acervos Privados cuidados devem ser especialmente tomados pelo pesquisador, considerando o caráter informal de sua escrita. A fragmentação peculiar às fontes históricas privadas muitas vezes, quase inacessíveis, pelas barreiras impostas por parentes ou deterioração dos documentos, exige uma série 16 RIBEIRO, 2005, p. 27, apud THIES, Vania Grim & PERES, Eliane. Quando a escrita ressignifica a

vida: diário de um agricultor - uma prática de escrita ‘masculina’ Revista Brasileira de Educação, v. 14, n. 41 2009, p. 216-231.

17 PROST, Antoine. Les pratiques et les méthodes. In: RUANO-BORBALAN, Jen-Claude (coord.). L’histoire aujourd’hui: nouveaux objets de recherche, courants et débats, le métier d’historien. Auxerre: Sciences Humaines, 1999, p. 386 �

18 Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br/comum/htm. Acesso em: 27 nov. 2010.19 VENÂNCIO. Giselle Martins. Cartas de Lobato a Vianna. In: GOMES Escrita de si � � � , p. 113.20 GOMES Escrita de si � � � , p. 13.

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de procedimentos metodológicos, por parte do pesquisador, para que sua análise tenha maior rendimento, ou seja:

Em geral, além de serem fontes dispersas e fragmentadas, que precisam ser analisadas em Séries, são de difícil leitura, sobretudo quando manuscritas, [...] A correspondência também exige vários cuidados e níveis de análise, que considerem desde sua materialidade – papel, letra, protocolos de leitura da carta – os códigos que definem o gênero epistolar – saudações, despedidas e assinatura -, até observações sobre suas formas de circulação e guarda, reveladoras da identidade, de seu destinatário. ‘Tudo isso para além das questões que remetem à montagem da rede de relações organizacionais e afetivas presente na correspondência’.21

Os pesquisadores que já se aventuraram com este tipo de recurso histórico recomendam que se deva observar o ‘lugar social’ de quem escreve: a posição ocupada pelo missivista, num dado momento, no campo intelectual e político. Isso porque a correspondência pode estar voltada para certo objetivo específico, embora não exclusivo, ou combinar de forma mais equilibrada algumas intenções.

Cuidados de outra natureza também devem ser observados, pois devido a sua importância, já existe toda uma legislação regulamentando o uso e acesso a tal tipo de documentação, conforme também podemos ler no site do Centro de Documentação da Fundação Getúlio Vargas:

Alguns arquivos pessoais podem ser classificados como ‘de interesse público e social’, por meio de dispositivo legal. Nesses casos, a lei determina que sejam preservados e colocados à disposição dos pesquisadores. Por se tratarem de documentos de natureza privada, os arquivos pessoais reúnem muitas vezes informações cujo acesso pode comprometer a intimidade do seu titular ou de terceiros. O Brasil hoje já dispõe de um corpo de leis regulamentando várias questões na área de arquivos, entre elas, o acesso a informações de natureza privada. Além da lei 8.159, de 1991, conhecida como Lei de Arquivos, que possui um capítulo dedicado aos arquivos privados, o decreto 2.942, de 1999, e a Resolução nº 12, do Conselho Nacional de Arquivos - CONARQ estão voltados para o tema.22

Para concluirmos esta reflexão, apontamos alguns aspectos que se oferecem no trabalho com fontes oriundas de Acervos Privados, seja como instrumento de construção de redes, onde o fundamental é “perceber um conjunto de relações que evidenciam um grupo organizado, seja com ênfase no conteúdo, permitindo uma 21 GOMES, Ângela, de Castro. Em família: a correspondência entre Oliveira Lima e Gilberto Freire.

In: GOMES� Escrita de si , p. 53.22 CPDOC-FGV. O que são arquivos pessoais. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/acervo/

arquivospessoais>. Acesso em: 27 nov. 2010.

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aproximação com circuitos informais de sociabilidade e que evocaria sentimentos, além da troca de idéias e favores”23.

As cartas e as páginas dos diários foram escritas por pessoas que ali expressaram suas opiniões, afetos, conflitos, anseios, mas inseridos em um tempo e espaço determinados. Portanto, é necessário entender o produtor e o destinatário da correspondência imersa em um contexto histórico e social. A compreensão do mundo em que viviam nos fornece elementos para trabalharmos determinado contexto histórico-social e interpretarmos como suas vidas foram conduzidas e quais as estratégias utilizadas para converter os acontecimentos a seu favor24.

Chartier afirma que a relação entre leitor e leitura supõe uma multiplicidade de mediações e de intermediários entre as palavras anunciadas e a página impressa. A forma de apreensão de sentido é articulada à mentalidade do leitor, a qual é definida pelo “estado da língua, no seu léxico e na sua sintaxe, os utensílios e a linguagem científica disponíveis. Esse suporte sensível do pensamento é o sistema das percepções, cuja economia variável comanda a estrutura da afetividade”25.

Em suma, há um espaço existente entre o que foi escrito e o que estamos lendo. O texto tem um conteúdo que ao ser lido produz efeitos, portanto, sua leitura é marcada pela produção de sentidos.

Conclusão

Papéis antigos guardados pelas pessoas, como as cartas e diários, embora sempre tenham sido usados para ler o passado, apenas mais recentemente foram consideradas fontes privilegiadas, com grandes possibilidades de serem objetos da pesquisa histórica. Concomitante a isso, intensificam-se as discussões sobre a sua utilização e análise, com a constituição de centros de pesquisa e documentação destinados à guarda de Acervos Privados. Estes atuam tanto como fontes alternativas, como constituem fundamentos e indicam rumos de pesquisa não encontráveis em outros documentos, dependendo do enfoque escolhido pelo pesquisador. Podem ser utilizados como fonte principal caso a opção seja realizar uma “história de vida” ou podem dialogar com outras fontes para reforçar, criticar ou subsidiar determinados aspectos.

Na verdade, os vestígios da atividade humana são variados e se tivermos uma maior abrangência nas concepções sobre o que é importante na História, nossos fragmentos de papel sobre pessoas, instituições e gestos culturais serão chaves de leitura para compor uma memória múltipla. O trabalho com Acervos Privados, valorizando a experiência social, oferece aproximação com personagens por muitos desconhecidos, com todo o impacto das representações que faziam de si e do mundo.

O retorno para nossa História é um passado melhor decifrado, uma humanização dos chamados “grandes personagens” e a recuperação dos cotidianos que muitos 23 TREBITSCH, Michel. A função epistemológica e ideológica da história oral nos discursos da história

contemporânea. In: FERREIRA, Marieta de Moraes (org). História Oral e Multidisciplinaridade. Rio de Janeiro: Diadorim, 1994, p.54.

24 DIAS, C. G. P. Um olhar sobre o livro ‘Nas margens de Natalie Zemon Davis’: em busca de uma reflexão a partir do gênero biográfico. Histórica, Porto Alegre, n. 5, 2001, p. 103-110.

25 CHARTIER, R. Cultura escrita, literatura e história: Conversas de Roger Chartier com Carlos Aguirre, Jésus Anaya, Daniel Goldin e Antonio Saborit. São Paulo: Artmed, 2001, prólogo, p.37.

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achavam irremediavelmente perdidos quando se foi embora o último contador daquelas histórias.

RESUMO

Neste ar tigo, dedicamo-nos a apontar a potencialidade dos Acervos Privados como fontes para iluminar ou rediscutir diferentes aspectos históricos, bem como uma análise das representações e das ligações entre o individual e o coletivo. Seu caráter íntimo é exposto pela leitura das correspondências, nas quais fragmentos de existências ficaram registrados, permitindo olhares sobre as experiências plurais e o universo de seus produtores e seus destinatários. Nossa análise será exemplificada com a apresentação de três Acervos Privados, integrados por cartas, bilhetes e diários sob a guarda do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, que desde 1903 vem mantendo sob sua custódia um importante patrimônio histórico, constituído por documentos que remontam ao século XVIII, tanto privados como provenientes das várias funções exercidas pelo governo Estadual.

Palavras Chave: Fontes Históricas; Arquivos Particulares; Acervos Pessoais; Memória; Arquivos; Ensino.

ABSTRACT

Documents for private use, such as letters and diarys, but have always been used to view the past, only in recent years were considered sources with great potential to be objects of historical research. From the organization and provision of documentation, we discuss the potential of historical sources such as matches, drawing the attention that they are carriers of knowledge and experiences, therefore, the load time of the experience - discontinuous and fragmented. Such an approach allows a better understanding of the past, a humanization of the so-called "big characters" and the recovery of everyday.

Keywords: Historical Sources; Private Archives; Personal Heaps; Memory, Archives; Teaching.

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O USO DE MEMÓRIAS COMO FONTE DE PESQUISAPARA A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO DA POPULAÇÃO

NEGRA EM SÃO PAULO1

Surya Aaronovich Pombo de Barros2

Introdução

A História da Educação nasceu no Brasil associada à formação de professores (em Escolas Normais e, posteriormente, cursos de Pedagogia), e à construção da memória de grandes feitos educacionais no passado. Nas últimas décadas do século XX, ganhou status de campo de conhecimento, o que pode ser verificado no fortalecimento como disciplina de graduação via autonomia em relação à Filosofia da Educação e, principalmente, sua inserção em programas de pós-graduação de importantes instituições universitárias brasileiras, assim como a criação de Sociedades e Grupos de Pesquisas, a ampliação de publicações para a divulgação das pesquisas e a organização de diversos encontros científicos em nível nacional e internacional. Tal realidade demonstra o fôlego obtido pela História da Educação Brasileira3.

Esse fortalecimento, obtido nos últimos anos, foi acompanhado por profundas transformações no campo, o que já vem sendo alvo de discussão de diversos autores da área. Dentre essas mudanças, podemos destacar a emergência de diferentes sujeitos históricos analisados no que se refere ao acesso (ou não) à cultura escolar. Assim, “vários sujeitos da educação vêm sendo valorizados em suas ações cotidianas, o que se explicita no aumento de interesse pelas trajetórias de vida e profissão e no engajamento que observa em análises organizadas em torno de questões de gênero, raça e geração”4.

Portanto, a ausência da população negra nas análises sobre o passado educacional brasileiro, justificada em parte pela interdição à matrícula e a frequência de escravos (e, por vezes, também a “africanos livres”) presente na maioria das legislações provinciais, foi sendo ultrapassada. Na década de 1980, impulsionada pelo centenário da abolição, assim como pelo fortalecimento de novas abordagens historiográficas, a questão da participação da população negra na sociedade brasileira tomou outro rumo nos trabalhos de pesquisadores da História do Brasil, que durante muitas décadas não abordava tal questão: “a partir de então, de forma mais visível, novas perspectivas teóricas e novas fontes e metodologias passaram a

1 Esse tema foi discutido em parte em minha dissertação de mestrado, defendida em 2005 na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

2 Mestre em História e Historiografia da Educação pela Universidade de São Paulo. Professora Assistente no Departamento de Habilitações Pedagógicas da Universidade Federal da Paraíba. E-Mail: <[email protected]>.

3 VIDAL, Diana & FARIA FILHO, Luciano. História da Educação no Brasil: a constituição histórica do campo e sua configuração atual. São Paulo: USP, 2003. Trabalho não publicado.

4 VIDAL, D.; FARIA FILHO, L.; GONÇALVES, M. & PAULLILO� A. História da Educação no Brasil: a configuração do campo e a produção atual no Estado de São Paulo (1943-2003). São Paulo: USP, 2004, p. 141. Trabalho não publicado.

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integrar os livros e artigos de historiadores já consagrados e de novos historiadores”5. Esse processo, já bastante discutido nas análises sobre a História do Brasil, alcançou também a História da Educação Brasileira. No final da década de 1980 surgiram os primeiros trabalhos na área tratando da presença da população negra na escola numa perspectiva histórica. Ainda que de maneira tímida no início, essa temática vem se fortalecendo nesse campo. Os primeiros anos do século XXI viram o aumento dessas pesquisas, em quantidade e qualidade6. Exemplo desse processo são algumas obras já realizadas, tais como Barros7, Fonseca8 e Silva9, dentre outras.

Junto a esse processo de fortalecimento da História da Educação, verificou-se no Brasil uma aproximação cada vez maior com a História, suas questões metodológicas e, especialmente a importância das fontes. Uma das especificidades do trabalho historiográfico é a utilização de fontes primárias, o que se constitui numa das maiores dificuldades enfrentadas pelo historiador, seja pela escassez de documentos, pela má conservação dos arquivos ou, ainda, pela documentação escrita ser produzida, na maioria das vezes, pelos “de cima”. Tais questões se agravam quando o objetivo da pesquisa é evidenciar a atuação da população negra, especialmente no período de vigência da escravidão ou logo após o seu fim, quando o estigma do ser escravo era muito presente.

Portanto, quando se trata de trabalhos relacionados à questão racial, a dificuldade na utilização das fontes aumenta, como testemunham diferentes autores que pesquisaram sobre o assunto. Maria Cristina Cortez Wissenbach, tratando da nova historiografia da escravidão surgida desde a década de 1980, afirma que “os pesquisadores tiveram que lidar com uma série de dificuldades, decorrentes não só da escassez de documentos sobre o tema da vida escrava, mas também, principalmente, daquelas causadas por uma incompatibilidade intrínseca entre as fontes oficiais e a história dos despossuídos ou dos dominados que se procurava resgatar”10. Deste modo, foi preciso recorrer a “tipos diferenciados de fontes, (...) ampliando os horizontes da pesquisa histórica e reinterpretando aspectos da organização social

5 MATTOS. Hebe M. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 13.

6 Desenvolvemos, atualmente, a pesquisa denominada “Estado da Arte da Produção sobre História da Educação da População Negra no Brasil”, que tem o objetivo de fazer um balanço das pesquisas realizadas sobre história da educação da população negra. As análises de congressos da área, revistas científicas, bancos de teses e dissertações, entre outros mecanismos de busca, demonstram a abrangência das pesquisas, seja temporal seja geograficamente: da Colônia à segunda metade do Século XX, diversas regiões, províncias/ estados brasileiros são alvo de pesquisas que articulam população negra (escrava ou livre) e educação.

7 BARROS, Surya Aaronovich Pombo de. Negrinhos que por ahi andão: a escolarização da população negra em São Paulo (1870-1920). Dissertação (Mestrado em História e Historiografia da Educação). Universidade de São Paulo. São Paulo, 2005.

8 FONSECA, Marcus Vinícius da. A educação dos negros: uma nova face do processo de abolição do trabalho escravo. Bragança Paulista: EDUSF, 2002. __________. População negra e Educação: um perfil racial das escolas mineiras no século XIX. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2009.

9 SILVA, Adriana Maria de Paulo. Aprender com perfeição e sem coação: uma escola para meninos pretos e pardos na Corte. Brasília: Editora Plano, 2000.

10 WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Cartas, procurações, escapulários e patuás: os múltiplos significados da escrita entre escravos e forros na sociedade oitocentista brasileira. Revista Brasileira de História da Educação, n. 4, jul./dez., 2002, p. 104.

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e cultural não só dos escravos como também dos grupos egressos da escravidão11. Além da pequena quantidade de fontes oficiais sobre a escravidão é conhecido o fato de que “nos anais da história da escravidão brasileira e das populações de afro-descendentes, foram raros ou raríssimos os depoimentos diretos deixados por esses setores sociais 12.

Quando se trata da relação entre educação formal e população negra antes do século XX, essa questão se agrava, uma vez que, como mencionado acima, durante muito tempo a historiografia da educação não considerava a população como parte dos possíveis sujeitos da escolarização, em função da interdição legal à presença escrava na escola em grande parte das legislações provinciais13. Embora esse quadro venha se alterando, a discussão sobre as fontes continua presente, sendo realizada continuamente.

Pretendemos, neste artigo, contribuir com o debate sobre a utilização de fontes em pesquisas históricas sobre a educação da população negra, apresentando e discutindo algumas das fontes utilizadas na pesquisa de mestrado ‘Negrinhos que por ahi andão’: a escolarização da população negra em São Paulo (1870-1920), de 2005, na qual buscamos discutir a escolarização dessa camada na cidade de São Paulo, entre o final do século XIX e o início do século XX. Mais especificamente, debateremos como as memórias daqueles envolvidos com o universo escolar – na perspectiva da inclusão ou o contrário, sendo excluídos - pode ajudar no entendimento do processo de escolarização da população negra no período citado. Assim, pretendemos refletir sobre a utilização de depoimentos como um tipo de fonte possível para pesquisas no campo da história da educação da população negra.

Inicialmente discutiremos as fontes utilizadas na pesquisa, não apenas os depoimentos mencionados. A seguir, apresentaremos as pesquisas com depoimentos, a metodologia utilizada no tratamento desses documentos e as possíveis contribuições que eles podem oferecer para as pesquisas sobre a escolarização da população negra no período mencionado, assim como os limites para o uso dos depoimentos.

História da Educação da População Negra: Relação com as Fontes

O objetivo de nosso mestrado, aqui debatido, foi examinar estratégias e táticas empreendidas por camadas brancas e negras da população no que se refere à instrução formal. De um lado, analisamos a posição que denominamos de “ação branca” no que se referiu à educação formal da população negra: ao mesmo tempo em que a educação para essa camada era valorizada nos discursos, nas defesas de pensadores, políticos, intelectuais, e outros envolvidos com a ascensão da cultura letrada, ao mesmo tempo impunham-se dificuldades para o acesso à escola para os negros: legislações proibitivas e, também, cotidiano excludente – professores, inspetores, familiares de alunos brancos, membros do grupo branco impondo barreiras para o acesso e permanência negra na escola. De outro lado, no que chamamos de “ação negra”, buscamos demonstrar a procura pela escola, por parte desse grupo, e ao mesmo tempo, a recusa à cultura escolar por outra parte dessa camada da população – de resto, um processo comum ao processo de

11 WISSENBACH, Cartas..., p. 104.12 WISSENBACH, Cartas..., p. 105.13 BARROS, 2005.

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institucionalização da escola primária brasileira.Em função da natureza da pesquisa, a explicitação das posições desses diversos

grupos dificilmente estaria em apenas um tipo de documentação. Por exemplo, em São Paulo a categoria cor já não aparecia nos documentos da Instrução Pública da Província pelo menos desde a segunda metade do século XIX, período por nós consultado nos arquivos referentes à instrução pública da província. Eliane Peres, ao discutir o acesso ao letramento por parte de pessoas negras em Pelotas/ RS no século XIX também debate a “invisibilidade” do grupo: na documentação analisada por ela “há um silêncio nas fontes sobre a presença desse segmento da população”14. A ausência da menção à cor foi sentida em nossa pesquisa, por exemplo, nas Listas de Matrículas de escolas paulistanas, o que dificultava a identificação de alunos e alunas de origem negra. Outros indícios dessa presença tiveram que ser buscados para que pudéssemos trabalhar com a realidade de que alunos de origem negra frequentaram essas escolas.

Percorremos diversos tipos de registros para realizar o trabalho: acervos referentes à Instrução Pública do Arquivo do Estado de São Paulo; acervos do Arquivo Municipal de São Paulo Washington Luís; Jornais da Raça Negra; artigos da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e depoimentos de pessoas que participaram do processo de escolarização no período.

São esses últimos registros que pretendemos evidenciar nesse artigo: as memórias. Tais fontes são resultados de duas pesquisas realizadas no final da década de 80 (do século XX) por pesquisadoras paulistas. A pesquisa Memória da Escravidão em Famílias Negras de São Paulo, sob a coordenação das professoras Maria de Lourdes Monaco Janotti e Suely Robles Reis de Queiroz, é constituída de depoimentos de membros de 44 famílias negras do Estado de São Paulo, sendo 13 da Capital e 31 do interior. Realizada entre 1987 e 1988, a pesquisa teve como principal objetivo perceber como, no período do centenário da abolição da escravatura, dava-se a memória da escravidão nessas famílias15. A pesquisa Memórias de velhos mestres da cidade de São Paulo e seus arredores, realizada em 1988 sob a coordenação da professora Zeila de Brito Fabri Demartini, colheu depoimentos de 33 mestres (professores e professoras) que atuaram na educação nas três primeiras décadas da Primeira República16. A seguir, apresentaremos cada um dos dois trabalhos, discutindo como foram utilizados.

Memórias e Possibilidades de Utilização

Coleção Memória da Escravidão em Famílias Negras de São Paulo

A pesquisa Memória da Escravidão em Famílias Negras de São Paulo, como já foi mencionado, foi realizada sob a coordenação das professoras Maria de Lourdes Monaco Janotti e Suely Robles Reis de Queiroz, é constituída de depoimentos de 14 PERES, Eliane. Sob(re) o silêncio das fontes... A trajetória de uma pesquisa em história da educação

e o tratamento das questões étnico-raciais. Revista Brasileira de História da Educação, n. 4, jul./dez., 2002, p. 76. Grifo da autora.

15 JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco & QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Relatório final do projeto Memória da Escravidão em Famílias Negras de São Paulo. São Paulo: CAPH, 1988. Trabalho não publicado.

16 DEMARTINI, Zeila de Brito Fabri. Relatório final da pesquisa Memórias de Velhos Mestres da cidade de São Paulo e seus arredores. São Paulo: CERU/ Fundação Carlos Chagas, 1988.

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membros de 44 famílias negras do Estado de São Paulo, sendo 13 da Capital e 31 do interior. Realizada entre 1987 e 1988, a pesquisa teve como principal objetivo perceber de que maneira, no período do centenário da abolição da escravatura, dava-se a memória da escravidão nessas famílias. Foram colhidos depoimentos de três gerações de pessoas negras da mesma família, e assim estão divididos no relatório de pesquisa. É possível apreender as visões de uma mesma família a partir do recorte geracional, regional, ou conhecer visões de cada geração (primeira, segunda, terceira) lendo todo o grupo. Enfim, de acordo com o objetivo de pesquisa de quem lê os depoimentos, é possível fazer o recorte.

Segundo as organizadoras, as reflexões acerca de como utilizar o resultado das entrevistas “se iniciaram como perguntas dos historiadores – o que fazer com os depoimentos orais? Como traduzir nossas análises de caso em um discurso histórico? – terminaram em uma convicção”. Elas continuam:

As soluções das questões metodológicas encontram-se na própria sabedoria do depoente. Aprenderemos muito se atentarmos para o que diz Ediana Arruda: ‘Meu avô fala que o avô dele veio do Congo da África. Ele conta quando eram escravos. Às vezes ele mesmo mistura tudo. São histórias que a gente, se for ver, tem que ir juntando, pedaço por pedaço, para a gente inteirar uma história’ (família 5, Piracicaba, 3ª geração, p. 15).17

O resultado do projeto pode ser encontrado no CAPH/USP (Centro de Apoio à Pesquisa Histórica da Universidade de São Paulo), estando as entrevistas transcritas e divididas em pastas de acordo com a localidade de origem de cada família, o que facilita o trabalho do pesquisador. Como foram entrevistados membros de três gerações de cada família, há relatos de depoentes nascidos entre o final do século XIX e segunda metade do século XX.

Uma vez que a pesquisa que resultou no mestrado aqui apresentada foi desenvolvida destacando o período entre 1870 e 1920, lemos todos os depoimentos dos nascidos até a década de 1920, catalogados como “depoentes de primeira geração”, a fim de tomar contato com suas memórias acerca da escolarização (ou não). Alguns desses relatos mostram, por exemplo, as dificuldades encontradas pelos descendentes de escravos para frequentarem a escola e também sobre o interesse de parte do grupo em ter acesso à instrução formal.

No relatório final do projeto, ao analisar alguns aspectos dos relatos e das vivências das pessoas oriundas de famílias descendentes de escravos, as coordenadoras da pesquisa compartilham reflexões acerca da relação destes com a escola que merecem ser transcritas:

a freqüência à escola, rara na primeira geração e cada vez mais comum a partir da segunda, também representou um passo importante, pois garantia acesso a um universo maior de informações, que poderia propiciar ao indivíduo contextualização mais ampla.18

17 JANOTTI & QUEIROZ, Relatório final..., p. 13.18 JANOTTI & QUEIROZ, Relatório final..., p. 50.

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Elas acrescentam:

apesar do estudo apresentar-se, para a maioria desses depoentes como um bem raro desejado, poucas vezes lhes foi possível, frente às condições concretas de existência, obtê-lo.19

Ainda sobre a temática da escola, as autoras escrevem:

a escolaridade, presente na infância de quase toda a criança está igualmente registrada nas reminiscências de membros de famílias negras, mostrando limitações e obstáculos ao acesso e continuidade da educação formal, premidos pela necessidade de se inserir, prematuramente, no mundo do trabalho.20

Elas continuam:

esse acesso e permanência na escola, nas terceiras gerações, se acentuam pelas próprias mudanças registradas na organização do sistema escolar. (...) a não freqüência à escola ou a ela ter acesso, mas não ir muito além das primeiras séries foram tônicas persistentes nas duas primeiras gerações de depoentes. Em relação à terceira geração, há registros marcantes de tratamento pejorativo sofrido em classe ou nas brincadeiras de rua, por serem negros.21

A maioria dos registros é de pessoas que nasceram em períodos posteriores ao abarcado neste trabalho. Alguns dos depoentes, entretanto, estiveram em idade escolar nas primeiras décadas do século XX, ainda no final da periodização de nossa pesquisa. Por exemplo, o depoente Antonio Carlos Ferraz, nascido em 1913, fala sobre o pai, um escravo baiano, que fora dado ao seu senhor – um estudante – pelo sogro deste, quando se casara com uma baiana enquanto estudava naquela província: “(...) ele [seu pai] ... era um homem muito esperto, leiloeiro, sabe? (...) sabia ler muito bem, escrever, trabalhou em... como é que se diz... em Santos, né? Carregamento de navio...”. O depoente conta que aprendeu a ler com o pai, que também ensinava a outras pessoas:

É, é, meu pai dava aula pra mim pra mais... no sítio, pra aqueles pessoal, aquele tempo não é que nem hoje que tem aula, escola em todo lugar... (...) ... então quando tinha um que sabia ler bem, então tudo mundo vinha ali, aprender com ele, né? Meu pai dava aula pra uma turminha e eu também tava aprendendo (...).

Mas os depoimentos explicitam, também, as dificuldades. Outro entrevistado, nascido em 1910, quando perguntado pelo entrevistador se gostaria de comentar algo sobre sua vida, responde:

19 JANOTTI & QUEIROZ, Relatório final..., p. 50.20 JANOTTI & QUEIROZ, Relatório final..., p. 68.21 JANOTTI & QUEIROZ, Relatório final..., p. 68.

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(...) num pude istudá (estudar) e foi... entrei no... no... na ... na escola, naquele tempo do interior, então fiquei só oito mese(s)... ... depois tive que saí pa, pra vim, pra panhá (apanhar) café, purque... (...) intão, num, num, num pude... num pude, num tive... muito, muito tempo de...de...de...de cancha pra... (...) prá istudá (estudar), essas coisas.

O preconceito racial enfrentado no cotidiano escolar, também é perceptível a partir das memórias dos entrevistados. A entrevistada Benedita, nascida entre 1911 e 1912, afirma:

E minha mãe comprava aqueles chinelinhos de saco, que eu ia na escola, aqueles avental com aquele pano grosso, parece linhão, tinha bege e... fazia aqueles avental. Eu chegava na escola e as meninas toda arreliava de mim - preconceito, né? Eu pegava, eu chorava, né?

Outro entrevistado, nascido em 1916, confirma como, muitas vezes, o preconceito racial era explícito:

Tinha muito racismo, mesmo. Apanha na escola, viu. Uma professora, trocou de professora, uma vez, e eu não fiz uma lição lá, que eu não sabia, né, não fiz, ah, ela meteu a régua na minha orelha que cortou! Me cortou a orelha, viu? Aí toca fazer curativo! Depois os menino, lá, naquele tempo, né, xingava a gente: ‘Tição’, tal, até que peguei o menino na rua e dei uma surra nele (risos) e me expulsaram do, do colégio, não deixaram mais eu estudar. Ainda minha mãe ainda foi lá, chorar pr’eu estudar... expulsaram!

Consideramos que os depoimentos desses membros da primeira geração de famílias negras, entrevistados no centenário da Abolição, aliados ao uso de outros tipos de fontes, auxiliaram na construção do quadro mais geral acerca da participação negra na escola paulistana.

Memórias de velhos mestres da cidade de São Paulo e seus arredores

A pesquisa Memória de Velhos Mestres na cidade de São Paulo e seus arredores foi realizada em 1988, sob a coordenação da professora Zeila de Brito Fabri Demartini. Foram colhidos depoimentos de 33 mestres (professores e professoras) que atuaram na educação paulista nas três primeiras décadas da Primeira República. Através desses depoimentos e com o auxílio de dados complementares, retirados dos Anuários do Ensino de São Paulo e das Revistas do Ensino da Diretoria da Instrução Pública do Estado de São Paulo, o objetivo primordial do projeto foi traçar um panorama da educação na cidade de São Paulo e arredores através das memórias dos professores que ali atuaram. Segundo Demartini, “se o conhecimento do presente é importante, há uma outra dimensão do problema que não pode ser ignorada, e, ao contrário, ‘deve’ também ser pesquisada: trata-se da análise das questões segundo uma perspectiva histórica, isto é, procurando conhecer os fatos através do tempo” 22.22 DEMARTINI, Relatório final..., p. 1.

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O resultado da pesquisa está apresentado num Relatório de três volumes. Nas primeiras partes Zeila Demartini divide a análise das entrevistas em função das diversas instituições como “escolas isoladas”, “Grupos Escolares”, “externatos”, “Liceus” e “cursos preparatórios”. A última parte do relatório compreende as “escolas para segmentos diferenciados da população”. Segundo a questão colocada por Demartini, o ponto crucial era pensar “o que caracterizava esta cidade e sua população, que pudesse explicar tamanha diversidade de experiências escolares, numa mesma época (...)”23.Ela analisa a existência de escolas voltadas para três segmentos da população: negros, judeus e japoneses. Aqui, em função de nosso objeto de pesquisa, nos fixamos principalmente às experiências voltas para o segmento negro.

Nas memórias dos professores que lecionaram na Primeira República (entre os anos 10 e 40 do século XX), ouvidos pelo Projeto Memória de velhos mestres da cidade de São Paulo e seus arredores, fica evidente quão poucas lembranças de alunos e alunas negras possuem esses professores. A pesquisa foi realizada diferenciando as memórias de professores que lecionaram em “grupos escolares”, “escolas isoladas”, “liceus”, “cursos preparatórios” e “escolas para segmentos diferenciados da população”. No relatório final, Demartini afirma que “os grupos, pela própria localização, destinavam-se à população mais central e, segundo alguns, mais ‘selecionada’ da cidade; as escolas isoladas, à população que não tinha condições de aí residir, ou de freqüentar os cursos diurnos”24. Segundo ela, “os filhos de operários representavam a maioria dos alunos em grupos escolares, ao lado de filhos de trabalhadores urbanos em geral. Apesar dos altos níveis de evasão escolar no período, a camada de baixa renda não estava excluída do sistema de ensino”25. Embora frequentada pela camada de baixa renda, nas memórias dos velhos mestres de São Paulo poucas vezes estão presentes lembranças de alunos e alunas negras em suas escolas. Ao contrário da presença de crianças brancas e principalmente descendentes de imigrantes, cujas lembranças são recorrentes. Podemos ver isso na repetição de expressões como “italiana linda”, “menina branquinha” e outras menções à cor branca dos alunos e alunas. A disputa entre negros e imigrantes se dava também pela territorialidade. Pesquisas referentes à cidade de São Paulo no final do século XIX demonstram como a população negra foi sendo afastada do centro em detrimento dos imigrantes europeus, que conformavam a cara desejada para a cidade26. Nesse sentido, é sintomático perceber que uma das únicas lembranças que comporta crianças negras, entre os depoimentos de professores paulistanos que lecionaram durante a Primeira República, é a da professora do Grupo Escolar Rural do Butantã, de 1932. Segundo ela, frequentavam o distante Grupo “os alunos de cinco raças. Tinha japonês, tinha italiano, tinha espanhol, tinha português e tinha a raça preta. Tinha de várias posições sociais”27.

Um outro exemplo é a fala de uma professora do Externato São José, criado a

23 DEMARTINI, Relatório final..., p. 333.24 DEMARTINI, Relatório final..., p. 57.25 DEMARTINI, Relatório final..., p. 63.26 SANTOS, Carlos José Ferreira. Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza (1890-1915). São

Paulo: FAPESP; Annablume, 2003. WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1880). São Paulo: HUCITEC, 1998.

27 DEMARTINI, Relatório final..., p. 145.

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fim de oferecer instrução para crianças pobres. Demartini, ao analisar a clientela dos externatos, afirma:

esta camada média não tinha condições de sustentar os filhos em colégios freqüentados pela camada alta, mas também não se submetia à escola pública, que abrigava a população pobre, imigrantes e seus descendentes.28

A professora entrevistada confirma: “Pelo tipo das minhas alunas, eram todas brancas. Todas brancas”29.

Assim, ainda que pela ausência nas memórias de mestres e mestras, pudemos verificar um aspecto da relação da população negra com a escola entre o final do século XIX e o início do XX: a exclusão.

Limites no uso dos depoimentos

Temos consciência das muitas dificuldades inerentes ao uso de fontes orais, já pontuadas por teóricos e pesquisadores que fazem uso dessa metodologia30. Questões como a subjetividade do entrevistado e do entrevistador, a “inexatidão” dos fatos mencionados, a construção de significados que o tempo presente pode dar ao passado, enfim, diversas são as críticas dirigidas ao uso de depoimentos orais como fonte de trabalhos científicos. Ou, nas palavras de Alessandro Portelli, “parece se temer que uma vez abertos os portões da oralidade, a escrita (e a racionalidade junto com ela) será varrida como que por uma massa espontânea incontrolável de fluídos, material amorfo”31.

Em nossa pesquisa, às críticas que se fazem à história oral pode-se acrescentar uma outra problemática: as entrevistas foram colhidas e transcritas por outros pesquisadores, para projetos com temas específicos, com finalidades diferentes das que buscávamos nos depoimentos. Ainda assim, e pretendendo fazer uma análise dos conteúdos (e não dos discursos) presentes nos depoimentos, consideramos a utilização dessas fontes interessantes para o trabalho, já que “as fontes escritas e orais não são mutuamente excludentes”32. Acreditamos que os depoimentos daqueles sujeitos que viveram o processo educacional no período contemplado nesta pesquisa nos fornecem importantes informações de como se deu o acesso da população negra à escola. Tais informações, cotejadas com aquelas recolhidas nas demais fontes utilizadas para a realização da dissertação nos ajudaram a construir o quadro da escolarização da população negra na cidade de São Paulo entre 1870 e 1920.

À guisa de conclusões

Como demonstrado acima, nossa pesquisa foi construída a partir de uma

28 DEMARTINI, Relatório final..., p. 147.29 DEMARTINI, Relatório final..., p. 158.30 FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO, Janaína (orgs.). Usos e abusos da História Oral. Rio

de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996. VON SIMSON, Olga de Moraes (org). Experimentos com Histórias de Vida (Itália-Brasil), São Paulo: Vértice, 1988. PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História, São Paulo, PUC-SP, n. 14, fev. 1997.

31 PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História, São Paulo, PUC-SP, n. 14, fev. 1997, p. 26.

32 PORTELLI, 1997, p. 26.

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pluralidade de fontes, além da contribuição imprescindível da bibliografia existente sobre o assunto. Em seu trabalho acerca do quotidiano de mulheres escravas que viviam nas fímbrias do sistema, na cidade de São Paulo no século XIX, Maria Odila L. S. Dias utiliza um termo para a metodologia que pode ser aplicado também a nosso trabalho. Discorrendo sobre o trabalho com as fontes, a historiadora afirma:

a documentação é especialmente difícil pela natureza dispersa das fontes e também por estarem, em geral, como toda fonte escrita, comprometidas com valores outros, de dominação e poder (...). É uma história do implícito resgatada das entrelinhas dos documentos, beirando o impossível, uma história sem fontes...33

Para a história da escolarização da população negra em São Paulo, no período aqui delimitado, foi possível sim eleger uma diversidade de registros como fontes importantes. Ainda assim, foi preciso “resgatar das entrelinhas dos documentos” as informações que, quando questionadas, esmiuçadas e entrecruzadas, possibilitaram que contássemos essa história acerca da posição da camada branca da população sobre essa escolarização e a visão dos próprios negros sobre a importância do acesso à escola. Entre essa diversidade de fontes, não há dúvida de que as memórias resgatadas daqueles que presenciaram a escolarização no entre o final do século XIX e início do século XX – seja como alunos, professores ou familiares – auxiliaram fundamentalmente para a realização do mencionado trabalho de pesquisa.

33 DIAS, Maria Odila Leita da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 17.

RESUMO

Este artigo discute a utilização de um determinado tipo de fonte para a pesquisa em História da Educação da população negra em São Paulo entre o final do século XIX e o início do século XX: as memórias de quem estava envolvido com o processo educacional, seja na perspectiva da inclusão, seja na de ser excluído. O foco se concentra, portanto, sobre famílias negras que vivenciaram o pós-abolição e professores que atuaram nas primeiras décadas do século passado. Serão apresentados os projetos que recolheram as memórias citadas, a metodologia utilizada, as possibilidades e os limites para a utilização desse tipo de fonte.

Palavras Chave: População Negra; São Paulo; História da Educação; Memórias.

ABSTRACT

This article discusses the use of a particular type of source for research on Education History of the black population in São Paulo at late 19th and early 20th centuries: the memories of those involved with the educational process, either those was in an inclusive perspective, or those was being excluded. The focus is the black families who experienced the post-abolition and teachers who worked in the first decades of last century. It will present the projects that collected the memories mentioned above, the methodology used, and the possibilities and limitations for using this type of source.

Keywords: Black People; São Paulo; Education History; Memories.

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resenhas

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DOS VIKINGS

Johnni Langer1

ANÔNIMO. La saga de Fridthjóf el valiente y otras sagas islandesas. Tradução de Santiago Ibáñez Lluch. Madrid: Miraguano, 2009, 365 p.

Desde o momento em que foram amplamente divulgadas durante o século XIX, as sagas islandesas2 constituem um material imprescindível para o estudo da história dos povos escandinavos durante a Era Viking. Mas, por isso mesmo, são motivos de intenso debate pelos especialistas: até que ponto esse material literário, composto entre os séculos XIII e XIV, pode ser utilizado para a pesquisa de sociedades que viveram entre os séculos IX e XI? Tradicionalmente, as sagas islandesas eram vistas como o registro por escrito de tradições advindas de uma memória social, conservada fidedignamente pela tradição oral – mas para os historiadores, o subgrupo das sagas de família tinha maior interesse, devido às suas características de possuírem um estilo mais “realista”, em contraposição as chamadas sagas lendárias, de conotações mais fantásticas.

A polêmica intensificou-se, e hoje não se contrapõe mais o oral com o escrito (ambas existiram paralelamente e com mútua dependência) e qualquer tipo de saga possui reflexos sociais e interesse histórico, independente de seu estilo literário. Um dos tipos de sagas islandesas que vem sofrendo maior reavaliação por parte dos acadêmicos são as fornaldarsögur (sagas lendárias). Estas narrativas descrevem aventuras fantásticas ocorridas na época dos vikings (século IX ao XI), tendo como base material nativo e folclórico, mas também com muitas influências externas (romances de cavalaria, material céltico, árabe, persa, bizantino)3, com o objetivo básico de entreter a aristocracia islandesa do século XIII4. Mesmo não tendo um valor histórico como as sagas de famílias, as narrativas lendárias estão sendo utilizadas como fontes para o estudo da literatura, da ideologia, monarquia, valores éticos e morais, gênero, entre outros, tanto do período em que foram compostas quanto da época que retratam.

Assim, o lançamento de La saga de Fridthjóf el valiente y otras sagas islandesas, com tradução de Santiago Ibañez Lluch, é uma ótima oportunidade para os interessados no estudo das sagas do sub grupo lendário e as polêmicas envolvendo a construção de representações da história dos vikings ou de sua conservação pela

1 Pós-Doutor em História Medieval pela Universidade de São Paulo. Professor Adjunto do Departamento de História da Universidade Federal do Maranhão. Coordenador do NEVE - Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos (http://groups.google.com.br/group/scandia/) e membro do Grupo Brathair de Estudos Celtas e Germânicos (http://www.brathair.com/). E-mail: <[email protected]>.

2 Para um panorama genérico e metodológico das sagas, consultar: LANGER, Johnni. História e sociedade nas sagas islandesas: perspectivas metodológicas. Alethéia, v. 2, n. 1, 2009, p. 1-18. Disponível em: <http://www.revistaaletheia.com/>.

3 LLUCH, Santiago Ibañez. Características generales de las sagas de los tiempos antiguos. Suplemento do livro Sagas islandesas de los tiempos antiguos. Madrid: Miraguano Ediciones, 2007, p. II-XV.

4 TULINIUS, Torfi. Sagas of Icelandic Prehistory (fornaldarsögur). In: MCTURK, Rory (ed.). Old Norse Icelandic Literature and Culture. London: Blackwell, 2007, p. 447-461.

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memória social5.A primeira e mais famosa6 das sagas traduzidas na obra é Friðþjófs saga hins

frœkna, a saga de Frithiof, composta no século XIII7. Ela narra episódios envolvendo diversos personagens ficcionais: Helgi, Hafdan e Ingeborg, filhos do rei Beli; Frithiof, filho do rei Thorstein. Com a morte destes dois reis, os filhos de Beli assumem o governo real, negando que Frithiof se case com Ingeborg. Helgi e Hafdan levam a sua irmã para o templo de Balder, onde nenhuma pessoa poderia ter qualquer tipo de relação sexual – um interdito que é quebrado por Ingeborg e Frithiof. Furiosos, os reis casam sua irmã com o monarca Ring, obrigando Frithiof a se desterrar e viver como um foragido. Posteriormente, Ring morre e o herói assume o governo do seu reino, declarando guerra aos irmãos Helgi e Hafdan e casando com Ingeborg8.

A época em que a trama se desenrola, fornöld (idade antiga), remete aos tempos vikings. Mas ao contrário de outras sagas lendárias, como a Saga dos volsungos ou a de Ragnar que se ocupam de heróis relacionados com o repertório épico germânico, a saga de Frithiof aproxima-se muito mais de uma influência novelesca, da cavalaria romântica produzida na Europa continental. O herói desafia as normas da sociedade e a autoridade real, em nome de um relacionamento proibido, o que leva a se pensar numa influência da narrativa francesa de Tristão e Isolda, conhecida na Escandinávia após 12269.

Muitas questões podem ser levantadas a partir do texto de Frithiof e das outras seis sagas inseridas na obra. A primeira se refere ao debate sobre as influências da sociedade islandesa contemporânea ao momento de composição destes materiais, portanto, a criação de referenciais ideológicos sobre o passado viking. Neste caso, os temas religiosos são bem destacados. O paganismo retratado tem correspondência

5 Relação das sagas islandesas traduzidas para essa edição: Saga de Fridthjóf el valiente (p. 85-142); Saga de Hjálmthér y Ölvir (p. 143-222); Saga de Ketil Salmón (p. 223-258); Saga de Grím Mejillas Peludas (p. 259-276); Relato de Gest de las nornas (p. 277-320); Relato de Thorstein grande como una granja (p. 321-352); Relato de Helgi Thórisson (p. 353-361). Esta última narrativa recebeu uma tradução completa do inglês para o português, bem como uma brilhante análise, integrante da obra de CARDOSO, Ciro Flamarion. Narrativa, sentido, história. São Paulo: Papirus, 2005, pp. 67-83.

6 A Saga de Fridthjóf foi muito popular no romantismo setecentista e oitocentista, recebendo diversas adaptações. Em 1737 a saga islandesa original foi traduzida para o sueco, e em 1825 a narrativa recebeu uma versão poética, realizada por Esaias Tegner, Frithiof saga. O músico Max Bruch compôs a cantata Frithjof em 1864, e o dinamarquês Johan Wagernaar criou a peça para orquestra Fritjof's Meeresfahrt, opus 5. Também a narrativa islandesa influenciou a criação de uma ópera, Frithjof, de 1895. Os pintores românticos, do mesmo modo, tiveram muito interesse pela saga, como nas várias versões de O lamento de Ingeborg, de August Malström (1888), de Boehmer (1846), e de Fredrik Nicolai Jensen (1830).

7 A versão manuscrita utilizada pelo autor para a tradução é a B, mais tardia e mais longa que as conhecidas como A1 e A2. LLUCH, Santiago Ibañez. Introducción. La saga de Fridthjóf el valiente y otras sagas islandesas. Madrid: Miraguano, 2009, p. 8.

8 Uma das mais famosas representações plásticas da saga foi a pintura Frithiof e Ingeborg, de August Malström, 1840, que possui um anacronismo: os personagens casam no templo de Balder, mas que segundo a narrativa original, havia sido destruído por Frithiof antes do rei Ring morrer, e consequentemente, este casar com Ingeborg. Para um estudo destas representações românticas, consultar: MJÖBERG, Jöran. Romanticism and revival. In: WILSON, David (Ed.). The Northern World: the history and heritage of Northern Europe. New York: Harry N. Abrams, 1980, pp. 207-238.

9 LLUCH, Santiago Ibañez. Introducción. La saga de Fridthjóf el valiente y otras sagas islandesas. Madrid: Miraguano, 2009, p. 16.

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com o que realmente era efetuado na Escandinávia da Era Viking, mas assume um papel mais caricato, superficial e muitas vezes anacrônico nas sagas islandesas10.

O santuário do deus Balder, por exemplo, que nas primeiras linhas da saga de Frithiof já ocupa um lugar central na narrativa, é fantasioso: seria uma grande construção com um cercado de madeira em torno, repleto de estatuetas e proibido a toda forma de relacionamento sexual. Na realidade, os vikings não possuíam construções especializadas para fins religiosos, servindo a casa do rei ou das lideranças circunstancialmente para eventuais festivais e comemorações religiosas11. Com isso, o contexto sacro e proibido da área serve apenas para contextualizar as atitudes do herói Frithiof: primeiro, ele desafia os deuses, relacionando-se com Ingeborg no local; depois, queima o templo. Atitudes típicas de um nobre pagão12: no momento da composição da saga, a audiência necessitava da criação de uma ligação com os tempos pagãos (a Era Viking) – afinal, eles representavam um momento de liberdade política, social e cultural que não podiam ser descartadas simplesmente (a Islândia foi anexada à Noruega em 1262) - mas ao mesmo tempo, não se poderia criar elementos totalmente positivos para uma religiosidade não-cristã.

Deste modo, alguns reis, líderes, guerreiros e fazendeiros importantes da Era Viking, se tornam na narrativa das sagas, pagãos que não se preocupam com o paganismo, ou em outras, palavras, adeptos de um credo que está para ser extinto com o tempo. O seu comportamento “desleixado” com relação à religiosidade pré-cristã é ao mesmo tempo, um clichê literário e um anacronismo histórico. Um exemplo semelhante ao de Frithiof ocorre em outra saga islandesa da edição de Santiago Lluch: o herói Ketil, que afirma nunca ter feito sacrifícios para Odin, porque não acreditava nesta divindade (La saga de Ketil Salmón, p. 255).

Outro tema recorrente, a magia, envolve mais reinterpretações por parte dos autores das sagas. Na Saga de Fridthjóf el valiente (p. 102), duas feiticeiras chamadas Heid e Hamgláma realizam encantamentos para que o navio do herói afunde no mar. Do mesmo modo, no Relato de Gest de las nornas (p. 295), os filhos de Hunding tentam afundar o navio de Sigurd enviando uma grande tempestade por meios mágicos. Também objetos com poderes sobrenaturais são citados, como cajados e luvas, que auxiliam Thorstein a descer aos mundos subterrâneos (Relato de Thorstein grande como una granja, p. 323). Apesar de existir nos tempos vikings, relacionada tanto a questões de auxilio cotidiano como de malefícios e contendas

10 Mas existem menções à religiosidade pré-cristã de forma mais neutra e realista nas sagas lendárias: as descrições do uso de montes funerários como assentos régios (Saga de Fridthjóf el valiente, p. 92); as festas sacrificiais promovidas pelos reis em honra às dísir (Saga de Fridthjóf el valiente, p. 121); sacrifícios dos camponeses para terem boas colheitas nas comunidades rurais (La saga de Ketil Salmón, p. 251); uma festa da realeza comemorando com cornos de bebidas em honra aos deuses Thor e Odin (Relato de Thorstein grande como uma granja, p. 343). Sobre aspectos da religiosidade dos vikings, ver: LANGER, Johnni. Religião e magia entre os vikings: uma sistematização historiográfica. Brathair, v. 5, n. 2, 2005. Disponível em: <http://www.brathair.com/>.

11 LANGER, Religião e magia..., p. 61.12 Trata-se de um recurso narrativo, criado pelo escritor da saga, antecipando o triunfo dos seguidores

de Cristo, num futuro já conhecido, mas inexistente no momento em que os fatos ocorrem. É a famosa imagem do nobre pagão, teorizada pelo escandinavista Lars Lönnroth (O estudo foi publicado inicialmente na conceituada revista Scandinavian Studies n. 41, 1969, The noble heathen: a theme in the sagas).

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sociais, a magia nas sagas lendárias surge como um empecilho à trajetória da principal personagem, transformando-se em um clichê literário. Mas também, a antiga noção de encantamento das religiosidades pré-cristãs transforma-se em feitiçaria, dentro de um contexto cristão, não necessariamente diabólica, mas maléfica (a noção de feitiçaria diabólica, a bruxaria, penetra na Escandinávia somente depois do século XIV)13.

Outros temas mágicos, como as metamorfoses animais, possuem mais funções de entretenimento e suspense do que caráter negativo: o rei Helgi transforma-se em uma baleia para combater o protagonista (Saga de Fridthjóf el valiente, p. 111), da mesma forma que o rei Hunding (La saga de Hjálmthér y Ölvir, p. 209) e o cetáceo avistado por Ketil (La saga de Ketil Salmón, p. 232). O clichê literário, evidentemente, diverte as plateias as comunidades que ouviam a narração das sagas, concomitantemente entre a tradição oral e escrita na Islândia medieval14. Mas, voltando ao tema inicial de nossas reflexões: até que ponto essa memória social preservou a história e a cultura dos vikings?

Mesmo que muitos temas, fatos, personagens e narrativas tenham sido preservadas desde os tempos pagãos, essencialmente por meio dos escaldos – os poetas especializados na memória – elas possuíam muitas versões devido à característica essencial da oralidade, que nunca conserva as informações de forma idêntica, sofrendo variações conforme a região e a época. Ao passar do oral para o escrito (com a introdução da escrita latina), também houve transformações15 da memória coletiva da Islândia, agora regida por novos valores religiosos, ideológicos, políticos e sociais. Cabe aos historiadores discutirem como foram essas mudanças e como obter informações para o estudo da Era Viking16. Um bom tema para essas discussões diz respeito aos berserkers17.

Espécie de grupo de elite marcial, relacionado nas fontes ao deus Odin e

13 Sobre o tema, verificar: LANGER, Johnni. Seiðr e magia na Escandinávia Medieval: reflexões sobre o episódio de Þorbjörg na Eiríks saga rauða. Signum, v. 11, n. 1, 2010, p. 177-202. Disponível em: <http://www.revistasignum.com/>.

14 Vários temas presentes nas sagas lendárias provém de material não escandinavo, especialmente da literatura francesa e já com muitos elementos cristãos: o motivo do dragão voando e soltando fogo, por exemplo (La Saga de Ketil Salmón, p. 226), não tem origem na tradição germânica, que concebia os dragões como serpentes gigantes, sem pernas, asas ou fogo – estes dois últimos aspectos um acréscimo devido ao imaginário do diabo e do inferno, após o século X. Sobre o assunto, consultar: LANGER, Johnni. O mito do dragão na Escandinávia (parte três: as sagas e o sistema nibelungiano). Brathair, v. 7, n. 2, 2007, p. 106-141. Disponível em: <http://www.brathair.com/>.

15 “Com a passagem da oralidade à escrita, a memória coletiva e mais particularmente a memória artificial é profundamente transformada (...) Enquanto que a memória social popular ou antes folclórica nos escapa quase inteiramente, a memória coletiva formada por diferentes estratos sociais sofre na idade Média profundas transformações”. LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1994, p. 435, 442. “Memórias longas se constituem por armazenamento de lembranças individuais; a continuidade é assegurada ao preço de uma multiplicidade de afastamentos parciais”. ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 140.

16 Sobre a oralidade na Escandinávia Medieval, consultar: SIGURÐSSON, Gísli. The medieval icelandic saga and oral tradition: a discourse on method. London: Harvard Uiversity Press, 2004, especialmente a introdução teórico-metodológica (Written texts and oral traditions, p. 1-52).

17 Sobre os berserkir, consultar: LANGER, Johnni. Deuses, monstros, heróis: ensaios de mitologia e religião viking. Brasília: Editora da UnB, 2009, p. 38-39.

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conectado à guarda real e com participação especial em batalhas18 (na qual passavam por um estado de frenesi incontrolável), os berserkers parecem ter uma conotação positiva nas fontes escritas mais antigas, e com o tempo, tornam-se figuras mal vistas, especialmente nas sagas lendárias: “hombres malvados y pendencieros. Experimentaban con frequência el furor del berserkr” (Saga de Fridthjóf el valiente, p. 116); “llamó a sus hombres, berserkir y negros” (La saga de Hjálmthér y Ölvir, p. 161); “Era um hechicero y el hierro no le mordía” (La saga de Ketil Salmón, p. 249); “doce infames berserkir” (Saga de Grím mejillas peludas, p. 272).

Afinal, qual a verdadeira faceta dos berserkers nos tempos vikings: eram temidos pelos camponeses e esse pavor foi conservado pelas sagas?19 Ou sua ligação fanática por Odin mereceu seu caráter especialmente negativo pelos escritores após a cristianização, imputando um caráter de campeões do paganismo que necessitam serem vencidos pelos heróis das narrativas? São questões que requer mais compreensão das fontes medievais, e os debates sobre história e memória podem auxiliar neste sentido.

A recente edição de Santiago Lluch possui uma excelente introdução analítica, com descrição detalhada dos manuscritos e o conteúdo temático das sete narrativas traduzidas. Além disso, possui um ótimo suplemento, introduzindo o leitor a respeito dos manuscritos islandeses do medievo. A tradução das narrativas do islandês antigo para o espanhol é excepcional, com um texto fluente e agradável, mas sem perder o rigor acadêmico. A obra também foi enriquecida por centenas de notas, contextualizando os termos linguísticos originais, além de conceder muitas informações acompanhadas de referências bibliográficas especializadas.

O livro La saga de Fridthjóf el valiente y otras sagas islandesas, desta maneira, colabora para manter a excelente tradição escandinavística em língua espanhola20, muito mais consolidada que a portuguesa21. Esperamos que no futuro, surjam novos

18 Na temática da guerra, surgem alguns anacronismos com equipamentos bélicos: a maça com espinhos longos é descrita na Saga de Hjálmthér y Ölvir (p. 198) e La saga de Ketil Salmón (p. 227). Este tipo de arma era comum no período em que estas duas sagas foram escritas, século XIII, mas desconhecidas na Era Viking. Sobre o tema verificar: LANGER, Johnni. Guerra ao modo viking. Brathair, v. 8, n. 2, 2008, p. 85-93. Disponível em: <http://www.brathair.com/>.

19 Essa hipótese é uma das mais interessantes. Em muitas sagas, mesmo em comunidades ainda pagãs, os camponeses temem os berserkers (como na Brennu-Njáls saga 103). Na obra que estamos resenhando, encontramos a referência de que o herói Frithiof enfrenta berserkers malvados, e o próprio rei Helgi mudava de aspecto (talvez numa referência à metamorfose destes guerreiros). Em um determinado momento, afirma-se que Frithiof: “mataba facinerosos y vikingos sanguinários, pero dejaba em paz a los campesinos y a los comerciantes” (Saga de Fridthjóf el valiente, p. 127).

20 Algumas das sagas islandesas traduzidas para o espanhol: Saga de Egil El manco; Saga de Gautrek; Saga de Ásmund; Saga de Án; Saga de Hervör; Saga de los feroeses; Saga de Egil skallagrimson; Saga de Kormak; Saga de Gisli Sursson; Saga de los habitantes de Eyr; Saga de Nial; Saga de los Ynglingos; Saga de Hranfkel; Saga de Gunnlaug; Saga de Thorstein; Saga de Gisli Illugason; Saga de Odd Ofeigsson; história de Audun; Saga de las islas Orcadas; Saga de Bósi; Saga de los Volsungos; Saga de Ragnar calzas peludas; Saga de Hrólfr kraki; Saga de Odd Flechas.

21 Em português, até o presente momento, temos a tradução das duas sagas do Atlântico Norte, a saga de Hranfkel (Três sagas islandesas, Curitiba: editora da UFPR, 2007) e a saga dos Volsungos (São Paulo: Hedra, 2009), todas com tradução direta do islandês antigo por Théo Borba Moosburger. As duas sagas groelandesas tiveram uma tradução anterior, do inglês para o português: A saga de Erik, tradução de Heloisa Prieto. São Paulo: Paulicéia, 1992. A Grettis saga foi traduzida e adaptada do inglês por Adonias Filho, Gretir, o forte. São Paulo: Ediouro, 1973. Esta última obra é muito precária.

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tradutores e pesquisadores que incrementem as publicações no Brasil, contribuindo para os estudos desta importante área do medievalismo.

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ENTRE A HISTÓRIA E A MEMÓRIADOS MITOS E LENDAS CELTAS

Luciana de Campos1

LÉOURIER, Christian. Contos e lendas da mitologia celta. Tradução de Monica Stahel. São Paulo: Editora WMF/ Martins Fontes, 2008, 224 p.

Mitos, lendas e contos folclóricos sempre foram guardiões da memória e, para algumas culturas que valorizavam sobremaneira a oralidade, essas narrativas também eram as responsáveis por transmitir a história. As narrativas mitológicas celtas2, que, na sua maioria vão apresentar as batalhas travadas entre deuses e monstros, homens e criaturas fantásticas, são narrativas fundamentais para se entender a dinâmica da sociedade celta na Irlanda. Todos esses contos que hoje lemos refletem, por assim dizer, a reverência que os celtas nutriam pela oralidade: conferiam um caráter quase que sagrado às palavras atribuindo a elas um aspecto mágico como é possível constatar em algumas narrativas como, por exemplo, em “A busca dos filhos de Tuireann” em que três jovens empreendem uma viagem pelos mares do mundo em busca de tesouros fantásticos e para se locomoverem apenas dizem: “– Barco de Mananann, já que estás sob nossos pés, leva-nos à Pérsia!” (p.45). São as palavras as responsáveis por conduzir os jovens a incontáveis aventuras, da mesma maneira que as palavras são usadas para transmitir o conhecimento, as tradições e, desta feita, perpetuar pela oralidade as tradições, a história e a memória.

Entre essas as narrativas há uma em especial “A mulher mais bonita do mundo” que se encontra, originalmente, no quarto ramo d’O Mabinogion, denominado Math, o filho de Mathonuu. Este ramo do Mabinogion narra as aventuras do rei Math do país de Gales, seu fiel amigo Gwydion, seu sobrinho Llew llaw Giffes e Arianhod, a colérica mãe de Llew. Tomada de fúria por ter dado à luz um menino indesejado, Arianrod o amaldiçoa e, depois disso, encerra-se numa fortaleza. Por intermédio da magia Gwydion vai quebrando cada uma das maldições proferidas pela irmã e quando se faz necessário, por intermédio de sortilégios, cria para seu sobrinho uma mulher com as mais belas flores existentes nas terras galesas. Quando está pronta essa mulher feita de flores recebe o nome de Blodeuvedd (Cara de Flores)3. Sendo criada a partir de elementos não humanos, Blodeuvedd vê o mundo de forma diferente e trai seu esposo o que o leva a matar o amante da esposa em uma luta para ter sua honra restaurada. Decepcionado com sua criação, Guydion transforma a “mulher mais bonita do mundo” em coruja, para que ninguém mais apreciasse sua beleza enquanto o Sol brilhar, só será permitido a ela voar durante a noite. Essa narrativa pode ser analisada como um mito de criação como sugere Miranda e Stephen Aldhouse-Green em seu estudo The Quest for the shaman, ainda sem tradução no

1 Mestre em História pela Universidade Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus de Franca. Professora Assistente no departamento de História da Universidade Federal do Maranhão. Membro do NEVE - Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos (http://groups.google.com.br/group/scandia/).

2 CAMPOS, Luciana. Contos-de-fada celtas. Brathair, v. 3, n. 1, 2003, p. 65-66. Disponível em: <http://www.brathair.com>.

3 MORAIS, Domingos (tradução). O Mabinogion. Lisboa: Assíro e Alvim, 2000.

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Brasil. Os autores fazem uma pesquisa detalhada acerca da criação em vários mitos celtas presentes no Mabinogion e na narrativa que é considerada a Ilíada Celta, A razia das vacas de Cooley (Tain Bó Cooley). Analisando dados arqueológicos e cruzando-os com as fontes literárias, os autores conseguem apresentar ao leitor que já possui um prévio conhecimento da mitologia celta, aspectos fundamentais dessa sociedade que, muitas vezes, permanecem ocultos pelos véus da literatura esotérica e de fantasia que nas últimas décadas apossou-se das narrativas míticas celtas para construir uma história e preservar uma memória que obviamente não estava de acordo com o pensamento e a lógica celta, mas atendia perfeitamente aos apelos de um mercado crescente, que em nada se preocupa com a verdadeira pesquisa sobre os celtas, sua história, mitologia e memória, mas apenas com os dividendos gerados por eles.

Outra narrativa que também reflete aspectos importantes do mundo feminino e as influências do outro mundo na vida dos mortais é “A fraqueza dos ulates”, onde é narrada a aventura amorosa do rei Crumchu com a deusa Macha. Esta se apiedou do rei e foi viver com ele em sua propriedade devido à tristeza que sentia pela falta de uma esposa. Macha restituiu a alegria e a prosperidade das terras de Crunnchu e pede a ele que jamais revele seu segredo: todas as manhãs ela corre com os cavalos em velocidade surpreendente, mesmo grávida. Não contendo sua língua, o rei acaba dizendo, em assembleia, o segredo de sua esposa, o que desperta a ira do grande rei da Irlanda e este obriga Macha a correr com seus velozes cavalos para não assistir à morte de seu esposo. A deusa vence os cavalos do rei e, ao final, exausta dá a luz a gêmeos e profere uma maldição: todo homem em Ulster será frágil como uma mulher dando à luz. As mulheres, crianças e os filhos de deuses estariam livres de tal maldição.

A partir desse momento a capital de Ulster passou a chamar-se Emain Macha, os gêmeos de Macha. A narrativa descrita por Christian Léourier assim como descrita por outros autores como Pedro May faz uma ponte desse mito com a conturbada situação da província do Ulster atualmente (localizada no norte da ilha, mais precisamente onde hoje está a Irlanda do Norte) que não honra os acordos de paz e muitas vezes descumprem o cessar fogo proposto pelo IRA e pelo seu braço político e Sinn Féain. Como sugere o autor, ainda hoje a maldição dos deuses antigos atinge sem clemência o mundo moderno dessacralizado. São os ecos da memória mítica que caminham conosco.

A narrativa “A ilha das mulheres” é outra versão bem simplificada da famosa “A viagem de Bran”, cristianizada como “A viagem de São Brandão”, narrativas essas que também deram origem a outras, como, por exemplo, “Connla e a donzela encantada”. Bran é um bom rei que um dia recebe a visita de uma bela mulher que exige de volta um galho de ouro que Bran encontrou na praia. A jovem leva seu galho de macieira feito de ouro e prata embora, mas Bran apaixona-se e vai atrás dela. Empreende uma viagem por mar e desembarca em uma ilha paradisíaca onde não há dor nem males. Depois de alguns dias Bran e a tripulação decidem voltar para a Irlanda, mas são alertados para que não o façam. Desobedecem e assim que pisam na terra transformam-se em cinzas. Passaram-se mais de trezentos anos, pois no país das fadas a contagem do tempo é diferente. Assustado Bran narra suas aventuras aos seus descendentes irlandeses e parte novamente à procura da ilha

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mágica para que lá possa viver pela eternidade, pois ele não poderá habitar a terra novamente.

Essa narrativa da viagem em busca de um lugar mítico, sem dor nem morte é uma constante nas narrativas celtas, mesmo após a cristianização da Irlanda, pois a partir daí as viagens a lugares míticos são vistos como peregrinações para difundir os ensinamentos cristãos realizando assim uma reapropriação dos Cristãos irlandeses da Alta Idade Média dos antigos mitos e lendas celtas que, ao apagarem seu passado pagão e darem versões cristãs as antigas narrativas, acabam por preservar tanto a história como a memória dos deuses e dos próprios celtas pagãos.

A publicação de Contos e lendas da mitologia celta vem contribuir sobremaneira para que o público brasileiro que há algum tempo “descobriu” os celtas e permanece ávido de novos conhecimentos. Essa publicação vem, de certa forma, preencher essa lacuna que muitas vezes foi – e ainda é – ocupada por uma literatura esotérica e por pseudo estudos que mais confundem do que esclarecem o público – acadêmico ou leigo – sobre os celtas; pois tais estudos estão a cada dia mais consolidados no Brasil e, a prova disso são as publicações especializadas, os simpósios e o maior número de traduções de importantes obras sejam elas acadêmicas ou de divulgação.

Contos e lendas da mitologia celta apresenta uma linguagem acessível, numa tradução bem cuidada e com ilustrações bem criativas executadas por Mauricio Negro. Essas narrativas são fontes importantes para quem deseja travar um primeiro contato com a mitologia celta e pode ser a porta de entrada para aqueles que desejam iniciar estudos e pesquisas sobre a sociedade, cultura, mitologia e religião dos povos celtas, sempre aliados a outras fontes literárias de origem celta bem como bibliografia especializada que, infelizmente ainda é avis rara no Brasil.

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“O MOSAICO FALHADO DA MEMÓRIA”:COMPOSIÇÕES DA INFÂNCIA E DA GUERRA

COLASANTI, Marina. Minha guerra alheia. Rio de Janeiro: Record, 2010. 286 p.

Alômia Abrantes1

No fluxo da produção de biografias e autobiografias lançadas no Brasil, Marina Colasanti, conhecida e premiada escritora, surpreende-nos com um livro de memórias sobre a sua infância vivida em meio a conflitos bélicos, em especial, no cenário italiano da II Guerra Mundial.

Poderíamos apressadamente pensar que trata-se de mais um trabalho de memória sobre um conflito reiteradamente narrado por tantos escritores, inspirador de tantas obras literárias e cinematográficas, mas “Minha Guerra Alheia”, além da marca sensível comum à escrita da autora, insinua um fazer escriturístico que ressoa nas inquietações de quem se debruça sobre a reflexão acerca da produção da memória, da escrita de si, e da relação destas com a história.

Antes, porém, de tocar a estas questões, vale pontuar rapidamente o que de mais comum sabemos sobre Marina Colasanti: nascida na África, de descendência italiana, veio ainda menina morar no Brasil, em 1948, radicando-se no Rio de Janeiro. Trabalhou por vários anos no Jornal do Brasil e tornou-se uma cronista importante em revistas voltadas para o público feminino, como Nova e Cláudia. Exerceu funções de redatora, editora e também apresentadora em programas televisivos. Publicou dezenas de livros, de diferentes gêneros literários, com destaque para a produção infanto-juvenil. Nesta, marca presença com contos que brincam com o maravilhoso universo dos contos de fadas, onde figuras femininas complexas e fortes atualizam conteúdos existenciais e transgridem rotas traçadas pelos discursos normativos das relações de gênero. Tal marca, presente em toda sua obra, tem tornado a sua escrita e aos seus livros, objetos frequentes de estudos acadêmicos ligados às questões da literatura, história das mulheres e de gênero2. Também pintora, com formação em Belas Artes, ilustra vários dos seus livros.

Premiada no jornalismo e na literatura, Marina Colasanti foi agraciada com o prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, por Entre a Espada e a Rosa (Infanto ou Juvenil/ 1993), Rota de Colisão (poesia/ 1994), Ana Z Aonde vai você? (Infanto ou Juvenil/ 1994), Eu sei, mas não devia (Crônicas/ 1997) e Passageira em Trânsito (Poesia/ 2010), além de somar vários outros prêmios nacionais e internacionais.

1 Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB- Campus III).

2 Ver, por exemplo: MICHELLI, Regina. O masculino e o feminino em Marina Colasanti: configurações, encontros embates. In: Anais do XI Congresso Nacional da ABRALIC. São Paulo: USP, 2008; SANTA MARIA, Márcia Juliane V. Marina Colasanti: longe ou perto do querer do leitor? Um estudo de caso de ‘Longe como o meu querer’ por alunos do ensino fundamental. Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade Estadual de Maringá. Maringá, 2006. SILVA, Silvana Augusta B Carrijo. Marina Colasanti: mulher em prosa e verso. Dissertação (Mestrado em Letras e Linguística). Universidade Federal de Goiás. Goiânia, 2003.

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É casada com Affonso Romano de Sant’Anna, também reconhecido escritor brasileiro3.

Com esta vasta trajetória, de pronto já se instiga a curiosidade sobre a sua vida. Mas, decerto, apenas pelo envolvimento com o universo literário de Colasanti, o(a) leitor(a) não desconfie das imagens surpreendentes das lembranças de uma infância, vivida em um contexto de uma grande guerra, mas que, para além de bombardeios, armas e escassez, (re)constrói lugares em ricos detalhes, que tecem as relações familiares, os afetos, a criatividade e a delicadeza presentes nas experiências de uma menina, que se questiona sobre o seu pertencer a um lugar, a um tempo, a conflitos que, embora tão eloquentes, parecem-lhes alheios.

Ao começar sua narrativa, apresentando-nos seus pais em suas rápidas núpcias, em virtude de que seu pai, Manfredo, partiria como voluntário para participar das Guerras de Conquista da Itália na África, a autora puxa os primeiros fios que vão preparando a sua existência quase nômade, de em pouco tempo morar em diferentes casas, cidades e países, aos ventos da política de expansionismo italiano, dos conflitos internos na África, da paixão incurável do seu pai pela guerra. Com tanta mobilidade em tempos que pediam retiradas rápidas e estratégicas, e até mesmo, fugas, poucos registros restaram ou mesmo foram feitos: “Não eram de grandes registros, meus pais, não deixaram documentos, datas, escritos. Até mesmo minha certidão de nascimento desapareceu. Como a vida, os fatos para eles também eram voláteis. Terei que me servir quase que só da memória. E, em Asmara, a memória estava nascendo comigo”4.

Que memória, desde então, vive com Marina que, após tantas décadas desde seu nascimento, em 1937, (re)inventa a sua criança, criando para uma audiência pública um artefato literário que, de certo modo, vem a ocupar o lugar de um álbum de família? Sem dúvidas, o desejo de perpetuar e rememorar as sensações e imagens daqueles primeiros anos de vida move a escritora, que comunga com o(a) leitor(a) também o desafio de preencher as lacunas dessa memória individual, de atualizá-la através das falas de outros, dos poucos indícios materiais preservados consigo, das viagens para revisitar lugares, e das leituras que faz para compreender melhor um contexto geopolítico que não lhe parecia tão claro e compreensível quando criança. E assim, deixa expostas na tessitura do seu texto, os pontos e linhas traçadas, percorridas, que visibilizam a memória como um construto complexo, seletivo, interessado, que, no caso, por tratar-se também de uma prática autobiográfica, apresenta-se ainda como uma operação de produção de si.

Lembramos que as práticas de produção de si, como sintetiza Ângela de Castro Gomes, podem englobar um diversificado conjunto de ações, desde as mais diretamente ligadas à escrita de si, onde se inscrevem os diários e autobiografias, até a da constituição de uma memória de si, que envolve recolhimento de objetos e registros pessoais, relacionados ao indivíduo e aos grupos a que pertence, compondo, muitas vezes, no cotidiano, um “teatro de memória”5.

3 Sobre o prêmio Jabuti: <http://www.cbl.org.br/jabuti/>. Ver também COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico da literatura infantil e juvenil brasileira - 1882/1982. São Paulo: Quíron, 1983.

4 COLASANTI, Marina. Minha guerra alheia. Rio de Janeiro: Record, 2010, p. 15.5 GOMES, Ângela de Castro (org.). Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: Editora FGV,

2004.

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Lígia Maria Leite Pereira, fazendo “Algumas reflexões sobre histórias de vida, biografias e autobiografias”, lembra-nos a partir de Contardo Calligaris, de que a ideia de que a vida é uma história surge com a era moderna, e de que o escrito autobiográfico, em particular, baseia-se numa cultura em que o indivíduo coloca-se acima da comunidade a que pertence, concebendo sua vida como uma aventura a ser inventada. Assim, a autobiografia consiste numa narrativa da própria existência, que coloca sob o controle do(a) autor(a) os meios de registro; ele(a) seleciona, estabelece os vínculos, define as entonações e estilos. Exerce por isso um fascínio especial, posto que vincula-se à crença de que há ali um discurso de maior autenticidade, já que parte diretamente do interessado. O que, por outro lado, incorre numa maior vulnerabilidade em tornar-se narrativa hagiográfica ou apologética.6

Ainda, contrastam-se comumente diferenças entre autobiografias e memórias enquanto documentos pessoais. O foco, como explica Leite Pereira, dessa vez baseada nos estudos de Leujene, é colocado sobre a questão da intencionalidade: “o autor quis escrever a história de sua pessoa ou a de sua época?”. Considerar-se-ia, pois, memórias, quando o escritor assumisse o lugar de testemunho de seu tempo.

Contudo, no próprio ato da leitura de um livro como Minha guerra alheia, deparamo-nos com as dificuldades em estabelecer uma separação simples, mesmo em termos de intencionalidade, do que seja a história do indivíduo e a da sua época. O próprio título já enuncia a ideia justaposta e contraditória, de algo que é da narradora/protagonista, mas também do outro. Um outro, que embora alheio – e aí tem ênfase ao seu alheamento das causas da guerra, dos propósitos políticos que interferiam diretamente sobre o seu modo de vida e de sua família – é por ela de algum modo subjetivado, atuando na sua constituição enquanto sujeito, repercutindo na construção da sua sensibilidade, que também é, em grande medida, significada por códigos partilhados por muitos de sua época e lugares da infância.

Entramos, pois, em contato com um artefato da memória, cuidadoso e delicado, ainda quando pujante em imagens dolorosas. Uma escrita marcada pela ideia do íntimo, que guia nossos olhares casa(s) e alma(s) adentro, mas que não diríamos introspectiva. Leitura que abre baús, gavetas, cartas, caderninhos de anotações, pequenos apontamentos registrados vida afora (e adentro). Percebemos, pois, uma escrita íntima consciente do seu desejo de tornar-se pública, (com)partilhada, o que condiz com o potencial desejo da ‘memória de si’ na sociedade contemporânea: “uma sociedade em cuja cultura importa aos indivíduos sobreviver na memória dos outros, pois a vida individual tem valor e autonomia em relação ao todo. É dos indivíduos que nasce a organização social e não o inverso”7.

Como a tessitura do texto revela os percursos da autora para construir suas memórias, sabemos que estas são, em grande medida, voluntárias, partem muitas vezes de um esforço de rememorar, que busca detalhes, como expressões, cores, cheiros, texturas, sabores... Não esquecendo que essa escrita é também a de uma

6 PEREIRA, Lígia Maria Leite. Algumas reflexões sobre histórias de vida, biografias e autobiografias. História Oral – Revista da Associação Brasileira de História Oral, São Paulo, n. 3, jun. 2002, p. 117-127.

7 GOMES, Ângela de Castro. Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo. In: GOMES, Escrita de si..., p.13

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pesquisadora curiosa e experiente, que não deixa a sós a narradora no fluxo de suas lembranças, que perscruta tanto interna quanto externamente os labirintos do jogo de lembrar e esquecer, procurando indícios, que corporificam paisagens, pessoas, coisas, sentimentos, para depois arrumá-las, desenhá-las, com as artimanhas das palavras.

Na tradição filosófica e mesmo no modo de pensar comum, como coloca Paolo Rossi, diferencia-se a memória, referindo-se a uma persistência, da reminiscência, que “remete à capacidade de recuperação de algo que se possuía antes, mas foi esquecido”. Na versão aristotélica, cronologicamente, a memória antecede a reminiscência, pertencendo à mesma parte da alma que a imaginação, tornando-se assim uma coleção ou seleção de imagens, a qual acrescenta-se uma referência temporal: “a reevocação não é algo passivo, mas a recuperação de um conhecimento ou sensação anteriormente experimentada. Voltar a lembrar implica um esforço deliberado da mente; é uma espécie de escavação ou busca voluntária entre os conteúdos da alma”, explica Rossi8.

Durval Muniz de Albuquerque Júnior reforça o aspecto construtivo, de recomposição e tessitura do passado, que as lembranças, designadas como “memória voluntária”, possuem. Trabalho de rememoração feito no presente e que somente é significado em relação a este. A recordação, seria, pois “um trabalho de organização de fragmentos, reunião de pedaços de pessoas e de coisas, pedaços da própria pessoa que bóiam no passado confuso, e articulação de tudo, criando com ele um “mundo novo”9.

Esta feitura que liga o passado e o presente, estabelecendo dobras temporais e espaciais, cria a memória romanceada de Colasanti. Músicas, ainda que fragmentadas – sobretudo trechos de canções populares ou hinos da guerra, juntam-se a algumas vestimentas, algumas joias, algumas preciosas fotografias, que são convidadas a falar através da sensibilidade da autora. No seu refazer das lembranças, Colasanti monta um mosaico delicado, avalia as minúcias, descreve os ângulos, as luminosidades, os desenhos e sombras. Sentimos que são observações curtidas ao longo do tempo. Mas decerto houve também os momentos em que as reminiscências, involuntárias, surpreenderam-na, e embora haja o movimento de tentar capturá-las para a partilha, sabemos que as impressões que nós outros, que espreitamos tão de perto aquela intimidade, embora convidados a fazê-lo, só apreenderemos parcialmente. “A memória guarda o que bem entende, que nem sempre é o que se precisa guardar”, diz ela.

A leitura de “Minha Guerra Alheia” é o acesso à infância da menina Marina, que nasce na Etiópia tomada pelos italianos, que depois vai para a Itália, terra de seus pais, até que se abram os caminhos, ou as nuvens, que trarão ela e sua família para o Brasil. Conhecemos seus conflitos e sensações a cada mudança de residência, seus afetos e inquietações diante das pessoas que lhe circundavam e que tanto mudavam em curto espaço de tempo. Seus gostos literários, gastronômicos, lúdicos, que também variavam ao sabor das vicissitudes de uma época de perigos e tensões.

8 ROSSI, Paolo. O Passado, a memória, o esquecimento: seis ensaios da história das ideias. São Paulo: Editora da UNESP, 2010, p. 15.

9 ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Bauru: EDUSC, 2007, p. 202.

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A mulher Marina, adulta, vivida, é, entretanto, a que significa o olhar da criança, que nos jogos da escrita, interfere diretamente para acrescentar um dado que a sua maturidade e conhecimento adquiriram sobre certo acontecimento, justapondo tempos, explicitando o seu desejo de criar sentidos para suas vivências.

E estas vivências oferecem-nos outros cenários: da África colonizada pelos italianos, da Itália envolvida pelo Fascismo e no meio da II Grande Guerra. Cenário de paisagens miúdas, recortadas pelo olhar da menina, que delineia práticas, valores, sentimentos, de pessoas que viviam ali, sob o conflito, não apenas as tensões causadas pelos combates, mas aquelas que parecem comuns ao cotidiano de uma família e de uma criança descobrindo mundos.

Em um desses cenários, a África “italiana” ganha cores que pouco aparecem em outras narrativas, quer por desconhecimento, quer por censuras ao que se estabeleceu como politicamente incorreto:

Quando, em conversas, digo que nasci na África, sei que o interlocutor me vê quase entre choupanas, elefantes ao longe, poeira erguida por um jipe, o sol abrasador recortando a silhueta da savana. A África, para os brasileiros, é sempre um filme de África. A minha África era uma cidade vibrante, divertida, que se modificava a cada dia, à medida que engenheiros e arquitetos erguiam os prédios encomendados por Mussolini para transformar Asmara na Pequena Roma.10

Seja em Asmara ou em Trípoli, para onde segue com a família, o relato apresenta-nos o desejo, como diz a própria autora, de fundir-se naquele território as ambições cosmopolitas e a cultura colonial. Cassinos, cinemas, teatros, restaurantes, torneios automobilísticos, ville com jardins floridos, avenidas e ruas planejadas e arborizadas delineiam o sonho de uma elite italiana que se quer mais elite ainda na África. Mas também os estranhamentos e adaptações que, por exemplo, faziam dos camelos presença constante na colônia, a despeito do incômodo cheiro, e das caçadas, programas de sucesso, especialmente quando traziam iguarias à mesa.

Porém, na iminência da declaração de guerra da Itália à França, após quase um ano da aliança firmada com a Alemanha, um hidroavião levou Marina, seu irmão e a mãe, Lisetta, para a Itália, onde passou a morar em diversas cidades, mudando de albergues, hotéis, casas, sendo ocasionalmente visitados pelo pai que, com o agravar do conflito, deixa de vez a África para juntar-se à família.

Nesses outros cenários, a vida modificada pelo ambiente de guerra, traz aprendizados que tornam-se vitais:

A primeira coisa que se aprende na guerra, ou pelo menos uma das primeiras com que construí meu infantil aprendizado de sobrevivência, é substituir. Quando alguma coisa que antes considerávamos insubstituível começa a faltar, coloca-se outra em seu lugar, que passa a ser insubstituível até ser, por sua vez, substituída. Agradece-se

10 COLASANTI, Minha guerra..., p. 29.

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aos céus existir a outra. E no lugar da palavra insubstituível põe-se desejável.11

E vamos com a narradora aprendendo sobre os hábitos e os sucedâneos possíveis naqueles tempos. Em vez de carne, peru. Em vez de café, chicória, para a qual se reservava o pouco açúcar disponível. Usava-se falsa lã vegetal, que não aquecia tanto, deixando a lã verdadeira para a confecção dos uniformes militares. As meias de seda desapareceram, mas eram ainda desejadas pelas mulheres, que passavam maquilagem escura nas pernas e pediam para alguém desenhar atrás, com lápis de sobrancelha, a linha da “costura”. A moda subsistia à falta de tecidos, com modelos de abrigos feitos com velhos cobertores, e turbantes de lenços, para substituir os chapéus.

A narrativa extravasa em imagens cotidianas, também pitorescas e surpreendentes dos costumes e hábitos que persistiam, ainda que adaptados aos sucedâneos, bem como aqueles que então se estabeleciam como novos. Pode-se sentir o esforço em continuar vivendo, trabalhando, amando, estudando, brincando, “apesar de”... Para a família da autora, que conhecia conforto e experimentara abundância, além de uma convivência próxima com pessoas cultas e amantes das artes, o estado de guerra não seria justificativa para descuidarem-se dos estudos das crianças. Ler, inclusive, fazia parte da ocupação e das horas de crianças que não podiam livremente sair de casa para brincar.

Marina Colasanti, entretanto, sabe o quanto ela e o irmão foram poupados do contato mais cruel e violento com a guerra: “Naquele tempo sem televisão, as crianças eram poupadas das verdades e imagens mais cruas. Algumas intuímos através de trechos de conversas, outras foram sendo entregues pela vida, compondo aos poucos o mosaico falhado da memória”12.

Ainda, ela e o irmão, Arduino, tinham no pai uma espécie de herói aventureiro, mas também protetor, que sendo fascista, pareciam-lhes estar lutando do lado “certo”. Talvez desconhecesse seu pai também os aspectos mais danosos e exterminadores daquele conflito, ela especula. Naquele cotidiano alterado pela escassez de víveres e alertas de bombardeio, dá-nos a impressão do quanto a extensão do combate parecia desconhecida, alheia, não apenas ao seu mundo infantil, mas ao de muitos, mesmo dos adultos, à sua volta.

E instiga-nos várias passagens a pensar nas relações de alteridade estabelecidas entre pessoas como ela em territórios outros, quando, por exemplo, do seu contato no Brasil com crianças que a insultavam por vir da Itália fascista, derrotada na guerra:

Quando cheguei aqui, as crianças que conheci falavam com entusiasmo de filmes e histórias em quadrinhos cheios de japoneses dentuços, alemães assassinos e italianos sentimentais e covardes. O mesmo entusiasmo com que me provocavam ou me insultavam diretamente, gabando a atuação vitoriosa das tropas brasileiras que haviam posto os italianos em fuga. Essa nova visão parecia-me

11 COLASANTI, Minha guerra..., p. 84.12 COLASANTI, Minha guerra..., p. 168.

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inaceitável. Como era possível, perguntava meu coração infantil, que fossem covardes os soldados para os quais minha mãe havia tricotado passamontagna, aqueles que “com lê scarpe o senza scarpe” atendiam ao chamado de seu comandante? Como podia ser covarde meu pai, que havia sido proposto para uma medalha ao valor militar, e que ia para as guerras por gosto, por patriotismo? Eu havia visto na invasão e na ocupação soldados do mundo inteiro, americanos e ingleses, australianos e poloneses, indianos e africanos, canadenses. Mas nenhum brasileiro. A ação da FEB, localizada principalmente no centro da Itália, quando minha família se encontrava no Norte, havia sido inexistente para mim. “Vocês nem estavam lá!”, eu respondia, segura como uma testemunha ocular.13

Vê-se como a atuação da propaganda ideológica, de cada lado, forja identidades, alcançam fronteiras para além das delimitações geopolíticas mais objetivas. Aquela talvez fosse, de fato, a guerra de Marina: lutar, com sua força e consciência ainda de menina, contra a aniquilação simbólica do que lhe era caro e verdadeiro. Encarar, tantas vezes, os dilemas do não-pertencer em definitivo a um lugar, a um grupo, e às vezes a tantos, e ainda assim aprender a reconhecer o que havia de bom e belo em estar de passagem. Lidar ainda com os fantasmas daquele passado que transcorrera logo ali, ruas acima ou abaixo da sua casa, em cidades próximas, tão perto e tão longe dos seus olhos, mas que um dia, com outras lentes, também afetaram seu coração.

Decerto Marina Colasanti já fala de um lugar onde é possível tocar a estas questões sem maiores desconfortos. Sua compreensão e mesmo seu mergulho no passado, inscrevendo, registrando, compondo no presente aquilo que não pretende deixar esquecido, traz indícios da sua coragem e do seu potencial desejo de lutar contra a morte dos sentidos e das imagens que (re)vestem a sua própria história. Ela evoca o passado para falar com o presente, e assim instaura um novo, um outro tempo, de vivências. Estas, sem dúvida, inscritas e atualizadas pelas várias leituras, instituem outras possibilidades de leitura do passado, instigando uma leitura do sensível mesmo sobre os contextos mais árduos e ásperos. Uma leitura que abre prismas para a problematização da relação conflituosa, mas sempre apaixonante, entre história e memória.

13 COLASANTI, Minha guerra..., p.104.

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entrevista

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TRAJETÓRIAS DE VIDA, TRAJETÓRIAS DE OFÍCIO1

Entrevistadoras: Telma Dias Fernandes2 e Vilma de Lurdes Barbosa3.

No dia 28 de julho de 2010 a professora Regina Beatriz Guimarães Neto gentilmente nos concedeu a entrevista que ora apresentamos para compor o Dossiê História e Memória, n. 23 da Sæeculum – Revista de História, publicada pelo Departamento de História e pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFPB. Na ocasião, a professora participava do XIV Encontro Estadual da ANPUH/PB - História, Memória e Comemorações, na qualidade de conferencista de encerramento do Evento.

Com expressiva experiência na temática tanto da conferência como deste Dossiê, a professora Regina pontuou momentos significativos dos seus estudos e trajetória profissional. Sua formação, da graduação ao estágio pós-doutoral, foi na área de História, uma formação que emerge nas linhas desta entrevista atravessada por um encantamento pelo ofício de historiadora. A graduação se deu na Universidade Federal de Minas Gerais (1976), seguida de Especialização em Informação e Documentação Histórica Regional na Universidade Federal de Mato Grosso (1977). Desenvolveu seu estudo de mestrado na Universidade Estadual de Campinas (1986), intitulado A lenda do ouro verde - Colonização e poder/ Alta Floresta - MT, sob orientação do professor Hector Bruit. Fez Doutorado na mesma instituição (1996), com orientação do professor Alcir Lenharo, finalizada, após a morte do professor e amigo, com orientação de Paulo Celso Miceli, com tese intitulada Grupiaras e Monchões: Garimpos e Cidades na História do Povoamento do Leste de Mato Grosso - primeira metade do século XX. O Estágio pós-doutoral foi realizado na Universidade de São Paulo (2003). A Dissertação de Mestrado e a Tese de Doutorado foram publicadas em livros: pela Publicações UNICEN, A lenda do ouro verde (2002); e através da editora Tanta Tinta, a historiadora lançou Cidades de Mineração (2006).

Regina Beatriz é professora do Departamento de História e dos Programas de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal de Pernambuco (permanente), e da Universidade Federal de Mato Grosso (colaboradora). É Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq e tem expressiva participação na Associação Brasileira de História Oral – ABHO, tendo sido sua presidente no biênio 2008/ 2010. Atua nas áreas de Teoria da História, Historiografia Geral e do Brasil e desenvolve estudos e pesquisas em Memória e Práticas Culturais; História e Narrativa; Trabalho, Colonização e Cidades.

As nossas questões, nesta entrevista, procuraram enfocar sua trajetória de estudos e a relação entre História e memória; as possibilidades e enfrentamentos entre História 1 Transcrição do áudio feita por Fabiolla Stella Maris de Lemos Furtado Leite (Mestranda PPGH-

UFPB).2 Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora Adjunta do Departamento

de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba.3 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professora Adjunta

do Departamento de Metodologia da Educação e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba.

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e Filosofia; as práticas que envolvem memórias, registros orais e documentação escrita; as possibilidades da inserção da memória no ensino de história.

Convidamos a todos para compartilhar o prazer de ler uma historiadora apaixonada pelo seu ofício.

As entrevistadoras.

Saeculum: Professora Regina, no início do seu livro Cidades de Mineração, você fala do contar história de mulheres da sua casa e que pelas reminiscências se empresta sentidos ao sonho e este aos embates da vida. Você relacionaria essas histórias com a sua decisão de fazer o curso de história?

Regina Beatriz Guimarães Neto: Não sei. Eu penso que as nossas escolhas não são tão determinadas por um ou outro fator, há uma pluralidade de experiências que concorrem para que as façamos. Eu cresci no meio de mulheres, onze mulheres, da família da minha mãe, elas se encontravam sempre, então, vivi ouvindo histórias e eu sei que essas histórias foram e são referências afetivas muito importantes para a minha vida, sobretudo, aguçavam a minha imaginação. Adoro ouvir histórias e contar histórias. Penso que os historiadores têm muito disso. Somos contadores de histórias. Eu digo várias vezes para os estudantes, precisamos explorar mais essa dimensão da história, do contar histórias. Escrevemos nossos textos e relatamos histórias, o que não quer dizer que deixamos de realizar boas análises, claro, isso passa pelo crivo, pelo controle dos historiadores, dos nossos pares; a nossa escrita não é uma escrita livre, é uma escrita controlada, uma escrita cheia de regras. Ao mesmo tempo, não podemos deixar que as regras engessem a escrita, ela deve comportar a criatividade. Sabemos que essa dimensão do contar, do narrar, vem sendo bastante discutida, insistentemente debatida. Indagamos, como é que escrevemos as nossas histórias? E que tipo de história? Há todo um diálogo com as normas que regem a produção narrativa, porque a narrativa deve também explicar à medida que se desenvolve o enredo. Ela é a operação que se empreende para explicar/compreender o passado, o presente e as expectativas que nos conduzem ao futuro. Então, considero que essa dimensão narrativa da história, com toda a discussão que hoje ela envolve, com todo o debate que se faz sobre a escrita da história, permite assinalar a construção do conhecimento histórico e sua relação com os procedimentos narrativos e retóricos que regem seu discurso, sem perder as especificidades do campo historiográfico. Agora, a minha preferência por fazer história, sim, claramente, conscientemente, mistura-se a minha história de vida, e, para citar um fato marcante, tem tudo a ver com a leitura do livro de Marc Bloch4 (talvez, isso seja repetir o que muitos dizem, mas funcionou comigo...). E, nesta época, eu estava fazendo cursinho para medicina.

Saeculum: E você leu Marc Bloch no cursinho?Regina Beatriz Guimarães Neto: Sim. Eu gostava muito de ler, desde minha

adolescência. Lia muito, era uma menina que lia demais porque meu pai escreve, é

4 Marc Léopold Benjamim Bloch, historiador francês, foi um dos fundadores do movimento dos Annales, em 1929, que ficou conhecido como “Escola dos Annales” e constitui importante referência para a historiografia contemporânea.

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poeta e contista (pertence à Academia Mato-Grossense de Letras), e eu convivi desde pequena com uma fantástica biblioteca. Imaginem vocês, eu morei em pequenas cidades de Mato Grosso com acessos culturais muito limitados, mas tinha dentro da minha casa uma riqueza muito grande, uma grande biblioteca. Um pai que gostava muito de ler e recitar poesias para os filhos. A biblioteca dele era o meu refúgio. Lá eu me encantava e pedia a ele os mais diversos livros. Além disso, foi o meu primeiro professor de história, porque era magistrado e estes, nas cidades pequenas, tinham essa interação com o ensino. Vivia passando informações sobre a Grécia, Egito e Roma. Lembro-me que o primeiro livro que li, envolvendo uma personagem histórica, trazia a história da vida de Maria Stuart. E fiquei encantada, completamente encantada com Maria Stuart e indignada com Elizabeth I... Amaldiçoando Elizabeth I. Enfim, penso que tudo isso faz parte de como imaginamos a vida e as coisas. Então, creio que esse movimento da imaginação é imprescindível para o historiador. Movimento que me estimula a retomar a inspiração que significou Marc Bloch, relembrando-me da minha formação escolar, quando fiz o Clássico5, ainda nesse tempo podia-se optar pelo Clássico, com meus 15, 16 e 17 anos. Lia muito e foi aí que tive contato com o historiador Marc Bloch. E, por outro lado, eu também queria fazer medicina, e, no 3º ano do Clássico, fazia junto o cursinho para medicina. Mas aí li Marc Bloch e minha visão de mundo começou a mudar. Porém, mantinha minha determinação a cursar medicina. Como eu fiz o Clássico, na primeira tentativa do vestibular não passei, porque tive notas muito baixas de Física e Matemática e isso era determinante, as provas eram escritas; não eram provas de múltipla escolha. No entanto, não deixava de ler meus livros de preferência, romances, textos de filosofia (lia Sartre, como todo mundo) e, claro, o historiador Marc Bloch, então conclui: “Bem, já que eu não passei nesse primeiro momento, enquanto eu faço o cursinho agora – sabia que teria que preparar-me, pelo menos por mais um ano, para Física, Matemática –, vou ler os autores que mais gosto”. E continuei com Marc Bloch, O Ofício do Historiador6, e me inspirei com a resposta que ele deu para o filho dele, ao ser indagado sobre “o que é história”? E na continuação do livro ele dizia que o historiador é aquele que fareja carne humana.

Saeculum: Como o ogro7.Regina Beatriz Guimarães Neto: Como o ogro. Fiquei, assim, profundamente

seduzida pelos escritos de Marc Bloch, e admiti: “Creio que gosto muito de história.

5 No Brasil, o Ensino de nível médio, até o final da década de 1960 era dividido em três cursos e compreendia o Curso Científico, o Curso Normal e o Curso Clássico. Esses cursos igualmente permitiam o ingresso através de concurso vestibular em qualquer curso superior. Destaca-se que na prática: o Curso Científico era orientado para as ‘ciências’ (áreas de saúde, biológicas e engenharias); o Curso Normal destinava-se à formação de professores, comumente denominados de ‘polivalentes’; o Curso Clássico enfatizava às ‘letras’ encaminhando seus egressos para as Faculdades de Filosofia, Letras, Artes e Direito.

6 A profª Regina Beatriz se refere a BLOCH, Marc. Apologia da História ou O Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. Há uma edição mais antiga, lançada pelas Publicações Europa-América, com o título Introdução à História.

7 Figura lendária europeia utilizada por Marc Bloch para exemplificar a performance de um historiador competente. O ogro é uma criatura mitológica, meio homem, meio monstro é caracterizado com proporções avantajadas em relação a um ser humano. São retratados em antigos folclores europeus e contos de fadas como ótimos farejadores e devoradores de humanos.

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Enquanto faço cursinho para medicina, vou fazer história”, eu havia passado para história, como segunda opção, no vestibular. Comecei a fazer a faculdade e disse para mim mesma: não, acredito que na vida temos que fazer o que mais gostamos e se me apaixonei pela história, seguirei este caminho. Realmente, é muito bom ter um percurso de vida, uma trajetória de vida que, ao olhar retrospectivamente para o passado, tão crucial, podemos dizer a nós mesmos: Se eu tivesse a opção de fazer novamente minhas escolhas, o que eu faria? O que fiz! Este encantamento pela história perdura até os dias de hoje, mesmo que eu tenha trazido outras experiências e aproximações, como a literatura. Penso ainda que Marc Bloch é um historiador que nos instiga a pensar a história de uma maneira mais humana, mais ousada, jogando com os limites que a vida nos impõe. E, depois, há essa aproximação com a crítica e os acontecimentos históricos, marcantes em nossa época, marcantes na época dele. Quer dizer, a sua trágica história e, ao mesmo tempo, a riqueza das relações que ele mantinha com a política, com a defesa da liberdade é muito forte, repercute em nossas ações. Considero que deveríamos sempre refletir bastante sobre isso com nossos estudantes, entende? Essa relação da história com a vida é muito importante para mim e Marc Bloch foi o historiador que me jogou nesse universo crítico, nessa relação entre o passado e o presente. É aí que os nossos passados, o passado na minha vida, de muita leitura, de encantamento com os livros, entra neste presente, dando sentido a ele. Essa relação com as histórias, com as histórias da minha família, mas misturadas às histórias que eu lia na biblioteca que meu pai me oferecia, e, depois, com os livros que me ensinavam a pensar o mundo criticamente, é a essa relação que atribuo a minha vontade, mudança e desejo em fazer história. Hoje penso que eu não tinha tantas opções assim, já que o meu gosto se definia neste campo das ciências humanas. Apesar de que nos encontramos imersos numa pluralidade de lógicas, para a minha memória, eu tenho prazer em dizer que deveria seguir – como fiz – os caminhos da história ou das histórias.

Saeculum: Bem, professora, agora eu gostaria que você falasse um pouco sobre a sua formação que vai da graduação, assim... foi cada degrauzinho... a Graduação, a Especialização, o Mestrado, Doutorado, Pós-doutorado.

Regina Beatriz Guimarães Neto: Fiz graduação em Minas Gerais, Belo Horizonte (antes, havia feito o Clássico em Uberlândia, em um excelente Colégio Estadual). Foi um percurso em que cada passo foi dado em lugares diferentes. Considero que isso é muito bom porque favorece intercâmbios culturais muito diferenciados. Fiz minha graduação na UFMG, e foi muito importante, contei com excelentes professores. Estudava bastante a história colonial porque, em Minas, a história colonial apresentava – como ainda hoje – uma rica produção intelectual e muito bem ensinada, gostava muito também de história política, dos debates na faculdade, pela própria situação política da época... Era meados da década de 70. Depois disso, fiz concurso na Universidade Federal de Mato Grosso, onde fiquei grande parte da minha vida. E, de lá mesmo, em seguida, com o PDCDT8, procurei fazer o meu mestrado. Prestei a seleção para o mestrado em história na UNICAMP. Morei três anos em Campinas. O mestrado também naquela época demorava bem

8 Programa de Capacitação Docente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

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mais que hoje.

Saeculum: Mas teve a especialização antes.Regina Beatriz Guimarães Neto: Sim. Antes de fazer o mestrado eu fiz uma

especialização na UFMT com um grupo de historiadores excelentes, contamos com a presença da Raquel Glezer9, Iraci Galvão10, que já estavam lá, mas, também vários outros professores, inclusive da UNICAMP, que participaram de alguns cursos, também nesse momento na UFMT. Por isso, criei uma relação diferenciada com o ensino e a pesquisa, o que me fez buscar o mestrado na própria UNICAMP. Mas, Mato Grosso criou e ainda tem atuante o núcleo de documentação que vocês têm aqui11, com Teresinha de Arruda como a primeira coordenadora. Foram criados os dois núcleos: o de Mato Grosso, da UFMT, e o aqui da Paraíba, UFPB; formamos grupos de estudos com a participação de diversos professores, da UFMT e de outras IES, estudos que se desenvolveram no núcleo de documentação. Foi lá que eu fiz o curso de especialização. Depois desse curso, preparei-me para o mestrado na UNICAMP. Foi um momento muito rico em experiências. Fazia cursos não só no mestrado de história da UNICAMP, mas também, nós, os estudantes, aproveitávamos muito os cursos na Antropologia, na Sociologia, na Economia, como também cursos oferecidos pela USP. Então, também fui fazer alguns cursos nessa universidade. Adorava fazer vários cursos, era um pouco a cultura da época (década de oitenta). O mestrado foi fundamental em minha vida, por ter-me dedicado a leituras diversificadas e por uma iniciação mais sistemática com a pesquisa histórica. Penso que a gente perde um pouquinho isso hoje, entendeu? Devido à pressão das instituições. É um tempo de mil e uma descobertas, de muitas leituras, de visitas a vários autores, um intercâmbio muito grande. É um período de formação e de aprendizagem inigualáveis. Hoje, muitas vezes, reclamo que os estudantes estão ficando muito especializados, por assim dizer “temáticos”, em razão de terem que se direcionar rapidamente para seu tema. Querem fazer menos cursos, claro, porque, de outro modo não dá tempo nem para desenvolver a dissertação com a mínima competência. Mas, penso que é um período em que deve predominar a leitura, o exercício da escrita e da pesquisa, e investigar a documentação com um bom levantamento de fontes, reunião e seleção de documentos diversos. Muitas vezes, vejo os mestrandos elucubrando teorias sofisticadas sem passar por essa primeira (e constante!) aprendizagem. Então, para mim, o mestrado foi muito rico nesse sentido, quer dizer, foi a base da minha formação. E eu tive também o privilégio de conviver esse tempo todo com Alcir Lenharo12, que foi uma pessoa amiga, mestre, orientador, insubstituível em minha 9 Raquel Glezer, atualmente é Professora Titular da Universidade de São Paulo no Programa de Pós-

Graduação em História Econômica. 10 Iraci Galvão Salles, historiadora, com Mestrado e Doutorado em História Social do Brasil pela

Universidade de São Paulo – USP. Autora do livro Trabalho, Progresso e a Sociedade Civilizada: o Partido Republicano Paulista e a política de mão-de-obra - 1870-1889. Prefácio de Fernando A. Novais. São Paulo: HUCITEC, Brasília: INL, 1986.

11 A profª Regina Beatriz se refere ao Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional- NDIHR, órgão suplementar da Reitoria da UFPB, que tem como objetivos básicos o resgate e a preservação da memória e a produção do conhecimento crítico sobre a realidade do Nordeste. Localiza-se no Bloco F da Central de Aulas do Campus I. Web: <http://www.ndihr.ufpb.br/>; Fone: + 55 (83) 3216-7159; E-Mail: <[email protected]>.

12 O historiador Alcir Lenharo atuou no Departamento de História da Universidade Estadual de

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vida. Oficialmente, não foi o meu orientador no mestrado, mas de fato foi ele, na prática, que orientou a minha dissertação de mestrado, depois publicada13, Alcir e eu éramos muito amigos. Tive esse privilégio de contar e aprender com ele, um dos melhores historiadores brasileiros que conheci. Literatura, música (sobretudo latino-americana) cinema, era com ele uma aprendizagem constante. Então, o mestrado foi um momento muito importante pelos cursos e privilégios que nós tínhamos em participar de uma série de atividades culturais, e professores muito atuantes como Stella Bresciani, Edgar De Deca, Michael Hall, entre outros. Depois disso, logo que eu defendi, eu já comecei a fazer o doutorado, também na UNICAMP, e aí sim com a orientação oficial do Alcir Lenharo. E foi o que resultou depois no livro As cidades da mineração. Memórias e práticas culturais...14 que só publiquei depois de muito tempo, em razão das muitas reformulações que acabamos por fazer (estava na coordenação do Programa de Pós-Graduação em História e não tinha tempo para nada). Defendi meu doutorado em 1996. No último momento, na defesa da tese, Alcir não pôde estar presente o que foi bastante triste para mim, morreu quatro meses antes da minha defesa. Paulo Miceli assumiu a orientação final. Mas, de todo modo, tive todo o apoio e a orientação do Alcir. Em minha tese trabalhei com memórias de pessoas da minha família, que haviam se deslocado para a parte leste do estado de Mato Grosso, na primeira metade do século XX, território da mineração do diamante. E várias memórias selecionadas foram de pessoas da minha família que se misturam à história dessa reocupação espacial (mas também usando várias outras fontes, sobretudo impressas). Escrevo essa história da mineração (práticas culturais) em termos de reocupação de um território, porque ocupado por grupos indígenas, nações indígenas que tiveram seu território invadido. Uma parte da família de meu pai foi para aquela área em razão da mineração do diamante e outra parte, meus avós maternos, deslocou-se para Mato Grosso para ocupar terras e formar fazendas. Portanto, para mim, era muito importante trabalhar com as memórias que vinham desses dois segmentos. Mas, em um primeiro momento, não queria dedicar-me a essa pesquisa, porque, envolvia trabalhar com a memória familiar e eu considerava isso bastante difícil. Alcir foi a pessoa que me ensinou como o historiador não deve se limitar a desenvolver um trabalho por causa dessas imposições. Enfrentar o desafio em analisar criticamente a memória familiar é uma tarefa complexa porque estamos bastante envolvidos, mas isso não deve servir para impedir o trabalho do historiador, exatamente porque história não é memória. Quer dizer, há uma relação fundamental, mas história não é memória. Ademais, a prática do trabalho do historiador passa por outras questões, e por outro tipo de controle da produção do conhecimento e do regime de escritura. Então, ele me encorajou bastante e eu resolvi aceitar o desafio. Além disso, como Alcir era muito meu amigo, conhecia minha família, sabia de várias histórias, já que eu as contava para ele. E dizia para mim: “Essas histórias e memórias têm que ser transformadas em livro”. Tive, portanto, esse estímulo que foi um ato de experiência no aprender, na minha própria prática, em que a relação

Campinas até 1996. Publicou vários textos e entre eles o livro As tropas da Moderação, lançado pela primeira vez em 1979.

13 GUIMARÃES NETO, Regina B. A lenda do ouro verde: política de colonização no Brasil contemporâneo. Cuiabá: UNICEN Publicações, 2002.

14 GUIMARÃES NETO, Regina B. Cidades da mineração – Memórias e práticas culturais. Mato Grosso na primeira metade do século XX. Cuiabá: EDUFMT, 2006.

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da história com a memória deve ser problematizada e não pensada como relação de causa e efeito, relação imediata. Com Alcir aprendi a refletir como a prática histórica une a crítica à memória, e que o historiador pode e deve arrojar-se a desenvolver um trabalho que enfrente questões diversas, observando as várias mediações, matizes e relações. E foi muito bom. Depois disso veio o pós-doutorado, em 2003, realizado com o acompanhamento da professora Maria Helena Capelato15, na USP. Naquele momento, desenvolvi um trabalho relacionado à minha pesquisa acerca das novas cidades e relatos de trabalhadores pobres, analisando como estes narram suas histórias e experiências. Focalizo os espaços de ocupação recente da Amazônia Legal, particularmente Mato Grosso, abordando um tema que estabelece conexões com uma história mais ampla, envolvendo o território amazônico (referência que extrapola seu significado geográfico). Já é outro tipo de trabalho de pesquisa e que foi muito produtivo e tem sido, porque continuo trabalhando com essa temática, com outros desdobramentos, outras questões e problemas, até porque é a base da minha bolsa produtividade do CNPq. Maria Helena Capelato foi uma professora e uma amiga, com uma prática que muito me valeu pela experiência em seu ofício de historiadora. Quer dizer, o que desenvolvi no estágio de pós-doutorado envolve uma temática com que Maria Helena não lida especificamente, mas é um tema contemporâneo, e que se encontra no espaço teórico de seu trabalho, no campo da história política do Brasil. Minha pesquisa, é necessário salientar, problematiza um quadro político em que a ditadura militar foi determinante, porque analisa as novas ocupações e cidades, num quadro de violência situada nesse processo histórico, após a década de 1970. Momento esse em que os governos militares programaram e implementaram políticas de ocupação para a Amazônia, políticas econômicas de desenvolvimento atreladas ao grande capital, políticas de ocupação da terra, resultando em grandes conflitos sociais. A experiência historiográfica de Maria Helena Capelato com a política brasileira do século XX foi muito importante para o meu enfoque teórico. Depois disso tudo, mudei novamente de espaço geográfico, de universidade e de vida... Prestei novo concurso público para professora de história, na vaga aberta para Teoria da História, na Universidade Federal de Pernambuco, onde me encontro trabalhando na graduação e pós-graduação em história.

Saeculum: Bom, você falou agora que história não é memória, então, eu perguntaria a você como discute essa relação entre a escrita da história e a memória?

Regina Beatriz Guimarães Neto: É, creio que essa é uma questão central para o debate atual. Não mais tão atual... Temos vários historiadores, filósofos, sociólogos, assim como outros especialistas do campo literário e, de forma mais geral, dos campos culturais, que enfrentam esse debate e apresentam diversas variáveis teóricas para análise. Especialmente no campo da história, penso que toda a discussão que Michel de Certeau16 fez foi marcante, isso já em meados da década de 70, instigado por novas questões que se apresentavam à historiografia, como 15 Maria Helena Capelato atualmente é professora Titular da Universidade de São Paulo, no Programa

de Pós Graduação em História Social.16 Historiador francês, autor de obras que tratam da operação historiográfica, entre elas: A Escrita

da História (Forense-Universitária, 1982); A Cultura no Plural (Papirus, 1995); A Invenção do Cotidiano (Vozes, 1996).

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aquelas colocadas por Paul Veyne17 acerca das relações da história com as narrativas literárias, e, nesse sentido, do desafio teórico de se pensar a história como um “romance verdadeiro”. Mas Paul Veyne, naquele momento, década de 70, tornava visível uma grande crítica à história que estava sendo praticada na França, e não só na França. Eu creio que a resposta de Michel de Certeau se tornou um verdadeiro paradigma para os historiadores, porque trazia uma resposta que não apenas assinalava e valorizava a filiação literária da escrita da história, mas estabelecia regras e critérios que apresentavam o discurso historiográfico em um campo específico, rigoroso e controlado pelos pares. M. de Certeau estabeleceu critérios historiográficos para este debate, que ele denominou de operação historiográfica. A partir daí, a questão de aproximação ou não aproximação da história com as narrativas literárias, ou do que se chama narrativa de ficção, deveria agregar outros problemas e questões que enriquecessem o debate, ampliando-o acerca da escrita da história. Mas, infelizmente, nem sempre é assim, há ainda debates cansativos e vazios de proposições... Torna-se importante destacar, no entanto, que os historiadores escrevem submetidos a regras de seu campo de conhecimento, dialogando com os documentos, sempre, mas devem narrar bem, ou seja, refletir e aprender as regras da poética e da retórica para melhor explicar e se fazer compreender. Há o alerta de Roland Barthes18, chamando a atenção dos historiadores que podem sofrer de um “mal obsessivo”, isto é, de uma excessiva autenticação da sua fala pelos documentos, como se isso bastasse, como se os documentos dissessem por si mesmos, descolados das regras da escrita. Muitas vezes este sinal de Barthes me lembra um pouco os cartórios, quando estamos pegando nossos documentos para serem autenticados ... O importante é entender, a meu ver, que esta autenticação não basta para validar o discurso historiográfico. Quer dizer, o discurso historiográfico depende também das regras da escrita da história, do enredo narrativo, do jogo das figuras de linguagem. Há uma regra básica: precisamos nos fazer entender bem (e isto não é pouco, traduz-se em estilo literário). Eu sempre dou um exemplo corriqueiro para os estudantes: “E se eu disser para alguém, ou melhor, se eu descrever os seus olhos como: “redondos, grandes ou puxados”, ou indicar os olhos que têm tal e tal formato; ou seu nariz retilíneo ou curvo, descrito em termos de linhas ou formas, tudo isso não quer dizer nada ou expressa muito pouco, não emite signos e não me faz, portanto, estabelecer relações com as pessoas. Mas se eu disser – ‘os seus olhos me lembram o azul do mar’, ‘ou ‘lembram-me o encontro das linhas do céu com o mar’ ou ‘lembram-me uma paisagem amada’, torna-se completamente diferente, é uma fala que emite signos, apaixona! Quem é que não se recorda dos “olhares dissimulados” da Capitu de Machado de Assis19? Quer dizer, nossa linguagem é metafórica, nos expressamos por meio de metáforas, criaturas de nossa imaginação.

17 Arqueólogo e historiador francês, autor da reconhecida obra historiográfica Como se escreve a história (UNB, 2008).

18 Escritor, filósofo e sociólogo francês, a professora se refere a L’ effet de réel, em Communications, 1968. Publicado em: O rumor da língua (Martins Fontes, 2004); Além desse Barthes é autor de O prazer do texto (Martins Fontes, 1974); O grau zero da escritura (Cultrix, 1971); Analise estrutural da narrativa (Porto, 1973); Crítica e Verdade (Perspectiva 2009).

19 Capitu é uma personagem central do livro Dom Casmurro, de Machado de Assis, publicado originalmente em 1899 pela Editora Garnier (RJ), com sucessivas reedições. Desde 1994 está disponível em edição eletrônica na Biblioteca Digital do MEC.

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Produzimos encantamentos, efeitos de linguagem, não é? Segundo Paul Ricouer20, na trilha de vários autores (Veyne, por exemplo), quanto mais se explica mais se compreende, desde que se entenda que aí se encontra a dinâmica da produção de novos significados, por meio da história narrada. O filósofo Roberto Machado, em seu livro, Deleuze, a arte e a filosofia 21 tem uma passagem que gosto muito, em que discute não apenas as figuras de linguagem, mas as relações entre as palavras e, sobretudo, as sintaxes que regem as frases. Quer dizer, nós operamos com um regime de escritura do qual emergem várias questões dimensionadas na problemática da narrativa da história. E a memória? A memória passa por outras regras de análise e discussão, que nos leva a outras reflexões e desdobramentos teóricos. Gosto, aprendo muito com a maneira pela qual Paul Ricouer encaminha a questão. Ele pontua as diferenças entre os modos de representação do passado, distinguindo o conhecimento histórico das operações da memória (também no caminho aberto por diversos autores, como Pierre Nora). Parte de distinções fundamentais entre a operação historiográfica e o trabalho da memória, avaliando as diferenças entre a memória-testemunho e o documento. Apresenta o primeiro ligado indissoluvelmente às declarações, aos testemunhos reconhecidos, a uma memória relativa à declaração que tem como base as reminiscências, como ele diz. Os testemunhos são dados de maneira direta, têm como referência aquele que ofereceu o testemunho, com base na confiança nele depositada. Em espanhol, encontramos as duas palavras que nos ajudam a diferenciar: testimonio e testigo. Quer dizer, a memória que tem como referência a declaração está ligada ao testigo, testemunho direto que tem um referente reconhecido, identificado. E o documento, como ele mesmo diz, é a “memória de ninguém”, é a memória de todos, é a memória dos tempos, é a memória dos conflitos humanos. Os documentos trazem esses registros, registros que nós selecionamos e passamos a considerar como documentos. Então, a memória tem uma relação direta com os testemunhos. O documento, pelo contrário, é indiciário, encontra-se em uma teia, em uma rede social e cultural, contendo várias informações, vários acontecimentos. O documento é a apresentação/representação daquilo “que se escreveu sobre”, mas aquilo “que se escreveu sobre” só ganha estatuto de acontecimento, importância e significado históricos a partir do momento em que ele é narrado, pertencendo a outra rede discursiva; ligado a uma série de referentes. A memória também tem seus elos vitais inseparáveis da vida social e cultural, é histórica. Mas ela tem relação direta com os testemunhos, é testigo. Este estatuto de testemunho se baseia na confiabilidade de quem relatou, de quem viveu, ancorando-se nas experiências vividas. Os documentos, os registros que foram selecionados como documentos, necessitam de passar pelo conjunto ou pelo crivo das regras instauradas no campo da história. Critérios de seleção e constituição do corpus documental devem ser, pois, explicitados e analisados, imprescindíveis ao trabalho dos historiadores (a conhecida crítica interna e externa). E, hoje, ainda vamos muito mais além da crítica interna e externa ao documento, relacionamos os documentos 20 Filósofo e pensador francês, desenvolveu estudos e debates sobre lingüística, estruturalismo e

hermenêutica, entre suas obras que corroboram para a escrita da história, destacam-se: A memória, a história, o esquecimento. (Editora da Unicamp, 2007) e Tempo e Narrativa. (Papirus, 1994).

21 É professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), publicou pela Zahar: Deleuze, a arte e a filosofia (2009); Foucault, a ciência e o saber (2006); Foucault, a Filosofia e a Literatura (2005); Nietzsche e a Polêmica sobre O Nascimento da Tragédia (2005); O Nascimento do Trágico De Schiller a Nietzsche (2006); Zaratustra, Tragédia Nietzschiana (2001).

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às suas condições de possibilidade, sem apagar o seu estatuto discursivo: sejam sociais (onde se produziu e para quem se produziu), sejam técnicas (tais como os códigos, regras e convenções que as orientaram), relacionando-as às práticas culturais e às escolhas interpretativas. Esses procedimentos em nosso ofício de historiadores, ao utilizarmos nossos documentos, nos levam a reconhecer seu estatuto indiciário, que os colocam em relação a uma série de outros documentos, de outros escritos/textos de historiadores, que também irão validá-lo. Porque quando dizemos que as regras do fazer história são compartilhadas, estamos legitimando o diálogo e o confronto, ou seja, o debate. O dialogo, enfim, possibilita relacionarmo-nos com outros textos. O que confere legitimidade ao discurso do historiador é o fato de que não estou falando sozinha. Estou dialogando com vários outros documentos (inclusive com outros suportes materiais, como os iconográficos, etc.) que foram trazidos por diversos outros textos escritos. Como historiadora, estou estabelecendo conversações com vários outros historiadores. Participamos de toda uma aprendizagem, de uma teia de leituras compartilhadas que, afinal, “resumimos”, ou melhor, selecionamos, em nossas bibliografias, em nossas referências bibliográficas. Com elas montamos ou configuramos um quadro de onde estou falando e para quem estou falando. Qual é o meu lugar institucional? Esta é a pergunta tão importante para delimitarmos o que nós chamamos de um campo de conhecimento, tomando de empréstimo a concepção do Bourdieu22. Bem, este reconhecimento dará legitimidade ao corpus documental escolhido. Por fim, como vários autores colocam, sobretudo, historiadores e filósofos, o nosso laço é com a memória. A história possui uma relação fulcral com a memória, e se ela não é história, trata-se, então, não só de destacarmos as diferenças, mas sim de refletirmos acerca das relações entre história e memória, entre passado, presente e futuro.

Saeculum: Regina, você trabalha com autores filósofos. Quais os enfrentamentos dessa relação no ofício do historiador? Como é que você sente esse enfrentamento, que às vezes não é tão fácil?

Regina Beatriz Guimarães Neto: É. Essa abordagem é bastante complexa. Acredito que as leituras dos filósofos foram e são fundamentais em nossa vida, em nossa formação, em nossa prática historiográfica, e muito ligada também a nossa trajetória de vida. Não tenho formação em filosofia, mas creio que devemos dialogar com os filósofos, estudando-os com muito cuidado, tempo e dedicação. Talvez seja mais apropriado que, do campo historiográfico, façamos as perguntas que possibilitam um diálogo com a filosofia. Na minha trajetória de estudante, professora e pesquisadora, vejo diversas passagens marcantes para a maneira como hoje concebo o mundo e a história (gosto muito da ideia de passagens...). Conhecemos diversos autores, historiadores, sociólogos, antropólogos, literatos, filósofos, entre muitos intelectuais, mas existem momentos especiais em nossa trajetória intelectual que alguns deles foram e são indispensáveis. Na época do meu mestrado, e parte do meu doutorado, estudar Marx e o marxismo era fundamental. No meu mestrado, recordo-me que realizei treze cursos, destes, creio que dez devem estar relacionados a Marx – O Capital, Grundrisse, Contribuição para à Crítica da

22 BOURDIEU, Pierre. The Field of cultural production: essays on art and literature. Cambridge: Polity Press, 1993.

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Economia Política, A Ideologia Alemã, enfim, cada curso se especializava num ponto, numa problematização, numa obra que exprimia ou apresentava o foco do interesse no estudo em questão. Então, isso foi básico para mim e ainda é muito importante para uma contínua aprendizagem. Até mesmo, para percorrer outros caminhos depois, um exercício crítico crucial para as minhas reflexões, exercitando o pensamento. Acredito que não apenas do ponto de vista teórico, mas as leituras dos filósofos – assim como outras – preparam, exercitam a nossa sensibilidade e exercitam a minha sensibilidade como historiadora. Penso que o marxismo tem uma visão crítica do mundo, que carrega uma sensibilidade para com o mundo, inigualável. Toda uma relação crítica com a opressão, com a desigualdade social, com a relação capital-trabalho, com o fetichismo da mercadoria – ninguém de nós, que passou por essas leituras, olha uma mercadoria sem pensar no fetichismo, na exploração do trabalho que ali se encontra embutida – que se revela na análise da mais-valia. Acredito que os estudos marxistas foram e são um alicerce para estabelecer minha postura crítica diante da desigualdade social e escolha de meus temas de pesquisa. Até hoje, de certo modo, governam minhas opções, por exemplo, o projeto que desenvolvo com o apoio do CNPq está ligado à temática do trabalho. São os trabalhadores pobres, migrantes, nômades na Amazônia Legal (onde se destaca a parte norte de Mato Grosso), em que analiso sua trajetória e exploração a que se encontram submetidos, até mesmo o trabalho análogo a escravo (denominação sujeita a um grande debate). No território amazônico, homens e mulheres aparecem de várias regiões do Brasil, vários lugares e, ao mesmo tempo, pode-se dizer, não são de lugar algum. Perdem as referências de nome, de família, de pertencimento social; seus itinerários seguem as aberturas das frentes de trabalho. A concepção de território, nessa pesquisa é bastante problematizada e pensada em termos de práticas sociais (Milton Santos) Hoje, tenho direcionando minhas investigações para o estudo de lideranças no campo que expressam um combate ferrenho pelo uso de trabalhadores em condições de trabalho análogo a escravo. Penso que há aí uma sensibilidade, uma visão de mundo que, como historiadora, está ligada a essa formação marxista.

Depois, voltando a sua questão sobre os filósofos, quero “lembrar-me do passado e do futuro”. Li e leio bastante Michel Foucault23. É um autor que opera, também, com muitos conceitos e noções que se afastam radicalmente das noções clássicas da filosofia da história, e que nos traz um debate imprescindível para pensar a modernidade, a sociedade capitalista, que não se reduz à “sociedade da disciplina” (na voz daqueles que nunca entenderam Foucault). É um equívoco pensar que a sociedade que impõe regras disciplinares, que constrói os espaços disciplinares é uma “sociedade disciplinada”... Foucault é um autor muito importante para meus estudos, especialmente porque é um filósofo que trabalha com as descontinuidades, diferenças e rupturas e que, portanto, recusa o relato contínuo de uma história ideal. Deste modo, pressiona-me a pensar diferente, sobre a história e também sobre minha vida. Pressiona-me a adotar outra prática de pesquisa, por exemplo, a indagar como os atores sociais que focalizo em minhas pesquisas vivenciam e experimentam diversas relações, relações de poder (outro conceito fundamental 23 A história da loucura (Perspectiva, 1978); As palavras e as coisas (Martins Fontes, 1981); Vigiar

e Punir (Vozes, 1988); A vontade de saber (Graal, 1977); O uso dos prazeres (Graal, 1984); O cuidado de si (Graal, 1985); além de vários outros textos, entrevistas, etc..

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em Foucault), entendendo que aquilo que os submetem, ao mesmo tempo, produz iniciativas de resistência. Outra questão muito mal entendida em Foucault, a da resistência. Penso que os atores sociais podem ser vistos criando outras estratégias, constituindo-se num campo de luta. Foucault sempre se interessou pelo campo de combate, instituído nas relações sociais. Neste ponto, também podemos recorrer às leituras de Michel de Certeau, nos textos em que discute a questão das resistências como invenções e apropriações diversas24, análises muito pertinentes que trazem outras propostas para o debate teórico acerca de “onde há poder há resistência”, segundo as palavras de Foucault. Mas isto também deve ser problematizado. O que é e como deve ser explorada esta questão? O que é resistência ou iniciativa de resistência? Diferentes autores darão diferentes respostas, muitas vezes usando outra nomenclatura. Michel de Certeau apontará a problemática das resistências com base em outra perspectiva, das estratégias, das táticas e das apropriações culturais. De uma riqueza analítica extraordinária. Foucault irá procurar à sua maneira realizar outras pesquisas, e inquirirá sobre os modos de subjetivação. É um filósofo que, nessa senda, abriu-me outros espaços de leitura, outra percepção do mundo, das práticas sociais e culturais, das práticas políticas. Sua contribuição às análises das relações de poder, ou seja, a concepção de poder como relação de forças, é insubstituível. Poder não é lugar, não é propriedade, não é coisa, poder é relação, é relação de forças. E, nessa perspectiva, como pensamos/praticamos as nossas liberdades? Somos atravessados por quais fluxos culturais, somos produtos de quais relações, como? Lendo Foucault vejo que as análises acerca das práticas de subjetivação nos auxiliam muito, deslocando certezas estabelecidas e levando as nossas perguntas para outro patamar, não tenho a menor dúvida. Isto porque refuta a noção de individualização, de dominação, abrindo portas para pensarmos de outro modo sobre nós mesmos, sobretudo, aquilo que se diz de uma estética da existência. E assim, a leitura de Foucault, como também a de outro filósofo, Deleuze25 me estimularam decididamente a enveredar por outros caminhos. E, nessa trilha, instigaram-me a buscar e a fazer diversas discussões em minhas pesquisas, não para atrelá-las teoricamente, no sentido de recitar estes autores como modelos, conformando-me ou sujeitando-me a eles, mas para utilizá-los como instrumento para o pensar, como experimentação aberta a inúmeras possibilidades. Deleuze é outro filósofo de quem gosto muito, que trabalho em meus cursos na pós-graduação, e vejo que tem uma força decisiva sobre minhas percepções das relações culturais. Suas análises, temáticas, interesses o aproximam (e o diferenciam) de Foucault, apontam à “arte do pensamento” e postulam a recusa a um mundo que tenta submeter a invenção de novas possibilidades de vida à maquinaria do mesmo. Deleuze me leva a falar de outro filósofo, Espinoza do exercício do pensamento e da liberdade. Fiz um curso maravilhoso sobre Espinoza com a Marilena Chauí na UNICAMP, no tempo de meu doutorado, marcante para mim e que me deu este presente: a leitura de Espinoza. O livro que Deleuze escreveu sobre Espinoza26 é magistral. Ainda posso dizer que, pelos livros e diversos textos de Deleuze, também,

24 A invenção do cotidiano: artes do fazer. (Vozes, 1994).25 DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de

Janeiro: Graal, 1988. O livro é sua tese de doutoramento em Filosofia, defendida na Universidade de Sorbonne em 1968.

26 DELEUZE, Gilles. Espinoza e os signos. Porto: RÉS-Editora, s/d.

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aproximei-me de certas obras literárias, especialmente, de Proust. Utilizo seu livro Proust e os signos27, em diversos cursos que ministrei. De uma maneira geral, essas leituras confluem para as discussões e análises que faço sobre memória, traçando suas relações com a história. Deleuze nos ensina a pensar a memória como relação, e como relação entre o presente e o passado, ou a presença do passado no presente e não a memória como coisa ou arquivo morto, ou, ainda, como ponto de partida ou chegada. A memória é travessia por diversas temporalidades, é relato de um aprendizado na complicada arte de decifrar os signos e que, pelas semelhanças, descobrem-se as diferenças, introduzindo a noção de equivalência.

Para fechar esta rápida “passagem” por alguns dos filósofos prediletos (mas sempre tendo o cuidado de escolher questões caras ao debate historiográfico), não poderia deixar de mencionar o autor das Passagens..., Walter Benjamin28. Tenho um apreço especial por este filósofo, pelas aprendizagens praticamente infinitas, como sua obra das Passagens, inacabada... Faço uso de seus textos também contando com o auxílio de autores que há muito tempo o estudam, citando, especialmente, no Brasil, Willi Bole29, Olgária Matos30 e Jeanne Marie Gagnebin31. No meu mestrado e doutorado, na Unicamp, em alguns cursos, W. Benjamin era uma referência central. Mas sei que os estudos de seus escritos levam uma vida de aprendizagens. Para exercitar esta aprendizagem estou preparando um curso na Pós-graduação de história, na UFPE, que estabelecerá diálogos com as Passagens, tendo como ponto de partida algumas questões centrais ao debate historiográfico atual, como venho sempre enfatizando. Benjamin proporciona não só uma reflexão crítica sobre o discurso acerca da história, elaborando suas teses sobre o conceito de história, mas também oferece uma discussão singular sobre memória e narrativa, que envolve a questão da escrita da história. Acredito que este campo de reflexões e análises críticas implica um debate teórico e metodológico imprescindível para os historiadores. E, ademais, em seus ensaios ele se afasta da noção de testemunho como “origem” e problematiza a memória como uma experiência com o passado. Atualmente, tenho um interesse especial nestas questões sobre a memória, e privilegio os textos de Walter Benjamin, sobretudo lendo, explorando intensamente, arduamente, as Passagens32, o livro que foi belamente organizado no Brasil por Willi Bolle. Além disso, o próprio Willi Bolle instiga os historiadores a melhor dialogarem com Walter Benjamin, sobretudo, a estabelecer “conversações” acerca do método historiográfico. Acredito que fazemos isso muito pouco. Considero que Walter Benjamin é um autor bastante citado, mas pouco explorado, no território da história, isto é, os seus livros e diversos ensaios são não muito experimentados como instrumento analítico. A sua contribuição para

27 DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.28 BENJAMIN, Walter. Passagens. Organização da edição brasileira Willi Bolle; colaboração na

organização da edição brasileira Olgária Chain F. Matos. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Irene Aron. Belo Horizonte: Editora da UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.

29 Entre outros textos: Um painel com milhares de lâmpadas. Metrópole & Megacidade (Posfácio à edição brasileira). In: BENJAMIN, Passagens. .

30 Entre outros textos: MATOS, Olgária Chain F. Aufklärung na metrópole. Paris e a via Láctea. In: BENJAMIN, Passagens.

31 “Prefácio” – Walter Benjamin ou a história aberta. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. Entre vários outros da autora.

32 BENJAMIN, Passagens..

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pensar a questão da escrita na história – por meio de múltiplos diálogos – é de uma riqueza inigualável, até mesmo para organizarmos nossos arquivos de pesquisa de outra maneira, com outros pressupostos teóricos.

Saeculum: A partir da década de 90, temos uma maior visibilidade no ofício do historiador com as práticas que envolvem memórias em registros orais. Como você avalia essa emergência? E nesse percurso de duas décadas, quais mudanças você destacaria como mais expressivas na área?

Regina Beatriz Guimarães Neto: Bem, vou destacar o momento atual, que conheço melhor, quando passei a refletir mais sistematicamente acerca do uso das fontes orais, com base em certas orientações metodológicas. Primeiramente, é necessário dizer que a história oral não é uma disciplina, mas uma metodologia ou prática de pesquisa, que vem se destacando no cenário nacional e internacional. Assumi a presidência da Associação Brasileira de História Oral, para o período de abril de 2008 a abril de 2010, sendo substituída, após o X Encontro Nacional de História Oral que organizamos em Recife, na UFPE, pela professora Maria Paula Araújo Nascimento, da UFRJ 33. Neste X Encontro foram apresentados trabalhos que ofereceram contribuições valiosas ao debate metodológico acerca dos desafios que enfrentam os pesquisadores ao lidarem com as fontes orais; partilhando questões que provocam as discussões mais acirrados nas universidades brasileiras, tais como as atividades de seleção e construção dos relatos orais como documentos, sob o crivo das regras historiográficas. Como resultado do X Encontro, ainda, publicamos os textos completos nos anais eletrônicos, disponíveis no site da ABHO34. Ademais, essa discussão e análise sobre as metodologias que implicam o uso deste tipo de fonte desdobraram-se em artigos publicados na própria revista da ABHO (agora em seu formato eletrônico, que também pode ser acessada no site da ABHO). A revista é muito bem avaliada pelo sistema Qualis da Capes, e vem publicando bons artigos de diversos historiadores do Brasil e do exterior, dando legibilidade ao trabalho aglutinador da Associação Nacional de História Oral. E, como a ABHO tem cinco diretorias regionais, isto é, como ela se organiza com cinco diretorias regionais, compreendendo todas as regiões brasileiras, seu poder de articulação também é grande. Mais recentemente, um fenômeno que ocorreu bastante significativo e de grande alcance, em termos de avanços nesse debate acerca das fontes orais, foi a abertura de diversos Programas de Pós-Graduação no Brasil, sobressaindo-se, nesses Programas, temas de pesquisa que focalizam a história recente do Brasil ou a história do tempo presente em que o uso das fontes orais se tornou bastante comum. As práticas metodológicas das fontes/relatos ou memórias orais (não vou entrar aqui no âmbito dessa discussão semântica, pois exigiria mais tempo) passaram a ser tratadas, discutidas, no espaço acadêmico das Pós-Graduações. Tal situação contribuiu enormemente para a construção de um aporte teórico e metodológico bastante rigoroso. E não só as fontes orais, testemunhos, relatos, mas também outras fontes documentais, como as fontes visuais, por exemplo, foram alvo de procedimentos

33 Para a Gestão 2010/2012, a ABHO passou ater como presidente Maria Paula Nascimento Araújo (UFRJ). A professora Regina Beatriz Guimarães Neto passou a compor o Comitê Editorial da Associação.

34 Sítio eletrônico institucional: <http://www.historiaoral.org.br/>.

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metodológicos muito mais rigorosos. É saudável para o debate, esclarecer ainda que não se trata de contrapor escritura versus oralidade, mas sim de refletir acerca de um tipo especial de fonte, sem entender por fonte o registro do que “está posto”, “dado” ou a emergência de uma “realidade”.

Saeculum: Ganhou visibilidade, através das Pós-Graduações?Regina Beatriz Guimarães Neto: Ganhou muita visibilidade. As práticas

metodológicas ampliaram-se, colocando em discussão procedimentos metodológicos diversificados. Creio que professores e alunos passaram a enfrentar desafios que, talvez, antes eram menos debatidos. Passaram pelo crivo das bancas examinadoras e pelos debates proporcionados pelos seminários, palestras, encontros promovidos pelos Programas de Pós-Graduações. Ao mesmo tempo, a própria Associação Nacional, com o apoio do trabalho das regionais, acompanhou e estimulou maneiras de vivenciar essa experiência, ampliando os espaços de debates. Não podemos deixar de falar das graduações e das monografias de final de curso, das pesquisas de PIBIC, também muito importantes. Estudantes com bolsa PIBIC têm participado muito deste movimento metodológico, discutindo, propondo, interferindo com novas metodologias no uso das fontes documentais. Eu mesma tenho três bolsistas PIBIC que utilizam não só as fontes orais, claro, mas, trabalham também com fontes orais, e participam de maneira muito ativa na inovação dos procedimentos metodológicos nos usos das fontes, em especial relatos orais e fotografias. E, ao mesmo tempo, como já destaquei, a Associação Brasileira de História Oral participa ativamente desse movimento de valorização de novas fontes e diversificam os aportes teóricos e metodológicos, assim como estimula a organização de acervos importantes, que, antes, talvez, não fossem levados em conta. Além disso, essa discussão ganha expressão também nos encontros regionais. Os Encontros nacionais e regionais se alternam, de dois em dois anos, com o cuidado de não coincidirem, no mesmo ano, os dois eventos. Nesse último encontro nacional, a minha proposta central foi a de que todas as regionais brasileiras propusessem o que elas consideravam de mais representativo, no âmbito de suas pesquisas, com as fontes orais, procurando sempre dialogar com outros documentos. O centro do debate foi de cunho metodológico, com a participação de professores da América Latina e dos Estados Unidos que estiveram discutindo os avanços, os impasses, os problemas, enfim, as questões que são alvos de disputas metodológicas em seus espaços institucionais.

Na América Latina ganha cada vez maior proeminência e hoje já podemos acessar o site da Rede Latino-Americana de História Oral, RELAHO35, que conta com a participação de vários brasileiros. Então, penso que avançamos – com problemas, claro – com a discussão dos aportes teórico-metodológicos da história oral. Quer dizer, hoje as críticas quanto ao uso das fontes orais partem de outras questões, com outras pertinências, e são muito saudáveis, enriquecem as discussões, salvo quando, pela desinformação, aparecem críticas que revelam uma visão historiográfica muito estreita e não apenas em relação às fontes orais. Todo tipo de documento tem seus desafios ao ser explorado, como os manuscritos, os impressos como jornais, revistas e as fontes visuais, audiovisuais, etc., que hoje, sobretudo, apresentam-se enfatizando o problema sobre como lidamos metodologicamente com os documentos. Quer 35 Sítio eletrônico institucional: <http://www.relaho.org/>.

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dizer, mais do que as temáticas, os procedimentos e as práticas de trabalho com as fontes documentais apresentam as questões que exigem maior discussão. O que responde também, eu acredito, a toda esse debate sobre o estatuto narrativo da história, avaliando os documentos selecionados e analisados. Somos pressionados a proceder com mais rigor com as fontes, a realizar a crítica aos documentos, seu estatuto discursivo, suas condições de possibilidades. Então, muitas vezes, considero bastantes ingênuos alguns debates que questionam a legitimidade das fontes orais. São pertinentes sim as indagações a respeito do estatuto dos relatos de memória, dos testemunhos, das práticas discursivas. É necessário analisar os testemunhos, e não tê-los como prova do que ocorreu, inseri-los em uma teia histórica, entrecruzá-los com outros registros. Testemunho não é documento, este terá que ser construído no trabalho historiográfico. É preciso também discutir as entrevistas, a subjetividade (sem opô-la a objetividade, recusando a relação dicotômica), questionando o porquê e como estamos procedendo metodologicamente, e a produção de suas possibilidades. São questões complexas que temos que enfrentar, dinamizando a pesquisa histórica.

Saeculum: Então, pegando a ponte com essa discussão da documentação escrita também, eu pergunto, e a memória a partir da documentação escrita? Já que você estava falando nesse assunto. Por exemplo, a ressignificação histórica carregada de sentimentos com que você e a professora Maria do Socorro Araújo tratam as cartas da desconhecida Jane Vanini, no artigo Cartas do Chile, que está na coletânea Escrita de Si, Escrita da História36. Por exemplo, o enfoque dado por vocês duas é o de memórias do mundo privado para o espaço público, são às cartas que foram trocadas e que se tornaram públicas. Então, como é a memória desse documento escrito, como é o tratamento para esta memória do documento escrito que, por exemplo, você tão bem faz no artigo?

Regina Beatriz Guimarães Neto: As Cartas do Chile é um texto que eu gosto bastante pela produção da história que tecemos e pelo seu valor afetivo, e que revela uma questão política da maior importância em nossa história recente. Jane Vanini foi uma jovem, como tantas outras no Brasil, que foi embora do país, em razão de ser uma militante de esquerda perseguida pelo regime civil-militar. Depois de algumas passagens pelo Uruguai e Cuba seguiu para o Chile, no período de Allende, e lá, como vocês viram pelo artigo, foi assassinada. Retorna, neste aspecto, minha ligação com Marc Bloch, que evoca o sentido trágico da vida na ação política e uma memória de combate – um excesso de vida – no sentido nietzscheano. Penso que a matéria da nossa prática de trabalho é a vida e suas múltiplas possibilidades. Então, quando eu lia, juntamente com Maria do Socorro, as cartas de Jane para sua irmã mais velha, sabendo de antemão que ela havia sido assassinada, sentia uma dor aguda, uma consciência do seu significado político para a história do Brasil, a sua violência e impunidade. E daquelas linhas escritas, em várias situações que apresentavam grande risco de vida, emergia uma enorme vontade de viver da Jane, uma força de combate admirável pela prática contra a arbitrariedade da desigualdade social. Era

36 GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz & ARAÚJO, Maria do Socorro de Souza. Cartas do Chile: os encantos revolucionários e a luta aramada no tempo de Jane Vanini. In. GOMES, Ângela de Castro (org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2004, p. 335-356.

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difícil para nós duas lidarmos com essa memória viva que ainda pulsava nas cartas. Pelo fato de constituir um testemunho direto, analisar as cartas foi um enorme desafio metodológico. Sim, porque ler sua escrita como uma prática discursiva, com outras lentes, e não cair no que “já estava dado”, ou repetir simplesmente o que já vinha escrito, o testemunho da militante, exigia deslocamentos teórico-metodológicos e a produção de novos significados na trama histórica. Especialmente, não tratá-la como heroína, mas compreendê-la como uma personagem que se encontra “em relação a”, numa relação situacional, compartilhando com outros atores sociais práticas de militância política, segundo orientações dos grupos de esquerda com os quais se encontrava comprometida. Era nosso ofício de historiadoras. E foi muito rica essa experiência porque Socorro, eu e Jane Vanini, três mulheres, tecíamos um só relato histórico.

Saeculum: E Socorro nascida na Paraíba! Regina Beatriz Guimarães Neto: Socorro Araújo foi minha orientanda de

mestrado e escreveu uma bela dissertação sobre Jane Vanini, esta militante de esquerda que morreu muito jovem, 29 anos de idade. E, ao mesmo tempo, Jane representa um microcosmo do universo político da violência que vivemos com as ditaduras militares. Na dissertação e no artigo sobre Jane Vanini tivemos de lidar com a subjetividade e a prática política da militante, problematizar o seu cotidiano, a dimensão das suas expectativas futuras e o combate político no presente; relacionado a isso, criar certa proximidade, por meio de suas cartas, com a “dimensão privada” de sua vida, se é que podemos dizer assim, ressaltando aspectos significativos dos elos que estabelecia com a família, com as coisas materiais de que mais gostava e, sobretudo, com seus desejos e angústias. O fato de ela expor seus desejos, até mesmo na sua maneira de vestir, acabava por trazer diversos conflitos, sobretudo para a militante. Acima de tudo, escrever cartas já era proibitivo, e, naquela situação, qualquer revelação podia custar muito! Na sua prática, era orientada, como todos, a não deixar rastros, mas, mesmo assim, escrevia cartas para a irmã mais velha, sempre que podia, e contava das lutas, da paisagem da opressão que tomava conta das ruas de Santiago no momento do golpe contra Allende; contava das dores e das indignações; das lembranças do passado e dos perigos presentes. Morreu assassinada pelos soldados da ditadura de Pinochet, resistindo a prisão, em frente a casa onde se encontrava, segundo o que consta, em Concepción. Jane Vanini, que morreu como “Ana”, foi uma mulher militante de esquerda que havia feito da matéria de sua vida uma paixão revolucionária no contexto histórico em que viveu.

Saeculum: Professora, você trabalha com a temática estudos de história, memória e práticas culturais, isso eu vi no seu Lattes, na qual destaca a questão do espaço e do tempo e sua relação com a memória e a narrativa, abordando lembranças alusivas aos espaços frequentados e vividos e que nos remete a outras espacialidades e outras temporalidades. Especificamente nos casos das histórias locais e regionais, como tratar as marcas dos acontecimentos da memória dos mais velhos enquanto território da história?

Regina Beatriz Guimarães Neto: Tratar de redimensionar a questão do

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espaço ou problematizar o espaço e o tempo em nossas pesquisas traz grandes lições e inova o trabalho historiográfico. No meu projeto de pesquisa, em que enfoco as trajetórias de trabalhadores pobres pelo território amazônico, tive que aprender a fazer outra discussão sobre espaço (valendo-me dos estudos imprescindíveis de Milton Santos)37. Ou seja, procuro analisar como as práticas dos atores sociais, circunscritas a certas temporalidades, podem ser exploradas como práticas de espaço, que deixam rastros e vestígios de suas passagens, como inscrições materiais. Os espaços, assim focalizados, não são vistos como referências geográficas fixas, e longe de serem estáveis aparecem em movimento, segundo as práticas de seus usuários, impregnados de significados simbólicos. Uma geografia de cunho antropológico tem o primado sobre a geografia física. Então, essa relação entre espaço e tempo nos remete a outra compreensão, ou melhor, a outra concepção de territorialidade e que oferece uma base teórica fundamental para o que entendemos como relato histórico, independente da condição de ser local ou não local. Considero que toda história é local e não local; regional e não regional. Quando, em minha pesquisa, problematizo o espaço amazônico, estou pensando na construção de uma territorialidade que tem como referência as práticas de trabalhadores, homens e mulheres que para lá se dirigem, de todas as regiões do Brasil, do Sul, do Nordeste, do Sudeste, etc. Tenho entrevistas com mulheres e homens de Pernambuco, da Paraíba, do Maranhão, do Rio Grande do Sul, do Paraná e de outros estados brasileiros, que, de maneira geral, são trabalhadores que recebem diversas denominações num universo complexo de identificações tais como, o maranhãozinho, o paraibano, o gaúcho, designações acompanhadas de adjetivos que aprofundam a desqualificação como cabeça chata, galo, magro, manso, carabina, etc. São homens e mulheres que não têm sentido de pertencimento a território algum, trabalhadores nômades, desterritorializados, noções que seguem as trilhas das concepções do filósofo Gilles Deleuze, em Mil Platôs38. Nessa história, não tem sentido algum operar com um conceito de Amazônia (a invenção da Amazônia), como referência geográfica preconcebida, ou em termos de história regional ou “local”. É uma história do Brasil, dos deslocamentos territoriais de amplos segmentos de trabalhadores do campo; é uma história das explorações e expropriações de camponeses; é uma história das diversas construções sobre o que se denomina “processos de colonização”, destacando a positividade com a qual é utilizado o termo. É uma história do processo civilizatório e construção da nação e suas implicações políticas e culturais. Também pode ser narrada em forma de crônica, uma crônica da miséria e violência ou invenção do eldorado no Brasil. Então, em minha pesquisa, necessito mover diversos fios entre espaços e tempos entrecruzados, e, mais propriamente, um presente que atualiza o passado. As diversas análises que envolvem a Amazônia apontam para questões políticas, econômicas e culturais do Brasil, guardando as devidas especificidades históricas, sem diluí-las numa “história geral”, longe disso. Considero que a prática historiográfica opera com a diversidade cultural no tempo, nas várias linhas do tempo e dos espaços, que entrecruza temporalidades plurais, inscritas nos espaços (Paul Ricoeur e Michel de

37 Milton Santos. Entre outros: A natureza do espaço. Técnica e tempo. Razão e emoção. Hucitec, São Paulo, 1996; O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro, Record, 2001.

38 Mil platôs, V volume (Editora 34).

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Certeau apresentam grandes contribuições para esta discussão e análise39). Este é o desafio constante que se apresenta à nossa prática historiográfica e não exatamente essa noção de história regional. A não ser que se utilize essa referência nominativa como estratégia para abrigar certas pesquisas ou linhas de pesquisa, visando objetivos determinados pelos pesquisadores, Programas de Pós-Graduação, programas de instituições de pesquisa...

Saeculum: De projetos. Regina Beatriz Guimarães Neto: De projetos reunidos, relativos a certas

temporalidades e espacialidades. Contudo, é necessário reflexão e problematização das referências espaço-temporais utilizadas nas pesquisas, para que não se criem e predominem construções dicotômicas. Os espaços, como resultados das práticas sociais, têm como a palma das nossas mãos as inscrições de histórias várias, que saltam dos próprios contextos, vistos em suas especificidades. E não podemos esquecer que as inscrições espaciais apresentam superposições como um palimpsesto, abrigando várias camadas de tempo.

Saeculum: Como você vê as possibilidades da inserção da memória no ensino de história?

Regina Beatriz Guimarães Neto: Começando por discutir criticamente a história do Brasil, ligada a uma história do Ocidente. Refiro-me, mais especificamente, a uma visão colonizadora, ou seja, o que mais me incomoda nessa discussão acerca da memória e, sobretudo, da história do Brasil, é uma cultura/prática colonizadora na construção dessa história. Nessa perspectiva, penso que o ensino da história seja fundamental para uma prática efetiva na elaboração de uma história a contrapelo, como muitos historiadores e historiadoras vêm fazendo (e vocês aqui na UFPB são uma referência para essa discussão no âmbito do ensino da história). Uma história que recusa um historicismo reducionista e as continuidades ideais. A memória histórica não pode se basear numa linearidade temporal, numa cronologia obliteradora, oferecida pelos manuais atrelados ao domínio etnocêntrico da história ocidental. Ou, talvez, deve-se praticar no ensino da história questões e problemas que envolvem este pensar o tempo histórico, esta prática da escrita da história, a partir de marcos construídos por uma história colonizada. Edward Said40 nos ensina que nossos livros, romances e poesias, a literatura, em geral, obras científicas, livros de história, de geografia, de antropologia, entre outros, estão, não apenas impregnados de concepções colonizadoras ou colonizadas, mas os livros estão constituídos, em 39 A memória, a história, o esquecimento. Ed. Unicamp (La mémoire, l’histoire, l’oubli. Ed. Seuil,

2000); A invenção do cotidiano, v. I.40 Edward Wadie Said, de origem palestina, foi docente nas Universidades de Columbia, Harvard,

Johns Hopkins e Yale, lecionando Inglês e Literatura Comparada, reconhecido crítico literário e ativista da causa palestina. Sua obra mais importante é Orientalismo e Cultura e Imperialismo, publicada em 1978, considerada como um dos textos fundadores dos estudos pós-coloniais, nela ele analisa a visão ocidental do mundo oriental permeada por incoerências que apontam o oriente como ‘o outro’, afirma que essa tentativa que considera uma distorção servia aos interesses do colonialismo. No Brasil temos quatro obras traduzidas desse autor: Orientalismo - o Oriente como invenção do Ocidente pela Companhia das Letras (2007); Cultura e Política pela Boitempo Editorial (2003); Reflexão sobre o Exílio e Outros Ensaios pela Companhia das Letras (2003); Elaborações Musicais pela Imago ( 1991)

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seus enunciados principais, por elas. Assim, é necessário pensar e discutir criticamente os nossos textos com os quais aprendemos a ler e a escrever e com eles trabalhos em salas de aula. Walter Benjamin nos oferece um importante instrumental teórico quando diz que a história deve operar por saltos em seus momentos históricos mais significativos, o “salto tigrino”, que nos possibilita interferir na produção da memória. As iniciativas de comunidades étnicas, por exemplo, trazem uma memória de combate, e recusam fabricações prontas e acabadas, produzidas com base em outros interesses que não os dos protagonistas da sua história. Diante disso, denunciar uma “história oficial” ou uma história com designações equivalentes é fazer muito pouco, a pergunta mais pertinente, a meu ver, é como elaborar a crítica a essa construção histórica (e não apenas trocar as denominações). Então, penso que a prática do ensino da história deve estar comprometida com esta crítica, com um movimento que proporciona “saltos tigrinos”. Talvez eu esteja simplificado esta resposta, reunindo tudo nessa problemática dos textos e práticas historiográficas colonizadas, mas vejo isso como uma questão central. Penso que as implicações políticas de tais práticas são grandes, porque envolvem a discussão do direito à cidadania, direito à educação, direito à memória, e não simplesmente homenagear um passado histórico apresentado pelo ponto de vista do colonizador. Homenagear imagens históricas (narrativas, iconográficas, entre outras) que circulam pela nossa memória é uma prática cultural assustadora, e mais assusta porque reveladora de espectros, que estão rondar a nossa atmosfera cultural e política.

Saeculum: Tem que desconstruir essa ideia colonizadora...Regina Beatriz Guimarães Neto: Exato. E deslegitimar a autoridade que foi

imposta na construção da escrita da história. A autoridade de um tipo de história, de um tipo de discurso, de um tipo de instituição. Autoridade que hoje vemos também incorporadas às editoras, na seleção de livros, de autores, e nos próprios livros didáticos. Então, penso que aí se encontra o X da questão, ou seja, deslegitimar um discurso autorizado.

Saeculum: Professora Regina, muito obrigada, você quer acrescentar mais alguma coisa?

Regina Beatriz Guimarães Neto: Apenas quero agradecer a vocês. Não sei se pude contribuir com o debate historiográfico a partir das questões levantadas, mas sou muito grata, é bastante saudável a oportunidade de debater, de trazer um pouco nossas experiências ou inexperiências na difícil arte de aprender.

Saeculum: Nós é que agradecemos imensamente.

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NORMAS EDITORIAIS

1. A revista Sæculum aceita para publicação propostas de artigos, comunicações, resenhas, entrevistas e memórias (palestras, depoimentos, documentos e fontes) na área de História, que devem ser enviada apenas eletronicamente, com redação em português, inglês, francês ou espanhol, e cujo(s) autor(es) tenha(m) a titulação mínima de mestre.

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Só serão aceitas propostas enviadas diretamente para o endereço d. eletrônico [email protected].

2. No caso de artigo, a proposta de publicação deve ser enviada com 3 (três) arquivos distintos:

o principal, contendo o texto do artigo, com no máximo 20 (vinte) a. páginas; digitado em programa compatível com o Editor de Texto Word for Windows versão 2007 ou posterior (arquivo em formato “DOC”), com a seguinte formatação: fonte Times New Roman corpo 12; espaço entre linhas de 1,5; margens de 2,5 cm; papel A4. Este arquivo deve ser identificado com o último sobrenome do(s) autor(es) em maiúsculas (exemplo: “SOBRENOME_artigo.doc” ou “SOBRENOME1-SOBRENOME2_artigo.doc”), sendo que no corpo do texto ou nas propriedades do arquivo não devem constar quaisquer informações sobre a autoria do mesmo;

o segundo arquivo, identificado como “SOBRENOME_dados.b. doc”, deverá conter todas as informações sobre o(s) autor(es), especialmente maior titulação, vínculo institucional, financiamento da pesquisa (quando houver) e formas de contato (e-mail, telefones e endereço postal);

o terceiro arquivo, identificado como “SOBRENOME_resumo.doc”, c. deverá conter o resumo do artigo em língua portuguesa, com até 300 (trezentas) palavras; e até 3 (três) palavras chave. O arquivo deve conter também um abstract em língua inglesa com até 300 (trezentas) palavras e até 3 (três) keywords. No caso de texto redigido em outro idioma dentre os aceitos pelo periódico, poderá apresentar résumé e mots-cléf, quando redigido em francês; riassunto e paroli chiavi

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quando redigido em italiano; e resumen e palabras clave quando redigido em espanhol, mas nestes casos obrigatoriamente deverá apresentar o resumo e as palavras chave em português.

OBS.: os 3 arquivos podem estar compactados num arquivo formato ZIP ou RAR, para evitar que os dados se corrompam durante o envio.

3. As notas de rodapé devem ater-se ao mínimo necessário, não excedendo o total de 40 (quarenta). Devem ainda seguir a seguinte formatação: fonte Times New Roman corpo 10; espaço entre linhas simples; e um máximo de 8 (oito) linhas em cada nota.

4. As resenhas deverão ter entre 8 (oito) e 10 (dez) páginas, e devem versar sobre obra publicada no Brasil ou no exterior, durante os últimos 2 (dois) anos. Tanto estas como as demais categorias de propostas de publicação devem seguir as indicações de digitação e normatização estabelecidas para os artigos, bem como a forma de encaminhamento dos originais, sem a necessidade, contudo, do arquivo “SOBRENOME_resumo.doc”.

5. Caso o trabalho contenha imagens, essas não poderão exceder o número de 5 (cinco) e deverão ser enviadas em arquivos independentes, no formato JPEG ou TIFF, com resolução mínima de 300 dpi e dimensões máximas de 15 cm x 21 cm. O local de inserção das imagens no corpo do texto deve ser indicado por legenda (Ex.: “Figura 1”, etc., etc.).

6. Caso o texto contenha caracteres especiais - como alfabeto grego, hebraico, cirílico, chinês, japonês, coreano, hindu, ou sinais matemáticos, por exemplo - a fonte utilizada (arquivo formato “TTF”) deve ser enviada à Comissão de Editoração juntamente com os arquivos “DOC” da proposta.

7. Traduções devem ser acompanhadas da autorização do autor do texto original ou dos detentores dos direitos autorais de publicação.

8. As referências bibliográficas das citações, obras e autores comentados devem ser feitas apenas em notas de rodapé, através do sistema numérico, segundo normas da ABNT (NBR 6023: ago. 2002). A revista Sæculum NÃO publica bibliografias ao final dos trabalhos.

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190 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [23]; João Pessoa, jul./ dez. 2010.

Esta revista foi impressa em papel Pólen 80g/m2 (miolo) e papel Supremo 240g/m2 (capa), com tiragem de 500 exemplares, em em dezembro de 2010.

Sua editoração utilizou os softwares Adobe InDesign CS4 e CorelDRAW! 14.0.O corpo do texto foi composto com a fonte Souvenir Light BT,e na capa foram utilizadas as fontes Castellar e Friz Quadrata.

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Sæculum – Revista de História comunica a seus colaboradores e leitores que, a partir de sua edição de n. 24 (jan./jun. 2011), deixará de circular

em sua versão impressa, passando a ter somente edição on line no SEER (Sistema Eletrônico de Editoração de Revistas)

da Universidade Federal da Paraíba.

Para maiores informações, acesse: <http://www.cchla.ufpb.br/saeculum/>.


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