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Santos feitos à mão - Repositório Institucional

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Eliane Tânia Freitas Santos feitos à mão devoções religiosas populares em cemitérios no Rio Grande do Norte
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Eliane Tânia Freitas

Santos feitos à mãodevoções religiosas populares em cemitérios no Rio Grande do Norte

Santos feitos à mão devoções religiosas populares em cemitérios no Rio Grande do Norte

Eliane Tânia Freitas

Natal, 2021

Kamyla Álvares Pinto Leandro Ibiapina Bevilaqua Lucélio Dantas de Aquino Luciene da Silva Santos Marcelo de Sousa da Silva Márcia Maria de Cruz CastroMárcio Dias PereiraMarta Maria de AraújoMartin Pablo Cammarota

Roberval Edson Pinheiro de LimaSibele Berenice Castella PergherTercia Maria Souza de Moura MarquesTiago de Quadros Maia Carvalho

ReitorJosé Daniel Diniz Melo

Vice-ReitorHenio Ferreira de Miranda

Diretoria Administrativa da EDUFRN Maria da Penha Casado Alves (Diretor a) Helton Rubiano de Macedo (Diretor Adjunto) Bruno Francisco Xavier (Secretário)

Conselho EditorialMaria da Penha Casado Alves (Presidente) Judithe da Costa Leite Albuquerque (Secretária) Adriana Rosa CarvalhoAnna Cecília Queiroz de MedeirosDany Geraldo Kramer Cavalcanti e Silva Erico Gurgel AmorimFabrício Germano AlvesGilberto CorsoIzabel Souza do NascimentoJoel Carlos de Souza Andrade José Flávio Vidal CoutinhoJosenildo Soares Bezerra

EditoraçãoHelton Rubiano de Macedo (Editor) Kamyla Álvares Pinto (Editora)

RevisãoWildson Confessor (Coordenador)Pedro Melo (Colaborador)

Design editorialRafael Campos (Coordenador)Marcos Paulo do Nascimento Pereira (Projeto gráfico)

FotografiasAmy HumphriesMcKenna Phillips (capa)Rafael CamposSerge Kutuzov

Fundada em 1962, a Editora da UFRN (EDUFRN) permanece até hoje dedicada à sua principal missão: produzir livros com o fim de divulgar o conhecimento técnico-científico produzido na Universidade, além de promover expressões culturais do Rio Grande do Norte. Com esse objetivo, a EDUFRN demonstra o desafio de aliar uma tradição de quase seis décadas ao espírito renovador que guia suas ações rumo ao futuro.

Freitas, Eliane Tânia. Santos feitos à mão [recurso eletrônico] : devoções religiosas populares em cemitérios no Rio Grande do Norte / Eliane Tânia Freitas. – Dados eletrônicos (1 arquivo : 22 Mb). – Natal, RN : EDUFRN, 2021. 332 p.

Modo de acesso: <http://repositorio.ufrn.br>. Título fornecido pelo criador do recurso ISBN 978-65-5569-159-7

1. Baracho, João Rodrigues, 1930-1962. 2. Jararaca, 1901-1927. 3.Cemitérios – Devoções religiosas – Rio Grande do Norte. 4. Antropologia da religião. I. Título. .

CDD 393 RN/UF/BCZM 2021/10 CDU 393 (813.2)

Coordenadoria de Processos Técnicos Catalogação da Publicação na Fonte.

UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede

Elaborado por Gersoneide de Souza Venceslau – CRB-15/311

Todos os direitos desta edição reservados à EDUFRN – Editora da UFRNAv. Senador Salgado Filho, 3000 | Campus Universitário

Lagoa Nova | 59.078-970 | Natal/RN | Brasile-mail: [email protected] | www.editora.ufrn.br

Telefone: 84 3342 222

Publicação produzida com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES

Pavão misterioso

Pássaro formoso

Tudo é mistério

Nesse teu voar

Mas se eu corresse assim

Tantos céus assim

Muita história

Eu tinha pra contar

Pavão misterioso

Nessa cauda

Aberta em leque

Me guarda moleque

De eterno brincar

Me poupa do vexame

De morrer tão moço

Muita coisa ainda

Quero olhar

(Ednardo, Pavão Mysteriozo)

Em cada uma de nossas atividades, aquilo que fabricamos nos supera.

(Bruno Latour)

Ao meu pai, Aleixo, in memoriam.

Sumário Introdução 10

Capítulo 1 “Mortos muito especiais”: João Baracho e Jararaca 37

João Baracho 40José Leite de Santana, o Jararaca 48

Capítulo 2 Trabalho de campo no Campo Santo – e Além 58

Cenas de campo: situações, encontros, conversas 70

Pelos cemitérios: notas do caderno de campo 84

Capítulo 3 Mortos, costumes funerários e santificação dos túmulos 110

A morte poluente, os mortos abjetos 118Santos feitos à mão para passar à ação: santos como fe(i)tiches 126

Capítulo 4 As pessoas, as palavras e as coisas rituais: circulação e conflitos 145

Promessas e oferendas 157

Trabalhadores do cemitério 175

Conflitos em torno do túmulo e além 186

Capítulo 5 Palavras rituais: relatos e narrativas em trânsito 201

Capítulo 6 Narrativas hagiográficas, sofrimento e morte violenta 219

Vida de bandido: sofrer, fazer sofrer 227

O bom bandido, protetor dos pobres 230

Morte violenta como rito de passagem e conversão simbólica 232

Capítulo 7 Maravilhas e proezas: contos, causos, lendas 234

Capítulo 8 Experiência, memória e perdão 268

O caráter transgressor do perdão e a necessidade da promessa 287

Considerações finais 298Referências 310Agradecimentos 331Sobre a autora 332

Introdução

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IntroduçãoO objetivo deste livro é apresentar uma análise dos ritos

e relatos orais constitutivos do universo de devoções populares a duas personagens associadas ao mundo do crime ou do bandi-tismo no estado do Rio Grande do Norte: José Leite de Santana, o cangaceiro Jararaca, e João Baracho, que ficou conhecido emNatal como o “matador de motoristas”, entre 1959 e 1962. Essasdevoções têm lugar nos cemitérios onde se encontram sepultados, respectivamente em Mossoró e Natal, principalmente no Dia deFinados. Seus túmulos são frequentados por inúmeros visitantes,alguns dos quais se apresentam como seus devotos. Estes são osinterlocutores principais da pesquisa que embasa este trabalho.Esses devotos prestam-lhes homenagens funerárias, de cujo início não tenho informação precisa, mas que remontam, no mínimo,à divulgação dos fatos que teriam levado a sua morte trágica (ouviolenta) e ao seu sepultamento naquele local. Eles são referidos, na imprensa e em relatos dos seus visitantes, como entidades capazes de operar milagres, recebendo tratamento ritual análogo àqueleprestado aos santos católicos, embora não necessariamente sejam chamados assim, mesmo por seus devotos.

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Na verdade, um dos pontos de que tratarei ao longo deste trabalho diz respeito exatamente a essa indefinição de seu status póstumo ou de sua identidade. Embora os ritos devocionais trans-corram de acordo com certa gramática católica que faz lembrar o culto aos santos, não observei em seus devotos qualquer preocupação em afirmar que Baracho ou Jararaca sejam santos por si mesmos, de uma vez por todas. Essa preocupação com seu estatuto identitário surgia apenas em situações nas quais pessoas que não simpatizam com essas devoções falavam – negativamente – a respeito delas. Dos devotos o máximo que consegui, ao longo do convívio de alguns anos, foram comentários como “dizem que ele é santo” ou “dizem que faz milagre”. As devoções a Jararaca, em Mossoró, e a Baracho, em Natal, foram e continuam sendo objeto de controvérsias e críticas por parte de segmentos sociais que veem nelas uma expressão da ignorância, ingenuidade ou superstição de parte da população semiletrada; ou que se indispõem contra elas em nome de convicções religiosas ou morais que consideram antagônicas a elas.

A análise resgata e reanalisa registros etnográficos de uma pesquisa de campo realizada por mim como professora e pes-quisadora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e, mais tarde, estudante de doutorado em Antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que foi base para a minha tese de doutorado, defendida em 2006. As devoções a Jararaca e a Baracho foram pesquisadas por mim, por meio de trabalho de campo, entre 1998 e 20041 com visitas aos cemitérios durante o período da celebra-ção do Dia de Finados (2 de novembro, e também nas semanas

1 Essa pesquisa sobre as canonizações de José Leite de Santana, o Jararaca, e João Baracho, nos cemitérios de Mossoró e Natal, foi a base para a elaboração da minha tese de doutoramento, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), da UFRJ, no Rio de Janeiro, onde obtive o título de doutora em Antropologia Social em 2006, sob orientação da professora Regina Célia Reyes Novaes.

Introdução

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imediatamente anteriores e posteriores a essa data), visitas às casas de devotos e visitantes do túmulo contactados no cemitério, e levantamento simultâneo de outras fontes, como os arquivos de jornais e museus (Tribuna do Norte, Diário de Natal, O Mossoroense, e recortes de jornais antigos no Museu Lauro da Escóssia2

em Mossoró; cordéis sobre cangaço e literatura sobre cordel no Museu do Folclore Edson Carneiro, no Rio de Janeiro), para buscar documentos escritos, livros ou depoimentos que complementassem os dados para a pesquisa. Além dos cemitérios, locus de realização dos rituais de devoção junto aos túmulos de Jararaca, em Mossoró (cemitério São Sebastião), e Baracho, em Natal (cemitério Bom Pastor), o trabalho estendeu-se às casas de algumas das pessoas que se apresentaram como devotas e concordaram em colaborar com a pesquisa, de modo mais ou menos contínuo. Esse universo de interlocutores mais estável foi complementado por outras pessoas, algumas devotas, outras não, com quem pude conversar durante as visitas aos cemitérios, bem como em outros locais, incluindo moradores do bairro onde se encontram os cemitérios, e seus trabalhadores temporários ou permanentes. Essas conversas aca-baram compondo uma colcha de retalhos singular, isto é, embora descontínuas, esporádicas ou únicas3, faziam sentido a partir do

2 Neste Museu, consultei as pastas organizadas por sua então diretora Maria Lúcia Escóssia de Castro, Cangaço I e Cangaço II, com recortes de reportagens e artigos do jornal O Mossoroense, de 1927, republicados na coluna “Mossoró do Passado”, do mesmo jornal, em 1961. Registro aqui minha gratidão à diretora Maria Lúcia pela permissão de acesso a esse material, que foi extremamente útil para a pesquisa, em um período durante o qual o Museu se encontrava em reformas. A consulta ao material ocorreu em março de 2004.

3 Quero dizer, só uma conversa, ocorrida no calor da situação, com pessoas que não quiseram fornecer o contato para que eu as procurasse posteriormente, ou com quem eu conversava em meio à aglomeração e ao burburinho dos ritos nos cemitérios sem possibilidade de anotar seus contatos. Essas conversas rápidas rendiam informações de densidade e relevância variada, e se davam, na maior parte das vezes, sob a forma de conversas, fossem só comigo ou numa pequena roda da qual outros visitantes ou trabalhadores do cemitério participavam.

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quadro completo e relacional que compunham quando articuladas analiticamente a outras discussões sobre o mesmo tópico ou que se deram em situações comparáveis.

Além desse trabalho de campo e da tese escrita com base nele, prossegui durante os anos seguintes estudando outros aspectos das devoções populares que não havia explorado na tese, através de outras pesquisas que procuravam aprofundar principalmente as discussões teóricas sobre identidades, memórias, narrativas e suas expressões orais e escritas. Foi como antropóloga da religião, especializada em religiosidade popular, que comecei a explorar o tema deste livro, mas foi já como pesquisadora das narrativas midiáticas digitais (blogues, fóruns online), ainda com os mesmos interesses temáticos e teóricos recém-mencionados, que de certo modo pude olhar para aquele material de campo da tese, produzido entre 1998 e 2004, e para a própria tese, com novos olhos e insights que me levaram a crer que valia a pena recuperar e publicar aquele material. Embora sustente e traga de volta nesta obra os pontos principais da análise apresentada lá, este livro não consiste apenas numa adaptação daquela tese a outro formato. Às discussões apresentadas na tese de 2006 foram acrescentadas outras, além de novas análises, produzidas especificamente para este livro, com base em estudos de campo e teóricos posteriores. A própria mudança no formato e na estruturação das discussões que permaneceram trazem para algumas delas alterações no seu peso e na sua relação com os demais aspectos da análise. Como evidentemente não é meu propósito aqui tecer comparações com a tese, essas explica-ções visam apenas esclarecer àqueles que chegaram a ler aquele trabalho e a dialogar com ele a partir de suas próprias pesquisas. Não foi sem certa surpresa, e bastante satisfação, que descobri recentemente que minha tese e os poucos artigos que publiquei sobre o tema, em português e espanhol, têm sido bastante lidos

Introdução

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e citados em trabalhos da área de Antropologia da Religião. Essa foi, inclusive, uma das motivações para revisar e renovar aquele texto e publicá-lo neste formato.

Segundo cientistas sociais da religião, como a argentina Maria Julia Carozzi (2006, 2005), que há anos estuda o fenômeno das canonizações populares, no âmbito da religiosidade popular, elas vinham aumentando durante os anos 1990 – momento em que iniciei a pesquisa no Brasil – em quantidade e visibilidade. Foi nesse período que passaram a receber maior atenção nas mídias impressas e audiovisuais, que traziam novos casos ocorridos tanto em grandes metrópoles como em áreas rurais, via de regra tendo origem a partir de acontecimentos percebidos como trágicos do ponto de vista da população local. Assim, surgiram a partir daquela década novos santos populares ou, se não eram propriamente novos, passaram a gozar de maior popularidade a partir de sua amplificação propiciada pela cobertura midiática. Esse fenômeno, portanto, está longe de ser exclusivamente nordestino ou brasileiro.

Chamo de devoções ao conjunto de ritos – práticas altamente deliberadas, intencionais, motivadas por razões de ordem simbólica que remeteriam a mais que sua finalidade utilitária aparente, como o ato de acender de velas, cuja finalidade óbvia, do ponto de vista prático, seria a iluminação, mas em contexto ritual remeteria para referenciais simbólicos que precisaríamos conhecer e interpretar, para só então nos tornarmos capazes de compreendê-lo, ao menos parcialmente. Esses ritos devocionais que analisaremos aqui abran-gem cuidados e homenagens funerárias, circulação e trocas de palavras e objetos: relatos e narrativas de vários tipos, promessas e votos religiosos, bem como oferendas como água, flores, velas, bilhetes ou objetos significativos para o devoto, que são deixados sobre ou ao redor dos túmulos e, eventualmente, também nos cruzeiros dos cemitérios, das igrejas e nos raros altares domésticos.

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As devoções são prestadas ao cangaceiro Jararaca (José Leite de Santana, morto em 1927), no cemitério São Sebastião, em Mossoró, e a João Rodrigues Baracho (morto em 1962), no cemitério Bom Pastor I, em Natal. Esses são os dois casos analisados no decorrer do livro. Ambos foram assassinados por policiais nas mesmas cidades nas quais se encontram sepultados, em episódios violentos que ganharam a esfera pública devido aos registros inicialmente realizado por jornalistas e, no caso de Jararaca, também por cor-delistas, cronistas e historiadores.

Esse tipo de culto popular nos cemitérios ocorre em vários países e tem sido chamado por estudiosos de campos como a Antropologia e a Sociologia da Religião de canonizações ou santi-ficações populares, com o adjetivo popular aí indicando ora a forte adesão das camadas de baixa renda da população, ora seu caráter espontâneo e ausência de enquadramento institucional formal ou reconhecimento oficial de parte da igreja católica ou qualquer outra instituição religiosa. Nessas canonizações, normalmente também estão ausentes grupos ou indivíduos mediadores que reivindiquem responsabilidade por seu surgimento ou por sua manutenção ao longo dos anos, embora isso possa estar presente em alguns casos4, como, por exemplo, quando é a própria família do morto que promove e defende sua santificação póstuma, com base em evidências fornecidas por ela de que esse mereceria o status de “morto muito especial”, expressão consagrada por Peter Brown (1981, p. 69) para se referir aos mortos santificados nos primórdios do Cristianismo, cultuados em seus túmulos por pessoas que buscavam neles proteção espiritual.

Isso não acontece nos dois casos em estudo neste livro, isto é, as homenagens funerárias e as práticas devocionais parecem haver se iniciado espontaneamente, sem qualquer esforço organizado

4 Silva (2010) e Schneider (2001), por exemplo.

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para promovê-las por parte de algum segmento social, religioso ou não. Se algo contribuiu para seu fortalecimento, talvez tenha sido a divulgação oral e jornalística, em seus diferentes meios, acerca dos acontecimentos violentos que teriam culminado em sua morte, quando já gozavam, naquela altura, de forte projeção pública: João Baracho nas páginas policiais de jornais e programas de rádio; e José Leite de Santana, o Jararaca, a partir de seu enquadramento na identidade altamente significativa de cangaceiro associado ao bando de Lampião. Evidentemente não podemos supor qualquer continui-dade substancial nas possíveis razões pelas quais seus túmulos ainda atraem visitantes hoje, ainda que menos do que atraíam nos anos 1990 e na primeira década do século XXI. Não é meu objetivo aqui determinar origens primeiras, causas ou elementos substanciais de continuidade nesses ritos de devoção, em termos históricos.

Meu objetivo é bem mais modesto e, embora recorra a registros da imprensa e cronistas como fontes complementares, meu foco está nas conversas e prestações rituais observadas nos cemitérios, nos ritos que se desenrolam nele, com trocas de bens materiais e imateriais, circulação de relatos e narrativas, que deli-neiam uma maneira singular de lidar com a tragédia, a morte e os mortos; de pensar e se relacionar com seus efeitos sociais sobre a coletividade, em dado momento, quando emerge em sua face trágica e potencialmente disruptiva. Proponho que, ao chamar a si a responsabilidade do cuidado de um morto marginal à comuni-dade, fosse por ser de fora (Jararaca, cangaceiro nômade, invasor), fosse por haver sofrido forte rejeição nela (Baracho, imigrante, foragido da polícia), a população que assim age expressa por meio da linguagem ritual funerária uma escolha que não pode deixar de ser tão religiosa quanto é política, revelando uma – ou mais de uma – visão própria sobre aqueles fatos e aquele morto, que

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não necessariamente coincide com as versões oficiais. Este é o ponto central, ao qual voltarei no decorrer deste livro, a partir de diferentes ângulos e discussões.

Não tomei conhecimento da existência da devoção a Jararaca ou a Baracho por meio da mídia, mas isso bem poderia ter ocorrido, pois seus cultos frequentaram por muitos anos as manchetes relativas à cobertura jornalística do feriado anual de Finados, 2 de novembro, sendo seus túmulos apontados, em mais de uma ocasião, como os mais visitados nos seus respectivos cemitérios, São Sebastião, em Mossoró, e Bom Pastor I, em Natal. Em 3 de novembro de 1998 era possível ler na página 11 do jornal Tribuna do Norte a manchete “Túmulo de ‘Jararaca’ é o mais visitado em Mossoró”. Além disso, também eram comuns – e no caso de Jararaca ainda é – chamadas de maior ou menor destaque na primeira página (capa), com manchetes e fotos que destacam a frequência expressiva de visitantes nesses túmulos e outros de pessoas públicas, como artistas, esportistas ou políticos. Na verdade, esse tipo de culto pelos cemitérios Brasil afora já pode ser considerado parte da rotina celebrativa anual de Finados, recebendo da mídia atenção correspondente à sua popularidade, por sua vez alimentada por essa mesma atenção, em um movimento cíclico.

Mais adiante, contarei como travei meu primeiro contato, em Mossoró, com a devoção a Jararaca, no Dia de Finados (2 de novembro) de 1997, quando ali me encontrava a convite de uma aluna que realizava pesquisa sobre costumes funerários para sua monografia de conclusão de curso de graduação em Ciências Sociais. Tive, ali mesmo, meu interesse despertado para o assunto, vindo assim a descobrir, nos anos que se seguiram, outras devoções semelhantes espalhadas pelo estado, dentre as quais optei por me dedicar a estudar o caso de João Baracho que me parecia dar

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margem a contrapontos e comparações interessantes com o de Jararaca, até por serem ambos, a despeito de tantas diferenças óbvias, percebidos por seus devotos, visitantes e pela mídia em geral a partir da identidade de fora da lei ou bandido.

A escolha por focar nesses dois casos também se deu pela preocupação em evitar tomar um recorte amplo demais, já que, uma vez que se atente para o fenômeno, começamos a encontrar casos semelhantes, com histórias interessantes, praticamente em todos os lugares que visitamos. De cada pessoa a quem falava sobre a pesquisa escutava uma ou várias novas histórias, não apenas sobre Jararaca ou Baracho, mas sobre outros mortos milagrosos de que até então não ouvira falar, no próprio estado do Rio Grande do Norte ou em algum outro estado ou país. A tentação de incluir outros casos foi grande, mas me mantive firme no propósito de me ater a apenas duas, a partir das quais pudesse pensar sobre a relação entre uma vida criminosa, moralmente reprovável, e uma santificação póstuma, pois desde o primeiro instante me havia intrigado muito o modo como, em torno do túmulo, os devotos que levavam suas velas e davam testemunhos de milagres de Jararaca passavam sem qualquer hesitação, a contar sobre suas proezas no mundo do cangaço, pintando com tintas fortes sua crueldade e destemor, suas habilidades para fugir da polícia e desafiar os senhores da terra.

Claro que, a princípio, todas as devoções aos santos dos cemitérios apresentam muitos pontos em comum, como as promes-sas, votos, oferendas, todo um repertório ritual muito semelhante, em linhas gerais, àquele que pude observar nos dois cemitérios nos quais pesquisei; e, por outro lado, é evidente que há inúmeras diferenças, históricas e socioculturais, mesmo entre os dois casos que tomei para análise aqui. Compará-los diretamente por vezes soa forçado. Mas, minha escolha se deu justamente pelo fato de

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que partir do que, em suas devoções, pareciam ter em comum: o destaque conferido pelos devotos ao contraponto entre o passado (no crime/cangaço) e o presente póstumo na santidade, e nas tensões constitutivas tanto ao processo de passagem de um status a outro, via morte trágica e pública, como dessa identidade póstuma ambí-gua. Quero deixar claro, desde esse início, que essa aproximação é fruto do meu recorte e abordagem analítica, tendo sido construída por mim. Não tive, dentre os colaboradores da pesquisa durante o trabalho de campo sistemático ou depois, nenhum interlocutor ou interlocutora que fosse simultaneamente devoto ou visitante frequente de ambos os túmulos – em que pesa certamente o fato de estarem em cidades diferentes e relativamente distantes – embora alguns deles conhecessem e já tivessem visitado o outro santo, principalmente o de Mossoró (Jararaca), bem mais famoso.

Meu objetivo foi realizar um estudo antropológico sobre esses dois santos do cemitério, Jararaca e Baracho, que os tomas-sem em dois planos: o das práticas devocionais, que têm como momento público, e central, as prestações funerárias no cemitério, especialmente no Dia de Finados, e as narrativas sobre o morto, sobre sua vida, sua morte e sua condição póstuma, bem como sobre as próprias devoções de que se tornou objeto. Assim, o Dia de Finados mostrou-se, durante a pesquisa, como momento privilegiado para observação dos atos e discursos que constituem essa devoção, e para fazer novos contatos com interlocutores que se dispusessem a colaborar com a pesquisa, ali mesmo e em oportunidades posteriores, em outros locais.

Passarei, então, a apresentar resumidamente os dois casos que tomei para análise, e o faço começando pelo caso de Natal. Objeto da devoção popular nessa capital, João Baracho teria confes-sado assaltos e assassinato de taxistas, tendo sido responsabilizado

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a partir daí por uma sequência de crimes que o transformava, conforme a repercussão na imprensa da época, em uma espécie de serial killer potiguar, comparável ao Mineirinho caçado pela polícia carioca. Enquanto se encontrava foragido da cadeia pública foi encurralado pela polícia em um beco na localidade onde morava e fuzilado com 22 tiros. Isso aconteceu em 1962. Trinta e cinco anos antes, em Mossoró, o cangaceiro associado ao bando de Lampião, Jararaca (José Leite de Santana), também teria sido assassinado pela polícia, quando, capturado após frustrada tentativa de invasão a cidade de Mossoró pelo bando de Lampião, teria sido baleado, torturado e enterrado vivo.

Em comum, ambos os acontecimentos, em seus respecti-vos contextos, chocaram a população e geraram reações como questionamentos éticos, morais, jurídicos sobre suas culpas e responsabilidades das autoridades locais, bem como levaram à mobilização parcial de segmentos da população, que lhes dirigiram cuidados funerários normalmente assumidos pelas famílias, que nenhum dos dois tinha no local de morte, até onde se sabe. Baracho tinha uma companheira (ou amante), Maria Lucia, mas ela não aparece nas narrativas da imprensa ou da população que o visita como personagem ativa no seu funeral ou cuidados posteriores, assim como também não aparece, senão a partir da década de 1990, e mesmo assim apenas na data de Finados, a família de Jararaca, residente em Pernambuco. A ausência de familiares é, como veremos, relevante para a compreensão dos cultos funerários, em geral.

Observe que, neste trabalho, não está em questão 1) exami-nar as circunstancialidades de cada caso em si mesmo, em seus respectivos contextos originais, nem 2) discutir a veracidade maior ou menor desses acontecimentos históricos e das representações

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sociais acerca deles, pois que seus propósitos são focar no movi-mento devocional observado nos respectivos cemitérios onde se encontram sepultados, com a finalidade de analisar suas práticas e as representações sociais, os relatos e a memória que vem sendo construída em torno deles, relatos estes que podem oscilar entre registros tidos pelo falante como verdadeiros (ou factuais, históri-cos) ou assumidamente ficcionais (como nos causos e lendas sobre as proezas do cangaceiro, moldadas no exemplar mito de Lampião). No decorrer do texto, elementos de suas histórias ou biografias, serão tratados como acontecimentos (ou fatos) porque é assim que são tomados pelos sujeitos devotos que foram ouvidos ao longo desta pesquisa, mas também por alguns dos textos acadêmicos e da imprensa, que consultei.

Assim, não me propus investigar, por exemplo, se Jararaca teria sido torturado e enterrado vivo ou não, mas sim os impactos que essa ideia e essa imagem teriam acarretado sobre as pessoas da cidade, e seus desdobramentos simbólicos e rituais. O mesmo se aplica ao caso de João Baracho. Não investigo dados sobre sua culpa ou inocência, mas sim sobre a dúvida presente nas cabeças dos devotos, sobre suas especulações, que, ao falarem sobre Baracho e sua época (ou sobre Jararaca), falam na realidade sobre a realidade do presente e suas muitas violências, sofrimentos e injustiças, mas também sobre redenção, perdão e fé.

No caso de Jararaca, trata-se de caso conhecido por todos na cidade de Mossoró e arredores, pois que se encontra inserido em uma saga maior, que é objeto de múltiplas narrativas orais e escritas, de diferentes naturezas e fontes (jornalística, acadêmica, popular etc.), e produtora de “lugares de memória” (YATES, 1999; NORA, 1985), dentre os quais poderíamos situar o próprio túmulo de Jararaca no cemitério São Sebastião, assim como o Museu Lauro

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da Escóssia, popularmente chamado Museu do Cangaço, e um memorial dedicado à história do cangaço, que exalta a resistência do povo mossoroense frente aos invasores do bando de Lampião, rechaçados em 1927. Foi durante a fuga que se seguiu ao insucesso nessa invasão que Jararaca foi ferido e preso numa cadeia local. Assim, a produção do discurso da resistência dessa cidade também contribuiu para tornar Jararaca uma figura histórica, mesmo quando procurou omiti-lo ou reduzi-lo à condição de inimigo vencido ou encarnação do mal, pois concorreu para reavivar as cores do cangaço na memória local e mantê-lo presente, não apenas na memória popular local, mas também na agenda de interesses midiáticos e de pesquisas. Jararaca, um obscuro cangaceiro líder de um pequeno bando, não chegaria, provavelmente, a ter qualquer expressão histórica se não fosse pela participação nessa saga local. Isso, todavia, não impediria, como não impediu para João Baracho, em Natal, a emergência e continuidade de um culto póstumo em torno de seu túmulo, porém esse culto tenderia a alcançar pouca repercussão fora dos círculos de devotos e vizinhos ao cemitério onde tem lugar. Além disso, ao ser situado como 1) cangaceiro e 2) cangaceiro associado a Lampião, reunido com ele numa mesma empreitada, a invasão a Mossoró, Jararaca passa a gozar de pres-tígio semelhante, isto é, ele deixa de ser visto como um fora da lei qualquer para ser percebido antes de tudo a partir do quadro de referências simbólicas do cangaço e do mito de Lampião.

O caso de João Baracho é bastante diferente do caso de José Leite de Santana, o Jararaca, no que diz respeito à visibilidade e às repercussões. Um criminoso local, erigido à condição de lenda das páginas policiais pelo tratamento conferido a ele por políticos (em ano eleitoral), intelectuais da época e imprensa, ele esteve nas páginas dos jornais, na cobertura de Finados, durante muito tempo – durante todo o tempo que durou a pesquisa, seguramente,

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e por mais alguns anos – porém, hoje se encontra quase esquecido, tendo seu culto no cemitério diminuído em frequência e, portanto, em visibilidade, mesmo no Dia de Finados. Seu caso não pode exercer hoje, na Natal que conhece outra realidade, intensificada, de violência urbana e criminalidade, o mesmo fascínio que produziu em sua época e continuou exercendo mesmo décadas depois.

Quando realizei pesquisa de campo, e ainda pelos anos seguintes, seu túmulo atraía aglomerações de pessoas, entre devotos e curiosos, durante os dias anteriores a Finados e, principalmente, no próprio 2 de novembro, sendo também assunto frequente e destacado pela cobertura da imprensa local. Hoje, final da segunda década do século XXI, em uma Natal, e um estado do Rio Grande do Norte, que já conhece guerras entre facções nacionais do tráfico de drogas e uma ascensão sem precedentes das religiões pentecostais, em geral avessas e hostis a santificações desse tipo, Baracho e sua devoção foram ainda mais reduzidos à margem social e à relativa invisibilização, resultantes do fortalecimento de sua estigmatização. Esta pesa hoje, sobre a devoção e seus devotos, muito mais do que já pesava na época em que realizei pesquisa de campo, o que eu já apontava na tese, defendida em 2006, como uma das características intrínsecas do seu culto, com efeitos concretos sobre ele, capazes de conformá-lo e diferenciá-lo em parte do culto a Jararaca. Este, embora sofra estigmatização e hostilidades por parte de alguns segmentos, encontra no cangaço um referencial cultural que o legitima, no mínimo como parte de um circuito turístico temático (que pode incluir o cemitério) e do quadro da história do cangaço e da própria cidade de Mossoró. Baracho não conta com esse reforço simbólico e seus crimes hoje soam banais, incapazes de impressionar alguém, embora, ainda assim, ele continue sendo, comparativamente aos demais túmulos visitados apenas por seus respectivos familiares ou por ninguém, um morto que tem história.

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E uma história ainda rememorada e transmitida, o que em si mesmo se constitui em um diferencial. Devotos esparsos comparecem ao longo do Dia de Finados, individualmente ou em pequenos grupos. E as garrafas d’água continuam lá, junto a flores e outras oferendas típicas, hoje em menor quantidade.

Essa água ofertada a Baracho por seus devotos corresponde a um aspecto fundamental das narrativas hagiográficas (SOARES, 2019) sobre ele: Baracho “morreu com sede”, rejeitado e dedurado por vizinhos, crivado de balas em um terreno que costumava então ser utilizado como matadouro de porcos. As imagens evocadas por detalhes de sua morte são comovedoras, como as que contam sobre a morte de Jararaca, enterrado vivo após ser baleado e ter as pernas quebradas por pancadas. Comover-se com algo é deixar-se mover com ou junto com aquilo, e é isso o que os devotos fazem ao acorrer ao túmulo tão logo se espalham essas histórias: eles se mobilizam em função delas e, assim, instauram um processo de reparação ritual, sentida como necessária, assumindo para si a tarefa do cuidado funerário do morto solitário e renegado, que caberia normalmente à família que eles não têm nos lugares onde foram mortos e sepultados (ou sepultados para serem mortos, como teria ocorrido com Jararaca).

Conforme venho afirmando acerca das canonizações popu-lares desse tipo (2009, 2007a, 2007b, 2000), a morte trágica ou violenta, em si, não seria condição suficiente para sua emergência e continuidade; seria requerida também essa vida excepcional, não rotineira, portanto, em algum grau, afeita à fabulação. Uma vida interessante o bastante para ser narrada em múltiplos registros. Evidentemente, os elementos biográficos e traços comportamentais atribuídos a Jararaca ou a Baracho postumamente resultam de processos sociais de construção discursiva, que, quando se dão no quadro da devoção póstuma, predominantemente oral, tendem a

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reforçar o que neles possa ser apresentado como virtudes cristãs e/ou martírio, o que corresponderia a dois caminhos tradicionais para a santificação, que remeteriam, por sua vez, para diferentes modelos de santidade cristã. O cangaceiro perverso ou o matador de motoristas podem, assim, ser aproximados do revoltado social (HOBSBAWN, 1978 [1965],1975b) ou do bandido que rouba dos ricos para dar aos pobres, por exemplo, e, assim, de algum modo, ser dotado de virtudes como bondade, simpatia pelos mais fra-cos, espírito protetor, honra, que tornariam mais aceitável sua transição para a santidade póstuma; ou se poderia tomar outro caminho, enfatizando seu sofrimento extremo, espécie de peni-tência redentora, o que o aproximaria do santo-mártir, que era, aliás, tipicamente cultuado no seu túmulo, demandando dos fiéis um deslocamento até o local, uma espécie de peregrinação que precedeu, historicamente, o culto às imagens dos santos.

De algum modo, a ida até o túmulo, no cemitério (ou a capelas, grutas, cruzes na beira da estrada), para prestar devo-ção a Baracho e Jararaca (ou a prostitutas, vítimas de estupros e linchamentos, crianças ou jovens que morreram precocemente, vítimas de doença ou violência, de modos percebidos como par-ticularmente cruéis e injustos, e outros casos de personagens socialmente marginalizadas durante suas vidas e do encerramento destas vidas em tragédias) parecem ecoar longínquas raízes cristãs no culto aos mártires e suas relíquias, tipicamente um culto local (VAUCHEZ, 1981, 1994; BROWN, 1981), bem como em outros símbolos e imagens da cristandade, profundamente enraizados na cultura popular – ou, simplesmente, na cultura (VELHO, 1995; STEIL, 1996; CAMPOS, 2013) – que representam as vicissitudes da condição humana e das relações entre vida e morte, vivos e mortos.

Tenho claro o quanto essa afirmação pode ser mal interpre-tada, como indicação de que eu estaria sugerindo continuidades

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históricas substanciais e lineares. Não se trata disso. Não afirmo qualquer continuidade desse tipo, porém a reconfiguração de elementos, imagens, símbolos tomados da matriz cultural comum aos países que se constituíram com forte presença das tradições cristãs, e particularmente católicas, e que ainda têm nelas uma de suas matrizes de significação mais significativas e presentes no cotidiano. A força da presença da devoção aos santos no Brasil já foi documentada por inúmeros estudos (VAINFAS; SOUZA, 2000; MENEZES, 2009, 2010). Que categorias, valores, ideias e imagens cristãs, ou particularmente católicas – ou, mais particularmente ainda, relativas a processos como penitências e santificações – possam estar presentes nos modos de lidar e buscar compreensão para os fatos cotidianos e, ainda mais, para os extraordinários e chocantes; e que a religião possa oferecer um repertório simbólico capaz de, ao menos parcialmente, conferir-lhes sentido e vias de ação, não chega a me parecer surpreendente.

Tudo isso pouco ou nada tem a ver com adesão efetiva a esta ou aquela igreja ou denominação religiosa, posto que esses elementos se encontram dispersos na cultura, constituindo muito da nossa visão de mundo em aspectos fundamentais, como a dicotomia corpo-alma, material-espiritual; ou toda a imagética – verbal, pictórica etc. – de elementos bíblicos como a via crucis, a crucificação ou o sofrimento materno. Todos esses elementos estão muito presentes no tecido emocional da nossa subjetividade a partir da nossa formação e convivência com as realidades sociais injetadas por eles, quer tenhamos consciência disso, quer não. Nas camadas populares, em particular, onde podemos situar a maioria dos devotos, a religiosidade é uma dimensão nada desprezível da experiência social, normalmente uma dimensão reivindicada como parte essencial dela.

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Minha análise dos ritos no cemitério privilegiará seu papel na elaboração de uma narração e de uma memória – que, por sua vez, alimenta a reprodução dos ritos devocionais –, que é memória do passado tal como pode e quer ser visto a partir do presente (CANDAU, 2002), do enquadramento particular adotado pelos sujeitos hoje. Os tecidos narrativos, híbridos de relatos e narrações distintos, em diferentes registros, que também compõem o reper-tório ritual devocional, conferem uma existência singular a esse morto em um novo registro, tão polifônico quanto polissêmico: muitas vozes falam a partir de muitos lugares simbólicos, inclu-sive pela boca de um mesmo devoto; muitos sentidos emergem e coexistem em torno de uma mesma personagem, que, assim, não é de fato sempre a mesma. Não parece haver um projeto ou objetivo consciente na elaboração oral e coletiva dessas narrações e dessa memória, no âmbito dos cultos realizados nos cemitérios. Nem mesmo um projeto de convencer a alguém de que o morto seja de fato um santo, de buscar de algum modo sua canonização formal ou algum outro tipo de reconhecimento institucional, religioso ou não. Esse tipo de esforço não aparece nos casos em estudo aqui, como estão ou estiveram presentes em outros casos de canonização popular, como o do menino Antoninho da Rocha Marmo, em São Paulo (SCHNEIDER, 2001).

Trata-se de uma devoção funerária, que reproduz costumes funerários tradicionais e, de certo modo, enquadra neles a ritu-alística, também tradicional, da devoção aos santos católicos e, ainda, de outras devoções populares, como a devoção às Almas. Por isso, defino essas devoções aos santos dos cemitérios como devoções funerárias, elas também já parte, como já disse aqui, das manifestações culturais esperadas durante as celebrações de Finados e outras datas religiosas. Mesmo quando não tem lugar em um cemitério, a canonização popular tipicamente é

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póstuma, exigindo a morte trágica como uma de suas condições. Suas relações com as tradições funerárias são históricas (culto aos mártires nos túmulos – e culto às suas relíquias – como origem dos cultos aos santos, no cristianismo), mas também sociais, no sentido de que estas se constituem numa verdadeira matriz cul-tural, rica em imagens e símbolos capazes de conferirem sentido à tragédia pública e suporte ritual a ações por meio das quais se busca dar resposta à necessidade de lidar com essa tragédia, também publicamente. Por meio dos rituais funerários, isso pode ser feito de modo legítimo a partir do quadro espacial e temporal oferecido pelas tradições funerárias. Mais ainda: através desse canal, a ação pública – inclusive os discursos verbais e corporais manifestos nos ritos – é tornada possível mesmo para pessoas em posições sociais subalternas, que não dispõem de outros meios de expressão pública. O elemento da santificação se encontra, então, encompassado por seu caráter especificamente funerário, nos dois casos em estudo aqui.

Envolvidos, ambos, no mundo do crime – redução um tanto simplista, mas que nos servirá no momento – as biografias de Jararaca e Baracho são manipuladas conforme o ponto de vista e interesse de quem as relata, podendo enfatizar suas proezas em tom lendário, com os exageros comuns às histórias de heróis e vilões, e até mesmo adaptá-las a paradigmas consagrados como o que Eric Hobsbawn (1975 [1969], 1978 [1965], p. 14)5 chamou de “bandido social”, cujo modelo seria Robin Hood. Neste caso, não se exagera

5 Na verdade, os termos bandido social e banditismo social estão difusamente presentes nas duas obras citadas, Rebeldes Primitivos (1978 [1965]) e Bandidos (1975 [1969]). Na introdução do primeiro, Hobsbawn apresenta a seguinte definição: “O banditismo social, fenômeno universal e praticamente imutável, pouco mais é do que um endêmico protesto camponês contra a opressão e a pobreza: um grito de vingança contra os ricos e os opressores, um vago sonho de conseguir impor-lhes alguma forma de controle, uma reparação de injustiças individuais.”

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seus traços criminosos, como quando se quer contar proezas, mas se exagera sua bondade e rebeldia transgressora, dando teor social e romântico a suas ações em vida. Isto é, mesmo no contexto de afirmação de sua santidade póstuma, não há preocupação em negar que tenha sido criminoso ou fora da lei, ladrão, assassino ou cangaceiro, até pelo contrário. É possível construir uma equação na qual quanto maiores as transgressões (ou pecados, se lidas em chave religiosa), mais impressionantes seriam o arrependimento e a conversão. Esse traço não é específico dessas devoções. Na verdade, ele está presente sempre que o tema conversão religiosa entra em pauta, o que pode ser visto, por exemplo, em pesquisas sobre pentecostalismo (MARIZ, 1997).

Nos dois casos, os fatos que teriam precedido a morte de Baracho e de Jararaca são narrados no contexto da devoção em torno de um eixo principal que procura acentuar seu sofrimento exacerbado pela crueldade das autoridades e forças policiais, assim como sua vida marginalizada em condições precárias, marcada por carências, perseguições e violências opressoras. Desse modo, os devotos constroem um cenário propício, que conduz à ênfase na redenção pelo sofrimento, tema caro ao cristianismo, o que tornaria mais plausível a conversão póstuma do bandido em santo, ou ainda, em outros termos, da ameaça em promessa benéfica, do Mal em Bem. A conversão simbólica produzida pela ação ritual dos devotos reintegra o indivíduo marginalizado quando vivo ao circuito de trocas comunitárias, isto é, o insere no quadro das relações sociais locais como um recurso simbólico positivo que pode vir a ser acionado pelos locais e visitantes, sendo assim definitivamente fixado àquela localidade – e, em um plano mais abstrato, àquela sociedade – que antes, de certo modo, o repelira e expulsara para seu exterior.

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Este livro partirá de dois capítulos iniciais nos quais apre-sentarei com mais detalhes o modo como foi realizada a pesquisa de campo, quem foram os principais colaboradores dela e quem são os dois mortos canonizados nos cemitérios. Quanto à realização da pesquisa, discutirei as especificidades de uma pesquisa que tem como foco principal um evento ritual anual, portanto sujeita a uma série de contratempos particulares. E, ainda, como o foco nas práticas rituais – incluindo os discursos orais – nos cemitérios não implicou permanecer apenas no campo santo, mas seguir os devotos até suas casas ou locais de trabalho, conforme estes se dispunham a me dar esse tipo de abertura. Mantive, ao longo dos anos, um núcleo estável de interlocutores mais constantes e é sobre eles que falarei na segunda parte do capítulo, apresentando sobre eles informações que permitam ao leitor aproximar-se mais de suas realidades sociais e seus modos de pensar sobre elas e, particularmente, sobre a devoção no cemitério. Para apresentar Jararaca e Baracho e os acontecimentos que culminaram em sua morte, recorro a fontes históricas e jornalísticas, sistematizando informações que se encontram um tanto fragmentadas, nessas diferentes fontes. Meu objetivo foi construir um mínimo esboço biográfico, apenas para que o leitor possa se familiarizar com as versões mais correntes que circulam sobre ambos, e das quais, inclusive, alguns dos devotos estão, ao menos parcialmente, a par.

No Capítulo 3, recorro a historiadores dos costumes fune-rários que investigaram as transformações sociais e culturais envolvidas nas diferentes visões, valores, ideias acerca dos mortos e da morte, em diferentes períodos, na Europa e também no Brasil. Esse capítulo, talvez um pouco árido por tratar-se de revisão teórica, pareceu-me imprescindível manter, ainda que eu não tenha podido atualizar essa revisão para incluir obras mais recentes, pois parte da minha visão sobre o potencial implicado nas canonizações nos

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cemitérios foi formada a partir da leitura de livros hoje já consi-derados clássicos sobre o tema, de autores como Philippe Ariès, Peter Brown e André Vauchez e, para o Brasil, Claudia Rodrigues e João José Reis. Assim como acho importante compartilhar as referências que conformaram minha visão de quem teriam sido João Baracho e José Leite de Santana, o Jararaca, também penso que seja fundamental que os leitores possam compreender o tra-jeto intelectual que realizei através dessas leituras para chegar a elaborar as hipóteses explicativas e interpretações que apresentei nesta introdução e que serão desenvolvidas ao longo dos capítulos, a partir de diferentes eixos analíticos e recortes temáticos. Assim, no Capítulo 3, ficará claro que nem a morte nem os mortos são dotados de valores intrínsecos, negativos ou positivos, e que nosso modo de nos relacionarmos com ambos variaram bastante ao longo do tempo, sempre de maneiras estreitamente articuladas aos demais aspectos da vida social, em cada lugar e período. Pois se trata, sim, de uma relação social, essa que mantemos – ou nos recusamos a manter – com a morte e os mortos. Os cultos fune-rários, bem como a crença em milagres ou entidades capazes de produzi-los, evidentemente também passou e continuam passando por mudanças sistemáticas, que só podem fazer sentido quando situadas socialmente.

Alguns desses costumes serão mostrados no Capítulo 4, no qual me deterei em expor aspectos dos cultos prestados aos santos dos cemitérios, João Baracho e Jararaca. Os ritos serão analisados a partir de seus elementos constitutivos, como as preces, promessas e oferendas, mas também a partir das relações mantidas com eles, ou da atitude perante eles, de diferentes agentes, posicionados a partir de situações distintas: os trabalhadores que prestam serviços nos cemitérios e que, por isso, convivem cotidianamente com a realidade do culto, mas também com outras realidades de seu

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cotidiano; os devotos, que buscam os cemitérios para buscar ajuda espiritual nos túmulos milagrosos, mas também para visitar seus entes queridos no Dia de Finados e outras datas significativas, como aniversário de morte; e os hostis aos cultos, por diferentes razões, desde aquelas de ordem religiosa (sobretudo pentecostais) até as de ordem sanitária. É na terceira e última parte do capítulo que apresentarei alguns dos conflitos em torno da devoção dife-renciada a esses mortos, e o quanto elas são capazes de despertar a agressividade e a antipatia em outros visitantes naqueles espaços.

Embora os discursos orais sejam aqui tomados como parte da estrutura dos rituais de devoção, optei por destacá-los em capítulos separados, devido à diversidade de tipos de relatos (testemunhos, lembranças, relatos biográficos ou hagiográficos) e narrativas (contos, lendas, discursos que se assumem mais ou menos ficcio-nais). Eles serão apresentados e discutidos ao longo dos capítulos 5 ao 7, na sequência que exponho a seguir.

No Capítulo 5, procuro desenvolver teoricamente a proposta apresentada no Capítulo 4 de pensar os discursos orais como parte intrínseca dos ritos, como ações rituais tanto quanto os gestos corporais, como ajoelhar-se ou acender velas. Destaco, ainda, o fato de que as narrativas viajam, como sementes, através de diferentes espaços, contribuindo, assim, para disseminar notícias e histórias acerca dessas personagens e atraindo novos visitantes para seus túmulos. Ao circularem, elas passam por transformações e diferentes interpretações.

No Capítulo 6, trato como uma espécie de mito de origem as narrativas consideradas mais remotas e mais disseminadas acerca dos poderes de cura dos dois santos, destacando o que chamei de primeiro milagre de cada um, em seus respectivos contextos. A seguir analiso os elementos enfatizados pelos narradores quando

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elaboram um discurso de tipo hagiográfico, procurando respaldar sua convicção de que Baracho e Jararaca de fato poderiam operar milagres e ajudar aos necessitados que os procuram. São três as variantes principais da narrativa hagiográfica: as que tomam como eixo sua vida marginalizada e marcada pelo sofrimento que viviam e que impunham aos demais, e que teria sido redimida pelo arre-pendimento e a morte violenta; as que tomam essa própria morte como elemento principal, pois teria sido ela própria uma vivência de dor excepcional, por isso redentora por si só (sempre supondo o arrependimento no último minuto); e as que preferem acentuar sua bondade e solidariedade em vida, pois, se roubavam ou matavam, seria devido à pobreza extrema, à precariedade de suas condições. Neste terceiro eixo, marca-se a continuidade entre a virtude em vida e na morte, acima dos malfeitos que possam ter praticado.

Aliás, esses malfeitos não costumam ser varridos para debaixo do tapete pelos devotos, nem mesmo esses que afirmam que eles teriam sido como Robin Hood, o ladrão que roubava dos ricos para dar aos pobres. E eles também aparecem em outra variante de narrativa, de que tratarei no Capítulo 7: aquelas narrativas que tomam acontecimentos históricos e os mesclam a elementos imaginários, fantasiosos, exagerando a coragem do cangaceiro ou as habilidades do ladrão. Refiro-me a esse conjunto de narrativas como legendário da vida de bandido, pois nele exalta-se as proezas, a bravura, a virtude que resiste às piores situações e mesmo aos próprios vícios e maldades. Nesse capítulo, o legendário é explorado após a primeira seção, que trata dos contos maravilhosos, das histó-rias, causos e até contos de assombração, pois personagens públicas como Jararaca ou Baracho constituem-se em matérias-primas muito ricas, que a imaginação popular jamais desperdiçaria. Baracho, logo após sua morte, teria dado de aparecer perto do cajueiro no Carrasco, próximo ao local onde foi morto. Muitas pessoas

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procuravam as estações de rádio ou os jornais para testemunhar que teriam visto ali Baracho em pessoa. Ou seja, Baracho teria passado de criminoso capaz de invultar – virar vulto, quase invisível, que é outro dos seus atributos nessas histórias – e, por isso, de fugir facilmente da cadeia, a assombração. De um modo ou de outro, sua afinidade, assim como a de Jararaca, com o extraordinário segue sendo afirmada e elaborada nessas narrações.

E assim chegamos ao último capítulo, no qual discuto como, ao evocar o passado do morto no contexto da devoção a ele, as pessoas terminam por refletir e elaborar um discurso sobre sua própria experiência, seja em relação à devoção ou ao passado. Mesmo que, até pela pouca idade, muitos devotos não tenham sido contemporâneos da morte de Baracho (1962) e, principal-mente, de Jararaca (1927), eles trazem recordações transmitidas por seus pais ou avós, já que esse tipo de acontecimento público tende a gerar todo um repertório de relatos que circula entre vizinhos e através de gerações. Esses relatos, como todos, não são neutros nem se limitam a reproduzir as versões oficiais dos fatos ou aquelas consagradas pelas mídias e autoridades locais. Como demonstra Michel Pollak (1989), podemos pensar as parentelas e vizinhanças como redes de transmissão de versões alternativas dos acontecimentos, elaboradas a partir de posições subalternas, silenciadas na esfera pública. Foi a partir dessa perspectiva também que procurei pensar sobre as narrativas e os relatos que vêm construindo, ao longo dos anos, essas duas personagens, em seus respetivos contextos de devoção e memória.

Para encerrar esse capítulo final, trouxe uma discussão filosófica de Hannah Arendt (2007) sobre dois temas que atra-vessam toda a análise contida no livro, em diferentes aspectos e perspectivas: o perdão e a promessa. O primeiro é fundamental para

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a plausibilidade da santificação, na medida em que seria preciso acreditar que Baracho e Jararaca foram perdoados por Deus e, por isso, podem de fato obrar milagres; e, portanto, refutar que seus milagres sejam obra do Diabo, como querem os pentecostais, ou ilusão de ignorantes e ingênuos, como querem outros segmentos sociais. Mas, indo além, considero a iniciativa dos próprios indi-víduos e famílias que se dirigiram ao túmulo para zelar por um morto em relação ao qual não tinham qualquer obrigação (como um parente teria) como uma ação transgressora, isto é, o próprio perdão que até hoje muitos lhe negam. Arendt argumenta que, ao romper o círculo vicioso da vendeta entre grupos inimigos, o perdão torna-se revolucionário, pois corta o automatismo da resposta esperada a um inimigo e permite ao grupo (ou indivíduo) reassumir o controle sobre suas ações. Nesse sentido, vingar-se, abandonando o túmulo à própria sorte ou alimentar o ressenti-mento contra o inimigo fazendo proliferarem relatos negativos a seu respeito, seriam as ações esperadas; orar em seu túmulo, por sua salvação ou acreditá-lo salvo e convertê-lo em recurso simbólico para a comunidade, não. Essa escolha seria, intrinsecamente, transgressora, pois inesperada e inovadora, capaz de tornar os devotos agentes de sua própria história e autores de outra versão, ou versões, que destoam da narrativa “oficial”.

Quanto à promessa, Arendt (2007) a define como um com-promisso com o futuro: eu me comprometo a estar lá, por você, com você; eu me comprometo que haverá um amanhã, mesmo que hoje tudo pareça terrível e tão pouco promissor. Prometer algo é, inevitavelmente, prometer-se junto, assim como Mauss (2003) dizia de toda dádiva: não há como dar algo sem dar de si, simultaneamente, já que todo objeto – ou palavra – que circule de mim para o outro levará algo de mim, das minhas intenções e sentimentos, instaurando, então, um compromisso. A promessa

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figura de modo central em todas as devoções, não apenas nas canonizações populares nos cemitérios. Aqui ela é literal: eu oro pelo morto e para que o morto me ajude, me atenda; em troca, eu me comprometo a retornar com uma dádiva, como retribuição pelo benefício alcançado. Em caso de voto religioso, o compromisso é ainda maior, pois que esse voto representaria retornar várias vezes, por um período determinado ou até por toda a vida, sendo que, em alguns casos, promete-se até a transmissão do voto para algum descendente ou parente colateral mais jovem. Segundo Arendt (2007), esse tipo de compromisso seria capaz de apaziguar nossa ansiedade e medo diante das incertezas quanto ao que nos trará o amanhã. Assim, nos prometemos uns aos outros e nos comprometemos uns com os outros, e isso inclui, sim, também aos mortos, pois, como veremos no Capítulo 3, eles, mesmo ausentes fisicamente, nunca deixam de fazer parte do universo de relações sociais no qual nos movemos.

Capítulo 1“Mortos muito especiais”: João Baracho e Jararaca

Capítulo 1 | “Mortos muito especiais”: João Baracho e Jararaca

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O objetivo da primeira seção deste capítulo é apresentar de modo breve alguns dados biográficos, oriundos de narrativas apresentadas por cronistas, jornalistas ou historiadores, acerca de João Baracho e José Leite de Santana, para situá-los em seus respectivos contextos, sobretudo quanto aos acontecimentos que os levaram à morte, e assim aproximar os leitores das mesmas versões que me informaram no decorrer da pesquisa.

O passado, tal como narrado no presente, é “inventado” (HOBSBAWN; RANGER, 2012), no sentido de fabricado como qualquer artefato cultural, a partir das perspectivas adotadas no presente. O sociólogo Pierre Bourdieu (1986) utilizou a expressão “ilusão biográfica” para se referir ao senso de unidade e ilusão de coerência que imprimimos a toda narrativa biográfica, sobre nós ou sobre terceiros, que alimenta a impressão de encadeamento necessário entre os acontecimentos e, no fim, nos deixa conven-cidos de que as coisas teriam se passado de forma inteiramente ordenada, um fato levando a outro e, conduzindo, ao que então nos parecerá um destino inevitável (e lógico). Segundo Bourdieu (1986), isso seria efeito da própria narração, recurso de linguagem que tende a organizar o que, em si, não foi organizado, conferindo ordem ao que, no plano da experiência, pode ter sido sentido como puro caos, multiplicidade de comportamentos individuais

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e coletivos, e ocorrências simultâneas que foram vivenciados sob diferentes pontos de vista. Porém, quando narramos, o fazemos sempre a partir de determinado lugar, e só aquele, e transforma-mos um evento de carne, sangue, lágrimas, pontos de vista, em um evento de linguagem, que, por sua natureza, exige alguma linearidade e estruturação.

Nossa memória (CANDAU, 2002) opera recortes a partir da posição na qual nos colocamos, e das ideias e dos sentimentos despertados em nós por aquilo que rememoramos. Não podemos de fato saber o que, e como, aconteceu, mesmo – ou até princi-palmente – quando estávamos lá, pois nunca seríamos capazes de onisciência ou neutralidade. Tudo que sabemos é parcial e o que recordamos o é ainda mais, pois selecionamos, filtramos, especialmente quando se trata da rememoração de acontecimentos intensamente emotivos ou traumáticos, processo este que se passa em grande parte de modo não consciente. A proposta, então, não é averiguar e desmascarar uma verdade essencial, oculta, sobre fatos, mas procurar compreender como se dá e se mantém o processo de invenção dessa memória socialmente compartilhada, em se tratando de personagens públicas, e quais elementos biográficos são selecionados e acionados para compor suas figuras tais como recordadas hoje pelos devotos e outros agentes sociais.

No caso de Jararaca, como veremos, há outros segmentos sociais ativamente interessados em controlar a narrativa sobre a invasão à cidade de Mossoró e, se possível, capitalizar sobre uma memória do cangaço, no entanto, “puxando” a história em direções antagônicas àquelas eleitas por seus devotos. Essas dinâmicas são interessantes na medida em que revelam valores, ideias, interesses, objetivos e até projetos (ORTNER, 2007), isto é, conjuntos de ações sociais que visam propósitos específicos,

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orientadas por visões de mundo particulares. Podemos, por-tanto, aprender muito sobre o presente quando investigamos o que, e como, se conta sobre o passado. E quem conta hoje a história – ou histórias – pode determinar quem conta e merece ser lembrado, dentre os tantos mortos fadados ao esquecimento.

João BarachoJoão Baracho entrou para a história da cidade de Natal, no

Rio Grande do Norte, através das crônicas jornalísticas policiais da época (1959-1962), como o “matador de motoristas” (de táxi). Segundo os registros jornalísticos,6 Baracho teria sido pedreiro e feirante, mas também teria cometido regularmente furtos de objetos como relógios e bicicletas, alimentos e peças de mobília, que revenderia em sua barraca na feira (que, em outras versões, de depoimentos orais de ex-moradores do Carrasco, seus contem-porâneos, seria uma mercearia ou loja). Preso após ser dedurado por seu parceiro Cosme, que o acompanharia nos furtos, ele teria confessado – assinando com a digital, por não saber ler – o assassinato de Moisés, um motorista de jipe – o táxi, da época –,7

após assalto à mão armada dentro do jipe, e logo Baracho passaria a ser conhecido, após essa confissão, como o matador dos moto-ristas. Assim, a prisão de um ladrão acabou levando a apreensão de um assassino, ou assim se fez crer após a divulgação de que teria confessado.

6 Ver referências aos jornais na seção “Jornais e revistas – Notícias sobre João Baracho e sobre Jararaca” das Referências.

7 Um prêmio de 20 mil cruzeiros já vinha sendo oferecido pelos motoristas e servidores das Endemias Rurais a quem informasse o paradeiro do matador de motoristas, o que foi noticiado pela Tribuna do Norte em 23 de junho de 1961.

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Para muitos, já na época de sua prisão e morte, e ainda hoje, João Baracho teria sido apenas um pobre coitado que teria servido de bode expiatório para aplacar a inquietação da população e calar a boca dos opositores e formadores de opinião que se insurgiam, no jornal da oposição ao governo e nos programas de rádio popu-lares, contra a alegada inépcia do então secretário de segurança, Rodolfo Pereira, e da polícia para solucionar o caso. Durante as investigações, fora implementada uma campanha pública de coleta de donativos na entrada de um cinema e em uma estação de rádio para as viúvas dos motoristas assassinados, com ampla cobertura da imprensa local. Era ano eleitoral, e o secretário de segurança pretendia candidatar-se a Deputado Estadual pelo partido aluisista. Obviamente, o fracasso na resolução do caso alimentava as críticas da oposição e reduzia suas chances de vitória eleitoral.

Em 1961, Baracho fugiu da cadeia pública menos de um mês após sua primeira prisão, tendo passado cerca de três meses foragido, enquanto as especulações sobre seu paradeiro se multi-plicavam nos jornais e programas de rádio, e ele se tornava notícia inclusive em estados vizinhos, na região Nordeste. A polícia do Rio Grande do Norte teria pedido cooperação à polícia desses estados para localizar seu paradeiro e realizar sua captura. Finalmente encontrado e preso em Fortaleza, ele foi conduzido de volta a Natal no dia 7 de dezembro de 1961. Já no dia seguinte, pessoas de diversos pontos da cidade e do estado teriam chegado à Delegacia, movidas possivelmente pela curiosidade, e teria se formado à entrada da cadeia uma fila de interessados em ver de perto o famoso bandido de que tanto se falava. Porém, Baracho logo viria a fugir novamente.

Na madrugada do dia 30 de abril de 1962, após cerrar as grades de ferro de sua cela e passar por seis policiais de guarda, segundo versão registrada pela imprensa, ele teria saído pela porta

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principal da Delegacia e desaparecido novamente. Não tardou que os policiais – civis e militares – fossem em seu encalço, ainda naquela madrugada, na favela onde morara e onde ainda estava sua companheira, Maria Lúcia. A polícia supôs, acertadamente, que Baracho tentaria voltar lá, e de fato ele o fez assim que anoiteceu, na expectativa de que a escuridão da noite o protegesse. Naquele tempo, não havia iluminação pública naquela área – estamos em 1962, em um bairro muito pobre –, cercada por terrenos baldios. O que se seguiria, na sequência, seriam os últimos momentos da vida de João Baracho.

Ao chegar à favela, Baracho teria procurado seu amigo Pajeú, mas sua filha, atendendo-o diante da porta de casa apenas meio aberta, o teria informado de que a polícia o levara dali, a ele e a Maria Lúcia. Ele teria então lhe pedido que o deixasse entrar em casa para que se escondesse ali, o que ela teria recusado. A moça, no entanto, teria concordado em lhe dar um copo de água, que ele, porém, não chegaria a beber, pois, nesse exato momento algum outro vizinho teria gritado “Pega Baracho!”. Ouvindo isso, Baracho teria atirado para o alto a vasilha e corrido para o fundo do beco onde se encontrava. Tiros teriam sido então disparados por policiais, que já se encontravam espalhados por ali, à espreita, e um deles teria atingido Baracho ali mesmo, naquele beco. Apesar de ferido, ele ainda teria conseguido pular um muro e uma cerca de arame farpado, para saltar para um terreno baldio contíguo ao beco. Ali receberia mais dois tiros.

Sangrando muito, ele ainda se arrastaria e conseguiria entrar na casa 42 da Rua Jundiaís, onde morava Dona Maria Batista, uma senhora idosa. Dentro da casa, Baracho tentaria se esconder em um quarto, onde estaria sua sobrinha com uma criança. A eles novamente teria pedido água para beber. Enquanto

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isso, a polícia passaria por ali em seu encalço e perguntaria a Dona Maria se teria visto Baracho e ela lhe responde que não, pois de fato não o havia visto entrar em casa. Logo depois, no entanto, sua sobrinha sairia do quarto e lhe avisaria que lá estaria um homem baleado e que este lhe pedira água. Dona Maria teria entrado no quarto e o encontrado abaixado num canto, sangrando muito. Em depoimento a um jornal, ela contaria depois que então teria dito a ele: “Não lhe dou água nem o senhor vai ficar aqui”. Seu filho, que teria chegado naquele momento à casa, lhe teria ajudado a empurrar Baracho para fora. Ele, então, já sem tem forças para resistir, teria permanecido sentado no chão em frente à casa por algum tempo, enquanto Dona Maria Batista teria saído a gritar pelo beco que o bandido procurado estaria lá, em sua casa. Os policiais então teriam chegado e, o encontrando assim, caído, sangrando muito, teriam ainda disparado sobre ele mais alguns tiros. Tudo isso foi contado aos jornalistas, pelos vizinhos, e pude-mos consultar em jornais da época. O laudo cadavérico também viria a ser informado pela imprensa: sete ferimentos transfixantes (atravessaram o corpo), oito penetrantes e sete tangenciais, todos de revólver calibre 38. Total: 22 tiros.

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Figura 1 – “Fatal a nova fuga de Baracho: Procurou a amante e encontrou a morte”

Fonte: Diário de Natal 02/05/1962

Ele foi assassinado no dia 30 de abril de 1962, quando contava 32 anos de idade, e sua morte foi notícia de primeira página no dia 1º de maio nos jornais.

Dona Odete, moradora do bairro Felipe Camarão, em Natal, 58 anos, dizia recordar-se desses acontecimentos, inscritos na sua própria história de vida. Seu testemunho foi o mais emotivo e pessoal que escutei sobre a morte de Baracho.

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Foi lá onde o homem matava bode, ali onde tinha o cruzeiro, mais pra cá. Tem um pé de cajueiro. Aí todo mundo foi olhar. Na hora que ele foi morto, foi assim de seis horas da noite. Eu morava em Nova Descoberta, era solteira. Eu estava trabalhando na política de Aluísio Alves, aí o vereador que estava sendo candidato, o Claudionor, aí disse assim: ‘As componentes todas compareçam aqui pra ir fazer um carnaval!’ Aí eu disse assim ‘Mamãe, carnaval uma hora dessa?! Eles não disseram que hoje ninguém ia trabalhar em política?’ ‘Mas olhe, minha filha, vai saber...’ Aí quando cheguei lá ele disse assim: ‘Detinha – ele me chamava de Detinha – nós vamos tudo aí nesse caminhão andar com o corpo de Baracho, que mataram aquele...’ [ela tapa a boca] e falou lá os palavrão dele, né... ‘E agora nós vamos andar de rua em rua, o bairro todinho, pra mostrar!’ Saíram mostrando! Eu digo: ‘Eu não vou não! Se o senhor quiser riscar meu nome pode me tirar da ala, que eu não vou não. Eu não vou não!’ Fizeram foi a politicagem com ele, andando das Rocas por todo o canto, mostrando o corpo em cima do caminhão. Um corpão, que era um homem bonito! Saíram pela avenida Kennedy, por todo canto. Eu não fui não! Todo mundo queria ver, que o pessoal não conhe-cia, né? Foi o carro de alto-falante falando: ‘Aqui se encontra o corpo de Baracho, peça qualquer coisa que eu tô pagando!’ E Aluísio tocando, os outros tocando, meganha, tudo né... Mamãe me disse: ‘você não vai não!’. E não fui. Mas aí no outro dia, ‘ah, vai sair o enterro!’. Aí eu vim pra aqui, pra esperar aqui.8

8 Em trechos que tragam citações de depoimentos, testemunhos, trechos de conver-sas com interlocutores, a referência para identificá-los estará em nota de rodapé, com o nome ou pseudônimo da pessoa citada e a data real ou aproximativa da coleta do depoimento (em conversa ou entrevista). Durante a pesquisa de campo de cunho etnográfica foi privilegiada a conversa informal com os interlocutores mais constantes, em conformidade com a metodologia da pesquisa participante e intensiva, característica da etnografia em Antropologia. Assim, a maioria das citações derivam de anotações dos meus diários de campo, não da transcrição de entrevistas formais. Algumas conversas e depoimentos coletados nos cemitérios e outros lugares públicos foram gravados; outras foram anotadas à mão em blocos de papel e no diário de campo, como é comum nesse tipo de pesquisa.

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Observem bem: para ir ao sepultamento, ninguém precisou mandar. Ela mesma enfatiza que para o enterro, estava lá no outro dia, logo cedo, “pra esperar”. Esse fenômeno da ida ao funeral de uma pessoa famosa, conhecida por qualquer motivo na esfera pública, sobretudo em casos de morte súbita, precoce ou particu-larmente violenta (resultado de crime ou acidente) é relativamente comum, e indica o quanto a pessoa ou o acontecimento da morte em si é capaz de mobilizar o público e fazer com que sintam que tal acontecimento lhes diz respeito. Como deixa claro o depoimento de Dona Odete, há escolhas a serem feitas e posicionamentos a serem tomados em situações como essa, e essas escolhas e posicio-namentos refletem valores e opiniões. Dona Odete não foi a única a fazer essa escolha; muitos outros compareceram ao funeral de Baracho. Alguns haviam estado também no cortejo dos políticos, que exibiram seu corpo defunto como um troféu, outros não.

No dia seguinte à publicação da notícia da execução de Baracho nos jornais, 2 de maio, venceria o prazo para que o secre-tário de segurança Rodolfo Pereira de Araújo, se desincompatibi-lizasse do cargo e lançasse sua candidatura. O que de fato ele fez, intitulando-se candidato dos motoristas. O oportunismo político foi, portanto, óbvio, e apontado por seus opositores na ocasião. Ele atuara como secretário de segurança desde setembro de 1961, quando substituíra o coronel José Paulino, e fora o caso Baracho que lhe dera projeção na imprensa e na vida pública. Porém, isso não foi o bastante para garantir-lhe sucesso na eleição de 1962: alcançou apenas a quinta suplência do cargo que pleiteava pelo PTN (Partido Trabalhista Nacional). O que, se não prova, ao menos sugere que o povo nem sempre vê os acontecimentos públicos da mesma forma que a elite dominante e seus serviçais – os políticos, a polícia e a imprensa governista – os enxergam, e nem sempre é tão manipulável quanto alguns parecem acreditar.

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Pois, após seu sepultamento, a romaria ao túmulo de Baracho – que pode ser pensada como continuidade ou como alternativa ao cortejo que exibiu seu corpo-troféu – se tornaria intensa e começaria logo a circular boatos de que ele teria realizado o que viria a ser conhecido como seu primeiro milagre, espécie de mito fundador de sua devoção, e logo para beneficiar a viúva do motorista Moisés, terceira vítima dos crimes contra motoristas de jipe de que fora acusado. Conta o mito, que essa viúva teria rezado ao pé de seu túmulo um dia após seu sepultamento, perdoando-o por seu suposto crime, e teria lhe pedido que intercedesse junto a Deus para a cura de seu filho, que se encontraria muito doente.

A força do perdão (DAVIS, 2001) de uma das vítimas diretas e o apelo desse relato sobre os devotos contemporâneos parecem ter sido mais eficazes do que a propaganda eleitoral do ex-secretário de Segurança. Ele naufragou nas urnas naquele ano, mas até hoje, modesta e silenciosamente, Baracho recebe visitantes, pedidos de ajuda e oferendas, alcançando, ele próprio, o maior de todos os milagres: ser lembrado por pessoas não aparentadas com ele, que, em princípio, poderiam já tê-lo completamente esquecido.

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José Leite de Santana, o JararacaJosé Leite de Santana, o Jararaca,9 teria formado seu bando

cangaceiro em 1926, ao retornar ao Nordeste após algumas viagens pelo Brasil em missões militares com o Exército brasileiro, no qual teria sido soldado, após seu alistamento em Maceió, Alagoas, em 1921. Nasceu em Buíque, Pernambuco, em 1901 e morreu em Mossoró, em 19 de junho de 1927, após ter sido ferido à bala durante a invasão à cidade empreendida por seu bando em aliança com o bando maior e mais conhecido liderado por Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião.10

9 Há uma versão de sua biografia e dos fatos que culminaram em sua morte que atravessa a aparente heterogeneidade das fontes e dos meios consultados (ver referências bibliográficas) com significativa constância. Alguns dos livros que tratam da história do cangaço como tema principal apresentam alguma descrição breve sobre a personagem Jararaca como parte do episódio da invasão a Mossoró, porém mesmo esse episódio, que tem sua importância na trajetória do bando de Lampião, não recebe nelas mais do que umas poucas páginas. Ver, por exemplo, Luna (1972, p. 107-114), Macedo (1975 [1962], p. 145-155) e Chandler (1980, p. 123-142). A exceção – dentro do universo bibliográfico consultado por mim - são duas obras: Almeida (1981), obra de “reportagem social” de um jornalista que trata especificamente da participação de Jararaca no cangaço, com destaque para a invasão de Mossoró e até uma breve referência, no final, ao seu culto póstumo; e Nonato (1955), cuja obra consiste basicamente em transcrições de documentos e matérias de jornais sobre a invasão a Mossoró, mesclados com alguns depoimentos de intelectuais entrevistados por ele. A essas fontes, documentos e recortes de jornais antigos consultados no Museu Histórico Lauro da Escóssia, conhecido como Museu do Cangaço. Essas foram as fontes consultadas para a composição desse esboço biográfico ora apresentado nesta seção, com especial ênfase na narrativa saborosa de Almeida, que transcrevo quase passo a passo na descrição do ataque e fuga do bando de Lampião em Mossoró.

10 Virgulino, o Lampião, nascido em 1900, entrara para o cangaço, no bando de Sinhô Pereira, em 1917. Em 1922, com o afastamento voluntário do líder, ele, que se tornara seu braço direito, assumira a chefia do bando, cuja atuação no sertão nordestino foi até 1938, quando Lampião foi morto numa emboscada com sua companheira Maria Bonita e outros cangaceiros do bando. Dois anos depois morreria Corisco, que havia pertencido a seu bando, mas então liderava um outro, independente. O cangaço, movimento social (ou forma de banditismo, conforme o ponto de vista adotado) que colocou o Nordeste em evidência para o restante do Brasil e se tornou temática de relevância nacional, tem sido desde então constante objeto de pesquisas. Ver Queiroz (1997), Chandler (1980), Barros (2000) e Mello (2004).

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Sua santificação no cemitério onde foi sepultado, São Sebastião, tem sido percebida a partir do contexto mais amplo desse episódio histórico caro à cidade de Mossoró, que, por sua vez, integra um campo de interesse histórico maior, o cangaço. Assim, é impossível contar sobre ele sem situá-lo nesse acontecimento, que veio a con-duzi-lo a tornar-se parte da história de Mossoró.

Figura 2 – Cemitério São Sebastião, Mossoró, Dia de Finados de 2019

Foto: Pacífico Medeiros

A partir daqui, passo a seguir a descrição apresentada por Fenelon Almeida, 11 que guarda, pelo estilo retórico adotado, certo

11 Além do livro (ALMEIDA, 1981), ver também a série especial de reportagens escritas pelo mesmo jornalista para o jornal O Povo, em 1980, no período entre 8 e 16 de novembro, na qual recapitula fatos da invasão de 1927, mas também aborda o culto corrente a Jararaca em seu túmulo.

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sabor de narração oral. A gradual aproximação do bando à cidade teria sido, segundo o autor, precedida de notícias que teriam corrido de boca em boca, tornando possível que a população de mulheres, crianças e idosos fosse evacuada da cidade. Naquela época, isso era comum, pois, à passagem do bando em uma cidade, produzia-se um efeito em cadeia pelas localidades vizinhas, causando grande alvoroço, pois antecipariam uma possível invasão ali também. Isso levava a providências como essa. Neste caso, porém, antes da invasão, Lampião teria aprisionado três dos cidadãos de Mossoró, inclusive um ilustre coronel de nome Antonio Gurgel, com a finalidade de obtenção de resgate, quando ainda se encontrava a alguma distância da cidade. Mais tarde, no entanto, teria mudado de ideia e decidido enviar ao prefeito de Mossoró, o também Coronel Rodolfo Fernandes, uma carta, na qual exigia quatrocentos contos de réis, uma grande soma, em troca da qual abdicaria do ataque à cidade. O próprio Coronel Gurgel, aprisionado, teria redigido esta carta para Lampião, na qual explicita seus termos e roga por sua vida (AMARAL, 1927 apud ALMEIDA, 1981, p. 43-44):

13 de junho de 1927

Meu caro Rodolpho Fernandes:

Desde ontem estou aprisionado do grupo de “Lampião” o qual está aqui aquartelado aqui bem perto da cidade, manda porém um acordo para não atacar mediante a soma de quatrocentos contos de réis – 400.000$000. Posso adiantar sem receio que o grupo é numeroso cerca de 150 homens bem equipados e municiados a farta. Creio que seria de bom alvitre você mandar um parlamentar até aqui que me disse o próprio “Lampião” seria bem recebido. Para evitar o pânico e derramamento de sangue, penso que o sacrifício compensa, tanto que ele promete não voltar mais a Mossoró. Diga sem falta ao Jaime [seu genro, Jaime Guedes, gerente de uma agência bancária] que os 21 contos que

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pedi ontem para o meu resgate não chegaram até aqui e se vieram o portador se desencontrou, assim peço por vida de Iolanda para mandar o cobre por uma pessoa de confiança para salvar a vida do pobre velho. Devo adiantar que todo o grupo me tem tratado com muita deferência, mas eu bem avalio o risco que estou correndo. Creia no meu respeito.

Antonio Gurgel do Amaral

Àquela altura, as autoridades públicas de Mossoró já se encontrariam mobilizadas para organizar a defesa da cidade, e o prefeito teria respondido prontamente com um breve bilhete, no qual afirmava não possuir tal quantia – os quatrocentos contos – nem saber do paradeiro do senhor Jaime, que se encontraria “refugiado”. E teria concluído: “Estamos dispostos a recebê-los na altura em que eles desejarem. Nossa situação oferece absoluta confiança e inteira segurança.” (ALMEIDA, 1981, p. 44-45).

Lampião teria ficado furioso com essa resposta, respon-dendo com outro bilhete, redigido desta vez por ele mesmo, no qual o tom já se mostraria outro, e se resumia a: mande logo o dinheiro que exigi ou “vai haver muito estrago”. Ele ainda teria deixado bem claro que estaria sendo bondoso ao dar aviso. Um emissário, Formiga, teria levado o bilhete. E novamente o prefeito teria respondido com outro bilhete incisivo, desta vez endereçado ao próprio Lampião, no qual teria afirmado que nem ele nem o comércio possuiria aquela soma de dinheiro disponível, e que o Banco se encontraria fechado, pois todos os funcionários teriam se retirado da cidade. Outra vez concluía seu bilhete com palavras destemidas: “Estamos dispostos a acarretar com tudo que o Sr. queira fazer contra nós. A cidade acha-se firmemente inabalável na sua defesa, confiando na mesma.” Pelo que se sabe, Lampião nem teria chegado a receber esse bilhete. Segundo Almeida (1981, p. 46), provavelmente porque o emissário temera retornar com tal resposta e sofrer na pele suas consequências.

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O bando de Lampião, junto aos bandos liderados por Jararaca e Massilon Leite, teria, então, se colocado em marcha rumo a Mossoró, enquanto, na cidade, a prefeitura cuidava em armar cerca de 200 homens para resistir à invasão dada como certa. Não apenas à bala: teria sido reunido para isso todo armamento possível, de facas de cozinha a facões, foices, paus e pedras. Ao todo, Almeida (1981, p. 48) fala em até 400 homens mobilizados e armados à espera dos cangaceiros. O comando geral da resistência à invasão teria cabido ao capitão Abdon Nunes, mas as guarnições teriam sido compostas predominantemente por civis. As principais trincheiras (ALMEIDA, 1981, p. 48-49) estariam no palacete do prefeito, na estrada de ferro, no Telégrafo Nacional, no Colégio Santa Luzia, na principal firma de exportação, nas principais praças da cidade e nas quatro igrejas – Santa Luzia (a Matriz), Coração de Jesus, São Vicente de Paula e Nossa Senhora da Conceição.

A propósito dessas quatro igrejas, aliás, corre a lenda de que, no momento em que teria avistado a cidade de Mossoró12 do Alto da Conceição, Lampião teria dito (ALMEIDA, 1981, p. 51) ao companheiro

12 Antiga povoação de Santa Luzia (sua padroeira até hoje), em 1870, é elevada à condição de cidade, já então um empório comercial, entreposto, para uma vasta região que incluía parte do sertão do Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará. Mossoró fica localizada no oeste do estado do Rio Grande do Norte, situada entre o litoral semiárido (o litoral salineiro) e o sertão da Chapada do Apodi, que é cortada pelo rio Apodi-Mossoró. Era no final daquela década de 70 do século XIX, a cidade mais rica da região, lugar para onde os flagelados da seca de 1877 correram a buscar trabalho, oferecendo às salinas, às obras públicas e aos demais setores sua mão de obra barata, o que teria impulsionado a economia local. A Mossoró contemporânea acrescentou ao sal, riqueza emblemática da cidade, a agroindústria (principalmente, o algodão, até sua crise nos anos 80 devido a uma praga e à seca) e a pecuária, mais recentemente, a exploração de petróleo e gás, com a instalação da Petrobrás, e as culturas de frutas tropicais como o melão e o caju, possíveis graças às técnicas de irrigação que tornaram propícias para esse plantio as terras da Chapada do Apodi. Desde os anos 20, todavia, a cidade já tinha ares de cidade industrial, com suas salinas, suas mineradoras (gipsita: gesso) e suas unidades agroindustriais que produziam matérias-primas para o Centro-Sul do país, principalmente São Paulo. (FELIPE, 2001, p. 79-88, 170-171).

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Sabino Gomes e a Massilon Benevides que “cidade de quatro torres” não lhe traria bom agouro. Lampião temeria a proteção religiosa sob a qual estaria a cidade, mas, mais importante ainda, entenderia o que aquilo significava como sinal de desenvolvimento urbano. Mossoró

era vista, para os padrões da época, como uma cidade moderna, que não ficava a dever à capital do estado, Natal. Além das quatro torres, isto é, das quatro igrejas católicas, também contava com duas agências bancárias, o que era então percebido como indício de desenvolvimento urbano e prosperidade econômica.

E foi justamente o sino da igreja de São Vicente que anunciou para os entrincheirados e para toda a população que restara escon-dida na cidade, em suas casas – também fortificadas – a entrada dos cangaceiros na cidade, já no Alto da Conceição (ALMEIDA, 1981, p. 51-52), a caminho do centro. Cerca de quarenta homens estariam seguindo Lampião nessa marcha, enquanto outros se manteriam na retaguarda. Por volta das 16h30min, teriam soado os primeiros tiros, ainda de alerta, da parte de um dos soldados de Mossoró. Todos teriam, então, compreendido que havia chegado o momento do confronto.

Lampião teria dividido seu grupo (ALMEIDA, 1981, p. 56) em três facções: uma chefiada por ele, as outras por Sabino e por Massilon Benevides. A dele atacaria a estrada de ferro; a de Sabino, a trincheira guardada pelo Coronel Rodolfo, o prefeito; e a de Massilon, a do Telégrafo. Nas imediações da estrada de ferro, a facção chefiada por Lampião teria começado a atirar, todos ao mesmo tempo, pro-vocando enorme barulho, e nisso teriam sido acompanhados por aqueles do bando de Sabino, que estariam atrás da igreja de São Vicente, aguardando o momento de tomar a trincheira chefiada pelo prefeito. Logo teria início um tiroteio cerrado (ALMEIDA, 1981, p. 56) entre os cangaceiros, que se esgueiravam pelas ruas e cruzavam

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as praças, e os homens entrincheirados no alto da torre da igreja e no parapeito do palácio do prefeito, na Praça 6 de Janeiro, entre gritos, relâmpagos e trovões. Era uma tarde chuvosa.

Contra a trincheira armada na Estrada de Ferro, Lampião não estaria tendo sucesso. Logo ele se teria entrincheirado com seus homens em um prédio próximo, para tentar equilibrar a situação, já que estariam expostos a descoberto. Enquanto isso, na praça da igreja de São Vicente, tombava Colchete, morto no meio da rua por um tiro disparado da torre no momento em que tentava alcançar uma barricada próxima. Nesse momento, Jararaca teria corrido para junto do corpo de seu companheiro, expondo-se ao mesmo risco, para retirar dele a arma e outros objetos de valor.13 Assim exposto, teria sido ferido à bala, no pulmão direito, e depois, enquanto fugia, na perna esquerda. Ainda assim, teria conseguido fugir da praça e sumir da vista dos atiradores.

Cessado o tiroteio intenso, após não mais que vinte minutos (ALMEIDA, 1981, p. 62), os cangaceiros, vencidos, teriam batido em retirada. Após alguns instantes de silêncio, novos tiros teriam partido das trincheiras dos homens de Mossoró, mas os cangaceiros já não responderiam. Naquele instante, ninguém sabia direito o que se passava. Permaneceriam em seus postos, em guarda, durante a madrugada de 13 para 14 de junho de 1927. Ninguém teria dormido nas trincheiras nem nas residências da cidade. Mas os homens de Lampião, àquela altura, já rumavam para o Ceará, tendo abandonado o companheiro Jararaca, que então se escondia, ferido, em algum matagal.

E de fato teria sido no meio do mato próximo à margem de um rio, logo após a ponte da estrada de ferro, que um cidadão

13 Para que não caíssem nas mãos dos inimigos, prática costumeira dos cangaceiros nessas circunstâncias.

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chamado Pedro Tomé teria encontrado o cangaceiro ferido na manhã do dia 14. Teria ouvido seus gemidos e dele se aproximado, já imaginando tratar-se, conforme declarou depois à polícia e aos jornais, de Jararaca. Este então lhe teria oferecido dinheiro em troca de sua ajuda na obtenção de medicamentos. Pedro teria partido com o dinheiro e logo retornado com a polícia.

Preso na cadeia da cidade, Jararaca se tornaria objeto da curiosidade pública da população. Ninguém teria sido admitido a vê-lo inicialmente, exceto um engenheiro da Estrada de Ferro e um jornalista, Lauro da Escóssia, do jornal O Mossoroense,14 que teria ido até lá para entrevistá-lo. Além deles, somente o médico teria tido acesso imediato a Jararaca na prisão. Durante sua entre-vista ao jornalista Escóssia, Jararaca manifestaria dor devido aos seus ferimentos, mas não teria, por isso, deixado de fazer comentários sarcásticos e zombeteiros, como também galanteios à beleza de uma moça da sociedade local que teria invadido a sala para vê-lo. Conta Escóssia que, enfático, ele afirmava: “Eu nunca matei ninguém!”.

Jararaca teria permanecido na cadeia do dia 14 até o dia 18 de junho, enquanto seus ferimentos estariam sendo tratados por um médico e ele teria passado a apresentar visível melhora em seu estado geral de saúde. No entanto, na noite do dia 18 de junho, o capitão Abdon Nunes de Carvalho, comandante da polícia, teria enviado alguns de seus homens à cadeia para conduzi-lo ao presídio (ou ao hospital) de Natal. Colocado em um caminhão particular contratado para esse serviço, de certo Homero Couto, este teria recebido ordens, no meio do percurso, para mudar o trajeto e seguir

14 Li essa entrevista no jornal O Mossoroense de 19 de junho de 1927. A entrevista não tem a forma atual de perguntas e respostas. Nela, as declarações de Jararaca estão inseridas na crônica dos fatos relativos à invasão, redigida pelo jornalista Lauro da Escóssia, na qual, bem de acordo com o estilo retórico da época, é às vezes difícil saber o que é pensamento do entrevistado e o que é opinião do entrevistador.

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para o cemitério público local. Àquela hora uma cova aberta já estaria à espera de Jararaca (ESCÓSSIA, s/d)15:

Ao ver a cova que lhe fora preparada, Jararaca tornou a falar: Vocês querem me matar. Mas não vão me ver chorar de medo não. Nem pedir de mãos postas pra não me tirar a vida. Vocês vão ver como é que morre um cangaceiro.

Dito isso, mergulhou num silêncio do qual não mais saiu. Aquelas foram suas últimas palavras. E – fato curioso! – não havia ódio nos gestos e nas palavras de Jararaca. Havia desprezo, isto sim, muito desprezo; não ódio. Foi o que me garantiu o reporter Lauro da Escóssia, do O Mossoroense, que entrevistou um dos carrascos de Jararaca, conseguindo arrancar-lhe essa confissão preciosa. E eu acredito nele. Porque eu sei que só os fracos sentem ódio. E José Leite, o conhecido Jararaca, algumas vezes lugar-tenente de Lampião, não era um fraco. Era daquela raça de homens rijos, de resistência física e de fortaleza de ânimo inquebrantáveis, decantada pelo repórter-sociólogo de Os Sertões, que afirmou ser o sertanejo antes de tudo um forte. Jararaca sentia apenas desprezo pelos soldados que o prenderam à custa de uma traição e agora o escoltavam para a morte; sentia apenas desdém por aqueles “macacos do governo”. Não os temia; por isso não sentia ódio.

15 Lauro da Escóssia, nas anotações para seu livro Memórias de um Jornalista Provinciano, escreveu: “Jararaca foi sangrado, de maneira bárbara, fria e covarde, pelo soldado João Arcanjo, um sujeito de pequena estatura e de grande perversi-dade. Estava com as mãos atadas às costas, sendo-lhe impossível qualquer gesto de defesa.” Depois disso, conta que ele teria sido pisoteado por seu assassino logo após ter levado uma coronhada de revólver e uma punhalada. E depois empurrado com os pés para que rolasse para dentro da cova, onde teria sido, em seguida, coberto de terra enquanto agonizava, com os olhos ainda abertos. “Não lhe deram tempo sequer de morrer. Jararaca foi sepultado ainda com vida.” Consultei as notas do livro de Lauro da Escóssia nos arquivos do Museu do Cangaço, em Mossoró, em 25 de março de 2004. Além do excelente texto de Lauro da Escóssia, pude consultar ainda na ocasião algumas das matérias jornalísticas sobre o tema públicadas em O Mossoroense.

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Não é difícil entender que se tal foi a visão dos fatos veicu-lada por jornalistas prestigiados como Fenelon Almeida16, autor da citação acima, e Lauro da Escóssia17 – este morador da cidade e contemporâneo desses fatos –, não muito diferente terá sido a visão de seus leitores (e ouvintes de rádio), construída a partir daí – e não me refiro apenas às camadas populares. O discurso dos jornalistas parece ter tido papel considerável na construção de sua biografia e de seu culto póstumo, com sua linguagem tão rica em imagens e representações caras à cultura local.

16 Que com o livro Jararaca: o Cangaceiro que Virou Santo ganhou o “Prêmio Associação Cearense de Imprensa” em 1980, “concedido anualmente ao melhor trabalho sobre tema social, econômico ou cultural publicado na imprensa do Ceará” (conforme consta na folha de rosto do livro, editado pela Guararapes, de Recife, em 1981).

17 Que hoje dá nome ao Museu Histórico (Lauro da Escóssia), situado na cidade de Mossoró, popularmente conhecido como “Museu do Cangaço”.

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Durante as prestações de culto no cemitério, quando a devoção se expressa publicamente, seja em visitas individuais ou de pequenos grupos de pessoas relacionadas, seja na celebração do feriado de Finados, em novembro, mesmo após acender suas velas e depositar junto ao túmulo suas oferendas, nem todos se dispunham a conversar sobre suas motivações e objetivos de sua presença ali. O mais comum é que procurassem se evadir à minha abordagem e sair rapidamente dali, principalmente os adultos jovens, quero dizer, em torno dos trinta anos ou menos. A devoção, principalmente se envolve promessa ou voto religioso, parece ser percebida, mesmo quando exercida em público, como assunto privado, a ser tratado somente entre a pessoa e seu santo, repetindo, nesse aspecto, o modelo católico tradicional (VAINFAS; SOUZA, 2000, p. 36; MENEZES, 2009, p. 123). Além disso, exceto pelos adultos mais velhos ou idosos (acima de 60 anos), e crianças ou adolescentes, as pessoas pareciam de fato preocupadas em evitar autoexposição, o que interpreto como resultado, ao menos em parte, também da estigmatização e das hostilidades sofridas por elas no cemitério e em suas relações pessoais, de vizinhança e parentesco, quando se apresentam em sua condição de devotas àquele santo duvidoso. Essas pessoas tendem, portanto, a mostrar-se evasivas, como se estivessem realizando algo clandestino. A visão de um gravador ou mesmo de um bloco de notas, percebi logo, levava a que, mais frequentemente, me evitassem e se afastassem. Descobri

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que a postura inquisitiva, e atividades como anotar e fotografar, levavam a que me associassem a repórteres, e nem todos queriam ter sua presença ali registrada por escrito ou em imagens.

A melhor forma de conseguir abertura para iniciar a conversa era pedir que me contassem sobre os mortos e sobre os porquês da aglomeração ali, em torno do túmulo, e não diretamente sobre eles ou suas oferendas. Quem estava enterrado ali, realmente? Quem foi Baracho? Jararaca era cangaceiro mesmo? Na verdade, iniciar conversas assim, do nada, na maioria das vezes não se fazia necessário, pois geralmente já havia várias conversas desse tipo em diferentes pontos da aglomeração, então tudo que eu precisava fazer era me aproximar e começar a prestar atenção, até encontrar uma brecha em que pudesse me inserir e me enturmar. Essa foi a solução para a angústia inicial da aproximação. Abordar quem está de saída após fazer sua oferenda não costumava dar certo, embora isso não fosse regra. A menos que, após suas rezas e demais atos devocionais, a pessoa se dispusesse a permanecer por ali por mais algum tempo, o que presenciei algumas vezes, abrindo, assim, oportunidade de aproximação e conversa.

Conversa iniciada, então eu me apresentava como estudiosa de religião. Se estava vindo de uma conversa mais longa, portando algum daqueles itens que chamavam atenção, como bloco de notas ou câmera fotográfica, não era raro que a pessoa me perguntasse “para qual jornal” eu trabalhava. E não era raro que minha resposta, nessa primeira aproximação, “para nenhum. A pesquisa é para a faculdade, é para um trabalho que estou fazendo”, gerasse algum desapontamento, embora, por outro lado, parecesse deixar a pessoa imediatamente mais à vontade na conversa. Com o tempo, passei a iniciar essas conversas contando casos de milagres e histórias sobre o morto que eu havia escutado de outros ali mesmo, isto é, passei

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a integrar a cadeia de narradores da vida e da morte de Jararaca e Baracho, e de seus milagres póstumos. Também levava minhas velas e as acendia junto ao túmulo, embora nunca tenha chegado a fazer promessa ou afirmado ter fé neles, posto que de fato não sou religiosa. Eu o fazia com a mesma justificativa apresentada por vários dos assíduos frequentadores, que o visitam anualmente: prestar cuidados e homenagem aos mortos e iluminar seus cami-nhos póstumos. Assim, abandonei a postura inquisidora inicial e me integrei ao universo devocional nos planos dos atos rituais e dos discursos produzidos e postos em circulação no seu âmago, motores próprios de sua existência e reprodução, alimentando trocas de narrações, testemunhos e questionamentos sobre o morto, sua morte, sua vida, e nossas próprias vidas.

O cemitério e a data de Finados – quero dizer, não apenas o dia 2 de novembro, mas a semana em que ocorre, pois os dias anteriores também recebem mais visitação que o normal, uma vez que muitos preferem evitar as aglomerações do feriado – foram de fato os recortes espacial e temporal privilegiados nesta pes-quisa, pois não apenas os comportamentos individuais parecem encontrar apoio e reforço na presença de outros devotos, como também eu desejava vivenciar os ritos em ação, não somente ouvir depoimentos sobre eles. Isso acarretava implicações, porém, pelo fato de se tratar de evento anual, assunto que voltarei a abordar mais adiante. Evidentemente, os contatos podiam ser mantidos – com aqueles que se mostravam receptivos a isso – e estendidos a outros espaços e ocasiões posteriores, tornando aquela ocasião ritual pública também uma oportunidade para conhecer novos interlocutores dispostos a falar sobre o morto e a devoção.

Alguns frequentadores do cemitério contactados no Dia de Finados, que inicialmente, na conversa naquele local, haviam

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negado qualquer compromisso de promessa ou voto, atual ou antigo, com o morto, associando sua presença ali, junto ao túmulo, somente à prestação funerária devida aos mortos naquela data, mais tarde, em suas casas, com mais confiança e proximidade, admitiam que sim, tinham também um testemunho pessoal a compartilhar, uma ou várias graças alcançadas a partir de promessas realizadas ali em anos anteriores; ou tinham algum depoimento sobre parente atendido da mesma forma. Todavia, é comum no universo social pesquisado a crença de que não se deve falar da promessa feita ao santo enquanto o assunto ainda se encontre pendente, ou seja, relativa à graça ainda não alcançada e promessa a ser paga. Por isso, a graça de que se fala mais abertamente é a graça já alcançada, por si e, principalmente, por terceiros. O discurso verbal sobre milagres é, tipicamente, constituído pelo pretérito e pela referência a outrem. Isso torna ainda mais valioso os testemunhos em primeira pessoa, ainda mais quando, acumuladas as experiências de devoção e sucesso nos pedidos ao longo dos anos, esses testemunhos são apresentados como afirmação da própria fé, da veracidade da santidade do morto e do vínculo do devoto com ele.

A presença de familiares e vizinhos durante a conversa com o interlocutor contactado no cemitério era bastante comum, assim como a interferência e a participação dessas outras pessoas. Indiretamente, também participavam das conversas os repórteres que haviam apresentado esta ou aquela notícia sobre o culto, a matéria publicada no jornal, com foto do túmulo, que logo alguém ia buscar para me mostrar, ou algum folheto de cordel sobre Jararaca. Todas essas fontes traziam informações incorporadas de algum modo às ideias e imagens alimentadas pelos frequentadores e devotos acerca do santo do cemitério. Elas eram citadas, discutidas, questionadas, comparadas e, em alguns casos, utilizadas como instrumentos de legitimação de seus próprios pontos de vista em

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contraposição a pontos de vista diversos, inclusive de algum dos presentes. Exercer uma devoção não consiste apenas em comparecer ao local de culto e realizar determinados atos; o engajamento devocional implica também conhecimentos, reflexões, especulações acerca do santo, de sua história, dos causos que se conta sobre ele, das informações que circulam nos jornais, da poesia que sobre ele se escreve, da veracidade ou não de seus poderes póstumos. A fé não convida necessariamente ao descanso, à passividade ou ao conformismo, muito pelo contrário. A um fiel convicto irrita sobremaneira que alguém zombe de seu santo ou que atribua seus milagres ao Diabo. Isso pode originar conflitos, inclusive dentro da família, pois, como já informei, essas Jararaca e Baracho estão longe de serem personagens simpáticas a todos, consensuais, e pude ouvir, pessoalmente, repreensões de filhos a suas mães, ou entre irmãos, cônjuges e vizinhos, por acreditarem num santo do pau oco que consideravam ilegítimo, fruto da ingenuidade, superstição ou ilusão criada pelo demônio. Esse também foi um dos motivos de evitação ou condicionamento para as conversas comigo, pois não raro procuravam evitar confrontos com alguém da família que se mostrasse fortemente hostil à devoção, particularmente em casos de parentes evangélicos.

Como em toda pesquisa que tem como objeto e campo empírico principal um evento anual, como festas de padroeira e carnaval, logo se descobre que aquele momento anual, ritual e/ou festivo, é apenas o ponto culminante e mais visível na esfera pública de algo que pode se encontrar difuso no cotidiano e requerer comprometimento anterior e envolvimento contínuo. Além disso, supõe-se toda uma série de informações em circulação, de crenças, narrativas, disputas, providências práticas – como encomenda ou preparação das oferendas para pagamento de promessas ou cumprimento de votos. Isso pode implicar economizar o dinheiro

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necessário para o deslocamento até o cemitério e para a preparação ou aquisição das oferendas, assim como, em alguns casos, de conseguir companhia para ir consigo ao cemitério, caso venha de longe, de um bairro distante ou outra cidade, e se sinta inseguro para viajar só. É preciso levar em conta que muitos devotos são idosos e que todos os que colaboraram na pesquisa são pessoas de baixa renda, que vivem em condições materiais que podemos descrever como precárias ou bastante precárias.

Há toda uma frequência ao cemitério diluída no dia a dia; há promessas a serem cumpridas e votos a serem mantidos o ano todo; água a ser benta sobre o túmulo de Baracho e levada para casa para tratamento de alguma doença, como reumatismo, dor crônica, dor de cabeça, e até dores morais e psicológicas; há os aniversários de morte, quando é importante para os devotos mais fiéis a visita ao túmulo, e alguns para isso vêm de longe. Alguns devotos levam para suas casas a água recolhida do túmulo, suas flores ou outro objeto qualquer ofertado ao morto por outro devoto e consagrado pelo ritual religioso. Em algumas de suas casas, encontrei pequenos altares domésticos, privados, íntimos, nos quais, junto aos santos de devoção católicos, estavam também objetos retirados do túmulo e/ou que remetem a suas histórias, como recortes de jornal com sua foto ou foto do túmulo cercado por devotos, cordéis no caso de Jararaca, pedras e flores trazidos do túmulo, vasilha de água de Baracho, alguma oração católica impressa em folheto etc. Isto quer dizer que a devoção se estende no eixo temporal, aquém e além de datas como aniversário de morte e Finados, mas também no eixo espacial, do cemitério até a casa do devoto, através da mediação de objetos consagrados pelo ritual como vasilhas com água benta, f lores ou outros objetos devocionais levados do túmulo, desse modo estabelecendo conexão entre esses espaços.

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Todavia, sem dúvida, o grande dia e local para contactar novos interlocutores e vivenciar a devoção e seus ritos era o Dia de Finados. Então, fizesse chuva ou sol, estar em um ou outro dos cemitérios a cada ano tornou-se rotina para mim. E tive de conviver com a frustração de, devido à distância entre as cidades – cerca de quatro horas de viagem rodoviária, de ônibus, um pouco menos em automóvel particular –, não poder comparecer aos dois na mesma data no mesmo ano. Porém, alternava entre estar em um ou outro desde os dias anteriores ao 2 de novembro, comparecendo pela manhã e à tarde; e, algumas vezes, preferi cobrir os dias anteriores em uma cidade e a data de Finados em outra, para pegar um pouco da movimentação de Finados em cada cidade. Geralmente, em Natal, onde me mexia mais à vontade por conhecer melhor a cidade, onde residia então e ainda resido, além de ir ao Bom Pastor, também ia ao cemitério do Alecrim, para comparar o movimento por lá e observar as homenagens a Padre João Maria em seu túmulo. Além disso, acompanhava as matérias jornalísticas que cobriam o feriado de Finados desde o início do mês até 3 de novembro.

Apesar do cuidado em não falar de promessa em andamento, que ainda não foi cumprida, as pessoas que obtiveram graças costu-mam ser prolixas em contar sobre isso, até porque o sucesso atesta não apenas a eficácia do santo, mas a sinceridade de sua própria fé. Costumam também contar histórias de conhecidos, vizinhos, parentes e até de desconhecidos, ouvidas junto ao túmulo ou de outros devotos das suas relações. Todos conhecem algum caso de sucesso, além do seu, o que alimenta a expectativa pela graça ainda não alcançada e a fé na possibilidade do milagre. Em Natal e em Mossoró, quando as pessoas engatavam uma boa conversa ao pé do túmulo, se possível debaixo de uma sombra, ou em suas casas ou locais de trabalho, sempre pareciam querer conversar

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mais, pois acabavam se lembrando de mais um caso ou causo a acrescentar à conversa. No caso do cemitério, isso muitas vezes limitou minhas possibilidades de acessar um número maior de interlocutores, pois isso traria interrupções e quebra de confiança por parte da pessoa, ou pessoas, que naquele momento requeria toda a minha atenção.

Vi-me, não poucas vezes, na curiosa situação de presenciar meu primeiro interlocutor naquela ocasião entrevistar outro devoto, próximo, procurando ensinar-lhe sobre o que eu queria saber, e orientando as respostas dessas pessoas segundo seu próprio enten-dimento. Daí surgiam discussões interessantes entre eles próprios, cada um desfiando suas histórias e seus testemunhos, pedindo mais detalhes ou esclarecimentos, discordando neste ou naquele detalhe. Nessas ocasiões, muito ricas para a pesquisa, meu principal papel era escutar com atenção e, às vezes, tomar notas ou gravar.

Houve ocasiões em que a dinâmica se deu de outro modo: um pequeno aglomerado de pessoas se formava em torno de mim, só por me mostrar interessada em ouvir a história sobre o morto ou o depoimento pessoal de um devoto, por fazer perguntas a respeito dos ritos, das oferendas, do funcionamento do cemitério ou do comportamento manifesto por alguém, naquele momento. As respostas que recebia podiam ser ouvidas por outras pessoas, quando estava de fato dentro da aglomeração ou muito próxima ao túmulo – e não distanciada sob alguma sombra, conversando à parte com alguém. Então, todos os que ouviam podiam interferir e assim o faziam, repetindo a dinâmica que descrevi acima. Um grupo inicial de três ou quatro pessoas logo crescia e as pessoas passavam a dialogar sobre o tema entre elas, quase esquecendo completamente de qualquer pergunta inicial que eu houvesse feito. Isso mudava se eu portava um gravador ou caderno de notas, pois aí passava a ser vista como aquela para quem estavam falando e

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que iria registrar sua fala, algo similar a uma repórter ou jornalista, como frequentemente me diziam, e, apenas neste caso, as pessoas tendiam a ir comigo assim que eu me deslocava, mesmo que eu pedisse licença para falar com outra pessoa.

Esse tipo de campo pode ser um pouco difícil, não ape-nas pela sazonalidade, mas pela intensidade do ritual em si, pelo caráter emotivo da participação de muitos dos presentes, pelas próprias características de uma aglomeração que não apresenta qualquer tipo de ordenamento, exceto as limitações impostas pelo regulamento interno do cemitério. Muitos podiam falar ao mesmo tempo, tornando difícil o registro e trazendo o risco de perda de um bom interlocutor que viesse a se cansar ou a se aborrecer com a discussão. Nem sempre eu estava certa de qual escolha fazer e qual, dentre tantos fluxos de conversas simultâneas, seguir. Ou como sair das saias justas quando, numa discussão, todos queriam ter razão e demandavam minha opinião. João Baracho era muito pobre, trabalhava como pedreiro e feirante e mal ganhava pra comer ou João Baracho teria chegado a prosperar e teria se tornado em pouco tempo, após chegar a Natal, imigrando do interior, dono de uma mercearia onde venderia bens roubados? Jararaca teria sido mesmo um facínora, um sádico que “atirava criança pro alto e aparava com a ponta do facão” ou isso tudo seria exagero e ele teria sido apenas mais um revoltado, porém honrado e protetor dos mais humildes? Dentre os assuntos mais apaixonantes estavam os detalhes dos acontecimentos que teriam precedido sua morte, que as pessoas se esmeravam em descrever, com riqueza imagética e emoção. Mas sem consenso. As interrupções e falas simultâneas se intensificavam e se tornavam, nesses momentos, ainda mais comum, e alguns acabavam até se irritando com as versões mais distantes da sua ou opiniões contrárias à sua compreensão dos fatos. No caso das pessoas mais velhas, elas pareciam capazes de

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alcançar mais reconhecimento para suas descrições e opinião, sobretudo se contavam sobre experiências próprias em primeira pessoa ou histórias ouvidas de seus parentes mais velhos.

A pesquisa sistemática, dessa forma, começou na semana de Finados de 1999. Mas nessa altura eu já tinha alguns interlocutores regulares que havia conseguido, na base do boca a boca, por meio de alunos e vizinhos, entre o primeiro Finados, em 1998, em que observei os ritos no cemitério para pesquisa exploratória, e esse de 99. A formação de uma rede de contatos e interlocutores que se disponham a falar sobre o objeto/assunto da pesquisa é fundamental para quem desenvolve um trabalho como esse, que não conta com delimitação formal, grupo estável, fronteiras bem definidas, instituição ou organização que o represente. Não há um grupo social pronto ao qual o pesquisador possa se dirigir, ninguém é responsável por alguma visão oficial do culto. Não há oficiantes do culto, por exemplo, ou algum indivíduo ou grupo que se apresente como responsável pela sua organização. Nenhuma agenda de prestação de cultos, exceto aquelas datas significativas em que se sabe que as homenagens acontecerão, mas não exatamente como, realizadas por quem ou com qual intensidade. E essa intensidade oscila bastante de um ano para outro ou mesmo em diferentes períodos ao longo do Dia de Finados.

Procurei, ainda, pesquisar nos arquivos de jornais, como Diário de Natal e Tribuna do Norte, e nos arquivos de documentos – que também incluíam recortes de jornais antigos – do Museu Lauro da Escóssia, em Mossoró. Buscava matérias sobre a época das mortes de Jararaca e de Baracho – como também busquei cronistas, historiadores, cordéis –, mas também contemporâneas, sobre as devoções nos cemitérios. Dessas fontes, a mais importante para a pesquisa, como complemento aos dados produzidos em campo, foram mesmo as matérias de jornais.

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O jornal impresso e suas manchetes muitas vezes falam pela boca do devoto. Este reproduz o que saiu no jornal, ou o que ouviu no rádio ou na televisão, como elemento legitimador, dado o prestígio intrínseco conferido àquilo que é publicado por esses meios. Por outro lado, o devoto fala pela escrita do jornal, principalmente os de cunho mais popular, que abrem espaço para seus depoimentos sobre fé e milagres durante a cobertura do feriado religioso de Finados. Não é raro que a pessoa que não tem o hábito – qualquer que seja o motivo – de ler livros, leia o jornal, nem que seja o mais popular e mais barato, ou que pare diariamente para ler ao menos as manchetes da primeira página que estejam à mostra numa banca. Manchetes e fotos rendem boas conversas, direcionam o olhar para determinados assuntos, conferindo-lhes prestígio, de forma similar à dinâmica que ocorre hoje comumente a partir das publicações na internet, especialmente nas redes sociais. Um recurso utilizado por mim para quebrar o gelo em alguns contatos iniciais ou quando a conversa com algum interlocutor parecia morrer era mostrar alguma matéria de jornal sobre Jararaca ou Baracho, ou alguma fotografia do culto tirada por mim.

Os túmulos de Baracho e de Jararaca frequentaram por muitos anos a primeira página dos jornais das respectivas cida-des, quando da cobertura do feriado de Finados, e no período durante o qual fiz pesquisa encontravam-se ainda em evidência na imprensa, embora já, desde aquela época (final dos anos 1990), eu escutasse frequentemente nos cemitérios ou de contatos meus em outros ambientes que “aquilo lá” já não seria mais a mesma coisa que havia sido, que estaria enfraquecendo e logo cairia no esquecimento. Não foi o que pude ver pelos anos que se seguiram.

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Cenas de campo: situações, encontros, conversas

Foi no Dia de Finados de 2000, quando já pesquisava o assunto há dois anos e cobria as celebrações de Finados nos cemi-térios pelo terceiro ano consecutivo, que encontrei Dona Terezinha de Jesus contando sua história, não para mim em particular, mas numa espécie de roda formada por outros visitantes e devotos próximos ao túmulo de Jararaca, no cemitério São Sebastião, em Mossoró. Eu já me encontrava ali há algum tempo, zanzando em meio à aglomeração, pegando um trecho de conversa aqui, outro ali, gravando algumas entrevistas rápidas, engrenando uma conversa mais demorada e levando alguns foras ou respostas lacônicas também. Foi quando escutei aquela voz de mulher falando mais alto, relatando um milagre que teria alcançado. Sua fala me chegava entrecortada, não muito clara, devido ao burburinho das pessoas mais próximas, muitos falando ao mesmo tempo. Mas entendi que estava ali rezando pela alma de Jararaca por haver recebido dele um grande benefício.

Ao me aproximar dela, escutei durante algum tempo e, assim que pude, perguntei qual havia sido a promessa, se poderia me contar, e o que havia alcançado através dela. Mais que depressa, com a satisfação dos que anseiam por atenção, ela recomeçou seu relato, apresentando-o de modo bastante performático, com muitos gestos e expressões faciais, modulações da voz e imitação do cangaceiro, que teria falado com ela em um sonho. Nesse sonho, que, em sua estética e modo de operar, mais parece um quadro de programa de auditório televisivo, com luzinhas piscando e efeitos especiais, Jararaca teria lhe apontado os números da loteria. Ela jogou e ganhou o dinheiro de que necessitava para a compra de

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sua casa. Conta que teria comprado também um carro e que hoje, sim, vivia bem. Havia pedido a Jararaca que a ajudasse a realizar seu sonho de sair do aluguel e conseguir um teto.

Antes já havia recorrido a ele, para pedir cura para sua mãe, que padecia de câncer de útero. Tendo sido atendida, vinha mais uma vez cumprir sua obrigação: acender vela, colocar uma coroa de flores no túmulo, pedir a Deus que o perdoasse e lhe desse a salvação eterna e ainda rezar 37 Pai-Nossos e 37 Ave-Marias. Tratava-se, na verdade, de um voto religioso por tempo indeterminado, pois havia se comprometido a retornar anualmente, com essas mesmas dádivas, e vinha cumprindo esse voto já há cinco anos seguidos.

Ao relatar seu sonho, Dona Terezinha se estendeu, contando detalhes da aparência de Jararaca: homem bonito, moreno, altivo. No sonho, sua arma – um revólver – torna-se um item do espetáculo visual em que se constituem as imagens, pois ele lança, não balas mortais, mas números iluminados, como num letreiro de luz, que vão se enfileirando numa grande pedra. Cada tiro, um número luminoso. Ela gesticula para mostrar como ele atirava os números para ela. Durante todo o relato, especialmente quando chega ao ápice, o prêmio da loteria, ela ri muito, gargalha até, olhando para toda a audiência que lhe dá atenção, não somente para mim.

Terezinha de Jesus dos Santos da Silva tinha naquele momento 46 anos, católica “não praticante”, morava em Assu, cidade vizinha a Mossoró, e trabalhava como merendeira numa escola, mas contou-me que no passado havia trabalhado também como faxineira em casas e empresas. Estava acompanhada de seu marido, Antônio da Silva, rodoviário (motorista de ônibus). Ele me contou sobre duas promessas que fizera a Jararaca: a primeira para curar uma dor no peito – e me disse isso passando a mão espalmada no peito e fazendo uma careta de dor; e a segunda para

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que o ABC, time de futebol de Natal, conquistasse o campeonato daquele ano. Também extrovertido e eloquente, embora mais discreto, seu Antônio fez questão de afirmar que não pararia por ali e que faria novos pedidos e novas promessas para Jararaca, porque “funciona mesmo”. Quando ouviu a esposa se definir como “católica não praticante”, seu Antônio riu e, antecipando-se à minha pergunta, me disse que ele havia sido educado no catolicismo, mas não era “muito de igreja não”. Que nem se lembrava da última vez que havia ido a uma missa.

Observo que ambos têm ocupações de baixa renda, que exigem pouca escolaridade. No entanto, nem Dona Terezinha de Jesus nem seu Antônio pediram algo como uma fortuna que os dispensasse de trabalhar ou que transformasse radicalmente sua situação social, mas antes o que entendiam como importante para melhorar sua qualidade de vida atual: a casa própria (e um carro) para ela, a saúde (e a alegria de um campeonato) para ele. Quando Dona Terezinha afirma que agora vive bem, ela está apresentando sua avaliação do que seja esse bem viver atual em comparação com as condições em que viviam antes do milagre de Jararaca: a revelação alcançada em sonho dos números da loteria, seis anos antes, a tirara do aluguel, visto por ela como signo de precariedade. O trabalho como merendeira numa escola próxima de sua casa é o mesmo que já tinha antes da loteria; seu marido também continua motorista de ônibus, sem qualquer intenção de mudar de emprego. Somente uma vez me disse, em outro contexto, sem relacionar ao prêmio, que tinha vontade de abrir um mercadinho ou ter, pelo menos, uma carrocinha própria para vender lanches. O tom era mais de devaneio do que de projeto concreto, e ficou por ali mesmo.

“Ninguém quer saber o que a pessoa fez [em vida], minha filha. Quer saber é do coração”. Do mesmo modo como viria a ocorrer anos depois, em 2000, no encontro com Terezinha de

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Jesus, eu primeiro escutei a voz de Dona Sebastiana Silva para só depois conseguir ver-lhe o rosto. Era 1998 e havia de fato uma aglomeração de pessoas em torno do túmulo de Jararaca, dentre elas um repórter e um fotógrafo, com seus equipamentos, como tripé, câmera e microfone. Percebi que ela já estava em meio a uma conversa com os que se encontravam mais próximos dela e o teor dessa conversa me interessava muito.

Fui chegando, devagar, abrindo caminho por entre as pessoas, e logo que a enxerguei procurei me colocar próxima, com minha atenção toda focada nela. Ela batia o dorso da mão direita espal-mada sobre a mão esquerda, como que para pontuar suas frases, conferindo a elas mais força. Contava, como se tivesse conhecido pessoalmente Jararaca e cavalgado ao seu lado pelas caatingas, que ele foi uma pessoa “muito, muito ruim mesmo!”, que matava até por diversão. Seu tom parecia simultaneamente escandalizado e deliciado. “Por isso que hoje ele faz o bem, ele ajuda as pessoas”. Aos seus olhos não havia qualquer contradição nessa conclusão, pelo contrário. Sua lógica apontava para uma espécie de compen-sação pelos males e crimes cometidos em vida: fazendo o bem, ele poderia postumamente redimir-se e ser perdoado por Deus. Mas, por enquanto, segundo ela, ele estaria em estado de sofrimento, ou, nas suas palavras, “morreu, mas não conseguiu descansar”.

Ela repetiu algumas vezes o teor dessa afirmação sob outras formas. “Ele matou uma criança só por diversão, por isso que ele não tem paz”. Perguntei que história seria essa da criança. Era novembro de 1998 e eu, mesmo estando ainda, naquele momento, bem no início da pesquisa de campo, já havia escutado, desde o Dia de Finados do ano anterior, ali mesmo em Mossoró, a máxima que circula entre os devotos e todos aqueles familiarizados com o repertório popular sobre Jararaca: “Dizem que ele atirava criança pro alto e aparava na ponta do facão!” E ela não se fez de rogada,

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foi justamente com uma variante dessa frase que me respondeu, cerrando o punho e fazendo com o braço um movimento como se empunhasse ela mesma esse facão.

Dona Sebastiana foi uma das figuras mais eloquentes e animadas para discorrer sobre Jararaca e tudo que lhe dissesse respeito. Estive em sua casa, no bairro Barrocas, em Mossoró, onde vivia com a filha – que faz doces para vender e de vez em quando pega umas faxinas –, o genro, pedreiro, e quatro netos, o mais velho com 17 anos. Dona Sebastiana mesmo me disse que também já havia trabalhado como faxineira e cozinheira, mas hoje não mais, porque não tinha mais condições de pegar serviço pesado. Estava velha, me disse. Hoje vivia ali, na casa da filha e do genro, e ajudava a tomar conta das crianças. Tinha 62 anos e se descrevia como católica, devota de Santa Luzia, separada do marido (“aquele sem vergonha só gostava de beber”).

Quando me disse que era devota de Santa Luzia, perguntei se seria o mesmo que ser devota de Jararaca, e ela se apressou em afirmar que não. Segundo ela, Jararaca pode ajudar as pessoas, mas não seria “santo de verdade”, não como os da igreja; ele ainda estaria pagando por seus pecados. “Ele obra milagre pra poder Deus perdoar os pecados dele”. Era muito forte nela a imagem do sofrimento de Jararaca, desde os fatos de sua morte até seu estado póstumo, o que a aproxima de Dona Terezinha de Jesus e muitos outros devotos, que frisaram frequentemente a morte incomum, excepcionalmente cruel, imposta ao cangaceiro por homens que estavam a mando de autoridades.

Conversei com muitos devotos e visitantes dos túmulos de Jararaca (e de Baracho), mas foram essas três pessoas – Terezinha de Jesus, Antônio Silva e Sebastiana Silva – que compuseram o núcleo duro, relativamente estável e contínuo dentro do universo

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de interlocutores eventuais ou mais esporádicos. Com esses outros pude ter também, muitas vezes, conversas longas e ricas, no próprio cemitério ou em alguma ocasião posterior, mas não um relacionamento contínuo como pude manter com esses, que destaco nesta seção.

Que fique claro, então, que essas pessoas, que estou apre-sentando mais detidamente aqui, não foram as únicas que contri-buíram durante o trabalho de campo. Muitos outros serão citados ou mencionados no decorrer deste livro. Para alguns tópicos e discussões, a contribuição desses outros, que não estão incluídos nessa apresentação inicial, foi tão ou mais importante, mas preferi destacar aqueles com os quais tive maior proximidade, que, aliás, foram as pessoas que também me ajudaram a localizar outros devotos, falando-me sobre vizinhos, parentes ou colegas e me passando seus contatos. Alguns, ainda, me mostraram recortes de matérias de jornais sobre Jararaca ou Baracho, ou me contaram sobre outras devoções semelhantes nas mesmas cidades ou em outras cidades e estados; ou, ainda, sobre a existência de cordéis sobre Jararaca e de um museu dedicado ao cangaço em Mossoró.

Em Natal, esse núcleo foi um pouco maior, pois a ele se incorporaram também duas das zeladoras do cemitério Bom Pastor, que chamarei aqui por nomes fictícios, Ana e Conceição. O fato de eu morar em Natal, e de Mossoró ficar a cerca de quatro horas de distância de ônibus, também teve seu peso nesse resultado. Era bem mais fácil para mim me deslocar até o bairro Bom Pastor e outros bairros periféricos de Natal, para ir ao encontro dos inter-locutores dispostos a conversar comigo. Além das duas zeladoras, em Natal pude contar com Odete de Souza (Detinha), Eutália Medeiros e Maria José Melo, a única dentre os que se declararam protestantes (ela é da Assembleia de Deus) que aceitou colaborar de modo contínuo com a pesquisa.

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Como disse, duas das zeladoras do cemitério Bom Pastor mostraram-se curiosas, ou intrigadas pela pesquisa, e disponíveis para conversar quando eu estava lá. Uma delas, Ana, me falou sobre outros devotos, e me contava quem eram os visitantes mais frequentes naquele túmulo, quando costumavam aparecer por ali, com que frequência. Além de outras coisas sobre as rotinas diurnas e noturnas do cemitério que, segundo ela, só quem trabalha ali e está ali diariamente poderia saber.

Ana de Jesus Vieira de Melo, moradora do Salgado, em Natal, tornou-se minha interlocutora desde 1998, ou seja, desde o primeiro ano da pesquisa, quando tinha 39 anos e já contava vinte anos a serviço naquele local. Negra, magra, séria e um pouco tímida, contou-me que havia começado a trabalhar ali puxada pela ex-sogra, que já era zeladora. Zeladores têm por função cuidar e limpar a área interna do cemitério, mantê-lo em ordem. Ela me diz que gosta de trabalhar ali, que é bem tranquilo.

Contou-me que foi católica quase a vida inteira e depois virou crente. Essa fase durou somente um ano e meio. Depois disso teria ficado “desacreditada”, isto é, descrente. Diz que é como São Tomé, tem que ver pra crer, e que por isso acredita nos milagres de Baracho, porque viu acontecer com sua mãe e depois consigo mesma. Ambas tiveram problemas de saúde resolvidos após fazerem promessa para Baracho ou utilizar sua água18 para aplicar na parte doente do corpo.

Frequentemente Ana entrava em atrito com Conceição, quando o assunto era a devoção a Baracho. Maria da Conceição dos Santos Pereira era doze anos mais jovem que Ana, mais extrovertida,

18 A oferenda mais característica da devoção a Baracho são as garrafas plásticas (ou outro recipiente) contendo água, pois o que se diz é que “Baracho morreu com sede”. Os ritos de devoção realizados pelos devotos consagrariam essa água, tornando-a capaz de curar doentes.

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inquieta e um tanto belicosa. Parecia gostar de provocar a colega. “Católica praticante”, espicaçava Ana com frases como “podendo pedir a Deus, vai pedir pra assassino?”. Chamava os devotos de bruxos e as oferendas de bruxarias. Referia-se especialmente a representações antropomórficas e icônicas, como bonecas (degola-das ou espetadas por alfinetes) e fotografias, que se conformavam ao que ela entendia por bruxaria e fazia com que pensasse nos devotos como “gente que vem pedir o mal dos outros”. Vez ou outra, quando Ana estava perto, ela condescendia um pouco e admitia exceções: “Pode ser que no meio exista gente que não vem buscar o mal, gente que acredita, tem fé, mas são poucos.”

Curiosamente, numa das poucas vezes em que consegui conversar com a administradora do cemitério Bom Pastor, ela, que mencionou espontaneamente o fato de ser evangélica, quando perguntei o que pensava sobre a devoção no túmulo de Baracho, me respondeu “normal, o povo acredita, eu acho normal. Apesar de ser evangélica. Eu mesma nunca vi milagre nenhum, mas as pessoas acreditam, então deixa.” Porém, antes de me dar as costas para entrar novamente na sala da administração, ela me disse que vez ou outra aparecia boneca espetada em cima do túmulo e “como todo mundo sabe, isso é pra fazer o mal”. E acrescentou: “pulam o muro do cemitério à noite também, pra deixar trabalho de catimbó no túmulo dele e outros aí.”

Ouvi afirmações semelhantes da própria Ana com relação às oferendas, que ela também, assim como a administradora e como Conceição, associava às religiões afro-brasileiras, que, por sua vez, associavam à noção genérica de bruxaria e mal, revelando um viés bastante preconceituoso em relação a essa matriz religiosa. Ana mencionou algumas vezes as visitas noturnas clandestinas de pessoas que pulariam o muro do cemitério no horário em que se encontra fechado “pra fazer o que não presta”, referindo-se a esse

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tipo de oferenda – porém, ela me disse que nunca havia visto essas oferendas no túmulo de Baracho, mas sim nos túmulos velhos e em péssimo estado que se encontravam mais para a extremidade lateral do cemitério.

Porém, Conceição repetiu para mim palavras quase idênticas às da administradora para se referir especificamente a oferendas deixadas no túmulo de Baracho. Quando eu lhe disse que nunca havia visto essas tais bonecas espetadas ou degoladas no túmulo, ela me respondeu rapidamente que somente de manhã bem cedo, logo na abertura do cemitério, eu poderia vê-las, porque os bruxos as deixariam lá durante a noite e eles, os zeladores, tinham ordens de jogar tudo no lixo tão logo as encontrassem, naquele ou em qualquer outro túmulo. Que ali não seria “lugar pra isso” e tinham que manter a ordem e limpeza daquele espaço.19

Além das duas trabalhadoras, Ana e Conceição, no Bom Pastor, em 1999, conheci Detinha (Odete de Souza), que se tornou interlocutora frequente e contínua até 2003. Gostava muito de rememorar sua juventude e afirmar, em alto e bom som, para que todos os mais próximos na aglomeração formada em torno do túmulo de Baracho, escutassem, que ela o havia conhecido quando moça. Detinha tinha 58 anos, mas falava como se tivesse muito mais quando se deixava embalar pela nostalgia. Começou a trabalhar ainda na fase que hoje chamamos adolescência, como era comum – e ainda é – nas classes populares. Na ocasião da morte de Baracho, tinha 22 anos e fazia um bico – trabalho temporário – na campanha “do pessoal do Aluízio Alves”.

Católica, separada, residente no bairro de Felipe Camarão, em Natal, trabalhou durante muitos anos como diarista e depois se tornou costureira (trabalhava em casa, o que ela achava bem

19 Esse assunto retornará no Capítulo 4.

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melhor). Ela me contou que ia todos os anos ao Bom Pastor para visitar Baracho, desde seu sepultamento ali, mas que nos últimos quatro anos ia também para visitar o túmulo de seu filho. Há menos de um mês daquela nossa primeira conversa, em 1998, sua mãe também havia falecido, e se encontrava também ali, no Bom Pastor (pelo que entendi, no Bom Pastor II). 20 De modo que aquela visita ao cemitério, naquele ano particular, tinha significação ainda maior para ela. Contou-me que tinha também uma filha, casada, que morava em João Pessoa, pois o marido dela havia passado em concurso naquela cidade, e que essa filha havia lhe chamado para ir morar com ela, após o falecimento da avó, mas que ela era muito independente e não queria morar com filho. Assim, continuava na casa que fora de sua mãe, para onde voltara após o fim do seu casamento, já que com o marido vivia em casa de aluguel e aquela, da mãe, era própria.

Eutália Araújo de Medeiros entrou na minha vida dois Finados depois, isto é, em 2000. Tinha então 58 anos, casada, três filhos, era dona de casa, moradora do bairro do Alecrim, em Natal. Quando perguntei se se considerava religiosa, ela me disse “é, eu sou crente, mas não tenho costume de ir em igreja não. Não tenho igreja”. Antes que eu perguntasse sobre o motivo de estar ali, junto ao túmulo de Baracho, acendendo velas e orando, ela se antecipou e me ofereceu a seguinte explicação: “é o costume, não é? Do tempo que eu era católica. Fui em muita romaria quando era solteira, minha família tudo ia na romaria pra Juazeiro. Mas hoje não, agora que sou crente não vou mais nem faço promessa. Milagre, só com Jesus”. Porém, de modo muito interessante, ela afirmou que não via problema em estar ali, pois estaria substituindo seus pais, falecidos: “Eu faço minha vez por eles.”

20 Existem dois, um ao lado do outro. O mais antigo, onde se encontra Baracho, e o Bom Pastor II, mais novo.

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Outro aspecto que achei interessante, até por destoar da ava-liação negativa da devoção apresentada por outros evangélicos, foi sua insistência em defender a reputação de Baracho: “ele era ladrão, mas ajudava muito a pobreza. Não era assassino, como diz por aí”. Eutália não era tão carismática quanto Detinha, que aparentava gostar de ser o centro das atenções e rapidamente conseguia isso, mas era também uma grande narradora, capaz de mudar o tom da voz e seu volume a expressões faciais e gestos que encenavam situações que teria vivido ou testemunhado, como a visita à Baracho na cadeia. Ou as conversas com suas colegas de juventude.

Na primeira visita que fiz à sua casa, pude observar o quanto seu envolvimento na devoção a Baracho, que era o motivo da minha visita ali, era motivo de tensões dentro de sua família. Uma de suas filhas, casada e moradora em Nova Descoberta, se encontrava ali na ocasião e, assim como seu marido, seu Henrique, não me receberam com muita simpatia e não fizeram questão nenhuma de disfarçar seu mal-estar perante aquele assunto. As frases que disseram, dirigindo-se a Eutália, não a mim, não eram muito diferentes das tantas que escutei no próprio local onde a devoção se manifesta publicamente, o cemitério, de pessoas que aberta-mente hostilizavam os devotos ou debochavam de suas crenças nos milagres de Baracho (o que, por sua vez, também acontecia em Mossoró). Variações de “como alguém que praticava o mal pode ser santo?” ou “milagre, só de Jesus”. Mais que depressa vi Dona Eutália confirmar tudo isso e, com ar cansado de quem precisa explicar o óbvio, ela dizia que não ia visitar Baracho para fazer promessa, como os crédulos que acreditavam que fosse santo, nem ia porque lhe acreditasse capaz de fazer milagres, mas apenas porque é uma prática “da tradição”, é “costume”. Que não era porque se tornou crente que ia abandonar os costumes que trouxera de sua família, de seus pais. Essas explicações não satisfaziam nem a

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seu marido nem à filha mais velha, que, aliás, mal falou comigo. Soltou duas frases venenosas e saiu da sala pisando duro. Depois desse incidente, Dona Eutália pediu que eu não fosse mais lá em finais de semana, que telefonasse, caso quisesse saber mais alguma coisa, e aí ela veria um horário em que o marido não estivesse, normalmente no meio da semana, quando estaria no trabalho.

Além de Dona Eutália, quero destacar também, nessa apre-sentação, Dona Maria José Melo, 59 anos, viúva, auxiliar de cozinha em uma escola pública, que, ao se dar conta de que eu a observava enquanto acendia algumas velas no queimador localizado na parte posterior do túmulo de Baracho, antecipou-se à minha pergunta e me disse “rezar pelos mortos é obrigação, não é, filha?”. Perguntei se estava pagando promessa. Ela respondeu enfática: “não! Eu não! Milagre, só com Jesus. Só Ele pode obrar milagre na nossa vida. Baracho não, ele é comum”. Perguntei se ela tinha religião, e ela respondeu “sou da Assembleia de Deus”. Contou que havia entrado na Assembleia há sete anos.

Acho interessante notar a necessidade de se explicar, mesmo quando não houve qualquer crítica ou questionamento pelo fato de estarem participando de um rito de devoção ou homenagem a um morto ao qual se creditam milagres. Isso manifesta a clareza que essas pessoas têm quanto ao fato de adotarem um comportamento pouco comum à categoria religiosa com a qual se identificam. E ambas, Eutália e Maria José, utilizam argumentos semelhantes: o costume, a tradição – funerária, no caso de Maria, e católica, no caso de Eutália. Isto é, Maria situa o rito de orar e oferecer velas ao morto dentre os costumes funerários e em nome deles ela se sente à vontade para realizar tais ritos sem que lhe pareça entrar em contradição com suas crenças. Eutália, por sua vez, deixa claro que seus pais eram devotos de Padre Cícero e acreditavam em fenômenos como santidade popular e milagres de santos. E

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ela afirma literalmente que, se fossem ainda vivos, eles estariam ali, cultuando Baracho, e que é em nome deles, em seu lugar, que ela vai até lá, mesmo que isso lhe custe atritos com sua família, toda ela evangélica. Esses dois casos, embora representem uma atitude pouco frequente, bastam para nuançar um pouco a ideia de que todos os pentecostais seriam inimigos ou hostis ao culto.

A esta altura o leitor/a leitora já se deu conta do número maior de mulheres, na faixa etária em torno dos trinta anos para cima, que compõe esse universo de interlocução, até o momento. Na verdade, não é incomum encontrarmos muitos homens, inclusive bem jovens, pagando promessas ou apenas rezando por Jararaca ou Baracho, mas eles raramente se dispunham a manter uma conversa mais longa, mesmo ali no local. E, talvez por questões de moralidade que conformam as relações entre os gêneros, especialmente com uma mulher estranha ao círculo de parentes e vizinhança, propor a eles um encontro em outro lugar ou em suas residências, sempre era recebido com estranhamento, traduzido em deboche ou em uma reação bastante sem jeito. A exceção a isso acontecia com casais, como Terezinha de Jesus e Antônio, ou com senhores idosos. A partir da minha experiência nessa pesquisa, posso afirmar que as mulheres, na condição principalmente de esposas e mães, exercem um papel de mediação entre sua família e a devoção no cemitério. São elas que tendem a atrair os maridos ou filhos para o cenário da devoção, e muitos aderem à crença na santidade de Baracho – ou ao menos no seu poder para auxiliar os necessitados – depois que sua esposa ou mãe testemunha que teria resolvido o problema para o qual teria pedido sua intervenção. Os homens mais velhos e os idosos (acima de sessenta anos) estão presentes nos ritos, mas, além de terem se mostrado menos acessíveis para dar continuidade aos contatos em outro local, fora do cemitério e da data de Finados, eles, ao contrário das mulheres, não se mostram interessados em

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contar sobre experiências pessoais. Eles preferem falar sobre o passado do morto, quem foi, o que fazia, como morreu. Nesse terreno mostram-se bem mais eloquentes do que as mulheres.

A seguir, passarei a narrar um dia no cemitério, com algumas conversas curtas, entrecortadas por outras, e situações que foram surgindo ao longo de um mesmo dia. Como toda devoção ou rito religioso, existem certos temas e comportamentos que, com o tempo, conseguimos perceber que são recorrentes. Porém, apesar disso, cada visita ao cemitério ou a residência de algum colaborador foi uma experiência única, por isso não faria sentido falar em algo como um dia típico de Finados. Quero apenas transcrever aqui alguns trechos descritivos de situações e conversas vivenciadas em campo.

Como já expliquei, devido à distância entre as duas cidades, Natal e Mossoró, onde se encontravam os dois casos que escolhi analisar, era impossível, para mim, estar presente na mesma data em ambos os cemitérios. Por isso, a cada ano, enquanto durou a pesquisa de campo, eu passava os dias 30 e 31 de outubro e 1º de novembro em uma das cidades, frequentando o cemitério dali, para cobrir as visitações que já começavam desde uns dias antes do feriado, e passava o Dia de Finados propriamente dito na outra cidade. Por exemplo, se naquele ano eu passasse o final de outubro e dia primeiro de novembro indo ao Bom Pastor, em Natal, então no dia 2 de novembro eu estaria no São Sebastião, em Mossoró. E vice-versa.21 Vale notar que é comum que algumas pessoas antecipem suas homenagens aos parentes falecidos, e também ao santo (Jararaca/Baracho), para os dias imediatamente anteriores ao feriado para evitarem as aglomerações e o que veem como tumulto dentro dos cemitérios, inclusive nas vias de acesso, normalmente interditadas e tomadas por vendedores ambulantes.

21 Adotei essa alternância nos primeiros quatro anos da pesquisa de campo (1998-2002, excetuando-se 2001, quando não fiz campo em Finados no Rio Grande do Norte, pois me encontrava fora, em outro compromisso).

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Pelos cemitérios: notas do caderno de campo

A seguir apresentarei situações vivenciadas nos dois cemi-térios durante a pesquisa. Isso também contribuirá para trazer o leitor ou leitora para mais perto da realidade na qual mergulhei durante meus anos de pesquisa de campo, e mesmo depois, quando me ocupava das notas nos diários, das gravações a transcrever, das fotografias e das leituras. Admito que sua seleção para inclusão na seção foi um tanto aleatória, passando, inclusive, pelo meu próprio gosto pelas boas histórias e lembranças, e pelo quanto trouxeram para mim, na época, alguns bons insights sobre essas devoções.

Manhã no Bom Pastor, Natal, Véspera de Finados, 1999

O Bom Pastor já estava movimentado pelas visitações dos parentes que preferem adiantar as homenagens aos seus falecidos e escapar dos tumultos do feriado do dia 2 de novembro. Estávamos encostadas numa espécie de caixa d’água ou algo parecido, sob a sombra de uma árvore generosa, eu, Ana, Conceição, e mais dois zeladores, José e Nilton, e um garoto, que segurava um balde vazio e trazia sobre o ombro um pano de chão. O garoto parecia ser relacionado a um dos dois homens, talvez filho, e já estava ali para trabalhar na limpeza, como os adultos. Todos acabaram parados ali depois de se aproximarem com o pretexto de falar com Ana, que estava ali sentada à sombra conversando comigo há alguns minutos. Ela havia acabado de me contar sobre a quartinha com água de Baracho, que ela e outros devotos consideram benta pela ação ritual, capaz de curar doenças; de como certa vez havia

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aplicado um pouco dessa água em sua barriga para aliviar as cólicas menstruais que vinha sentindo, que lhe tornavam difícil trabalhar. A sugestão teria partido de sua ex-sogra, mas ela não se sentia muito confiante. Como a sogra insistisse – “Por que tu não vai, Ana, lá na cova de Baracho e toma um pouquinho da água?”, ela acabou indo. “Aí eu vim na cova e peguei assim uma quartinha. Peguei a quartinha e tomei um golinho, só um gole da água. Eu fui tomando, a água foi descendo e a dor foi sumindo!”

Ana também me contou que pagou, vinte e um anos antes, em 1978, uma promessa feita por sua mãe, para curar dores na clavícula, de que começara a padecer desde seu último parto. As dores desapareceram, porém a mãe ainda não se encontrava em condições de sair de casa. Por isso, Ana a substituiu, indo em seu lugar ao túmulo de Baracho para pagar a promessa, o que é, aliás, algo bastante comum nas devoções em geral. Um voto ou promessa pode ser transferido momentânea ou permanentemente para outra pessoa, que aceite tal encargo. No caso de doentes que se encontram acamados ou hospitalizados, isso ocorre com certa frequência. Até porque para rezar para um santo do cemitério não é preciso necessariamente ir ao cemitério, mas para pagar a promessa sim, pois a principal dádiva que alguém pode oferecer é justamente sua presença ali, o que inclui o custo pessoal (e financeiro) que possa ter para a pessoa o deslocamento até ali. Ana, então, foi ao Bom Pastor no lugar de sua mãe para oferecer um maço de velas a Baracho e rezar um Pai-Nosso em intenção de sua alma.

Nilton, 38 anos, que se apoiava de pé numa vassoura e até então permanecera calado, de repente falou: “Isso aí já não é mais o que foi. Tá diferente, acho menos. Porque todo ano essa covadele aí pegava fogo, lá em cima! Queimava os milagres tudo. Issoaqui a gente não tinha nem como passar. Essa cova não era assimnão, ela era preta! (da fumaça das velas).”

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Comento, então, que estou surpresa que houvesse ainda mais movimento e mais oferendas, porque naquele momento mesmo, apesar de ser ainda véspera de Finados (de 1999), já havia várias garrafas de água, algumas flores e muita vela no queimador do túmulo, e eu vinha observando o fluxo quase incessante de pessoas que passavam junto a ele e paravam um pouco para rezar, mesmo quando não houvesse trazido nenhuma outra oferenda material, além de sua presença e orações. Seria impossível determinar de imediato, em muitos casos, somente pela observação, quem estaria ali apenas rezando por sua alma, fazendo uma promessa ou pagando uma promessa. Insisti que muito me intrigavam as garrafas de água. Foi seu José, então, que explicou, dirigindo-se a mim:

A história que ouvi contar, um senhor contar, né, é que ele morreu com vontade de beber água. A história que ouvi contar. Diz que ele tava pedindo água numa casa, que era fugido, né, escondido. Diz que ele tava numa casa e apareceu pra pedir água a essa mulher. Diz que na hora que a mulher foi dar o copo d’água, diz que a polícia foi e atirou nele. Ele não teve condição de beber a água. Quer dizer, morreu com sede, né? As pessoas bota água na cova dele porque dizem que ele morreu com sede.22

Nilton o interrompe para insistir no enfraquecimento da devoção a Baracho: “É mão, é braço, é pé! Agora é pouquinho! Que incendiou isso aí, menina! Pegou fogo aí. Mas era um bocado, muitas velas.”

Dona Elizabete, uma senhora magrinha, aparentemente na faixa dos trinta anos, residente nas Quintas, começa a se afastar do túmulo após deixar no seu queimador algumas velas, e se aproxima mais de nós, que nos encontrávamos próximos. “Todo mundo aqui rezando, fazendo promessa, e diz que tem resultado, né? Então, no

22 José Ferreira, que ora se definia “zelador”, ora “auxiliar” no cemitério do Bom Pastor. Depoimento de novembro de 1999.

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caso eu também pedi uma.” Fiz que sim com a cabeça, para mostrar que lhe compreendia, outros reagiram mais ou menos do mesmo jeito, e ela, então, complementou: “Venho todo Dia de Finados, só que amanhã eu não vou poder vir, então eu vim hoje.” Perguntei se era a primeira vez que fazia um pedido a Baracho. “Eu fiz, mas foi em junho. E alcancei e hoje tô aqui pagando. Que eu disse que ia pagar no Dia de Finados, mas só que amanhã não vou poder vir”.

Pergunto se pode contar o que pediu e ela se mostra reticente. Diz apenas que foi para um parente desenganado pelos médicos. Fecha-se e percebo que não devo insistir. Então, eu pego novamente o fio da meada que ela mesma havia jogado e repito: “Então, a senhora vem todos os anos, hein?” E ela prontamente retoma: “Desde que eu soube dele e o finado Carlos Alexandre, quando eu venho é as três cova que eu venho: a do meu pai lá, primeiro vou lá (aponta para a lateral oposta do cemitério, talvez para o Bom Pastor II), depois vou pra aqui e vou ali pro finado Carlos Alexandre.”23

O primeiro contato com a devoção a um santo do cemitério frequentemente se dá desta forma: com a ida ao sepultamento de alguém naquele local ou com a primeira visita a alguém recente-mente falecido, em um Dia de Finados. Isto é, a menos que a pessoa tenha tomado conhecimento da canonização popular por meio de sua repercussão por alguma mídia, ela descobrirá tal canonização quando tiver um motivo para ir até o cemitério. Até porque, como discutiremos no próximo capítulo, os cemitérios foram empur-rados para fora dos circuitos cotidianos no modo de vida urbano moderno. Mesmo um que se localiza no centro da cidade, como o São Sebastião, não se configura no cotidiano da cidade como lugar de passeio ou passagem casual. As exceções são os cemitérios

23 Cantor popular potiguar que alcançou sucesso nacional. Morreu em acidente rodoviário e se encontra sepultado no cemitério Bom Pastor I.

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que abrigam túmulos prestigiados que atraiam turistas, o que, em alguma medida se aplica ao túmulo de Jararaca, no São Sebastião, mas não tanto quanto se aplicaria, por exemplo, ao cemitério da Recoleta, em Buenos Aires, ou ao Père Lachaise, em Paris, onde se encontram muitos túmulos de pessoas mundialmente famosas, como Carlos Gardel, no primeiro, e Edith Piaf e Jim Morrison, no segundo. A fama do morto torna famoso também o túmulo e o cemitério, transformando-os em atrações turísticas e chamarizes para devoções similares a essas estudadas aqui. Esse fenômeno está longe de ser exclusividade brasileira ou latino-americana.

Dona Elizabete conheceu a devoção quando foi pela primeira vez visitar o túmulo do pai, que havia morrido em março daquele ano, em um Dia de Finados (2 de novembro de 1982). “Aí quando cheguei, fui pra lá (para onde está sepultado seu pai, do outro lado). Saí de lá tava um pessoal falando “vamos na cova do finado Baracho, vamos na cova do finado Baracho”, e eu que não sabia. Eu vim também.” Pergunto o que ela viu, como estava a cova de Baracho.

Tinha muita gente isso aqui fica cheio. Essas vela aqui, agora porque ajeitaram aqui, mas essas velas aqui, isso aqui fica tão cheio de vela que não... e gente! Aquela multidão! Isso aqui fica tão cheio de gente que tem hora que nem dá pra pessoa encostar pra acender um maço de vela.24

Elizabete se disse devota de Nossa Senhora da Apresentação e de São Francisco das Chagas. Católica. Quando perguntei se ela trabalhava só em casa ou se tinha algum trabalho remunerado, notei que ficou embaraçada ao responder que fazia faxinas, porque logo emendou em um tom que parecia tentar consertar algum malfeito: “Por enquanto não tô trabalhando certo mesmo, não tô num emprego, mas faz um ano que eu fiz inscrição. Faz um

24 Elizabeth, depoimento de 1999.

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ano que eu tô aguardando umas inscrição que eu fiz, mas ainda não me chamaram. Hoje foi um dia, eu lá pra […], lá em Igapó, né, fiz uma inscrição hoje. Aí vou fazer o teste dia 16, ainda é pra aguardar.” Eu lhe desejo boa sorte, ela se despede e então noto que enquanto conversávamos Conceição, José, Nilton e o garoto cujo nome não aprendi haviam retornado aos seus afazeres e não mais se encontravam ali. Só Ana continuava sentada no mesmo lugar, quieta e atenta. Logo depois ela também se levantou, disse que tinha que voltar ao trabalho e se afastou.

Aproveito o momento solitário para anotar algumas coisas antes que esquecesse, já que não havia gravado nada. O minigra-vador não havia ainda saído da bolsa naquele dia. Daí a pouco me reaproximo do túmulo de Baracho, para escutar melhor uma conversa que já vai pelo meio. Escuto: “É a fé, tudo é a fé da pessoa. Ele mesmo não pode fazer nada, que ele tá repousando agora, como os outros”. É um senhor grisalho quem fala, dirigindo-se a um amigo da mesma faixa etária (50 anos). O outro faz um movimento de cabeça que aponta para o túmulo:

“Ele era marginal, né, só que ele fazia o mal pra ajudar outras pessoas.”

Ajudar, como? Eu, já bem perto deles, pergunto. Ele não me dá muita atenção, mas responde:

“Eu acho assim, que ele roubava dos ricos pra dar aos pobres, não é?”

Logo escuto atrás de mim uma voz de mulher: “E quando ele matava?” O mesmo senhor responde, olhando para ela:“Ele matava os ricos pra tirar a riqueza dos ricos pra dar

aos pobres.”“E isso é vantagem?!”

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Sua voz soa verdadeiramente escandalizada. Tem cerca de trinta anos, é negra, bem arrumada, como se dali fosse para algum compromisso formal. Não parece estar ali por qualquer motivo relacionado a Baracho. O senhor ainda não havia respondido quando ela voltou à carga:

“Como é que um assassino vira santo? Como? Só Jesus pode fazer milagres, é orar pra Jesus.”

O senhor não se dá por vencido:

“Depende do arrependimento.”

Uma voz que já conheço bem responde antes da mulher, em tom de deboche:

“A água dele era tão milagrosa que dava dengue! Por isso que mandaram tirar tudo daí. Daqui a pouco, quando encerrar, nós pega e joga tudo fora!”

É Conceição, a zeladora, que mal disfarça sua satisfação por encontrar ali, na mulher desconhecida, uma aliada na oposição à devoção a Baracho. Todavia, a outra mulher parece ter perdido o interesse na conversa e já se afasta, sem olhar para trás. O senhor com quem ela discutia, descubro depois, chama-se Adailton José Araújo de Souza, apelido Dadá. Ele volta a dar atenção a seu amigo, José Santana, ou apenas Zé, e eu fico por ali, querendo pescar um pouco mais da conversa. Agora é seu Zé quem fala:

“A casa onde ele viveu era vizinha à casa da minha sogra, uma casinha bem velhinha. Diz que por dentro ficou tudo crivado de bala. Aí minha sogra que falava, eu mesmo nunca cheguei a conhecer ele não.” Seu Dadá não responde, parece ruminar alguma coisa, e quando volta a falar retoma o assunto da dis-cussão anterior:

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“De tudo existe, de tudo existe. Uma pessoa dessa que faz mal ao próximo eu não sei o que espera da vida. Porque... vamos dizer, uma comparação. Eu sou rico, se essa menina me pede dinheiro emprestado, e eu não empresto. Eu não empresto, entendeu? Aí vem um marginal e mata pra dar aos pobres, eu fico até calado. Não é certo, né? Mas eu fico calado. Agora por malvadeza não, por crueldade... aí não.”

Nesse momento, Conceição também já se afastara e per-cebo que outras pessoas próximas prestam atenção ao que ele está dizendo, balançando positivamente a cabeça em sinal de concordância. Não tarda a que outro, seu Raimundo Paulino, aparentando mais idade que os dois primeiros, tome a palavra:

Nessa época que ele morreu não existia quase ladrão. Hoje é que tá infestado. Mas ele arrombava sim. Nesse tempo não existia supermercado, existia mercearia. Ele roubava as mercadorias das mercearias durante à noite e pegava um jipe, que nesse tempo não tinha táxi, era só jipe. Aí ele pegava e enchia aquele jipe de material roubado e o cara (motorista do jipe) ia deixar ele lá. Aí ele descarregava aquela tralha todinha e voltava mais ele e, no caminho, matava o motorista.25

Os outros, e eu, assentimos com a cabeça, mostrando inte-resse, e ele, então, prossegue:

Eu conheci o finado Baracho em vida. Eu morava ali no beco de Santo André, ali, e ele morava ali na 16. Fui criado ali. Eu conheci ele em vida, ele era um homem altão. Aí ali morava Cícero Palhaço, tinha uma vacaria que fazia frente com a 9. E o finado Baracho, ele era um homem alto, alvo, toda a vida ele gostou de uma roupa branca. Sempre ele vivia lá na casa de seu Chico, esse homem já morreu, que tinha uma mercearia que era de madrinha Anaíde. Ele era alto, franzino, gostava de usar uma roupa branca. Eu conheci ele...26

25 Raimundo Paulino, depoimento de novembro de 1999.26 Raimundo Paulino, depoimento de novembro de 1999.

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Todos parecem de fato encantados pelo depoimento de alguém que realmente parece ter conhecido o morto, alguém que parece ter viajado de outra época para poder dar ali seu testemunho, compartilhando suas reminiscências pessoais. Seu Raimundo prossegue no desfiar dessas memórias – e, nesta altura, já liguei o gravador, mesmo sem pedir consentimento, porque não encontrei brecha para interromper com naturalidade e não queria chamar atenção para mim e desviar involuntariamente o rumo da conversa. Avaliei que não haveria problema, já que a conversa se dava de modo público e o narrador parecia apreciar muito o fato de ter uma audiência. Ele de fato não tardou a notar meu gravador na minha mão e não me pareceu incomodado.

A derradeira pessoa que ele matou foi ali, onde era aquela cam-pina, que hoje em dia é pedra de tijolo, que ali era um sítio só de cajueiro. Ele matou, ele fez uma corrida com um guarda, um guarda de trânsito. Naquele tempo era uma roupa cáqui, não é? [seu Adailton e seu José concordam, outras pessoas também]. Aí o guarda estava de férias, assim saiu essa reportagem. Um assalto, aí matou. Eram cinco horas pra seis horas quando o jipe se atolou. Aquela área era só areia. Eu conheci aquilo tudinho. Eu conheci o finado Baracho em vida assim como tô vendo a senhora [para mim]. Era um homem alto, alvarinho. Ele matou aqui dois marinheiros, aqui onde é hoje em dia o negócio do cimento Nassau, que aquilo ali era só um terreno que era até um campo, e ali era uma cerca de dedinho. O senhor conheceu aquilo ali? [fala para seu Dadá]. Onde era o matadouro e hoje em dia é a Urbana?27

Todos nós, naquela rodinha próxima, escutávamos em silêncio e o silêncio se seguiu por uns instantes quando seu Raimundo se calou. Para provocá-lo a prosseguir na sua narrativa, comentei, em tom de dúvida: “então, ele matava mesmo... e agora ele faz milagres. Será?” Seu Raimundo entendeu rapidamente e

27 Raimundo Paulino, depoimento de novembro de 1999.

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não se fez de rogado: “Ah, isso aí é porque ele fez muito benefício! Como cidadão, tá entendendo? [faço que não com a cabeça]. Ele carregava, vamos dizer, comida. Ele carregava e dava à pobreza. Ele dava muita coisa à pobreza, aos pobres. Eu lembro!” Alguém perguntou: “dava mesmo?” Algumas vozes responderam junto com seu Dadá e seu Raimundo: “dava, dava sim”. Seu Raimundo ainda tinha mais a dizer sobre esse tópico:

Por isso que pode ser que ele... Ele não dava demonstração a ninguém que ele fazia isso, não dava demonstração a ninguém. No dia que atiraram nele foi numa base de seis horas. Quando ele foi preso na Casa de Detenção velha, que hoje em dia é ali junto da maternidade, ali, aquilo ali foi uma oportunidade que deram a ele pra matar ele. Não há cabimento um homem sair de uma cela algemado. Ele estava com algema! Quando arrodeou e entrou na casa de comadre (...), aí mataram ele, a polícia. Dentro de casa, na casa de finado Cícero, um que era palhaço, que morava assim de frente de onde ele morava.28

Ele faz uma pausa, parece cansado. Pensativo, conclui: “Ele fazia isso, fazia esse negócio pra socorrer a precisão dos pobres.” Antes que se vá ou que a conversa tome outro rumo, pergunto se, então, ele acredita que ele possa obrar milagres depois de morto: “Eu, eu mesmo... eu sou uma pessoa que eu digo a senhora, eu sou uma pessoa muito desacreditada. Mas acho que se a pessoa reza com fé, tem fé mesmo, pode ser. Tudo é a fé. Ele era uma pessoa boa, que fazia o bem aos pobres. Então, pode ser.”

Agradeço e, percebendo seu cansaço, e que desejava ir embora, guardo meu gravador na bolsa depois de desligá-lo, mas permaneço ainda por ali algum tempo, conversando e, principal-mente, escutando a conversa dos outros.

28 Raimundo Paulino, depoimento de novembro de 1999.

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Cemitério São Sebastião, Mossoró, Dia de Finados, 1999

“Eu acendo vela pra ele todo ano. Será feita a vontade do Senhor! Não é porque eu sou crente... sou serva de Deus, mas... Eu acredito nas coisas de Deus. Ninguém pode julgar ninguém. Só quem julga é Deus.”

Chamava-se Ana Lucia da Silva Peixoto, cearense, mas morava ali, em Mossoró. Perguntei se tinha religião. “Mas claro! Sou da Assembleia de Deus.”

“Pensei que o pessoal da Assembleia não concordasse com a devoção. Já vi aqui uns que não...”

Ela me interrompe, didática: “Acreditar mesmo eu acredito em Jesus! Mas ninguém pode julgar ninguém. Ele fez muita coisa errada, né? Diz que matou gente e tudo, no cangaço. Era os canga-ceiros. Agora o que eu digo é que ninguém pode falar nada. Sobre Deus, ninguém sabe da vontade Dele. Se Ele entender de dar a luz a ele pra ele ajudar o povo, Ele dá.”

“Muita gente me conta que conseguiu ser atendida depois de fazer promessa.”

“Minha filha, promessa é com Jesus. Primeiramente é Jesus que livra a gente, mas eu não posso julgar. Cada caso tem sua lei, não é? Eu sei lá, nem sei dizer a você. Mas eu não. Eu só faço promessa com Jesus.”

“Então, a senhora acende vela pra ele...” [ela havia ofertado algumas velas].

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“Só acendo porque... veja bem, ele não era crente, né? Não conhecia a Palavra. Se ele tivesse conhecido a Palavra de Deus, não tinha acontecido isso com ele. Se ele conhecesse a Palavra de Deus.”

Pausa. Espero. Ela continua:

“Eu acendo vela aqui, acolá, em todo canto. Isso aqui é uma obrigação. Então, eu venho, eu oro. Não rezo, eu oro. E deixo nas mãos do Senhor, que Ele é quem sabe. É a vontade Dele, não a minha. O poder de Deus é milagroso.”

Depois disso, ela segura no meu braço e diz que precisa ir.

Observo que há mais adultos jovens do que em qualquer outra ocasião em que eu tenha vindo observar os ritos. Em geral, eu já sabia que eles são mais apressados e pouco dispostos a parar para um dedinho de prosa. Três homens na casa dos vinte anos de idade se encontravam acocorados ali acendendo velas no chão, próximo ao túmulo. Esperei que se levantasse um deles e pedi para conversar um pouco, bloco e caneta nas mãos. Ele logo me pergunta se estou fazendo reportagem, digo que não. É só uma pesquisa para a universidade. Ele sorri, simpático. Então, pergunto se era a primeira vez que vinha acender velas para Jararaca. Ele faz que não com a cabeça:

“Todo ano tem que vir, né? É tradição, todo ano tem esse túmulo aí e nós vem. Finado Jararaca, foi morto pela polícia. Assassinado, a senhora sabe? Então. Aí a tradição é vir todo ano e a gente gosta, e aí vem.”

“Você já fez alguma promessa?”

“Promessa mesmo não, que assim.. eu nem acredito nesse negócio de santo, não, sabe? Eu venho mais pra contribuir mesmo, porque é um dever que nós tem de acender velas pros mortos nesse dia. É isso.”

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Quando chegou no “É isso” ele já retomava a caminhada para se afastar. Vi que não adiantaria insistir. Perguntei o nome dele e a idade: Junior, 26 anos. A conversa com Junior fez ecoar na minha cabeça memórias de conversas muito semelhantes, com homens na mesma faixa etária, que tive com maior frequência no cemitério Bom Pastor, junto ao túmulo de Baracho. Aliás, fez com que me lembrasse particularmente de uma conversa rápida como essa na qual o rapaz usou a expressão: “mataram o mano aí, por isso que todo ano a gente vem fazer homenagem, prestigiar. Porque foi morto pela polícia, foi a polícia que matou ele. Igual faz até hoje.” Embora rápida e única, porque o rapaz não quis nem me dizer seu nome e me deu logo as costas, essa conversa marcou na minha memória e me fez enxergar mais uma possibilidade de “leitura” dessas duas devoções e do quanto sua significação poderia variar para diferentes segmentos identitários.

Nessa tarde, encontrei uma diversidade de casos, que listarei resumidamente a seguir:

Maria José dos Santos, 67 anos, atribuiu a cura de seu marido, que havia perdido o movimento das pernas após um acidente, à promessa que fez a Jararaca. Desde que alcançou esse milagre, há sete anos, todos os anos vem visitar o túmulo no Dia de Finados.

Sebastião de Souza, 54 anos, me contou que foi um dia ao cemitério, um dia comum em que o cemitério estava vazio, para rezar no túmulo de Jararaca e pedir sua intervenção, pois estava perdendo a visão e, embora estivesse em tratamento médico há algum tempo, não lhe parecia haver melhora. Estava, me disse, desesperado. Foi um amigo seu que lhe falou sobre Jararaca e o incentivou a ir até lá. Foi, fez uma promessa e logo depois o médico conseguiu chegar ao diagnóstico correto e o encaminhou para um

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tratamento mais eficaz. Observo que seu Sebastião parecia ter boas condições de vida, inclusive mencionou que tinha plano de saúde privado, que havia consultado mais de um médico. No entanto, atribui o sucesso no tratamento a uma intervenção milagrosa. Um caso como esse é interessante para mostrar que o recurso ao milagre não é exclusivo dos despossuídos e desassistidos, que não tenham acesso a tratamento médico, exames e medicamentos. Hoje seu Sebastião enxerga perfeitamente bem e, como Dona Maria José, continua vindo todos os anos para agradecer a graça recebida.

Terezinha, 45 anos, não quis entrar em detalhes, mas me disse, muito alegre, que estava ali para pagar uma promessa, a primeira que havia feito “com ele”. Antes que eu perguntasse, ela se adiantou e me disse: “pedi um companheiro. Queria arrumar alguém, sair da solidão. Que não é fácil. Meus filhos tudo criado, que eu casei cedo, cedo. Depois o homem foi embora e fiquei com os meninos, que agora já são tudo homem feito. Eu não queria morrer sozinha, Deus me livre. Então, eu pedi assim, que ele me mandasse um homem bom, um companheiro. E consegui. Já tamo vivendo junto e tudo. Vim agradecer. Acendi um maço inteiro de vela, trouxe uma coroa. É milagroso mesmo!” Rindo muito, ela se despede e segue. Não estava com o companheiro. Será que ele sabe que ela fez promessa? Talvez não.

Também nesse dia escutei o inevitável “atirava a criança pro alto e aparava na ponta do facão”, entre muitos risos. As pessoas sentem prazer em exagerar essas histórias, em provocar efeitos de surpresa ou choque em quem as está escutando pela primeira vez. Além disso, outra quase invariante aconteceu pelo menos duas vezes naquela tarde: a manifestação hostil por parte de evan-gélicos. Registrei este comentário: “Vocês, ao invés de fazer uma promessa pra um Deus vivo... Deus tá vendo isso.” Uma mulher

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grisalha responde no mesmo volume alto de voz: “Não tinha casa pra morar, pedi um teto, ele me deu! E essa daqui ó [aponta para outra senhora, ao seu lado], o marido dela tava desenganado. Ele veio se arrastando até a cova e pediu. Porque os médicos tinham desenganado ele, que não tinha jeito. Foi cortado o pulmão dele, foi tirado, tudo retalhado no acidente. E não tinha mais remédio que desse jeito. Veio aqui e ficou bom! Não pode correr, que ele só tem um pulmão, mas ficou bom.”

A esta altura a pessoa que lançou aquela crítica já se afastou, não estava mais ali. E a senhora e a sua amiga voltaram a conversar uma com a outra do outro lado do túmulo, oposto ao lado em que eu me encontrava.

Cemitério Bom Pastor, Natal, Dia de Finados, 2000

A senhora se chamava Olívia, 54 anos. Esperei por uma brecha na conversa e perguntei o que ela pensava daquela discussão.

“Acredito, né? Porque tem pessoas que... que vive no mundo assim, não é? Porque não conhece Jesus, né, assim... Mas quem sabe se esse pessoal que vive no mundo assim, assaltando, roubando, tem arrependimento e se salva?”

“A senhora acha que Jararaca se arrependeu? De quê?”

“Ah, se arrependeu, né? Como que não ia se arrepender?”

“A senhora já foi atendida por ele ou conhece alguém que foi?”

“Uma mulher lá de Igapó. Logo quando ele foi enterrado aqui, fazia uns dois meses ou três. Fazia três meses. Ela morava em Igapó. Ela tinha uma criança com dois anos. A criança dela tava

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desenganada, mesmo no médico, que ia morrer. Ela veio aqui e fez promessa com ele. Dentro de oito dias a menina ficou boa. Ela veio aqui e pagou a promessa, trouxe até um potinho d’água. Eu morava aqui na Padre Raimundo, na Raimundo Figueira. Foi em 1961,29 na política de Aluísio, quando Aluísio foi ser governador. Eu ainda era solteira nessa época. Eu conheci ele. Ele tinha morto o esposo dela, que ele era motorista de jipe.”

“Ah, então, ela era uma das viúvas dos motoristas assassinados?”

“Uma das viúvas. Ela passou aqui quase meio-dia, aqui no cemitério. Tinha poucos túmulos. Aqui não tinha nem túmulo, era aquela coisinha aqui, outro acolá. Foi dos primeiros mesmo que se enterrou aqui. E eu achando que não era nem... que a cova dele era ali na entrada. Depois foi que compraram esse terreno aqui e colocaram os ossos dele.”

“Mas nessa época ainda não vinha esse monte de gente, não né? Foi só aquela mulher...”

“Vinha! Que aí o pessoal começaram fazer promessa e tão aí até hoje.”

Ela faz menção de ir embora, se despede e se afasta.

Observo a garota, adolescente, pele clara e cabelos longos, aparência de classe média, blusa com etiqueta Farm – na verdade, reparo que ela destoa bastante das demais pessoas aglomeradas ali, de modo geral. A maioria de pele mais escura, negros e pardos, vestidos com muita simplicidade, apenas um ou outro com aquela aparência de quem procurou se vestir melhor para uma ocasião importante. Mas ainda assim simples. Após haver deixado sobre o túmulo uma garrafa de água mineral cheia, ela se põe de cócoras

29 Observe que ela se equivocou por pouco quanto à data: Baracho morreu em 1962.

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para acender velas de uma caixa que trazia nas mãos e colocá-las na cavidade que existe para isso na traseira do túmulo (um queimador de velas). Essa cavidade tem por objetivo impedir que as chamas das velas sejam apagadas pelo vento ou chuva. Quando ela se levanta, percebo que está acompanhada de outra jovem semelhante a ela, que ficou um pouco afastada, junto a alameda central que leva ao portão, mas agora caminha ao seu encontro. Tenho a impressão de que ela quer sair logo dali, já fez o que tinha que fazer. Com meu bloco de notas em mãos e uma caneta, acelero o passo para conseguir alcançá-la. Pergunto, de supetão, se seria a primeira vez que vem visitar Baracho. Para que não se assuste e entenda que meu interesse é profissional, seguro ostensivamente meu bloco aberto e a caneta como quem está pronta para anotar a resposta que ela me dará. Vejo que funciona. Ela para, sorri educadamente, e me diz com muita polidez e deliberação:

“Todo ano eu venho sim, trago água pra ele. E tudo que eu quero eu consigo com ele.”

Mostro minha surpresa: “Todo ano? Desde quando você começou a vir?”

Ela: “Vixe! Eu tinha dez anos quando eu comecei a fazer coisa pra ele.”

“Como assim, fazer coisa?”

“Ah, eu... vamos dizer que eu acendo vela, trago essa água. Assim... Foi coisa de assunto meu mesmo, mas com quatro dias eu consegui. De quatro dias. Então, todo ano eu venho deixar água pra ele. E vela.”

“Posso perguntar que tipo de assunto que faz você pedir ajuda a ele?”

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“Estudo, pra ajudar minha mãe, que somos só eu e ela. E minha avó! Tudo que preciso eu peço pra ele, sempre me ajuda.”

“Alguém mais da sua família vem ou já veio antes de você?”

“Não, não, não... (rindo). Minha mãe nem sabe que eu venho. Foi coisa minha mesmo. Fiquei sabendo e aí eu vim.”

A outra moça já está fazendo sinais de impaciência porque quer sair logo dali. Pergunto quantos anos ela tem e me diz “15”. E vai embora junto com a outra.

Nessa tarde, encontrei Detinha (Odete) no cemitério. Ela que costumava ir mais pela manhã, havia me avisado que desta vez iria à tarde. Não tinha promessa a pagar, era só uma visita mesmo, para manter o costume: vinha visitar seu filho, sua mãe e, depois, Baracho. Ela relembrou a primeira promessa que fez a Baracho, enquanto eu aproveitava uma pausa do calor e do burburinho em torno do túmulo, que naquele ano estava cheio.

Eu fiz promessa porque eu morava numa rua ali e eu não tava gostando da moradia, né? Aí eu aperreei e falei ‘sabe de uma coisa, eu vou vender essa casa’. Aí meu esposo falou assim ‘quem quer comprar essa casa nessa rua estreita? Fosse ao menos uma rua larga.’ Eu fiquei assim... [balança a cabeça para os lados, como para indicar um estado de indecisão] Aí, quando foi um dia ‘ah, sabe de uma coisa, eu vou mudar porque eu tenho um terreno lá em Felipe Camarão. Eu quero construir uma casa, eu vou vender essa casa. Aí quando foi de noite o pessoal todo pegaram no sono, foram tudo dormir, aí eu fiz a promessa. Pra ele me arranjar um comprador pra comprar minha casa. Dentro de três dias chegou uma mulher de Macau e comprou minha casa! Aí eu vim... construí minha casa e paguei a promessa.30

“Pode me contar como foi essa promessa?”, eu pergunto.

30 Odete de Souza (Detinha), depoimento de novembro de 2000.

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“Eu fiz promessa pra limpar, tá certo, pra limpar, trazer uma garrafa d’água pra ele e plantar umas plantinha. Naquele tempo não era assim não”. Aponta para o túmulo, naquele momento pintado de azul e ladeado por um canteirinho de ervas, algumas floridas.”

“Isso foi em que ano?”

“81.”

“Ainda é a mesma casa, é aquela a que eu fui?”

“A mesma!”

Foi nessa visita à sua casa, em Felipe Camarão, bairro de Natal, a que fiz referência aí em cima, que ela me contou recordações sobre fatos que envolviam Baracho e que se misturavam às suas lembranças sobre seu pai e sua própria juventude. Transcrevo a seguir alguns trechos dessa conversa, que, com sua permissão, foi gravada:

Eu conheci ele. Eu era solteira e conheci ele. Ele era um homem mais bonito, parecia um homem de novela, ele. Muito lindo, ele era lindo. Muito bonito, ele. Meu pai tomava conta de um prédio na cidade, que botava... [procura na memória a palavra] botava... o prédio, ele dava pra aquela delegacia que tem na cidade. Na própria cidade. Aí tinha uma mangueira que dava muita manga. Aí ele tava preso, ele vinha pelo quintal da delegacia. Aí encontrava eu. De manhã eu ia lá em papai. Aí era ‘seu pai tá aí?’. A boca dele era toda cheia de ouro, aquela boca bonita! Aí eu ‘papai, que rapaz tão bonito é esse?’. ‘Minha filha, isso aí é o Baracho. Perigoso! Que ele que queimou aquele pessoal tudinho dos jipes’. Eu digo ‘e é?!’, mas que homem bonito, papai’. ‘Pois é, mas tá preso aí. Dá umas manguinha pra ele, tu sobe na escada e dá pra ele lá’. Eu apanhava umas manga, lavava e dava a ele por cima do muro. Subia na escada e dava por cima do muro.31

31 Odete de Souza (Detinha), entrevista realizada em 4 de dezembro de 1999.

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Não escondo minha surpresa. Comento que provavelmente deixavam ele sair para pegar um pouco de sol. Ela me interrompe depressa, para me corrigir, deixando claro que eu não entendi bem a situação: “Ele saía, ele saía. A hora que ele quisesse ele saía. O povo podia amarrar e fechar, ele abria e saía. Não precisava de chave. Ele invultava!”

Não entendi esta última palavra. Perguntei o que queria dizer e ela explicou: “Era assim... É uma oração que a pessoa reza. Antigamente, né, porque hoje em dia o pessoal não usa mais. Antes o pessoal rezava essa oração, aí se invultava. Aí se... vamos dizer, a pessoa estivesse no mato. Podia procurar pra cá, pra lá... [gesticula com os braços abertos], o cabra se escondia assim dentro de um pau. A pessoa passava pertinho e nem. Passava por cima e não encontrava.”

Pela minha expressão, ela vê que ainda não entendi muito bem o tal do invultar.

“A pessoa fica como um vulto, fica invisível.”

“Aaaaah!” Deixo transparecer meu assombro, mas não duvido dela. Só quero saber por que Baracho não se valeu disso para escapar da perseguição em que acabou morto. Ela explica:

“Não deu tempo ele rezar porque ele já vinha sendo perse-guido pra ser morto, pra ser preso, pegado novamente! Aí então quando ele passou a cerca do homem, enguiçou! Quando passou a cerca: arame tem cruz, né? Aí a reza dele não serviu.”

“Aí ele foi morto.”

“Foi! E fizeram a politicagem com ele, como te falei, andando das Rocas por todo canto, mostrando o corpo em cima do cami-nhão. Um corpão, que era um homem bonito! Saíram pela avenida Kennedy, por todo canto. Eu não fui não!”

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“E o povo parava pra olhar?”

“É, todo mundo queria ver, né? Que o pessoal não conhecia. Foi o carro de alto-falante falando ‘Aqui se encontra o corpo de Baracho, peça coisa que eu tô pagando!’ E Aluísio tocando, outros tocando, né? Meganha, tudo...”

“O pessoal do Aluísio.”

“Era tudo misturado! Era Aluísio com Djalma Marinho. Mas o caminhão era da política do Aluísio, de um político dele.”

Fico em silêncio, ela também. Até que recomeça:

“Ele morreu mais pra cá, num pé de cajueiro que tinha num cercado que um homem matava bode, matava porco, até num dia de sexta-feira. Quando completou dois meses que ele tinha morrido, aí foi o cinema. Passou os filme todinho nos cinema aqui de Natal. Até que tinha o cinema São Luís, o Rio Grande, o Rex.”

“Que filme?”

“Filme dele. Desde pequenininho com cinco anos de idade. Passou no cinema mesmo. Mostrou a vida dele, de pequenininho até na hora que ele morreu.”

“Hum, não sabia que havia um filme. E no filme aparecia aquilo do caminhão em que mostraram o corpo dele?”

“Não, não, essa parte não aparecia não. Só a morte mesmo. Eu assisti o filme no cinema São Luiz que tinha no Alecrim.”

“Como é que aparecia a morte dele, no filme?”

“Na hora que ele caiu foi o primeiro tiro e aí ‘valei-me, meu Senhor Jesus Cristo, me dás o perdão’”.

“No filme apareceu assim?”

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“Foi, não foi? Eu acho assim, menina, que a pessoa pode ser perverso, pode ser ruim como for, mas se na hora pedir a Jesus, e se arrependeu daquele mal todinho que fez, eu acho que Jesus dá o perdão. Eu acho! Maria Madalena não foi uma prostituta? E ele não deu o perdão só porque ela passou e enxugou o... lavou os pés de Nosso Senhor com as lágrimas e enxugou com os cabelos? Não é não?”

“Não sei... será? Tem muita gente que diz aqui mesmo que ele era criminoso, então não pode estar ajudando ninguém agora, que isso de milagre...”

“Isso aí é umas pessoas que não entende de nada! Não entende de nada. Quando a pessoa vai ser crente, aí não acredita mais em nada. Nada do catolicismo, entende? Sendo crente mesmo, de verdade, não acredita não.”

Cemitério São Sebastião, Mossoró, Dia de Finados, 2004

Eram três rapazes – mas quase escrevi “garotos”, porque é o que pareciam. No momento em que passavam próximos à aglome-ração formada em torno do túmulo de Jararaca, um deles gritou “isso é coisa do Diabo!” Os outros dois gargalharam e soltaram uivos, um deles repetiu “coisa do Diabo”. As pessoas voltaram o pescoço para olhar para eles, algumas já com expressão aborrecida.

“Santo! Ele não foi santo coisa nenhuma! Santo só foi Cristo!”, repetiu o primeiro que havia falado, claramente o líder do grupo.

Logo um homem, que aparentava ter uns trinta e poucos anos, vestido com apuro, camisa social branca, bem penteado, voz empostada de quem está habituado a falar para audiências, elevou a voz e respondeu:

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“Se ele morreu em Cristo Jesus, foi perdoado. Você não sabe se foi ou não. Ele pode ter se arrependido.”

O rapaz o encara:

“Eu não acredito! Não acredito mesmo! Eu acredito é no que tem na Bíblia. Deus existe, Cristo existe. Agora essa história de Maria, José, esses outros santos que inventou aí... (faz que não com a cabeça) Eu não acredito! Santo de barro não pode se mover!”

A voz grave do homem soa como um trovão enfurecido:

“Santo de barro!”

Um silêncio tenso e ele retoma a palavra:

“Qual a sua igreja?”

“Sou da Assembleia, mas antes fui um tempo da Igreja do Nazareno.”

“É seita, rapaz! É seita! Mas que igreja o quê! Igreja, Jesus só deixou uma, certo? Qual é a igreja que vai fazer dois mil anos? A igreja católica, certo? Certo? Certo? Entendeu?” A cada “certo” o volume de sua voz subia. Ele continua:

“Qual foi o santo que ressuscitou no terceiro dia?”

“Jesus Cristo!”

“Então, pronto!”

“Só!”

“E então? Então, fora a igreja católica, quantas seitas têm no mundo, me diga?”

“Várias!”

“47! Não é isso. 47 seitas, mas igreja só tem uma!”

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Uma senhora que se encontrava próxima ao homem inter-rompeu o bate-boca ao dizer:

“Eu acho que Jesus deu o perdão a ele!”

O homem a ignora e prossegue voltado para o grupo de rapazes:

“Mas nós vamos ressuscitar um dia, não é? Todos nós vamos ressuscitar um dia, certo? E a igreja que vai fazer dois mil anos é a nossa igreja católica, não é isso? Que era cristão antigamente, que se dizia. Em versículo 16 a 17...”. Interrompe, subitamente furioso, e grita:

“Olha, me respeite! Veado não, veado é seu pai! Diga aí quem é veado, diga aí. E o que é veado, o que é veado?”

Parece que um dos rapazes havia insultado o homem, o que não escutei nem vi porque minha atenção naquele momento estava voltada para ele, para observar sua expressão facial e corporal, enquanto ele falava como um pregador religioso. Os rapazes se afastam rapidamente, mas ainda olhando para trás e rindo muito. Já mais longe, gritam “veado!” O homem, de pele clara, está vermelho de raiva e exaltação.

“Que adianta ser crente com uma boca suja dessa?”

Ele passa um lenço no rosto, para enxugar o suor, e eu apro-veito essa pausa para me aproximar e perguntar: “então, o senhor é católico?”

“Católico carismático.”

E o senhor costuma vir aqui ao túmulo de Jararaca ou é a primeira vez?

“Não, não... Eu venho mais pra ver o pessoal, certo?”

A senhora que havia falado antes, interfere:

“Pois eu fiz uma promessa em 1980. Em três dias vi o resultado!”

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O homem olha para ela com atenção:

“Certo, viu o resultado. Muito bem!”

Ela: “Eu vim aqui, mandei pintar. Pintei até de amarelo. Botei um maço de vela.”

O homem, no entanto, ainda está com a cabeça no bate-boca anterior:

“Eles vêm pro cemitério pra ofender todo mundo, não é? Então, ele encontra uma pessoa que o ofende, não é isso?” Depois de uma pausa, parece que se lembra da senhora e volta a olhar para ela:

“Depende... Se a pessoa fez o mal, mas na hora de morrer se arrepende... Jesus, que é Jesus, não condenou Maria Madalena.”

A senhora:

“Exatamente!”

“‘Vais, anda, mas não olha para trás!’. Que se tivesse alguém sem pecado, que atirasse a primeira pedra. Ninguém! Quem que não tinha pecado, né?”

A senhora:

“Somos tudo pecador, quem matou, quem não matou. Somos tudo pecador.”

Quando me aproximei dele e da senhora, eu trazia um minigravador, uma caneta e um bloco de notas, porque vinha de outra conversa que havia pedido permissão para gravar. Notando o gravador, ele perguntou:

“A senhora é repórter?”

“Não, sou pesquisadora.”

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“Graças a Deus! Vou visitar meus irmãos ali, viu? Prazer em conhecer.” E foi se afastando rapidamente, como se tivesse se dado conta de alguma coisa que o tivesse perturbado. Ainda pude ouvi-lo dizer:

“Eu queria encontrar eles por aí! Aí sim!”

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Capítulo 3Mortos, costumes funerários e santificação dos túmulos

Capítulo 3 | Mortos, costumes funerários e santificação dos túmulos

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É impossível falar da história dos cemitérios sem falar dos costumes fúnebres. No Brasil, desde a colônia, foi instituído o sepultamento eclesiástico, que se manteve em vigor até meados do século XIX (RODRIGUES, 1997). Esse costume testemunhava aquela familiaridade entre vivos e mortos, aquele convívio próximo entre eles no mesmo espaço, que durante muito tempo teria sido característico do modo como a morte e os mortos foram percebidos e tratados nas sociedades ocidentais. Eles permaneciam entre os vivos no espaço sagrado da Igreja. Assim, quando os vivos caminhavam sobre seu solo sagrado para direcionar ao Céu suas preces, era sobre seus mortos familiares que pisavam, era ao lado deles que se ajoelhavam. Eles estavam sempre ali, de certo modo liminares, no Outro Mundo, porém ainda terrenos, mediadores, portanto, situados entre esses dois planos da existência humana. Haveria, nessa proximidade físico-espacial entre vivos e mortos, uma espécie de irmandade moral, o que corresponderia, no plano dos costumes funerários, ao que o historiador Philippe Ariès (2003) chamou “morte domesticada”, aquela visão da morte que a tomava como algo próximo e familiar, de forma alguma assustadora ou abjeta.

Porém, nem sempre a morte e os mortos teriam sido percebi-dos dessa forma. Peter Brown (1984) mostra como, na Antiguidade, ainda persistia um horror aos mortos e à morte, vista como degra-dação, espetáculo feio que deveria ser evitado e ocultado. Por isso, os

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cemitérios estavam fora da cidade, afastados do convívio humano. Os mortos teriam sido, então, alvo de repulsa e temor intensos. Somente no final desse período, essa situação viria a mudar, com o fortalecimento do Cristianismo e toda outra forma de pensar e sentir a morte e os mortos. Será nesse novo ambiente cristão que se enraizará a familiaridade com os mortos, que se tornará comum em toda a Europa, e no Brasil, até ser suplantada por novo horror, dessa vez higienista, ao morto e à morte, alguns séculos mais tarde.

Vários fatores teriam favorecido o desenvolvimento daquela atitude de aproximação e familiarização com os mortos. A neces-sidade de veneração dos túmulos para apaziguamento dos mortos, que assim desistiriam de retornar ao mundo dos vivos de forma ameaçadora – crença muito comum e duradoura no Ocidente –, teria sido uma delas e remeteria para a cultura pré-cristã. Essa veneração, todavia, ainda se encontrava tingida pelo medo e pelo asco, embora consistisse já numa aproximação. No entanto, esses túmulos ainda se encontravam naqueles cemitérios fora da cidade, à beira das estradas, isto é, eram mantidos à distância dos locais de residência, já então com base em crenças relativas ao perigo de poluição que esses mortos e seus fluidos poderiam representar – embora, claro, sem o discurso médico moderno, que só apareceria séculos mais tarde, para justificá-lo.

Não é difícil compreender isso: Mary Douglas (1976) já nos ensinou que poluição – e sua consequência lógica, a contamina-ção, bem como todos os estigmas que pode produzir – tende a remeter para concepções morais – e moralizadoras – ancoradas na ordem social, nas concepções e classificações relativas a certo/errado, bem/mal, puro/impuro, venham em qual embalagem vie-rem, fundamentadas em discurso médico-científico ou discurso religioso, por exemplo. A poluição, qualquer que seja, para essa abordagem simbólica proposta por Douglas, na verdade, sempre

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significaria outra coisa: se sujeira física, denotaria poluição moral ou inadequação social; se transgressão dos costumes estabelecidos, poderia ser traduzida como falha moral (ou pecado) e degradação material, decadência, podridão, e assim por diante. É o que faze-mos, inconscientemente, quando, por exemplo, para dizermos que algo nos parece suspeito, utilizamos a expressão “isso não me cheira bem” ou, para descrevermos alguém como mau caráter, o qualificamos de “sujo”. Essa reflexão será importante, mais adiante, neste trabalho, para pensarmos sobre a rejeição ao culto a Baracho e a Jararaca dentro do espaço dos cemitérios, sobretudo a rejeição à ostensividade das oferendas materiais que lhes são oferecidas, classificadas por funcionários dos cemitérios e por muitos de seus frequentadores como sujeira, o que, para além da manifesta racio-nalidade administrativa e sanitária, implica na realidade reprovação social e, particularmente, moral, que decorreria, a meu ver, do próprio estigma que pesaria sobre o morto e que, por extensão, contaminaria seu devoto e a própria devoção de que é objeto.

Parte dos cultos funerários que se desenvolveram naquele momento inicial do Cristianismo de que trata Peter Brown (1981) teve origem na necessidade de manter os mortos à distância, no sentido de apaziguá-los e saciá-los com oferendas, para que não insistissem no impossível, que se acreditava então ser seu mais fundo desejo: o retorno ao mundo dos vivos. São João Crisóstomo teria dito (ARIÈS, 2003): “Cuide de nunca erguer um túmulo dentro da cidade. Se alguém deixasse um cadáver no lugar em que dormes e comes, o que não farias? E, entretanto, deixas os cadáveres não onde dormes e comes, mas nos membros do Cristo”, isto é, no campo santo da igreja, já então proibido pelo direito canônico. Todavia, essa prática se disseminaria ainda mais e se tornaria dominante, trazendo para o interior das cidades – nas igrejas e em seu entorno imediato – os mortos que há muito haviam sido expulsos dela.

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Tudo teria começado quando, somado aos cultos funerários que se realizavam como veneração aos túmulos dos mortos, teria tido início na Europa o culto aos mártires, de origem africana, que, em si, nada tinha de cristão. Esses mártires – mortos em nome de sua fé, geralmente supliciados, vítimas de perseguições – eram então enterrados naqueles cemitérios fora das urbes, compartilhados por cristãos e pagãos, e atraíam uma veneração que teria se tornado cada vez mais intensa e, como resultado, investido seus túmulos de um inédito valor sagrado, excepcional, que viria a atrair para sua vizinhança sepulturas de pessoas comuns que acreditavam num suposto benefício dessa proximidade, tanto para seu cadáver como para seu espírito. Nesses cemitérios, logo se estabeleceriam basílicas, em torno das quais os cristãos agora desejavam ser enterrados. Ou seja, o cemitério, de área marginal excluída, poluente e perigosa, de ameaça para o corpo físico (fluidos que poderiam causar doença) e para o espírito (visão da morte como visão da decadência física, mortos que voltam e perseguem os vivos), teria passado a área atrativa, sacralizado pela presença em seu solo de homens santificados pela fé cristã. Ou seja, território santo, do qual a Igreja não poderia permanecer ausente.

Assim, se as basílicas foram instalar-se nos cemitérios fora da cidade, seguindo os passos da multiplicação das sepulturas dos cristãos, e, em seguida, atraindo novos residentes para seu entorno – verdadeiras cidades surgiram em torno dos cemitérios – evidentemente a relação com a necrópole se inverteu. Agora, todos queriam estar perto dos santos (mártires) e dessas novas basílicas. Assim, os vivos teriam ido morar junto aos mortos, e bairros e cidades inteiras teriam surgido próximos aos cemitérios. Logo, as fronteiras entre essa periferia – e seu próprio caráter periférico – e a cidade propriamente dita desapareceriam. Já não se sabia onde terminava uma e começava a outra. Os mortos teriam assim, por

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meio do prestígio dos mártires, retornado à proximidade dos vivos, e já não se poderia falar propriamente em “diferença entre igreja e cemitério” (ARIÈS, 2003, p. 40), ou entre pólis (cidade dos vivos) e necrópole (cidade dos mortos).

O poder atrativo do mártir estava vinculado a duas crenças: a da incorruptibilidade do corpo do santo, para a qual a inviolabi-lidade do túmulo seria um requisito – daí a necessidade do culto funerário, para zelar por sua manutenção; e a da correlata salvação da alma, associada à crença na ressurreição: o morto deveria dormir o sono da morte em sua sepultura sem ser perturbado por profanadores até que chegasse o dia de ressuscitar dos mortos, no Juízo Final. Estar próximo ao túmulo do mártir, e depois das igrejas, seria, nesse caso, uma forma de assegurar proteção espiritual, inclusive para o corpo (ou seja, para o túmulo). Essa proteção não dispensava os cuidados rituais funerários, mas deslocava a ênfase para a vizinhança e para a solidariedade espiritual entre os mortos que habitavam a necrópole, para as quais os cuidados exercidos pelos vivos seriam um complemento.

Os mortos já não causam repulsa: eles são agora sagra-dos. Qualquer morto pode estar dentre os salvos, dentre os que levantarão no dia da ressurreição. E os cemitérios tornaram-se, então, campo santo, e, a partir daí, teria mudado o sentido do culto funerário: tratava-se agora não de apaziguar uma ameaça ou proteger o túmulo, mas de veneração religiosa aos mortos, o que implicava orar por (e para) suas almas e, devido à crença na incorruptibilidade de seus corpos, proteger seus túmulos.

Na medida em que sofreram tal transformação social, os cemitérios passaram a ser objeto do interesse da Igreja, que logo se empenhou em assumir certo controle sobre eles. Tornara-se um direito ser enterrado em campo santo, mas não para todos:

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somente para quem se encontrasse em boa situação, segundo critérios cristãos. Quem morresse de maneira desonrosa, reprovável segundo seus preceitos, não poderia ter lugar no campo santo. Também não tardaria a que essa mesma Igreja se esforçasse para assumir controle do processo de surgimento de novos mártires, que se multiplicava desordenadamente. Com base nas referências de Ariès (2003) e Vauchez (1981), pode-se afirmar que um processo parece estar intrinsecamente vinculado ao outro.

É interessante, ainda, observar que, já então, os cemitérios, por santos que fossem, também se tornariam lugares públicos, apropriados por outros usos sociais, não funerários ou sagrados, por parte da população local. Segundo Ariès (2003, p. 42-4), até mais do que local de enterramento, os cemitérios passariam a ser vistos, a partir daí, e principalmente após a instalação neles da abadia, como asilos sob domínio eclesiástico. Estar ao pé da Igreja tinha lá suas vantagens fiscais e dominiais. E não era de modo algum novidade para esses homens medievais a concepção de uma cidade cercada por muros. Portanto, por que não construir casas dentro dos cemitérios também? Foi o que fizeram muitos, formando verdadeiros bairros dentro deles, em torno do centro social que se tornara a igreja, local de reunião, comércio, jogos, danças, tendas, ofertas de serviços (como o dos escribas públicos). Inquieta com essa situação, a Igreja logo tentaria disciplinar esses usos. Dançar dentro dos cemitérios e igrejas – e lembremos aqui o quanto era difícil diferenciá-los – passou a ser proibido sob pena de excomunhão (ARIÈS, 2003, p. 44) pelo concílio de Rouen, em 1231. Ao que parece, tal proibição pouco teria solucionado, pois, em 1405, outro concílio baixou o mesmo decreto, estendendo-o também aos jogos e exercício de qualquer atividade suspeita, como mímica, prestidigitação, música, charlatanismo.

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Já na segunda metade do século XVII, ainda não se havia encontrado um modo de disciplinar os usos dos espaços internos do cemitério e os enterramentos eram realizados em meio a toda sorte de atividades profanas. Aliás, os próprios mortos, em geral, a princípio mais bem aceitos por sua sacralidade a partir de sua assimilação aos santos mártires, eram agora já parte da paisagem diária, seus ossos frequentemente assomando à superfície do solo à vista de todos. Já não assustavam ninguém, com sua aparência descarnada ou semiputrefata (tornada visível quando se abria uma sepultura para receber novos cadáveres) ou seus odores fétidos. Haviam se tornado os mortos familiares que somente a medicalização da sociedade moderna viria novamente afastar do convívio dos vivos, processo que já começaria a ocorrer no final desse mesmo século XVII, mas que ainda levaria muito tempo para se consumar e tornar novamente, agora por novas razões, a morte interdita, outra vez objeto de relação socialmente prescrita de evitação por parte dos vivos.

Retornemos, então, ao Brasil, onde o enterramento eclesiás-tico tornou-se costume dominante no campo das práticas funerárias desde a Colônia, trazido pelos portugueses, estendendo-se às áreas contíguas às igrejas, capelas e confrarias religiosas. Dentro mesmo das igrejas somente uns poucos eram sepultados, geralmente religiosos e pessoas de posição social privilegiada. Mas esse tipo de enterramento nunca chegou a ser tão comum, na verdade, até pela exiguidade do espaço interno dos edifícios. Para escravos e homens livres pobres que não pertencessem às irmandades (que tinham suas próprias igrejas) e/ou não pudessem pagar por uma cova ou catacumba na igreja local (se ainda houvesse espaço dis-ponível nela); para justiçados, a quem era vedado o sepultamento em local sagrado; para indigentes e para não católicos, existiam os cemitérios comuns dentro da cidade. (RODRIGUES, 1997, p. 236).

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A morte poluente, os mortos abjetos

Mas, como então os mortos tornaram-se novamente tabu e objeto de repulsa por parte dos vivos? Como vimos, o processo de afastamento já se teria iniciado no final do século XVII. Não vamos aqui apresentar em detalhe a crônica dessa transformação de longa duração, que pode ser estudada nas inúmeras obras sobre cultos funerários referenciadas neste trabalho, e muitas mais, no campo da História, da Antropologia, da Arqueologia. Iremos direto ao século XIX, quando nascentes debates higienistas (RODRIGUES, 1997, p. 59, 66), resultado de um saber médico cada vez mais valo-rizado e difundido no Brasil, trouxeram a noção de insalubridade causada pela proximidade dos mortos. A partir daí, ela passaria a ser vista com suspeição, como fonte potencial de doenças. Ou seja, os mortos passaram a ser, ambiguamente, intercessores entre Céu e Terra que poderiam tornar-se, eles próprios, causa de morte. Toda uma sensibilidade nova teria surgido, então, acerca do cheiro dos corpos sepultados nas igrejas, cheiro que passaria a representar a própria morte e passaria a provocar, nos vivos, aversão e medo. A morte tornara-se rapidamente nefasta, e o morto, tabu. Era preciso, pois, afastar esse perigo, que nada tinha de sobrenatural. A alma do morto, no Céu, por pura e santa que fosse não seria capaz de purificar seu corpo putrefato na terra (e na Terra), percebido então como agente de contaminação (RODRIGUES, 1997, p. 68, 74ss). A partir daí, passaria a ser comum a atitude de evitação em relação aos mortos e aos espaços físicos ocupados por eles, sobretudo nas camadas mais educadas e medicalizadas, porém logo não apenas nelas, já que tais noções teriam se difundido rapidamente por todas as camadas sociais, com todas as possíveis distorções e exageros decorrentes disso.

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No entanto, os debates em torno desse processo teriam sido, segundo historiadores dos costumes funerários, bastante longos e controversos. Claro, um costume funerário tão antigo, e tão sistematicamente enraizado em um modo particular de ver a morte e os mortos, não desapareceria de uma hora para outra. Seria preciso aguardar até a metade daquele século para que, no Rio de Janeiro, por exemplo, com as graves consequências da febre amarela, os cadáveres passassem a ser definitivamente expulsos da igreja e mesmo da cidade, para irem ocupar os recém-criados cemitérios públicos, nas periferias distantes das áreas residenciais. Requerimentos e abaixo-assinados de moradores de algumas freguesias urbanas da Corte às autoridades municipais e imperiais teriam sido encaminhados no sentido de solicitar a interdição de alguns cemitérios considerados insalubres, o embargo das obras de construção de outros e o impedimento à edificação de cemitérios próximos às moradias. Nestes documentos, aparece-riam sedimentados alguns pontos das teses médicas. Em todos os casos, alegava-se o prejuízo que a proximidade com os referidos cemitérios causaria à salubridade das casas (RODRIGUES, 1997, p. 68). Nessa passagem, Cláudia Rodrigues refere-se aos protestos dos habitantes do Rio de Janeiro durante a primeira metade do século XIX, mas tais situações se repetiriam em outros estados e países, como parte de uma mudança em maior escala (REIS, 1991; ARIÈS, 2003, 1982) na maneira como os vivos de então pensavam e experimentavam sua relação com os mortos, que se manifestava, sobretudo, nos costumes funerários.

Nesse processo, a imprensa teria tido um papel funda-mental, pela veiculação das noções médicas que estabeleciam uma relação de causalidade entre a proximidade do cemitério, com seus miasmas poluentes, e a proliferação das epidemias nas cidades. Suas publicações teriam contribuído para o reforço

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daquela sensibilidade nova em relação aos maus odores emanados pelos cadáveres. Neles, as pessoas encontrariam a confirmação de suas suspeitas e uma espécie de legitimação do que, no boca a boca, poderia ser tomado ainda como medo infundado. Essa difusão por meio da imprensa teria, ainda, tornado acessível a um maior número de pessoas as novas noções sobre higiene sanitária urbana. A imprensa cumpriria aí aquele papel civilizador que parece frequentemente se atribuir como parte das camadas intelectualizadas da sociedade, que assumiria a incumbência moral de educar o restante da população, de modo a exercer uma mediação entre o saber acadêmico e o que hoje chamamos opinião pública. No Rio de Janeiro do século XIX, estudado por Cláudia Rodrigues, o clero teria repetido a postura (RODRIGUES, 1997, p. 131) já identificada por Philippe Ariès (2003, p. 50-2) na Europa, de apoio à criação dos cemitérios públicos ou, pelo menos, de preferência pelo enterramento nas áreas externas, contíguas às igrejas. Os enterros em seu interior teriam chegado mesmo, segundo a mesma fonte, a ser proibidos pelas autoridades eclesiais, com exceção do sepultamento de religiosos e alguns raros leigos.

Assim, para resumir, as novas ideias médicas e o impacto provocado pelos efeitos devastadores das epidemias levaram a que, finalmente, após muitos protestos populares, os cemitérios públicos fossem criados e estabelecidos como os únicos locais permitidos para sepultamentos. Essa obrigatoriedade implicava, é claro, a proibição do enterramento nas igrejas.

Em estudos como os de João José Reis (1991), sobre Salvador, Bahia, e Cláudia Rodrigues (1997), sobre o Rio de Janeiro, podemos encontrar um retrato acurado dos cultos funerários que teriam precedido essas mudanças e que se configuravam de acordo com aquilo que Michel Vovelle (1991, p. 353) chamou “morte barroca”:

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uma morte temida e que exigia grande preparação, como afirma Ariès (2003, 1982), mas também uma morte espetáculo, marcada por supervisibilidade, por uma ostentação de detalhes cerimoniais, por todo um rico aparato mortuário e excesso comportamental dos presentes; uma tonalidade festiva que caracterizava da aproximação à residência do morto (ou moribundo) ao cortejo que seguiria pelas ruas da cidade até o local do enterramento, no cemitério ou interior da igreja. João José Reis (1991) chega a dizer que “a morte é uma festa” para os baianos do século XIX – frase que dá título a seu livro sobre os costumes funerários na Salvador de então –, vendo nisso uma atualização do modelo da morte barroca pro-posto por Vovelle para a Europa. Só que aqui, como bem aponta Rodrigues (1997, p. 167), esse modelo europeu encontrou reforços nas tradições africanas, que também enfatizavam o cerimonial e implicavam toda uma elaboração simbólica da qual não estava ausente a mesma conotação festiva.

Para morrer a boa morte,32 era necessário então que fossem ministrados os sacramentos adequados ao moribundo antes que lhe subtraísse aos vivos a morte. Esta deveria encontrá-lo preparado, pronto para seguir a viagem com a confiança de haver recebido, de um servo privilegiado de Deus (um sacerdote), a benção divina. Eram três os sacramentos que deveriam preceder a boa morte: a penitência, a eucaristia e a extrema-unção, todas direcionadas

32 A ideia de boa morte aparece frequentemente nos estudos sobre costumes fune-rários (REIS, 1991; ARIÈS, 2003 [1975]), referindo-se a concepções acerca do que representaria, em cada contexto histórico-social, morrer do modo apropriado, honroso ou desejado. Seria morrer sozinho ou junto aos seus familiares mais próximos, dentro de casa, com privacidade, ou apresentar-se moribundo sob os olhos dos visitantes de sua comunidade, de tal forma que sua morte se tornaria um acontecimento gradual e compartilhado com eles? Seria morrer tranquilamente, na própria cama, ou morrer uma morte heroica no campo de batalha, como a do guerreiro descrito na Ilíada, de Homero, sobre o qual escreve Jean Pierre Vernant (1978), em seu belíssimo “A bela morte e o cadáver ultrajado”? Morte trágica que, em troca da abreviação da vida, oferece ao guerreiro a gloria póstuma como herói.

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para a situação fúnebre. A preparação para a morte, assim que essa passava a ser percebida como inevitável, incluía a presença do padre e não recebia dos presentes uma conotação dramática (ARIÈS, 2003 [1975], p. 32-3), tampouco qualquer revolta. Essa “morte domada”, como Ariès chama essa atitude socialmente prescrita diante da morte (inclusive da própria morte), se caracterizaria pela familia-ridade acentuada, mas também por uma espécie de indiferença, que excluiria qualquer sentimentalismo. O homem já sabe que irá extinguir-se um dia e para isso deve estar preparado do mesmo modo como se prepararia para outra situação. Isso implicaria também estar sempre em guarda para não ser colhido de surpresa pela morte repentina, pois isto sim seria catastrófico. Morrer de repente – de modo acidental ou vítima de uma violência – signifi-caria ser pego desprevenido, despreparado, sem haver recebido o tratamento ritual sacralizado, visto então como imprescindível para assegurar seu destino póstumo. Nesse sentido, outra catástrofe seria morrer só. Por isso, a presença ruidosa e festiva de todos em torno do moribundo, mais que apropriada, era intensamente desejada, pois sinalizava pertencimento social do moribundo e cuidado por parte de seus familiares e vizinhos, dispostos a assumirem ali o papel esperado deles para a realização correta de sua passagem. O moribundo/morto quer ser visível e, se não mais pode falar e cantar, quer que falem e cantem por ele durante sua passagem para o que se esperava que fosse o descanso, até a salvação definitiva.

O reconhecimento social da passagem daquele indivíduo à condição de morto criava, instantaneamente, para os que ficaram, uma série de obrigações, inclusive de novas prestações fúnebres. As prestações rituais antes e durante o enterro eram apenas as primeiras obrigações dos vivos perante aquele morto. Primeiro, os deveres formais: encomendação da alma (em casa ou na igreja) e missa de corpo presente, por conta do pároco, durante as quais

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se orava pela salvação da alma do morto. Depois, orações por sua alma na igreja ou junto a seu túmulo para diminuir suas penas no Purgatório e, assim, contribuir para sua salvação póstuma. Portanto, a morte não os desobrigava da solidariedade que os unira em vida ao morto e até poderia aproximá-los, posto que mesmo para alguém inicialmente não tão próximo se deveria prestar homenagens fúnebres. Era um dever moral. Essas obrigações, todavia, estavam longe de ser penosas: os velórios, os cortejos e os enterros eram ocasiões festivas não apenas por aquele aspecto barroco, mas também por serem ocasiões de encontros entre aqueles que há muito não se viam, por reunir parentes que moravam longe, juntar os vizinhos, propiciar a sociabilidade, as fofocas, os namoricos, enfim a convivência social (RODRIGUES, 1997, p. 218).

Então, também no caso brasileiro, as mudanças trazidas com o final dos enterramentos eclesiásticos teriam implicado novas atitudes frente à morte e às transformações nos rituais funerários. Os cortejos fúnebres, que haviam se tornado espetáculos públicos, teriam sido, a partir daí, abandonados. A preparação do moribundo tornara-se atividade privada, aos cuidados da família, e que só a ela dizia respeito. A encomendação da alma já não seria realizada nas igrejas, mas em casa. A morte voltara a ser feia e assustadora, após tanto tempo de convivência pacífica com os homens. Depois de todas as perdas e sofrimentos provocados pelas epidemias que grassavam nas cidades, depois das pestes na Europa noticiadas aqui, depois da febre amarela na Corte, já não havia mais motivos para receber a morte com festa. Ainda familiar, ela passara, todavia, a ser algo temido e a todo o custo evitado, associada ao sofrimento da doença, que, por sua vez, passou a ser sinônimo de contágio. Assim, de associação em associação, o doente contagioso tornou-se rapidamente o morto contagioso, que precisaria ser levado para bem longe e mantido lá.

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Portanto, estamos já aqui em território de certo modo familiar ao mundo contemporâneo, no qual a morte se encontra privatizada, e até escondida, bem como seus rituais. O mesmo se pode dizer da doença e dos sofrimentos que possa acarretar. Todos esses fenômenos se encontram confinados à esfera familiar e entregues às ações técnico-científicas de especialistas: médicos, legistas, agentes funerários, coveiros. Embora o tom festivo persista em tradições particulares, como no México, esses casos podem ser considerados exceções quando se toma certa normatividade pública que tem atravessado as sociedades ocidentais, de modo geral, embora esta não exclua, evidentemente, outras correntes de pensamento e ação simultâneas acerca da morte e dos funerais.

O objetivo desta seção foi oferecer um mínimo panorama histórico das ideias acerca das prestações rituais funerárias, posto que considero importante ter presente seu caráter histórico-cultural, uma vez que tendemos a naturalizar – isto é, tomar como óbvios – os costumes e as ideias com os quais nos encontramos familiarizados. E isto se dá ainda mais quando lidamos justamente com um tema de certo modo ainda tabu na nossa sociedade. Por mais que, hoje, em um mundo fortemente midiatizado, sob o império da espe-tacularização via satélite e da proliferação de imagens através de inúmeros canais simultâneos, sejamos diariamente confrontados por representações imagéticas sangrentas que revelam extermínio, corpos dilacerados, guerras, homicídios e muitas outras figurações da morte, de natureza documental ou ficcional, isso não desmente o tabu sobre ela enquanto virtualidade biográfica que se apresentará a cada indivíduo, em sua experiência pessoal. As perdas familiares continuam sendo vividas com pudor e discrição, entre as paredes do lar e do hospital, compatíveis com a caracterização proposta por Ariès (2003 [1975]), e a morte continua sendo vista como algo que só acarretaria tristeza e medo.

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Não devemos, todavia, tomar nenhum modelo normativo, por mais difundido que seja, como exclusivo, posto que ele jamais se mostra capaz de esgotar a complexidade da realidade social. É importante ter presente que, mesmo quando determinado modelo deixa de se apresentar dominante, seus aspectos ainda podem estar presentes nos modos de sentir, pensar e agir, e podem surgir, recom-binados, ressemantizados, sob formas híbridas ou subterrâneas que insistem em continuar, de algum modo, passando e se constituindo no tecido social. Além disso, em uma sociedade como a brasileira, a herança europeia, ocidentalizante, convive com inúmeras outras, formativas e constituintes do nosso denso tecido cultural.

Tendo presente tudo isso, talvez fique mais claro o porquê da importância de levarmos a sério as atenções dadas a episódios públicos como as mortes de Jararaca e Baracho, sua adjetivação como mortes violentas e seu impacto sobre as comunidades locais, bem como as reações afetivas e cognitivas das pessoas, que sobre elas sentem-se compelidas a intervir com ações como narrar e oferecer aos mortos prestações rituais funerárias, como devotar-se a cuidados com seus túmulos e seus destinos espirituais póstumos. É fácil subestimar, em uma realidade como a nossa, contemporâ-nea, caracterizada por certo individualismo, especialmente nos grandes centros urbanos, a importância de gestos como esses. Porém, eles evocam visões de mundo e valores que, assim como a própria santidade fundada no martírio, apresentam profundas raízes histórico-culturais e indicam sensibilidades reais, que não necessariamente podem ser reduzidas ao registro normativo ou aos padrões ocidentalizantes modernos estabelecidos por cima, e traduzidos em códigos cultos dos saberes técnico-científicos especializados. Para que possamos considerá-los em seu próprio direito, precisamos partir daquele exercício de desnaturalização proposto acima, tendo presentes na nossa memória o quanto podem

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variar as formas de compreensão e vivência subjetiva da morte e as relações sociais que podemos estabelecer com nossa própria finitude e com os mortos próximos, distantes ou públicos. Até que ponto a morte do outro nos concerne? O que tornaria pública uma morte ou um morto? E qual morto público nos concerne? O que tornaria violenta uma morte, tendo em conta seu contexto? Uma morte recebida como violenta nos anos 1920, 1960 ou hoje, 2019, seria assim qualificada pelos mesmos motivos, na mesma intensidade? São apenas perguntas sugeridas como pontos de partida para que tenhamos claro que qualquer interpretação sobre os mortos mila-grosos ou santos dos cemitérios precisa passar pela consideração da historicidade e da relatividade cultural da morte, dos mortos, dos próprios cemitérios como espaços sociais e artefatos culturais.

Santos feitos à mão para passar à ação: santos como fe(i)tiches

Elas têm sido objeto de vários estudos no campo da antropo-logia e ciências sociais, dentre os quais mencionarei apenas alguns, sem qualquer pretensão de exercício comparativo ou exaustividade, até porque essa literatura continua a crescer, acompanhando o aumento no número de ocorrências ou sua intensificação, veri-ficados em alguns países, como a Argentina (CAROZZI, 2006). Dentre esses, mostrou-se importante para este trabalho, além dos artigos de Carozzi (2006, 2005), obras como Frade (1987, 1984), Sáez (1996, 2009), Terrain (1995), Schneider (2001), Losonczy (2001), Martín (2006), Silva (2010). Incluo aqui, dentre as refe-rências importantes e inspiradoras deste livro, o livro de Carlos Alberto Steil (1996), sobre o santuário de Bom Jesus da Lapa, que foi uma das minhas primeiras fontes de aprendizado e reflexões

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sobre devoções populares; e o livro, relativamente recente, de Roberta Bivar Carneiro Campos (2013), adaptado de sua tese sobre a comunidade de penitentes Ave de Jesus. As referências a esses e a outros trabalhos de pesquisa no campo da religião e, em particular, das devoções e canonizações populares estarão disseminadas ao longo de todo o livro, nos contextos de discussão em que o diálogo com eles se mostre pertinente e possa contribuir para esclarecer os casos pesquisados aqui. Não realizei comparações sistemáticas entre casos oriundos de contextos nacionais diversos, pois tal possibilidade fugia muito ao escopo proposto por meu estudo.

Em um artigo de balanço dos estudos sobre canonizações populares (2006), a antropóloga Maria Julia Carozzi aponta para o fenômeno da proliferação crescente, em diferentes regiões da Argentina, de ritos de devoção aos mortos em acidente rodoviário, junto às cruzes nas beiras das rodovias, que assinalariam os locais onde teriam ocorrido, um costume tradicional naquele país. Nessas simples cruzes, que se tornam pequenos santuários, são deixados ex-votos e oferendas diversas como expressão de graças alcançadas ou pedidos dirigidos ao morto. Isso nos convida a refletir sobre as formas particulares que tal devoção aos mortos, que os coloca em posição de protetores e auxiliares dos vivos, podem assumir em diferentes sociedades nacionais e como podem estar ligadas a estruturas sociais e a configurações culturais diversas. Longe de diminuírem ou enfraquecerem, em geral, elas parecem continuar proliferando livremente, embora em cada lugar isso ocorra à sua própria maneira, moldada pela história e pela cultura locais.

Esses fenômenos são tão numerosos quanto são comuns, e continuam a se multiplicar nas sombras e distâncias, nos pequenos lugarejos rurais e nas grandes metrópoles, atrás dos muros dos cemitérios humildes ou dos mais destacados, longe dos holofotes

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midiáticos ou sob seu escrutínio. Basta abrir os olhos para eles e se poderá encontrá-los em toda parte, inclusive nas metrópoles modernas onde se poderia talvez supor que, a princípio, eles já não existissem, superados pela modernidade secularizante. No entanto, quando se abre o canal da atenção para eles, já não se pode deixar de escutar o “rumor de anjos” (BERGER, 1996) sob a algaravia urbana. Em torno de nós, no Brasil, em qualquer de suas regiões – e em muitos outros países, como Argentina, Colômbia, França, Itália, Espanha, Estados Unidos – não há um lugarejo, por mais modesto, que não tenha seu santo local, seu morto milagroso pau para toda obra, que não necessita de – e não requer necessariamente – reconhecimento oficial de qualquer autoridade, eclesiástica ou não, para existir e persistir como tal, cumprindo ali seu papel, no quadro das relações socialmente significativas naquele local. Há um modesto Juazeiro33 em cada cemitério de bairro, em cada cruz, em cada pequeno santuário. A diferença entre o culto ao morto de ampla visibilidade nacional ou internacional (como Carlos Gardel, na Argentina) e o culto a um personagem local, nada espetacular para a percepção de hoje, como João Baracho, parece ser antes de grau e alcance do que de natureza.

No entanto, por outro lado, essa diferença existe e pode exercer efeitos significativos sobre o exercício prático das devoções e sobre como as pessoas se sentem sobre elas, inclusive os próprios devotos. Há nessas pequenas canonizações e devoções funerárias locais, deixadas a si mesmas, nas sombras do desconhecimento público ou do desinteresse das mídias, um maior espaço de indeterminação, que tende a ser ocupado ativamente por seus devotos. Eles constroem seus mortos significativos à sua maneira, e devotam-se a essa empreitada por seus próprios motivos. Porém, decerto, mesmo que a devoção

33 Referência à devoção popular a Padre Cícero, no Juazeiro do Norte, estado do Ceará, no Brasil.

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se manifeste como prática individual, na aparência, esse processo não se dá em um vazio social, muito pelo contrário. Ir ou não ir ao cortejo promovido por um político que irá expor o corpo-troféu de um criminoso, ir ou não ir ao seu enterro não são escolhas inó-cuas nem refletem apenas uma opinião individual, mas valores e representações socialmente produzidos e compartilhados em dado momento. Devotar-se ao morto, por escolha ou por haver recebido alguma espécie de revelação religiosa (por meio de um sonho, por exemplo), implica estar, de algum modo, aberto e disposto a essa possibilidade, a esse tipo de envolvimento e ação. Pode envolver tam-bém compromissos (ou conflitos) familiares, como na transmissão do voto religioso contraído com o morto-santo de uma avó para uma neta (que pode desejá-lo e aceitá-lo ou não), ou, mais estrutural e difusamente, a ação, sobre os indivíduos, de configurações religiosas complexas presentes, em diversos planos e de diversos modos, no tecido social – como, por exemplo, aquilo que Otávio Velho (1995) chamou “cultura bíblica”. Para não falar no próprio caráter social da linguagem, por meio da qual se faz a transmissão de notícias, depoimentos, testemunhos de milagres, causos.

Jararaca e Baracho, em Mossoró e Natal, não são, do ponto de vista de seus devotos e frequentadores, necessariamente referi-dos, nas falas cotidianas, pelo uso da palavra “santo”. No entanto, podem receber deles tratamento análogo àquele conferido a santos católicos, em muitos aspectos, como veremos no decorrer deste livro. Eles são o que Cáscia Frade chamou, em seu estudo pioneiro sobre a santificação da menina Odetinha em um cemitério no Rio de Janeiro, “santos de casa” (FRADE, 1987, 1984), e eu chamo aqui santos artesanais, feitos “à mão”, sob medida para as demandas e interpretações da comunidade local sobre sua história, nem por isso livre de disputas de versões e contradições.

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A ideia de comunidade aqui não deve ser tomada como portadora de qualquer homogeneidade e substancialidade; uso-a apenas para ressaltar a escala em princípio local desses cultos, o que, por sua vez, não significa que suas repercussões não possam ultrapassá-la, inclusive em suas implicações imprevistas. A devo-ção a Jararaca atrai devotos, frequentadores e curiosos de cidades vizinhas, ou mesmo esporadicamente turistas distantes, mas ela se constituiu e se reproduz principalmente por meio de dinâmicas significativas locais/regionais. O que quero ressaltar é que, em certa medida, a história daquele morto e de sua morte são percebidas pelos devotos como parte da sua história e/ou da história da sua cidade, ou, pelo menos, de parte dela, na qual se incluem. A história dele é sua história, se não diretamente, porque foi a história de sua família, vizinhos, parte da história de sua cidade ou bairro.34 Sua tragédia, portanto, é sempre, em algum grau, também a tragédia do devoto, de seu parente, seu vizinho, na medida em que, parte da história local, de uma realidade socialmente compartilhada, pertence não apenas à biografia daquele indivíduo morto e sepultado ali, mas de todos os que o testemunharam direta ou indiretamente e das dinâmicas sociais que os encompassam a todos. Elaborar sua memória seria, então, um modo de elaborar a própria memória e a própria identidade, a própria compreensão dessas dinâmicas.

O mausoléu do prefeito Rodolpho Fernandes permanecia pouco frequentado mesmo durante os dias festivos de Finados, tornando evidente o contraste com a aglomeração popular em torno do túmulo de José Leite de Santana, o cangaceiro Jararaca. Talvez possamos dizer que, se parte dos devotos, e não somente

34 No tocante a Jararaca, a referência é a Mossoró. Porém, em relação a Baracho, percebo que, em muitos casos, as pessoas fazem referência ao “bairro do Carrasco” (atual Dix-Sept Rosado) e a outros marcos locais, como o cajueiro e o matadouro, situado onde hoje funciona a companhia de limpeza urbana.

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eles, vê Jararaca como mártir, vítima do abuso das autoridades, não vê, por isso mesmo, a autoridade, ali encarnada pelo prefeito, como heroica. Não se trata realmente dos indivíduos Rodolpho Fernandes e José Leite de Santana, o Jararaca, mas das posições respectivas representadas por cada um em um quadro social hie-rárquico, no qual abusos de poder contra os subalternos continuam acontecendo até hoje. Até porque, se não fosse significativa, a história da morte de Jararaca (e de Baracho) já não mobilizaria mais ninguém. Que o repúdio aos abusos dos superiores sobre pessoas em posição subalterna se manifeste dessa maneira é somente uma dentre outras possibilidades de manifestação, e não exclui outras. Podemos questionar sua eficácia política, mas não podemos ignorar sua significação e as ações motivadas por ela, quaisquer que sejam os canais por meio dos quais venha a se exprimir e se manifestar, dentre aqueles possíveis a essas pessoas.

O Dia de Finados celebra tradicionalmente os mortos priva-dos (ARIÈS, 2003 [1975]), tipicamente parentes falecidos e amigos próximos, o que pode ser estendido a membros prestigiados da própria comunidade, justamente o que João Baracho e José Leite de Santana, o cangaceiro Jararaca, não são, por motivos que explicarei no decorrer deste livro. Eles não são normalmente percebidos por seus devotos como membros de suas comunidades ou das localidades nas quais se encontram sepultados, isto é, alguém que ali apresentasse laços sociais fortes, à época de sua morte ou ainda hoje, embora isso se aplique de forma atenuada a Baracho (e possa, em alguns contextos particulares, não se aplicar). Ambos parecem ser percebidos como forasteiros. Esse status mostra-se mais fortemente marcado no caso de Jararaca, que foi categorizado pela crônica local como invasor, por emergir para a opinião pública a partir do episódio histórico da invasão a Mossoró pelo bando de Lampião. Já João Baracho teria sido descrito pela imprensa,

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a partir de depoimentos de seus vizinhos, como imigrante, sem parentes no local, o mesmo bairro Bom Pastor onde se encontra sepultado. Essa ausência da família ou de outros laços fortes que pudessem ser tomados pela opinião pública como referência no local da morte e do sepultamento parece contribuir para a repre-sentação de suas vidas como vidas sofridas e de suas mortes como ainda mais trágicas do que se seriam se apenas lhes caracterizasse a violência que as acarretou. Aliás, essa violência surge difusa, disseminada entre a vida de bandido, já de certo modo pública, e a morte em condições de excepcional brutalidade, que os lançaria definitivamente no domínio do interesse público, tornados objetos de narrativas diversas e de cuidados rituais póstumos.

Jararaca e Baracho são, por definição, e guardadas as devidas proporções quanto à escala de prestígio e visibilidade, que eviden-temente varia ao longo do tempo, como outras pessoas públicas, do mundo artístico, dos esportes, da política ou das páginas poli-ciais, como eles. Ou mesmo mortos celebrizados pelas próprias circunstâncias de sua morte e o fato de estas terem se tornado notícia em sua época, como foi o caso da menina Tania,35 no Rio de Janeiro, assassinada pela amante de seu pai, como vingança. O crime celebrizou a criminosa, que recebeu a alcunha de Fera da Penha, e teve também como efeito a canonização popular da

35 Tania Maria Coelho Araújo foi assassinada em 1960, quando tinha quatro anos de idade. Tânia foi alvejada com um tiro na cabeça e teve seu corpo incendiado em um terreno atrás de um matadouro na Penha, subúrbio do Rio de Janeiro. Nesse local, logo se estabeleceu um pequeno santuário onde os visitantes oravam pela alma da menina e pediam-lhe graças. Versões da história desse crime circularam em jornais, revistas e programas de rádio populares na época. Em 2003, a Rede Globo apresentou uma edição especial do programa policial Linha Direta sobre ele. O site da OAB-RJ, Ordem dos Advogados do Brasil, contém um resumo dos acontecimentos desse caso: http://www.oab-rj.com.br/content.asp?cc=90&id=606. Há também uma matéria da revista O Cruzeiro de 30 de julho de 1960, no site Memória Viva: http://www.memoriaviva.digi.com.br/ocruzeiro/30071960/300760_1.htm.

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menina, que chegou a ser cultuada durante algum tempo (e talvez o seja até hoje). Enquanto mortos de interesse público, eles integram uma categoria cultuada em cemitérios no mundo todo (MARTOS, 2014; CAROZZI, 2006; SÁEZ, 1996; TERRAIN, 1995, entre outros). Alguns desses mortos são investidos, como é o caso Jararaca e Baracho, de poderes taumatúrgicos e miraculosos, passíveis de receber devoção análoga em muitos aspectos àquela prestada aos santos católicos, bem como de prestações funerárias na data de celebração dos mortos, que são, via de regra, prestadas somente aos entes queridos e membros da própria família.

O Dia de Finados, 2 de novembro, foi instituído no final do século X pelo abade Odilon (VAUCHEZ, 1995, p. 24, 38), e o Dia de Todos os Santos, um século antes, para homenagear a todos os mortos cristãos, atendendo a uma demanda da piedade popular, já então inclinada a devotar-se à salvação das almas dos defuntos. E, ainda, para neutralizar as práticas funerárias pagãs de culto aos mortos, que permaneciam disseminadas entre o povo. Todavia, a despeito do fortalecimento do culto dos santos (nesse sentido, todos os mortos cristãos piedosos), como protetores dos vivos e intercessores junto a Deus, a celebração da Festa de Todos os Santos jamais chegaria a alcançar junto à população, na Europa, a mesma popularidade que viria a ter, mais tarde, o Dia de Finados.

Em seu livro The Cult of Saints, o historiador Peter Brown (1981) cunhou a expressão “very special dead”, mortos muito especiais, para referir-se àqueles que, nos cemitérios, tornavam-se objetos de culto. O culto aos mortos cristãos logo se tornaria culto aos mártires, cristãos perseguidos e mortos em nome de sua fé. O martírio irá, então, diferenciar os que, dentre os cristãos, teriam ido aos extremos, capazes de suportar tudo pela defesa e preservação de sua fé, jamais abdicando dela, nem para salvar sua vida. Se já

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era prática rezar no túmulo dos mortos cristãos por se acreditar que eles, salvos junto a Deus, poderiam enviar proteção para os vivos e interceder por eles, a frequência aos túmulos viria a se intensificar e ganhar novas conotações com a emergência do culto aos mártires e suas relíquias, fundando uma santificação em um sentido mais próximo daquele que veio a ser posteriormente fixado pelos regimes modernos de canonização católicos.36 Os mártires podem ser considerados os primeiros santos do cristianismo, os primeiros cristãos a receberem esse tipo singularizante de devoção póstuma, ao contrário da devoção a Todos os Santos, que tendia a ser genérica, acessível a qualquer cristão que tivesse vivido piedosa-mente e morrido em conformidade com a fé da comunidade cristã.

Embora se tratem de fenômenos bastante distintos e tão distantes no tempo e no espaço, as duas canonizações populares que são objeto desta pesquisa, e seus mortos muito especiais, guardam semelhanças com aqueles primeiros mártires, sendo percebidos e interpretados através da densa malha cultural que também é, no Brasil, constituída por elementos cristãos e, particularmente, cató-licos, marcadamente na região Nordeste, manifestos, por exemplo, na chamada “cultura bíblica” (VELHO, 1995; CAMPOS, 2013). Esse termo se refere ao repertório simbólico de ideias, categorias, imagens e valores oriundos do Livro sagrado e suas reverberações na cultura brasileira e ocidental em geral, que podem ser obser-vadas na arte, na literatura, na moral, nos costumes cotidianos, e que oferecem chaves interpretativas para a compreensão das experiências pessoais e coletivas, desde as cotidianas até as mais extraordinárias, como o sofrimento, a perda, a morte, as tragé-dias. Conforme observa o antropólogo Otávio Velho (1995), essa “cultura bíblica” não seria passível de ser confinada ao campo

36 Santificações e santidades não são, todavia, fenômenos exclusivamente cristãos, estando presentes em outras tradições religiosas, como a muçulmana (JAMOUS, 1995), as quais podem apresentar traços comuns com a tradição cristã.

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religioso, mas antes operaria como uma matriz cultural presente e difusa na nossa sociedade, no cotidiano de todos, adeptos de religião cristão ou não. Representações e símbolos como a Paixão de Cristo, o sofrimento materno de Maria, a associação de pureza à virgindade, a Ressurreição, o Perdão divino a todos os humanos, trazendo redenção, dentre muitos outros, estão presentes em pinturas, na literatura, na filosofia; nas ideias que alimentamos sobre comunidade, moralidade, maternidade, sofrimento, redenção, transcendência, dentre tantas outras coisas.

A analogia evidente das canonizações populares com o culto aos santos católicos não deve levar à precipitada conclusão de que exista aí uma aderência exclusiva ao catolicismo por parte de devotos e frequentadores das devoções a Baracho e a Jararaca. E, mesmo quando tal adesão em algum grau existe, ela não exclui nem se opõe necessariamente à aderência simultânea ou alternada a outros per-tencimentos e compromissos religiosos, bem como a outras chaves interpretativas. Encontrei pessoas que se diziam ateias e agnósticas acendendo velas para o morto milagroso no Dia de Finados, assim como encontrei protestantes, inclusive pentecostais, que afirmavam orar no túmulo em nome de um parente não protestante enfermo, que se encontraria impossibilitado de ali comparecer, ou apenas como parte das homenagens devidas aos mortos, ou seja, como um culto funerário que não envolveria promessas, votos nem qualquer pedido de intercessão dirigido àquele morto. A devoção pelos mortos, e o cuidado devido a eles, é, como vimos, uma tradição de longa história no Ocidente. Como diz Phillipe Ariès (2003), é das raras devoções de origem religiosa capaz de resistir mesmo em um universo social predominantemente secular, como o da França moderna. Ateus e agnósticos também levam flores e acendem velas para suas mães, então também podem fazer isso por um morto público que admirem ou julguem que o mereça.

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Outro tema que é importante endereçar é a associação da participação ou da adesão a devoções como essas à ignorância e à irracionalidade. A adesão a devoções não institucionalizadas ou reconhecidas formalmente por autoridades eclesiásticas não é necessariamente característica de camadas pouco letradas da população, que por ausência de conhecimento formal aderisse mais facilmente a superstições ou se tornasse mais propensa a acreditar em crenças sem fundamento racional. Essas associações, de crenças e rituais populares à ignorância, logo à superstição – termo sempre pejorativo –, atesta não apenas um preconceito banal contra devotos e frequentadores desse tipo de culto – ou de toda prática religiosa – mas, principalmente, certo modo de pensar sobre racionalidade, crença e regimes de produção da verdade, que já foi objeto da reflexão de muitos pensadores, dentre eles o sociólogo Bruno Latour e o historiador Paul Veyne. Mais radical que este último, Latour abre o primeiro capítulo de Reflexão sobre o Culto Moderno dos Deuses Fe(i)tiches (2002, p. 15) com as seguintes afirmações:

A crença não é um estado mental, mas um efeito das relações entre os povos; sabe-se disso desde Montaigne. O visitante sabe, o visitado acredita ou, ao contrário, o visitante sabia, o visitado o faz compreender que ele acreditava saber. Apliquemos este princípio ao caso dos modernos. Por todos os lugares onde lançam âncora, estabelecem fetiches, isto é, os modernos veem, em todos os povos que encontram, adoradores de objetos que não são nada. Como têm que explicar a si próprios a bizarria desta adoração, onde nada de objetivo pode ser percebido, eles supõem, entre os selvagens, um estado mental que remeteria ao que é interno e não ao que é externo. À medida em que a frente de colonização avançava, o mundo se povoava de crentes. É moderno aquele que acredita que os outros acreditam. (LATOUR, 2002, p. 15).

O mesmo se poderia dizer acerca da projeção sobre as camadas populares de atributos como ingenuidade ou irraciona-lidade, que repetiria a mesma divisão do trabalho que reserva às

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camadas superiores letradas o conhecimento (científico) e a razão, enquanto aos demais atribui no máximo a capacidade de acreditar em algo. Mover-se pela fé pode ser entendido, nos termos do autor, como “passar à ação” em nome do fe(i)tiche (LATOUR, 2002, p. 45-6), termo sugerido por Latour para nomear os recursos que formulamos para lidar com “a própria existência prática” (p. 48), recusando a divisão entre fato – “realidade objetiva”, exterior – e fetiche – fruto da imaginação, da ansiedade, do devaneio humanos, enfim, constructo psicológico ou mental.

Quando analisamos fenômenos que envolvem experiências vistas, segundo as concepções modernas que nos formaram, como experiências subjetivas e, mais ainda, “simbólicas”, tenderíamos, segundo Latour (2002), a nos comportar como tradutores, capazes de interpretar tais fenômenos e revelar seu sentido oculto mais profundo, ou seja, seu verdadeiro sentido, vertendo-o em um formato objetivo e racional. Ou, como um Evans-Pritchard, tradutor dos Azande para o leitor ou leitora europeu/europeia, assumimos a tarefa de provar, com bons argumentos e dados empíricos, que por trás de práticas aparentemente irracionais, se cavarmos bastante, encontraremos significados perfeitamente lógicos.

Entidades como os santos dos cemitérios, produtos das canonizações populares, brotam do chão fecundo da atividade e criatividade humanas, semeados por pessoas que nunca deixaram de ver os mortos como agentes sociais capazes de agir na e sobre a sociedade, sobre sua comunidade, cidade ou bairro, sobre suas vidas e diferentes planos de suas realidades, das mais íntimas – às mais públicas. Agentes que agem sobre os demais e que também são objeto de suas ações, como é o caso dos rituais funerários.

Os santos dos cemitérios são entidades reais na economia interna da vida dos devotos, e além dela. Entre santo e devotos

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existe uma dinâmica de mútua constituição e reforço, em sua própria origem, não apenas em sua manutenção. Não é apenas que, ao modo de Durkheim (1991),37 o ritual seja necessário para revivescer periodicamente a crença, mas que, sendo percebida pelo viés existencial da agência, enquanto pensamento, discurso e ação, ela se tornaria indissociável do dinamismo da própria vida. Foram ações que estabeleceram ali, no terreno potencial e propício, um conjunto de práticas que passaria a configurar uma nova cano-nização dentro do cemitério, correspondente ao reconhecimento de uma força que já agia sobre esses agentes quando eles, por sua vez, agiram sobre ela. Sua conformação e implicação são mútuas.

Compreender os santos dos cemitérios como fe(i)tiches, ao modo latouriano, implicaria aceitá-los como agentes em uma cadeia que incluiria também seus devotos e seus detratores, somente para citar duas categorias, e, sobretudo, recusar a ideia de que seriam válvulas de escape ou superstições, meras projeções subjetivas ou constructos mentais espertos, porém em si mesmos inócuos. Mesmo os seres da ficção – digamos, Harry Potter ou Jane Eyre – respiram por si com a vida que lhes foi soprada, pouco importa se pelo escritor ou por Deus, e, em sua respiração, supera quem lhes concebeu e trilha sua própria existência, soprando vida em todos aqueles que com eles se agenciam no decorrer dela. Assim, não se trataria de acreditar em Baracho ou nos milagres de Jararaca, mas de compreender que eles são parte da realidade dentro da qual vivemos, e se pode interagir com – e sobre – eles ou não; e se pode ser objeto/paciente, direta ou indiretamente, por sua iniciativa ou de outrem, de sua ação e efeitos, ou não, quer isso desejado por nós, quer não seja. Podemos alimentar isso ou nos afastar, mas não podemos continuar pensando que são apenas projeções, superstições ou fantasias inócuas.

37 Ver especialmente a Introdução e o capítulo “O culto positivo”.

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No entanto, é importante, para a compreensão da confi-guração e modos de operação dessas devoções, considerar que elas se manifestam em uma sociedade atravessada também, e constituída em grande parte, pela visão de mundo moderna que nos quer, a todos, racionais, e que enxerga o mundo povoado por seres encantados que pertenceriam ao plano das crenças (religiosas, espiritualistas, esotéricas etc.), ora como resíduo pré-moderno a ser eliminado pelo progresso e o letramento, por uns, ora como reserva estético-moral oriunda da autenticidade da cultura popular, por outros, dentre outras possíveis leituras entre esses dois polos extremos (se supormos algo como uma gradação).

As devoções a Jararaca e Baracho, e a outras canonizações populares semelhantes, mostram-se altamente controversas, e, mesmo no cenário dos cultos e das práticas devocionais, elas não se constituem como realidade homogênea em qualquer de seus aspectos. Elas sofrem diversos tipos de rejeições e críticas. Do ponto de vista religioso, há desde a rejeição ético-moral que os situa por princípio, devido ao que se sabe de suas vidas, no domínio do crime e do Mal, até a rejeição que se apresenta em nome da incompatibilidade religiosa, da coerência com a própria crença, excluindo do campo da religião verdadeira e respeitável essas devoções. Esta última foi mais comum entre adeptos do pentecostalismo protestante. Do ponto de vista laico, as devoções são reprovadas geralmente como superstição popular, consequência da desinformação ou da ingenuidade do povo. Ou, ainda, como fruto do desamparo social, que levaria as pessoas a recorrerem à busca de soluções miraculosas para seus problemas, ora nas igrejas tradicionais, ora nos milagreiros populares de todo tipo. Ou seja, ao modo malinowskiano (MALINOWSKI, 1988) de reduzir a religião à resposta para as aflições individuais.

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Pude testemunhar atitudes de repúdio aos devotos e visi-tantes dos túmulos de Jararaca e de Baracho, em alguns casos chegando a conflito recíproco, em outros, mais comuns, a agressões unilaterais de passantes, que lançavam provocações e insultos verbais, algumas vezes se aproximando e insistindo um pouco mais na hostilidade. Voltarei a esse assunto na última seção do Capítulo 4. Os devotos, principalmente os mais antigos e assíduos, não ignoram tal rejeição social, e suas formas de lidar com ela podem variar. O importante neste momento é frisar que essa rejeição produz efeitos sobre a relação dos devotos com o culto e com outros devotos, e sobre as dinâmicas sociais de produção e reprodução do próprio culto, como parte intrínseca de sua realidade e não apenas uma anomalia passível de ser eliminada. Não existe o culto ideal, em relação ao qual o conflito se tornaria um desvio ou manifestação anômica; na verdade, o conflito está no coração da devoção a personagens como João Baracho e Jararaca, tanto quanto a controvérsia é constitutiva das narrações sobre eles.

Todo discurso verbal, gestual, imagético é tornado possível a partir de condições de sentido preexistentes (MACHADO, 1995), que em alguma medida lhe abre possiblidades e lhe impõe restrições e zonas de opacidade; e todo discurso, por sua vez, instaurará novas inteligibilidades, obscuridades e suscitará novas questões, abrindo espaços para intervenções discursivas, que podem se articular umas com (ou contra) as outras, em cadeias narrativas abertas, simultâneas, polifônicas e descentradas, manifestas em discursos verbais, imagéticos, gestuais, arquitetônicos. Assim, é importante que o leitor tenha claro que os discursos registrados e analisados aqui, e mesmo o discurso produzido pelo próprio livro, não tem a pretensão de oferecer uma suposta versão verdadeira, ou mais verdadeira, do que seja a devoção hoje.

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No plano do ritual no qual se dão as prestações funerárias e devocionais, mais explicitamente referido à religiosidade propria-mente dita, aqueles que se definem como devotos e afirmam ter fé no morto constroem para si, ativamente, um lugar, uma posição relativa essencial a essa ‘santificação’ como processo social. É importante compreender o caráter relacional desse processo, pois dessa compreensão se poderá mais facilmente deduzir as razões pelas quais essas devoções proliferam e mantêm-se vivas, e não apenas no Rio Grande do Norte, ou no Brasil. O modo como os devotos e visitantes constituem Baracho ou Jararaca como santos, pelo relacionamento que estabelecem com eles, de forma contínua ou esporádica – o que inclui contar sobre eles, seus feitos em vida, seus sofrimentos e seus milagres póstumos – não se dá por meio da elaboração de um discurso metafísico categórico (afirmação do ser/não ser santo). As expressões verbais que utilizam prefe-rencialmente ressaltam a relação que mantêm com o morto-santo, esporádica ou assídua, e sua própria agência (ORTNER, 2007) em face da situação do morto, isto é, sua própria intencionalidade e iniciativas, em conformidade com sua interpretação dos ditos fatos, frente àquela situação. Para descrever ou explicar seus motivos para estarem ali, acendendo velas no túmulo, utilizam expressões como “peguei devoção nele” ou, mais comum, “fui pegando devoção”, “fui vendo” ou “ouvindo falar” (das graças alcançadas por outros), que apontam para um processo gradual de aproximação, que implica atenção, observação e tomada de posição diante dos acontecimentos públicos que configuram o culto e suas repercussões, seja nas notícias que chegam pela imprensa, seja pela transmissão oral ou observação direta no cemitério.

Assim, não se trata de mera adesão passiva ou reprodução de um costume, pois quando tomam a iniciativa de prestar cultos fune-rários ao morto ou aderem, em qualquer grau, à devoção religiosa

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já estabelecida no cemitério, fazem-no chamando a si um papel ativo, ali onde a indiferença lhes seria perfeitamente possível e, a princípio, mais aceitável e cômoda, do ponto de vista da moralidade dominante e dos costumes funerários que os consideram obrigató-rios apenas no âmbito das relações pessoais significativas. O culto a mortos públicos não diz respeito em particular a ninguém, no sentido de que é, objetivamente, uma escolha, embora sua vivência subjetiva possa ser percebida pelo devoto como atendimento a um chamado ou revelação místico-religiosa, e pelo frequentador do cemitério como obrigação moral, em decorrência da tradição de rememoração e homenagem aos mortos.

As prestações funerárias são vistas como obrigações, já que os mortos continuam a fazer parte, tanto quanto os vivos, da comunidade socialmente significativa – normalmente, os parentes próximos, sobretudo pais, filhos e cônjuges, mas também amigos e vizinhos muito próximos, que cooperavam ativamente ou exer-ciam papel de destaque na localidade. Em vista disso, o lugar do morto que veio de fora, forasteiro e inimigo (como o cangaceiro invasor Jararaca), pode ser visto como potencialmente ameaçador, mais do que em vida. Sua morte e seu sepultamento no local ao qual não pertencia (Jararaca) – ou cujo pertencimento, precário (Baracho), havia sido rompido (o que se manifesta na delação e na recusa da água) – tornam-se problemáticos e parecem demandar algum tratamento simbólico para sua assimilação social. Os ritos de canonização popular cumprem, de certo modo, esse papel.

Se os jornais em Natal estamparam na sua primeira página os heróis da polícia que executaram João Baracho, os de Mossoró também cantaram em verso e prosa a resistência vitoriosa de seus bravos. Mas a situação em Mossoró em 1927 era diferente da situação na Natal do início dos anos 1960, e o contexto da morte de Jararaca implicava e era englobado por algo percebido

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como maior: a derrota dos cangaceiros de Lampião, apresentada como vitória da resistência dos cidadãos e da própria cidade, isto é, do povo local contra uma ameaça externa. Isso, todavia, não foi o bastante para impedir críticas à suposta conduta abusiva da polícia, que teria assassinado um homem que já se encontrava encarcerado, ao invés de conduzir a situação de acordo com a lei. As declarações à imprensa do carrasco entrevistado por Lauro da Escóssia, a que Almeida (1981) fez referência, foram publicadas n’O Mossoroense e, a partir daí, ressoaram em outras esferas e ganharam a boca do povo.

No caso de Baracho, em Natal, também não faltaram críticas à ação da polícia, que o teria assassinado. Baracho não era, ao contrário de Jararaca, percebido pelas autoridades ou população local como um estrangeiro contra o qual o povo do lugar pronta-mente se unificaria, embora buscassem, autoridades e imprensa, construí-lo como outro tipo de ameaça, criminosa, contra a qual os cidadãos de bem, potencialmente vítimas dele, se uniriam. No entanto, a realidade nunca é tão simples. Tendo morrido onde vivera durante alguns anos, ali mesmo, no Carrasco,38 e do modo como morreu, sob os olhos e ouvidos de vizinhos, os efeitos dessa construção parecem não ter sido os que se esperava. Matador de motoristas ou não, Baracho era então mais um imigrante morador da periferia urbana, e seus vizinhos nessa periferia não pareciam enxergá-lo sob a mesma ótica a partir da qual podia ser visto pelas camadas mais favorecidas da sociedade local, às quais aquela manchete parecia se endereçar.

Todavia, o noticiário policial, principalmente via rádio e jornais populares, empenhou-se em construí-lo como um outro, sem economizar nos termos e imagens comuns ao jornalismo policial da

38 Antigo nome do bairro Dix-Sept Rosado.

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época, com abundância de adjetivos como facínora, algoz, carnífice, fera, homicida, sanguinário, perverso, cruel, sicário, meliante, biltre, infame, vil.39 Suas ações, confirmadas ou atribuídas por outrem, também eram descritas de modo superlativo, com termos como atrozes, sinistras, medonhas, perversas, monstruosas. No entanto, o pedreiro e feirante Baracho, embora alguns afirmassem também que praticasse pequenos furtos ou até assaltos à mão armada, não chegava sequer perto, no início dos anos sessenta, da importância de um cangaceiro no final da década de 1920, por mais que a imprensa tenha tentado fazer dele o Mineirinho40 potiguar. Parte de sua força simbólica decorreria, justamente, de toda essa construção mitificadora realizada pela imprensa e pelos políticos. Ela ofereceria um terreno fértil para a fabulação sobre sua vida e fabricação póstuma de sua controversa santidade ou, pelo menos, do status de morto especial, distinguível dentre túmulos privados e anônimos aos quais pouca ou nenhuma atenção é dada.

39 Ver as matérias policiais sobre João Baracho listadas nas Referências Bibliográficas. Muitas delas estão disponíveis online.

40 “No dia 1º de maio de 1962, sugestivamente a data comemorativa do ‘dia do trabalho’, os jornais cariocas noticiavam a morte do assaltante Mineirinho, apelido pelo qual era conhecido o fugitivo José Miranda Rosa. Há dias procurado por mais de trezentos policiais, Mineirinho havia escapado do Manicômio Judiciário e jurado nunca mais voltar ao cárcere para cumprir sua pena de 104 anos. Acuado pela polícia, acabou crivado de balas e seu corpo foi encontrado à margem da Estrada Grajaú-Jacarepaguá, no Rio de Janeiro”. (ROSENBAUM, 2010, p. 170). Observem que Mineirinho e Baracho foram mortos no mesmo dia, de modo bastante similar.

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Capítulo 4As pessoas, as palavras e as coisas rituais:

circulação e conflitos

Capítulo 4 | As pessoas, as palavras e as coisas rituais: circulação e conflitos

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As esculturas, bustos, fotografias, nomes dos mortos e epi-táfios escritos nas lápides contribuem para criar uma atmosfera simbolicamente carregada, capaz de impressionar mesmo aos ateus. Isso parece ocorrer por razões não necessariamente religiosas: aquelas pequenas, por vezes escassas, indicações pessoais podem despertar a curiosidade e movimentar a imaginação no sentido do preenchimento de suas lacunas. De imediato, ao ler as datas expos-tas do nascimento e da morte, tendemos a calcular mentalmente a idade do morto. Em uma dessas ocasiões em que observava os túmulos, reparei que em uma das lápides constavam três fotos e a identificação, com foto, de um homem, uma mulher e uma criança de 12 anos, isto é, a lápide fazia referência ao sepultamento de três pessoas da mesma família. Não havia qualquer outra informação, então comecei a imaginar qual teria sido o acontecimento trágico que os teria levado a morrer juntos. Um acidente automobilístico? Uma catástrofe climática? Um incêndio? Um homicídio? Esse movimento mental e emocional que vivenciei mostra uma das experiências comuns aos visitantes dos cemitérios no mundo todo. Alguns cemitérios, como o famoso Recoleta, em Buenos Aires, tornaram-se parte dos roteiros turísticos daquela cidade.

A memória requer esforço, interesse, investimento na busca por pessoas que queiram compartilhar suas rememorações indi-viduais, de fontes documentais e bibliográficas que possam infor-mar novos dados e, sempre, principalmente, o trabalho ativo da

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imaginação e curiosidade humanas. Esta, como a própria memória, não se deixa intimidar por lacunas factuais. Onde as informações são fragmentárias, como é o caso dos cemitérios, ela preenche as lacunas por meio de associações de ideias, comparações e deduções.

É importante entender a sacralização de mortos e a singularidade dessas devoções nos cemitérios por meio da observação de seus ritos – cujo conjunto chamo de ritual – bem como dos processos sociais que, simultaneamente, os constituem e os encompassam. A devoção é uma forma de cultivar um relacionamento com um determinado objeto – neste caso, o morto-santo em seu túmulo – por meio do cuidado manifesto com ele, através da prestação de cultos, por sua vez constituídos por pequenos ritos, como o oferecimento de dádivas, a execução de gestos, a observação de posturas, dentre outros. O ritual de devoção ao santo do cemitério é constituído pelo conjunto desses pequenos ritos e ultrapassaria o espaço e o tempo no qual adquire sua expressão mais pública, o cemitério no Dia de Finados, para abranger também seus preparativos, como a aquisição das oferendas e os ritos realizados em outros domínios, como a oração em casa e o percurso de ida até o cemitério. O ritual, portanto, abrange ações e pensamentos, manifestando-se por meio de discurso multidi-mensional, verbal e não verbal (corporal, imagético, simbólico).

Edmund Leach propôs que rompêssemos com a dicotomia até ali corrente entre falar e fazer, ao pensarmos sobre rituais, pois “the enunciation of words was already a ritual” (LEACH, 1966 apud PEIRANO, 2000, p. 6). É nestes termos que proponho interpretar a dimensão oral das canonizações funerárias, na medida em que é constitutiva de suas dinâmicas, no cemitério e fora deles, concorrendo também para sua divulgação e reprodução. As palavras dos testemunhos ou das narrações sobre o santo, em suas dimensões mágica e comunicativa (LEACH, 1966), não

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são apenas comentários sobre o ritual, elas são constitutivas do ritual, isto é, são tão parte dele quanto as ações corporais e gestos estereotipados, repetitivos, simbolicamente expressivos, esperados de um ritual desse tipo, que podemos reconhecer como parte do repertório de outras devoções católicas.

Conforme John L. Austin (1962), falar também pode ser uma forma eficaz de agir. Porém, além disso, as palavras podem ser vistas como bens simbólicos – com o perdão da redundância, já que todo bem, inclusive o material, é simbólico – passíveis de serem colocados em circulação, oferecidos unilateralmente ou trocados entre dife-rentes agentes sociais (LÉVI-STRAUSS, 1949). Dentre as práticas devocionais, as preces, palavras pessoais dirigidas à divindade ou outro ente sagrado, apresentariam caráter religioso por definição, podendo ser vistas como atos comunicativos, por meio dos quais mensagens seriam transmitidas, mas também como oferta de si, na medida em que entregar suas palavras seria compartilhar parte de si, experiência que pode ser vivida em termos intensamente emotivos.

Sagrado, do ponto de vista durkheimiano, que é o ponto de vista assumido por Mauss (2003), seria aquilo que, em dado contexto, receberia tratamento diferenciado, sendo posto à parte dos entes considerados cotidianos e banais. Nesse sentido, qualquer objeto ou ser vivo, humano ou não humano, pode ser tornado sagrado (isto é, pode ser consagrado) ou pode deixar de ser sagrado (profanado), não havendo referente universal para sagrado. Algo profano poderia ser tornado sagrado por meio de consagração ritual (como uma simples garrafa plástica contendo água), assim como, por outro lado, algo a princípio sagrado (o túmulo no cemitério, por exemplo), se tratado de modo inapropriado, poderia ser profanado, isto é, dessacralizado. A sacralidade (ou seu oposto), portanto, é um estado, atributo cultural, histórico e dinâmico, isto é, depende inteiramente das posições relativas em dado sistema ou contexto, e de suas transformações.

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Nessa linha de pensamento, o sagrado englobaria o religioso, sendo, portanto, mais abrangente que ele e incluindo outras práticas rituais (como a magia), inclusive seculares (a consagração de ídolos populares, por exemplo), posto que sua fonte última seria a própria sociedade e sua tendência a classificar e, assim, distinguir e separar os seres e os objetos, conferindo status e tratamento especial àqueles percebidos como não triviais. Não é à toa que Mauss (2003, p. 63-77) afirma que o mágico seria, nas sociedades em que a magia está presente, recrutado dentre as pessoas que apresentassem características físicas, psicológicas ou morais tidas como excepcionais, ou seja, pessoas vistas como diferentes, fora do padrão de normalidade (fosse este qual fosse), por sua aparência física ou por seu comportamento percebido como anômalo.

O fenômeno religioso, por sua vez, se constituiria em dois planos, o dos atos – os ritos, os comportamentos e atos regulados, repetitivos, expressivos – e o das ideias – os sistemas de crenças ou representações, que informam e conferem sentido aos rituais. Segundo a definição de Mauss (1981, p. 246), a prece seria um desses atos rituais, ao lado dos cantos, do gestual prescrito, da dança; um rito religioso oral dirigido àquilo que a sociedade defina como sagrado. Além de oral, ela pode ser acompanhada simultaneamente por algum comportamento prescrito, postura corporal, gestual, e pode ser executada no formato de canto ou recitação em voz alta, e não apenas para si. Mesmo quando individual e íntima, a prece seria, segundo Mauss (1981), um ritual, portanto, social, pois se basearia no sistema de representações e de prescrições comportamentais, sociais por definição. Assim, se, por um lado, o rito executado publicamente – como a prestação funerária a um parente ou o pagamento de promessa ao santo – não deixa de ser privado, no sentido de que concerne sobretudo à pessoa, ou grupo, que o realiza, e só ela sabe sobre suas motivações e desdobramentos

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pessoais, por outro lado, a noção de privado aqui não significa que esses ritos sejam, em si mesmos, de natureza individual.

A prece pode ocorrer como conversa íntima e silenciosa, ou em voz alta, do mesmo modo, como conversa, ou, alternativamente, como uma recitação ritmada ou um canto, que pode ou não veicular pedidos e promessas, podendo ser mais pessoal e informal ou mais cerimonial e solene. Em ambos os casos, e não apenas no segundo, ela guarda uma dimensão performativa, pois que situacional e inter-subjetiva, uma vez que, mesmo quando parecemos estar sozinhos, continuamos povoados por todos os nossos outros significativos, e tanto nossas palavras como nossas posturas corporais refletem isso. Ela própria consiste numa oferenda, a prece consiste não somente nas palavras, esses bens simbólicos (LÉVI-STRAUSS, 1949), mas naquilo que elas, no seu aspecto comunicativo, transmitem como mensagem, bem como nas emoções que, a princípio, tendem a escapar a elas como dimensão indizível.

Outra característica da prece é que, não necessitando, em si mesma, de suporte material ou mediação sacerdotal para sua realização, poderia, teoricamente, como o culto às imagens, tornar o devoto independente da necessidade da peregrinação até o túmulo do santo.41 Se, por um motivo ou outro, não pudesse ir lá, e não

41 E, portanto, pode contribuir para a difusão do culto ao santo e para sua desvincu-lação do local sagrado, assim como o culto às imagens (VAUCHEZ, 1995 [1994]). Essa desvinculação pode tornar parcialmente desnecessária a peregrinação e, historicamente, teria se constituído, segundo Vauchez, em um dos fatores causais para o desaparecimento do culto às relíquias e aos mártires nos cemitérios, dando lugar a um culto mais impessoal e universalista, baseado em representações imagéticas dos santos. As imagens podiam ser cultuadas em casa, em altares domésticos, e santuários diversos. Recortadas de jornais ou qualquer outro suporte, imagens fotográficas de Jararaca e de Baracho podem ser depositadas sobre seus túmulos durante a prestação dos ritos de devoção, como fazem também com fotografias de parentes doentes para quem estejam pedindo ajuda, para serem depois levadas para casa, sacralizadas, para reforço de um pequeno altar doméstico ou, mais comumente, para ser colocada em contato com o corpo doente que necessite de cura, assim como se faz com a água benta.

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houvesse promessa envolvida que exigisse sua ida, poderia rezar para Baracho ou Jararaca em casa mesmo, ou em uma igreja ou cruzeiro mais próximo de sua localização. Preces, velas e representações imagéticas do santo (do cemitério ou da igreja católica) podem compor altares domésticos, embora nos casos em estudo aqui esses altares nunca tenham sido mencionados como alternativa para substituir definitivamente a ida ao túmulo, mas sim como prática complementar, secundária e rara, encontrada durante meu campo somente entre devotos mais antigos, comprometidos com um voto religioso ao santo, e na faixa etária mais velha (idosos). O que é comum é que muitos levem objetos devocionais para casa para uso pontual, não para compor altar.

Pelo menos em parte, isso talvez se deva à generalizada crença entre os devotos de que não se deve acender velas para os mortos dentro de casa, e isso não deixa de assinalar mais uma vez a ambiguidade desses santos dos cemitérios. Santos, talvez, mas ainda mortos, pensados a partir de duas gramáticas devocionais distintas, que ora se reforçam, ora podem se repelir. Todavia, a importância do deslocamento até o cemitério, nesse tipo de cano-nização, é a razão principal. Não apenas pela contiguidade com o túmulo e suas oferendas, fatores importantes nas concepções sobre sua eficácia, mas também pela copresença dos demais devotos e pelo próprio deslocamento e seu valor como dádiva devocional, pelo custo que pode acarretar para o devoto. Na religiosidade cristã, a aceitação humilde do sofrimento e automartírio – dos esforços e ônus, quaisquer que sejam – recebe conotação positiva, edificante e purificadora, como forma de dirimir os pecados e mostrar arrependimento. Isto é, tem valor penitencial. Essa noção é, inclusive, central também na compreensão da conversão do cangaceiro ou matador de motoristas em santo, embora, também aqui, por vias tortas e ambíguas, uma vez que o sofrimento sofrido

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por eles não foi, de forma alguma, por sua escolha ou por motivo de arrependimento. Pelo contrário, na leitura mais frequentemente realizada por seus devotos, o arrependimento teria decorrido, como consequência, do martírio a eles imposto por seus algozes. E, com o arrependimento, a purificação e o perdão.

Nenhum dos cultos nos cemitérios conta com oficiantes ou mediadores formais, por exemplo, para proceder a um rito de puxar as orações ou definir qualquer formalização de procedimentos rituais que pudessem ser impostos aos seus frequentadores como rotina a ser cumprida na prestação ritual. Alguém que, como ocorre em outros cultos similares,42 assumisse a função de organizador ou mentor para os visitantes e potenciais devotos, que fosse capaz de se encarregar da apresentação de uma biografia mínima e padronizada do morto aos recém-chegados, ordenasse de algum modo suas demandas e respondesse a suas questões. Ou, ainda, para responder pelos devotos ou pelas devoções perante a administração do cemitério. Isso acaba ficando a cargo de qualquer dos devotos presentes no local que se mostre familiarizado com a devoção, motivado e assertivo, não raramente pessoas mais velhas moradoras do local onde se localiza o cemitério, que convivem, por escolha ou não, com a existência daquele culto ali há bastante tempo.

Rezar (ou orar) para Baracho ou Jararaca (ou qualquer outro santo, do cemitério ou não) pode ser o meio para pedir sua intercessão para alcançar alguma graça; rezar (ou orar) por (no sentido de “em intenção de”) Baracho ou Jararaca já teria outro significado: consistiria em pedir por ele, no sentido de beneficiá-lo postumamente, como se faz tradicionalmente pelos mortos, e não de

42 Elementos que estão presentes nos cultos aos santos crianças Antoninho da Rocha Marmo e Odetinha, em São Paulo e no Rio de Janeiro, respectivamente, nos quais as famílias dos defuntos têm um papel essencial como mediadoras na relação com seus devotos. (SCHNEIDER, 2001; FRADE, 1987).

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buscar benefícios para si. Não pretendo aqui acentuar essa diferença, mas no contexto dos cultos aos santos dos cemitérios ela pode ser relevante para esclarecer, por exemplo, a presença dos protestantes que participam dele e de todos os demais frequentadores que se dispõem a rezar pelo morto, mas fazem questão de esclarecer que não são seus devotos nem compartilham da fé em seus milagres. Ou seja, não rezam para ele (para pedir sua intercessão ou fazer promessa), mas por ele (por sua salvação). Nestes casos, a prestação ritual é explicada como parte das tradições funerárias. Como vimos, elas englobam homenagens e cuidados extensivos a pessoas públicas, embora sejam tipicamente voltadas para as pessoas significativas mais próximas, como os parentes.

Dentre os protestantes que encontrei rezando por Baracho, está Dona Maria, 59 anos, viúva, auxiliar de cozinha numa escola pública, adepta da Assembleia de Deus há sete anos. Muito falante e simpática, ela acendia velas no túmulo de Baracho numa tarde de Finados (1999), quando percebeu que eu a observava. Então, dirigiu-se a mim por sua própria iniciativa, dizendo que não era promessa, era só porque é obrigação acender velas para os mortos. “Milagres só de Jesus”, me disse em voz alta, bastante expressiva, já não se dirigindo só a mim, mas aos que se encontravam em torno de nós. Isso não a impedia de participar ativamente das conversas em torno do túmulo de Baracho sobre pessoas de suas relações que o teriam conhecido pessoalmente e até testemunhado os acontecimentos precedentes à sua morte.

Esse tipo de conhecimento representa, no contexto dos ritos, um capital de alto valor simbólico capaz de atrair ouvintes e inter-locutores curiosos e interessados, inclusive eu mesma, tornando a narradora o centro das atenções. Assim, na medida em que classifico aqui esse tipo de narração como parte do ritual devocional, posso afirmar que há participação protestante nas devoções, ainda que

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pouca, o que as complexifica e impede esquematismos simplistas que, por exemplo, as reduzisse a práticas católicas antagonizadas por todos os protestantes. Já vimos também, neste livro, que há católicos que não se identificam nem aprovam as devoções a esses santos, por não as considerarem legítimas ou benéficas, como seriam as devoções aos santos reconhecidos pelo catolicismo.

Todavia, mesmo esses que não acreditam em milagres de morto de cemitério, ainda que se disponham a rezar até pelo mais moralmente questionável deles e a afirmar que possa ser perdoado, não negam a existência de milagres nem afirmam necessariamente a falsidade dos devotos. O que fazem é questionar a origem dos primeiros e os motivos dos segundos. O devoto pode ser visto, nesses casos, como alguém enganado por forças malignas ou como ingênuo supersticioso. Uma terceira possibilidade, mais amigável e benevolente, consiste em vê-lo como alguém cuja intensidade da fé teria produzido o resultado esperado. Esta última explicação é mais comum em dois tipos de intérpretes: o crente que acredita em Deus, na eficácia da fé e argumenta que, sendo onipotente, Deus poderia agir por intermédio de quem ou o que bem entendesse, até daquele morto; e o intelectual, que adota diante das devoções uma perspectiva analítica e especulativa, mas não descarta a ocorrência de fatos extraordinários não explicados pela ciência. O primeiro recorre ao argumento curto e grosso de que Deus não deve satisfações a ninguém, ou, dizendo de outro modo, e usando a frase feita que repetiram para mim muitas vezes em campo: ninguém conhece os desígnios de Deus; o segundo tende a recorrer à popularizada noção de sugestão, oriunda do campo da Psicologia (AGUIAR, 2016), para explicar os milagres, descartando qualquer intervenção mágico-religiosa, qualquer suposto poder do morto.

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O testemunho do milagre consiste numa categoria particular de discurso, noção ampla que abrange o verbal e o não verbal. Ele se assentaria na credibilidade daquele que testemunha, ao mesmo tempo em que também aumentaria a credibilidade, do devoto, da devoção e do santo. Dá-se o mesmo com os narradores do passado de Baracho e Jararaca que contam em primeira pessoa ou baseados em memórias de familiares. Os que testemunham milagres tor-nam-se, como esses narradores do passado, cheios de autoridade (BENJAMIN, 1996), fiadores da realidade da santidade do morto e da autenticidade da devoção. Não é tanto que os próprios devotos necessitem disso, mas, cientes das controvérsias que os cercam, os testemunhos e casos conhecidos de eficácia dos ritos são sempre trazidos à tona para informar os recém-chegados ou rebater críticas.

Figura 3 – Túmulo de João Baracho, Bom Pastor I. Ex-votos deixados atrás do túmulo

Foto: Eliane Tânia Freitas

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Note-se que testemunhar os milagres alcançados tem dimen-sões não verbais, tão importantes quanto os depoimentos pessoais e narrações sobre milagres alcançados por terceiros. Dos milagres dão testemunho também as oferendas, como os ex-votos (SCARANO, 2004), formas tridimensionais que tipicamente procuram representar visualmente a parte do corpo doente que teria sido curada (uma cabeça, uma perna, pés) ou o objeto relacionado ao assunto que trazia dificuldades (uma casa, um caderno escolar, a camisa do time de futebol). Em uma das minhas primeiras idas a campo, em 1998, encontrei uma pessoa que depositou casinhas de papel dobrado sobre o túmulo para agradecer por haver conseguido um lugar para morar. Mandar fazer um ex-voto pode ser inviável, devido ao custo, então as pessoas improvisam. Uma cabeça de boneca (Figura 3), por exemplo, pode substituir uma cabeça de cera ou madeira, que esteja fora do seu alcance comprar ou fabricar artesanalmente. Como já vimos, elementos antropomórficos como esses dão margem a interpretações condenatórias, que os associam à “bruxaria”.

Figura 4 – Túmulo de João Baracho, Bom Pastor I, Finados, 2000

Foto: Eliane Tânia Freitas

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Testemunhar os testemunhos fortalece a confiança em si, no santo, na devoção, propiciando melhores condições para enfrentamento dos antagonismos e das contradições inerentes às dinâmicas do culto. “Você não ouviu o que ela falou? Você não está vendo toda essa gente aqui? Você acha o quê, que está todo mundo mentindo?” Não cheguei a conversar com a senhora que disse isso, nem a identificá-la, na ocasião, mas levei no meu minigravador suas palavras e o tom exato no qual foram ditas: um tom que não admitia contestação frente ao que lhe parecia evidenciado pela corroboração oferecida por tantas oferendas, que chegavam, naquele 1999, a cobrir todo o túmulo. Essa é, aliás, uma das funções dos objetos oferecidos como pagamento de promessas: embora em princípio endereçados ao responsável pelo milagre, o morto-santo, eles devem ser depositados ali, no espaço público compartilhado onde são realizados os ritos devocionais. Ninguém precisa explicar o que eles representam nem contar a qual graça corresponderiam, mas, pela gramática comum a esses universos rituais, os presentes deduzem seus significados prováveis, mesmo que não cheguem a escutar qualquer depoimento verbal de seus ofertantes.

Promessas e oferendasTanto Baracho como Jararaca recebem, por parte de seus

devotos, no plano do relacionamento direto estabelecido com eles, tratamento similar ao de qualquer santo católico, como São José ou Santa Rita, e parte de sua eficiência simbólica, bem como da manutenção de seu culto, decorre de sua reputação como morto capaz de “fazer milagres” (“milagreiro”, “milagroso”), alimentada fundamentalmente pelos testemunhos dos milagres alcançados. Estes passam da boca para o ouvido, e daí novamente para a boca, ou seja, por meio de um encadeamento não linear formado por

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falantes que testemunham e ouvintes que os escutam e, assumindo por sua vez a posição de falantes, propagam o que escutaram sob a forma de depoimentos e narrações, que de algum modo tendem a produzir novas versões do testemunho inicial.

Outro dos seus efeitos é ampliar a presença dos devotos e milagres, presentificados nas, e pelas, lembranças de outros. Dessa forma, em torno do túmulo não se encontram apenas aqueles que fisicamente se encontram ali, mas também os que, com suas narra-ções e testemunhos pretéritos, deixaram seus rastros nas memórias daqueles e continuam sendo parte da cadeia comunicativa ritual. Nela, são tão importantes os presentes como os ausentes, os atuais como os antigos, os vivos como os mortos, o material e o imaterial.

Já se pode ver ali uma pequena tradição, ela própria contextu-alizável a partir de outras tradições e costumes, como as negociações populares com os santos católicos, marcadas pela familiaridade e pela informalidade, enraizadas no Brasil desde o período colonial (MELLO; SOUZA, 1989); e a antiga intimidade com a morte, os cemitérios e os mortos, que se vem alternando ou acumulando ao longo da história com atitudes e sentimentos de evitação, medo e repulsa por eles. O recurso aos santos da igreja católica sempre foi uma possibilidade presente no Brasil. E por que não recorrer, então, ao santo do bairro, da vizinhança, àquele que está mais próximo, física e socialmente, da sua realidade, e que pode ser percebido como um de nós? Aquele que, nos casos como os estudados aqui (e muitos outros, pelo Brasil afora), de início era um estranho, até inimigo, mas foi convertido, pelas próprias práticas rituais funerárias devotadas a ele, em ente familiar e benevolente. O que Cáscia Frade (1987) resumiu na feliz expressão “santo de casa”.

Durante a reza para o santo, o devoto pode fazer uma pro-messa ou voto. Promessa é uma espécie de contrato firmado com o santo, por meio do qual o devoto se compromete a dar algo em troca

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da graça solicitada, uma vez alcançada. É uma operação diferente do sacrifício (MAUSS, 1981), ofertado antes da concessão da graça desejada por aquele que quer mostrar-se merecedor de recebê-la. No sacrifício, normalmente se dá de imediato algo para agradar ou acalmar a(s) divindade(s) e assim conseguir seu favorecimento posterior. Na promessa, a iniciativa cabe ao humano, mas a eficácia cabe ao santo; ele é que tem que mostrar serviço se quiser ser, e permanecer, acreditado por aquele que deu o primeiro passo e se dispôs a confiar nele. Claude Lévi-Strauss (1949) já indicava a “superioridade moral” daquele que se confia e se arrisca ao dar o primeiro passo para estabelecer com o outro uma relação de troca. Confiança em que a reciprocidade ocorrerá, do que jamais se pode ter certeza de imediato, qualquer que seja o relacionamento.

O pagamento da promessa não é, desse ponto de vista, propriamente uma retribuição ou pagamento. Já seria, na verdade, uma contra-contra-prestação (MAUSS, 2003), em uma cadeia de dádivas já operante, iniciada pelo oferecimento de si, de sua con-fiança, acompanhado por outras oferendas imateriais e materiais, como preces e velas. Estaria aí em operação o imperativo social da reciprocidade (LÉVI-STRAUSS, 1949; MAUSS, 2003): a promessa supõe um crédito inicial de confiança no morto, geralmente baseado em testemunhos de terceiros, que se pode acompanhar ou não, inicialmente, de dúvidas. Devoção não é algo dado de uma vez por todas, mas sim processo vivido, que pode implicar aproximações e afastamentos, convicções e incertezas, podendo, inclusive, oscilar ao longo do tempo.

É importante ter claro que isso não ocorre necessariamente devido ao status controverso ou marginal do morto, e sua condição de santo de cemitério, pois os santos católicos tradicionais também são avaliados e dispostos em estruturas hierárquicas, por seus devo-tos, segundo escalas de valoração variáveis, em conformidade com

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os diferentes relacionamentos estabelecidos com eles (MENEZES, 2009). Podem ser vistos como especialistas, mais eficazes para esta ou aquela finalidade (MEDEIROS, 1995; VAINFAS; SOUZA, 2000; MENEZES, 2009), como propiciar casamentos (Santo Antônio), auxiliar os endividados (Santo Expedito), ou curar problemas de visão (Santa Luzia). Há santos íntimos, de confiança, com quem se desabafa sobre tudo, a quem se fala de igual para igual, com quem se pode ser brincalhão e irreverente; e há santos que, embora se os respeite, são tratados com solenidade e até certo receio.

A diferença entre promessa e voto, tal qual observei nos usos dos dois termos pelos devotos com quem conversei, confirma o que a literatura sobre religiosidade popular já mostrava (STEIL, 1996, p. 100-104). O voto exige a renovação periódica do compromisso religioso assumido, o que, em todos os casos que observei, implicava a visita ao túmulo e a entrega de oferendas, no Dia de Finados ou outra data acordada com o santo. Já a promessa não, a promessa é episódica, podendo ou não vir a se repetir. Faz-se a promessa em função da graça que se quer obter naquele momento e, uma vez alcançada a graça e cumprida a promessa, pode-se dar por encer-rado o assunto com o santo. Portanto, promessa em si não implica devoção (MENEZES, 2009, p. 124), já que o compromisso assumido com ela se encerraria nela mesma. Isto é, não seria suficiente, em si, para estabelecer vínculo com o santo. Esse vínculo, todavia, pode vir a se concretizar pela repetição de promessas ao longo do tempo, que terminará sustentando o relacionamento à base do cuidado percebido como recíproco. No entanto, esse relacionamento poderá, por princípio, ser interrompido sem qualquer ônus para o devoto, que não estará, assim, quebrando qualquer pacto.

O voto religioso pode ser transmitido a alguém próximo, tipicamente um parente, quando aquele que o contraiu entende que não se encontra mais em condições de cumpri-lo – o que

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evidencia que esse tipo de ligação com um santo pode ser percebido como assunto familiar (MENEZES, 2009, p. 125), ultrapassando necessidades ou escolhas individuais. Késia, 32 anos, me contou que havia decidido fazer um voto para Baracho porque havia escutado muitas histórias de milagre, ali no cemitério, que a haviam impressionado tanto quanto a aglomeração de devotos e a grande quantidade de oferendas sobre seu túmulo. Ali estava, como fazia todos os anos, para visitar seu falecido pai. Observei-a rezando, agachada, e depositando suas velas no chão, ao lado do túmulo, enquanto apoiava nele sua mão direita. Não quis me contar o que pediu a Baracho na ocasião, já que me disse que havia, desta vez, pedido algo, mas afirmou que continuaria a sustentar esse voto por toda a sua vida, atendida ou não, e desejava que sua filha, no futuro, após sua morte, o tomasse para si. Ou seja, ela já projetava a continuidade desse compromisso no futuro.

Outro fator que desmarca o caráter individual dos ritos de devoção, evidenciando o tecido social que o sustentaria, é o fato de que uma pessoa pode fazer promessa ou voto em benefício de outra – que talvez nem acredite ou saiba sobre o culto, isto é, o beneficiário da graça nem sempre tem qualquer relação com o santo. O oposto também é possível: uma crente da Assembleia de Deus, que negou enfaticamente que Baracho pudesse realizar milagres, pôde ser encontrada lhe oferecendo velas e orando em seu túmulo, em um Dia de Finados, em agradecimento pela cura alcançada por sua irmã, que sofria de câncer nos ovários. Calmamente, ela me contou que a irmã, Regina, que é católica, havia feito a promessa para Baracho, mas não se encontraria naquele momento ainda em condições de sair do hospital. Por isso, pedira que ela, Maria, fosse até lá, no Dia de Finados, para pagar sua promessa. Apesar de haver concordado e atendido a sua irmã, após cumprido o ritual, ela fez questão de frisar para mim que o milagre teria sido “de Jesus”,

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não de Baracho. Este teria sido, no máximo, um mediador. Sua frase exata foi: “se Deus entendeu de fazer ele ajudar as pessoas é porque perdoou o que ele fez, não é? Quem sou eu pra julgar?”

Também existem casos em que ambos, o pagador da promessa/cumpridor do voto e o beneficiário, compartilham da confiança no poder do santo do cemitério, mas este último, responsável pela promessa, se encontra, como a irmã de Maria, impossibilitado de fazê-lo, por motivos de força maior. Uma das devotas de Jararaca, por exemplo, pagava a promessa no lugar de seu filho, presidiário. Ele havia rezado desde sua cela e havia sido atendido, tendo sido curado de uma ferida no pé. Ele fez a promessa sem ir até o local do culto, mas seu cumprimento exigia a entrega de um ex-voto e velas. Assim, sua mãe foi em seu lugar, levando um pequeno pé de madeira para deixar sobre o túmulo.

Exercer intercessão por um vivo, como se faz tradicional-mente por um morto ao prestar-lhe culto funerário, é extremamente comum no universo das devoções populares, seja nos cemitérios, santuários ou nas relações com santos católicos. Se o sacrifício, como mostra Lévi-Strauss (1989) permite a substituição da oferenda ideal por outra (um boi no lugar de um humano, um carneiro no lugar de um boi, uma galinha no lugar de um carneiro, e assim por diante), a promessa exige que aquilo que foi prometido seja de fato entregue, mas tanto faz se por quem prometeu ou outro, que assume seu compromisso.

No cemitério, nem todos os que escutam com interesse os relatos de milagres alcançados por outros se dispõem a contar sobre o que pediram ou pretendem pedir ao santo, ou mesmo sobre o que acabaram de alcançar. Fora do cemitério, em conversas em locais privados, nem sempre a abertura é maior. Uma das razões para isso é a difundida crença de que “se falar, não acontece”, ou de que promessa é assunto privado entre o devoto e seu santo. Não

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necessariamente um segredo, mas algo que deve ser preservado em prol de sua eficácia, que poderia ser reduzida ou anulada pela divulgação do seu teor. Na verdade, as promessas de que se fala aberta e espontaneamente são, em geral, aquelas já cumpridas, de preferência há algum tempo, percebidas, assim, como mais facilmente objetiváveis, parte de uma história pessoal ou familiar, de cuidados funerários prestados aos mortos e de devoção aos santos. Esses sim são facilmente compartilhados, passíveis de serem lembrados e compartilhados à volta do túmulo ou nas conversas informais. Ou seja, a fala testemunhal, tão importante nas dinâmicas do ritual de devoção, é uma fala que remete para o passado, mobiliza as artes da memória, recente ou remota.

Quanto aos motivos que leva a alguém, devoto ou não, a realizar uma promessa43 ou voto, os principais seriam os problemas de saúde, e, logo depois deles, os problemas financeiros, categoria ampla na qual se incluiria o desemprego ou dificuldades no trabalho, já que, nestes casos, a preocupação ostensiva é com a possível perda da atividade remunerada (formal ou não) e, com ela, seu sustento e o de sua família. Em ambos os casos, é bem comum que a graça seja pedida para um terceiro, que pessoalmente não participa dos ritos de devoção. Assim, uma esposa pode fazer promessa para que o marido pare de beber ou consiga se estabilizar em um emprego novo; ou um esposo pode pedir pela saúde da esposa ou que deixe de ser tão geniosa, o que ele percebe como doença dos nervos.

Nesses contextos, doença incurável é categoria muito utilizada, sobretudo para assinalar a gravidade da situação endereçada no pedido. Ela se refere a doença não curável pela Medicina, pelo menos pela Medicina a qual se tenha tido acesso até aquele momento; a doença que tenha resistido a tratamentos

43 Para comparações com outros casos no Rio Grande do Norte, ver Silva (2010), e com casos de outros locais, ver, por exemplo, dentre tantos outros trabalhos, Frade (1987, 1984), Sáez (1996), Schneider (2001).

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medicamentosos aplicados até então. Nesses casos, o recurso religioso pode ser visto como último recurso, mas ele também pode ser, para outros, um recurso complementar, compatibilizado com outras formas terapêuticas, convencionais ou alternativas, medicinais ou espirituais, religiosas ou não.

No entanto, em todos os casos que registrei, alguma referência à medicina convencional, médicos, hospitais e remédios, esteve sempre presente, mesmo que apenas de forma negativa, como para mencionar e enfatizar o insucesso no tratamento realizado, a desconfiança no doutor ou a impossibilidade de obtenção dos remédios ou, ainda, do próprio acesso ao médico. Nesse contexto, essa referência à medicina convencional, seja ao seu limite ou à sua ausência, operaria como reforço para o que seria percebido como a necessidade da intercessão religiosa do “santo de casa”, conferindo, assim, ainda mais sentido ao que, aos seus próprios olhos, não precisaria ser justificado, mas que, em vista das críticas de tercei-ros, se sentiam compelidos a justificar. E o que poderia ser mais irrefutável do que uma doença incurável? Nesses casos, inclusive, a cura milagrosa via intercessão de um santo pode ser percebida não como último recurso ou recurso complementar à medicina, mas como único recurso. Quero dizer, o único verdadeiramente adequado, pois que o mal físico não seria mais que efeito cuja causa estaria em outro plano, espiritual.44

É importante considerar que “doença” pode ser uma categoria muito ampla, capaz de abranger muitos sentidos (LAPLANTINE, 1991; SILVA, 2010), extensível a comportamentos e estados psicológicos, bem como a condutas morais. “Estar com os nervos” ou

44 O que não difere muito, em princípio, do que encontramos em contextos protestantes e no catolicismo carismático, nos quais o “desengano” pelo médico costuma aparecer com frequência como justificativa para a busca do milagre no templo pentecostal. Ali, a cura passa a ser percebida como passível de ser alcançada, apesar do diagnóstico médico contrário, justamente porque se desloca a causa da doença para o plano espiritual, domínio do pastor e da religião. (FERNANDES, 2002, p. 7)

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“estar nos cascos” (agressividade), ou seja, o nervosismo (DUARTE, 1988), a tristeza duradoura sem aparente motivo, o desânimo crônico, os “pensamentos ruins” (suicidas, por exemplo), o sentimento de desespero – tudo isso pode estar englobado pela noção de doença, no discurso dos devotos. E não apenas isso, ela ainda pode abranger fenômenos que a princípio não tenderíamos a chamar assim, à luz das ciências, da Medicina ou da Psicologia, como comportamentos considerados imorais ou socialmente disruptivos por eles, que perturbariam a ordem familiar ou iriam contra suas concepções de normalidade. Aliás, perturbado é um termo correntemente aplicado àquele que é visto como elemento perturbador da ordem, o que não deixa de ser curioso. Perturbado seria, então, quem nos perturba. Um cônjuge excessivamente ciumento, um filho vagabundo, uma pessoa mentirosa: todos podem ser vistos, por essa perspectiva, como vítimas passíveis de cura espiritual.

Figura 5 – Bilhetes de loteria sobre o túmulo de Jararaca, Dia de Finados de 2019

Foto: Pacífico Medeiros

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Mas nem só de cura de doenças vivem os santos dos cemité-rios; e nem toda graça alcançada envolve situações extremamente dramáticas ou infelizes, como doenças graves ou desemprego. Envolve decerto situações nas quais as pessoas avaliam que uma ajudinha espiritual iria bem, mas não necessariamente elas encaram o pedido ao santo como recurso extremo ou solene, muito pelo contrário. Muito comuns são os pedidos de intercessão em assuntos cotidianos, como campeonatos de futebol e sorteios de loteria. Esses pedidos podem, inclusive, ser dirigidos ao santo e referidos em conversas com uma nota de humor, ausente dos casos que envolvem assuntos mais graves. Outros assuntos frequentes no repertório de pedidos e promessas são dificuldades de relacionamento e conflitos interpessoais na família, vizinhança, trabalho, escola; perseguições e necessidade de proteção espiritual contra inimigos que represen-tam autoridades, como chefes e polícia; dificuldades no local de trabalho; e dívidas. Estes dois últimos pontos são bastante citados, tanto por homens como por mulheres, com predominância dos primeiros. O sonho da casa própria ou do emprego com carteira assinada estão presentes com destaque aí, ao lado da resolução das dívidas financeiras correntes. Era comum também o desejo de ter seu próprio carrinho de cachorro-quente ou sua lojinha, isto é, trabalhar por conta própria e não ter patrão. Mas os sonhos idealizados nem sempre são os objetos das promessas de fato, pois muitos se encontram em tal situação que, menos que uma casa própria, um emprego ou negócio, pedem apenas um teto sobre a cabeça para saírem da rua ou da casa dos outros e um serviço qualquer, remunerado. E o que estavam dispostas a dar em troca por isso? O que teriam a oferecer?

Das oferendas, a primeira e mais importante é a própria presença ali, no local sagrado, o que explica que nem sempre se sinta a necessidade de levar objetos a serem oferecidos: a ida

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até lá, espécie de peregrinação, é ato ritual oblativo por si só. É doar-se e penitenciar-se, posto que esse deslocamento, mesmo que a partir de local próximo, implicaria para ele vários tipos de ônus: o tempo despendido, o esforço, o cansaço, as despesas. Alguns se tornaram devotos quando moravam nos arredores e hoje habitam em locais distantes, até em outras cidades.

Ainda assim, se a presença é um dom, isso não faz com que a maioria dos devotos se permita comparecer sem ao menos uma caixa de velas e fósforos. Velas brancas são as oferendas por excelência em praticamente todos os cultos religiosos do catolicismo popular, ou aparentado a ele; podemos vê-las em qualquer santuário, igrejas, cruzeiro,45 cemitério. Acender velas é o rito oblativo mais comum e acessível, junto a realização da prece ou oração, que costuma acompanhá-las. A fogueira, que pode resultar da queima da cera derretida de muitas velas juntas, que se fundem, no cruzeiro ou no chão ao redor do túmulo, é um conhecido símbolo sagrado presente em muitos rituais religiosos, sendo o fogo um elemento carregado de simbolismos em diferentes tradições. No universo do catolicismo popular, a chama da vela

45 Local assinalado com uma cruz destinado à oferta de velas, mas que também pode receber ex-votos e outras oferendas menos comuns. Esses lugares costumam receber um maior número de oferendas às segundas-feiras, “dia das almas”. Junto às velas e a algumas placas de agradecimento, pode-se encontrar com frequência uma oração, muito conhecida, chamada Oração das 13 Almas Benditas: “Oh! minhas 13 almas benditas, sabidas e entendidas a vós peço pelo amor de Deus, atendei o meu pedido. Minhas 13 almas benditas, sabidas e entendidas a vós peço pelo sangue que Jesus derramou, atendei o meu pedido. Pelas gotas de suor que Jesus derramou do seu sagrado corpo, atendei o meu pedido. Meu Senhor Jesus Cristo, que a vossa proteção me cubra, vossos braços me guardem no vosso coração e me proteja com os vossos olhos. Oh! Deus de bondade vós sois meu advogado na vida e na morte, peço-vos, pois, que atendei os meus pedidos e me livrai dos males e dá-me sorte na vida. Segui meus inimigos que olhos do mal não me vejam, cortai as forças dos meus inimigos. Minhas 13 almas benditas, sabidas e entendidas se me fizerem alcançar essa graça, ficarei devoto de vós e mandarei imprimir um cento desta oração mandando também rezar uma missa.” Rezam-se 13 Pai-Nossos e 13 Ave-Marias 13 dias. Sobre o culto às almas, ver Medeiros (1995).

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pode iluminar a escuridão do destino póstumo desfavorável do morto, ou a escuridão da vida de uma pessoa.

O aroma intenso da cera branca comum, somado ao calor das chamas acesas e do próprio clima das duas cidades, Natal e, principalmente, Mossoró, pode levar a que pessoas que perma-neçam por algum tempo muito próximas das velas sintam-se fisicamente mal, com náuseas e tonturas. É importante considerar que mesmo esse mal-estar físico pode assumir valor positivo do ponto de vista religioso como penitência, pois alguns insistem em permanecer ali orando demoradamente, sob sol intenso. Outros, no entanto, permanecem junto ao local das velas apenas o tempo necessário para acender as suas, e demais oferendas, se for o caso. Terminadas suas preces, as pessoas tendem a se afastar um pouco, quando o local está cheio, até para dar a vez a outros, que também querem tocar o túmulo e acender suas próprias velas.

Figura 6 – Túmulo de Baracho, Bom Pastor I, Dia de Finados, 2000

Foto: Eliane Tânia Freitas

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No cemitério Bom Pastor I, em Natal, o túmulo de Baracho está situado bem perto no fim da alameda central, perto das salas da administração e de uma árvore que fornece uma boa sombra. Esta não chega a alcançar o túmulo, mas é próxima o bastante para que as pessoas se abriguem um pouco do sol sem se afastar dele. Já no São Sebastião, em Mossoró, isso não acontece: o túmulo de Jararaca se encontra cercado por outros túmulos e não há árvore ou edifício próximo que forneça abrigo contra o sol ou a chuva. Há os que se afastam do calor excessivo do local próximo às velas após realizar suas próprias prestações e procurem uma sombra próxima onde seguir observando o movimento das pessoas, conversando e escutando suas histórias.

Figura 7 – Túmulo de Jararaca, Mossoró, Dia de Finados de 2019

Foto: Pacífico Medeiros

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A vela também é o elemento fundamental no Culto às Almas do purgatório.46 Geralmente, a lógica que preside seu oferecimento se sustenta no binômio luz/escuridão, representação das possi-bilidades extremas do destino póstumo do indivíduo humano a partir de uma imagética cristã, mas que não se restringe a ela. A vela acesa em intenção da alma do defunto ajudaria o morto a encontrar o caminho póstumo ou iluminaria esse caminho, noção a que subjaz uma imagem da morte como viagem, trajeto a ser percorrido. A vela seria, então, uma ferramenta mediadora entre a luz (a salvação póstuma) e a escuridão (temporária ou eterna), na medida em que traria um efeito percebido como instrumental para afastar esta e se aproximar daquela.

Figura 8 – Acendendo velas no túmulo de Jararaca no Dia de Finados de 1999 (Observe as laterais do túmulo queimadas)

Foto: Eliane Tânia Freitas

46 Medeiros (1995) e Sáez (1996) examinam o lugar dessa devoção, o primeiro enfocando o catolicismo popular e o segundo especificamente os cultos aos santos do cemitério.

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A vela também é o elemento fundamental no Culto às Almas do purgatório.46 Geralmente, a lógica que preside seu oferecimento se sustenta no binômio luz/escuridão, representação das possi-bilidades extremas do destino póstumo do indivíduo humano a partir de uma imagética cristã, mas que não se restringe a ela. A vela acesa em intenção da alma do defunto ajudaria o morto a encontrar o caminho póstumo ou iluminaria esse caminho, noção a que subjaz uma imagem da morte como viagem, trajeto a ser percorrido. A vela seria, então, uma ferramenta mediadora entre a luz (a salvação póstuma) e a escuridão (temporária ou eterna), na medida em que traria um efeito percebido como instrumental para afastar esta e se aproximar daquela.

Figura 8 – Acendendo velas no túmulo de Jararaca no Dia de Finados de 1999 (Observe as laterais do túmulo queimadas)

Foto: Eliane Tânia Freitas

46 Medeiros (1995) e Sáez (1996) examinam o lugar dessa devoção, o primeiro enfocando o catolicismo popular e o segundo especificamente os cultos aos santos do cemitério.

Figura 9 – Acendendo velas no túmulo de Jararaca no Dia de Finados de 2019

Foto: Pacífico Medeiros

Como objeto marcadamente simbólico que realiza uma mediação, ela teria afinidade com o santo, como intercessor, e com o Purgatório, o “terceiro lugar” – mediador entre Céu e Inferno cristãos – de que falava Le Goff (1981), uma espécie de estado liminar no qual as almas permaneceriam para um período de purgação dos pecados, antes de seguirem (ou não), redimidas, para seu destino póstumo definitivo. Os sufrágios – missas, preces, velas, em intenção dos mortos – concorreriam, então, para a mitigação mais rápida de suas penas no Purgatório e poderiam facilitar sua absolvição. Assim, os vivos assumem parte da responsabilidade pelos paren-tes falecidos, cuidando deles após sua morte, enquanto esperam que, salvos, retribuam esses cuidados com proteção espiritual. A representação desse estado intermediário, que é o Purgatório, cria para os vivos um papel possível, onde poderia haver apenas perda e passividade, medo e incompreensão, e reforça a dependência entre

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mortos e vivos, sustentada sobre a lógica da reciprocidade, que parece englobar essas devoções e prestações funerárias.

A diferença fundamental entre a devoção, tão popular, às almas e a devoção aos santos do cemitério seria análoga à dife-rença entre a devoção às almas e aos santos católicos: as almas são representadas e referidas como coletividade, enquanto os santos do cemitério e os santos católicos são individualizados, dotados de biografias, ainda que mínimas e fragmentadas. Na verdade, o processo por meio do qual um morto acede à condição de santo no cemitério parece passar, em algum grau, por sua individu-alização, que o dotaria de uma personalidade e de um passado narrável, privilégio que não pode ser alcançado por todos. No caso dos santos anônimos dos cemitérios (SÁEZ, 1996; SOARES, 2019), sua denominação remeteria antes para uma categorização (“escravo”, “soldado”, “prostituta”, “menina”) do que para uma individualização biográfica, sinalizando a continuidade de sua situação social acentuadamente marginal mesmo na morte. Isso os aproximaria das Almas – categoria genérica – sem, contudo, retirá-los do domínio dos santos do cemitério, posto que, mesmo que menos individualizados, eles ainda receberiam uma identifi-cação própria (à categoria), podendo ter os elementos de seu culto de algum modo relacionados a ela, e uma narrativa hagiográfica mínima, conforme apontaram Soares (2019) e Sáez (1996).

Outro tipo de oferenda presente nos túmulos dos santos dos cemitérios são os ex-votos, comuns às devoções religiosas que envolvem promessas e votos (SCARANO, 2004). Podem apre-sentar-se sob a forma de placas metálicas ou de madeira, com gravações de imagens ou orações de agradecimento ao santo; ou podem consistir em representações tridimensionais em cera (pouco comuns) ou madeira de partes do corpo que teriam sido curadas pela intercessão do santo. A cura do nervosismo, por exemplo, pode

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ser representada por uma cabeça de cera. Nos cemitérios, encontrei ainda reproduções de objetos em papel, em folhas de caderno, cartolina ou papelão. Deste tipo, as representações mais comuns são de casas, indicando necessidades envolvendo moradia. Não poucos buscam realizar o sonho da casa própria, enquanto outros apenas pedem um abrigo, mesmo temporário. Marginalizados, mais até do que a própria devoção, eles pareciam relativamente à vontade ali, no território também relativamente marginal à cidade, que é o cemitério. Não tinham dinheiro nem para uma vela, mas podiam dobrar um pedaço de papelão e fabricar com ele seu sonho em miniatura para depositar sobre o túmulo junto com sua prece.

Se for ao cemitério em um dia qualquer, fora das ocasiões ritualmente marcadas, é possível que não encontre muitos sinais materiais dessas devoções no túmulo de Baracho ou de Jararaca, principalmente ex-votos (e as garrafas de água, no caso do primeiro). Isso acontece porque, sob a aparência tranquila do cemitério, um combate se trava entre devotos, de um lado, e trabalhadores da limpeza a serviço da administração do cemitério, de outro. Estes os retiram do túmulo como parte do processo de limpeza daquele espaço, ainda que, por razões pessoais, para alguns isso se mostre particularmente desagradável ou perigoso. Ou seja, os ex-votos, a cera derretida que porventura sobre nos arredores do túmulo ou sobre ele, as coroas de flores de papel ou naturais, e quaisquer outros objetos devocionais que deixem ali, são tratados como lixo e, como tal, descartados. Isto entra em choque com a importância que pode assumir para os devotos a retirada posterior de alguns desses objetos para uso curativo, como a água, conforme já foi mostrado aqui. Ao contrário do que ocorre nos locais de culto especializados, como igrejas e santuários, nos quais, com ou sem o reconhecimento oficial de alguma instituição religiosa, o espaço para o oferecimento de dádivas materiais estaria previsto e gozaria

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de legitimidade social, no cemitério sua apresentação no túmulo se chocaria com a representação normativa desse espaço como espaço funerário e público, ao qual teriam direito também os outros mortos e seus parentes. Como tal, ele deve operar em conformidade com princípios de certo modo incompatíveis, ou pelo menos de difícil conciliação, com os excedentes materiais e mesmo comportamentais presentes nos cultos devocionais. Isso acarretaria, para desgosto de tantos devotos, a impermanência do signo religioso feito para durar, posto que uma de suas principais funções seria dar testemunho do milagre alcançado. A dinâmica administrativa e ritual-funerária própria daquele espaço inviabilizaria, na prática, essa permanência.

Figura 10 – Dia de Finados, 2000, túmulo de Baracho

Foto: Eliane Tânia Freitas

Como nas esculturas, essas devoções parecem ser definidas mais pelo que lhes é tirado do que pelo que lhes é oferecido. É dos contornos

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deixados pelas ausências pessoais ou vestígios materiais, pela visibi-lidade negada, que surge sua forma peculiar e única. Acostumados, como estamos, a regimes de visibilidade intensos, podemos facilmente deixar escapar sua existência. Porém, essas práticas devocionais mar-ginais, silenciadas por diferentes normatividades, religiosas e laicas, ainda encontram formas de continuar passando, como disse Bruno Latour (2002) acerca dos fe(i)tiches. Façam ou não sentido do ponto de vista da racionalidade dominante, ou das racionalidades dominantes, elas persistem e florescem nas sombras. Somente no grande dia da celebração dos mortos, que é Finados, elas encontram oportunidade de se tornar visíveis, em maior ou menor grau, ainda que continuem sujeitas a oscilações de popularidade ao longo dos anos e à reprovação direta de tantos frequentadores dos cemitérios, bem como ao controle de seus dispositivos normativos adversos.

Trabalhadores do cemitérioFigura 11 – Bom Pastor, Dia de Finados, 2019

Foto: José Duarte Junior

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Figura 12 – Bom Pastor, Dia de Finados, 2019

Foto: José Duarte Junior

A frequência casual ao espaço interno dos cemitérios não parece fazer parte do cotidiano das cidades brasileiras, e certa-mente não faz parte dos hábitos da população das cidades de Natal e Mossoró. Ir até o cemitério exige motivo. Sua frequentação sem aparente justificativa pode levar a reações jocosas, estranhamento ou suspeitas. As únicas pessoas que se espera que os frequente de fato são aquelas que extraem dele seu ganha-pão diariamente: os profissionais que cuidam de sua manutenção física e administrativa diária e prestam atendimento ao público. O cemitério oferece ainda oportunidade de serviços temporários, sobretudo nas imediações da celebração de Finados. Com sua aproximação, muitos procuram nele a chance de trabalho remunerado, seja na limpeza ou reforma dos túmulos, capina do terreno ou algum conserto.

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Além da venda de serviços, a data traz também a opor-tunidade de venda de itens procurados para os ritos funerários, como velas, fósforos, placas votivas, cruzes e f lores artificiais. Quando chega o Dia de Finados propriamente dito, pessoas que dispõem recursos para montar uma banquinha de vendas, já terão providenciado as permissões necessárias e estarão lá, margeando as ruas de acesso ao cemitério, mudando totalmente a paisagem no seu entorno, principalmente junto a sua entrada principal. Ali podemos ver banquinhas, tendas cobertas por lona, caixas de isopor para bebidas ou picolés e carrocinhas de sanduíches ou milho cozido. Com tudo isso, essas ruas adquirem um ar festivo e, dependendo do horário, tumultuado.

Figura 13 – Cemitério do Bom Pastor, Dia de Finados, 2019

Foto: José Duarte Junior

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Não são apenas adultos que se dedicam a esses serviços remunerados, mas também crianças e adolescentes, sozinhas ou como auxiliares de mais velhos ou idosos, principalmente nas atividades remuneradas avulsas exercidas dentro dos cemitérios, como a limpeza dos túmulos e a extração manual de mato. Foi comum, durante minhas visitas nos dias próximos a Finados e na própria data, logo cedo, encontrá-las com seus baldinhos, sabão, pano de chão e vassoura nas mãos, geralmente em duplas ou trios. É também comum vê-las com um dos pais ou avós, que as levam para ajudar no serviço, e porque assim se torna possível conseguir um número maior de túmulos para cuidar durante a jornada. Pude ver, ainda, rapazes e homens mais velhos exercendo ali, nessas ocasiões, os ofícios de pedreiro e de pintor na reforma dos túmulos, mas isso é mais comum nos dias que antecedem a Finados, para prepará-los para a data. Já os serviços de limpeza e decoração dos túmulos são procurados também na data, principalmente de manhã cedo.

Outro trabalhador comum no cemitério é o catador de cera, que recolhe restos de velas, raspando a cera derretida e coletando o que sobrou daquelas que não queimaram inteira-mente. É mais comum ver nessa função mulheres e crianças, de aparência muito humilde, às vezes descalços. A cera assim coletada será depois vendida para pequenas fábricas de velas, como eles me contaram. Pude observar a retirada de velas que ainda mal haviam começado a queimar, velas quase inteiras coletadas por catadores assim que se afastavam as pessoas que as haviam ofertado.

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Figura 14 – Cemitério do Bom Pastor, Dia de Finados, 2019

Foto: José Duarte Junior

Conversar com os catadores de cera que coletam cera e velas é bem mais difícil do que com os zeladores do cemitério. Os que catam, nessa situação, manifestam um comportamento furtivo e evasivo. Ouvi de algumas dessas pessoas justificativas para seu ato de retirar a cera, apresentadas mesmo quando ninguém havia manifestado reprovação ou feito qualquer comentário. “Por que alguém ia ligar? Não vai servir pra nada mesmo, não tem nada de errado pegar depois que já acabou [de queimar]”, escutei certa vez de uma senhora idosa. Outra mulher, de uns trinta anos, que apanhou uma vela quase inteira e a colocou num saco que trazia consigo, virou-se para mim, que estava perto, e disse: “Tá apagada, né filha, acho que não tem nada de mais eu pegar”. Concordei e

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perguntei, já informada sobre essa prática, se seria fácil vender lá fora aquela cera. Ela me disse que sim, que não dava muita coisa, mas sempre dava para conseguir “umas pratas”. Não me disse o valor, mas a venda seria com base no peso. Com tanta concorrência dentro do cemitério, evidentemente essas pratas serão poucas, o que só torna ainda mais evidente a extrema precariedade da situação socioeconômica dessas pessoas.

Além dos trabalhadores temporários ou informais que circulam por ele durante o dia à procura de serviço, o cemitério abriga um corpo de trabalhadores regulares. Dentre estes, foram os zeladores com quem tive mais contato, e que colaboraram mais com a pesquisa. Foram eles que, por vivenciarem o cotidiano do cemitério, me contaram sobre frequentadores de rotina e outros, “clandestinos”, que o visitariam fora do horário de expediente (diurno), o que eles tendiam a relacionar a “trabalhos de catimbó” ou “bruxarias” que afirmaram encontrar, com regularidade, principalmente nos espaços periféricos dos cemitérios. Sim, os cemitérios também têm sua periferia interna, suas regiões mal-tratadas e estigmatizadas (SÁEZ, 1996). Contaram-me também sobre usuários de maconha e de outras substâncias ilegais, que pulariam o muro do cemitério à noite para fumar, pelo fato de estar vazio e ser protegido por muros altos. E ainda enumeraram outras práticas ilícitas ou moralmente reprováveis, que, segundo eles, o cemitério passaria a abrigar após o fechamento dos seus portões, à noite, a despeito dos esforços da administração em mantê-lo em ordem. Esses depoimentos, baseados, segundo eles, em resíduos e rastros dessas atividades noturnas encontrados por eles logo pela manhã, ao iniciar a jornada de trabalho, revelariam uma espécie de lado B do cemitério regulado e ordenado que vemos durante o dia, mas também explicitaria todo um imaginário acerca do local. Uma das zeladoras do Bom Pastor, Ana, resumiu assim: “só

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pula o muro gente que quer fazer o que não presta”. Quando pedi que explicasse o que não presta, ela foi da bruxaria ao adultério e consumo de maconha.

Por meio dessas conversas com eles, pude confirmar que, também ali, a segunda-feira é o dia mais procurado para a ofe-renda de velas (MEDEIROS, 1995), o que normalmente se faz nos cruzeiros do cemitério. Nesse dia da semana não apenas eles – e as igrejas católicas – recebem um número maior de velas, como também as sepulturas acabam recebendo mais visitas por parte das pessoas que se dirigiram ao local para acender velas para as Almas. As velas também podem ser acendidas no queimador do túmulo, geralmente uma cavidade ou pequena área coberta situada atrás dele ou em sua parte superior, fechada de tal modo que ali a vela possa queimar sem ser apagada pelo vento. Uma das coisas que talvez concorra para a procura do cemitério nesse dia da semana, para tal finalidade, é a crença generalizada de que não se deve acender velas para os mortos dentro de casa, pois poderia acarretar algum mal para seus moradores. Recomenda-se, então, que esse procedimento seja realizado apenas a céu aberto ou sob a proteção dos espaços sagrados destinados a isso.

Alguns zeladores se mostraram bastante antipáticos aos cul-tos a Baracho e a Jararaca, em ambos os cemitérios, mas bem mais no Bom Pastor, onde cheguei a encontrar hostilidade em relação ao primeiro. No São Sebastião, a cooperação da parte deles foi, em geral, menor, e sua colaboração na pesquisa, pouca – a ponto de eu cogitar, em algum momento, que teria havido orientação adminis-trativa no sentido de que me evitassem, embora jamais tenha sido ostensivamente hostilizada. Talvez apenas estivessem saturados do interesse por Jararaca, já que se trata de caso famoso, atração turística. Já no Bom Pastor, eles próprios me interpelavam o tempo todo, puxando conversas, dando depoimentos sobre situações

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presenciadas ali, no cotidiano e no Dia de Finados, e opinando sobre tudo. Dos hostis a Baracho, ouvi que estaria perdendo tempo, que “isso aí está acabando”, mesmo naqueles períodos – que abrangem minha pesquisa de campo – em que desde os dias precedentes a 2 de novembro a visitação a seu túmulo era contínua, intensificando-se no Dia de Finados a ponto de reunir aglomerações e apresentar um fluxo regular de visitantes. Em ambos os cemitérios, a atenção que me foi dispensada pelos responsáveis pela direção foi fria e formal. Nunca escutei diretamente deles nenhuma reprovação explícita ao culto, 47 mas, em todo caso, acabei decidindo focar minha atenção nos devotos e nos visitantes dos túmulos e, de modo complementar, nos trabalhadores que lidavam diretamente com os túmulos e seus frequentadores mais de perto.

No cemitério do Bom Pastor, pude ouvir algumas vezes dos zeladores, e dos biscateiros esporádicos que zanzavam por ali, que a administração reprovava a devoção a Baracho. Diziam-me que a administradora do cemitério mandava que limpassem “a sujeira”, isto é, todas as oferendas, tão logo terminasse o expediente do Dia de Finados ou em qualquer outra ocasião em que o túmulo recebesse dádivas materiais expressivas. Uma zeladora chegou a me dizer que teria partido dela a iniciativa de reclamar na Secretaria de Saúde contra as garrafinhas de água deixadas lá para “matar a

47 Embora no Bom Pastor a administradora tenha frisado, sem que eu houvesse indagado a respeito, que seria evangélica, para afirmar que ela mesma não acredi-tava (nos milagres de Baracho), mas que se o povo acreditava, fazer o quê? O tom com que disse isso foi mais para melancólico do que hostil. Cheguei a conversar com ela rapidamente sobre a pesquisa, porém ela não demonstrou qualquer interesse em me escutar ou em interferir, fosse para atrapalhar ou colaborar. Foi polida, porém lacônica. Para meus objetivos, não me pareceu, então, importante insistir, embora hoje eu me arrependa disso. Teria sido interessante escutar as administrações de ambos os cemitérios, o que admito que não fiz, em nenhum dos dois casos. Na época, deixei-me levar pelo receio de que pudessem criar obstáculos para a colaboração dos zeladores, alguns dos quais costumavam conversar comigo durante minhas visitas, em seu horário de trabalho.

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sede de Baracho”. Não sei se isso é verdade, mas de fato constatei a rapidez com que as oferendas sumiam, mesmo entre os turnos de um mesmo dia (ou entre o final da tarde e a manhã seguinte). Porém, não posso afirmar que sumissem por ordem direta da administração do cemitério, embora isso seja uma possibilidade real, sobretudo em vista do fato de haver reclamações por parte de visitantes sobre o que veem como excessos do culto. Na verdade, queixam-se até do número de pessoas aglomeradas, no Dia de Finados, dificultando a passagem dos visitantes de outros mortos, fazendo ruídos, falando alto, o que consideram desrespeito aos seus próprios mortos sepultados ali. Esse incômodo, muitas vezes verbalizado em alto e bom som perante os devotos presentes, é racionalizado como preocupação com a ordem no espaço público do cemitério, mas na realidade parece refletir antes preocupações morais e religiosas. Voltarei a este assunto na última seção deste capítulo, na qual tratarei dos conflitos entre devotos e demais fre-quentadores do cemitério. Como já afirmei, nunca escutei qualquer declaração por parte das pessoas que ocuparam as administrações dos dois cemitérios que manifestasse categórica reprovação ou hostilidade pelos devotos ou pelos objetos devocionais, embora tenha percebido a secura no tom, o desencorajamento do interesse por eles, e, mais comumente, a insistência, não só pelos adminis-tradores aliás, no seu esvaziamento: “Isso aí está acabando. Não é mais o que já foi. Antigamente sim, ficava cheio ali em volta, cheio demais. Tinha dia que era um incêndio ali na cova de tanta vela. Agora, só um pouquinho de gente que ainda vem”.

Ainda sobre os objetos devocionais deixados no túmulo, Ana, 39 anos, católica e devota ardorosa de Baracho, zeladora no cemitério Bom Pastor desde os 19 anos, contou-me que havia se curado de uma cólica menstrual muito intensa de que sofria “desde mocinha”, após ter-se lavado algumas vezes com a “água

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milagrosa” de Baracho – expressão usada por ela. Por ter aquela experiência pessoal de cura, dizia-se “revoltada” com a postura da administração do cemitério, pois, segundo ela, ordenariam aos zeladores que jogassem no lixo tudo que fosse deixado ali, no túmulo, principalmente as garrafas de água, que, segundo teriam dito a eles, “só serve pra causar dengue”. Transcrevo abaixo um trecho desse depoimento, no qual associa a postura da adminis-tradora ao seu pertencimento religioso.

Ignorância, muita ignorância. Mas fazer o quê, ela manda eu tenho que obedecer. Mas eu peço perdão a Deus. Levo pra casa umas, o resto jogo aí, ela que manda. Outro dia mesmo levei pra um vizinho meu que tava com dor nas costas, reumatismo, que os médicos chamam. Ficou bom. Mas essa gente assim a gente fala, mas eles não acreditam, crente é assim. É o jeito deles, eles são tudo assim.

As opiniões, atitudes e comportamentos dos trabalhadores dos cemitérios, no que diz respeito às devoções a Baracho e a Jararaca, variam bastante, da devoção à completa indiferença, passando pela hostilidade. No entanto, também é verdade que em todos os que manifestaram hostilidade ou aversão pelo culto, ou mesmo uma reprovação mais moderada, estava presente alguma ligação com o cristianismo protestante (embora o inverso não seja verdadeiro: nem todo os protestantes se mostraram contrários às devoções). E é verdade também que, dentre esses trabalhadores dos cemitérios, os francamente hostis foram minoria.

Outra zeladora do Bom Pastor, Conceição, 27 anos, criticava aberta e agressivamente a devoção a Baracho, em conversas com outros trabalhadores, das quais participei ou que pude testemunhar inúmeras vezes, nessa e em outras ocasiões ao longo da pesquisa de campo. Ela fazia questão de ressaltar, nessas conversas, que era “católica praticante”. “Baracho é santo nada” era uma das frases que

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mais repetia então. Referia-se aos objetos devocionais deixados em seu túmulo como “bruxaria”. Segundo ela, podia até ser que alguns dos devotos que ofereciam aquelas coisas fossem pessoas de boa-fé, mas a maioria seria composta pelo que ela chamava “os bruxos” ou, ainda, “gente que vem pedir o mal dos outros”. Para corroborar essa ideia, ela descrevia os objetos que, para ela, só poderiam estar associados à bruxaria, como “bonecas espetadas com alfinete”, o que eu, em tantos anos de frequentação ao cemitério Bom Pastor e São Sebastião, dentre tantos outros, nunca cheguei a ver.

Pude ver, realmente, algumas vezes, bonecas, inteiras ou em parte dentre as oferendas, assim como fotografias, outro objeto suspeito de utilização maligna, mas daquelas sobre as quais pude perguntar diretamente aos ofertantes, escutei que seriam repre-sentações do doente para o qual se pedia cura ou pagamento de promessa, fazendo as vezes de ex-voto. No entanto, Conceição, ao ouvir essa justificativa, reservava-se o direito de duvidar dela e insistia que se trataria de ritos malignos, cujo propósito seria prejudicar a pessoa representada pela boneca ou na fotografia. Para ela, esse tipo de representação humana, por si mesma, indicaria a malignidade da oferenda, e para quem seria realmente dirigida. Não para um santo.

As animosidades em relação a Jararaca, no São Sebastião, por parte de seus trabalhadores não se mostraram tão frequentes nem tão inflamadas. Talvez isto possa ser explicado pelo fato de Jararaca ser consagrado na cidade por uma narrativa maior, que engloba e ultrapassa seu culto religioso naquele local, e que todos conhecem. Além disso, é atração turística e isso confere certo prestígio a quem tenha informações sobre ele e esteja disposto a compartilhá-las. Assim, não é tão difícil encontrar pessoas dispostas a falar sobre ele de modo simpático, embora isso não implique qualquer grau de devoção ou simpatia por ela. Seu túmulo pode ser procurado por

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turistas ou pessoas a serviço na cidade de Mossoró, que para lá podem seguir, curiosos, após uma visita ao Memorial da Resistência ou ao Museu Histórico Lauro da Escóssia, conhecido popularmente como Museu do Cangaço, ou após assistirem, durante os festejos juninos anuais, a peça teatral Chuva de Bala no País de Mossoró – baseada na obra do escritor potiguar Tarcísio Gurgel, que exalta a “resistência dos bravos” de Mossoró e a derrota de Lampião – na qual Jararaca pouco aparece ou nem aparece, já que não há interesse dos seus promotores em destacá-lo. No entanto, ele faz parte dessa saga, e assistindo ao evento no meio do público, pude escutar referências aqui e ali sobre as crenças em seus milagres póstumos.

O fato de não haver uma verdade oficial bem estabelecida sobre eles e sobre os fenômenos póstumos em torno deles, de serem tão variadas e contraditórias as versões que sobre eles circulam, não são fatores contrários à permanência do seu culto, muito pelo contrário. Como tenho ressaltado, ela possibilita e propicia ampla margem de indeterminação, propícia para as elucubrações do intelecto, os voos da imaginação e as interpretações autônomas. Pode-se, em torno delas, propagar todo tipo de debate ético, moral, religioso, histórico. É justamente por isso que esse tipo de devoção, em princípio local, prolifera fora de qualquer controle, fazendo da fraqueza sua força.

Conflitos em torno do túmulo e além

O fato de não haver no culto a esses santos dos cemitérios uma normatização, escrita ou oral, explícita e unificada, imposta por mediadores que pudessem falar em nome dele, e da defesa de sua manutenção, ou pudessem organizá-lo, acaba por ensejar ampla margem para conflitos entre versões discordantes acerca

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de todos os seus aspectos, tanto os práticos como os ideológicos. Formas de agir e pensar sobre as devoções emergem e se mantêm, não de modo aleatório, pois partiriam de referências presentes na cultura brasileira e na história local, e especialmente das matrizes religiosas significativas para aqueles que entram em contato com elas, mas não se encontram, por outro lado, condicionadas por prescrições claras quanto a normas de conduta no local ou scripts rituais ou doutrinárias. Também não existe uma história de Jararaca ou de Baracho, mas várias histórias, narradas em diferentes chaves – e diferentes gêneros narrativos –, disputadas por diferentes segmentos sociais. Mesmo dentro do ritual, entre os que se apresentam como devotos, podemos encontrar mais de uma forma de contar quem foi aquele morto, o que ele fazia quando vivo, como morreu e por que tantas pessoas hoje procu-ram seu túmulo para rezar e fazer-lhe pedidos. Se entrarmos na discussão sobre sua eficácia póstuma como santo (ou milagreiro, como costumam dizer alguns), novamente nos deparamos com interpretações distintas, às vezes antagônicas, embora possam partir de, ou chegar a, elementos comuns.

Não encontrei, por exemplo, uma biografia padrão para nenhum deles, que tomasse como referência e propósito o reforço da devoção,48 como é característico das hagiografias. Esse tipo de narrativa pode estar presente em canonizações populares em cemitérios, como ocorre nos casos em que ela é encampada pela família do morto, por alguém relacionado de modo especial a seu culto ou até por alguma autoridade local (FRADE, 1987; SCHNEIDER, 2001; SILVA, 2010). Nestes casos, pode-se observar

48 Existem, porém, trabalhos de pesquisa, acadêmicos ou jornalísticos, sobre Jararaca (ALMEIDA, 1981; NASCIMENTO, 2016) e Baracho (SOUSA, 1994), mas estes estão referidos a outros domínios, ao jornalismo ou à Academia, não se caracterizando como empreendimentos devocionais ou hagiográficos, que é ao que me refiro aqui.

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a existência de uma versão considerada a melhor e mais correta, aquela que esses mediadores endossam e procuram consolidar e veicular por meios impressos como santinhos e libretos sobre o santo, nos locais da devoção – que, nestes casos, podem incluir outros espaços para convívio dos devotos e simpatizantes do santo, onde possam se reunir, consultar material sobre ele etc. Quando há mediadores, estes podem tentar disciplinar de algum modo as práticas devocionais, além de homogeneizar seus discursos, o que não significa que alcancem sucesso nessa empreitada.

A presença de pessoas contrárias às devoções, e que algumas vezes lhes reprovam aberta e enfaticamente, e confrontam seus devotos com grosserias e acusações, atestaria e fomentaria seu caráter ambíguo e controverso. As justificativas alegadas para tais atitudes podem variar tanto a ponto de irem do campo religioso ao sanitário, passando pelo zelo pelas normas de utilização do espaço cemiterial enquanto espaço para uso público. As garrafas abertas da água oferecida a Baracho poderiam contribuir para a disseminação da dengue no bairro do Bom Pastor; o calor e o odor provocados pelo excesso – noção sempre relativa – de velas, ainda mais em dias muito quentes, seriam pouco saudáveis, e a aglomeração de pessoas junto ao túmulo dificultaria o trânsito de outros visitantes pelo local e prejudicaria especialmente a tranquilidade dos parentes que visitam os mortos das sepulturas e túmulos vizinhos ao do santo. Afinal, todos os visitantes teriam direito ao espaço do cemitério, e todos os mortos, a serem homenageados em Finados, não apenas aqueles que fazem milagres.

Além dessas alegações, encontramos também aquelas ava-liações negativas comuns quando se trata de devoções populares, como aquelas que as reduzem a “superstição de gente ignorante” ou a resultado de ingenuidade, resíduo pré-moderno de práti-cas e crenças que, segundo elas, já não deveriam ter lugar na

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modernidade. Neste sentido, esse tipo de crítica subscreve a ideia de que sociedades modernas seriam, ou deveriam ser, sociedades laicas. Sobre isso, o sociólogo da religião Ricardo Mariano (2011, p. 239) identificou tal concepção mesmo no campo das próprias Ciências Sociais e dos estudos sobre religião:

Uma das críticas mais contundentes que se faz à teoria da secu-larização consiste em questionar a avaliação que as análises sociológicas fazem do lugar e do papel da religião na moderni-dade. Nesse sentido, boa parte das críticas recai sobre noções da secularização que operam com uma linguagem teleológica e a-histórica da teoria da modernização e que, dessa forma, tendem a padecer de sérias dificuldades (quando se dispõem a fazê-lo) para explicar a variabilidade e a contingência histórica dos processos de secularização.

Noutra vertente, crenças populares em curas rituais mila-grosas, ou que envolvam oferendas a entidades espirituais, são frequentemente percebidas por seus detratores como bruxaria – categoria de acusação, de cunho moral (e frequentemente racial), nunca apenas descritiva, no contexto brasileiro. Ou, ainda, como religião falsa, inautêntica e/ou ilegítima. Neste último caso, a categoria acusatória utilizada é, de modo geral, seita, tomada como o oposto de religião ou igreja. Neste caso, as críticas às devoções populares como essas estudadas neste livro são realizadas a partir do próprio terreno religioso, reconhecendo-o como campo social relevante, mas desqualificando nele sua presença, em contraposição a outras formas de religiosidade consideradas legítimas. Desse ponto de vista, a crítica ou rejeição é estabelecida de modo relacional e concretamente situado, pois aquele que critica assume uma série de pressupostos sobre adequação, legitimidade, autenticidade, ao discorrer sobre uma devoção particular qualquer, que toma como referência sua própria idealização do que seja uma religião verdadeira (seja ou não um crente).

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As caracterizações depreciativas e as categorias de acusação derivadas delas – supersticiosos, ignorantes, bruxos etc. – pro-curariam apontar para comportamentos desviantes de normas implícitas, não discursivas, e dos valores caros àqueles que as adotam. Quero dizer, não se trata apenas daquilo que é abertamente alegado, como o desrespeito aos demais mortos e seus parentes, ou às normatizações internas do cemitério; ou de incômodo com o lixo produzido por resíduos de velas, embalagens, ou aquilo que é percebido como tumulto produzido por momentos de aglomeração popular. Elas trariam em seu bojo toda uma gama de representações mais profundas, todo uma imagerie do atraso e do primitivismo, associadas no Brasil tanto ao racismo como ao preconceito de classe do qual frequentemente são vítimas as manifestações culturais populares, inclusive as religiosas.

Bruxaria ou “catimbó”, neste contexto, refere-se, então, não a alguma religião afro-brasileira particular, mas a uma percepção genérica da afro-religiosidade e das religiões mediúnicas em geral bastante disseminada nos locais onde pesquisei, o que, por sua vez, não exclui que algumas dessas mesmas pessoas tenham ou possam ter tido no passado adesão e participação nessas religiões, mas, antes, que estão cientes de sua estigmatização e operam dentro de seu quadro, ora como seus agentes, ora como suas vítimas, ora até mesmo ocupando simultaneamente ambas as posições, em diferentes situações.

Isso não deixa de replicar, aliás, os efeitos da própria estig-matização sofrida pelas devoções aos santos dos cemitérios. Onde e quando elas se mostram mais acentuadas, mesmo alguns dos seus autodeclarados devotos tendem a evitá-las ou a negar sua identificação com elas, por meio do ocultamento de suas práticas e da recusa em falar sobre o assunto. Bruxaria e catimbó operam,

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portanto, aqui como categorias por meio das quais as pessoas procuram assinalar não apenas sua reprovação à existência dos ritos devocionais, duvidosos, a esses mortos, e às ideias que os sustentam, mas seu distanciamento pessoal em relação a eles. No caso dos pentecostais, essa rejeição se dá de modo mais marcado, em nome da própria incompatibilidade percebida entre suas convicções e crenças e a devoção, moldada sob gramaticalidade católica.

Bruxaria, assim como superstição e seita, parece ser categoria de acusação, insulto ou zombaria (BUTLER, 1997) aplicável, em princípio, a quaisquer crenças e ritos percebidos como ética ou moralmente abjetos, do ponto de vista pessoal. Assim como seita é a religião dos outros, daqueles a quem desaprovo, bruxaria passa a ser qualquer conjunto de procedimentos rituais que não compreendo ou não aceito. Aí pode estar uma das chaves para a compreensão da aura de clandestinidade que cerca esses cultos quando não estão no quadro, ao menos parcialmente legitimador, das tradições funerárias de Finados. E, mesmo em Finados, como vemos, as rejeições se manifestam, principalmente da parte de pessoas que se identificam, individualmente ou em grupos, como evangélicas (protestantes, em geral pentecostais).49

Sobre Jararaca, principalmente em Mossoró é difícil encon-trar quem não tenha, no mínimo, ouvido falar dele, já que se trata de personagem carimbada com o selo de histórica, como parte do fenômeno social chamado cangaço, objeto de estudos em diversos campos, como a História e a Sociologia (LUNA, 1972; MACEDO,

49 Durante o período de trabalho de campo, a maior parte dos interlocutores eventuais no cemitério que se identificaram como evangélicos ou crentes era da igreja Assembleia de Deus, uma denominação pentecostal oriunda do Pará, onde foi implantada por dois religiosos suecos, Gunnar Vingren e Daniel Berg, no início do século XX. Sua fundação oficial data de 18 de junho de 1911 (PAULA, 2013).

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1975; CHANDLER, 1980; BARROS, 2000; MELLO, 2004), e parte da história da própria cidade (NONATO, 1955; FELIPE, 2001). Assim, se a cidade e o cangaço gozam do status de ter uma história, o que em si consiste em um privilégio para poucos, Jararaca, como parte de ambas, termina por abocanhar seu pequeno quinhão.

Porém, João Baracho não teve a mesma sorte: dorme no limbo de relativo esquecimento, no cotidiano da Natal de hoje, sendo normalmente resgatado dele somente quando seu culto em Finados ganha alguma repercussão. Sem a moldura de um evento histórico que o enquadre, como opera para Jararaca a invasão de Mossoró pelo bando de Lampião, ele pode ser apenas mais um joão-ninguém: executado no passado pela polícia, durante fuga, em um antigo matadouro de animais, agonizou na porta de uma vizinha, em um beco da favela onde morava, após haver tentado, sem sucesso, beber da água doada por outra vizinha. Apesar de ainda comover – mover junto – a uns tantos, que o recordam, homenageiam, levam presentes e pedem seu socorro, sobretudo pelo tema tão sensível do sofrimento pela sede/falta de água, execuções de criminosos ou suspeitos pela polícia tornaram-se atualmente notícias, infelizmente, corriqueiras, nas cidades atuais, e já não parecem capazes hoje de causar o mesmo impacto daquela época. Nem Mineirinho, o famoso criminoso carioca, modelo a partir do qual a mídia potiguar parece ter tentado moldar Baracho, no início dos anos 1960, conseguiria ser tão impressionante nos dias de hoje. E as execuções de ambos, Baracho e Mineirinho, seriam provavelmente tratadas pela mídia de outro modo e recebidas por uma audiência ambivalente, dividida, grosso modo, entre indignados e pesarosos, contrários a abusos policiais, de um lado, e punitivistas convictos, de outro.

Porém, como eu havia dito, não existe apenas um João Baracho. Além daquele que pode ter sido um facínora, tão perigoso quanto o cangaceiro Jararaca – que também, por outro lado, pode

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ter sido mais um revoltado social do que o bandido sanguinário das lendas50 – existe o Baracho bom, solidário, que, se roubava, era para “ajudar a pobreza”, isto é, nessa versão, ele nem foi assassino, mas um injustiçado, pois teria sido apenas um ladrão de ocasião que roubava para dar aos pobres; alguém que também passaria necessidades e que, quando conseguia alguma coisa, compartilhava com os demais. Há muita insistência nessa versão, de longe a mais repetida entre devotos.

De certa forma, Baracho, justamente por não estar limitado por moldura histórica consagrada, publicamente reconhecida e compartilhada, pode apresentar identidade mais fluida, mais plástica e, portanto, modificável conforme a perspectiva adotada pelo narrador. De certo modo, ele é alguém reconhecível, mais próximo, mais de casa do que Jararaca, mesmo sendo este mais conhecido em Mossoró do que é Baracho em Natal. Pois ser ladrão ou mesmo o personagem midiático “matador de motoristas” de sua época não o resume completamente nem esgota a percepção de quem ele teria sido para seus devotos e outros, que o recordam hoje e o visitam no cemitério. Ele também teria sido feirante, dono de um comércio no local (Carrasco), pedreiro, imigrante vindo do interior do estado, companheiro de Maria Lúcia, a quem os jornais se referiram como sua amante.

Enfim, Baracho pode ser visto, tanto na vida como na morte, como mais um vizinho meio torto, como tantos outros, na mesma periferia da cidade, e não como um total forasteiro inimigo, como Jararaca foi inicialmente, e para tantos até hoje, em Mossoró. Com o cangaceiro, embora se preste tão bem ao romanceiro popular e à fabulação, nem todos se sentem tão à vontade. Aliás, justamente por ser personagem do cangaço, sobre o qual tanto já se publicou,

50 “Jogava criança pra cima e aparava na ponta do facão” é o bordão consagrado, sempre na boca do povo, sobre ele. Eu o escutei inúmeras vezes, quase sempre dito entre risos e piscadelas marotas.

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e em tão diversos registros. Ainda que se saiba bem pouco sobre o indivíduo José Leite de Santana, acredita-se saber muito sobre Jararaca, afinal, era um cangaceiro, categoria reconhecível nas tradições orais e escritas populares da região. Isso já diria muito sobre ele, embora não diga tudo.

Sobre o cangaceiro, à sua brutalidade e violência podem ser associados, ainda, outros elementos, o que complexifica sua personagem e dá origem a uma multiplicidade de relatos de gêneros diversos. Por um lado, temos suas traquinagens e faceirice, à maneira de um Macunaíma, que o aproximam da mitológica figura do trickster, o trapaceiro tão presente nas mitologias ameríndias (LÉVI-STRAUSS, 1971; HYNES; DOTY, 1993); por outro lado, ele pode encarnar o próprio Diabo (MENEZES, 1985, p. 92-130), enquanto representação ou agente do Mal e fonte de enganos humanos, o que podemos ver, por exemplo, nas acusações dos pentecostais ao culto.

Esses dois aspectos do cangaceiro – não exclusivamente dele, aliás – podem surgir numa mesma configuração, pois o diabo enga-nador outra coisa não seria senão o maior dos tricksters, inclusive recebendo em muitas narrativas orais aquela mesma conotação diver-tida e ambígua, tão atraente, que se mostra capaz de borrar qualquer fronteira entre Bem e Mal, certo e errado, levando a que inocentes tomem um (o diabo) pelo outro (o santo). Assim, Jararaca continuaria aprontando das suas,51 como o grande trapaceiro que seria, ao fazer-se

51 Para compreender bem esse ponto é preciso ter clara a dimensão mágica e humo-rística presente em parte das narrativas orais e cordéis que tematizam o cangaço. Embora criminalizados, os cangaceiros encarnam personagens moralmente ambíguas, romantizadas, tornadas atraentes na medida em que transgridem normas estabelecidas e enganam as forças repressivas, impondo-se, nessa pers-pectiva, às classes dominantes de sua época. Podem, ainda, ser retratados como verdadeiras forças sobre-humanas, capazes de vitórias sobre forças da natureza, como animais ferozes, a fome, a seca, e até sobre forças sobrenaturais. Algumas histórias mostram Lampião trapaceando o próprio Diabo ou se igualando a ele em esperteza e maldade. Sobre cordéis, ver Curran (2001, p. 60-76).

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acreditar como santo depois de morto. Ambíguo, mesmo em suas versões mais cavalheirescas e romantizadas (CURRAN, 2001, p. 62), como aquelas nas quais vinga os humilhados e pune os violadores de moças, ou distribui entre os pobres os bens roubados dos ricos, o cangaceiro ainda conservaria a capacidade de causar, ao mesmo tempo, temor e admiração. Afinal, se se admite que o Diabo brinca, com o Diabo não se brinca.

Mas, afinal, quais são as críticas e os motivos alegados para a rejeição aos devotos e à prática da devoção no cemitério? Katiane Rochelle, jovem de 18 anos, moradora do bairro Bom Pastor, aproximou-se das pessoas reunidas em torno do túmulo de Baracho e lhes dirigiu em voz alta, como se pregasse ou lhes fizesse um alerta, comentários como “O Diabo engana as pessoas. Sabe enganar. Ele era criminoso, só pode estar no inferno agora. Milagre só se for do Diabo”. Alguns dos presentes reagiram. Escutei um e outro “que ignorância” vindo do meio da aglomeração e de pessoas próximas ao local onde me encontrava. Alguns lhe dirigiram respostas, diretamente. Essas respostas se ancoravam na ideia de que ninguém conheceria “os desígnios de Deus”, só Deus saberia se João Baracho estaria salvo ou não. “Deus é que manda, é tudo como Deus quer.” Insistente, porém, mesmo enquanto conversava comigo, que me dirigi a ela logo em seguida para lhe pedir que me explicasse por que dissera aquilo, ela continuava intercalando a conversa comigo com falas dirigidas às demais pessoas em tom exaltado. Chegou a fazer um pequeno discurso.

O diabo confunde a mente das pessoas pra elas acreditar que ele foi santo. Só que ele não foi santo, santo só foi Cristo, que pode perdoar pecado, que pode salvar, que pode curar. Foi morto e ressuscitou no terceiro dia. Ele não. Ele tá aqui enterrado, mortinho. Tá é perdido no inferno.

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Na continuidade da conversa comigo depois, à sombra de uma árvore próxima, agora já sem a performance voltada para os devotos, Katiane se definiu como “ex-católica”: “não acredito mais nesse negócio de santo não. Santo de barro não pode se mover”. Contou-me que não frequentava mais igrejas, mas já havia frequentado a Igreja do Nazareno, ali mesmo no Bom Pastor. Afirmou, então, só crer na Bíblia. Revoltada com o próprio fato da existência do culto a Baracho, retomou o tom alterado usado anteriormente, mas agora se dirigindo somente a mim, em voz mais baixa: “É um absurdo isso! Rezar pra assassino! Santo nada, ele tá é mortinho, aí debaixo da terra. Se fosse santo tava lá junto de Deus, mas que santo o quê!”

No mesmo cemitério, eu já havia escutado palavras seme-lhantes, em discurso tão bem articulado, e emocionalmente car-regado, quanto este, de uma das zeladoras, esta, católica. Sentada uma tarde ao lado de Conceição, ela, que sabia que eu estava ali por causa da devoção a Baracho, me disse:

Como é que uma pessoa dessa, que matava, fazia tanta maldade e vira santo?! [faz que não com a cabeça, de modo enfático, para mostrar contrariedade] Uma pessoa que faz uma barbaridade dessa! Pessoa que faz milagre pro bem, né? Dizem... [sarcástica] Colocam aí bonecas espetadas com alfinete, bonecas cortado o pescoço, bonecas com o nome de gente dentro... É pra fazer uma bondade isso, é?

No livro de Oscar Calávia Sáez, Fantasmas Falados (1996, p. 132), encontramos discurso semelhante na boca de um informante muito ativo nos cultos do cemitério da Saudade, Campinas. Seu Bento, católico, falando sobre Jandira, sepultada e cultuada naquele cemitério, prostituta e suicida, que para uns é santa, para outros, Pombajira, teria dito a Sáez:

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essa moça era rapariga e se matou com as próprias mãos, e então espírita e umbanda, quando viram os milagres que aqui aconteciam, achou graça fazer dela um santo... porque o demônio também faz milagres... aí nunca vi cego enxergar, aleijado andar. O único milagre que vi é mulher que quer marido da outra, e pedindo aí tira...

Ou seja, da mesma forma como observei nos cultos a Baracho e a Jararaca, a moral duvidosa do defunto santo contamina a dos devotos, tratados, então, como pessoas moralmente suspeitas ou, na melhor das hipóteses, enganadas – pelo que também podem ser eticamente responsabilizadas, já que isso pode ser visto como decorrência da ausência de interesse em se aproximar do verdadeiro na religião, de Jesus. Outro aspecto comum com os dois casos que observei no Rio Grande do Norte é que também no cemitério de Campinas não se coloca em dúvida a eficácia de Jandira no aten-dimento aos seus devotos, e sim sua fonte (demoníaca, não divina; maligna, não benéfica) e suas motivações e propósitos (egoístas, maldosos, imorais). Fazer milagre, ela até faz; resta saber, parece dizer Seu Bento, por que e para que.

Baracho fazia maldades, barbaridades, era um assassino; logo, se quando vivo era mau, depois de morto só pode ser associado ao mal (ou Mal). Quanto ao devoto, ele é acusado, no mínimo, de fazer uma escolha equivocada, pois é disso que se trata, desse ponto de vista: uma escolha, pois poderia rezar para Jesus. Constitui-se, assim, nessa visão, um tripé ou cadeia maligna que articula mau santo, mau devoto, má devoção. Se a causa das suspeitas sobre os devotos (suas intenções, finalidades, ritos) está no primeiro elo da cadeia, o morto, por seu passado criminoso, elas o condenariam a permanecer, agora na morte, na mesma condição de marginalidade em que teria vivido sua vida, estendendo tal condição também aos devotos, pois que produziriam efeitos estigmatizantes sobre eles

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e sobre todo o conjunto ritual. Nem a legitimidade das tradições funerárias conseguem protegê-los disso.

Parece-me notável, contudo, que a própria possibilidade de intervenção miraculosa do morto,52 por mais moralmente questio-nável que este se mostre do ponto de vista dos seus detratores, não seja, ela própria, posta em dúvida por quase ninguém. Somente os que criticam a devoção como prática pré-moderna, supersticiosa ou irracional, ou se dizem avessos à religião, negaram a realidade, ou até a possibilidade, dos milagres, digo: de efeitos reais percebidos e testemunhados pelos devotos, atribuídos por eles apenas e tão somente à intervenção espiritual do santo e/ou de Deus. Para os demais, o milagre pode ser real de duas formas: no plano psico-lógico, pode ser percebido como real pelo devoto, como efeito de sugestão causada pelos relatos ouvidos sobre a eficácia da devoção; ou pode ser da ordem do fato mesmo, algo extraordinário que escaparia a explicações científicas correntes, como a cura de um doente de câncer em estado avançado, dito incurável, sem que tivesse havido qualquer tratamento médico suplementar.

Aí nos encontramos diante de uma nova bifurcação, quanto à origem do milagre: para os que acreditam nos milagres de Baracho, Jararaca e santos afins como fatos reais, o Diabo é quem os promoveria, com a finalidade de seduzir os incautos53 e recrutá-los para suas fileiras, levando-os a crer ou reforçar suas crenças em falsas divindades (caso de Katiane e Seu Bento, por exemplo);

52 Jandira, a prostituta que ateou fogo ao próprio corpo, é por muitos assimilada a Pombajira, entidade da umbanda, em São Paulo. No entanto, os que condenam seu culto por esse motivo não duvidam que ela, ou qualquer dos outros ‘santos’ do cemitério da Consolação, em Campinas, São Paulo, possa obrar milagres (SÁEZ, 1996). A questão é se esses milagres seriam da santa Jandira ou da Pombajira Jandira.

53 O mesmo que protestantes afirmam sobre os milagres alcançados nos cultos mediúnicos, em geral: sua fonte seria demoníaca. Por isso, os milagres em si, argumentam, não provam nada. Ver Mariz e Machado (1994, p. 31).

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para outros, mais benevolentes (Maria da Conceição Maia, da Assembleia de Deus, que pagou a promessa de sua irmã, Regina, católica, por exemplo), o milagre decorreria da intensidade e da sinceridade da fé, independentemente de o objeto da devoção merecê-la ou não, ser divino ou não, ser santo ou não. Isso não faria diferença, pois ele seria apenas um instrumento de Jesus. Se o milagre foi alcançado, isso evidenciaria a presença de Jesus, única força capaz de fazê-lo.

Nessa segunda vertente, não há questionamento do teor dos pedidos, ou seja, não há suposições sobre más intenções ou objetivos malignos nesses pedidos, até porque não se opera com a dicotomia Bem-Mal nem se recorre a influências demoníacas como explicação. O que se mobiliza é, antes, um esquema conceitual gradual, no qual se pode estar mais perto ou mais longe de Jesus, ou ter mais ou menos fé. O questionamento, nestes casos, é dire-cionado antes à necessidade da mediação, vista como dispensável. Maria acreditava que Baracho não teria nada a ver com a cura de sua irmã. O milagre havia sido de Jesus, e ela poderia ter rezado diretamente para ele. Alguém mais radical como Katiane jamais aceitaria Baracho como mediador divino, ou que sua mediação, uma vez realizada, pudesse ser inócua, pois, apesar de Jesus estar acima de tudo também para eles, sua tendência é ver o mundo como um campo de batalha espiritual (BUDKE, 2016; BIRMAN, 2009; FERNANDES, 2002), onde as almas humanas, e sua disposição para a fé, estariam permanentemente em disputa por entidades sedutoras, que emergiriam sob os mais diversos disfarces, a serviço do Diabo.

Os conflitos não deixariam de concorrer também para o fortalecimento e a permanência das canonizações nos cemitérios, tanto no eixo temporal como no sincrônico: as divergências, contro-vérsias e mesmo brigas em torno do túmulo – replicadas em outros ambientes e círculos de conversas – contribuem para propagá-las

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para além dos muros dos cemitérios, atraindo potenciais devotos para elas, bem como turistas, pesquisadores, jornalistas, cordelistas. Além disso, eles podem ser entendidos, como sugere Simmel (1983, p. 123), como relações entre “elementos que trabalham juntos, tanto um contra o outro, como um para o outro”, isto é, como síntese dinâmica entre antagonismo, convergência e mútuo reforço, seja pela afirmação de si operada pela rejeição do outro, reciprocamente; seja pelo próprio efeito de reflexividade produzido por esse processo.

Se, como dizem, essas devoções já não são o que eram anti-gamente, e estão acabando – em um processo de acabar que não acaba, há pelo menos duas décadas – as oferendas, como as garrafas de água para Baracho e flores para Jararaca, continuam brotando sobre seus túmulos. Como índices, os objetos devocionais parecem, então, contradizer, no plano da experiência, a extinção anun-ciada, sinalizando sua permanência. Na verdade, como vimos, eles podem se constituir, justamente por sua materialidade, visibilidade e ambiguidade, em signos perfeitos da precariedade e criatividade dessas devoções, pois, redutíveis a lixo, sujeira contaminante, não teriam como permanecer ali. Consagrados pelos ritos e postos em circulação, transitam por outros espaços, investidos de outros significados e poderes, ensejando situações nas quais outras pessoas entrarão em contato com esses objetos e escutarão depoimentos sobre os milagres a eles associados, e irão, por sua vez, levar sua própria oferenda ao cemitério e lá passar adiante a história ouvida.

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Capítulo 5 Palavras rituais: relatos e narrativas em trânsito

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Pode parecer estranho iniciar o capítulo sobre narrativas fazendo referência a um clássico da Antropologia Urbana, mas isso é exatamente o que estamos fazendo: a noção de região moral, proposta por Robert Ezra Park, sociólogo da chamada “Escola de Chicago”.54 Com ela, Park procurou pensar sobre as dinâmicas situ-acionais que tornavam mutuamente constitutivas as identidades e os espaços físicos, fazendo destes lugares singulares, dotados de textura moral, isto é, valorativa. Assim, as cidades estariam longe de serem apenas espaços neutros distribuídos segundo lógicas instrumentais, técnicas e normativas, mas antes se constituiriam em realidades vivas, porque vividas, significativas para seus ocupantes segundo suas experiências, que, por sua vez, deixariam neles suas marcas e os transformariam, assim, em lugares de algum modo identificados com, ou contra, elas. Ou seja, subjacente à ordem universalista das normas jurídicas e dos planejamentos técnicos, existiria uma outra cidade, organizada segundo outros códigos, com base nos quais outras classificações e fronteiras seriam demarcadas, de modo a fazer emergirem tanto pontes como barreiras inesperadas. A praça

54 Escola, neste caso, faz referência a um conjunto de estudos sobre estruturas e relações sociais especificamente urbanas, desenvolvidos no campo da Sociologia, com sede na Universidade de Chicago, a partir dos anos 1920 (GUERRA, 2017). Esses estudos procuraram enfrentar pela primeira vez os problemas emergentes nas realidades das grandes metrópoles, como as levas de imigração massivas, a guetificação, os conflitos interétnicos, a violência, as dificuldades de moradia, dentre outros. Para saber mais, ver também Hannerz (2015).

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evocativa da infância, a área perigosa ou o bairro charmoso resultam de representações e percepções moldadas nesses processos, que, por sua vez, também definem em parte nossa percepção de nós mesmos. Eles assim são representados porque trazem uma carga de historicidade, memórias, associações identitárias com categorias sociais, eventos, grupos de pessoas, fenômenos da natureza. O que quer que tenha sido terá sido apreendido pela lente humana, sempre cultural e valorativa.

Assim, quando digo que as histórias e os objetos circulam, e que o deslocamento – movimento que se realiza através do espaço, cruzando por diferentes lugares, não esqueçamos disso – até o cemitério para compartilhá-los com outros pode ser encarado como prática penitencial, parte do ritual em sentido amplo, é preciso ter em mente o quanto os cemitérios estão socialmente longe dos circuitos cotidianos, isto é, longe dos trânsitos casuais do dia a dia para a maioria das pessoas, nas cidades atuais. A menos que se tenha um motivo não se vai até lá, muito menos a partir de outro bairro ou cidade. E, embora a morte frequente sem pudor nos noticiários, sobretudo sob as rubricas violência urbana, terrorismo e guerras, ela ainda assim permanece quase um tabu no nosso cotidiano ou, pelo menos, um assunto indesejável. Os mortos cultuados nos dois casos contemplados aqui, neste trabalho, também não favorecem muito uma mudança nessa perspectiva, pois trazem, eles também, sua própria carga de negatividade, marginalidade e estigma.

Como lugares, socialmente situados, os cemitérios do Bom Pastor e São Sebastião não se encontram em situação equivalente: pelo contrário, também nesse aspecto Jararaca leva a melhor, pois esse cemitério ocupa localização central e seu túmulo, tendo rece-bido reforma, atribuída popularmente a pagamento de promessa por devoto, apresenta uma aparência mais sofisticada, revestida

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por cerâmicas, do que o humilde túmulo de João Baracho. Além disso, o cemitério de Mossoró se encontra em uma região central, próxima a prédios da administração pública, enquanto o de Natal está no coração de um bairro de periferia, o Bom Pastor, conhecido como lugar perigoso, ou seja, marcado por uma valoração negativa e estigmatizante.

O que faz com que, em dado setor da cidade, duas ruas mais abaixo seja um lugar perigoso e aqui onde estamos não, são menos fatores empíricos e observáveis, estatísticas de violência ou motivos reais de preocupação, do que as distorções geradas por esse mapa valorativo, que vai redefinindo a cidade e suas regiões morais e, assim, impõe condicionamentos ao nosso olhar, aos nossos movimentos e à nossa voz. Evans-Pritchard, no seu estudo sobre os Nuer (1978), no Sudão, já havia mostrado que os esquemas conceituais – e Park acrescentaria, junto com Louis Dumont: e valorativos – definem para nós o que chamamos realidade, che-gando a se sobrepor aos chamados fatos duros ou quantitativos: a mesma distância, avaliada pelo sistema métrico, não era de fato a mesma distância quando avaliada do ponto de vista da população local em situações diferentes. Algo mais ou menos assim: para ir da minha aldeia até aquela outra, situada no mapa após aquela cadeia de montanhas, para dançar no baile da outra aldeia em dia de clima bom, em que os caminhos estão limpos e facilmente transitáveis, eu avalio a distância a ser feita como curta e digo “ah, é pertinho daqui”. Em situações opostas, se preciso ir até lá a contragosto, para lidar com uma situação difícil ou negociar com pessoas desagradáveis, ou se o clima está péssimo e os caminhos intransitáveis, minha avaliação já muda: “é longe, longe demais, lá do outro lado das montanhas!”. As pessoas não ignoram as métricas, elas simplesmente não são tudo, e nem sempre se mostram, para as avaliações que julgam cabíveis em cada situação, relevantes.

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É isso que quero dizer quando afirmo que objetos e palavras não circulam por quaisquer lugares nem de qualquer forma. Para alguns poderão ser sempre invisíveis ou inaudíveis, pois nossa percepção e nossa compreensão não se realizam no vácuo social. Sua circulação se encontra canalizada e limitada pelos muros invisíveis das barreiras valorativas e discriminatórias. Se são, por definição, de conhecimento público, como parte do repertório popular de contos, causos, lendas, histórias de assombração e fábulas, dentre outros gêneros possíveis, elas, no entanto, não são recebidas, onde chegam, da mesma forma. Em alguns lugares, as histórias do tesouro de Jararaca são apenas piadas, enquanto em outros podem representar uma linguagem cifrada por meio da qual Deus envia um sinal capaz de lhes trazer a esperança de melhores dias.

Dizer que as narrativas são de conhecimento público, com-partilhadas dentro de certos segmentos da população nas duas cidades – e além delas –, é dizer que elas pertencem a gênero distinto dos testemunhos de milagres e dos depoimentos pessoais sobre o passado e sobre o presente, embora todos esses pertençam à mesma categoria textual (escrito ou oral), os relatos, isto é, aquele tipo de discurso verbal que tem por propósito uma descrição de seres, lugares, acontecimentos ou situações. Ao contrário dos depoimentos que rememoram o passado, de si ou do morto santo, baseados em reminiscências pessoais ou em lembranças de terceiros, que surgem misturadas a informações extraídas de fontes públicas como jornais, rádio e outras mídias; ou ao contrário dos testemunhos de milagres, que se baseiam na vivência pessoal de haver estado lá e ter sido tocado por aquele acontecimento miraculoso que seria a intervenção divina, e, portanto, consistiria num relato referido à própria experiência ou a de terceiros, as narrativas populares tradicionais (contos, fábulas, lendas locais) se constituiriam em um patrimônio oral público, apropriado e moldado a variações

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locais, de modo a adaptar-se a personagens e situações familiares. Ou antes, estas é que seriam emolduradas por essas estruturas de certo modo padronizadas, porém nunca rígidas.

Assim, o tema do tesouro enterrado, por exemplo, um dos mais constantes no universo dos contos maravilhosos e fantásti-cos, pode ser utilizado para expressar algo que se sabe sobre os cangaceiros: que acumulavam butim originário de pilhagens. E o que seria desse butim quando de sua morte súbita? A pergunta daria margem a especulações que as estruturas formais do conto ajudam a enquadrar e responder: estaria enterrado em algum lugar, logo poderia ser encontrado e desenterrado. Não tem nada de novo na história, exceto que não é a mesma história, exatamente: desta vez, estamos no Nordeste, nos anos 1920 e a botija enterrada é a do cangaceiro. Ao escutarmos a narração de qualquer de suas variantes, ficamos com aquela impressão de já termos ouvido aquilo antes, o que provavelmente será verdade. No entanto, o que definirá se elas serão apenas o núcleo de um conto divertido, uma história de aparição de morto (fantástica) ou uma fábula (com uma lição de moral) são menos suas propriedades internas do que os modos situacionais como venham a ser contadas, postas em circulação e recepcionadas por seus ouvintes, comentadores e replicadores. Neste ponto, é importante que tenhamos presentes que sua transmissão se fará através de cadeias de elos que envolvem cumplicidade epistemológica (algo como falar a mesma língua, compartilhar o mesmo horizonte cultural), afetividade (formas de expressão) e pertencimentos sociais, fatores profundamente entrelaçados entre si.

Assim, as narrativas transitarão, com seus narradores, dos cemitérios para as vizinhanças nos bairros, e vice-versa, podendo chegar a ultrapassá-los por meio de outros suportes, como os livros, teses, reportagens, palestras acadêmicas. Essa circulação não se

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dará de maneira indiferente, pois os espaços não são neutros e nem toda circulação e escuta são possíveis para todos, sejam pessoas, objetos ou palavras. Quando alguém alega que tal ou tal fenômeno é invisível ou inaudível – ou nem existe ou existiu! –, essas percep-ções informam tanto (ou menos) sobre o fenômeno como (ou do que) sobre as possibilidades de visão e de audição daquela pessoa ou grupo social ao qual ela pertence, ou melhor, informa sobre a posição relativa que ela ocupa, e o que é possível ou não enxergar/escutar/compreender a partir dela.

Toda narrativa traz alguns elementos básicos, como sequências de acontecimentos encadeados, pessoas, tempo e espaço. O depoi-mento é um tipo de narrativa apresentado em primeira pessoa, no qual se conta sobre fatos que teriam ocorrido com o próprio narrador. Ele pode, inclusive, contar, indiretamente, sobre fatos que não testemunhou diretamente e que lhe teriam sido transmitidos por outro, mas sua narração o colocará como o protagonista, não dos fatos em si, mas daquela escuta privilegiada que o colocou inicialmente em posse de tal conhecimento, daquele outro tipo de tesouro que agora, ocupando a posição de narrador, se dispõe a compartilhar com seus ouvintes. Já o testemunho é o relato de uma ocorrência observada pelo narrador a partir de fora, quero dizer, tipicamente ele não seria seu protagonista, pois os fatos não teriam ocorrido com ele. É isso o que normalmente se quer dizer com testemunhar algo, ou sobre algo. Você apenas o relata a outrem.

Aqui é que se torna mais interessante pensar no que signifi-caria dar testemunho de um milagre. Venho dizendo que o milagre é testemunhado por aquele que o recebeu ou que pôde observar sua ocorrência (como Maria, sobre sua irmã Regina). Neste segundo caso, o narrador seria de fato testemunho da ocorrência do milagre. Mas, e no caso em que o narrador foi aquele que alcançou o milagre esperado, ele não seria o protagonista da narração? Evidentemente

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que não. O narrador terá sido antes o palco das ocorrências sobre as quais não exerceu, do seu ponto de vista, qualquer controle; foi o santo, ou Jesus, ou Deus, que agiu nele e alterou seu estado físico, mental e/ou moral. Assim, o testemunho do milagre é ainda um testemunho no sentido estrito do termo, tal como se define no campo dos estudos sobre gêneros e tipos textuais: tal como o depoimento, é um relato que descreve fatos reais, mas, ao contrário do depoimento, nesses fatos reais o narrador não é o protagonista dos eventos narrados. Ele é apenas sua testemunha.

O testemunho pode ser percebido, quanto à sua finalidade, como meio de construção e compartilhamento de conhecimentos, mas também como elaboração reflexiva dos próprios conheci-mentos sobre os acontecimentos e pessoas observados a partir, e somente a partir, das posições particulares que se ocupa em determinadas situações, e dos lugares singulares criados por essas situações. Por isso eu trouxe a noção de região moral formulada por Robert Park. Quando a quartinha de água benta de Baracho é transmutada em feitiço, torna-se evidente que não é a mesma quartinha ou o mesmo rito, que muitas das pessoas ali não se (re)conhecem como semelhantes entre si, e sequer estão pisando no mesmo chão. O cemitério dos devotos (coletivo que também, em si, comporta heterogeneidade) não é o mesmo dos parentes dos mortos ou dos seus zeladores ou moradores da vizinhança do cemitério, que convivem com conversas e histórias sobre aqueles (e outros) mortos, e seus ritos, há muitos anos. Isso explica ao menos parcialmente os conflitos.

Outro aspecto relevante para entendê-los é justamente levar-mos em conta o efeito estigmatizante da associação das pessoas ou dos eventos a certas regiões morais caracterizadas como perigosas, decadentes ou marginais, definições sempre relacionais: vimos como o próprio espaço dos cemitérios, principalmente no Bom

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Pastor – e não creio que se trate de coincidência – é frequentemente avaliado nesses termos. A tentativa de ordenar os ritos de devoção ou varrê-los, metaforicamente, para debaixo do tapete das normas administrativas, do proselitismo sanitário ou da pregação evan-gelizadora, parece constituir-se em tentativas de domesticação da criatividade intelectual e proliferação imaginativa (SÁEZ, 1996) próprias às religiões e às narrativas populares.

Através dos relatos acerca dos santos dos cemitérios, seja em chave histórico-lendário-biográfica, seja em termos de um idioma mágico-religioso que tende a apelar ao mítico-maravilhoso-miracu-loso, as pessoas, mesmo se não diretamente investidas nos cultos de devoção a eles, articulam, em sua voz e perspectiva, acontecimentos relativos à memória coletiva. Esse tipo de fenômeno vem rece-bendo cada vez mais atenção nas Ciências Sociais, na História e na Antropologia, com ênfase em relatos testemunhais e depoimentos autobiográficos (VERSIANI, 2005; KLINGER, 2007), fortalecida desde a emergência da chamada pós-modernidade. Insere-se no quadro de valorização das memórias locais e dos relatos produzidos a partir de posições sociais subalternas e identidades minoritárias, étnicas, religiosas, de gênero etc. Esses relatos permitiriam produzir e veicular uma contra-história (PEREIRA; ESLAVA, 2008, p. 215), divergente do discurso oficial consagrado por meios como, por exemplo, a mídia de massa hegemônica comprometida com grupos de interesse dominantes, e os materiais didáticos propostos pelo Estado sujeitos a filtragens do mesmo tipo.

Isso nos aproximaria ainda dos estudos sobre memória social que procuram investigar e mapear silêncios e esquecimentos (POLLAK, 1989; CANDAU, 2002), especialmente acerca de aconte-cimentos traumáticos e muito controversos. Essas ausências também formariam parte do tecido da memória, seus não ditos – como os vazios da escultura terminam por definir os contornos de sua forma

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visível. Como sabemos, um mesmo evento pode ser vivenciado de formas diferentes conforme a posição ocupada pelo sujeito, e sua evocação pode disparar distintas e até antagônicas emoções e recordações pessoais, nas quais os elementos mais significativos para cada um podem variar bastante. Assim, na realidade, não se trata realmente do mesmo evento, embora se possa utilizar como referência para identificá-lo a mesma categoria verbal. Podemos, por exemplo, falar na morte de João Baracho tal como foi fabricada como notícia, produto midiático, jurídico, literário; ou da invasão de Mossoró pelos cangaceiros como fato histórico constituído pela ciência histórica, pelas narrativas orais, pelo jornalismo literário e pelas notícias. Mas, quando entramos no terreno da memória e do testemunho pessoal, não é que a objetividade se perca em favor dos desvarios da subjetividade; antes pelo contrário: é como se, justa-mente porque se torna mais clara a implicação do posicionamento social relativo como condicionamento do que se pode, e até que ponto, conhecer e expressar, toda objetividade se tornasse suspeita. Assim como os espaços não são neutros, mas sim organizados por fronteiras significativas para alguém (e não significativas por si só, intrinsecamente), fronteiras essas que nem sempre coincidem com os marcos fronteiriços formais, as lembranças, reminiscências e circulação de narrativas e relatos também são condicionadas ao que nos é possível e permitido lembrar. A primeira autorização de que necessitamos, inclusive, é a nossa própria, vale dizer, de nosso grupo social. Há interditos que pesam sobre lembranças, bem como sobre a fala, e o âmbito de sua vigência pode variar da família até toda a comunidade local ou somente dentre de redes sociais particulares (POLLAK, 1989), como certa rede religiosa ou étnica.

Essas narrativas não são homogêneas ou consensuais, embora apresentem recorrências que constituem um corpo relativamente

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estável de representações comuns a cada canonização popular. Tais mortos santificados foram personagens que ganharam a esfera pública em vida (nos nossos casos, por sua associação ao banditismo ou transgressão criminal) ou pela notoriedade póstuma trazida pelas circunstâncias de sua morte. Por menos famosos que sejam hoje, que já não são tão contemplados pelas pautas das mídias de massa como foram até a primeira década do século XXI, eles foram e ainda são capazes de mobilizar interpretações, avaliações, questionamentos e um amplo leque de respostas díspares em torno de si, de suas histórias, e das práticas cultuais de que se tornaram objeto. Como vimos no capítulo anterior, essa diversidade não se manifesta sempre pacificamente e, na verdade, engloba antagonismos e definições bastante distintas da realidade, que correspondem a diferentes inserções sociais, compromissos e pontos de vista.

Ao tomar como foco neste trabalho o ritual por meio do qual são realizados os atos devocionais, considero-os, em seu conjunto, como eventos narrativos e performativos (HARTMANN, 2011; TAMBIAH, 1985). Por meio deles são atualizadas narrativas tradi-cionais e são também produzidos relatos, seja sob a forma de teste-munhos de milagres, ou de testemunhos do passado rememorado em termos pessoais ou evocado e costurado por meio de lembranças compartilhadas; seja, ainda, através de depoimentos pessoais acerca das experiências pessoais de envolvimento com o culto, de tal forma que os dois tipos de discurso tornam-se cada vez mais emaranhados um no outro, tornando difícil e, por vezes, improfícuo dissociar o coletivo do privado, o tradicional do improvisado, o conto maravi-lhoso do causo performado como experiência pessoal.

No ritual de devoção aos mortos Jararaca e Baracho as narrativas e os relatos constroem, expressam e comunicam conhe-cimentos sobre si, sobre sua cidade e sobre o morto miraculoso.

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Ao refletirmos sobre esses processos, envolvidos nas canonizações populares, precisamos levar em conta, não apenas seus aspectos formais e cerimoniais, mas também as interrelações entre eles e os textos verbais orais ali produzidos, ressignificados e postos em circulação junto com as oferendas materiais. Essas palavras podem também, como os objetos, adquirir novo poder e eficácia justamente por sua emissão se dar em um contexto simbolicamente denso (TURNER, 2005).

O mesmo vale, pela mesma razão, para os insultos e críticas verbais (BUTLER, 1997) dirigidos contra a fé dos devotos, em atos tão performáticos como os próprios atos devocionais, justamente no local e momento em que eles se dispõem a dar-se à vista na esfera pública. Fazer isso, quando se está associado a uma religiosidade minoritária, a um culto de certo modo ilegítimo, se visto a partir de alguma instituição ou denominação religiosa estabelecida, só reforça ainda mais o caráter outsider55 dos devotos e do próprio morto e seu culto. De modo cíclico, e não sem certa ironia, temos que reconhecer, todavia, que essa marginalidade do morto pode ser também uma das razões para sua adoção pela população local e para os cuidados que passa a devotar a ele, pelo que pode representar para tantas pessoas, naquela espécie de operação de resgate simbólico e restauração moral do morto que o converterá, de ameaça que fora em vida, em recurso simbólico precioso e acionável de mais de uma forma.

55 Aqui vai, evidentemente, uma referência a famosa obra de John L. Scotson e Norbert Elias, Os Estabelecidos e os Outsiders, na qual o autor analisa as relações sociais desiguais em uma área residencial segmentada numa pequena cidade inglesa dos anos 1950. Nesse estudo, Elias deslinda a operação de processos estigmatizantes sobre o segmento em maior desvantagem socioeconômica, que irá habitar a porção menos favorecida da área, e o modo como o estigma que os condena a tal área “ruim” é retroalimentado por justamente morar ali. Esse mútuo reforço é replicado, ainda, em outros planos, como a vida escolar dos adolescentes, seus gostos e estilo de vida, e as chances de progressão nos empregos locais.

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Para entendermos a força criativa dos rituais e das narrativas populares (SÁEZ, 1996), devemos ultrapassar a ideia durkheimiana de ritual como ação de reforço das representações e da coesão social (DURKHEIM, 1991), pois não se trataria apenas disso, mas de expressão e comunicação tanto quanto de reformulação do saber socialmente disponível (DOUGLAS, 1976) de modo a geração de novos saberes e perspectivas sobre aquilo que se acredita saber. Isto é, as práticas narrativas performadas durante as prestações rituais no cemitério não devem ser entendidas apenas como discursos sobre o culto, sobre a devoção ou sobre o santo, mas antes como parte constitutiva desse culto, dessa devoção e desse santo. Em magia, como em religião, falar já é ritualizar (LEACH, 1966). E, correspondentemente, todo ritual está, através de códigos heterogêneos – corporal, linguístico, imagético, semiótico enfim – narrando uma ou várias histórias simultaneamente.

Procurando uma forma de ordenar as histórias sobre, ou associadas aos casos de Baracho e de Jararaca que circulam nas práticas e a partir das referências a suas devoções, encontrei na classificação de gêneros narrativos medievais proposta pelo historiador francês Jean-Claude Schmitt, apresentada em seu livro Os Vivos e os Mortos na Sociedade Medieval (1999), uma inspiração. Nesse livro, Schmitt distingue três gêneros narrativos – miracula, mirabilia e exempla – que tomariam como seu objeto os mortos, no período medieval, nos quais eram apresentados sobretudo sob a condição de fantasmas e aparições destinadas ao olhar dos vivos. Passo a descrevê-los abaixo.

Os miracula seriam os relatos de eventos miraculosos; as mirabilia corresponderiam aos contos maravilhosos e talvez

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também aos fantásticos;56 e os exempla seriam relatos edificantes, que podemos aproximar das narrativas hagiográficas e até das fábulas. Esses gêneros, segundo Schmitt (1999, p. 77), poderiam surgir juntos em uma narrativa híbrida, como ocorria frequente-mente, por exemplo, com os miracula, que, embora consistissem essencialmente em narrações de milagres, tinham por finalidade a demonstração e a celebração da santidade de determinado lugar e de seus ocupantes (mosteiros e monges, por exemplo), configu-rando-se, assim, também como relato edificante (exempla).

Nos miracula teríamos a afirmação da continuidade das relações sociais com os mortos, concebidos como parte da comuni-dade, que no contexto medieval estudado por Schmitt era antes de tudo uma comunidade concebida em termos religiosos (cristãos). Muitos desses relatos narrariam aparições de mortos que teriam como objetivo pedir aos vivos sufrágios (missas e preces) em seu benefício (SCHMITT, 1999, p. 87). Assim, os miracula teriam tido um papel fundamental na promoção da liturgia dos defuntos, o que, por sua vez, teria concorrido para o enriquecimento material e espiritual das ordens religiosas medievais.

É importante ainda considerar que milagres, no sentido empregado nessa tipologia de Schmitt, seriam tanto as visões inspiradas por Deus como aquelas de origem diabólica (SCHMITT, 1999, p. 91), que teriam o papel justamente de testar e atestar

56 Lembrando que a diferença entre um e outro consiste basicamente no fato de que eventos não realistas são apresentados no conto fantástico como disruptivos, assombrosos ou assustadores para as próprias personagens da história, o que não ocorre nas narrativas maravilhosas, em que vigora uma espécie de vale-tudo da imaginação, uma outra ordem, sem qualquer compromisso com parâmetros realistas (e sem qualquer explicação ou teoria que a sustente do ponto de vista de sua lógica interna, como ocorre nas narrativas de ficção científica). Sobre essas diferenças, ver Causo (2003).

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a santidade do mosteiro e do monge.57 Essas visões raramente seriam narradas em primeira pessoa por seus protagonistas, pois se trata tipicamente de relato testemunhal, contado por um terceiro, observador externo (ainda que presente no local). Isto é, conta a visão ou aparição recebida por outra pessoa, naquele local. Dentre essas aparições e visões, as mais suspeitas teriam sido as visões oníricas, posto que o sonho era visto então como um dos veículos preferidos pelo Diabo (SCHMITT, 1999, p. 91), pai das ilusões, para enganar os humanos com seus falsos milagres. Por isso, os relatos baseados em sonhos, próprios ou de terceiros, eram recebidos com reservas por parte dos ouvintes, e aparições recebidas em estado de vigília tenderiam a gozar de mais credibi-lidade, o que, no entanto, não eliminaria a apropriação coletiva de uma experiência onírica oriunda de fonte respeitada. Neste caso, o sonho de um indivíduo podia se tornar a visão de um grupo, pois todos acabariam por enxergar, por meio da narração, o que aquela pessoa tivesse visto. Este também pode ser considerado um efeito miraculoso da boa narração, alcançado mesmo quando o narrador conta a experiência vivida por outro.

O milagre também poderia trazer em si uma lição de moral, embora este seja mais característico de outro gênero de narrativa, os exempla; todavia, seu compromisso primeiro seria para com a defesa de certas transformações no domínio eclesiástico, como o desenvolvimento de uma liturgia dos mortos, a valorização das ordens monásticas (ou de certo mosteiro) e da santidade encarnada no santo ou abadia local. Logo, as narrativas de milagres, historica-mente, tomaram parte em um movimento de afirmação eclesiástica, mas, mais que isso, teriam sido instrumentos fundamentais para a

57 Pois ser tentado pelo Diabo era um teste que punha à prova a solidez da fé do religioso. A visita do Diabo, em vigília ou sonho, trazia visões enganosas cujo objetivo seria seduzir o religioso e afastá-lo de Deus.

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expansão e afirmação política do catolicismo. Este estaria fundado de maneira essencial na afirmação da intervenção divina como explicação última para todas as coisas que, sem esse recurso à divindade, estariam reduzidas a acontecimentos prosaicos ou, como chamaríamos hoje, naturais,58 percebidos então como des-providos de qualquer racionalidade intrínseca ou comparável à Verdade divina.

Já os mirabilia, segundo gênero apresentado por Schmitt, consistiriam em relatos acerca dos humanos, dos animais, do clima ou de outros elementos que hoje chamaríamos naturais, que não exigiriam explicações transcendentes. Qualquer receio ou surpresa causados por eles poderiam ser justificados pela ignorância acerca de seus motivos, passível de ser sanada pela curiosidade humana. Por isso mesmo, os relatos maravilhosos podem ser vistos como motores que teriam instigado o desenvolvimento posterior de

58 É preciso ter em mente que, naquela época, não havia sido formulada a ideia de ordem natural ou Natureza, pilar central da ciência moderna. Não havia fenômenos inexplicáveis apenas até que se descobrisse as relações de causalidade capazes de explicá-lo; não havia, sob o caos aparente dos fenômenos observáveis, uma ordem natural segundo a qual os elementos estariam relacionados entre si de tal forma que bastaria descobrirmos como se daria tal ou tal relação para que chegássemos a hipóteses, explicações e previsões sobre eles. Quando a igreja moderna instaura um processo para verificar as alegações de que teria havido um milagre, ela primeiro descarta todas as possíveis explicações científicas para o fenômeno, inclusive as de ordem psicológica, por meio de um rigoroso e demorado processo jurídico investigativo (SCHNEIDER, 2001). Isso porque ela opera no mundo contemporâneo com as mesmas noções modernas que preveem ordem racional na Natureza, da qual também somos parte (ainda que haja controvérsias sobre como somos parte e o que isso possa significar, já que teríamos sido feitos à imagem e semelhança de Deus) (THOMAS, 2010). Assim, somente após descartada a possibilidade de fraudes, o processo de canonização pode ser levado a efeito, através de demoradas etapas, cada uma das quais comportando novas investigações. Na Idade Média, a Natureza, como a concebemos na modernidade, não havia ainda sido inventada, nenhuma causalidade importava ou poderia importar mais do que a vontade divina. Assim, as visões e aparições tinham que ser interpretadas como irrupção do divino ou do demoníaco no mundo humano, naquele tempo impensável fora desse englobamento pelo transcendente.

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um conhecimento propriamente científico sobre os fenômenos. Assim, se a proliferação dos miracula teriam concorrido para desdobramentos importantes no campo religioso, os mirabilia, por sua vez, teriam consistido em exercícios especulativos acerca dos limites do possível e do pensável. Com isso, teriam aberto caminho para as investigações e experimentações da ciência e da filosofia. Nas palavras do próprio Schmitt (1999, p. 98-99):

Ou seja, dois tipos de fenômenos aparentemente análogos, mas que diferem na relação com a ordem da Criação e suscitam atitudes muito diversas: o milagre convida a confiar-se à fé, a admitir a onipotência de Deus que transtorna a ordem que ele próprio estabeleceu. Aqui a razão humana pode apenas inclinar-se. Ao contrário, o maravilhoso suscita a curiositas do espírito humano, a busca de causas naturais ocultas, mas que um dia serão desveladas e compreendidas. É preciso ver nessa tentativa, na virada dos séculos XII-XIII, uma primeira forma de espírito científico que se preocupa com a investiga-ção (inquisitio), com o testemunho verdadeiro e mesmo com a experiência (experimentum).

Narrativas anônimas – no sentido de não terem autoria individual conhecida ou dessa autoria individual não ser consi-derada relevante –, classificadas como folclóricas, maravilhosas ou fantásticas,59 seriam parte do conjunto das mirabilia, no qual um dos temas mais frequentes seria justamente o do cemitério mal-assombrado e, por isso, perigoso.

O terceiro gênero da tríade de Schmitt seria os exempla, relatos edificantes que teriam por propósito a transmissão de uma “lição de moral”. Apesar de apelarem ao sobrenatural, almejariam, ao contrário dos miracula, um alcance universal, algo como uma sabedoria que ultrapassaria os muros deste ou daquele mosteiro ou

59 “Mas, diferentemente dos mirabilia, fantasticus permanece marcado por um julgamento de valor, já que sobre ele pesa a velha suspeita da ilusão diabólica de que os sonhos são o principal instrumento.” (SCHMITT, 1999, p. 104).

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cidade. Não seriam, portanto, apanágio de uma ordem religiosa ou de um determinado santo. Muito utilizados por pregadores secula-res e por religiosos das ordens mendicantes, teriam sido difundidos em larga escala a partir da primeira metade do século XIII até o final da Idade Média. Por sua vez, também se distinguiriam dos mirabilia, devido à preferência por formas narrativas estereotipadas, menos atreladas ao plano dos fenômenos e das experiências vividas. Esse tipo de narração buscava veicular padrões comportamentais ideais, modelos virtuosos a serem seguidos pelos bons cristãos ou por quem aspirasse a sê-lo, enfim, seu cerne estaria naquilo que seu próprio nome indica: exemplaridade. Parece, então, evidente sua afinidade com o gênero hagiografia, ou narrativa hagiográfica, pois, embora esta, seja sob a forma mais livre da narrativa oral ou sob a tradição literária escrita formal (DELEHAYE, 1962), se devote a narrar a vida de um indivíduo (ou grupo) particular, seu objetivo seria exaltar sua virtude e o quanto sua vida esteve em conformidade a certo modelo de santidade. A narrativa hagiográfica outra coisa não seria que um testemunho de fé.

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Capítulo 6Narrativas hagiográficas, sofrimento e morte violenta

Capítulo 6 | Narrativas hagiográficas, sofrimento e morte violenta

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É difícil precisar quando teriam começado as visitas aos túmulos de Jararaca e Baracho e os pedidos de milagres e promessas dirigidas a eles, ou a circulação de narrativas e testemunhos sobre seus milagres. Porém, no contexto de cada devoção, em Mossoró e em Natal, há narrativas acerca do que podemos considerar como um primeiro milagre, que opera como uma espécie de mito fundador da devoção. As homenagens fúnebres, manifestadas como ritos, teriam começado a ocorrer no próprio funeral, no caso de Baracho, e algum tempo depois do sepultamento, devido às circunstâncias, no caso de Jararaca: o funeral de Baracho foi público, seguido de uma morte espetacularizada para fins políticos, com o desfile de seu corpo pelas ruas, enquanto o enterro do cangaceiro José Leite de Santana teria sido sua própria execução sumária, clandestina.

Um dos relatos mais conhecidos sobre Jararaca conta sobre o que poderíamos chamar um milagre onírico, bem ao modo medieval, que, por sua vez, remeteria para o repertório híbrido da tradição oral, não apenas do imaginário em torno do cangaço ou do Nordeste, mas dos contos maravilhosos e fantásticos em geral: é a história de um tesouro enterrado que se torna urgente desenterrar para que a alma do morto possa, enfim, descansar. São exatamente esses dois elementos – o fato de tratar-se de aparição póstuma e de um pedido de socorro espiritual – que convertem o tropo maravilhoso da botija do tesouro enterrada em uma variação de miracula, ou seja, um relato de milagre. Isto é, algo da ordem

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do transcendente irrompe no cotidiano humano e suspende tem-porariamente a normalidade para reinstaurá-la, mais adiante, sob nova forma. Neste caso, há que se observar que a possibilidade de vivenciar um acontecimento miraculoso (onírico) é oferecida a humanos que não a procuraram nem a esperavam.

Trata-se da botija de Jararaca. Enterrado, esse tesouro o condenaria a vagar, em estado de desassossego, continuando em estado de martírio mesmo após sua morte. Seria uma espécie de maldição que, para ser superada, exigiria mais uma vez a solida-riedade dos vivos. É possível ler muitos significados nesse relato, mesmo assim em seu início, e em linhas tão gerais. Pode-se ver nele uma dimensão edificante que procuraria transmitir valores de uma moral antiavareza (não se deve guardar somente para si sua riqueza; ou, ainda, riqueza deve ser usufruída, pois estagnada e improdutiva leva a sofrimento), mas também parece explorar certo paralelismo, quando apresenta elementos como o enterramento indevido e seu ocultamento, o que não deixa de replicar as próprias condições do assassinato de Jararaca. A história ensina, então, que, para que essa morte traumática pudesse ser superada no plano póstumo e sua alma pudesse enfim descansar, seu tesouro precisaria ser desenterrado e vir à luz, o que, por sua vez, traria recompensa também aos vivos. A história do “tesouro de Jararaca”, em qualquer de suas variações (BEZERRA, 2010, p. 97-100), veicula, ainda, uma representação comum dos cangaceiros como proprietários de rico butim (moedas, joias, armas e outros bens preciosos), derivado de suas práticas predatórias, como roubos e sequestros.

Devido à recorrência com que o escutei, e à variedade de suas versões, sempre em torno dos mesmos motivos principais, e porque ele evidentemente evoca muito do miracula tradicional, decidi tomá-lo como o mito fundador da santificação de Jararaca, alcançada após a superação de seu sofrimento póstumo, com

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a indispensável ajuda humana e de tal forma que evidencia de imediato esta outra continuidade essencial à santidade: vivos e ex-vivos fazem parte da mesma comunidade e precisam se ajudar. Um milagre tão lendário quanto o próprio cangaceiro.

A primeira versão que ouvi em campo, e que retornou inú-meras vezes, conta sobre um casal muito, muito pobre, que teria desenterrado o tal tesouro após receberem o pedido de Jararaca em um sonho. Assim, teriam enriquecido e desaparecido da cidade de Mossoró para sempre. Evidentemente, a cidade varia conforme a localização de quem conta a história, o que se coaduna com o nomadismo dos cangaceiros. Conta-se essa história também, é claro, em torno do seu túmulo, no cemitério São Sebastião, em Mossoró, tanto quanto em rodas de conversa entre vizinhos, jornais ou livros, mas todos a contam com um sorriso nos lábios, como quem contradiz com uma piscadela cúmplice o que acaba de contar. Não tenho dúvidas, porém, de que algumas vezes detectei uma sincera esperança na voz que, em meio a um depoimento bem pessoal sobre uma aflição financeira, recordava essa história e levava ali, ao pé do túmulo, para abençoá-lo, um bilhete de loteria,60 um currículo, ou apenas seu pedido numa cartinha ou numa prece. A esperança é teimosa e insiste, contra toda probabilidade, que histórias assim possam ser reais e se repetir para aqueles que tenham fé no santo. Neste caso, sua ajuda pode ser percebida como retribuição pela ajuda que ele próprio recebeu. Sim, pois um dos efeitos performativos desse relato é situar Jararaca em relação a seus devotos como o devedor inicial, alguém que, apesar de haver chegado como inimigo, teria sido resgatado por pessoas de fé e bom coração, que, por sua vez, poderiam ser, no momento de necessidade, recompensadas pelo tesouro oportuno: um novo emprego, uma cura, uma reconciliação amorosa, uma vitória no campeonato, quem sabe até um bilhete de loteria premiado.

60 Ver figura na seção “Promessas e oferendas”, Capítulo 4.

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Coerente com outras diferenças entre os dois casos que pudemos observar ao longo deste trabalho, o primeiro61 milagre atribuído a Baracho apresenta um tom e um teor bem mais ter-renos, sem deixar, no entanto, de trazer também, em seu bojo, o melodrama sensacionalista tão caro às mídias, já nos anos 1960. Baracho teria curado justamente o filho do motorista Moisés, cujo assassinato teria confessado, após a visita de sua viúva a seu túmulo. Nessa visita, ela teria rezado por sua alma e perdoado seu crime, pedindo em seguida que curasse seu filho, muito doente. Portanto, uma narrativa que opera a partir de elementos simbólicos visceralmente cristãos: a mãe sofredora, o perdão ao mais terrível dos pecados, o homicídio, e a redenção do pecador. Assim, na fundação da santificação de Baracho estaria nada menos que o perdão de uma mãe que sofre por seu filho ao assassino de seu esposo, pai desse filho. Podemos perceber que, enquanto o mito de origem da santificação de Jararaca é contado por meio da hibridação entre uma narrativa maravilhosa/fantástica clássica (o conto do tesouro enterrado) e os elementos centrais do relato miraculoso, a santificação de Baracho já é narrada, desde o início, por meio de um relato testemunhal propriamente religioso, ainda que de fundo mítico.

Pouco importa que essa mulher em particular tenha estado lá ou não. O que importa é a força do relato e o que ele teria sido capaz de mobilizar e produzir em termos performativos no campo da oralidade e, a partir dela, em outros campos. Fato é que muitas viúvas, mães e pais aflitos, irmãos, esposos, imigrantes, desempre-gados, estudantes, enfim, pessoas as mais diversas compareceram

61 Mais uma vez, vale acentuar que não me refiro à precedência cronológica, posto que seria impossível determiná-la. Quando me refiro a tais relatos de milagres como ‘primeiros’, o que quero dizer é que eles se mostram particularmente densos e, por isso, capazes de operar performativamente como relatos fundadores. Seus efeitos vão muito além do seu conteúdo manifesto.

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ao túmulo desde a cerimônia do sepultamento, e todas, e cada uma, poderia ser a esposa de Moisés ou mesmo outro João Baracho. Essa proximidade com a realidade vivida pelo morto estabeleceria uma diferença em relação ao caso de Jararaca e, especificamente, o aproximaria de modo mais imediato do domínio religioso cristão, e de alguns de seus tópicos recorrentes na religiosidade popular, como arrependimento, perdão, sofrimento, redenção.

Note-se que a mera presença da população na cerimônia do enterro (de Baracho) ou nas homenagens funerárias posteriores, ainda que possa ser em parte imputada à curiosidade em torno da figura pública, já parece realizar, ao menos parcialmente, sua rein-tegração à sociedade, resgatando-o da condição de inimigo público fabricada pela mídia, ou de outsider, a que a própria estrutura social os condenava, pois essas homenagens fúnebres podem ser compreendidas como parte dos circuitos de trocas de obrigações sociais rituais entre pessoas e grupos que se reconhecem de algum modo como membros de uma comunidade – e toda comunidade é, antes de tudo, comunidade moral. Isto é, encontra-se alicerçada sobre valores-chave comuns.

A retribuição do morto, neste caso, só poderia mesmo ser póstuma, de cunho espiritual, afetivo e moral. Era isso ou perma-necer na condição de inimigo, enquanto agência espiritual, pois, ao menos naquele momento, o esquecimento, em se tratando de duas figuras públicas de grande repercussão na imprensa local, não se configurava como opção. Uma vez que a agência dos mortos não é negada, e eles continuam sendo vistos como aptos a agirem sobre a vida dos vivos, é mais produtivo tê-los ao lado do que contra si. Além disso, tais cuidados, como vimos, permitem a retomada do controle da situação por parte de agentes da própria comunidade, e o retorno à normalidade após uma sucessão de eventos disruptivos e até traumáticos.

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Conforme mostrei no Capítulo 3, em casos como os de Jararaca e Baracho, trata-se menos de santidade – ou santo – como fenômeno cristalizado do que de santificação, isto é, de processo aberto cuja natureza consistiria em manter-se enquanto tal, fluido, aberto e controverso, sujeito a reelaborações e ressignificações por parte de segmentos sociais heterogêneos que delas se apropriam simultaneamente, a partir de pontos de vista parciais e não tota-lizáveis. Embora eu aqui me refira aos santos como artefatos, faço isso menos por associá-los a obras do que a processos artesanais; e, que fique claro, não por serem do domínio tradicionalmente chamado popular, ou fortemente marcado pela oralidade, mas porque acredito que esta seja a maneira mais interessante de pensar sobre fenômenos culturais de modo geral.

Teóricos preocupam-se frequentemente com a formulação de explicações e definições de alcance universal, mas na experiência cotidiana as pessoas manejam as categorias do pensamento, inclu-sive aquelas mais formais – como tempo e espaço –, com muito maior liberdade e inventividade. É raro que os devotos se refiram a Jararaca ou a Baracho em termos taxativos, como sendo ou não sendo santo. O mais comum é que a menção à sua santidade surja em frases casuais como “dizem que ele é santo” ou “dizem que ele é milagroso”, como se tal referência se desse na retomada de uma conversação já em andamento, com interlocutores familiarizados com suas histórias ou histórias semelhantes, de outros mortos e outras vizinhanças. Mesmo nas ações que denotam reprovação a sua existência, tal santificação termina por ser reconhecida e confirmada. De certo modo, essas ações inclusive concorrem para seu fortalecimento e sua permanência, ainda que isso se dê de modo variável, com alternância de fases mais e menos intensas.

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Evidentemente, o fenômeno da devoção não se estabelece nem se sustenta num vazio histórico, cultural ou epistemológico; todo esse livro vem, desde o início, mostrando o contrário. Não são as características intrínsecas às personagens históricas João Baracho ou José Leite de Santana que os tornam aptos a esse papel póstumo; nem mesmo os acontecimentos históricos que protagonizaram em vida ou nas circunstâncias particulares de sua morte, mas, antes, a combinação de tudo isso de maneira significativa para a comunidade local, naquele momento, de tal modo a fazer emergir tal fisionomia polissêmica, desenhada por uma polifonia narrativa (imprensa, polícia, políticos, relatos orais) que viria a encontrar terreno fértil para sua proliferação no cemitério, nos seus rituais funerários fundados em longínquas tradições cristãs (mas não exclusivamente nelas). São justamente as múltiplas propriedades condensadas em torno deles (TURNER, 2005, p. 58-61) que os tornam símbolos poderosos, aptos a serem mobilizados de formas heterogêneas e conflitantes, como temos visto neste trabalho.

O processo de construção social do santo como objeto de devoção ritual e memória coletiva passa pelas narrativas hagiográ-ficas (SOARES, 2019, p. 45) sobre ele, isto é, narrativas orais que se aproximariam de um gênero de escrita que, ao procurar acentuar a exemplaridade do santo – seja pela via do martírio, seja pela da vida virtuosa, ou por uma conjugação de ambas –, tornam-se, elas próprias, narrativas santificadoras. O discurso que exalta a santidade, assim como o relato que testemunha o milagre, é um discurso eficaz, isto é, ele não apenas conta sobre um fenômeno dado, mas concorre para sua produção e atualização. Ambos os tipos de discurso são fundamentais como elementos constitutivos do ritual e da reprodução social dos processos de santificação.

Nas narrativas do tipo hagiográfico sobre Baracho e Jararaca, o sofrimento (SÁEZ, 1996) ocupa papel central, representado, como

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é comum nesse tipo de caso, como martírio religioso que teria aberto para eles a possibilidade da redenção pelo arrependimento. A experiência do sofrimento sempre foi importante na escrita hagio-gráfica cristã, na qual configura como penitência purificadora vivida voluntariamente em nome da fé cristã. O típico santo cristão sofre em nome ou em defesa de sua fé, e sofre de bom grado. Seu martírio é prova de fé e, como tal, funda sua salvação/santificação. Como mostramos, os primeiros santos foram os mártires, tipicamente objetos de culto local no seu local de sepultamento. Por isso, as experiências de sofrimento vividas durante a vida e, em particular, nos acontecimentos que teriam levado à morte trágica costumam ter lugar privilegiado nos relatos biográficos das vidas dos santos.

Vale notar que seria próprio desse tipo de experiência emocional intensa trazer em si algo indizível, de irrepresentável (BALAGUER, 2018, p. 33). O sofrimento tenderia, portanto, a trazer um resíduo que escaparia a qualquer tentativa de descrição, definição e explicação. Todavia, parece que quanto mais avassalador é o sofrimento maior é o número de tentativas de descrevê-lo, defini-lo e explicá-lo. E, assim, relatos escritos e orais proliferam.

Examinemos, então, mais de perto as configurações hagio-gráficas presentes nas santificações populares de Jararaca e Baracho, tendo presente que é neste aspecto que a dobradiça que articula vida e morte, biografia e mito, torna-se mais evidente e fundamental.

Vida de bandido: sofrer, fazer sofrerA vida no crime pode ser objeto de representações român-

ticas, que tomam o criminoso ou bandido como transgressor da ordem social. A ficção e as mídias estão repletas de representações desse tipo. Alguns trabalhos acadêmicos também. Porém, mesmo nas representações que romantizam e exaltam o criminoso, o

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sofrimento comparece como característica de seu modo de vida, representado ora como marcado por solidão e outras restrições resultantes da condição de outsider – que pode também, conforme oscile o ponto de vista, ser considerada a causa primeira de sua criminalização, e não sua consequência.

De modo mais concreto, esse sofrimento inerente à condição criminosa é associado aos riscos da profissão, inclusive de morte, a que essas pessoas tenderiam a se expor mais que as outras. Uma das ideias correntes na sociedade atual é, justamente, a de que criminoso – real ou suposto – teria vida curta (ZALUAR, 1985), o que não deixa de ser condizente também com sua versão romantizada: morrer jovem seria o preço de viver intensamente, como outsider.

Faltaria a Jararaca e a Baracho o pertencimento a um grupo social legitimado pela ordem social. Ter uma família no local, por exemplo, aumentaria, teoricamente, as chances de Baracho conseguir que alguém o escondesse em casa durante sua fuga da polícia ou que, ao menos, lhe desse água mais cedo. Não é à toa que o signo por excelência do sofrimento de Baracho é ter morrido com sede e ter, pouco antes disso, sido delatado à polícia por uma vizinha; não é à toa que Jararaca teria sido, segundo se acredita, enterrado vivo, posto que, doente na cadeia, não teria tido quem lhe prestasse assistência e acompanhasse de perto os procedimentos das autoridades públicas. Teria permanecido, portanto, à mercê daquilo que hoje é visto por muitos, devotos e não devotos, como abuso de poder, assim como Baracho teria sofrido as consequências do seu relativo isolamento social e do forte estigma que, naquele momento, pesava sobre ele como alguém acusado de homicídio e procurado pela polícia, em um processo reforçado pela enorme repercussão midiática. Vale lembrar que ele era, então, comparado pela imprensa ao famoso bandido carioca Mineirinho.

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Também é importante ter presente que, como mostraram, dentre outros, Roberto DaMatta (1985) e, antes dele, Gilberto Freyre (1977), os mortos continuam a tomar parte na vida familiar e social. Condição triste e lamentável é a de morto esquecido pela família, morto que no Dia de Finados não recebe, como dádiva amorosa, uma única vela, uma única flor, uma única reza sobre seu túmulo. Em contrapartida, os mortos recordados por suas famílias procurariam zelar por elas do Além, proporcionando--lhes um bem nada desprezível dentro desse sistema de valores: proteção espiritual. Ao invés de aparecer-lhes como assombração atormentada e atemorizante, a pedir-lhes rezas e outros ritos, eles é que dariam aos vivos sua proteção e amparo espiritual. Ou seja, continuariam a exercer seu papel de parente, dentro do quadro familiar tradicional.

No entanto, os túmulos dos desgarrados outsiders Baracho e Jararaca não se encontram de modo algum abandonados. Cheguei a ver, em um dos momentos de pico de popularidade dessas devoções, no final dos anos 1990 (até início da primeira década do século seguinte), alguém com um baldinho de tinta colorida à espera de que outro devoto acabasse de pintar o túmulo de azul para ir lá e pintar por cima de amarelo, ambos pagando suas promessas. Pintar o túmulo ou reformá-lo e limpá-lo, para deixá-lo como novo, é promessa cumprida tipicamente nos dias anteriores ao 2 de novembro, para que ao chegar o Dia de Finados o túmulo esteja bonito e bem cuidado, justamente pelo que isso significa em termos de cuidado e respeito ao morto.

Isso exemplifica como, nesses casos, os devotos chamam a si as obrigações que caberiam em princípio à família do morto. Não deixa de ser significativo, nesse sentido, que a frequência aos seus túmulos tenha se seguido quase imediatamente a suas mortes, segundo a imprensa da época e alguns cronistas. Também não

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parece haver tardado a que Jararaca e Baracho aparecessem, fosse em sonhos ou como aparições sobrenaturais, aos moradores das localidades onde morreram. Os cuidados funerários póstumos oferecidos a eles podem ser compreendidos como forma de dialogar ativa e criativamente com tudo isso, convertendo-os em recursos comunitários, “santos de casa”.

Na elaboração de uma história de vida para os bandidos que ateste suas virtudes pessoais e mostre possíveis tendências para a santidade, ou, pelo menos, confira maior plausibilidade à ideia de que eles possam realizar milagres póstumos, seria menos o milagre em si que importaria do que a adequação buscada ao modelo já consagrado de narrativa hagiográfica. A vida de bandido pode ser, apesar de toda a rejeição social de que é objeto, ou justamente por causa dela, matriz de leituras santificadoras.

O bom bandido, protetor dos pobresSeria próprio da hagiografia formular uma continuidade entre

uma vida virtuosa e/ou marcada por dons excepcionais, conforme a um modelo cristão, e a santificação póstuma, sendo que não é raro que se procure mostrar a existência de capacidades e características santificadoras, inclusive a realização de milagres e outros prodígios, como elementos da história de vida do santo.62 Assim, ao lado do discurso que reforça a paixão e a morte, produzindo o santo-mártir, há outro, que investiria na continuidade entre a vida do bandido, virtuoso à sua maneira (“roubava dos ricos para ajudar a pobreza”,

62 O que Schneider (2001) aponta para o caso do menino paulista Antoninho da Rocha Marmo. Sua biografia, escrita por um padre, o retrata como a encarnação da virtude cristã. Seus dons espirituais incomuns teriam sido atestados por testemunhos durante sua breve vida. Antoninho morreu de tuberculose aos doze anos de idade, após uma vida cercada de prodígios atribuídos a sua fé, ou assim elaborados por seu biógrafo, familiares e devotos após sua morte.

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era revoltado porque sofria injustiça etc.), e a tragédia de sua morte. O sofrimento funcionaria, então, como termo comum entre a vida e a morte, uma vez que se encontraria presente em ambos.

Mas haveria ainda outra maneira de acentuar essa continui-dade: pela ênfase nos elementos extraordinários, até sobrenatu-rais, encontrados em sua vida, inclusive nas circunstâncias de sua morte. Assim, seria acentuada sua afinidade com o universo do encantamento, do mágico, do excepcional. Vários outros santos dos cemitérios são mostrados da mesma forma: teriam sido, em vida, videntes, profetas, taumaturgos, magos. Esses atributos sobrenaturais costumam ser elencados como forma de contextualizar e reforçar sua santidade póstuma, indicando que esta é menos uma condição nova do que a transformação de uma condição anterior. Essa elaboração póstuma partiria da morte trágica como problema a ser equacionado: por que algo tão extraordinário assim aconteceria a tal indivíduo? Muitos morrem tragicamente, de modo imprevisto, chocante, dis-ruptivo; multidões sofrem, porém apenas alguns atraem visitantes ao seu túmulo, à procura de ajuda, proteção espiritual e milagres.

De certo modo, os santos bandidos seriam menos os que viveram virtuosamente, à maneira do monge, e seguiram sem percalços para a santidade póstuma do que os que viveram e mor-reram tragicamente, no limite. De certo modo, sua morte trágica em tais condições parece ser percebida como tão chocante quanto, de certo modo, necessária, no sentido de parecer intrinsecamente entrelaçada à malha que constitui sua vida (BOURDIEU, 1986), como um desdobramento de certo modo natural e inevitável dela.63

63 A brevidade da vida dos que vivem do crime, ou no crime, no Brasil contemporâ-neo, e a frequência com que padecem de morte violenta (tipicamente assassinados) fazem parte do repertório de representações banalizadas sobre esse modo de vida e seus sujeitos. Também é um dado presente em estudos sobre violência no Brasil. Ver, por exemplo, Zaluar (1985) e Alvito (2001).

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Eles só poderiam ter tido essa morte excepcional, excessiva, trágica, tão propícia à elaboração oral de fábulas, lendas, mitos e milagres. Esse caráter excepcional de sua vida/morte estaria ligado não apenas à condição de marginalidade social derivada de sua atuação no mundo do crime e de seu estigma social, mas também aos atribu-tos extraordinários individuais que lhes teriam sido assinalados a posteriori. Essa continuidade, como disse acima, se constituiria como uma espécie de dobradiça lógica que permitiria articular vida e existência póstuma, criando as condições para tornar pensável sua santificação.

Morte violenta como rito de passagem e conversão simbólica

O arrependimento sentido pelo moribundo, no auge do seu sofrimento perante a aproximação da morte, é tratado pelos devotos de Jararaca e de Baracho como algo certo, posto que lhes parece inconcebível que alguém sofra tanto e não se arrependa. Dona Terezinha de Jesus, em Mossoró, quando ainda iniciava esta pesquisa, me disse que

Ele tinha chorado muito antes de morrer, tinham enterrado ele vivo e ele foi morrendo aos pouquinhos, aos pouquinhos... Passou um dia e uma noite, chorou muito. E então Deus deu um pouquinho do reino dele e por isso que ele tá fazendo caridade ao povo. Pra que ele pudesse subir ao espaço e chegasse aos pés de Jesus. Se ele fosse fazer o mal cada vez afundava mais. Ele já tinha sofrido muito no cangaço e já tinha sofrido muito depois que tinha morrido e queria o reino eterno. Por isso que tá dando salvação às pessoas.

Aqui se pode observar as conexões estabelecidas entre o que seria um sofrimento excessivo, sobre-humano, e uma reação

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demasiado humana, reconhecível e compreensível por todos: o arrependimento e a necessidade de redenção. Qualquer um pode se arrepender do caminho errado que trilhou no passado e seguir para essa porta aberta pelo arrependimento, o que anularia, pelo menos parcialmente, suas dívidas morais e espirituais. Daí ser possível, a despeito de todos os erros da vida pregressa, alcançar o perdão e a salvação póstuma, mesmo para quem possa ser considerado o pior criminoso.

Aliás, a força do perdão divino (DAVIS, 2001) é ainda mais fortemente atestada nesses casos, em conformidade com a lógica das conversões: quanto maior o erro/pecado, maior a prova do poder divino (MARIZ, 1997) manifesta na salvação daquele que parecia definitiva e irremediavelmente perdido.64 Se a conversão simbólica de um assassino em santo protetor soa escandalosa para tantas pessoas, religiosas ou não, dentro dessa lógica ela não apenas pode fazer sentido como pode operar como elemento de reforço da fé e da economia interna das relações entre devoto e sistema religioso mais abrangente.

Jararaca, Baracho e demais santos locais produzidos pelos atos rituais devocionais, inclusos os relatos e narrativas escritos e, principalmente, orais, parecem representar o que existiria de mais humano e tangível na santidade cristã, concebida, de um lado, como modelo cultural e matriz simbólica, e, de outro lado, como agência concreta produzida e mobilizada pelas ações dos devotos, a partir da qual seria possível, dentre outras coisas, lidar, em diferentes planos simultâneos, com temas difíceis como morte, luto, sofrimentos, injustiças, arrependimentos, separações, dentre tantos outros.

64 Retomarei o tema do perdão no Capítulo 8, deslocando o foco do perdão divino para o perdão como atributo humano, em uma reflexão complementar a esta, realizada a partir de ideias de Hannah Arendt (2007).

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Capítulo 7Maravilhas e proezas: contos, causos, lendas

Capítulo 7 | Maravilhas e proezas: contos, causos, lendas

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Era uma vez um casal muito, muito pobre. Dela, sabemos que se chamava Joana, mas o povo a chamava mesmo Dona Joaninha. Dele, nem o nome sabemos até hoje. Viviam em um casebre na parte mais feia e distante de uma cidade grande e próspera chamada Mossoró. Os dois trabalhavam duro, de sol a sol, mas ganhavam bem pouquinho, mal chegava para se sustentarem. O casal passava muita necessidade, como se dizia em Mossoró naquele tempo, e acho que se diz até hoje. Um dia, tendo ido se deitar exausta, após mais um dia de faina pesada, Dona Joaninha recebeu, em um sonho, a visita do falecido cangaceiro Jararaca. Nessa visita, que apesar de sonho lhe pareceu tão real naquele momento, ele lhe contava que estava sofrendo muito, vagando nas trevas, pelo fato de haver deixado um grande tesouro enterrado. Dona Joaninha, com medo, arregalou os olhos, meio sem entender, mas já entendendo tudo. Já ouvira contar sobre almas que penavam no desassossego da morte devido a assunto mal resolvido. Jararaca, então, lhe pedia em seguida que ela, pelas caridades, o ajudasse a sair daquela situação triste. Que ele lhe ensinaria o caminho para que ela e seu marido fossem até lá, para desenterrar seu tesouro. No sonho, então, Dona Joaninha pôde ver o lugar exato onde sua botija se encontrava enterrada. Tocada pelo sofrimento do pobre Jararaca, Dona Joaninha lhe prometia, então, que sim, iria até o local e desenterraria seu tesouro.

No entanto, Dona Joaninha não cumpriu o prometido. No dia seguinte, embora ainda estivesse impressionada com a vivacidade do

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sonho, ela acabaria esquecendo do assunto, convencida de que não era nada, apenas um sonho. Tinha coisa mais urgente para cuidar. Duas semanas depois, Jararaca retornou para nova visita onírica, na qual parecia ainda mais desesperado do que na primeira vez. Suplicante, repetiu seu pedido, mostrando novamente o lugar onde estaria seu tesouro. Desta feita, Dona Joaninha entendeu que o negócio era sério, e que teria que fazer alguma coisa, ou Jararaca continuaria lhe importunando. Quem sabe existisse mesmo um tesouro?

Ela então chamou seu marido e lhe contou seu sonho com todos os detalhes. Por fim, decidiram ir juntos até o local mostrado pelo cangaceiro. Chegando lá, após outra cansativa jornada, o casal cavou no lugar apontado, cavou tanto que, exatamente à meia-noite, despontou da terra a botija de Jararaca. Depois disso, os dois mataram um pinto e amarraram em sua pata uma fita encarnada – porque é isso que se faz quando se encontra dinheiro enterrado, senão a pessoa morre. Depois de colocarem as mãos na botija de Jararaca, Dona Joaninha e o marido nunca mais passaram dificuldades nem tiveram mais que trabalhar no matadouro matando bodes. Na verdade, ninguém sabe bem o que aconteceu com eles depois disso. O casal, dizem, teria desaparecido da cidade sem deixar endereço.

Essa história é uma variação dos temas do tesouro escondido e da busca pelo tesouro, com ou sem mapa, presente em muitas tradições orais nacionais e gêneros narrativos, dos contos mara-vilhosos aos fantásticos, passando pelas lendas, na fronteira entre a história e a ficção. Em todas essas histórias, o ato de desenterrar ou localizar o tesouro traz uma mudança qualitativa na vida da pessoa capaz de realizar tal proeza, mudança essa que pode ser vista como negativa ou positiva. Isso poderá variar em conformidade com uma série de fatores, como a finalidade da narração – divertir, como puro entretenimento, ou transmitir alguma instrução moral,

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por exemplo65 –, ou sua forma. Neste nosso exemplo, temos uma forma híbrida, na qual um tema de fantasia muito conhecido foi adaptado para assinalar poder miraculoso a uma personagem real (afinal, Jararaca existiu). Ela poderia, então, ser classificada como uma lenda, tipo de narrativa que tem como referentes pessoas e acontecimentos reais investidos de atributos imaginários, que podem inclusive, como vemos neste exemplo, ser oriundos do universo maravilhoso.66

Essa variação local do conto do tesouro, associada à devoção a Jararaca em Mossoró – que, aliás, já apresentei como exemplo de relato miraculoso –, traz ainda outro aspecto religioso, que é a figura da alma pecadora em estado de sofrimento póstumo. O fato de que esse estado possa ser amenizado ou completamente transformado pela intervenção dos vivos sustenta todo o sistema de sufrágios e ritos funerários tradicionais, e não apenas nas tradições de origem cristã. Seu acontecimento central, a aparição onírica do morto, se constitui no núcleo por excelência dos miracula tradicionais, como vimos, a partir da obra de Schmitt (1999). Assim, podemos ver nessa narrativa aquela sobreposição de gêneros tão comum, não apenas ao repertório oral, mas também à literatura escrita. No contexto das devoções examinadas, no qual essa narrativa circula, as aparições póstumas tendem a ser compreendidas como assombrações67 ou

65 Um puro conto (tale) de entretenimento ou já uma fábula (fable)?66 Para a diferenciação entre gêneros narrativos imaginativos e sua relação com a

hagiografia como gênero, ver Delehaye (1962), particularmente o Capítulo 1.67 Assombrações pertencem ao universo narrativo do gênero fantástico (CAUSO,

2003), pois elas são tratadas, dentro do universo fictício apresentado na his-tória, como elementos disruptivos e anômalos. O fantástico supõe, portanto, uma normalidade que seria rompida por tais aparições, fantasmas ou outros fenômenos extraordinários, como ruídos e vozes inexplicáveis, objetos que mudem de lugar misteriosamente etc. Esses elementos disparariam emoções como medo, terror, assombro, fascínio. Quando as pessoas contam hoje que, logo após a morte de Baracho, ele costumava aparecer para os passantes “perto do cajueiro velho” ou “ali onde é hoje a Urbana, perto de onde ele morreu”, elas estão narrando um típico conto fantástico.

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milagres, tanto em si mesmas como pelo que acarretariam, como revelações espirituais e mudanças na vida das pessoas que as recebem.

Sua interpretação também pode variar bastante, o que decor-rerá de como seja contada, e em qual contexto. O enriquecimento do casal que se teria apossado do tesouro de Jararaca poderia receber uma explicação prosaica, pois, como vimos com Schmitt (1999), o maravilhoso deixaria margem para dúvidas e especulações. O tesouro enterrado poderia estar substituindo, como uma boa metáfora, um prêmio da loteria ou riqueza obtida de modo ilícito ou ilegal, ou seja, poderia tratar-se também de um conto de outro tipo, o conto do vigário, para acobertar a verdadeira causa do suposto enriquecimento do casal ou apenas de seu desaparecimento súbito. É possível levantar-se um sem fim de suposições em torno de histórias como essas, quando se está determinado a procurar nelas um fundo de verdade ou um sentido lógico. Relatos, afinal, também podem ser ferramentas de conhecimento que nos ajudam a formular teorias sobre coisas estranhas e inquietantes. Como afirmou certa vez o antropólogo Claude Lévi-Strauss (1989), qualquer ordem é melhor do que nenhuma ordem: temos que enxergar um princípio classificatório, ou criaremos imediatamente alguma classificação que ordene os elementos da nossa experiência de tal forma que ela passe a fazer sentido. Não conseguimos, diante de fatos dessa ordem, permanecer mudos por muito tempo. Precisamos tornar pensável a avassaladora sucessão de acontecimentos que parece nos atropelar, quer nos percebamos diretamente implicados neles, quer não; precisamos domá-los por meio de alguma interpretação, enquadrá-los de alguma forma em algum sistema e torná-los reconhecíveis por nós, de modo a que possamos contar, ao menos a nós mesmos, o que acabamos de vivenciar ou testemunhar.

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Nunca devemos subestimar a força inerente à ação de contar histórias. A ficção – e toda narrativa ou relato, tenham referentes factuais ou não, inclusive o etnográfico (MARCUS; CUSHMAN, 1982), é ficção – é uma ferramenta extremamente poderosa para a construção de conhecimento, para reflexão e para cura. Dizer que um relato é fictício não é, bem entendido, o mesmo que dizer que ele mente, ou que seja pura fabulação, mas sim afirmar seu caráter de artefato discursivo, como produto da linguagem, logo da cultura. O percurso por meio do qual se dão as elaborações e reelaborações coletivas do relato maravilhoso pode passar pela estrada das especulações e terminar em um achado filosófico ou científico. O fato de que um tesouro enterrado e ocultado seja concebido como causa de sofrimento para seu proprietário, levando à necessidade de que venha a ser desenterrado a todo custo e apropriado por alguém, pode consistir numa reflexão crítica sobre a avareza e seus males, o que seria consistente com uma moralidade holística centrada na solidariedade comunitária acima da acumulação individual e do desperdício. Os mitos não apenas podem ser modos de pensar sobre o que chamamos realidade, mas também de pensar sobre o próprio pensamento. Ou, como também disse Lévi-Strauss (2010), em seus diferentes arranjos e combinações, os mitos se pensam entre si.

Diferente das histórias de ficção científica (CAUSO, 2003), o conto maravilhoso (Alice no País das Maravilhas, por exemplo) não apresentaria explicações para o estado de coisas narrado, abrindo caminho para efeitos de encantamento, desconcerto e interrogações. As possíveis relações de causalidade entre os acon-tecimentos narrados podem ser postas em questão na medida em que são explicáveis de variadas formas, inclusive mágicas, ao contrário do que ocorre nos miracula, que só podem ser explicados pela intervenção divina ou diabólica (SCHIMITT, 1999, p. 90). O

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conto maravilhoso se contenta em contar que haveria uma botija enterrada e que alguém a teria desenterrado após a visita onírica (ou que Alice teria encolhido ou aumentado após comer certos cogumelos), fatos que podem ser considerados, conforme o contexto da narração, mais ou menos plausíveis, e conectados por encade-amento lógico. Pode-se escutá-los e aceitá-los68 como verdades,

e ponto final, ou procurar outras possíveis explicações para eles, além daquele encadeamento visível, que não é, de modo algum, necessariamente causal. Não foi necessariamente o fato de haver comido o cogumelo que fez Alice encolher ou crescer, embora a sequência sugira isso. Podemos nos perguntar se a qualquer outro que o comesse ocorreria o mesmo; ou que cogumelo teria sido esse; ou se não teria sido o cômodo que aumentou, gerando a ilusão de que ela encolheu. A essa altura começamos a desconfiar de que talvez as coisas não tenham se passado exatamente assim, que as informações talvez estejam incompletas. São tantas lacunas. E elas estão ali exatamente para isso: para acender nossa imaginação e nos provocar a completá-las.

Se se tratasse de ficção científica,69 as explicações para o estado de coisas ou ações narradas já estariam dadas no pró-prio relato, pois é próprio desse gênero apresentar teorias sobre o funcionamento singular do mundo que constrói, de modo a evidenciar sua consistência interna. Não deve haver lacunas nesse tipo de narrativa, como também não há lacunas nos miracula, embora possa haver dúvidas sobre a fonte última dos aconteci-mentos que narra, se divina ou diabólica. Já um relato fantástico, quando conta sobre a aparição de um morto, já pressupõe a não naturalidade de sua presença entre os vivos. O gênero fantástico,

68 Lembrando, com Veyne (1987, 2008), que pode haver mais de um “regime de verdade”.69 Obras como 1984 (George Orwell), Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley), A

Mão Esquerda da Escuridão (Ursula K. le Guin), por exemplo.

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todavia, nem sempre opera com a noção de sobrenatural,70 mas antes com quaisquer tipos de acontecimentos extraordinários, não rotineiros, apresentados como, no mínimo, motivos para espanto para aqueles que os testemunham dentro da história. Estes podem ser definidos como mágicos, em uma acepção próxima àquela presente nas histórias encantadas: algo inexplicável aconteceu! Pense em Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, por exemplo, obra-prima da literatura fantástica.

Nos relatos maravilhosos, a surpresa ou espanto é efeito exercido apenas, ou prioritariamente, sobre os ouvintes/leito-res, pois, além de não trazer explicação ou teoria, como a ficção científica, também não há efeito disruptivo sobre as personagens, como no fantástico. As coisas apenas são como são, “do outro lado do espelho” ou do guarda-roupa.71 Alice72 estranha um pouco que cartas do baralho possam falar e agir como gente, que seu tamanho mude drasticamente de um instante para outro, que um gato sorria e se desmanche no ar, mas logo ela se adapta e segue o fluxo dessa nova normalidade, naquele mundo encantado. No relato fantástico, o assombro sentido pelo ouvinte/leitor replica aquele manifestado por personagens que estão vivendo a história, e pode ser assombro diante de um fantasma, de uma pessoa que de repente sobe pelos ares, levitando ou voando, ou de qualquer outro acontecimento visto como antinatural e inexplicável.

70 Que, como nos ensinou Durkheim (1991), suporia a ideia de que haveria uma ordem natural subjacente à realidade, isto é, uma Natureza no sentido moderno do termo, ordenada segundo leis de causalidade passíveis de serem descobertas e explicadas. O sobrenatural, como noção derivada do natural, não se encontraria presente em todas as culturas e épocas. Um milagre, para a Igreja Católica contemporânea, somente se provaria como tal quando se esgotassem as explicações científicas possíveis para o acontecimento; já da perspectiva dos miracula medievais não haveria necessidade disso, pois Deus (ou o Diabo) bastaria como fonte explicativa de qualquer acontecimento similar ao que hoje chamaríamos sobrenatural.

71 Alusão a As Crônicas de Nárnia, de Clive Staples Lewis.72 Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho, de Lewis Carroll.

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Voltemos, então, agora às narrativas em torno dos nossos santos nos cemitérios do Rio Grande do Norte. O relato sobre o tesouro de Jararaca pode ser entendido como uma adaptação local de um tema muito difundido no mundo todo. Enquanto tal, ele pode também ressurgir sob formas diversas, pois, como já argumentei, ele opera como uma matriz simbólica e uma grande metáfora. Vejam o depoimento de Dona Teresinha de Jesus, 46 anos, moradora de Assu, cidade vizinha a Mossoró. Ela me contou, com muita naturalidade, que havia sonhado com Jararaca após sua primeira ida ao túmulo para orar e pedir seu auxílio.

Eu pedi um teto a ele, que eu não tinha. Morava em casa alugada há muitos anos. E ele foi e me mostrou assim um letreiro de luz: “Tá aqui! Agora, você não diga a ninguém!” Ele atirava assim com o revólver, aí eu via numa pedra os números da loteria. Ele disse “joga, mas fica só contigo. Vá em frente!” Aí naquilo eu acordei e anotei os números. Eu não jogava na loteria, nem sabia nem como é que era, mas já que veio me dar eu vou, né? E joguei e deu! (rindo muito). Deu pra mim comprar um carro, uma casa boa. Faz uns seis anos isso. Ele é bem moreno. Fiquei em choque, porque eu queria falar, mas não podia, só podia escutar. Não podia falar com ele, era só ele me falando.

Esse depoimento poderia estar classificado aqui como relato de milagre, pois também se configura como tal. Como dissemos, as categorias não são estanques e excludentes, podendo se sobrepor umas às outras, e elementos de diferentes categorias (e gêneros) podem estar misturados em um mesmo relato/narrativa. Partimos do pressuposto de que todo discurso é infiltrado, e filtrado, por outros discursos (FAIRCLOUGH, 2001; MACHADO, 1995), e nenhum contém apenas aquilo que parece trazer na sua superfície, assim como nenhum agente discursivo controla inteiramente, a partir de suas intenções e motivações, aquilo que efetivamente enuncia no seu próprio discurso. Por sua boca (ou texto) muitas outras bocas podem estar falando, junto com ele, e até mesmo contra ele. Assim,

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ao testemunhar sua fé, Dona Terezinha conta um conto, com muita graça e humor, mas também apresenta um relato miraculoso, por meio do qual justifica sua assiduidade aos ritos de devoção anuais a Jararaca. Ao seu modo, ela também desenterrou um tesouro propiciado por ele, em nada mais metafórico que o primeiro, porém esse Jararaca de seu sonho já não parece ser um prisioneiro da maldição da avareza, um sofredor no purgatório que necessitasse de seu auxílio para sua libertação póstuma. A aparição onírica que se teria apresentado a Dona Teresinha, uma pessoa já então devota, já estaria mais próxima do santo intercessor e protetor, paramentado ainda como cangaceiro, seu distintivo, porém tendo seu revólver convertido em projetor de luz, algo como um elemento de espetáculo, informativo e iluminador, que lhe viria a abrir as portas da fartura. Impossível não notar como o imaginário do milagre já aparece aqui, nesse relato, inteiramente modulado conforme a uma imagética audiovisual dos shows de prêmios televisivos.

Esse, então, que teria visitado Dona Terezinha de Jesus em sonho, já seria o Jararaca reformado pela reformulação hagio-gráfica póstuma, agente de milagres, apto a prestar socorro aos aflitos deste mundo. O marido de Dona Teresinha, seu Antônio, também teria se tornado devoto após o milagre onírico recebido pela esposa, e me contou sobre duas promessas já atendidas por Jararaca: para “curar um problema” de saúde – e levou a mão espalmada ao peito, com uma careta de imitação de dor – e para pedir que seu time de futebol, o ABC, de Natal, fosse campeão do campeonato estadual. Com a mesma alegria e simpatia de Dona Terezinha, afirmou que continuaria pedindo a Jararaca tudo o que precisasse, com toda confiança.

Aparições oníricas não são exclusividade de Jararaca; também Baracho aparece em sonho para seus devotos como emissário de boas notícias e conselhos. No entanto, ninguém jamais me contou

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sobre prêmio de loteria ou botija de ouro, mesmo em registro maravilhoso, embora tenha escutado sobre sucesso em promessas envolvendo compra da casa própria, quitação de dívidas, um novo emprego, uma promoção ou aprovação na escola ou no vestibular, atribuídos à sua intercessão. Baracho, em sua condição de ex-mo-rador da periferia pobre de Natal, parece ser percebido como um protetor mais próximo da realidade cotidiana dos seus devotos, nesse sentido não equiparável à estatura mítico-lendária de um cangaceiro, que tão bem parece se prestar à proliferação de causos, contos e lendas, como de milagres espetaculares. João Baracho parece ainda habitar, postumamente, o mesmo cotidiano simples e humilde das pessoas que lhe procuram no cemitério da periferia da cidade, onde residia quando vivo e continuaria a residir após sua morte, de tal forma a assinalar esta dupla continuidade entre, de um lado, os dois planos de sua existência (vivo/morto) e, de outro lado, os dois polos da devoção (devoto/santo).

Figura 15 – Folhetos de cordéis sobre Jararaca

Fonte: acervo pessoal da autora

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É como se, mesmo na morte, um cangaceiro, necessariamente associado ao fenômeno coletivo e datado que foi o cangaço, fosse ainda, em alguma medida, uma personagem simbolicamente mais poderosa do que um criminoso comum, de atuação individual, ainda mais quando este é visto a partir do olhar contemporâneo, como é inevitável que seja. Cantado em verso e prosa pela tradição nordestina do cordel (CURRAN, 2001), o cangaceiro sempre esteve associado a façanhas, e a elementos do universo dos contos maravilhosos e fantásticos, a começar por seus próprios atributos de bravura, resistência física e habilidades incomuns para, como um trickster sertanejo, driblar os perseguidores enviados em seu encalço e enganar até mesmo ao Diabo.

O fato de João Baracho, o matador de motoristas, não ter deixado nenhum tesouro enterrado não significa que ele não tenha sido investido, como Jararaca, de conotações maravilhosas. Duas das primeiras histórias que ouvi a seu respeito ilustram bem esse aspecto, em dois momentos: primeiro, como o bom bandido vítima de injustiça social,73 que teria assinado com a digital uma confissão que não podia ler, já que seria analfabeto; e, ainda, como herói macunaímico que, com suas artes e manhas, teria conseguido escapar duas vezes da cadeia e ludibriar as buscas policiais durante muito tempo, após a primeira fuga.74 Como? Ele invultava. Invultar significa transformar-se em vulto ou tornar-se invisível, efeito que poderia ser alcançado por algumas pessoas através de misteriosa oração. Ninguém soube, ou quis, me dizer como seria essa oração, e a justificativa para isso era uma variante do dito Coisa dos antigos. Hoje ninguém mais sabe.

73 Ouvi isso vezes sem conta de seus devotos e mesmo de pessoas que ignoram ou rejeitam o culto, mas conhecem ou recordam os acontecimentos implicados em sua morte.

74 Existe também aquela outra versão, mais realista, que afirma que sua fuga teria sido facilitada pela polícia corrupta para criar a oportunidade de matá-lo daquele modo espetacular, o que teria sido um meio para promover o então secretário de segurança, candidato às eleições naquele ano.

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Novamente aqui caberia recordar Paul Veyne (1987 [1983]) e sua belíssima discussão sobre regimes de produção e circulação de verdades. Não se trata apenas de dizer que a verdade é relativa ao ponto de vista, mas de que diferentes verdades podem emergir e coexistir a partir de funcionamentos completamente distintos. Bruno Latour (2002, p. 22) reconhece o acerto de Veyne (1987 [1983]) ao recusar a “crença na crença ingênua” de outrem, ou seja, por suprimir a dicotomia saber-crer (ou razão-mito, ciência-su-perstição),75 porém vai mais longe, ao afirmar que, ao lidar com esses sistemas que, no discurso científico do Ocidente colonizador, temos chamado de “crença”, as pessoas o fazem sem sentirem qualquer necessidade de optar entre constructos mentais (as tais “crenças”) e realidade objetiva, no sentido de realidade exterior. Isto é, as pessoas, inclusive no próprio Ocidente e no próprio campo científico, não mentem cinicamente nem acreditam ingenuamente. Elas sabem que construíram a realidade em que acreditam, mas também sabem que o que construíram existe por seu próprio mérito e possui potência própria para, inclusive, agir sobre elas. Em uma sentença: “Em cada uma de nossas atividades, aquilo que fabricamos nos supera” (LATOUR, 2002, p. 47). Eu diria que não apenas nos supera e surpreende, mas também nos encompassa e pode, em grande medida, nos reinventar e reposicionar, em um processo de invenção mútua jamais redutível a simples jogo de oposição entre verdadeiro e falso.

De certa forma, é como se a própria existência da personagem pública Baracho pertencesse a um tempo de outra qualidade no qual coisas e pessoas extraordinárias podiam existir. Por isso, Baracho teria tão facilmente fugido da cadeia e se mantido foragido durante tanto tempo, apesar de ter a polícia de vários estados do Nordeste em seu encalço: “Ele saía, ele saía! O povo podia amarrar e fechar

75 Dizendo de outro modo, “Eu sei, o outro acredita”.

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[a cela], ele abria e saía. Não precisava de chave! Ele invultava.” Pergunto, então, por que ele não invultou para escapar da polícia naquela perseguição final. “Não deu tempo de ele rezar [a oração para invultar] porque ele já vinha sendo perseguido pra ser morto, pra ser preso, pegado novamente. Aí então, quando ele passou a cerca do homem, quando passou a cerca, arame tem cruz, né? Aí a reza dele não serviu!” (Dona Odete/Detinha); seu Dadá oferece explicação mais terrena: “Só pegaram ele, só mataram ele, porque na hora que foram matar ele, ele enguiçou numa cerca de arame” (seu Adailton Araújo de Souza, 56 anos). Enquanto esteve foragido, após sua primeira fuga, notícias contraditórias davam conta de aparições suas em Macau, enquanto um ouvinte de rádio denun-ciava sua presença em Recife, e outros juravam tê-lo visto em Natal. Essas notícias desencontradas, bem como as explicações anteriores sobre suas habilidades de fuga, exemplificam e simultaneamente fomentam o complexo mágico-maravilhoso-lendário em torno de sua figura. Baracho passara a ser tratado, durante sua primeira fuga, como o “bicho papão” de Natal, mobilizado por adultos para assustar as crianças: “passa pra dentro senão Baracho te pega!”

Para que possamos chegar a uma compreensão mais clara do motor de elaboração e difusão inicial desses relatos, devemos levar em conta que no início da década de sessenta não vivíamos no Brasil sob o império da difusão e proliferação desenfreada de imagens, por meio da televisão, da publicidade, do cinema e pos-teriormente da internet. O rádio ainda era o meio de comunicação de massa mais popular junto à maioria da população, e por meio dele ninguém tinha como visualizar a aparência de um procurado pela polícia. Contava-se apenas com as fotos em preto-e-branco dos jornais, de qualidade gráfica limitada. Isso poderia explicar, ao menos em parte, a enorme fila de pessoas que, segundo jornais da época e relatos de lembranças pessoais, teria se formado diante da

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delegacia na qual Baracho esteve preso, após sua captura. Sob sol intenso, muitos teriam se disposto a aguardar pela oportunidade de finalmente ver o famoso matador de motoristas de que tanto se falara nas conversas entre vizinhos, nas notícias das páginas policiais e nos programas de rádio durante aqueles últimos meses.

A lacuna deixada pela ausência de informação visual sobre Baracho pôde dar lugar a um ativo exercício de imaginação por parte dos leitores de jornal e ouvintes de rádio, que procuravam representá-lo mentalmente a partir de elementos extraídos de suas experiências e conhecimentos prévios. Dessa forma, os que arderam sob o sol em nome da oportunidade de ver o Baracho em carne e osso na delegacia podem ter enxergado nele o Baracho com o qual já se encontravam, àquela altura, familiarizados: o Baracho que já vinha habitando há tempos em sua imaginação e suas conversas, ambos processos sociais. “Aí eu fui [à delegacia] e eu vi, as outras [suas vizinhas] já me diziam: ele olhava pra gente dos pés pra cabeça” (Dona Eutália). E ela abaixa a cabeça para me mostrar como Baracho teria feito, imitando seu olhar fixo, de olhos semicerrados.

Esse Baracho duplamente invisível,76 e talvez por isso mesmo visto em toda parte, passaria a aparecer com frequência ainda maior depois de morto – agora já na múltipla chave do maravilhoso, do milagroso e até do fantástico, que se viriam somar à componente lendária de que já fora revestido nos últimos anos de sua vida. Pois muitas seriam suas aparições póstumas nos arredores do velho cajueiro no Carrasco e no cemitério Bom Pastor, onde ele descansaria não fossem as inúmeras demandas por sua intercessão desde seu sepultamento. Após sua morte, as estações de rádio e as sedes dos jornais continuariam a ser procuradas ainda durante algum tempo por pessoas que juravam ter visto Baracho em algum lugar, o que, a esta altura, já não nos pode surpreender.

76 Afinal, lembremos, ele era capaz de invultar e, assim, se tornar invisível delibe-radamente, para fugir da cadeia e escapar às perseguições.

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Como bem registrou Câmara Cascudo (2001a, 2001b), Natal, como tantas outras capitais brasileiras, nunca teria deixado de ser povoada por fantasmas e histórias de assombração. Longe disso: lá se encontrariam ainda os velhos casarões cheios de história e memórias de muitas gerações,77 com seus vultos e ruídos de correntes, vidros quebrados, sussurros, bem como as ruínas, os locais ermos, as árvores centenárias, os velhos cemitérios ou locais notórios por ocorrências violentas, por vezes tornados tabu. Em cada um desses locais, os rastros deixados pelas assombrações que por ali passaram deixou uma textura nova, uma camada extra de significação, a partir da qual novas histórias são forjadas sem esforço. Tendo ganhado reputação de santo – modesta e, para muitos, duvidosa –, Baracho agora aparece apenas ocasionalmente, por meio de contatos oníricos individuais com aqueles que se interessam por ele, ou “têm fé nele”.

Antes de encerrar esta seção contarei outras duas histórias recorrentes no repertório dessas devoções, que se situam na mesma fronteira ambígua entre o testemunho pessoal e a memória coletiva, entre o miraculoso e o maravilhoso. Uma é a história da quartinha de água de Baracho, que também apresenta muitas variações. Ela pode ser contada como vivência pessoal, na primeira pessoa, logo como relato do tipo testemunho: teriam levado para casa a água benta de seu túmulo, e por mais que usassem da água no decorrer dos dias, a quartinha voltava a aparecer cheia na manhã seguinte.78 Ana, 39 anos, zeladora no cemitério Bom Pastor desde 1978, moradora do Salgado, também em Natal, contou-me que teria passado a acreditar em Baracho desde que usou a água deixada sobre seu túmulo por um devoto para curar uma cólica que teria

77 Ver também Freyre (2012).78 Em outras versões, ocorre exatamente o oposto: a pessoa enche a quartinha de

água em casa (ou a leva cheia do túmulo), mas encontra pouco depois a quartinha vazia, seca. Por mais que a pessoa volte a enchê-la de água, ela volta a secar rápida e misteriosamente. Claro que onde uns falam em quartinha, outros falam em garrafas ou qualquer outro tipo de recipiente de uso comum.

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desde mocinha. Segundo ela, teria aplicado, durante alguns dias seguidos, essa água sobre seu corpo e, desde então, nunca mais teria sentido aquela dor (apalpa a barriga, sugerindo tratar-se de cólicas). No entanto, apesar de haver alcançado uma melhora que atribui à água milagrosa, teria acabado por jogar fora a quartinha,79 tomada de súbito pavor de que ali pudesse estar em ação o maligno – o que, aliás, só evidencia o quanto o diabólico permanece como virtualidade do miraculoso, sendo sempre possível converter um no outro.80 Maria Teresa de Medeiros, conhecida como Terezinha, 62 anos, moradora das Quintas, após me contar uma experiência semelhante, fez a seguinte comparação: “É igual vela, não se deve acender dentro de casa. É na igreja ou no cruzeiro do cemitério. Pode ser até no quintal. Dentro de casa, não”.

A outra história é a das flores ou ervas brotadas nas imedia-ções do túmulo ou postas sobre ele durante os ritos dos devotos. No caso, flores de Jararaca, pois não encontrei fenômeno similar no culto a Baracho. Conta-se que essas plantas seriam milagrosas. Delas se poderia fazer chá, para beber ou passar sobre a parte do corpo doente. Isso atestaria a importância simbólica do fator contiguidade nesse tipo de culto religioso, isto é, a proximidade física com a fonte original do poder sagrado seria capaz de sacralizar objetos antes comuns, como a água (que se tornaria benta) e as plantas (que se tornariam curativas). Uma variante desse tema é a das flores que, arrancadas ou retiradas do túmulo, permaneceriam viçosas por período extraordinariamente longo, como aquela água inesgotável que se renova a si própria, ambas figuras da longevidade que se

79 Ela não foi a única: escutei variações da história da quartinha de água de pelo menos mais duas informantes que a relataram na primeira pessoa, como expe-riência pessoal, e outras versões contadas em tom de narrativa fantástica, na base do “dizem que..., mas eu mesma/o não vi”.

80 Para uma exploração do tema dos objetos no catolicismo como veículos de bênçãos ou de malignidade, ver Garcia (2018).

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opõe à deterioração e à morte, o que é coerente com o propósito curativo daqueles objetos.81

Se alguém se doa quando se devota ao santo, quando dá também objetos como oferendas, a permanência desses objetos sobre o túmulo reforça sua consagração e prolonga o contato entre o devoto doador e o santo receptor, além de propiciar o contato entre devotos por seu intermédio. Trata-se, então, de dupla mediação: entre devoto e santo; e entre devotos. Assim, mesmo com toda sua precariedade material, devido às condições particulares desses cultos indesejados nos cemitérios, os objetos deixados junto ao túmulo são mediadores simbólicos importantes. Como ocorre com as histórias, testemunhos, lembranças, tenderiam a também circular entre os devotos, dos cemitérios para suas casas ou altares privados: a água ofertada a Baracho por um devoto pode ser levada para casa por outro devoto, como foi o caso de Ana. Fato é que esses objetos não saem dali com a mesma qualidade com que chegaram. Eles saem outros. E o mesmo se poderia dizer das pessoas e das suas palavras: quantos depoimentos contados (doados) em primeira pessoa, como testemunhos ou lembranças, pessoais ou de terceiros, não retornarão mais tarde, transformados, nas bocas de outros devotos (ou outros narradores)?

Aprisionado para sempre ao solo da cidade que o derrotou, Jararaca foi transformado rapidamente de lenda do banditismo – menos por sua trajetória pessoal do que por sua condição de cangaceiro – e perigo real para a população da cidade, como participante da invasão à cidade em 1927, em recurso simbólico positivo, ativado no domínio religioso e em outros domínios. O próprio episódio da invasão, construído por outros tipos de

81 Tanto o chá como a duração excepcional das flores do túmulo ocorrem também em outras devoções em cemitérios. Ver, por exemplo, o número especial (24) da revista Terrain sobre esse tipo de culto em diferentes países e tradições religiosas.

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relatos como fato histórico, passou a funcionar como signo da bravura e da resistência82 do povo mossoroense frente à barbárie cangaceira.83 É como se tivesse havido uma divisão do espólio na cidade: a população humilde apropriou-se rapidamente de Jararaca, transformando-o em potência religiosa/espiritual, valendo-se para isso de sua alta voltagem simbólica; e as elites políticas letradas apropriaram-se do acontecimento global da invasão à cidade como um tijolo importante para a construção identitária da cidade como uma “comunidade imaginada” (ANDERSON, 2008) erguida, em parte, também sobre a derrota sobre os cangaceiros.

Figura 16 – Folhetos de cordéis sobre a invasão a Mossoró pelo bando de Lampião, em 1927

Fonte: acervo da autora

82 Felipe (2001), especialmente Capítulo 4.83 Note-se, de passagem, que a figura do cangaceiro, e do cangaço, ora definido

como banditismo, ora como movimento de revolta social, sempre foi – inclusive, nos estudos acadêmicos, em diferentes campos, como a História, a Sociologia, a Antropologia – extremamente controversa. Para algumas referências sobre isso, ver Barros (2000); Chandler (1980); e Mello (2004) – dentre outras referências que você pode encontrar na bibliografia deste livro.

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As especulações políticas, midiáticas, populares sobre os fatos que teriam cercado a morte de Jararaca e de Baracho, em Mossoró e Natal, logo se tornariam especulações sobre o destino póstumo desses mortos, posto que a morte raramente é pensada como mero cessar da existência, simples ausência de vida ou pas-sagem do Ser ao Não Ser, mas antes como passagem para outra forma de existência, ou de Ser. Assim, falar da morte e do morto passa a ser também, inevitavelmente, falar da sua nova forma de existência, agora espiritual, e das possíveis formas de nos relacio-narmos com ele a partir de então.

Assim, se a morte teria sido percebida, e intensamente vivida pela comunidade local, como acontecimento anômalo e disruptivo, ápice de uma vida rica em matéria mitologizável, como poderia ela desdobrar-se em uma existência póstuma banal? Jararaca ou Baracho não poderiam se perder no vale comum das almas anônimas, e isso de fato não aconteceu. Parte da população em cada local se encarregou de assegurar isso, respondendo de modo similar, apesar da distância temporal que separa os dois casos. A ela viria a juntar-se outros segmentos e agentes sociais, com suas ações, suas vozes e sua escrita, na tarefa de explorar sua potência, já ela própria produto do artesanato narrativo, midiático, político, e da memória social, que já se encontrava previamente em curso.

O próprio acontecimento central à morte de Jararaca – ter sido, como se acredita, enterrado vivo pela polícia – tem sido objeto de disputa narrativa, disputa em si mesma intrinsecamente política. Ainda no final da década de 1990, em Mossoró, contava-se ao redor do túmulo que o motorista que teria levado Jararaca ferido da prisão para o cemitério, em seu pequeno caminhão, atendendo a uma solicitação da polícia – segundo informação

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dada a ele então, para transferi-lo para um hospital em Natal devido ao agravamento de seu estado de saúde – ainda viveria em Mossoró e estaria lúcido. Não consegui confirmar essa informação. Talvez se tratasse apenas de mais uma lenda, já que outros, nessas mesmas ocasiões, o desmentiam enfaticamente: esse senhor já teria morrido há muitos anos, ou teria ido embora da cidade logo depois do ocorrido.

Porém, o depoimento do motorista não foi o único a cor-roborar a versão da execução policial e do martírio de Jararaca. Há também registros do depoimento do sargento Pedro Silvio de Morais, presente ao local da execução e enterro de Jararaca (NONATO, 1955). Ele teria, todavia, apresentado desse fato duas diferentes versões, a segunda em 1996, em depoimento a outro estudioso, Raimundo Soares de Brito.84 Neste segundo depoimento, Morais teria incrementado a narrativa da execução, informando que eles, os soldados, dentre os quais se incluía então, teriam quebrado as pernas de Jararaca (ainda vivo) com picaretas e fuzis e não apenas lhe dado uma coronhada com o cabo da arma antes de jogá-lo na cova, após o tiro.

Como afirmou o historiador Eric Hobsbawn em dois livros hoje considerados clássicos,85 é muito comum que criminosos que alcancem fama em certa região sejam alçados à condição de mitos ainda durante sua vida, a partir de um processo de idealização e romantização dos eventos nos quais estiveram envolvidos e de seu próprio comportamento e personalidade.

84 Esse fato é mencionado no artigo de Adriana Negreiros na revista Piauí, edição 130, de julho de 2017, “O julgamento de Jararaca. Um soldado de Lampião no banco dos réus da História”, no link: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o--julgamento-de-jararaca/. Acesso em: 24 set. 2019.

85 Rebeldes Primitivos: Estudos sobre Formas Arcaicas de Movimentos Sociais nos Séculos XIX e XX, de 1959, e Bandidos, de 1969.

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Suas ditas proezas podem suscitar simultaneamente admiração e horror, sendo comum que se tornem amplamente veiculadas através de narrações orais e de novelas populares, além de se tornarem notícia nas mídias.

Para a hipótese explicativa que proponho para a santificação póstuma, a de que ela exigiria, como condição de possibilidade, não apenas a morte trágica – condição necessária, mas não suficiente –, mas a construção de uma biografia também percebida como extraordinária, torna-se fundamental ter claro de que modo isso se teria dado nos dois casos em estudo aqui. Isto é, como as vidas de Jararaca e Baracho teriam sido, elas próprias, antes mesmo dos eventos que os levariam à morte, alçadas à condição de vidas incomuns, passíveis de criarem as condições necessárias para sua santificação póstuma, não a despeito de quem foram, mas justamente por haverem sido quem foram.

As histórias que ouvi, dos devotos e de outros familiarizados com a devoção, sobre a invasão de Mossoró pelo bando de Lampião não retratam um Jararaca – cujo nome de batismo era José Leite de Santana – muito diferente daquele desenhado nos livros de História e das crônicas jornalísticas: oriundo de Buíque, em Pernambuco, onde teria nascido em 1901 (NASCIMENTO, 2016), em uma família de classe trabalhadora, teria se tornado militar em 1921, aos vinte anos de idade, já em Maceió, Alagoas, e daí teria sido depois transferido para o Rio de Janeiro (3º Regimento de Infantaria), onde, segundo Almeida (1981) e Nascimento (2016), teria combatido ao lado dos legalistas na revolução constitucionalista de São Paulo, em 1924. Mais tarde, deixaria o Exército e retornaria ao Nordeste, onde, em 1926, entraria para o cangaço, formando um bando próprio, por meio do qual se tornaria respeitado e conhecido até pelo já prestigiado Lampião, de quem se tornaria aliado. E aí já

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estaria tendo início a composição de sua figura como fora da lei de um tipo singular, o cangaceiro, ou melhor, uma liderança no universo do cangaço, reconhecido pelo mais importante deles, Lampião. Esse é o modo como surge retratado nos livros citados, nos cordéis e nas matérias jornalísticas que procuram situar aquele morto que até hoje é objeto de devoção em Mossoró.

Assim, segundo essas fontes, em 1927, o pequeno bando de Jararaca teria se reunido ao de Lampião para reforçar a emprei-tada difícil que seria atacar Mossoró, uma cidade vista por eles então como próspera e moderna. Vale assinalar que esse discurso sobre as percepções acerca da cidade naquela época por parte dos cangaceiros é um ponto de vista construído e sustentado desde a atualidade por algumas dessas fontes, bem como, mais ainda, pela imprensa,86 memorialistas, políticos e agentes governamentais locais. É, ainda, em certa medida, reproduzido por parte da popu-lação como exercício de afirmação identitária e orgulho da terra natal. Trata-se, portanto, de discurso – em sentido amplo: verbal, imagético etc. – que procuraria acentuar o caráter progressista e vanguardista da cidade, utilizando-se para isso de acontecimentos históricos particularmente significativos.

86 Para citar mais uma, dentre as tantas já citadas neste livro, o website Tok de História, agraciado com a Medalha do Mérito Acadêmico Agnelo Alves, em 2017, publicou sobre o assunto esta matéria: “Mossoró expulsou o bando de Lampião à bala – Disse não à extorsão do cangaceiro – Um grande fato na história do Nordeste – Fatos e Fotos!” (13 dez. 2015). https://tokdehistoria.com.br/tag/memorial-ao-cangaco-e-a-resistencia/. Acesso em: 11 dez. 2019.

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Figura 17 – Memorial da Resistência, ou Memorial do Cangaço, como parece preferir o povo local, Mossoró, fevereiro de 2020

Foto: Rudá Frias

Nesse sentido, o episódio da invasão pelo bando de Lampião, transmitido como parte da crônica da “resistência” dos “bravos de Mossoró”, hoje parte fundamental da história da cidade87 e do seu calendário cultural,88 acaba por incluir a imprevista – e para alguns indesejável – metamorfose do cangaceiro em santo no cemitério São Sebastião. No entanto, no domínio da cultura, plástica por definição, tudo se transforma e se aproveita, e assim podemos hoje encontrar na cidade o Memorial da Resistência. Circulando pela cidade, podemos ouvir referência a essa espécie de museu aberto da história do cangaço, através de sua designação mais popular: Memorial do Cangaço. Hoje ele se tornou parte do

87 Sobre o discurso da resistência, que não é em si meu objeto de estudo aqui, sugiro a leitura da ótima tese de Tavares (2016).

88 Especialmente durante o Mossoró Cidade Junina, durante o mês de junho, quando tem lugar a encenação teatral ao ar livre Chuva de Bala no País de Mossoró, baseado em peça teatral de Tarcísio Gurgel.

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circuito turístico cultural da cidade. Pode-se dizer, então, que ela digeriu e incorporou seus invasores, produzindo uma interpreta-ção histórica canônica acerca da invasão que fixou para eles um “lugar de memória” (CANDAU, 2002, p. 111; NORA, 1985),89 que se tornou também uma pedagogia materializada sobre a cidade, sobre como quer ser vista por seu morador e seu visitante.

Jararaca, por sua vez, continua oscilando, ambivalente, como todo cangaceiro, na morte como na vida, entre a imagem do bruto e ganancioso criminoso e a de herói dos pobres, revoltado contra a ordem social opressora, espécie de “bandido social” (HOBSBAWN, 1975a, 1975b) com o qual pessoas das camadas mais humildes e mais expostas a condições similares tenderiam, teoricamente, a se identificar. A essa ambivalência, acrescentou-se postumamente mais essa dimensão, religiosa: ser ou não ser santo, ser ou não ser demoníaco, ainda oscilando entre o Bem e o Mal sem vislumbrar qualquer possibilidade de definição. Na verdade, sem que exista qualquer busca por definição. Seu lugar segue liminar e, como tal, prenhe de possibilidades que instigam a imaginação e oferecem matéria-prima para fabulações e especulações de todo tipo, cosmológicas, históricas, teológicas. Não é à toa que segue sendo, como Lampião e outros cangaceiros, cantado e contado em verso e prosa.

89 Na verdade, mais de um lugar de memória, pois temos que incluir aí, como parte de um circuito turístico do qual participa também o túmulo de Jararaca, o Museu Lauro da Escóssia (TAVARES, 2016, p. 138), também conhecido popularmente como Museu do Cangaço. A expressão “lugares de memória” teria, segundo Candau (2002, p. 111), sido cunhada por Frances A. Yates. Ela dá título à conhecida obra de Pierre Nora (1985).

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Figura 18 – Aucides Sales e Emanoel C. Amaral. Editora Sebo Vermelho, junho de 2002

Fonte: acervo da autora

Portanto, se ajudaria ou não aos necessitados que lhe pro-curam no cemitério – ou se os benefícios alcançados por eles, segundo seus próprios testemunhos, o seriam apenas por força de sua própria fé, como efeito de um dispositivo psicológico; se atuaria para o Bem ou para o Mal, continuará provavelmente sendo matéria de controvérsia pública na qual, ao que parece, ninguém jamais terá a última palavra. A esta altura, todavia, deve estar

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claro que tal ambivalência somente em parte pode ser atribuída à marginalidade da vida no cangaço, à sua (ou a de Baracho) situação de fora da lei, pois ela parece ser, de certo modo, intrínseca ao próprio regime discursivo (ritual) que produz o milagre, o que já se constata desde os miracula medievais.

A história mais emblemática, anedótica mesmo, do legen-dário de proezas do Jararaca cangaceiro escutei pela primeira vez de Dona Sebastiana Silva, 62 anos. Explicou-me que lá onde Jararaca estaria, no Além, ele não teria alcançado descanso devido ao seu comportamento excepcionalmente cruel em vida,90 “Dizem que ele atirava criança pro alto e aparava na ponta do facão! Por isso que hoje ele faz o bem. Ele ajuda as pessoas pra conseguir o perdão, por causa da criança que ele matou à toa, só pra se divertir.” Muitas seriam as vezes em que eu voltaria a escutar o bordão, no cemitério e fora dele: “Atirava a criança pro alto e aparava na ponta do facão!”.

O sofrimento descrito por Dona Sebastiana, que caracteriza-ria o estado póstumo de Jararaca (e de Baracho), teria caracterizado também sua vida e sua morte, e parece ser comum a todos os que fazem da imposição de sofrimento aos outros sua profissão. Não há como operar com a dor, extraindo dela eficácia e poder, sem que se tenha sido, ou se torne, nesse processo, íntimo dela. A vida no cangaço – e no crime, em geral91 – tem sido representada como uma vida marcada por perseguições, fugas, delações e distância da

90 Ver o cordel de Concriz, Jararaca arrependido porque matou um menino, ilustrado na Figura 15 (Capítulo 7).

91 Essa representação não pode ser dissociada daquela acerca da curta duração da vida das pessoas ligadas ao crime, apontada nos estudos contemporâneos sobre violência urbana. Ver, por exemplo, Zaluar (1985) e Alvito (2001). Até porque, tanto em Natal como em Mossoró, os devotos de Baracho e de Jararaca compartilham hoje da mesma realidade urbana na qual eventos e notícias sobre criminalidade violenta são rotinas.

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família.92 Os cangaceiros se meteriam, em suas andanças e fugas, pela caatinga adentro, ambiente físico visto como inóspito, onde o deslocamento seria normalmente difícil, e nela se moveriam com habilidade incomum, mas ainda assim sujeitos a todas as contingências humanas de tal situação nômade.

A perspectiva romântica ressalta tais dificuldades para exaltar suas habilidades. Essa habilidade é uma das características ima-ginadas para conferir sentido à sua longevidade relativa, em vista de tantas perseguições e perigos a que se expunham, bem como à sua capacidade de sobreviver e se esconder nesse ambiente em tais circunstâncias. Essas representações não são excludentes, pelo contrário, elas se reforçam mutuamente, compondo um tipo de sistema: o cangaceiro sofre terrivelmente; ele sobrevive porque é de uma bravura excepcional; ele impõe aos outros o mesmo sofrimento, porque seu mundo é esse, o da sobrevivência em condições brutais. E assim o círculo se fecha e tudo parece fazer sentido. Todo um imaginário se constrói em torno disso, oportunizando o desen-volvimento de especulações sobre as tais habilidades incomuns, o corpo fechado, o pacto com o Diabo, hipóteses que procuram conferir sentido ao que poderia ser de outra forma inexplicável. Essas hipóteses podem conviver ou concorrer com outras, mais realistas, sobre, por exemplo, redes de protetores, coiteiros, cúmplices, que os avisariam e protegeriam. No entanto, o que permanece mais vivo nas narrações orais populares sobre o cangaço é a imagem de uma vida áspera, solitária, nômade, toldada por desconfiança e traições, cercada por espinhos reais e metafóricos, frente aos quais os cangaceiros mostrariam coragem e resistência incomuns. A encarnação mais completa dessa personagem evidentemente é Lampião, o “Rei do Cangaço”, e é a partir desse modelo que Jararaca segue sendo desenhado ainda hoje.

92 O que não significa que dentro dos bandos de cangaceiros não houvesse unidades familiares, como casais e irmãos.

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Assim, a violência a qual o fora da lei, cangaceiro ou ladrão, rural ou urbano, ontem ou hoje, é associado parece tornar-se um elemento constitutivo de sua própria pessoa e modo de vida, não apenas algo que ele faz ou impõe às suas vítimas. A violência tor-na-se algo, em primeiro lugar, autoimposto. Sua eficácia como ferramenta de terror decorreria de sua própria familiaridade com ela, em sua experiência de vida. É importante termos isso presente ao pensarmos sobre os impactos sociais dos eventos que cercaram sua morte, a violência e o sofrimento percebidos nela, e sentidos por terceiros em decorrência dela. Afinal, foi a partir da mobilização causada por ela – “enterrado vivo!” (ou, no caso de Baracho, sozinho, renegado, fuzilado, “com sede!”) – que a devoção teve início, porém os antecedentes dessa mobilização, todo o imaginário elaborado antes sobre essa vida cruel, são fundamentais para sua compreensão.

A solidão seria, nesse aspecto, um capítulo à parte. Como já vimos, também no caso de Baracho, Jararaca seria visto como um desgarrado social, isto é, nenhum dos dois é percebido a partir de um vínculo social forte, nenhum é englobado por uma estru-tura familiar, uma parentela, um papel comunitário. Mesmo que Jararaca liderasse um bando, ninguém fala sobre essa posição de liderança ou esse bando; mesmo o vínculo com o bando de Lampião era casual, uma prestação de serviço, e tal associação funciona mais como marca identitária e contexto – o cangaço, em geral – do que como signo de pertencimento social. Isto é, tanto Jararaca como Baracho são, antes de tudo, indivíduos.

Jararaca teria deixado o sítio onde morava com a família, em Buíque, após haver assassinado alguém em função de um conflito que teria envolvido a honra de sua mãe (NASCIMENTO, 2016, p. 24). Dali teria partido para Alagoas, onde se alistaria no Exército. Como soldado, logo partiria novamente para outros estados: Rio de Janeiro, São Paulo e, por fim, Rio Grande do Sul. O nomadismo

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já estaria, assim, presente em sua trajetória de vida. Tendo abando-nado o Exército, onde se teria aperfeiçoado no manejo de armas, teria retornado ao Nordeste e enxergado ali duas opções: a polícia ou o cangaço. Como apontam estudiosos, a diferença entre ser cangaceiro ou ser policial ou soldado podia ser, nessa época, para os homens de condição humilde, mera questão de oportunidade ou de quem os recrutasse primeiro. De certo modo, acredito que isso possa ser ainda hoje verdadeiro para as dinâmicas de repro-dução da violência urbana. Sua adesão ao cangaço e formação de seu próprio bando armado parecerá, nesta altura, não mais que um desdobramento lógico, de certo modo inevitável, o que não deixa de ser em parte efeito do próprio encadeamento narrativo construído pela biografia, como os estudiosos desse gênero93 já tantas vezes apontaram.

Também João Baracho é representado por seus devotos e matérias jornalísticas, apesar de algumas matérias mencionarem que viveria com uma amante, como um indivíduo sem vínculos fortes, um migrante pobre que teria vindo sozinho94 do interior para a capital em busca de uma vida melhor, repetindo o script básico da vida de muitos que hoje oram por ele no cemitério. Na capital, só teria encontrado lugar possível na periferia pobre, a então “favela” do Carrasco,95 onde, após uma vida marcada pela pobreza e preca-riedade, terminaria morto no meio de um beco, em frente à porta

93 Além do artigo “A ilusão biográfica”, já citado aqui algumas vezes, sugiro a leitura do livro de Sergio Vilas Boas, Biografismo: Reflexões sobre as Escritas da Vida, de 2007.

94 Na ocasião em que se notabilizou nas páginas policiais, houve menção a uma amante ou companheira, Maria Lúcia, mas não fica claro se ela veio com ele do interior ou se a teria conhecido em Natal, apenas que moraria com ele na mesma casa, no Carrasco, naquele período.

95 Situada onde é hoje o bairro Dix-Sept Rosado. A denominação “favela” está entre aspas porque é utilizada pelos jornais da época e por depoimentos de ex-moradores, que costumam dizer “no Carrasco” ou “na favela do Carrasco”, um lugar, já no início dos anos 1960, representado como marginal e perigoso, parte daquele processo comum a muitas capitais brasileiras de criminalização e estigmatização da pobreza.

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dos vizinhos que se teriam recusado a escondê-lo e ainda o teriam denunciado à polícia aos gritos. Sedento, após ter quase conseguido beber do copo d’água oferecido por outra vizinha,96 sentado sobre a poça formada por seu próprio sangue, Baracho morreu. O laudo pericial divulgado depois pela imprensa informava 22 tiros, alguns de raspão. Era 1962. Os detalhes informados pelos veículos de mídia foram colhidos em depoimentos dos próprios vizinhos, que teriam testemunhado alguns desses momentos de sua perseguição e fuga.

O detalhe da água não bebida logo se tornaria, mais que o fuzilamento em si, o foco das narrações sobre sua morte. “Baracho morreu com sede”, algo que, conforme a entonação adotada, soa mais triste e trágico até do que seu fuzilamento em si. Sem parentes na cidade, de que se tivesse notícia então, teria sido pedreiro e feirante,97 ao que alguns acrescentam a informação de que também teria praticado pequenos furtos com o objetivo de vender os objetos furtados, que iriam de relógio a bicicleta. Em depoimento a Souza (1994, p. 36), uma ex-moradora do Carrasco, local onde Baracho morava quando foi preso pela primeira vez, teria afirmado que “Quando ele veio morar aqui, trouxe apenas uma cama, algumas cadeiras e umas tábuas que serviam de forro. Parecia que tinham [ele e Maria Lúcia] perdido tudo. Ocuparam um casebre de apenas um vão, vizinho ao meu”.

Uma das crônicas policiais sobre ele é a do furto à escola, quando teria tentado roubar o refeitório e as salas administrativas. Conta-se que teria tido, nesse episódio, um comparsa, que mais

96 Lembrando: Baracho teria pedido água a uma primeira vizinha. Quando esta estendeu o copo cheio através da porta, a polícia teria despontado no beco e ele teria largado o copo antes de beber, para prosseguir na fuga. Daí o bordão “Baracho morreu com sede”, sede que se tenta, hoje, postumamente, aplacar com a oferta de vasilhas cheias de água colocadas sobre seu túmulo, no cemitério Bom Pastor I.

97 Ou teria tido uma pequena lojinha ou quitanda, em outras versões, orais.

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tarde seria preso e o entregaria à polícia. Porém, o detalhe que a memória popular faz questão de ressaltar quando rememora esse episódio é que não seria à toa que ele estaria furtando justamente de um refeitório: ele estaria buscando alimentos para distribuir para os pobres. Sim, porque não se nega necessariamente que fosse ladrão, mas, antes, seus motivos, de modo a atenuar a malignidade de suas ações. Tratar-se-ia do bom ladrão, injustamente acusado de homicídios que não teria cometido. Há uma insistência recor-rente nos depoimentos e testemunhos na qualificação de seus supostos crimes, que procura acentuar a diferença, vista como significativa, entre furtar bens móveis e assassinar alguém. Tanto nos depoimentos de ex-vizinhos, contemporâneos de sua morte, como nos depoimentos colhidos dos devotos e frequentadores do seu túmulo hoje, os possíveis furtos de Baracho são percebidos como parte do jogo da sobrevivência em condições de miséria mais do que como parte de um discurso sobre violência, o que já abre uma diferença interessante em relação a Jararaca. Baracho jamais é retratado como alguém cruel por seus devotos. Quando se admite que agisse fora da lei, o contexto construído para essa referência são a carência e as relações de solidariedade na vizinhança (roubar para compartilhar), nunca o discurso legalista, jurídico ou mesmo moral. Baracho se arriscaria não apenas por si, ou para ganhar dinheiro pela revenda dos bens, mas também pelos outros, que de algum modo já estariam cientes e cúmplices de suas ações. Pelo menos, até a polícia abrir fogo dentro da favela.

Aqui reencontramos, portanto, o mesmo tema presente no mito de Jararaca: outro Robin Hood, tão ambíguo quanto o cangaceiro, embora sem o mesmo pedigree que o cangaço confere a Jararaca. Dizer deste que se tratava de um cangaceiro já é fornecer à audiência uma série de informações articuladas a partir de um referencial múltiplo e bastante conhecido, apresentado pela

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história, cinema, cordéis. Porém, apesar disso, é preciso atentar para o movimento de assimilação de Baracho a categorias mais abrangentes, como ocorre com outros santos de cemitérios (SÁEZ, 1996), o que manifestaria um exercício classificatório por parte dos narradores: mais que sua trajetória particular, trata-se de mais um João imigrante rural, um João pedreiro, feirante, bom ladrão. A fabulação em torno do caso de Baracho é, curiosamente, muito mais decorrente do quanto ele parece ser comum do que do quanto ele escaparia ao comum, o que inverteria o processo presente nas fabulações em torno de Jararaca. É verdade que identificamos elementos maravilhosos nos depoimentos sobre Baracho, e já mencionamos alguns deles, porém suas proezas no crime, os acontecimentos em torno de suas fugas e morte, que renderam tantas manchetes, parecem ser contadas, nos contextos de devoção, de tal modo a assinalar justamente que ele “era um de nós”. Ou, como me disse Jailson, 18 anos, após haver se ajoelhado para orar junto ao túmulo de Baracho, “o mano aí, que mataram”.

Após a prisão de seu comparsa, Cosme, e já no contexto da busca pela polícia ao matador de motoristas, que já então incendiava imaginações em Natal, além de dar lugar a críticas políticas por parte da oposição à inépcia da Secretaria de Segurança do estado para investigar e solucionar os crimes, Baracho seria preso. Seu parceiro o delatara. Durante sua prisão, Baracho teria confessado os assassinatos dos motoristas, tendo assinado essa confissão com a digital, pois não saberia ler. Logo depois fugiria.

Foi durante esse período no qual esteve foragido pela pri-meira vez que mais proliferaram especulações sobre seus crimes e sua confissão. Baracho, cujo paradeiro era desconhecido, teria matado alguém em São José do Mipibu, afirmavam certas denúncias noticiadas pela imprensa. No mesmo período, outro denunciante

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informava à polícia que o teria visto em Parnamirim realizando um assalto, e outros procuravam uma redação de jornal ou estação de rádio para informar que o haviam visto, naquele mesmo dia, no Carrasco, em outra cidade ou até fora do estado. Também proliferavam notícias falsas sobre sua prisão, ora em Brasília, ora em Recife. Enfim, foi durante esse período em que esteve foragido que Baracho se consagrou como o serial killer de Natal, passando de matador de motoristas a culpado potencial de qualquer crime ocorrido no período cuja autoria fosse desconhecida. Sua ausência física e o desconhecimento de seu paradeiro parece haver intensificado essa outra forma de presença, virtual, passível de ser multiplicada indefinidamente.

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Capítulo 8 Experiência, memória e perdão

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Em inúmeras ocasiões, percebi que o narrador que me con-tava sobre quem teria sido e como teria vivido o imigrante João Baracho nos anos 1950 e 1960 em Natal, ou José Leite de Santana, pelas suas andanças nômades como soldado ou cangaceiro, quase sem se dar conta deslizava suavemente dessa narrativa sobre ele para uma narrativa sobre si ou sobre seus parentes mais velhos, que teriam vivido naquela época, de quem teriam escutado tais histórias em primeiro lugar. Esse aspecto apareceu neste traba-lho em diversos momentos, como quando se falou do Baracho bicho-papão das crianças, lembrança que foi trazida por mais de um interlocutor; ou dos aspectos mais impactantes da imagem ou trajetória tal como construída postumamente, principalmente sua delação por vizinhos ou estranhos (caso de Jararaca), tortura e morte. Vale relembrar o depoimento de Dona Odete, de Natal, um exemplo perfeito de como as lembranças mobilizadas pelos ritos de devoção no cemitério podem cruzar a história pessoal do devoto, a do morto cultuado e a da própria cidade, na singular concretude das relações entre vínculos sociais, espaços e emoções:

Foi lá onde o homem matava bode, ali onde tinha o cruzeiro, mais pra cá. Tem um pé de cajueiro. Aí todo mundo foi olhar. Na hora que ele foi morto, foi assim de seis horas da noite. Eu morava em Nova Descoberta, era solteira. Eu estava trabalhando na política de Aluísio Alves...

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Pode-se ver no ritual – e seu conjunto de pequenos ritos, públicos ou domésticos – um suporte para a memória social, feita das reminiscências individuais despertadas na experiência do diálogo, no compartilhamento de lembranças que, a princípio, nem se sabia ter, e nos conflitos entre versões entreouvidas no espaço público ou nas rodas de conversa. Uma memória que se vai construindo artesanalmente, a muitas vozes, e sobre a qual ninguém tem completo controle. Uma memória não teleológica: memória de narrador, como diria Walter Benjamin (1996, p. 211), consagrada a “muitos fatos difusos”. Nesse famoso ensaio, Benjamin diagnosticou o que avaliou como decadência da arte nar-rativa, segundo ele acarretada pela desvalorização da experiência, seu fundamento primordial. A musa da narrativa seria, afirmou ele, a memória: “A reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração. [...] Ela tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si”. À cadeia de narrações e narradores estabelecida ao longo do tempo, ele associa (1996, p. 206-7) uma imagem do poeta Paul Valéry, para quem o perfeccionismo lento e calmo do artesão remeteria a uma experiência de convívio íntimo com a morte, que, segundo Benjamin, a modernidade teria perdido, o que convergiria, por sua vez, com a interpretação proposta pelo historiador Philippe Ariès, apresentada aqui no Capítulo 3. As mudanças sociais que teriam tido lugar desde o século XIX na Europa teriam empurrado a morte para o fundo da cena, para a categoria de coisas obscenas demais para estarem à vista. Morrer teria deixado de ser ato (e assunto) público e, com isso, teria perdido seu caráter de exemplaridade, que fazia da preparação para a morte a oportunidade para que o moribundo transmitisse sua experiência acumulada em vida, sua sabedoria. Era essa que lhe conferia “aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo

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possui ao morrer” (BENJAMIN, 1996, p. 207), e essa autoridade é a que estaria na origem mesma da narrativa. “É da morte que ele [o narrador] deriva sua autoridade”. (BENJAMIN, 1996, p. 208). Assim, se acompanhamos o pensamento do filósofo, não é surpreendente que a morte, especialmente a morte percebida como pública – agora já não mais como norma, mas como escân-dalo e exceção trágica – surja como ocasião de revalorização da autoridade da experiência e da memória, isto é, para que se possa elevar ainda uma vez a voz do narrador anônimo, também ela, como a morte, tornada excepcional neste mundo onde a escrita se tornou a norma.

Trata-se, assim, de mantê-los, a esses santos do cemitério, vivos por meio de um ritual que, por sua vez, faz viver as vozes dos narradores orais e os faz reviver suas próprias memórias pessoais e familiares, e isso em contextos urbanos cuja algaravia há muito procura sufocá-las e reduzi-las à subalternidade frente às fontes escritas e midiáticas. O devoto que leva sua oferenda ao túmulo e conta sobre o morto milagroso não ignora essas fontes escritas, principalmente aquelas populares, como os jornais e cordéis, nem necessariamente disputa com elas. Ele antes as toma como versões complementares ou concorrentes, muitas vezes como fontes parciais para sua própria elaboração discursiva, das quais pode ora se aproximar, ora se afastar. Muitos textos, orais e escritos, assomam à voz de quem conta sobre Baracho, Jararaca ou outro santo dos cemitérios e demais santuários populares, em Natal, Mossoró e tantos outros lugares, e são as narrativas produtos dessas vozes98 que delineiam os contornos um tanto imprecisos de suas existências póstumas como objetos de devoção e narração.

98 Eade e Sallnow (1991) também falam a respeito de uma polifonia nos rituais e peregrinações, visão compartilhada por Carlos Alberto Steil (1996) em seu estudo sobre a romaria ao santuário de Bom Jesus da Lapa.

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Nessas narrativas nada parece muito bem definido, pelo contrário, as trajetórias contadas se apresentam cheias de lacunas, e os retratos falados mais parecem esboços. Não há uma narrativa hagiográfica (SOARES, 2019, p. 45) padrão, bem-acabada, em qualquer dos dois casos, sequer uma identidade biográfica ou um status póstumo bem estabelecido de uma vez por todas (pelo menos, como tentativa de algum segmento). Todos esses planos continuam abertos à disputa de versões, podendo despertar maior ou menor interesse e controvérsia conforme a situação. Ao contrário dos santos oficiais, geralmente aceitos como dados, pelo menos num plano mais geral,99 o santo popular parece ser tratado como obra aberta,100 passível de receber sentidos sempre negociáveis. Santo artesanal, ele não precisa de definição consensual para existir, posto que seu lugar de existência parece ser o diálogo, donde pode emergir em toda a sua potência.

Tendo em conta, então, o entrelaçamento entre as narrativas biográficas sobre o morto e as memórias dos devotos sobre suas próprias experiências relacionadas, de algum modo, a elas, o que se torna interessante é pensar sobre como os ritos podem despertar ou fortalecer neles um olhar reflexivo sobre sua própria trajetória de vida. É difícil dissociar reminiscências pessoais de lembranças coletivamente urdidas e legitimadas pelo grupo, transmitidas de geração a geração ou por veículos informativos e educativos. Uma sentença como “Ali onde funcionava um matadouro e hoje é a Urbana” pode evocar recordações, associações, emoções e sentidos distintos em quem tinha essa localidade como parte de um

99 Embora possa ser também ressignificado no plano da vivência particular de cada fiel, que tende a individualizar os santos em termos de suas especialidades e eficácia relativa, além de seus vínculos afetivos e de confiança, como mostra em seu trabalho a antropóloga Renata Menezes (2009).

100 Referência à expressão cunhada, noutro contexto, literário, por Umberto Eco, e que dá título a um de seus livros mais conhecidos (2005).

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percurso habitual a caminho do trabalho ou da escola, para quem morava nas suas imediações ou para quem nem vivia na cidade nessa época ou ainda era criança demais para se lembrar dela, mas viu fotografias e descrições daquela época, que retornarão então à sua memória. Não é exatamente possível delimitar uma fronteira nítida entre o que seja pessoal ou coletivo em uma lembrança, ainda que seu aspecto compartilhável ou compartilhado com terceiros seja restrito e sua origem seja, a princípio, a reminiscência mais íntima, até porque a própria linguagem que se utiliza para formulá-la – inclusive para si próprio – é um artefato social.

Há ainda um outro aspecto, que reforça essa espécie de continuidade e aproximação entre devotos e santo do cemitério: no plano da escatologia, esses santos podem ser concebidos pelos devotos como almas pecadoras, devido à sua vida no crime/can-gaço, pois nem todos veem o arrependimento como operador suficiente para a conversão (embora importante e necessário). Assim, esses mortos precisariam das preces dos vivos, já não tanto na qualidade de devotos que pedem sua intercessão ao santo, mas na de pessoas piedosas, capazes de interceder por ele junto a Deus – aqui na posição invertida, em que assume o lugar do intercessor para ajudar àquele a quem também pede ajuda, o que por si só já contribui para horizontalizar essa relação. Não esqueçamos que, no universo cristão, salvação e santificação são sinônimos e, assim, salvá-lo também é parte do processo de torná-lo ou reforçá-lo como santo, seu santo. Ao pedirem sua intercessão como se pede a um santo católico, seus devotos mostram confiança na eficácia dos seus próprios pedidos por ele, ou seja, de sua própria agência na situação. Os milagres testemunhados pelos devotos confirmam essa salvação, mas, mais que isso, de certo modo a produzem como fato público, na medida em que a atestam, em um sistema de mútuo reforço. Mais que isso, ela aponta para a possibilidade

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concreta de santificação potencial não apenas daquele que está ali sepultado, mas de todo e qualquer outro pecador, isto é, de qualquer dos devotos. Ainda mais quando se leva em conta o perfil social do morto, cuja associação com a violência – o mal – em vida, no próprio contexto das devoções, é sempre enfatizada por seus próprios devotos, até para que sua “conversão” possa ser ainda mais notável e valorizada.101 Assim, se “até ele, que era assassino” pôde ser salvo, alguém como eu também pode consertar seus erros, arrepender-se, encontrar um caminho.

Por outro lado, como vimos, nem todas as mortes trágicas se desdobram em santificações. O recrutamento de determinados mortos, e não outros, para ocuparem essa posição não se dá de modo aleatório. Quais, dentre tantos, são elegíveis para tal trata-mento ritual póstumo que mudará para sempre suas identidades, reformulará suas biografias e lhes inserirá em um conjunto de narrativas públicas em múltiplos registros discursivos? Não mais apenas o ladrão, o matador ou o cangaceiro; não mais a prostituta esquartejada, a amante degolada pelo soldado ou a criança enferma condenada ao isolamento social, todos de algum modo estigmati-zados em vida, o que se constitui já numa espécie de morte social anterior à morte física. Sobretudo, não mais a vítima, seja do poder da violência masculina, do Estado ou da fatalidade inexplicável.

Então, neste outro plano, que coexiste com o primeiro, Jararaca e Baracho não teriam sido pessoas comuns, como eu ou você. Antes pelo contrário, suas vidas podem ser também perce-bidas desde sua inscrição em um tecido mítico-temporal de outra qualidade, assim como as vidas dos ídolos populares, percepção

101 “Todo o mal que se viveu antes da conversão, toda a vida dissoluta, são contados sem muito pudor pelos atuais crentes. Em alguns testemunhos se descreve o mal que se perpetrou, com muitos detalhes, e talvez até com certo “exagero”, pois quanto maior foi o pecado, maiores foram a libertação e a glória do poder de Deus.” (MARIZ, 1997, p. 56).

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intensificada após sua morte, em um processo que apenas deu continuidade àquele iniciado antes, que já os haviam transformado em pessoas de interesse não apenas para as páginas policiais, mas também para os versos dos poetas e para as fabulações dos narradores. Entre o vivo e o morto, o bandido e o santo, a morte trágica, como um grande rito de passagem, parece operar como dobradiça simbólica. Ela não é a causa da santificação póstuma, antes seria seu operador ritual. Vista a partir do presente, ela parece necessária, conforme já discutimos aqui. Muitos outros restam na morte solitária, como indigentes na vala do esquecimento, essa espécie de segunda (ou terceira) morte, mas não um bandido lendário, não alguém em quem a coletividade já havia investido tanto, do ponto de vista simbólico, ao longo dos anos. Falo do investimento feito pelos contemporâneos de suas vidas e mortes, e das páginas policiais e cronistas que os retrataram, posto que ambos eram personagens públicas. Mas falo também do investimento acumulado ao longo dos anos desde sua morte, e que resultaram nas devoções e narrações atuais, com seus altos e baixos, suas adesões e rejeições, atualizadas ainda hoje nos cemitérios e outros espaços.

A dita excepcionalidade da vida e da morte resultam, eviden-temente, de um processo de construção social, ou seja, das formas de classificação social dos seres e dos eventos em conformidade com princípios nem sempre explicitados pelos agentes sociais, ou mesmo claros para eles próprios. A percepção de certa continuidade biográfica que tornaria excepcionais as circunstâncias da morte daquele cuja vida também teria seguido por trilhas incomuns também resulta do mesmo tipo de processo, que chega a fazer com que aquelas circunstâncias da morte pareçam, a posteriori, até necessárias, inevitáveis. Como já foi dito, isso resultaria da ilusão de coerência produzida pela própria narração (BOURDIEU, 1986), isto é, ao modo como, ao narrar sobre a vida de alguém (inclusive

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a nossa própria vida), inconscientemente forçamos os eventos a se alinharem sob um encadeamento linear e coerente, que faz com que eles pareçam seguir um ao outro de maneira lógica, como se tudo afinal fizesse sentido. E de fato faz, porque nós colocamos esse sentido lá. Essa lógica não é intrínseca aos fatos ou a seu aparente encadeamento; pelo contrário, ela é produto narrativo. Nossa narração biográfica é como um artesanato que tecemos de tal forma que a vida, ao fim, apresente um desenho discernível, talvez até bonito. Pode-se disputar qual seria seu sentido, mas dificilmente se aceita que possa não ter nenhum sentido. Bem tramado o relato (auto)biográfico, o sentido parecerá até óbvio.

Observo que, principalmente em Natal, onde os devotos são moradores da periferia,102 mais desfavorecida economicamente, e oriundos, em sua maioria, de famílias que migraram de outras cidades para a capital – como, aliás, o próprio Baracho o era –, a prestação de culto aos mortos da parentela torna possível o reavi-vamento de um sentimento de continuidade temporal do grupo de parentesco ao qual se pertence, não de todo ausente também em Mossoró. Não raramente, as pessoas mais velhas da família empreendem grandes esforços para se deslocarem de volta para “seu” interior – a cidade donde veio – para comparecerem aos funerais dos parentes que lá ainda residam ou para visitá-los, pelo menos nos primeiros anos após o falecimento, no Dia de Finados ou aniversário de morte, nos cemitérios onde estejam sepultados.

102 A maioria dos entrevistados por mim, as pessoas com quem efetivamente convivi durante os anos de trabalho de campo nas duas cidades ou conversei apenas dentro dos cemitérios, durante as visitas, nas ocasiões cerimoniais públicas e também no cotidiano, são majoritariamente moradores de bairros classificados na cidade como periféricos, alguns deles bastante estigmatizados como “violentos” ou “perigosos” por moradores das regiões mais valorizadas da cidade, que incluem os chamados bairros nobres, como Tirol e Petrópolis, mas também a zona sul onde se localizam as praias urbanas. Dentre esses bairros da periferia, conversei com moradores do Bom Pastor (bairro onde fica o cemitério onde está sepultado João Baracho), Quintas, Felipe Camarão, Cidade Satélite, Igapó e Planalto, dentre outros.

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A falta de dinheiro pode, todavia, impedi-los de viajar de volta com a assiduidade desejada, e nesses casos essa impossibilidade tende a ser compensada ou substituída pela frequência ao cemitério local mais próximo de sua residência atual.

Natal, como toda capital, exerce grande atração sobre a população do interior e grande Natal. A mudança para a capital, ou para uma cidade moderna como Mossoró, polo de atração na região oeste do Rio Grande do Norte103, pode ser vista como positiva por trazer oportunidades para a família, sobretudo para seus membros mais jovens, que buscam formação e trabalho, mas pode implicar também uma perda parcial de referências culturais importantes, para cuja transmissão os membros mais velhos da parentela e associações de base comunitárias, eletivas ou herdadas, como associações, clubes, igrejas,104 dentre outras, que podem ser cultivadas ao longo de gerações, são fundamentais. Conforme se trate de moradores mais antigos, com mais tempo de imigração para essas cidades, seus parentes falecidos que imigraram com eles ou bem antes deles já se encontrariam ali mesmo, no cemitério vizinho, tornando mais fácil o cumprimento dessas obrigações rituais. Ter parente enterrado em algum cemitério local significaria, portanto, ter já sua gente plantada ali, e estar, de certo modo, ali enraizado. Já não se necessita viajar de volta para o interior para reencontrar os seus e adubar seus vínculos e, assim, reafirmar sua própria identidade e pertencimento social.

103 Mossoró, a “capital do semiárido”, “princesa do Oeste potiguar”, fica a meio-ca-minho entre duas capitais, Natal e Fortaleza.

104 Incluo igrejas aqui tendo em mente a definição durkheimiana de “igreja” como comunidade de crenças (DURKHEIM, 1991), ou seja, grupo social cuja identidade se assentaria no compartilhamento de crenças, neste caso, de cunho religioso. Isto se aplicaria a qualquer religião e a diferenciaria, para Durkheim e também para Marcel Mauss (2003), da magia, que, segundo eles, não chegaria a constituir comunidades em torno de si, mas apenas clientelas.

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Nunca percebi dentre essas pessoas qualquer orgulho por estar só na cidade ou haver alcançado algo sozinho. Pelo contrário, a menção à solidão ou qualquer forma de individualismo somente apareceu sob valoração negativa, inclusive quando indagavam sobre mim e descobriam que eu não tinha um único parente em todo o estado do Rio Grande do Norte. Era também, a seus olhos, uma imigrante socialmente desgarrada. Não parece ser à toa que os túmulos abandonados e sem cuidados dentro dos cemitérios sejam tão malvistos por essas pessoas, pois indicariam abandono por parte dos parentes ou ausência de parentes que se responsabilizassem por eles. Nesse mesmo sentido, chamar a si a responsabilidade por mortos solitários, vitimados por morte súbita de forte repercussão pública, como Baracho e Jararaca, também seria uma forma de assinalar a primazia da comunidade – pelo menos, como valor – e os imperativos da reciprocidade social (ZALUAR, 1985; MEDEIROS, 1995), que encompassariam, ao menos em certos segmentos sociais da sociedade brasileira (DAMATTA, 1985), como esses dentre os quais pesquisei, mesmo as relações globais entre os vivos e os mortos.

Isso me faz recordar uma reflexão apresentada pela antropó-loga Mary Douglas e pelo economista Baron Isherwood, no livro O Mundo dos Bens (2004). Os autores afirmam que a melhor maneira de avaliar a pobreza não é a medição do número (ou qualidade) de bens que alguém possui, mas antes seu grau de envolvimento social, associado ao reconhecimento do seu pertencimento social a determinado “grupo”, sua aceitação, a ativação e o cultivo de seus vínculos sociais, e o amparo social e reciprocidade que poderá, ou não, legitimamente esperar dos demais. Nenhum desses elementos, todavia, é mera questão de escolha individual. Todos devem ser pensados em relação ao contexto sociológico mais amplo no qual as pessoas estejam inseridas e de suas posições sociais relativas nesses contextos.

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Ao mitologizar personagens novos como Baracho ou Jararaca, surgidos nas crônicas urbanas das respectivas cidades, as pessoas constroem coletivamente, da boca para o ouvido, nesse espaço urbano toda uma nova mitologia local, todo um novo repertório, a partir de modelos e narrativas anteriores, fragmentos de memórias alheias e próprias, já investidas agora daquela auto-ridade de que falava o filósofo (BENJAMIN, 1996), respaldada em sua experiência. Essas novas mitologias e memória se mesclarão àquelas outras, ligadas à terra natal.

É importante levar em conta o quanto as memórias parecem estar vinculadas ao lugar, sendo dificilmente dissociáveis do seu enquadramento físico, quer este remeta para uma materialidade ou território geográfico existente de fato ou para objetos e locais ima-ginados, fantasiados ou sonhados, O suporte material e geográfico concretos parece exercer função indéxica, contribuindo para dar maior plausibilidade à narração, como na frase utilizada por uma devota na descrição da morte de Baracho: “Foi ali que aconteceu, bem ali onde o homem matava bodes, onde era um matadouro e hoje é a Urbana”.105 Ao caminhar pela cidade de Mossoró, observando prédios históricos, um dos meus interlocutores, seu Antônio, me apontou as marcas de balas que ainda estariam lá, na parede da torre da igreja de São Vicente, justamente no período (junho) em que acontecia, naquele ano, o evento cultural Chuva de Bala no

105 Companhia de Limpeza Urbana da Cidade de Natal. Significativo, aliás, que o local do martírio e execução sumária de Baracho seja apontado, desde as matérias de jornais da época, como um antigo matadouro de animais; e não deixa de ser significativo ainda que, hoje, nesse mesmo local esteja a companhia de limpeza, encarregada da purificação da cidade de seus dejetos materiais. Os lugares, enquanto criações sociais, também parecem apresentar determinadas afinidades e vocações, consoantes com suas histórias e com a memória que se conservaria deles. Tenhamos presente, por exemplo, as dificuldades encontradas pelo mercado imobiliário para comercializar para fins residenciais locais famosos devido a acontecimentos considerados chocantes, como crimes brutais.

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País de Mossoró.106 Essa referência às marcas físicas dos aconte-cimentos, e aos marcos locais relacionados aos fatos narrados nos relatos esteve sempre presente, muitas vezes com a utilização de indexadores – como o dedo apontado de seu Antônio – ou outros tipos de signos, como fotografias e recortes de jornal.

Neste aspecto, os mais velhos, especialmente os que já são identificados pela categoria social idoso,107 alguns dos quais, oriundos ou não da cidade, moradores em Natal desde a época da

106 Esse evento já foi mencionado aqui, em outros momentos. Ele ocorre anualmente durante os festejos juninos, a partir de adaptação de peça teatral de Tarcísio Gurgel, no adro da igreja de São Vicente, no centro de Mossoró. Trata-se de evento gratuito. Para uma matéria jornalística recente sobre ele, veja aqui (Diário do Nordeste, de 26 de junho de 2019): https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/verso/online/chuva-de-bala-e-memorial-da-resistencia-tracam-a-historia-de-mossoro-1.2115362

107 Que, em termos culturais nem sempre coincide com a definição da Organização Mundial de Saúde (OMS), para quem idoso é quem tem 60 anos de idade ou mais. Vale considerar ainda que o processo de envelhecimento pode ser percebido e sentido de formas muito diferentes conforme fatores como classe social, gênero e raça, por exemplo. Ele pode estar associado ao desgaste físico e emocional trazido, por exemplo, pela experiência de trabalho braçal exaustivo desde a infância, carências materiais de todo tipo, problemas de saúde e condições precárias de vida em geral. Nem sempre é possível estimar a idade de alguém a partir de sua aparência, quando migramos de uma classe social bem alimentada para outra sujeita a esse tipo de dificuldades durante toda a vida. É preciso ter isso presente ao pensar sobre quem seja ou não velho, em que sentido, e por quê. Muitas senhoras e senhores com quem conversei me surpreendiam ao declarar ter pouco mais de trinta anos, ou até menos, porque sua aparência maltratada dava impressão de mais idade. Seu comportamento, em geral, como o de todas as pessoas em qualquer ambiente, tende a responder às expectativas geradas, inclusive por essas impressões causadas pela sua aparência. Isto é, gente que parece mais velha se comporta como gente mais velha, o que é condizente também com estado civil (casamentos precoces, ou várias uniões sucessivas), muitos filhos, trabalho remunerado desde a infância ou adolescência para ajudar a família etc. Enquanto nas classes médias, ali mesmo, na mesma cidade, pessoas chegam aos trinta e cinco anos vivendo em um estilo de vida que até alguns anos atrás seria considerado inadequado para essa faixa etária, e são percebidos como jovens, pessoas de camadas de baixa renda tendem a ter que lidar com rotinas de adultos desde muito cedo e, sim, envelhecem – socialmente, culturalmente e, por que não? Biologicamente – mais cedo. Velhice é uma construção social tanto quanto a juventude e a infância o são.

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morte de Baracho,108 são vistos como repositórios de lembranças e agentes dotados de autoridade (BENJAMIN, 1996) no terreno das rememorações acerca da sua biografia, bem como da história das devoções a ele naquele cemitério. São eles que mais ressaltam as mudanças, o esvaziamento, que mostram recortes e citam fontes como aquela reportagem na televisão ou aquele depoimento que teriam escutado em outra ocasião, ali mesmo no cemitério. Diferente de outros segmentos dentro do universo de devotos, junto aos quais pode ser difícil conseguir pessoas dispostas a falar e com-partilhar suas experiências, esses idosos parecem sempre dispostos e interessados em compartilhar o que sabem e o que recordam; mais que isso, parecem felizes em encontrar quem se interesse em escutá-los. Nesse sentido, a aglomeração em torno do túmulo – ou de qualquer outro santuário similar, em outras devoções – não deixa de ser uma oportunidade de ser ouvido, o que, aliás, geralmente acontece. Suas lembranças dizem respeito a fatos de outro tempo, o tempo da infância ou juventude, quando teriam vivido ou escutado em primeira mão de seus parentes sobre o Baracho bicho-papão, matador de motoristas, ou sobre Jararaca, aquele que “jogava a criança pro alto e aparava na ponta do facão”. Ou sobre o cortejo promovido pelos políticos, que exibiram Baracho como troféu; ou, ainda, sobre as denúncias em Mossoró de que os soldados teriam torturado e enterrado Jararaca vivo no cemitério São Sebastião. São histórias de um tempo em que fatos como esse chocavam talvez mais que hoje, mas nem por isso eram menos comuns; assim como, por outro lado, embora hoje eles talvez não soem tão excepcionais, eles ainda chocam mais do que talvez possamos nos dar conta.

108 O que é mais improvável acontecer no caso de Jararaca, devido a maior distância temporal dos acontecimentos biográficos, localizados no final da década de 1920.

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A devoção de uma esposa/mãe/irmã/amiga pode acabar arrastando para a órbita do culto também os homens e os mais jovens do seu convívio, como os filhos, sobretudo após o sucesso de uma promessa ou quando se trata da gravidade de um voto assumido por tempo indeterminado. Alguns homens, na posição de maridos de devotas, inicialmente hostis à devoção (e à pesquisa) tornaram-se devotos e fizeram também suas promessas, conversão que eles mesmos gostam de enfatizar e frequentemente atribuir à esposa. Um deles, em Mossoró, atribuiu a cura de uma insistente ferida na perna à promessa feita a Jararaca; outro, em Natal, teria conseguido um emprego após promessa feita para Baracho; e outro ainda, em Mossoró, se juntou à esposa no pagamento de uma promessa feita por ela, que, segundo eles, lhes teria valido alcançar a sonhada casa própria. O que a princípio era rejeição tornou-se devoção fervorosa e implicou uma radical mudança de postura frente ao culto antes desprezado, – e, claro, uma reavaliação sobre quem seria, afinal, aquele morto.109

Assim como parecem ser as mulheres que agenciam mais fre-quentemente o contato com as potências religiosas, são também elas que falam mais e de modo mais expressivo sobre suas experiências e graças alcançadas. Suas falas foram mais emotivas e facilmente percorriam mais fácil e frequentemente a linha que vai do presente imediato – a razão de estar ali – até o passado próximo ou distante onde estariam as causas do problema para o qual buscavam solução, as origens da sua situação atual, sua história e a de sua família. Seu enfoque é subjetivo, pessoal, e seu tema principal é o próprio sofrimento ou o sofrimento de um ente querido próximo – caso em

109 Esse papel de mediação da mulher na relação da família com o universo religioso não é exclusivo dessas devoções nos cemitérios, mas estaria presente também em outros contextos, como nas igrejas carismáticas e pentecostais pesquisado por Machado (1996, p. 127).

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que ali se encontram sobretudo como filhas, mães, netas, esposas, irmãs, ou seja, como alguém que se identifica a partir do feixe de relações sociais ao qual pertence e a partir do qual compreende seus direitos e obrigações morais naquele papel. Vimos exemplos disso aqui quando encontramos, por exemplo, irmãs pagando promessas em lugar da outra, acamada; ou netas herdando e cumprindo voto religioso contraído pela avó ou mãe.

Não que os homens não contem sobre milagres alcançados por eles ou não se situem em termos familiares/relacionais, mas eles, quando falam sobre isso, geralmente o fazem de maneira diferente, com a ênfase recaindo sobre o sucesso (ou insucesso) da promessa. Seu olhar e suas narrativas tendem a ir do presente para o futuro. É raro que insistam em contar sobre a experiência de sofrimento vivido que os teria levado até ali, exceto quando se trata de desemprego, um dos motivos mais comuns para a procura do recurso religioso pelos homens, talvez porque uma das maiores, senão a maior, ameaça ao seu papel tradicional (justamente, na família) como provedores do lar. Embora não se empolguem tanto quanto as mulheres em falar sobre o próprio passado, eles são os que mais se animam a contar o que sabem sobre o passado do morto. Qualquer dedinho de prosa torna-se uma longa conversa quando percebem nosso interesse em saber “quem é esse enter-rado aí?” Foi deles que ouvi hipóteses sobre o que teria realmente acontecido com Baracho e Jararaca, sobre quem falou o que em qual reportagem, ou se hoje tem mais ou menos gente em torno do túmulo do que no Dia de Finados do ano passado. Evidentemente, estou arriscando aqui uma generalização em termos de gênero, que precisa ser matizada, pois assim como há mulheres que se comprazem em contar sobre as famosas proezas de Jararaca ou as fugas de Baracho, que recordariam ou sobre as quais teriam lido ou escutado dos parentes mais velhos, há homens, embora nos

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meus cadernos de campo eu só encontre dois registros desses em todos esses anos, que podem falar durante horas sobre suas dores, remédios, internações ou sobre o desânimo que vinha sentindo, a tristeza indefinida, enfim, descrevendo seu estado depressivo. Mas, levando em conta que se trata de uma pesquisa qualitativa em que a sensibilidade da pesquisadora e sua própria afetividade também foram canais de acesso para conhecer e compreender as pessoas e suas realidades, com as quais interagiu e das quais participou, sinto-me à vontade para fazer tal generalização, sem pretensão de que alcance qualquer validade maior do que a permitida por tal trabalho. Minha impressão é a de que, talvez até por estarem diante de uma pesquisadora mulher, e quase sempre de menos idade que eles, os homens não se sentiam à vontade no papel de sofredores, digamos assim, procurando logo cortar o assunto ou encurtá-lo, em uma atitude de bola pra frente, o importante é que resolveu. Por isso, eu disse: a ênfase parece ser colocada no presente e no futuro, exceto quando se tratava de falar sobre sofrimentos alheios, de preferência temporalmente distantes.

Assim, o que poderíamos chamar de divisão do trabalho entre os gêneros (e faixas etárias), no universo das devoções nos cemitérios analisadas aqui, parece reservar para as mulheres de mais idade o papel de confirmar a eficiência do santo no terreno dos milagres por meio de uma fala testemunhal, que se ancoraria na experiência biográfica, na qual o sofrimento seria tema e valor central – seu sofrimento devido ao problema, seu ou de alguém sob seu cuidado, que a teria levado até ali, e do santo, pois são elas que se estendem mais a falar sobre seu martírio pré-morte ou seu sofrimento póstumo; aos homens de mais idade caberia, principalmente, o papel de narrar o passado dos mortos, suas proezas, sua presença em páginas policiais e de jornais de então e atuais e as controvérsias acerca de sua morte. Em ambos os casos,

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feminino e masculino, há produção de memória, seja a partir de recordações pessoais mescladas a fatos de domínio público, seja através de testemunhos de suas vivências ou das experiências de outrem como devotos e da elaboração dos supostos fatos vividos pelo morto, sobretudo na sequência que teria levado à sua morte.

As narrativas mais claramente ficcionais, de cunho mara-vilhoso ou fantástico, essas são narradas com o mesmo deleite por ambos os gêneros. Depende do contexto narrativo, da situação tal como venha a se desenrolar em dado local ou momento. Contar bem uma história confere prestígio e reconhecimento, atraindo atenção para o narrador/a (HARTMANN, 2011, p. 44), que se pode rapidamente tornar o centro de uma roda de conversa. Esse papel adquire relativa importância quando se leva em conta o caráter controverso dos ritos realizados lá e a frequência com que são desafiados os devotos por visitantes hostis e, em alguns momentos, de certo modo pela própria organização interna daquele espaço.

A antropóloga Luciana Hartmann, que pesquisa os nar-radores da fronteira entre as cidades de Santana do Livramento, no Brasil, e Rivera, no Uruguai, em seu livro Gesto, Palavra e Memória, Performances Narrativas de Contadores de Causos, de 2011, afirma (p. 43) que os estudos sobre narrativas orais tenderiam a focar nos eventos narrados (o conteúdo das narrativas), deixando em segundo plano aquilo que ela toma como seu objeto principal: a performance narrativa, isto é, o ato de narrar em seus elementos constitutivos (entonação, gestos, corporalidade) e sua totalidade. Hartmann (2011, p. 47) procura, então, em seu trabalho, apresentar as performances narrativas desempenhadas pelos narradores de causos na fronteira, bem como a relação estabelecida entre eles e sua audiência, caracteristicamente participativa a ponto de tornar--se “impossível distinguir um narrador, pois todos os presentes contribuem com comentários e alternam-se contando pequenas

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histórias.” (p. 45-46). Essa participação assinala o aspecto dialógico do evento narrativo, corroborado também, segundo ela, pelo fato de que a pessoa que narra, não apenas conta a história, mas explica e comenta o que está contando. Esse aspecto também está presente, como a frequente dificuldade de determinar um único narrador/a para uma história quando o evento narrativo está em execução, pois, como já descrevi aqui em outra seção, as pessoas se interrompem, complementam, falam ao mesmo tempo, e as histórias, causos e relatos – exceto testemunhos de milagres – acabam muitas vezes sendo contados a muitas vozes e gestos.

Apesar de não haver focado nas performances dos narradores como Hartmann em seu trabalho, por sinal muito refinado, posso apresentar alguns elementos gerais característicos das narrações nos locais de devoção. Um fator a destacar é a carga emocional de que podem ser dotados os diálogos cruzados por meio dos quais alguns desses eventos narrativos acontecem. As falas, frequentemente interrompidas e por vezes simultâneas a comentários impacientes ou contraditórios da audiência, são habitualmente pontuadas por gestos largos, sobretudo com os braços, pausas significativas e alterações na entonação da voz, que podem rapidamente se elevar, na tentativa de se impor a outros narradores ou suplantar a algaravia local. Isso é mais comum quando o assunto são o martírio e as versões sobre a morte do santo ou quando se conta sobre o próprio sofrimento; nesses casos, expressões doloridas procuram assinalar, no rosto do narrador, sofrimentos vividos, testemunhados e imaginados, o que se faz acompanhar por mudança de entonação e gemidos de dor. O tom muda bastante, assim como as expressões corporais, quando se passa ao repertório de causos sobre feitos realizados durante a vida no crime/cangaço ou às narrativas de conotação maravilhosa do repertório de referência de cada caso. Não tenho conta de quantas vezes vi homens e mulheres levantarem um dos

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braços para me mostrar, entre risos, como Jararaca empunharia seu punhal para aparar a criança que teria jogado pro alto. Histórias desse tipo são, como aquele sonho miraculoso da loteria, contadas com espírito gaiato, acompanhadas de uma piscadela marota. Elas são significativas menos pelo que parecem dizer explicitamente, no plano denotativo, do que pelo tipo de interesse que despertam no seu ouvinte e multiplicador, nessas ocasiões.

É também comum que, em torno do túmulo, com a presença de pessoas que estão ali pela primeira vez ou que pouco conhecem sobre a história do morto, as pessoas idosas se vejam de repente objeto de enorme interesse em seu ato de narrar, o que logo faz com que aumentem o volume da voz no afã de corresponder à atenção recebida. Pode-se perceber nessas ocasiões certa vaidade e orgulho de ser um dos que realmente sabem o que se passa ali, quem foi aquele ou o que fez, ou, quanto às oferendas no túmulo, do que se trataria. Lembremos que, a todo o momento, durante o Dia de Finados ou mesmo num dia comum quando o túmulo apresente alguma oferenda pouco usual, como um ex-voto ou as garrafas de água para Baracho, pode aparecer alguém que pergunta “quem é esse aí? Por que deixam essas coisas para ele? Ouvi dizer que faz milagre. É verdade?” E assim começa tudo de novo...

O caráter transgressor do perdão e a necessidade da promessa

Antes de encerrar este capítulo, quero retomar esses dois temas, que atravessaram todo este livro, sob diversas formas, afir-mados ou negados: o perdão e a promessa. Para isso, partirei de uma reflexão apresentada pela filósofa Hannah Arendt no livro A condição humana (2007). Nele, ela afirma que eles consistiriam nas

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duas soluções possíveis para os principais problemas desencadeados pela capacidade de ação humana, a saber, a irreversibilidade e a imprevisibilidade dessa ação. A primeira refere-se à impossibilidade de desfazer o que se fez, a despeito do dano que possa ter sido causado, deixando o ator (individual ou coletivo) na situação de ter que se assumir responsável pelo que fez e lidar com as conse-quências e retaliações de outros atores, mesmo que ele não fosse realmente capaz de saber (ter consciência) o que estava fazendo e compreender todas as implicações potenciais de seu ato. Já a segunda estaria relacionada justamente às incertezas inevitáveis quanto aos desdobramentos desencadeados pela ação, já que é impossível prever o futuro (ARENDT, 2007, p. 248).

A irreversibilidade, portanto, poderia conduzir ao ciclo de trocas predatórias, isto é, a ação danosa poderia conduzir à vingança que, por sua vez, poderia ser retaliada, e assim sucessivamente (ARENDT, 2007, p. 252), instaurando um ciclo de trocas predatórias, que tende a se mostrar aos envolvidos como um beco sem saída. Para o ator responsável pela ação desastrosa inicial, haveria ainda outra consequência direta: ele passaria a ser definido por aquele erro (ou, conforme a chave de interpretação utilizada, pecado, imoralidade, ilegalidade, ignomínia). Quanto à imprevisibilidade da ação, ela estaria na origem da angústia humana, sentimento que nasce precisamente da aflição mediante a impossibilidade de conhecermos de antemão o que nos espera, especialmente quando avaliamos que temos razões para receios.

É nesse contexto que a filósofa introduz o par perdão/promessa, tão presentes nas práticas devocionais analisadas aqui, como as faculdades humanas que nos tornariam capazes de contornar essas dificuldades inerentes à nossa própria ação. Como? De que modo nossa capacidade de perdoar e de prometer pode

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nos ajudar a solucionar os problemas que nós mesmos, ou outros, ao nosso lado ou antes de nós, criamos, inclusive sem querer, por despreparo ou inadvertência? Ou mesmo os que criamos movidos por nossa maldade ou ira?

Falaremos primeiro sobre esse tema que atravessou todo este livro, principalmente na seção sobre narrativas hagiográficas. Perdoar, segundo a reflexão proposta por Arendt (2007), consistiria na mais forte manifestação da agência humana, capaz de libertar quem perdoa (da obrigação de vingar-se e castigar) e quem é perdoado (de ser definido, de forma redutora, por aquele erro e de sua consequente punição). Perdoar nos libertaria da necessidade de nos mantermos presos àquele ato realizado no tempo passado, nos tornando aptos a plenamente viver o presente e olhar para adiante. A faculdade de perdoar seria “a única reação que não se limita a reagir, mas age de novo e inesperadamente, sem ser condicionada pelo ato que a provocou” (ARENDT, 2007, p. 253). Isto significa tornar-se livre do condicionamento imposto pela cadeia causal que nos limita à lógica da retaliação, do círculo vicioso, e espera de nós um comportamento previsível, quase automatizado (porque domesticado e administrável por terceiros).

As pessoas cujo pensamento e ação se pautam na reatividade apenas re-agem, isto é, reduzem sua preciosa capacidade de ação, e sua potência para instaurar o novo, a ser apenas resposta à ação de outros, atendo-se aos mesmos termos dessa ação prévia, isto é, deixando-se determinar por ela. É a lógica por trás de uma afirmação banal como “meu comportamento depende do seu”, o que manifesta uma renúncia à autonomia no campo da ação. Um comportamento, aliás, típico de reacionários: ofendem-se com facilidade e reagem defensivamente, se justificando, mesmo em suas piores agressões, com base no que o outro supostamente teria feito primeiro, com

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isso abrindo mão de sua autodeterminação e liberdade ética para agir sem se deixar determinar, ou mesmo influenciar, pelas ações alheias, quaisquer que tenham sido. A liberdade pessoal exigiria essa autonomia, portanto, implicaria assumir seus próprios atos, isto é, não utilizar os atos alheios como justificativa para os seus.

Isso se aplicaria também às consequências das nossas ações, porque de nada adiantaria negar danos causados por elas, até porque só quem poderia de fato nos libertar do peso dessas consequências seria o outro, aquele que, atingido por elas, fizesse uso de sua liberdade pessoal para, surpreendentemente, nos perdoar. Hannah Arendt (2007) enfatiza em sua reflexão, precisamente essa surpresa, devido ao caráter contraintuitivo dessa escolha. Daí decorreria seu potencial transgressor, na medida em que essa não seria a ação esperada, nessas situações. Essa decisão seria poderosa justamente porque interromperia o mecanismo de retaliações em cadeia que alimentaria ciclos de vinganças intergrupais (entre parentelas, por exemplo) ou interindividuais, que tenderiam a fechar-se sobre si mesmos e seriam, de outro modo, impossíveis de superar, mantendo as pessoas referidas ao passado, à estrutura social estabelecida (somos inimigos hoje porque sempre fomos inimigos), presas às cadeias geradas por ações de outrem de tal forma que, por serem tão previsíveis, poderiam ser facilmente manipuladas por alguma instância (como o Estado) que se posicionasse fora ou acima – mesmo que só aparentemente – desses grupos ou indivíduos.

Se lembrarmos o quanto a vingança é tema presente na ficção literária ocidental, só para citar um exemplo, teremos uma ideia inicial de sua centralidade e enorme grau de normalização, decorrente do próprio fato apontado por Arendt: a irreversibilidade inerente a nossas ações. Como ainda não se inventou ação humana perfeita ou ser humano infalível, o que nos resta é lidar com as

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consequências dessa irreversibilidade da melhor forma possível, de modo a que sejamos capazes de virar a página quando errarmos – ou quando errarem conosco – e encarar o presente, e não corramos o risco de vivermos atolados na lama viscosa do ressentimento.

Por sua vez, a promessa solucionaria ou amenizaria o segundo problema, o da imprevisibilidade dos desdobramentos acarretados pelas ações, não importando de início se benéficos ou maléficos, bem como a imprevisibilidade das próprias ações. E não apenas as ações alheias, mas também as próprias. Quantas vezes nos surpreendemos conosco, agindo de forma totalmente inesperada ou impulsiva diante de situação ou estímulo novo? O que causa a aflição é menos a antecipação de algo ruim em si do que o puro e simples desconhecimento sobre o que faremos e o que farão nossos parentes, vizinhos, autoridades públicas, colegas de trabalho, já que não há como conhecer o futuro – ainda que tentativas nesse sentido se multipliquem sem cessar e tenham sido sempre uma das obsessões humanas, desde a ciência e sua busca por propriedades, regularidades e relações causais entre objetos e fenômenos, que permitem prever seu comportamento e controlá-los, até as práticas divinatórias que nos prometem informação antecipada sobre o que nos aguarda.

O futuro, todavia, permanece sendo fonte de incertezas, intensificadas em momentos críticos como crise econômica ou conflitos intra ou intercomunitários, nacionais, internacionais. Episódios públicos violentos podem ser traumáticos para toda uma comunidade ou cidade, em alguns casos todo um país, e agravar muito esse estado de angústia. É nesse momento, mais que nunca, que nossa capacidade humana de assumir compromissos, mesmo indo contra a corrente, e apostar na continuidade das relações, pode fazer toda a diferença. Ao fazermos uma promessa a outrem

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nos comprometemos com um compromisso que se desdobrará no tempo, que exigirá memória e engajamento contínuo. Com isso, afirma Arendt, criamos “certas ilhas de segurança” (2007, p. 249) no futuro, de tal modo a podermos antecipar pelo menos alguns aspectos dele, pelos quais nos responsabilizamos perante outrem. Projetamos, pensamos à frente, adiantamos algo do que poderão esperar de nós, e nos apaziguamos e aos demais, ao menos em parte, quanto àquelas incertezas inevitáveis.

Veja: ninguém é obrigado a prometer nada, tampouco é obrigado a cumprir o que prometeu. No entanto, as pessoas pro-metem e se prometem, comprometendo-se umas com as outras, cotidianamente, por sua própria escolha. Comprometer-se e devotar-se a um morto, um santo ou a alguém de sua parentela ou vizinhança são variações possíveis da prática dessa mesma faculdade humana, a promessa. Se sua escolha é devotar-se a alguém tido como imperdoável por sua má conduta, sua escolha irá duplamente contra a corrente, e poderá parecer a muitos absurda, alheia aos costumes que estabeleceriam como resposta padrão a retaliação, a punição ou o abandono.

Não por acaso, o perdão ocupa lugar tão central na religio-sidade cristã ocidental, marcando historicamente sua singulari-dade, junto a outros fatores, no momento de seu aparecimento. É a própria Hannah Arendt que aponta (2007, p. 250-251), de modo muito interessante, que “o descobridor do papel do perdão na esfera dos negócios humanos foi Jesus de Nazaré”. Jesus teria afirmado, para escândalo de seus contemporâneos, que perdoar seria dom humano, não divino, e que na verdade seria preciso primeiro que os homens perdoassem uns aos outros para depois alcançarem o perdão divino. Isso significa, em outras palavras, que ele tornou impossível terceirizar o perdão ou torná-lo insondável, deixando-o

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a cargo de uma entidade superior e transcendente a nós. Ele teria chamado a si, enquanto indivíduo humano (Lucas 5:21-42, Lucas 7:49), e a cada um de nós, a responsabilidade pela superação do passado e a capacidade de agir, autônoma, livre das cadeias de ação tradicionais. Isto é, teria trazido o perdão para a esfera dos assuntos seculares e cotidianos. O detalhe mais significativo para pensarmos esse movimento que se apropria de personagens da esfera pública em seu segmento aparentemente mais improvável, o mundo do crime e as páginas policiais dos jornais, para transformá-los em potências espirituais de auxílio aos humanos, semelhantes aos santos católicos, é que essas faculdades de perdoar e prometer, apontadas por Arendt (2007), apenas floresceriam plenamente, segundo ela, na esfera pública, porque elas suporiam e exigiriam a relação com o outro. Perdoar e prometer seriam, então, faculdades humanas a serem desempenhadas socialmente, no exercício dos negócios humanos, e não apenas em idealizações mentais. Assim, a famosa máxima cristã “dar a outra face”, por exemplo, nada teria a ver com resignação ou conformismo, mas sim com transgressão – sobretudo no contexto de origem do cristianismo: não se deixar aprisionar pela necessidade de punir e, com isso, dar seguimento ao ciclo predatório tradicional de lutas intertribais, intergrupais, inter-religiosa etc.

Seria nas trocas, nos desentendimentos cotidianos, nas disputas e cooperações necessárias para a sustentação da vida em sociedade que exerceríamos nossas capacidades de nos com-prometermos com as promessas que fazemos aos outros (quando sinalizamos interesse em uma aproximação amiga, quando pega-mos algo emprestado, quando nos engajamos em um compromisso amoroso ou profissional) e confiar nas promessas feitas a nós (de que estarão no lugar e horário marcado, de que manterão o compromisso assumido conosco, de que farão sua parte numa tarefa de que nos incumbiremos de outra parte). É também nas

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relações sociais, preferencialmente na esfera pública, que viven-ciamos mais plenamente a experiência de superação do passado, tornada possível pelo perdão. Nelas, e por elas, perdoamos e somos perdoados, nos libertando das determinações do passado, do peso das consequências de nossas ações, ou das ações de gerações que vieram antes de nós, para podermos enfim viver no presente e refundar nossa ação em toda sua potência criativa e inovadora, não mais limitados a uma prática reativa.

Se ao longo deste trabalho sobre canonizações funerárias, como tenho chamado as santificações populares nos cemitérios, nos deparamos inúmeras vezes com esses dois elementos, do perdão e da promessa, isso não ocorreu à toa, mas por estarmos lidando com temas que são constitutivos da tradição de pensamento e ação cristãos desde suas origens. Sem dúvida, os aspectos sobre os quais Hannah Arendt elabora sua reflexão não são os únicos, e poderíamos nos estender em busca de outros pensadores que destacassem outros elementos presentes no perdão e na promessa, ou que identificassem seus desdobramentos teóricos, filosóficos, seus outros possíveis significados e papéis em outros contextos históricos do cristianismo, em suas diferentes tradições religiosas, ou em outras religiões não cristãs, mas esse não é meu objetivo aqui. Tudo que pretendi foi mostrar que perdão e promessa estão nos próprios fundamentos históricos e filosóficos do Cristianismo, para situar melhor o porquê de havermos atravessado essas tantas páginas falando sobre ora um, ora outro, sob diferentes figurações e leituras, conforme a posição dos interlocutores acerca das devoções a João Baracho e a Jararaca.

Após ler Hannah Arendt talvez nos surpreenda menos que a tantos cause menos escândalo as torturas e a execução sumária sofridas por ambos do que os cuidados e a devoção póstumos que

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lhes são prestados ainda hoje por parte da população, que cuida dos seus túmulos e lhes levam dádivas no Dia de Finados, que a Baracho lhe dá agora a água que lhe foi negada em vida, e que os convertem, por meio dessas ações voluntárias, em algo positivo e ritualmente mobilizável, investido de poder simbólico acionável pela coletividade, a partir de uma gramática católica – que pode surgir híbrida de outras matrizes religiosas, em suas manifestações – e, com tudo isso, o torna similar a um santo. Mais que tudo, interessa-me a importância da agência e da liberdade humanas, justo ali onde ela costuma ser mais negada, nas camadas popu-lares, tão frequentemente apreendidas sob a chave da falta – de racionalidade, de conhecimento e de escolhas. No entanto, nunca me esqueci do tom desafiador e sarcástico de Dona Odete, ao me dizer: eu não fui! ao contar sobre a convocação para o cortejo pelas ruas de Natal para exibição do corpo-troféu de Baracho. Não foi, mas foi no dia seguinte ao sepultamento no cemitério. Escolha de modo algum inócua politicamente, tanto quanto não é inócua a escolha dos que vão ao túmulo de Jararaca e ignoram, bem pertinho, o túmulo do ex-prefeito conterrâneo.

Há algo sendo dito por essas ações, de modo eloquente, e é preciso escutá-las. Religião e política não são, histórica e cultural-mente, campos antagônicos, na verdade nunca foram. Cremos em A ou B, defendemos este ou aquele valor e agimos assim ou assado, mas nunca dissociamos escolhas – ou heranças, determinações familiares, como por exemplo quando damos continuidade a compromissos religiosos de um parente mais velho, ou quando, pelo contrário, nos recusamos a dar continuidade: em ambos os casos, há nessas decisões mais do que aspectos estritamente religiosos (crença ou não crença, disposição ou indisposição a performar certos rituais, convicção maior ou menor em certos princípios). Esses compromissos são sociais e, portanto, se definem

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sempre em um campo relacional, em alguma medida também público, pois têm implicações para outros, além de redefinirem nossa posição relativa frente a eles. E nem sempre estamos em situação de, inclusive, fazer escolhas, ou perceber o que de fora pareça escolha como, de fato, uma escolha para nós. Eu chamo de escolha a ida de Bastinha ao enterro de Baracho, em 1962, mas ela talvez veja essa ação mais como o cumprimento de um imperativo moral do que como escolha pessoal mesmo. Algo como “a única coisa certa a fazer”, que é como nos sentimos diante de algo que nos parece obviamente a única opção decente. Portanto, não realmente uma opção.

Como frisei quando falei sobre a prece, mesmo quando oramos sozinhos estamos operando na, e com a, linguagem, que é social por definição. Mesmo quando pensamos, fazemos isso utilizando esse código comum, e outros sistemas, de representação e ação, de diferentes tipos. Como afirmou em um livro já clássico Clifford Geertz (1978), o pensamento é social. Ou, como prefere Lévi-Strauss (2003),110 ninguém pode simbolizar e inventar sentido para as coisas sozinho, os significados são produzidos nos processos sociais, e são relacionais e sistêmicos, não intrínsecos às coisas, como se fossem propriedades naturais delas. São lições elementares de Antropologia, que vale recordar neste momento, para que fique claro o que pretendo ao afirmar que as pessoas que acorrem ao cemitério para prestar culto funerário a uma personagem pública maldita do ponto de vista da moral estabelecida, e mesmo de certas noções dominantes de racionalidade, estão fazendo uma escolha ou seguindo um imperativo moral que obedece a outra lógica, em nada estranha ao universo religioso. Essa escolha é simulta-neamente moral, política e religiosa, porque 1) ela se pauta em

110 Refiro-me à “Introdução à Obra de Marcel Mauss”, que Lévi-Strauss escreveu e que abre a clássica coletânea de ensaios desse sociólogo francês.

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valores compartilhados; e 2) ela implica tomada de posicionamento dentro de um campo de forças desiguais e hierarquizado, a partir de um leque de possibilidades de ação percebidos pela pessoa que age; 3) ela se manifesta a partir de performances rituais totais que abrangem linguagem corporal, relatos, narrativas, objetos, temporalidades e espaços determinados, mobilizando todo um repertório de crenças e valores que podem surgir mesclado a outros sistemas, religiosos ou laicos, relevantes em dado contexto para aquele indivíduo, família, grupo.

Hannah Arendt critica n’A condição humana (2007) o modo como os teóricos ocidentais tenderiam a subestimar o pensamento (ou filosofia) produzido no cerne de movimentos religiosos como aquele empreendido por Jesus de Nazaré e sua pequena comunidade de cristãos em confronto com o poder constituído, na emergência do Cristianismo. Ao acionar a iniciativa do perdão como forma alternativa de lidar com os conflitos, cancelando dívidas anteriores e zerando tudo, a proposta de Jesus de Nazaré teria sido recebida como o que de fato era: perigosa e visionária, uma versão do atual Não sou obrigado que os jovens escrevem diariamente nas redes sociais online para anunciar sua recusa em cumprir este ou aquele imperativo tido como autoevidente no plano das convenções. Essa dimensão política teria sido subestimada ou até perdida de vista, em favor de uma leitura redutora, moralizante e sentimental do perdão em nome do amor ao próximo. Por isso, Arendt prefere dissociar amor de perdão. O fundamento do perdão estaria, não no amor, mas antes no respeito – respeito por si e pelo outro.

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Todo trabalho tem relação com nossa própria história pessoal. Embora possamos apresentar um relato embasado teo-ricamente, desenvolver uma pesquisa com base em metodologias e técnicas científicas, o fato é que, para nós mesmos, e em muitos aspectos também para o resultado global do trabalho, pode ser difícil dissociar a dimensão biográfica da analítica ou teórica. Não apenas porque estamos, como tantas vezes já se disse na Antropologia e outras ciências sociais, posicionados dentro do campo relacional no qual se dão os fenômenos que observamos e discutimos, mas porque mesmo nosso interesse inicial, as questões que elaboramos, os objetivos que procuramos atingir por meio do trabalho e as escolhas teórico-metodológicas que fazemos ao longo do percurso da pesquisa e da escrita vão tecendo uma trama complexa na qual todas essas dimensões terminam enredadas uma na outra, a partir de escolhas que também são intrinsecamente pessoais, sem deixarem de ser profissionais. Essa trajetória de pesquisa é constituída por escolhas e determinações, condicio-nadas por fatores sociais e estruturais do nosso meio profissional e do momento no qual produzimos, mas também por acidentes biográficos e conjunturas mais amplas.

Eu não teria talvez me interessado por esse assunto se não houvesse aceitado o convite da minha então aluna de graduação Socorro para acompanhá-la numa viagem de ônibus a Mossoró

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durante o feriado de Finados, com a finalidade de conhecer a cidade, que até então não conhecia. Carioca, encontrava-me então em Natal há pouco mais de um ano. A intensa movimentação e aglomeração de devotos em torno do túmulo de Jararaca, e os relatos que escutei de Socorro e de outros dos presentes acerca do caso, me atraiu a atenção durante aquele dia, todavia em momento algum me fez recordar que meu próprio nome havia resultado de uma devoção semelhante por parte de minha mãe. Meu segundo prenome, Tânia, é fruto de uma promessa realizada por ela, diri-gida para uma menina ‘santificada’ pelo povo, no Rio de Janeiro. Só quando já fazia campo há alguns meses, fui lembrada disso justamente por minha mãe, quando comentei em uma conversa telefônica sobre aquela pesquisa. Todavia, não tenho dúvida de que algo em mim sabia disso mesmo antes que eu tomasse consciência de saber, pois, enquanto crescia, muitas vezes escutei a história da menina Taninha, assassinada e queimada em um terreno baldio do bairro da Penha pela amante rejeitada por seu pai, que se tornou conhecida pela alcunha de Fera da Penha.

Assim, embora pessoalmente não seja uma pessoa reli-giosa, vivi a vida inteira em um ambiente prenhe de uma mescla de elementos religiosos católicos e espíritas, com muita correria para pegar doces no dia de Cosme e Damião, nas ruas do bairro periférico onde cresci no estado do Rio de Janeiro. Também na trajetória de formação, encontrei a religião desde cedo, pratica-mente desde o segundo ano da graduação, não apenas nos textos teóricos, mas também nas primeiras experiências de pesquisa de campo. Não me estenderei, porém, sobre essa dimensão biográ-fica do trabalho, até porque me dou conta de que já estou aqui manifestando a mesma ilusão de coerência de que falei quando analisava as narrativas dos devotos. Não surpreende que seja assim, pelo contrário: compartilhamos, pelo menos parcialmente,

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do mesmo horizonte epistemológico, participamos das mesmas cadeias narrativas e, sobretudo, temos que lidar, neste caso, com as forças e limitações do mesmo gênero discursivo, em suas formas próprias de se estruturar e atualizar.

O objetivo principal deste livro – assim como da tese defendida em 2006 –, cujos dados de campo em parte aqui foram reapresentados e reanalisados, acrescentados de novas discussões desenvolvidas em pesquisas realizadas nos anos seguintes, foi apresentar uma análise das canonizações dos cemitérios que reiterasse a proposta da tese de vê-las como manifestação autônoma da população, dotada de uma dimensão política tão importante quanto a própria religiosidade e memória mobilizada e produzida por meio dela. Esse elemento político estaria associado justamente à devoção ritual como prática de memória e construção narrativa, intimamente relacionada à percepção que esses segmentos sociais têm de si e de sua posição relativa nos seus respectivos contextos sociais locais.

A mim me interessava sobretudo pensar as práticas rituais observáveis nos cemitérios como parte de uma narrativa maior sobre a vida dos mortos cultuados ali, mas também dos próprios devotos que os cultuam e das cidades onde se localizam. Da mesma forma, procurei valorizar a dimensão discursiva como parte intrín-seca de suas vivências religiosas. Não estou querendo dizer com isso, de modo algum, que contar sobre a biografia do morto, por exemplo, implique, no plano individual e subjetivo, qualquer tipo de adesão ou crença em sua santidade. O ponto é exatamente que não se trata de fenômenos que se possam compreender na chave das escolhas individuais, apenas, pois o relato testemunhal, biográfico ou maravilhoso que eu possa apresentar nunca faria sentido isoladamente, fora da referência a todo um conjunto de narrativas e relatos semelhantes. Isso é o que tornaria possível a alguém que pouco conheça sobre esses casos particulares do Rio

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Grande do Norte reconhecer de imediato de que tipo de fenômeno se trata, por comparação a casos semelhantes que comporiam, de certo modo, um mesmo repertório narrativo e remeteriam, em maior ou menor grau, às mesmas matrizes religiosas.

O principal motivo de controvérsia sobre as canonizações populares de Baracho e de Jararaca, seja entre os frequentadores dos cemitérios, devotos ou não, seja entre outros agentes sociais que se manifestam sobre o assunto na esfera pública, tem origem no fato de, na memória local, ambos estarem irremediavelmente associados ao crime. Vezes sem conta escutei, durante o tempo da pesquisa de campo, e mesmo em eventos posteriores, a frase “dizem que ele é santo (ou “faz milagre”, “ajuda os pobres”), mas ele era bandido!”, de tal modo a tornar clara uma oposição semântica (como também moral, ética e política) entre as duas condições: ser bandido, ser santo. Menos que qualquer conjunto de ações concretamente atribuída a um ou outro papel social, digamos assim, o que importa aí é perceber que ambas são potências capazes de gerar todo um campo de possibilidades simbólicas e performativas. E que, como mostram muito bem os casos, acentuar um ou outro, ou um em detrimento do outro, não elimina o outro polo, pelo contrário: só chama atenção para o quanto ele é necessário para que aquele que se deseja acentuar em certo contexto aceda a maior grau de significação e relevância.

As controvérsias verbais, muitas vezes atualizadas sob a forma de discussões e bate-bocas, podem ganhar, como vimos, contornos agressivos em algumas situações, no cemitério e fora dele. Isso pode se dar em uma chave religiosa, segundo a qual a devoção ao morto é coisa do Diabo, ou em uma chave inteiramente secular. Frente ao passado criminoso de João Baracho e José Leite de Santana, pode se manifestar – e isso tem se tornado mais frequente, a olho nu, nos últimos anos – o mesmo discurso punitivo que se

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tornou banal numa realidade social saturada pela violência urbana cotidiana, onde a opinião pública é persuadida da ideia de que esta resultaria de uma generalizada impunidade dos criminosos. Quando Jararaca e, principalmente, João Baracho, são percebidos a partir desse recorte, a devoção torna-se manifestação de uma suposta romantização e idolatria por bandidos, alimentada por veículos da mídia – a mesma mídia que também alimentaria o punitivismo.

Desse ponto de vista, mesmo o cuidado funerário devotado a esses mortos, despido de qualquer crença em suas supostas capa-cidades miraculosas, torna-se motivo de escândalo. Essa postura pode surgir em qualquer daqueles segmentos que mencionei acima: pentecostais, que acusam os devotos de diabólicos ou vítimas das seduções do Diabo; intelectuais que veem essas crenças como superstições ou expressão de desespero ou ingenuidade; higie-nistas que alegam prejuízo para a saúde pública devido à sujeira produzida pelos cultos no cemitério; parentes de outros mortos que se encontram no mesmo cemitério; e, ainda, os funcionários que trabalham ali e devem zelar pela manutenção de sua ordem interna.

Essa constatação, de que a condenação ao status de crimi-noso/bandido, atribuída a Jararaca e a Baracho, “canonizados pelo povo”, transcenderia mesmo sua morte, impressionou-me muito mais do que o fato de que alguns os acreditassem santos póstumos, capazes de realizar milagres. Então, Baracho, foragido da cadeia pública em Natal, é encurralado no fundo de um beco pela polícia, fuzilado com 18 tiros; Jararaca, então prisioneiro em Mossoró, com um ferimento à bala, é transportado pela polícia, a pretexto de ser transferido para um hospital na capital, e termina sendo enterrado vivo no cemitério local, após ter sua perna quebrada “para caber na cova”, segundo depoimento posterior de um dos soldados que teria participado desse ato, em 1927 – e nada disso basta? Não foi punição suficiente?

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Na realidade, impressionou-me também o fato de que, mesmo em 1927, no calor dos fatos – ou em 1962, com todo o carnaval político que transformou a morte de Baracho em capital político para campanha eleitoral, apresentando seu corpo como troféu exibido pelas ruas da cidade – parcelas expressivas da população local tenham acorrido ao cemitério para homenagear e orar por eles.

Não, as pessoas não cultuam personagens como Jararaca ou Baracho porque “gostam de bandido”. Tampouco porque sejam alie-nadas ou ingênuas. Elas os cultuam por motivos os mais diversos, particulares e heterogêneos, alguns dos quais procurei apresentar no decorrer deste livro. As razões de ontem (para devoção ou rejeição) não são necessariamente as razões de hoje; quero dizer, o que levou as pessoas ao cemitério no calor dos acontecimentos nas décadas de 1920 (Jararaca) e 1960 (Baracho) – ou as razões que as afastam de lá – não são as mesmas razões de hoje. Até porque as percepções e ideias acerca do que então e agora chamamos de crimes, bandidos, violência ou injustiça certamente mudaram, em ambas as cidades, inclusive em seus segmentos sociais de baixa renda, nas suas periferias. No entanto, ainda podemos observar aspectos comuns, como o próprio fato de sua potencialidade como agente espiritual continuar a ser ativada por práticas rituais devo-cionais, cuja intensidade, adesão popular e visibilidade midiática oscilam constantemente desde seu surgimento. Ou, ainda, o fato de que seu culto funerário atual não difira substantivamente das homenagens prestadas na época em que sua morte foi tornada pública pela primeira vez, ou o fato de que sua história continue relevante, reverberando junto a segmentos da população como pretexto para discussões políticas sobre justiça/injustiça, hierar-quia/igualdade, e reconstruções orais da memória local, que é inevitavelmente memória de suas próprias vidas.

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Não nos devemos precipitar em associar crenças religiosas a alienação política, ingenuidade ou desconhecimento de fatos históricos. A religião pode operar, com seu universo de ideias, imagens, metáforas, valores, mitos, como chave de leitura para a compreensão das experiências da vida, das mais cotidianas às mais extraordinárias, das positivas às mais arrasadoras. Ela pode contribuir para que as pessoas consigam atribuir sentido aos acon-tecimentos, inclusive os mais drásticos, de difícil assimilação: os imprevistos, as tragédias, as perdas, as dores físicas e emocionais. E não apenas isso, sobretudo em seu aspecto ritual, ela pode oferecer um contexto de ação no qual se torna possível atuar, mesmo a partir de uma posição social de relativa subalternidade, dando visibilidade a sentimentos, interpretações e posições éticas que não poderiam talvez ser expressos de outra maneira, publicamente, acerca de acontecimentos de interesse coletivo, atuais ou pretéritos.

O sofrimento de Jararaca, torturado, baleado e enterrado vivo, ou de Baracho em sua fuga, baleado, deixando um rastro de sangue pelas vielas da favela do Carrasco, sendo rejeitado por vizinhos que se teriam recusado a escondê-lo ou a dar-lhe um copo de água, evocam para muitos dos devotos imagens comoventes – em sentido literal, que os fazem se mover junto – que remetem a memórias pessoais de suas próprias dificuldades e sofrimen-tos, por um lado, e a representações religiosas paradigmáticas do Cristianismo, extremamente difusas na cultura brasileira e Ocidental em geral, como as imagens da Paixão de Cristo e a crença no valor penitencial do sofrimento. Essas duas dimensões nem sempre são claramente dissociáveis no plano da experiência pessoal, pois essas representações, imagens, valores, articuladas a tantas outras, inclusive seculares, são constitutivas da espessa textura que constitui sua (nossa) visão de mundo.

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Como informei, houve significativa redução, nos últimos anos, no número de frequentadores desses cultos no cemitério, especialmente no caso de João Baracho, que não conta com o suporte simbólico de todo o aparato administrativo e turístico que recontextualiza a saga de Jararaca em Mossoró no âmbito do cangaço, apreendido como fenômeno histórico. Assim, ao contrário de João Baracho, José Leite de Santana, o Jararaca, pode escapar parcialmente da crônica policial ou do banditismo para ingressar nas páginas da história mossoroense, logo do Rio Grande do Norte, ainda que como encarnação da alteridade vencida, do Outro contra o qual o sujeito (a cidade, as autoridades locais, o cidadão mossoroense) se apresenta vitorioso e heroico.

Além desses fatores, é importante considerar ainda o crescimento, nas últimas décadas, das religiões pentecostais e neopentecostais, como a Igreja Universal do Reino de Deus e a Assembleia de Deus, cada vez mais presentes em ambas as cida-des – e, notavelmente, nos cemitérios durante datas significativas no calendário cristão, especialmente na grande data que é o Dia de Finados. A rejeição, manifesta frequentemente nos cemitérios e entre vizinhos como atitude de hostilidade, por parte dos seus adeptos a esses cultos, e outros similares, pode ter relação com esse decréscimo, mas não estou em condições de afirmar que exista uma relação causal direta entre esses dois fenômenos. Porém, se a aproximação eventual ou presença deliberada de pessoas adeptas de religiões pentecostais/neopentecostais junto ao túmulo cultuado já causava, frequentemente, desde os anos 1990, constrangimentos aos devotos de Baracho e Jararaca, dando lugar a alguns conflitos verbais no cemitério, hoje essa presença tornou-se muito mais ostensiva e, de certo modo, oficializada, durante o feriado que celebra Finados, e isso pode, de fato, estar contribuindo para expulsá-los de lá ou fazê-los dispersar suas práticas rituais devocionais por outras

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datas do calendário religioso – como o tradicional dia de culto às almas – segunda-feira – ou retraí-las para a esfera doméstica e outros espaços reconhecidos de culto, como os cruzeiros de igrejas católicas ou do próprio cemitério.

Curiosamente, ao lado da percepção da redução da frequên-cia ao túmulo, está outra: a de que todos estranham e comentam essa redução, ou seja, essa percepção da redução, em que pese o fato de que esteve presente desde o início do trabalho de campo, costuma ser acompanhada de observações verbais sobre o estado de abandono do túmulo (no caso apenas de João Baracho, no Bom Pastor) ou de sua menor procura hoje por devotos (em ambos os casos, mas expressivamente também mais no caso de Baracho). É necessário, porém, matizar essas afirmações, tendo-se em conta que, desde meados dos anos 1990, eu já escutava esses comentários, em tom nostálgico que sugeria que a devoção atual já não seria mais “como antigamente”. Os cultos a Jararaca, Baracho e outros simila-res parecem habitar aquele território “clássico” na Antropologia dos objetos cronicamente à beira da extinção, que, todavia, de algum modo volta e meia se reencantam e reascendem, quando menos se espera. Além disso, como também já ressaltei ao longo do trabalho, a frequência aos túmulos sempre se mostrou instável do ponto de vista quantitativo, tendo apresentado aglomerações e esvaziamentos mesmo ao longo de um único dia de feriado de Finados ou de um ano para outro. Assim, em que pese a possibilidade de que um desses cultos devocionais realmente se extinga, como parte de uma espécie de ciclo de vida dos rituais e crenças, isso teria que ser avaliado como parte de um quadro social maior que incluísse o dinamismo global desses ritos nos cemitérios, das religiões nas duas cidades e, até, de outros referenciais pertinentes aos casos, como a atual percepção generalizada entre a população de um aumento da violência urbana e da impunidade dos criminosos, o

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que evidentemente pode incidir sobre como se pensa hoje sobre alguém como Baracho ou como o cangaceiro Jararaca.

Todavia, embora em menor quantidade, as garrafas de água para Baracho ainda são oferecidas, as orações e pedidos, assim como os pagamentos de promessas, ainda podem ser observa-dos nos cemitérios às segundas-feiras, na data do aniversário de morte, no Dia de Finados. No túmulo de Jararaca, já em 2019, chegou a haver aglomeração e presença de repórteres, como em anos anteriores, embora ainda se repetisse por lá “já não como antigamente, quando ficava lotado de gente”. Como “santos de casa”, termo cunhado por Cascia Frade (1987, 1984), “pequenos” e “marginais” no terreno da religiosidade local, ainda que abrigados em sólida tradição funerária, muitos deles estão em “em vias de extinção” desde que foram inventados a partir, e neste lugar precário de existência. No entanto, permanecem ali, prontos para “passar à ação” (LATOUR, 2002, p. 45) ao menor chamado da ação ritual, individual ou coletivo, e não apenas, passivos, como objetos esvaziados de potência simbólica.

Ao colocarem a mão na massa e fabricarem um santo local, a partir da bruta e improvável matéria-prima de um cangaceiro e de um ladrão-assassino, as pessoas também passaram à ação, do modo que lhes foi possível, olhando para a frente, para o futuro: era preciso reintegrar aquele morto de certo modo maldito, imprevisto, trágico, que até então só remetia à violência, dor, sede, perigo. Em plena crise, sob uma espécie de trauma coletivo, essas ações se realizaram sob linguagem ritual – gestual, imagética, verbal – das homenagens funerárias, dos cuidados com o morto. Velas foram acesas, flores naturais ou artificiais lhe foram oferecidas, preces foram endereçadas a Deus em favor de sua salvação. Ao prometer a Baracho e se comprometer desse modo com ele, por meio desses rituais, construíram para si e para sua comunidade,

Considerações finais

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onde antes só havia tragédia, o que Hannah Arendt chamou de forma poética “ilhas de segurança no futuro” (ARENDT, 2007, p. 249). Ao perdoarem Baracho/Jararaca, os retiraram das páginas policiais para as dos eventos religiosos, libertando-se a si mes-mas e aos que viriam depois, da obrigação de odiá-los como os inimigos da comunidade que a mídia e as elites políticas de então lhes apresentava. Infelizmente, hoje talvez as pessoas, inclusive as mais humildes, estejam menos livres das cadeias temporais cíclicas que engendram e fundamentam a lógica da retaliação, e, portanto, já não consigam tão comumente contemplar alternativas de superação da violência que não passem necessariamente por práticas punitivistas, que a perpetuam, ao invés de eliminá-la. Hoje talvez o perdão lhes seja mais difícil e o futuro, inevitavelmente incerto ou, no limite, improvável.

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ATACADO a faca peixeira o militar: S. J. de Mipibu. o militar acredita ter sido baracho o agressor. Diário de Natal, Natal, p. 1-1, set. 1961. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=028711_01&pasta=ano%20196&pesq=%22Jo%C3%A3o%20Baracho%22. Acesso em: 20 jun. 2018.

BARACHO cai em contradições e o seu comparsa... Diário de Natal, Natal, p. 3-3, 24 ago. 1961. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=028711_01&pasta=ano%20196&pes-q=%22Jo%C3%A3o%20Baracho%22. Acesso em: 19 jun. 2018.

BARACHO matou seu filho: seu dia amanhã será triste. Tribuna do Norte, Natal, p. 1-1, 12 maio 1962.

BARACHO, mito e anatomia de um bandido. Tribuna do Norte, Segundo Caderno, Natal, p. 1-1, 26 mar. 1995.

BARACHO morreu quando fugia: quatro tiros. Emboscada. Tribuna do Norte, Natal, p. 8-8, 1 maio 1962.

BARACHO não se encontra em nossa capital: diz o delegado. Diário de Natal, Natal, p. 1-1, set. 1961. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=028711_01&pasta=ano%20196&pes-q=%22Jo%C3%A3o%20Baracho%22. Acesso em: 20 jun. 2018.

BARACHO recebeu cinco balaços: todos de frente. Diário de Natal, Natal, p. 3-3, 2 maio 1962.

BARACHO solto teria assassinado um carvoeiro. Diário de Natal, Natal, p. 3-3, 5 set. 1961. Disponível em: http://memoria.bn.br/

DocReader/docreader.aspx?bib=028711_01&pasta=ano%20196&pes-q=%22Jo%C3%A3o%20Baracho%22. Acesso em: 20 jun. 2018.

CAMPANHA: ajuda às pequeninas grandes vítimas de Baracho. pescadores de Pirangy ajudam e prefeitura doa terreno para casas. Tribuna do Norte, Natal, p. 8-8, 11 maio 1962.

COMO se pode contar a vida de Baracho. Diário de Natal, Natal, p. 3-3, 2 maio 1962.

COSME, com ameaça de morte, troca a detenção. O Poti. Natal, 19 nov. 1961.

DELEGADO de Parnamirim vai depor no processo Baracho. Diário de Natal, Natal, p. 6-6, 10 out. 1961. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=028711_01&pasta=ano%20196&pes-q=%22Jo%C3%A3o%20Baracho%22. Acesso em: 20 jun. 2018.

DELEGADO especial será designado: inquérito. Diário de Natal, Natal, p. 3-3, 2 maio 1962.

DELEGADO para o inquérito sobre a morte de Baracho. Tribuna do Norte, Natal, p. 8-8, 5 maio 1962.

ESCOLTA policial viajou hoje pela madrugada: foi buscar Baracho! Diário de Natal, Natal, p. 1-1, out. 1961. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bi-b=028711_01&pasta=ano%20196&pesq=%22Jo%C3%A3o%20Baracho%22. Acesso em: 20 jun. 2018.

FUZILADO Baracho. Diário de Natal, Natal, p. 3-3, 2 maio 1962.

INQUÉRITO de Baracho desaparece e ele aparece no cajueiro, pedindo água. Tribuna do Norte, Natal, p. 8-8, 17 maio 1962.

INQUÉRITO sobre a fuga de Baracho não revelou nada ainda de concreto. O Poti, Natal, 8 out. 1961.

INQUÉRITO sobre a morte de João Baracho prosseguirá. Diário de Natal, Natal, p. 3-3, 29 maio 1962.

JOSÉ Cosme terminou... Diário de Natal, Natal, p. 3-3, 25 ago. 1961. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=028711_01&pasta=ano%20196&pesq=%22Jo%C3%A3o%20Baracho%22. Acesso em: 19 jun. 2018.

JOSÉ Cosme terminou confessando: “ajudei Baracho a matar Moisés”. Diário de Natal, Natal, p. 1-1, 25 ago. 1961. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=028711_01&pasta=ano%20196&pesq=%22Jo%C3%A3o%20Baracho%22. Acesso em: 19 jun. 2018.

LIBERTADA ontem à noite a amasia de João Baracho: Juíz deferira à tarde, o habeas corpus impetrado pelo bacharel Italo Pinheiro. Diário de Natal, Natal, p. 3-3, 29 dez. 1961. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=028711_01&PagFis=10663&Pesq=%-22Jo%c3%a3o%20Baracho%22. Acesso em: 20 jun. 2018.

MÃE do motorista Moisés do Nascimento: “Baracho não tirou meu bocado, mas tirou minha alegria”. Tribuna do Norte, Natal, p. 8-8, 12 maio 1962.

MARIA Lucia foi quem ajudou Baracho para a fuga fatal. Diário de Natal, Natal, p. 3-3, 2 maio 1962.

MARIA Lucia lavou a camisa de Baracho: estava suja de sangue. Diário de Natal, Natal, p. 1-1, 25 ago. 1961. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=028711_01&pasta=ano%20196&pesq=%22Jo%C3%A3o%20Baracho%22. Acesso em: 19 jun. 2018.

MARIA Lucia só soube da morte de Baracho às 22. Diário de Natal, Natal, p. 3-3, 2 maio 1962.

“MATARAM o taifeiro para roubar-lhe um relógio e 270 mil cruzei-ros”: Assim a imprensa de Fortaleza noticiou o latrocínio praticado ali por Baracho e “Caroço de Manga” - Sob um falso bigode e usando costeletas, o famigerado matador de motoristas, usava três nomes, em Fortaleza - Os detalhes da chacina de que foi vítima o mari-nheiro Ricardo Sanford Gomes. Diário de Natal, Natal, p. 1-1, out. 1961. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=028711_01&pasta=ano%20196&pesq=%22Jo%C3%A3o%20Baracho%22. Acesso em: 20 jun. 2018.

MINEIRINHO reduzido a simples cobaia para estudo de anatomia. Tribuna do Norte, Natal, p. 1-1, 1 maio 1962.

MORTE de Baracho: governador pede inquérito. Tribuna do Norte, Natal, p. 8-8, 3 maio 1962.

PERIPÉCIAS de Baracho, na vida do crime dão... Diário de Natal, Natal, p. 3-3, 24 ago. 1961. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=028711_01&pasta=ano%20196&pesq=%22Jo%-C3%A3o%20Baracho%22. Acesso em: 19 jun. 2018.

PLANO da fuga vinha sendo arquitetato há algum tempo. Diário de Natal, Natal, p. 3-3, 2 maio 1962.

POLICIAIS agiram como celerados: vereador. Repercutiu mal, entre os representantes natalenses, o massacre do marginal João Baracho – Apenas José Guará justificou a ação policial. Diário de Natal, Natal, p. 3-3, 3 maio 1962.

POLICIA procura localizar “Gato Preto”, companheiro de Baracho. Diário de Natal, Natal, p. 1-1, ago. 1961. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=028711_01&pasta=ano%20196&pesq=%22Jo%C3%A3o%20Baracho%22. Acesso em: 20 jun. 2018.

POLÍCIA vai interrogar novamente João Baracho. Autoridades pretendem esclarecer de vez o caso das mortes de Antonio Carlos e Candido Leones – Não foi revelado o dia do depoimento – Continua fortemente guardado na Roubos e Furtos. Diário de Natal, Natal, p. 1-1, nov. 1961. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=028711_01&PagFis=10663&Pesq=%22Jo%-c3%a3o%20Baracho%22. Acesso em: 20 jun. 2018.

PROCUROU a amante e encontrou a morte. Diário de Natal, Natal, p. 1-1, 2 maio 1962.

SINDICATOS, motoristas e povo contribuem para campanha de ajuda às pequenas vítimas de Baracho. Tribuna do Norte, Natal, p. 8-8, 10 maio 1962.

TESTEMUNHAS confirmaram acusações contra baracho: Ouvidas três das cinco pessoas convocadas pelo dr. Poti Martins, na manhã de hoje. Ouvidas três das cinco pessoas convocadas pelo dr. Poti Martins, na manhã de hoje. Diário de Natal, Natal, p. 1-1, 2 maio 1962.

TRIBUNA e Rádio Cabugi iniciam hoje campanha: ajuda as pequeninas grandes vítimas de Baracho. Tribuna do Norte, Natal, p. 8-8, 8 maio 1962.

VINTE e dois ferimentos no cadáver de Baracho. Enterrado hoje, o corpo do bandido. Diário de Natal, Natal, p. 3-3, 2 maio 1962.

Sobre José Leite de Santana, o Jararaca

ALMEIDA, Fenelon. O Cangaceiro que Virou Santo. O Povo, Fortaleza, 8 nov. 1980.

______. Lampião receava atacar Mossoró. O Povo, Fortaleza, 9 nov. 1980.

______. A Marcha do Furacão. O Povo, Fortaleza, 9 nov. 1980.

______. Começou o Êxodo. O Povo, Fortaleza, 10 nov. 1980.

______. Ultimato de Lampião. O Povo, Fortaleza, 11 nov. 1980.

______. Cidade de Quatro Torres. O Povo, Fortaleza, 12 nov. 1980.

______. Jararaca Baleado. O Povo. Fortaleza, 13 nov. 1980.

______. A Epopeia de Mossoró. O Povo, Fortaleza, 14 nov. 1980.

______. Jararaca e o Corinthians. O Povo. Fortaleza, 15 nov. 1980.

“CHUVA DE BALA” e memorial da resistência traçam a história de Mossoró. Diário do Nordeste, Mossoró, 26 jun. 2019.

ESCÓSSIA, Lauro da. Entrevista com Jararaca (José Leite de Santana). O Mossoroense, Mossoró, 19 jun. 1927.

NEGREIROS, Adriana. O julgamento de Jararaca. Um soldado de Lampião no banco dos réus da História. Revista Piauí, 130, jul. 2017. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-julgamento--de-jararaca/ Acesso em: 24 set. 2017.

TOK DE HISTÓRIA. Mossoró expulsou o bando de Lampião à bala – Disse não à extorsão do cangaceiro – Um grande fato na história do Nordeste – Fatos e Fotos!. 13 dez. 2015. Disponível em: https://tokdehistoria.com.br/tag/memorial-ao-cangaco-e-a-resistencia/ Acesso em: 11 dez. 2019.

TÚMULO de “Jararaca” é o mais visitado em Mossoró. Tribuna do Norte. Natal, p. 11-11, 3 nov. 1998.

AgradecimentosEste trabalho não teria sido possível sem o financiamento

da CAPES. Ressalto aqui, portanto, antes de tudo a importância do apoio da agência de fomento à pesquisa no Brasil.

Tão importante quanto o apoio financeiro, foi a disponibili-dade de tantas pessoas que me ofereceram seu tempo e atenção e se dispuseram a compartilhar comigo seus conhecimentos, experiências e lembranças acerca dos casos que eram assunto principal das pes-quisas. Nisto incluo os devotos/as, os trabalhadores dos cemitérios, dos arquivos dos jornais e Museus, cujos acervos foram consultados.

Hoje, parte dos recursos que consultei em papel estão dis-poníveis em formato digital nas hemerotecas da Biblioteca Central Zila Mamede, da UFRN, e na Biblioteca Nacional, inclusive online, como é o caso do Diário de Natal, que se encontra acessível na BN. Pude acessar recentemente muitos novos materiais sobre os casos através da internet. A todos que trabalharam para tornar possível a consulta online desse material registro aqui meu agradecimento.

Quero ainda agradecer a todos, professores, colegas, alunos e amigos que contribuíram, em diferentes momentos da minha trajetória, e de diferentes maneiras, para minha formação – e aqui utilizo a palavra em sentido amplo, não apenas no acadêmico. À professora Regina Novaes, do IFCS/UFRJ, pela orientação da pes-quisa de doutorado que veio a, anos depois, após tantas retomadas da pesquisa e revisões, resultar neste livro; e ao colega e amigo Luiz Assunção, cujo apoio tem sido tão importante ao longo da nossa convivência profissional na UFRN.

Por fim, meu agradecimento especial à minha família.

Sobre a autoraEliane Tânia Freitas é antropóloga, graduada em Ciências

Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Mestre e Doutora em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente é professora associada na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), onde ensina desde 1996 e desenvolve pesquisas nos campos da religião, mídias digitais e consumo.


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